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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


THEO / J. Marquesi
THEO / J. Marquesi

                                                                                                  

  

 

 

 

 

Uma família separada pelo ódio...
Criado pelo avô, renegado pelo pai, odiado pelos irmãos, Theodoros Karamanlis recebeu o cargo de CEO da empresa da família. Sua principal meta é provar a todos que é mais competente do que o homem que sempre o renegou, seu pai. Para isso acontecer, falta apenas comprar o imóvel onde funciona um pequeno pub na Vila Madalena e assim fechar uma conta aberta há mais de dez anos.
Uma família mantida pelas lembranças...
Maria Eduarda Hill sempre teve o sonho de ser uma renomada chef de cozinha, mas, por circunstâncias do destino, acabou assumindo o antigo boteco de seu pai na Vila Madalena. Ela trabalha duro para manter o negócio e preservar a memória de sua família e luta bravamente contra o assédio de uma empresa que quer comprar e demolir o lugar.
Uma noite, um bar, e uma química explosiva...
Depois de cair em uma armadilha e conhecer a irritante cozinheira que o impede de fechar o maior negócio de sua empresa, Theo se vê dividido entre essa forte atração, conquistar o que seu pai não foi capaz e uma promessa feita ao avô. Por mais que resista, o grego não consegue ficar longe de Maria Eduarda, então começa uma implacável sedução para tê-la em sua cama.
Theo e Duda têm tudo para se odiarem. No entanto, mal sabem eles que a paixão não se conduz pelo óbvio!
A todas as Jujubas do meu potinho cheio de amor!

 

 

 

 

 

 

— Parabéns, doutor Karamanlis! — Rômulo, meu assistente, soa exultante ao me cumprimentar. — Falta pouco agora para o senhor conseguir fechar essa conta! — Olha sua agenda. — O senhor tem uma reunião com o doutor Villazza daqui a...

Não dou muita atenção à falação dele, muito menos aos elogios animados. Sei bem que, embora tenha dado um passo gigante, ainda não conquistei minha vitória, não enquanto não tiver cumprido todas as metas que tracei para minha gestão à frente do negócio da família.

Olho para a parede esquerda do meu escritório, diretamente para o mapa emoldurado cujo círculo abrange a única propriedade que falta ser comprada para termos a total posse do quarteirão que mais tem se valorizado na área da Vila Madalena.

Foi exatamente por causa dessa bendita área que meu pai, o poderoso Nikolaous Karamanlis, perdeu seu reinado por aqui e foi substituído por seu renegado filho mais velho. Tenho consciência de que Rômulo tem razão quando me parabeniza pelo trabalho à frente da empresa. Millos, meu primo, e eu temos feito uma gestão muito produtiva, mas ainda não consigo estar satisfeito, não enquanto não conseguir comprar o último pedaço de terra daquele lugar.

Millos tem tentado me convencer a não me cobrar tanto sobre essa questão, afinal nem temos um cliente para instalar nessa área, perdido há muito tempo, quando meu pai prometeu o lugar e não conseguiu cumprir a promessa. O que ele não entende é que há muito tempo isso deixou de ser apenas um negócio, é uma questão de honra conseguir aquilo que meu progenitor não alcançou.

Balanço a cabeça ao pensar no meu pai e na nossa conturbada convivência. Não, não é hora de pensar em todas as merdas que aconteceram na nossa família!

Levanto-me e sirvo uma dose do meu puro malte favorito para relaxar um pouco, querendo já estar em casa.

Casa... Essa palavra me faz pensar em meu país, a Grécia e me desperta outra lembrança dolorosa: meu avô e a promessa que fiz a ele. Geórgios Karamanlis está prestes a completar 90 anos, mas, como diz o ditado por aí, vaso ruim não quebra facilmente. O homem que me criou, que me ensinou tudo sobre os negócios agora exige de mim uma família.

Uma família! Rio debochado a esse pensamento, a essa palavra tão sem sentido na minha vida e na dos meus irmãos. Família não significa nada mais do que pessoas que compartilham a mesma linhagem, pois os Karamanlis não são conhecidos por laços além dos de sangue. Somos todos fodidos de alguma forma, cada um com suas merdas para carregar, seus fantasmas e esqueletos no armário.

Somos ótimos trabalhando juntos, mas é só.

Não sei da vida particular de nenhum dos meus irmãos mais do que sei da de qualquer outro funcionário da empresa. Muito menos me importo com isso! Todos são adultos e, se querem continuar agindo como crianças chorosas e traumatizadas, o problema não é meu.

Rômulo volta à minha sala cheio de pastas com arquivos e me avisa que o carro já me aguarda para me levar até o Villazza SP, onde, além de conversar com Frank, vou aproveitar para almoçar no Vincenzo com ele como companhia, pois detesto comer sozinho.

Enquanto meu assistente se instala à sua mesa, passo na antessala e me despeço da Luíza, secretária da diretoria, deixando meu celular corporativo para trás, pois não quero ser incomodado na hora do meu almoço.

— Estou indo para a reunião com o CEO da rede Villazza; qualquer assunto, anote o recado. — Aponto para o celular. — Volto daqui umas duas ou três horas, pois vou almoçar por lá.

— Certo, doutor Karamanlis.

Despeço-me dela e sigo para a garagem subterrânea do prédio onde fica a nossa empresa, fundada no Brasil há décadas, instalada bem no coração da cidade de São Paulo, a Avenida Paulista. Tenho orgulho de ser o diretor executivo daqui; orgulho do nome e do respeito que conquistamos ao longo dos anos.

O setor imobiliário no Brasil passa por algumas crises, como acontece também no mundo inteiro, mas não para de avançar. Há sempre pessoas querendo moradia, empresas atrás de locais para seus negócios, então nós nunca ficamos sem fechar bons acordos rentáveis.

Meus pensamentos são levados para os Yannes, uma rede de resorts de aventura que tem unidades instaladas nos locais mais incríveis do mundo. Essa tem sido uma conta difícil, por causa de todos os entraves legais desse tipo de empreendimento, mas que, pelas últimas notícias que tive, isso irá ser solucionado em breve.

Sorrio largo ao pensar na Malu Ruschel, uma das minhas melhores gerentes e, com certeza, futura diretora da Karamanlis. A mulher é uma máquina de trabalhar, tanto que tive que a obrigar a tirar férias, mas a danada até descansando é atenta e descobriu o local que tanto procurávamos para o resort.

Malu, além de competente, é linda demais! Confesso que sempre tive uma enorme curiosidade de saber como é ter toda aquela tensão, toda aquela organização e meticulosidade debaixo do meu corpo, gemendo de prazer. Balanço a cabeça, afastando esse pensamento.

Mesmo me sentindo muito atraído por ela, nunca iria tentar qualquer coisa. Não por medo ou insegurança, pois acho que nos daríamos muito bem na cama, pois ela aparenta ser uma mulher segura de si, madura e que sabe separar o prazer do coração. Definitivamente, Malu não é daquelas que se apaixonam!

O que me impede de buscar um entendimento íntimo com ela é puramente ético. Eu não como funcionárias; por mais tesão e vontade, não faço isso. Ao contrário do meu irmão, Kostas, eu as enxergo como iguais e detestaria ter algum machista questionando a capacidade de uma delas apenas por estar trepando com o chefe. E, infelizmente, isso acontece muito nas empresas por aí. Quando um homem recebe uma promoção, é porque mereceu, mas, se é a mulher quem recebe, não foi por merecimento, mas porque ela tem uma boceta! É simplesmente ridículo e, por isso mesmo, prefiro não me envolver. Se há algum diretor ou gerente fazendo isso, é pelas minhas costas – porque todos sabem que não aprovo – e é discreto demais, pois isso não chegou aos meus ouvidos.

A regra geral na empresa é: evitem relacionamentos dentro do ambiente de trabalho, porque isso só causa problemas. Agora, se isso acontecer e as duas partes concordarem, acabarem se acertando, eu não as demito ou proíbo. Não sou babá de marmanjo! Há casais na Karamanlis, a maioria formada lá dentro mesmo. Eu seria hipócrita se fingisse que não há. Não me sinto à vontade para manter um caso com qualquer uma das minhas funcionárias, mas não sou arbitrário a ponto de, se acontecer com outros, demitir um ou mesmo os dois envolvidos.

Minha consciência diz que isso é só mais um dos traumas que carrego, mas a ignoro, mandando-a se foder.

Chego ao Villazza e sou recepcionado rapidamente pela assistente do Frank, Alice.

— Bom dia, doutor Karamanlis. Desculpa tê-lo feito vir para o hotel, mas é que estamos com uma pequena reforma na sala da diretoria no prédio administrativo, então viemos para cá.

— Sem problema, Alice! — Sorrio. — Eu vou aproveitar para almoçar com o carcamano no Vincenzo.

Ela faz careta.

— O senhor Villazza tem outra reunião na hora do almoço e vai sair daqui direto para ela.

Dou de ombros, resignado.

A parte administrativa do Villazza SP fica toda no térreo, mas Frank optou por usar uma das suítes preparadas como home offices, duplex com um escritório completo embaixo e quarto no mezanino.

— Espero que não esteja usando este lugar apenas como desculpa para comer fora do casamento... — falo assim que o vejo, concentrado em sua mesa. — Se Isabella te largar, juro que me caso com ela.

— Dovrai prima uccidermi, maledetto!1

— Não me tente, Frank Villazza! — Aperto sua mão. — Estou sendo pressionado.

O carcamano ri à minha custa.

— Seu pappoús2 ainda está querendo vê-lo casado? — Faço careta e assinto. — Você deveria levá-lo em consideração.

— É incrível como Isabella te domou! — Cruzo os braços e me sento em uma confortável poltrona. — Eu ainda me lembro de seus discursos anticasamento. — Rio. — Lembra como você se apresentou a mim naquele bar?

Frank sorri, embalado pelas lembranças de um tempo em que ainda ostentava o título de playboy. Nós dois aprontamos muitas coisas juntos, principalmente na época de Harvard, onde nos conhecemos. Promovemos algumas orgias, dividimos a mesma parceira, fumávamos baseados juntos e frequentávamos clubes de sadomasoquismo.

Nossa última aventura foi meses antes de ele conhecer sua esposa. Frank estava de férias na Itália, e, assim que eu soube que ele estava em Roma, chamei-o para me visitar em Atenas. Naquela semana em que ficou hospedado no meu apartamento, ele tentou de todas as formas me convencer a participar de um congresso na Suíça que ocorreria meses depois, mas para o qual era preciso garantir vaga. Nossos outros companheiros de Harvard já haviam feito reserva, mas eu declinei do convite, pois já estava me preparando para ir morar no Brasil e assumir a Karamanlis.

Viajamos de iate pelas ilhas naquela semana e, numa das mais belas do mar Jônico, fomos a uma boate muito louca, bebemos todas, e eu tive a trepada mais memorável da minha história.

Eu ainda me lembro dela! Era linda, corpo sarado, com uma barriga plana e de cintura fina de fora. Usava uma blusinha curta e minissaia de couro. Nos pés, botas altas, salto agulha, destacando suas pernas deliciosas. A mulher era um espetáculo para os olhos e me atraiu como ninguém.

Os cabelos, longos e pintados de rosa, balançavam ao ritmo da música. Ela estava acompanhada com mais cinco amigas, todas bem bonitas, sendo que duas delas desapareceram com Frank ao final da noite.

— Cazzo! — Frank xingava excitado ao vê-las dançando e nos oferecendo brindes com seus copos. — São muito novinhas!

— Foda-se! — eu disse sem conseguir tirar os olhos da mulher de cabelos rosa. Eu esperava apenas um movimento dela, apenas um sinal de que estava disposta, e, quando ele veio, olhei para meu amigo com um sorriso vitorioso. — A do cabelo rosa é minha!

Fomos até o grupo, dividimos suas bebidas – elas estavam bem abastecidas —, e, mesmo sem nenhuma apresentação, comecei a dançar com a beldade de cabelos coloridos. Frank ainda me dizia que eram garotas muito novas, ressaltando que deviam ter a idade de sua irmã caçula. Ele estava sempre tentando não trepar com moças jovens e inexperientes, mesmo que já tivesse sido surpreendido algumas vezes por elas, mas sempre acabava cedendo, como de fato ocorreu.

O dia estava amanhecendo quando duas se penduraram nele ao mesmo tempo, e o filho da puta parecia o rei do prazer. As duas se esfregavam nele, que as fazia tocarem uma à outra também, divertindo-se como um sultão. Sinceramente não senti nenhuma inveja; a mulher que estava comigo me deixava louco com sua dança, com nossos amassos e seus beijos etílicos. Eu queria sair dali, levá-la para algum hotel e passar o resto do dia a fodendo em desespero.

Ela dançava como se o mundo lhe pertencesse, movimentando seu corpo ao som das melodias, os músculos pulsando a cada batida, olhos brilhantes em minha direção e um sorriso safado no rosto. Tudo o que eu podia fazer além de tentar não enlouquecer de tesão era acompanhá-la, resvalar em sua pele acetinada quando colidíamos um no outro durante a dança e sentir nesse pequeno contato como se a mais viciante droga estivesse entrando em meu sistema.

— Preciso ir ao banheiro. — Parou, rindo, e apontou para um corredor do outro lado da pista. — Devo estar toda borrada e despenteada...

— Besteira! — respondi.

Seu inglês perfeito tinha um leve sotaque, mas, como as suas companheiras falavam em francês entre si, presumi que fosse por causa disso. A boate já estava vazia. Acompanhei-a até a porta do banheiro feminino e fiquei esperando do lado de fora.

Quer dizer, a intenção era essa!

Fui tomado de assalto quando ela apareceu e, sem dizer nada, simplesmente me arrastou para dentro do banheiro. O pequeno cômodo com várias repartições, espelhos e pias estava vazio. Excitado como um touro, não titubeei ao levá-la até um dos cubículos com vasos sanitários.

Esmaguei-a contra a parede de mármore, levantando-a no colo com suas pernas encaixadas nos meus quadris. Eu conseguia sentir a maciez de suas coxas, e ela, pelo jeito que gemia, sentia meu pau duro contra sua boceta ainda protegida pela calcinha. Estávamos bêbados demais para pensar, excitados demais para esperar, só queríamos provar o corpo um do outro e gozar juntos o prazer que tinha sido anunciado a noite toda.

Os gemidos dela me enlouqueciam. Eu sentia minha calça ficando úmida e, quando toquei sua calcinha, rosnei como um cão ao descobri-la completamente encharcada. Eu queria chupar aquela mulher, ouvi-la gritar de prazer, provar seu sabor até estar ainda mais bêbado e inebriado por ela.

Porém, ela tinha pressa!

Gargalhando como quem está numa grande aventura, abriu o botão da minha bermuda e puxou meu pau para fora da cueca, agarrando-o com força, fazendo-o doer, arrancando-me um gemido de antecipação. Ela se sentou no vaso e o engoliu com sua boca pintada de vermelho.

Fechei os olhos e deixei que ela fizesse o que quisesse, usasse sua língua, lábios e dentes. A sensação daquela boca quente e molhada sugando meu pau ainda mexe comigo, mesmo sendo apenas uma lembrança. E não é à toa, afinal quase gozei em sua garganta quando ela mordeu meu pau, encarando-me perversamente.

Puxei-a até a colocar de pé, virei-a de costas para mim, busquei uma camisinha no bolso de trás da bermuda embolada no chão e invadi sua boceta apertada, socando com força, levantando-a a cada vez que estocava, vendo seu rabo redondo e empinadinho se abrindo contra meus quadris.

Foi uma loucura sem tamanho, dentro de um banheiro público, numa boate praticamente vazia, ao nascer do dia, depois de passar a noite inteira dançando com ela.

— Goza para mim, safada! — eu dizia em seu ouvido, gemendo, mordiscando o lóbulo de sua orelha. — Goza sem se importar se estão ouvindo ou não! Foda-se!

Levei uma de minhas mãos para o meio de suas coxas, achei seu clitóris – o acesso facilitado por causa da depilação total que ela adotava – e o massageei até que ela se contorcesse.

— Grita! — ordenei, e ela obedeceu. — Porra, gostosa, encharca meu pau!

Não aguentei muito mais e tive que dar murros contra a parede de mármore do cubículo, tamanha a intensidade do prazer que senti.

Puxei meu pau de dentro dela, encarando-a completamente embevecido com sua beleza, com seu jeito safado, sorriso malicioso e olhos brilhantes. Joguei a camisinha no lixo e a puxei para fora daquele banheiro, pensando em levá-la para uma volta no iate.

— Ei! — uma das amigas, das que não tinham acompanhado Frank mais cedo, chamou-a. — Temos que resgatar a Allly e a Èlene, senão vamos perder o voo!

— Voo? — inquiri assustado.

— Temos que voltar para Paris — ela disse.

— Agora? — Ela assentiu. — Não!

A gostosa que acabara de gozar no meu pau e me dera um orgasmo fenomenal se aproximou, depositou um selinho na minha boca e se afastou.

— Foi uma noite deliciosa!

Bufei, resignado, não satisfeito, porque ainda queria comer mais aquela mulher, experimentar todo o seu corpo jovem, pele macia, músculos duros e tenros. No entanto... tinha valido a trepada no banheiro. Eu não ia sair correndo atrás dela implorando por mais.

— Boa viagem! — despedi-me.

Ela apenas piscou, sua maquiagem pesada, cílios longos e pintados da mesma cor que os cabelos. Desapareceu para sempre, sem nem mesmo me dizer como se chamava.

— Ei, stronzo, para de sonhar! — Frank ri, e eu volto a prestar atenção ao que ele fala. — A área que eu quero não é muito grande, apenas o suficiente para...

— Do que você está falando?

— Porca miseria, Theo! A casa de praia que quero construir para minha família, cazzo! O motivo pelo qual te chamei aqui! Está com a cabeça onde, porra?!

— A do meu pau? Enfiada naquela garota dos cabelos rosa naquela boate. Mal lembro do rosto dela, mas as sensações...

— Coglione! Está precisando de uma mulher pra foder, porra?!

— Não! — Lembro-me da que deixei essa manhã na cama. — Foi só uma lembrança. — Aprumo-me. — Vamos falar de negócios!


São Paulo, meses depois.


— A mulher anda irredutível! — Millos conversa comigo enquanto tomamos café. — Há anos tenho ido pessoalmente tentar negociar a compra, mas ela se recusa e tem conseguido manter suas contas em dia.

Desvio meus olhos do computador.

— Ela já sabe que temos a promissória?

— Não, simplesmente me expulsou de lá a pontapés quando fui tentar negociar! — Ri. — Você sabe que eu não curto uma mandona, mas ela me deixou levemente excitado.

— Porra, Millos, não fode o assunto! — Meu primo ri e deixa sua xícara vazia sobre o pires. — Já temos a dívida do pai dela; o que estamos esperando para executá-la? Isso a deixará sem alternativa a não ser vender o maldito bar para quitá-la!

— Theo, é uma promissória assinada há quase dez anos! Vamos ter que cobrar e...

— É para isso que aquele desgraçado do Kostas está aqui! — grito sem paciência. — Eu não aguento mais esses irlandeses no meu caminho!

— Ela é brasileira, Theo, o pai é que era...

— Foda-se! — Bato na mesa. — Tenho um diretor que não queria ter porque a porra da Malu Ruschel desertou para ficar embrenhada no mato com um peão e, ainda assim, não consigo fechar essa maldita conta!

— Ele conseguiu comprar a dívida do agiota e...

— Você está se escutando?! — Passo as mãos pelos cabelos. — Um diretor nosso negociou – sabe-se lá como – com um agiota! Esse mesmo cara está por aí, lidando com nosso dinheiro, comprando e vendendo imóveis em nosso nome! Não confio uma vírgula nele!

Millos se levanta e desenrola as mangas da camisa para esconder suas tatuagens. Eu não entendo por que ele cisma em manter essa pose conservadora aqui dentro da empresa, mas, como bem sei, cada um dos Karamanlis é fodido de algum jeito. Apesar da barba cheia e grande e do brinco que nunca tira, ele anda pelos corredores vestido de terno e gravata, sapatos de couro e uma pose de empresário burguês que só convence quem não o conhece.

— Eu preciso daquele quarteirão, Millos!

— Nós nem temos um cliente para ele...

— Foda-se! Quero a merda do quarteirão! — Ele concorda. — Vire-se para conseguir!

— Vou conversar com Kostas sobre a execução da promissória.

— Faça isso! Meu irmão pode ser um babaca filho da puta, mas é bom no que faz.

— Engraçado é que ele diz o mesmo de você!

O taciturno, mas incrivelmente inteligente grego sai da sala sacudindo a cabeça, sem entender como é que conseguimos trabalhar juntos sem nos matar. A verdade é que trabalhamos muito bem! Temos todos os mesmos propósitos, deixar nosso nome marcado na história desta empresa.

Nenhum Karamanlis da minha geração saiu ileso à maldição familiar. Todos temos fantasmas e esqueletos escondidos em nossos armários, traumas da infância, da adolescência ou apenas somos fodidos de nascimento. A amizade que tenho com Millos é algo que fugiu à regra, pois nutrimos sentimentos verdadeiros entre nós que vão além dos laços sanguíneos que nos unem.

O restante... bem, eu não conheço o restante o suficiente para julgar ou sentir qualquer coisa por eles. Nós nos suportamos por causa da empresa, do dever para com nosso nome e, claro, do respeito ao pappoús.

Kostas, alguns anos mais novo que eu, é um advogado competente, também um babaca arrogante que fala com qualquer pessoa se achando o rei de todo conhecimento e inteligência. Por vezes tenho que lidar com as merdas dele aqui dentro da empresa, principalmente quando sua falta de tato extrapola os limites de sua diretoria e acaba afetando outras.

Alex, um dos caçulas, é engenheiro, criativo, tem bons relacionamentos com todos na empresa, menos com a própria família. É o único que não faz nenhuma questão de agradar qualquer que seja dos Karamanlis, chegando por vezes até a renegar o nome em alguns trabalhos, quando assina apenas o sobrenome de sua mãe.

Kyra, a única menina e a mais nova de todos os filhos de Nikkós, é a única que não tem qualquer relação com os negócios da família. Montou sua empresa, não usou nossa grana, não tem qualquer contato – a não ser quando contratamos seus serviços em eventos – conosco. Suspiro ao pensar nela, principalmente porque ela não dirige a palavra a mim há mais de duas décadas.

O ponto de equilíbrio, o conciliador, a nossa Suíça, para explicar melhor, é o Millos. Meu primo tem relacionamento com todos os irmãos, escuta e aconselha a todos e, ainda assim, consegue permanecer neutro dentro da confusão que é essa família nada ortodoxa. Todos o conhecem por sua serenidade, sensatez e capacidade de pensar com racionalidade mesmo em meio ao caos. No entanto, eu sei a verdade! Por baixo de toda a placidez aparente, Millos esconde um lado seu que chega a me arrepiar os pelos.

A verdade é que nem mesmo o Karamanlis mais sensato é são!

Ando pelo escritório, noto cada detalhe da decoração, trazendo à mente o significado e o momento em que cada peça aqui disposta foi comprada. Algumas delas são remanescentes de um relacionamento que tive há alguns anos com uma decoradora de interiores; entre uma foda e outra, avaliávamos os objetos juntos e os comprávamos. Poucas aqui vieram de casa, na Grécia: uma deusa Atena esculpida em Carrara, um relicário da minha avó e um tinteiro do vovô.

Um fato sobre mim que me deixa orgulhoso é que sempre gostei de arte. Mesmo não tendo nenhum tipo de aptidão para pintura e escultura, gosto de apreciá-las, de viver cercado pelo belo, diferente e único. É claro que valorizo muito os clássicos, as obras e artistas já consolidados, mas meu faro empresarial também sabe reconhecer um iniciante com potencial, por isso tenho muitos investimentos na área.

Para estar por dentro de tudo o que acontece, preciso viver constantemente ligado a esse mundo, e isso, no momento, tem gerado alguns problemas. Fora compromissos e reuniões de trabalho, meu lazer é praticamente frequentar exposições, vernissages, festivais e até concursos. Por conta disso, só tenho me envolvido com mulheres do meio – o que para mim é maravilhoso, afinal, além do sexo, tenho o plus da conversa –, e a maioria delas não se encaixa no perfil da futura senhora Theodoros Karamanlis.

Pode parecer machismo, talvez seja, mas vocês hão de convir que, por mim, nunca haveria uma senhora Theo Karamanlis. Contudo, não posso deixar de atender a um pedido do meu avô. Imagina se o velho Geórgios, ateniense tradicional, aceitaria ver o neto mais velho se casando com uma artista alternativa, cheirando a incenso e tintas?

Esse é um dos motivos pelo qual comecei a frequentar as galerias mais chiques e tradicionais, com o pessoal da alta-roda paulistana e deixei de lado esse meu lado indie de aquarelas e carvão. Não entendam mal, não desgosto de estar nesse meio mais rebuscado, claro que não, arte é arte, e eu a aprecio de qualquer forma, mas é fato que as mulheres são bem diferentes. As descoladas são sempre mais divertidas.

Já que tenho que me casar, não quero um mero compromisso de conveniência. Por isso estou procurando, conhecendo, abrindo-me a encontrar uma pessoa com a qual eu me veja acordando de manhã e me deitando ao lado à noite. Se a encontrei? Não! Mais uma vez peço a vocês que não me entendam de forma errada. Eu não procuro por amor, essa porra já provou a mim que só serve para deixar o homem idiota e burro, então nem está sendo considerada. O que eu preciso é de uma parceira, uma mulher que eu consiga ver ao meu lado como amiga, além de ser a mãe dos meus filhos. Esse é o problema! Eu não as vejo assim, pelo menos nenhuma que tenha conhecido até agora.

Confiro as horas no Omega que uso no pulso esquerdo e balanço a cabeça. O tempo não para! Vovô não está ficando mais novo; eu não estou ficando mais jovem, e as chances de eu confiar o suficiente em uma mulher a ponto de pedi-la em casamento e gerar uma criança são quase nulas!

— Doutor Karamanlis? — Rômulo me chama, interrompendo meus pensamentos preocupados. — A reunião sobre o terreno para a rede de shoppings começa em 10 minutos...

— Obrigado, estarei lá. — Caminho até minha mesa para pegar umas anotações. — A equipe da senhorita Reinol já está posicionada?

Meu assistente apenas assente, ainda parado à porta, um tanto tenso, mais do que o normal.

— Algum problema? — inquiro diretamente, esperando a reposta positiva, pois é óbvia.

— Eu não me sinto à vontade para contar isso, mas...

— Pare de dar voltas e diga de uma vez! — A impaciência toma conta de mim, e de novo questiono minha sanidade ao manter o Rômulo como meu assistente. Ele é competente, sim! Organizado? Muito! Entretanto, tem umas manias que me tiram do sério, e, infelizmente, a falta de objetividade é uma delas. — Rômulo!

Ele pula assustado com o tom da minha voz e fecha os olhos, torcendo as mãos. Dá-me paciência!

— Aconteceu uma pequena desavença há pouco lá na sala de reuniões e... — bufo, arrependido, pois odeio fofoca — a Kika abandonou a apresentação e disse que o Leonardo é quem vai falar com o cliente.

Arregalo os olhos, surpreso.

Wilka Reinol, a Wilka a quem ele se referiu, é nossa gerente de hunter, ou seja, é a responsável pela equipe que pesquisa os imóveis de acordo com a necessidade dos clientes. Assim que a Malu Ruschel nos deixou para bancar Maria Chiquinha no meio do mato, foi natural que Kika assumisse a gerência, pois se mostrou pronta para a responsabilidade durante o período de férias da antiga gerente. Ela é um pouco mais solta que a Malu – que era um tanto obcecada pelo trabalho –, mas tão responsável e obstinada quanto a outra.

Kika, sob meu ponto de vista, tem tudo o que a Malu tinha e mais a humanidade necessária para o serviço. Ela sabe liderar a equipe, é carismática, todos os funcionários do prédio a conhecem, gostam dela e fazem de tudo para ajudá-la. Alex, meu irmão, brinca que, se a presidência da Karamanlis fosse por voto popular, ela ganharia fácil, e é bem provável.

Por isso mesmo, saber que alguém conseguiu irritá-la a ponto de fazer com que ela abandone uma apresentação na qual se empenhou... Respiro fundo, já sabendo o que aconteceu.

— Kostas?

Rômulo parece que vai desmaiar.

— É... Ele estava conversando com ela antes de... — Faz um gesto nervoso com as mãos. — Eu não sei o que houve, mas o pessoal ficou todo tenso e pediu para eu vir buscá-lo.

Não! De novo, não!

Há alguns meses, eu tive que apartar uma briga feia dos dois, quando Kostas decidiu interferir no trabalho da Malu no afã de fechar a conta do Grupo Yannes. A ex-gerente ainda estava no Pantanal, e Kika era quem gerenciava em seu lugar, e a pequena morena colocou o dedo bem no meio da cara do meu irmão, de mais de 1,90m, sem titubear nenhuma só vez.

Secretamente eu torci por ela, querendo vê-la dando uns bons tapas naquela cara anglo-grega e deixando o nariz dele, já quebrado sabe Deus lá como, ainda mais torto. Nunca tive tanta vontade de incitar a guerra, mas me lembrei do motivo para o qual tinha sido chamado e tentei conciliar os dois.

Kika, ainda bufando, mandou-nos à merda e saiu da sala batendo a porta. Kostas ria, mas eu pude perceber que havia um brilho de admiração nos olhos dele. Nós não estávamos – e nem estamos – acostumados a defender alguém com unhas e dentes como ela fez com a Malu. Foi realmente admirável e providencial, porque logo depois tudo se revolveu, e o próprio Kostas admitiu que as duas estavam certas ao não apresentarem a fazenda pantaneira ao cliente.

Depois desse episódio, no entanto, os dois passaram a se evitar, e a paz voltou a reinar na Karamanlis, o que me faz voltar a pensar no que aconteceu dessa vez para que a trégua tenha tido fim.

— Você vai atrás da Kika. — Rômulo fica branco. — Vou ter uma palavrinha com o meu irmão.

— Mas ela... — o assistente tenta argumentar, tremendo de medo.

— Coragem, Rômulo! — Passo por ele, segurando o riso por vê-lo apavorado por ter de falar com a Kika. — Ela não vai te arrancar pedaços... — Sorrio para ele. — Pelo menos, não muito grandes!

Escuto-o gemer e não resisto mais. Gargalho.


Andar pela Karamanlis sempre foi algo complicado. Não por causa das dimensões do prédio, que também não é pequeno, mas porque sempre cruzo com um ou mais gerentes ou diretores, e eles sempre têm algo a comentar comigo. Sempre!

A empresa ocupa do décimo ao vigésimo andar do enorme prédio comercial na Paulista. Os andares inferiores estão divididos para duas subsidiárias: a K-Eng, empresa que concentra todos os serviços de engenharia – em seus vários nichos – e que é dirigida pelo meu irmão caçula; e a K-Decor, empresa de arquitetura e design de interiores, também sob o comando do Alex, mas com acompanhamento do Millos.

Somos uma holding, atendemos o Brasil inteiro não só na compra e venda de imóveis, como também no gerenciamento, na construção desde o projeto, planejamento, decoração e design. Nossa cartela de clientes é formada, em sua esmagadora maioria, por empresas, mas às vezes temos alguns prédios residenciais sendo atendidos de alguma forma pela Karamanlis.

Nossa estrutura é completa, temos, para exemplificar, um andar inteiro dedicado ao pessoal de TI, que coordena todas as nossas redes, tão necessário para o pessoal que trabalha com georreferenciamento de imagens, satélite e sobreposição de manchas para marcarmos as propriedades. Temos utilizado muito essas ferramentas para regularização de fazendas, áreas enormes para as quais, se o serviço fosse feito em campo, levaríamos o triplo do tempo e gastaríamos o dobro de funcionários.

A divisão jurídica, comandada pelo Kostas, ocupa quase um andar inteiro, deixando apenas três salas para a gerência de hunter, que eu não sei por que ainda mantenho lá, mas que nunca me incomodou tanto quanto agora.

Definitivamente, os hunters precisam sair do andar antes que a Kika e o Kostas se matem!

Abro a porta que dá acesso ao enorme salão onde ficam os advogados, cada um trabalhando atentamente à sua mesa ao estilo baia, e sigo para a sala toda de vidro ao fundo.

Kostas me vê antes mesmo que eu bata à porta e faz sinal para que eu entre.

— Seu assistente já fofocou com você. — Ele ri, deixando seu charuto de lado.

Olho carrancudo para o fumo, algo que ele sabe que eu desaprovo dentro do local de trabalho, mas que ele sempre alega que é só para relaxar, coisa de seu sangue inglês. Porco arrogante!

— Rômulo já me informou da situação que ocorreu — corrijo-o. Sim, eu acho meu assistente fofoqueiro, mas só quem pode falar essa porra sou eu, por isso, defendo-o. — Eu pensei que já houvesse se estabelecido um tipo de trégua entre vocês aqui na Faixa de Gaza.

Kostas dá uma risada escrota quando eu falo do apelido do andar.

— Aquela mulher é muito petulante! — Dá de ombros. — Se eu fosse o CEO dessa “bagaça”, já teria mostrado a ela a porta da rua.

— Ainda bem que você não é! — corto-o. — Eu não demito funcionários porque eles falam umas verdades a um bundão como você. Kika é extremamente competente, e eu não tenho motivo algum para me desfazer dela.

— O bundão aqui é você! Ela enche meu saco, feministazinha do sovaco cabeludo, e ainda tem a coragem de querer ditar regras!

Balanço a cabeça, perdendo a paciência.

— Você enche meu saco, e, se eu pudesse, te colocaria para fora daqui agora mesmo...

— Só que você não pode! — Ri, arrogante, pegando seu charuto de volta. — Sou dono dessa merda tanto quanto você! Então me engula!

— Você está certo, e que isso fique bem claro, Kostas. — Caminho para perto dele. — Só aturo suas merdas porque não posso te pôr para fora, não porque eu goste de trabalhar com você. Não interessa se é um puta advogado, foda-se! Eu demito sem nenhuma dor na consciência funcionários que tenham metade da sua arrogância. — Soco a mesa, e ele fica sério, deixando de lado o sorriso debochado. — Agora, não me tente! Aposto com você que todos já estão de saco cheio de suas piadinhas preconceituosas, de seu jeito de se achar melhor que todos e, principalmente, de todas as confusões que você arruma aqui dentro! Duvido que os integrantes do conselho estejam dispostos a pôr o rabo na reta para te defender.

Vejo que atingi o ponto fraco dele, pois o filho da puta sabe que não tem apoio de ninguém aqui dentro. Nem mesmo Millos – o único a conseguir conviver com essa criatura – o defenderia diante do conselho.

Kostas por fim apaga o charuto, caminha pela sala e abre a porta de vidro.

— Sai.

Rio e constato que tudo o que falei, apesar de feri-lo, não o mudará jamais.

— Para de se meter no trabalho dos hunters — aviso-lhe antes de sair. — Eu não vou segurar essa porra e nem ficar igual a uma maldita galinha pisando em ovos com meus funcionários por sua causa! Tá frustrado e entediado? Vá trepar ou qualquer outra coisa que o deixe menos imbecil do que é.

— Sim, chefe — debocha.

— É bom lembrar disso, Konstantinos Karamanlis. Eu sou o seu chefe!

Saio daqui notando as expressões assustadas dos advogados, sem me importar o mínimo, afinal todos sabem que os irmãos Karamanlis não se dão. Ando sem olhar para trás, confiante, ainda que tenha consciência de que, se pudesse, meu irmão enfiaria uma faca em minhas costas sem dó nem piedade.

Tenho absoluta certeza de que só estou no comando porque passo certa segurança ao conselho administrativo da empresa. Se não fosse assim, aposto que nenhum Karamanlis estaria na diretoria executiva. Meu pai foi um desastre, era bom gestor, mas esteve envolvido em um escândalo após outro e, por fim, começou a fazer péssimas escolhas nos negócios, o que custou sua cabeça.

Kostas tem a agressividade de Nikkós. É o filho que mais se assemelha a ele, não só na aparência, mas também no gênio intratável. Detesto me comparar ao meu pai, mas não posso negar que a inconstância dele na vida pessoal, embora de um jeito completamente diferente, faça parte de quem sou. E, já em Alex, vejo uma impulsividade enorme, também herdada do maldito que nos gerou.

Quanto a Kyra... Bem, nunca pude formar opinião sobre ela. Tudo o que sei de minha irmã veio através de informações trazidas pelos outros. Não temos nenhum tipo de contato. Ainda tenho a imagem da menininha alegre que se pendurava nos meus ombros, mas isso foi há tanto tempo que não consigo mais ligar a imagem da mulher à da criança.

Sinto culpa por ter criado essa barreira entre nós. Reconheço meu erro, porém, já não somos mais imaturos, poderíamos ter lidado com isso se Kyra quisesse. Ela só não consegue me perdoar.

Encontro-me com Rômulo à espera do elevador. Ele se encolhe um pouco quando me vê, e eu dou um tapinha em seu ombro.

— Acalmou a fera? — brinco.

— Ela já retornou à sala de reuniões. — Sorrio, orgulhoso dele. — Mas xingou nossa espécie de todas as formas possíveis. — Rio, imaginando a cena. — Alguns que eu nem sabia que existia! Sabia que ela chama seu irmão de Bostas Karamanlis?

Gargalho, fazendo-o pular de susto.

— Ótimo apelido! — Ainda estou rindo ao entrar no elevador. — Por essas e outras é que ela tem meu total respeito! — Mal acabamos de entrar, vemos Kostas vindo em nossa direção. Com um sorriso malvado no rosto, aperto o botão para fechar portas, deixando-o para trás.

— Ele ia subir... — Rômulo argumenta.

— Não queremos o elevador fedendo, não é? — zombo, rindo de novo. — Bostas! Por que nunca pensei nisso antes?!

Meu assistente me olha como se eu tivesse enlouquecido, com suas grossas sobrancelhas escuras quase encostando em seus cabelos e a testa lotada de gomos de expressão. Minha gargalhada não cessa, imaginando a cara de Millos quando eu contar como o “todo poderoso” Kostas Karamanlis é chamado pelos funcionários da empresa.

 

 

Entro na sala de reuniões e dou de cara com a Kika, com seu jeito simpático e elétrico, distribuindo instruções, rindo com os colegas e averiguando sua apresentação. Nosso cliente ainda não chegou, mas não deve tardar muito; é senso comum que nós não gostamos de atrasos.

Cumprimento a equipe rapidamente com um leve inclinar de cabeça, desabotoo o último botão do meu paletó e me sento no lugar que sempre ocupo quando estamos nesta sala. O material em cima da mesa, com todas as informações sobre o imóvel escolhido pelos hunters chama minha atenção e, mesmo sabendo que isso os deixa apreensivos – admito que sinto certa perversidade de minha parte ao gostar de deixá-los assim –, pego a pasta e começo a folhear página por página lentamente.

Confiro as horas no meu relógio e encaro a Kika com as sobrancelhas franzidas.

— Senhorita Reinol? — chamo-a e bato de leve o dedo indicador sobre o relógio. — Alguma notícia?

Imediatamente ela chama uma mulher de sua equipe, que sai apressada da sala com um telefone celular na mão. Faço um gesto para que Kika se aproxime, e ela vem andando, sem nem mesmo demonstrar um pingo de apreensão, em minha direção. Admirável!

— Pois não, doutor?

— Você confirmou com o cliente a reunião hoje?

— Certamente! — Ela levanta o queixo. — Isso é a primeira coisa que fazemos, antes mesmo de disparar o memorando para a Diretoria Executiva informando o horário. Meu departamento é extremamente competente, doutor.

— Eles não costumam atrasar — observo. — Rômulo! — chamo meu assistente. — Traga aqueles relatórios que eu tinha separado para assinar enquanto espero. Odeio perder tempo!

Ele sai apressado, e eu escuto o bufo impaciente de Kika Reinol.

— Eu conversei com o Kostas — disparo ao voltar a ler a última página do material, sem olhá-la. — Sinceramente estou ficando cansado dessas rusgas entre vocês. A partir de amanhã, vou solicitar ao Millos que seu setor seja realojado.

— O quê?! — sua voz, um pouco mais alta que o normal, ecoa pela sala, causando um silêncio sepulcral e atraindo minha atenção. Ergo a sobrancelha direita para ela e cruzo os braços sobre o peito, deixando a pasta com os arquivos da apresentação sobre a mesa.

— Não faz mais sentido manter vocês dois tão próximos. — Abaixo meu tom de voz: — Não vou ficar bancando a mamãezinha e separando a briga de vocês como dois fedelhos. Se não sabem se comportar como adultos e profissionais, então não podem conviver no mesmo espaço.

— Isso é muito injusto, doutor! — sua voz, embora baixa, soa completamente irritada. — Eu nunca me meto no trabalho do doutor Konstantinos, embora a recíproca não seja verdadeira!

— Eu sei, Kika — chamo-a pelo apelido para demonstrar que não a culpo. — No entanto, a situação está saindo do controle, e eu não estou disposto a mandar você embora e, embora queira fazer isso com ele, não tenho esse poder.

Kika respira fundo e assente.

— Desculpe-me por estar causando tantos transtornos, doutor Theodoros. — Ela sorri. — Eu não sou uma pessoa difícil de lidar, mas ele...

— Eu sei, não se preocupe com isso.

— Eu espero que... — ela se interrompe de repente, e eu olho para a direção em que está olhando. Vejo a funcionária que saiu há pouco da sala fazendo muitos gestos para sua chefe, mesmo tentando disfarçar quando percebe que a estou observando também.

— Venha até aqui! — chamo-a.

A moça, provavelmente uma estagiária, pois é muito nova, fica vermelha e começa a torcer as mãos ao se aproximar.

— O que houve, Laura? — Kika pergunta.

— Liguei para nosso cliente e... bem... — A menina intercala olhares entre mim e Kika. — Ele disse que ligaram mais cedo cancelando a reunião.

— O quê?! — mais uma vez a voz da gerente ecoa pela sala, e eu fecho os olhos, prevendo mais confusão, pois é óbvio que não foi ela quem mandou desmarcar.

Kostas, seu filho da puta!


— O dia foi uma sucessão de merdas! — xingo ao entrar no carro, notando a expressão debochada de Dionísio.

Afrouxo a gravata e abro o botão torturador da gola da camisa, liberando assim meu pescoço do enforcamento diário. Eu preciso de um uísque! Abro o compartimento no meio do banco de couro da parte de trás do carro, onde estou, pego a garrafa da única marca de uísque que bebo, The Macallan, sirvo uma pequena dose no copo de cristal e respiro fundo antes de degustar a bebida escocesa.

Pela garganta, sinto a leve queimação. Notas de café e mel se misturam e logo se vão, deixando ao final um amargo sabor amadeirado, típico do single malt envelhecido em barris de xerez. A dor de cabeça que ameaça despontar some, e meu pescoço vai amolecendo, a cabeça pousa no encosto do banco e, finalmente, depois de um dia de cão, eu me sinto relaxar.

Ah, o milagre feito por uma dose de uísque de uma garrafa de pouco mais de dois mil reais!

Levanto um brinde imaginário ao meu dia fodido, querendo que ele se vá e que eu consiga livrar todas as tensões e preocupações de minha mente para que possa ter uma noite decente, ao menos.

O riso de Dionísio é de quem entendeu meu ritual, e eu esboço um leve repuxar de lábios, ainda muito rabugento para sorrir de verdade, e tomo mais um gole imaginando chegar a casa, tomar um banho e me submeter às competentes e pesadas mãos de Lavínia antes de trepar a noite inteira de novo.

— O doutor vai direto para seu apartamento?

Abro os olhos para olhar Dionísio pelo retrovisor e confirmo.

— Se o trânsito permitir, espero estar lá em breve. — Tiro o paletó e pego o celular, abrindo minha playlist favorita. — Dio, ligue o aparelho de som.

Em seguida ouço o jazz da incomparável Ella Fitzgerald e solto um suspiro de prazer, o primeiro neste dia desgraçado. Tento não pensar no Kostas, muito menos na enorme vontade de dar umas porradas naquela cara debochada, para não perder o pouco da paz que ouvir Ella e Armstrong cantando Isn’t this a lovely day? me traz.

Ah, como eu amo jazz! Não é à toa que mantenho um enorme piano de cauda no meio da sala principal do meu apartamento, além de ter centenas de discos – sim, são long players – cuidadosamente guardados na sala de som que fiz, com o toca-discos reinando absoluto. Chamem-me de retrô, sinceramente estou me fodendo para o que pensem disso. Prefiro, sim, o som da agulha sobre o vinil, o som encorpado e os ruídos que só um LP podem me proporcionar.

Não sou avesso à tecnologia, não quando sou cercado dela, mas há coisas de que não abro mão, como uma bela comida caseira com ingredientes frescos como comia em Atenas; meus discos, como vocês já souberam; e dirigir meu Aston Martin de câmbio manual.

Ah – sorrio olhando meu copo de scotch –, prefiro single malt a blend em matéria de uísque. Bem conservador para a maioria dos bebedores de hoje.

O trânsito agarra em alguns pontos do caminho da Paulista até o Vila Nova Conceição, onde moro, porém, Dio consegue me deixar na garagem do meu prédio exatamente 30 minutos depois de termos saído da Karamanlis.

Saio do carro levando comigo o paletó e a insuportável – e conservadora – pasta de couro com alguns documentos. Espero o elevador para me levar até o 36.º andar, para a cobertura duplex que comprei há três anos. Como detesto perder tempo, enquanto espero, mando mensagem para a Lavínia, uma deliciosa morena com quem tenho saído há algumas semanas, marcando um encontro com ela aqui em casa.

A resposta chega quando estou dentro do elevador com uma vizinha, e tenho de refrear a língua para não assustar a pobre senhora que me faz companhia neste pequeno cubículo. A safada me mandou uma foto – sem cabeça, como sempre – da sua indumentária de hoje à noite, um conjunto de lingerie sexy e quente que já me deixa completamente duro e ansioso.

Remexo-me desconfortável, porque conheço bem as calças desses ternos modernos, mais apertadas e de tecido mais fino, e escondo a evidência da minha excitação – ou seja, meu pau duro – colocando a pasta e o casaco na frente.

A senhora – cujo nome não sei, pois não conheço a maioria dos meus vizinhos, apenas os cumprimento quando nos esbarramos pelos corredores –, desce no 19.º andar, e eu sigo – livre e excitado – para a cobertura, embora tente me acalmar para não assustar a Vanda, governanta e cão de guarda do meu apê.

— Bem-vindo, doutor — ela me saúda assim que as portas do elevador se abrem no living, e se apressa a pegar minha pasta, deixando-me, como sempre, constrangido por ela ficar carregando peso enquanto eu sigo confortável como um inútil.

— Eu levo a pasta, Vanda, obrigado. — Evito que ela a pegue, mas ainda assim recebo um olhar feroz. — Tudo o que preciso é tomar um banho e daquele seu jantar.

Ela dá risadinhas.

— Já está quase pronto — diz orgulhosa da sua eficiência. — A Sandra ligou confirmando o horário de amanhã, e seu primo virá também.

Assinto, deixando-a para trás enquanto sigo para o quarto. Sandra é minha personal trainer, e nós treinamos juntos três vezes na semana e, às vezes, Millos, que também é seu aluno, adianta seu horário para vir malhar conosco.

Eu gosto de exercícios, sempre gostei. Sou magro naturalmente, e os treinos me ajudam a fortalecer os músculos e a manter um peso proporcional ao meu tamanho. Millos já faz a linha bombado, e isso combina com ele e sua personalidade.

Tenho apenas uma tatuagem, que fiz bêbado demais para lembrar, enquanto meu primo parece um gibi, todo desenhado. Gosto de malhar com ele porque sou competitivo até a raiz do cabelo, e ele não fica atrás, então ficamos medindo forças e levando um ao outro ao limite da resistência.

Minha suíte é enorme e confortável, toda em tons de cinza e azul-marinho, com paredes off-white, concebidas com carinho por uma de minhas parceiras de cama. Tenho sorte de ter conhecido mulheres que, além de ótimas de cama, eram profissionais competentes.

Caminho até o closet e deixo meu terno no local reservado para que Vanda o leve até a lavanderia, uma espécie de bag. Abro a gaveta de gravatas, enrolo a que usei hoje e a coloco no lugar, em seguida fazendo o mesmo com as abotoaduras. Verifico se meus sapatos estão precisando de limpeza e, como estão limpos, pois mal saí da empresa hoje, coloco-os na sapateira e jogo as meias e a cueca no cesto de roupa suja.

Eu sou organizado em casa também. Gosto de ser assim.

Programo o chuveiro, abrindo as duas duchas em direções diferentes, em jatos fortes e frios – está um calor do cão! – e gemo de prazer ao senti-los na pele.

Dia fodido!

Fico um tempo debaixo da ducha principal, avaliando cada momento da confusão que foi o final da tarde no escritório. Primeiro, a tensão entre a Kika e o Kostas, minha discussão com ele e, por último, o pedido de demissão dela.

Merda!

Pelo que posso julgar da personalidade dela, não será fácil convencê-la a voltar, e eu não posso perder outra gerente desse nível na empresa, não mesmo! Penso na discussão com o Kostas, nas palavras duras e verdadeiras que trocamos um com o outro e tento entender por que somos desse jeito. Que maldição é essa que nos mantém separados quando temos tudo para sermos unidos?

Balanço a cabeça, impedindo que me perca nestes pensamentos que nunca levam a lugar algum. Não há o que fazer para consertar anos de muros levantados em torno de cada um de nós. É impossível transpor as barreiras que o tempo e nossa situação ergueram. Não há nada a fazer!

Agora, preciso me concentrar nos negócios e no maldito pedido do pappoús! Tenho que trazer Kika de volta, comprar a porra daquele boteco na Vila Madalena e achar uma mulher que esteja à altura de ser a mãe do bisneto de Geórgios Karamanlis.

Escuto um barulho na porta do banheiro e abro um sorriso ao ver Lavínia parada na entrada. Ela se encosta ao batente, olha meu corpo inteiro com fome brilhando nos olhos e morde o lábio inferior. É o que basta para meu corpo, mesmo sob os jatos frios, reagir.

— Vem aqui! — chamo-a, mas ela nega.

— Finja que não estou aqui... — sussurra. — Deixe-me ver como você toca uma pensando em mim.

Sinceramente tenho vontade de revirar os olhos para ela, mas, para não quebrar o clima, faço o que me pede. Seguro meu pau bem forte e, lentamente, vou deslizando a mão para baixo e para cima, sem nunca tirar os olhos dos dela. O tesão vai aumentando, e eu fecho as pálpebras, evocando as imagens que me fazem gozar rapidamente. Som abafado, cheiro de fumaça, um perfume floral, cabelos cor-de-rosa e uma boceta quente e apertada... Merda!

Abro os olhos e encaro a mulher que me espera, apenas de calcinha e sutiã, roçando contra o batente da porta e gemendo.

— Vem aqui agora, Lavínia! — Abro a porta do boxe.

Ela arregala os olhos por causa do meu tom de voz impaciente e sorri, safada. Mal chega perto de mim, e já a viro contra a parede, seguro firme sua cintura, levantando-a e esfrego meu pau em sua calcinha molhada. Preciso foder essa mulher com urgência! Estico uma das mãos até o nicho onde uma caixa de acrílico guarda alguns envelopes de camisinha – eu adoro foder debaixo d’água, então sou prevenido – e rapidamente encapo meu pau e o afundo dentro dela.

As malditas sensações daquela noite ainda estão em minha mente, rondando-me como fantasmas. Enrolo os cabelos cacheados e negros no meu punho, mas, no ápice do prazer, vejo-os levemente rosados. Porra! Fodo-a com ainda mais força, ouvindo seus gemidos altos e descontrolados, pois sei o quanto ela gosta de trepar sem limites.

Quando a escuto falar que vai gozar, em desespero, aumento as estocadas para me deixar ir junto com ela e aliviar em parte essa fome que nunca cessa.

Foda-se, desconhecida!

 

 

Alguma coisa pinica meu nariz, e passo a mão, mudando de posição sobre os travesseiros. Estou em Atenas, com a família de minha mãe, vendendo peixe e tentando ser homem o suficiente para manter minha promessa. Não importa que eu não esteja preparado, não importa se tive de desistir de tudo, o amor é mais forte que tudo e por isso vou conseguir... vou...

Espirro.

Sento-me na cama, piscando os olhos, perdido no tempo e no espaço. Estava apenas sonhado de novo! Malditos pesadelos que, vira e mexe, estão retornando. Bufo. A vantagem desse é que não chegou ao apogeu do drama, porque alguma coisa... Uma risada abafada me faz olhar para o lado e encontrar um homem de quase 2m de altura, forte como um armário, cheio de tatuagens, com uma maldita pluma na mão.

— Porra, Millos!

O desgraçado cai na gargalhada, e eu me levanto da cama sem nenhum constrangimento diante da minha nudez e sigo para o banheiro.

— Não programou o despertador? — ele pergunta ainda no quarto.

— Programei. — Termino de mijar e dou descarga. — Você me incomodou com sua presença dez minutos antes. — Começo a escovar os dentes, e ele fica à espera. — Lavínia saiu daqui às 4h da manhã.

— Se elas não dormem aqui, não seria mais fácil comê-las em algum local neutro?

Saio do banheiro ainda secando o rosto, pego uma cueca no closet e a visto, voltando para o quarto.

— Não tenho problema algum com minha cama, pelo contrário! Prefiro meu espaço a qualquer outro. — Dou de ombros. — Você que tem essa mania de nunca trepar no seu apartamento.

Ele ri.

— Você sabe muito bem que eu não trepo! — Um sorriso descarado se forma em sua expressão. — Eu as conduzo ao prazer... É diferente!

Reviro os olhos.

— É claro que você trepa, porém, tem a mente mais fodida que a boceta de uma puta, por isso tem essas manias estranhas!

— Não fale do que você não sabe, Theodoros — adverte-me. — Cada um tem seu jeito de obter prazer; o meu é esse.

Concordo com ele, mesmo achando alguns de seus gostos um tanto estranhos demais para mim. Chame-me de conservador nisso também, mas tenho alguns limites bem definidos em relação às minhas fodas.

Millos me espera no quarto enquanto visto a roupa do treino, falando sobre um novo modelo da Ducati que está pensando em importar. O homem é completamente viciado em motos, faz parte de motoclubes e, nas férias, sai cortando estrada com esse pessoal. Já percorreu grande parte da América do Sul sobre duas rodas, fez a Route 66 nos Estados Unidos e percorreu toda a BR 101 aqui no Brasil.

Além disso, é obcecado por cerveja e fez vários cursos nessa área no mundo todo, produzindo sua própria bebida, buscando o sabor perfeito que seu paladar exigente ainda não encontrou em nenhuma marca já disponível. O desgraçado entende tanto do assunto que é convidado para festivais e fez parte do júri de vários campeonatos de mestre cervejeiro.

Millos mora em um loft, um antigo galpão que ele reformou todo. Na parte debaixo guarda suas motos e tem uma pequena oficina; na de cima, sem nenhuma divisória, ele tem uma confortável sala, uma cozinha industrial com os tonéis de cobre para a fermentação de sua cerveja e o quarto, onde nunca leva uma mulher para trepar.

Ah, esqueci... ele não trepa!

Tomamos juntos um suplemento de carboidratos pré-treino enquanto Vanda escuta alegremente as conversas de Millos sobre sua última experiência culinária – carne de rã marinada com cerveja – fazendo careta a cada vez que ele descreve o anfíbio sendo tostado na grelha.

Quando Sandra chega, já estamos os dois no segundo andar da cobertura, onde apenas uma enorme parede de vidro separa a academia da área de lazer com piscina, jacuzzi e área com churrasqueira gourmet.

— Bom dia, meninos! — Millos ri do cumprimento, porque a personal deve ser uns bons anos mais nova que nós dois, porém, sempre nos cumprimenta assim. — Prontos para suarem a camisa?

Um olha para o outro sem saber o que responder, pois nenhum usa camisa.

— Figura de linguagem, rapazes! — Rola os olhos. — Vocês, gregos, são muito literais!

Ela liga o som; uma música calma enche todo o ambiente.

— Bora alongar!

Bufo impaciente, mesmo sabendo da importância de preparar os músculos para os exercícios intensos, querendo dar uma surra no Millos hoje.

Vamos ver quem vai pedir arrego, meu primo!


Depois que terminamos o treino, tomamos nosso café da manhã antes de sair para o trabalho.

Millos sempre se veste aqui quando vem treinar comigo, então há sempre alguma roupa dele no quarto de hóspedes. Em poucos minutos o homem tatuado, debochado e um tanto sombrio desaparece, e ele assume seu papel de executivo calmo, frio e competente. A camiseta manchada, os jeans rasgados e os coturnos – roupa com que veio aqui antes de vestir a de malhar – dão lugar ao terno italiano, sapatos de couro, camisa de algodão egípcio e gravata de seda. Os cabelos revoltos estão no lugar, penteados para trás com algum tipo de pomada que os deixa fixos, a barba foi penteada e o brinco de argola dá lugar a um pequeno ponto na orelha, quase imperceptível.

Sinceramente não sei se ele adotou esse personagem para trabalhar com o pai, meu tio, ou se é algo que ele prefere fazer para não chocar ou causar descrença em nossos clientes. Realmente nunca entendi, e ele também nunca quis explicar, então não sei o que se passa na cabeça desse Millos Karamanlis executivo. O que me importa é que ele é meu braço direito, aquele em quem confio de olhos fechados nos negócios, porque, mesmo sendo tão diverso de sua personalidade, a frieza do executivo Millos é o que nos ajuda a controlar alguns incêndios dentro da Karamanlis.

— Soube da merda do Kostas dessa vez? — indago assim que entramos no carro, com Dionísio a dirigir.

— Como não saberia? A história correu pelos corredores da empresa no final da tarde de ontem. — Ele puxa mais a manga de sua camisa a fim de esconder as tatuagens do pulso. — A senhorita Reinol pediu mesmo demissão?

— Pediu! — Rio. — Foi uma saída de rainha no meio da discussão e com direito a água gelada na cara! — Gargalho. — Confesso que, se fosse café quente, eu teria sentido um pouco mais de prazer, mas nem tudo é perfeito.

— Porra, Theo, o Kostas está incontrolável, e eu não entendo o motivo. — Eu o encaro franzindo a testa, porque nunca falamos do meu irmão sem ser em termos profissionais, mesmo sabendo que Millos é quase um confidente de ambos. — Ele mudou muito nesses dias, parece... sei lá, encurralado.

— O Kostas encurralado? — debocho. — Aquele filho da puta é mais frio que uma pedra de gelo! O que poderia mexer com ele a ponto de deixá-lo assim?

Millos respira fundo e dá de ombros, fechando-se em copas novamente, como sempre faz quando o assunto é a vida pessoal dos meus irmãos. Esse jeito dele, essa lealdade toda me conforta e me frustra ao mesmo tempo. Sei que ele não comenta com os outros as coisas que lhe conto, mas gostaria de saber mais do que se passa com meus irmãos mais novos, principalmente Alex e Kyra.

Independentemente do que eu queira, sei que, por ele, nunca vou ficar sabendo de nada, e uma aproximação entre mim e meus irmãos é coisa muito improvável, então finjo não ligar para isso, mas sinto a culpa apertar meu peito a cada vez que algumas lembranças voltam.

— Seu assistente já confirmou sua presença no baile dos Villazzas no Ano Novo? — Assinto. — Não sei se vou. No último a que fui, eles ainda estavam em Curitiba!

— Muitos anos, já! Não tenho como não ir, sou amigo do Frank e quero ajudar a instituição do Bernardo Novak, que é uma das eleitas deste ano para receber parte das doações.

— Ah, sim, isso eu também quero fazer. A empresa da Kyra é quem está organizando, você sabe? — Balanço a cabeça positivamente. — Foi por isso que ela não pegou a festa da Karamanlis este ano...

— Foi a desculpa que ela deu, na verdade — corto-o. — A empresa dela já está crescendo sozinha, ela já pode se dar ao luxo de dispensar um contrato conosco e, assim, manter-se cada vez mais distante.

— Que seja... — Ranjo os dentes de raiva por ele não comentar nada. — Estou pensando em fazer um recesso entre o Ano Novo e a segunda semana de janeiro. — Millos estica as pernas, gemendo lentamente, e um sorriso de vitória me escapa. Está dolorido, desgraçado? — Ainda não sei se vou até Frankfurt conversar com um mestre cervejeiro de lá ou se faço alguma viagem longa de moto, mas estou querendo ficar fora dos negócios por um tempo.

Sinto uma pontada de inveja dele, pois costumo tirar no máximo uma semana de descanso entre as festas – Natal e Ano Novo –, e a única viagem que consigo fazer é ir até a Grécia para visitar o vovô, e nesse ano, como irei viajar em fevereiro no ano que vem para o aniversário dele, não vou tirar sequer essa semana de recesso.

— Eu não vejo problemas. Esse período é o mais devagar na empresa. — Ficamos um tempo mudos, apenas ouvindo o som do aparelho do carro tocando alguma estação de rádio. — Eu vou fazer aquele filho da puta ir atrás da Kika!

Millos me encara, olhos arregalados, e não por causa da fala inesperada depois do silêncio que fizemos.

— Eu acho que isso vai dar mais merda do que já deu.

Sorrio.

— Não, ele vai ter que pedir desculpas e prometer se comportar. — Encaro Millos, olhos brilhando, pensando em como obrigar o meu irmão arrogante a fazer minha vontade. — Preciso da sua ajuda!

 

 

Meu humor melhorou drasticamente depois da conversa com o Millos no carro e o plano que arquitetamos para fazer aquele idiota prepotente consertar a merda que fez aqui na empresa. Fazer Kostas ir até a Kika para implorar que volte será bom para mim por dois aspectos: terei minha gerente de volta e ainda colocarei meu irmão no seu lugar, abaixando um pouco sua crista de galo de briga.

Rômulo está irritantemente quieto hoje, e desvio o olhar a toda hora para sua mesinha apenas para conferir se o tagarela está bem e respirando. Hoje a empresa está um pouco sombria. Os funcionários estão falando mais baixo, há menos pessoas nos corredores, e os setores estão funcionando bem, mas sem o ritmo frenético a qual todos estamos acostumados.

Uma apatia geral tomou conta do lugar, e o clima aqui dentro está tão opressivo que me sinto sufocando algumas vezes. É como estar de luto, e isso é uma coisa incrível, pois bastou uma funcionária querida pedir demissão para parecer que o sol se pôs dentro deste prédio.

Preciso dessa mulher de volta!

Se o babaca do meu irmão não conseguir o feito de reintegrá-la à equipe, vou ter que jogar sujo e recorrer a Malu Ruschel lá no meio daquele mato onde vive. Espero conversar com ela para que convença sua amiga a voltar para nós.

Levanto-me, sentindo a tensão sobre meus ombros e meu pescoço duro. Ponho a culpa na tensão, nunca admitindo que a disputa ferrenha com Millos no treino de hoje de manhã me causou isso. Tenho 41 anos, não sou um garotão, mas sempre me consolo dizendo que pratico exercícios há muitos anos, então meu corpo está acostumado.

A verdade é que os anos estão realmente passando, e talvez eu esteja sentindo os efeitos do deus Cronos no corpo. Noitadas de sexo, balada e exposições têm me deixado cada vez mais cansado, além disso, comecei a notar que tenho necessitado de mais horas de sono do que precisava antes. Talvez tenha que ir a algum médico fazer um check-up ou buscar um geriatra.

Dou uma risadinha baixa, achando graça do meu humor negro. Fui contagiado pelo clima de enterro da Karamanlis, e esse silêncio todo me faz divagar. Gosto e estou acostumado à correria, a Rômulo transitando em volta de mim como mosca de padaria, sempre prestativo, falante e, na maioria das vezes, incômodo.

Porra, estou sentindo falta até da inconveniência dele!

Caminho até a vidraça da sala, olho a Paulista movimentada de carros lá embaixo e volto a refletir sobre a vida, principalmente a profissional. Já faz anos que assumi o cargo de CEO da empresa, anos que vim morar no Brasil, e, apesar de tudo isso, algumas coisas continuam como antes: o trabalho intenso, a desarmonia entre os irmãos Karamanlis, meus hábitos noturnos, hobbies e, claro, a maldita conta da Vila Madalena. A confusão de ontem desviou um pouco minha atenção desse objetivo, mas não posso perder o foco, não quando estou cada vez mais perto de conseguir comprar o maldito boteco!

— Rômulo — chamo-o sem olhar em sua direção. — Peça ao Millos para que venha até aqui, por favor.

— Ele estava em reunião com o doutor Kostas... — Viro-me para encará-lo, e o homem franzino e de óculos fundo de garrafa arregala os olhos. — Eu vou ver se ele já retornou.

Meu assistente sai todo atabalhoado do escritório, deixando alguns post-it caídos no chão marcando seu caminho como na história de João e Maria. Respiro fundo para não me irritar com ele, pois, apesar de um tanto fofoqueiro e atrapalhado, ele é muito eficiente, não posso negar. Apesar de todos os incômodos, eu não o trocaria por nenhum outro.

Volto a pensar na Vila Madalena e que Millos ficou de levantar as condições para executarmos a promissória assinada pelo falecido proprietário do bar. Preciso saber em que pé estamos para traçar novas estratégias de ataque, afinal, quero começar o próximo ano já com essa conta fechada e, assim, ter menos uma coisa a torturar minha cabeça.

Escuto passos apressados, típicos do meu assistente, e a porta se fechando.

— Ele já vem, doutor — diz resfolegando, o que demonstra que foi correndo até a sala do meu primo. Quanta falta de sutileza!

Balanço a cabeça, segurando o riso debochado ao imaginar a cena, e lhe agradeço:

— Obrigado.

Enquanto espero, decido tomar o... (não lembro quantos já foram hoje) café do dia. Sigo até a máquina de café expresso que fica no aparador de bebidas e coloco uma cápsula de um blend de cafés no modo ristretto enquanto aguardo meu primo. O cheiro agradável enche o ambiente do escritório, deixando-o menos opressor e mais acolhedor. Aspiro a fragrância lentamente, apoiado no aparador, olhos fechados e absorvendo o prazer que essa bebida me proporciona. Sim, sou viciado em café!

— Theo? — Millos bate à porta, tirando-me do transe gourmet. — O que houve?

Faço um gesto para que ele entre e aponto para a máquina, que está passando dois do néctar de café que mais gostamos. Um ristretto só é possível quando a máquina tem a pressurização correta e os grãos são de qualidade. O pó sai praticamente seco, tamanha a velocidade que a água fervente passa por ele, extraindo o melhor do grão.

Nunca me acostumei ao jeito brasileiro de tomar café longo ou mesmo o famoso carioquinha, acrescentando água para diluir a bebida. Preciso sentir o sabor do grão, as notas intermediárias dele e as que ficam depois na boca. No caso desse blend que fiz, há um leve frutado que diminui a acidez e depois resta na boca um sabor mais forte, tal qual chocolate amargo.

Pego a xícara de Millos e a entrego para ele.

— Como foi com o Kostas?

Millos relaxa, sentando-se numa das cadeiras em frente à minha mesa e se encostando nela, desfrutando do cheiro do café.

— Acho que mordeu a isca. Só espero que ele saiba convencê-la. — Dá de ombros. — O que mais você quer?

— Vamos beber o café primeiro. — Pego a outra xícara e tomo um gole. — Quero notícias sobre a promissória da família Hill.

— Ah... — Ele sorve lentamente a bebida quente, deixando-me em suspenso com sua resposta. — Encorpado e naturalmente doce, perfeito! — elogia o café.

— A máquina faz tudo! Para de enrolar e fala logo.

O desgraçado ri, tomando mais um gole.

— Kostas estava analisando, mas, com essa confusão toda... — Eu xingo, e ele sorri mais uma vez. — Estou pensando em fazer uma visitinha a Duda Hill de novo. Vamos?

— Eu não tenho nada a tratar com ela. Quero executar a porra da promissória e expulsá-la de lá! — Deixo o café de lado, contrariado demais para apreciar seu sabor. — Já estou esperando por isso há muito tempo, Millos. Estou começando a perder a paciência.

— Eu acho que você deveria tentar conversar com ela. — Franzo o cenho, sem entender. — Dizer que temos a promissória e que vamos executá-la, mas oferecer a ela a chance de comprar antes de irmos à justiça.

— Por que eu faria isso?

Realmente não entendo o que Millos quer com essa sugestão. Oferecer a promissória para ela pagar? Como se ela tivesse condições de arcar com o valor exorbitante sem vender o maldito bar! Se a pressionarmos demais, ela pode acabar vendendo para outra pessoa, e aí teríamos que começar as negociações do zero. Isso nunca!

— Por que você quer tanto aquele quarteirão? — indaga-me, fazendo com que eu o olhe surpreso.

Ficamos um tempo assim, encarando um ao outro, apenas o som da digitação do Rômulo a pairar sobre nós. Tento procurar um motivo mais forte para comprar o lugar, mas não consigo achar nenhum convincente o suficiente para desviar a atenção dele da verdade. Não quero nada ali, nem tenho sequer ideia do que fazer e para quem oferecer, mas é uma conta deixada pela gestão do meu pai, o que me impulsiona a querer comprar apenas para esfregar em sua cara que eu consegui, que o derrotei.

— Consiga comprar a merda do bar — digo entredentes, a voz baixa e sem desviar meus olhos dos dele. — Meus motivos não interessam, é uma conta aberta que prejudica a reputação da empresa, e, como CEO, não posso deixar isso acontecer.

— Justo! — Ele se levanta. — Vou fazer tudo o que estiver ao meu alcance para satisfazer a sua vontade e não prejudicar a reputação da empresa no mercado.

Aquiesço, porém, não satisfeito, reconhecendo certo sarcasmo em sua voz.

— Millos. — Ele me encara. — Eu preciso fazer isso.

Meu primo bufa.

— Eu sei, Theo. — Caminha até onde estou e toca em meu ombro, falando baixo para que apenas eu o ouça: — Eu queria mesmo que você não precisasse, assim como não achasse que deve ao pappoús até a sua alma! — Faço careta e abro a boca para defender nosso avô, mas ele continua: — Eu sei que você precisa disso e vou ajudar no que puder.

Agradeço mesmo não emitindo nenhuma palavra. Conhecemo-nos há tantos anos, já passamos por tantas coisas juntos que não é necessário que sempre haja palavras entre nós.

Millos sai da sala, deixando-me sob os olhares curiosos de Rômulo, que provavelmente ouviu os sussurros e ficou de antena ligada atrás de uma notícia quente.

— Volte ao trabalho, Rômulo! — admoesto-o.

Ele fica vermelho e abaixa a cabeça para volta a digitar no computador.

Preciso arranjar uma sala isolada para esse língua de trapo! Ah, se não fosse competente!

Sento-me à mesa e olho para a tela do computador, onde um contrato já ratificado pelo jurídico está à espera da minha assinatura eletrônica. Esse dia não está sendo fácil, embora o trabalho continue normalmente como em todos os outros. Não compreendo o motivo, talvez por ter conseguido a maldita promissória, mas a vontade de conseguir comprar o boteco e o colocar no chão tem estado constantemente em minha cabeça. Muito mais do que o normal!


Os cheiros se misturam aos sons em um caos perfeito, quase sistêmico, se for possível considerar que alguma confusão possa ter um padrão implícito. Há um ritmo a ser seguido, um conjunto de ações e reações em cadeia que faz com que todo o nosso processo ande em harmonia.

É assim a minha cozinha!

Respiro fundo mais uma vez, espantando o cansaço e buscando energia para continuar. Estou empreendida neste ritmo desde às 2h da tarde, quase 12 horas direto, mas envolvida em todos os passos da organização e funcionamento desde às 8h da manhã, quando acordei.

Ser chef de cozinha não é só glamour, quer dizer, nunca foi! O que as pessoas veem na televisão, os grandes cozinheiros que aparecem na mídia com seus restaurantes renomados, a maioria agora é só empresário, cozinha vez ou outra, mas todos já ralaram muito para conseguir algum nome.

Quando decidi ser chef, eu tinha oito anos de idade, estava na cozinha da minha avó materna no interior e fiz meu primeiro bolinho de chuva regado a açúcar e canela. Abro o sorriso por causa da força das recordações. As lembranças olfativas e gustativas, na minha opinião, são as estrelas do cérebro. Quem nunca pensou num prato e na lembrança pôde sentir seu cheiro e o sabor? Quem nunca foi transportado a uma lembrança afetiva ao comer? Eu sempre acreditei nesse poder e, a partir daquele dia, na casa da minha avó, percebi que queria deixar essa marca na vida das pessoas.

Foi o último ano com minha mãe. Ela já estava doente, câncer de mama, e o clima em casa não estava dos melhores. Papai andava deprimido, o bar não estava indo bem o suficiente para arcar sozinho com as despesas depois que ela teve que parar de trabalhar na cozinha, e meu irmão – com 14 anos na época – andava estranho e pelos cantos.

Estávamos em férias escolares, e vovô foi nos buscar para passar umas semanas com eles. Imagino o quanto estava sendo duro ver a filha definhando aos poucos, perdendo a luta contra essa doença tão dura. Diagnóstico atrasado, demora no acesso ao tratamento, tudo isso contribuiu para que ela vivesse seis meses depois da descoberta do câncer.

Metástase, a palavra que mais me dói ouvir até hoje.

Meu maior medo também.

A tristeza e o desânimo tomaram conta da família assim que o médico contou ao papai que o estágio era terminal. A mastectomia, o esvaziamento total das duas mamas, não foi suficiente para ela, pois as células cancerígenas já haviam se espalhado pelo abdômen. Tudo o que podíamos fazer era tentar dar a melhor qualidade de vida possível aos poucos meses que lhe restavam.

Minha mãe, Maria Aparecida Braga Hill, era a pessoa mais forte e alegre que eu conheci. Era a luz da nossa casa, a razão da vida do meu pai, quem eu queria ser quando crescesse. Sua doença não diminuiu suas características e, naquelas férias, ela pegou meu primeiro feito culinário – um tanto cru por dentro e tostado por fora –, colocou-o na boca e revirou os olhos de prazer.

— Hummm, Duda, tem o sabor da minha infância! — Sorriu.

— Ficou um pouco queimado... — tentei argumentar, desculpando-me.

— Isso é questão de prática, princesa! — Ela se abaixou para ficar da minha altura, seu corpo bem magro, olhos fundos e com olheiras, o lenço na cabeça. — O importante não é só a aparência da comida; são as sensações que ela nos traz, o que ela nos faz sentir. — Pegou mais um dos meus tristes bolinhos. — O seu bolinho de chuva me fez voltar a ser criança, encheu meu peito de alegria, e é isso que importa.

Abracei-a, orgulhosa, sentindo-me quase uma heroína por ter feito tudo isso por ela com apenas farinha, água, ovos, açúcar e sal. Minha cabeça infantil imaginou como ela se sentiria se eu lhe fizesse um prato como aqueles que via em suas revistas de culinária. Mamãe ficaria tão feliz!

Foi a partir desse dia que passei a me interessar pela comida, pelos ingredientes, pela mágica que a mistura dos sabores proporcionava.

Muito tempo depois que ela nos deixou, suas palavras, a felicidade em seu rosto e o carinho do seu abraço ficaram marcados em mim. Eu queria essa sensação novamente, eu precisava sentir que algo que fazia era capaz de tornar a vida de alguém mais feliz.

Aos 13 anos insisti com o papai para trabalhar no bar. O Hill era um boteco mesmo, no sentido mais estrito da palavra. Os frequentadores eram pinguços que se encostavam ao balcão do bar quando papai abria e só iam embora expulsos quando ele decidia fechar. Tudo o que servíamos era torresmo, ovo colorido e alguns caldos que fazíamos em dias programados. Segunda e quarta era dia de mocotó; terça e quinta era bucho, e o final de semana era inteiro da rainha do Hill: a feijoada.

Um cozinheiro muito louco, mas com o tempero mais incrível que eu já provei, era quem comandava a cozinha quase doméstica do bar. Ele foi meu primeiro carrasco e logo me colocou na limpeza, frustrando meus planos de ser a estrela do Hill. Assim, ficava horas depois do colégio a lavar a louça – que não era pouca, porque o homem era bagunceiro – e limpar o chão.

Ainda lembro que a primeira coisa que ele me pediu para fazer – que envolvesse o preparo de alimentos – foi picar temperos. Chorei descascando cebolas igual a quando assisti ao filme Titanic na TV e cortei o dedo algumas vezes. O filho da mãe ria toda vez que eu gemia ou xingava, mas não desisti.

Em pouco tempo ele estava me ensinando as poucas técnicas que sabia, obtidas com a experiência de trabalhar em cozinhas desde seu primeiro emprego. Meu carrasco virou meu anjo da guarda, e, toda vez que papai ameaçava me proibir de ir para o bar trabalhar, ele me defendia dizendo que precisava da minha ajuda.

Foi por causa dele que pude estudar fora. Quando fiz 15 anos, papai queria fazer uma festa para comemorar, mas Dalto – o cozinheiro anjo da guarda – conversou comigo sobre cursos de gastronomia e citou a França como referência. Meu presente foi o curso de francês, segundo ele, necessário para me abrir as portas.

Aos 18 anos comecei a cursar a graduação em gastronomia, um orgulho para meu pai, que, àquela altura, já acreditava que eu conseguiria ser uma grande chef. O curso durou quatro semestres, e, aos 21 anos, já trabalhando como ajudante de cozinha em um restaurante de uma rede internacional de hotéis, consegui um feito incrível, uma bolsa para estudar na mais famosa escola de Paris.

Eu tinha tudo o que sempre sonhara, consegui passar num processo seletivo muito criterioso, esforcei-me durante anos para aprender a língua, ganhei a bolsa, mas não tinha grana para viajar e me manter por lá. Nessa época papai tinha um carro seminovo, e não pensou duas vezes antes de vender o veículo e me entregar todo o dinheiro para que eu pudesse passar os meses do curso sem apertos.

Fiz contato com outra moça brasileira que já morava em Paris e consegui alugar uma vaga em seu apartamento, perto do instituto. Foram os melhores meses da minha vida! Dediquei-me de corpo e alma àquilo, ignorei tudo. E a recompensa veio!

Um mês antes de concluir o curso, fui convidada a integrar a equipe de um grande restaurante na capital francesa. Cargo pequeno, salário baixo, mas o primeiro degrau para a realização de todos os meus sonhos de menina.

— Duda! — Manola, meu braço direito aqui na cozinha agitada desse pub que já foi um boteco, me grita, tirando-me do flashback no qual estava. — A cozinha fecha em meia hora, e estamos cheias de pedidos ainda. Não estou achando o molho extra que você tinha preparado mais cedo.

Seco minhas mãos no avental e vou até a pequena câmara fria que instalei aqui há pouco mais de um ano. O investimento foi caro, mas valeu cada centavo, pois consegui armazenar mais ingredientes e de uma forma muito mais segura do que no freezer.

Entrego o molho que preparei mais cedo para Anabele, uma das assistentes de cozinha, e volto a olhar a costelinha de porco no forno, a última da noite.

Estou cansada mais do que o normal, pois tive mais uma noite insone. Tem sido difícil dormir em casa, e, mesmo quando tudo está calmo, pego-me sem nenhuma vontade de fechar os olhos. Nós temos estado em um ritmo alucinante desde que o Hill caiu nas graças do pessoal aqui na Vila Madalena e chamou a atenção da imprensa especializada. Saímos em algumas revistas, ganhamos destaque, mas ainda assim sinto como se andasse no fio da navalha todos os dias.

Não trabalho tanto para enriquecer, apenas preciso manter um teto sobre minha cabeça, o mínimo de estrutura para minha tia Do Carmo e para Tessa e conseguir saldar todas as dívidas deixadas pelo meu irmão e pelo papai.

Uma dor enorme me invade toda vez que penso nos dois. Minha família se desintegrou por completo! Primeiro, mamãe, levada pelo câncer, depois meu irmão, que nunca se recuperou da perda dela e se afundou nas drogas, morrendo de overdose e, por fim, papai, há alguns anos, devido a problemas cardíacos.

Meus avós maternos se foram ainda na minha adolescência, restando a mim apenas a tia Do Carmo e a Tessa. A sorte é que conto com todos aqui como se fossem da família.

Manola é, além de meu braço direito, uma grande amiga. Tenho muito orgulho dela, principalmente por nossas histórias serem tão parecidas em alguns pontos. Ela é filha do Dalto, o “carrasco” que me ajudou a ser a chef que sou hoje. O pai dela vive ainda em São Paulo, mas está aposentado, e, uma vez no mês, fazemos um almoço aqui no Hill, e é ele quem cozinha, deliciando-nos com seu tempero único.

O Arnaldo é nosso faz-tudo, aquele que nos mata de rir com suas piadas bem contadas, que faz as melhores carnes do mundo e que vive sendo consolado por todos por seu infortúnio no amor. Sua grande paixão foi o Marlon, um segurança que trabalha aqui no Hill algumas vezes na semana, mas o homem nunca lhe deu chances. Sofríamos com aquele amor platônico todo, essa é a verdade!

Além desses dois, que são cozinheiros incríveis, temos duas técnicas em gastronomia que sonham em se tornar um dia chefs de grandes restaurantes: a Cláudia, responsável pelas sobremesas da casa, e a Anabele, mestre dos molhos.

Aqui no Hill nós não temos cardápio de restaurante, é de bar mesmo! Bolinhos variados, anéis de cebola empanados, batatas feitas de várias formas e, claro, nossas porções de carne. O carro-chefe são as asas de frango com molhos, uma receita que aprendi com um americano e que caiu no gosto da nossa clientela.

Claro que, com um cardápio tão “tradicional” assim, nós nunca teríamos nos destacado se não fosse a constante variação que fazemos nas receitas. Inventamos onions rings recheadas com vários sabores; batatas com muitos tipos de coberturas, e nossas carnes sempre têm algum molho ou tempero especial.

Além disso tudo, eu conto com o Kiko, o mestre em drinques que encontrei há alguns anos servindo numa barraca de festa, fazendo freelance. Notei o talentoso bartender que ele era e não me arrependo nada disso. O homem é demais, além de ser um grande amigo.

No bar, ele trabalha com mais três ajudantes, que se encarregam de toda a bebida do pub e do controle do estoque. Kiko é um ótimo gerente, dei esse posto a ele por puro merecimento, demonstrando minha admiração. Ele sabe trabalhar em equipe, é muito organizado, sabe contornar conflitos e ter pulso firme com o time de vinte garçons e garçonetes que temos na casa.

O pequeno boteco ao estilo “pé sujo” hoje é uma empresa que gera renda e mantém dezenas de famílias.

Esse é mais um dos motivos pelos quais não posso fraquejar e deixar que as dívidas deixadas pelo papai e pelo meu irmão me façam perder tudo. Principalmente para os Karamanlis!

Respiro fundo só de pensar naquele bando de engravatado abutre rondando o pub como se ele fosse um animal agonizante prestes a perecer. Eu vendo o bar para qualquer um que quiser continuar o negócio, não importa que não seja meu – embora isso me doa –, mas nunca para eles.

Falta pouco para eu quitar a dívida do meu irmão. Papai começou a pagar ainda vivo, e eu continuei os pagamentos depois da morte dele. Devo a um traficante! Esse não é o tipo de pessoa a quem alguém quer dever, então os pagamentos precisam ser feitos religiosamente.

Mais um mês, e isso acaba!, penso aliviada.

Leonan – meu credor – me garantiu que, depois da dívida quitada, não haveria mais o nome da família Hill nos cadernos dele, e eu acredito que mantenha sua palavra. Para qualquer pessoa, essa minha fé em um traficante, quando meu irmão morreu de overdose, pode parecer contraditória, mas tem explicação. Quando João Pedro chegou ao fundo do poço e ficou fora de casa por mais de um mês, papai se desesperou e foi atrás do Leonan. Ele não fornecia mais nada ao meu irmão, mesmo porque JP já usava crack, droga com que ele não “trabalha”, porém, o homem conhecia todo tipo de “fornecedor” e a galera que se amontoava na cracolândia.

Acharam meu irmão lá, e meu pai, mesmo sem nenhuma condição financeira, levou-o para uma clínica de reabilitação. Pasmem, mas quem emprestou o dinheiro para financiar a recuperação foi o Leonan, e é por isso que eu lhe pago até hoje, mesmo porque ele se arriscou muito emprestando esse dinheiro, uma vez que é apenas um dos “gerentes” da boca.

Nós tentamos, mas JP não conseguiu se reerguer.

Quando voltei de Paris, ele já estava de novo vivendo nas ruas. Papai estava desesperado, doente, e eu, mesmo frustrada por ter dado tudo errado no meu sonho de viver na Cidade Luz e ser uma chef reconhecida, fiz a promessa de fazer qualquer coisa por eles. Cheguei precisando de apoio e consolo, e, mesmo em meio a toda essa situação – que ignorava até voltar para casa –, meu pai me recebeu de braços abertos.

Meu irmão foi encontrado morto na rua, um choque e, ao mesmo tempo, um alívio para nós. Ele estava irreconhecível, doente, parecendo ter o dobro da idade que tinha e sofrendo muito. O vício é uma doença, e o crack é quase uma sentença de morte. Pouquíssimas pessoas conseguem se livrar dele, e é por isso que, quem consegue, merece receber todo apoio e consideração, porque é uma luta enorme, uma superação.

Papai estava medicado, tocava o bar, e eu voltei a trabalhar na cozinha e comecei a mexer nos cardápios. No princípio ele não gostou muito, mas depois foi aceitando a ideia de modernizar as coisas. O dinheiro começou a entrar, porém, sempre que eu tocava no assunto reforma, ele desconversava.

Só descobri que ele era viciado em jogo logo depois do funeral, mas apenas soube o tamanho do problema há dois anos, quando recebi a “visita” de um dos agiotas que emprestou dinheiro a ele. Ele devia muito!

Tentei ir pagando ao longo desse tempo, no entanto, os juros que ele praticava só tornaram tudo uma grande bola de neve. Eu estava enxugando gelo e totalmente sem saída. Se vendesse o Hill, conseguiria quitar a dívida, mas como iria continuar mantendo as pessoas que dependem de mim e que necessitam desse trabalho? Além disso, esse é o único legado da família que me restou, pois a casa do meu pai, onde moro hoje, fica no andar de cima e faz parte da propriedade.

Eu tinha esperança de conseguir quitar a débito e fiz um investimento futuro que poderia me render um dinheiro suficiente para amortizar todos os juros e depois eu tentaria renegociar a dívida, mas algo aconteceu.

Fui tentar pagá-la há alguns meses, e, simplesmente, o agiota não me atende. Sempre entrei em contato pelo único número que ele me deixou. Entretanto, é como se nunca tivesse existido.

Um frio percorre minha espinha ao imaginar os prováveis motivos para que o homem não me atenda mais, e eu temo pelo que possa me acontecer.


A noite começou com correria. É sempre assim quando vou à abertura de um vernissage ao qual estou patrocinando. Dessa vez não será pintura, mas sim um jovem escultor descoberto em Paraisópolis que faz seu trabalho com argila, sucata ou qualquer outro material que possa transformar em arte.

Antes ele vendia suas esculturas como artesanato em uma feira de rua, e um dos meus contatos no mundo das artes me ligou assim que viu o material dele. Claro que o rapaz, de apenas 21 anos, tinha muito a se refinar ainda, mas era claro como o dia o talento que tinha para transformar em realidade tridimensional qualquer coisa que viesse à sua imaginação.

Assim que conversamos, propus que ele fosse estudar com um amigo meu, um megaescultor brasileiro cujas peças estão no mundo todo, e assim comecei a organizar seu caminho até o dia de hoje. Viviane, meu braço direito nos negócios com artes, levou-o a várias exposições, workshops, festas e qualquer outro evento que o ajudasse a fazer networking. Enquanto isso, ele estudava, e eu bancava suas despesas e o local onde trabalhava.

Dez meses depois ele já tinha uma quantidade absurda de material de qualidade surpreendente para ser apresentado, e Viviane começou, então, a organizar a exposição, a espalhar uma coisinha aqui e outra ali sobre ele, a mostrar – mesmo que de relance – algumas das melhores peças dele a colecionadores a fim de deixá-los curiosos.

Claro que exatamente essas peças são as que eu já separei para minha coleção particular, que já serão mostradas como vendidas nesta noite, causando assim alvoroço e incitando os outros compradores a adquirirem mais esculturas.

É assim que esse mercado funciona. Geralmente quem é colecionador é também um competidor nato e, ao saber da compra de um item que gostou, começa a sentir medo de ficar sem uma peça daquele artista e, mais tarde, ele se revelar o novo Michelangelo. É por isso que eu sou louco por essa área, por esse jogo pensante e cheio de estratégias como o de um tabuleiro de xadrez. Primeiro, preciso enxergar o potencial artístico de uma pessoa, depois é só começar a jogar e colocar cada peça em seu devido lugar até vencer o jogo.

Ah, não pensem que faço isso por caridade, claro que não! Eu sou um investidor, então tudo o que faço pelo artista está em contrato, e depois sou ressarcido de acordo com o sucesso obtido. Todavia, em algumas situações ocorrem contratempos que impedem o acordo de seguir em frente, nesse caso fico no prejuízo, e o artista volta a se virar sozinho. Meus prejuízos até hoje foram ínfimos diante do que já lucrei nesse negócio, por isso gosto cada vez mais de jogar esse jogo.

O único problema é conciliar meu trabalho burocrático na Karamanlis com a agenda que tenho que seguir, afinal, não “apadrinho” apenas um artista, geralmente tenho umas dezenas em vários estágios de preparação e sucesso. Por isso não dispenso a Viviane, pois ela coordena toda a agenda desse pessoal – excêntrico o suficiente, vale ressaltar – tão heterogêneo.

É uma empresa paralela que nem leva meu nome, porque há um impedimento no estatuto da Karamanlis de o CEO pertencer à diretoria, conselho ou ser sócio de qualquer outra empresa. Então, para todos os efeitos, Viviane Lamour é a dona, e eu, apenas um admirador, além de seu amante, como todos comentam.

Rio ao pensar nisso, dando o nó na gravata-borboleta de frente para o espelho. Conheci Viviane numa festa dada por um pintor muito louco, e ela, obviamente, chamou-me a atenção por seu belo porte, cabelos cortados bem curtos e com a franja alongada, completamente platinados a ponto de serem brancos, destacando sua pele morena. Por si só, ela já é uma obra de arte, de bom gosto, apenas para apreciação de pessoas com senso refinado e olhar crítico.

Saímos algumas vezes, fodemos na maioria delas, mas depois nos tornamos amigos, e o tesão passou. Hoje fico até incomodado com o jeito como ela me trata, como se eu fosse seu confidente, uma espécie de mulher ou amigo gay a quem ela conta detalhes íntimos (excitantes ou asquerosos). Nós nos divertimos juntos, já saímos com a mesma mulher ao mesmo tempo, e eu já a dividi com outro cara, mas tudo na base da amizade e sem nenhum tipo de amarra, e há muito tempo não temos mais esse contato, apenas o profissional e amistoso.

Além de Millos, ela é a única que sabe da vontade do pappoús e tem me auxiliado na busca de uma mulher que preencha o requisito da velha raposa grega – e os meus também, óbvio!

Viviane é mais do que minha sócia, ela é meu faro, o olhar de lince que preciso, além de ser uma ótima companhia, inteligente, divertida, moderna e muito agradável.

Meu celular toca, e vejo o nome dela aparecendo na tela, como se eu a tivesse evocado.

— Theo, meu lindo, você vai chegar a tempo?

Olho-me no espelho antes de responder. Traje de gala, smoking tradicional, preto, com camisa branca, gravata-borboleta de seda também preta e sapatos italianos de couro. Meus cabelos estão penteados para trás com uma pomada que os mantêm fixos, mas sem aquele aspecto molhado tão démodé, minha barba está bem aparada, do jeito que gosto, tudo no lugar.

— Vou, sim! — respondo abrindo a gaveta com relógios da Rolex.

Fico em dúvida por um instante, mas acabo optando pelo clássico day-date de platina, luneta lisa, pulseira presidente e mostrador de ouro branco 18 quilates, de fundo preto com listras. Clássico e moderno ao mesmo tempo!

Confiro o horário no convite e, em seguida, as horas no relógio já no meu pulso. Não gosto de joias, pulseiras, cordões e etc. O único acessório – que, nesse caso, é como uma joia, por ser feito de metal precioso – é meu relógio. Venho os comprando e colecionando há muitos anos e, quando mandei fazer o closet, incluí no projeto gavetas-cofre, todas com combinação para abrir, onde eles ficam aguardando para serem usados.

Tenho peças de várias marcas e muitos modelos de cada uma delas, com valores também variáveis, desde o de um carro popular ao de um apartamento. Minha paixão por relógios é a mesma que Millos tem por motos, por exemplo, ou a que o vovô tem por selos. Acho que todo Karamanlis gosta de acumular algo; não sei se ou o que meus irmãos gostam de colecionar apenas porque não os conheço bem.

Passo perfume antes de sair e, já na sala de estar, encontro-me com a Vanda a esperar, torcendo as mãos e parecendo ansiosa.

— Algum problema?

— Infelizmente, sim. — Ela dá um suspiro. — Minha filha acabou de me ligar... perdeu o bebê.

Caminho até ela e coloco a mão sobre seu ombro, consolando-a.

Vanda trabalha comigo há tantos anos que é como se eu conhecesse toda sua família. Ela tem dois filhos adultos – uma mulher de trinta e poucos anos e um rapaz ainda na casa dos vinte. Os dois moram longe, estudaram, foram trabalhar e formaram família. O rapaz – cujo nome nunca lembro – mora nos Estados Unidos e trabalha numa empresa de tecnologia lá. Já a mulher, Aurora – esse é um nome que nunca esqueço –, mora no Rio de Janeiro com o marido, com quem é casada há muito tempo.

Ainda me lembro da felicidade de Vanda ao me comunicar que finalmente seria avó. Por isso, entendo sua tristeza.

— Se precisar de uns dias para ficar com ela... — Ela concorda. — Vou pedir ao Rômulo que providencie as passagens de avião. — Pego o celular. — Ele tenta algo para hoje ainda?

Ela soluça, e isso me corta o coração. Nunca tive contato com minha mãe, e ela cuida de mim como se eu fosse seu filho. Claro que temos uma relação profissional, mas reconheço o trabalho e o afeto dela por mim.

— Eu gostaria de ir o mais rápido possível...

Rômulo atende no segundo toque, todo esbaforido como sempre, como se estivesse fazendo algum tipo de exercício que o deixasse sem fôlego.

— Rômulo, boa noite! Preciso que compre passagens para o Rio de Janeiro se possível ainda para hoje à noite.

— O doutor vai viajar? Não vi nada na agenda que...

— Rômulo... as passagens, estou esperando na linha — corto-o.

Ele demora alguns minutos, mas ainda posso ouvir sua respiração ofegante. Será que o filha da puta tem asma e nunca me contou?

— Tem um voo para às 22h20 com previsão para chegar lá no Galeão às 23h25, posso comprar?

Confiro as horas de novo; pouco mais de duas horas para a partida do voo.

— Compre e já faça o check-in online. É para a Vanda, têm todas as informações sobre ela na minha pasta pessoal.

Ele confirma, pergunta sobre a volta, e eu peço para reservar para daqui uma semana, mas com possibilidade de mudança.

Vanda vai correndo até seu quarto, entendendo o pouco tempo que tem até chegar a Guarulhos, e eu aproveito para ligar para o Dionísio, que já está na garagem do prédio me esperando.

— Dio, você vai levar a Vanda para o aeroporto o mais rápido possível. Ela tem que estar lá em uma hora para poder embarcar para o Rio. Vá rápido, mas com segurança. — Mal desligo e ligo de volta para o Rômulo. — Conseguiu?

— Já mandei o voucher para o celular dela, chefe! — diz todo animado, e eu reviro os olhos.

— Preciso que entre em contato com aquela empresa na qual alugamos carro e motorista quando me hospedei lá.

— Já fiz isso também, chefe! — sua voz agora está animada e orgulhosa.

— Muito bem! Bom trabalho, Rômulo! Boa noite!

Juro que posso ouvir um suspiro quando desligo o celular. Rio, balançando a cabeça, achando o jeito dele muito engraçado, mesmo que me irrite na maioria do tempo. Esse Rômulo!

Uma mensagem da Viviane chega, pois agora estou oficialmente atrasado, e retorno apenas para acalmá-la:

 

 

Sento-me no banco do piano, brincando com as teclas enquanto Vanda termina de arrumar sua bagagem, pensando em como as coisas mudam de uma hora para a outra dentro de uma família. Eu já senti essa reviravolta uma vez, embora na época tenha reconhecido que foi para melhor, mas ainda assim as lembranças dela causam a dor da sensação de não saber como teria sido.

Bufo de raiva por deixar isso voltar, mesmo depois de tantos anos. Tudo o que eu queria era uma noite de sucesso para meu investimento e, talvez, um sexo casual depois do evento.

Dedilho um blues aleatório ao piano para animar meu espírito antes de sair de casa.

Odeio essas noites corridas!

 

 

— Porra, achei que você não vinha mais! — Viviane me cumprimenta assim que eu piso na galeria. — Samuel Dias é o maior sucesso! — cochicha em meu ouvido enquanto finge um abraço. — Parabéns!

Retribuo o cochicho:

— Para nós dois!

Ela gargalha, e isso chama a atenção de algumas pessoas que estão tomando champanhe e conversando em um canto. Cumprimento-os com a cabeça, pois conheço a maioria deles, mas uma loirinha me atrai com seu sorriso contido e olhos esfomeados.

— Seus olhos não são bons só em detectar talentos... — Vivi sussurra. — Valentina de Sá e Campos, filha do deputado Cristóvão Campos e neta do diplomata Augusto de Sá.

— É um bom currículo! — debocho. — O que mais você sabe?

Viviane sorri lentamente, uma expressão que eu já conheço e que significa que ela sabe tudo o que eu quiser ter de informação sobre a garota.

— Tem 27 anos, formada em Direito, faz balé desde criança e toca piano muitíssimo bem. — Faço um gesto com a cabeça, admirado. — Pelo que eu sei, trabalha no escritório com a mãe, mas está estudando para ingressar na diplomacia como o avô.

— Uma mulher de carreira, então?

Vivi me olha como se eu tivesse duas cabeças, e ergo as mãos em rendição.

— Mulher de carreira! Que mente retrógrada! O que você quer, afinal? Uma dondoquinha que fique em casa sem fazer nada o dia todo?

— Uma mulher que cuide de meu filho e que não o abandone por causa da profissão.

Ela volta a me fuzilar com os olhos.

— Isso é revoltante, Theo! Há ótimas mães que também são ótimas profissionais, uma coisa não exclui a outra, pelo amor de Dadá! — ela sempre me arranca um sorriso quando diz essa expressão. — Você quer mesmo fazer isso? Começar a sair com alguém para se comprometer? Porque, a cada vez que encontra uma possibilidade, você arranja mais requisitos! Tá foda!

— Vamos cumprimentar o artista primeiro, depois você continua me contando a vida da menina. — Sorrio para ela. — Anota aí que eu também a achei muito nova.

— Puta que pariu, desisto de te ajudar! Aquela última tinha 35 anos, e você achou que ela já podia estar entrando na menopausa e que por isso ia ser difícil emprenhar. — Rola os olhos. — Cagão!

Gargalho, aceitando um copo de uísque que o garçom veio me servir.

— Macallan? — pergunto, sentindo o cheiro.

— Óbvio, trouxe exclusivamente para você. — Ela acena, e vejo Samuel Dias. — Elogie o rapaz, diga que eu contei como ele tem se saído bem nesta noite e se desculpe pela demora. Finja ser sensível!

— Mas eu sou, não preciso fingir! — respondo rindo, bebericando o uísque.

— O que há de errado? — Ela provavelmente percebeu que não estou bebendo de verdade, apenas fazendo cena.

— Estou dirigindo. Tive que pedir a Dionísio que me fizesse outro favor.

— Justo hoje? — mesmo com o sorriso congelado em sua face, sua voz não disfarça a irritação. — O que havia de tão importante?

— Nada para você se preocupar. — Cumprimento o artista da noite: — Parabéns, eu ouvi falar que tudo tem sido um sucesso!

— Obrigado, Theo! Nada disso seria possível sem...

— Não, nada disso! Vamos celebrar a sua conquista hoje! — corto seu discurso de gratidão. Ele não precisa disso, não lhe estou fazendo um favor. — Viviane, procure um garçom para servir algo ao rapaz! O serviço poderia estar melhor...

— Vá se foder, Theo — diz baixinho entredentes, mas faz o que peço.

Assim que ela se afasta, cumprimento Samuel como sinto que devo, sem Viviane a estar no meu ouvido dizendo o que e como devo falar com ele.

— Estou muito orgulhoso de você. Sabia que seu talento seria reconhecido. — Ele agradece. — Só se lembre daquilo que conversamos no primeiro dia em que nos encontramos.

— Claro! — Sorri. — Nunca abandonar minhas raízes e minhas essência, porque são elas que impulsionam meu talento.

— Exato!

Viviane volta com duas taças de champanhe.

— Podemos brindar? — pergunta animada.

Levanto o copo de uísque enquanto eles tocam de leve as taças. Novamente busco a garota loira com os olhos e tenho a grata surpresa de pegá-la me observando. Sorrio, aceno com a cabeça, e ela faz o mesmo.

Então vamos ver no que dá!


Acordei de ressaca hoje, e não foi por causa da quantidade de bebida que ingeri no vernissage; aquela quantidade, eu nem consideraria como beber. Viviane ficou puta por ter encarecido o orçamento com garrafas do meu uísque preferido e eu não estar bebendo, por isso, depois do evento, reuni todas as que sobraram e trouxe para meu apartamento.

Pensei que ia passar uma noite solitária, acompanhado apenas de um single malte e discos de jazz, mas, no meio da minha encenação de lobo solitário, Millos ligou me convidando para ir até seu loft. Neguei várias vezes, mas a porra do homem estava tão excitado com a cerveja que havia feito que não parava de insistir.

Resultado? A bebida realmente estava um espetáculo! Enchemos a cara, mesmo sob meus protestos, pois nunca curti muito beber cerveja, e comemos uns tira-gostos tão saborosos que teci elogios a sua habilidade na cozinha.

— Ah, não fui eu quem preparou, não! — Riu. — Encomendei no Hill.

Quase cuspi aquela porra para longe e o fuzilei com os olhos.

— Porra, eu querendo que aquela merda feche e você comprando lá? Está do lado de quem afinal?

— Do meu estômago! — respondeu comendo mais um dos bolinhos. — Estava com vontade de ter um acompanhamento, mas sem nenhum saco para preparar. Me lembrei do dia em que fomos lá e quis conferir se ainda continuavam tão gostosos!

— Ainda não te perdoo por aquela arapuca! — acusei.

Há uns dois anos, Millos me convidou para comemorar seu aniversário, coisa que vez ou outra fazemos quando ele está em clima de festa. Eu lhe disse que o encontraria no local, mas ele insistiu em me buscar em casa, e, quando chegamos e percebi que era no Hill, fiquei bem puto, mas a curiosidade de saber o motivo pelo qual o boteco estava se tornando um sucesso me impulsionou a entrar.

O que eu não contava era que, além de a mim, o filho da puta tinha convidado meus irmãos. Ficamos lá os quatro como se fôssemos bons amigos, compartilhando da armadilha de Millos. Aposto que Kostas e Alex detestaram cada momento, mas sorrimos, bebemos e experimentamos os quitutes da tal da Duda Hill.

Mesmo não gostando de admitir, era fato que a mulher sabia o que estava fazendo na cozinha. Os bolinhos tão tradicionais de um boteco tinham um requinte diferente, embora mantivessem a essência. Era como se ela conseguisse melhorar o que já era perfeito, e isso, tenho que admitir, é um dom.

Confessei isso ao meu primo? Nem sob tortura! Repreendi-o por ter comprado lá, aleguei que ela podia ter mandado envenenar os quitutes – fazendo um drama desnecessário, culpa da bebida –, mas não parei de comer.

— Ah, pedi a Sami para comprar para mim — respondeu.

— Você ainda está saindo com ela? — questionei surpreso, pois havia muito tempo não via a motoqueira que, de vez em quando, orbitava em volta dele.

— Não! Somos amigos, já disse isso, mas parece que você só enxerga a boceta de uma mulher, come até suas “amigas” — fez referência a Viviane.

— Por que você não gosta dela? — Provoquei: — Porque ela é independente, dona de si mesma e diz o que pensa?

— Não! Eu não curto mulher assim para comer, mas não tem nada a ver com o fato de eu achá-la fria e calculista, e nunca escondi isso de você. Aquela mulher gela meu sangue!

Ri do seu exagero, afinal, a Vivi não tem nada de fria. Millos implica com ela pelo simples fato de a mulher ter personalidade e não se deixar comandar por ninguém. No primeiro momento ele se sentiu atraído, Vivi é um espetáculo aos olhos, e ela também não disfarçou o interesse. No entanto, bastaram alguns minutos de conversa para que se odiassem.

— Hoje ela conseguiu algo incrível — comentei. — Valentina de Sá e Campos, já ouviu falar?

Ele riu.

— Dela não, mas conheço os sobrenomes. Família paulistana tradicional, bom currículo. — Cruzou os braços e me olhou debochado. — A futura senhora Theodoros Karamanlis?

— Talvez — fui sincero. — Conversei um pouco com ela nesta noite, achei-a divertida, inteligente e sedutora. A princípio achei que era muito nova, mas é madura e independente, cheia de opinião. Gosto do tipo.

— Eu sei. — Ele se levantou e foi pegar mais cerveja. — Foi Viviane quem te apresentou a ela? — Assenti. — Não sei se gosto disso, mas boa sorte.

Gargalhei pela implicância dele com a Vivi e resolvi desviar o assunto. Falamos da Karamanlis, de música, de motos e, por fim, já muito bêbado e com sono, caí sobre o sofá dele e acordei há pouco, com torcicolo e com uma puta dor de cabeça.

— Ei! — Millos me saúda estendendo uma xícara de café. — Você está destruído!

O desgraçado ri, mas nem posso mandá-lo tomar no cu, porque minha cabeça trepida parecendo que há uma britadeira no meu cérebro. Maldita cerveja! Malditos bolinhos envenenados da Duda Hill!

— Cara, você é fraco para minha cerveja! — Millos ri. — Ficou boa, não é? — Apenas assinto, ainda tomando o café para melhorar meu ânimo. — O que está programado para fazer nesse final de semana?

— Vou trabalhar. Como saí um pouco mais cedo ontem por causa do vernissage, Rômulo separou umas pastas para que eu lesse nesse final de semana. Coisa chata, principalmente da pauta da reunião do conselho.

— Por falar no conselho... — Ele se senta ao meu lado no sofá e apoia os pés descalços sobre a mesinha de centro. — Ontem tive notícia do Kostas. — Ri. — Parece que tomou um toco feio da Kika e está cuspindo marimbondos.

Gargalho, esquecendo a dor.

— Como queria ter visto esse embate!

— Eu também.

Bufo, mesmo divertido, lembrando que o meu problema continua.

— Preciso trazê-la de volta para a empresa com urgência. Há vários projetos dos hunters parados, e o Rômulo não está dando conta de organizá-los.

Millos rola de rir no sofá.

— Esse seu assistente é muito estranho. Sinceramente não entendo como você ainda o mantém trabalhando contigo!

— Gosto de ele ser metódico. — Dou de ombros. — É organizado, embora meio desastrado, nunca perde um prazo e faz tudo o que eu peço.

— Seu próprio espelho, não é? Nunca conheci ninguém mais chato que você para organização.

Ergo uma sobrancelha para ele e olho em volta para seu loft cheio de espaço, mas sem nenhuma lógica ou senso de estilo. Millos gosta de coisas rústicas, e respeito isso, acho legal, mas é tão bagunceiro que seus móveis caros de design parecem ser cacarecos de alguma casa demolida.

Os únicos locais arrumados são: a cozinha, o “laboratório” de cerveja (como ele mesmo se refere ao local) e onde dorme. O resto... tem peças de motos para todos os lados, mesmo a oficina ficando na parte de baixo do galpão que ele chama de loft, tem barris com os ingredientes que compra para a fabricação de cerveja, roupas, discos e óculos (nunca vi tantos para uma só pessoa) espalhados por todos os lados.

O homem é um caos completo em casa, mas, se alguém entrar na sala dele na empresa, vai acreditar que é o epítome da organização. Não entendo como consegue!

— Bem, sobre a Kika, eu posso te adiantar que não precisa se preocupar — Millos continua. — Falei com ela ontem, e vai voltar.

Expiro o ar, aliviado.

— Porra, Millos, porque não me contou antes? É um alívio do cacete não ter que lidar com mais esse problema e...

— Mas ela não quer ser mudada de andar.

— O quê? Ela está fazendo exigências?

Millos penteia a barba com os dedos, enervando-me com sua calma.

— Demonstramos desespero ao mandar o Kostas pedir arrego. — Concordo com ele nesse ponto. — Ela quer aumento, continuar no andar e... — Tenta conter o sorriso, e prevejo que vem bomba, mas ele vai dar um doce do cacete para falar.

Perco a paciência e esbravejo:

— O que mais ela quer?!

— Carta branca para mandar seu irmão se foder à vontade.

— Porra!

Ponho as mãos na cabeça, sentindo a dor de cabeça voltar com tudo e ouvindo a risada debochada do Millos.

Eles querem me enlouquecer, só pode!

 

 

A dor de cabeça me acompanhou ao longo de todo o final de semana. Tomei analgésico, antiácido e – seguindo os conselhos do meu primo – mais um pouco de cerveja. No entanto, não consegui me livrar do incômodo insistente.

Trabalhei o sábado inteiro, recebendo ligações do Rômulo quase de hora em hora, a ponto de ficar puto com ele e mandá-lo caçar algo para se divertir e me deixar em paz. Compreendo que ele queira me ajudar, mas, às vezes, sua dedicação exacerbada me estressa.

Recebi um convite para jantar de uma antiga amante que vinha a São Paulo de tempos em tempos, mas neguei. Queria apenas relaxar um pouco em casa depois de ter trabalhado em páginas e mais páginas de relatórios com uma dor de cabeça chata a me distrair.

Pedi comida em um restaurante de comida vegana, achando que pudesse ser a gordura dos bolinhos do Hill – velha e rançosa, com certeza – que me deu essa indisposição e resolvi assistir a alguns filmes antigos. Sou fã de “O poderoso chefão”, então comecei a assistir a cada um deles de novo.

Novamente dormi em um sofá, mas acordei melhor e resolvi correr um pouco. Passei umas duas horas no Ibirapuera e, na volta, encomendei o almoço de domingo, sentindo-me um pouco órfão sem a Vanda em casa.

Liguei para Millos a fim de fazermos algum programa à tarde, mas ele estava com alguma mulher em algum clube ou lugar que só Deus sabia, então voltei aos relatórios, e isso consumiu o resto do dia.

Debaixo do chuveiro, rememorando este final de semana de merda, ouço meu telefone tocar, mas o ignoro. Coloquei os jatos no mais forte possível para tentar aliviar um pouco a tensão que venho acumulando nesses dias. A verdade é que preciso trepar um pouco, divertir-me, talvez fazer uma viagem ou passar um final de semana com alguém sem pensar no trabalho.

A imagem da Valentina vem à minha mente, sua conversa gostosa, seu sorriso bonito. Contudo, ainda não me sinto completamente certo de que devo me envolver com ela, principalmente por uma questão: não senti muita atração.

Sei que isso é de momento e que pode mudar, principalmente se a convivência for boa. Nem sempre sentimos atração pela pessoa no primeiro encontro, e já vivi anos demais para saber que até um primeiro encontro explosivo pode depois esfriar e o tesão ser extinto, então, não me baseio apenas nessas primeiras impressões.

Fecho os olhos e penso na garota da boate há alguns anos. Ela vem preenchendo minhas fantasias há muito tempo, talvez por ter sido gostoso daquela vez e não ter tido mais notícia dela.

Mal lembro do seu rosto, de tão bêbado que estava, sempre quando fantasio vejo os cabelos e me lembro da loucura que foi nossa transa naquele banheiro.

O telefone volta a tocar, e desligo o chuveiro, saindo do boxe para ver quem é o chato. Rio ao ver o nome do Millos. Na mosca!

— Já terminou sua maluquice sexual com a “submissa” da vez? — provoco.

— Vá se foder e não se meta nos meus assuntos — rosna. — Liguei para saber se amanhã pode ir comigo a um restaurante que um amigo inaugurou nos Jardins.

— Boa comida ou é boteco?

— Não, seu fresco, é coisa fina! Vanda ainda não estará de volta, não é?

Suspiro, resignado.

— Não, ela ainda vai ficar um tempo no Rio de Janeiro. Está certo, amanhã combinamos isso melhor no escritório.

— Okay! — diz animado. — Vai almoçar no refeitório junto aos funcionários?

— Sempre há uma primeira vez, não é? — Deixo a toalha no suporte e sigo para o closet. — Além do mais, confio que servimos algo de qualidade aos funcionários.

Millos ri.

— Essa eu quero ver! Nos encontramos no almoço, então! Boa noite, Theo.

— Boa noite!

Desligo o telefone e me olho no espelho, lembrando-me do tempo em que comia qualquer coisa e em qualquer lugar, na maioria das vezes sujo e fedendo a peixe, sentindo-me feliz e livre.

— Quem é você, Theodoros Karamanlis?


O dia nem bem amanheceu, e eu já estava suando na academia com a Sandra. Hoje, sem Millos, o treino foi mais tranquilo, seguindo o ritmo normal dos exercícios. Tomei meu café sozinho na cozinha – café puro mesmo – sentindo imensamente a falta da Vanda, de sua conversa matutina animada e seus cuidados. Posso não admitir sempre, mas gosto de ser cuidado, de sentir esse afeto, coisa tão rara na minha vida.

Limpei os pensamentos e saí para trabalhar.

— Bom dia, Dionísio! — cumprimentei o motorista como em todos os dias, já pegando meu jornal para me inteirar sobre as principais notícias do dia. — Hoje vou almoçar na empresa, mas, à noite, vou sair do escritório direto para jantar com Millos.

— Levo o doutor ou trago o carro?

— Traz o carro, vou dirigindo.

Ele assentiu, e seguimos viagem em silêncio, ele concentrado no trânsito, e eu, nas notícias de economia do país e do mundo.

Cheguei à empresa já apagando incêndios. Um dos projetos de um cliente foi reprovado por uma comissão municipal, então Kostas teve que intervir mandando seus advogados e acompanhando todo o processo. Eu, como CEO, fiquei aguentando a aporrinhação do gerente responsável pela implantação da empresa multinacional aqui no Brasil.

Nem vi a hora passar, mal tomei meus cafés tão tradicionais ao longo da manhã, irritado com esse problema, com o Rômulo borboleteando ao meu redor me enchendo de perguntas: “quer café?”, “ligo para o doutor Konstantinos?”, “quer um calmante?”. Eu quase explodi de raiva, sentindo meu estômago fritar e a cabeça estourar.

Desci para o refeitório faltavam alguns minutos para o meio-dia e, para meu espanto, ainda não tinha nenhuma refeição pronta. Conferi as horas no Omega, um dos relógios mais precisos do mundo, e estranhei a demora. Rômulo apareceu e, quando lhe questionei o atraso, fiquei sabendo que o almoço era servido a partir da 1h da tarde.

Voltei para o escritório sob a insistência de Rômulo para me encomendar o almoço em algum restaurante.

— Não! Hoje vou comer no refeitório — insisti.

Millos me lançou um desafio por eu nunca ter comido na empresa desde que foi inaugurado o refeitório para os funcionários. Pensamos no restaurante para facilitar a vida de todos e, como tínhamos espaço, decidimos montar a estrutura. Estive presente no primeiro dia, na inauguração, há alguns anos, mas depois disso não botei mais os pés no local.

Exatamente às 13h desci novamente pensando em usufruir de um almoço tranquilo e nutritivo, porém, o que encontrei me deixou sem ação. Primeiro, os funcionários ficaram estarrecidos ao me ver ali; percebi em seguida que apenas o baixo escalão da empresa – de coordenadores para baixo – estava comendo ali. Não havia nenhum gerente ou diretor no meio dos mais de 100 funcionários da companhia.

Contudo, o que mais me surpreendeu foi a comida. Não, não era ruim, pelo contrário, era bem preparada, mas sem nenhuma opção para substituição.

— E quem não pode comer carne vermelha? — questionei ao Rômulo, e ele apenas corou, fingindo não ouvir. — Há cardápios diferentes ao longo da semana?

Rômulo continuava a montar seu prato sem emitir qualquer resposta, o que não é nada típico dele, e isso me irritou. Quando não era para falar, o homem tagarelava, mas, quando eu precisava de respostas, ficava mudo!

— Rômulo! — chamei-o de modo mais enérgico. — Eu estou tentando entender o que...

— Não, não há! — escuto a voz do Alex e me viro para encará-lo. — E seu querido assistente não sabe informar porque não come aqui também. — Meu irmão pegou um prato e se serviu naturalmente. — A questão do restaurante entrou em pauta numa reunião de diretoria, mas o senhor todo-poderoso do Olimpo achou que não era uma questão relevante para a economia da empresa e pulou o assunto.

Olhei de esguelha para Rômulo buscando confirmar a informação, e ele atestou. Xinguei mentalmente.

— Uma empresa é feita de mais do que números, Theodoros Karamanlis — seu desprezo pelo sobrenome era evidente. — E, quando fiz a proposta do restaurante, era para que, além de economizar o tempo dos funcionários e agilizar o serviço, também tivéssemos convívio com eles, porém, adivinha quem foi o primeiro a pular do barco e a incentivar o “alto escalão” a ir junto?

Bufei de raiva.

— Quem é o responsável pela gestão do restaurante? — ignorei o discurso do meu irmão idealista e perguntei ao Rômulo.

— É terceirizada, a mesma empresa do pessoal da manutenção.

Merda!

— Marque uma reunião com ela e peça ao Kostas para avaliar o contrato. — Rômulo mais do que depressa escreveu em seu tablet inseparável. — Dispare um memorando para todos os diretores e gerentes, lembrando da existência do restaurante e informando que, a quem for almoçar fora, será necessário cumprir o horário, ou seja, uma hora e nenhum minuto a mais.

Rômulo arregalou os olhos e assentiu.

— Eu pouco vejo você e percebo que nem é preciso! Você não mudou nada, o mesmo prepotente de sempre. — Alex passou por mim, ainda se servindo no bufê, rindo de deboche, e percebi olhares curiosos em nossa direção.

— Eu preciso lembrar que você também faz parte da diretoria e tem acesso irrestrito ao conselho? — Cheguei perto para falar baixo: — Se fosse meu projeto, nunca deixaria chegar aonde chegou só porque não sou o CEO. Isso demonstra que está mais preocupado em ir contra a direção do que lutando pelo bem-estar dos funcionários. Não é minha função tomar conta de tudo, não sou absolutista, eu delego e confio naqueles a quem passo esse poder. — Ele fechou a cara, perdendo o ar de superioridade. — Não tenho intenção alguma de prejudicar os que trabalham comigo, pelo contrário. Mas assumo meu erro em não ter frequentado o local para dar exemplo.

— Mas o doutor também não tem horário certo para almoçar, por isso...

Balancei a cabeça em negativa, freando a defesa de Rômulo. Não tinha desculpas, o exemplo era meu, e eu tinha falhado. Terminei de fazer meu prato, sentei-me a uma mesa com Rômulo e almocei mesmo sentindo um nó na garganta por ter mostrado falha e ter sido repreendido pelo Alex na frente de todo mundo.

Merda!

Ao longo do dia, a repercussão do almoço do CEO no restaurante da empresa, bem como o efeito do memorando para os diretores e gerentes agitaram a tarde na Karamanlis. Percebi todo mundo mais atento, mesmo na correria de sempre.

Tive uma resposta positiva da equipe de Kostas com relação ao projeto vetado e pude passar a boa notícia ao nosso cliente. Recebi vários relatórios dos setores e subsidiárias ao longo do dia, inclusive da K-Eng, dirigida pelo Alex.

Meu irmão é um sonhador idealista, defensor dos fracos e oprimidos, um rebelde que só trabalha conosco para contrariar a família. Cospe sobre nosso sobrenome, mas faz questão de ostentá-lo para afrontar o pappoús. Sempre achamos que ele tentaria afundar a empresa em represália ao tratamento que teve na infância, mas não, ele não só assumiu uma empresa praticamente independente como a fez crescer. Todavia, ainda sinto que há algo por trás disso.

Estaciono o carro na vaga do restaurante, afastando as lembranças do dia e conferindo o endereço que Millos me enviou por mensagem. Estar sem o Dionísio nesta noite é bom, porque vou moderar a bebida, afinal é segunda-feira, e prefiro tomar um copo de uísque quando estiver no meu apartamento.

Tenho expectativa de o jantar ser bom; já o almoço foi complicado e indigesto com a discussão com o Alex e a demonstração de que deixei as coisas correrem soltas demais. Claro que não sou arrogante a ponto de achar que meu irmão não estava com a razão sobre as coisas que me disse, afinal, ele convive mais com os funcionários que eu, mas não gostei de ser contrariado na frente de todos.

Entro no restaurante, e a primeira coisa que percebo é a arquitetura do lugar e a decoração de bom gosto. Isso realmente não diz muita coisa acerca da qualidade gastronômica deles, mas já conta pontos em matéria de conforto. Uma recepcionista, bem-vestida e muito bonita, cumprimenta-me, e lhe dou o nome de Millos, que foi quem fez a reserva.

— Ah, doutor Karamanlis, ele ainda não chegou, mas o senhor pode esperá-lo no bar, tudo bem?

Respiro fundo, conferindo as horas e calculando que ele – se viesse de moto, como sempre – já deveria estar aqui. Olho contrariado para o bar, logo na entrada do restaurante, e meus olhos são imediatamente atraídos para uma mulher vestida de preto, com os cabelos longos, castanhos e lisos, tomando uma taça de vinho.

Não consigo ver todo o seu rosto, apenas o perfil, e isso é suficiente para que eu queira vê-la toda.

— Tudo bem — concordo com a recepcionista, que me aponta o bar.

Caminho para lá e me sento na poltrona alta ao lado da bela mulher. Não a olho, prestando atenção ao bartender que vem pegar meu pedido.

— Scotch, por favor. — Ele pergunta a marca. — The Macallan.

Sorrio satisfeito ao vê-lo pegar exatamente a garrafa que costumo beber e, então, de esguelha, olho para a mulher ao meu lado, procurando algum indício de indisponibilidade – ou problema –, como uma aliança em seu dedo.

Ela não usa nem mesmo anéis. No entanto, o que chama minha atenção são as unhas curtas, bem cuidadas, mas sem esmalte. Hoje em dia o que as mulheres mais fazem é colorir as unhas! Como eu gosto de arte, logo sou atraído pela variedade de cores e a combinação com as mãos e os formatos. Porém, não com ela; suas mãos são lindas, dedos longos, sem precisar de nenhum tipo de enfeite.

Subo o olhar e a encontro me olhando também.

— Boa noite! — cumprimento-a sorrindo assim que o bartender deixa meu copo no balcão.

— Boa noite! — ela responde. Sua voz me causa uma sensação de frenesi, e fico imediatamente excitado. Ela é linda em todos os sentidos da palavra. Seu rosto é delicado, proporcional, olhos expressivos, nariz fino e uma boca generosa. Fico imaginando como será seu sorriso aberto, não apenas esse polido e educado que me dá agora.

Paro de encará-la para não a constranger e tomo um gole do uísque, questionando se devo ou não puxar conversa com ela.

Não sou inseguro, nunca fui, mas às vezes uma mulher só quer estar quieta bebendo sem alguém para importuná-la, por isso sempre espero ver algum indício de que quer papo antes de abordar.

Dou outra olhada de soslaio.

Vamos lá! Quero saber quem você é!


— É a primeira vez que venho aqui — é ela quem faz o movimento, e gosto disso, uma mulher decidida. — Estou surpresa pelo requinte sem a frieza esperada desses restaurantes com esse nível. O pessoal é simpático e organizado.

Rio.

— Você é da área — constato e me viro para ela, girando a poltrona em sua direção.

— Sou. — Sorri finalmente, e me sinto extasiado com a perfeição do gesto. Os olhos ficam levemente puxadinhos, e sua face inteira se ilumina. A mulher fica absurdamente linda quando sorri. Meu interesse é real agora. — Mas hoje vim como cliente.

— Eu só venho como cliente — brinco. — Não sei fritar um ovo!

Ela ri de novo e toma um gole de seu vinho.

— O que seria dos restaurantes se todos soubessem ou gostassem de cozinhar? — Levanta sua taça em minha direção. — Aos que são apenas clientes e podem desfrutar de uma deliciosa refeição sem ficar avaliando cada nuance do prato.

— Justo! — Brindo com ela. — Qual sua formação?

— Cozinha francesa. Diplôme de cuisini e pâtisserie.

Uau!

Meu corpo inteiro vibra e meu pau reage ao som do seu perfeito sotaque francês. Acompanho sua boca em volta da borda da taça de vinho, o leve ondular de sua garganta sorvendo a bebida e sua língua resgatando os resquícios da bebida em seus lábios.

Abaixo a cabeça e bebo um longo gole do uísque, tentando não parecer um tarado assediador, mas louco para perguntar se ela prefere na minha casa ou na dela.

— Pelo francês perfeito presumo que tenha estudado na França... — Ela concorda com um sorriso. — Le Cordón Bleu?

— Naturellement. Estudar gastronomia na França sem ser em Le Cordón Bleu é como ir a Roma e não ver o Papa!

Gargalho com sua comparação e a saúdo com minha bebida.

— É como ir até a Escócia e não provar um verdadeiro uísque.

Levo o copo até a boca e acompanho o olhar dela em mim.

— Sua escolha de bebida me surpreendeu — ela comenta, e franzo o cenho, olhando meu bom e velho single malte e me perguntando qual é o problema com ele. — É uma bebida conservadora, nada sofisticada, ao meu entender, não combinou muito. — Aponta para mim.

Finjo-me de ofendido, embora segure a risada, e cruzo os braços.

— E você é uma entendida em bebidas também? — provoco-a.

A risada dela é tão melodiosa que parece música, seus olhos se iluminam e as bochechas ficam levemente rosadas. Perfeita!

— Nem queira saber! — Beberica um pouco do seu vinho. — Praticamente cresci cercada delas.

— Hum... — Sorrio. — O que combinaria mais comigo, então?

Sou submetido a um olhar avaliador, passando pela minha roupa, sapatos e rosto. Sinto tão intensamente sua atenção sobre mim que é como se ela pudesse olhar além das minhas roupas. Estou exposto, nu, cada músculo aquecendo à medida que seus olhos percorrem meu corpo, concentrando ainda mais desejo em minha virilha. Porra, que delícia!

— Pelo estilo de roupas e o Omega que usa no pulso — ergo a sobrancelha, surpreso pelo bom olho que ela tem —, um Dry Martini.

Gargalho sem me conter, e ela me segue, ambos divertidos pela comparação que ela faz. James Bond? Sim, eu sei que o mais famoso espião dos cinemas só usa relógios da Omega, mas não me vejo com uma taça de Dry Martini na mão, exigindo do bartender: “batido e não mexido”. Gosto de pensar que sou mais rústico que isso. A prova é meu single malte caubói.

— A sofisticação é só uma casca, pode acreditar. Estou longe de ser tão refinado quanto o Bond, ou tão habilidoso. — Ela levanta uma sobrancelha questionadora, demonstrando que não acredita nessa minha “humildade”. — A propósito... — respiro fundo, indo devagar — meu nome é Theo.

Mais uma vez seu sorriso faz meu pau reagir, ficando dolorosamente duro e pulsando na cueca. Que porra de atração é essa? O que essa mulher tem? É divertida, a conversa está fluindo bem, além de ser linda, mas essa atração... não é assim que acontece, ainda mais em um ambiente tão frio quanto o em que estamos.

— Maria Eduarda. — Ela estende a mão, e eu a seguro.

Tudo em volta parece vibrar, e noto que ela também sente isso. Meu sorriso se expande. Não tiro os olhos dos seus. A energia gerada pelo toque esquenta meu corpo e aumenta minha percepção do dela.

Maria Eduarda tem um belo pescoço, e o cheiro suave de um bom perfume parece advir exatamente do ponto onde eu gostaria de passar minha língua. Os ombros são delicados, os braços longos e sem nenhum contorno muscular demonstram que ela não mantém regularidade de exercícios, sendo magra ao natural. Os peitos no decote do vestido são pequenos, porém, redondos e firmes.

O vestido, embora justo, tem um tamanho comportado, por isso não posso ver suas coxas – o que é uma pena –, tão somente as panturrilhas e uns pés lindos – esses, sim, com as unhas pintadas de vermelho – em sandálias de cor clara.

Apesar de ser uma mulher atraente e bonita, não é uma beleza exótica. Sem o sorriso, ela passaria a ser apenas mais uma mulher bonita como muitas outras que existem por aí, porém, não para mim. Algo nela chamou minha atenção desde o primeiro momento. Mesmo com ela de costas, sem nem ao menos ver seu rosto direito, senti-me atraído.

Agora ela me deixa em chamas, tentado a ser direto e lhe propor uma noite de pura sacanagem. Eu o faria se o local fosse mais descontraído e tivesse mais abertura da parte dela, não só a confirmação de que se sente atraída por mim. Em uma boate, por exemplo, eu seria mais efusivo.

— É um prazer enorme encontrá-la aqui — mesmo sendo sutil, quero deixar claro que ela chamou minha atenção. — Salvou minha noite, pode ter certeza.

Ela sorri e solta minha mão.

— Quase não vim — confessa e dá de ombros. — Assunto chato, companhia chata.

Gosto da sua sinceridade.

— Negócios? — Ela assente, e eu adoro a notícia. — Geralmente os meus jantares têm o mesmo motivo.

— Então veio para uma reunião também?

Nego com a cabeça antes de responder:

— Não, hoje só vim comer. Meu primo é amigo do dono daqui e me recomendou o restaurante.

— Isso é bom, espero que esteja à altura da sua expectativa.

— Ainda que não esteja, Maria Eduarda — cruzo os braços e a encaro —, no momento estou ligando o foda-se para a comida ou o restaurante.

Ela fica séria, mas não desvia os olhos.

— É mesmo?

Não respondo de imediato, curtindo esse jogo entre nós. Aposto que ela sabe o motivo pelo qual não tenho mais nenhum interesse na gastronomia do local. Ela quer que eu diga! Quer que eu dê o passo adiante, que demonstre o interesse claramente, o que é um ótimo sinal.

Deixo o silêncio e o ar vibrar entre nós por mais alguns momentos, sem tirar meus olhos de suas belíssimas íris castanhas.

— Porque minha fome é outra desde que encontrei você aqui. — Ela segura o fôlego. — Porque nossa conversa está cada vez mais interessante. — Abaixo o tom de voz: — Porque olhar você e sentir seu cheiro acordaram meus sentidos mais do que qualquer nuance de um prato é capaz de fazer.

Minhas mãos coçam de vontade de tocá-la, de sentir novamente aquela energia sexual percorrendo meu corpo, emanando dela. Não o faço porque ainda não vi sinais suficientes para avançar a esse ponto, e eu sempre espero a permissão de uma mulher para tocá-la.

— Você nem me conhece — ela responde um pouco ofegante.

— Estou louco para conhecer. — Encosto-me melhor à poltrona e me afasto um pouco dela para demonstrar que não a estou pressionando. — Não tenho pressa, Maria Eduarda, só preciso que saiba que você me atrai e que, embora esteja sentado aqui, estou louco para segurar sua nuca e provar o sabor desse vinho que bebe, diretamente nos seus lábios.

Ela suspira e desvia o olhar.

Esse é o momento quando ou eu tomo um fora, ou venço o jogo. Porém, podem dizer que é arrogância, eu sou um homem vivido e, se cheguei até aqui, se me expus dessa forma, é porque estou apostando minhas fichas em que o tesão é recíproco.

— E se eu for casada ou comprometida?

Bingo!

Pela entonação da pergunta, sei que ela não é.

— Eu me desculparei, mesmo ainda sentindo esse desejo maluco de te beijar, e me levantarei, indo para a mesa que meu primo reservou. Não trepo com comprometidas.

Ela levanta as sobrancelhas e assume uma expressão provocadora.

— Não trepa? — Ri, cínica. — Você é muito confiante achando que basta jogar meia dúzia de palavras em cima de uma mulher sozinha em um bar para garantir uma trepada.

— Eu sou confiante. — Aproximo-me a fim de lhe demonstrar de onde vem minha confiança. — Mas não são as “meia dúzias de palavras” que vão fazer você ter vontade de trepar comigo. — Seguro sua mão e com a outra deslizo meu dedo indicador do seu punho até o cotovelo, vendo todos seus pelos se arrepiarem com o leve contato. — É isso!

Maria Eduarda fica um tempo olhando o trajeto do meu dedo sobre sua pele, assistindo, como eu, à deliciosa reação causada por meu toque. Não falamos nada, apenas acompanhamos o leve vai e vem que eu faço no seu antebraço, apreciando o contato. É nítido para mim que ela está avaliando todas as possibilidades e talvez tentando entender como isso é possível.

Já não escuto mais nada, os sons das conversas, a música clássica baixa que toca, a correria do bartender limpando copos, organizando garrafas ou preparando aperitivos. Tudo ao redor some, e só sinto a potência do tesão que ela despertou em mim, esperando que sinta o mesmo e que admita isso.

Ela sorri, mas puxa a mão, rompendo o contato.

— Como já disse, a gente nem se conhece.

— Sou paciente, Maria Eduarda. — Recebo um sorriso tímido. — Vou adorar cada momento até te conhecer. — Afasto-me dela novamente e peço mais uma dose de uísque. — Aceita mais uma taça?

Aponto, mas ela nega, olhando para a entrada do restaurante.

— Infelizmente, não. — Respira fundo. — Meu compromisso chato acaba de chegar.

Viro-me para ver quem é o sortudo que vai jantar com ela, mas só vejo o Millos entrando com uma cara debochada e um sorriso contido. Olho para Maria Eduarda novamente e confirmo que ela não só se levantou à espera do Millos, como parece muito contrariada com a presença dele.

Por que Millos iria marcar para jantar com uma mulher e comigo ao mesmo tempo? As palavras “jantar de negócios” me causam um alerta, mas me recuso a enveredar pelo rumo que meus pensamentos querem ir.

— Ah, desculpem o atraso! — Millos exclama, indo cumprimentá-la. — Que bom que já se conheceram. — Maria Eduarda franze a testa e me encara. — Theo, eu acho que chegou a hora de conversarmos pessoalmente com a Duda.

Porra!

Levanto-me como se tivesse sentado em um formigueiro, estarrecido demais para articular qualquer palavra educada que não seja um palavrão bem cabeludo.

Duda? Olho-a de cima a baixo sem poder acreditar que a mulher que me atraiu como se tivesse um ímã é a infernal dona do boteco que tem feito minha vida um suplício por causa de sua teimosia.

— Theodoros Karamanlis? — ela parece tão chocada quanto eu e já não há nada além de desprezo em sua voz ao falar meu nome.

Desvio um olhar mortal para meu primo, que, além de parecer surpreso, está também muito interessado nessa interação entre nós.

Eu vou te matar, seu filho da puta!


— Aceita mais uma taça?

Minha vontade é de aceitar e pagar para ver Theo jogando todo seu charme para mim, usando armas pesadas para conseguir provar que temos realmente toda essa química que ele demonstrou com um simples roçar de dedos em meu braço.

E temos, sim! Não sou hipócrita a ponto de me enganar dizendo que não senti nada por ele. Assim que se sentou ao meu lado aqui, a esse balcão, meus olhos foram imediatamente atraídos para ele. Quando me cumprimentou, sua voz fez meu corpo inteiro reagir de uma forma estranha, e tive a nítida sensação de que o conhecia de algum lugar.

Porém, foi só quando se virou em minha direção, depois de eu ter puxado assunto descaradamente, que fiquei sem fôlego. Seus olhos são de um azul que eu nunca poderia esquecer caso já os tivesse visto. No entanto, a sensação de reconhecimento persiste. Ele é muito bonito, além de ter um sorriso de arrancar a calcinha de qualquer mulher.

Se Manola estivesse aqui comigo, com certeza iria dizer que ficou emocionada e que molhou a calcinha. Entretanto, aprendi com o tempo e com as responsabilidades a ser mais comedida e a não me deixar levar sem pensar. Um rosto e um corpo bonitos não querem dizer muita coisa sobre o caráter de alguém.

Estou para aceitar a proposta de mais uma taça e alongar o papo, mas minha visão periférica capta um movimento na entrada do restaurante, e me sinto murchar ao ver Millos Karamanlis adentrando. Esse homem não se cansa de tentar comprar o Hill, é um saco!

Quando me ligou, eu estava pronta para dizer um sonoro NÃO a ele, mas insistiu que era importante, que tinha uma situação que me interessava e por isso achava melhor conversarmos para tentar um acordo. Isso me deixou intrigada e temerosa, por isso estou aqui, neste momento, tendo que recusar a companhia agradável e intrigante do Theo.

— Infelizmente, não — respiro fundo, respondendo ao delicioso oferecimento desse deus com cuja companhia o destino me presenteou enquanto eu esperava pelo diabo. — Meu compromisso chato acaba de chegar.

Levanto-me, resignada, para receber o homem barbudo e muito estiloso, devo confessar, mas que é uma pedra no meu sapato.

Millos abre um sorriso e se aproxima para me saudar como sempre faz, com um beijo na bochecha e um curto aperto de mãos. Tenho verdadeiro trauma dele, de estar sempre rodeando minha vida à espera de um fracasso que o deixe comprar o bar da minha família, minha casa, o legado do meu pai. Contudo, tenho de admitir que, embora pondo pressão, ele sempre me tratou muito bem e com muita simpatia.

— Ah, desculpem o atraso! — Ele olha para o Theo e depois para mim. — Que bom que já se conheceram. — O quê? Como assim? Eles se conhecem?! — Theo, eu acho que chegou a hora de conversarmos pessoalmente com a Duda.

Millos Karamanlis conhece o Theo!

Meu sensual companheiro de bar se levanta e me encara de um jeito completamente alarmado. O olhar sedutor sumiu, bem como seu sorriso franco e relaxado. Agora apenas incredulidade está estampada em seu rosto bonito.

Oh, meu Deus, não pode ser!

Claro que eu acharia que o conhecia, afinal, já vi fotos suas em revistas da alta sociedade e em jornais, embora creia que nenhuma delas lhe tenha feito jus. O homem ao meu lado não é simplesmente “Theo”, é o diretor da porcaria da empresa que comprou toda a quadra onde fica o Hill e que vem tentando de todas as formas me tirar do meu lugar!

— Theodoros Karamanlis? — minha voz soa tão incrédula como me sinto.

Como não percebi quem era esse homem? Como pude me sentir atraída por ele a tal ponto de fantasiar uma noite ao seu lado? Eu o quis como havia muito tempo não me lembrava de ter querido alguém, uma atração que não sentia desde a época em que ainda pensava que tinha o mundo aos meus pés e que conquistaria tudo o que sonhasse ter.

Millos fica um tempo com a sobrancelha erguida, olhando de um para o outro, até que resolve quebrar o gelo.

— Podemos ir para a mesa?

Eu o olho ainda sem entender que tipo de palhaçada é essa. Eles fizeram de propósito? Será que Theo veio primeiro para tentar me seduzir, afinal, nós nunca fomos apresentados, ou foi só uma coincidência ele ter chegado antes e aí resolveu brincar comigo?

Não é possível que ele não soubesse que eu sou a Duda Hill!

— Millos, o que você pretende, afinal? — Theo questiona com a voz demonstrando toda sua irritação.

— Eu não acho que temos algo para conversar. — Pego minha bolsa, que estava pendurada na poltrona giratória. — Não vou mudar de opinião, não pretendo vender o Hill.

— Por que não? — Theo questiona de repente, e eu o olho. — O que uma chef formada por Le Cordón Bleu pode querer com um boteco? — Fecho minhas mãos com força na alça da bolsa. — Ou esse papinho de Paris e seus diplomas é só um sonho fantasioso de uma dona de bar?

Millos emite um palavrão baixo, prevendo que o tempo irá fechar. Ele me conhece bem, já me irritou várias vezes e saiu do Hill com uma resposta à altura.

— O que eu quero ou não só diz respeito a mim, doutor Theodoros Karamanlis — tento falar o mais baixo possível, mas meus olhos brilham de indignação, e espero que ele entenda a mensagem. — O boteco é meu, faço com ele o que eu quiser, e de uma coisa você pode ter certeza: Não. Vou. Vender. Para. Vocês! Ficou claro agora, ou preciso desenhar? — Olho para o Millos.

— Ei! Vamos nos sentar à mesa e conversar com calma! — ele tenta apaziguar o clima tenso entre mim e Theodoros. — Theo... — pede sua colaboração, mas o homem parece estar soltando fogo pelas ventas e não lhe dá atenção. — Vocês estão chamando a atenção dos outros clientes e...

— Foda-se! — falo em uníssono a Theodoros, e Millos ri, mesmo ainda nervoso.

O maître aparece para nos conduzir até a mesa reservada, e Millos faz um gesto para que o sigamos até lá. Encaro Theodoros Karamanlis por um tempo, ambos medindo forças para ver quem cede primeiro.

— Vamos? — Theodoros pergunta, e eu assinto, passando por ele sem nem ao menos emitir uma palavra. A mesa que Millos reservou é discreta, no fundo do salão, sem nenhuma outra por perto. Sento-me com as costas eretas, sem tirar a alça da bolsa do ombro, mostrando a eles a minha contrariedade por estar ali.

— Vamos fazer um pedido?

— Não, Millos, não pretendo ficar para comer — sou direta. — Preciso apenas que me fale sobre o assunto que não quis adiantar pelo telefone. O que vocês têm a ponto de me fazer querer fechar um acordo?

Theodoros olha para ele parecendo muito mais irritado e bufa de raiva. Millos balança a cabeça e começa a explicar:

— Duda, há alguns meses estamos de posse de uma...

— Enorme quantia de dinheiro — Theodoros o interrompe. — A proposta de compra aumentou, e seria interessante a senhorita reconsiderá-la, afinal, pode abrir um pequeno bistrô para exercer o que aprendeu em Paris.

— O quê? — Millos o encara, confuso. — Olha, eu desisto! — Chama um garçom e pede uma cerveja. — Eu realmente acho que podemos chegar a um acordo, mas vocês dois são teimosos como mulas!

— Não quero nenhum acordo com vocês! — declaro. — Tudo o que quero é que parem de ficar rondando minha propriedade como dois abutres!

— Boa definição, senhorita Hill. — Theodoros se inclina por sobre a mesa para ficar mais próximo a mim. — Seu negócio está agonizante e em breve perecerá, e, quando isso acontecer, irá lamentar não ter abaixado um pouco sua crista e ter aceitado minha oferta, porque só sobrará carcaça aos abutres!

— Theo! — Millos o repreende, mas depois começa a rir. — Que conversa de doido, viu? Não esperava por isso! — Bebe sua cerveja. — Confesso que está um pouco divertido.

— Vá se foder, Millos! — mal fala isso e volta a me olhar. — Não irei repetir a oferta, Duda Hill. A aconselho a aceitar o mais rápido possível.

Meus olhos faíscam de raiva, mas meu corpo traidor se arrepia inteiro ante a expressão dele. O homem é sexy demais, insuportavelmente arrogante, mas ainda assim, muito sexy!

— Não estou interessada — uso o mesmo tom de voz que ele. — Vendo para qualquer um, menos para vocês. — Ponho-me de pé. — Espero que desfrutem do jantar sem minha companhia. Eu não conseguiria comer aqui com vocês sem ter uma enorme indigestão.

Theodoros se põe de pé também, e Millos, com um sorriso debochado, cruza os braços e fica só esperando o próximo passo do seu chefe.

— Não diga depois que não a avisei, Duda Hill.

Rio, passando perto dele para sair do salão.

— Não tenho medo de suas ameaças, Theodoros Karamanlis. — Aproximo-me para falar bem perto do seu ouvido: — Cão que ladra não morde!

Ele segura meu braço e abre um sorriso – puta merda! – cheio de malícia.

— Eu morderei, Maria Eduarda, e o farei tão gostoso que você pedirá mais!

Olho para sua mão em meu braço, e ele me solta. Respiro fundo para controlar o formigamento em meu corpo e a tremedeira em minhas pernas e saio do restaurante o mais rápido possível.

— Deseja que traga seu carro, senhorita? — o manobrista me aborda na porta do restaurante.

— Po-por favor! — Merda! Respiro fundo mais uma vez. — Sim, obrigada.

Não é possível que esse homem ainda continue mexendo com minha libido desse jeito! Durante todo o tempo em que estávamos lá medindo forças, essa tensão sexual nunca deixou de pairar entre nós. Acho até que o Millos percebeu isso!

Droga! É o Theodoros Karamanlis, Duda! Inimigo, o diabo em pessoa, que quer fazer de tudo para destruir tudo o que você tem, tudo pelo qual você lutou para manter depois que seu pai se foi!

Claro que seria muito fácil aceitar uma oferta melhor, pagar as dívidas e abrir um “bistrô”, como ele mesmo aconselhou, mas só eu sei o quanto meus pais amavam aquele pedacinho no meio da Vila Madalena, o quanto se orgulhavam de tê-lo comprado juntos, com muita luta e esforço.

Não vou deixar que um homem arrogante ponha tudo ao chão e destrua todas as lembranças que tenho daquele lugar. Não só do Hill, mas da casa onde mamãe e papai passaram seus últimos momentos antes de me deixarem. Não! De jeito algum eu irei permitir isso! Se precisar vender, o farei para alguém que se comprometa a manter o imóvel, e não para uma empresa que quer demolir tudo para erguer ali algum prédio ou shopping!

Entro no carro e dirijo para casa, ainda sentindo o toque dele reverberando pelo meu corpo, sua voz arrepiando os pelos da minha nuca e seu olhar... Há algo naquele olhar que me desperta lembranças, talvez pela tonalidade – a mesma do mediterrâneo –, ou o jeito de me olhar como se estivesse realmente faminto.

Chego a casa e encontro tia Do Carmo jantando sozinha na sala e assistindo à novela.

— Ué, não ia jantar fora? — questiona quando ataco suas panelas.

— Ia, mas o lugar estava tóxico demais para meu estômago. — Ela franze a testa, sem entender, e eu rio. — A companhia era desagradável.

— Ah, sim.

— Cadê a Tessa? — pergunto enquanto me sirvo de deliciosas costelinhas de porco e angu, sentindo meu estômago roncar e minha boca salivar. Adoro a comida dela!

— Chegou da escola, fez dever, tomou banho, jantou e dormiu. — Rio do relatório completo. — Aquela menina é um anjo!

— Sim, ela é! — concordo, cheia de orgulho.

— Descobriu, pelo menos, o que aquele pessoal da Karamanlis queria?

Sento-me ao seu lado no sofá com o prato na mão.

— Aumentaram a proposta! — Dou de ombros. — E acabei conhecendo o CEO, Theodoros Karamanlis.

— Hum, já vi fotos dele naquela revista que assino. — Rolo os olhos, pois sempre achei um desperdício de dinheiro comprar uma revista que fica cobrindo a vida de artistas e da alta sociedade paulistana. — O homem é um pedaço de mau caminho.

Acompanho-a em suas risadinhas, achando uma graça que minha tia, solteirona e virgem, fale isso de um homem. Eu nunca soube o motivo pelo qual ela nunca quis se casar, nem mesmo namorar. Perguntei a ela se algum dia teve pretensão de ser religiosa, mas negou, dizendo que não tinha o dom.

Tia Do Carmo é uma caixinha de segredos bem guardados, essa é a verdade. Do mesmo jeito que ela adora acompanhar a vida alheia nas revistas e nos programas de fofocas, não abre a boca para falar da sua, nem mesmo para mim.

Ela é como uma mãe para mim e cuida de Tessa com tanto amor e dedicação que eu não poderia pensar em uma avó melhor para minha menina, mas não quer saber de arrumar alguém, nem mesmo para se distrair um pouco.

Há uns dois anos veio trabalhar conosco um senhor muito bem-apessoado, Joaquim, que ficava na recepção. O homem arrastou um bonde pela minha tia – que é uma linda senhora de 55 anos –, mas ela nem ao menos lhe deu um segundo olhar.

Enfim, eu aprendi a aceitar que ela é feliz assim, mesmo porque não estou indo para um caminho diferente, pois mal tenho tempo para namorar alguém. Além do meu namorado francês, tive mais uns dois já aqui no Brasil. Claro que já tive algumas transas avulsas, sem nenhum compromisso, mas já faz tanto tempo que nem isso acontece que, se hímen se regenerasse, o meu certamente já estaria completo de novo.

— Ele é bonito, sim, mas muito arrogante! — informo, tentando não demonstrar o quanto fiquei interessada no Theo. — De qualquer forma, recusei mais uma vez a proposta.

— Você tem certeza disso, minha filha? O sumiço do agiota tem tirado meu sono. Você sabe como essas pessoas são, por mais que sejam conhecidos. Além do mais, te vejo trabalhar como louca e entregar o dinheiro todo para custear essas dívidas. — Ela aponta para a casa, cheia dos mesmos móveis da época do casamento dos meus pais. — Duda, a gente mal tem se aguentado em pé!

— Não nos falta nada, tia!

— Não, Duda, não estou me queixando. Realmente não nos falta nada, temos comida, um teto, e Tessa pode estudar em uma boa escola, mas vale a pena se sacrificar do jeito que está fazendo? Você não tem tempo nem para namorar!

Gargalho.

— Essa é uma das minhas menores preocupações, tia.

— Eu sei, filha, e é isso que me preocupa. — Passa a mão no meu rosto, e fecho os olhos, gostando do carinho. — Há muitos anos você só cuida das pessoas, Duda. Assume responsabilidades demais e esquece de cuidar de si mesma.

— Estou bem! — afirmo, mas meu coração entende e concorda com ela. — Assim que terminar de pagar tudo o que devemos, vou poder cuidar de mim também, não se preocupe.

Ela suspira, resignada, pois me conhece bem e sabe que sou muito teimosa. Decidi lutar até o fim para manter a única coisa que me resta e não vou descansar até conseguir estar em paz com isso, mesmo que um certo CEO muito gostoso me encha de ameaças.

Inclusive uma que pareceu mais uma promessa...


Maria Eduarda passa por mim deixando para trás o rastro delicioso do seu perfume, agitando meu corpo. Tenho vontade de segurá-la por mais tempo, de sair com ela para algum lugar onde possamos dar vazão à atração que sentimos um pelo outro desde que nos encontramos no bar do restaurante.

Todavia, não dá para simplesmente ignorar quem somos!

Fico um tempo de pé, mesmo depois de ela já ter saído do restaurante, raciocinando quais seriam as consequências se Millos simplesmente não tivesse aparecido. Olho para meu primo, tranquilo, tomando sua cerveja e provavelmente a enchendo de defeitos.

— Isso foi a pior merda que você já aprontou! — digo, atraindo a sua atenção. — E olha que você tem um longo currículo de merdas!

— Vá se foder, Theo! — Fica sério. — Eu só estava tentando um acordo entre nós.

Rio, seco, não achando nenhuma graça e não comprando nem um pouco essa conversa mole de “acordo”. Millos nunca dá ponto sem nó e me conhece bem para saber que Duda seria extremamente atraente para mim. O desgraçado fez de caso pensado, só nunca irá admitir.

Pego o celular, que deixei em cima da mesa, e, sem nenhuma palavra ou mesmo um olhar, afasto-me de Millos, indo em direção à saída do restaurante.

Ouço-o me chamar, mas não me segue, e ando decidido até a calçada, encontro o manobrista e peço meu carro. Não tenho mais clima para jantar, muito menos para olhar aquela cara debochada. Bufo, frustrado demais, com fome e com o desejo sexual insatisfeito.

Porra!

Já no carro, não dirijo diretamente para casa, mas a esmo, pensando na loucura que foi o começo da noite. O conhecimento de quem era a mulher ao meu lado deveria ter sido suficiente para aplacar minha vontade de devorá-la toda, mas nem mesmo a diminuiu.

É uma das raras atrações fortes que já me aconteceram. Geralmente não é assim, é mais um jogo de disponibilidade e vontade, uma mulher gostosa e interessante e pronto! Raramente sou atraído a alguma como aconteceu com Maria Eduarda hoje. Eu olhei para ela e a quis.

É primitivo demais até para mim, mas aconteceu. Quem ela era, o que fazia ou mesmo sua disponibilidade – embora, se fosse casada, não rolaria – não importaram para mim naquele momento. Depois, a conversa, o sorriso, o jeito como o corpo dela reagiu ao meu, tudo isso só potencializou o que foi sentido ao primeiro olhar.

Duda Hill!

Paro o carro em frente ao boteco antigo na Vila Madalena, olhando sua fachada recentemente reformada, o sobrenome da família dela na entrada e algo que nunca me chamou atenção antes, um segundo andar com janelas grandes de vidro, seguindo a mesma arquitetura do bar, tijolos à mostra e cimento queimado.

Franzo o cenho ao me lembrar do dia em que estive no local, pois não vi nenhum mezanino ou mesmo escada de acesso. Há uma porta ao lado da fachada principal, pintada com outra cor, mas que não pertence ao prédio vizinho, já de propriedade da Karamanlis.

Ela mora em cima do bar? Novamente olho para o alto e, no exato momento, uma luz se acende em um dos cômodos, iluminando a janela com cortinas claras. Um apartamento!

Como eu nunca soube disso? Para mim, o imóvel era puramente comercial, como todos os outros do entorno, nunca sequer desconfiei que a irritante mulher pudesse morar no local.

Uma sombra passa pela janela, e meu pau pulsa na calça só pela possibilidade de ser Maria Eduarda se preparando para dormir. Fecho os olhos, aproveitando a total falta de movimentação na rua – ao que parece ninguém funciona às segundas-feiras – e imagino como ela seria apenas vestindo uma calcinha ou até uma camisola sexy.

Toco-me sobre a calça, sentindo como já estou em completa ereção, então abro os olhos e xingo, voltando a pôr o carro em movimento e saindo daqui o mais rápido possível. Eu pareço um maldito stalker tarado, parado em frente ao que suponho ser o apartamento dela e fantasiando.

Caralho!

 

 

Termino de assinar o último documento e o entrego para Rômulo, que sai apressado a fim de entregá-lo para o jurídico. Temos um maldito setor de correspondência e vários boys para esse trabalho, mas meu assistente é tão controlador com suas responsabilidades que ele mesmo gosta de entregar os documentos e de pegar a assinatura de quem os recebeu no caderno de protocolo antes de os colocar no sistema.

Eu sei que é motivo de piadinha aqui seu jeito burocrático, mas é exatamente por isso que confio nele para lidar com minhas coisas na empresa. Rômulo é responsável, organizado e sua “burocracia” nada mais é do que uma forma de nos garantir, proteger nosso trabalho e a companhia.

Gemo, colocando a mão na têmpora, amaldiçoando-me por ter consumido uma garrafa inteira de uísque ontem, depois que cheguei a casa, frustrado demais sexualmente e puto comigo mesmo por estar me sentindo assim pela Duda Hill.

Troquei mensagens com Millos, ameaçando sua integridade física por conta da palhaçada de ontem. Claro que ele fingiu não ter feito de propósito, mas se esqueceu de que o conheço bem. Eu só não sei o que ele pretende ainda. Contudo, não há dúvidas de que está tramando algo.

Uma notificação de mensagem chega ao meu celular. Pego-o, lendo a mensagem deixada pela Viviane acerca de um concerto musical e uma exposição de gravuras que irá acontecer esta semana. Dispenso, sem nenhuma vontade de comparecer, mas ela insiste.

 

 

 

Sim, ela tem razão!

Preciso estar focado no que realmente é importante para mim nesse momento. Uma atração como aconteceu entre mim e Maria Eduarda ontem é garantia de uma foda inesquecível, mas só isso, não resolve meu problema, e o tempo está se encurtando cada vez mais. Preciso de uma esposa e de um filho!

 

 

 

Envio a mensagem para ela e me recosto na cadeira, olhos fechados e dedos nas têmporas, querendo a porra de um analgésico para poder trabalhar sem que pareça que está ocorrendo alguma demolição na minha cabeça. Não devia ter bebido tanto sem ter comido nada!

Cheguei a casa já arrancando a roupa e entrando no banho. Demorei por lá, esperando que os jatos fortes de água fria abaixassem a temperatura do meu corpo e trouxessem minha racionalidade de volta. Não costumo me impressionar tanto assim por uma mulher; poucas foram as que mexeram comigo dessa forma.

Olhei para baixo, e lá estava a evidência de que nem mesmo a água iria resolver o problema. Encostei a testa na parede fria e toquei meu pau, gemendo com a sensação, pronto para gozar apenas com os estímulos da noite.

Eu gosto muito de trepar, adoro ser masturbado por mãos femininas – às vezes, pés também –, mas nunca fui um punheteiro. Nunca! O prazer de me tocar nunca se comparou ao de ser tocado, por isso, quase não me masturbo. Porém, ontem, não teve jeito! O cheiro do perfume dela estava impregnado em minhas narinas, a sensação de sua pele se arrepiando sob meu toque, o sorriso, os olhares... Em poucos minutos gozei como um louco, sujando a parede do boxe, gemendo dolorosamente de vontade de senti-la.

Pela primeira vez em muito tempo, os cabelos cor-de-rosa não apareceram durante meu gozo, e amaldiçoei essa percepção. A verdade é que troquei o objeto da minha fantasia. No entanto, diferentemente da garota de anos atrás, agora eu tenho um rosto, um nome e sei onde mora.

— Estou fodido! — falo em voz alta, achando que estou sozinho no escritório.

— Vou pegar um comprimido, chefe! — a voz de Rômulo faz com que eu me aprume, arregalando os olhos em sua direção.

— Mas que porra, Rômulo! Como você consegue ser tão silencioso às vezes? — digo emputecido por estar fantasiando com a mulher de novo em pleno horário de trabalho e sob as vistas do meu assistente.

— Eu percebi que o doutor está com dores de cabeça. — Ele vasculha sua bolsa. — E... Ah! Achei! — Sorri como se tivesse inventado a fórmula da água. — Paracetamol!

Ele vai até o aparador onde ficam as bebidas a fim de pegar um copo d´água para eu tomar com o comprimido, porém, peço que me traga café.

— Tem certeza? — titubeia.

— Vai acelerar a absorção e fará efeito mais rápido.

— Chefe, isso é perigoso!

— Anda logo, porra, tem uma britadeira no meu cérebro!

Ele fica nervoso, suas mãos tremem, fazendo o café respingar sobre o móvel, e eu bufo de impaciência. Rômulo é prestativo, um ótimo funcionário, mas me questiona muito, além de ser um tanto desastrado.

Mal engulo o comprimido, e o traidor, quer dizer, Millos entra no escritório.

— Tive uma ideia e vim dividi-la com você. — Olha a xícara na minha mão. — Cheguei em boa hora! Eu gostaria de um café também! — pede ao Rômulo, e eu fecho a cara.

— Esse não é o trabalho dele — corto-o. — Rômulo, vá até o jurídico e veja se Kostas já conseguiu adiantar a papelada que faltava.

— Sim, doutor! — O assistente sai correndo da sala.

— Quer a porra do café? Pegue você mesmo! Não dê ordens ao meu assistente!

Millos levanta as mãos pedindo calma e vai até a máquina, escolhendo um sabor e um tipo de preparação antes de voltar para próximo de mim.

A dor de cabeça aumentou um pouco, mas espero que, com o remédio do Santo Rômulo, eu melhore em breve. Além disso, não quero dar bandeira de que enchi a cara na noite passada e suportar as provocações de Millos.

— Qual foi a magnífica ideia que o fez levantar a bunda de sua cadeira e vir até aqui encher meu saco?

Millos ri.

— Estamos de bom humor hoje, hein? — Pega o café e se senta. — Você quer tirar a Duda Hill do imóvel, não é? — Franzo o cenho para ele, achando desnecessário responder, esperando que tenha sido uma pergunta retórica, para o bem de sua inteligência. — Já reparou que o único pub daquela quadra é o dela?

— Você comeu merda no café da manhã? — pergunto, e ele ri. — Claro que ele é o único, os outros imóveis já estão todos vazios porque compramos todos!

— Do outro lado da rua têm duas casas de show, uma boate de strip de luxo, dois restaurantes de comida japonesa e uma pizzaria famosa. — Ele cruza os braços. — Esse foi um dos motivos de o pub ter ficado tão movimentado, a diversidade de empreendimentos próximos. É uma área à qual os jovens vão para se divertir, e ela conseguiu agregar boa comida e boa música em um só local.

Faz sentido, claro. Ela aproveitou o movimento já existente e ofereceu um diferencial, um lugar para dançar, curtir com os amigos, arranjar companhia e ainda comer seus bolinhos famosos e premiados. Sorrio de leve, sentindo-me levemente excitado por ela ter tanto tino. Gosto de mulheres inteligentes!

— Você a isolou no momento em que comprou todos os imóveis e mandou os estabelecimentos fecharem. Ela é a única opção da área...

Ele se interrompe ao ouvir uma batida à porta.

— Pode entrar — autorizo, sabendo que não é o Rômulo.

Kostas aparece, seu tamanho e largura preenchendo a entrada da sala, o olhar azul e arrogante, o sorriso debochado e os cabelos negros penteados para trás com uma espécie de pomada de brilho molhado. Meu irmão é a cópia do nosso pai, e isso chega a me causar arrepios.

— Bom dia! — cumprimenta Millos e se senta ao seu lado. — Theodoros, tenho uma notícia boa e uma ruim, qual quer primeiro? — Dá risadas debochadas, e Millos o segue.

Isso é sério? Levanto uma sobrancelha, olhando-o carrancudo.

— Fala logo, Kostas! — ordeno.

— Bem, já que você não tem nenhum senso de humor. — Pisca para Millos. — Nós já sabíamos disso, mas não custava tentar! — Meu primo assente, e eu bufo de raiva. — Vou começar pela boa. Já ingressamos com o pedido de execução da nota promissória.

— Já não era sem tempo! Preciso comemorar por você ter conseguido fazer seu trabalho?

O desgraçado ri.

— A ruim, no entanto, também é sobre isso. — Ele me estende umas folhas. — Duda Hill deu entrada no inventário judicial após a morte do pai.

Leio os papéis, mas pouco entendo de legislações e procedimentos legais, então espero que ele pare de fazer cu doce e prossiga com suas explicações.

— Que merda! — Millos exclama, e isso é o suficiente para me deixar tenso.

— O que isso significa, porra?

Kostas se levanta, anda até o aparador e se serve de água.

— Você poderia ter bourbon aqui — comenta como se estivesse aqui para uma visita social. Xingo-o. — O processo não cumpriu nem metade de seu caminho natural, caro irmão. Já está aberto há quase quatro anos e pouco avançou, e isso porque tem apenas um imóvel a ser herdado por uma única herdeira. — Ele ri. — Adivinha qual?

O Hill! Merda!

— O que isso significa em nossos planos de adquirir aquela pocilga? — Irrito-me.

— Bem, assim que for declarado o débito por causa da confissão de dívida – a promissória –, nós vamos ser credores do espólio. — Bufo pelo uso dos termos técnicos desnecessários.

É Millos quem vem ao meu resgate.

— O homem está morto, Theo, não temos como cobrar dele, apenas dos bens que ele deixou, entendeu? Isso obriga a Duda a vender ou entregar o Hill em troca da dívida. — Sorrio, achando a notícia ótima. — Mas somente quando o inventário fechar, o que pode levar anos ainda.

— O quê?! — Levanto-me, esquecendo por completo a dor de cabeça.

— É isso, caro irmão! — Kostas dá de ombros. — Seja bem-vindo à realidade da justiça brasileira, em que inventários simples duram, em média, de oito a dez anos!

— Não há outra forma de recebermos?

— Não. — Kostas ri, satisfeito. — A dívida está no nome do pai dela, então só alcança bens deixados por ele.

— A vantagem é que ela não pode vender para outro também, não é? — Millos questiona.

— Teoricamente, não, mas se o comprador não se importar em não ter a escritura, ela consegue vender, sim. Tem muita gente que faz isso. Não é legal, mas faz.

— Puta que pariu! — explodo, virando-me em direção à vidraça.

— O jeito é tentar comprar, Theo, e alegar que somos credores e que, por isso mesmo, ela só pode vender para nós — Millos fala, e Kostas concorda.

— Ela não vai vender, disse ontem!

Sou um homem muito teimoso, sempre fui, e reconheço um igual de longe! Quando Duda Hill disse ontem que não ia vender para a Karamanlis, vi a teimosia brilhando em seus olhos.

— Além do mais, pelo que soube, os negócios vão bem — Kostas complementa, deixando-me ainda mais raivoso. — Ela não precisa vender.

Olho para Millos, e ele arregala os olhos ao ver a determinação nos meus.

— Fale de sua ideia!


O despertador me acorda pela segunda vez no dia. Tenho vontade de esconder a cabeça debaixo do travesseiro e fingir que não estou ouvindo, deixar que entre em modo “soneca” e que, com isso, eu ganhe mais alguns minutos na cama.

Suspiro, abro os olhos lentamente e pego o maldito telefone para cancelar o despertador. Ganhar minutos na cama significa perder minutos do dia, e isso definitivamente é uma coisa à qual não posso me dar ao luxo. Tenho que trabalhar, organizar minha cozinha e ser a primeira a estar nela quando os demais chegarem.

Espalho-me na antiga cama de casal dos meus pais, abrindo os braços em forma de cruz e esticando todo o meu corpo. Carreguei tanto peso hoje que, nessas horas, sinto falta de não ter um homem fortão trabalhando comigo nesse negócio pesado que é transportar as compras. Tento relaxar meus músculos, fecho os olhos e deixo a mente vagar por um segundo.

Em meio aos pensamentos de paz, natureza e tranquilidade, lindos olhos azuis aparecem, sedutores, emoldurados por cílios longos e escuros que fizeram sombra em seu rosto quando ele olhou minha pele se arrepiando ao seu contato. No mesmo momento sinto um gelo na barriga – desses que sentimos quando descemos uma ladeira inesperadamente de carro –, e um tremor perpassa pelo meu corpo, desde as pontas dos dedos até a raiz dos cabelos.

Emito um grunhido de irritação por, mais uma vez, Theodoros Karamanlis se infiltrar nos momentos em que busco relaxamento e pensamentos positivos para enfrentar o dia. Tem sido assim desde aquele maldito jantar, há quase uma semana!

Sento-me, notando o quanto estou suada, pois há alguns meses meu ar-condicionado do quarto teve uma pane elétrica, e não tive nem tempo, nem dinheiro para chamar a assistência técnica. O verão chegou com tudo este ano, e as temperaturas estão ameaçando bater recordes desde o final da primavera. Vou precisar arrumar o ar ou então ir dormir no quarto da tia Do Carmo.

Confiro as horas, meio-dia e alguns minutos, e sigo rápido para tomar a terceira chuveirada do dia!

O expediente no Hill durou até às 2h35 da manhã, quando gentilmente convidamos nosso último cliente a sair. Passei a encerrar mais cedo em dias de semana, pois sábado e domingo vamos até às 4h da manhã. Fechei a cozinha para pedidos exatamente à 1h para que desse tempo de todos os quitutes ficarem prontos e nossos clientes irem embora até às 2h30. Entretanto, sempre fica um agarrado a uma cerveja num canto, sempre!

A música ao vivo, de terça a domingo – menos quando temos campeonatos de futebol, pois aí na quarta-feira transmitimos os jogos – anima o pessoal e por isso mesmo precisa ser encerrada uma hora depois do fechamento da cozinha. Há toda uma preparação para que os clientes entendam que a hora de “dar tchau” chegou.

Hoje, sábado, é o dia mais desgastante para mim, pois a cozinha irá funcionar a todo vapor até às 3h30 da manhã, aceitando pedidos até uma hora antes disso, e o bar só será fechado às 4h. E adivinhem quem fecha o bar? Exatamente, eu!

Ou seja, terei 14 horas de trabalho incessante pela frente, a partir das 2h da tarde, sendo que noite passada não aguentei ficar acordada para ir até o CEAGESP, dormi às 3h e acordei às 4h, correndo para poder pegar um pouco do pescado bom, pois a venda para o atacado começa na madrugada e vai até às 6h da manhã. Descarreguei tudo no restaurante e voltei para a cama às 9h, por isso, sim, estou acordando ao meio-dia!

Saio do banho e já coloco a calça preta – uniforme do Hill –, uma camiseta branca por causa do calor e calço chinelos. Separo o uniforme, que minha tia já deixa passado, a dolma, o avental e meus turbantes. Deixarei os cabelos secarem para depois fazer um coque alto, bem firme, para que nenhum fio possa se desprender.

— Boa tarde! — tia Do Carmo me cumprimenta assim que apareço na sala. — Vai almoçar agora?

— Vou. — Suspiro, sentando-me. — E a Tessa?

— Acabou de ir para o inglês com a Marcela e a Diana. — Assinto, lamentando não ter me encontrado com ela aqui, mesmo que depois dê uma xeretada na minha cozinha.

Mal tenho tempo para ela! Sinto-me mal por isso, tento compensar, mas queria ser mais presente e sei que Tessa sente essa necessidade tanto quanto eu. Porém, minha menina já é tão madura que entende que essa rotina louca na qual vivo não é por minha escolha.

Tia Do Carmo me serve de sua comida simples, bem temperada e absurdamente viciante, e eu não penso em mais nada a não ser apreciar a iguaria. Ao longe, enquanto como, ouço o barulho da máquina de costuras dela, em seu quarto, trabalhando sem parar. Ela é teimosa e está sempre aceitando encomendas de reparos ou confecção de roupas, principalmente para o pessoal da igreja que frequenta.

Somos farinha do mesmo saco, teimosas ao extremo, e ela me culpa por eu recriminá-la por querer ajudar. Não é só por teimosia ou orgulho que peço tanto a ela para que se poupe, pois se aposentou há alguns anos por invalidez exatamente por passar horas e horas costurando desde menina e com isso ter ganhado algumas hérnias de disco ao longo de sua coluna.

A verdade é que, se não fosse pelas dívidas, eu poderia dar uma vida bem melhor a elas. O Hill vai muito bem, cada vez mais conhecido, atraindo clientes para essa área que nem é tão famosa por ter bares. Contudo, o boca a boca tem se espalhado pela cidade e trazido com ele nossos clientes.

Termino de comer, lavo a louça e termino de me arrumar para descer e só voltar no meio da madrugada. Faço uma oração curta antes de descer e grito para tia Do Carmo:

— Tia, estou no Hill se precisar de algo!

— Vai com Deus, minha filha! — grita de volta, cessando a costura. — Tente descansar em alguns momentos!

Apenas rio, porque a cozinha é uma correria aos finais de semana, e é impossível me sentar por uns minutos sem que alguma coisa desande, já que atendemos em média 400 clientes por sábado e uns 350 no domingo. O volume de comida que processamos é tão grande que fazemos compras nas madrugadas de terça, quinta e sábado.

Poderia até ir ao CEAGESP menos vezes, mas prefiro trabalhar com os ingredientes o mais frescos possível e, graças à câmara fria que instalamos, já me dei ao luxo de parar de ir todas as madrugadas. Vou sempre às terças e sábados e deixo Manola se virar na quinta-feira. A mulher adora ir para lá e demora o dobro do tempo que eu levo, sempre conversando com os comerciantes, pechinchando horrores e fazendo amizades. Como ela é sozinha, está sempre com o caderninho de telefone preenchido para quando quer companhia, e como trabalha como louca aqui, seu lugar de fazer contatos é lá na central de abastecimento.

Confesso que me divirto muito com suas histórias, assim como todo o resto de nós da cozinha.

Abro a entrada principal do bar, pois, infelizmente, quando papai montou o local, não pensou em saída de emergência, mesmo porque na sua época era todo aberto, então, quando transformei o boteco em um pub, tivemos que sacrificar a porta usada para carga e descarga e transformá-la para que estivéssemos em dia com a legislação dos bombeiros e da própria prefeitura.

Sempre que entro, já deixo a porta de aço aberta e tranco somente a de vidro, deixando um pouco de sol entrar através das paredes de vidro temperado.

Sigo diretamente para a cozinha, mas anotando mentalmente tudo o que precisará ser limpo com mais afinco, resultado da noite anterior. No bar, sempre tenho a satisfação de passar e ver o asseio do Kiko, seus utensílios todos nos lugares, limpos e secos, as chopeiras sem nenhum traço de respingo de chope, o chão brilhando.

Abro a cozinha, e o cheiro dos produtos de limpeza que usamos há algumas horas, assim que encerramos as atividades, recepciona-me. Faço meu coque, como sempre, ponho o turbante, lavo as mãos e começo a trabalhar, colocando alguns alimentos de molho, descongelando outros e conferindo as receitas, bem como o funcionamento de todos os equipamentos.

Ouço o barulho da porta, e uma risada preenche o lugar, indicando que Manola chegou junto ao seu fiel escudeiro, Arnaldo.

— Boa tarde, chef! — ela me cumprimenta, indo para o banheiro dos funcionários. — Hoje o Naldo está impossível!

— Você é que não aguenta ouvir umas verdades, Manola. — Arnaldo vem até onde estou e me dá um beijo na testa. — Carinha de cansada hoje, boneca!

— Dia de compras... — Aponto para a caixa de camarão no gelo que tirei da câmara para ele limpar. — Divirta-se!

— Ai, minha santa protetora dos dedos furados! — geme.

— Use luvas! — Manola grita, vindo do banheiro trajando o uniforme, seus cabelos ruivos presos em uma trança e seu turbante cheio de beijos já na cabeça. — No dia em que você perder um dedo, ainda processa a Duda!

— Deus me livre, Manola! — Bato na bancada de inox, e ela ri.

— É na madeira, querida! — Joga um beijo para mim e as luvas de fio de aço para o Arnaldo. — Não vai te proteger contra o camarão, mas quando for limpar as carnes, faça o favor de usá-las!

— Oui, chef! — ele debocha.

— Abusado! — diz, pegando as panelas guardadas e já as colocando no fogão. — Vou adiantar os molhos enquanto a Ana não chega. Ela ia levar o filho ao dentista hoje.

— Eu sei — concordo ainda lavando as folhas e temperos. — Cláudia também vem mais tarde hoje, mas adiantou muito suas sobremesas ontem. Trabalhou dobrado!

— Estou louca por aquela torta de duas mousses que fez! — Geme e estala a língua. — Adoro maracujá com chocolate, e a danada não me deixou pegar nem uma provinha!

— Diabetes te diz algo? — Arnaldo alfineta.

— Tenho pré, idiota! — Ressalta: —Pré-diabetes!

Rolo os olhos, já antevendo uma discussão sobre a quantidade de açúcar que ela não deve ingerir.

Minhas tardes são sempre assim, entre o trabalho na preparação para a noite e as conversas, discussões ou músicas dos meus colegas de trabalho. É bom, faz o tempo passar depressa e não deixa o serviço tedioso.

— Terminou aquela receita nova que estava escrevendo? — Arnaldo me pergunta um tempo depois.

— Ainda faltam uns ajustes, mas estou sem tempo para testar. — Dou de ombros. — Final de ano, né?

— Por falar nisso... — Manola se aproxima. — Como andam as encomendas? O pessoal gostou do menu deste ano?

— A Hana me entregou ontem uma pequena lista de encomendas. Ao que parece, o menu foi bem aceito, sim.

Manola bate palmas, e eu sorrio aliviada.

Todo ano abrimos o Hill e servimos pequenas ceias para o pessoal que não quer ter trabalho, mas percebemos que seria mais interessante, para nós e para nossos clientes, se houvesse um menu prévio e as encomendas entregues em casa.

Como começamos o delivery este ano, programei um menu com três tipos de proteínas – peru, bacalhau e presunto – e vários tipos de acompanhamento. As variações vão desde a mais simples e barata até as sofisticadas, dignas de um chef de cuisine, mais caras.

Por incrível que possa parecer, o menu luxo tem vendido mais do que o comum, e isso, além de me dar muito orgulho de ver minhas receitas tão bem aceitas, ainda me concede maior lucro.

Por conta desse menu especial, não abriremos o Hill para o público na véspera do Natal, daqui a alguns dias, e nem no dia, retomando as atividades somente no dia 26 de dezembro. Teremos que trabalhar muito para atender aos pedidos, mas tenho certeza de que daremos conta e que em pouco tempo encomendar a ceia no Hill será uma tradição.

É preciso manter a fé depois de tudo o que já passei na minha vida; sem ela, eu esmoreço. Não digo propriamente uma fé religiosa, mas a de desejar boas coisas, pensar positivo, manter a chama da esperança acesa de que tudo vai dar certo.

— Boa tarde! — a voz de Tessa faz meu sorriso se agigantar, e paro o que estou fazendo para ir abraçar minha pequena menina. — Ei, mãe, não!

Ela tenta correr ao ver minhas mãos molhadas, mas, quando a alcanço, explode em gargalhadas e me abraça apertado.

— Estava com saudades! Como foi a aula?

— Legal! — Faz um joia com a mão. — Ei, tia Manola!

— Tia uma ova! — Manola repreende, mas ri. — Sou no máximo sua irmã mais velha, pirralha!

Tessa gargalha de novo e faz gesto de que Manola é maluca, rodando o indicador ao lado da cabeça, e Arnaldo libera sua estridente gargalhada ao concordar com a menina.

— Quer alguma coisa especial daqui hoje? — pergunto, mas sem muita esperança.

— Não, tia Do Carmo disse que vai fazer lasanha à noite, e você não faz lasanha aqui!

— Não faço! — Cutuco suas bochechas com os indicadores bem onde elas formam covinhas quando Tessa sorri. — Cláudia fez uma torta especial. Vou levar para você mais tarde.

— Tem chocolate? — indaga animada.

— Tem, sim, pirralha! — é Manola quem responde. — E se ela tiver direito a um pedaço, eu, como irmã mais velha, também tenho!

Tessa mostra a língua para ela, Arnaldo ri, e eu balanço a cabeça, pois as duas parecem realmente irmãs, brigam e implicam uma com a outra, mas se adoram. Minha pequena se despede, e a acompanho até a entrada do bar, só voltando para a cozinha ao vê-la fechar a porta do acesso ao nosso apartamento.

Deus do Céu, como é bom ver minha menina feliz!

A segurança e a felicidade de Tessa são minhas prioridades, e vê-la crescendo tendo essas duas coisas me dá ânimo para aguentar mais um dia de trabalho e não pensar em coisas ruins. Nem mesmo nos Karamanlis, ainda que um deles tenha mexido comigo de tal forma que volta e meia está nos meus pensamentos – e não pelo motivo pelo qual deveria estar!


— Me and Mrs. Mrs. Jones, Mrs. Jones, Mrs. Jones, Mrs. Jones, we've got a thing going on. — Dedilho o arranjo ao piano, sentindo o peso dessa canção sobre mim e volto a cantar: — We both know that it's wrong, but it's much too strong to let it go now.3

Há anos não toco essa música tão famosa na voz do Billy Paul, mas algo me impulsionou a fazê-lo esta noite. Nada específico, creio eu. Contudo, meu interior está conturbado como há muito tempo não o sinto.

O paletó do terno que vesti hoje está em cima de uma das cadeiras da sala de jantar, a gravata precariamente pendurada sobre a borda do piano, enquanto estou aqui, camisa social semiaberta, mangas arregaçadas, uma garrafa de uísque em cima do instrumento e meu copo já quase vazio. Não parei de tocar desde que cheguei do concerto musical e apresentação de novos artistas de gravuras que ocorreu em uma galeria de artes aqui perto.

A verdade é que, desde quando Viviane me mandou o convite, não tive nenhum interesse em ir, embora fosse algo que geralmente chamaria minha atenção. Tive uma semana fodida demais, e não havia nenhum clima para entretenimentos. Tudo o que eu queria era uma massagem gostosa e uma trepada de alívio.

Termino a música e recosto a cabeça nas teclas do piano, quase não me reconhecendo. Não estou normal! Talvez essa época do ano, próxima demais do Natal, mexa comigo, evoque sentimentos que há muito tempo pensei ter perdido.

Sinto falta da Vanda nesta casa! Olho em volta e bebo o restante da dose de uísque. Tudo está tão vazio, tão silencioso, tão... estéril. Não tenho mais ninguém me esperando quando chego do trabalho, nenhum cheiro de tempero quando entro na cozinha – ou mesmo de café, porque o dela é incrível –, não há conversas amenas.

Não há nada!

Balanço a cabeça, irritado com o rumo dos pensamentos, com a energia negativa deles dentro de mim. Maldita semana!

O desastre começou na segunda-feira com aquele encontro deliciosamente desastroso com Duda Hill; depois aumentou com a notícia que o filho da mãe do Kostas nos deu sobre o imóvel onde funciona o Hill Wings.

A proposta de Millos ressoa em meus ouvidos, e, por mais que eu não ache muito sentido no que me propõe, penso se não é um caminho a seguir. Nunca fui um homem de indecisões. No entanto, entendo que, nesse assunto em particular, não posso me mover por impulso.

Volto a escutar a voz de meu primo como se estivesse aqui e o ouço apresentar todos os motivos para embasar sua ideia.

— Nosso erro foi deixá-la sozinha naquela rua, sem nenhuma concorrência! — argumentou.

— Quando fechamos a compra do último imóvel, aquilo lá ainda era só um pé-sujo com meia dúzia de clientes bêbados — justifiquei em contrapartida. — Não tínhamos com o que nos preocupar!

— Esse foi o erro do coelho naquela fábula — Kostas ironizou. — A arrogância do “já está no papo!”.

— Você falando de arrogância? — Ri, e Millos disfarçou seu riso também. — Não tem se olhado no espelho, não?

Kostas apoiou seu indicador logo abaixo da sobrancelha, ao lado do olho e me deu um meio sorriso e um olhar de desprezo. Ergui minha sobrancelha e balancei a cabeça, enfrentando-o. Se o bostinha achava que iria me intimidar como faz com seus advogados, estava muito enganado!

— Já terminaram de testar a testosterona de ambos? — Millos reclamou. — Minha ideia faz todo sentido! Se alugarmos algumas lojas próximas ao estabelecimento dela, damos a concorrência necessária para que recue um pouco no crescimento que vem tendo!

— Sabe o que não entendo? — Kostas interferiu. — Se ela vem fazendo tanto sucesso quanto vocês gostam de afirmar, por que não quitou a maldita promissória?

— Talvez não tivesse tido o suficiente ainda, pois, como o “agiota” mesmo informou, ela andava pagando os “juros” para que ele continuasse paciente — respondi. — Ademais, ela não poderia pegar um empréstimo para quitar uma dívida como essa.

— A verdade é que o pilantra nunca iria liberá-la da dívida. — Concordei com o ponto apresentado pelo Millos. — Gastamos quase o dobro do que a promissória realmente vale, e ele já tinha recebido anos de juros da Duda. O homem é um espertalhão!

— Então você acha que, colocando mais alguns bares naquela rua, teremos mais chances de quebrá-la? — inquiri. Millos assentiu, mas vi um leve sorriso no rosto de Kostas e, sinceramente, não gostei dele. — Como controlaríamos isso?

— Kostas! — Millos aponta. — Podemos amarrar bem o contrato de aluguel, especificando a atividade que o locador deve exercer.

— Isso é legal? — perguntei.

— Não posso dizer no contrato o que ele deve vender, mas posso amarrá-lo à atividade que já exerce, ou seja, se trocar de ramo, deixa o imóvel. — Olha para o Millos. — O pessoal da corretagem, que por sinal é subordinado ao nosso querido e esperto primo, é quem deve ter em mente quais são os tipos de locadores que devem aceitar.

Concordei, mas ainda não estava completamente convencido.

— Pense na questão. — Millos se pôs de pé. — Tempo é o que não falta, pelo que Kostas disse.

Meu irmão o acompanhou, o sorriso estranho ainda em seu rosto, como se estivesse acontecendo algo que só eu não soubesse.

Dali em diante, tudo pareceu ainda pior! Os dias se arrastaram até esta sexta-feira, vários setores da empresa dando problemas justamente nesta época em que o pessoal já parece estar entrando em ritmo de festas e esquecendo um pouco a nossa tão famosa correria paulistana.

Só soube que Valentina seria minha acompanhante nos eventos artísticos no meio do expediente, quando Viviane me ligou para perguntar se eu tinha o endereço do apartamento da moça.

— Você me disse que ela estaria lá, não que iria comigo! — resmunguei. — Nós mal trocamos algumas palavras naquele vernissage!

— Theo, meu querido, você quer ou não quer uma maldita esposa?! — minha sócia perdeu a paciência.

— Porra, mas não assim! Não precisava agir tão descaradamente como se eu estivesse desesperado, merda!

— Ela é a melhor candidata com que você já esbarrou por aí! É amante das artes como você, vem de uma família tradicional e rica como a sua, é linda, jovem e tem todos os infindáveis requisitos que você listou para a futura senhora Karamanlis! Dê uma chance a ela!


CONTINUA
Acordei de ressaca hoje, e não foi por causa da quantidade de bebida que ingeri no vernissage; aquela quantidade, eu nem consideraria como beber. Viviane ficou puta por ter encarecido o orçamento com garrafas do meu uísque preferido e eu não estar bebendo, por isso, depois do evento, reuni todas as que sobraram e trouxe para meu apartamento.

Pensei que ia passar uma noite solitária, acompanhado apenas de um single malte e discos de jazz, mas, no meio da minha encenação de lobo solitário, Millos ligou me convidando para ir até seu loft. Neguei várias vezes, mas a porra do homem estava tão excitado com a cerveja que havia feito que não parava de insistir.

Resultado? A bebida realmente estava um espetáculo! Enchemos a cara, mesmo sob meus protestos, pois nunca curti muito beber cerveja, e comemos uns tira-gostos tão saborosos que teci elogios a sua habilidade na cozinha.

— Ah, não fui eu quem preparou, não! — Riu. — Encomendei no Hill.

Quase cuspi aquela porra para longe e o fuzilei com os olhos.

— Porra, eu querendo que aquela merda feche e você comprando lá? Está do lado de quem afinal?

— Do meu estômago! — respondeu comendo mais um dos bolinhos. — Estava com vontade de ter um acompanhamento, mas sem nenhum saco para preparar. Me lembrei do dia em que fomos lá e quis conferir se ainda continuavam tão gostosos!

— Ainda não te perdoo por aquela arapuca! — acusei.

Há uns dois anos, Millos me convidou para comemorar seu aniversário, coisa que vez ou outra fazemos quando ele está em clima de festa. Eu lhe disse que o encontraria no local, mas ele insistiu em me buscar em casa, e, quando chegamos e percebi que era no Hill, fiquei bem puto, mas a curiosidade de saber o motivo pelo qual o boteco estava se tornando um sucesso me impulsionou a entrar.

O que eu não contava era que, além de a mim, o filho da puta tinha convidado meus irmãos. Ficamos lá os quatro como se fôssemos bons amigos, compartilhando da armadilha de Millos. Aposto que Kostas e Alex detestaram cada momento, mas sorrimos, bebemos e experimentamos os quitutes da tal da Duda Hill.

Mesmo não gostando de admitir, era fato que a mulher sabia o que estava fazendo na cozinha. Os bolinhos tão tradicionais de um boteco tinham um requinte diferente, embora mantivessem a essência. Era como se ela conseguisse melhorar o que já era perfeito, e isso, tenho que admitir, é um dom.

Confessei isso ao meu primo? Nem sob tortura! Repreendi-o por ter comprado lá, aleguei que ela podia ter mandado envenenar os quitutes – fazendo um drama desnecessário, culpa da bebida –, mas não parei de comer.

— Ah, pedi a Sami para comprar para mim — respondeu.

— Você ainda está saindo com ela? — questionei surpreso, pois havia muito tempo não via a motoqueira que, de vez em quando, orbitava em volta dele.

— Não! Somos amigos, já disse isso, mas parece que você só enxerga a boceta de uma mulher, come até suas “amigas” — fez referência a Viviane.

— Por que você não gosta dela? — Provoquei: — Porque ela é independente, dona de si mesma e diz o que pensa?

— Não! Eu não curto mulher assim para comer, mas não tem nada a ver com o fato de eu achá-la fria e calculista, e nunca escondi isso de você. Aquela mulher gela meu sangue!

Ri do seu exagero, afinal, a Vivi não tem nada de fria. Millos implica com ela pelo simples fato de a mulher ter personalidade e não se deixar comandar por ninguém. No primeiro momento ele se sentiu atraído, Vivi é um espetáculo aos olhos, e ela também não disfarçou o interesse. No entanto, bastaram alguns minutos de conversa para que se odiassem.

— Hoje ela conseguiu algo incrível — comentei. — Valentina de Sá e Campos, já ouviu falar?

Ele riu.

— Dela não, mas conheço os sobrenomes. Família paulistana tradicional, bom currículo. — Cruzou os braços e me olhou debochado. — A futura senhora Theodoros Karamanlis?

— Talvez — fui sincero. — Conversei um pouco com ela nesta noite, achei-a divertida, inteligente e sedutora. A princípio achei que era muito nova, mas é madura e independente, cheia de opinião. Gosto do tipo.

— Eu sei. — Ele se levantou e foi pegar mais cerveja. — Foi Viviane quem te apresentou a ela? — Assenti. — Não sei se gosto disso, mas boa sorte.

Gargalhei pela implicância dele com a Vivi e resolvi desviar o assunto. Falamos da Karamanlis, de música, de motos e, por fim, já muito bêbado e com sono, caí sobre o sofá dele e acordei há pouco, com torcicolo e com uma puta dor de cabeça.

— Ei! — Millos me saúda estendendo uma xícara de café. — Você está destruído!

O desgraçado ri, mas nem posso mandá-lo tomar no cu, porque minha cabeça trepida parecendo que há uma britadeira no meu cérebro. Maldita cerveja! Malditos bolinhos envenenados da Duda Hill!

— Cara, você é fraco para minha cerveja! — Millos ri. — Ficou boa, não é? — Apenas assinto, ainda tomando o café para melhorar meu ânimo. — O que está programado para fazer nesse final de semana?

— Vou trabalhar. Como saí um pouco mais cedo ontem por causa do vernissage, Rômulo separou umas pastas para que eu lesse nesse final de semana. Coisa chata, principalmente da pauta da reunião do conselho.

— Por falar no conselho... — Ele se senta ao meu lado no sofá e apoia os pés descalços sobre a mesinha de centro. — Ontem tive notícia do Kostas. — Ri. — Parece que tomou um toco feio da Kika e está cuspindo marimbondos.

Gargalho, esquecendo a dor.

— Como queria ter visto esse embate!

— Eu também.

Bufo, mesmo divertido, lembrando que o meu problema continua.

— Preciso trazê-la de volta para a empresa com urgência. Há vários projetos dos hunters parados, e o Rômulo não está dando conta de organizá-los.

Millos rola de rir no sofá.

— Esse seu assistente é muito estranho. Sinceramente não entendo como você ainda o mantém trabalhando contigo!

— Gosto de ele ser metódico. — Dou de ombros. — É organizado, embora meio desastrado, nunca perde um prazo e faz tudo o que eu peço.

— Seu próprio espelho, não é? Nunca conheci ninguém mais chato que você para organização.

Ergo uma sobrancelha para ele e olho em volta para seu loft cheio de espaço, mas sem nenhuma lógica ou senso de estilo. Millos gosta de coisas rústicas, e respeito isso, acho legal, mas é tão bagunceiro que seus móveis caros de design parecem ser cacarecos de alguma casa demolida.

Os únicos locais arrumados são: a cozinha, o “laboratório” de cerveja (como ele mesmo se refere ao local) e onde dorme. O resto... tem peças de motos para todos os lados, mesmo a oficina ficando na parte de baixo do galpão que ele chama de loft, tem barris com os ingredientes que compra para a fabricação de cerveja, roupas, discos e óculos (nunca vi tantos para uma só pessoa) espalhados por todos os lados.

O homem é um caos completo em casa, mas, se alguém entrar na sala dele na empresa, vai acreditar que é o epítome da organização. Não entendo como consegue!

— Bem, sobre a Kika, eu posso te adiantar que não precisa se preocupar — Millos continua. — Falei com ela ontem, e vai voltar.

Expiro o ar, aliviado.

— Porra, Millos, porque não me contou antes? É um alívio do cacete não ter que lidar com mais esse problema e...

— Mas ela não quer ser mudada de andar.

— O quê? Ela está fazendo exigências?

Millos penteia a barba com os dedos, enervando-me com sua calma.

— Demonstramos desespero ao mandar o Kostas pedir arrego. — Concordo com ele nesse ponto. — Ela quer aumento, continuar no andar e... — Tenta conter o sorriso, e prevejo que vem bomba, mas ele vai dar um doce do cacete para falar.

Perco a paciência e esbravejo:

— O que mais ela quer?!

— Carta branca para mandar seu irmão se foder à vontade.

— Porra!

Ponho as mãos na cabeça, sentindo a dor de cabeça voltar com tudo e ouvindo a risada debochada do Millos.

Eles querem me enlouquecer, só pode!

 

 

A dor de cabeça me acompanhou ao longo de todo o final de semana. Tomei analgésico, antiácido e – seguindo os conselhos do meu primo – mais um pouco de cerveja. No entanto, não consegui me livrar do incômodo insistente.

Trabalhei o sábado inteiro, recebendo ligações do Rômulo quase de hora em hora, a ponto de ficar puto com ele e mandá-lo caçar algo para se divertir e me deixar em paz. Compreendo que ele queira me ajudar, mas, às vezes, sua dedicação exacerbada me estressa.

Recebi um convite para jantar de uma antiga amante que vinha a São Paulo de tempos em tempos, mas neguei. Queria apenas relaxar um pouco em casa depois de ter trabalhado em páginas e mais páginas de relatórios com uma dor de cabeça chata a me distrair.

Pedi comida em um restaurante de comida vegana, achando que pudesse ser a gordura dos bolinhos do Hill – velha e rançosa, com certeza – que me deu essa indisposição e resolvi assistir a alguns filmes antigos. Sou fã de “O poderoso chefão”, então comecei a assistir a cada um deles de novo.

Novamente dormi em um sofá, mas acordei melhor e resolvi correr um pouco. Passei umas duas horas no Ibirapuera e, na volta, encomendei o almoço de domingo, sentindo-me um pouco órfão sem a Vanda em casa.

Liguei para Millos a fim de fazermos algum programa à tarde, mas ele estava com alguma mulher em algum clube ou lugar que só Deus sabia, então voltei aos relatórios, e isso consumiu o resto do dia.

Debaixo do chuveiro, rememorando este final de semana de merda, ouço meu telefone tocar, mas o ignoro. Coloquei os jatos no mais forte possível para tentar aliviar um pouco a tensão que venho acumulando nesses dias. A verdade é que preciso trepar um pouco, divertir-me, talvez fazer uma viagem ou passar um final de semana com alguém sem pensar no trabalho.

A imagem da Valentina vem à minha mente, sua conversa gostosa, seu sorriso bonito. Contudo, ainda não me sinto completamente certo de que devo me envolver com ela, principalmente por uma questão: não senti muita atração.

Sei que isso é de momento e que pode mudar, principalmente se a convivência for boa. Nem sempre sentimos atração pela pessoa no primeiro encontro, e já vivi anos demais para saber que até um primeiro encontro explosivo pode depois esfriar e o tesão ser extinto, então, não me baseio apenas nessas primeiras impressões.

Fecho os olhos e penso na garota da boate há alguns anos. Ela vem preenchendo minhas fantasias há muito tempo, talvez por ter sido gostoso daquela vez e não ter tido mais notícia dela.

Mal lembro do seu rosto, de tão bêbado que estava, sempre quando fantasio vejo os cabelos e me lembro da loucura que foi nossa transa naquele banheiro.

O telefone volta a tocar, e desligo o chuveiro, saindo do boxe para ver quem é o chato. Rio ao ver o nome do Millos. Na mosca!

— Já terminou sua maluquice sexual com a “submissa” da vez? — provoco.

— Vá se foder e não se meta nos meus assuntos — rosna. — Liguei para saber se amanhã pode ir comigo a um restaurante que um amigo inaugurou nos Jardins.

— Boa comida ou é boteco?

— Não, seu fresco, é coisa fina! Vanda ainda não estará de volta, não é?

Suspiro, resignado.

— Não, ela ainda vai ficar um tempo no Rio de Janeiro. Está certo, amanhã combinamos isso melhor no escritório.

— Okay! — diz animado. — Vai almoçar no refeitório junto aos funcionários?

— Sempre há uma primeira vez, não é? — Deixo a toalha no suporte e sigo para o closet. — Além do mais, confio que servimos algo de qualidade aos funcionários.

Millos ri.

— Essa eu quero ver! Nos encontramos no almoço, então! Boa noite, Theo.

— Boa noite!

Desligo o telefone e me olho no espelho, lembrando-me do tempo em que comia qualquer coisa e em qualquer lugar, na maioria das vezes sujo e fedendo a peixe, sentindo-me feliz e livre.

— Quem é você, Theodoros Karamanlis?


O dia nem bem amanheceu, e eu já estava suando na academia com a Sandra. Hoje, sem Millos, o treino foi mais tranquilo, seguindo o ritmo normal dos exercícios. Tomei meu café sozinho na cozinha – café puro mesmo – sentindo imensamente a falta da Vanda, de sua conversa matutina animada e seus cuidados. Posso não admitir sempre, mas gosto de ser cuidado, de sentir esse afeto, coisa tão rara na minha vida.

Limpei os pensamentos e saí para trabalhar.

— Bom dia, Dionísio! — cumprimentei o motorista como em todos os dias, já pegando meu jornal para me inteirar sobre as principais notícias do dia. — Hoje vou almoçar na empresa, mas, à noite, vou sair do escritório direto para jantar com Millos.

— Levo o doutor ou trago o carro?

— Traz o carro, vou dirigindo.

Ele assentiu, e seguimos viagem em silêncio, ele concentrado no trânsito, e eu, nas notícias de economia do país e do mundo.

Cheguei à empresa já apagando incêndios. Um dos projetos de um cliente foi reprovado por uma comissão municipal, então Kostas teve que intervir mandando seus advogados e acompanhando todo o processo. Eu, como CEO, fiquei aguentando a aporrinhação do gerente responsável pela implantação da empresa multinacional aqui no Brasil.

Nem vi a hora passar, mal tomei meus cafés tão tradicionais ao longo da manhã, irritado com esse problema, com o Rômulo borboleteando ao meu redor me enchendo de perguntas: “quer café?”, “ligo para o doutor Konstantinos?”, “quer um calmante?”. Eu quase explodi de raiva, sentindo meu estômago fritar e a cabeça estourar.

Desci para o refeitório faltavam alguns minutos para o meio-dia e, para meu espanto, ainda não tinha nenhuma refeição pronta. Conferi as horas no Omega, um dos relógios mais precisos do mundo, e estranhei a demora. Rômulo apareceu e, quando lhe questionei o atraso, fiquei sabendo que o almoço era servido a partir da 1h da tarde.

Voltei para o escritório sob a insistência de Rômulo para me encomendar o almoço em algum restaurante.

— Não! Hoje vou comer no refeitório — insisti.

Millos me lançou um desafio por eu nunca ter comido na empresa desde que foi inaugurado o refeitório para os funcionários. Pensamos no restaurante para facilitar a vida de todos e, como tínhamos espaço, decidimos montar a estrutura. Estive presente no primeiro dia, na inauguração, há alguns anos, mas depois disso não botei mais os pés no local.

Exatamente às 13h desci novamente pensando em usufruir de um almoço tranquilo e nutritivo, porém, o que encontrei me deixou sem ação. Primeiro, os funcionários ficaram estarrecidos ao me ver ali; percebi em seguida que apenas o baixo escalão da empresa – de coordenadores para baixo – estava comendo ali. Não havia nenhum gerente ou diretor no meio dos mais de 100 funcionários da companhia.

Contudo, o que mais me surpreendeu foi a comida. Não, não era ruim, pelo contrário, era bem preparada, mas sem nenhuma opção para substituição.

— E quem não pode comer carne vermelha? — questionei ao Rômulo, e ele apenas corou, fingindo não ouvir. — Há cardápios diferentes ao longo da semana?

Rômulo continuava a montar seu prato sem emitir qualquer resposta, o que não é nada típico dele, e isso me irritou. Quando não era para falar, o homem tagarelava, mas, quando eu precisava de respostas, ficava mudo!

— Rômulo! — chamei-o de modo mais enérgico. — Eu estou tentando entender o que...

— Não, não há! — escuto a voz do Alex e me viro para encará-lo. — E seu querido assistente não sabe informar porque não come aqui também. — Meu irmão pegou um prato e se serviu naturalmente. — A questão do restaurante entrou em pauta numa reunião de diretoria, mas o senhor todo-poderoso do Olimpo achou que não era uma questão relevante para a economia da empresa e pulou o assunto.

Olhei de esguelha para Rômulo buscando confirmar a informação, e ele atestou. Xinguei mentalmente.

— Uma empresa é feita de mais do que números, Theodoros Karamanlis — seu desprezo pelo sobrenome era evidente. — E, quando fiz a proposta do restaurante, era para que, além de economizar o tempo dos funcionários e agilizar o serviço, também tivéssemos convívio com eles, porém, adivinha quem foi o primeiro a pular do barco e a incentivar o “alto escalão” a ir junto?

Bufei de raiva.

— Quem é o responsável pela gestão do restaurante? — ignorei o discurso do meu irmão idealista e perguntei ao Rômulo.

— É terceirizada, a mesma empresa do pessoal da manutenção.

Merda!

— Marque uma reunião com ela e peça ao Kostas para avaliar o contrato. — Rômulo mais do que depressa escreveu em seu tablet inseparável. — Dispare um memorando para todos os diretores e gerentes, lembrando da existência do restaurante e informando que, a quem for almoçar fora, será necessário cumprir o horário, ou seja, uma hora e nenhum minuto a mais.

Rômulo arregalou os olhos e assentiu.

— Eu pouco vejo você e percebo que nem é preciso! Você não mudou nada, o mesmo prepotente de sempre. — Alex passou por mim, ainda se servindo no bufê, rindo de deboche, e percebi olhares curiosos em nossa direção.

— Eu preciso lembrar que você também faz parte da diretoria e tem acesso irrestrito ao conselho? — Cheguei perto para falar baixo: — Se fosse meu projeto, nunca deixaria chegar aonde chegou só porque não sou o CEO. Isso demonstra que está mais preocupado em ir contra a direção do que lutando pelo bem-estar dos funcionários. Não é minha função tomar conta de tudo, não sou absolutista, eu delego e confio naqueles a quem passo esse poder. — Ele fechou a cara, perdendo o ar de superioridade. — Não tenho intenção alguma de prejudicar os que trabalham comigo, pelo contrário. Mas assumo meu erro em não ter frequentado o local para dar exemplo.

— Mas o doutor também não tem horário certo para almoçar, por isso...

Balancei a cabeça em negativa, freando a defesa de Rômulo. Não tinha desculpas, o exemplo era meu, e eu tinha falhado. Terminei de fazer meu prato, sentei-me a uma mesa com Rômulo e almocei mesmo sentindo um nó na garganta por ter mostrado falha e ter sido repreendido pelo Alex na frente de todo mundo.

Merda!

Ao longo do dia, a repercussão do almoço do CEO no restaurante da empresa, bem como o efeito do memorando para os diretores e gerentes agitaram a tarde na Karamanlis. Percebi todo mundo mais atento, mesmo na correria de sempre.

Tive uma resposta positiva da equipe de Kostas com relação ao projeto vetado e pude passar a boa notícia ao nosso cliente. Recebi vários relatórios dos setores e subsidiárias ao longo do dia, inclusive da K-Eng, dirigida pelo Alex.

Meu irmão é um sonhador idealista, defensor dos fracos e oprimidos, um rebelde que só trabalha conosco para contrariar a família. Cospe sobre nosso sobrenome, mas faz questão de ostentá-lo para afrontar o pappoús. Sempre achamos que ele tentaria afundar a empresa em represália ao tratamento que teve na infância, mas não, ele não só assumiu uma empresa praticamente independente como a fez crescer. Todavia, ainda sinto que há algo por trás disso.


CONTINUA

Uma família separada pelo ódio...
Criado pelo avô, renegado pelo pai, odiado pelos irmãos, Theodoros Karamanlis recebeu o cargo de CEO da empresa da família. Sua principal meta é provar a todos que é mais competente do que o homem que sempre o renegou, seu pai. Para isso acontecer, falta apenas comprar o imóvel onde funciona um pequeno pub na Vila Madalena e assim fechar uma conta aberta há mais de dez anos.
Uma família mantida pelas lembranças...
Maria Eduarda Hill sempre teve o sonho de ser uma renomada chef de cozinha, mas, por circunstâncias do destino, acabou assumindo o antigo boteco de seu pai na Vila Madalena. Ela trabalha duro para manter o negócio e preservar a memória de sua família e luta bravamente contra o assédio de uma empresa que quer comprar e demolir o lugar.
Uma noite, um bar, e uma química explosiva...
Depois de cair em uma armadilha e conhecer a irritante cozinheira que o impede de fechar o maior negócio de sua empresa, Theo se vê dividido entre essa forte atração, conquistar o que seu pai não foi capaz e uma promessa feita ao avô. Por mais que resista, o grego não consegue ficar longe de Maria Eduarda, então começa uma implacável sedução para tê-la em sua cama.
Theo e Duda têm tudo para se odiarem. No entanto, mal sabem eles que a paixão não se conduz pelo óbvio!
A todas as Jujubas do meu potinho cheio de amor!

 

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— Parabéns, doutor Karamanlis! — Rômulo, meu assistente, soa exultante ao me cumprimentar. — Falta pouco agora para o senhor conseguir fechar essa conta! — Olha sua agenda. — O senhor tem uma reunião com o doutor Villazza daqui a...

Não dou muita atenção à falação dele, muito menos aos elogios animados. Sei bem que, embora tenha dado um passo gigante, ainda não conquistei minha vitória, não enquanto não tiver cumprido todas as metas que tracei para minha gestão à frente do negócio da família.

Olho para a parede esquerda do meu escritório, diretamente para o mapa emoldurado cujo círculo abrange a única propriedade que falta ser comprada para termos a total posse do quarteirão que mais tem se valorizado na área da Vila Madalena.

Foi exatamente por causa dessa bendita área que meu pai, o poderoso Nikolaous Karamanlis, perdeu seu reinado por aqui e foi substituído por seu renegado filho mais velho. Tenho consciência de que Rômulo tem razão quando me parabeniza pelo trabalho à frente da empresa. Millos, meu primo, e eu temos feito uma gestão muito produtiva, mas ainda não consigo estar satisfeito, não enquanto não conseguir comprar o último pedaço de terra daquele lugar.

Millos tem tentado me convencer a não me cobrar tanto sobre essa questão, afinal nem temos um cliente para instalar nessa área, perdido há muito tempo, quando meu pai prometeu o lugar e não conseguiu cumprir a promessa. O que ele não entende é que há muito tempo isso deixou de ser apenas um negócio, é uma questão de honra conseguir aquilo que meu progenitor não alcançou.

Balanço a cabeça ao pensar no meu pai e na nossa conturbada convivência. Não, não é hora de pensar em todas as merdas que aconteceram na nossa família!

Levanto-me e sirvo uma dose do meu puro malte favorito para relaxar um pouco, querendo já estar em casa.

Casa... Essa palavra me faz pensar em meu país, a Grécia e me desperta outra lembrança dolorosa: meu avô e a promessa que fiz a ele. Geórgios Karamanlis está prestes a completar 90 anos, mas, como diz o ditado por aí, vaso ruim não quebra facilmente. O homem que me criou, que me ensinou tudo sobre os negócios agora exige de mim uma família.

Uma família! Rio debochado a esse pensamento, a essa palavra tão sem sentido na minha vida e na dos meus irmãos. Família não significa nada mais do que pessoas que compartilham a mesma linhagem, pois os Karamanlis não são conhecidos por laços além dos de sangue. Somos todos fodidos de alguma forma, cada um com suas merdas para carregar, seus fantasmas e esqueletos no armário.

Somos ótimos trabalhando juntos, mas é só.

Não sei da vida particular de nenhum dos meus irmãos mais do que sei da de qualquer outro funcionário da empresa. Muito menos me importo com isso! Todos são adultos e, se querem continuar agindo como crianças chorosas e traumatizadas, o problema não é meu.

Rômulo volta à minha sala cheio de pastas com arquivos e me avisa que o carro já me aguarda para me levar até o Villazza SP, onde, além de conversar com Frank, vou aproveitar para almoçar no Vincenzo com ele como companhia, pois detesto comer sozinho.

Enquanto meu assistente se instala à sua mesa, passo na antessala e me despeço da Luíza, secretária da diretoria, deixando meu celular corporativo para trás, pois não quero ser incomodado na hora do meu almoço.

— Estou indo para a reunião com o CEO da rede Villazza; qualquer assunto, anote o recado. — Aponto para o celular. — Volto daqui umas duas ou três horas, pois vou almoçar por lá.

— Certo, doutor Karamanlis.

Despeço-me dela e sigo para a garagem subterrânea do prédio onde fica a nossa empresa, fundada no Brasil há décadas, instalada bem no coração da cidade de São Paulo, a Avenida Paulista. Tenho orgulho de ser o diretor executivo daqui; orgulho do nome e do respeito que conquistamos ao longo dos anos.

O setor imobiliário no Brasil passa por algumas crises, como acontece também no mundo inteiro, mas não para de avançar. Há sempre pessoas querendo moradia, empresas atrás de locais para seus negócios, então nós nunca ficamos sem fechar bons acordos rentáveis.

Meus pensamentos são levados para os Yannes, uma rede de resorts de aventura que tem unidades instaladas nos locais mais incríveis do mundo. Essa tem sido uma conta difícil, por causa de todos os entraves legais desse tipo de empreendimento, mas que, pelas últimas notícias que tive, isso irá ser solucionado em breve.

Sorrio largo ao pensar na Malu Ruschel, uma das minhas melhores gerentes e, com certeza, futura diretora da Karamanlis. A mulher é uma máquina de trabalhar, tanto que tive que a obrigar a tirar férias, mas a danada até descansando é atenta e descobriu o local que tanto procurávamos para o resort.

Malu, além de competente, é linda demais! Confesso que sempre tive uma enorme curiosidade de saber como é ter toda aquela tensão, toda aquela organização e meticulosidade debaixo do meu corpo, gemendo de prazer. Balanço a cabeça, afastando esse pensamento.

Mesmo me sentindo muito atraído por ela, nunca iria tentar qualquer coisa. Não por medo ou insegurança, pois acho que nos daríamos muito bem na cama, pois ela aparenta ser uma mulher segura de si, madura e que sabe separar o prazer do coração. Definitivamente, Malu não é daquelas que se apaixonam!

O que me impede de buscar um entendimento íntimo com ela é puramente ético. Eu não como funcionárias; por mais tesão e vontade, não faço isso. Ao contrário do meu irmão, Kostas, eu as enxergo como iguais e detestaria ter algum machista questionando a capacidade de uma delas apenas por estar trepando com o chefe. E, infelizmente, isso acontece muito nas empresas por aí. Quando um homem recebe uma promoção, é porque mereceu, mas, se é a mulher quem recebe, não foi por merecimento, mas porque ela tem uma boceta! É simplesmente ridículo e, por isso mesmo, prefiro não me envolver. Se há algum diretor ou gerente fazendo isso, é pelas minhas costas – porque todos sabem que não aprovo – e é discreto demais, pois isso não chegou aos meus ouvidos.

A regra geral na empresa é: evitem relacionamentos dentro do ambiente de trabalho, porque isso só causa problemas. Agora, se isso acontecer e as duas partes concordarem, acabarem se acertando, eu não as demito ou proíbo. Não sou babá de marmanjo! Há casais na Karamanlis, a maioria formada lá dentro mesmo. Eu seria hipócrita se fingisse que não há. Não me sinto à vontade para manter um caso com qualquer uma das minhas funcionárias, mas não sou arbitrário a ponto de, se acontecer com outros, demitir um ou mesmo os dois envolvidos.

Minha consciência diz que isso é só mais um dos traumas que carrego, mas a ignoro, mandando-a se foder.

Chego ao Villazza e sou recepcionado rapidamente pela assistente do Frank, Alice.

— Bom dia, doutor Karamanlis. Desculpa tê-lo feito vir para o hotel, mas é que estamos com uma pequena reforma na sala da diretoria no prédio administrativo, então viemos para cá.

— Sem problema, Alice! — Sorrio. — Eu vou aproveitar para almoçar com o carcamano no Vincenzo.

Ela faz careta.

— O senhor Villazza tem outra reunião na hora do almoço e vai sair daqui direto para ela.

Dou de ombros, resignado.

A parte administrativa do Villazza SP fica toda no térreo, mas Frank optou por usar uma das suítes preparadas como home offices, duplex com um escritório completo embaixo e quarto no mezanino.

— Espero que não esteja usando este lugar apenas como desculpa para comer fora do casamento... — falo assim que o vejo, concentrado em sua mesa. — Se Isabella te largar, juro que me caso com ela.

— Dovrai prima uccidermi, maledetto!1

— Não me tente, Frank Villazza! — Aperto sua mão. — Estou sendo pressionado.

O carcamano ri à minha custa.

— Seu pappoús2 ainda está querendo vê-lo casado? — Faço careta e assinto. — Você deveria levá-lo em consideração.

— É incrível como Isabella te domou! — Cruzo os braços e me sento em uma confortável poltrona. — Eu ainda me lembro de seus discursos anticasamento. — Rio. — Lembra como você se apresentou a mim naquele bar?

Frank sorri, embalado pelas lembranças de um tempo em que ainda ostentava o título de playboy. Nós dois aprontamos muitas coisas juntos, principalmente na época de Harvard, onde nos conhecemos. Promovemos algumas orgias, dividimos a mesma parceira, fumávamos baseados juntos e frequentávamos clubes de sadomasoquismo.

Nossa última aventura foi meses antes de ele conhecer sua esposa. Frank estava de férias na Itália, e, assim que eu soube que ele estava em Roma, chamei-o para me visitar em Atenas. Naquela semana em que ficou hospedado no meu apartamento, ele tentou de todas as formas me convencer a participar de um congresso na Suíça que ocorreria meses depois, mas para o qual era preciso garantir vaga. Nossos outros companheiros de Harvard já haviam feito reserva, mas eu declinei do convite, pois já estava me preparando para ir morar no Brasil e assumir a Karamanlis.

Viajamos de iate pelas ilhas naquela semana e, numa das mais belas do mar Jônico, fomos a uma boate muito louca, bebemos todas, e eu tive a trepada mais memorável da minha história.

Eu ainda me lembro dela! Era linda, corpo sarado, com uma barriga plana e de cintura fina de fora. Usava uma blusinha curta e minissaia de couro. Nos pés, botas altas, salto agulha, destacando suas pernas deliciosas. A mulher era um espetáculo para os olhos e me atraiu como ninguém.

Os cabelos, longos e pintados de rosa, balançavam ao ritmo da música. Ela estava acompanhada com mais cinco amigas, todas bem bonitas, sendo que duas delas desapareceram com Frank ao final da noite.

— Cazzo! — Frank xingava excitado ao vê-las dançando e nos oferecendo brindes com seus copos. — São muito novinhas!

— Foda-se! — eu disse sem conseguir tirar os olhos da mulher de cabelos rosa. Eu esperava apenas um movimento dela, apenas um sinal de que estava disposta, e, quando ele veio, olhei para meu amigo com um sorriso vitorioso. — A do cabelo rosa é minha!

Fomos até o grupo, dividimos suas bebidas – elas estavam bem abastecidas —, e, mesmo sem nenhuma apresentação, comecei a dançar com a beldade de cabelos coloridos. Frank ainda me dizia que eram garotas muito novas, ressaltando que deviam ter a idade de sua irmã caçula. Ele estava sempre tentando não trepar com moças jovens e inexperientes, mesmo que já tivesse sido surpreendido algumas vezes por elas, mas sempre acabava cedendo, como de fato ocorreu.

O dia estava amanhecendo quando duas se penduraram nele ao mesmo tempo, e o filho da puta parecia o rei do prazer. As duas se esfregavam nele, que as fazia tocarem uma à outra também, divertindo-se como um sultão. Sinceramente não senti nenhuma inveja; a mulher que estava comigo me deixava louco com sua dança, com nossos amassos e seus beijos etílicos. Eu queria sair dali, levá-la para algum hotel e passar o resto do dia a fodendo em desespero.

Ela dançava como se o mundo lhe pertencesse, movimentando seu corpo ao som das melodias, os músculos pulsando a cada batida, olhos brilhantes em minha direção e um sorriso safado no rosto. Tudo o que eu podia fazer além de tentar não enlouquecer de tesão era acompanhá-la, resvalar em sua pele acetinada quando colidíamos um no outro durante a dança e sentir nesse pequeno contato como se a mais viciante droga estivesse entrando em meu sistema.

— Preciso ir ao banheiro. — Parou, rindo, e apontou para um corredor do outro lado da pista. — Devo estar toda borrada e despenteada...

— Besteira! — respondi.

Seu inglês perfeito tinha um leve sotaque, mas, como as suas companheiras falavam em francês entre si, presumi que fosse por causa disso. A boate já estava vazia. Acompanhei-a até a porta do banheiro feminino e fiquei esperando do lado de fora.

Quer dizer, a intenção era essa!

Fui tomado de assalto quando ela apareceu e, sem dizer nada, simplesmente me arrastou para dentro do banheiro. O pequeno cômodo com várias repartições, espelhos e pias estava vazio. Excitado como um touro, não titubeei ao levá-la até um dos cubículos com vasos sanitários.

Esmaguei-a contra a parede de mármore, levantando-a no colo com suas pernas encaixadas nos meus quadris. Eu conseguia sentir a maciez de suas coxas, e ela, pelo jeito que gemia, sentia meu pau duro contra sua boceta ainda protegida pela calcinha. Estávamos bêbados demais para pensar, excitados demais para esperar, só queríamos provar o corpo um do outro e gozar juntos o prazer que tinha sido anunciado a noite toda.

Os gemidos dela me enlouqueciam. Eu sentia minha calça ficando úmida e, quando toquei sua calcinha, rosnei como um cão ao descobri-la completamente encharcada. Eu queria chupar aquela mulher, ouvi-la gritar de prazer, provar seu sabor até estar ainda mais bêbado e inebriado por ela.

Porém, ela tinha pressa!

Gargalhando como quem está numa grande aventura, abriu o botão da minha bermuda e puxou meu pau para fora da cueca, agarrando-o com força, fazendo-o doer, arrancando-me um gemido de antecipação. Ela se sentou no vaso e o engoliu com sua boca pintada de vermelho.

Fechei os olhos e deixei que ela fizesse o que quisesse, usasse sua língua, lábios e dentes. A sensação daquela boca quente e molhada sugando meu pau ainda mexe comigo, mesmo sendo apenas uma lembrança. E não é à toa, afinal quase gozei em sua garganta quando ela mordeu meu pau, encarando-me perversamente.

Puxei-a até a colocar de pé, virei-a de costas para mim, busquei uma camisinha no bolso de trás da bermuda embolada no chão e invadi sua boceta apertada, socando com força, levantando-a a cada vez que estocava, vendo seu rabo redondo e empinadinho se abrindo contra meus quadris.

Foi uma loucura sem tamanho, dentro de um banheiro público, numa boate praticamente vazia, ao nascer do dia, depois de passar a noite inteira dançando com ela.

— Goza para mim, safada! — eu dizia em seu ouvido, gemendo, mordiscando o lóbulo de sua orelha. — Goza sem se importar se estão ouvindo ou não! Foda-se!

Levei uma de minhas mãos para o meio de suas coxas, achei seu clitóris – o acesso facilitado por causa da depilação total que ela adotava – e o massageei até que ela se contorcesse.

— Grita! — ordenei, e ela obedeceu. — Porra, gostosa, encharca meu pau!

Não aguentei muito mais e tive que dar murros contra a parede de mármore do cubículo, tamanha a intensidade do prazer que senti.

Puxei meu pau de dentro dela, encarando-a completamente embevecido com sua beleza, com seu jeito safado, sorriso malicioso e olhos brilhantes. Joguei a camisinha no lixo e a puxei para fora daquele banheiro, pensando em levá-la para uma volta no iate.

— Ei! — uma das amigas, das que não tinham acompanhado Frank mais cedo, chamou-a. — Temos que resgatar a Allly e a Èlene, senão vamos perder o voo!

— Voo? — inquiri assustado.

— Temos que voltar para Paris — ela disse.

— Agora? — Ela assentiu. — Não!

A gostosa que acabara de gozar no meu pau e me dera um orgasmo fenomenal se aproximou, depositou um selinho na minha boca e se afastou.

— Foi uma noite deliciosa!

Bufei, resignado, não satisfeito, porque ainda queria comer mais aquela mulher, experimentar todo o seu corpo jovem, pele macia, músculos duros e tenros. No entanto... tinha valido a trepada no banheiro. Eu não ia sair correndo atrás dela implorando por mais.

— Boa viagem! — despedi-me.

Ela apenas piscou, sua maquiagem pesada, cílios longos e pintados da mesma cor que os cabelos. Desapareceu para sempre, sem nem mesmo me dizer como se chamava.

— Ei, stronzo, para de sonhar! — Frank ri, e eu volto a prestar atenção ao que ele fala. — A área que eu quero não é muito grande, apenas o suficiente para...

— Do que você está falando?

— Porca miseria, Theo! A casa de praia que quero construir para minha família, cazzo! O motivo pelo qual te chamei aqui! Está com a cabeça onde, porra?!

— A do meu pau? Enfiada naquela garota dos cabelos rosa naquela boate. Mal lembro do rosto dela, mas as sensações...

— Coglione! Está precisando de uma mulher pra foder, porra?!

— Não! — Lembro-me da que deixei essa manhã na cama. — Foi só uma lembrança. — Aprumo-me. — Vamos falar de negócios!


São Paulo, meses depois.


— A mulher anda irredutível! — Millos conversa comigo enquanto tomamos café. — Há anos tenho ido pessoalmente tentar negociar a compra, mas ela se recusa e tem conseguido manter suas contas em dia.

Desvio meus olhos do computador.

— Ela já sabe que temos a promissória?

— Não, simplesmente me expulsou de lá a pontapés quando fui tentar negociar! — Ri. — Você sabe que eu não curto uma mandona, mas ela me deixou levemente excitado.

— Porra, Millos, não fode o assunto! — Meu primo ri e deixa sua xícara vazia sobre o pires. — Já temos a dívida do pai dela; o que estamos esperando para executá-la? Isso a deixará sem alternativa a não ser vender o maldito bar para quitá-la!

— Theo, é uma promissória assinada há quase dez anos! Vamos ter que cobrar e...

— É para isso que aquele desgraçado do Kostas está aqui! — grito sem paciência. — Eu não aguento mais esses irlandeses no meu caminho!

— Ela é brasileira, Theo, o pai é que era...

— Foda-se! — Bato na mesa. — Tenho um diretor que não queria ter porque a porra da Malu Ruschel desertou para ficar embrenhada no mato com um peão e, ainda assim, não consigo fechar essa maldita conta!

— Ele conseguiu comprar a dívida do agiota e...

— Você está se escutando?! — Passo as mãos pelos cabelos. — Um diretor nosso negociou – sabe-se lá como – com um agiota! Esse mesmo cara está por aí, lidando com nosso dinheiro, comprando e vendendo imóveis em nosso nome! Não confio uma vírgula nele!

Millos se levanta e desenrola as mangas da camisa para esconder suas tatuagens. Eu não entendo por que ele cisma em manter essa pose conservadora aqui dentro da empresa, mas, como bem sei, cada um dos Karamanlis é fodido de algum jeito. Apesar da barba cheia e grande e do brinco que nunca tira, ele anda pelos corredores vestido de terno e gravata, sapatos de couro e uma pose de empresário burguês que só convence quem não o conhece.

— Eu preciso daquele quarteirão, Millos!

— Nós nem temos um cliente para ele...

— Foda-se! Quero a merda do quarteirão! — Ele concorda. — Vire-se para conseguir!

— Vou conversar com Kostas sobre a execução da promissória.

— Faça isso! Meu irmão pode ser um babaca filho da puta, mas é bom no que faz.

— Engraçado é que ele diz o mesmo de você!

O taciturno, mas incrivelmente inteligente grego sai da sala sacudindo a cabeça, sem entender como é que conseguimos trabalhar juntos sem nos matar. A verdade é que trabalhamos muito bem! Temos todos os mesmos propósitos, deixar nosso nome marcado na história desta empresa.

Nenhum Karamanlis da minha geração saiu ileso à maldição familiar. Todos temos fantasmas e esqueletos escondidos em nossos armários, traumas da infância, da adolescência ou apenas somos fodidos de nascimento. A amizade que tenho com Millos é algo que fugiu à regra, pois nutrimos sentimentos verdadeiros entre nós que vão além dos laços sanguíneos que nos unem.

O restante... bem, eu não conheço o restante o suficiente para julgar ou sentir qualquer coisa por eles. Nós nos suportamos por causa da empresa, do dever para com nosso nome e, claro, do respeito ao pappoús.

Kostas, alguns anos mais novo que eu, é um advogado competente, também um babaca arrogante que fala com qualquer pessoa se achando o rei de todo conhecimento e inteligência. Por vezes tenho que lidar com as merdas dele aqui dentro da empresa, principalmente quando sua falta de tato extrapola os limites de sua diretoria e acaba afetando outras.

Alex, um dos caçulas, é engenheiro, criativo, tem bons relacionamentos com todos na empresa, menos com a própria família. É o único que não faz nenhuma questão de agradar qualquer que seja dos Karamanlis, chegando por vezes até a renegar o nome em alguns trabalhos, quando assina apenas o sobrenome de sua mãe.

Kyra, a única menina e a mais nova de todos os filhos de Nikkós, é a única que não tem qualquer relação com os negócios da família. Montou sua empresa, não usou nossa grana, não tem qualquer contato – a não ser quando contratamos seus serviços em eventos – conosco. Suspiro ao pensar nela, principalmente porque ela não dirige a palavra a mim há mais de duas décadas.

O ponto de equilíbrio, o conciliador, a nossa Suíça, para explicar melhor, é o Millos. Meu primo tem relacionamento com todos os irmãos, escuta e aconselha a todos e, ainda assim, consegue permanecer neutro dentro da confusão que é essa família nada ortodoxa. Todos o conhecem por sua serenidade, sensatez e capacidade de pensar com racionalidade mesmo em meio ao caos. No entanto, eu sei a verdade! Por baixo de toda a placidez aparente, Millos esconde um lado seu que chega a me arrepiar os pelos.

A verdade é que nem mesmo o Karamanlis mais sensato é são!

Ando pelo escritório, noto cada detalhe da decoração, trazendo à mente o significado e o momento em que cada peça aqui disposta foi comprada. Algumas delas são remanescentes de um relacionamento que tive há alguns anos com uma decoradora de interiores; entre uma foda e outra, avaliávamos os objetos juntos e os comprávamos. Poucas aqui vieram de casa, na Grécia: uma deusa Atena esculpida em Carrara, um relicário da minha avó e um tinteiro do vovô.

Um fato sobre mim que me deixa orgulhoso é que sempre gostei de arte. Mesmo não tendo nenhum tipo de aptidão para pintura e escultura, gosto de apreciá-las, de viver cercado pelo belo, diferente e único. É claro que valorizo muito os clássicos, as obras e artistas já consolidados, mas meu faro empresarial também sabe reconhecer um iniciante com potencial, por isso tenho muitos investimentos na área.

Para estar por dentro de tudo o que acontece, preciso viver constantemente ligado a esse mundo, e isso, no momento, tem gerado alguns problemas. Fora compromissos e reuniões de trabalho, meu lazer é praticamente frequentar exposições, vernissages, festivais e até concursos. Por conta disso, só tenho me envolvido com mulheres do meio – o que para mim é maravilhoso, afinal, além do sexo, tenho o plus da conversa –, e a maioria delas não se encaixa no perfil da futura senhora Theodoros Karamanlis.

Pode parecer machismo, talvez seja, mas vocês hão de convir que, por mim, nunca haveria uma senhora Theo Karamanlis. Contudo, não posso deixar de atender a um pedido do meu avô. Imagina se o velho Geórgios, ateniense tradicional, aceitaria ver o neto mais velho se casando com uma artista alternativa, cheirando a incenso e tintas?

Esse é um dos motivos pelo qual comecei a frequentar as galerias mais chiques e tradicionais, com o pessoal da alta-roda paulistana e deixei de lado esse meu lado indie de aquarelas e carvão. Não entendam mal, não desgosto de estar nesse meio mais rebuscado, claro que não, arte é arte, e eu a aprecio de qualquer forma, mas é fato que as mulheres são bem diferentes. As descoladas são sempre mais divertidas.

Já que tenho que me casar, não quero um mero compromisso de conveniência. Por isso estou procurando, conhecendo, abrindo-me a encontrar uma pessoa com a qual eu me veja acordando de manhã e me deitando ao lado à noite. Se a encontrei? Não! Mais uma vez peço a vocês que não me entendam de forma errada. Eu não procuro por amor, essa porra já provou a mim que só serve para deixar o homem idiota e burro, então nem está sendo considerada. O que eu preciso é de uma parceira, uma mulher que eu consiga ver ao meu lado como amiga, além de ser a mãe dos meus filhos. Esse é o problema! Eu não as vejo assim, pelo menos nenhuma que tenha conhecido até agora.

Confiro as horas no Omega que uso no pulso esquerdo e balanço a cabeça. O tempo não para! Vovô não está ficando mais novo; eu não estou ficando mais jovem, e as chances de eu confiar o suficiente em uma mulher a ponto de pedi-la em casamento e gerar uma criança são quase nulas!

— Doutor Karamanlis? — Rômulo me chama, interrompendo meus pensamentos preocupados. — A reunião sobre o terreno para a rede de shoppings começa em 10 minutos...

— Obrigado, estarei lá. — Caminho até minha mesa para pegar umas anotações. — A equipe da senhorita Reinol já está posicionada?

Meu assistente apenas assente, ainda parado à porta, um tanto tenso, mais do que o normal.

— Algum problema? — inquiro diretamente, esperando a reposta positiva, pois é óbvia.

— Eu não me sinto à vontade para contar isso, mas...

— Pare de dar voltas e diga de uma vez! — A impaciência toma conta de mim, e de novo questiono minha sanidade ao manter o Rômulo como meu assistente. Ele é competente, sim! Organizado? Muito! Entretanto, tem umas manias que me tiram do sério, e, infelizmente, a falta de objetividade é uma delas. — Rômulo!

Ele pula assustado com o tom da minha voz e fecha os olhos, torcendo as mãos. Dá-me paciência!

— Aconteceu uma pequena desavença há pouco lá na sala de reuniões e... — bufo, arrependido, pois odeio fofoca — a Kika abandonou a apresentação e disse que o Leonardo é quem vai falar com o cliente.

Arregalo os olhos, surpreso.

Wilka Reinol, a Wilka a quem ele se referiu, é nossa gerente de hunter, ou seja, é a responsável pela equipe que pesquisa os imóveis de acordo com a necessidade dos clientes. Assim que a Malu Ruschel nos deixou para bancar Maria Chiquinha no meio do mato, foi natural que Kika assumisse a gerência, pois se mostrou pronta para a responsabilidade durante o período de férias da antiga gerente. Ela é um pouco mais solta que a Malu – que era um tanto obcecada pelo trabalho –, mas tão responsável e obstinada quanto a outra.

Kika, sob meu ponto de vista, tem tudo o que a Malu tinha e mais a humanidade necessária para o serviço. Ela sabe liderar a equipe, é carismática, todos os funcionários do prédio a conhecem, gostam dela e fazem de tudo para ajudá-la. Alex, meu irmão, brinca que, se a presidência da Karamanlis fosse por voto popular, ela ganharia fácil, e é bem provável.

Por isso mesmo, saber que alguém conseguiu irritá-la a ponto de fazer com que ela abandone uma apresentação na qual se empenhou... Respiro fundo, já sabendo o que aconteceu.

— Kostas?

Rômulo parece que vai desmaiar.

— É... Ele estava conversando com ela antes de... — Faz um gesto nervoso com as mãos. — Eu não sei o que houve, mas o pessoal ficou todo tenso e pediu para eu vir buscá-lo.

Não! De novo, não!

Há alguns meses, eu tive que apartar uma briga feia dos dois, quando Kostas decidiu interferir no trabalho da Malu no afã de fechar a conta do Grupo Yannes. A ex-gerente ainda estava no Pantanal, e Kika era quem gerenciava em seu lugar, e a pequena morena colocou o dedo bem no meio da cara do meu irmão, de mais de 1,90m, sem titubear nenhuma só vez.

Secretamente eu torci por ela, querendo vê-la dando uns bons tapas naquela cara anglo-grega e deixando o nariz dele, já quebrado sabe Deus lá como, ainda mais torto. Nunca tive tanta vontade de incitar a guerra, mas me lembrei do motivo para o qual tinha sido chamado e tentei conciliar os dois.

Kika, ainda bufando, mandou-nos à merda e saiu da sala batendo a porta. Kostas ria, mas eu pude perceber que havia um brilho de admiração nos olhos dele. Nós não estávamos – e nem estamos – acostumados a defender alguém com unhas e dentes como ela fez com a Malu. Foi realmente admirável e providencial, porque logo depois tudo se revolveu, e o próprio Kostas admitiu que as duas estavam certas ao não apresentarem a fazenda pantaneira ao cliente.

Depois desse episódio, no entanto, os dois passaram a se evitar, e a paz voltou a reinar na Karamanlis, o que me faz voltar a pensar no que aconteceu dessa vez para que a trégua tenha tido fim.

— Você vai atrás da Kika. — Rômulo fica branco. — Vou ter uma palavrinha com o meu irmão.

— Mas ela... — o assistente tenta argumentar, tremendo de medo.

— Coragem, Rômulo! — Passo por ele, segurando o riso por vê-lo apavorado por ter de falar com a Kika. — Ela não vai te arrancar pedaços... — Sorrio para ele. — Pelo menos, não muito grandes!

Escuto-o gemer e não resisto mais. Gargalho.


Andar pela Karamanlis sempre foi algo complicado. Não por causa das dimensões do prédio, que também não é pequeno, mas porque sempre cruzo com um ou mais gerentes ou diretores, e eles sempre têm algo a comentar comigo. Sempre!

A empresa ocupa do décimo ao vigésimo andar do enorme prédio comercial na Paulista. Os andares inferiores estão divididos para duas subsidiárias: a K-Eng, empresa que concentra todos os serviços de engenharia – em seus vários nichos – e que é dirigida pelo meu irmão caçula; e a K-Decor, empresa de arquitetura e design de interiores, também sob o comando do Alex, mas com acompanhamento do Millos.

Somos uma holding, atendemos o Brasil inteiro não só na compra e venda de imóveis, como também no gerenciamento, na construção desde o projeto, planejamento, decoração e design. Nossa cartela de clientes é formada, em sua esmagadora maioria, por empresas, mas às vezes temos alguns prédios residenciais sendo atendidos de alguma forma pela Karamanlis.

Nossa estrutura é completa, temos, para exemplificar, um andar inteiro dedicado ao pessoal de TI, que coordena todas as nossas redes, tão necessário para o pessoal que trabalha com georreferenciamento de imagens, satélite e sobreposição de manchas para marcarmos as propriedades. Temos utilizado muito essas ferramentas para regularização de fazendas, áreas enormes para as quais, se o serviço fosse feito em campo, levaríamos o triplo do tempo e gastaríamos o dobro de funcionários.

A divisão jurídica, comandada pelo Kostas, ocupa quase um andar inteiro, deixando apenas três salas para a gerência de hunter, que eu não sei por que ainda mantenho lá, mas que nunca me incomodou tanto quanto agora.

Definitivamente, os hunters precisam sair do andar antes que a Kika e o Kostas se matem!

Abro a porta que dá acesso ao enorme salão onde ficam os advogados, cada um trabalhando atentamente à sua mesa ao estilo baia, e sigo para a sala toda de vidro ao fundo.

Kostas me vê antes mesmo que eu bata à porta e faz sinal para que eu entre.

— Seu assistente já fofocou com você. — Ele ri, deixando seu charuto de lado.

Olho carrancudo para o fumo, algo que ele sabe que eu desaprovo dentro do local de trabalho, mas que ele sempre alega que é só para relaxar, coisa de seu sangue inglês. Porco arrogante!

— Rômulo já me informou da situação que ocorreu — corrijo-o. Sim, eu acho meu assistente fofoqueiro, mas só quem pode falar essa porra sou eu, por isso, defendo-o. — Eu pensei que já houvesse se estabelecido um tipo de trégua entre vocês aqui na Faixa de Gaza.

Kostas dá uma risada escrota quando eu falo do apelido do andar.

— Aquela mulher é muito petulante! — Dá de ombros. — Se eu fosse o CEO dessa “bagaça”, já teria mostrado a ela a porta da rua.

— Ainda bem que você não é! — corto-o. — Eu não demito funcionários porque eles falam umas verdades a um bundão como você. Kika é extremamente competente, e eu não tenho motivo algum para me desfazer dela.

— O bundão aqui é você! Ela enche meu saco, feministazinha do sovaco cabeludo, e ainda tem a coragem de querer ditar regras!

Balanço a cabeça, perdendo a paciência.

— Você enche meu saco, e, se eu pudesse, te colocaria para fora daqui agora mesmo...

— Só que você não pode! — Ri, arrogante, pegando seu charuto de volta. — Sou dono dessa merda tanto quanto você! Então me engula!

— Você está certo, e que isso fique bem claro, Kostas. — Caminho para perto dele. — Só aturo suas merdas porque não posso te pôr para fora, não porque eu goste de trabalhar com você. Não interessa se é um puta advogado, foda-se! Eu demito sem nenhuma dor na consciência funcionários que tenham metade da sua arrogância. — Soco a mesa, e ele fica sério, deixando de lado o sorriso debochado. — Agora, não me tente! Aposto com você que todos já estão de saco cheio de suas piadinhas preconceituosas, de seu jeito de se achar melhor que todos e, principalmente, de todas as confusões que você arruma aqui dentro! Duvido que os integrantes do conselho estejam dispostos a pôr o rabo na reta para te defender.

Vejo que atingi o ponto fraco dele, pois o filho da puta sabe que não tem apoio de ninguém aqui dentro. Nem mesmo Millos – o único a conseguir conviver com essa criatura – o defenderia diante do conselho.

Kostas por fim apaga o charuto, caminha pela sala e abre a porta de vidro.

— Sai.

Rio e constato que tudo o que falei, apesar de feri-lo, não o mudará jamais.

— Para de se meter no trabalho dos hunters — aviso-lhe antes de sair. — Eu não vou segurar essa porra e nem ficar igual a uma maldita galinha pisando em ovos com meus funcionários por sua causa! Tá frustrado e entediado? Vá trepar ou qualquer outra coisa que o deixe menos imbecil do que é.

— Sim, chefe — debocha.

— É bom lembrar disso, Konstantinos Karamanlis. Eu sou o seu chefe!

Saio daqui notando as expressões assustadas dos advogados, sem me importar o mínimo, afinal todos sabem que os irmãos Karamanlis não se dão. Ando sem olhar para trás, confiante, ainda que tenha consciência de que, se pudesse, meu irmão enfiaria uma faca em minhas costas sem dó nem piedade.

Tenho absoluta certeza de que só estou no comando porque passo certa segurança ao conselho administrativo da empresa. Se não fosse assim, aposto que nenhum Karamanlis estaria na diretoria executiva. Meu pai foi um desastre, era bom gestor, mas esteve envolvido em um escândalo após outro e, por fim, começou a fazer péssimas escolhas nos negócios, o que custou sua cabeça.

Kostas tem a agressividade de Nikkós. É o filho que mais se assemelha a ele, não só na aparência, mas também no gênio intratável. Detesto me comparar ao meu pai, mas não posso negar que a inconstância dele na vida pessoal, embora de um jeito completamente diferente, faça parte de quem sou. E, já em Alex, vejo uma impulsividade enorme, também herdada do maldito que nos gerou.

Quanto a Kyra... Bem, nunca pude formar opinião sobre ela. Tudo o que sei de minha irmã veio através de informações trazidas pelos outros. Não temos nenhum tipo de contato. Ainda tenho a imagem da menininha alegre que se pendurava nos meus ombros, mas isso foi há tanto tempo que não consigo mais ligar a imagem da mulher à da criança.

Sinto culpa por ter criado essa barreira entre nós. Reconheço meu erro, porém, já não somos mais imaturos, poderíamos ter lidado com isso se Kyra quisesse. Ela só não consegue me perdoar.

Encontro-me com Rômulo à espera do elevador. Ele se encolhe um pouco quando me vê, e eu dou um tapinha em seu ombro.

— Acalmou a fera? — brinco.

— Ela já retornou à sala de reuniões. — Sorrio, orgulhoso dele. — Mas xingou nossa espécie de todas as formas possíveis. — Rio, imaginando a cena. — Alguns que eu nem sabia que existia! Sabia que ela chama seu irmão de Bostas Karamanlis?

Gargalho, fazendo-o pular de susto.

— Ótimo apelido! — Ainda estou rindo ao entrar no elevador. — Por essas e outras é que ela tem meu total respeito! — Mal acabamos de entrar, vemos Kostas vindo em nossa direção. Com um sorriso malvado no rosto, aperto o botão para fechar portas, deixando-o para trás.

— Ele ia subir... — Rômulo argumenta.

— Não queremos o elevador fedendo, não é? — zombo, rindo de novo. — Bostas! Por que nunca pensei nisso antes?!

Meu assistente me olha como se eu tivesse enlouquecido, com suas grossas sobrancelhas escuras quase encostando em seus cabelos e a testa lotada de gomos de expressão. Minha gargalhada não cessa, imaginando a cara de Millos quando eu contar como o “todo poderoso” Kostas Karamanlis é chamado pelos funcionários da empresa.

 

 

Entro na sala de reuniões e dou de cara com a Kika, com seu jeito simpático e elétrico, distribuindo instruções, rindo com os colegas e averiguando sua apresentação. Nosso cliente ainda não chegou, mas não deve tardar muito; é senso comum que nós não gostamos de atrasos.

Cumprimento a equipe rapidamente com um leve inclinar de cabeça, desabotoo o último botão do meu paletó e me sento no lugar que sempre ocupo quando estamos nesta sala. O material em cima da mesa, com todas as informações sobre o imóvel escolhido pelos hunters chama minha atenção e, mesmo sabendo que isso os deixa apreensivos – admito que sinto certa perversidade de minha parte ao gostar de deixá-los assim –, pego a pasta e começo a folhear página por página lentamente.

Confiro as horas no meu relógio e encaro a Kika com as sobrancelhas franzidas.

— Senhorita Reinol? — chamo-a e bato de leve o dedo indicador sobre o relógio. — Alguma notícia?

Imediatamente ela chama uma mulher de sua equipe, que sai apressada da sala com um telefone celular na mão. Faço um gesto para que Kika se aproxime, e ela vem andando, sem nem mesmo demonstrar um pingo de apreensão, em minha direção. Admirável!

— Pois não, doutor?

— Você confirmou com o cliente a reunião hoje?

— Certamente! — Ela levanta o queixo. — Isso é a primeira coisa que fazemos, antes mesmo de disparar o memorando para a Diretoria Executiva informando o horário. Meu departamento é extremamente competente, doutor.

— Eles não costumam atrasar — observo. — Rômulo! — chamo meu assistente. — Traga aqueles relatórios que eu tinha separado para assinar enquanto espero. Odeio perder tempo!

Ele sai apressado, e eu escuto o bufo impaciente de Kika Reinol.

— Eu conversei com o Kostas — disparo ao voltar a ler a última página do material, sem olhá-la. — Sinceramente estou ficando cansado dessas rusgas entre vocês. A partir de amanhã, vou solicitar ao Millos que seu setor seja realojado.

— O quê?! — sua voz, um pouco mais alta que o normal, ecoa pela sala, causando um silêncio sepulcral e atraindo minha atenção. Ergo a sobrancelha direita para ela e cruzo os braços sobre o peito, deixando a pasta com os arquivos da apresentação sobre a mesa.

— Não faz mais sentido manter vocês dois tão próximos. — Abaixo meu tom de voz: — Não vou ficar bancando a mamãezinha e separando a briga de vocês como dois fedelhos. Se não sabem se comportar como adultos e profissionais, então não podem conviver no mesmo espaço.

— Isso é muito injusto, doutor! — sua voz, embora baixa, soa completamente irritada. — Eu nunca me meto no trabalho do doutor Konstantinos, embora a recíproca não seja verdadeira!

— Eu sei, Kika — chamo-a pelo apelido para demonstrar que não a culpo. — No entanto, a situação está saindo do controle, e eu não estou disposto a mandar você embora e, embora queira fazer isso com ele, não tenho esse poder.

Kika respira fundo e assente.

— Desculpe-me por estar causando tantos transtornos, doutor Theodoros. — Ela sorri. — Eu não sou uma pessoa difícil de lidar, mas ele...

— Eu sei, não se preocupe com isso.

— Eu espero que... — ela se interrompe de repente, e eu olho para a direção em que está olhando. Vejo a funcionária que saiu há pouco da sala fazendo muitos gestos para sua chefe, mesmo tentando disfarçar quando percebe que a estou observando também.

— Venha até aqui! — chamo-a.

A moça, provavelmente uma estagiária, pois é muito nova, fica vermelha e começa a torcer as mãos ao se aproximar.

— O que houve, Laura? — Kika pergunta.

— Liguei para nosso cliente e... bem... — A menina intercala olhares entre mim e Kika. — Ele disse que ligaram mais cedo cancelando a reunião.

— O quê?! — mais uma vez a voz da gerente ecoa pela sala, e eu fecho os olhos, prevendo mais confusão, pois é óbvio que não foi ela quem mandou desmarcar.

Kostas, seu filho da puta!


— O dia foi uma sucessão de merdas! — xingo ao entrar no carro, notando a expressão debochada de Dionísio.

Afrouxo a gravata e abro o botão torturador da gola da camisa, liberando assim meu pescoço do enforcamento diário. Eu preciso de um uísque! Abro o compartimento no meio do banco de couro da parte de trás do carro, onde estou, pego a garrafa da única marca de uísque que bebo, The Macallan, sirvo uma pequena dose no copo de cristal e respiro fundo antes de degustar a bebida escocesa.

Pela garganta, sinto a leve queimação. Notas de café e mel se misturam e logo se vão, deixando ao final um amargo sabor amadeirado, típico do single malt envelhecido em barris de xerez. A dor de cabeça que ameaça despontar some, e meu pescoço vai amolecendo, a cabeça pousa no encosto do banco e, finalmente, depois de um dia de cão, eu me sinto relaxar.

Ah, o milagre feito por uma dose de uísque de uma garrafa de pouco mais de dois mil reais!

Levanto um brinde imaginário ao meu dia fodido, querendo que ele se vá e que eu consiga livrar todas as tensões e preocupações de minha mente para que possa ter uma noite decente, ao menos.

O riso de Dionísio é de quem entendeu meu ritual, e eu esboço um leve repuxar de lábios, ainda muito rabugento para sorrir de verdade, e tomo mais um gole imaginando chegar a casa, tomar um banho e me submeter às competentes e pesadas mãos de Lavínia antes de trepar a noite inteira de novo.

— O doutor vai direto para seu apartamento?

Abro os olhos para olhar Dionísio pelo retrovisor e confirmo.

— Se o trânsito permitir, espero estar lá em breve. — Tiro o paletó e pego o celular, abrindo minha playlist favorita. — Dio, ligue o aparelho de som.

Em seguida ouço o jazz da incomparável Ella Fitzgerald e solto um suspiro de prazer, o primeiro neste dia desgraçado. Tento não pensar no Kostas, muito menos na enorme vontade de dar umas porradas naquela cara debochada, para não perder o pouco da paz que ouvir Ella e Armstrong cantando Isn’t this a lovely day? me traz.

Ah, como eu amo jazz! Não é à toa que mantenho um enorme piano de cauda no meio da sala principal do meu apartamento, além de ter centenas de discos – sim, são long players – cuidadosamente guardados na sala de som que fiz, com o toca-discos reinando absoluto. Chamem-me de retrô, sinceramente estou me fodendo para o que pensem disso. Prefiro, sim, o som da agulha sobre o vinil, o som encorpado e os ruídos que só um LP podem me proporcionar.

Não sou avesso à tecnologia, não quando sou cercado dela, mas há coisas de que não abro mão, como uma bela comida caseira com ingredientes frescos como comia em Atenas; meus discos, como vocês já souberam; e dirigir meu Aston Martin de câmbio manual.

Ah – sorrio olhando meu copo de scotch –, prefiro single malt a blend em matéria de uísque. Bem conservador para a maioria dos bebedores de hoje.

O trânsito agarra em alguns pontos do caminho da Paulista até o Vila Nova Conceição, onde moro, porém, Dio consegue me deixar na garagem do meu prédio exatamente 30 minutos depois de termos saído da Karamanlis.

Saio do carro levando comigo o paletó e a insuportável – e conservadora – pasta de couro com alguns documentos. Espero o elevador para me levar até o 36.º andar, para a cobertura duplex que comprei há três anos. Como detesto perder tempo, enquanto espero, mando mensagem para a Lavínia, uma deliciosa morena com quem tenho saído há algumas semanas, marcando um encontro com ela aqui em casa.

A resposta chega quando estou dentro do elevador com uma vizinha, e tenho de refrear a língua para não assustar a pobre senhora que me faz companhia neste pequeno cubículo. A safada me mandou uma foto – sem cabeça, como sempre – da sua indumentária de hoje à noite, um conjunto de lingerie sexy e quente que já me deixa completamente duro e ansioso.

Remexo-me desconfortável, porque conheço bem as calças desses ternos modernos, mais apertadas e de tecido mais fino, e escondo a evidência da minha excitação – ou seja, meu pau duro – colocando a pasta e o casaco na frente.

A senhora – cujo nome não sei, pois não conheço a maioria dos meus vizinhos, apenas os cumprimento quando nos esbarramos pelos corredores –, desce no 19.º andar, e eu sigo – livre e excitado – para a cobertura, embora tente me acalmar para não assustar a Vanda, governanta e cão de guarda do meu apê.

— Bem-vindo, doutor — ela me saúda assim que as portas do elevador se abrem no living, e se apressa a pegar minha pasta, deixando-me, como sempre, constrangido por ela ficar carregando peso enquanto eu sigo confortável como um inútil.

— Eu levo a pasta, Vanda, obrigado. — Evito que ela a pegue, mas ainda assim recebo um olhar feroz. — Tudo o que preciso é tomar um banho e daquele seu jantar.

Ela dá risadinhas.

— Já está quase pronto — diz orgulhosa da sua eficiência. — A Sandra ligou confirmando o horário de amanhã, e seu primo virá também.

Assinto, deixando-a para trás enquanto sigo para o quarto. Sandra é minha personal trainer, e nós treinamos juntos três vezes na semana e, às vezes, Millos, que também é seu aluno, adianta seu horário para vir malhar conosco.

Eu gosto de exercícios, sempre gostei. Sou magro naturalmente, e os treinos me ajudam a fortalecer os músculos e a manter um peso proporcional ao meu tamanho. Millos já faz a linha bombado, e isso combina com ele e sua personalidade.

Tenho apenas uma tatuagem, que fiz bêbado demais para lembrar, enquanto meu primo parece um gibi, todo desenhado. Gosto de malhar com ele porque sou competitivo até a raiz do cabelo, e ele não fica atrás, então ficamos medindo forças e levando um ao outro ao limite da resistência.

Minha suíte é enorme e confortável, toda em tons de cinza e azul-marinho, com paredes off-white, concebidas com carinho por uma de minhas parceiras de cama. Tenho sorte de ter conhecido mulheres que, além de ótimas de cama, eram profissionais competentes.

Caminho até o closet e deixo meu terno no local reservado para que Vanda o leve até a lavanderia, uma espécie de bag. Abro a gaveta de gravatas, enrolo a que usei hoje e a coloco no lugar, em seguida fazendo o mesmo com as abotoaduras. Verifico se meus sapatos estão precisando de limpeza e, como estão limpos, pois mal saí da empresa hoje, coloco-os na sapateira e jogo as meias e a cueca no cesto de roupa suja.

Eu sou organizado em casa também. Gosto de ser assim.

Programo o chuveiro, abrindo as duas duchas em direções diferentes, em jatos fortes e frios – está um calor do cão! – e gemo de prazer ao senti-los na pele.

Dia fodido!

Fico um tempo debaixo da ducha principal, avaliando cada momento da confusão que foi o final da tarde no escritório. Primeiro, a tensão entre a Kika e o Kostas, minha discussão com ele e, por último, o pedido de demissão dela.

Merda!

Pelo que posso julgar da personalidade dela, não será fácil convencê-la a voltar, e eu não posso perder outra gerente desse nível na empresa, não mesmo! Penso na discussão com o Kostas, nas palavras duras e verdadeiras que trocamos um com o outro e tento entender por que somos desse jeito. Que maldição é essa que nos mantém separados quando temos tudo para sermos unidos?

Balanço a cabeça, impedindo que me perca nestes pensamentos que nunca levam a lugar algum. Não há o que fazer para consertar anos de muros levantados em torno de cada um de nós. É impossível transpor as barreiras que o tempo e nossa situação ergueram. Não há nada a fazer!

Agora, preciso me concentrar nos negócios e no maldito pedido do pappoús! Tenho que trazer Kika de volta, comprar a porra daquele boteco na Vila Madalena e achar uma mulher que esteja à altura de ser a mãe do bisneto de Geórgios Karamanlis.

Escuto um barulho na porta do banheiro e abro um sorriso ao ver Lavínia parada na entrada. Ela se encosta ao batente, olha meu corpo inteiro com fome brilhando nos olhos e morde o lábio inferior. É o que basta para meu corpo, mesmo sob os jatos frios, reagir.

— Vem aqui! — chamo-a, mas ela nega.

— Finja que não estou aqui... — sussurra. — Deixe-me ver como você toca uma pensando em mim.

Sinceramente tenho vontade de revirar os olhos para ela, mas, para não quebrar o clima, faço o que me pede. Seguro meu pau bem forte e, lentamente, vou deslizando a mão para baixo e para cima, sem nunca tirar os olhos dos dela. O tesão vai aumentando, e eu fecho as pálpebras, evocando as imagens que me fazem gozar rapidamente. Som abafado, cheiro de fumaça, um perfume floral, cabelos cor-de-rosa e uma boceta quente e apertada... Merda!

Abro os olhos e encaro a mulher que me espera, apenas de calcinha e sutiã, roçando contra o batente da porta e gemendo.

— Vem aqui agora, Lavínia! — Abro a porta do boxe.

Ela arregala os olhos por causa do meu tom de voz impaciente e sorri, safada. Mal chega perto de mim, e já a viro contra a parede, seguro firme sua cintura, levantando-a e esfrego meu pau em sua calcinha molhada. Preciso foder essa mulher com urgência! Estico uma das mãos até o nicho onde uma caixa de acrílico guarda alguns envelopes de camisinha – eu adoro foder debaixo d’água, então sou prevenido – e rapidamente encapo meu pau e o afundo dentro dela.

As malditas sensações daquela noite ainda estão em minha mente, rondando-me como fantasmas. Enrolo os cabelos cacheados e negros no meu punho, mas, no ápice do prazer, vejo-os levemente rosados. Porra! Fodo-a com ainda mais força, ouvindo seus gemidos altos e descontrolados, pois sei o quanto ela gosta de trepar sem limites.

Quando a escuto falar que vai gozar, em desespero, aumento as estocadas para me deixar ir junto com ela e aliviar em parte essa fome que nunca cessa.

Foda-se, desconhecida!

 

 

Alguma coisa pinica meu nariz, e passo a mão, mudando de posição sobre os travesseiros. Estou em Atenas, com a família de minha mãe, vendendo peixe e tentando ser homem o suficiente para manter minha promessa. Não importa que eu não esteja preparado, não importa se tive de desistir de tudo, o amor é mais forte que tudo e por isso vou conseguir... vou...

Espirro.

Sento-me na cama, piscando os olhos, perdido no tempo e no espaço. Estava apenas sonhado de novo! Malditos pesadelos que, vira e mexe, estão retornando. Bufo. A vantagem desse é que não chegou ao apogeu do drama, porque alguma coisa... Uma risada abafada me faz olhar para o lado e encontrar um homem de quase 2m de altura, forte como um armário, cheio de tatuagens, com uma maldita pluma na mão.

— Porra, Millos!

O desgraçado cai na gargalhada, e eu me levanto da cama sem nenhum constrangimento diante da minha nudez e sigo para o banheiro.

— Não programou o despertador? — ele pergunta ainda no quarto.

— Programei. — Termino de mijar e dou descarga. — Você me incomodou com sua presença dez minutos antes. — Começo a escovar os dentes, e ele fica à espera. — Lavínia saiu daqui às 4h da manhã.

— Se elas não dormem aqui, não seria mais fácil comê-las em algum local neutro?

Saio do banheiro ainda secando o rosto, pego uma cueca no closet e a visto, voltando para o quarto.

— Não tenho problema algum com minha cama, pelo contrário! Prefiro meu espaço a qualquer outro. — Dou de ombros. — Você que tem essa mania de nunca trepar no seu apartamento.

Ele ri.

— Você sabe muito bem que eu não trepo! — Um sorriso descarado se forma em sua expressão. — Eu as conduzo ao prazer... É diferente!

Reviro os olhos.

— É claro que você trepa, porém, tem a mente mais fodida que a boceta de uma puta, por isso tem essas manias estranhas!

— Não fale do que você não sabe, Theodoros — adverte-me. — Cada um tem seu jeito de obter prazer; o meu é esse.

Concordo com ele, mesmo achando alguns de seus gostos um tanto estranhos demais para mim. Chame-me de conservador nisso também, mas tenho alguns limites bem definidos em relação às minhas fodas.

Millos me espera no quarto enquanto visto a roupa do treino, falando sobre um novo modelo da Ducati que está pensando em importar. O homem é completamente viciado em motos, faz parte de motoclubes e, nas férias, sai cortando estrada com esse pessoal. Já percorreu grande parte da América do Sul sobre duas rodas, fez a Route 66 nos Estados Unidos e percorreu toda a BR 101 aqui no Brasil.

Além disso, é obcecado por cerveja e fez vários cursos nessa área no mundo todo, produzindo sua própria bebida, buscando o sabor perfeito que seu paladar exigente ainda não encontrou em nenhuma marca já disponível. O desgraçado entende tanto do assunto que é convidado para festivais e fez parte do júri de vários campeonatos de mestre cervejeiro.

Millos mora em um loft, um antigo galpão que ele reformou todo. Na parte debaixo guarda suas motos e tem uma pequena oficina; na de cima, sem nenhuma divisória, ele tem uma confortável sala, uma cozinha industrial com os tonéis de cobre para a fermentação de sua cerveja e o quarto, onde nunca leva uma mulher para trepar.

Ah, esqueci... ele não trepa!

Tomamos juntos um suplemento de carboidratos pré-treino enquanto Vanda escuta alegremente as conversas de Millos sobre sua última experiência culinária – carne de rã marinada com cerveja – fazendo careta a cada vez que ele descreve o anfíbio sendo tostado na grelha.

Quando Sandra chega, já estamos os dois no segundo andar da cobertura, onde apenas uma enorme parede de vidro separa a academia da área de lazer com piscina, jacuzzi e área com churrasqueira gourmet.

— Bom dia, meninos! — Millos ri do cumprimento, porque a personal deve ser uns bons anos mais nova que nós dois, porém, sempre nos cumprimenta assim. — Prontos para suarem a camisa?

Um olha para o outro sem saber o que responder, pois nenhum usa camisa.

— Figura de linguagem, rapazes! — Rola os olhos. — Vocês, gregos, são muito literais!

Ela liga o som; uma música calma enche todo o ambiente.

— Bora alongar!

Bufo impaciente, mesmo sabendo da importância de preparar os músculos para os exercícios intensos, querendo dar uma surra no Millos hoje.

Vamos ver quem vai pedir arrego, meu primo!


Depois que terminamos o treino, tomamos nosso café da manhã antes de sair para o trabalho.

Millos sempre se veste aqui quando vem treinar comigo, então há sempre alguma roupa dele no quarto de hóspedes. Em poucos minutos o homem tatuado, debochado e um tanto sombrio desaparece, e ele assume seu papel de executivo calmo, frio e competente. A camiseta manchada, os jeans rasgados e os coturnos – roupa com que veio aqui antes de vestir a de malhar – dão lugar ao terno italiano, sapatos de couro, camisa de algodão egípcio e gravata de seda. Os cabelos revoltos estão no lugar, penteados para trás com algum tipo de pomada que os deixa fixos, a barba foi penteada e o brinco de argola dá lugar a um pequeno ponto na orelha, quase imperceptível.

Sinceramente não sei se ele adotou esse personagem para trabalhar com o pai, meu tio, ou se é algo que ele prefere fazer para não chocar ou causar descrença em nossos clientes. Realmente nunca entendi, e ele também nunca quis explicar, então não sei o que se passa na cabeça desse Millos Karamanlis executivo. O que me importa é que ele é meu braço direito, aquele em quem confio de olhos fechados nos negócios, porque, mesmo sendo tão diverso de sua personalidade, a frieza do executivo Millos é o que nos ajuda a controlar alguns incêndios dentro da Karamanlis.

— Soube da merda do Kostas dessa vez? — indago assim que entramos no carro, com Dionísio a dirigir.

— Como não saberia? A história correu pelos corredores da empresa no final da tarde de ontem. — Ele puxa mais a manga de sua camisa a fim de esconder as tatuagens do pulso. — A senhorita Reinol pediu mesmo demissão?

— Pediu! — Rio. — Foi uma saída de rainha no meio da discussão e com direito a água gelada na cara! — Gargalho. — Confesso que, se fosse café quente, eu teria sentido um pouco mais de prazer, mas nem tudo é perfeito.

— Porra, Theo, o Kostas está incontrolável, e eu não entendo o motivo. — Eu o encaro franzindo a testa, porque nunca falamos do meu irmão sem ser em termos profissionais, mesmo sabendo que Millos é quase um confidente de ambos. — Ele mudou muito nesses dias, parece... sei lá, encurralado.

— O Kostas encurralado? — debocho. — Aquele filho da puta é mais frio que uma pedra de gelo! O que poderia mexer com ele a ponto de deixá-lo assim?

Millos respira fundo e dá de ombros, fechando-se em copas novamente, como sempre faz quando o assunto é a vida pessoal dos meus irmãos. Esse jeito dele, essa lealdade toda me conforta e me frustra ao mesmo tempo. Sei que ele não comenta com os outros as coisas que lhe conto, mas gostaria de saber mais do que se passa com meus irmãos mais novos, principalmente Alex e Kyra.

Independentemente do que eu queira, sei que, por ele, nunca vou ficar sabendo de nada, e uma aproximação entre mim e meus irmãos é coisa muito improvável, então finjo não ligar para isso, mas sinto a culpa apertar meu peito a cada vez que algumas lembranças voltam.

— Seu assistente já confirmou sua presença no baile dos Villazzas no Ano Novo? — Assinto. — Não sei se vou. No último a que fui, eles ainda estavam em Curitiba!

— Muitos anos, já! Não tenho como não ir, sou amigo do Frank e quero ajudar a instituição do Bernardo Novak, que é uma das eleitas deste ano para receber parte das doações.

— Ah, sim, isso eu também quero fazer. A empresa da Kyra é quem está organizando, você sabe? — Balanço a cabeça positivamente. — Foi por isso que ela não pegou a festa da Karamanlis este ano...

— Foi a desculpa que ela deu, na verdade — corto-o. — A empresa dela já está crescendo sozinha, ela já pode se dar ao luxo de dispensar um contrato conosco e, assim, manter-se cada vez mais distante.

— Que seja... — Ranjo os dentes de raiva por ele não comentar nada. — Estou pensando em fazer um recesso entre o Ano Novo e a segunda semana de janeiro. — Millos estica as pernas, gemendo lentamente, e um sorriso de vitória me escapa. Está dolorido, desgraçado? — Ainda não sei se vou até Frankfurt conversar com um mestre cervejeiro de lá ou se faço alguma viagem longa de moto, mas estou querendo ficar fora dos negócios por um tempo.

Sinto uma pontada de inveja dele, pois costumo tirar no máximo uma semana de descanso entre as festas – Natal e Ano Novo –, e a única viagem que consigo fazer é ir até a Grécia para visitar o vovô, e nesse ano, como irei viajar em fevereiro no ano que vem para o aniversário dele, não vou tirar sequer essa semana de recesso.

— Eu não vejo problemas. Esse período é o mais devagar na empresa. — Ficamos um tempo mudos, apenas ouvindo o som do aparelho do carro tocando alguma estação de rádio. — Eu vou fazer aquele filho da puta ir atrás da Kika!

Millos me encara, olhos arregalados, e não por causa da fala inesperada depois do silêncio que fizemos.

— Eu acho que isso vai dar mais merda do que já deu.

Sorrio.

— Não, ele vai ter que pedir desculpas e prometer se comportar. — Encaro Millos, olhos brilhando, pensando em como obrigar o meu irmão arrogante a fazer minha vontade. — Preciso da sua ajuda!

 

 

Meu humor melhorou drasticamente depois da conversa com o Millos no carro e o plano que arquitetamos para fazer aquele idiota prepotente consertar a merda que fez aqui na empresa. Fazer Kostas ir até a Kika para implorar que volte será bom para mim por dois aspectos: terei minha gerente de volta e ainda colocarei meu irmão no seu lugar, abaixando um pouco sua crista de galo de briga.

Rômulo está irritantemente quieto hoje, e desvio o olhar a toda hora para sua mesinha apenas para conferir se o tagarela está bem e respirando. Hoje a empresa está um pouco sombria. Os funcionários estão falando mais baixo, há menos pessoas nos corredores, e os setores estão funcionando bem, mas sem o ritmo frenético a qual todos estamos acostumados.

Uma apatia geral tomou conta do lugar, e o clima aqui dentro está tão opressivo que me sinto sufocando algumas vezes. É como estar de luto, e isso é uma coisa incrível, pois bastou uma funcionária querida pedir demissão para parecer que o sol se pôs dentro deste prédio.

Preciso dessa mulher de volta!

Se o babaca do meu irmão não conseguir o feito de reintegrá-la à equipe, vou ter que jogar sujo e recorrer a Malu Ruschel lá no meio daquele mato onde vive. Espero conversar com ela para que convença sua amiga a voltar para nós.

Levanto-me, sentindo a tensão sobre meus ombros e meu pescoço duro. Ponho a culpa na tensão, nunca admitindo que a disputa ferrenha com Millos no treino de hoje de manhã me causou isso. Tenho 41 anos, não sou um garotão, mas sempre me consolo dizendo que pratico exercícios há muitos anos, então meu corpo está acostumado.

A verdade é que os anos estão realmente passando, e talvez eu esteja sentindo os efeitos do deus Cronos no corpo. Noitadas de sexo, balada e exposições têm me deixado cada vez mais cansado, além disso, comecei a notar que tenho necessitado de mais horas de sono do que precisava antes. Talvez tenha que ir a algum médico fazer um check-up ou buscar um geriatra.

Dou uma risadinha baixa, achando graça do meu humor negro. Fui contagiado pelo clima de enterro da Karamanlis, e esse silêncio todo me faz divagar. Gosto e estou acostumado à correria, a Rômulo transitando em volta de mim como mosca de padaria, sempre prestativo, falante e, na maioria das vezes, incômodo.

Porra, estou sentindo falta até da inconveniência dele!

Caminho até a vidraça da sala, olho a Paulista movimentada de carros lá embaixo e volto a refletir sobre a vida, principalmente a profissional. Já faz anos que assumi o cargo de CEO da empresa, anos que vim morar no Brasil, e, apesar de tudo isso, algumas coisas continuam como antes: o trabalho intenso, a desarmonia entre os irmãos Karamanlis, meus hábitos noturnos, hobbies e, claro, a maldita conta da Vila Madalena. A confusão de ontem desviou um pouco minha atenção desse objetivo, mas não posso perder o foco, não quando estou cada vez mais perto de conseguir comprar o maldito boteco!

— Rômulo — chamo-o sem olhar em sua direção. — Peça ao Millos para que venha até aqui, por favor.

— Ele estava em reunião com o doutor Kostas... — Viro-me para encará-lo, e o homem franzino e de óculos fundo de garrafa arregala os olhos. — Eu vou ver se ele já retornou.

Meu assistente sai todo atabalhoado do escritório, deixando alguns post-it caídos no chão marcando seu caminho como na história de João e Maria. Respiro fundo para não me irritar com ele, pois, apesar de um tanto fofoqueiro e atrapalhado, ele é muito eficiente, não posso negar. Apesar de todos os incômodos, eu não o trocaria por nenhum outro.

Volto a pensar na Vila Madalena e que Millos ficou de levantar as condições para executarmos a promissória assinada pelo falecido proprietário do bar. Preciso saber em que pé estamos para traçar novas estratégias de ataque, afinal, quero começar o próximo ano já com essa conta fechada e, assim, ter menos uma coisa a torturar minha cabeça.

Escuto passos apressados, típicos do meu assistente, e a porta se fechando.

— Ele já vem, doutor — diz resfolegando, o que demonstra que foi correndo até a sala do meu primo. Quanta falta de sutileza!

Balanço a cabeça, segurando o riso debochado ao imaginar a cena, e lhe agradeço:

— Obrigado.

Enquanto espero, decido tomar o... (não lembro quantos já foram hoje) café do dia. Sigo até a máquina de café expresso que fica no aparador de bebidas e coloco uma cápsula de um blend de cafés no modo ristretto enquanto aguardo meu primo. O cheiro agradável enche o ambiente do escritório, deixando-o menos opressor e mais acolhedor. Aspiro a fragrância lentamente, apoiado no aparador, olhos fechados e absorvendo o prazer que essa bebida me proporciona. Sim, sou viciado em café!

— Theo? — Millos bate à porta, tirando-me do transe gourmet. — O que houve?

Faço um gesto para que ele entre e aponto para a máquina, que está passando dois do néctar de café que mais gostamos. Um ristretto só é possível quando a máquina tem a pressurização correta e os grãos são de qualidade. O pó sai praticamente seco, tamanha a velocidade que a água fervente passa por ele, extraindo o melhor do grão.

Nunca me acostumei ao jeito brasileiro de tomar café longo ou mesmo o famoso carioquinha, acrescentando água para diluir a bebida. Preciso sentir o sabor do grão, as notas intermediárias dele e as que ficam depois na boca. No caso desse blend que fiz, há um leve frutado que diminui a acidez e depois resta na boca um sabor mais forte, tal qual chocolate amargo.

Pego a xícara de Millos e a entrego para ele.

— Como foi com o Kostas?

Millos relaxa, sentando-se numa das cadeiras em frente à minha mesa e se encostando nela, desfrutando do cheiro do café.

— Acho que mordeu a isca. Só espero que ele saiba convencê-la. — Dá de ombros. — O que mais você quer?

— Vamos beber o café primeiro. — Pego a outra xícara e tomo um gole. — Quero notícias sobre a promissória da família Hill.

— Ah... — Ele sorve lentamente a bebida quente, deixando-me em suspenso com sua resposta. — Encorpado e naturalmente doce, perfeito! — elogia o café.

— A máquina faz tudo! Para de enrolar e fala logo.

O desgraçado ri, tomando mais um gole.

— Kostas estava analisando, mas, com essa confusão toda... — Eu xingo, e ele sorri mais uma vez. — Estou pensando em fazer uma visitinha a Duda Hill de novo. Vamos?

— Eu não tenho nada a tratar com ela. Quero executar a porra da promissória e expulsá-la de lá! — Deixo o café de lado, contrariado demais para apreciar seu sabor. — Já estou esperando por isso há muito tempo, Millos. Estou começando a perder a paciência.

— Eu acho que você deveria tentar conversar com ela. — Franzo o cenho, sem entender. — Dizer que temos a promissória e que vamos executá-la, mas oferecer a ela a chance de comprar antes de irmos à justiça.

— Por que eu faria isso?

Realmente não entendo o que Millos quer com essa sugestão. Oferecer a promissória para ela pagar? Como se ela tivesse condições de arcar com o valor exorbitante sem vender o maldito bar! Se a pressionarmos demais, ela pode acabar vendendo para outra pessoa, e aí teríamos que começar as negociações do zero. Isso nunca!

— Por que você quer tanto aquele quarteirão? — indaga-me, fazendo com que eu o olhe surpreso.

Ficamos um tempo assim, encarando um ao outro, apenas o som da digitação do Rômulo a pairar sobre nós. Tento procurar um motivo mais forte para comprar o lugar, mas não consigo achar nenhum convincente o suficiente para desviar a atenção dele da verdade. Não quero nada ali, nem tenho sequer ideia do que fazer e para quem oferecer, mas é uma conta deixada pela gestão do meu pai, o que me impulsiona a querer comprar apenas para esfregar em sua cara que eu consegui, que o derrotei.

— Consiga comprar a merda do bar — digo entredentes, a voz baixa e sem desviar meus olhos dos dele. — Meus motivos não interessam, é uma conta aberta que prejudica a reputação da empresa, e, como CEO, não posso deixar isso acontecer.

— Justo! — Ele se levanta. — Vou fazer tudo o que estiver ao meu alcance para satisfazer a sua vontade e não prejudicar a reputação da empresa no mercado.

Aquiesço, porém, não satisfeito, reconhecendo certo sarcasmo em sua voz.

— Millos. — Ele me encara. — Eu preciso fazer isso.

Meu primo bufa.

— Eu sei, Theo. — Caminha até onde estou e toca em meu ombro, falando baixo para que apenas eu o ouça: — Eu queria mesmo que você não precisasse, assim como não achasse que deve ao pappoús até a sua alma! — Faço careta e abro a boca para defender nosso avô, mas ele continua: — Eu sei que você precisa disso e vou ajudar no que puder.

Agradeço mesmo não emitindo nenhuma palavra. Conhecemo-nos há tantos anos, já passamos por tantas coisas juntos que não é necessário que sempre haja palavras entre nós.

Millos sai da sala, deixando-me sob os olhares curiosos de Rômulo, que provavelmente ouviu os sussurros e ficou de antena ligada atrás de uma notícia quente.

— Volte ao trabalho, Rômulo! — admoesto-o.

Ele fica vermelho e abaixa a cabeça para volta a digitar no computador.

Preciso arranjar uma sala isolada para esse língua de trapo! Ah, se não fosse competente!

Sento-me à mesa e olho para a tela do computador, onde um contrato já ratificado pelo jurídico está à espera da minha assinatura eletrônica. Esse dia não está sendo fácil, embora o trabalho continue normalmente como em todos os outros. Não compreendo o motivo, talvez por ter conseguido a maldita promissória, mas a vontade de conseguir comprar o boteco e o colocar no chão tem estado constantemente em minha cabeça. Muito mais do que o normal!


Os cheiros se misturam aos sons em um caos perfeito, quase sistêmico, se for possível considerar que alguma confusão possa ter um padrão implícito. Há um ritmo a ser seguido, um conjunto de ações e reações em cadeia que faz com que todo o nosso processo ande em harmonia.

É assim a minha cozinha!

Respiro fundo mais uma vez, espantando o cansaço e buscando energia para continuar. Estou empreendida neste ritmo desde às 2h da tarde, quase 12 horas direto, mas envolvida em todos os passos da organização e funcionamento desde às 8h da manhã, quando acordei.

Ser chef de cozinha não é só glamour, quer dizer, nunca foi! O que as pessoas veem na televisão, os grandes cozinheiros que aparecem na mídia com seus restaurantes renomados, a maioria agora é só empresário, cozinha vez ou outra, mas todos já ralaram muito para conseguir algum nome.

Quando decidi ser chef, eu tinha oito anos de idade, estava na cozinha da minha avó materna no interior e fiz meu primeiro bolinho de chuva regado a açúcar e canela. Abro o sorriso por causa da força das recordações. As lembranças olfativas e gustativas, na minha opinião, são as estrelas do cérebro. Quem nunca pensou num prato e na lembrança pôde sentir seu cheiro e o sabor? Quem nunca foi transportado a uma lembrança afetiva ao comer? Eu sempre acreditei nesse poder e, a partir daquele dia, na casa da minha avó, percebi que queria deixar essa marca na vida das pessoas.

Foi o último ano com minha mãe. Ela já estava doente, câncer de mama, e o clima em casa não estava dos melhores. Papai andava deprimido, o bar não estava indo bem o suficiente para arcar sozinho com as despesas depois que ela teve que parar de trabalhar na cozinha, e meu irmão – com 14 anos na época – andava estranho e pelos cantos.

Estávamos em férias escolares, e vovô foi nos buscar para passar umas semanas com eles. Imagino o quanto estava sendo duro ver a filha definhando aos poucos, perdendo a luta contra essa doença tão dura. Diagnóstico atrasado, demora no acesso ao tratamento, tudo isso contribuiu para que ela vivesse seis meses depois da descoberta do câncer.

Metástase, a palavra que mais me dói ouvir até hoje.

Meu maior medo também.

A tristeza e o desânimo tomaram conta da família assim que o médico contou ao papai que o estágio era terminal. A mastectomia, o esvaziamento total das duas mamas, não foi suficiente para ela, pois as células cancerígenas já haviam se espalhado pelo abdômen. Tudo o que podíamos fazer era tentar dar a melhor qualidade de vida possível aos poucos meses que lhe restavam.

Minha mãe, Maria Aparecida Braga Hill, era a pessoa mais forte e alegre que eu conheci. Era a luz da nossa casa, a razão da vida do meu pai, quem eu queria ser quando crescesse. Sua doença não diminuiu suas características e, naquelas férias, ela pegou meu primeiro feito culinário – um tanto cru por dentro e tostado por fora –, colocou-o na boca e revirou os olhos de prazer.

— Hummm, Duda, tem o sabor da minha infância! — Sorriu.

— Ficou um pouco queimado... — tentei argumentar, desculpando-me.

— Isso é questão de prática, princesa! — Ela se abaixou para ficar da minha altura, seu corpo bem magro, olhos fundos e com olheiras, o lenço na cabeça. — O importante não é só a aparência da comida; são as sensações que ela nos traz, o que ela nos faz sentir. — Pegou mais um dos meus tristes bolinhos. — O seu bolinho de chuva me fez voltar a ser criança, encheu meu peito de alegria, e é isso que importa.

Abracei-a, orgulhosa, sentindo-me quase uma heroína por ter feito tudo isso por ela com apenas farinha, água, ovos, açúcar e sal. Minha cabeça infantil imaginou como ela se sentiria se eu lhe fizesse um prato como aqueles que via em suas revistas de culinária. Mamãe ficaria tão feliz!

Foi a partir desse dia que passei a me interessar pela comida, pelos ingredientes, pela mágica que a mistura dos sabores proporcionava.

Muito tempo depois que ela nos deixou, suas palavras, a felicidade em seu rosto e o carinho do seu abraço ficaram marcados em mim. Eu queria essa sensação novamente, eu precisava sentir que algo que fazia era capaz de tornar a vida de alguém mais feliz.

Aos 13 anos insisti com o papai para trabalhar no bar. O Hill era um boteco mesmo, no sentido mais estrito da palavra. Os frequentadores eram pinguços que se encostavam ao balcão do bar quando papai abria e só iam embora expulsos quando ele decidia fechar. Tudo o que servíamos era torresmo, ovo colorido e alguns caldos que fazíamos em dias programados. Segunda e quarta era dia de mocotó; terça e quinta era bucho, e o final de semana era inteiro da rainha do Hill: a feijoada.

Um cozinheiro muito louco, mas com o tempero mais incrível que eu já provei, era quem comandava a cozinha quase doméstica do bar. Ele foi meu primeiro carrasco e logo me colocou na limpeza, frustrando meus planos de ser a estrela do Hill. Assim, ficava horas depois do colégio a lavar a louça – que não era pouca, porque o homem era bagunceiro – e limpar o chão.

Ainda lembro que a primeira coisa que ele me pediu para fazer – que envolvesse o preparo de alimentos – foi picar temperos. Chorei descascando cebolas igual a quando assisti ao filme Titanic na TV e cortei o dedo algumas vezes. O filho da mãe ria toda vez que eu gemia ou xingava, mas não desisti.

Em pouco tempo ele estava me ensinando as poucas técnicas que sabia, obtidas com a experiência de trabalhar em cozinhas desde seu primeiro emprego. Meu carrasco virou meu anjo da guarda, e, toda vez que papai ameaçava me proibir de ir para o bar trabalhar, ele me defendia dizendo que precisava da minha ajuda.

Foi por causa dele que pude estudar fora. Quando fiz 15 anos, papai queria fazer uma festa para comemorar, mas Dalto – o cozinheiro anjo da guarda – conversou comigo sobre cursos de gastronomia e citou a França como referência. Meu presente foi o curso de francês, segundo ele, necessário para me abrir as portas.

Aos 18 anos comecei a cursar a graduação em gastronomia, um orgulho para meu pai, que, àquela altura, já acreditava que eu conseguiria ser uma grande chef. O curso durou quatro semestres, e, aos 21 anos, já trabalhando como ajudante de cozinha em um restaurante de uma rede internacional de hotéis, consegui um feito incrível, uma bolsa para estudar na mais famosa escola de Paris.

Eu tinha tudo o que sempre sonhara, consegui passar num processo seletivo muito criterioso, esforcei-me durante anos para aprender a língua, ganhei a bolsa, mas não tinha grana para viajar e me manter por lá. Nessa época papai tinha um carro seminovo, e não pensou duas vezes antes de vender o veículo e me entregar todo o dinheiro para que eu pudesse passar os meses do curso sem apertos.

Fiz contato com outra moça brasileira que já morava em Paris e consegui alugar uma vaga em seu apartamento, perto do instituto. Foram os melhores meses da minha vida! Dediquei-me de corpo e alma àquilo, ignorei tudo. E a recompensa veio!

Um mês antes de concluir o curso, fui convidada a integrar a equipe de um grande restaurante na capital francesa. Cargo pequeno, salário baixo, mas o primeiro degrau para a realização de todos os meus sonhos de menina.

— Duda! — Manola, meu braço direito aqui na cozinha agitada desse pub que já foi um boteco, me grita, tirando-me do flashback no qual estava. — A cozinha fecha em meia hora, e estamos cheias de pedidos ainda. Não estou achando o molho extra que você tinha preparado mais cedo.

Seco minhas mãos no avental e vou até a pequena câmara fria que instalei aqui há pouco mais de um ano. O investimento foi caro, mas valeu cada centavo, pois consegui armazenar mais ingredientes e de uma forma muito mais segura do que no freezer.

Entrego o molho que preparei mais cedo para Anabele, uma das assistentes de cozinha, e volto a olhar a costelinha de porco no forno, a última da noite.

Estou cansada mais do que o normal, pois tive mais uma noite insone. Tem sido difícil dormir em casa, e, mesmo quando tudo está calmo, pego-me sem nenhuma vontade de fechar os olhos. Nós temos estado em um ritmo alucinante desde que o Hill caiu nas graças do pessoal aqui na Vila Madalena e chamou a atenção da imprensa especializada. Saímos em algumas revistas, ganhamos destaque, mas ainda assim sinto como se andasse no fio da navalha todos os dias.

Não trabalho tanto para enriquecer, apenas preciso manter um teto sobre minha cabeça, o mínimo de estrutura para minha tia Do Carmo e para Tessa e conseguir saldar todas as dívidas deixadas pelo meu irmão e pelo papai.

Uma dor enorme me invade toda vez que penso nos dois. Minha família se desintegrou por completo! Primeiro, mamãe, levada pelo câncer, depois meu irmão, que nunca se recuperou da perda dela e se afundou nas drogas, morrendo de overdose e, por fim, papai, há alguns anos, devido a problemas cardíacos.

Meus avós maternos se foram ainda na minha adolescência, restando a mim apenas a tia Do Carmo e a Tessa. A sorte é que conto com todos aqui como se fossem da família.

Manola é, além de meu braço direito, uma grande amiga. Tenho muito orgulho dela, principalmente por nossas histórias serem tão parecidas em alguns pontos. Ela é filha do Dalto, o “carrasco” que me ajudou a ser a chef que sou hoje. O pai dela vive ainda em São Paulo, mas está aposentado, e, uma vez no mês, fazemos um almoço aqui no Hill, e é ele quem cozinha, deliciando-nos com seu tempero único.

O Arnaldo é nosso faz-tudo, aquele que nos mata de rir com suas piadas bem contadas, que faz as melhores carnes do mundo e que vive sendo consolado por todos por seu infortúnio no amor. Sua grande paixão foi o Marlon, um segurança que trabalha aqui no Hill algumas vezes na semana, mas o homem nunca lhe deu chances. Sofríamos com aquele amor platônico todo, essa é a verdade!

Além desses dois, que são cozinheiros incríveis, temos duas técnicas em gastronomia que sonham em se tornar um dia chefs de grandes restaurantes: a Cláudia, responsável pelas sobremesas da casa, e a Anabele, mestre dos molhos.

Aqui no Hill nós não temos cardápio de restaurante, é de bar mesmo! Bolinhos variados, anéis de cebola empanados, batatas feitas de várias formas e, claro, nossas porções de carne. O carro-chefe são as asas de frango com molhos, uma receita que aprendi com um americano e que caiu no gosto da nossa clientela.

Claro que, com um cardápio tão “tradicional” assim, nós nunca teríamos nos destacado se não fosse a constante variação que fazemos nas receitas. Inventamos onions rings recheadas com vários sabores; batatas com muitos tipos de coberturas, e nossas carnes sempre têm algum molho ou tempero especial.

Além disso tudo, eu conto com o Kiko, o mestre em drinques que encontrei há alguns anos servindo numa barraca de festa, fazendo freelance. Notei o talentoso bartender que ele era e não me arrependo nada disso. O homem é demais, além de ser um grande amigo.

No bar, ele trabalha com mais três ajudantes, que se encarregam de toda a bebida do pub e do controle do estoque. Kiko é um ótimo gerente, dei esse posto a ele por puro merecimento, demonstrando minha admiração. Ele sabe trabalhar em equipe, é muito organizado, sabe contornar conflitos e ter pulso firme com o time de vinte garçons e garçonetes que temos na casa.

O pequeno boteco ao estilo “pé sujo” hoje é uma empresa que gera renda e mantém dezenas de famílias.

Esse é mais um dos motivos pelos quais não posso fraquejar e deixar que as dívidas deixadas pelo papai e pelo meu irmão me façam perder tudo. Principalmente para os Karamanlis!

Respiro fundo só de pensar naquele bando de engravatado abutre rondando o pub como se ele fosse um animal agonizante prestes a perecer. Eu vendo o bar para qualquer um que quiser continuar o negócio, não importa que não seja meu – embora isso me doa –, mas nunca para eles.

Falta pouco para eu quitar a dívida do meu irmão. Papai começou a pagar ainda vivo, e eu continuei os pagamentos depois da morte dele. Devo a um traficante! Esse não é o tipo de pessoa a quem alguém quer dever, então os pagamentos precisam ser feitos religiosamente.

Mais um mês, e isso acaba!, penso aliviada.

Leonan – meu credor – me garantiu que, depois da dívida quitada, não haveria mais o nome da família Hill nos cadernos dele, e eu acredito que mantenha sua palavra. Para qualquer pessoa, essa minha fé em um traficante, quando meu irmão morreu de overdose, pode parecer contraditória, mas tem explicação. Quando João Pedro chegou ao fundo do poço e ficou fora de casa por mais de um mês, papai se desesperou e foi atrás do Leonan. Ele não fornecia mais nada ao meu irmão, mesmo porque JP já usava crack, droga com que ele não “trabalha”, porém, o homem conhecia todo tipo de “fornecedor” e a galera que se amontoava na cracolândia.

Acharam meu irmão lá, e meu pai, mesmo sem nenhuma condição financeira, levou-o para uma clínica de reabilitação. Pasmem, mas quem emprestou o dinheiro para financiar a recuperação foi o Leonan, e é por isso que eu lhe pago até hoje, mesmo porque ele se arriscou muito emprestando esse dinheiro, uma vez que é apenas um dos “gerentes” da boca.

Nós tentamos, mas JP não conseguiu se reerguer.

Quando voltei de Paris, ele já estava de novo vivendo nas ruas. Papai estava desesperado, doente, e eu, mesmo frustrada por ter dado tudo errado no meu sonho de viver na Cidade Luz e ser uma chef reconhecida, fiz a promessa de fazer qualquer coisa por eles. Cheguei precisando de apoio e consolo, e, mesmo em meio a toda essa situação – que ignorava até voltar para casa –, meu pai me recebeu de braços abertos.

Meu irmão foi encontrado morto na rua, um choque e, ao mesmo tempo, um alívio para nós. Ele estava irreconhecível, doente, parecendo ter o dobro da idade que tinha e sofrendo muito. O vício é uma doença, e o crack é quase uma sentença de morte. Pouquíssimas pessoas conseguem se livrar dele, e é por isso que, quem consegue, merece receber todo apoio e consideração, porque é uma luta enorme, uma superação.

Papai estava medicado, tocava o bar, e eu voltei a trabalhar na cozinha e comecei a mexer nos cardápios. No princípio ele não gostou muito, mas depois foi aceitando a ideia de modernizar as coisas. O dinheiro começou a entrar, porém, sempre que eu tocava no assunto reforma, ele desconversava.

Só descobri que ele era viciado em jogo logo depois do funeral, mas apenas soube o tamanho do problema há dois anos, quando recebi a “visita” de um dos agiotas que emprestou dinheiro a ele. Ele devia muito!

Tentei ir pagando ao longo desse tempo, no entanto, os juros que ele praticava só tornaram tudo uma grande bola de neve. Eu estava enxugando gelo e totalmente sem saída. Se vendesse o Hill, conseguiria quitar a dívida, mas como iria continuar mantendo as pessoas que dependem de mim e que necessitam desse trabalho? Além disso, esse é o único legado da família que me restou, pois a casa do meu pai, onde moro hoje, fica no andar de cima e faz parte da propriedade.

Eu tinha esperança de conseguir quitar a débito e fiz um investimento futuro que poderia me render um dinheiro suficiente para amortizar todos os juros e depois eu tentaria renegociar a dívida, mas algo aconteceu.

Fui tentar pagá-la há alguns meses, e, simplesmente, o agiota não me atende. Sempre entrei em contato pelo único número que ele me deixou. Entretanto, é como se nunca tivesse existido.

Um frio percorre minha espinha ao imaginar os prováveis motivos para que o homem não me atenda mais, e eu temo pelo que possa me acontecer.


A noite começou com correria. É sempre assim quando vou à abertura de um vernissage ao qual estou patrocinando. Dessa vez não será pintura, mas sim um jovem escultor descoberto em Paraisópolis que faz seu trabalho com argila, sucata ou qualquer outro material que possa transformar em arte.

Antes ele vendia suas esculturas como artesanato em uma feira de rua, e um dos meus contatos no mundo das artes me ligou assim que viu o material dele. Claro que o rapaz, de apenas 21 anos, tinha muito a se refinar ainda, mas era claro como o dia o talento que tinha para transformar em realidade tridimensional qualquer coisa que viesse à sua imaginação.

Assim que conversamos, propus que ele fosse estudar com um amigo meu, um megaescultor brasileiro cujas peças estão no mundo todo, e assim comecei a organizar seu caminho até o dia de hoje. Viviane, meu braço direito nos negócios com artes, levou-o a várias exposições, workshops, festas e qualquer outro evento que o ajudasse a fazer networking. Enquanto isso, ele estudava, e eu bancava suas despesas e o local onde trabalhava.

Dez meses depois ele já tinha uma quantidade absurda de material de qualidade surpreendente para ser apresentado, e Viviane começou, então, a organizar a exposição, a espalhar uma coisinha aqui e outra ali sobre ele, a mostrar – mesmo que de relance – algumas das melhores peças dele a colecionadores a fim de deixá-los curiosos.

Claro que exatamente essas peças são as que eu já separei para minha coleção particular, que já serão mostradas como vendidas nesta noite, causando assim alvoroço e incitando os outros compradores a adquirirem mais esculturas.

É assim que esse mercado funciona. Geralmente quem é colecionador é também um competidor nato e, ao saber da compra de um item que gostou, começa a sentir medo de ficar sem uma peça daquele artista e, mais tarde, ele se revelar o novo Michelangelo. É por isso que eu sou louco por essa área, por esse jogo pensante e cheio de estratégias como o de um tabuleiro de xadrez. Primeiro, preciso enxergar o potencial artístico de uma pessoa, depois é só começar a jogar e colocar cada peça em seu devido lugar até vencer o jogo.

Ah, não pensem que faço isso por caridade, claro que não! Eu sou um investidor, então tudo o que faço pelo artista está em contrato, e depois sou ressarcido de acordo com o sucesso obtido. Todavia, em algumas situações ocorrem contratempos que impedem o acordo de seguir em frente, nesse caso fico no prejuízo, e o artista volta a se virar sozinho. Meus prejuízos até hoje foram ínfimos diante do que já lucrei nesse negócio, por isso gosto cada vez mais de jogar esse jogo.

O único problema é conciliar meu trabalho burocrático na Karamanlis com a agenda que tenho que seguir, afinal, não “apadrinho” apenas um artista, geralmente tenho umas dezenas em vários estágios de preparação e sucesso. Por isso não dispenso a Viviane, pois ela coordena toda a agenda desse pessoal – excêntrico o suficiente, vale ressaltar – tão heterogêneo.

É uma empresa paralela que nem leva meu nome, porque há um impedimento no estatuto da Karamanlis de o CEO pertencer à diretoria, conselho ou ser sócio de qualquer outra empresa. Então, para todos os efeitos, Viviane Lamour é a dona, e eu, apenas um admirador, além de seu amante, como todos comentam.

Rio ao pensar nisso, dando o nó na gravata-borboleta de frente para o espelho. Conheci Viviane numa festa dada por um pintor muito louco, e ela, obviamente, chamou-me a atenção por seu belo porte, cabelos cortados bem curtos e com a franja alongada, completamente platinados a ponto de serem brancos, destacando sua pele morena. Por si só, ela já é uma obra de arte, de bom gosto, apenas para apreciação de pessoas com senso refinado e olhar crítico.

Saímos algumas vezes, fodemos na maioria delas, mas depois nos tornamos amigos, e o tesão passou. Hoje fico até incomodado com o jeito como ela me trata, como se eu fosse seu confidente, uma espécie de mulher ou amigo gay a quem ela conta detalhes íntimos (excitantes ou asquerosos). Nós nos divertimos juntos, já saímos com a mesma mulher ao mesmo tempo, e eu já a dividi com outro cara, mas tudo na base da amizade e sem nenhum tipo de amarra, e há muito tempo não temos mais esse contato, apenas o profissional e amistoso.

Além de Millos, ela é a única que sabe da vontade do pappoús e tem me auxiliado na busca de uma mulher que preencha o requisito da velha raposa grega – e os meus também, óbvio!

Viviane é mais do que minha sócia, ela é meu faro, o olhar de lince que preciso, além de ser uma ótima companhia, inteligente, divertida, moderna e muito agradável.

Meu celular toca, e vejo o nome dela aparecendo na tela, como se eu a tivesse evocado.

— Theo, meu lindo, você vai chegar a tempo?

Olho-me no espelho antes de responder. Traje de gala, smoking tradicional, preto, com camisa branca, gravata-borboleta de seda também preta e sapatos italianos de couro. Meus cabelos estão penteados para trás com uma pomada que os mantêm fixos, mas sem aquele aspecto molhado tão démodé, minha barba está bem aparada, do jeito que gosto, tudo no lugar.

— Vou, sim! — respondo abrindo a gaveta com relógios da Rolex.

Fico em dúvida por um instante, mas acabo optando pelo clássico day-date de platina, luneta lisa, pulseira presidente e mostrador de ouro branco 18 quilates, de fundo preto com listras. Clássico e moderno ao mesmo tempo!

Confiro o horário no convite e, em seguida, as horas no relógio já no meu pulso. Não gosto de joias, pulseiras, cordões e etc. O único acessório – que, nesse caso, é como uma joia, por ser feito de metal precioso – é meu relógio. Venho os comprando e colecionando há muitos anos e, quando mandei fazer o closet, incluí no projeto gavetas-cofre, todas com combinação para abrir, onde eles ficam aguardando para serem usados.

Tenho peças de várias marcas e muitos modelos de cada uma delas, com valores também variáveis, desde o de um carro popular ao de um apartamento. Minha paixão por relógios é a mesma que Millos tem por motos, por exemplo, ou a que o vovô tem por selos. Acho que todo Karamanlis gosta de acumular algo; não sei se ou o que meus irmãos gostam de colecionar apenas porque não os conheço bem.

Passo perfume antes de sair e, já na sala de estar, encontro-me com a Vanda a esperar, torcendo as mãos e parecendo ansiosa.

— Algum problema?

— Infelizmente, sim. — Ela dá um suspiro. — Minha filha acabou de me ligar... perdeu o bebê.

Caminho até ela e coloco a mão sobre seu ombro, consolando-a.

Vanda trabalha comigo há tantos anos que é como se eu conhecesse toda sua família. Ela tem dois filhos adultos – uma mulher de trinta e poucos anos e um rapaz ainda na casa dos vinte. Os dois moram longe, estudaram, foram trabalhar e formaram família. O rapaz – cujo nome nunca lembro – mora nos Estados Unidos e trabalha numa empresa de tecnologia lá. Já a mulher, Aurora – esse é um nome que nunca esqueço –, mora no Rio de Janeiro com o marido, com quem é casada há muito tempo.

Ainda me lembro da felicidade de Vanda ao me comunicar que finalmente seria avó. Por isso, entendo sua tristeza.

— Se precisar de uns dias para ficar com ela... — Ela concorda. — Vou pedir ao Rômulo que providencie as passagens de avião. — Pego o celular. — Ele tenta algo para hoje ainda?

Ela soluça, e isso me corta o coração. Nunca tive contato com minha mãe, e ela cuida de mim como se eu fosse seu filho. Claro que temos uma relação profissional, mas reconheço o trabalho e o afeto dela por mim.

— Eu gostaria de ir o mais rápido possível...

Rômulo atende no segundo toque, todo esbaforido como sempre, como se estivesse fazendo algum tipo de exercício que o deixasse sem fôlego.

— Rômulo, boa noite! Preciso que compre passagens para o Rio de Janeiro se possível ainda para hoje à noite.

— O doutor vai viajar? Não vi nada na agenda que...

— Rômulo... as passagens, estou esperando na linha — corto-o.

Ele demora alguns minutos, mas ainda posso ouvir sua respiração ofegante. Será que o filha da puta tem asma e nunca me contou?

— Tem um voo para às 22h20 com previsão para chegar lá no Galeão às 23h25, posso comprar?

Confiro as horas de novo; pouco mais de duas horas para a partida do voo.

— Compre e já faça o check-in online. É para a Vanda, têm todas as informações sobre ela na minha pasta pessoal.

Ele confirma, pergunta sobre a volta, e eu peço para reservar para daqui uma semana, mas com possibilidade de mudança.

Vanda vai correndo até seu quarto, entendendo o pouco tempo que tem até chegar a Guarulhos, e eu aproveito para ligar para o Dionísio, que já está na garagem do prédio me esperando.

— Dio, você vai levar a Vanda para o aeroporto o mais rápido possível. Ela tem que estar lá em uma hora para poder embarcar para o Rio. Vá rápido, mas com segurança. — Mal desligo e ligo de volta para o Rômulo. — Conseguiu?

— Já mandei o voucher para o celular dela, chefe! — diz todo animado, e eu reviro os olhos.

— Preciso que entre em contato com aquela empresa na qual alugamos carro e motorista quando me hospedei lá.

— Já fiz isso também, chefe! — sua voz agora está animada e orgulhosa.

— Muito bem! Bom trabalho, Rômulo! Boa noite!

Juro que posso ouvir um suspiro quando desligo o celular. Rio, balançando a cabeça, achando o jeito dele muito engraçado, mesmo que me irrite na maioria do tempo. Esse Rômulo!

Uma mensagem da Viviane chega, pois agora estou oficialmente atrasado, e retorno apenas para acalmá-la:

 

 

Sento-me no banco do piano, brincando com as teclas enquanto Vanda termina de arrumar sua bagagem, pensando em como as coisas mudam de uma hora para a outra dentro de uma família. Eu já senti essa reviravolta uma vez, embora na época tenha reconhecido que foi para melhor, mas ainda assim as lembranças dela causam a dor da sensação de não saber como teria sido.

Bufo de raiva por deixar isso voltar, mesmo depois de tantos anos. Tudo o que eu queria era uma noite de sucesso para meu investimento e, talvez, um sexo casual depois do evento.

Dedilho um blues aleatório ao piano para animar meu espírito antes de sair de casa.

Odeio essas noites corridas!

 

 

— Porra, achei que você não vinha mais! — Viviane me cumprimenta assim que eu piso na galeria. — Samuel Dias é o maior sucesso! — cochicha em meu ouvido enquanto finge um abraço. — Parabéns!

Retribuo o cochicho:

— Para nós dois!

Ela gargalha, e isso chama a atenção de algumas pessoas que estão tomando champanhe e conversando em um canto. Cumprimento-os com a cabeça, pois conheço a maioria deles, mas uma loirinha me atrai com seu sorriso contido e olhos esfomeados.

— Seus olhos não são bons só em detectar talentos... — Vivi sussurra. — Valentina de Sá e Campos, filha do deputado Cristóvão Campos e neta do diplomata Augusto de Sá.

— É um bom currículo! — debocho. — O que mais você sabe?

Viviane sorri lentamente, uma expressão que eu já conheço e que significa que ela sabe tudo o que eu quiser ter de informação sobre a garota.

— Tem 27 anos, formada em Direito, faz balé desde criança e toca piano muitíssimo bem. — Faço um gesto com a cabeça, admirado. — Pelo que eu sei, trabalha no escritório com a mãe, mas está estudando para ingressar na diplomacia como o avô.

— Uma mulher de carreira, então?

Vivi me olha como se eu tivesse duas cabeças, e ergo as mãos em rendição.

— Mulher de carreira! Que mente retrógrada! O que você quer, afinal? Uma dondoquinha que fique em casa sem fazer nada o dia todo?

— Uma mulher que cuide de meu filho e que não o abandone por causa da profissão.

Ela volta a me fuzilar com os olhos.

— Isso é revoltante, Theo! Há ótimas mães que também são ótimas profissionais, uma coisa não exclui a outra, pelo amor de Dadá! — ela sempre me arranca um sorriso quando diz essa expressão. — Você quer mesmo fazer isso? Começar a sair com alguém para se comprometer? Porque, a cada vez que encontra uma possibilidade, você arranja mais requisitos! Tá foda!

— Vamos cumprimentar o artista primeiro, depois você continua me contando a vida da menina. — Sorrio para ela. — Anota aí que eu também a achei muito nova.

— Puta que pariu, desisto de te ajudar! Aquela última tinha 35 anos, e você achou que ela já podia estar entrando na menopausa e que por isso ia ser difícil emprenhar. — Rola os olhos. — Cagão!

Gargalho, aceitando um copo de uísque que o garçom veio me servir.

— Macallan? — pergunto, sentindo o cheiro.

— Óbvio, trouxe exclusivamente para você. — Ela acena, e vejo Samuel Dias. — Elogie o rapaz, diga que eu contei como ele tem se saído bem nesta noite e se desculpe pela demora. Finja ser sensível!

— Mas eu sou, não preciso fingir! — respondo rindo, bebericando o uísque.

— O que há de errado? — Ela provavelmente percebeu que não estou bebendo de verdade, apenas fazendo cena.

— Estou dirigindo. Tive que pedir a Dionísio que me fizesse outro favor.

— Justo hoje? — mesmo com o sorriso congelado em sua face, sua voz não disfarça a irritação. — O que havia de tão importante?

— Nada para você se preocupar. — Cumprimento o artista da noite: — Parabéns, eu ouvi falar que tudo tem sido um sucesso!

— Obrigado, Theo! Nada disso seria possível sem...

— Não, nada disso! Vamos celebrar a sua conquista hoje! — corto seu discurso de gratidão. Ele não precisa disso, não lhe estou fazendo um favor. — Viviane, procure um garçom para servir algo ao rapaz! O serviço poderia estar melhor...

— Vá se foder, Theo — diz baixinho entredentes, mas faz o que peço.

Assim que ela se afasta, cumprimento Samuel como sinto que devo, sem Viviane a estar no meu ouvido dizendo o que e como devo falar com ele.

— Estou muito orgulhoso de você. Sabia que seu talento seria reconhecido. — Ele agradece. — Só se lembre daquilo que conversamos no primeiro dia em que nos encontramos.

— Claro! — Sorri. — Nunca abandonar minhas raízes e minhas essência, porque são elas que impulsionam meu talento.

— Exato!

Viviane volta com duas taças de champanhe.

— Podemos brindar? — pergunta animada.

Levanto o copo de uísque enquanto eles tocam de leve as taças. Novamente busco a garota loira com os olhos e tenho a grata surpresa de pegá-la me observando. Sorrio, aceno com a cabeça, e ela faz o mesmo.

Então vamos ver no que dá!


Acordei de ressaca hoje, e não foi por causa da quantidade de bebida que ingeri no vernissage; aquela quantidade, eu nem consideraria como beber. Viviane ficou puta por ter encarecido o orçamento com garrafas do meu uísque preferido e eu não estar bebendo, por isso, depois do evento, reuni todas as que sobraram e trouxe para meu apartamento.

Pensei que ia passar uma noite solitária, acompanhado apenas de um single malte e discos de jazz, mas, no meio da minha encenação de lobo solitário, Millos ligou me convidando para ir até seu loft. Neguei várias vezes, mas a porra do homem estava tão excitado com a cerveja que havia feito que não parava de insistir.

Resultado? A bebida realmente estava um espetáculo! Enchemos a cara, mesmo sob meus protestos, pois nunca curti muito beber cerveja, e comemos uns tira-gostos tão saborosos que teci elogios a sua habilidade na cozinha.

— Ah, não fui eu quem preparou, não! — Riu. — Encomendei no Hill.

Quase cuspi aquela porra para longe e o fuzilei com os olhos.

— Porra, eu querendo que aquela merda feche e você comprando lá? Está do lado de quem afinal?

— Do meu estômago! — respondeu comendo mais um dos bolinhos. — Estava com vontade de ter um acompanhamento, mas sem nenhum saco para preparar. Me lembrei do dia em que fomos lá e quis conferir se ainda continuavam tão gostosos!

— Ainda não te perdoo por aquela arapuca! — acusei.

Há uns dois anos, Millos me convidou para comemorar seu aniversário, coisa que vez ou outra fazemos quando ele está em clima de festa. Eu lhe disse que o encontraria no local, mas ele insistiu em me buscar em casa, e, quando chegamos e percebi que era no Hill, fiquei bem puto, mas a curiosidade de saber o motivo pelo qual o boteco estava se tornando um sucesso me impulsionou a entrar.

O que eu não contava era que, além de a mim, o filho da puta tinha convidado meus irmãos. Ficamos lá os quatro como se fôssemos bons amigos, compartilhando da armadilha de Millos. Aposto que Kostas e Alex detestaram cada momento, mas sorrimos, bebemos e experimentamos os quitutes da tal da Duda Hill.

Mesmo não gostando de admitir, era fato que a mulher sabia o que estava fazendo na cozinha. Os bolinhos tão tradicionais de um boteco tinham um requinte diferente, embora mantivessem a essência. Era como se ela conseguisse melhorar o que já era perfeito, e isso, tenho que admitir, é um dom.

Confessei isso ao meu primo? Nem sob tortura! Repreendi-o por ter comprado lá, aleguei que ela podia ter mandado envenenar os quitutes – fazendo um drama desnecessário, culpa da bebida –, mas não parei de comer.

— Ah, pedi a Sami para comprar para mim — respondeu.

— Você ainda está saindo com ela? — questionei surpreso, pois havia muito tempo não via a motoqueira que, de vez em quando, orbitava em volta dele.

— Não! Somos amigos, já disse isso, mas parece que você só enxerga a boceta de uma mulher, come até suas “amigas” — fez referência a Viviane.

— Por que você não gosta dela? — Provoquei: — Porque ela é independente, dona de si mesma e diz o que pensa?

— Não! Eu não curto mulher assim para comer, mas não tem nada a ver com o fato de eu achá-la fria e calculista, e nunca escondi isso de você. Aquela mulher gela meu sangue!

Ri do seu exagero, afinal, a Vivi não tem nada de fria. Millos implica com ela pelo simples fato de a mulher ter personalidade e não se deixar comandar por ninguém. No primeiro momento ele se sentiu atraído, Vivi é um espetáculo aos olhos, e ela também não disfarçou o interesse. No entanto, bastaram alguns minutos de conversa para que se odiassem.

— Hoje ela conseguiu algo incrível — comentei. — Valentina de Sá e Campos, já ouviu falar?

Ele riu.

— Dela não, mas conheço os sobrenomes. Família paulistana tradicional, bom currículo. — Cruzou os braços e me olhou debochado. — A futura senhora Theodoros Karamanlis?

— Talvez — fui sincero. — Conversei um pouco com ela nesta noite, achei-a divertida, inteligente e sedutora. A princípio achei que era muito nova, mas é madura e independente, cheia de opinião. Gosto do tipo.

— Eu sei. — Ele se levantou e foi pegar mais cerveja. — Foi Viviane quem te apresentou a ela? — Assenti. — Não sei se gosto disso, mas boa sorte.

Gargalhei pela implicância dele com a Vivi e resolvi desviar o assunto. Falamos da Karamanlis, de música, de motos e, por fim, já muito bêbado e com sono, caí sobre o sofá dele e acordei há pouco, com torcicolo e com uma puta dor de cabeça.

— Ei! — Millos me saúda estendendo uma xícara de café. — Você está destruído!

O desgraçado ri, mas nem posso mandá-lo tomar no cu, porque minha cabeça trepida parecendo que há uma britadeira no meu cérebro. Maldita cerveja! Malditos bolinhos envenenados da Duda Hill!

— Cara, você é fraco para minha cerveja! — Millos ri. — Ficou boa, não é? — Apenas assinto, ainda tomando o café para melhorar meu ânimo. — O que está programado para fazer nesse final de semana?

— Vou trabalhar. Como saí um pouco mais cedo ontem por causa do vernissage, Rômulo separou umas pastas para que eu lesse nesse final de semana. Coisa chata, principalmente da pauta da reunião do conselho.

— Por falar no conselho... — Ele se senta ao meu lado no sofá e apoia os pés descalços sobre a mesinha de centro. — Ontem tive notícia do Kostas. — Ri. — Parece que tomou um toco feio da Kika e está cuspindo marimbondos.

Gargalho, esquecendo a dor.

— Como queria ter visto esse embate!

— Eu também.

Bufo, mesmo divertido, lembrando que o meu problema continua.

— Preciso trazê-la de volta para a empresa com urgência. Há vários projetos dos hunters parados, e o Rômulo não está dando conta de organizá-los.

Millos rola de rir no sofá.

— Esse seu assistente é muito estranho. Sinceramente não entendo como você ainda o mantém trabalhando contigo!

— Gosto de ele ser metódico. — Dou de ombros. — É organizado, embora meio desastrado, nunca perde um prazo e faz tudo o que eu peço.

— Seu próprio espelho, não é? Nunca conheci ninguém mais chato que você para organização.

Ergo uma sobrancelha para ele e olho em volta para seu loft cheio de espaço, mas sem nenhuma lógica ou senso de estilo. Millos gosta de coisas rústicas, e respeito isso, acho legal, mas é tão bagunceiro que seus móveis caros de design parecem ser cacarecos de alguma casa demolida.

Os únicos locais arrumados são: a cozinha, o “laboratório” de cerveja (como ele mesmo se refere ao local) e onde dorme. O resto... tem peças de motos para todos os lados, mesmo a oficina ficando na parte de baixo do galpão que ele chama de loft, tem barris com os ingredientes que compra para a fabricação de cerveja, roupas, discos e óculos (nunca vi tantos para uma só pessoa) espalhados por todos os lados.

O homem é um caos completo em casa, mas, se alguém entrar na sala dele na empresa, vai acreditar que é o epítome da organização. Não entendo como consegue!

— Bem, sobre a Kika, eu posso te adiantar que não precisa se preocupar — Millos continua. — Falei com ela ontem, e vai voltar.

Expiro o ar, aliviado.

— Porra, Millos, porque não me contou antes? É um alívio do cacete não ter que lidar com mais esse problema e...

— Mas ela não quer ser mudada de andar.

— O quê? Ela está fazendo exigências?

Millos penteia a barba com os dedos, enervando-me com sua calma.

— Demonstramos desespero ao mandar o Kostas pedir arrego. — Concordo com ele nesse ponto. — Ela quer aumento, continuar no andar e... — Tenta conter o sorriso, e prevejo que vem bomba, mas ele vai dar um doce do cacete para falar.

Perco a paciência e esbravejo:

— O que mais ela quer?!

— Carta branca para mandar seu irmão se foder à vontade.

— Porra!

Ponho as mãos na cabeça, sentindo a dor de cabeça voltar com tudo e ouvindo a risada debochada do Millos.

Eles querem me enlouquecer, só pode!

 

 

A dor de cabeça me acompanhou ao longo de todo o final de semana. Tomei analgésico, antiácido e – seguindo os conselhos do meu primo – mais um pouco de cerveja. No entanto, não consegui me livrar do incômodo insistente.

Trabalhei o sábado inteiro, recebendo ligações do Rômulo quase de hora em hora, a ponto de ficar puto com ele e mandá-lo caçar algo para se divertir e me deixar em paz. Compreendo que ele queira me ajudar, mas, às vezes, sua dedicação exacerbada me estressa.

Recebi um convite para jantar de uma antiga amante que vinha a São Paulo de tempos em tempos, mas neguei. Queria apenas relaxar um pouco em casa depois de ter trabalhado em páginas e mais páginas de relatórios com uma dor de cabeça chata a me distrair.

Pedi comida em um restaurante de comida vegana, achando que pudesse ser a gordura dos bolinhos do Hill – velha e rançosa, com certeza – que me deu essa indisposição e resolvi assistir a alguns filmes antigos. Sou fã de “O poderoso chefão”, então comecei a assistir a cada um deles de novo.

Novamente dormi em um sofá, mas acordei melhor e resolvi correr um pouco. Passei umas duas horas no Ibirapuera e, na volta, encomendei o almoço de domingo, sentindo-me um pouco órfão sem a Vanda em casa.

Liguei para Millos a fim de fazermos algum programa à tarde, mas ele estava com alguma mulher em algum clube ou lugar que só Deus sabia, então voltei aos relatórios, e isso consumiu o resto do dia.

Debaixo do chuveiro, rememorando este final de semana de merda, ouço meu telefone tocar, mas o ignoro. Coloquei os jatos no mais forte possível para tentar aliviar um pouco a tensão que venho acumulando nesses dias. A verdade é que preciso trepar um pouco, divertir-me, talvez fazer uma viagem ou passar um final de semana com alguém sem pensar no trabalho.

A imagem da Valentina vem à minha mente, sua conversa gostosa, seu sorriso bonito. Contudo, ainda não me sinto completamente certo de que devo me envolver com ela, principalmente por uma questão: não senti muita atração.

Sei que isso é de momento e que pode mudar, principalmente se a convivência for boa. Nem sempre sentimos atração pela pessoa no primeiro encontro, e já vivi anos demais para saber que até um primeiro encontro explosivo pode depois esfriar e o tesão ser extinto, então, não me baseio apenas nessas primeiras impressões.

Fecho os olhos e penso na garota da boate há alguns anos. Ela vem preenchendo minhas fantasias há muito tempo, talvez por ter sido gostoso daquela vez e não ter tido mais notícia dela.

Mal lembro do seu rosto, de tão bêbado que estava, sempre quando fantasio vejo os cabelos e me lembro da loucura que foi nossa transa naquele banheiro.

O telefone volta a tocar, e desligo o chuveiro, saindo do boxe para ver quem é o chato. Rio ao ver o nome do Millos. Na mosca!

— Já terminou sua maluquice sexual com a “submissa” da vez? — provoco.

— Vá se foder e não se meta nos meus assuntos — rosna. — Liguei para saber se amanhã pode ir comigo a um restaurante que um amigo inaugurou nos Jardins.

— Boa comida ou é boteco?

— Não, seu fresco, é coisa fina! Vanda ainda não estará de volta, não é?

Suspiro, resignado.

— Não, ela ainda vai ficar um tempo no Rio de Janeiro. Está certo, amanhã combinamos isso melhor no escritório.

— Okay! — diz animado. — Vai almoçar no refeitório junto aos funcionários?

— Sempre há uma primeira vez, não é? — Deixo a toalha no suporte e sigo para o closet. — Além do mais, confio que servimos algo de qualidade aos funcionários.

Millos ri.

— Essa eu quero ver! Nos encontramos no almoço, então! Boa noite, Theo.

— Boa noite!

Desligo o telefone e me olho no espelho, lembrando-me do tempo em que comia qualquer coisa e em qualquer lugar, na maioria das vezes sujo e fedendo a peixe, sentindo-me feliz e livre.

— Quem é você, Theodoros Karamanlis?


O dia nem bem amanheceu, e eu já estava suando na academia com a Sandra. Hoje, sem Millos, o treino foi mais tranquilo, seguindo o ritmo normal dos exercícios. Tomei meu café sozinho na cozinha – café puro mesmo – sentindo imensamente a falta da Vanda, de sua conversa matutina animada e seus cuidados. Posso não admitir sempre, mas gosto de ser cuidado, de sentir esse afeto, coisa tão rara na minha vida.

Limpei os pensamentos e saí para trabalhar.

— Bom dia, Dionísio! — cumprimentei o motorista como em todos os dias, já pegando meu jornal para me inteirar sobre as principais notícias do dia. — Hoje vou almoçar na empresa, mas, à noite, vou sair do escritório direto para jantar com Millos.

— Levo o doutor ou trago o carro?

— Traz o carro, vou dirigindo.

Ele assentiu, e seguimos viagem em silêncio, ele concentrado no trânsito, e eu, nas notícias de economia do país e do mundo.

Cheguei à empresa já apagando incêndios. Um dos projetos de um cliente foi reprovado por uma comissão municipal, então Kostas teve que intervir mandando seus advogados e acompanhando todo o processo. Eu, como CEO, fiquei aguentando a aporrinhação do gerente responsável pela implantação da empresa multinacional aqui no Brasil.

Nem vi a hora passar, mal tomei meus cafés tão tradicionais ao longo da manhã, irritado com esse problema, com o Rômulo borboleteando ao meu redor me enchendo de perguntas: “quer café?”, “ligo para o doutor Konstantinos?”, “quer um calmante?”. Eu quase explodi de raiva, sentindo meu estômago fritar e a cabeça estourar.

Desci para o refeitório faltavam alguns minutos para o meio-dia e, para meu espanto, ainda não tinha nenhuma refeição pronta. Conferi as horas no Omega, um dos relógios mais precisos do mundo, e estranhei a demora. Rômulo apareceu e, quando lhe questionei o atraso, fiquei sabendo que o almoço era servido a partir da 1h da tarde.

Voltei para o escritório sob a insistência de Rômulo para me encomendar o almoço em algum restaurante.

— Não! Hoje vou comer no refeitório — insisti.

Millos me lançou um desafio por eu nunca ter comido na empresa desde que foi inaugurado o refeitório para os funcionários. Pensamos no restaurante para facilitar a vida de todos e, como tínhamos espaço, decidimos montar a estrutura. Estive presente no primeiro dia, na inauguração, há alguns anos, mas depois disso não botei mais os pés no local.

Exatamente às 13h desci novamente pensando em usufruir de um almoço tranquilo e nutritivo, porém, o que encontrei me deixou sem ação. Primeiro, os funcionários ficaram estarrecidos ao me ver ali; percebi em seguida que apenas o baixo escalão da empresa – de coordenadores para baixo – estava comendo ali. Não havia nenhum gerente ou diretor no meio dos mais de 100 funcionários da companhia.

Contudo, o que mais me surpreendeu foi a comida. Não, não era ruim, pelo contrário, era bem preparada, mas sem nenhuma opção para substituição.

— E quem não pode comer carne vermelha? — questionei ao Rômulo, e ele apenas corou, fingindo não ouvir. — Há cardápios diferentes ao longo da semana?

Rômulo continuava a montar seu prato sem emitir qualquer resposta, o que não é nada típico dele, e isso me irritou. Quando não era para falar, o homem tagarelava, mas, quando eu precisava de respostas, ficava mudo!

— Rômulo! — chamei-o de modo mais enérgico. — Eu estou tentando entender o que...

— Não, não há! — escuto a voz do Alex e me viro para encará-lo. — E seu querido assistente não sabe informar porque não come aqui também. — Meu irmão pegou um prato e se serviu naturalmente. — A questão do restaurante entrou em pauta numa reunião de diretoria, mas o senhor todo-poderoso do Olimpo achou que não era uma questão relevante para a economia da empresa e pulou o assunto.

Olhei de esguelha para Rômulo buscando confirmar a informação, e ele atestou. Xinguei mentalmente.

— Uma empresa é feita de mais do que números, Theodoros Karamanlis — seu desprezo pelo sobrenome era evidente. — E, quando fiz a proposta do restaurante, era para que, além de economizar o tempo dos funcionários e agilizar o serviço, também tivéssemos convívio com eles, porém, adivinha quem foi o primeiro a pular do barco e a incentivar o “alto escalão” a ir junto?

Bufei de raiva.

— Quem é o responsável pela gestão do restaurante? — ignorei o discurso do meu irmão idealista e perguntei ao Rômulo.

— É terceirizada, a mesma empresa do pessoal da manutenção.

Merda!

— Marque uma reunião com ela e peça ao Kostas para avaliar o contrato. — Rômulo mais do que depressa escreveu em seu tablet inseparável. — Dispare um memorando para todos os diretores e gerentes, lembrando da existência do restaurante e informando que, a quem for almoçar fora, será necessário cumprir o horário, ou seja, uma hora e nenhum minuto a mais.

Rômulo arregalou os olhos e assentiu.

— Eu pouco vejo você e percebo que nem é preciso! Você não mudou nada, o mesmo prepotente de sempre. — Alex passou por mim, ainda se servindo no bufê, rindo de deboche, e percebi olhares curiosos em nossa direção.

— Eu preciso lembrar que você também faz parte da diretoria e tem acesso irrestrito ao conselho? — Cheguei perto para falar baixo: — Se fosse meu projeto, nunca deixaria chegar aonde chegou só porque não sou o CEO. Isso demonstra que está mais preocupado em ir contra a direção do que lutando pelo bem-estar dos funcionários. Não é minha função tomar conta de tudo, não sou absolutista, eu delego e confio naqueles a quem passo esse poder. — Ele fechou a cara, perdendo o ar de superioridade. — Não tenho intenção alguma de prejudicar os que trabalham comigo, pelo contrário. Mas assumo meu erro em não ter frequentado o local para dar exemplo.

— Mas o doutor também não tem horário certo para almoçar, por isso...

Balancei a cabeça em negativa, freando a defesa de Rômulo. Não tinha desculpas, o exemplo era meu, e eu tinha falhado. Terminei de fazer meu prato, sentei-me a uma mesa com Rômulo e almocei mesmo sentindo um nó na garganta por ter mostrado falha e ter sido repreendido pelo Alex na frente de todo mundo.

Merda!

Ao longo do dia, a repercussão do almoço do CEO no restaurante da empresa, bem como o efeito do memorando para os diretores e gerentes agitaram a tarde na Karamanlis. Percebi todo mundo mais atento, mesmo na correria de sempre.

Tive uma resposta positiva da equipe de Kostas com relação ao projeto vetado e pude passar a boa notícia ao nosso cliente. Recebi vários relatórios dos setores e subsidiárias ao longo do dia, inclusive da K-Eng, dirigida pelo Alex.

Meu irmão é um sonhador idealista, defensor dos fracos e oprimidos, um rebelde que só trabalha conosco para contrariar a família. Cospe sobre nosso sobrenome, mas faz questão de ostentá-lo para afrontar o pappoús. Sempre achamos que ele tentaria afundar a empresa em represália ao tratamento que teve na infância, mas não, ele não só assumiu uma empresa praticamente independente como a fez crescer. Todavia, ainda sinto que há algo por trás disso.

Estaciono o carro na vaga do restaurante, afastando as lembranças do dia e conferindo o endereço que Millos me enviou por mensagem. Estar sem o Dionísio nesta noite é bom, porque vou moderar a bebida, afinal é segunda-feira, e prefiro tomar um copo de uísque quando estiver no meu apartamento.

Tenho expectativa de o jantar ser bom; já o almoço foi complicado e indigesto com a discussão com o Alex e a demonstração de que deixei as coisas correrem soltas demais. Claro que não sou arrogante a ponto de achar que meu irmão não estava com a razão sobre as coisas que me disse, afinal, ele convive mais com os funcionários que eu, mas não gostei de ser contrariado na frente de todos.

Entro no restaurante, e a primeira coisa que percebo é a arquitetura do lugar e a decoração de bom gosto. Isso realmente não diz muita coisa acerca da qualidade gastronômica deles, mas já conta pontos em matéria de conforto. Uma recepcionista, bem-vestida e muito bonita, cumprimenta-me, e lhe dou o nome de Millos, que foi quem fez a reserva.

— Ah, doutor Karamanlis, ele ainda não chegou, mas o senhor pode esperá-lo no bar, tudo bem?

Respiro fundo, conferindo as horas e calculando que ele – se viesse de moto, como sempre – já deveria estar aqui. Olho contrariado para o bar, logo na entrada do restaurante, e meus olhos são imediatamente atraídos para uma mulher vestida de preto, com os cabelos longos, castanhos e lisos, tomando uma taça de vinho.

Não consigo ver todo o seu rosto, apenas o perfil, e isso é suficiente para que eu queira vê-la toda.

— Tudo bem — concordo com a recepcionista, que me aponta o bar.

Caminho para lá e me sento na poltrona alta ao lado da bela mulher. Não a olho, prestando atenção ao bartender que vem pegar meu pedido.

— Scotch, por favor. — Ele pergunta a marca. — The Macallan.

Sorrio satisfeito ao vê-lo pegar exatamente a garrafa que costumo beber e, então, de esguelha, olho para a mulher ao meu lado, procurando algum indício de indisponibilidade – ou problema –, como uma aliança em seu dedo.

Ela não usa nem mesmo anéis. No entanto, o que chama minha atenção são as unhas curtas, bem cuidadas, mas sem esmalte. Hoje em dia o que as mulheres mais fazem é colorir as unhas! Como eu gosto de arte, logo sou atraído pela variedade de cores e a combinação com as mãos e os formatos. Porém, não com ela; suas mãos são lindas, dedos longos, sem precisar de nenhum tipo de enfeite.

Subo o olhar e a encontro me olhando também.

— Boa noite! — cumprimento-a sorrindo assim que o bartender deixa meu copo no balcão.

— Boa noite! — ela responde. Sua voz me causa uma sensação de frenesi, e fico imediatamente excitado. Ela é linda em todos os sentidos da palavra. Seu rosto é delicado, proporcional, olhos expressivos, nariz fino e uma boca generosa. Fico imaginando como será seu sorriso aberto, não apenas esse polido e educado que me dá agora.

Paro de encará-la para não a constranger e tomo um gole do uísque, questionando se devo ou não puxar conversa com ela.

Não sou inseguro, nunca fui, mas às vezes uma mulher só quer estar quieta bebendo sem alguém para importuná-la, por isso sempre espero ver algum indício de que quer papo antes de abordar.

Dou outra olhada de soslaio.

Vamos lá! Quero saber quem você é!


— É a primeira vez que venho aqui — é ela quem faz o movimento, e gosto disso, uma mulher decidida. — Estou surpresa pelo requinte sem a frieza esperada desses restaurantes com esse nível. O pessoal é simpático e organizado.

Rio.

— Você é da área — constato e me viro para ela, girando a poltrona em sua direção.

— Sou. — Sorri finalmente, e me sinto extasiado com a perfeição do gesto. Os olhos ficam levemente puxadinhos, e sua face inteira se ilumina. A mulher fica absurdamente linda quando sorri. Meu interesse é real agora. — Mas hoje vim como cliente.

— Eu só venho como cliente — brinco. — Não sei fritar um ovo!

Ela ri de novo e toma um gole de seu vinho.

— O que seria dos restaurantes se todos soubessem ou gostassem de cozinhar? — Levanta sua taça em minha direção. — Aos que são apenas clientes e podem desfrutar de uma deliciosa refeição sem ficar avaliando cada nuance do prato.

— Justo! — Brindo com ela. — Qual sua formação?

— Cozinha francesa. Diplôme de cuisini e pâtisserie.

Uau!

Meu corpo inteiro vibra e meu pau reage ao som do seu perfeito sotaque francês. Acompanho sua boca em volta da borda da taça de vinho, o leve ondular de sua garganta sorvendo a bebida e sua língua resgatando os resquícios da bebida em seus lábios.

Abaixo a cabeça e bebo um longo gole do uísque, tentando não parecer um tarado assediador, mas louco para perguntar se ela prefere na minha casa ou na dela.

— Pelo francês perfeito presumo que tenha estudado na França... — Ela concorda com um sorriso. — Le Cordón Bleu?

— Naturellement. Estudar gastronomia na França sem ser em Le Cordón Bleu é como ir a Roma e não ver o Papa!

Gargalho com sua comparação e a saúdo com minha bebida.

— É como ir até a Escócia e não provar um verdadeiro uísque.

Levo o copo até a boca e acompanho o olhar dela em mim.

— Sua escolha de bebida me surpreendeu — ela comenta, e franzo o cenho, olhando meu bom e velho single malte e me perguntando qual é o problema com ele. — É uma bebida conservadora, nada sofisticada, ao meu entender, não combinou muito. — Aponta para mim.

Finjo-me de ofendido, embora segure a risada, e cruzo os braços.

— E você é uma entendida em bebidas também? — provoco-a.

A risada dela é tão melodiosa que parece música, seus olhos se iluminam e as bochechas ficam levemente rosadas. Perfeita!

— Nem queira saber! — Beberica um pouco do seu vinho. — Praticamente cresci cercada delas.

— Hum... — Sorrio. — O que combinaria mais comigo, então?

Sou submetido a um olhar avaliador, passando pela minha roupa, sapatos e rosto. Sinto tão intensamente sua atenção sobre mim que é como se ela pudesse olhar além das minhas roupas. Estou exposto, nu, cada músculo aquecendo à medida que seus olhos percorrem meu corpo, concentrando ainda mais desejo em minha virilha. Porra, que delícia!

— Pelo estilo de roupas e o Omega que usa no pulso — ergo a sobrancelha, surpreso pelo bom olho que ela tem —, um Dry Martini.

Gargalho sem me conter, e ela me segue, ambos divertidos pela comparação que ela faz. James Bond? Sim, eu sei que o mais famoso espião dos cinemas só usa relógios da Omega, mas não me vejo com uma taça de Dry Martini na mão, exigindo do bartender: “batido e não mexido”. Gosto de pensar que sou mais rústico que isso. A prova é meu single malte caubói.

— A sofisticação é só uma casca, pode acreditar. Estou longe de ser tão refinado quanto o Bond, ou tão habilidoso. — Ela levanta uma sobrancelha questionadora, demonstrando que não acredita nessa minha “humildade”. — A propósito... — respiro fundo, indo devagar — meu nome é Theo.

Mais uma vez seu sorriso faz meu pau reagir, ficando dolorosamente duro e pulsando na cueca. Que porra de atração é essa? O que essa mulher tem? É divertida, a conversa está fluindo bem, além de ser linda, mas essa atração... não é assim que acontece, ainda mais em um ambiente tão frio quanto o em que estamos.

— Maria Eduarda. — Ela estende a mão, e eu a seguro.

Tudo em volta parece vibrar, e noto que ela também sente isso. Meu sorriso se expande. Não tiro os olhos dos seus. A energia gerada pelo toque esquenta meu corpo e aumenta minha percepção do dela.

Maria Eduarda tem um belo pescoço, e o cheiro suave de um bom perfume parece advir exatamente do ponto onde eu gostaria de passar minha língua. Os ombros são delicados, os braços longos e sem nenhum contorno muscular demonstram que ela não mantém regularidade de exercícios, sendo magra ao natural. Os peitos no decote do vestido são pequenos, porém, redondos e firmes.

O vestido, embora justo, tem um tamanho comportado, por isso não posso ver suas coxas – o que é uma pena –, tão somente as panturrilhas e uns pés lindos – esses, sim, com as unhas pintadas de vermelho – em sandálias de cor clara.

Apesar de ser uma mulher atraente e bonita, não é uma beleza exótica. Sem o sorriso, ela passaria a ser apenas mais uma mulher bonita como muitas outras que existem por aí, porém, não para mim. Algo nela chamou minha atenção desde o primeiro momento. Mesmo com ela de costas, sem nem ao menos ver seu rosto direito, senti-me atraído.

Agora ela me deixa em chamas, tentado a ser direto e lhe propor uma noite de pura sacanagem. Eu o faria se o local fosse mais descontraído e tivesse mais abertura da parte dela, não só a confirmação de que se sente atraída por mim. Em uma boate, por exemplo, eu seria mais efusivo.

— É um prazer enorme encontrá-la aqui — mesmo sendo sutil, quero deixar claro que ela chamou minha atenção. — Salvou minha noite, pode ter certeza.

Ela sorri e solta minha mão.

— Quase não vim — confessa e dá de ombros. — Assunto chato, companhia chata.

Gosto da sua sinceridade.

— Negócios? — Ela assente, e eu adoro a notícia. — Geralmente os meus jantares têm o mesmo motivo.

— Então veio para uma reunião também?

Nego com a cabeça antes de responder:

— Não, hoje só vim comer. Meu primo é amigo do dono daqui e me recomendou o restaurante.

— Isso é bom, espero que esteja à altura da sua expectativa.

— Ainda que não esteja, Maria Eduarda — cruzo os braços e a encaro —, no momento estou ligando o foda-se para a comida ou o restaurante.

Ela fica séria, mas não desvia os olhos.

— É mesmo?

Não respondo de imediato, curtindo esse jogo entre nós. Aposto que ela sabe o motivo pelo qual não tenho mais nenhum interesse na gastronomia do local. Ela quer que eu diga! Quer que eu dê o passo adiante, que demonstre o interesse claramente, o que é um ótimo sinal.

Deixo o silêncio e o ar vibrar entre nós por mais alguns momentos, sem tirar meus olhos de suas belíssimas íris castanhas.

— Porque minha fome é outra desde que encontrei você aqui. — Ela segura o fôlego. — Porque nossa conversa está cada vez mais interessante. — Abaixo o tom de voz: — Porque olhar você e sentir seu cheiro acordaram meus sentidos mais do que qualquer nuance de um prato é capaz de fazer.

Minhas mãos coçam de vontade de tocá-la, de sentir novamente aquela energia sexual percorrendo meu corpo, emanando dela. Não o faço porque ainda não vi sinais suficientes para avançar a esse ponto, e eu sempre espero a permissão de uma mulher para tocá-la.

— Você nem me conhece — ela responde um pouco ofegante.

— Estou louco para conhecer. — Encosto-me melhor à poltrona e me afasto um pouco dela para demonstrar que não a estou pressionando. — Não tenho pressa, Maria Eduarda, só preciso que saiba que você me atrai e que, embora esteja sentado aqui, estou louco para segurar sua nuca e provar o sabor desse vinho que bebe, diretamente nos seus lábios.

Ela suspira e desvia o olhar.

Esse é o momento quando ou eu tomo um fora, ou venço o jogo. Porém, podem dizer que é arrogância, eu sou um homem vivido e, se cheguei até aqui, se me expus dessa forma, é porque estou apostando minhas fichas em que o tesão é recíproco.

— E se eu for casada ou comprometida?

Bingo!

Pela entonação da pergunta, sei que ela não é.

— Eu me desculparei, mesmo ainda sentindo esse desejo maluco de te beijar, e me levantarei, indo para a mesa que meu primo reservou. Não trepo com comprometidas.

Ela levanta as sobrancelhas e assume uma expressão provocadora.

— Não trepa? — Ri, cínica. — Você é muito confiante achando que basta jogar meia dúzia de palavras em cima de uma mulher sozinha em um bar para garantir uma trepada.

— Eu sou confiante. — Aproximo-me a fim de lhe demonstrar de onde vem minha confiança. — Mas não são as “meia dúzias de palavras” que vão fazer você ter vontade de trepar comigo. — Seguro sua mão e com a outra deslizo meu dedo indicador do seu punho até o cotovelo, vendo todos seus pelos se arrepiarem com o leve contato. — É isso!

Maria Eduarda fica um tempo olhando o trajeto do meu dedo sobre sua pele, assistindo, como eu, à deliciosa reação causada por meu toque. Não falamos nada, apenas acompanhamos o leve vai e vem que eu faço no seu antebraço, apreciando o contato. É nítido para mim que ela está avaliando todas as possibilidades e talvez tentando entender como isso é possível.

Já não escuto mais nada, os sons das conversas, a música clássica baixa que toca, a correria do bartender limpando copos, organizando garrafas ou preparando aperitivos. Tudo ao redor some, e só sinto a potência do tesão que ela despertou em mim, esperando que sinta o mesmo e que admita isso.

Ela sorri, mas puxa a mão, rompendo o contato.

— Como já disse, a gente nem se conhece.

— Sou paciente, Maria Eduarda. — Recebo um sorriso tímido. — Vou adorar cada momento até te conhecer. — Afasto-me dela novamente e peço mais uma dose de uísque. — Aceita mais uma taça?

Aponto, mas ela nega, olhando para a entrada do restaurante.

— Infelizmente, não. — Respira fundo. — Meu compromisso chato acaba de chegar.

Viro-me para ver quem é o sortudo que vai jantar com ela, mas só vejo o Millos entrando com uma cara debochada e um sorriso contido. Olho para Maria Eduarda novamente e confirmo que ela não só se levantou à espera do Millos, como parece muito contrariada com a presença dele.

Por que Millos iria marcar para jantar com uma mulher e comigo ao mesmo tempo? As palavras “jantar de negócios” me causam um alerta, mas me recuso a enveredar pelo rumo que meus pensamentos querem ir.

— Ah, desculpem o atraso! — Millos exclama, indo cumprimentá-la. — Que bom que já se conheceram. — Maria Eduarda franze a testa e me encara. — Theo, eu acho que chegou a hora de conversarmos pessoalmente com a Duda.

Porra!

Levanto-me como se tivesse sentado em um formigueiro, estarrecido demais para articular qualquer palavra educada que não seja um palavrão bem cabeludo.

Duda? Olho-a de cima a baixo sem poder acreditar que a mulher que me atraiu como se tivesse um ímã é a infernal dona do boteco que tem feito minha vida um suplício por causa de sua teimosia.

— Theodoros Karamanlis? — ela parece tão chocada quanto eu e já não há nada além de desprezo em sua voz ao falar meu nome.

Desvio um olhar mortal para meu primo, que, além de parecer surpreso, está também muito interessado nessa interação entre nós.

Eu vou te matar, seu filho da puta!


— Aceita mais uma taça?

Minha vontade é de aceitar e pagar para ver Theo jogando todo seu charme para mim, usando armas pesadas para conseguir provar que temos realmente toda essa química que ele demonstrou com um simples roçar de dedos em meu braço.

E temos, sim! Não sou hipócrita a ponto de me enganar dizendo que não senti nada por ele. Assim que se sentou ao meu lado aqui, a esse balcão, meus olhos foram imediatamente atraídos para ele. Quando me cumprimentou, sua voz fez meu corpo inteiro reagir de uma forma estranha, e tive a nítida sensação de que o conhecia de algum lugar.

Porém, foi só quando se virou em minha direção, depois de eu ter puxado assunto descaradamente, que fiquei sem fôlego. Seus olhos são de um azul que eu nunca poderia esquecer caso já os tivesse visto. No entanto, a sensação de reconhecimento persiste. Ele é muito bonito, além de ter um sorriso de arrancar a calcinha de qualquer mulher.

Se Manola estivesse aqui comigo, com certeza iria dizer que ficou emocionada e que molhou a calcinha. Entretanto, aprendi com o tempo e com as responsabilidades a ser mais comedida e a não me deixar levar sem pensar. Um rosto e um corpo bonitos não querem dizer muita coisa sobre o caráter de alguém.

Estou para aceitar a proposta de mais uma taça e alongar o papo, mas minha visão periférica capta um movimento na entrada do restaurante, e me sinto murchar ao ver Millos Karamanlis adentrando. Esse homem não se cansa de tentar comprar o Hill, é um saco!

Quando me ligou, eu estava pronta para dizer um sonoro NÃO a ele, mas insistiu que era importante, que tinha uma situação que me interessava e por isso achava melhor conversarmos para tentar um acordo. Isso me deixou intrigada e temerosa, por isso estou aqui, neste momento, tendo que recusar a companhia agradável e intrigante do Theo.

— Infelizmente, não — respiro fundo, respondendo ao delicioso oferecimento desse deus com cuja companhia o destino me presenteou enquanto eu esperava pelo diabo. — Meu compromisso chato acaba de chegar.

Levanto-me, resignada, para receber o homem barbudo e muito estiloso, devo confessar, mas que é uma pedra no meu sapato.

Millos abre um sorriso e se aproxima para me saudar como sempre faz, com um beijo na bochecha e um curto aperto de mãos. Tenho verdadeiro trauma dele, de estar sempre rodeando minha vida à espera de um fracasso que o deixe comprar o bar da minha família, minha casa, o legado do meu pai. Contudo, tenho de admitir que, embora pondo pressão, ele sempre me tratou muito bem e com muita simpatia.

— Ah, desculpem o atraso! — Ele olha para o Theo e depois para mim. — Que bom que já se conheceram. — O quê? Como assim? Eles se conhecem?! — Theo, eu acho que chegou a hora de conversarmos pessoalmente com a Duda.

Millos Karamanlis conhece o Theo!

Meu sensual companheiro de bar se levanta e me encara de um jeito completamente alarmado. O olhar sedutor sumiu, bem como seu sorriso franco e relaxado. Agora apenas incredulidade está estampada em seu rosto bonito.

Oh, meu Deus, não pode ser!

Claro que eu acharia que o conhecia, afinal, já vi fotos suas em revistas da alta sociedade e em jornais, embora creia que nenhuma delas lhe tenha feito jus. O homem ao meu lado não é simplesmente “Theo”, é o diretor da porcaria da empresa que comprou toda a quadra onde fica o Hill e que vem tentando de todas as formas me tirar do meu lugar!

— Theodoros Karamanlis? — minha voz soa tão incrédula como me sinto.

Como não percebi quem era esse homem? Como pude me sentir atraída por ele a tal ponto de fantasiar uma noite ao seu lado? Eu o quis como havia muito tempo não me lembrava de ter querido alguém, uma atração que não sentia desde a época em que ainda pensava que tinha o mundo aos meus pés e que conquistaria tudo o que sonhasse ter.

Millos fica um tempo com a sobrancelha erguida, olhando de um para o outro, até que resolve quebrar o gelo.

— Podemos ir para a mesa?

Eu o olho ainda sem entender que tipo de palhaçada é essa. Eles fizeram de propósito? Será que Theo veio primeiro para tentar me seduzir, afinal, nós nunca fomos apresentados, ou foi só uma coincidência ele ter chegado antes e aí resolveu brincar comigo?

Não é possível que ele não soubesse que eu sou a Duda Hill!

— Millos, o que você pretende, afinal? — Theo questiona com a voz demonstrando toda sua irritação.

— Eu não acho que temos algo para conversar. — Pego minha bolsa, que estava pendurada na poltrona giratória. — Não vou mudar de opinião, não pretendo vender o Hill.

— Por que não? — Theo questiona de repente, e eu o olho. — O que uma chef formada por Le Cordón Bleu pode querer com um boteco? — Fecho minhas mãos com força na alça da bolsa. — Ou esse papinho de Paris e seus diplomas é só um sonho fantasioso de uma dona de bar?

Millos emite um palavrão baixo, prevendo que o tempo irá fechar. Ele me conhece bem, já me irritou várias vezes e saiu do Hill com uma resposta à altura.

— O que eu quero ou não só diz respeito a mim, doutor Theodoros Karamanlis — tento falar o mais baixo possível, mas meus olhos brilham de indignação, e espero que ele entenda a mensagem. — O boteco é meu, faço com ele o que eu quiser, e de uma coisa você pode ter certeza: Não. Vou. Vender. Para. Vocês! Ficou claro agora, ou preciso desenhar? — Olho para o Millos.

— Ei! Vamos nos sentar à mesa e conversar com calma! — ele tenta apaziguar o clima tenso entre mim e Theodoros. — Theo... — pede sua colaboração, mas o homem parece estar soltando fogo pelas ventas e não lhe dá atenção. — Vocês estão chamando a atenção dos outros clientes e...

— Foda-se! — falo em uníssono a Theodoros, e Millos ri, mesmo ainda nervoso.

O maître aparece para nos conduzir até a mesa reservada, e Millos faz um gesto para que o sigamos até lá. Encaro Theodoros Karamanlis por um tempo, ambos medindo forças para ver quem cede primeiro.

— Vamos? — Theodoros pergunta, e eu assinto, passando por ele sem nem ao menos emitir uma palavra. A mesa que Millos reservou é discreta, no fundo do salão, sem nenhuma outra por perto. Sento-me com as costas eretas, sem tirar a alça da bolsa do ombro, mostrando a eles a minha contrariedade por estar ali.

— Vamos fazer um pedido?

— Não, Millos, não pretendo ficar para comer — sou direta. — Preciso apenas que me fale sobre o assunto que não quis adiantar pelo telefone. O que vocês têm a ponto de me fazer querer fechar um acordo?

Theodoros olha para ele parecendo muito mais irritado e bufa de raiva. Millos balança a cabeça e começa a explicar:

— Duda, há alguns meses estamos de posse de uma...

— Enorme quantia de dinheiro — Theodoros o interrompe. — A proposta de compra aumentou, e seria interessante a senhorita reconsiderá-la, afinal, pode abrir um pequeno bistrô para exercer o que aprendeu em Paris.

— O quê? — Millos o encara, confuso. — Olha, eu desisto! — Chama um garçom e pede uma cerveja. — Eu realmente acho que podemos chegar a um acordo, mas vocês dois são teimosos como mulas!

— Não quero nenhum acordo com vocês! — declaro. — Tudo o que quero é que parem de ficar rondando minha propriedade como dois abutres!

— Boa definição, senhorita Hill. — Theodoros se inclina por sobre a mesa para ficar mais próximo a mim. — Seu negócio está agonizante e em breve perecerá, e, quando isso acontecer, irá lamentar não ter abaixado um pouco sua crista e ter aceitado minha oferta, porque só sobrará carcaça aos abutres!

— Theo! — Millos o repreende, mas depois começa a rir. — Que conversa de doido, viu? Não esperava por isso! — Bebe sua cerveja. — Confesso que está um pouco divertido.

— Vá se foder, Millos! — mal fala isso e volta a me olhar. — Não irei repetir a oferta, Duda Hill. A aconselho a aceitar o mais rápido possível.

Meus olhos faíscam de raiva, mas meu corpo traidor se arrepia inteiro ante a expressão dele. O homem é sexy demais, insuportavelmente arrogante, mas ainda assim, muito sexy!

— Não estou interessada — uso o mesmo tom de voz que ele. — Vendo para qualquer um, menos para vocês. — Ponho-me de pé. — Espero que desfrutem do jantar sem minha companhia. Eu não conseguiria comer aqui com vocês sem ter uma enorme indigestão.

Theodoros se põe de pé também, e Millos, com um sorriso debochado, cruza os braços e fica só esperando o próximo passo do seu chefe.

— Não diga depois que não a avisei, Duda Hill.

Rio, passando perto dele para sair do salão.

— Não tenho medo de suas ameaças, Theodoros Karamanlis. — Aproximo-me para falar bem perto do seu ouvido: — Cão que ladra não morde!

Ele segura meu braço e abre um sorriso – puta merda! – cheio de malícia.

— Eu morderei, Maria Eduarda, e o farei tão gostoso que você pedirá mais!

Olho para sua mão em meu braço, e ele me solta. Respiro fundo para controlar o formigamento em meu corpo e a tremedeira em minhas pernas e saio do restaurante o mais rápido possível.

— Deseja que traga seu carro, senhorita? — o manobrista me aborda na porta do restaurante.

— Po-por favor! — Merda! Respiro fundo mais uma vez. — Sim, obrigada.

Não é possível que esse homem ainda continue mexendo com minha libido desse jeito! Durante todo o tempo em que estávamos lá medindo forças, essa tensão sexual nunca deixou de pairar entre nós. Acho até que o Millos percebeu isso!

Droga! É o Theodoros Karamanlis, Duda! Inimigo, o diabo em pessoa, que quer fazer de tudo para destruir tudo o que você tem, tudo pelo qual você lutou para manter depois que seu pai se foi!

Claro que seria muito fácil aceitar uma oferta melhor, pagar as dívidas e abrir um “bistrô”, como ele mesmo aconselhou, mas só eu sei o quanto meus pais amavam aquele pedacinho no meio da Vila Madalena, o quanto se orgulhavam de tê-lo comprado juntos, com muita luta e esforço.

Não vou deixar que um homem arrogante ponha tudo ao chão e destrua todas as lembranças que tenho daquele lugar. Não só do Hill, mas da casa onde mamãe e papai passaram seus últimos momentos antes de me deixarem. Não! De jeito algum eu irei permitir isso! Se precisar vender, o farei para alguém que se comprometa a manter o imóvel, e não para uma empresa que quer demolir tudo para erguer ali algum prédio ou shopping!

Entro no carro e dirijo para casa, ainda sentindo o toque dele reverberando pelo meu corpo, sua voz arrepiando os pelos da minha nuca e seu olhar... Há algo naquele olhar que me desperta lembranças, talvez pela tonalidade – a mesma do mediterrâneo –, ou o jeito de me olhar como se estivesse realmente faminto.

Chego a casa e encontro tia Do Carmo jantando sozinha na sala e assistindo à novela.

— Ué, não ia jantar fora? — questiona quando ataco suas panelas.

— Ia, mas o lugar estava tóxico demais para meu estômago. — Ela franze a testa, sem entender, e eu rio. — A companhia era desagradável.

— Ah, sim.

— Cadê a Tessa? — pergunto enquanto me sirvo de deliciosas costelinhas de porco e angu, sentindo meu estômago roncar e minha boca salivar. Adoro a comida dela!

— Chegou da escola, fez dever, tomou banho, jantou e dormiu. — Rio do relatório completo. — Aquela menina é um anjo!

— Sim, ela é! — concordo, cheia de orgulho.

— Descobriu, pelo menos, o que aquele pessoal da Karamanlis queria?

Sento-me ao seu lado no sofá com o prato na mão.

— Aumentaram a proposta! — Dou de ombros. — E acabei conhecendo o CEO, Theodoros Karamanlis.

— Hum, já vi fotos dele naquela revista que assino. — Rolo os olhos, pois sempre achei um desperdício de dinheiro comprar uma revista que fica cobrindo a vida de artistas e da alta sociedade paulistana. — O homem é um pedaço de mau caminho.

Acompanho-a em suas risadinhas, achando uma graça que minha tia, solteirona e virgem, fale isso de um homem. Eu nunca soube o motivo pelo qual ela nunca quis se casar, nem mesmo namorar. Perguntei a ela se algum dia teve pretensão de ser religiosa, mas negou, dizendo que não tinha o dom.

Tia Do Carmo é uma caixinha de segredos bem guardados, essa é a verdade. Do mesmo jeito que ela adora acompanhar a vida alheia nas revistas e nos programas de fofocas, não abre a boca para falar da sua, nem mesmo para mim.

Ela é como uma mãe para mim e cuida de Tessa com tanto amor e dedicação que eu não poderia pensar em uma avó melhor para minha menina, mas não quer saber de arrumar alguém, nem mesmo para se distrair um pouco.

Há uns dois anos veio trabalhar conosco um senhor muito bem-apessoado, Joaquim, que ficava na recepção. O homem arrastou um bonde pela minha tia – que é uma linda senhora de 55 anos –, mas ela nem ao menos lhe deu um segundo olhar.

Enfim, eu aprendi a aceitar que ela é feliz assim, mesmo porque não estou indo para um caminho diferente, pois mal tenho tempo para namorar alguém. Além do meu namorado francês, tive mais uns dois já aqui no Brasil. Claro que já tive algumas transas avulsas, sem nenhum compromisso, mas já faz tanto tempo que nem isso acontece que, se hímen se regenerasse, o meu certamente já estaria completo de novo.

— Ele é bonito, sim, mas muito arrogante! — informo, tentando não demonstrar o quanto fiquei interessada no Theo. — De qualquer forma, recusei mais uma vez a proposta.

— Você tem certeza disso, minha filha? O sumiço do agiota tem tirado meu sono. Você sabe como essas pessoas são, por mais que sejam conhecidos. Além do mais, te vejo trabalhar como louca e entregar o dinheiro todo para custear essas dívidas. — Ela aponta para a casa, cheia dos mesmos móveis da época do casamento dos meus pais. — Duda, a gente mal tem se aguentado em pé!

— Não nos falta nada, tia!

— Não, Duda, não estou me queixando. Realmente não nos falta nada, temos comida, um teto, e Tessa pode estudar em uma boa escola, mas vale a pena se sacrificar do jeito que está fazendo? Você não tem tempo nem para namorar!

Gargalho.

— Essa é uma das minhas menores preocupações, tia.

— Eu sei, filha, e é isso que me preocupa. — Passa a mão no meu rosto, e fecho os olhos, gostando do carinho. — Há muitos anos você só cuida das pessoas, Duda. Assume responsabilidades demais e esquece de cuidar de si mesma.

— Estou bem! — afirmo, mas meu coração entende e concorda com ela. — Assim que terminar de pagar tudo o que devemos, vou poder cuidar de mim também, não se preocupe.

Ela suspira, resignada, pois me conhece bem e sabe que sou muito teimosa. Decidi lutar até o fim para manter a única coisa que me resta e não vou descansar até conseguir estar em paz com isso, mesmo que um certo CEO muito gostoso me encha de ameaças.

Inclusive uma que pareceu mais uma promessa...


Maria Eduarda passa por mim deixando para trás o rastro delicioso do seu perfume, agitando meu corpo. Tenho vontade de segurá-la por mais tempo, de sair com ela para algum lugar onde possamos dar vazão à atração que sentimos um pelo outro desde que nos encontramos no bar do restaurante.

Todavia, não dá para simplesmente ignorar quem somos!

Fico um tempo de pé, mesmo depois de ela já ter saído do restaurante, raciocinando quais seriam as consequências se Millos simplesmente não tivesse aparecido. Olho para meu primo, tranquilo, tomando sua cerveja e provavelmente a enchendo de defeitos.

— Isso foi a pior merda que você já aprontou! — digo, atraindo a sua atenção. — E olha que você tem um longo currículo de merdas!

— Vá se foder, Theo! — Fica sério. — Eu só estava tentando um acordo entre nós.

Rio, seco, não achando nenhuma graça e não comprando nem um pouco essa conversa mole de “acordo”. Millos nunca dá ponto sem nó e me conhece bem para saber que Duda seria extremamente atraente para mim. O desgraçado fez de caso pensado, só nunca irá admitir.

Pego o celular, que deixei em cima da mesa, e, sem nenhuma palavra ou mesmo um olhar, afasto-me de Millos, indo em direção à saída do restaurante.

Ouço-o me chamar, mas não me segue, e ando decidido até a calçada, encontro o manobrista e peço meu carro. Não tenho mais clima para jantar, muito menos para olhar aquela cara debochada. Bufo, frustrado demais, com fome e com o desejo sexual insatisfeito.

Porra!

Já no carro, não dirijo diretamente para casa, mas a esmo, pensando na loucura que foi o começo da noite. O conhecimento de quem era a mulher ao meu lado deveria ter sido suficiente para aplacar minha vontade de devorá-la toda, mas nem mesmo a diminuiu.

É uma das raras atrações fortes que já me aconteceram. Geralmente não é assim, é mais um jogo de disponibilidade e vontade, uma mulher gostosa e interessante e pronto! Raramente sou atraído a alguma como aconteceu com Maria Eduarda hoje. Eu olhei para ela e a quis.

É primitivo demais até para mim, mas aconteceu. Quem ela era, o que fazia ou mesmo sua disponibilidade – embora, se fosse casada, não rolaria – não importaram para mim naquele momento. Depois, a conversa, o sorriso, o jeito como o corpo dela reagiu ao meu, tudo isso só potencializou o que foi sentido ao primeiro olhar.

Duda Hill!

Paro o carro em frente ao boteco antigo na Vila Madalena, olhando sua fachada recentemente reformada, o sobrenome da família dela na entrada e algo que nunca me chamou atenção antes, um segundo andar com janelas grandes de vidro, seguindo a mesma arquitetura do bar, tijolos à mostra e cimento queimado.

Franzo o cenho ao me lembrar do dia em que estive no local, pois não vi nenhum mezanino ou mesmo escada de acesso. Há uma porta ao lado da fachada principal, pintada com outra cor, mas que não pertence ao prédio vizinho, já de propriedade da Karamanlis.

Ela mora em cima do bar? Novamente olho para o alto e, no exato momento, uma luz se acende em um dos cômodos, iluminando a janela com cortinas claras. Um apartamento!

Como eu nunca soube disso? Para mim, o imóvel era puramente comercial, como todos os outros do entorno, nunca sequer desconfiei que a irritante mulher pudesse morar no local.

Uma sombra passa pela janela, e meu pau pulsa na calça só pela possibilidade de ser Maria Eduarda se preparando para dormir. Fecho os olhos, aproveitando a total falta de movimentação na rua – ao que parece ninguém funciona às segundas-feiras – e imagino como ela seria apenas vestindo uma calcinha ou até uma camisola sexy.

Toco-me sobre a calça, sentindo como já estou em completa ereção, então abro os olhos e xingo, voltando a pôr o carro em movimento e saindo daqui o mais rápido possível. Eu pareço um maldito stalker tarado, parado em frente ao que suponho ser o apartamento dela e fantasiando.

Caralho!

 

 

Termino de assinar o último documento e o entrego para Rômulo, que sai apressado a fim de entregá-lo para o jurídico. Temos um maldito setor de correspondência e vários boys para esse trabalho, mas meu assistente é tão controlador com suas responsabilidades que ele mesmo gosta de entregar os documentos e de pegar a assinatura de quem os recebeu no caderno de protocolo antes de os colocar no sistema.

Eu sei que é motivo de piadinha aqui seu jeito burocrático, mas é exatamente por isso que confio nele para lidar com minhas coisas na empresa. Rômulo é responsável, organizado e sua “burocracia” nada mais é do que uma forma de nos garantir, proteger nosso trabalho e a companhia.

Gemo, colocando a mão na têmpora, amaldiçoando-me por ter consumido uma garrafa inteira de uísque ontem, depois que cheguei a casa, frustrado demais sexualmente e puto comigo mesmo por estar me sentindo assim pela Duda Hill.

Troquei mensagens com Millos, ameaçando sua integridade física por conta da palhaçada de ontem. Claro que ele fingiu não ter feito de propósito, mas se esqueceu de que o conheço bem. Eu só não sei o que ele pretende ainda. Contudo, não há dúvidas de que está tramando algo.

Uma notificação de mensagem chega ao meu celular. Pego-o, lendo a mensagem deixada pela Viviane acerca de um concerto musical e uma exposição de gravuras que irá acontecer esta semana. Dispenso, sem nenhuma vontade de comparecer, mas ela insiste.

 

 

 

Sim, ela tem razão!

Preciso estar focado no que realmente é importante para mim nesse momento. Uma atração como aconteceu entre mim e Maria Eduarda ontem é garantia de uma foda inesquecível, mas só isso, não resolve meu problema, e o tempo está se encurtando cada vez mais. Preciso de uma esposa e de um filho!

 

 

 

Envio a mensagem para ela e me recosto na cadeira, olhos fechados e dedos nas têmporas, querendo a porra de um analgésico para poder trabalhar sem que pareça que está ocorrendo alguma demolição na minha cabeça. Não devia ter bebido tanto sem ter comido nada!

Cheguei a casa já arrancando a roupa e entrando no banho. Demorei por lá, esperando que os jatos fortes de água fria abaixassem a temperatura do meu corpo e trouxessem minha racionalidade de volta. Não costumo me impressionar tanto assim por uma mulher; poucas foram as que mexeram comigo dessa forma.

Olhei para baixo, e lá estava a evidência de que nem mesmo a água iria resolver o problema. Encostei a testa na parede fria e toquei meu pau, gemendo com a sensação, pronto para gozar apenas com os estímulos da noite.

Eu gosto muito de trepar, adoro ser masturbado por mãos femininas – às vezes, pés também –, mas nunca fui um punheteiro. Nunca! O prazer de me tocar nunca se comparou ao de ser tocado, por isso, quase não me masturbo. Porém, ontem, não teve jeito! O cheiro do perfume dela estava impregnado em minhas narinas, a sensação de sua pele se arrepiando sob meu toque, o sorriso, os olhares... Em poucos minutos gozei como um louco, sujando a parede do boxe, gemendo dolorosamente de vontade de senti-la.

Pela primeira vez em muito tempo, os cabelos cor-de-rosa não apareceram durante meu gozo, e amaldiçoei essa percepção. A verdade é que troquei o objeto da minha fantasia. No entanto, diferentemente da garota de anos atrás, agora eu tenho um rosto, um nome e sei onde mora.

— Estou fodido! — falo em voz alta, achando que estou sozinho no escritório.

— Vou pegar um comprimido, chefe! — a voz de Rômulo faz com que eu me aprume, arregalando os olhos em sua direção.

— Mas que porra, Rômulo! Como você consegue ser tão silencioso às vezes? — digo emputecido por estar fantasiando com a mulher de novo em pleno horário de trabalho e sob as vistas do meu assistente.

— Eu percebi que o doutor está com dores de cabeça. — Ele vasculha sua bolsa. — E... Ah! Achei! — Sorri como se tivesse inventado a fórmula da água. — Paracetamol!

Ele vai até o aparador onde ficam as bebidas a fim de pegar um copo d´água para eu tomar com o comprimido, porém, peço que me traga café.

— Tem certeza? — titubeia.

— Vai acelerar a absorção e fará efeito mais rápido.

— Chefe, isso é perigoso!

— Anda logo, porra, tem uma britadeira no meu cérebro!

Ele fica nervoso, suas mãos tremem, fazendo o café respingar sobre o móvel, e eu bufo de impaciência. Rômulo é prestativo, um ótimo funcionário, mas me questiona muito, além de ser um tanto desastrado.

Mal engulo o comprimido, e o traidor, quer dizer, Millos entra no escritório.

— Tive uma ideia e vim dividi-la com você. — Olha a xícara na minha mão. — Cheguei em boa hora! Eu gostaria de um café também! — pede ao Rômulo, e eu fecho a cara.

— Esse não é o trabalho dele — corto-o. — Rômulo, vá até o jurídico e veja se Kostas já conseguiu adiantar a papelada que faltava.

— Sim, doutor! — O assistente sai correndo da sala.

— Quer a porra do café? Pegue você mesmo! Não dê ordens ao meu assistente!

Millos levanta as mãos pedindo calma e vai até a máquina, escolhendo um sabor e um tipo de preparação antes de voltar para próximo de mim.

A dor de cabeça aumentou um pouco, mas espero que, com o remédio do Santo Rômulo, eu melhore em breve. Além disso, não quero dar bandeira de que enchi a cara na noite passada e suportar as provocações de Millos.

— Qual foi a magnífica ideia que o fez levantar a bunda de sua cadeira e vir até aqui encher meu saco?

Millos ri.

— Estamos de bom humor hoje, hein? — Pega o café e se senta. — Você quer tirar a Duda Hill do imóvel, não é? — Franzo o cenho para ele, achando desnecessário responder, esperando que tenha sido uma pergunta retórica, para o bem de sua inteligência. — Já reparou que o único pub daquela quadra é o dela?

— Você comeu merda no café da manhã? — pergunto, e ele ri. — Claro que ele é o único, os outros imóveis já estão todos vazios porque compramos todos!

— Do outro lado da rua têm duas casas de show, uma boate de strip de luxo, dois restaurantes de comida japonesa e uma pizzaria famosa. — Ele cruza os braços. — Esse foi um dos motivos de o pub ter ficado tão movimentado, a diversidade de empreendimentos próximos. É uma área à qual os jovens vão para se divertir, e ela conseguiu agregar boa comida e boa música em um só local.

Faz sentido, claro. Ela aproveitou o movimento já existente e ofereceu um diferencial, um lugar para dançar, curtir com os amigos, arranjar companhia e ainda comer seus bolinhos famosos e premiados. Sorrio de leve, sentindo-me levemente excitado por ela ter tanto tino. Gosto de mulheres inteligentes!

— Você a isolou no momento em que comprou todos os imóveis e mandou os estabelecimentos fecharem. Ela é a única opção da área...

Ele se interrompe ao ouvir uma batida à porta.

— Pode entrar — autorizo, sabendo que não é o Rômulo.

Kostas aparece, seu tamanho e largura preenchendo a entrada da sala, o olhar azul e arrogante, o sorriso debochado e os cabelos negros penteados para trás com uma espécie de pomada de brilho molhado. Meu irmão é a cópia do nosso pai, e isso chega a me causar arrepios.

— Bom dia! — cumprimenta Millos e se senta ao seu lado. — Theodoros, tenho uma notícia boa e uma ruim, qual quer primeiro? — Dá risadas debochadas, e Millos o segue.

Isso é sério? Levanto uma sobrancelha, olhando-o carrancudo.

— Fala logo, Kostas! — ordeno.

— Bem, já que você não tem nenhum senso de humor. — Pisca para Millos. — Nós já sabíamos disso, mas não custava tentar! — Meu primo assente, e eu bufo de raiva. — Vou começar pela boa. Já ingressamos com o pedido de execução da nota promissória.

— Já não era sem tempo! Preciso comemorar por você ter conseguido fazer seu trabalho?

O desgraçado ri.

— A ruim, no entanto, também é sobre isso. — Ele me estende umas folhas. — Duda Hill deu entrada no inventário judicial após a morte do pai.

Leio os papéis, mas pouco entendo de legislações e procedimentos legais, então espero que ele pare de fazer cu doce e prossiga com suas explicações.

— Que merda! — Millos exclama, e isso é o suficiente para me deixar tenso.

— O que isso significa, porra?

Kostas se levanta, anda até o aparador e se serve de água.

— Você poderia ter bourbon aqui — comenta como se estivesse aqui para uma visita social. Xingo-o. — O processo não cumpriu nem metade de seu caminho natural, caro irmão. Já está aberto há quase quatro anos e pouco avançou, e isso porque tem apenas um imóvel a ser herdado por uma única herdeira. — Ele ri. — Adivinha qual?

O Hill! Merda!

— O que isso significa em nossos planos de adquirir aquela pocilga? — Irrito-me.

— Bem, assim que for declarado o débito por causa da confissão de dívida – a promissória –, nós vamos ser credores do espólio. — Bufo pelo uso dos termos técnicos desnecessários.

É Millos quem vem ao meu resgate.

— O homem está morto, Theo, não temos como cobrar dele, apenas dos bens que ele deixou, entendeu? Isso obriga a Duda a vender ou entregar o Hill em troca da dívida. — Sorrio, achando a notícia ótima. — Mas somente quando o inventário fechar, o que pode levar anos ainda.

— O quê?! — Levanto-me, esquecendo por completo a dor de cabeça.

— É isso, caro irmão! — Kostas dá de ombros. — Seja bem-vindo à realidade da justiça brasileira, em que inventários simples duram, em média, de oito a dez anos!

— Não há outra forma de recebermos?

— Não. — Kostas ri, satisfeito. — A dívida está no nome do pai dela, então só alcança bens deixados por ele.

— A vantagem é que ela não pode vender para outro também, não é? — Millos questiona.

— Teoricamente, não, mas se o comprador não se importar em não ter a escritura, ela consegue vender, sim. Tem muita gente que faz isso. Não é legal, mas faz.

— Puta que pariu! — explodo, virando-me em direção à vidraça.

— O jeito é tentar comprar, Theo, e alegar que somos credores e que, por isso mesmo, ela só pode vender para nós — Millos fala, e Kostas concorda.

— Ela não vai vender, disse ontem!

Sou um homem muito teimoso, sempre fui, e reconheço um igual de longe! Quando Duda Hill disse ontem que não ia vender para a Karamanlis, vi a teimosia brilhando em seus olhos.

— Além do mais, pelo que soube, os negócios vão bem — Kostas complementa, deixando-me ainda mais raivoso. — Ela não precisa vender.

Olho para Millos, e ele arregala os olhos ao ver a determinação nos meus.

— Fale de sua ideia!


O despertador me acorda pela segunda vez no dia. Tenho vontade de esconder a cabeça debaixo do travesseiro e fingir que não estou ouvindo, deixar que entre em modo “soneca” e que, com isso, eu ganhe mais alguns minutos na cama.

Suspiro, abro os olhos lentamente e pego o maldito telefone para cancelar o despertador. Ganhar minutos na cama significa perder minutos do dia, e isso definitivamente é uma coisa à qual não posso me dar ao luxo. Tenho que trabalhar, organizar minha cozinha e ser a primeira a estar nela quando os demais chegarem.

Espalho-me na antiga cama de casal dos meus pais, abrindo os braços em forma de cruz e esticando todo o meu corpo. Carreguei tanto peso hoje que, nessas horas, sinto falta de não ter um homem fortão trabalhando comigo nesse negócio pesado que é transportar as compras. Tento relaxar meus músculos, fecho os olhos e deixo a mente vagar por um segundo.

Em meio aos pensamentos de paz, natureza e tranquilidade, lindos olhos azuis aparecem, sedutores, emoldurados por cílios longos e escuros que fizeram sombra em seu rosto quando ele olhou minha pele se arrepiando ao seu contato. No mesmo momento sinto um gelo na barriga – desses que sentimos quando descemos uma ladeira inesperadamente de carro –, e um tremor perpassa pelo meu corpo, desde as pontas dos dedos até a raiz dos cabelos.

Emito um grunhido de irritação por, mais uma vez, Theodoros Karamanlis se infiltrar nos momentos em que busco relaxamento e pensamentos positivos para enfrentar o dia. Tem sido assim desde aquele maldito jantar, há quase uma semana!

Sento-me, notando o quanto estou suada, pois há alguns meses meu ar-condicionado do quarto teve uma pane elétrica, e não tive nem tempo, nem dinheiro para chamar a assistência técnica. O verão chegou com tudo este ano, e as temperaturas estão ameaçando bater recordes desde o final da primavera. Vou precisar arrumar o ar ou então ir dormir no quarto da tia Do Carmo.

Confiro as horas, meio-dia e alguns minutos, e sigo rápido para tomar a terceira chuveirada do dia!

O expediente no Hill durou até às 2h35 da manhã, quando gentilmente convidamos nosso último cliente a sair. Passei a encerrar mais cedo em dias de semana, pois sábado e domingo vamos até às 4h da manhã. Fechei a cozinha para pedidos exatamente à 1h para que desse tempo de todos os quitutes ficarem prontos e nossos clientes irem embora até às 2h30. Entretanto, sempre fica um agarrado a uma cerveja num canto, sempre!

A música ao vivo, de terça a domingo – menos quando temos campeonatos de futebol, pois aí na quarta-feira transmitimos os jogos – anima o pessoal e por isso mesmo precisa ser encerrada uma hora depois do fechamento da cozinha. Há toda uma preparação para que os clientes entendam que a hora de “dar tchau” chegou.

Hoje, sábado, é o dia mais desgastante para mim, pois a cozinha irá funcionar a todo vapor até às 3h30 da manhã, aceitando pedidos até uma hora antes disso, e o bar só será fechado às 4h. E adivinhem quem fecha o bar? Exatamente, eu!

Ou seja, terei 14 horas de trabalho incessante pela frente, a partir das 2h da tarde, sendo que noite passada não aguentei ficar acordada para ir até o CEAGESP, dormi às 3h e acordei às 4h, correndo para poder pegar um pouco do pescado bom, pois a venda para o atacado começa na madrugada e vai até às 6h da manhã. Descarreguei tudo no restaurante e voltei para a cama às 9h, por isso, sim, estou acordando ao meio-dia!

Saio do banho e já coloco a calça preta – uniforme do Hill –, uma camiseta branca por causa do calor e calço chinelos. Separo o uniforme, que minha tia já deixa passado, a dolma, o avental e meus turbantes. Deixarei os cabelos secarem para depois fazer um coque alto, bem firme, para que nenhum fio possa se desprender.

— Boa tarde! — tia Do Carmo me cumprimenta assim que apareço na sala. — Vai almoçar agora?

— Vou. — Suspiro, sentando-me. — E a Tessa?

— Acabou de ir para o inglês com a Marcela e a Diana. — Assinto, lamentando não ter me encontrado com ela aqui, mesmo que depois dê uma xeretada na minha cozinha.

Mal tenho tempo para ela! Sinto-me mal por isso, tento compensar, mas queria ser mais presente e sei que Tessa sente essa necessidade tanto quanto eu. Porém, minha menina já é tão madura que entende que essa rotina louca na qual vivo não é por minha escolha.

Tia Do Carmo me serve de sua comida simples, bem temperada e absurdamente viciante, e eu não penso em mais nada a não ser apreciar a iguaria. Ao longe, enquanto como, ouço o barulho da máquina de costuras dela, em seu quarto, trabalhando sem parar. Ela é teimosa e está sempre aceitando encomendas de reparos ou confecção de roupas, principalmente para o pessoal da igreja que frequenta.

Somos farinha do mesmo saco, teimosas ao extremo, e ela me culpa por eu recriminá-la por querer ajudar. Não é só por teimosia ou orgulho que peço tanto a ela para que se poupe, pois se aposentou há alguns anos por invalidez exatamente por passar horas e horas costurando desde menina e com isso ter ganhado algumas hérnias de disco ao longo de sua coluna.

A verdade é que, se não fosse pelas dívidas, eu poderia dar uma vida bem melhor a elas. O Hill vai muito bem, cada vez mais conhecido, atraindo clientes para essa área que nem é tão famosa por ter bares. Contudo, o boca a boca tem se espalhado pela cidade e trazido com ele nossos clientes.

Termino de comer, lavo a louça e termino de me arrumar para descer e só voltar no meio da madrugada. Faço uma oração curta antes de descer e grito para tia Do Carmo:

— Tia, estou no Hill se precisar de algo!

— Vai com Deus, minha filha! — grita de volta, cessando a costura. — Tente descansar em alguns momentos!

Apenas rio, porque a cozinha é uma correria aos finais de semana, e é impossível me sentar por uns minutos sem que alguma coisa desande, já que atendemos em média 400 clientes por sábado e uns 350 no domingo. O volume de comida que processamos é tão grande que fazemos compras nas madrugadas de terça, quinta e sábado.

Poderia até ir ao CEAGESP menos vezes, mas prefiro trabalhar com os ingredientes o mais frescos possível e, graças à câmara fria que instalamos, já me dei ao luxo de parar de ir todas as madrugadas. Vou sempre às terças e sábados e deixo Manola se virar na quinta-feira. A mulher adora ir para lá e demora o dobro do tempo que eu levo, sempre conversando com os comerciantes, pechinchando horrores e fazendo amizades. Como ela é sozinha, está sempre com o caderninho de telefone preenchido para quando quer companhia, e como trabalha como louca aqui, seu lugar de fazer contatos é lá na central de abastecimento.

Confesso que me divirto muito com suas histórias, assim como todo o resto de nós da cozinha.

Abro a entrada principal do bar, pois, infelizmente, quando papai montou o local, não pensou em saída de emergência, mesmo porque na sua época era todo aberto, então, quando transformei o boteco em um pub, tivemos que sacrificar a porta usada para carga e descarga e transformá-la para que estivéssemos em dia com a legislação dos bombeiros e da própria prefeitura.

Sempre que entro, já deixo a porta de aço aberta e tranco somente a de vidro, deixando um pouco de sol entrar através das paredes de vidro temperado.

Sigo diretamente para a cozinha, mas anotando mentalmente tudo o que precisará ser limpo com mais afinco, resultado da noite anterior. No bar, sempre tenho a satisfação de passar e ver o asseio do Kiko, seus utensílios todos nos lugares, limpos e secos, as chopeiras sem nenhum traço de respingo de chope, o chão brilhando.

Abro a cozinha, e o cheiro dos produtos de limpeza que usamos há algumas horas, assim que encerramos as atividades, recepciona-me. Faço meu coque, como sempre, ponho o turbante, lavo as mãos e começo a trabalhar, colocando alguns alimentos de molho, descongelando outros e conferindo as receitas, bem como o funcionamento de todos os equipamentos.

Ouço o barulho da porta, e uma risada preenche o lugar, indicando que Manola chegou junto ao seu fiel escudeiro, Arnaldo.

— Boa tarde, chef! — ela me cumprimenta, indo para o banheiro dos funcionários. — Hoje o Naldo está impossível!

— Você é que não aguenta ouvir umas verdades, Manola. — Arnaldo vem até onde estou e me dá um beijo na testa. — Carinha de cansada hoje, boneca!

— Dia de compras... — Aponto para a caixa de camarão no gelo que tirei da câmara para ele limpar. — Divirta-se!

— Ai, minha santa protetora dos dedos furados! — geme.

— Use luvas! — Manola grita, vindo do banheiro trajando o uniforme, seus cabelos ruivos presos em uma trança e seu turbante cheio de beijos já na cabeça. — No dia em que você perder um dedo, ainda processa a Duda!

— Deus me livre, Manola! — Bato na bancada de inox, e ela ri.

— É na madeira, querida! — Joga um beijo para mim e as luvas de fio de aço para o Arnaldo. — Não vai te proteger contra o camarão, mas quando for limpar as carnes, faça o favor de usá-las!

— Oui, chef! — ele debocha.

— Abusado! — diz, pegando as panelas guardadas e já as colocando no fogão. — Vou adiantar os molhos enquanto a Ana não chega. Ela ia levar o filho ao dentista hoje.

— Eu sei — concordo ainda lavando as folhas e temperos. — Cláudia também vem mais tarde hoje, mas adiantou muito suas sobremesas ontem. Trabalhou dobrado!

— Estou louca por aquela torta de duas mousses que fez! — Geme e estala a língua. — Adoro maracujá com chocolate, e a danada não me deixou pegar nem uma provinha!

— Diabetes te diz algo? — Arnaldo alfineta.

— Tenho pré, idiota! — Ressalta: —Pré-diabetes!

Rolo os olhos, já antevendo uma discussão sobre a quantidade de açúcar que ela não deve ingerir.

Minhas tardes são sempre assim, entre o trabalho na preparação para a noite e as conversas, discussões ou músicas dos meus colegas de trabalho. É bom, faz o tempo passar depressa e não deixa o serviço tedioso.

— Terminou aquela receita nova que estava escrevendo? — Arnaldo me pergunta um tempo depois.

— Ainda faltam uns ajustes, mas estou sem tempo para testar. — Dou de ombros. — Final de ano, né?

— Por falar nisso... — Manola se aproxima. — Como andam as encomendas? O pessoal gostou do menu deste ano?

— A Hana me entregou ontem uma pequena lista de encomendas. Ao que parece, o menu foi bem aceito, sim.

Manola bate palmas, e eu sorrio aliviada.

Todo ano abrimos o Hill e servimos pequenas ceias para o pessoal que não quer ter trabalho, mas percebemos que seria mais interessante, para nós e para nossos clientes, se houvesse um menu prévio e as encomendas entregues em casa.

Como começamos o delivery este ano, programei um menu com três tipos de proteínas – peru, bacalhau e presunto – e vários tipos de acompanhamento. As variações vão desde a mais simples e barata até as sofisticadas, dignas de um chef de cuisine, mais caras.

Por incrível que possa parecer, o menu luxo tem vendido mais do que o comum, e isso, além de me dar muito orgulho de ver minhas receitas tão bem aceitas, ainda me concede maior lucro.

Por conta desse menu especial, não abriremos o Hill para o público na véspera do Natal, daqui a alguns dias, e nem no dia, retomando as atividades somente no dia 26 de dezembro. Teremos que trabalhar muito para atender aos pedidos, mas tenho certeza de que daremos conta e que em pouco tempo encomendar a ceia no Hill será uma tradição.

É preciso manter a fé depois de tudo o que já passei na minha vida; sem ela, eu esmoreço. Não digo propriamente uma fé religiosa, mas a de desejar boas coisas, pensar positivo, manter a chama da esperança acesa de que tudo vai dar certo.

— Boa tarde! — a voz de Tessa faz meu sorriso se agigantar, e paro o que estou fazendo para ir abraçar minha pequena menina. — Ei, mãe, não!

Ela tenta correr ao ver minhas mãos molhadas, mas, quando a alcanço, explode em gargalhadas e me abraça apertado.

— Estava com saudades! Como foi a aula?

— Legal! — Faz um joia com a mão. — Ei, tia Manola!

— Tia uma ova! — Manola repreende, mas ri. — Sou no máximo sua irmã mais velha, pirralha!

Tessa gargalha de novo e faz gesto de que Manola é maluca, rodando o indicador ao lado da cabeça, e Arnaldo libera sua estridente gargalhada ao concordar com a menina.

— Quer alguma coisa especial daqui hoje? — pergunto, mas sem muita esperança.

— Não, tia Do Carmo disse que vai fazer lasanha à noite, e você não faz lasanha aqui!

— Não faço! — Cutuco suas bochechas com os indicadores bem onde elas formam covinhas quando Tessa sorri. — Cláudia fez uma torta especial. Vou levar para você mais tarde.

— Tem chocolate? — indaga animada.

— Tem, sim, pirralha! — é Manola quem responde. — E se ela tiver direito a um pedaço, eu, como irmã mais velha, também tenho!

Tessa mostra a língua para ela, Arnaldo ri, e eu balanço a cabeça, pois as duas parecem realmente irmãs, brigam e implicam uma com a outra, mas se adoram. Minha pequena se despede, e a acompanho até a entrada do bar, só voltando para a cozinha ao vê-la fechar a porta do acesso ao nosso apartamento.

Deus do Céu, como é bom ver minha menina feliz!

A segurança e a felicidade de Tessa são minhas prioridades, e vê-la crescendo tendo essas duas coisas me dá ânimo para aguentar mais um dia de trabalho e não pensar em coisas ruins. Nem mesmo nos Karamanlis, ainda que um deles tenha mexido comigo de tal forma que volta e meia está nos meus pensamentos – e não pelo motivo pelo qual deveria estar!


— Me and Mrs. Mrs. Jones, Mrs. Jones, Mrs. Jones, Mrs. Jones, we've got a thing going on. — Dedilho o arranjo ao piano, sentindo o peso dessa canção sobre mim e volto a cantar: — We both know that it's wrong, but it's much too strong to let it go now.3

Há anos não toco essa música tão famosa na voz do Billy Paul, mas algo me impulsionou a fazê-lo esta noite. Nada específico, creio eu. Contudo, meu interior está conturbado como há muito tempo não o sinto.

O paletó do terno que vesti hoje está em cima de uma das cadeiras da sala de jantar, a gravata precariamente pendurada sobre a borda do piano, enquanto estou aqui, camisa social semiaberta, mangas arregaçadas, uma garrafa de uísque em cima do instrumento e meu copo já quase vazio. Não parei de tocar desde que cheguei do concerto musical e apresentação de novos artistas de gravuras que ocorreu em uma galeria de artes aqui perto.

A verdade é que, desde quando Viviane me mandou o convite, não tive nenhum interesse em ir, embora fosse algo que geralmente chamaria minha atenção. Tive uma semana fodida demais, e não havia nenhum clima para entretenimentos. Tudo o que eu queria era uma massagem gostosa e uma trepada de alívio.

Termino a música e recosto a cabeça nas teclas do piano, quase não me reconhecendo. Não estou normal! Talvez essa época do ano, próxima demais do Natal, mexa comigo, evoque sentimentos que há muito tempo pensei ter perdido.

Sinto falta da Vanda nesta casa! Olho em volta e bebo o restante da dose de uísque. Tudo está tão vazio, tão silencioso, tão... estéril. Não tenho mais ninguém me esperando quando chego do trabalho, nenhum cheiro de tempero quando entro na cozinha – ou mesmo de café, porque o dela é incrível –, não há conversas amenas.

Não há nada!

Balanço a cabeça, irritado com o rumo dos pensamentos, com a energia negativa deles dentro de mim. Maldita semana!

O desastre começou na segunda-feira com aquele encontro deliciosamente desastroso com Duda Hill; depois aumentou com a notícia que o filho da mãe do Kostas nos deu sobre o imóvel onde funciona o Hill Wings.

A proposta de Millos ressoa em meus ouvidos, e, por mais que eu não ache muito sentido no que me propõe, penso se não é um caminho a seguir. Nunca fui um homem de indecisões. No entanto, entendo que, nesse assunto em particular, não posso me mover por impulso.

Volto a escutar a voz de meu primo como se estivesse aqui e o ouço apresentar todos os motivos para embasar sua ideia.

— Nosso erro foi deixá-la sozinha naquela rua, sem nenhuma concorrência! — argumentou.

— Quando fechamos a compra do último imóvel, aquilo lá ainda era só um pé-sujo com meia dúzia de clientes bêbados — justifiquei em contrapartida. — Não tínhamos com o que nos preocupar!

— Esse foi o erro do coelho naquela fábula — Kostas ironizou. — A arrogância do “já está no papo!”.

— Você falando de arrogância? — Ri, e Millos disfarçou seu riso também. — Não tem se olhado no espelho, não?

Kostas apoiou seu indicador logo abaixo da sobrancelha, ao lado do olho e me deu um meio sorriso e um olhar de desprezo. Ergui minha sobrancelha e balancei a cabeça, enfrentando-o. Se o bostinha achava que iria me intimidar como faz com seus advogados, estava muito enganado!

— Já terminaram de testar a testosterona de ambos? — Millos reclamou. — Minha ideia faz todo sentido! Se alugarmos algumas lojas próximas ao estabelecimento dela, damos a concorrência necessária para que recue um pouco no crescimento que vem tendo!

— Sabe o que não entendo? — Kostas interferiu. — Se ela vem fazendo tanto sucesso quanto vocês gostam de afirmar, por que não quitou a maldita promissória?

— Talvez não tivesse tido o suficiente ainda, pois, como o “agiota” mesmo informou, ela andava pagando os “juros” para que ele continuasse paciente — respondi. — Ademais, ela não poderia pegar um empréstimo para quitar uma dívida como essa.

— A verdade é que o pilantra nunca iria liberá-la da dívida. — Concordei com o ponto apresentado pelo Millos. — Gastamos quase o dobro do que a promissória realmente vale, e ele já tinha recebido anos de juros da Duda. O homem é um espertalhão!

— Então você acha que, colocando mais alguns bares naquela rua, teremos mais chances de quebrá-la? — inquiri. Millos assentiu, mas vi um leve sorriso no rosto de Kostas e, sinceramente, não gostei dele. — Como controlaríamos isso?

— Kostas! — Millos aponta. — Podemos amarrar bem o contrato de aluguel, especificando a atividade que o locador deve exercer.

— Isso é legal? — perguntei.

— Não posso dizer no contrato o que ele deve vender, mas posso amarrá-lo à atividade que já exerce, ou seja, se trocar de ramo, deixa o imóvel. — Olha para o Millos. — O pessoal da corretagem, que por sinal é subordinado ao nosso querido e esperto primo, é quem deve ter em mente quais são os tipos de locadores que devem aceitar.

Concordei, mas ainda não estava completamente convencido.

— Pense na questão. — Millos se pôs de pé. — Tempo é o que não falta, pelo que Kostas disse.

Meu irmão o acompanhou, o sorriso estranho ainda em seu rosto, como se estivesse acontecendo algo que só eu não soubesse.

Dali em diante, tudo pareceu ainda pior! Os dias se arrastaram até esta sexta-feira, vários setores da empresa dando problemas justamente nesta época em que o pessoal já parece estar entrando em ritmo de festas e esquecendo um pouco a nossa tão famosa correria paulistana.

Só soube que Valentina seria minha acompanhante nos eventos artísticos no meio do expediente, quando Viviane me ligou para perguntar se eu tinha o endereço do apartamento da moça.

— Você me disse que ela estaria lá, não que iria comigo! — resmunguei. — Nós mal trocamos algumas palavras naquele vernissage!

— Theo, meu querido, você quer ou não quer uma maldita esposa?! — minha sócia perdeu a paciência.

— Porra, mas não assim! Não precisava agir tão descaradamente como se eu estivesse desesperado, merda!

— Ela é a melhor candidata com que você já esbarrou por aí! É amante das artes como você, vem de uma família tradicional e rica como a sua, é linda, jovem e tem todos os infindáveis requisitos que você listou para a futura senhora Karamanlis! Dê uma chance a ela!


CONTINUA
Acordei de ressaca hoje, e não foi por causa da quantidade de bebida que ingeri no vernissage; aquela quantidade, eu nem consideraria como beber. Viviane ficou puta por ter encarecido o orçamento com garrafas do meu uísque preferido e eu não estar bebendo, por isso, depois do evento, reuni todas as que sobraram e trouxe para meu apartamento.

Pensei que ia passar uma noite solitária, acompanhado apenas de um single malte e discos de jazz, mas, no meio da minha encenação de lobo solitário, Millos ligou me convidando para ir até seu loft. Neguei várias vezes, mas a porra do homem estava tão excitado com a cerveja que havia feito que não parava de insistir.

Resultado? A bebida realmente estava um espetáculo! Enchemos a cara, mesmo sob meus protestos, pois nunca curti muito beber cerveja, e comemos uns tira-gostos tão saborosos que teci elogios a sua habilidade na cozinha.

— Ah, não fui eu quem preparou, não! — Riu. — Encomendei no Hill.

Quase cuspi aquela porra para longe e o fuzilei com os olhos.

— Porra, eu querendo que aquela merda feche e você comprando lá? Está do lado de quem afinal?

— Do meu estômago! — respondeu comendo mais um dos bolinhos. — Estava com vontade de ter um acompanhamento, mas sem nenhum saco para preparar. Me lembrei do dia em que fomos lá e quis conferir se ainda continuavam tão gostosos!

— Ainda não te perdoo por aquela arapuca! — acusei.

Há uns dois anos, Millos me convidou para comemorar seu aniversário, coisa que vez ou outra fazemos quando ele está em clima de festa. Eu lhe disse que o encontraria no local, mas ele insistiu em me buscar em casa, e, quando chegamos e percebi que era no Hill, fiquei bem puto, mas a curiosidade de saber o motivo pelo qual o boteco estava se tornando um sucesso me impulsionou a entrar.

O que eu não contava era que, além de a mim, o filho da puta tinha convidado meus irmãos. Ficamos lá os quatro como se fôssemos bons amigos, compartilhando da armadilha de Millos. Aposto que Kostas e Alex detestaram cada momento, mas sorrimos, bebemos e experimentamos os quitutes da tal da Duda Hill.

Mesmo não gostando de admitir, era fato que a mulher sabia o que estava fazendo na cozinha. Os bolinhos tão tradicionais de um boteco tinham um requinte diferente, embora mantivessem a essência. Era como se ela conseguisse melhorar o que já era perfeito, e isso, tenho que admitir, é um dom.

Confessei isso ao meu primo? Nem sob tortura! Repreendi-o por ter comprado lá, aleguei que ela podia ter mandado envenenar os quitutes – fazendo um drama desnecessário, culpa da bebida –, mas não parei de comer.

— Ah, pedi a Sami para comprar para mim — respondeu.

— Você ainda está saindo com ela? — questionei surpreso, pois havia muito tempo não via a motoqueira que, de vez em quando, orbitava em volta dele.

— Não! Somos amigos, já disse isso, mas parece que você só enxerga a boceta de uma mulher, come até suas “amigas” — fez referência a Viviane.

— Por que você não gosta dela? — Provoquei: — Porque ela é independente, dona de si mesma e diz o que pensa?

— Não! Eu não curto mulher assim para comer, mas não tem nada a ver com o fato de eu achá-la fria e calculista, e nunca escondi isso de você. Aquela mulher gela meu sangue!

Ri do seu exagero, afinal, a Vivi não tem nada de fria. Millos implica com ela pelo simples fato de a mulher ter personalidade e não se deixar comandar por ninguém. No primeiro momento ele se sentiu atraído, Vivi é um espetáculo aos olhos, e ela também não disfarçou o interesse. No entanto, bastaram alguns minutos de conversa para que se odiassem.

— Hoje ela conseguiu algo incrível — comentei. — Valentina de Sá e Campos, já ouviu falar?

Ele riu.

— Dela não, mas conheço os sobrenomes. Família paulistana tradicional, bom currículo. — Cruzou os braços e me olhou debochado. — A futura senhora Theodoros Karamanlis?

— Talvez — fui sincero. — Conversei um pouco com ela nesta noite, achei-a divertida, inteligente e sedutora. A princípio achei que era muito nova, mas é madura e independente, cheia de opinião. Gosto do tipo.

— Eu sei. — Ele se levantou e foi pegar mais cerveja. — Foi Viviane quem te apresentou a ela? — Assenti. — Não sei se gosto disso, mas boa sorte.

Gargalhei pela implicância dele com a Vivi e resolvi desviar o assunto. Falamos da Karamanlis, de música, de motos e, por fim, já muito bêbado e com sono, caí sobre o sofá dele e acordei há pouco, com torcicolo e com uma puta dor de cabeça.

— Ei! — Millos me saúda estendendo uma xícara de café. — Você está destruído!

O desgraçado ri, mas nem posso mandá-lo tomar no cu, porque minha cabeça trepida parecendo que há uma britadeira no meu cérebro. Maldita cerveja! Malditos bolinhos envenenados da Duda Hill!

— Cara, você é fraco para minha cerveja! — Millos ri. — Ficou boa, não é? — Apenas assinto, ainda tomando o café para melhorar meu ânimo. — O que está programado para fazer nesse final de semana?

— Vou trabalhar. Como saí um pouco mais cedo ontem por causa do vernissage, Rômulo separou umas pastas para que eu lesse nesse final de semana. Coisa chata, principalmente da pauta da reunião do conselho.

— Por falar no conselho... — Ele se senta ao meu lado no sofá e apoia os pés descalços sobre a mesinha de centro. — Ontem tive notícia do Kostas. — Ri. — Parece que tomou um toco feio da Kika e está cuspindo marimbondos.

Gargalho, esquecendo a dor.

— Como queria ter visto esse embate!

— Eu também.

Bufo, mesmo divertido, lembrando que o meu problema continua.

— Preciso trazê-la de volta para a empresa com urgência. Há vários projetos dos hunters parados, e o Rômulo não está dando conta de organizá-los.

Millos rola de rir no sofá.

— Esse seu assistente é muito estranho. Sinceramente não entendo como você ainda o mantém trabalhando contigo!

— Gosto de ele ser metódico. — Dou de ombros. — É organizado, embora meio desastrado, nunca perde um prazo e faz tudo o que eu peço.

— Seu próprio espelho, não é? Nunca conheci ninguém mais chato que você para organização.

Ergo uma sobrancelha para ele e olho em volta para seu loft cheio de espaço, mas sem nenhuma lógica ou senso de estilo. Millos gosta de coisas rústicas, e respeito isso, acho legal, mas é tão bagunceiro que seus móveis caros de design parecem ser cacarecos de alguma casa demolida.

Os únicos locais arrumados são: a cozinha, o “laboratório” de cerveja (como ele mesmo se refere ao local) e onde dorme. O resto... tem peças de motos para todos os lados, mesmo a oficina ficando na parte de baixo do galpão que ele chama de loft, tem barris com os ingredientes que compra para a fabricação de cerveja, roupas, discos e óculos (nunca vi tantos para uma só pessoa) espalhados por todos os lados.

O homem é um caos completo em casa, mas, se alguém entrar na sala dele na empresa, vai acreditar que é o epítome da organização. Não entendo como consegue!

— Bem, sobre a Kika, eu posso te adiantar que não precisa se preocupar — Millos continua. — Falei com ela ontem, e vai voltar.

Expiro o ar, aliviado.

— Porra, Millos, porque não me contou antes? É um alívio do cacete não ter que lidar com mais esse problema e...

— Mas ela não quer ser mudada de andar.

— O quê? Ela está fazendo exigências?

Millos penteia a barba com os dedos, enervando-me com sua calma.

— Demonstramos desespero ao mandar o Kostas pedir arrego. — Concordo com ele nesse ponto. — Ela quer aumento, continuar no andar e... — Tenta conter o sorriso, e prevejo que vem bomba, mas ele vai dar um doce do cacete para falar.

Perco a paciência e esbravejo:

— O que mais ela quer?!

— Carta branca para mandar seu irmão se foder à vontade.

— Porra!

Ponho as mãos na cabeça, sentindo a dor de cabeça voltar com tudo e ouvindo a risada debochada do Millos.

Eles querem me enlouquecer, só pode!

 

 

A dor de cabeça me acompanhou ao longo de todo o final de semana. Tomei analgésico, antiácido e – seguindo os conselhos do meu primo – mais um pouco de cerveja. No entanto, não consegui me livrar do incômodo insistente.

Trabalhei o sábado inteiro, recebendo ligações do Rômulo quase de hora em hora, a ponto de ficar puto com ele e mandá-lo caçar algo para se divertir e me deixar em paz. Compreendo que ele queira me ajudar, mas, às vezes, sua dedicação exacerbada me estressa.

Recebi um convite para jantar de uma antiga amante que vinha a São Paulo de tempos em tempos, mas neguei. Queria apenas relaxar um pouco em casa depois de ter trabalhado em páginas e mais páginas de relatórios com uma dor de cabeça chata a me distrair.

Pedi comida em um restaurante de comida vegana, achando que pudesse ser a gordura dos bolinhos do Hill – velha e rançosa, com certeza – que me deu essa indisposição e resolvi assistir a alguns filmes antigos. Sou fã de “O poderoso chefão”, então comecei a assistir a cada um deles de novo.

Novamente dormi em um sofá, mas acordei melhor e resolvi correr um pouco. Passei umas duas horas no Ibirapuera e, na volta, encomendei o almoço de domingo, sentindo-me um pouco órfão sem a Vanda em casa.

Liguei para Millos a fim de fazermos algum programa à tarde, mas ele estava com alguma mulher em algum clube ou lugar que só Deus sabia, então voltei aos relatórios, e isso consumiu o resto do dia.

Debaixo do chuveiro, rememorando este final de semana de merda, ouço meu telefone tocar, mas o ignoro. Coloquei os jatos no mais forte possível para tentar aliviar um pouco a tensão que venho acumulando nesses dias. A verdade é que preciso trepar um pouco, divertir-me, talvez fazer uma viagem ou passar um final de semana com alguém sem pensar no trabalho.

A imagem da Valentina vem à minha mente, sua conversa gostosa, seu sorriso bonito. Contudo, ainda não me sinto completamente certo de que devo me envolver com ela, principalmente por uma questão: não senti muita atração.

Sei que isso é de momento e que pode mudar, principalmente se a convivência for boa. Nem sempre sentimos atração pela pessoa no primeiro encontro, e já vivi anos demais para saber que até um primeiro encontro explosivo pode depois esfriar e o tesão ser extinto, então, não me baseio apenas nessas primeiras impressões.

Fecho os olhos e penso na garota da boate há alguns anos. Ela vem preenchendo minhas fantasias há muito tempo, talvez por ter sido gostoso daquela vez e não ter tido mais notícia dela.

Mal lembro do seu rosto, de tão bêbado que estava, sempre quando fantasio vejo os cabelos e me lembro da loucura que foi nossa transa naquele banheiro.

O telefone volta a tocar, e desligo o chuveiro, saindo do boxe para ver quem é o chato. Rio ao ver o nome do Millos. Na mosca!

— Já terminou sua maluquice sexual com a “submissa” da vez? — provoco.

— Vá se foder e não se meta nos meus assuntos — rosna. — Liguei para saber se amanhã pode ir comigo a um restaurante que um amigo inaugurou nos Jardins.

— Boa comida ou é boteco?

— Não, seu fresco, é coisa fina! Vanda ainda não estará de volta, não é?

Suspiro, resignado.

— Não, ela ainda vai ficar um tempo no Rio de Janeiro. Está certo, amanhã combinamos isso melhor no escritório.

— Okay! — diz animado. — Vai almoçar no refeitório junto aos funcionários?

— Sempre há uma primeira vez, não é? — Deixo a toalha no suporte e sigo para o closet. — Além do mais, confio que servimos algo de qualidade aos funcionários.

Millos ri.

— Essa eu quero ver! Nos encontramos no almoço, então! Boa noite, Theo.

— Boa noite!

Desligo o telefone e me olho no espelho, lembrando-me do tempo em que comia qualquer coisa e em qualquer lugar, na maioria das vezes sujo e fedendo a peixe, sentindo-me feliz e livre.

— Quem é você, Theodoros Karamanlis?


O dia nem bem amanheceu, e eu já estava suando na academia com a Sandra. Hoje, sem Millos, o treino foi mais tranquilo, seguindo o ritmo normal dos exercícios. Tomei meu café sozinho na cozinha – café puro mesmo – sentindo imensamente a falta da Vanda, de sua conversa matutina animada e seus cuidados. Posso não admitir sempre, mas gosto de ser cuidado, de sentir esse afeto, coisa tão rara na minha vida.

Limpei os pensamentos e saí para trabalhar.

— Bom dia, Dionísio! — cumprimentei o motorista como em todos os dias, já pegando meu jornal para me inteirar sobre as principais notícias do dia. — Hoje vou almoçar na empresa, mas, à noite, vou sair do escritório direto para jantar com Millos.

— Levo o doutor ou trago o carro?

— Traz o carro, vou dirigindo.

Ele assentiu, e seguimos viagem em silêncio, ele concentrado no trânsito, e eu, nas notícias de economia do país e do mundo.

Cheguei à empresa já apagando incêndios. Um dos projetos de um cliente foi reprovado por uma comissão municipal, então Kostas teve que intervir mandando seus advogados e acompanhando todo o processo. Eu, como CEO, fiquei aguentando a aporrinhação do gerente responsável pela implantação da empresa multinacional aqui no Brasil.

Nem vi a hora passar, mal tomei meus cafés tão tradicionais ao longo da manhã, irritado com esse problema, com o Rômulo borboleteando ao meu redor me enchendo de perguntas: “quer café?”, “ligo para o doutor Konstantinos?”, “quer um calmante?”. Eu quase explodi de raiva, sentindo meu estômago fritar e a cabeça estourar.

Desci para o refeitório faltavam alguns minutos para o meio-dia e, para meu espanto, ainda não tinha nenhuma refeição pronta. Conferi as horas no Omega, um dos relógios mais precisos do mundo, e estranhei a demora. Rômulo apareceu e, quando lhe questionei o atraso, fiquei sabendo que o almoço era servido a partir da 1h da tarde.

Voltei para o escritório sob a insistência de Rômulo para me encomendar o almoço em algum restaurante.

— Não! Hoje vou comer no refeitório — insisti.

Millos me lançou um desafio por eu nunca ter comido na empresa desde que foi inaugurado o refeitório para os funcionários. Pensamos no restaurante para facilitar a vida de todos e, como tínhamos espaço, decidimos montar a estrutura. Estive presente no primeiro dia, na inauguração, há alguns anos, mas depois disso não botei mais os pés no local.

Exatamente às 13h desci novamente pensando em usufruir de um almoço tranquilo e nutritivo, porém, o que encontrei me deixou sem ação. Primeiro, os funcionários ficaram estarrecidos ao me ver ali; percebi em seguida que apenas o baixo escalão da empresa – de coordenadores para baixo – estava comendo ali. Não havia nenhum gerente ou diretor no meio dos mais de 100 funcionários da companhia.

Contudo, o que mais me surpreendeu foi a comida. Não, não era ruim, pelo contrário, era bem preparada, mas sem nenhuma opção para substituição.

— E quem não pode comer carne vermelha? — questionei ao Rômulo, e ele apenas corou, fingindo não ouvir. — Há cardápios diferentes ao longo da semana?

Rômulo continuava a montar seu prato sem emitir qualquer resposta, o que não é nada típico dele, e isso me irritou. Quando não era para falar, o homem tagarelava, mas, quando eu precisava de respostas, ficava mudo!

— Rômulo! — chamei-o de modo mais enérgico. — Eu estou tentando entender o que...

— Não, não há! — escuto a voz do Alex e me viro para encará-lo. — E seu querido assistente não sabe informar porque não come aqui também. — Meu irmão pegou um prato e se serviu naturalmente. — A questão do restaurante entrou em pauta numa reunião de diretoria, mas o senhor todo-poderoso do Olimpo achou que não era uma questão relevante para a economia da empresa e pulou o assunto.

Olhei de esguelha para Rômulo buscando confirmar a informação, e ele atestou. Xinguei mentalmente.

— Uma empresa é feita de mais do que números, Theodoros Karamanlis — seu desprezo pelo sobrenome era evidente. — E, quando fiz a proposta do restaurante, era para que, além de economizar o tempo dos funcionários e agilizar o serviço, também tivéssemos convívio com eles, porém, adivinha quem foi o primeiro a pular do barco e a incentivar o “alto escalão” a ir junto?

Bufei de raiva.

— Quem é o responsável pela gestão do restaurante? — ignorei o discurso do meu irmão idealista e perguntei ao Rômulo.

— É terceirizada, a mesma empresa do pessoal da manutenção.

Merda!

— Marque uma reunião com ela e peça ao Kostas para avaliar o contrato. — Rômulo mais do que depressa escreveu em seu tablet inseparável. — Dispare um memorando para todos os diretores e gerentes, lembrando da existência do restaurante e informando que, a quem for almoçar fora, será necessário cumprir o horário, ou seja, uma hora e nenhum minuto a mais.

Rômulo arregalou os olhos e assentiu.

— Eu pouco vejo você e percebo que nem é preciso! Você não mudou nada, o mesmo prepotente de sempre. — Alex passou por mim, ainda se servindo no bufê, rindo de deboche, e percebi olhares curiosos em nossa direção.

— Eu preciso lembrar que você também faz parte da diretoria e tem acesso irrestrito ao conselho? — Cheguei perto para falar baixo: — Se fosse meu projeto, nunca deixaria chegar aonde chegou só porque não sou o CEO. Isso demonstra que está mais preocupado em ir contra a direção do que lutando pelo bem-estar dos funcionários. Não é minha função tomar conta de tudo, não sou absolutista, eu delego e confio naqueles a quem passo esse poder. — Ele fechou a cara, perdendo o ar de superioridade. — Não tenho intenção alguma de prejudicar os que trabalham comigo, pelo contrário. Mas assumo meu erro em não ter frequentado o local para dar exemplo.

— Mas o doutor também não tem horário certo para almoçar, por isso...

Balancei a cabeça em negativa, freando a defesa de Rômulo. Não tinha desculpas, o exemplo era meu, e eu tinha falhado. Terminei de fazer meu prato, sentei-me a uma mesa com Rômulo e almocei mesmo sentindo um nó na garganta por ter mostrado falha e ter sido repreendido pelo Alex na frente de todo mundo.

Merda!

Ao longo do dia, a repercussão do almoço do CEO no restaurante da empresa, bem como o efeito do memorando para os diretores e gerentes agitaram a tarde na Karamanlis. Percebi todo mundo mais atento, mesmo na correria de sempre.

Tive uma resposta positiva da equipe de Kostas com relação ao projeto vetado e pude passar a boa notícia ao nosso cliente. Recebi vários relatórios dos setores e subsidiárias ao longo do dia, inclusive da K-Eng, dirigida pelo Alex.

Meu irmão é um sonhador idealista, defensor dos fracos e oprimidos, um rebelde que só trabalha conosco para contrariar a família. Cospe sobre nosso sobrenome, mas faz questão de ostentá-lo para afrontar o pappoús. Sempre achamos que ele tentaria afundar a empresa em represália ao tratamento que teve na infância, mas não, ele não só assumiu uma empresa praticamente independente como a fez crescer. Todavia, ainda sinto que há algo por trás disso.


CONTINUA

Uma família separada pelo ódio...
Criado pelo avô, renegado pelo pai, odiado pelos irmãos, Theodoros Karamanlis recebeu o cargo de CEO da empresa da família. Sua principal meta é provar a todos que é mais competente do que o homem que sempre o renegou, seu pai. Para isso acontecer, falta apenas comprar o imóvel onde funciona um pequeno pub na Vila Madalena e assim fechar uma conta aberta há mais de dez anos.
Uma família mantida pelas lembranças...
Maria Eduarda Hill sempre teve o sonho de ser uma renomada chef de cozinha, mas, por circunstâncias do destino, acabou assumindo o antigo boteco de seu pai na Vila Madalena. Ela trabalha duro para manter o negócio e preservar a memória de sua família e luta bravamente contra o assédio de uma empresa que quer comprar e demolir o lugar.
Uma noite, um bar, e uma química explosiva...
Depois de cair em uma armadilha e conhecer a irritante cozinheira que o impede de fechar o maior negócio de sua empresa, Theo se vê dividido entre essa forte atração, conquistar o que seu pai não foi capaz e uma promessa feita ao avô. Por mais que resista, o grego não consegue ficar longe de Maria Eduarda, então começa uma implacável sedução para tê-la em sua cama.
Theo e Duda têm tudo para se odiarem. No entanto, mal sabem eles que a paixão não se conduz pelo óbvio!
A todas as Jujubas do meu potinho cheio de amor!

 

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— Parabéns, doutor Karamanlis! — Rômulo, meu assistente, soa exultante ao me cumprimentar. — Falta pouco agora para o senhor conseguir fechar essa conta! — Olha sua agenda. — O senhor tem uma reunião com o doutor Villazza daqui a...

Não dou muita atenção à falação dele, muito menos aos elogios animados. Sei bem que, embora tenha dado um passo gigante, ainda não conquistei minha vitória, não enquanto não tiver cumprido todas as metas que tracei para minha gestão à frente do negócio da família.

Olho para a parede esquerda do meu escritório, diretamente para o mapa emoldurado cujo círculo abrange a única propriedade que falta ser comprada para termos a total posse do quarteirão que mais tem se valorizado na área da Vila Madalena.

Foi exatamente por causa dessa bendita área que meu pai, o poderoso Nikolaous Karamanlis, perdeu seu reinado por aqui e foi substituído por seu renegado filho mais velho. Tenho consciência de que Rômulo tem razão quando me parabeniza pelo trabalho à frente da empresa. Millos, meu primo, e eu temos feito uma gestão muito produtiva, mas ainda não consigo estar satisfeito, não enquanto não conseguir comprar o último pedaço de terra daquele lugar.

Millos tem tentado me convencer a não me cobrar tanto sobre essa questão, afinal nem temos um cliente para instalar nessa área, perdido há muito tempo, quando meu pai prometeu o lugar e não conseguiu cumprir a promessa. O que ele não entende é que há muito tempo isso deixou de ser apenas um negócio, é uma questão de honra conseguir aquilo que meu progenitor não alcançou.

Balanço a cabeça ao pensar no meu pai e na nossa conturbada convivência. Não, não é hora de pensar em todas as merdas que aconteceram na nossa família!

Levanto-me e sirvo uma dose do meu puro malte favorito para relaxar um pouco, querendo já estar em casa.

Casa... Essa palavra me faz pensar em meu país, a Grécia e me desperta outra lembrança dolorosa: meu avô e a promessa que fiz a ele. Geórgios Karamanlis está prestes a completar 90 anos, mas, como diz o ditado por aí, vaso ruim não quebra facilmente. O homem que me criou, que me ensinou tudo sobre os negócios agora exige de mim uma família.

Uma família! Rio debochado a esse pensamento, a essa palavra tão sem sentido na minha vida e na dos meus irmãos. Família não significa nada mais do que pessoas que compartilham a mesma linhagem, pois os Karamanlis não são conhecidos por laços além dos de sangue. Somos todos fodidos de alguma forma, cada um com suas merdas para carregar, seus fantasmas e esqueletos no armário.

Somos ótimos trabalhando juntos, mas é só.

Não sei da vida particular de nenhum dos meus irmãos mais do que sei da de qualquer outro funcionário da empresa. Muito menos me importo com isso! Todos são adultos e, se querem continuar agindo como crianças chorosas e traumatizadas, o problema não é meu.

Rômulo volta à minha sala cheio de pastas com arquivos e me avisa que o carro já me aguarda para me levar até o Villazza SP, onde, além de conversar com Frank, vou aproveitar para almoçar no Vincenzo com ele como companhia, pois detesto comer sozinho.

Enquanto meu assistente se instala à sua mesa, passo na antessala e me despeço da Luíza, secretária da diretoria, deixando meu celular corporativo para trás, pois não quero ser incomodado na hora do meu almoço.

— Estou indo para a reunião com o CEO da rede Villazza; qualquer assunto, anote o recado. — Aponto para o celular. — Volto daqui umas duas ou três horas, pois vou almoçar por lá.

— Certo, doutor Karamanlis.

Despeço-me dela e sigo para a garagem subterrânea do prédio onde fica a nossa empresa, fundada no Brasil há décadas, instalada bem no coração da cidade de São Paulo, a Avenida Paulista. Tenho orgulho de ser o diretor executivo daqui; orgulho do nome e do respeito que conquistamos ao longo dos anos.

O setor imobiliário no Brasil passa por algumas crises, como acontece também no mundo inteiro, mas não para de avançar. Há sempre pessoas querendo moradia, empresas atrás de locais para seus negócios, então nós nunca ficamos sem fechar bons acordos rentáveis.

Meus pensamentos são levados para os Yannes, uma rede de resorts de aventura que tem unidades instaladas nos locais mais incríveis do mundo. Essa tem sido uma conta difícil, por causa de todos os entraves legais desse tipo de empreendimento, mas que, pelas últimas notícias que tive, isso irá ser solucionado em breve.

Sorrio largo ao pensar na Malu Ruschel, uma das minhas melhores gerentes e, com certeza, futura diretora da Karamanlis. A mulher é uma máquina de trabalhar, tanto que tive que a obrigar a tirar férias, mas a danada até descansando é atenta e descobriu o local que tanto procurávamos para o resort.

Malu, além de competente, é linda demais! Confesso que sempre tive uma enorme curiosidade de saber como é ter toda aquela tensão, toda aquela organização e meticulosidade debaixo do meu corpo, gemendo de prazer. Balanço a cabeça, afastando esse pensamento.

Mesmo me sentindo muito atraído por ela, nunca iria tentar qualquer coisa. Não por medo ou insegurança, pois acho que nos daríamos muito bem na cama, pois ela aparenta ser uma mulher segura de si, madura e que sabe separar o prazer do coração. Definitivamente, Malu não é daquelas que se apaixonam!

O que me impede de buscar um entendimento íntimo com ela é puramente ético. Eu não como funcionárias; por mais tesão e vontade, não faço isso. Ao contrário do meu irmão, Kostas, eu as enxergo como iguais e detestaria ter algum machista questionando a capacidade de uma delas apenas por estar trepando com o chefe. E, infelizmente, isso acontece muito nas empresas por aí. Quando um homem recebe uma promoção, é porque mereceu, mas, se é a mulher quem recebe, não foi por merecimento, mas porque ela tem uma boceta! É simplesmente ridículo e, por isso mesmo, prefiro não me envolver. Se há algum diretor ou gerente fazendo isso, é pelas minhas costas – porque todos sabem que não aprovo – e é discreto demais, pois isso não chegou aos meus ouvidos.

A regra geral na empresa é: evitem relacionamentos dentro do ambiente de trabalho, porque isso só causa problemas. Agora, se isso acontecer e as duas partes concordarem, acabarem se acertando, eu não as demito ou proíbo. Não sou babá de marmanjo! Há casais na Karamanlis, a maioria formada lá dentro mesmo. Eu seria hipócrita se fingisse que não há. Não me sinto à vontade para manter um caso com qualquer uma das minhas funcionárias, mas não sou arbitrário a ponto de, se acontecer com outros, demitir um ou mesmo os dois envolvidos.

Minha consciência diz que isso é só mais um dos traumas que carrego, mas a ignoro, mandando-a se foder.

Chego ao Villazza e sou recepcionado rapidamente pela assistente do Frank, Alice.

— Bom dia, doutor Karamanlis. Desculpa tê-lo feito vir para o hotel, mas é que estamos com uma pequena reforma na sala da diretoria no prédio administrativo, então viemos para cá.

— Sem problema, Alice! — Sorrio. — Eu vou aproveitar para almoçar com o carcamano no Vincenzo.

Ela faz careta.

— O senhor Villazza tem outra reunião na hora do almoço e vai sair daqui direto para ela.

Dou de ombros, resignado.

A parte administrativa do Villazza SP fica toda no térreo, mas Frank optou por usar uma das suítes preparadas como home offices, duplex com um escritório completo embaixo e quarto no mezanino.

— Espero que não esteja usando este lugar apenas como desculpa para comer fora do casamento... — falo assim que o vejo, concentrado em sua mesa. — Se Isabella te largar, juro que me caso com ela.

— Dovrai prima uccidermi, maledetto!1

— Não me tente, Frank Villazza! — Aperto sua mão. — Estou sendo pressionado.

O carcamano ri à minha custa.

— Seu pappoús2 ainda está querendo vê-lo casado? — Faço careta e assinto. — Você deveria levá-lo em consideração.

— É incrível como Isabella te domou! — Cruzo os braços e me sento em uma confortável poltrona. — Eu ainda me lembro de seus discursos anticasamento. — Rio. — Lembra como você se apresentou a mim naquele bar?

Frank sorri, embalado pelas lembranças de um tempo em que ainda ostentava o título de playboy. Nós dois aprontamos muitas coisas juntos, principalmente na época de Harvard, onde nos conhecemos. Promovemos algumas orgias, dividimos a mesma parceira, fumávamos baseados juntos e frequentávamos clubes de sadomasoquismo.

Nossa última aventura foi meses antes de ele conhecer sua esposa. Frank estava de férias na Itália, e, assim que eu soube que ele estava em Roma, chamei-o para me visitar em Atenas. Naquela semana em que ficou hospedado no meu apartamento, ele tentou de todas as formas me convencer a participar de um congresso na Suíça que ocorreria meses depois, mas para o qual era preciso garantir vaga. Nossos outros companheiros de Harvard já haviam feito reserva, mas eu declinei do convite, pois já estava me preparando para ir morar no Brasil e assumir a Karamanlis.

Viajamos de iate pelas ilhas naquela semana e, numa das mais belas do mar Jônico, fomos a uma boate muito louca, bebemos todas, e eu tive a trepada mais memorável da minha história.

Eu ainda me lembro dela! Era linda, corpo sarado, com uma barriga plana e de cintura fina de fora. Usava uma blusinha curta e minissaia de couro. Nos pés, botas altas, salto agulha, destacando suas pernas deliciosas. A mulher era um espetáculo para os olhos e me atraiu como ninguém.

Os cabelos, longos e pintados de rosa, balançavam ao ritmo da música. Ela estava acompanhada com mais cinco amigas, todas bem bonitas, sendo que duas delas desapareceram com Frank ao final da noite.

— Cazzo! — Frank xingava excitado ao vê-las dançando e nos oferecendo brindes com seus copos. — São muito novinhas!

— Foda-se! — eu disse sem conseguir tirar os olhos da mulher de cabelos rosa. Eu esperava apenas um movimento dela, apenas um sinal de que estava disposta, e, quando ele veio, olhei para meu amigo com um sorriso vitorioso. — A do cabelo rosa é minha!

Fomos até o grupo, dividimos suas bebidas – elas estavam bem abastecidas —, e, mesmo sem nenhuma apresentação, comecei a dançar com a beldade de cabelos coloridos. Frank ainda me dizia que eram garotas muito novas, ressaltando que deviam ter a idade de sua irmã caçula. Ele estava sempre tentando não trepar com moças jovens e inexperientes, mesmo que já tivesse sido surpreendido algumas vezes por elas, mas sempre acabava cedendo, como de fato ocorreu.

O dia estava amanhecendo quando duas se penduraram nele ao mesmo tempo, e o filho da puta parecia o rei do prazer. As duas se esfregavam nele, que as fazia tocarem uma à outra também, divertindo-se como um sultão. Sinceramente não senti nenhuma inveja; a mulher que estava comigo me deixava louco com sua dança, com nossos amassos e seus beijos etílicos. Eu queria sair dali, levá-la para algum hotel e passar o resto do dia a fodendo em desespero.

Ela dançava como se o mundo lhe pertencesse, movimentando seu corpo ao som das melodias, os músculos pulsando a cada batida, olhos brilhantes em minha direção e um sorriso safado no rosto. Tudo o que eu podia fazer além de tentar não enlouquecer de tesão era acompanhá-la, resvalar em sua pele acetinada quando colidíamos um no outro durante a dança e sentir nesse pequeno contato como se a mais viciante droga estivesse entrando em meu sistema.

— Preciso ir ao banheiro. — Parou, rindo, e apontou para um corredor do outro lado da pista. — Devo estar toda borrada e despenteada...

— Besteira! — respondi.

Seu inglês perfeito tinha um leve sotaque, mas, como as suas companheiras falavam em francês entre si, presumi que fosse por causa disso. A boate já estava vazia. Acompanhei-a até a porta do banheiro feminino e fiquei esperando do lado de fora.

Quer dizer, a intenção era essa!

Fui tomado de assalto quando ela apareceu e, sem dizer nada, simplesmente me arrastou para dentro do banheiro. O pequeno cômodo com várias repartições, espelhos e pias estava vazio. Excitado como um touro, não titubeei ao levá-la até um dos cubículos com vasos sanitários.

Esmaguei-a contra a parede de mármore, levantando-a no colo com suas pernas encaixadas nos meus quadris. Eu conseguia sentir a maciez de suas coxas, e ela, pelo jeito que gemia, sentia meu pau duro contra sua boceta ainda protegida pela calcinha. Estávamos bêbados demais para pensar, excitados demais para esperar, só queríamos provar o corpo um do outro e gozar juntos o prazer que tinha sido anunciado a noite toda.

Os gemidos dela me enlouqueciam. Eu sentia minha calça ficando úmida e, quando toquei sua calcinha, rosnei como um cão ao descobri-la completamente encharcada. Eu queria chupar aquela mulher, ouvi-la gritar de prazer, provar seu sabor até estar ainda mais bêbado e inebriado por ela.

Porém, ela tinha pressa!

Gargalhando como quem está numa grande aventura, abriu o botão da minha bermuda e puxou meu pau para fora da cueca, agarrando-o com força, fazendo-o doer, arrancando-me um gemido de antecipação. Ela se sentou no vaso e o engoliu com sua boca pintada de vermelho.

Fechei os olhos e deixei que ela fizesse o que quisesse, usasse sua língua, lábios e dentes. A sensação daquela boca quente e molhada sugando meu pau ainda mexe comigo, mesmo sendo apenas uma lembrança. E não é à toa, afinal quase gozei em sua garganta quando ela mordeu meu pau, encarando-me perversamente.

Puxei-a até a colocar de pé, virei-a de costas para mim, busquei uma camisinha no bolso de trás da bermuda embolada no chão e invadi sua boceta apertada, socando com força, levantando-a a cada vez que estocava, vendo seu rabo redondo e empinadinho se abrindo contra meus quadris.

Foi uma loucura sem tamanho, dentro de um banheiro público, numa boate praticamente vazia, ao nascer do dia, depois de passar a noite inteira dançando com ela.

— Goza para mim, safada! — eu dizia em seu ouvido, gemendo, mordiscando o lóbulo de sua orelha. — Goza sem se importar se estão ouvindo ou não! Foda-se!

Levei uma de minhas mãos para o meio de suas coxas, achei seu clitóris – o acesso facilitado por causa da depilação total que ela adotava – e o massageei até que ela se contorcesse.

— Grita! — ordenei, e ela obedeceu. — Porra, gostosa, encharca meu pau!

Não aguentei muito mais e tive que dar murros contra a parede de mármore do cubículo, tamanha a intensidade do prazer que senti.

Puxei meu pau de dentro dela, encarando-a completamente embevecido com sua beleza, com seu jeito safado, sorriso malicioso e olhos brilhantes. Joguei a camisinha no lixo e a puxei para fora daquele banheiro, pensando em levá-la para uma volta no iate.

— Ei! — uma das amigas, das que não tinham acompanhado Frank mais cedo, chamou-a. — Temos que resgatar a Allly e a Èlene, senão vamos perder o voo!

— Voo? — inquiri assustado.

— Temos que voltar para Paris — ela disse.

— Agora? — Ela assentiu. — Não!

A gostosa que acabara de gozar no meu pau e me dera um orgasmo fenomenal se aproximou, depositou um selinho na minha boca e se afastou.

— Foi uma noite deliciosa!

Bufei, resignado, não satisfeito, porque ainda queria comer mais aquela mulher, experimentar todo o seu corpo jovem, pele macia, músculos duros e tenros. No entanto... tinha valido a trepada no banheiro. Eu não ia sair correndo atrás dela implorando por mais.

— Boa viagem! — despedi-me.

Ela apenas piscou, sua maquiagem pesada, cílios longos e pintados da mesma cor que os cabelos. Desapareceu para sempre, sem nem mesmo me dizer como se chamava.

— Ei, stronzo, para de sonhar! — Frank ri, e eu volto a prestar atenção ao que ele fala. — A área que eu quero não é muito grande, apenas o suficiente para...

— Do que você está falando?

— Porca miseria, Theo! A casa de praia que quero construir para minha família, cazzo! O motivo pelo qual te chamei aqui! Está com a cabeça onde, porra?!

— A do meu pau? Enfiada naquela garota dos cabelos rosa naquela boate. Mal lembro do rosto dela, mas as sensações...

— Coglione! Está precisando de uma mulher pra foder, porra?!

— Não! — Lembro-me da que deixei essa manhã na cama. — Foi só uma lembrança. — Aprumo-me. — Vamos falar de negócios!


São Paulo, meses depois.


— A mulher anda irredutível! — Millos conversa comigo enquanto tomamos café. — Há anos tenho ido pessoalmente tentar negociar a compra, mas ela se recusa e tem conseguido manter suas contas em dia.

Desvio meus olhos do computador.

— Ela já sabe que temos a promissória?

— Não, simplesmente me expulsou de lá a pontapés quando fui tentar negociar! — Ri. — Você sabe que eu não curto uma mandona, mas ela me deixou levemente excitado.

— Porra, Millos, não fode o assunto! — Meu primo ri e deixa sua xícara vazia sobre o pires. — Já temos a dívida do pai dela; o que estamos esperando para executá-la? Isso a deixará sem alternativa a não ser vender o maldito bar para quitá-la!

— Theo, é uma promissória assinada há quase dez anos! Vamos ter que cobrar e...

— É para isso que aquele desgraçado do Kostas está aqui! — grito sem paciência. — Eu não aguento mais esses irlandeses no meu caminho!

— Ela é brasileira, Theo, o pai é que era...

— Foda-se! — Bato na mesa. — Tenho um diretor que não queria ter porque a porra da Malu Ruschel desertou para ficar embrenhada no mato com um peão e, ainda assim, não consigo fechar essa maldita conta!

— Ele conseguiu comprar a dívida do agiota e...

— Você está se escutando?! — Passo as mãos pelos cabelos. — Um diretor nosso negociou – sabe-se lá como – com um agiota! Esse mesmo cara está por aí, lidando com nosso dinheiro, comprando e vendendo imóveis em nosso nome! Não confio uma vírgula nele!

Millos se levanta e desenrola as mangas da camisa para esconder suas tatuagens. Eu não entendo por que ele cisma em manter essa pose conservadora aqui dentro da empresa, mas, como bem sei, cada um dos Karamanlis é fodido de algum jeito. Apesar da barba cheia e grande e do brinco que nunca tira, ele anda pelos corredores vestido de terno e gravata, sapatos de couro e uma pose de empresário burguês que só convence quem não o conhece.

— Eu preciso daquele quarteirão, Millos!

— Nós nem temos um cliente para ele...

— Foda-se! Quero a merda do quarteirão! — Ele concorda. — Vire-se para conseguir!

— Vou conversar com Kostas sobre a execução da promissória.

— Faça isso! Meu irmão pode ser um babaca filho da puta, mas é bom no que faz.

— Engraçado é que ele diz o mesmo de você!

O taciturno, mas incrivelmente inteligente grego sai da sala sacudindo a cabeça, sem entender como é que conseguimos trabalhar juntos sem nos matar. A verdade é que trabalhamos muito bem! Temos todos os mesmos propósitos, deixar nosso nome marcado na história desta empresa.

Nenhum Karamanlis da minha geração saiu ileso à maldição familiar. Todos temos fantasmas e esqueletos escondidos em nossos armários, traumas da infância, da adolescência ou apenas somos fodidos de nascimento. A amizade que tenho com Millos é algo que fugiu à regra, pois nutrimos sentimentos verdadeiros entre nós que vão além dos laços sanguíneos que nos unem.

O restante... bem, eu não conheço o restante o suficiente para julgar ou sentir qualquer coisa por eles. Nós nos suportamos por causa da empresa, do dever para com nosso nome e, claro, do respeito ao pappoús.

Kostas, alguns anos mais novo que eu, é um advogado competente, também um babaca arrogante que fala com qualquer pessoa se achando o rei de todo conhecimento e inteligência. Por vezes tenho que lidar com as merdas dele aqui dentro da empresa, principalmente quando sua falta de tato extrapola os limites de sua diretoria e acaba afetando outras.

Alex, um dos caçulas, é engenheiro, criativo, tem bons relacionamentos com todos na empresa, menos com a própria família. É o único que não faz nenhuma questão de agradar qualquer que seja dos Karamanlis, chegando por vezes até a renegar o nome em alguns trabalhos, quando assina apenas o sobrenome de sua mãe.

Kyra, a única menina e a mais nova de todos os filhos de Nikkós, é a única que não tem qualquer relação com os negócios da família. Montou sua empresa, não usou nossa grana, não tem qualquer contato – a não ser quando contratamos seus serviços em eventos – conosco. Suspiro ao pensar nela, principalmente porque ela não dirige a palavra a mim há mais de duas décadas.

O ponto de equilíbrio, o conciliador, a nossa Suíça, para explicar melhor, é o Millos. Meu primo tem relacionamento com todos os irmãos, escuta e aconselha a todos e, ainda assim, consegue permanecer neutro dentro da confusão que é essa família nada ortodoxa. Todos o conhecem por sua serenidade, sensatez e capacidade de pensar com racionalidade mesmo em meio ao caos. No entanto, eu sei a verdade! Por baixo de toda a placidez aparente, Millos esconde um lado seu que chega a me arrepiar os pelos.

A verdade é que nem mesmo o Karamanlis mais sensato é são!

Ando pelo escritório, noto cada detalhe da decoração, trazendo à mente o significado e o momento em que cada peça aqui disposta foi comprada. Algumas delas são remanescentes de um relacionamento que tive há alguns anos com uma decoradora de interiores; entre uma foda e outra, avaliávamos os objetos juntos e os comprávamos. Poucas aqui vieram de casa, na Grécia: uma deusa Atena esculpida em Carrara, um relicário da minha avó e um tinteiro do vovô.

Um fato sobre mim que me deixa orgulhoso é que sempre gostei de arte. Mesmo não tendo nenhum tipo de aptidão para pintura e escultura, gosto de apreciá-las, de viver cercado pelo belo, diferente e único. É claro que valorizo muito os clássicos, as obras e artistas já consolidados, mas meu faro empresarial também sabe reconhecer um iniciante com potencial, por isso tenho muitos investimentos na área.

Para estar por dentro de tudo o que acontece, preciso viver constantemente ligado a esse mundo, e isso, no momento, tem gerado alguns problemas. Fora compromissos e reuniões de trabalho, meu lazer é praticamente frequentar exposições, vernissages, festivais e até concursos. Por conta disso, só tenho me envolvido com mulheres do meio – o que para mim é maravilhoso, afinal, além do sexo, tenho o plus da conversa –, e a maioria delas não se encaixa no perfil da futura senhora Theodoros Karamanlis.

Pode parecer machismo, talvez seja, mas vocês hão de convir que, por mim, nunca haveria uma senhora Theo Karamanlis. Contudo, não posso deixar de atender a um pedido do meu avô. Imagina se o velho Geórgios, ateniense tradicional, aceitaria ver o neto mais velho se casando com uma artista alternativa, cheirando a incenso e tintas?

Esse é um dos motivos pelo qual comecei a frequentar as galerias mais chiques e tradicionais, com o pessoal da alta-roda paulistana e deixei de lado esse meu lado indie de aquarelas e carvão. Não entendam mal, não desgosto de estar nesse meio mais rebuscado, claro que não, arte é arte, e eu a aprecio de qualquer forma, mas é fato que as mulheres são bem diferentes. As descoladas são sempre mais divertidas.

Já que tenho que me casar, não quero um mero compromisso de conveniência. Por isso estou procurando, conhecendo, abrindo-me a encontrar uma pessoa com a qual eu me veja acordando de manhã e me deitando ao lado à noite. Se a encontrei? Não! Mais uma vez peço a vocês que não me entendam de forma errada. Eu não procuro por amor, essa porra já provou a mim que só serve para deixar o homem idiota e burro, então nem está sendo considerada. O que eu preciso é de uma parceira, uma mulher que eu consiga ver ao meu lado como amiga, além de ser a mãe dos meus filhos. Esse é o problema! Eu não as vejo assim, pelo menos nenhuma que tenha conhecido até agora.

Confiro as horas no Omega que uso no pulso esquerdo e balanço a cabeça. O tempo não para! Vovô não está ficando mais novo; eu não estou ficando mais jovem, e as chances de eu confiar o suficiente em uma mulher a ponto de pedi-la em casamento e gerar uma criança são quase nulas!

— Doutor Karamanlis? — Rômulo me chama, interrompendo meus pensamentos preocupados. — A reunião sobre o terreno para a rede de shoppings começa em 10 minutos...

— Obrigado, estarei lá. — Caminho até minha mesa para pegar umas anotações. — A equipe da senhorita Reinol já está posicionada?

Meu assistente apenas assente, ainda parado à porta, um tanto tenso, mais do que o normal.

— Algum problema? — inquiro diretamente, esperando a reposta positiva, pois é óbvia.

— Eu não me sinto à vontade para contar isso, mas...

— Pare de dar voltas e diga de uma vez! — A impaciência toma conta de mim, e de novo questiono minha sanidade ao manter o Rômulo como meu assistente. Ele é competente, sim! Organizado? Muito! Entretanto, tem umas manias que me tiram do sério, e, infelizmente, a falta de objetividade é uma delas. — Rômulo!

Ele pula assustado com o tom da minha voz e fecha os olhos, torcendo as mãos. Dá-me paciência!

— Aconteceu uma pequena desavença há pouco lá na sala de reuniões e... — bufo, arrependido, pois odeio fofoca — a Kika abandonou a apresentação e disse que o Leonardo é quem vai falar com o cliente.

Arregalo os olhos, surpreso.

Wilka Reinol, a Wilka a quem ele se referiu, é nossa gerente de hunter, ou seja, é a responsável pela equipe que pesquisa os imóveis de acordo com a necessidade dos clientes. Assim que a Malu Ruschel nos deixou para bancar Maria Chiquinha no meio do mato, foi natural que Kika assumisse a gerência, pois se mostrou pronta para a responsabilidade durante o período de férias da antiga gerente. Ela é um pouco mais solta que a Malu – que era um tanto obcecada pelo trabalho –, mas tão responsável e obstinada quanto a outra.

Kika, sob meu ponto de vista, tem tudo o que a Malu tinha e mais a humanidade necessária para o serviço. Ela sabe liderar a equipe, é carismática, todos os funcionários do prédio a conhecem, gostam dela e fazem de tudo para ajudá-la. Alex, meu irmão, brinca que, se a presidência da Karamanlis fosse por voto popular, ela ganharia fácil, e é bem provável.

Por isso mesmo, saber que alguém conseguiu irritá-la a ponto de fazer com que ela abandone uma apresentação na qual se empenhou... Respiro fundo, já sabendo o que aconteceu.

— Kostas?

Rômulo parece que vai desmaiar.

— É... Ele estava conversando com ela antes de... — Faz um gesto nervoso com as mãos. — Eu não sei o que houve, mas o pessoal ficou todo tenso e pediu para eu vir buscá-lo.

Não! De novo, não!

Há alguns meses, eu tive que apartar uma briga feia dos dois, quando Kostas decidiu interferir no trabalho da Malu no afã de fechar a conta do Grupo Yannes. A ex-gerente ainda estava no Pantanal, e Kika era quem gerenciava em seu lugar, e a pequena morena colocou o dedo bem no meio da cara do meu irmão, de mais de 1,90m, sem titubear nenhuma só vez.

Secretamente eu torci por ela, querendo vê-la dando uns bons tapas naquela cara anglo-grega e deixando o nariz dele, já quebrado sabe Deus lá como, ainda mais torto. Nunca tive tanta vontade de incitar a guerra, mas me lembrei do motivo para o qual tinha sido chamado e tentei conciliar os dois.

Kika, ainda bufando, mandou-nos à merda e saiu da sala batendo a porta. Kostas ria, mas eu pude perceber que havia um brilho de admiração nos olhos dele. Nós não estávamos – e nem estamos – acostumados a defender alguém com unhas e dentes como ela fez com a Malu. Foi realmente admirável e providencial, porque logo depois tudo se revolveu, e o próprio Kostas admitiu que as duas estavam certas ao não apresentarem a fazenda pantaneira ao cliente.

Depois desse episódio, no entanto, os dois passaram a se evitar, e a paz voltou a reinar na Karamanlis, o que me faz voltar a pensar no que aconteceu dessa vez para que a trégua tenha tido fim.

— Você vai atrás da Kika. — Rômulo fica branco. — Vou ter uma palavrinha com o meu irmão.

— Mas ela... — o assistente tenta argumentar, tremendo de medo.

— Coragem, Rômulo! — Passo por ele, segurando o riso por vê-lo apavorado por ter de falar com a Kika. — Ela não vai te arrancar pedaços... — Sorrio para ele. — Pelo menos, não muito grandes!

Escuto-o gemer e não resisto mais. Gargalho.


Andar pela Karamanlis sempre foi algo complicado. Não por causa das dimensões do prédio, que também não é pequeno, mas porque sempre cruzo com um ou mais gerentes ou diretores, e eles sempre têm algo a comentar comigo. Sempre!

A empresa ocupa do décimo ao vigésimo andar do enorme prédio comercial na Paulista. Os andares inferiores estão divididos para duas subsidiárias: a K-Eng, empresa que concentra todos os serviços de engenharia – em seus vários nichos – e que é dirigida pelo meu irmão caçula; e a K-Decor, empresa de arquitetura e design de interiores, também sob o comando do Alex, mas com acompanhamento do Millos.

Somos uma holding, atendemos o Brasil inteiro não só na compra e venda de imóveis, como também no gerenciamento, na construção desde o projeto, planejamento, decoração e design. Nossa cartela de clientes é formada, em sua esmagadora maioria, por empresas, mas às vezes temos alguns prédios residenciais sendo atendidos de alguma forma pela Karamanlis.

Nossa estrutura é completa, temos, para exemplificar, um andar inteiro dedicado ao pessoal de TI, que coordena todas as nossas redes, tão necessário para o pessoal que trabalha com georreferenciamento de imagens, satélite e sobreposição de manchas para marcarmos as propriedades. Temos utilizado muito essas ferramentas para regularização de fazendas, áreas enormes para as quais, se o serviço fosse feito em campo, levaríamos o triplo do tempo e gastaríamos o dobro de funcionários.

A divisão jurídica, comandada pelo Kostas, ocupa quase um andar inteiro, deixando apenas três salas para a gerência de hunter, que eu não sei por que ainda mantenho lá, mas que nunca me incomodou tanto quanto agora.

Definitivamente, os hunters precisam sair do andar antes que a Kika e o Kostas se matem!

Abro a porta que dá acesso ao enorme salão onde ficam os advogados, cada um trabalhando atentamente à sua mesa ao estilo baia, e sigo para a sala toda de vidro ao fundo.

Kostas me vê antes mesmo que eu bata à porta e faz sinal para que eu entre.

— Seu assistente já fofocou com você. — Ele ri, deixando seu charuto de lado.

Olho carrancudo para o fumo, algo que ele sabe que eu desaprovo dentro do local de trabalho, mas que ele sempre alega que é só para relaxar, coisa de seu sangue inglês. Porco arrogante!

— Rômulo já me informou da situação que ocorreu — corrijo-o. Sim, eu acho meu assistente fofoqueiro, mas só quem pode falar essa porra sou eu, por isso, defendo-o. — Eu pensei que já houvesse se estabelecido um tipo de trégua entre vocês aqui na Faixa de Gaza.

Kostas dá uma risada escrota quando eu falo do apelido do andar.

— Aquela mulher é muito petulante! — Dá de ombros. — Se eu fosse o CEO dessa “bagaça”, já teria mostrado a ela a porta da rua.

— Ainda bem que você não é! — corto-o. — Eu não demito funcionários porque eles falam umas verdades a um bundão como você. Kika é extremamente competente, e eu não tenho motivo algum para me desfazer dela.

— O bundão aqui é você! Ela enche meu saco, feministazinha do sovaco cabeludo, e ainda tem a coragem de querer ditar regras!

Balanço a cabeça, perdendo a paciência.

— Você enche meu saco, e, se eu pudesse, te colocaria para fora daqui agora mesmo...

— Só que você não pode! — Ri, arrogante, pegando seu charuto de volta. — Sou dono dessa merda tanto quanto você! Então me engula!

— Você está certo, e que isso fique bem claro, Kostas. — Caminho para perto dele. — Só aturo suas merdas porque não posso te pôr para fora, não porque eu goste de trabalhar com você. Não interessa se é um puta advogado, foda-se! Eu demito sem nenhuma dor na consciência funcionários que tenham metade da sua arrogância. — Soco a mesa, e ele fica sério, deixando de lado o sorriso debochado. — Agora, não me tente! Aposto com você que todos já estão de saco cheio de suas piadinhas preconceituosas, de seu jeito de se achar melhor que todos e, principalmente, de todas as confusões que você arruma aqui dentro! Duvido que os integrantes do conselho estejam dispostos a pôr o rabo na reta para te defender.

Vejo que atingi o ponto fraco dele, pois o filho da puta sabe que não tem apoio de ninguém aqui dentro. Nem mesmo Millos – o único a conseguir conviver com essa criatura – o defenderia diante do conselho.

Kostas por fim apaga o charuto, caminha pela sala e abre a porta de vidro.

— Sai.

Rio e constato que tudo o que falei, apesar de feri-lo, não o mudará jamais.

— Para de se meter no trabalho dos hunters — aviso-lhe antes de sair. — Eu não vou segurar essa porra e nem ficar igual a uma maldita galinha pisando em ovos com meus funcionários por sua causa! Tá frustrado e entediado? Vá trepar ou qualquer outra coisa que o deixe menos imbecil do que é.

— Sim, chefe — debocha.

— É bom lembrar disso, Konstantinos Karamanlis. Eu sou o seu chefe!

Saio daqui notando as expressões assustadas dos advogados, sem me importar o mínimo, afinal todos sabem que os irmãos Karamanlis não se dão. Ando sem olhar para trás, confiante, ainda que tenha consciência de que, se pudesse, meu irmão enfiaria uma faca em minhas costas sem dó nem piedade.

Tenho absoluta certeza de que só estou no comando porque passo certa segurança ao conselho administrativo da empresa. Se não fosse assim, aposto que nenhum Karamanlis estaria na diretoria executiva. Meu pai foi um desastre, era bom gestor, mas esteve envolvido em um escândalo após outro e, por fim, começou a fazer péssimas escolhas nos negócios, o que custou sua cabeça.

Kostas tem a agressividade de Nikkós. É o filho que mais se assemelha a ele, não só na aparência, mas também no gênio intratável. Detesto me comparar ao meu pai, mas não posso negar que a inconstância dele na vida pessoal, embora de um jeito completamente diferente, faça parte de quem sou. E, já em Alex, vejo uma impulsividade enorme, também herdada do maldito que nos gerou.

Quanto a Kyra... Bem, nunca pude formar opinião sobre ela. Tudo o que sei de minha irmã veio através de informações trazidas pelos outros. Não temos nenhum tipo de contato. Ainda tenho a imagem da menininha alegre que se pendurava nos meus ombros, mas isso foi há tanto tempo que não consigo mais ligar a imagem da mulher à da criança.

Sinto culpa por ter criado essa barreira entre nós. Reconheço meu erro, porém, já não somos mais imaturos, poderíamos ter lidado com isso se Kyra quisesse. Ela só não consegue me perdoar.

Encontro-me com Rômulo à espera do elevador. Ele se encolhe um pouco quando me vê, e eu dou um tapinha em seu ombro.

— Acalmou a fera? — brinco.

— Ela já retornou à sala de reuniões. — Sorrio, orgulhoso dele. — Mas xingou nossa espécie de todas as formas possíveis. — Rio, imaginando a cena. — Alguns que eu nem sabia que existia! Sabia que ela chama seu irmão de Bostas Karamanlis?

Gargalho, fazendo-o pular de susto.

— Ótimo apelido! — Ainda estou rindo ao entrar no elevador. — Por essas e outras é que ela tem meu total respeito! — Mal acabamos de entrar, vemos Kostas vindo em nossa direção. Com um sorriso malvado no rosto, aperto o botão para fechar portas, deixando-o para trás.

— Ele ia subir... — Rômulo argumenta.

— Não queremos o elevador fedendo, não é? — zombo, rindo de novo. — Bostas! Por que nunca pensei nisso antes?!

Meu assistente me olha como se eu tivesse enlouquecido, com suas grossas sobrancelhas escuras quase encostando em seus cabelos e a testa lotada de gomos de expressão. Minha gargalhada não cessa, imaginando a cara de Millos quando eu contar como o “todo poderoso” Kostas Karamanlis é chamado pelos funcionários da empresa.

 

 

Entro na sala de reuniões e dou de cara com a Kika, com seu jeito simpático e elétrico, distribuindo instruções, rindo com os colegas e averiguando sua apresentação. Nosso cliente ainda não chegou, mas não deve tardar muito; é senso comum que nós não gostamos de atrasos.

Cumprimento a equipe rapidamente com um leve inclinar de cabeça, desabotoo o último botão do meu paletó e me sento no lugar que sempre ocupo quando estamos nesta sala. O material em cima da mesa, com todas as informações sobre o imóvel escolhido pelos hunters chama minha atenção e, mesmo sabendo que isso os deixa apreensivos – admito que sinto certa perversidade de minha parte ao gostar de deixá-los assim –, pego a pasta e começo a folhear página por página lentamente.

Confiro as horas no meu relógio e encaro a Kika com as sobrancelhas franzidas.

— Senhorita Reinol? — chamo-a e bato de leve o dedo indicador sobre o relógio. — Alguma notícia?

Imediatamente ela chama uma mulher de sua equipe, que sai apressada da sala com um telefone celular na mão. Faço um gesto para que Kika se aproxime, e ela vem andando, sem nem mesmo demonstrar um pingo de apreensão, em minha direção. Admirável!

— Pois não, doutor?

— Você confirmou com o cliente a reunião hoje?

— Certamente! — Ela levanta o queixo. — Isso é a primeira coisa que fazemos, antes mesmo de disparar o memorando para a Diretoria Executiva informando o horário. Meu departamento é extremamente competente, doutor.

— Eles não costumam atrasar — observo. — Rômulo! — chamo meu assistente. — Traga aqueles relatórios que eu tinha separado para assinar enquanto espero. Odeio perder tempo!

Ele sai apressado, e eu escuto o bufo impaciente de Kika Reinol.

— Eu conversei com o Kostas — disparo ao voltar a ler a última página do material, sem olhá-la. — Sinceramente estou ficando cansado dessas rusgas entre vocês. A partir de amanhã, vou solicitar ao Millos que seu setor seja realojado.

— O quê?! — sua voz, um pouco mais alta que o normal, ecoa pela sala, causando um silêncio sepulcral e atraindo minha atenção. Ergo a sobrancelha direita para ela e cruzo os braços sobre o peito, deixando a pasta com os arquivos da apresentação sobre a mesa.

— Não faz mais sentido manter vocês dois tão próximos. — Abaixo meu tom de voz: — Não vou ficar bancando a mamãezinha e separando a briga de vocês como dois fedelhos. Se não sabem se comportar como adultos e profissionais, então não podem conviver no mesmo espaço.

— Isso é muito injusto, doutor! — sua voz, embora baixa, soa completamente irritada. — Eu nunca me meto no trabalho do doutor Konstantinos, embora a recíproca não seja verdadeira!

— Eu sei, Kika — chamo-a pelo apelido para demonstrar que não a culpo. — No entanto, a situação está saindo do controle, e eu não estou disposto a mandar você embora e, embora queira fazer isso com ele, não tenho esse poder.

Kika respira fundo e assente.

— Desculpe-me por estar causando tantos transtornos, doutor Theodoros. — Ela sorri. — Eu não sou uma pessoa difícil de lidar, mas ele...

— Eu sei, não se preocupe com isso.

— Eu espero que... — ela se interrompe de repente, e eu olho para a direção em que está olhando. Vejo a funcionária que saiu há pouco da sala fazendo muitos gestos para sua chefe, mesmo tentando disfarçar quando percebe que a estou observando também.

— Venha até aqui! — chamo-a.

A moça, provavelmente uma estagiária, pois é muito nova, fica vermelha e começa a torcer as mãos ao se aproximar.

— O que houve, Laura? — Kika pergunta.

— Liguei para nosso cliente e... bem... — A menina intercala olhares entre mim e Kika. — Ele disse que ligaram mais cedo cancelando a reunião.

— O quê?! — mais uma vez a voz da gerente ecoa pela sala, e eu fecho os olhos, prevendo mais confusão, pois é óbvio que não foi ela quem mandou desmarcar.

Kostas, seu filho da puta!


— O dia foi uma sucessão de merdas! — xingo ao entrar no carro, notando a expressão debochada de Dionísio.

Afrouxo a gravata e abro o botão torturador da gola da camisa, liberando assim meu pescoço do enforcamento diário. Eu preciso de um uísque! Abro o compartimento no meio do banco de couro da parte de trás do carro, onde estou, pego a garrafa da única marca de uísque que bebo, The Macallan, sirvo uma pequena dose no copo de cristal e respiro fundo antes de degustar a bebida escocesa.

Pela garganta, sinto a leve queimação. Notas de café e mel se misturam e logo se vão, deixando ao final um amargo sabor amadeirado, típico do single malt envelhecido em barris de xerez. A dor de cabeça que ameaça despontar some, e meu pescoço vai amolecendo, a cabeça pousa no encosto do banco e, finalmente, depois de um dia de cão, eu me sinto relaxar.

Ah, o milagre feito por uma dose de uísque de uma garrafa de pouco mais de dois mil reais!

Levanto um brinde imaginário ao meu dia fodido, querendo que ele se vá e que eu consiga livrar todas as tensões e preocupações de minha mente para que possa ter uma noite decente, ao menos.

O riso de Dionísio é de quem entendeu meu ritual, e eu esboço um leve repuxar de lábios, ainda muito rabugento para sorrir de verdade, e tomo mais um gole imaginando chegar a casa, tomar um banho e me submeter às competentes e pesadas mãos de Lavínia antes de trepar a noite inteira de novo.

— O doutor vai direto para seu apartamento?

Abro os olhos para olhar Dionísio pelo retrovisor e confirmo.

— Se o trânsito permitir, espero estar lá em breve. — Tiro o paletó e pego o celular, abrindo minha playlist favorita. — Dio, ligue o aparelho de som.

Em seguida ouço o jazz da incomparável Ella Fitzgerald e solto um suspiro de prazer, o primeiro neste dia desgraçado. Tento não pensar no Kostas, muito menos na enorme vontade de dar umas porradas naquela cara debochada, para não perder o pouco da paz que ouvir Ella e Armstrong cantando Isn’t this a lovely day? me traz.

Ah, como eu amo jazz! Não é à toa que mantenho um enorme piano de cauda no meio da sala principal do meu apartamento, além de ter centenas de discos – sim, são long players – cuidadosamente guardados na sala de som que fiz, com o toca-discos reinando absoluto. Chamem-me de retrô, sinceramente estou me fodendo para o que pensem disso. Prefiro, sim, o som da agulha sobre o vinil, o som encorpado e os ruídos que só um LP podem me proporcionar.

Não sou avesso à tecnologia, não quando sou cercado dela, mas há coisas de que não abro mão, como uma bela comida caseira com ingredientes frescos como comia em Atenas; meus discos, como vocês já souberam; e dirigir meu Aston Martin de câmbio manual.

Ah – sorrio olhando meu copo de scotch –, prefiro single malt a blend em matéria de uísque. Bem conservador para a maioria dos bebedores de hoje.

O trânsito agarra em alguns pontos do caminho da Paulista até o Vila Nova Conceição, onde moro, porém, Dio consegue me deixar na garagem do meu prédio exatamente 30 minutos depois de termos saído da Karamanlis.

Saio do carro levando comigo o paletó e a insuportável – e conservadora – pasta de couro com alguns documentos. Espero o elevador para me levar até o 36.º andar, para a cobertura duplex que comprei há três anos. Como detesto perder tempo, enquanto espero, mando mensagem para a Lavínia, uma deliciosa morena com quem tenho saído há algumas semanas, marcando um encontro com ela aqui em casa.

A resposta chega quando estou dentro do elevador com uma vizinha, e tenho de refrear a língua para não assustar a pobre senhora que me faz companhia neste pequeno cubículo. A safada me mandou uma foto – sem cabeça, como sempre – da sua indumentária de hoje à noite, um conjunto de lingerie sexy e quente que já me deixa completamente duro e ansioso.

Remexo-me desconfortável, porque conheço bem as calças desses ternos modernos, mais apertadas e de tecido mais fino, e escondo a evidência da minha excitação – ou seja, meu pau duro – colocando a pasta e o casaco na frente.

A senhora – cujo nome não sei, pois não conheço a maioria dos meus vizinhos, apenas os cumprimento quando nos esbarramos pelos corredores –, desce no 19.º andar, e eu sigo – livre e excitado – para a cobertura, embora tente me acalmar para não assustar a Vanda, governanta e cão de guarda do meu apê.

— Bem-vindo, doutor — ela me saúda assim que as portas do elevador se abrem no living, e se apressa a pegar minha pasta, deixando-me, como sempre, constrangido por ela ficar carregando peso enquanto eu sigo confortável como um inútil.

— Eu levo a pasta, Vanda, obrigado. — Evito que ela a pegue, mas ainda assim recebo um olhar feroz. — Tudo o que preciso é tomar um banho e daquele seu jantar.

Ela dá risadinhas.

— Já está quase pronto — diz orgulhosa da sua eficiência. — A Sandra ligou confirmando o horário de amanhã, e seu primo virá também.

Assinto, deixando-a para trás enquanto sigo para o quarto. Sandra é minha personal trainer, e nós treinamos juntos três vezes na semana e, às vezes, Millos, que também é seu aluno, adianta seu horário para vir malhar conosco.

Eu gosto de exercícios, sempre gostei. Sou magro naturalmente, e os treinos me ajudam a fortalecer os músculos e a manter um peso proporcional ao meu tamanho. Millos já faz a linha bombado, e isso combina com ele e sua personalidade.

Tenho apenas uma tatuagem, que fiz bêbado demais para lembrar, enquanto meu primo parece um gibi, todo desenhado. Gosto de malhar com ele porque sou competitivo até a raiz do cabelo, e ele não fica atrás, então ficamos medindo forças e levando um ao outro ao limite da resistência.

Minha suíte é enorme e confortável, toda em tons de cinza e azul-marinho, com paredes off-white, concebidas com carinho por uma de minhas parceiras de cama. Tenho sorte de ter conhecido mulheres que, além de ótimas de cama, eram profissionais competentes.

Caminho até o closet e deixo meu terno no local reservado para que Vanda o leve até a lavanderia, uma espécie de bag. Abro a gaveta de gravatas, enrolo a que usei hoje e a coloco no lugar, em seguida fazendo o mesmo com as abotoaduras. Verifico se meus sapatos estão precisando de limpeza e, como estão limpos, pois mal saí da empresa hoje, coloco-os na sapateira e jogo as meias e a cueca no cesto de roupa suja.

Eu sou organizado em casa também. Gosto de ser assim.

Programo o chuveiro, abrindo as duas duchas em direções diferentes, em jatos fortes e frios – está um calor do cão! – e gemo de prazer ao senti-los na pele.

Dia fodido!

Fico um tempo debaixo da ducha principal, avaliando cada momento da confusão que foi o final da tarde no escritório. Primeiro, a tensão entre a Kika e o Kostas, minha discussão com ele e, por último, o pedido de demissão dela.

Merda!

Pelo que posso julgar da personalidade dela, não será fácil convencê-la a voltar, e eu não posso perder outra gerente desse nível na empresa, não mesmo! Penso na discussão com o Kostas, nas palavras duras e verdadeiras que trocamos um com o outro e tento entender por que somos desse jeito. Que maldição é essa que nos mantém separados quando temos tudo para sermos unidos?

Balanço a cabeça, impedindo que me perca nestes pensamentos que nunca levam a lugar algum. Não há o que fazer para consertar anos de muros levantados em torno de cada um de nós. É impossível transpor as barreiras que o tempo e nossa situação ergueram. Não há nada a fazer!

Agora, preciso me concentrar nos negócios e no maldito pedido do pappoús! Tenho que trazer Kika de volta, comprar a porra daquele boteco na Vila Madalena e achar uma mulher que esteja à altura de ser a mãe do bisneto de Geórgios Karamanlis.

Escuto um barulho na porta do banheiro e abro um sorriso ao ver Lavínia parada na entrada. Ela se encosta ao batente, olha meu corpo inteiro com fome brilhando nos olhos e morde o lábio inferior. É o que basta para meu corpo, mesmo sob os jatos frios, reagir.

— Vem aqui! — chamo-a, mas ela nega.

— Finja que não estou aqui... — sussurra. — Deixe-me ver como você toca uma pensando em mim.

Sinceramente tenho vontade de revirar os olhos para ela, mas, para não quebrar o clima, faço o que me pede. Seguro meu pau bem forte e, lentamente, vou deslizando a mão para baixo e para cima, sem nunca tirar os olhos dos dela. O tesão vai aumentando, e eu fecho as pálpebras, evocando as imagens que me fazem gozar rapidamente. Som abafado, cheiro de fumaça, um perfume floral, cabelos cor-de-rosa e uma boceta quente e apertada... Merda!

Abro os olhos e encaro a mulher que me espera, apenas de calcinha e sutiã, roçando contra o batente da porta e gemendo.

— Vem aqui agora, Lavínia! — Abro a porta do boxe.

Ela arregala os olhos por causa do meu tom de voz impaciente e sorri, safada. Mal chega perto de mim, e já a viro contra a parede, seguro firme sua cintura, levantando-a e esfrego meu pau em sua calcinha molhada. Preciso foder essa mulher com urgência! Estico uma das mãos até o nicho onde uma caixa de acrílico guarda alguns envelopes de camisinha – eu adoro foder debaixo d’água, então sou prevenido – e rapidamente encapo meu pau e o afundo dentro dela.

As malditas sensações daquela noite ainda estão em minha mente, rondando-me como fantasmas. Enrolo os cabelos cacheados e negros no meu punho, mas, no ápice do prazer, vejo-os levemente rosados. Porra! Fodo-a com ainda mais força, ouvindo seus gemidos altos e descontrolados, pois sei o quanto ela gosta de trepar sem limites.

Quando a escuto falar que vai gozar, em desespero, aumento as estocadas para me deixar ir junto com ela e aliviar em parte essa fome que nunca cessa.

Foda-se, desconhecida!

 

 

Alguma coisa pinica meu nariz, e passo a mão, mudando de posição sobre os travesseiros. Estou em Atenas, com a família de minha mãe, vendendo peixe e tentando ser homem o suficiente para manter minha promessa. Não importa que eu não esteja preparado, não importa se tive de desistir de tudo, o amor é mais forte que tudo e por isso vou conseguir... vou...

Espirro.

Sento-me na cama, piscando os olhos, perdido no tempo e no espaço. Estava apenas sonhado de novo! Malditos pesadelos que, vira e mexe, estão retornando. Bufo. A vantagem desse é que não chegou ao apogeu do drama, porque alguma coisa... Uma risada abafada me faz olhar para o lado e encontrar um homem de quase 2m de altura, forte como um armário, cheio de tatuagens, com uma maldita pluma na mão.

— Porra, Millos!

O desgraçado cai na gargalhada, e eu me levanto da cama sem nenhum constrangimento diante da minha nudez e sigo para o banheiro.

— Não programou o despertador? — ele pergunta ainda no quarto.

— Programei. — Termino de mijar e dou descarga. — Você me incomodou com sua presença dez minutos antes. — Começo a escovar os dentes, e ele fica à espera. — Lavínia saiu daqui às 4h da manhã.

— Se elas não dormem aqui, não seria mais fácil comê-las em algum local neutro?

Saio do banheiro ainda secando o rosto, pego uma cueca no closet e a visto, voltando para o quarto.

— Não tenho problema algum com minha cama, pelo contrário! Prefiro meu espaço a qualquer outro. — Dou de ombros. — Você que tem essa mania de nunca trepar no seu apartamento.

Ele ri.

— Você sabe muito bem que eu não trepo! — Um sorriso descarado se forma em sua expressão. — Eu as conduzo ao prazer... É diferente!

Reviro os olhos.

— É claro que você trepa, porém, tem a mente mais fodida que a boceta de uma puta, por isso tem essas manias estranhas!

— Não fale do que você não sabe, Theodoros — adverte-me. — Cada um tem seu jeito de obter prazer; o meu é esse.

Concordo com ele, mesmo achando alguns de seus gostos um tanto estranhos demais para mim. Chame-me de conservador nisso também, mas tenho alguns limites bem definidos em relação às minhas fodas.

Millos me espera no quarto enquanto visto a roupa do treino, falando sobre um novo modelo da Ducati que está pensando em importar. O homem é completamente viciado em motos, faz parte de motoclubes e, nas férias, sai cortando estrada com esse pessoal. Já percorreu grande parte da América do Sul sobre duas rodas, fez a Route 66 nos Estados Unidos e percorreu toda a BR 101 aqui no Brasil.

Além disso, é obcecado por cerveja e fez vários cursos nessa área no mundo todo, produzindo sua própria bebida, buscando o sabor perfeito que seu paladar exigente ainda não encontrou em nenhuma marca já disponível. O desgraçado entende tanto do assunto que é convidado para festivais e fez parte do júri de vários campeonatos de mestre cervejeiro.

Millos mora em um loft, um antigo galpão que ele reformou todo. Na parte debaixo guarda suas motos e tem uma pequena oficina; na de cima, sem nenhuma divisória, ele tem uma confortável sala, uma cozinha industrial com os tonéis de cobre para a fermentação de sua cerveja e o quarto, onde nunca leva uma mulher para trepar.

Ah, esqueci... ele não trepa!

Tomamos juntos um suplemento de carboidratos pré-treino enquanto Vanda escuta alegremente as conversas de Millos sobre sua última experiência culinária – carne de rã marinada com cerveja – fazendo careta a cada vez que ele descreve o anfíbio sendo tostado na grelha.

Quando Sandra chega, já estamos os dois no segundo andar da cobertura, onde apenas uma enorme parede de vidro separa a academia da área de lazer com piscina, jacuzzi e área com churrasqueira gourmet.

— Bom dia, meninos! — Millos ri do cumprimento, porque a personal deve ser uns bons anos mais nova que nós dois, porém, sempre nos cumprimenta assim. — Prontos para suarem a camisa?

Um olha para o outro sem saber o que responder, pois nenhum usa camisa.

— Figura de linguagem, rapazes! — Rola os olhos. — Vocês, gregos, são muito literais!

Ela liga o som; uma música calma enche todo o ambiente.

— Bora alongar!

Bufo impaciente, mesmo sabendo da importância de preparar os músculos para os exercícios intensos, querendo dar uma surra no Millos hoje.

Vamos ver quem vai pedir arrego, meu primo!


Depois que terminamos o treino, tomamos nosso café da manhã antes de sair para o trabalho.

Millos sempre se veste aqui quando vem treinar comigo, então há sempre alguma roupa dele no quarto de hóspedes. Em poucos minutos o homem tatuado, debochado e um tanto sombrio desaparece, e ele assume seu papel de executivo calmo, frio e competente. A camiseta manchada, os jeans rasgados e os coturnos – roupa com que veio aqui antes de vestir a de malhar – dão lugar ao terno italiano, sapatos de couro, camisa de algodão egípcio e gravata de seda. Os cabelos revoltos estão no lugar, penteados para trás com algum tipo de pomada que os deixa fixos, a barba foi penteada e o brinco de argola dá lugar a um pequeno ponto na orelha, quase imperceptível.

Sinceramente não sei se ele adotou esse personagem para trabalhar com o pai, meu tio, ou se é algo que ele prefere fazer para não chocar ou causar descrença em nossos clientes. Realmente nunca entendi, e ele também nunca quis explicar, então não sei o que se passa na cabeça desse Millos Karamanlis executivo. O que me importa é que ele é meu braço direito, aquele em quem confio de olhos fechados nos negócios, porque, mesmo sendo tão diverso de sua personalidade, a frieza do executivo Millos é o que nos ajuda a controlar alguns incêndios dentro da Karamanlis.

— Soube da merda do Kostas dessa vez? — indago assim que entramos no carro, com Dionísio a dirigir.

— Como não saberia? A história correu pelos corredores da empresa no final da tarde de ontem. — Ele puxa mais a manga de sua camisa a fim de esconder as tatuagens do pulso. — A senhorita Reinol pediu mesmo demissão?

— Pediu! — Rio. — Foi uma saída de rainha no meio da discussão e com direito a água gelada na cara! — Gargalho. — Confesso que, se fosse café quente, eu teria sentido um pouco mais de prazer, mas nem tudo é perfeito.

— Porra, Theo, o Kostas está incontrolável, e eu não entendo o motivo. — Eu o encaro franzindo a testa, porque nunca falamos do meu irmão sem ser em termos profissionais, mesmo sabendo que Millos é quase um confidente de ambos. — Ele mudou muito nesses dias, parece... sei lá, encurralado.

— O Kostas encurralado? — debocho. — Aquele filho da puta é mais frio que uma pedra de gelo! O que poderia mexer com ele a ponto de deixá-lo assim?

Millos respira fundo e dá de ombros, fechando-se em copas novamente, como sempre faz quando o assunto é a vida pessoal dos meus irmãos. Esse jeito dele, essa lealdade toda me conforta e me frustra ao mesmo tempo. Sei que ele não comenta com os outros as coisas que lhe conto, mas gostaria de saber mais do que se passa com meus irmãos mais novos, principalmente Alex e Kyra.

Independentemente do que eu queira, sei que, por ele, nunca vou ficar sabendo de nada, e uma aproximação entre mim e meus irmãos é coisa muito improvável, então finjo não ligar para isso, mas sinto a culpa apertar meu peito a cada vez que algumas lembranças voltam.

— Seu assistente já confirmou sua presença no baile dos Villazzas no Ano Novo? — Assinto. — Não sei se vou. No último a que fui, eles ainda estavam em Curitiba!

— Muitos anos, já! Não tenho como não ir, sou amigo do Frank e quero ajudar a instituição do Bernardo Novak, que é uma das eleitas deste ano para receber parte das doações.

— Ah, sim, isso eu também quero fazer. A empresa da Kyra é quem está organizando, você sabe? — Balanço a cabeça positivamente. — Foi por isso que ela não pegou a festa da Karamanlis este ano...

— Foi a desculpa que ela deu, na verdade — corto-o. — A empresa dela já está crescendo sozinha, ela já pode se dar ao luxo de dispensar um contrato conosco e, assim, manter-se cada vez mais distante.

— Que seja... — Ranjo os dentes de raiva por ele não comentar nada. — Estou pensando em fazer um recesso entre o Ano Novo e a segunda semana de janeiro. — Millos estica as pernas, gemendo lentamente, e um sorriso de vitória me escapa. Está dolorido, desgraçado? — Ainda não sei se vou até Frankfurt conversar com um mestre cervejeiro de lá ou se faço alguma viagem longa de moto, mas estou querendo ficar fora dos negócios por um tempo.

Sinto uma pontada de inveja dele, pois costumo tirar no máximo uma semana de descanso entre as festas – Natal e Ano Novo –, e a única viagem que consigo fazer é ir até a Grécia para visitar o vovô, e nesse ano, como irei viajar em fevereiro no ano que vem para o aniversário dele, não vou tirar sequer essa semana de recesso.

— Eu não vejo problemas. Esse período é o mais devagar na empresa. — Ficamos um tempo mudos, apenas ouvindo o som do aparelho do carro tocando alguma estação de rádio. — Eu vou fazer aquele filho da puta ir atrás da Kika!

Millos me encara, olhos arregalados, e não por causa da fala inesperada depois do silêncio que fizemos.

— Eu acho que isso vai dar mais merda do que já deu.

Sorrio.

— Não, ele vai ter que pedir desculpas e prometer se comportar. — Encaro Millos, olhos brilhando, pensando em como obrigar o meu irmão arrogante a fazer minha vontade. — Preciso da sua ajuda!

 

 

Meu humor melhorou drasticamente depois da conversa com o Millos no carro e o plano que arquitetamos para fazer aquele idiota prepotente consertar a merda que fez aqui na empresa. Fazer Kostas ir até a Kika para implorar que volte será bom para mim por dois aspectos: terei minha gerente de volta e ainda colocarei meu irmão no seu lugar, abaixando um pouco sua crista de galo de briga.

Rômulo está irritantemente quieto hoje, e desvio o olhar a toda hora para sua mesinha apenas para conferir se o tagarela está bem e respirando. Hoje a empresa está um pouco sombria. Os funcionários estão falando mais baixo, há menos pessoas nos corredores, e os setores estão funcionando bem, mas sem o ritmo frenético a qual todos estamos acostumados.

Uma apatia geral tomou conta do lugar, e o clima aqui dentro está tão opressivo que me sinto sufocando algumas vezes. É como estar de luto, e isso é uma coisa incrível, pois bastou uma funcionária querida pedir demissão para parecer que o sol se pôs dentro deste prédio.

Preciso dessa mulher de volta!

Se o babaca do meu irmão não conseguir o feito de reintegrá-la à equipe, vou ter que jogar sujo e recorrer a Malu Ruschel lá no meio daquele mato onde vive. Espero conversar com ela para que convença sua amiga a voltar para nós.

Levanto-me, sentindo a tensão sobre meus ombros e meu pescoço duro. Ponho a culpa na tensão, nunca admitindo que a disputa ferrenha com Millos no treino de hoje de manhã me causou isso. Tenho 41 anos, não sou um garotão, mas sempre me consolo dizendo que pratico exercícios há muitos anos, então meu corpo está acostumado.

A verdade é que os anos estão realmente passando, e talvez eu esteja sentindo os efeitos do deus Cronos no corpo. Noitadas de sexo, balada e exposições têm me deixado cada vez mais cansado, além disso, comecei a notar que tenho necessitado de mais horas de sono do que precisava antes. Talvez tenha que ir a algum médico fazer um check-up ou buscar um geriatra.

Dou uma risadinha baixa, achando graça do meu humor negro. Fui contagiado pelo clima de enterro da Karamanlis, e esse silêncio todo me faz divagar. Gosto e estou acostumado à correria, a Rômulo transitando em volta de mim como mosca de padaria, sempre prestativo, falante e, na maioria das vezes, incômodo.

Porra, estou sentindo falta até da inconveniência dele!

Caminho até a vidraça da sala, olho a Paulista movimentada de carros lá embaixo e volto a refletir sobre a vida, principalmente a profissional. Já faz anos que assumi o cargo de CEO da empresa, anos que vim morar no Brasil, e, apesar de tudo isso, algumas coisas continuam como antes: o trabalho intenso, a desarmonia entre os irmãos Karamanlis, meus hábitos noturnos, hobbies e, claro, a maldita conta da Vila Madalena. A confusão de ontem desviou um pouco minha atenção desse objetivo, mas não posso perder o foco, não quando estou cada vez mais perto de conseguir comprar o maldito boteco!

— Rômulo — chamo-o sem olhar em sua direção. — Peça ao Millos para que venha até aqui, por favor.

— Ele estava em reunião com o doutor Kostas... — Viro-me para encará-lo, e o homem franzino e de óculos fundo de garrafa arregala os olhos. — Eu vou ver se ele já retornou.

Meu assistente sai todo atabalhoado do escritório, deixando alguns post-it caídos no chão marcando seu caminho como na história de João e Maria. Respiro fundo para não me irritar com ele, pois, apesar de um tanto fofoqueiro e atrapalhado, ele é muito eficiente, não posso negar. Apesar de todos os incômodos, eu não o trocaria por nenhum outro.

Volto a pensar na Vila Madalena e que Millos ficou de levantar as condições para executarmos a promissória assinada pelo falecido proprietário do bar. Preciso saber em que pé estamos para traçar novas estratégias de ataque, afinal, quero começar o próximo ano já com essa conta fechada e, assim, ter menos uma coisa a torturar minha cabeça.

Escuto passos apressados, típicos do meu assistente, e a porta se fechando.

— Ele já vem, doutor — diz resfolegando, o que demonstra que foi correndo até a sala do meu primo. Quanta falta de sutileza!

Balanço a cabeça, segurando o riso debochado ao imaginar a cena, e lhe agradeço:

— Obrigado.

Enquanto espero, decido tomar o... (não lembro quantos já foram hoje) café do dia. Sigo até a máquina de café expresso que fica no aparador de bebidas e coloco uma cápsula de um blend de cafés no modo ristretto enquanto aguardo meu primo. O cheiro agradável enche o ambiente do escritório, deixando-o menos opressor e mais acolhedor. Aspiro a fragrância lentamente, apoiado no aparador, olhos fechados e absorvendo o prazer que essa bebida me proporciona. Sim, sou viciado em café!

— Theo? — Millos bate à porta, tirando-me do transe gourmet. — O que houve?

Faço um gesto para que ele entre e aponto para a máquina, que está passando dois do néctar de café que mais gostamos. Um ristretto só é possível quando a máquina tem a pressurização correta e os grãos são de qualidade. O pó sai praticamente seco, tamanha a velocidade que a água fervente passa por ele, extraindo o melhor do grão.

Nunca me acostumei ao jeito brasileiro de tomar café longo ou mesmo o famoso carioquinha, acrescentando água para diluir a bebida. Preciso sentir o sabor do grão, as notas intermediárias dele e as que ficam depois na boca. No caso desse blend que fiz, há um leve frutado que diminui a acidez e depois resta na boca um sabor mais forte, tal qual chocolate amargo.

Pego a xícara de Millos e a entrego para ele.

— Como foi com o Kostas?

Millos relaxa, sentando-se numa das cadeiras em frente à minha mesa e se encostando nela, desfrutando do cheiro do café.

— Acho que mordeu a isca. Só espero que ele saiba convencê-la. — Dá de ombros. — O que mais você quer?

— Vamos beber o café primeiro. — Pego a outra xícara e tomo um gole. — Quero notícias sobre a promissória da família Hill.

— Ah... — Ele sorve lentamente a bebida quente, deixando-me em suspenso com sua resposta. — Encorpado e naturalmente doce, perfeito! — elogia o café.

— A máquina faz tudo! Para de enrolar e fala logo.

O desgraçado ri, tomando mais um gole.

— Kostas estava analisando, mas, com essa confusão toda... — Eu xingo, e ele sorri mais uma vez. — Estou pensando em fazer uma visitinha a Duda Hill de novo. Vamos?

— Eu não tenho nada a tratar com ela. Quero executar a porra da promissória e expulsá-la de lá! — Deixo o café de lado, contrariado demais para apreciar seu sabor. — Já estou esperando por isso há muito tempo, Millos. Estou começando a perder a paciência.

— Eu acho que você deveria tentar conversar com ela. — Franzo o cenho, sem entender. — Dizer que temos a promissória e que vamos executá-la, mas oferecer a ela a chance de comprar antes de irmos à justiça.

— Por que eu faria isso?

Realmente não entendo o que Millos quer com essa sugestão. Oferecer a promissória para ela pagar? Como se ela tivesse condições de arcar com o valor exorbitante sem vender o maldito bar! Se a pressionarmos demais, ela pode acabar vendendo para outra pessoa, e aí teríamos que começar as negociações do zero. Isso nunca!

— Por que você quer tanto aquele quarteirão? — indaga-me, fazendo com que eu o olhe surpreso.

Ficamos um tempo assim, encarando um ao outro, apenas o som da digitação do Rômulo a pairar sobre nós. Tento procurar um motivo mais forte para comprar o lugar, mas não consigo achar nenhum convincente o suficiente para desviar a atenção dele da verdade. Não quero nada ali, nem tenho sequer ideia do que fazer e para quem oferecer, mas é uma conta deixada pela gestão do meu pai, o que me impulsiona a querer comprar apenas para esfregar em sua cara que eu consegui, que o derrotei.

— Consiga comprar a merda do bar — digo entredentes, a voz baixa e sem desviar meus olhos dos dele. — Meus motivos não interessam, é uma conta aberta que prejudica a reputação da empresa, e, como CEO, não posso deixar isso acontecer.

— Justo! — Ele se levanta. — Vou fazer tudo o que estiver ao meu alcance para satisfazer a sua vontade e não prejudicar a reputação da empresa no mercado.

Aquiesço, porém, não satisfeito, reconhecendo certo sarcasmo em sua voz.

— Millos. — Ele me encara. — Eu preciso fazer isso.

Meu primo bufa.

— Eu sei, Theo. — Caminha até onde estou e toca em meu ombro, falando baixo para que apenas eu o ouça: — Eu queria mesmo que você não precisasse, assim como não achasse que deve ao pappoús até a sua alma! — Faço careta e abro a boca para defender nosso avô, mas ele continua: — Eu sei que você precisa disso e vou ajudar no que puder.

Agradeço mesmo não emitindo nenhuma palavra. Conhecemo-nos há tantos anos, já passamos por tantas coisas juntos que não é necessário que sempre haja palavras entre nós.

Millos sai da sala, deixando-me sob os olhares curiosos de Rômulo, que provavelmente ouviu os sussurros e ficou de antena ligada atrás de uma notícia quente.

— Volte ao trabalho, Rômulo! — admoesto-o.

Ele fica vermelho e abaixa a cabeça para volta a digitar no computador.

Preciso arranjar uma sala isolada para esse língua de trapo! Ah, se não fosse competente!

Sento-me à mesa e olho para a tela do computador, onde um contrato já ratificado pelo jurídico está à espera da minha assinatura eletrônica. Esse dia não está sendo fácil, embora o trabalho continue normalmente como em todos os outros. Não compreendo o motivo, talvez por ter conseguido a maldita promissória, mas a vontade de conseguir comprar o boteco e o colocar no chão tem estado constantemente em minha cabeça. Muito mais do que o normal!


Os cheiros se misturam aos sons em um caos perfeito, quase sistêmico, se for possível considerar que alguma confusão possa ter um padrão implícito. Há um ritmo a ser seguido, um conjunto de ações e reações em cadeia que faz com que todo o nosso processo ande em harmonia.

É assim a minha cozinha!

Respiro fundo mais uma vez, espantando o cansaço e buscando energia para continuar. Estou empreendida neste ritmo desde às 2h da tarde, quase 12 horas direto, mas envolvida em todos os passos da organização e funcionamento desde às 8h da manhã, quando acordei.

Ser chef de cozinha não é só glamour, quer dizer, nunca foi! O que as pessoas veem na televisão, os grandes cozinheiros que aparecem na mídia com seus restaurantes renomados, a maioria agora é só empresário, cozinha vez ou outra, mas todos já ralaram muito para conseguir algum nome.

Quando decidi ser chef, eu tinha oito anos de idade, estava na cozinha da minha avó materna no interior e fiz meu primeiro bolinho de chuva regado a açúcar e canela. Abro o sorriso por causa da força das recordações. As lembranças olfativas e gustativas, na minha opinião, são as estrelas do cérebro. Quem nunca pensou num prato e na lembrança pôde sentir seu cheiro e o sabor? Quem nunca foi transportado a uma lembrança afetiva ao comer? Eu sempre acreditei nesse poder e, a partir daquele dia, na casa da minha avó, percebi que queria deixar essa marca na vida das pessoas.

Foi o último ano com minha mãe. Ela já estava doente, câncer de mama, e o clima em casa não estava dos melhores. Papai andava deprimido, o bar não estava indo bem o suficiente para arcar sozinho com as despesas depois que ela teve que parar de trabalhar na cozinha, e meu irmão – com 14 anos na época – andava estranho e pelos cantos.

Estávamos em férias escolares, e vovô foi nos buscar para passar umas semanas com eles. Imagino o quanto estava sendo duro ver a filha definhando aos poucos, perdendo a luta contra essa doença tão dura. Diagnóstico atrasado, demora no acesso ao tratamento, tudo isso contribuiu para que ela vivesse seis meses depois da descoberta do câncer.

Metástase, a palavra que mais me dói ouvir até hoje.

Meu maior medo também.

A tristeza e o desânimo tomaram conta da família assim que o médico contou ao papai que o estágio era terminal. A mastectomia, o esvaziamento total das duas mamas, não foi suficiente para ela, pois as células cancerígenas já haviam se espalhado pelo abdômen. Tudo o que podíamos fazer era tentar dar a melhor qualidade de vida possível aos poucos meses que lhe restavam.

Minha mãe, Maria Aparecida Braga Hill, era a pessoa mais forte e alegre que eu conheci. Era a luz da nossa casa, a razão da vida do meu pai, quem eu queria ser quando crescesse. Sua doença não diminuiu suas características e, naquelas férias, ela pegou meu primeiro feito culinário – um tanto cru por dentro e tostado por fora –, colocou-o na boca e revirou os olhos de prazer.

— Hummm, Duda, tem o sabor da minha infância! — Sorriu.

— Ficou um pouco queimado... — tentei argumentar, desculpando-me.

— Isso é questão de prática, princesa! — Ela se abaixou para ficar da minha altura, seu corpo bem magro, olhos fundos e com olheiras, o lenço na cabeça. — O importante não é só a aparência da comida; são as sensações que ela nos traz, o que ela nos faz sentir. — Pegou mais um dos meus tristes bolinhos. — O seu bolinho de chuva me fez voltar a ser criança, encheu meu peito de alegria, e é isso que importa.

Abracei-a, orgulhosa, sentindo-me quase uma heroína por ter feito tudo isso por ela com apenas farinha, água, ovos, açúcar e sal. Minha cabeça infantil imaginou como ela se sentiria se eu lhe fizesse um prato como aqueles que via em suas revistas de culinária. Mamãe ficaria tão feliz!

Foi a partir desse dia que passei a me interessar pela comida, pelos ingredientes, pela mágica que a mistura dos sabores proporcionava.

Muito tempo depois que ela nos deixou, suas palavras, a felicidade em seu rosto e o carinho do seu abraço ficaram marcados em mim. Eu queria essa sensação novamente, eu precisava sentir que algo que fazia era capaz de tornar a vida de alguém mais feliz.

Aos 13 anos insisti com o papai para trabalhar no bar. O Hill era um boteco mesmo, no sentido mais estrito da palavra. Os frequentadores eram pinguços que se encostavam ao balcão do bar quando papai abria e só iam embora expulsos quando ele decidia fechar. Tudo o que servíamos era torresmo, ovo colorido e alguns caldos que fazíamos em dias programados. Segunda e quarta era dia de mocotó; terça e quinta era bucho, e o final de semana era inteiro da rainha do Hill: a feijoada.

Um cozinheiro muito louco, mas com o tempero mais incrível que eu já provei, era quem comandava a cozinha quase doméstica do bar. Ele foi meu primeiro carrasco e logo me colocou na limpeza, frustrando meus planos de ser a estrela do Hill. Assim, ficava horas depois do colégio a lavar a louça – que não era pouca, porque o homem era bagunceiro – e limpar o chão.

Ainda lembro que a primeira coisa que ele me pediu para fazer – que envolvesse o preparo de alimentos – foi picar temperos. Chorei descascando cebolas igual a quando assisti ao filme Titanic na TV e cortei o dedo algumas vezes. O filho da mãe ria toda vez que eu gemia ou xingava, mas não desisti.

Em pouco tempo ele estava me ensinando as poucas técnicas que sabia, obtidas com a experiência de trabalhar em cozinhas desde seu primeiro emprego. Meu carrasco virou meu anjo da guarda, e, toda vez que papai ameaçava me proibir de ir para o bar trabalhar, ele me defendia dizendo que precisava da minha ajuda.

Foi por causa dele que pude estudar fora. Quando fiz 15 anos, papai queria fazer uma festa para comemorar, mas Dalto – o cozinheiro anjo da guarda – conversou comigo sobre cursos de gastronomia e citou a França como referência. Meu presente foi o curso de francês, segundo ele, necessário para me abrir as portas.

Aos 18 anos comecei a cursar a graduação em gastronomia, um orgulho para meu pai, que, àquela altura, já acreditava que eu conseguiria ser uma grande chef. O curso durou quatro semestres, e, aos 21 anos, já trabalhando como ajudante de cozinha em um restaurante de uma rede internacional de hotéis, consegui um feito incrível, uma bolsa para estudar na mais famosa escola de Paris.

Eu tinha tudo o que sempre sonhara, consegui passar num processo seletivo muito criterioso, esforcei-me durante anos para aprender a língua, ganhei a bolsa, mas não tinha grana para viajar e me manter por lá. Nessa época papai tinha um carro seminovo, e não pensou duas vezes antes de vender o veículo e me entregar todo o dinheiro para que eu pudesse passar os meses do curso sem apertos.

Fiz contato com outra moça brasileira que já morava em Paris e consegui alugar uma vaga em seu apartamento, perto do instituto. Foram os melhores meses da minha vida! Dediquei-me de corpo e alma àquilo, ignorei tudo. E a recompensa veio!

Um mês antes de concluir o curso, fui convidada a integrar a equipe de um grande restaurante na capital francesa. Cargo pequeno, salário baixo, mas o primeiro degrau para a realização de todos os meus sonhos de menina.

— Duda! — Manola, meu braço direito aqui na cozinha agitada desse pub que já foi um boteco, me grita, tirando-me do flashback no qual estava. — A cozinha fecha em meia hora, e estamos cheias de pedidos ainda. Não estou achando o molho extra que você tinha preparado mais cedo.

Seco minhas mãos no avental e vou até a pequena câmara fria que instalei aqui há pouco mais de um ano. O investimento foi caro, mas valeu cada centavo, pois consegui armazenar mais ingredientes e de uma forma muito mais segura do que no freezer.

Entrego o molho que preparei mais cedo para Anabele, uma das assistentes de cozinha, e volto a olhar a costelinha de porco no forno, a última da noite.

Estou cansada mais do que o normal, pois tive mais uma noite insone. Tem sido difícil dormir em casa, e, mesmo quando tudo está calmo, pego-me sem nenhuma vontade de fechar os olhos. Nós temos estado em um ritmo alucinante desde que o Hill caiu nas graças do pessoal aqui na Vila Madalena e chamou a atenção da imprensa especializada. Saímos em algumas revistas, ganhamos destaque, mas ainda assim sinto como se andasse no fio da navalha todos os dias.

Não trabalho tanto para enriquecer, apenas preciso manter um teto sobre minha cabeça, o mínimo de estrutura para minha tia Do Carmo e para Tessa e conseguir saldar todas as dívidas deixadas pelo meu irmão e pelo papai.

Uma dor enorme me invade toda vez que penso nos dois. Minha família se desintegrou por completo! Primeiro, mamãe, levada pelo câncer, depois meu irmão, que nunca se recuperou da perda dela e se afundou nas drogas, morrendo de overdose e, por fim, papai, há alguns anos, devido a problemas cardíacos.

Meus avós maternos se foram ainda na minha adolescência, restando a mim apenas a tia Do Carmo e a Tessa. A sorte é que conto com todos aqui como se fossem da família.

Manola é, além de meu braço direito, uma grande amiga. Tenho muito orgulho dela, principalmente por nossas histórias serem tão parecidas em alguns pontos. Ela é filha do Dalto, o “carrasco” que me ajudou a ser a chef que sou hoje. O pai dela vive ainda em São Paulo, mas está aposentado, e, uma vez no mês, fazemos um almoço aqui no Hill, e é ele quem cozinha, deliciando-nos com seu tempero único.

O Arnaldo é nosso faz-tudo, aquele que nos mata de rir com suas piadas bem contadas, que faz as melhores carnes do mundo e que vive sendo consolado por todos por seu infortúnio no amor. Sua grande paixão foi o Marlon, um segurança que trabalha aqui no Hill algumas vezes na semana, mas o homem nunca lhe deu chances. Sofríamos com aquele amor platônico todo, essa é a verdade!

Além desses dois, que são cozinheiros incríveis, temos duas técnicas em gastronomia que sonham em se tornar um dia chefs de grandes restaurantes: a Cláudia, responsável pelas sobremesas da casa, e a Anabele, mestre dos molhos.

Aqui no Hill nós não temos cardápio de restaurante, é de bar mesmo! Bolinhos variados, anéis de cebola empanados, batatas feitas de várias formas e, claro, nossas porções de carne. O carro-chefe são as asas de frango com molhos, uma receita que aprendi com um americano e que caiu no gosto da nossa clientela.

Claro que, com um cardápio tão “tradicional” assim, nós nunca teríamos nos destacado se não fosse a constante variação que fazemos nas receitas. Inventamos onions rings recheadas com vários sabores; batatas com muitos tipos de coberturas, e nossas carnes sempre têm algum molho ou tempero especial.

Além disso tudo, eu conto com o Kiko, o mestre em drinques que encontrei há alguns anos servindo numa barraca de festa, fazendo freelance. Notei o talentoso bartender que ele era e não me arrependo nada disso. O homem é demais, além de ser um grande amigo.

No bar, ele trabalha com mais três ajudantes, que se encarregam de toda a bebida do pub e do controle do estoque. Kiko é um ótimo gerente, dei esse posto a ele por puro merecimento, demonstrando minha admiração. Ele sabe trabalhar em equipe, é muito organizado, sabe contornar conflitos e ter pulso firme com o time de vinte garçons e garçonetes que temos na casa.

O pequeno boteco ao estilo “pé sujo” hoje é uma empresa que gera renda e mantém dezenas de famílias.

Esse é mais um dos motivos pelos quais não posso fraquejar e deixar que as dívidas deixadas pelo papai e pelo meu irmão me façam perder tudo. Principalmente para os Karamanlis!

Respiro fundo só de pensar naquele bando de engravatado abutre rondando o pub como se ele fosse um animal agonizante prestes a perecer. Eu vendo o bar para qualquer um que quiser continuar o negócio, não importa que não seja meu – embora isso me doa –, mas nunca para eles.

Falta pouco para eu quitar a dívida do meu irmão. Papai começou a pagar ainda vivo, e eu continuei os pagamentos depois da morte dele. Devo a um traficante! Esse não é o tipo de pessoa a quem alguém quer dever, então os pagamentos precisam ser feitos religiosamente.

Mais um mês, e isso acaba!, penso aliviada.

Leonan – meu credor – me garantiu que, depois da dívida quitada, não haveria mais o nome da família Hill nos cadernos dele, e eu acredito que mantenha sua palavra. Para qualquer pessoa, essa minha fé em um traficante, quando meu irmão morreu de overdose, pode parecer contraditória, mas tem explicação. Quando João Pedro chegou ao fundo do poço e ficou fora de casa por mais de um mês, papai se desesperou e foi atrás do Leonan. Ele não fornecia mais nada ao meu irmão, mesmo porque JP já usava crack, droga com que ele não “trabalha”, porém, o homem conhecia todo tipo de “fornecedor” e a galera que se amontoava na cracolândia.

Acharam meu irmão lá, e meu pai, mesmo sem nenhuma condição financeira, levou-o para uma clínica de reabilitação. Pasmem, mas quem emprestou o dinheiro para financiar a recuperação foi o Leonan, e é por isso que eu lhe pago até hoje, mesmo porque ele se arriscou muito emprestando esse dinheiro, uma vez que é apenas um dos “gerentes” da boca.

Nós tentamos, mas JP não conseguiu se reerguer.

Quando voltei de Paris, ele já estava de novo vivendo nas ruas. Papai estava desesperado, doente, e eu, mesmo frustrada por ter dado tudo errado no meu sonho de viver na Cidade Luz e ser uma chef reconhecida, fiz a promessa de fazer qualquer coisa por eles. Cheguei precisando de apoio e consolo, e, mesmo em meio a toda essa situação – que ignorava até voltar para casa –, meu pai me recebeu de braços abertos.

Meu irmão foi encontrado morto na rua, um choque e, ao mesmo tempo, um alívio para nós. Ele estava irreconhecível, doente, parecendo ter o dobro da idade que tinha e sofrendo muito. O vício é uma doença, e o crack é quase uma sentença de morte. Pouquíssimas pessoas conseguem se livrar dele, e é por isso que, quem consegue, merece receber todo apoio e consideração, porque é uma luta enorme, uma superação.

Papai estava medicado, tocava o bar, e eu voltei a trabalhar na cozinha e comecei a mexer nos cardápios. No princípio ele não gostou muito, mas depois foi aceitando a ideia de modernizar as coisas. O dinheiro começou a entrar, porém, sempre que eu tocava no assunto reforma, ele desconversava.

Só descobri que ele era viciado em jogo logo depois do funeral, mas apenas soube o tamanho do problema há dois anos, quando recebi a “visita” de um dos agiotas que emprestou dinheiro a ele. Ele devia muito!

Tentei ir pagando ao longo desse tempo, no entanto, os juros que ele praticava só tornaram tudo uma grande bola de neve. Eu estava enxugando gelo e totalmente sem saída. Se vendesse o Hill, conseguiria quitar a dívida, mas como iria continuar mantendo as pessoas que dependem de mim e que necessitam desse trabalho? Além disso, esse é o único legado da família que me restou, pois a casa do meu pai, onde moro hoje, fica no andar de cima e faz parte da propriedade.

Eu tinha esperança de conseguir quitar a débito e fiz um investimento futuro que poderia me render um dinheiro suficiente para amortizar todos os juros e depois eu tentaria renegociar a dívida, mas algo aconteceu.

Fui tentar pagá-la há alguns meses, e, simplesmente, o agiota não me atende. Sempre entrei em contato pelo único número que ele me deixou. Entretanto, é como se nunca tivesse existido.

Um frio percorre minha espinha ao imaginar os prováveis motivos para que o homem não me atenda mais, e eu temo pelo que possa me acontecer.


A noite começou com correria. É sempre assim quando vou à abertura de um vernissage ao qual estou patrocinando. Dessa vez não será pintura, mas sim um jovem escultor descoberto em Paraisópolis que faz seu trabalho com argila, sucata ou qualquer outro material que possa transformar em arte.

Antes ele vendia suas esculturas como artesanato em uma feira de rua, e um dos meus contatos no mundo das artes me ligou assim que viu o material dele. Claro que o rapaz, de apenas 21 anos, tinha muito a se refinar ainda, mas era claro como o dia o talento que tinha para transformar em realidade tridimensional qualquer coisa que viesse à sua imaginação.

Assim que conversamos, propus que ele fosse estudar com um amigo meu, um megaescultor brasileiro cujas peças estão no mundo todo, e assim comecei a organizar seu caminho até o dia de hoje. Viviane, meu braço direito nos negócios com artes, levou-o a várias exposições, workshops, festas e qualquer outro evento que o ajudasse a fazer networking. Enquanto isso, ele estudava, e eu bancava suas despesas e o local onde trabalhava.

Dez meses depois ele já tinha uma quantidade absurda de material de qualidade surpreendente para ser apresentado, e Viviane começou, então, a organizar a exposição, a espalhar uma coisinha aqui e outra ali sobre ele, a mostrar – mesmo que de relance – algumas das melhores peças dele a colecionadores a fim de deixá-los curiosos.

Claro que exatamente essas peças são as que eu já separei para minha coleção particular, que já serão mostradas como vendidas nesta noite, causando assim alvoroço e incitando os outros compradores a adquirirem mais esculturas.

É assim que esse mercado funciona. Geralmente quem é colecionador é também um competidor nato e, ao saber da compra de um item que gostou, começa a sentir medo de ficar sem uma peça daquele artista e, mais tarde, ele se revelar o novo Michelangelo. É por isso que eu sou louco por essa área, por esse jogo pensante e cheio de estratégias como o de um tabuleiro de xadrez. Primeiro, preciso enxergar o potencial artístico de uma pessoa, depois é só começar a jogar e colocar cada peça em seu devido lugar até vencer o jogo.

Ah, não pensem que faço isso por caridade, claro que não! Eu sou um investidor, então tudo o que faço pelo artista está em contrato, e depois sou ressarcido de acordo com o sucesso obtido. Todavia, em algumas situações ocorrem contratempos que impedem o acordo de seguir em frente, nesse caso fico no prejuízo, e o artista volta a se virar sozinho. Meus prejuízos até hoje foram ínfimos diante do que já lucrei nesse negócio, por isso gosto cada vez mais de jogar esse jogo.

O único problema é conciliar meu trabalho burocrático na Karamanlis com a agenda que tenho que seguir, afinal, não “apadrinho” apenas um artista, geralmente tenho umas dezenas em vários estágios de preparação e sucesso. Por isso não dispenso a Viviane, pois ela coordena toda a agenda desse pessoal – excêntrico o suficiente, vale ressaltar – tão heterogêneo.

É uma empresa paralela que nem leva meu nome, porque há um impedimento no estatuto da Karamanlis de o CEO pertencer à diretoria, conselho ou ser sócio de qualquer outra empresa. Então, para todos os efeitos, Viviane Lamour é a dona, e eu, apenas um admirador, além de seu amante, como todos comentam.

Rio ao pensar nisso, dando o nó na gravata-borboleta de frente para o espelho. Conheci Viviane numa festa dada por um pintor muito louco, e ela, obviamente, chamou-me a atenção por seu belo porte, cabelos cortados bem curtos e com a franja alongada, completamente platinados a ponto de serem brancos, destacando sua pele morena. Por si só, ela já é uma obra de arte, de bom gosto, apenas para apreciação de pessoas com senso refinado e olhar crítico.

Saímos algumas vezes, fodemos na maioria delas, mas depois nos tornamos amigos, e o tesão passou. Hoje fico até incomodado com o jeito como ela me trata, como se eu fosse seu confidente, uma espécie de mulher ou amigo gay a quem ela conta detalhes íntimos (excitantes ou asquerosos). Nós nos divertimos juntos, já saímos com a mesma mulher ao mesmo tempo, e eu já a dividi com outro cara, mas tudo na base da amizade e sem nenhum tipo de amarra, e há muito tempo não temos mais esse contato, apenas o profissional e amistoso.

Além de Millos, ela é a única que sabe da vontade do pappoús e tem me auxiliado na busca de uma mulher que preencha o requisito da velha raposa grega – e os meus também, óbvio!

Viviane é mais do que minha sócia, ela é meu faro, o olhar de lince que preciso, além de ser uma ótima companhia, inteligente, divertida, moderna e muito agradável.

Meu celular toca, e vejo o nome dela aparecendo na tela, como se eu a tivesse evocado.

— Theo, meu lindo, você vai chegar a tempo?

Olho-me no espelho antes de responder. Traje de gala, smoking tradicional, preto, com camisa branca, gravata-borboleta de seda também preta e sapatos italianos de couro. Meus cabelos estão penteados para trás com uma pomada que os mantêm fixos, mas sem aquele aspecto molhado tão démodé, minha barba está bem aparada, do jeito que gosto, tudo no lugar.

— Vou, sim! — respondo abrindo a gaveta com relógios da Rolex.

Fico em dúvida por um instante, mas acabo optando pelo clássico day-date de platina, luneta lisa, pulseira presidente e mostrador de ouro branco 18 quilates, de fundo preto com listras. Clássico e moderno ao mesmo tempo!

Confiro o horário no convite e, em seguida, as horas no relógio já no meu pulso. Não gosto de joias, pulseiras, cordões e etc. O único acessório – que, nesse caso, é como uma joia, por ser feito de metal precioso – é meu relógio. Venho os comprando e colecionando há muitos anos e, quando mandei fazer o closet, incluí no projeto gavetas-cofre, todas com combinação para abrir, onde eles ficam aguardando para serem usados.

Tenho peças de várias marcas e muitos modelos de cada uma delas, com valores também variáveis, desde o de um carro popular ao de um apartamento. Minha paixão por relógios é a mesma que Millos tem por motos, por exemplo, ou a que o vovô tem por selos. Acho que todo Karamanlis gosta de acumular algo; não sei se ou o que meus irmãos gostam de colecionar apenas porque não os conheço bem.

Passo perfume antes de sair e, já na sala de estar, encontro-me com a Vanda a esperar, torcendo as mãos e parecendo ansiosa.

— Algum problema?

— Infelizmente, sim. — Ela dá um suspiro. — Minha filha acabou de me ligar... perdeu o bebê.

Caminho até ela e coloco a mão sobre seu ombro, consolando-a.

Vanda trabalha comigo há tantos anos que é como se eu conhecesse toda sua família. Ela tem dois filhos adultos – uma mulher de trinta e poucos anos e um rapaz ainda na casa dos vinte. Os dois moram longe, estudaram, foram trabalhar e formaram família. O rapaz – cujo nome nunca lembro – mora nos Estados Unidos e trabalha numa empresa de tecnologia lá. Já a mulher, Aurora – esse é um nome que nunca esqueço –, mora no Rio de Janeiro com o marido, com quem é casada há muito tempo.

Ainda me lembro da felicidade de Vanda ao me comunicar que finalmente seria avó. Por isso, entendo sua tristeza.

— Se precisar de uns dias para ficar com ela... — Ela concorda. — Vou pedir ao Rômulo que providencie as passagens de avião. — Pego o celular. — Ele tenta algo para hoje ainda?

Ela soluça, e isso me corta o coração. Nunca tive contato com minha mãe, e ela cuida de mim como se eu fosse seu filho. Claro que temos uma relação profissional, mas reconheço o trabalho e o afeto dela por mim.

— Eu gostaria de ir o mais rápido possível...

Rômulo atende no segundo toque, todo esbaforido como sempre, como se estivesse fazendo algum tipo de exercício que o deixasse sem fôlego.

— Rômulo, boa noite! Preciso que compre passagens para o Rio de Janeiro se possível ainda para hoje à noite.

— O doutor vai viajar? Não vi nada na agenda que...

— Rômulo... as passagens, estou esperando na linha — corto-o.

Ele demora alguns minutos, mas ainda posso ouvir sua respiração ofegante. Será que o filha da puta tem asma e nunca me contou?

— Tem um voo para às 22h20 com previsão para chegar lá no Galeão às 23h25, posso comprar?

Confiro as horas de novo; pouco mais de duas horas para a partida do voo.

— Compre e já faça o check-in online. É para a Vanda, têm todas as informações sobre ela na minha pasta pessoal.

Ele confirma, pergunta sobre a volta, e eu peço para reservar para daqui uma semana, mas com possibilidade de mudança.

Vanda vai correndo até seu quarto, entendendo o pouco tempo que tem até chegar a Guarulhos, e eu aproveito para ligar para o Dionísio, que já está na garagem do prédio me esperando.

— Dio, você vai levar a Vanda para o aeroporto o mais rápido possível. Ela tem que estar lá em uma hora para poder embarcar para o Rio. Vá rápido, mas com segurança. — Mal desligo e ligo de volta para o Rômulo. — Conseguiu?

— Já mandei o voucher para o celular dela, chefe! — diz todo animado, e eu reviro os olhos.

— Preciso que entre em contato com aquela empresa na qual alugamos carro e motorista quando me hospedei lá.

— Já fiz isso também, chefe! — sua voz agora está animada e orgulhosa.

— Muito bem! Bom trabalho, Rômulo! Boa noite!

Juro que posso ouvir um suspiro quando desligo o celular. Rio, balançando a cabeça, achando o jeito dele muito engraçado, mesmo que me irrite na maioria do tempo. Esse Rômulo!

Uma mensagem da Viviane chega, pois agora estou oficialmente atrasado, e retorno apenas para acalmá-la:

 

 

Sento-me no banco do piano, brincando com as teclas enquanto Vanda termina de arrumar sua bagagem, pensando em como as coisas mudam de uma hora para a outra dentro de uma família. Eu já senti essa reviravolta uma vez, embora na época tenha reconhecido que foi para melhor, mas ainda assim as lembranças dela causam a dor da sensação de não saber como teria sido.

Bufo de raiva por deixar isso voltar, mesmo depois de tantos anos. Tudo o que eu queria era uma noite de sucesso para meu investimento e, talvez, um sexo casual depois do evento.

Dedilho um blues aleatório ao piano para animar meu espírito antes de sair de casa.

Odeio essas noites corridas!

 

 

— Porra, achei que você não vinha mais! — Viviane me cumprimenta assim que eu piso na galeria. — Samuel Dias é o maior sucesso! — cochicha em meu ouvido enquanto finge um abraço. — Parabéns!

Retribuo o cochicho:

— Para nós dois!

Ela gargalha, e isso chama a atenção de algumas pessoas que estão tomando champanhe e conversando em um canto. Cumprimento-os com a cabeça, pois conheço a maioria deles, mas uma loirinha me atrai com seu sorriso contido e olhos esfomeados.

— Seus olhos não são bons só em detectar talentos... — Vivi sussurra. — Valentina de Sá e Campos, filha do deputado Cristóvão Campos e neta do diplomata Augusto de Sá.

— É um bom currículo! — debocho. — O que mais você sabe?

Viviane sorri lentamente, uma expressão que eu já conheço e que significa que ela sabe tudo o que eu quiser ter de informação sobre a garota.

— Tem 27 anos, formada em Direito, faz balé desde criança e toca piano muitíssimo bem. — Faço um gesto com a cabeça, admirado. — Pelo que eu sei, trabalha no escritório com a mãe, mas está estudando para ingressar na diplomacia como o avô.

— Uma mulher de carreira, então?

Vivi me olha como se eu tivesse duas cabeças, e ergo as mãos em rendição.

— Mulher de carreira! Que mente retrógrada! O que você quer, afinal? Uma dondoquinha que fique em casa sem fazer nada o dia todo?

— Uma mulher que cuide de meu filho e que não o abandone por causa da profissão.

Ela volta a me fuzilar com os olhos.

— Isso é revoltante, Theo! Há ótimas mães que também são ótimas profissionais, uma coisa não exclui a outra, pelo amor de Dadá! — ela sempre me arranca um sorriso quando diz essa expressão. — Você quer mesmo fazer isso? Começar a sair com alguém para se comprometer? Porque, a cada vez que encontra uma possibilidade, você arranja mais requisitos! Tá foda!

— Vamos cumprimentar o artista primeiro, depois você continua me contando a vida da menina. — Sorrio para ela. — Anota aí que eu também a achei muito nova.

— Puta que pariu, desisto de te ajudar! Aquela última tinha 35 anos, e você achou que ela já podia estar entrando na menopausa e que por isso ia ser difícil emprenhar. — Rola os olhos. — Cagão!

Gargalho, aceitando um copo de uísque que o garçom veio me servir.

— Macallan? — pergunto, sentindo o cheiro.

— Óbvio, trouxe exclusivamente para você. — Ela acena, e vejo Samuel Dias. — Elogie o rapaz, diga que eu contei como ele tem se saído bem nesta noite e se desculpe pela demora. Finja ser sensível!

— Mas eu sou, não preciso fingir! — respondo rindo, bebericando o uísque.

— O que há de errado? — Ela provavelmente percebeu que não estou bebendo de verdade, apenas fazendo cena.

— Estou dirigindo. Tive que pedir a Dionísio que me fizesse outro favor.

— Justo hoje? — mesmo com o sorriso congelado em sua face, sua voz não disfarça a irritação. — O que havia de tão importante?

— Nada para você se preocupar. — Cumprimento o artista da noite: — Parabéns, eu ouvi falar que tudo tem sido um sucesso!

— Obrigado, Theo! Nada disso seria possível sem...

— Não, nada disso! Vamos celebrar a sua conquista hoje! — corto seu discurso de gratidão. Ele não precisa disso, não lhe estou fazendo um favor. — Viviane, procure um garçom para servir algo ao rapaz! O serviço poderia estar melhor...

— Vá se foder, Theo — diz baixinho entredentes, mas faz o que peço.

Assim que ela se afasta, cumprimento Samuel como sinto que devo, sem Viviane a estar no meu ouvido dizendo o que e como devo falar com ele.

— Estou muito orgulhoso de você. Sabia que seu talento seria reconhecido. — Ele agradece. — Só se lembre daquilo que conversamos no primeiro dia em que nos encontramos.

— Claro! — Sorri. — Nunca abandonar minhas raízes e minhas essência, porque são elas que impulsionam meu talento.

— Exato!

Viviane volta com duas taças de champanhe.

— Podemos brindar? — pergunta animada.

Levanto o copo de uísque enquanto eles tocam de leve as taças. Novamente busco a garota loira com os olhos e tenho a grata surpresa de pegá-la me observando. Sorrio, aceno com a cabeça, e ela faz o mesmo.

Então vamos ver no que dá!


Acordei de ressaca hoje, e não foi por causa da quantidade de bebida que ingeri no vernissage; aquela quantidade, eu nem consideraria como beber. Viviane ficou puta por ter encarecido o orçamento com garrafas do meu uísque preferido e eu não estar bebendo, por isso, depois do evento, reuni todas as que sobraram e trouxe para meu apartamento.

Pensei que ia passar uma noite solitária, acompanhado apenas de um single malte e discos de jazz, mas, no meio da minha encenação de lobo solitário, Millos ligou me convidando para ir até seu loft. Neguei várias vezes, mas a porra do homem estava tão excitado com a cerveja que havia feito que não parava de insistir.

Resultado? A bebida realmente estava um espetáculo! Enchemos a cara, mesmo sob meus protestos, pois nunca curti muito beber cerveja, e comemos uns tira-gostos tão saborosos que teci elogios a sua habilidade na cozinha.

— Ah, não fui eu quem preparou, não! — Riu. — Encomendei no Hill.

Quase cuspi aquela porra para longe e o fuzilei com os olhos.

— Porra, eu querendo que aquela merda feche e você comprando lá? Está do lado de quem afinal?

— Do meu estômago! — respondeu comendo mais um dos bolinhos. — Estava com vontade de ter um acompanhamento, mas sem nenhum saco para preparar. Me lembrei do dia em que fomos lá e quis conferir se ainda continuavam tão gostosos!

— Ainda não te perdoo por aquela arapuca! — acusei.

Há uns dois anos, Millos me convidou para comemorar seu aniversário, coisa que vez ou outra fazemos quando ele está em clima de festa. Eu lhe disse que o encontraria no local, mas ele insistiu em me buscar em casa, e, quando chegamos e percebi que era no Hill, fiquei bem puto, mas a curiosidade de saber o motivo pelo qual o boteco estava se tornando um sucesso me impulsionou a entrar.

O que eu não contava era que, além de a mim, o filho da puta tinha convidado meus irmãos. Ficamos lá os quatro como se fôssemos bons amigos, compartilhando da armadilha de Millos. Aposto que Kostas e Alex detestaram cada momento, mas sorrimos, bebemos e experimentamos os quitutes da tal da Duda Hill.

Mesmo não gostando de admitir, era fato que a mulher sabia o que estava fazendo na cozinha. Os bolinhos tão tradicionais de um boteco tinham um requinte diferente, embora mantivessem a essência. Era como se ela conseguisse melhorar o que já era perfeito, e isso, tenho que admitir, é um dom.

Confessei isso ao meu primo? Nem sob tortura! Repreendi-o por ter comprado lá, aleguei que ela podia ter mandado envenenar os quitutes – fazendo um drama desnecessário, culpa da bebida –, mas não parei de comer.

— Ah, pedi a Sami para comprar para mim — respondeu.

— Você ainda está saindo com ela? — questionei surpreso, pois havia muito tempo não via a motoqueira que, de vez em quando, orbitava em volta dele.

— Não! Somos amigos, já disse isso, mas parece que você só enxerga a boceta de uma mulher, come até suas “amigas” — fez referência a Viviane.

— Por que você não gosta dela? — Provoquei: — Porque ela é independente, dona de si mesma e diz o que pensa?

— Não! Eu não curto mulher assim para comer, mas não tem nada a ver com o fato de eu achá-la fria e calculista, e nunca escondi isso de você. Aquela mulher gela meu sangue!

Ri do seu exagero, afinal, a Vivi não tem nada de fria. Millos implica com ela pelo simples fato de a mulher ter personalidade e não se deixar comandar por ninguém. No primeiro momento ele se sentiu atraído, Vivi é um espetáculo aos olhos, e ela também não disfarçou o interesse. No entanto, bastaram alguns minutos de conversa para que se odiassem.

— Hoje ela conseguiu algo incrível — comentei. — Valentina de Sá e Campos, já ouviu falar?

Ele riu.

— Dela não, mas conheço os sobrenomes. Família paulistana tradicional, bom currículo. — Cruzou os braços e me olhou debochado. — A futura senhora Theodoros Karamanlis?

— Talvez — fui sincero. — Conversei um pouco com ela nesta noite, achei-a divertida, inteligente e sedutora. A princípio achei que era muito nova, mas é madura e independente, cheia de opinião. Gosto do tipo.

— Eu sei. — Ele se levantou e foi pegar mais cerveja. — Foi Viviane quem te apresentou a ela? — Assenti. — Não sei se gosto disso, mas boa sorte.

Gargalhei pela implicância dele com a Vivi e resolvi desviar o assunto. Falamos da Karamanlis, de música, de motos e, por fim, já muito bêbado e com sono, caí sobre o sofá dele e acordei há pouco, com torcicolo e com uma puta dor de cabeça.

— Ei! — Millos me saúda estendendo uma xícara de café. — Você está destruído!

O desgraçado ri, mas nem posso mandá-lo tomar no cu, porque minha cabeça trepida parecendo que há uma britadeira no meu cérebro. Maldita cerveja! Malditos bolinhos envenenados da Duda Hill!

— Cara, você é fraco para minha cerveja! — Millos ri. — Ficou boa, não é? — Apenas assinto, ainda tomando o café para melhorar meu ânimo. — O que está programado para fazer nesse final de semana?

— Vou trabalhar. Como saí um pouco mais cedo ontem por causa do vernissage, Rômulo separou umas pastas para que eu lesse nesse final de semana. Coisa chata, principalmente da pauta da reunião do conselho.

— Por falar no conselho... — Ele se senta ao meu lado no sofá e apoia os pés descalços sobre a mesinha de centro. — Ontem tive notícia do Kostas. — Ri. — Parece que tomou um toco feio da Kika e está cuspindo marimbondos.

Gargalho, esquecendo a dor.

— Como queria ter visto esse embate!

— Eu também.

Bufo, mesmo divertido, lembrando que o meu problema continua.

— Preciso trazê-la de volta para a empresa com urgência. Há vários projetos dos hunters parados, e o Rômulo não está dando conta de organizá-los.

Millos rola de rir no sofá.

— Esse seu assistente é muito estranho. Sinceramente não entendo como você ainda o mantém trabalhando contigo!

— Gosto de ele ser metódico. — Dou de ombros. — É organizado, embora meio desastrado, nunca perde um prazo e faz tudo o que eu peço.

— Seu próprio espelho, não é? Nunca conheci ninguém mais chato que você para organização.

Ergo uma sobrancelha para ele e olho em volta para seu loft cheio de espaço, mas sem nenhuma lógica ou senso de estilo. Millos gosta de coisas rústicas, e respeito isso, acho legal, mas é tão bagunceiro que seus móveis caros de design parecem ser cacarecos de alguma casa demolida.

Os únicos locais arrumados são: a cozinha, o “laboratório” de cerveja (como ele mesmo se refere ao local) e onde dorme. O resto... tem peças de motos para todos os lados, mesmo a oficina ficando na parte de baixo do galpão que ele chama de loft, tem barris com os ingredientes que compra para a fabricação de cerveja, roupas, discos e óculos (nunca vi tantos para uma só pessoa) espalhados por todos os lados.

O homem é um caos completo em casa, mas, se alguém entrar na sala dele na empresa, vai acreditar que é o epítome da organização. Não entendo como consegue!

— Bem, sobre a Kika, eu posso te adiantar que não precisa se preocupar — Millos continua. — Falei com ela ontem, e vai voltar.

Expiro o ar, aliviado.

— Porra, Millos, porque não me contou antes? É um alívio do cacete não ter que lidar com mais esse problema e...

— Mas ela não quer ser mudada de andar.

— O quê? Ela está fazendo exigências?

Millos penteia a barba com os dedos, enervando-me com sua calma.

— Demonstramos desespero ao mandar o Kostas pedir arrego. — Concordo com ele nesse ponto. — Ela quer aumento, continuar no andar e... — Tenta conter o sorriso, e prevejo que vem bomba, mas ele vai dar um doce do cacete para falar.

Perco a paciência e esbravejo:

— O que mais ela quer?!

— Carta branca para mandar seu irmão se foder à vontade.

— Porra!

Ponho as mãos na cabeça, sentindo a dor de cabeça voltar com tudo e ouvindo a risada debochada do Millos.

Eles querem me enlouquecer, só pode!

 

 

A dor de cabeça me acompanhou ao longo de todo o final de semana. Tomei analgésico, antiácido e – seguindo os conselhos do meu primo – mais um pouco de cerveja. No entanto, não consegui me livrar do incômodo insistente.

Trabalhei o sábado inteiro, recebendo ligações do Rômulo quase de hora em hora, a ponto de ficar puto com ele e mandá-lo caçar algo para se divertir e me deixar em paz. Compreendo que ele queira me ajudar, mas, às vezes, sua dedicação exacerbada me estressa.

Recebi um convite para jantar de uma antiga amante que vinha a São Paulo de tempos em tempos, mas neguei. Queria apenas relaxar um pouco em casa depois de ter trabalhado em páginas e mais páginas de relatórios com uma dor de cabeça chata a me distrair.

Pedi comida em um restaurante de comida vegana, achando que pudesse ser a gordura dos bolinhos do Hill – velha e rançosa, com certeza – que me deu essa indisposição e resolvi assistir a alguns filmes antigos. Sou fã de “O poderoso chefão”, então comecei a assistir a cada um deles de novo.

Novamente dormi em um sofá, mas acordei melhor e resolvi correr um pouco. Passei umas duas horas no Ibirapuera e, na volta, encomendei o almoço de domingo, sentindo-me um pouco órfão sem a Vanda em casa.

Liguei para Millos a fim de fazermos algum programa à tarde, mas ele estava com alguma mulher em algum clube ou lugar que só Deus sabia, então voltei aos relatórios, e isso consumiu o resto do dia.

Debaixo do chuveiro, rememorando este final de semana de merda, ouço meu telefone tocar, mas o ignoro. Coloquei os jatos no mais forte possível para tentar aliviar um pouco a tensão que venho acumulando nesses dias. A verdade é que preciso trepar um pouco, divertir-me, talvez fazer uma viagem ou passar um final de semana com alguém sem pensar no trabalho.

A imagem da Valentina vem à minha mente, sua conversa gostosa, seu sorriso bonito. Contudo, ainda não me sinto completamente certo de que devo me envolver com ela, principalmente por uma questão: não senti muita atração.

Sei que isso é de momento e que pode mudar, principalmente se a convivência for boa. Nem sempre sentimos atração pela pessoa no primeiro encontro, e já vivi anos demais para saber que até um primeiro encontro explosivo pode depois esfriar e o tesão ser extinto, então, não me baseio apenas nessas primeiras impressões.

Fecho os olhos e penso na garota da boate há alguns anos. Ela vem preenchendo minhas fantasias há muito tempo, talvez por ter sido gostoso daquela vez e não ter tido mais notícia dela.

Mal lembro do seu rosto, de tão bêbado que estava, sempre quando fantasio vejo os cabelos e me lembro da loucura que foi nossa transa naquele banheiro.

O telefone volta a tocar, e desligo o chuveiro, saindo do boxe para ver quem é o chato. Rio ao ver o nome do Millos. Na mosca!

— Já terminou sua maluquice sexual com a “submissa” da vez? — provoco.

— Vá se foder e não se meta nos meus assuntos — rosna. — Liguei para saber se amanhã pode ir comigo a um restaurante que um amigo inaugurou nos Jardins.

— Boa comida ou é boteco?

— Não, seu fresco, é coisa fina! Vanda ainda não estará de volta, não é?

Suspiro, resignado.

— Não, ela ainda vai ficar um tempo no Rio de Janeiro. Está certo, amanhã combinamos isso melhor no escritório.

— Okay! — diz animado. — Vai almoçar no refeitório junto aos funcionários?

— Sempre há uma primeira vez, não é? — Deixo a toalha no suporte e sigo para o closet. — Além do mais, confio que servimos algo de qualidade aos funcionários.

Millos ri.

— Essa eu quero ver! Nos encontramos no almoço, então! Boa noite, Theo.

— Boa noite!

Desligo o telefone e me olho no espelho, lembrando-me do tempo em que comia qualquer coisa e em qualquer lugar, na maioria das vezes sujo e fedendo a peixe, sentindo-me feliz e livre.

— Quem é você, Theodoros Karamanlis?


O dia nem bem amanheceu, e eu já estava suando na academia com a Sandra. Hoje, sem Millos, o treino foi mais tranquilo, seguindo o ritmo normal dos exercícios. Tomei meu café sozinho na cozinha – café puro mesmo – sentindo imensamente a falta da Vanda, de sua conversa matutina animada e seus cuidados. Posso não admitir sempre, mas gosto de ser cuidado, de sentir esse afeto, coisa tão rara na minha vida.

Limpei os pensamentos e saí para trabalhar.

— Bom dia, Dionísio! — cumprimentei o motorista como em todos os dias, já pegando meu jornal para me inteirar sobre as principais notícias do dia. — Hoje vou almoçar na empresa, mas, à noite, vou sair do escritório direto para jantar com Millos.

— Levo o doutor ou trago o carro?

— Traz o carro, vou dirigindo.

Ele assentiu, e seguimos viagem em silêncio, ele concentrado no trânsito, e eu, nas notícias de economia do país e do mundo.

Cheguei à empresa já apagando incêndios. Um dos projetos de um cliente foi reprovado por uma comissão municipal, então Kostas teve que intervir mandando seus advogados e acompanhando todo o processo. Eu, como CEO, fiquei aguentando a aporrinhação do gerente responsável pela implantação da empresa multinacional aqui no Brasil.

Nem vi a hora passar, mal tomei meus cafés tão tradicionais ao longo da manhã, irritado com esse problema, com o Rômulo borboleteando ao meu redor me enchendo de perguntas: “quer café?”, “ligo para o doutor Konstantinos?”, “quer um calmante?”. Eu quase explodi de raiva, sentindo meu estômago fritar e a cabeça estourar.

Desci para o refeitório faltavam alguns minutos para o meio-dia e, para meu espanto, ainda não tinha nenhuma refeição pronta. Conferi as horas no Omega, um dos relógios mais precisos do mundo, e estranhei a demora. Rômulo apareceu e, quando lhe questionei o atraso, fiquei sabendo que o almoço era servido a partir da 1h da tarde.

Voltei para o escritório sob a insistência de Rômulo para me encomendar o almoço em algum restaurante.

— Não! Hoje vou comer no refeitório — insisti.

Millos me lançou um desafio por eu nunca ter comido na empresa desde que foi inaugurado o refeitório para os funcionários. Pensamos no restaurante para facilitar a vida de todos e, como tínhamos espaço, decidimos montar a estrutura. Estive presente no primeiro dia, na inauguração, há alguns anos, mas depois disso não botei mais os pés no local.

Exatamente às 13h desci novamente pensando em usufruir de um almoço tranquilo e nutritivo, porém, o que encontrei me deixou sem ação. Primeiro, os funcionários ficaram estarrecidos ao me ver ali; percebi em seguida que apenas o baixo escalão da empresa – de coordenadores para baixo – estava comendo ali. Não havia nenhum gerente ou diretor no meio dos mais de 100 funcionários da companhia.

Contudo, o que mais me surpreendeu foi a comida. Não, não era ruim, pelo contrário, era bem preparada, mas sem nenhuma opção para substituição.

— E quem não pode comer carne vermelha? — questionei ao Rômulo, e ele apenas corou, fingindo não ouvir. — Há cardápios diferentes ao longo da semana?

Rômulo continuava a montar seu prato sem emitir qualquer resposta, o que não é nada típico dele, e isso me irritou. Quando não era para falar, o homem tagarelava, mas, quando eu precisava de respostas, ficava mudo!

— Rômulo! — chamei-o de modo mais enérgico. — Eu estou tentando entender o que...

— Não, não há! — escuto a voz do Alex e me viro para encará-lo. — E seu querido assistente não sabe informar porque não come aqui também. — Meu irmão pegou um prato e se serviu naturalmente. — A questão do restaurante entrou em pauta numa reunião de diretoria, mas o senhor todo-poderoso do Olimpo achou que não era uma questão relevante para a economia da empresa e pulou o assunto.

Olhei de esguelha para Rômulo buscando confirmar a informação, e ele atestou. Xinguei mentalmente.

— Uma empresa é feita de mais do que números, Theodoros Karamanlis — seu desprezo pelo sobrenome era evidente. — E, quando fiz a proposta do restaurante, era para que, além de economizar o tempo dos funcionários e agilizar o serviço, também tivéssemos convívio com eles, porém, adivinha quem foi o primeiro a pular do barco e a incentivar o “alto escalão” a ir junto?

Bufei de raiva.

— Quem é o responsável pela gestão do restaurante? — ignorei o discurso do meu irmão idealista e perguntei ao Rômulo.

— É terceirizada, a mesma empresa do pessoal da manutenção.

Merda!

— Marque uma reunião com ela e peça ao Kostas para avaliar o contrato. — Rômulo mais do que depressa escreveu em seu tablet inseparável. — Dispare um memorando para todos os diretores e gerentes, lembrando da existência do restaurante e informando que, a quem for almoçar fora, será necessário cumprir o horário, ou seja, uma hora e nenhum minuto a mais.

Rômulo arregalou os olhos e assentiu.

— Eu pouco vejo você e percebo que nem é preciso! Você não mudou nada, o mesmo prepotente de sempre. — Alex passou por mim, ainda se servindo no bufê, rindo de deboche, e percebi olhares curiosos em nossa direção.

— Eu preciso lembrar que você também faz parte da diretoria e tem acesso irrestrito ao conselho? — Cheguei perto para falar baixo: — Se fosse meu projeto, nunca deixaria chegar aonde chegou só porque não sou o CEO. Isso demonstra que está mais preocupado em ir contra a direção do que lutando pelo bem-estar dos funcionários. Não é minha função tomar conta de tudo, não sou absolutista, eu delego e confio naqueles a quem passo esse poder. — Ele fechou a cara, perdendo o ar de superioridade. — Não tenho intenção alguma de prejudicar os que trabalham comigo, pelo contrário. Mas assumo meu erro em não ter frequentado o local para dar exemplo.

— Mas o doutor também não tem horário certo para almoçar, por isso...

Balancei a cabeça em negativa, freando a defesa de Rômulo. Não tinha desculpas, o exemplo era meu, e eu tinha falhado. Terminei de fazer meu prato, sentei-me a uma mesa com Rômulo e almocei mesmo sentindo um nó na garganta por ter mostrado falha e ter sido repreendido pelo Alex na frente de todo mundo.

Merda!

Ao longo do dia, a repercussão do almoço do CEO no restaurante da empresa, bem como o efeito do memorando para os diretores e gerentes agitaram a tarde na Karamanlis. Percebi todo mundo mais atento, mesmo na correria de sempre.

Tive uma resposta positiva da equipe de Kostas com relação ao projeto vetado e pude passar a boa notícia ao nosso cliente. Recebi vários relatórios dos setores e subsidiárias ao longo do dia, inclusive da K-Eng, dirigida pelo Alex.

Meu irmão é um sonhador idealista, defensor dos fracos e oprimidos, um rebelde que só trabalha conosco para contrariar a família. Cospe sobre nosso sobrenome, mas faz questão de ostentá-lo para afrontar o pappoús. Sempre achamos que ele tentaria afundar a empresa em represália ao tratamento que teve na infância, mas não, ele não só assumiu uma empresa praticamente independente como a fez crescer. Todavia, ainda sinto que há algo por trás disso.

Estaciono o carro na vaga do restaurante, afastando as lembranças do dia e conferindo o endereço que Millos me enviou por mensagem. Estar sem o Dionísio nesta noite é bom, porque vou moderar a bebida, afinal é segunda-feira, e prefiro tomar um copo de uísque quando estiver no meu apartamento.

Tenho expectativa de o jantar ser bom; já o almoço foi complicado e indigesto com a discussão com o Alex e a demonstração de que deixei as coisas correrem soltas demais. Claro que não sou arrogante a ponto de achar que meu irmão não estava com a razão sobre as coisas que me disse, afinal, ele convive mais com os funcionários que eu, mas não gostei de ser contrariado na frente de todos.

Entro no restaurante, e a primeira coisa que percebo é a arquitetura do lugar e a decoração de bom gosto. Isso realmente não diz muita coisa acerca da qualidade gastronômica deles, mas já conta pontos em matéria de conforto. Uma recepcionista, bem-vestida e muito bonita, cumprimenta-me, e lhe dou o nome de Millos, que foi quem fez a reserva.

— Ah, doutor Karamanlis, ele ainda não chegou, mas o senhor pode esperá-lo no bar, tudo bem?

Respiro fundo, conferindo as horas e calculando que ele – se viesse de moto, como sempre – já deveria estar aqui. Olho contrariado para o bar, logo na entrada do restaurante, e meus olhos são imediatamente atraídos para uma mulher vestida de preto, com os cabelos longos, castanhos e lisos, tomando uma taça de vinho.

Não consigo ver todo o seu rosto, apenas o perfil, e isso é suficiente para que eu queira vê-la toda.

— Tudo bem — concordo com a recepcionista, que me aponta o bar.

Caminho para lá e me sento na poltrona alta ao lado da bela mulher. Não a olho, prestando atenção ao bartender que vem pegar meu pedido.

— Scotch, por favor. — Ele pergunta a marca. — The Macallan.

Sorrio satisfeito ao vê-lo pegar exatamente a garrafa que costumo beber e, então, de esguelha, olho para a mulher ao meu lado, procurando algum indício de indisponibilidade – ou problema –, como uma aliança em seu dedo.

Ela não usa nem mesmo anéis. No entanto, o que chama minha atenção são as unhas curtas, bem cuidadas, mas sem esmalte. Hoje em dia o que as mulheres mais fazem é colorir as unhas! Como eu gosto de arte, logo sou atraído pela variedade de cores e a combinação com as mãos e os formatos. Porém, não com ela; suas mãos são lindas, dedos longos, sem precisar de nenhum tipo de enfeite.

Subo o olhar e a encontro me olhando também.

— Boa noite! — cumprimento-a sorrindo assim que o bartender deixa meu copo no balcão.

— Boa noite! — ela responde. Sua voz me causa uma sensação de frenesi, e fico imediatamente excitado. Ela é linda em todos os sentidos da palavra. Seu rosto é delicado, proporcional, olhos expressivos, nariz fino e uma boca generosa. Fico imaginando como será seu sorriso aberto, não apenas esse polido e educado que me dá agora.

Paro de encará-la para não a constranger e tomo um gole do uísque, questionando se devo ou não puxar conversa com ela.

Não sou inseguro, nunca fui, mas às vezes uma mulher só quer estar quieta bebendo sem alguém para importuná-la, por isso sempre espero ver algum indício de que quer papo antes de abordar.

Dou outra olhada de soslaio.

Vamos lá! Quero saber quem você é!


— É a primeira vez que venho aqui — é ela quem faz o movimento, e gosto disso, uma mulher decidida. — Estou surpresa pelo requinte sem a frieza esperada desses restaurantes com esse nível. O pessoal é simpático e organizado.

Rio.

— Você é da área — constato e me viro para ela, girando a poltrona em sua direção.

— Sou. — Sorri finalmente, e me sinto extasiado com a perfeição do gesto. Os olhos ficam levemente puxadinhos, e sua face inteira se ilumina. A mulher fica absurdamente linda quando sorri. Meu interesse é real agora. — Mas hoje vim como cliente.

— Eu só venho como cliente — brinco. — Não sei fritar um ovo!

Ela ri de novo e toma um gole de seu vinho.

— O que seria dos restaurantes se todos soubessem ou gostassem de cozinhar? — Levanta sua taça em minha direção. — Aos que são apenas clientes e podem desfrutar de uma deliciosa refeição sem ficar avaliando cada nuance do prato.

— Justo! — Brindo com ela. — Qual sua formação?

— Cozinha francesa. Diplôme de cuisini e pâtisserie.

Uau!

Meu corpo inteiro vibra e meu pau reage ao som do seu perfeito sotaque francês. Acompanho sua boca em volta da borda da taça de vinho, o leve ondular de sua garganta sorvendo a bebida e sua língua resgatando os resquícios da bebida em seus lábios.

Abaixo a cabeça e bebo um longo gole do uísque, tentando não parecer um tarado assediador, mas louco para perguntar se ela prefere na minha casa ou na dela.

— Pelo francês perfeito presumo que tenha estudado na França... — Ela concorda com um sorriso. — Le Cordón Bleu?

— Naturellement. Estudar gastronomia na França sem ser em Le Cordón Bleu é como ir a Roma e não ver o Papa!

Gargalho com sua comparação e a saúdo com minha bebida.

— É como ir até a Escócia e não provar um verdadeiro uísque.

Levo o copo até a boca e acompanho o olhar dela em mim.

— Sua escolha de bebida me surpreendeu — ela comenta, e franzo o cenho, olhando meu bom e velho single malte e me perguntando qual é o problema com ele. — É uma bebida conservadora, nada sofisticada, ao meu entender, não combinou muito. — Aponta para mim.

Finjo-me de ofendido, embora segure a risada, e cruzo os braços.

— E você é uma entendida em bebidas também? — provoco-a.

A risada dela é tão melodiosa que parece música, seus olhos se iluminam e as bochechas ficam levemente rosadas. Perfeita!

— Nem queira saber! — Beberica um pouco do seu vinho. — Praticamente cresci cercada delas.

— Hum... — Sorrio. — O que combinaria mais comigo, então?

Sou submetido a um olhar avaliador, passando pela minha roupa, sapatos e rosto. Sinto tão intensamente sua atenção sobre mim que é como se ela pudesse olhar além das minhas roupas. Estou exposto, nu, cada músculo aquecendo à medida que seus olhos percorrem meu corpo, concentrando ainda mais desejo em minha virilha. Porra, que delícia!

— Pelo estilo de roupas e o Omega que usa no pulso — ergo a sobrancelha, surpreso pelo bom olho que ela tem —, um Dry Martini.

Gargalho sem me conter, e ela me segue, ambos divertidos pela comparação que ela faz. James Bond? Sim, eu sei que o mais famoso espião dos cinemas só usa relógios da Omega, mas não me vejo com uma taça de Dry Martini na mão, exigindo do bartender: “batido e não mexido”. Gosto de pensar que sou mais rústico que isso. A prova é meu single malte caubói.

— A sofisticação é só uma casca, pode acreditar. Estou longe de ser tão refinado quanto o Bond, ou tão habilidoso. — Ela levanta uma sobrancelha questionadora, demonstrando que não acredita nessa minha “humildade”. — A propósito... — respiro fundo, indo devagar — meu nome é Theo.

Mais uma vez seu sorriso faz meu pau reagir, ficando dolorosamente duro e pulsando na cueca. Que porra de atração é essa? O que essa mulher tem? É divertida, a conversa está fluindo bem, além de ser linda, mas essa atração... não é assim que acontece, ainda mais em um ambiente tão frio quanto o em que estamos.

— Maria Eduarda. — Ela estende a mão, e eu a seguro.

Tudo em volta parece vibrar, e noto que ela também sente isso. Meu sorriso se expande. Não tiro os olhos dos seus. A energia gerada pelo toque esquenta meu corpo e aumenta minha percepção do dela.

Maria Eduarda tem um belo pescoço, e o cheiro suave de um bom perfume parece advir exatamente do ponto onde eu gostaria de passar minha língua. Os ombros são delicados, os braços longos e sem nenhum contorno muscular demonstram que ela não mantém regularidade de exercícios, sendo magra ao natural. Os peitos no decote do vestido são pequenos, porém, redondos e firmes.

O vestido, embora justo, tem um tamanho comportado, por isso não posso ver suas coxas – o que é uma pena –, tão somente as panturrilhas e uns pés lindos – esses, sim, com as unhas pintadas de vermelho – em sandálias de cor clara.

Apesar de ser uma mulher atraente e bonita, não é uma beleza exótica. Sem o sorriso, ela passaria a ser apenas mais uma mulher bonita como muitas outras que existem por aí, porém, não para mim. Algo nela chamou minha atenção desde o primeiro momento. Mesmo com ela de costas, sem nem ao menos ver seu rosto direito, senti-me atraído.

Agora ela me deixa em chamas, tentado a ser direto e lhe propor uma noite de pura sacanagem. Eu o faria se o local fosse mais descontraído e tivesse mais abertura da parte dela, não só a confirmação de que se sente atraída por mim. Em uma boate, por exemplo, eu seria mais efusivo.

— É um prazer enorme encontrá-la aqui — mesmo sendo sutil, quero deixar claro que ela chamou minha atenção. — Salvou minha noite, pode ter certeza.

Ela sorri e solta minha mão.

— Quase não vim — confessa e dá de ombros. — Assunto chato, companhia chata.

Gosto da sua sinceridade.

— Negócios? — Ela assente, e eu adoro a notícia. — Geralmente os meus jantares têm o mesmo motivo.

— Então veio para uma reunião também?

Nego com a cabeça antes de responder:

— Não, hoje só vim comer. Meu primo é amigo do dono daqui e me recomendou o restaurante.

— Isso é bom, espero que esteja à altura da sua expectativa.

— Ainda que não esteja, Maria Eduarda — cruzo os braços e a encaro —, no momento estou ligando o foda-se para a comida ou o restaurante.

Ela fica séria, mas não desvia os olhos.

— É mesmo?

Não respondo de imediato, curtindo esse jogo entre nós. Aposto que ela sabe o motivo pelo qual não tenho mais nenhum interesse na gastronomia do local. Ela quer que eu diga! Quer que eu dê o passo adiante, que demonstre o interesse claramente, o que é um ótimo sinal.

Deixo o silêncio e o ar vibrar entre nós por mais alguns momentos, sem tirar meus olhos de suas belíssimas íris castanhas.

— Porque minha fome é outra desde que encontrei você aqui. — Ela segura o fôlego. — Porque nossa conversa está cada vez mais interessante. — Abaixo o tom de voz: — Porque olhar você e sentir seu cheiro acordaram meus sentidos mais do que qualquer nuance de um prato é capaz de fazer.

Minhas mãos coçam de vontade de tocá-la, de sentir novamente aquela energia sexual percorrendo meu corpo, emanando dela. Não o faço porque ainda não vi sinais suficientes para avançar a esse ponto, e eu sempre espero a permissão de uma mulher para tocá-la.

— Você nem me conhece — ela responde um pouco ofegante.

— Estou louco para conhecer. — Encosto-me melhor à poltrona e me afasto um pouco dela para demonstrar que não a estou pressionando. — Não tenho pressa, Maria Eduarda, só preciso que saiba que você me atrai e que, embora esteja sentado aqui, estou louco para segurar sua nuca e provar o sabor desse vinho que bebe, diretamente nos seus lábios.

Ela suspira e desvia o olhar.

Esse é o momento quando ou eu tomo um fora, ou venço o jogo. Porém, podem dizer que é arrogância, eu sou um homem vivido e, se cheguei até aqui, se me expus dessa forma, é porque estou apostando minhas fichas em que o tesão é recíproco.

— E se eu for casada ou comprometida?

Bingo!

Pela entonação da pergunta, sei que ela não é.

— Eu me desculparei, mesmo ainda sentindo esse desejo maluco de te beijar, e me levantarei, indo para a mesa que meu primo reservou. Não trepo com comprometidas.

Ela levanta as sobrancelhas e assume uma expressão provocadora.

— Não trepa? — Ri, cínica. — Você é muito confiante achando que basta jogar meia dúzia de palavras em cima de uma mulher sozinha em um bar para garantir uma trepada.

— Eu sou confiante. — Aproximo-me a fim de lhe demonstrar de onde vem minha confiança. — Mas não são as “meia dúzias de palavras” que vão fazer você ter vontade de trepar comigo. — Seguro sua mão e com a outra deslizo meu dedo indicador do seu punho até o cotovelo, vendo todos seus pelos se arrepiarem com o leve contato. — É isso!

Maria Eduarda fica um tempo olhando o trajeto do meu dedo sobre sua pele, assistindo, como eu, à deliciosa reação causada por meu toque. Não falamos nada, apenas acompanhamos o leve vai e vem que eu faço no seu antebraço, apreciando o contato. É nítido para mim que ela está avaliando todas as possibilidades e talvez tentando entender como isso é possível.

Já não escuto mais nada, os sons das conversas, a música clássica baixa que toca, a correria do bartender limpando copos, organizando garrafas ou preparando aperitivos. Tudo ao redor some, e só sinto a potência do tesão que ela despertou em mim, esperando que sinta o mesmo e que admita isso.

Ela sorri, mas puxa a mão, rompendo o contato.

— Como já disse, a gente nem se conhece.

— Sou paciente, Maria Eduarda. — Recebo um sorriso tímido. — Vou adorar cada momento até te conhecer. — Afasto-me dela novamente e peço mais uma dose de uísque. — Aceita mais uma taça?

Aponto, mas ela nega, olhando para a entrada do restaurante.

— Infelizmente, não. — Respira fundo. — Meu compromisso chato acaba de chegar.

Viro-me para ver quem é o sortudo que vai jantar com ela, mas só vejo o Millos entrando com uma cara debochada e um sorriso contido. Olho para Maria Eduarda novamente e confirmo que ela não só se levantou à espera do Millos, como parece muito contrariada com a presença dele.

Por que Millos iria marcar para jantar com uma mulher e comigo ao mesmo tempo? As palavras “jantar de negócios” me causam um alerta, mas me recuso a enveredar pelo rumo que meus pensamentos querem ir.

— Ah, desculpem o atraso! — Millos exclama, indo cumprimentá-la. — Que bom que já se conheceram. — Maria Eduarda franze a testa e me encara. — Theo, eu acho que chegou a hora de conversarmos pessoalmente com a Duda.

Porra!

Levanto-me como se tivesse sentado em um formigueiro, estarrecido demais para articular qualquer palavra educada que não seja um palavrão bem cabeludo.

Duda? Olho-a de cima a baixo sem poder acreditar que a mulher que me atraiu como se tivesse um ímã é a infernal dona do boteco que tem feito minha vida um suplício por causa de sua teimosia.

— Theodoros Karamanlis? — ela parece tão chocada quanto eu e já não há nada além de desprezo em sua voz ao falar meu nome.

Desvio um olhar mortal para meu primo, que, além de parecer surpreso, está também muito interessado nessa interação entre nós.

Eu vou te matar, seu filho da puta!


— Aceita mais uma taça?

Minha vontade é de aceitar e pagar para ver Theo jogando todo seu charme para mim, usando armas pesadas para conseguir provar que temos realmente toda essa química que ele demonstrou com um simples roçar de dedos em meu braço.

E temos, sim! Não sou hipócrita a ponto de me enganar dizendo que não senti nada por ele. Assim que se sentou ao meu lado aqui, a esse balcão, meus olhos foram imediatamente atraídos para ele. Quando me cumprimentou, sua voz fez meu corpo inteiro reagir de uma forma estranha, e tive a nítida sensação de que o conhecia de algum lugar.

Porém, foi só quando se virou em minha direção, depois de eu ter puxado assunto descaradamente, que fiquei sem fôlego. Seus olhos são de um azul que eu nunca poderia esquecer caso já os tivesse visto. No entanto, a sensação de reconhecimento persiste. Ele é muito bonito, além de ter um sorriso de arrancar a calcinha de qualquer mulher.

Se Manola estivesse aqui comigo, com certeza iria dizer que ficou emocionada e que molhou a calcinha. Entretanto, aprendi com o tempo e com as responsabilidades a ser mais comedida e a não me deixar levar sem pensar. Um rosto e um corpo bonitos não querem dizer muita coisa sobre o caráter de alguém.

Estou para aceitar a proposta de mais uma taça e alongar o papo, mas minha visão periférica capta um movimento na entrada do restaurante, e me sinto murchar ao ver Millos Karamanlis adentrando. Esse homem não se cansa de tentar comprar o Hill, é um saco!

Quando me ligou, eu estava pronta para dizer um sonoro NÃO a ele, mas insistiu que era importante, que tinha uma situação que me interessava e por isso achava melhor conversarmos para tentar um acordo. Isso me deixou intrigada e temerosa, por isso estou aqui, neste momento, tendo que recusar a companhia agradável e intrigante do Theo.

— Infelizmente, não — respiro fundo, respondendo ao delicioso oferecimento desse deus com cuja companhia o destino me presenteou enquanto eu esperava pelo diabo. — Meu compromisso chato acaba de chegar.

Levanto-me, resignada, para receber o homem barbudo e muito estiloso, devo confessar, mas que é uma pedra no meu sapato.

Millos abre um sorriso e se aproxima para me saudar como sempre faz, com um beijo na bochecha e um curto aperto de mãos. Tenho verdadeiro trauma dele, de estar sempre rodeando minha vida à espera de um fracasso que o deixe comprar o bar da minha família, minha casa, o legado do meu pai. Contudo, tenho de admitir que, embora pondo pressão, ele sempre me tratou muito bem e com muita simpatia.

— Ah, desculpem o atraso! — Ele olha para o Theo e depois para mim. — Que bom que já se conheceram. — O quê? Como assim? Eles se conhecem?! — Theo, eu acho que chegou a hora de conversarmos pessoalmente com a Duda.

Millos Karamanlis conhece o Theo!

Meu sensual companheiro de bar se levanta e me encara de um jeito completamente alarmado. O olhar sedutor sumiu, bem como seu sorriso franco e relaxado. Agora apenas incredulidade está estampada em seu rosto bonito.

Oh, meu Deus, não pode ser!

Claro que eu acharia que o conhecia, afinal, já vi fotos suas em revistas da alta sociedade e em jornais, embora creia que nenhuma delas lhe tenha feito jus. O homem ao meu lado não é simplesmente “Theo”, é o diretor da porcaria da empresa que comprou toda a quadra onde fica o Hill e que vem tentando de todas as formas me tirar do meu lugar!

— Theodoros Karamanlis? — minha voz soa tão incrédula como me sinto.

Como não percebi quem era esse homem? Como pude me sentir atraída por ele a tal ponto de fantasiar uma noite ao seu lado? Eu o quis como havia muito tempo não me lembrava de ter querido alguém, uma atração que não sentia desde a época em que ainda pensava que tinha o mundo aos meus pés e que conquistaria tudo o que sonhasse ter.

Millos fica um tempo com a sobrancelha erguida, olhando de um para o outro, até que resolve quebrar o gelo.

— Podemos ir para a mesa?

Eu o olho ainda sem entender que tipo de palhaçada é essa. Eles fizeram de propósito? Será que Theo veio primeiro para tentar me seduzir, afinal, nós nunca fomos apresentados, ou foi só uma coincidência ele ter chegado antes e aí resolveu brincar comigo?

Não é possível que ele não soubesse que eu sou a Duda Hill!

— Millos, o que você pretende, afinal? — Theo questiona com a voz demonstrando toda sua irritação.

— Eu não acho que temos algo para conversar. — Pego minha bolsa, que estava pendurada na poltrona giratória. — Não vou mudar de opinião, não pretendo vender o Hill.

— Por que não? — Theo questiona de repente, e eu o olho. — O que uma chef formada por Le Cordón Bleu pode querer com um boteco? — Fecho minhas mãos com força na alça da bolsa. — Ou esse papinho de Paris e seus diplomas é só um sonho fantasioso de uma dona de bar?

Millos emite um palavrão baixo, prevendo que o tempo irá fechar. Ele me conhece bem, já me irritou várias vezes e saiu do Hill com uma resposta à altura.

— O que eu quero ou não só diz respeito a mim, doutor Theodoros Karamanlis — tento falar o mais baixo possível, mas meus olhos brilham de indignação, e espero que ele entenda a mensagem. — O boteco é meu, faço com ele o que eu quiser, e de uma coisa você pode ter certeza: Não. Vou. Vender. Para. Vocês! Ficou claro agora, ou preciso desenhar? — Olho para o Millos.

— Ei! Vamos nos sentar à mesa e conversar com calma! — ele tenta apaziguar o clima tenso entre mim e Theodoros. — Theo... — pede sua colaboração, mas o homem parece estar soltando fogo pelas ventas e não lhe dá atenção. — Vocês estão chamando a atenção dos outros clientes e...

— Foda-se! — falo em uníssono a Theodoros, e Millos ri, mesmo ainda nervoso.

O maître aparece para nos conduzir até a mesa reservada, e Millos faz um gesto para que o sigamos até lá. Encaro Theodoros Karamanlis por um tempo, ambos medindo forças para ver quem cede primeiro.

— Vamos? — Theodoros pergunta, e eu assinto, passando por ele sem nem ao menos emitir uma palavra. A mesa que Millos reservou é discreta, no fundo do salão, sem nenhuma outra por perto. Sento-me com as costas eretas, sem tirar a alça da bolsa do ombro, mostrando a eles a minha contrariedade por estar ali.

— Vamos fazer um pedido?

— Não, Millos, não pretendo ficar para comer — sou direta. — Preciso apenas que me fale sobre o assunto que não quis adiantar pelo telefone. O que vocês têm a ponto de me fazer querer fechar um acordo?

Theodoros olha para ele parecendo muito mais irritado e bufa de raiva. Millos balança a cabeça e começa a explicar:

— Duda, há alguns meses estamos de posse de uma...

— Enorme quantia de dinheiro — Theodoros o interrompe. — A proposta de compra aumentou, e seria interessante a senhorita reconsiderá-la, afinal, pode abrir um pequeno bistrô para exercer o que aprendeu em Paris.

— O quê? — Millos o encara, confuso. — Olha, eu desisto! — Chama um garçom e pede uma cerveja. — Eu realmente acho que podemos chegar a um acordo, mas vocês dois são teimosos como mulas!

— Não quero nenhum acordo com vocês! — declaro. — Tudo o que quero é que parem de ficar rondando minha propriedade como dois abutres!

— Boa definição, senhorita Hill. — Theodoros se inclina por sobre a mesa para ficar mais próximo a mim. — Seu negócio está agonizante e em breve perecerá, e, quando isso acontecer, irá lamentar não ter abaixado um pouco sua crista e ter aceitado minha oferta, porque só sobrará carcaça aos abutres!

— Theo! — Millos o repreende, mas depois começa a rir. — Que conversa de doido, viu? Não esperava por isso! — Bebe sua cerveja. — Confesso que está um pouco divertido.

— Vá se foder, Millos! — mal fala isso e volta a me olhar. — Não irei repetir a oferta, Duda Hill. A aconselho a aceitar o mais rápido possível.

Meus olhos faíscam de raiva, mas meu corpo traidor se arrepia inteiro ante a expressão dele. O homem é sexy demais, insuportavelmente arrogante, mas ainda assim, muito sexy!

— Não estou interessada — uso o mesmo tom de voz que ele. — Vendo para qualquer um, menos para vocês. — Ponho-me de pé. — Espero que desfrutem do jantar sem minha companhia. Eu não conseguiria comer aqui com vocês sem ter uma enorme indigestão.

Theodoros se põe de pé também, e Millos, com um sorriso debochado, cruza os braços e fica só esperando o próximo passo do seu chefe.

— Não diga depois que não a avisei, Duda Hill.

Rio, passando perto dele para sair do salão.

— Não tenho medo de suas ameaças, Theodoros Karamanlis. — Aproximo-me para falar bem perto do seu ouvido: — Cão que ladra não morde!

Ele segura meu braço e abre um sorriso – puta merda! – cheio de malícia.

— Eu morderei, Maria Eduarda, e o farei tão gostoso que você pedirá mais!

Olho para sua mão em meu braço, e ele me solta. Respiro fundo para controlar o formigamento em meu corpo e a tremedeira em minhas pernas e saio do restaurante o mais rápido possível.

— Deseja que traga seu carro, senhorita? — o manobrista me aborda na porta do restaurante.

— Po-por favor! — Merda! Respiro fundo mais uma vez. — Sim, obrigada.

Não é possível que esse homem ainda continue mexendo com minha libido desse jeito! Durante todo o tempo em que estávamos lá medindo forças, essa tensão sexual nunca deixou de pairar entre nós. Acho até que o Millos percebeu isso!

Droga! É o Theodoros Karamanlis, Duda! Inimigo, o diabo em pessoa, que quer fazer de tudo para destruir tudo o que você tem, tudo pelo qual você lutou para manter depois que seu pai se foi!

Claro que seria muito fácil aceitar uma oferta melhor, pagar as dívidas e abrir um “bistrô”, como ele mesmo aconselhou, mas só eu sei o quanto meus pais amavam aquele pedacinho no meio da Vila Madalena, o quanto se orgulhavam de tê-lo comprado juntos, com muita luta e esforço.

Não vou deixar que um homem arrogante ponha tudo ao chão e destrua todas as lembranças que tenho daquele lugar. Não só do Hill, mas da casa onde mamãe e papai passaram seus últimos momentos antes de me deixarem. Não! De jeito algum eu irei permitir isso! Se precisar vender, o farei para alguém que se comprometa a manter o imóvel, e não para uma empresa que quer demolir tudo para erguer ali algum prédio ou shopping!

Entro no carro e dirijo para casa, ainda sentindo o toque dele reverberando pelo meu corpo, sua voz arrepiando os pelos da minha nuca e seu olhar... Há algo naquele olhar que me desperta lembranças, talvez pela tonalidade – a mesma do mediterrâneo –, ou o jeito de me olhar como se estivesse realmente faminto.

Chego a casa e encontro tia Do Carmo jantando sozinha na sala e assistindo à novela.

— Ué, não ia jantar fora? — questiona quando ataco suas panelas.

— Ia, mas o lugar estava tóxico demais para meu estômago. — Ela franze a testa, sem entender, e eu rio. — A companhia era desagradável.

— Ah, sim.

— Cadê a Tessa? — pergunto enquanto me sirvo de deliciosas costelinhas de porco e angu, sentindo meu estômago roncar e minha boca salivar. Adoro a comida dela!

— Chegou da escola, fez dever, tomou banho, jantou e dormiu. — Rio do relatório completo. — Aquela menina é um anjo!

— Sim, ela é! — concordo, cheia de orgulho.

— Descobriu, pelo menos, o que aquele pessoal da Karamanlis queria?

Sento-me ao seu lado no sofá com o prato na mão.

— Aumentaram a proposta! — Dou de ombros. — E acabei conhecendo o CEO, Theodoros Karamanlis.

— Hum, já vi fotos dele naquela revista que assino. — Rolo os olhos, pois sempre achei um desperdício de dinheiro comprar uma revista que fica cobrindo a vida de artistas e da alta sociedade paulistana. — O homem é um pedaço de mau caminho.

Acompanho-a em suas risadinhas, achando uma graça que minha tia, solteirona e virgem, fale isso de um homem. Eu nunca soube o motivo pelo qual ela nunca quis se casar, nem mesmo namorar. Perguntei a ela se algum dia teve pretensão de ser religiosa, mas negou, dizendo que não tinha o dom.

Tia Do Carmo é uma caixinha de segredos bem guardados, essa é a verdade. Do mesmo jeito que ela adora acompanhar a vida alheia nas revistas e nos programas de fofocas, não abre a boca para falar da sua, nem mesmo para mim.

Ela é como uma mãe para mim e cuida de Tessa com tanto amor e dedicação que eu não poderia pensar em uma avó melhor para minha menina, mas não quer saber de arrumar alguém, nem mesmo para se distrair um pouco.

Há uns dois anos veio trabalhar conosco um senhor muito bem-apessoado, Joaquim, que ficava na recepção. O homem arrastou um bonde pela minha tia – que é uma linda senhora de 55 anos –, mas ela nem ao menos lhe deu um segundo olhar.

Enfim, eu aprendi a aceitar que ela é feliz assim, mesmo porque não estou indo para um caminho diferente, pois mal tenho tempo para namorar alguém. Além do meu namorado francês, tive mais uns dois já aqui no Brasil. Claro que já tive algumas transas avulsas, sem nenhum compromisso, mas já faz tanto tempo que nem isso acontece que, se hímen se regenerasse, o meu certamente já estaria completo de novo.

— Ele é bonito, sim, mas muito arrogante! — informo, tentando não demonstrar o quanto fiquei interessada no Theo. — De qualquer forma, recusei mais uma vez a proposta.

— Você tem certeza disso, minha filha? O sumiço do agiota tem tirado meu sono. Você sabe como essas pessoas são, por mais que sejam conhecidos. Além do mais, te vejo trabalhar como louca e entregar o dinheiro todo para custear essas dívidas. — Ela aponta para a casa, cheia dos mesmos móveis da época do casamento dos meus pais. — Duda, a gente mal tem se aguentado em pé!

— Não nos falta nada, tia!

— Não, Duda, não estou me queixando. Realmente não nos falta nada, temos comida, um teto, e Tessa pode estudar em uma boa escola, mas vale a pena se sacrificar do jeito que está fazendo? Você não tem tempo nem para namorar!

Gargalho.

— Essa é uma das minhas menores preocupações, tia.

— Eu sei, filha, e é isso que me preocupa. — Passa a mão no meu rosto, e fecho os olhos, gostando do carinho. — Há muitos anos você só cuida das pessoas, Duda. Assume responsabilidades demais e esquece de cuidar de si mesma.

— Estou bem! — afirmo, mas meu coração entende e concorda com ela. — Assim que terminar de pagar tudo o que devemos, vou poder cuidar de mim também, não se preocupe.

Ela suspira, resignada, pois me conhece bem e sabe que sou muito teimosa. Decidi lutar até o fim para manter a única coisa que me resta e não vou descansar até conseguir estar em paz com isso, mesmo que um certo CEO muito gostoso me encha de ameaças.

Inclusive uma que pareceu mais uma promessa...


Maria Eduarda passa por mim deixando para trás o rastro delicioso do seu perfume, agitando meu corpo. Tenho vontade de segurá-la por mais tempo, de sair com ela para algum lugar onde possamos dar vazão à atração que sentimos um pelo outro desde que nos encontramos no bar do restaurante.

Todavia, não dá para simplesmente ignorar quem somos!

Fico um tempo de pé, mesmo depois de ela já ter saído do restaurante, raciocinando quais seriam as consequências se Millos simplesmente não tivesse aparecido. Olho para meu primo, tranquilo, tomando sua cerveja e provavelmente a enchendo de defeitos.

— Isso foi a pior merda que você já aprontou! — digo, atraindo a sua atenção. — E olha que você tem um longo currículo de merdas!

— Vá se foder, Theo! — Fica sério. — Eu só estava tentando um acordo entre nós.

Rio, seco, não achando nenhuma graça e não comprando nem um pouco essa conversa mole de “acordo”. Millos nunca dá ponto sem nó e me conhece bem para saber que Duda seria extremamente atraente para mim. O desgraçado fez de caso pensado, só nunca irá admitir.

Pego o celular, que deixei em cima da mesa, e, sem nenhuma palavra ou mesmo um olhar, afasto-me de Millos, indo em direção à saída do restaurante.

Ouço-o me chamar, mas não me segue, e ando decidido até a calçada, encontro o manobrista e peço meu carro. Não tenho mais clima para jantar, muito menos para olhar aquela cara debochada. Bufo, frustrado demais, com fome e com o desejo sexual insatisfeito.

Porra!

Já no carro, não dirijo diretamente para casa, mas a esmo, pensando na loucura que foi o começo da noite. O conhecimento de quem era a mulher ao meu lado deveria ter sido suficiente para aplacar minha vontade de devorá-la toda, mas nem mesmo a diminuiu.

É uma das raras atrações fortes que já me aconteceram. Geralmente não é assim, é mais um jogo de disponibilidade e vontade, uma mulher gostosa e interessante e pronto! Raramente sou atraído a alguma como aconteceu com Maria Eduarda hoje. Eu olhei para ela e a quis.

É primitivo demais até para mim, mas aconteceu. Quem ela era, o que fazia ou mesmo sua disponibilidade – embora, se fosse casada, não rolaria – não importaram para mim naquele momento. Depois, a conversa, o sorriso, o jeito como o corpo dela reagiu ao meu, tudo isso só potencializou o que foi sentido ao primeiro olhar.

Duda Hill!

Paro o carro em frente ao boteco antigo na Vila Madalena, olhando sua fachada recentemente reformada, o sobrenome da família dela na entrada e algo que nunca me chamou atenção antes, um segundo andar com janelas grandes de vidro, seguindo a mesma arquitetura do bar, tijolos à mostra e cimento queimado.

Franzo o cenho ao me lembrar do dia em que estive no local, pois não vi nenhum mezanino ou mesmo escada de acesso. Há uma porta ao lado da fachada principal, pintada com outra cor, mas que não pertence ao prédio vizinho, já de propriedade da Karamanlis.

Ela mora em cima do bar? Novamente olho para o alto e, no exato momento, uma luz se acende em um dos cômodos, iluminando a janela com cortinas claras. Um apartamento!

Como eu nunca soube disso? Para mim, o imóvel era puramente comercial, como todos os outros do entorno, nunca sequer desconfiei que a irritante mulher pudesse morar no local.

Uma sombra passa pela janela, e meu pau pulsa na calça só pela possibilidade de ser Maria Eduarda se preparando para dormir. Fecho os olhos, aproveitando a total falta de movimentação na rua – ao que parece ninguém funciona às segundas-feiras – e imagino como ela seria apenas vestindo uma calcinha ou até uma camisola sexy.

Toco-me sobre a calça, sentindo como já estou em completa ereção, então abro os olhos e xingo, voltando a pôr o carro em movimento e saindo daqui o mais rápido possível. Eu pareço um maldito stalker tarado, parado em frente ao que suponho ser o apartamento dela e fantasiando.

Caralho!

 

 

Termino de assinar o último documento e o entrego para Rômulo, que sai apressado a fim de entregá-lo para o jurídico. Temos um maldito setor de correspondência e vários boys para esse trabalho, mas meu assistente é tão controlador com suas responsabilidades que ele mesmo gosta de entregar os documentos e de pegar a assinatura de quem os recebeu no caderno de protocolo antes de os colocar no sistema.

Eu sei que é motivo de piadinha aqui seu jeito burocrático, mas é exatamente por isso que confio nele para lidar com minhas coisas na empresa. Rômulo é responsável, organizado e sua “burocracia” nada mais é do que uma forma de nos garantir, proteger nosso trabalho e a companhia.

Gemo, colocando a mão na têmpora, amaldiçoando-me por ter consumido uma garrafa inteira de uísque ontem, depois que cheguei a casa, frustrado demais sexualmente e puto comigo mesmo por estar me sentindo assim pela Duda Hill.

Troquei mensagens com Millos, ameaçando sua integridade física por conta da palhaçada de ontem. Claro que ele fingiu não ter feito de propósito, mas se esqueceu de que o conheço bem. Eu só não sei o que ele pretende ainda. Contudo, não há dúvidas de que está tramando algo.

Uma notificação de mensagem chega ao meu celular. Pego-o, lendo a mensagem deixada pela Viviane acerca de um concerto musical e uma exposição de gravuras que irá acontecer esta semana. Dispenso, sem nenhuma vontade de comparecer, mas ela insiste.

 

 

 

Sim, ela tem razão!

Preciso estar focado no que realmente é importante para mim nesse momento. Uma atração como aconteceu entre mim e Maria Eduarda ontem é garantia de uma foda inesquecível, mas só isso, não resolve meu problema, e o tempo está se encurtando cada vez mais. Preciso de uma esposa e de um filho!

 

 

 

Envio a mensagem para ela e me recosto na cadeira, olhos fechados e dedos nas têmporas, querendo a porra de um analgésico para poder trabalhar sem que pareça que está ocorrendo alguma demolição na minha cabeça. Não devia ter bebido tanto sem ter comido nada!

Cheguei a casa já arrancando a roupa e entrando no banho. Demorei por lá, esperando que os jatos fortes de água fria abaixassem a temperatura do meu corpo e trouxessem minha racionalidade de volta. Não costumo me impressionar tanto assim por uma mulher; poucas foram as que mexeram comigo dessa forma.

Olhei para baixo, e lá estava a evidência de que nem mesmo a água iria resolver o problema. Encostei a testa na parede fria e toquei meu pau, gemendo com a sensação, pronto para gozar apenas com os estímulos da noite.

Eu gosto muito de trepar, adoro ser masturbado por mãos femininas – às vezes, pés também –, mas nunca fui um punheteiro. Nunca! O prazer de me tocar nunca se comparou ao de ser tocado, por isso, quase não me masturbo. Porém, ontem, não teve jeito! O cheiro do perfume dela estava impregnado em minhas narinas, a sensação de sua pele se arrepiando sob meu toque, o sorriso, os olhares... Em poucos minutos gozei como um louco, sujando a parede do boxe, gemendo dolorosamente de vontade de senti-la.

Pela primeira vez em muito tempo, os cabelos cor-de-rosa não apareceram durante meu gozo, e amaldiçoei essa percepção. A verdade é que troquei o objeto da minha fantasia. No entanto, diferentemente da garota de anos atrás, agora eu tenho um rosto, um nome e sei onde mora.

— Estou fodido! — falo em voz alta, achando que estou sozinho no escritório.

— Vou pegar um comprimido, chefe! — a voz de Rômulo faz com que eu me aprume, arregalando os olhos em sua direção.

— Mas que porra, Rômulo! Como você consegue ser tão silencioso às vezes? — digo emputecido por estar fantasiando com a mulher de novo em pleno horário de trabalho e sob as vistas do meu assistente.

— Eu percebi que o doutor está com dores de cabeça. — Ele vasculha sua bolsa. — E... Ah! Achei! — Sorri como se tivesse inventado a fórmula da água. — Paracetamol!

Ele vai até o aparador onde ficam as bebidas a fim de pegar um copo d´água para eu tomar com o comprimido, porém, peço que me traga café.

— Tem certeza? — titubeia.

— Vai acelerar a absorção e fará efeito mais rápido.

— Chefe, isso é perigoso!

— Anda logo, porra, tem uma britadeira no meu cérebro!

Ele fica nervoso, suas mãos tremem, fazendo o café respingar sobre o móvel, e eu bufo de impaciência. Rômulo é prestativo, um ótimo funcionário, mas me questiona muito, além de ser um tanto desastrado.

Mal engulo o comprimido, e o traidor, quer dizer, Millos entra no escritório.

— Tive uma ideia e vim dividi-la com você. — Olha a xícara na minha mão. — Cheguei em boa hora! Eu gostaria de um café também! — pede ao Rômulo, e eu fecho a cara.

— Esse não é o trabalho dele — corto-o. — Rômulo, vá até o jurídico e veja se Kostas já conseguiu adiantar a papelada que faltava.

— Sim, doutor! — O assistente sai correndo da sala.

— Quer a porra do café? Pegue você mesmo! Não dê ordens ao meu assistente!

Millos levanta as mãos pedindo calma e vai até a máquina, escolhendo um sabor e um tipo de preparação antes de voltar para próximo de mim.

A dor de cabeça aumentou um pouco, mas espero que, com o remédio do Santo Rômulo, eu melhore em breve. Além disso, não quero dar bandeira de que enchi a cara na noite passada e suportar as provocações de Millos.

— Qual foi a magnífica ideia que o fez levantar a bunda de sua cadeira e vir até aqui encher meu saco?

Millos ri.

— Estamos de bom humor hoje, hein? — Pega o café e se senta. — Você quer tirar a Duda Hill do imóvel, não é? — Franzo o cenho para ele, achando desnecessário responder, esperando que tenha sido uma pergunta retórica, para o bem de sua inteligência. — Já reparou que o único pub daquela quadra é o dela?

— Você comeu merda no café da manhã? — pergunto, e ele ri. — Claro que ele é o único, os outros imóveis já estão todos vazios porque compramos todos!

— Do outro lado da rua têm duas casas de show, uma boate de strip de luxo, dois restaurantes de comida japonesa e uma pizzaria famosa. — Ele cruza os braços. — Esse foi um dos motivos de o pub ter ficado tão movimentado, a diversidade de empreendimentos próximos. É uma área à qual os jovens vão para se divertir, e ela conseguiu agregar boa comida e boa música em um só local.

Faz sentido, claro. Ela aproveitou o movimento já existente e ofereceu um diferencial, um lugar para dançar, curtir com os amigos, arranjar companhia e ainda comer seus bolinhos famosos e premiados. Sorrio de leve, sentindo-me levemente excitado por ela ter tanto tino. Gosto de mulheres inteligentes!

— Você a isolou no momento em que comprou todos os imóveis e mandou os estabelecimentos fecharem. Ela é a única opção da área...

Ele se interrompe ao ouvir uma batida à porta.

— Pode entrar — autorizo, sabendo que não é o Rômulo.

Kostas aparece, seu tamanho e largura preenchendo a entrada da sala, o olhar azul e arrogante, o sorriso debochado e os cabelos negros penteados para trás com uma espécie de pomada de brilho molhado. Meu irmão é a cópia do nosso pai, e isso chega a me causar arrepios.

— Bom dia! — cumprimenta Millos e se senta ao seu lado. — Theodoros, tenho uma notícia boa e uma ruim, qual quer primeiro? — Dá risadas debochadas, e Millos o segue.

Isso é sério? Levanto uma sobrancelha, olhando-o carrancudo.

— Fala logo, Kostas! — ordeno.

— Bem, já que você não tem nenhum senso de humor. — Pisca para Millos. — Nós já sabíamos disso, mas não custava tentar! — Meu primo assente, e eu bufo de raiva. — Vou começar pela boa. Já ingressamos com o pedido de execução da nota promissória.

— Já não era sem tempo! Preciso comemorar por você ter conseguido fazer seu trabalho?

O desgraçado ri.

— A ruim, no entanto, também é sobre isso. — Ele me estende umas folhas. — Duda Hill deu entrada no inventário judicial após a morte do pai.

Leio os papéis, mas pouco entendo de legislações e procedimentos legais, então espero que ele pare de fazer cu doce e prossiga com suas explicações.

— Que merda! — Millos exclama, e isso é o suficiente para me deixar tenso.

— O que isso significa, porra?

Kostas se levanta, anda até o aparador e se serve de água.

— Você poderia ter bourbon aqui — comenta como se estivesse aqui para uma visita social. Xingo-o. — O processo não cumpriu nem metade de seu caminho natural, caro irmão. Já está aberto há quase quatro anos e pouco avançou, e isso porque tem apenas um imóvel a ser herdado por uma única herdeira. — Ele ri. — Adivinha qual?

O Hill! Merda!

— O que isso significa em nossos planos de adquirir aquela pocilga? — Irrito-me.

— Bem, assim que for declarado o débito por causa da confissão de dívida – a promissória –, nós vamos ser credores do espólio. — Bufo pelo uso dos termos técnicos desnecessários.

É Millos quem vem ao meu resgate.

— O homem está morto, Theo, não temos como cobrar dele, apenas dos bens que ele deixou, entendeu? Isso obriga a Duda a vender ou entregar o Hill em troca da dívida. — Sorrio, achando a notícia ótima. — Mas somente quando o inventário fechar, o que pode levar anos ainda.

— O quê?! — Levanto-me, esquecendo por completo a dor de cabeça.

— É isso, caro irmão! — Kostas dá de ombros. — Seja bem-vindo à realidade da justiça brasileira, em que inventários simples duram, em média, de oito a dez anos!

— Não há outra forma de recebermos?

— Não. — Kostas ri, satisfeito. — A dívida está no nome do pai dela, então só alcança bens deixados por ele.

— A vantagem é que ela não pode vender para outro também, não é? — Millos questiona.

— Teoricamente, não, mas se o comprador não se importar em não ter a escritura, ela consegue vender, sim. Tem muita gente que faz isso. Não é legal, mas faz.

— Puta que pariu! — explodo, virando-me em direção à vidraça.

— O jeito é tentar comprar, Theo, e alegar que somos credores e que, por isso mesmo, ela só pode vender para nós — Millos fala, e Kostas concorda.

— Ela não vai vender, disse ontem!

Sou um homem muito teimoso, sempre fui, e reconheço um igual de longe! Quando Duda Hill disse ontem que não ia vender para a Karamanlis, vi a teimosia brilhando em seus olhos.

— Além do mais, pelo que soube, os negócios vão bem — Kostas complementa, deixando-me ainda mais raivoso. — Ela não precisa vender.

Olho para Millos, e ele arregala os olhos ao ver a determinação nos meus.

— Fale de sua ideia!


O despertador me acorda pela segunda vez no dia. Tenho vontade de esconder a cabeça debaixo do travesseiro e fingir que não estou ouvindo, deixar que entre em modo “soneca” e que, com isso, eu ganhe mais alguns minutos na cama.

Suspiro, abro os olhos lentamente e pego o maldito telefone para cancelar o despertador. Ganhar minutos na cama significa perder minutos do dia, e isso definitivamente é uma coisa à qual não posso me dar ao luxo. Tenho que trabalhar, organizar minha cozinha e ser a primeira a estar nela quando os demais chegarem.

Espalho-me na antiga cama de casal dos meus pais, abrindo os braços em forma de cruz e esticando todo o meu corpo. Carreguei tanto peso hoje que, nessas horas, sinto falta de não ter um homem fortão trabalhando comigo nesse negócio pesado que é transportar as compras. Tento relaxar meus músculos, fecho os olhos e deixo a mente vagar por um segundo.

Em meio aos pensamentos de paz, natureza e tranquilidade, lindos olhos azuis aparecem, sedutores, emoldurados por cílios longos e escuros que fizeram sombra em seu rosto quando ele olhou minha pele se arrepiando ao seu contato. No mesmo momento sinto um gelo na barriga – desses que sentimos quando descemos uma ladeira inesperadamente de carro –, e um tremor perpassa pelo meu corpo, desde as pontas dos dedos até a raiz dos cabelos.

Emito um grunhido de irritação por, mais uma vez, Theodoros Karamanlis se infiltrar nos momentos em que busco relaxamento e pensamentos positivos para enfrentar o dia. Tem sido assim desde aquele maldito jantar, há quase uma semana!

Sento-me, notando o quanto estou suada, pois há alguns meses meu ar-condicionado do quarto teve uma pane elétrica, e não tive nem tempo, nem dinheiro para chamar a assistência técnica. O verão chegou com tudo este ano, e as temperaturas estão ameaçando bater recordes desde o final da primavera. Vou precisar arrumar o ar ou então ir dormir no quarto da tia Do Carmo.

Confiro as horas, meio-dia e alguns minutos, e sigo rápido para tomar a terceira chuveirada do dia!

O expediente no Hill durou até às 2h35 da manhã, quando gentilmente convidamos nosso último cliente a sair. Passei a encerrar mais cedo em dias de semana, pois sábado e domingo vamos até às 4h da manhã. Fechei a cozinha para pedidos exatamente à 1h para que desse tempo de todos os quitutes ficarem prontos e nossos clientes irem embora até às 2h30. Entretanto, sempre fica um agarrado a uma cerveja num canto, sempre!

A música ao vivo, de terça a domingo – menos quando temos campeonatos de futebol, pois aí na quarta-feira transmitimos os jogos – anima o pessoal e por isso mesmo precisa ser encerrada uma hora depois do fechamento da cozinha. Há toda uma preparação para que os clientes entendam que a hora de “dar tchau” chegou.

Hoje, sábado, é o dia mais desgastante para mim, pois a cozinha irá funcionar a todo vapor até às 3h30 da manhã, aceitando pedidos até uma hora antes disso, e o bar só será fechado às 4h. E adivinhem quem fecha o bar? Exatamente, eu!

Ou seja, terei 14 horas de trabalho incessante pela frente, a partir das 2h da tarde, sendo que noite passada não aguentei ficar acordada para ir até o CEAGESP, dormi às 3h e acordei às 4h, correndo para poder pegar um pouco do pescado bom, pois a venda para o atacado começa na madrugada e vai até às 6h da manhã. Descarreguei tudo no restaurante e voltei para a cama às 9h, por isso, sim, estou acordando ao meio-dia!

Saio do banho e já coloco a calça preta – uniforme do Hill –, uma camiseta branca por causa do calor e calço chinelos. Separo o uniforme, que minha tia já deixa passado, a dolma, o avental e meus turbantes. Deixarei os cabelos secarem para depois fazer um coque alto, bem firme, para que nenhum fio possa se desprender.

— Boa tarde! — tia Do Carmo me cumprimenta assim que apareço na sala. — Vai almoçar agora?

— Vou. — Suspiro, sentando-me. — E a Tessa?

— Acabou de ir para o inglês com a Marcela e a Diana. — Assinto, lamentando não ter me encontrado com ela aqui, mesmo que depois dê uma xeretada na minha cozinha.

Mal tenho tempo para ela! Sinto-me mal por isso, tento compensar, mas queria ser mais presente e sei que Tessa sente essa necessidade tanto quanto eu. Porém, minha menina já é tão madura que entende que essa rotina louca na qual vivo não é por minha escolha.

Tia Do Carmo me serve de sua comida simples, bem temperada e absurdamente viciante, e eu não penso em mais nada a não ser apreciar a iguaria. Ao longe, enquanto como, ouço o barulho da máquina de costuras dela, em seu quarto, trabalhando sem parar. Ela é teimosa e está sempre aceitando encomendas de reparos ou confecção de roupas, principalmente para o pessoal da igreja que frequenta.

Somos farinha do mesmo saco, teimosas ao extremo, e ela me culpa por eu recriminá-la por querer ajudar. Não é só por teimosia ou orgulho que peço tanto a ela para que se poupe, pois se aposentou há alguns anos por invalidez exatamente por passar horas e horas costurando desde menina e com isso ter ganhado algumas hérnias de disco ao longo de sua coluna.

A verdade é que, se não fosse pelas dívidas, eu poderia dar uma vida bem melhor a elas. O Hill vai muito bem, cada vez mais conhecido, atraindo clientes para essa área que nem é tão famosa por ter bares. Contudo, o boca a boca tem se espalhado pela cidade e trazido com ele nossos clientes.

Termino de comer, lavo a louça e termino de me arrumar para descer e só voltar no meio da madrugada. Faço uma oração curta antes de descer e grito para tia Do Carmo:

— Tia, estou no Hill se precisar de algo!

— Vai com Deus, minha filha! — grita de volta, cessando a costura. — Tente descansar em alguns momentos!

Apenas rio, porque a cozinha é uma correria aos finais de semana, e é impossível me sentar por uns minutos sem que alguma coisa desande, já que atendemos em média 400 clientes por sábado e uns 350 no domingo. O volume de comida que processamos é tão grande que fazemos compras nas madrugadas de terça, quinta e sábado.

Poderia até ir ao CEAGESP menos vezes, mas prefiro trabalhar com os ingredientes o mais frescos possível e, graças à câmara fria que instalamos, já me dei ao luxo de parar de ir todas as madrugadas. Vou sempre às terças e sábados e deixo Manola se virar na quinta-feira. A mulher adora ir para lá e demora o dobro do tempo que eu levo, sempre conversando com os comerciantes, pechinchando horrores e fazendo amizades. Como ela é sozinha, está sempre com o caderninho de telefone preenchido para quando quer companhia, e como trabalha como louca aqui, seu lugar de fazer contatos é lá na central de abastecimento.

Confesso que me divirto muito com suas histórias, assim como todo o resto de nós da cozinha.

Abro a entrada principal do bar, pois, infelizmente, quando papai montou o local, não pensou em saída de emergência, mesmo porque na sua época era todo aberto, então, quando transformei o boteco em um pub, tivemos que sacrificar a porta usada para carga e descarga e transformá-la para que estivéssemos em dia com a legislação dos bombeiros e da própria prefeitura.

Sempre que entro, já deixo a porta de aço aberta e tranco somente a de vidro, deixando um pouco de sol entrar através das paredes de vidro temperado.

Sigo diretamente para a cozinha, mas anotando mentalmente tudo o que precisará ser limpo com mais afinco, resultado da noite anterior. No bar, sempre tenho a satisfação de passar e ver o asseio do Kiko, seus utensílios todos nos lugares, limpos e secos, as chopeiras sem nenhum traço de respingo de chope, o chão brilhando.

Abro a cozinha, e o cheiro dos produtos de limpeza que usamos há algumas horas, assim que encerramos as atividades, recepciona-me. Faço meu coque, como sempre, ponho o turbante, lavo as mãos e começo a trabalhar, colocando alguns alimentos de molho, descongelando outros e conferindo as receitas, bem como o funcionamento de todos os equipamentos.

Ouço o barulho da porta, e uma risada preenche o lugar, indicando que Manola chegou junto ao seu fiel escudeiro, Arnaldo.

— Boa tarde, chef! — ela me cumprimenta, indo para o banheiro dos funcionários. — Hoje o Naldo está impossível!

— Você é que não aguenta ouvir umas verdades, Manola. — Arnaldo vem até onde estou e me dá um beijo na testa. — Carinha de cansada hoje, boneca!

— Dia de compras... — Aponto para a caixa de camarão no gelo que tirei da câmara para ele limpar. — Divirta-se!

— Ai, minha santa protetora dos dedos furados! — geme.

— Use luvas! — Manola grita, vindo do banheiro trajando o uniforme, seus cabelos ruivos presos em uma trança e seu turbante cheio de beijos já na cabeça. — No dia em que você perder um dedo, ainda processa a Duda!

— Deus me livre, Manola! — Bato na bancada de inox, e ela ri.

— É na madeira, querida! — Joga um beijo para mim e as luvas de fio de aço para o Arnaldo. — Não vai te proteger contra o camarão, mas quando for limpar as carnes, faça o favor de usá-las!

— Oui, chef! — ele debocha.

— Abusado! — diz, pegando as panelas guardadas e já as colocando no fogão. — Vou adiantar os molhos enquanto a Ana não chega. Ela ia levar o filho ao dentista hoje.

— Eu sei — concordo ainda lavando as folhas e temperos. — Cláudia também vem mais tarde hoje, mas adiantou muito suas sobremesas ontem. Trabalhou dobrado!

— Estou louca por aquela torta de duas mousses que fez! — Geme e estala a língua. — Adoro maracujá com chocolate, e a danada não me deixou pegar nem uma provinha!

— Diabetes te diz algo? — Arnaldo alfineta.

— Tenho pré, idiota! — Ressalta: —Pré-diabetes!

Rolo os olhos, já antevendo uma discussão sobre a quantidade de açúcar que ela não deve ingerir.

Minhas tardes são sempre assim, entre o trabalho na preparação para a noite e as conversas, discussões ou músicas dos meus colegas de trabalho. É bom, faz o tempo passar depressa e não deixa o serviço tedioso.

— Terminou aquela receita nova que estava escrevendo? — Arnaldo me pergunta um tempo depois.

— Ainda faltam uns ajustes, mas estou sem tempo para testar. — Dou de ombros. — Final de ano, né?

— Por falar nisso... — Manola se aproxima. — Como andam as encomendas? O pessoal gostou do menu deste ano?

— A Hana me entregou ontem uma pequena lista de encomendas. Ao que parece, o menu foi bem aceito, sim.

Manola bate palmas, e eu sorrio aliviada.

Todo ano abrimos o Hill e servimos pequenas ceias para o pessoal que não quer ter trabalho, mas percebemos que seria mais interessante, para nós e para nossos clientes, se houvesse um menu prévio e as encomendas entregues em casa.

Como começamos o delivery este ano, programei um menu com três tipos de proteínas – peru, bacalhau e presunto – e vários tipos de acompanhamento. As variações vão desde a mais simples e barata até as sofisticadas, dignas de um chef de cuisine, mais caras.

Por incrível que possa parecer, o menu luxo tem vendido mais do que o comum, e isso, além de me dar muito orgulho de ver minhas receitas tão bem aceitas, ainda me concede maior lucro.

Por conta desse menu especial, não abriremos o Hill para o público na véspera do Natal, daqui a alguns dias, e nem no dia, retomando as atividades somente no dia 26 de dezembro. Teremos que trabalhar muito para atender aos pedidos, mas tenho certeza de que daremos conta e que em pouco tempo encomendar a ceia no Hill será uma tradição.

É preciso manter a fé depois de tudo o que já passei na minha vida; sem ela, eu esmoreço. Não digo propriamente uma fé religiosa, mas a de desejar boas coisas, pensar positivo, manter a chama da esperança acesa de que tudo vai dar certo.

— Boa tarde! — a voz de Tessa faz meu sorriso se agigantar, e paro o que estou fazendo para ir abraçar minha pequena menina. — Ei, mãe, não!

Ela tenta correr ao ver minhas mãos molhadas, mas, quando a alcanço, explode em gargalhadas e me abraça apertado.

— Estava com saudades! Como foi a aula?

— Legal! — Faz um joia com a mão. — Ei, tia Manola!

— Tia uma ova! — Manola repreende, mas ri. — Sou no máximo sua irmã mais velha, pirralha!

Tessa gargalha de novo e faz gesto de que Manola é maluca, rodando o indicador ao lado da cabeça, e Arnaldo libera sua estridente gargalhada ao concordar com a menina.

— Quer alguma coisa especial daqui hoje? — pergunto, mas sem muita esperança.

— Não, tia Do Carmo disse que vai fazer lasanha à noite, e você não faz lasanha aqui!

— Não faço! — Cutuco suas bochechas com os indicadores bem onde elas formam covinhas quando Tessa sorri. — Cláudia fez uma torta especial. Vou levar para você mais tarde.

— Tem chocolate? — indaga animada.

— Tem, sim, pirralha! — é Manola quem responde. — E se ela tiver direito a um pedaço, eu, como irmã mais velha, também tenho!

Tessa mostra a língua para ela, Arnaldo ri, e eu balanço a cabeça, pois as duas parecem realmente irmãs, brigam e implicam uma com a outra, mas se adoram. Minha pequena se despede, e a acompanho até a entrada do bar, só voltando para a cozinha ao vê-la fechar a porta do acesso ao nosso apartamento.

Deus do Céu, como é bom ver minha menina feliz!

A segurança e a felicidade de Tessa são minhas prioridades, e vê-la crescendo tendo essas duas coisas me dá ânimo para aguentar mais um dia de trabalho e não pensar em coisas ruins. Nem mesmo nos Karamanlis, ainda que um deles tenha mexido comigo de tal forma que volta e meia está nos meus pensamentos – e não pelo motivo pelo qual deveria estar!


— Me and Mrs. Mrs. Jones, Mrs. Jones, Mrs. Jones, Mrs. Jones, we've got a thing going on. — Dedilho o arranjo ao piano, sentindo o peso dessa canção sobre mim e volto a cantar: — We both know that it's wrong, but it's much too strong to let it go now.3

Há anos não toco essa música tão famosa na voz do Billy Paul, mas algo me impulsionou a fazê-lo esta noite. Nada específico, creio eu. Contudo, meu interior está conturbado como há muito tempo não o sinto.

O paletó do terno que vesti hoje está em cima de uma das cadeiras da sala de jantar, a gravata precariamente pendurada sobre a borda do piano, enquanto estou aqui, camisa social semiaberta, mangas arregaçadas, uma garrafa de uísque em cima do instrumento e meu copo já quase vazio. Não parei de tocar desde que cheguei do concerto musical e apresentação de novos artistas de gravuras que ocorreu em uma galeria de artes aqui perto.

A verdade é que, desde quando Viviane me mandou o convite, não tive nenhum interesse em ir, embora fosse algo que geralmente chamaria minha atenção. Tive uma semana fodida demais, e não havia nenhum clima para entretenimentos. Tudo o que eu queria era uma massagem gostosa e uma trepada de alívio.

Termino a música e recosto a cabeça nas teclas do piano, quase não me reconhecendo. Não estou normal! Talvez essa época do ano, próxima demais do Natal, mexa comigo, evoque sentimentos que há muito tempo pensei ter perdido.

Sinto falta da Vanda nesta casa! Olho em volta e bebo o restante da dose de uísque. Tudo está tão vazio, tão silencioso, tão... estéril. Não tenho mais ninguém me esperando quando chego do trabalho, nenhum cheiro de tempero quando entro na cozinha – ou mesmo de café, porque o dela é incrível –, não há conversas amenas.

Não há nada!

Balanço a cabeça, irritado com o rumo dos pensamentos, com a energia negativa deles dentro de mim. Maldita semana!

O desastre começou na segunda-feira com aquele encontro deliciosamente desastroso com Duda Hill; depois aumentou com a notícia que o filho da mãe do Kostas nos deu sobre o imóvel onde funciona o Hill Wings.

A proposta de Millos ressoa em meus ouvidos, e, por mais que eu não ache muito sentido no que me propõe, penso se não é um caminho a seguir. Nunca fui um homem de indecisões. No entanto, entendo que, nesse assunto em particular, não posso me mover por impulso.

Volto a escutar a voz de meu primo como se estivesse aqui e o ouço apresentar todos os motivos para embasar sua ideia.

— Nosso erro foi deixá-la sozinha naquela rua, sem nenhuma concorrência! — argumentou.

— Quando fechamos a compra do último imóvel, aquilo lá ainda era só um pé-sujo com meia dúzia de clientes bêbados — justifiquei em contrapartida. — Não tínhamos com o que nos preocupar!

— Esse foi o erro do coelho naquela fábula — Kostas ironizou. — A arrogância do “já está no papo!”.

— Você falando de arrogância? — Ri, e Millos disfarçou seu riso também. — Não tem se olhado no espelho, não?

Kostas apoiou seu indicador logo abaixo da sobrancelha, ao lado do olho e me deu um meio sorriso e um olhar de desprezo. Ergui minha sobrancelha e balancei a cabeça, enfrentando-o. Se o bostinha achava que iria me intimidar como faz com seus advogados, estava muito enganado!

— Já terminaram de testar a testosterona de ambos? — Millos reclamou. — Minha ideia faz todo sentido! Se alugarmos algumas lojas próximas ao estabelecimento dela, damos a concorrência necessária para que recue um pouco no crescimento que vem tendo!

— Sabe o que não entendo? — Kostas interferiu. — Se ela vem fazendo tanto sucesso quanto vocês gostam de afirmar, por que não quitou a maldita promissória?

— Talvez não tivesse tido o suficiente ainda, pois, como o “agiota” mesmo informou, ela andava pagando os “juros” para que ele continuasse paciente — respondi. — Ademais, ela não poderia pegar um empréstimo para quitar uma dívida como essa.

— A verdade é que o pilantra nunca iria liberá-la da dívida. — Concordei com o ponto apresentado pelo Millos. — Gastamos quase o dobro do que a promissória realmente vale, e ele já tinha recebido anos de juros da Duda. O homem é um espertalhão!

— Então você acha que, colocando mais alguns bares naquela rua, teremos mais chances de quebrá-la? — inquiri. Millos assentiu, mas vi um leve sorriso no rosto de Kostas e, sinceramente, não gostei dele. — Como controlaríamos isso?

— Kostas! — Millos aponta. — Podemos amarrar bem o contrato de aluguel, especificando a atividade que o locador deve exercer.

— Isso é legal? — perguntei.

— Não posso dizer no contrato o que ele deve vender, mas posso amarrá-lo à atividade que já exerce, ou seja, se trocar de ramo, deixa o imóvel. — Olha para o Millos. — O pessoal da corretagem, que por sinal é subordinado ao nosso querido e esperto primo, é quem deve ter em mente quais são os tipos de locadores que devem aceitar.

Concordei, mas ainda não estava completamente convencido.

— Pense na questão. — Millos se pôs de pé. — Tempo é o que não falta, pelo que Kostas disse.

Meu irmão o acompanhou, o sorriso estranho ainda em seu rosto, como se estivesse acontecendo algo que só eu não soubesse.

Dali em diante, tudo pareceu ainda pior! Os dias se arrastaram até esta sexta-feira, vários setores da empresa dando problemas justamente nesta época em que o pessoal já parece estar entrando em ritmo de festas e esquecendo um pouco a nossa tão famosa correria paulistana.

Só soube que Valentina seria minha acompanhante nos eventos artísticos no meio do expediente, quando Viviane me ligou para perguntar se eu tinha o endereço do apartamento da moça.

— Você me disse que ela estaria lá, não que iria comigo! — resmunguei. — Nós mal trocamos algumas palavras naquele vernissage!

— Theo, meu querido, você quer ou não quer uma maldita esposa?! — minha sócia perdeu a paciência.

— Porra, mas não assim! Não precisava agir tão descaradamente como se eu estivesse desesperado, merda!

— Ela é a melhor candidata com que você já esbarrou por aí! É amante das artes como você, vem de uma família tradicional e rica como a sua, é linda, jovem e tem todos os infindáveis requisitos que você listou para a futura senhora Karamanlis! Dê uma chance a ela!


CONTINUA
Acordei de ressaca hoje, e não foi por causa da quantidade de bebida que ingeri no vernissage; aquela quantidade, eu nem consideraria como beber. Viviane ficou puta por ter encarecido o orçamento com garrafas do meu uísque preferido e eu não estar bebendo, por isso, depois do evento, reuni todas as que sobraram e trouxe para meu apartamento.

Pensei que ia passar uma noite solitária, acompanhado apenas de um single malte e discos de jazz, mas, no meio da minha encenação de lobo solitário, Millos ligou me convidando para ir até seu loft. Neguei várias vezes, mas a porra do homem estava tão excitado com a cerveja que havia feito que não parava de insistir.

Resultado? A bebida realmente estava um espetáculo! Enchemos a cara, mesmo sob meus protestos, pois nunca curti muito beber cerveja, e comemos uns tira-gostos tão saborosos que teci elogios a sua habilidade na cozinha.

— Ah, não fui eu quem preparou, não! — Riu. — Encomendei no Hill.

Quase cuspi aquela porra para longe e o fuzilei com os olhos.

— Porra, eu querendo que aquela merda feche e você comprando lá? Está do lado de quem afinal?

— Do meu estômago! — respondeu comendo mais um dos bolinhos. — Estava com vontade de ter um acompanhamento, mas sem nenhum saco para preparar. Me lembrei do dia em que fomos lá e quis conferir se ainda continuavam tão gostosos!

— Ainda não te perdoo por aquela arapuca! — acusei.

Há uns dois anos, Millos me convidou para comemorar seu aniversário, coisa que vez ou outra fazemos quando ele está em clima de festa. Eu lhe disse que o encontraria no local, mas ele insistiu em me buscar em casa, e, quando chegamos e percebi que era no Hill, fiquei bem puto, mas a curiosidade de saber o motivo pelo qual o boteco estava se tornando um sucesso me impulsionou a entrar.

O que eu não contava era que, além de a mim, o filho da puta tinha convidado meus irmãos. Ficamos lá os quatro como se fôssemos bons amigos, compartilhando da armadilha de Millos. Aposto que Kostas e Alex detestaram cada momento, mas sorrimos, bebemos e experimentamos os quitutes da tal da Duda Hill.

Mesmo não gostando de admitir, era fato que a mulher sabia o que estava fazendo na cozinha. Os bolinhos tão tradicionais de um boteco tinham um requinte diferente, embora mantivessem a essência. Era como se ela conseguisse melhorar o que já era perfeito, e isso, tenho que admitir, é um dom.

Confessei isso ao meu primo? Nem sob tortura! Repreendi-o por ter comprado lá, aleguei que ela podia ter mandado envenenar os quitutes – fazendo um drama desnecessário, culpa da bebida –, mas não parei de comer.

— Ah, pedi a Sami para comprar para mim — respondeu.

— Você ainda está saindo com ela? — questionei surpreso, pois havia muito tempo não via a motoqueira que, de vez em quando, orbitava em volta dele.

— Não! Somos amigos, já disse isso, mas parece que você só enxerga a boceta de uma mulher, come até suas “amigas” — fez referência a Viviane.

— Por que você não gosta dela? — Provoquei: — Porque ela é independente, dona de si mesma e diz o que pensa?

— Não! Eu não curto mulher assim para comer, mas não tem nada a ver com o fato de eu achá-la fria e calculista, e nunca escondi isso de você. Aquela mulher gela meu sangue!

Ri do seu exagero, afinal, a Vivi não tem nada de fria. Millos implica com ela pelo simples fato de a mulher ter personalidade e não se deixar comandar por ninguém. No primeiro momento ele se sentiu atraído, Vivi é um espetáculo aos olhos, e ela também não disfarçou o interesse. No entanto, bastaram alguns minutos de conversa para que se odiassem.

— Hoje ela conseguiu algo incrível — comentei. — Valentina de Sá e Campos, já ouviu falar?

Ele riu.

— Dela não, mas conheço os sobrenomes. Família paulistana tradicional, bom currículo. — Cruzou os braços e me olhou debochado. — A futura senhora Theodoros Karamanlis?

— Talvez — fui sincero. — Conversei um pouco com ela nesta noite, achei-a divertida, inteligente e sedutora. A princípio achei que era muito nova, mas é madura e independente, cheia de opinião. Gosto do tipo.

— Eu sei. — Ele se levantou e foi pegar mais cerveja. — Foi Viviane quem te apresentou a ela? — Assenti. — Não sei se gosto disso, mas boa sorte.

Gargalhei pela implicância dele com a Vivi e resolvi desviar o assunto. Falamos da Karamanlis, de música, de motos e, por fim, já muito bêbado e com sono, caí sobre o sofá dele e acordei há pouco, com torcicolo e com uma puta dor de cabeça.

— Ei! — Millos me saúda estendendo uma xícara de café. — Você está destruído!

O desgraçado ri, mas nem posso mandá-lo tomar no cu, porque minha cabeça trepida parecendo que há uma britadeira no meu cérebro. Maldita cerveja! Malditos bolinhos envenenados da Duda Hill!

— Cara, você é fraco para minha cerveja! — Millos ri. — Ficou boa, não é? — Apenas assinto, ainda tomando o café para melhorar meu ânimo. — O que está programado para fazer nesse final de semana?

— Vou trabalhar. Como saí um pouco mais cedo ontem por causa do vernissage, Rômulo separou umas pastas para que eu lesse nesse final de semana. Coisa chata, principalmente da pauta da reunião do conselho.

— Por falar no conselho... — Ele se senta ao meu lado no sofá e apoia os pés descalços sobre a mesinha de centro. — Ontem tive notícia do Kostas. — Ri. — Parece que tomou um toco feio da Kika e está cuspindo marimbondos.

Gargalho, esquecendo a dor.

— Como queria ter visto esse embate!

— Eu também.

Bufo, mesmo divertido, lembrando que o meu problema continua.

— Preciso trazê-la de volta para a empresa com urgência. Há vários projetos dos hunters parados, e o Rômulo não está dando conta de organizá-los.

Millos rola de rir no sofá.

— Esse seu assistente é muito estranho. Sinceramente não entendo como você ainda o mantém trabalhando contigo!

— Gosto de ele ser metódico. — Dou de ombros. — É organizado, embora meio desastrado, nunca perde um prazo e faz tudo o que eu peço.

— Seu próprio espelho, não é? Nunca conheci ninguém mais chato que você para organização.

Ergo uma sobrancelha para ele e olho em volta para seu loft cheio de espaço, mas sem nenhuma lógica ou senso de estilo. Millos gosta de coisas rústicas, e respeito isso, acho legal, mas é tão bagunceiro que seus móveis caros de design parecem ser cacarecos de alguma casa demolida.

Os únicos locais arrumados são: a cozinha, o “laboratório” de cerveja (como ele mesmo se refere ao local) e onde dorme. O resto... tem peças de motos para todos os lados, mesmo a oficina ficando na parte de baixo do galpão que ele chama de loft, tem barris com os ingredientes que compra para a fabricação de cerveja, roupas, discos e óculos (nunca vi tantos para uma só pessoa) espalhados por todos os lados.

O homem é um caos completo em casa, mas, se alguém entrar na sala dele na empresa, vai acreditar que é o epítome da organização. Não entendo como consegue!

— Bem, sobre a Kika, eu posso te adiantar que não precisa se preocupar — Millos continua. — Falei com ela ontem, e vai voltar.

Expiro o ar, aliviado.

— Porra, Millos, porque não me contou antes? É um alívio do cacete não ter que lidar com mais esse problema e...

— Mas ela não quer ser mudada de andar.

— O quê? Ela está fazendo exigências?

Millos penteia a barba com os dedos, enervando-me com sua calma.

— Demonstramos desespero ao mandar o Kostas pedir arrego. — Concordo com ele nesse ponto. — Ela quer aumento, continuar no andar e... — Tenta conter o sorriso, e prevejo que vem bomba, mas ele vai dar um doce do cacete para falar.

Perco a paciência e esbravejo:

— O que mais ela quer?!

— Carta branca para mandar seu irmão se foder à vontade.

— Porra!

Ponho as mãos na cabeça, sentindo a dor de cabeça voltar com tudo e ouvindo a risada debochada do Millos.

Eles querem me enlouquecer, só pode!

 

 

A dor de cabeça me acompanhou ao longo de todo o final de semana. Tomei analgésico, antiácido e – seguindo os conselhos do meu primo – mais um pouco de cerveja. No entanto, não consegui me livrar do incômodo insistente.

Trabalhei o sábado inteiro, recebendo ligações do Rômulo quase de hora em hora, a ponto de ficar puto com ele e mandá-lo caçar algo para se divertir e me deixar em paz. Compreendo que ele queira me ajudar, mas, às vezes, sua dedicação exacerbada me estressa.

Recebi um convite para jantar de uma antiga amante que vinha a São Paulo de tempos em tempos, mas neguei. Queria apenas relaxar um pouco em casa depois de ter trabalhado em páginas e mais páginas de relatórios com uma dor de cabeça chata a me distrair.

Pedi comida em um restaurante de comida vegana, achando que pudesse ser a gordura dos bolinhos do Hill – velha e rançosa, com certeza – que me deu essa indisposição e resolvi assistir a alguns filmes antigos. Sou fã de “O poderoso chefão”, então comecei a assistir a cada um deles de novo.

Novamente dormi em um sofá, mas acordei melhor e resolvi correr um pouco. Passei umas duas horas no Ibirapuera e, na volta, encomendei o almoço de domingo, sentindo-me um pouco órfão sem a Vanda em casa.

Liguei para Millos a fim de fazermos algum programa à tarde, mas ele estava com alguma mulher em algum clube ou lugar que só Deus sabia, então voltei aos relatórios, e isso consumiu o resto do dia.

Debaixo do chuveiro, rememorando este final de semana de merda, ouço meu telefone tocar, mas o ignoro. Coloquei os jatos no mais forte possível para tentar aliviar um pouco a tensão que venho acumulando nesses dias. A verdade é que preciso trepar um pouco, divertir-me, talvez fazer uma viagem ou passar um final de semana com alguém sem pensar no trabalho.

A imagem da Valentina vem à minha mente, sua conversa gostosa, seu sorriso bonito. Contudo, ainda não me sinto completamente certo de que devo me envolver com ela, principalmente por uma questão: não senti muita atração.

Sei que isso é de momento e que pode mudar, principalmente se a convivência for boa. Nem sempre sentimos atração pela pessoa no primeiro encontro, e já vivi anos demais para saber que até um primeiro encontro explosivo pode depois esfriar e o tesão ser extinto, então, não me baseio apenas nessas primeiras impressões.

Fecho os olhos e penso na garota da boate há alguns anos. Ela vem preenchendo minhas fantasias há muito tempo, talvez por ter sido gostoso daquela vez e não ter tido mais notícia dela.

Mal lembro do seu rosto, de tão bêbado que estava, sempre quando fantasio vejo os cabelos e me lembro da loucura que foi nossa transa naquele banheiro.

O telefone volta a tocar, e desligo o chuveiro, saindo do boxe para ver quem é o chato. Rio ao ver o nome do Millos. Na mosca!

— Já terminou sua maluquice sexual com a “submissa” da vez? — provoco.

— Vá se foder e não se meta nos meus assuntos — rosna. — Liguei para saber se amanhã pode ir comigo a um restaurante que um amigo inaugurou nos Jardins.

— Boa comida ou é boteco?

— Não, seu fresco, é coisa fina! Vanda ainda não estará de volta, não é?

Suspiro, resignado.

— Não, ela ainda vai ficar um tempo no Rio de Janeiro. Está certo, amanhã combinamos isso melhor no escritório.

— Okay! — diz animado. — Vai almoçar no refeitório junto aos funcionários?

— Sempre há uma primeira vez, não é? — Deixo a toalha no suporte e sigo para o closet. — Além do mais, confio que servimos algo de qualidade aos funcionários.

Millos ri.

— Essa eu quero ver! Nos encontramos no almoço, então! Boa noite, Theo.

— Boa noite!

Desligo o telefone e me olho no espelho, lembrando-me do tempo em que comia qualquer coisa e em qualquer lugar, na maioria das vezes sujo e fedendo a peixe, sentindo-me feliz e livre.

— Quem é você, Theodoros Karamanlis?


O dia nem bem amanheceu, e eu já estava suando na academia com a Sandra. Hoje, sem Millos, o treino foi mais tranquilo, seguindo o ritmo normal dos exercícios. Tomei meu café sozinho na cozinha – café puro mesmo – sentindo imensamente a falta da Vanda, de sua conversa matutina animada e seus cuidados. Posso não admitir sempre, mas gosto de ser cuidado, de sentir esse afeto, coisa tão rara na minha vida.

Limpei os pensamentos e saí para trabalhar.

— Bom dia, Dionísio! — cumprimentei o motorista como em todos os dias, já pegando meu jornal para me inteirar sobre as principais notícias do dia. — Hoje vou almoçar na empresa, mas, à noite, vou sair do escritório direto para jantar com Millos.

— Levo o doutor ou trago o carro?

— Traz o carro, vou dirigindo.

Ele assentiu, e seguimos viagem em silêncio, ele concentrado no trânsito, e eu, nas notícias de economia do país e do mundo.

Cheguei à empresa já apagando incêndios. Um dos projetos de um cliente foi reprovado por uma comissão municipal, então Kostas teve que intervir mandando seus advogados e acompanhando todo o processo. Eu, como CEO, fiquei aguentando a aporrinhação do gerente responsável pela implantação da empresa multinacional aqui no Brasil.

Nem vi a hora passar, mal tomei meus cafés tão tradicionais ao longo da manhã, irritado com esse problema, com o Rômulo borboleteando ao meu redor me enchendo de perguntas: “quer café?”, “ligo para o doutor Konstantinos?”, “quer um calmante?”. Eu quase explodi de raiva, sentindo meu estômago fritar e a cabeça estourar.

Desci para o refeitório faltavam alguns minutos para o meio-dia e, para meu espanto, ainda não tinha nenhuma refeição pronta. Conferi as horas no Omega, um dos relógios mais precisos do mundo, e estranhei a demora. Rômulo apareceu e, quando lhe questionei o atraso, fiquei sabendo que o almoço era servido a partir da 1h da tarde.

Voltei para o escritório sob a insistência de Rômulo para me encomendar o almoço em algum restaurante.

— Não! Hoje vou comer no refeitório — insisti.

Millos me lançou um desafio por eu nunca ter comido na empresa desde que foi inaugurado o refeitório para os funcionários. Pensamos no restaurante para facilitar a vida de todos e, como tínhamos espaço, decidimos montar a estrutura. Estive presente no primeiro dia, na inauguração, há alguns anos, mas depois disso não botei mais os pés no local.

Exatamente às 13h desci novamente pensando em usufruir de um almoço tranquilo e nutritivo, porém, o que encontrei me deixou sem ação. Primeiro, os funcionários ficaram estarrecidos ao me ver ali; percebi em seguida que apenas o baixo escalão da empresa – de coordenadores para baixo – estava comendo ali. Não havia nenhum gerente ou diretor no meio dos mais de 100 funcionários da companhia.

Contudo, o que mais me surpreendeu foi a comida. Não, não era ruim, pelo contrário, era bem preparada, mas sem nenhuma opção para substituição.

— E quem não pode comer carne vermelha? — questionei ao Rômulo, e ele apenas corou, fingindo não ouvir. — Há cardápios diferentes ao longo da semana?

Rômulo continuava a montar seu prato sem emitir qualquer resposta, o que não é nada típico dele, e isso me irritou. Quando não era para falar, o homem tagarelava, mas, quando eu precisava de respostas, ficava mudo!

— Rômulo! — chamei-o de modo mais enérgico. — Eu estou tentando entender o que...

— Não, não há! — escuto a voz do Alex e me viro para encará-lo. — E seu querido assistente não sabe informar porque não come aqui também. — Meu irmão pegou um prato e se serviu naturalmente. — A questão do restaurante entrou em pauta numa reunião de diretoria, mas o senhor todo-poderoso do Olimpo achou que não era uma questão relevante para a economia da empresa e pulou o assunto.

Olhei de esguelha para Rômulo buscando confirmar a informação, e ele atestou. Xinguei mentalmente.

— Uma empresa é feita de mais do que números, Theodoros Karamanlis — seu desprezo pelo sobrenome era evidente. — E, quando fiz a proposta do restaurante, era para que, além de economizar o tempo dos funcionários e agilizar o serviço, também tivéssemos convívio com eles, porém, adivinha quem foi o primeiro a pular do barco e a incentivar o “alto escalão” a ir junto?

Bufei de raiva.

— Quem é o responsável pela gestão do restaurante? — ignorei o discurso do meu irmão idealista e perguntei ao Rômulo.

— É terceirizada, a mesma empresa do pessoal da manutenção.

Merda!

— Marque uma reunião com ela e peça ao Kostas para avaliar o contrato. — Rômulo mais do que depressa escreveu em seu tablet inseparável. — Dispare um memorando para todos os diretores e gerentes, lembrando da existência do restaurante e informando que, a quem for almoçar fora, será necessário cumprir o horário, ou seja, uma hora e nenhum minuto a mais.

Rômulo arregalou os olhos e assentiu.

— Eu pouco vejo você e percebo que nem é preciso! Você não mudou nada, o mesmo prepotente de sempre. — Alex passou por mim, ainda se servindo no bufê, rindo de deboche, e percebi olhares curiosos em nossa direção.

— Eu preciso lembrar que você também faz parte da diretoria e tem acesso irrestrito ao conselho? — Cheguei perto para falar baixo: — Se fosse meu projeto, nunca deixaria chegar aonde chegou só porque não sou o CEO. Isso demonstra que está mais preocupado em ir contra a direção do que lutando pelo bem-estar dos funcionários. Não é minha função tomar conta de tudo, não sou absolutista, eu delego e confio naqueles a quem passo esse poder. — Ele fechou a cara, perdendo o ar de superioridade. — Não tenho intenção alguma de prejudicar os que trabalham comigo, pelo contrário. Mas assumo meu erro em não ter frequentado o local para dar exemplo.

— Mas o doutor também não tem horário certo para almoçar, por isso...

Balancei a cabeça em negativa, freando a defesa de Rômulo. Não tinha desculpas, o exemplo era meu, e eu tinha falhado. Terminei de fazer meu prato, sentei-me a uma mesa com Rômulo e almocei mesmo sentindo um nó na garganta por ter mostrado falha e ter sido repreendido pelo Alex na frente de todo mundo.

Merda!

Ao longo do dia, a repercussão do almoço do CEO no restaurante da empresa, bem como o efeito do memorando para os diretores e gerentes agitaram a tarde na Karamanlis. Percebi todo mundo mais atento, mesmo na correria de sempre.

Tive uma resposta positiva da equipe de Kostas com relação ao projeto vetado e pude passar a boa notícia ao nosso cliente. Recebi vários relatórios dos setores e subsidiárias ao longo do dia, inclusive da K-Eng, dirigida pelo Alex.

Meu irmão é um sonhador idealista, defensor dos fracos e oprimidos, um rebelde que só trabalha conosco para contrariar a família. Cospe sobre nosso sobrenome, mas faz questão de ostentá-lo para afrontar o pappoús. Sempre achamos que ele tentaria afundar a empresa em represália ao tratamento que teve na infância, mas não, ele não só assumiu uma empresa praticamente independente como a fez crescer. Todavia, ainda sinto que há algo por trás disso.


CONTINUA

Uma família separada pelo ódio...
Criado pelo avô, renegado pelo pai, odiado pelos irmãos, Theodoros Karamanlis recebeu o cargo de CEO da empresa da família. Sua principal meta é provar a todos que é mais competente do que o homem que sempre o renegou, seu pai. Para isso acontecer, falta apenas comprar o imóvel onde funciona um pequeno pub na Vila Madalena e assim fechar uma conta aberta há mais de dez anos.
Uma família mantida pelas lembranças...
Maria Eduarda Hill sempre teve o sonho de ser uma renomada chef de cozinha, mas, por circunstâncias do destino, acabou assumindo o antigo boteco de seu pai na Vila Madalena. Ela trabalha duro para manter o negócio e preservar a memória de sua família e luta bravamente contra o assédio de uma empresa que quer comprar e demolir o lugar.
Uma noite, um bar, e uma química explosiva...
Depois de cair em uma armadilha e conhecer a irritante cozinheira que o impede de fechar o maior negócio de sua empresa, Theo se vê dividido entre essa forte atração, conquistar o que seu pai não foi capaz e uma promessa feita ao avô. Por mais que resista, o grego não consegue ficar longe de Maria Eduarda, então começa uma implacável sedução para tê-la em sua cama.
Theo e Duda têm tudo para se odiarem. No entanto, mal sabem eles que a paixão não se conduz pelo óbvio!
A todas as Jujubas do meu potinho cheio de amor!

 

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— Parabéns, doutor Karamanlis! — Rômulo, meu assistente, soa exultante ao me cumprimentar. — Falta pouco agora para o senhor conseguir fechar essa conta! — Olha sua agenda. — O senhor tem uma reunião com o doutor Villazza daqui a...

Não dou muita atenção à falação dele, muito menos aos elogios animados. Sei bem que, embora tenha dado um passo gigante, ainda não conquistei minha vitória, não enquanto não tiver cumprido todas as metas que tracei para minha gestão à frente do negócio da família.

Olho para a parede esquerda do meu escritório, diretamente para o mapa emoldurado cujo círculo abrange a única propriedade que falta ser comprada para termos a total posse do quarteirão que mais tem se valorizado na área da Vila Madalena.

Foi exatamente por causa dessa bendita área que meu pai, o poderoso Nikolaous Karamanlis, perdeu seu reinado por aqui e foi substituído por seu renegado filho mais velho. Tenho consciência de que Rômulo tem razão quando me parabeniza pelo trabalho à frente da empresa. Millos, meu primo, e eu temos feito uma gestão muito produtiva, mas ainda não consigo estar satisfeito, não enquanto não conseguir comprar o último pedaço de terra daquele lugar.

Millos tem tentado me convencer a não me cobrar tanto sobre essa questão, afinal nem temos um cliente para instalar nessa área, perdido há muito tempo, quando meu pai prometeu o lugar e não conseguiu cumprir a promessa. O que ele não entende é que há muito tempo isso deixou de ser apenas um negócio, é uma questão de honra conseguir aquilo que meu progenitor não alcançou.

Balanço a cabeça ao pensar no meu pai e na nossa conturbada convivência. Não, não é hora de pensar em todas as merdas que aconteceram na nossa família!

Levanto-me e sirvo uma dose do meu puro malte favorito para relaxar um pouco, querendo já estar em casa.

Casa... Essa palavra me faz pensar em meu país, a Grécia e me desperta outra lembrança dolorosa: meu avô e a promessa que fiz a ele. Geórgios Karamanlis está prestes a completar 90 anos, mas, como diz o ditado por aí, vaso ruim não quebra facilmente. O homem que me criou, que me ensinou tudo sobre os negócios agora exige de mim uma família.

Uma família! Rio debochado a esse pensamento, a essa palavra tão sem sentido na minha vida e na dos meus irmãos. Família não significa nada mais do que pessoas que compartilham a mesma linhagem, pois os Karamanlis não são conhecidos por laços além dos de sangue. Somos todos fodidos de alguma forma, cada um com suas merdas para carregar, seus fantasmas e esqueletos no armário.

Somos ótimos trabalhando juntos, mas é só.

Não sei da vida particular de nenhum dos meus irmãos mais do que sei da de qualquer outro funcionário da empresa. Muito menos me importo com isso! Todos são adultos e, se querem continuar agindo como crianças chorosas e traumatizadas, o problema não é meu.

Rômulo volta à minha sala cheio de pastas com arquivos e me avisa que o carro já me aguarda para me levar até o Villazza SP, onde, além de conversar com Frank, vou aproveitar para almoçar no Vincenzo com ele como companhia, pois detesto comer sozinho.

Enquanto meu assistente se instala à sua mesa, passo na antessala e me despeço da Luíza, secretária da diretoria, deixando meu celular corporativo para trás, pois não quero ser incomodado na hora do meu almoço.

— Estou indo para a reunião com o CEO da rede Villazza; qualquer assunto, anote o recado. — Aponto para o celular. — Volto daqui umas duas ou três horas, pois vou almoçar por lá.

— Certo, doutor Karamanlis.

Despeço-me dela e sigo para a garagem subterrânea do prédio onde fica a nossa empresa, fundada no Brasil há décadas, instalada bem no coração da cidade de São Paulo, a Avenida Paulista. Tenho orgulho de ser o diretor executivo daqui; orgulho do nome e do respeito que conquistamos ao longo dos anos.

O setor imobiliário no Brasil passa por algumas crises, como acontece também no mundo inteiro, mas não para de avançar. Há sempre pessoas querendo moradia, empresas atrás de locais para seus negócios, então nós nunca ficamos sem fechar bons acordos rentáveis.

Meus pensamentos são levados para os Yannes, uma rede de resorts de aventura que tem unidades instaladas nos locais mais incríveis do mundo. Essa tem sido uma conta difícil, por causa de todos os entraves legais desse tipo de empreendimento, mas que, pelas últimas notícias que tive, isso irá ser solucionado em breve.

Sorrio largo ao pensar na Malu Ruschel, uma das minhas melhores gerentes e, com certeza, futura diretora da Karamanlis. A mulher é uma máquina de trabalhar, tanto que tive que a obrigar a tirar férias, mas a danada até descansando é atenta e descobriu o local que tanto procurávamos para o resort.

Malu, além de competente, é linda demais! Confesso que sempre tive uma enorme curiosidade de saber como é ter toda aquela tensão, toda aquela organização e meticulosidade debaixo do meu corpo, gemendo de prazer. Balanço a cabeça, afastando esse pensamento.

Mesmo me sentindo muito atraído por ela, nunca iria tentar qualquer coisa. Não por medo ou insegurança, pois acho que nos daríamos muito bem na cama, pois ela aparenta ser uma mulher segura de si, madura e que sabe separar o prazer do coração. Definitivamente, Malu não é daquelas que se apaixonam!

O que me impede de buscar um entendimento íntimo com ela é puramente ético. Eu não como funcionárias; por mais tesão e vontade, não faço isso. Ao contrário do meu irmão, Kostas, eu as enxergo como iguais e detestaria ter algum machista questionando a capacidade de uma delas apenas por estar trepando com o chefe. E, infelizmente, isso acontece muito nas empresas por aí. Quando um homem recebe uma promoção, é porque mereceu, mas, se é a mulher quem recebe, não foi por merecimento, mas porque ela tem uma boceta! É simplesmente ridículo e, por isso mesmo, prefiro não me envolver. Se há algum diretor ou gerente fazendo isso, é pelas minhas costas – porque todos sabem que não aprovo – e é discreto demais, pois isso não chegou aos meus ouvidos.

A regra geral na empresa é: evitem relacionamentos dentro do ambiente de trabalho, porque isso só causa problemas. Agora, se isso acontecer e as duas partes concordarem, acabarem se acertando, eu não as demito ou proíbo. Não sou babá de marmanjo! Há casais na Karamanlis, a maioria formada lá dentro mesmo. Eu seria hipócrita se fingisse que não há. Não me sinto à vontade para manter um caso com qualquer uma das minhas funcionárias, mas não sou arbitrário a ponto de, se acontecer com outros, demitir um ou mesmo os dois envolvidos.

Minha consciência diz que isso é só mais um dos traumas que carrego, mas a ignoro, mandando-a se foder.

Chego ao Villazza e sou recepcionado rapidamente pela assistente do Frank, Alice.

— Bom dia, doutor Karamanlis. Desculpa tê-lo feito vir para o hotel, mas é que estamos com uma pequena reforma na sala da diretoria no prédio administrativo, então viemos para cá.

— Sem problema, Alice! — Sorrio. — Eu vou aproveitar para almoçar com o carcamano no Vincenzo.

Ela faz careta.

— O senhor Villazza tem outra reunião na hora do almoço e vai sair daqui direto para ela.

Dou de ombros, resignado.

A parte administrativa do Villazza SP fica toda no térreo, mas Frank optou por usar uma das suítes preparadas como home offices, duplex com um escritório completo embaixo e quarto no mezanino.

— Espero que não esteja usando este lugar apenas como desculpa para comer fora do casamento... — falo assim que o vejo, concentrado em sua mesa. — Se Isabella te largar, juro que me caso com ela.

— Dovrai prima uccidermi, maledetto!1

— Não me tente, Frank Villazza! — Aperto sua mão. — Estou sendo pressionado.

O carcamano ri à minha custa.

— Seu pappoús2 ainda está querendo vê-lo casado? — Faço careta e assinto. — Você deveria levá-lo em consideração.

— É incrível como Isabella te domou! — Cruzo os braços e me sento em uma confortável poltrona. — Eu ainda me lembro de seus discursos anticasamento. — Rio. — Lembra como você se apresentou a mim naquele bar?

Frank sorri, embalado pelas lembranças de um tempo em que ainda ostentava o título de playboy. Nós dois aprontamos muitas coisas juntos, principalmente na época de Harvard, onde nos conhecemos. Promovemos algumas orgias, dividimos a mesma parceira, fumávamos baseados juntos e frequentávamos clubes de sadomasoquismo.

Nossa última aventura foi meses antes de ele conhecer sua esposa. Frank estava de férias na Itália, e, assim que eu soube que ele estava em Roma, chamei-o para me visitar em Atenas. Naquela semana em que ficou hospedado no meu apartamento, ele tentou de todas as formas me convencer a participar de um congresso na Suíça que ocorreria meses depois, mas para o qual era preciso garantir vaga. Nossos outros companheiros de Harvard já haviam feito reserva, mas eu declinei do convite, pois já estava me preparando para ir morar no Brasil e assumir a Karamanlis.

Viajamos de iate pelas ilhas naquela semana e, numa das mais belas do mar Jônico, fomos a uma boate muito louca, bebemos todas, e eu tive a trepada mais memorável da minha história.

Eu ainda me lembro dela! Era linda, corpo sarado, com uma barriga plana e de cintura fina de fora. Usava uma blusinha curta e minissaia de couro. Nos pés, botas altas, salto agulha, destacando suas pernas deliciosas. A mulher era um espetáculo para os olhos e me atraiu como ninguém.

Os cabelos, longos e pintados de rosa, balançavam ao ritmo da música. Ela estava acompanhada com mais cinco amigas, todas bem bonitas, sendo que duas delas desapareceram com Frank ao final da noite.

— Cazzo! — Frank xingava excitado ao vê-las dançando e nos oferecendo brindes com seus copos. — São muito novinhas!

— Foda-se! — eu disse sem conseguir tirar os olhos da mulher de cabelos rosa. Eu esperava apenas um movimento dela, apenas um sinal de que estava disposta, e, quando ele veio, olhei para meu amigo com um sorriso vitorioso. — A do cabelo rosa é minha!

Fomos até o grupo, dividimos suas bebidas – elas estavam bem abastecidas —, e, mesmo sem nenhuma apresentação, comecei a dançar com a beldade de cabelos coloridos. Frank ainda me dizia que eram garotas muito novas, ressaltando que deviam ter a idade de sua irmã caçula. Ele estava sempre tentando não trepar com moças jovens e inexperientes, mesmo que já tivesse sido surpreendido algumas vezes por elas, mas sempre acabava cedendo, como de fato ocorreu.

O dia estava amanhecendo quando duas se penduraram nele ao mesmo tempo, e o filho da puta parecia o rei do prazer. As duas se esfregavam nele, que as fazia tocarem uma à outra também, divertindo-se como um sultão. Sinceramente não senti nenhuma inveja; a mulher que estava comigo me deixava louco com sua dança, com nossos amassos e seus beijos etílicos. Eu queria sair dali, levá-la para algum hotel e passar o resto do dia a fodendo em desespero.

Ela dançava como se o mundo lhe pertencesse, movimentando seu corpo ao som das melodias, os músculos pulsando a cada batida, olhos brilhantes em minha direção e um sorriso safado no rosto. Tudo o que eu podia fazer além de tentar não enlouquecer de tesão era acompanhá-la, resvalar em sua pele acetinada quando colidíamos um no outro durante a dança e sentir nesse pequeno contato como se a mais viciante droga estivesse entrando em meu sistema.

— Preciso ir ao banheiro. — Parou, rindo, e apontou para um corredor do outro lado da pista. — Devo estar toda borrada e despenteada...

— Besteira! — respondi.

Seu inglês perfeito tinha um leve sotaque, mas, como as suas companheiras falavam em francês entre si, presumi que fosse por causa disso. A boate já estava vazia. Acompanhei-a até a porta do banheiro feminino e fiquei esperando do lado de fora.

Quer dizer, a intenção era essa!

Fui tomado de assalto quando ela apareceu e, sem dizer nada, simplesmente me arrastou para dentro do banheiro. O pequeno cômodo com várias repartições, espelhos e pias estava vazio. Excitado como um touro, não titubeei ao levá-la até um dos cubículos com vasos sanitários.

Esmaguei-a contra a parede de mármore, levantando-a no colo com suas pernas encaixadas nos meus quadris. Eu conseguia sentir a maciez de suas coxas, e ela, pelo jeito que gemia, sentia meu pau duro contra sua boceta ainda protegida pela calcinha. Estávamos bêbados demais para pensar, excitados demais para esperar, só queríamos provar o corpo um do outro e gozar juntos o prazer que tinha sido anunciado a noite toda.

Os gemidos dela me enlouqueciam. Eu sentia minha calça ficando úmida e, quando toquei sua calcinha, rosnei como um cão ao descobri-la completamente encharcada. Eu queria chupar aquela mulher, ouvi-la gritar de prazer, provar seu sabor até estar ainda mais bêbado e inebriado por ela.

Porém, ela tinha pressa!

Gargalhando como quem está numa grande aventura, abriu o botão da minha bermuda e puxou meu pau para fora da cueca, agarrando-o com força, fazendo-o doer, arrancando-me um gemido de antecipação. Ela se sentou no vaso e o engoliu com sua boca pintada de vermelho.

Fechei os olhos e deixei que ela fizesse o que quisesse, usasse sua língua, lábios e dentes. A sensação daquela boca quente e molhada sugando meu pau ainda mexe comigo, mesmo sendo apenas uma lembrança. E não é à toa, afinal quase gozei em sua garganta quando ela mordeu meu pau, encarando-me perversamente.

Puxei-a até a colocar de pé, virei-a de costas para mim, busquei uma camisinha no bolso de trás da bermuda embolada no chão e invadi sua boceta apertada, socando com força, levantando-a a cada vez que estocava, vendo seu rabo redondo e empinadinho se abrindo contra meus quadris.

Foi uma loucura sem tamanho, dentro de um banheiro público, numa boate praticamente vazia, ao nascer do dia, depois de passar a noite inteira dançando com ela.

— Goza para mim, safada! — eu dizia em seu ouvido, gemendo, mordiscando o lóbulo de sua orelha. — Goza sem se importar se estão ouvindo ou não! Foda-se!

Levei uma de minhas mãos para o meio de suas coxas, achei seu clitóris – o acesso facilitado por causa da depilação total que ela adotava – e o massageei até que ela se contorcesse.

— Grita! — ordenei, e ela obedeceu. — Porra, gostosa, encharca meu pau!

Não aguentei muito mais e tive que dar murros contra a parede de mármore do cubículo, tamanha a intensidade do prazer que senti.

Puxei meu pau de dentro dela, encarando-a completamente embevecido com sua beleza, com seu jeito safado, sorriso malicioso e olhos brilhantes. Joguei a camisinha no lixo e a puxei para fora daquele banheiro, pensando em levá-la para uma volta no iate.

— Ei! — uma das amigas, das que não tinham acompanhado Frank mais cedo, chamou-a. — Temos que resgatar a Allly e a Èlene, senão vamos perder o voo!

— Voo? — inquiri assustado.

— Temos que voltar para Paris — ela disse.

— Agora? — Ela assentiu. — Não!

A gostosa que acabara de gozar no meu pau e me dera um orgasmo fenomenal se aproximou, depositou um selinho na minha boca e se afastou.

— Foi uma noite deliciosa!

Bufei, resignado, não satisfeito, porque ainda queria comer mais aquela mulher, experimentar todo o seu corpo jovem, pele macia, músculos duros e tenros. No entanto... tinha valido a trepada no banheiro. Eu não ia sair correndo atrás dela implorando por mais.

— Boa viagem! — despedi-me.

Ela apenas piscou, sua maquiagem pesada, cílios longos e pintados da mesma cor que os cabelos. Desapareceu para sempre, sem nem mesmo me dizer como se chamava.

— Ei, stronzo, para de sonhar! — Frank ri, e eu volto a prestar atenção ao que ele fala. — A área que eu quero não é muito grande, apenas o suficiente para...

— Do que você está falando?

— Porca miseria, Theo! A casa de praia que quero construir para minha família, cazzo! O motivo pelo qual te chamei aqui! Está com a cabeça onde, porra?!

— A do meu pau? Enfiada naquela garota dos cabelos rosa naquela boate. Mal lembro do rosto dela, mas as sensações...

— Coglione! Está precisando de uma mulher pra foder, porra?!

— Não! — Lembro-me da que deixei essa manhã na cama. — Foi só uma lembrança. — Aprumo-me. — Vamos falar de negócios!


São Paulo, meses depois.


— A mulher anda irredutível! — Millos conversa comigo enquanto tomamos café. — Há anos tenho ido pessoalmente tentar negociar a compra, mas ela se recusa e tem conseguido manter suas contas em dia.

Desvio meus olhos do computador.

— Ela já sabe que temos a promissória?

— Não, simplesmente me expulsou de lá a pontapés quando fui tentar negociar! — Ri. — Você sabe que eu não curto uma mandona, mas ela me deixou levemente excitado.

— Porra, Millos, não fode o assunto! — Meu primo ri e deixa sua xícara vazia sobre o pires. — Já temos a dívida do pai dela; o que estamos esperando para executá-la? Isso a deixará sem alternativa a não ser vender o maldito bar para quitá-la!

— Theo, é uma promissória assinada há quase dez anos! Vamos ter que cobrar e...

— É para isso que aquele desgraçado do Kostas está aqui! — grito sem paciência. — Eu não aguento mais esses irlandeses no meu caminho!

— Ela é brasileira, Theo, o pai é que era...

— Foda-se! — Bato na mesa. — Tenho um diretor que não queria ter porque a porra da Malu Ruschel desertou para ficar embrenhada no mato com um peão e, ainda assim, não consigo fechar essa maldita conta!

— Ele conseguiu comprar a dívida do agiota e...

— Você está se escutando?! — Passo as mãos pelos cabelos. — Um diretor nosso negociou – sabe-se lá como – com um agiota! Esse mesmo cara está por aí, lidando com nosso dinheiro, comprando e vendendo imóveis em nosso nome! Não confio uma vírgula nele!

Millos se levanta e desenrola as mangas da camisa para esconder suas tatuagens. Eu não entendo por que ele cisma em manter essa pose conservadora aqui dentro da empresa, mas, como bem sei, cada um dos Karamanlis é fodido de algum jeito. Apesar da barba cheia e grande e do brinco que nunca tira, ele anda pelos corredores vestido de terno e gravata, sapatos de couro e uma pose de empresário burguês que só convence quem não o conhece.

— Eu preciso daquele quarteirão, Millos!

— Nós nem temos um cliente para ele...

— Foda-se! Quero a merda do quarteirão! — Ele concorda. — Vire-se para conseguir!

— Vou conversar com Kostas sobre a execução da promissória.

— Faça isso! Meu irmão pode ser um babaca filho da puta, mas é bom no que faz.

— Engraçado é que ele diz o mesmo de você!

O taciturno, mas incrivelmente inteligente grego sai da sala sacudindo a cabeça, sem entender como é que conseguimos trabalhar juntos sem nos matar. A verdade é que trabalhamos muito bem! Temos todos os mesmos propósitos, deixar nosso nome marcado na história desta empresa.

Nenhum Karamanlis da minha geração saiu ileso à maldição familiar. Todos temos fantasmas e esqueletos escondidos em nossos armários, traumas da infância, da adolescência ou apenas somos fodidos de nascimento. A amizade que tenho com Millos é algo que fugiu à regra, pois nutrimos sentimentos verdadeiros entre nós que vão além dos laços sanguíneos que nos unem.

O restante... bem, eu não conheço o restante o suficiente para julgar ou sentir qualquer coisa por eles. Nós nos suportamos por causa da empresa, do dever para com nosso nome e, claro, do respeito ao pappoús.

Kostas, alguns anos mais novo que eu, é um advogado competente, também um babaca arrogante que fala com qualquer pessoa se achando o rei de todo conhecimento e inteligência. Por vezes tenho que lidar com as merdas dele aqui dentro da empresa, principalmente quando sua falta de tato extrapola os limites de sua diretoria e acaba afetando outras.

Alex, um dos caçulas, é engenheiro, criativo, tem bons relacionamentos com todos na empresa, menos com a própria família. É o único que não faz nenhuma questão de agradar qualquer que seja dos Karamanlis, chegando por vezes até a renegar o nome em alguns trabalhos, quando assina apenas o sobrenome de sua mãe.

Kyra, a única menina e a mais nova de todos os filhos de Nikkós, é a única que não tem qualquer relação com os negócios da família. Montou sua empresa, não usou nossa grana, não tem qualquer contato – a não ser quando contratamos seus serviços em eventos – conosco. Suspiro ao pensar nela, principalmente porque ela não dirige a palavra a mim há mais de duas décadas.

O ponto de equilíbrio, o conciliador, a nossa Suíça, para explicar melhor, é o Millos. Meu primo tem relacionamento com todos os irmãos, escuta e aconselha a todos e, ainda assim, consegue permanecer neutro dentro da confusão que é essa família nada ortodoxa. Todos o conhecem por sua serenidade, sensatez e capacidade de pensar com racionalidade mesmo em meio ao caos. No entanto, eu sei a verdade! Por baixo de toda a placidez aparente, Millos esconde um lado seu que chega a me arrepiar os pelos.

A verdade é que nem mesmo o Karamanlis mais sensato é são!

Ando pelo escritório, noto cada detalhe da decoração, trazendo à mente o significado e o momento em que cada peça aqui disposta foi comprada. Algumas delas são remanescentes de um relacionamento que tive há alguns anos com uma decoradora de interiores; entre uma foda e outra, avaliávamos os objetos juntos e os comprávamos. Poucas aqui vieram de casa, na Grécia: uma deusa Atena esculpida em Carrara, um relicário da minha avó e um tinteiro do vovô.

Um fato sobre mim que me deixa orgulhoso é que sempre gostei de arte. Mesmo não tendo nenhum tipo de aptidão para pintura e escultura, gosto de apreciá-las, de viver cercado pelo belo, diferente e único. É claro que valorizo muito os clássicos, as obras e artistas já consolidados, mas meu faro empresarial também sabe reconhecer um iniciante com potencial, por isso tenho muitos investimentos na área.

Para estar por dentro de tudo o que acontece, preciso viver constantemente ligado a esse mundo, e isso, no momento, tem gerado alguns problemas. Fora compromissos e reuniões de trabalho, meu lazer é praticamente frequentar exposições, vernissages, festivais e até concursos. Por conta disso, só tenho me envolvido com mulheres do meio – o que para mim é maravilhoso, afinal, além do sexo, tenho o plus da conversa –, e a maioria delas não se encaixa no perfil da futura senhora Theodoros Karamanlis.

Pode parecer machismo, talvez seja, mas vocês hão de convir que, por mim, nunca haveria uma senhora Theo Karamanlis. Contudo, não posso deixar de atender a um pedido do meu avô. Imagina se o velho Geórgios, ateniense tradicional, aceitaria ver o neto mais velho se casando com uma artista alternativa, cheirando a incenso e tintas?

Esse é um dos motivos pelo qual comecei a frequentar as galerias mais chiques e tradicionais, com o pessoal da alta-roda paulistana e deixei de lado esse meu lado indie de aquarelas e carvão. Não entendam mal, não desgosto de estar nesse meio mais rebuscado, claro que não, arte é arte, e eu a aprecio de qualquer forma, mas é fato que as mulheres são bem diferentes. As descoladas são sempre mais divertidas.

Já que tenho que me casar, não quero um mero compromisso de conveniência. Por isso estou procurando, conhecendo, abrindo-me a encontrar uma pessoa com a qual eu me veja acordando de manhã e me deitando ao lado à noite. Se a encontrei? Não! Mais uma vez peço a vocês que não me entendam de forma errada. Eu não procuro por amor, essa porra já provou a mim que só serve para deixar o homem idiota e burro, então nem está sendo considerada. O que eu preciso é de uma parceira, uma mulher que eu consiga ver ao meu lado como amiga, além de ser a mãe dos meus filhos. Esse é o problema! Eu não as vejo assim, pelo menos nenhuma que tenha conhecido até agora.

Confiro as horas no Omega que uso no pulso esquerdo e balanço a cabeça. O tempo não para! Vovô não está ficando mais novo; eu não estou ficando mais jovem, e as chances de eu confiar o suficiente em uma mulher a ponto de pedi-la em casamento e gerar uma criança são quase nulas!

— Doutor Karamanlis? — Rômulo me chama, interrompendo meus pensamentos preocupados. — A reunião sobre o terreno para a rede de shoppings começa em 10 minutos...

— Obrigado, estarei lá. — Caminho até minha mesa para pegar umas anotações. — A equipe da senhorita Reinol já está posicionada?

Meu assistente apenas assente, ainda parado à porta, um tanto tenso, mais do que o normal.

— Algum problema? — inquiro diretamente, esperando a reposta positiva, pois é óbvia.

— Eu não me sinto à vontade para contar isso, mas...

— Pare de dar voltas e diga de uma vez! — A impaciência toma conta de mim, e de novo questiono minha sanidade ao manter o Rômulo como meu assistente. Ele é competente, sim! Organizado? Muito! Entretanto, tem umas manias que me tiram do sério, e, infelizmente, a falta de objetividade é uma delas. — Rômulo!

Ele pula assustado com o tom da minha voz e fecha os olhos, torcendo as mãos. Dá-me paciência!

— Aconteceu uma pequena desavença há pouco lá na sala de reuniões e... — bufo, arrependido, pois odeio fofoca — a Kika abandonou a apresentação e disse que o Leonardo é quem vai falar com o cliente.

Arregalo os olhos, surpreso.

Wilka Reinol, a Wilka a quem ele se referiu, é nossa gerente de hunter, ou seja, é a responsável pela equipe que pesquisa os imóveis de acordo com a necessidade dos clientes. Assim que a Malu Ruschel nos deixou para bancar Maria Chiquinha no meio do mato, foi natural que Kika assumisse a gerência, pois se mostrou pronta para a responsabilidade durante o período de férias da antiga gerente. Ela é um pouco mais solta que a Malu – que era um tanto obcecada pelo trabalho –, mas tão responsável e obstinada quanto a outra.

Kika, sob meu ponto de vista, tem tudo o que a Malu tinha e mais a humanidade necessária para o serviço. Ela sabe liderar a equipe, é carismática, todos os funcionários do prédio a conhecem, gostam dela e fazem de tudo para ajudá-la. Alex, meu irmão, brinca que, se a presidência da Karamanlis fosse por voto popular, ela ganharia fácil, e é bem provável.

Por isso mesmo, saber que alguém conseguiu irritá-la a ponto de fazer com que ela abandone uma apresentação na qual se empenhou... Respiro fundo, já sabendo o que aconteceu.

— Kostas?

Rômulo parece que vai desmaiar.

— É... Ele estava conversando com ela antes de... — Faz um gesto nervoso com as mãos. — Eu não sei o que houve, mas o pessoal ficou todo tenso e pediu para eu vir buscá-lo.

Não! De novo, não!

Há alguns meses, eu tive que apartar uma briga feia dos dois, quando Kostas decidiu interferir no trabalho da Malu no afã de fechar a conta do Grupo Yannes. A ex-gerente ainda estava no Pantanal, e Kika era quem gerenciava em seu lugar, e a pequena morena colocou o dedo bem no meio da cara do meu irmão, de mais de 1,90m, sem titubear nenhuma só vez.

Secretamente eu torci por ela, querendo vê-la dando uns bons tapas naquela cara anglo-grega e deixando o nariz dele, já quebrado sabe Deus lá como, ainda mais torto. Nunca tive tanta vontade de incitar a guerra, mas me lembrei do motivo para o qual tinha sido chamado e tentei conciliar os dois.

Kika, ainda bufando, mandou-nos à merda e saiu da sala batendo a porta. Kostas ria, mas eu pude perceber que havia um brilho de admiração nos olhos dele. Nós não estávamos – e nem estamos – acostumados a defender alguém com unhas e dentes como ela fez com a Malu. Foi realmente admirável e providencial, porque logo depois tudo se revolveu, e o próprio Kostas admitiu que as duas estavam certas ao não apresentarem a fazenda pantaneira ao cliente.

Depois desse episódio, no entanto, os dois passaram a se evitar, e a paz voltou a reinar na Karamanlis, o que me faz voltar a pensar no que aconteceu dessa vez para que a trégua tenha tido fim.

— Você vai atrás da Kika. — Rômulo fica branco. — Vou ter uma palavrinha com o meu irmão.

— Mas ela... — o assistente tenta argumentar, tremendo de medo.

— Coragem, Rômulo! — Passo por ele, segurando o riso por vê-lo apavorado por ter de falar com a Kika. — Ela não vai te arrancar pedaços... — Sorrio para ele. — Pelo menos, não muito grandes!

Escuto-o gemer e não resisto mais. Gargalho.


Andar pela Karamanlis sempre foi algo complicado. Não por causa das dimensões do prédio, que também não é pequeno, mas porque sempre cruzo com um ou mais gerentes ou diretores, e eles sempre têm algo a comentar comigo. Sempre!

A empresa ocupa do décimo ao vigésimo andar do enorme prédio comercial na Paulista. Os andares inferiores estão divididos para duas subsidiárias: a K-Eng, empresa que concentra todos os serviços de engenharia – em seus vários nichos – e que é dirigida pelo meu irmão caçula; e a K-Decor, empresa de arquitetura e design de interiores, também sob o comando do Alex, mas com acompanhamento do Millos.

Somos uma holding, atendemos o Brasil inteiro não só na compra e venda de imóveis, como também no gerenciamento, na construção desde o projeto, planejamento, decoração e design. Nossa cartela de clientes é formada, em sua esmagadora maioria, por empresas, mas às vezes temos alguns prédios residenciais sendo atendidos de alguma forma pela Karamanlis.

Nossa estrutura é completa, temos, para exemplificar, um andar inteiro dedicado ao pessoal de TI, que coordena todas as nossas redes, tão necessário para o pessoal que trabalha com georreferenciamento de imagens, satélite e sobreposição de manchas para marcarmos as propriedades. Temos utilizado muito essas ferramentas para regularização de fazendas, áreas enormes para as quais, se o serviço fosse feito em campo, levaríamos o triplo do tempo e gastaríamos o dobro de funcionários.

A divisão jurídica, comandada pelo Kostas, ocupa quase um andar inteiro, deixando apenas três salas para a gerência de hunter, que eu não sei por que ainda mantenho lá, mas que nunca me incomodou tanto quanto agora.

Definitivamente, os hunters precisam sair do andar antes que a Kika e o Kostas se matem!

Abro a porta que dá acesso ao enorme salão onde ficam os advogados, cada um trabalhando atentamente à sua mesa ao estilo baia, e sigo para a sala toda de vidro ao fundo.

Kostas me vê antes mesmo que eu bata à porta e faz sinal para que eu entre.

— Seu assistente já fofocou com você. — Ele ri, deixando seu charuto de lado.

Olho carrancudo para o fumo, algo que ele sabe que eu desaprovo dentro do local de trabalho, mas que ele sempre alega que é só para relaxar, coisa de seu sangue inglês. Porco arrogante!

— Rômulo já me informou da situação que ocorreu — corrijo-o. Sim, eu acho meu assistente fofoqueiro, mas só quem pode falar essa porra sou eu, por isso, defendo-o. — Eu pensei que já houvesse se estabelecido um tipo de trégua entre vocês aqui na Faixa de Gaza.

Kostas dá uma risada escrota quando eu falo do apelido do andar.

— Aquela mulher é muito petulante! — Dá de ombros. — Se eu fosse o CEO dessa “bagaça”, já teria mostrado a ela a porta da rua.

— Ainda bem que você não é! — corto-o. — Eu não demito funcionários porque eles falam umas verdades a um bundão como você. Kika é extremamente competente, e eu não tenho motivo algum para me desfazer dela.

— O bundão aqui é você! Ela enche meu saco, feministazinha do sovaco cabeludo, e ainda tem a coragem de querer ditar regras!

Balanço a cabeça, perdendo a paciência.

— Você enche meu saco, e, se eu pudesse, te colocaria para fora daqui agora mesmo...

— Só que você não pode! — Ri, arrogante, pegando seu charuto de volta. — Sou dono dessa merda tanto quanto você! Então me engula!

— Você está certo, e que isso fique bem claro, Kostas. — Caminho para perto dele. — Só aturo suas merdas porque não posso te pôr para fora, não porque eu goste de trabalhar com você. Não interessa se é um puta advogado, foda-se! Eu demito sem nenhuma dor na consciência funcionários que tenham metade da sua arrogância. — Soco a mesa, e ele fica sério, deixando de lado o sorriso debochado. — Agora, não me tente! Aposto com você que todos já estão de saco cheio de suas piadinhas preconceituosas, de seu jeito de se achar melhor que todos e, principalmente, de todas as confusões que você arruma aqui dentro! Duvido que os integrantes do conselho estejam dispostos a pôr o rabo na reta para te defender.

Vejo que atingi o ponto fraco dele, pois o filho da puta sabe que não tem apoio de ninguém aqui dentro. Nem mesmo Millos – o único a conseguir conviver com essa criatura – o defenderia diante do conselho.

Kostas por fim apaga o charuto, caminha pela sala e abre a porta de vidro.

— Sai.

Rio e constato que tudo o que falei, apesar de feri-lo, não o mudará jamais.

— Para de se meter no trabalho dos hunters — aviso-lhe antes de sair. — Eu não vou segurar essa porra e nem ficar igual a uma maldita galinha pisando em ovos com meus funcionários por sua causa! Tá frustrado e entediado? Vá trepar ou qualquer outra coisa que o deixe menos imbecil do que é.

— Sim, chefe — debocha.

— É bom lembrar disso, Konstantinos Karamanlis. Eu sou o seu chefe!

Saio daqui notando as expressões assustadas dos advogados, sem me importar o mínimo, afinal todos sabem que os irmãos Karamanlis não se dão. Ando sem olhar para trás, confiante, ainda que tenha consciência de que, se pudesse, meu irmão enfiaria uma faca em minhas costas sem dó nem piedade.

Tenho absoluta certeza de que só estou no comando porque passo certa segurança ao conselho administrativo da empresa. Se não fosse assim, aposto que nenhum Karamanlis estaria na diretoria executiva. Meu pai foi um desastre, era bom gestor, mas esteve envolvido em um escândalo após outro e, por fim, começou a fazer péssimas escolhas nos negócios, o que custou sua cabeça.

Kostas tem a agressividade de Nikkós. É o filho que mais se assemelha a ele, não só na aparência, mas também no gênio intratável. Detesto me comparar ao meu pai, mas não posso negar que a inconstância dele na vida pessoal, embora de um jeito completamente diferente, faça parte de quem sou. E, já em Alex, vejo uma impulsividade enorme, também herdada do maldito que nos gerou.

Quanto a Kyra... Bem, nunca pude formar opinião sobre ela. Tudo o que sei de minha irmã veio através de informações trazidas pelos outros. Não temos nenhum tipo de contato. Ainda tenho a imagem da menininha alegre que se pendurava nos meus ombros, mas isso foi há tanto tempo que não consigo mais ligar a imagem da mulher à da criança.

Sinto culpa por ter criado essa barreira entre nós. Reconheço meu erro, porém, já não somos mais imaturos, poderíamos ter lidado com isso se Kyra quisesse. Ela só não consegue me perdoar.

Encontro-me com Rômulo à espera do elevador. Ele se encolhe um pouco quando me vê, e eu dou um tapinha em seu ombro.

— Acalmou a fera? — brinco.

— Ela já retornou à sala de reuniões. — Sorrio, orgulhoso dele. — Mas xingou nossa espécie de todas as formas possíveis. — Rio, imaginando a cena. — Alguns que eu nem sabia que existia! Sabia que ela chama seu irmão de Bostas Karamanlis?

Gargalho, fazendo-o pular de susto.

— Ótimo apelido! — Ainda estou rindo ao entrar no elevador. — Por essas e outras é que ela tem meu total respeito! — Mal acabamos de entrar, vemos Kostas vindo em nossa direção. Com um sorriso malvado no rosto, aperto o botão para fechar portas, deixando-o para trás.

— Ele ia subir... — Rômulo argumenta.

— Não queremos o elevador fedendo, não é? — zombo, rindo de novo. — Bostas! Por que nunca pensei nisso antes?!

Meu assistente me olha como se eu tivesse enlouquecido, com suas grossas sobrancelhas escuras quase encostando em seus cabelos e a testa lotada de gomos de expressão. Minha gargalhada não cessa, imaginando a cara de Millos quando eu contar como o “todo poderoso” Kostas Karamanlis é chamado pelos funcionários da empresa.

 

 

Entro na sala de reuniões e dou de cara com a Kika, com seu jeito simpático e elétrico, distribuindo instruções, rindo com os colegas e averiguando sua apresentação. Nosso cliente ainda não chegou, mas não deve tardar muito; é senso comum que nós não gostamos de atrasos.

Cumprimento a equipe rapidamente com um leve inclinar de cabeça, desabotoo o último botão do meu paletó e me sento no lugar que sempre ocupo quando estamos nesta sala. O material em cima da mesa, com todas as informações sobre o imóvel escolhido pelos hunters chama minha atenção e, mesmo sabendo que isso os deixa apreensivos – admito que sinto certa perversidade de minha parte ao gostar de deixá-los assim –, pego a pasta e começo a folhear página por página lentamente.

Confiro as horas no meu relógio e encaro a Kika com as sobrancelhas franzidas.

— Senhorita Reinol? — chamo-a e bato de leve o dedo indicador sobre o relógio. — Alguma notícia?

Imediatamente ela chama uma mulher de sua equipe, que sai apressada da sala com um telefone celular na mão. Faço um gesto para que Kika se aproxime, e ela vem andando, sem nem mesmo demonstrar um pingo de apreensão, em minha direção. Admirável!

— Pois não, doutor?

— Você confirmou com o cliente a reunião hoje?

— Certamente! — Ela levanta o queixo. — Isso é a primeira coisa que fazemos, antes mesmo de disparar o memorando para a Diretoria Executiva informando o horário. Meu departamento é extremamente competente, doutor.

— Eles não costumam atrasar — observo. — Rômulo! — chamo meu assistente. — Traga aqueles relatórios que eu tinha separado para assinar enquanto espero. Odeio perder tempo!

Ele sai apressado, e eu escuto o bufo impaciente de Kika Reinol.

— Eu conversei com o Kostas — disparo ao voltar a ler a última página do material, sem olhá-la. — Sinceramente estou ficando cansado dessas rusgas entre vocês. A partir de amanhã, vou solicitar ao Millos que seu setor seja realojado.

— O quê?! — sua voz, um pouco mais alta que o normal, ecoa pela sala, causando um silêncio sepulcral e atraindo minha atenção. Ergo a sobrancelha direita para ela e cruzo os braços sobre o peito, deixando a pasta com os arquivos da apresentação sobre a mesa.

— Não faz mais sentido manter vocês dois tão próximos. — Abaixo meu tom de voz: — Não vou ficar bancando a mamãezinha e separando a briga de vocês como dois fedelhos. Se não sabem se comportar como adultos e profissionais, então não podem conviver no mesmo espaço.

— Isso é muito injusto, doutor! — sua voz, embora baixa, soa completamente irritada. — Eu nunca me meto no trabalho do doutor Konstantinos, embora a recíproca não seja verdadeira!

— Eu sei, Kika — chamo-a pelo apelido para demonstrar que não a culpo. — No entanto, a situação está saindo do controle, e eu não estou disposto a mandar você embora e, embora queira fazer isso com ele, não tenho esse poder.

Kika respira fundo e assente.

— Desculpe-me por estar causando tantos transtornos, doutor Theodoros. — Ela sorri. — Eu não sou uma pessoa difícil de lidar, mas ele...

— Eu sei, não se preocupe com isso.

— Eu espero que... — ela se interrompe de repente, e eu olho para a direção em que está olhando. Vejo a funcionária que saiu há pouco da sala fazendo muitos gestos para sua chefe, mesmo tentando disfarçar quando percebe que a estou observando também.

— Venha até aqui! — chamo-a.

A moça, provavelmente uma estagiária, pois é muito nova, fica vermelha e começa a torcer as mãos ao se aproximar.

— O que houve, Laura? — Kika pergunta.

— Liguei para nosso cliente e... bem... — A menina intercala olhares entre mim e Kika. — Ele disse que ligaram mais cedo cancelando a reunião.

— O quê?! — mais uma vez a voz da gerente ecoa pela sala, e eu fecho os olhos, prevendo mais confusão, pois é óbvio que não foi ela quem mandou desmarcar.

Kostas, seu filho da puta!


— O dia foi uma sucessão de merdas! — xingo ao entrar no carro, notando a expressão debochada de Dionísio.

Afrouxo a gravata e abro o botão torturador da gola da camisa, liberando assim meu pescoço do enforcamento diário. Eu preciso de um uísque! Abro o compartimento no meio do banco de couro da parte de trás do carro, onde estou, pego a garrafa da única marca de uísque que bebo, The Macallan, sirvo uma pequena dose no copo de cristal e respiro fundo antes de degustar a bebida escocesa.

Pela garganta, sinto a leve queimação. Notas de café e mel se misturam e logo se vão, deixando ao final um amargo sabor amadeirado, típico do single malt envelhecido em barris de xerez. A dor de cabeça que ameaça despontar some, e meu pescoço vai amolecendo, a cabeça pousa no encosto do banco e, finalmente, depois de um dia de cão, eu me sinto relaxar.

Ah, o milagre feito por uma dose de uísque de uma garrafa de pouco mais de dois mil reais!

Levanto um brinde imaginário ao meu dia fodido, querendo que ele se vá e que eu consiga livrar todas as tensões e preocupações de minha mente para que possa ter uma noite decente, ao menos.

O riso de Dionísio é de quem entendeu meu ritual, e eu esboço um leve repuxar de lábios, ainda muito rabugento para sorrir de verdade, e tomo mais um gole imaginando chegar a casa, tomar um banho e me submeter às competentes e pesadas mãos de Lavínia antes de trepar a noite inteira de novo.

— O doutor vai direto para seu apartamento?

Abro os olhos para olhar Dionísio pelo retrovisor e confirmo.

— Se o trânsito permitir, espero estar lá em breve. — Tiro o paletó e pego o celular, abrindo minha playlist favorita. — Dio, ligue o aparelho de som.

Em seguida ouço o jazz da incomparável Ella Fitzgerald e solto um suspiro de prazer, o primeiro neste dia desgraçado. Tento não pensar no Kostas, muito menos na enorme vontade de dar umas porradas naquela cara debochada, para não perder o pouco da paz que ouvir Ella e Armstrong cantando Isn’t this a lovely day? me traz.

Ah, como eu amo jazz! Não é à toa que mantenho um enorme piano de cauda no meio da sala principal do meu apartamento, além de ter centenas de discos – sim, são long players – cuidadosamente guardados na sala de som que fiz, com o toca-discos reinando absoluto. Chamem-me de retrô, sinceramente estou me fodendo para o que pensem disso. Prefiro, sim, o som da agulha sobre o vinil, o som encorpado e os ruídos que só um LP podem me proporcionar.

Não sou avesso à tecnologia, não quando sou cercado dela, mas há coisas de que não abro mão, como uma bela comida caseira com ingredientes frescos como comia em Atenas; meus discos, como vocês já souberam; e dirigir meu Aston Martin de câmbio manual.

Ah – sorrio olhando meu copo de scotch –, prefiro single malt a blend em matéria de uísque. Bem conservador para a maioria dos bebedores de hoje.

O trânsito agarra em alguns pontos do caminho da Paulista até o Vila Nova Conceição, onde moro, porém, Dio consegue me deixar na garagem do meu prédio exatamente 30 minutos depois de termos saído da Karamanlis.

Saio do carro levando comigo o paletó e a insuportável – e conservadora – pasta de couro com alguns documentos. Espero o elevador para me levar até o 36.º andar, para a cobertura duplex que comprei há três anos. Como detesto perder tempo, enquanto espero, mando mensagem para a Lavínia, uma deliciosa morena com quem tenho saído há algumas semanas, marcando um encontro com ela aqui em casa.

A resposta chega quando estou dentro do elevador com uma vizinha, e tenho de refrear a língua para não assustar a pobre senhora que me faz companhia neste pequeno cubículo. A safada me mandou uma foto – sem cabeça, como sempre – da sua indumentária de hoje à noite, um conjunto de lingerie sexy e quente que já me deixa completamente duro e ansioso.

Remexo-me desconfortável, porque conheço bem as calças desses ternos modernos, mais apertadas e de tecido mais fino, e escondo a evidência da minha excitação – ou seja, meu pau duro – colocando a pasta e o casaco na frente.

A senhora – cujo nome não sei, pois não conheço a maioria dos meus vizinhos, apenas os cumprimento quando nos esbarramos pelos corredores –, desce no 19.º andar, e eu sigo – livre e excitado – para a cobertura, embora tente me acalmar para não assustar a Vanda, governanta e cão de guarda do meu apê.

— Bem-vindo, doutor — ela me saúda assim que as portas do elevador se abrem no living, e se apressa a pegar minha pasta, deixando-me, como sempre, constrangido por ela ficar carregando peso enquanto eu sigo confortável como um inútil.

— Eu levo a pasta, Vanda, obrigado. — Evito que ela a pegue, mas ainda assim recebo um olhar feroz. — Tudo o que preciso é tomar um banho e daquele seu jantar.

Ela dá risadinhas.

— Já está quase pronto — diz orgulhosa da sua eficiência. — A Sandra ligou confirmando o horário de amanhã, e seu primo virá também.

Assinto, deixando-a para trás enquanto sigo para o quarto. Sandra é minha personal trainer, e nós treinamos juntos três vezes na semana e, às vezes, Millos, que também é seu aluno, adianta seu horário para vir malhar conosco.

Eu gosto de exercícios, sempre gostei. Sou magro naturalmente, e os treinos me ajudam a fortalecer os músculos e a manter um peso proporcional ao meu tamanho. Millos já faz a linha bombado, e isso combina com ele e sua personalidade.

Tenho apenas uma tatuagem, que fiz bêbado demais para lembrar, enquanto meu primo parece um gibi, todo desenhado. Gosto de malhar com ele porque sou competitivo até a raiz do cabelo, e ele não fica atrás, então ficamos medindo forças e levando um ao outro ao limite da resistência.

Minha suíte é enorme e confortável, toda em tons de cinza e azul-marinho, com paredes off-white, concebidas com carinho por uma de minhas parceiras de cama. Tenho sorte de ter conhecido mulheres que, além de ótimas de cama, eram profissionais competentes.

Caminho até o closet e deixo meu terno no local reservado para que Vanda o leve até a lavanderia, uma espécie de bag. Abro a gaveta de gravatas, enrolo a que usei hoje e a coloco no lugar, em seguida fazendo o mesmo com as abotoaduras. Verifico se meus sapatos estão precisando de limpeza e, como estão limpos, pois mal saí da empresa hoje, coloco-os na sapateira e jogo as meias e a cueca no cesto de roupa suja.

Eu sou organizado em casa também. Gosto de ser assim.

Programo o chuveiro, abrindo as duas duchas em direções diferentes, em jatos fortes e frios – está um calor do cão! – e gemo de prazer ao senti-los na pele.

Dia fodido!

Fico um tempo debaixo da ducha principal, avaliando cada momento da confusão que foi o final da tarde no escritório. Primeiro, a tensão entre a Kika e o Kostas, minha discussão com ele e, por último, o pedido de demissão dela.

Merda!

Pelo que posso julgar da personalidade dela, não será fácil convencê-la a voltar, e eu não posso perder outra gerente desse nível na empresa, não mesmo! Penso na discussão com o Kostas, nas palavras duras e verdadeiras que trocamos um com o outro e tento entender por que somos desse jeito. Que maldição é essa que nos mantém separados quando temos tudo para sermos unidos?

Balanço a cabeça, impedindo que me perca nestes pensamentos que nunca levam a lugar algum. Não há o que fazer para consertar anos de muros levantados em torno de cada um de nós. É impossível transpor as barreiras que o tempo e nossa situação ergueram. Não há nada a fazer!

Agora, preciso me concentrar nos negócios e no maldito pedido do pappoús! Tenho que trazer Kika de volta, comprar a porra daquele boteco na Vila Madalena e achar uma mulher que esteja à altura de ser a mãe do bisneto de Geórgios Karamanlis.

Escuto um barulho na porta do banheiro e abro um sorriso ao ver Lavínia parada na entrada. Ela se encosta ao batente, olha meu corpo inteiro com fome brilhando nos olhos e morde o lábio inferior. É o que basta para meu corpo, mesmo sob os jatos frios, reagir.

— Vem aqui! — chamo-a, mas ela nega.

— Finja que não estou aqui... — sussurra. — Deixe-me ver como você toca uma pensando em mim.

Sinceramente tenho vontade de revirar os olhos para ela, mas, para não quebrar o clima, faço o que me pede. Seguro meu pau bem forte e, lentamente, vou deslizando a mão para baixo e para cima, sem nunca tirar os olhos dos dela. O tesão vai aumentando, e eu fecho as pálpebras, evocando as imagens que me fazem gozar rapidamente. Som abafado, cheiro de fumaça, um perfume floral, cabelos cor-de-rosa e uma boceta quente e apertada... Merda!

Abro os olhos e encaro a mulher que me espera, apenas de calcinha e sutiã, roçando contra o batente da porta e gemendo.

— Vem aqui agora, Lavínia! — Abro a porta do boxe.

Ela arregala os olhos por causa do meu tom de voz impaciente e sorri, safada. Mal chega perto de mim, e já a viro contra a parede, seguro firme sua cintura, levantando-a e esfrego meu pau em sua calcinha molhada. Preciso foder essa mulher com urgência! Estico uma das mãos até o nicho onde uma caixa de acrílico guarda alguns envelopes de camisinha – eu adoro foder debaixo d’água, então sou prevenido – e rapidamente encapo meu pau e o afundo dentro dela.

As malditas sensações daquela noite ainda estão em minha mente, rondando-me como fantasmas. Enrolo os cabelos cacheados e negros no meu punho, mas, no ápice do prazer, vejo-os levemente rosados. Porra! Fodo-a com ainda mais força, ouvindo seus gemidos altos e descontrolados, pois sei o quanto ela gosta de trepar sem limites.

Quando a escuto falar que vai gozar, em desespero, aumento as estocadas para me deixar ir junto com ela e aliviar em parte essa fome que nunca cessa.

Foda-se, desconhecida!

 

 

Alguma coisa pinica meu nariz, e passo a mão, mudando de posição sobre os travesseiros. Estou em Atenas, com a família de minha mãe, vendendo peixe e tentando ser homem o suficiente para manter minha promessa. Não importa que eu não esteja preparado, não importa se tive de desistir de tudo, o amor é mais forte que tudo e por isso vou conseguir... vou...

Espirro.

Sento-me na cama, piscando os olhos, perdido no tempo e no espaço. Estava apenas sonhado de novo! Malditos pesadelos que, vira e mexe, estão retornando. Bufo. A vantagem desse é que não chegou ao apogeu do drama, porque alguma coisa... Uma risada abafada me faz olhar para o lado e encontrar um homem de quase 2m de altura, forte como um armário, cheio de tatuagens, com uma maldita pluma na mão.

— Porra, Millos!

O desgraçado cai na gargalhada, e eu me levanto da cama sem nenhum constrangimento diante da minha nudez e sigo para o banheiro.

— Não programou o despertador? — ele pergunta ainda no quarto.

— Programei. — Termino de mijar e dou descarga. — Você me incomodou com sua presença dez minutos antes. — Começo a escovar os dentes, e ele fica à espera. — Lavínia saiu daqui às 4h da manhã.

— Se elas não dormem aqui, não seria mais fácil comê-las em algum local neutro?

Saio do banheiro ainda secando o rosto, pego uma cueca no closet e a visto, voltando para o quarto.

— Não tenho problema algum com minha cama, pelo contrário! Prefiro meu espaço a qualquer outro. — Dou de ombros. — Você que tem essa mania de nunca trepar no seu apartamento.

Ele ri.

— Você sabe muito bem que eu não trepo! — Um sorriso descarado se forma em sua expressão. — Eu as conduzo ao prazer... É diferente!

Reviro os olhos.

— É claro que você trepa, porém, tem a mente mais fodida que a boceta de uma puta, por isso tem essas manias estranhas!

— Não fale do que você não sabe, Theodoros — adverte-me. — Cada um tem seu jeito de obter prazer; o meu é esse.

Concordo com ele, mesmo achando alguns de seus gostos um tanto estranhos demais para mim. Chame-me de conservador nisso também, mas tenho alguns limites bem definidos em relação às minhas fodas.

Millos me espera no quarto enquanto visto a roupa do treino, falando sobre um novo modelo da Ducati que está pensando em importar. O homem é completamente viciado em motos, faz parte de motoclubes e, nas férias, sai cortando estrada com esse pessoal. Já percorreu grande parte da América do Sul sobre duas rodas, fez a Route 66 nos Estados Unidos e percorreu toda a BR 101 aqui no Brasil.

Além disso, é obcecado por cerveja e fez vários cursos nessa área no mundo todo, produzindo sua própria bebida, buscando o sabor perfeito que seu paladar exigente ainda não encontrou em nenhuma marca já disponível. O desgraçado entende tanto do assunto que é convidado para festivais e fez parte do júri de vários campeonatos de mestre cervejeiro.

Millos mora em um loft, um antigo galpão que ele reformou todo. Na parte debaixo guarda suas motos e tem uma pequena oficina; na de cima, sem nenhuma divisória, ele tem uma confortável sala, uma cozinha industrial com os tonéis de cobre para a fermentação de sua cerveja e o quarto, onde nunca leva uma mulher para trepar.

Ah, esqueci... ele não trepa!

Tomamos juntos um suplemento de carboidratos pré-treino enquanto Vanda escuta alegremente as conversas de Millos sobre sua última experiência culinária – carne de rã marinada com cerveja – fazendo careta a cada vez que ele descreve o anfíbio sendo tostado na grelha.

Quando Sandra chega, já estamos os dois no segundo andar da cobertura, onde apenas uma enorme parede de vidro separa a academia da área de lazer com piscina, jacuzzi e área com churrasqueira gourmet.

— Bom dia, meninos! — Millos ri do cumprimento, porque a personal deve ser uns bons anos mais nova que nós dois, porém, sempre nos cumprimenta assim. — Prontos para suarem a camisa?

Um olha para o outro sem saber o que responder, pois nenhum usa camisa.

— Figura de linguagem, rapazes! — Rola os olhos. — Vocês, gregos, são muito literais!

Ela liga o som; uma música calma enche todo o ambiente.

— Bora alongar!

Bufo impaciente, mesmo sabendo da importância de preparar os músculos para os exercícios intensos, querendo dar uma surra no Millos hoje.

Vamos ver quem vai pedir arrego, meu primo!


Depois que terminamos o treino, tomamos nosso café da manhã antes de sair para o trabalho.

Millos sempre se veste aqui quando vem treinar comigo, então há sempre alguma roupa dele no quarto de hóspedes. Em poucos minutos o homem tatuado, debochado e um tanto sombrio desaparece, e ele assume seu papel de executivo calmo, frio e competente. A camiseta manchada, os jeans rasgados e os coturnos – roupa com que veio aqui antes de vestir a de malhar – dão lugar ao terno italiano, sapatos de couro, camisa de algodão egípcio e gravata de seda. Os cabelos revoltos estão no lugar, penteados para trás com algum tipo de pomada que os deixa fixos, a barba foi penteada e o brinco de argola dá lugar a um pequeno ponto na orelha, quase imperceptível.

Sinceramente não sei se ele adotou esse personagem para trabalhar com o pai, meu tio, ou se é algo que ele prefere fazer para não chocar ou causar descrença em nossos clientes. Realmente nunca entendi, e ele também nunca quis explicar, então não sei o que se passa na cabeça desse Millos Karamanlis executivo. O que me importa é que ele é meu braço direito, aquele em quem confio de olhos fechados nos negócios, porque, mesmo sendo tão diverso de sua personalidade, a frieza do executivo Millos é o que nos ajuda a controlar alguns incêndios dentro da Karamanlis.

— Soube da merda do Kostas dessa vez? — indago assim que entramos no carro, com Dionísio a dirigir.

— Como não saberia? A história correu pelos corredores da empresa no final da tarde de ontem. — Ele puxa mais a manga de sua camisa a fim de esconder as tatuagens do pulso. — A senhorita Reinol pediu mesmo demissão?

— Pediu! — Rio. — Foi uma saída de rainha no meio da discussão e com direito a água gelada na cara! — Gargalho. — Confesso que, se fosse café quente, eu teria sentido um pouco mais de prazer, mas nem tudo é perfeito.

— Porra, Theo, o Kostas está incontrolável, e eu não entendo o motivo. — Eu o encaro franzindo a testa, porque nunca falamos do meu irmão sem ser em termos profissionais, mesmo sabendo que Millos é quase um confidente de ambos. — Ele mudou muito nesses dias, parece... sei lá, encurralado.

— O Kostas encurralado? — debocho. — Aquele filho da puta é mais frio que uma pedra de gelo! O que poderia mexer com ele a ponto de deixá-lo assim?

Millos respira fundo e dá de ombros, fechando-se em copas novamente, como sempre faz quando o assunto é a vida pessoal dos meus irmãos. Esse jeito dele, essa lealdade toda me conforta e me frustra ao mesmo tempo. Sei que ele não comenta com os outros as coisas que lhe conto, mas gostaria de saber mais do que se passa com meus irmãos mais novos, principalmente Alex e Kyra.

Independentemente do que eu queira, sei que, por ele, nunca vou ficar sabendo de nada, e uma aproximação entre mim e meus irmãos é coisa muito improvável, então finjo não ligar para isso, mas sinto a culpa apertar meu peito a cada vez que algumas lembranças voltam.

— Seu assistente já confirmou sua presença no baile dos Villazzas no Ano Novo? — Assinto. — Não sei se vou. No último a que fui, eles ainda estavam em Curitiba!

— Muitos anos, já! Não tenho como não ir, sou amigo do Frank e quero ajudar a instituição do Bernardo Novak, que é uma das eleitas deste ano para receber parte das doações.

— Ah, sim, isso eu também quero fazer. A empresa da Kyra é quem está organizando, você sabe? — Balanço a cabeça positivamente. — Foi por isso que ela não pegou a festa da Karamanlis este ano...

— Foi a desculpa que ela deu, na verdade — corto-o. — A empresa dela já está crescendo sozinha, ela já pode se dar ao luxo de dispensar um contrato conosco e, assim, manter-se cada vez mais distante.

— Que seja... — Ranjo os dentes de raiva por ele não comentar nada. — Estou pensando em fazer um recesso entre o Ano Novo e a segunda semana de janeiro. — Millos estica as pernas, gemendo lentamente, e um sorriso de vitória me escapa. Está dolorido, desgraçado? — Ainda não sei se vou até Frankfurt conversar com um mestre cervejeiro de lá ou se faço alguma viagem longa de moto, mas estou querendo ficar fora dos negócios por um tempo.

Sinto uma pontada de inveja dele, pois costumo tirar no máximo uma semana de descanso entre as festas – Natal e Ano Novo –, e a única viagem que consigo fazer é ir até a Grécia para visitar o vovô, e nesse ano, como irei viajar em fevereiro no ano que vem para o aniversário dele, não vou tirar sequer essa semana de recesso.

— Eu não vejo problemas. Esse período é o mais devagar na empresa. — Ficamos um tempo mudos, apenas ouvindo o som do aparelho do carro tocando alguma estação de rádio. — Eu vou fazer aquele filho da puta ir atrás da Kika!

Millos me encara, olhos arregalados, e não por causa da fala inesperada depois do silêncio que fizemos.

— Eu acho que isso vai dar mais merda do que já deu.

Sorrio.

— Não, ele vai ter que pedir desculpas e prometer se comportar. — Encaro Millos, olhos brilhando, pensando em como obrigar o meu irmão arrogante a fazer minha vontade. — Preciso da sua ajuda!

 

 

Meu humor melhorou drasticamente depois da conversa com o Millos no carro e o plano que arquitetamos para fazer aquele idiota prepotente consertar a merda que fez aqui na empresa. Fazer Kostas ir até a Kika para implorar que volte será bom para mim por dois aspectos: terei minha gerente de volta e ainda colocarei meu irmão no seu lugar, abaixando um pouco sua crista de galo de briga.

Rômulo está irritantemente quieto hoje, e desvio o olhar a toda hora para sua mesinha apenas para conferir se o tagarela está bem e respirando. Hoje a empresa está um pouco sombria. Os funcionários estão falando mais baixo, há menos pessoas nos corredores, e os setores estão funcionando bem, mas sem o ritmo frenético a qual todos estamos acostumados.

Uma apatia geral tomou conta do lugar, e o clima aqui dentro está tão opressivo que me sinto sufocando algumas vezes. É como estar de luto, e isso é uma coisa incrível, pois bastou uma funcionária querida pedir demissão para parecer que o sol se pôs dentro deste prédio.

Preciso dessa mulher de volta!

Se o babaca do meu irmão não conseguir o feito de reintegrá-la à equipe, vou ter que jogar sujo e recorrer a Malu Ruschel lá no meio daquele mato onde vive. Espero conversar com ela para que convença sua amiga a voltar para nós.

Levanto-me, sentindo a tensão sobre meus ombros e meu pescoço duro. Ponho a culpa na tensão, nunca admitindo que a disputa ferrenha com Millos no treino de hoje de manhã me causou isso. Tenho 41 anos, não sou um garotão, mas sempre me consolo dizendo que pratico exercícios há muitos anos, então meu corpo está acostumado.

A verdade é que os anos estão realmente passando, e talvez eu esteja sentindo os efeitos do deus Cronos no corpo. Noitadas de sexo, balada e exposições têm me deixado cada vez mais cansado, além disso, comecei a notar que tenho necessitado de mais horas de sono do que precisava antes. Talvez tenha que ir a algum médico fazer um check-up ou buscar um geriatra.

Dou uma risadinha baixa, achando graça do meu humor negro. Fui contagiado pelo clima de enterro da Karamanlis, e esse silêncio todo me faz divagar. Gosto e estou acostumado à correria, a Rômulo transitando em volta de mim como mosca de padaria, sempre prestativo, falante e, na maioria das vezes, incômodo.

Porra, estou sentindo falta até da inconveniência dele!

Caminho até a vidraça da sala, olho a Paulista movimentada de carros lá embaixo e volto a refletir sobre a vida, principalmente a profissional. Já faz anos que assumi o cargo de CEO da empresa, anos que vim morar no Brasil, e, apesar de tudo isso, algumas coisas continuam como antes: o trabalho intenso, a desarmonia entre os irmãos Karamanlis, meus hábitos noturnos, hobbies e, claro, a maldita conta da Vila Madalena. A confusão de ontem desviou um pouco minha atenção desse objetivo, mas não posso perder o foco, não quando estou cada vez mais perto de conseguir comprar o maldito boteco!

— Rômulo — chamo-o sem olhar em sua direção. — Peça ao Millos para que venha até aqui, por favor.

— Ele estava em reunião com o doutor Kostas... — Viro-me para encará-lo, e o homem franzino e de óculos fundo de garrafa arregala os olhos. — Eu vou ver se ele já retornou.

Meu assistente sai todo atabalhoado do escritório, deixando alguns post-it caídos no chão marcando seu caminho como na história de João e Maria. Respiro fundo para não me irritar com ele, pois, apesar de um tanto fofoqueiro e atrapalhado, ele é muito eficiente, não posso negar. Apesar de todos os incômodos, eu não o trocaria por nenhum outro.

Volto a pensar na Vila Madalena e que Millos ficou de levantar as condições para executarmos a promissória assinada pelo falecido proprietário do bar. Preciso saber em que pé estamos para traçar novas estratégias de ataque, afinal, quero começar o próximo ano já com essa conta fechada e, assim, ter menos uma coisa a torturar minha cabeça.

Escuto passos apressados, típicos do meu assistente, e a porta se fechando.

— Ele já vem, doutor — diz resfolegando, o que demonstra que foi correndo até a sala do meu primo. Quanta falta de sutileza!

Balanço a cabeça, segurando o riso debochado ao imaginar a cena, e lhe agradeço:

— Obrigado.

Enquanto espero, decido tomar o... (não lembro quantos já foram hoje) café do dia. Sigo até a máquina de café expresso que fica no aparador de bebidas e coloco uma cápsula de um blend de cafés no modo ristretto enquanto aguardo meu primo. O cheiro agradável enche o ambiente do escritório, deixando-o menos opressor e mais acolhedor. Aspiro a fragrância lentamente, apoiado no aparador, olhos fechados e absorvendo o prazer que essa bebida me proporciona. Sim, sou viciado em café!

— Theo? — Millos bate à porta, tirando-me do transe gourmet. — O que houve?

Faço um gesto para que ele entre e aponto para a máquina, que está passando dois do néctar de café que mais gostamos. Um ristretto só é possível quando a máquina tem a pressurização correta e os grãos são de qualidade. O pó sai praticamente seco, tamanha a velocidade que a água fervente passa por ele, extraindo o melhor do grão.

Nunca me acostumei ao jeito brasileiro de tomar café longo ou mesmo o famoso carioquinha, acrescentando água para diluir a bebida. Preciso sentir o sabor do grão, as notas intermediárias dele e as que ficam depois na boca. No caso desse blend que fiz, há um leve frutado que diminui a acidez e depois resta na boca um sabor mais forte, tal qual chocolate amargo.

Pego a xícara de Millos e a entrego para ele.

— Como foi com o Kostas?

Millos relaxa, sentando-se numa das cadeiras em frente à minha mesa e se encostando nela, desfrutando do cheiro do café.

— Acho que mordeu a isca. Só espero que ele saiba convencê-la. — Dá de ombros. — O que mais você quer?

— Vamos beber o café primeiro. — Pego a outra xícara e tomo um gole. — Quero notícias sobre a promissória da família Hill.

— Ah... — Ele sorve lentamente a bebida quente, deixando-me em suspenso com sua resposta. — Encorpado e naturalmente doce, perfeito! — elogia o café.

— A máquina faz tudo! Para de enrolar e fala logo.

O desgraçado ri, tomando mais um gole.

— Kostas estava analisando, mas, com essa confusão toda... — Eu xingo, e ele sorri mais uma vez. — Estou pensando em fazer uma visitinha a Duda Hill de novo. Vamos?

— Eu não tenho nada a tratar com ela. Quero executar a porra da promissória e expulsá-la de lá! — Deixo o café de lado, contrariado demais para apreciar seu sabor. — Já estou esperando por isso há muito tempo, Millos. Estou começando a perder a paciência.

— Eu acho que você deveria tentar conversar com ela. — Franzo o cenho, sem entender. — Dizer que temos a promissória e que vamos executá-la, mas oferecer a ela a chance de comprar antes de irmos à justiça.

— Por que eu faria isso?

Realmente não entendo o que Millos quer com essa sugestão. Oferecer a promissória para ela pagar? Como se ela tivesse condições de arcar com o valor exorbitante sem vender o maldito bar! Se a pressionarmos demais, ela pode acabar vendendo para outra pessoa, e aí teríamos que começar as negociações do zero. Isso nunca!

— Por que você quer tanto aquele quarteirão? — indaga-me, fazendo com que eu o olhe surpreso.

Ficamos um tempo assim, encarando um ao outro, apenas o som da digitação do Rômulo a pairar sobre nós. Tento procurar um motivo mais forte para comprar o lugar, mas não consigo achar nenhum convincente o suficiente para desviar a atenção dele da verdade. Não quero nada ali, nem tenho sequer ideia do que fazer e para quem oferecer, mas é uma conta deixada pela gestão do meu pai, o que me impulsiona a querer comprar apenas para esfregar em sua cara que eu consegui, que o derrotei.

— Consiga comprar a merda do bar — digo entredentes, a voz baixa e sem desviar meus olhos dos dele. — Meus motivos não interessam, é uma conta aberta que prejudica a reputação da empresa, e, como CEO, não posso deixar isso acontecer.

— Justo! — Ele se levanta. — Vou fazer tudo o que estiver ao meu alcance para satisfazer a sua vontade e não prejudicar a reputação da empresa no mercado.

Aquiesço, porém, não satisfeito, reconhecendo certo sarcasmo em sua voz.

— Millos. — Ele me encara. — Eu preciso fazer isso.

Meu primo bufa.

— Eu sei, Theo. — Caminha até onde estou e toca em meu ombro, falando baixo para que apenas eu o ouça: — Eu queria mesmo que você não precisasse, assim como não achasse que deve ao pappoús até a sua alma! — Faço careta e abro a boca para defender nosso avô, mas ele continua: — Eu sei que você precisa disso e vou ajudar no que puder.

Agradeço mesmo não emitindo nenhuma palavra. Conhecemo-nos há tantos anos, já passamos por tantas coisas juntos que não é necessário que sempre haja palavras entre nós.

Millos sai da sala, deixando-me sob os olhares curiosos de Rômulo, que provavelmente ouviu os sussurros e ficou de antena ligada atrás de uma notícia quente.

— Volte ao trabalho, Rômulo! — admoesto-o.

Ele fica vermelho e abaixa a cabeça para volta a digitar no computador.

Preciso arranjar uma sala isolada para esse língua de trapo! Ah, se não fosse competente!

Sento-me à mesa e olho para a tela do computador, onde um contrato já ratificado pelo jurídico está à espera da minha assinatura eletrônica. Esse dia não está sendo fácil, embora o trabalho continue normalmente como em todos os outros. Não compreendo o motivo, talvez por ter conseguido a maldita promissória, mas a vontade de conseguir comprar o boteco e o colocar no chão tem estado constantemente em minha cabeça. Muito mais do que o normal!


Os cheiros se misturam aos sons em um caos perfeito, quase sistêmico, se for possível considerar que alguma confusão possa ter um padrão implícito. Há um ritmo a ser seguido, um conjunto de ações e reações em cadeia que faz com que todo o nosso processo ande em harmonia.

É assim a minha cozinha!

Respiro fundo mais uma vez, espantando o cansaço e buscando energia para continuar. Estou empreendida neste ritmo desde às 2h da tarde, quase 12 horas direto, mas envolvida em todos os passos da organização e funcionamento desde às 8h da manhã, quando acordei.

Ser chef de cozinha não é só glamour, quer dizer, nunca foi! O que as pessoas veem na televisão, os grandes cozinheiros que aparecem na mídia com seus restaurantes renomados, a maioria agora é só empresário, cozinha vez ou outra, mas todos já ralaram muito para conseguir algum nome.

Quando decidi ser chef, eu tinha oito anos de idade, estava na cozinha da minha avó materna no interior e fiz meu primeiro bolinho de chuva regado a açúcar e canela. Abro o sorriso por causa da força das recordações. As lembranças olfativas e gustativas, na minha opinião, são as estrelas do cérebro. Quem nunca pensou num prato e na lembrança pôde sentir seu cheiro e o sabor? Quem nunca foi transportado a uma lembrança afetiva ao comer? Eu sempre acreditei nesse poder e, a partir daquele dia, na casa da minha avó, percebi que queria deixar essa marca na vida das pessoas.

Foi o último ano com minha mãe. Ela já estava doente, câncer de mama, e o clima em casa não estava dos melhores. Papai andava deprimido, o bar não estava indo bem o suficiente para arcar sozinho com as despesas depois que ela teve que parar de trabalhar na cozinha, e meu irmão – com 14 anos na época – andava estranho e pelos cantos.

Estávamos em férias escolares, e vovô foi nos buscar para passar umas semanas com eles. Imagino o quanto estava sendo duro ver a filha definhando aos poucos, perdendo a luta contra essa doença tão dura. Diagnóstico atrasado, demora no acesso ao tratamento, tudo isso contribuiu para que ela vivesse seis meses depois da descoberta do câncer.

Metástase, a palavra que mais me dói ouvir até hoje.

Meu maior medo também.

A tristeza e o desânimo tomaram conta da família assim que o médico contou ao papai que o estágio era terminal. A mastectomia, o esvaziamento total das duas mamas, não foi suficiente para ela, pois as células cancerígenas já haviam se espalhado pelo abdômen. Tudo o que podíamos fazer era tentar dar a melhor qualidade de vida possível aos poucos meses que lhe restavam.

Minha mãe, Maria Aparecida Braga Hill, era a pessoa mais forte e alegre que eu conheci. Era a luz da nossa casa, a razão da vida do meu pai, quem eu queria ser quando crescesse. Sua doença não diminuiu suas características e, naquelas férias, ela pegou meu primeiro feito culinário – um tanto cru por dentro e tostado por fora –, colocou-o na boca e revirou os olhos de prazer.

— Hummm, Duda, tem o sabor da minha infância! — Sorriu.

— Ficou um pouco queimado... — tentei argumentar, desculpando-me.

— Isso é questão de prática, princesa! — Ela se abaixou para ficar da minha altura, seu corpo bem magro, olhos fundos e com olheiras, o lenço na cabeça. — O importante não é só a aparência da comida; são as sensações que ela nos traz, o que ela nos faz sentir. — Pegou mais um dos meus tristes bolinhos. — O seu bolinho de chuva me fez voltar a ser criança, encheu meu peito de alegria, e é isso que importa.

Abracei-a, orgulhosa, sentindo-me quase uma heroína por ter feito tudo isso por ela com apenas farinha, água, ovos, açúcar e sal. Minha cabeça infantil imaginou como ela se sentiria se eu lhe fizesse um prato como aqueles que via em suas revistas de culinária. Mamãe ficaria tão feliz!

Foi a partir desse dia que passei a me interessar pela comida, pelos ingredientes, pela mágica que a mistura dos sabores proporcionava.

Muito tempo depois que ela nos deixou, suas palavras, a felicidade em seu rosto e o carinho do seu abraço ficaram marcados em mim. Eu queria essa sensação novamente, eu precisava sentir que algo que fazia era capaz de tornar a vida de alguém mais feliz.

Aos 13 anos insisti com o papai para trabalhar no bar. O Hill era um boteco mesmo, no sentido mais estrito da palavra. Os frequentadores eram pinguços que se encostavam ao balcão do bar quando papai abria e só iam embora expulsos quando ele decidia fechar. Tudo o que servíamos era torresmo, ovo colorido e alguns caldos que fazíamos em dias programados. Segunda e quarta era dia de mocotó; terça e quinta era bucho, e o final de semana era inteiro da rainha do Hill: a feijoada.

Um cozinheiro muito louco, mas com o tempero mais incrível que eu já provei, era quem comandava a cozinha quase doméstica do bar. Ele foi meu primeiro carrasco e logo me colocou na limpeza, frustrando meus planos de ser a estrela do Hill. Assim, ficava horas depois do colégio a lavar a louça – que não era pouca, porque o homem era bagunceiro – e limpar o chão.

Ainda lembro que a primeira coisa que ele me pediu para fazer – que envolvesse o preparo de alimentos – foi picar temperos. Chorei descascando cebolas igual a quando assisti ao filme Titanic na TV e cortei o dedo algumas vezes. O filho da mãe ria toda vez que eu gemia ou xingava, mas não desisti.

Em pouco tempo ele estava me ensinando as poucas técnicas que sabia, obtidas com a experiência de trabalhar em cozinhas desde seu primeiro emprego. Meu carrasco virou meu anjo da guarda, e, toda vez que papai ameaçava me proibir de ir para o bar trabalhar, ele me defendia dizendo que precisava da minha ajuda.

Foi por causa dele que pude estudar fora. Quando fiz 15 anos, papai queria fazer uma festa para comemorar, mas Dalto – o cozinheiro anjo da guarda – conversou comigo sobre cursos de gastronomia e citou a França como referência. Meu presente foi o curso de francês, segundo ele, necessário para me abrir as portas.

Aos 18 anos comecei a cursar a graduação em gastronomia, um orgulho para meu pai, que, àquela altura, já acreditava que eu conseguiria ser uma grande chef. O curso durou quatro semestres, e, aos 21 anos, já trabalhando como ajudante de cozinha em um restaurante de uma rede internacional de hotéis, consegui um feito incrível, uma bolsa para estudar na mais famosa escola de Paris.

Eu tinha tudo o que sempre sonhara, consegui passar num processo seletivo muito criterioso, esforcei-me durante anos para aprender a língua, ganhei a bolsa, mas não tinha grana para viajar e me manter por lá. Nessa época papai tinha um carro seminovo, e não pensou duas vezes antes de vender o veículo e me entregar todo o dinheiro para que eu pudesse passar os meses do curso sem apertos.

Fiz contato com outra moça brasileira que já morava em Paris e consegui alugar uma vaga em seu apartamento, perto do instituto. Foram os melhores meses da minha vida! Dediquei-me de corpo e alma àquilo, ignorei tudo. E a recompensa veio!

Um mês antes de concluir o curso, fui convidada a integrar a equipe de um grande restaurante na capital francesa. Cargo pequeno, salário baixo, mas o primeiro degrau para a realização de todos os meus sonhos de menina.

— Duda! — Manola, meu braço direito aqui na cozinha agitada desse pub que já foi um boteco, me grita, tirando-me do flashback no qual estava. — A cozinha fecha em meia hora, e estamos cheias de pedidos ainda. Não estou achando o molho extra que você tinha preparado mais cedo.

Seco minhas mãos no avental e vou até a pequena câmara fria que instalei aqui há pouco mais de um ano. O investimento foi caro, mas valeu cada centavo, pois consegui armazenar mais ingredientes e de uma forma muito mais segura do que no freezer.

Entrego o molho que preparei mais cedo para Anabele, uma das assistentes de cozinha, e volto a olhar a costelinha de porco no forno, a última da noite.

Estou cansada mais do que o normal, pois tive mais uma noite insone. Tem sido difícil dormir em casa, e, mesmo quando tudo está calmo, pego-me sem nenhuma vontade de fechar os olhos. Nós temos estado em um ritmo alucinante desde que o Hill caiu nas graças do pessoal aqui na Vila Madalena e chamou a atenção da imprensa especializada. Saímos em algumas revistas, ganhamos destaque, mas ainda assim sinto como se andasse no fio da navalha todos os dias.

Não trabalho tanto para enriquecer, apenas preciso manter um teto sobre minha cabeça, o mínimo de estrutura para minha tia Do Carmo e para Tessa e conseguir saldar todas as dívidas deixadas pelo meu irmão e pelo papai.

Uma dor enorme me invade toda vez que penso nos dois. Minha família se desintegrou por completo! Primeiro, mamãe, levada pelo câncer, depois meu irmão, que nunca se recuperou da perda dela e se afundou nas drogas, morrendo de overdose e, por fim, papai, há alguns anos, devido a problemas cardíacos.

Meus avós maternos se foram ainda na minha adolescência, restando a mim apenas a tia Do Carmo e a Tessa. A sorte é que conto com todos aqui como se fossem da família.

Manola é, além de meu braço direito, uma grande amiga. Tenho muito orgulho dela, principalmente por nossas histórias serem tão parecidas em alguns pontos. Ela é filha do Dalto, o “carrasco” que me ajudou a ser a chef que sou hoje. O pai dela vive ainda em São Paulo, mas está aposentado, e, uma vez no mês, fazemos um almoço aqui no Hill, e é ele quem cozinha, deliciando-nos com seu tempero único.

O Arnaldo é nosso faz-tudo, aquele que nos mata de rir com suas piadas bem contadas, que faz as melhores carnes do mundo e que vive sendo consolado por todos por seu infortúnio no amor. Sua grande paixão foi o Marlon, um segurança que trabalha aqui no Hill algumas vezes na semana, mas o homem nunca lhe deu chances. Sofríamos com aquele amor platônico todo, essa é a verdade!

Além desses dois, que são cozinheiros incríveis, temos duas técnicas em gastronomia que sonham em se tornar um dia chefs de grandes restaurantes: a Cláudia, responsável pelas sobremesas da casa, e a Anabele, mestre dos molhos.

Aqui no Hill nós não temos cardápio de restaurante, é de bar mesmo! Bolinhos variados, anéis de cebola empanados, batatas feitas de várias formas e, claro, nossas porções de carne. O carro-chefe são as asas de frango com molhos, uma receita que aprendi com um americano e que caiu no gosto da nossa clientela.

Claro que, com um cardápio tão “tradicional” assim, nós nunca teríamos nos destacado se não fosse a constante variação que fazemos nas receitas. Inventamos onions rings recheadas com vários sabores; batatas com muitos tipos de coberturas, e nossas carnes sempre têm algum molho ou tempero especial.

Além disso tudo, eu conto com o Kiko, o mestre em drinques que encontrei há alguns anos servindo numa barraca de festa, fazendo freelance. Notei o talentoso bartender que ele era e não me arrependo nada disso. O homem é demais, além de ser um grande amigo.

No bar, ele trabalha com mais três ajudantes, que se encarregam de toda a bebida do pub e do controle do estoque. Kiko é um ótimo gerente, dei esse posto a ele por puro merecimento, demonstrando minha admiração. Ele sabe trabalhar em equipe, é muito organizado, sabe contornar conflitos e ter pulso firme com o time de vinte garçons e garçonetes que temos na casa.

O pequeno boteco ao estilo “pé sujo” hoje é uma empresa que gera renda e mantém dezenas de famílias.

Esse é mais um dos motivos pelos quais não posso fraquejar e deixar que as dívidas deixadas pelo papai e pelo meu irmão me façam perder tudo. Principalmente para os Karamanlis!

Respiro fundo só de pensar naquele bando de engravatado abutre rondando o pub como se ele fosse um animal agonizante prestes a perecer. Eu vendo o bar para qualquer um que quiser continuar o negócio, não importa que não seja meu – embora isso me doa –, mas nunca para eles.

Falta pouco para eu quitar a dívida do meu irmão. Papai começou a pagar ainda vivo, e eu continuei os pagamentos depois da morte dele. Devo a um traficante! Esse não é o tipo de pessoa a quem alguém quer dever, então os pagamentos precisam ser feitos religiosamente.

Mais um mês, e isso acaba!, penso aliviada.

Leonan – meu credor – me garantiu que, depois da dívida quitada, não haveria mais o nome da família Hill nos cadernos dele, e eu acredito que mantenha sua palavra. Para qualquer pessoa, essa minha fé em um traficante, quando meu irmão morreu de overdose, pode parecer contraditória, mas tem explicação. Quando João Pedro chegou ao fundo do poço e ficou fora de casa por mais de um mês, papai se desesperou e foi atrás do Leonan. Ele não fornecia mais nada ao meu irmão, mesmo porque JP já usava crack, droga com que ele não “trabalha”, porém, o homem conhecia todo tipo de “fornecedor” e a galera que se amontoava na cracolândia.

Acharam meu irmão lá, e meu pai, mesmo sem nenhuma condição financeira, levou-o para uma clínica de reabilitação. Pasmem, mas quem emprestou o dinheiro para financiar a recuperação foi o Leonan, e é por isso que eu lhe pago até hoje, mesmo porque ele se arriscou muito emprestando esse dinheiro, uma vez que é apenas um dos “gerentes” da boca.

Nós tentamos, mas JP não conseguiu se reerguer.

Quando voltei de Paris, ele já estava de novo vivendo nas ruas. Papai estava desesperado, doente, e eu, mesmo frustrada por ter dado tudo errado no meu sonho de viver na Cidade Luz e ser uma chef reconhecida, fiz a promessa de fazer qualquer coisa por eles. Cheguei precisando de apoio e consolo, e, mesmo em meio a toda essa situação – que ignorava até voltar para casa –, meu pai me recebeu de braços abertos.

Meu irmão foi encontrado morto na rua, um choque e, ao mesmo tempo, um alívio para nós. Ele estava irreconhecível, doente, parecendo ter o dobro da idade que tinha e sofrendo muito. O vício é uma doença, e o crack é quase uma sentença de morte. Pouquíssimas pessoas conseguem se livrar dele, e é por isso que, quem consegue, merece receber todo apoio e consideração, porque é uma luta enorme, uma superação.

Papai estava medicado, tocava o bar, e eu voltei a trabalhar na cozinha e comecei a mexer nos cardápios. No princípio ele não gostou muito, mas depois foi aceitando a ideia de modernizar as coisas. O dinheiro começou a entrar, porém, sempre que eu tocava no assunto reforma, ele desconversava.

Só descobri que ele era viciado em jogo logo depois do funeral, mas apenas soube o tamanho do problema há dois anos, quando recebi a “visita” de um dos agiotas que emprestou dinheiro a ele. Ele devia muito!

Tentei ir pagando ao longo desse tempo, no entanto, os juros que ele praticava só tornaram tudo uma grande bola de neve. Eu estava enxugando gelo e totalmente sem saída. Se vendesse o Hill, conseguiria quitar a dívida, mas como iria continuar mantendo as pessoas que dependem de mim e que necessitam desse trabalho? Além disso, esse é o único legado da família que me restou, pois a casa do meu pai, onde moro hoje, fica no andar de cima e faz parte da propriedade.

Eu tinha esperança de conseguir quitar a débito e fiz um investimento futuro que poderia me render um dinheiro suficiente para amortizar todos os juros e depois eu tentaria renegociar a dívida, mas algo aconteceu.

Fui tentar pagá-la há alguns meses, e, simplesmente, o agiota não me atende. Sempre entrei em contato pelo único número que ele me deixou. Entretanto, é como se nunca tivesse existido.

Um frio percorre minha espinha ao imaginar os prováveis motivos para que o homem não me atenda mais, e eu temo pelo que possa me acontecer.


A noite começou com correria. É sempre assim quando vou à abertura de um vernissage ao qual estou patrocinando. Dessa vez não será pintura, mas sim um jovem escultor descoberto em Paraisópolis que faz seu trabalho com argila, sucata ou qualquer outro material que possa transformar em arte.

Antes ele vendia suas esculturas como artesanato em uma feira de rua, e um dos meus contatos no mundo das artes me ligou assim que viu o material dele. Claro que o rapaz, de apenas 21 anos, tinha muito a se refinar ainda, mas era claro como o dia o talento que tinha para transformar em realidade tridimensional qualquer coisa que viesse à sua imaginação.

Assim que conversamos, propus que ele fosse estudar com um amigo meu, um megaescultor brasileiro cujas peças estão no mundo todo, e assim comecei a organizar seu caminho até o dia de hoje. Viviane, meu braço direito nos negócios com artes, levou-o a várias exposições, workshops, festas e qualquer outro evento que o ajudasse a fazer networking. Enquanto isso, ele estudava, e eu bancava suas despesas e o local onde trabalhava.

Dez meses depois ele já tinha uma quantidade absurda de material de qualidade surpreendente para ser apresentado, e Viviane começou, então, a organizar a exposição, a espalhar uma coisinha aqui e outra ali sobre ele, a mostrar – mesmo que de relance – algumas das melhores peças dele a colecionadores a fim de deixá-los curiosos.

Claro que exatamente essas peças são as que eu já separei para minha coleção particular, que já serão mostradas como vendidas nesta noite, causando assim alvoroço e incitando os outros compradores a adquirirem mais esculturas.

É assim que esse mercado funciona. Geralmente quem é colecionador é também um competidor nato e, ao saber da compra de um item que gostou, começa a sentir medo de ficar sem uma peça daquele artista e, mais tarde, ele se revelar o novo Michelangelo. É por isso que eu sou louco por essa área, por esse jogo pensante e cheio de estratégias como o de um tabuleiro de xadrez. Primeiro, preciso enxergar o potencial artístico de uma pessoa, depois é só começar a jogar e colocar cada peça em seu devido lugar até vencer o jogo.

Ah, não pensem que faço isso por caridade, claro que não! Eu sou um investidor, então tudo o que faço pelo artista está em contrato, e depois sou ressarcido de acordo com o sucesso obtido. Todavia, em algumas situações ocorrem contratempos que impedem o acordo de seguir em frente, nesse caso fico no prejuízo, e o artista volta a se virar sozinho. Meus prejuízos até hoje foram ínfimos diante do que já lucrei nesse negócio, por isso gosto cada vez mais de jogar esse jogo.

O único problema é conciliar meu trabalho burocrático na Karamanlis com a agenda que tenho que seguir, afinal, não “apadrinho” apenas um artista, geralmente tenho umas dezenas em vários estágios de preparação e sucesso. Por isso não dispenso a Viviane, pois ela coordena toda a agenda desse pessoal – excêntrico o suficiente, vale ressaltar – tão heterogêneo.

É uma empresa paralela que nem leva meu nome, porque há um impedimento no estatuto da Karamanlis de o CEO pertencer à diretoria, conselho ou ser sócio de qualquer outra empresa. Então, para todos os efeitos, Viviane Lamour é a dona, e eu, apenas um admirador, além de seu amante, como todos comentam.

Rio ao pensar nisso, dando o nó na gravata-borboleta de frente para o espelho. Conheci Viviane numa festa dada por um pintor muito louco, e ela, obviamente, chamou-me a atenção por seu belo porte, cabelos cortados bem curtos e com a franja alongada, completamente platinados a ponto de serem brancos, destacando sua pele morena. Por si só, ela já é uma obra de arte, de bom gosto, apenas para apreciação de pessoas com senso refinado e olhar crítico.

Saímos algumas vezes, fodemos na maioria delas, mas depois nos tornamos amigos, e o tesão passou. Hoje fico até incomodado com o jeito como ela me trata, como se eu fosse seu confidente, uma espécie de mulher ou amigo gay a quem ela conta detalhes íntimos (excitantes ou asquerosos). Nós nos divertimos juntos, já saímos com a mesma mulher ao mesmo tempo, e eu já a dividi com outro cara, mas tudo na base da amizade e sem nenhum tipo de amarra, e há muito tempo não temos mais esse contato, apenas o profissional e amistoso.

Além de Millos, ela é a única que sabe da vontade do pappoús e tem me auxiliado na busca de uma mulher que preencha o requisito da velha raposa grega – e os meus também, óbvio!

Viviane é mais do que minha sócia, ela é meu faro, o olhar de lince que preciso, além de ser uma ótima companhia, inteligente, divertida, moderna e muito agradável.

Meu celular toca, e vejo o nome dela aparecendo na tela, como se eu a tivesse evocado.

— Theo, meu lindo, você vai chegar a tempo?

Olho-me no espelho antes de responder. Traje de gala, smoking tradicional, preto, com camisa branca, gravata-borboleta de seda também preta e sapatos italianos de couro. Meus cabelos estão penteados para trás com uma pomada que os mantêm fixos, mas sem aquele aspecto molhado tão démodé, minha barba está bem aparada, do jeito que gosto, tudo no lugar.

— Vou, sim! — respondo abrindo a gaveta com relógios da Rolex.

Fico em dúvida por um instante, mas acabo optando pelo clássico day-date de platina, luneta lisa, pulseira presidente e mostrador de ouro branco 18 quilates, de fundo preto com listras. Clássico e moderno ao mesmo tempo!

Confiro o horário no convite e, em seguida, as horas no relógio já no meu pulso. Não gosto de joias, pulseiras, cordões e etc. O único acessório – que, nesse caso, é como uma joia, por ser feito de metal precioso – é meu relógio. Venho os comprando e colecionando há muitos anos e, quando mandei fazer o closet, incluí no projeto gavetas-cofre, todas com combinação para abrir, onde eles ficam aguardando para serem usados.

Tenho peças de várias marcas e muitos modelos de cada uma delas, com valores também variáveis, desde o de um carro popular ao de um apartamento. Minha paixão por relógios é a mesma que Millos tem por motos, por exemplo, ou a que o vovô tem por selos. Acho que todo Karamanlis gosta de acumular algo; não sei se ou o que meus irmãos gostam de colecionar apenas porque não os conheço bem.

Passo perfume antes de sair e, já na sala de estar, encontro-me com a Vanda a esperar, torcendo as mãos e parecendo ansiosa.

— Algum problema?

— Infelizmente, sim. — Ela dá um suspiro. — Minha filha acabou de me ligar... perdeu o bebê.

Caminho até ela e coloco a mão sobre seu ombro, consolando-a.

Vanda trabalha comigo há tantos anos que é como se eu conhecesse toda sua família. Ela tem dois filhos adultos – uma mulher de trinta e poucos anos e um rapaz ainda na casa dos vinte. Os dois moram longe, estudaram, foram trabalhar e formaram família. O rapaz – cujo nome nunca lembro – mora nos Estados Unidos e trabalha numa empresa de tecnologia lá. Já a mulher, Aurora – esse é um nome que nunca esqueço –, mora no Rio de Janeiro com o marido, com quem é casada há muito tempo.

Ainda me lembro da felicidade de Vanda ao me comunicar que finalmente seria avó. Por isso, entendo sua tristeza.

— Se precisar de uns dias para ficar com ela... — Ela concorda. — Vou pedir ao Rômulo que providencie as passagens de avião. — Pego o celular. — Ele tenta algo para hoje ainda?

Ela soluça, e isso me corta o coração. Nunca tive contato com minha mãe, e ela cuida de mim como se eu fosse seu filho. Claro que temos uma relação profissional, mas reconheço o trabalho e o afeto dela por mim.

— Eu gostaria de ir o mais rápido possível...

Rômulo atende no segundo toque, todo esbaforido como sempre, como se estivesse fazendo algum tipo de exercício que o deixasse sem fôlego.

— Rômulo, boa noite! Preciso que compre passagens para o Rio de Janeiro se possível ainda para hoje à noite.

— O doutor vai viajar? Não vi nada na agenda que...

— Rômulo... as passagens, estou esperando na linha — corto-o.

Ele demora alguns minutos, mas ainda posso ouvir sua respiração ofegante. Será que o filha da puta tem asma e nunca me contou?

— Tem um voo para às 22h20 com previsão para chegar lá no Galeão às 23h25, posso comprar?

Confiro as horas de novo; pouco mais de duas horas para a partida do voo.

— Compre e já faça o check-in online. É para a Vanda, têm todas as informações sobre ela na minha pasta pessoal.

Ele confirma, pergunta sobre a volta, e eu peço para reservar para daqui uma semana, mas com possibilidade de mudança.

Vanda vai correndo até seu quarto, entendendo o pouco tempo que tem até chegar a Guarulhos, e eu aproveito para ligar para o Dionísio, que já está na garagem do prédio me esperando.

— Dio, você vai levar a Vanda para o aeroporto o mais rápido possível. Ela tem que estar lá em uma hora para poder embarcar para o Rio. Vá rápido, mas com segurança. — Mal desligo e ligo de volta para o Rômulo. — Conseguiu?

— Já mandei o voucher para o celular dela, chefe! — diz todo animado, e eu reviro os olhos.

— Preciso que entre em contato com aquela empresa na qual alugamos carro e motorista quando me hospedei lá.

— Já fiz isso também, chefe! — sua voz agora está animada e orgulhosa.

— Muito bem! Bom trabalho, Rômulo! Boa noite!

Juro que posso ouvir um suspiro quando desligo o celular. Rio, balançando a cabeça, achando o jeito dele muito engraçado, mesmo que me irrite na maioria do tempo. Esse Rômulo!

Uma mensagem da Viviane chega, pois agora estou oficialmente atrasado, e retorno apenas para acalmá-la:

 

 

Sento-me no banco do piano, brincando com as teclas enquanto Vanda termina de arrumar sua bagagem, pensando em como as coisas mudam de uma hora para a outra dentro de uma família. Eu já senti essa reviravolta uma vez, embora na época tenha reconhecido que foi para melhor, mas ainda assim as lembranças dela causam a dor da sensação de não saber como teria sido.

Bufo de raiva por deixar isso voltar, mesmo depois de tantos anos. Tudo o que eu queria era uma noite de sucesso para meu investimento e, talvez, um sexo casual depois do evento.

Dedilho um blues aleatório ao piano para animar meu espírito antes de sair de casa.

Odeio essas noites corridas!

 

 

— Porra, achei que você não vinha mais! — Viviane me cumprimenta assim que eu piso na galeria. — Samuel Dias é o maior sucesso! — cochicha em meu ouvido enquanto finge um abraço. — Parabéns!

Retribuo o cochicho:

— Para nós dois!

Ela gargalha, e isso chama a atenção de algumas pessoas que estão tomando champanhe e conversando em um canto. Cumprimento-os com a cabeça, pois conheço a maioria deles, mas uma loirinha me atrai com seu sorriso contido e olhos esfomeados.

— Seus olhos não são bons só em detectar talentos... — Vivi sussurra. — Valentina de Sá e Campos, filha do deputado Cristóvão Campos e neta do diplomata Augusto de Sá.

— É um bom currículo! — debocho. — O que mais você sabe?

Viviane sorri lentamente, uma expressão que eu já conheço e que significa que ela sabe tudo o que eu quiser ter de informação sobre a garota.

— Tem 27 anos, formada em Direito, faz balé desde criança e toca piano muitíssimo bem. — Faço um gesto com a cabeça, admirado. — Pelo que eu sei, trabalha no escritório com a mãe, mas está estudando para ingressar na diplomacia como o avô.

— Uma mulher de carreira, então?

Vivi me olha como se eu tivesse duas cabeças, e ergo as mãos em rendição.

— Mulher de carreira! Que mente retrógrada! O que você quer, afinal? Uma dondoquinha que fique em casa sem fazer nada o dia todo?

— Uma mulher que cuide de meu filho e que não o abandone por causa da profissão.

Ela volta a me fuzilar com os olhos.

— Isso é revoltante, Theo! Há ótimas mães que também são ótimas profissionais, uma coisa não exclui a outra, pelo amor de Dadá! — ela sempre me arranca um sorriso quando diz essa expressão. — Você quer mesmo fazer isso? Começar a sair com alguém para se comprometer? Porque, a cada vez que encontra uma possibilidade, você arranja mais requisitos! Tá foda!

— Vamos cumprimentar o artista primeiro, depois você continua me contando a vida da menina. — Sorrio para ela. — Anota aí que eu também a achei muito nova.

— Puta que pariu, desisto de te ajudar! Aquela última tinha 35 anos, e você achou que ela já podia estar entrando na menopausa e que por isso ia ser difícil emprenhar. — Rola os olhos. — Cagão!

Gargalho, aceitando um copo de uísque que o garçom veio me servir.

— Macallan? — pergunto, sentindo o cheiro.

— Óbvio, trouxe exclusivamente para você. — Ela acena, e vejo Samuel Dias. — Elogie o rapaz, diga que eu contei como ele tem se saído bem nesta noite e se desculpe pela demora. Finja ser sensível!

— Mas eu sou, não preciso fingir! — respondo rindo, bebericando o uísque.

— O que há de errado? — Ela provavelmente percebeu que não estou bebendo de verdade, apenas fazendo cena.

— Estou dirigindo. Tive que pedir a Dionísio que me fizesse outro favor.

— Justo hoje? — mesmo com o sorriso congelado em sua face, sua voz não disfarça a irritação. — O que havia de tão importante?

— Nada para você se preocupar. — Cumprimento o artista da noite: — Parabéns, eu ouvi falar que tudo tem sido um sucesso!

— Obrigado, Theo! Nada disso seria possível sem...

— Não, nada disso! Vamos celebrar a sua conquista hoje! — corto seu discurso de gratidão. Ele não precisa disso, não lhe estou fazendo um favor. — Viviane, procure um garçom para servir algo ao rapaz! O serviço poderia estar melhor...

— Vá se foder, Theo — diz baixinho entredentes, mas faz o que peço.

Assim que ela se afasta, cumprimento Samuel como sinto que devo, sem Viviane a estar no meu ouvido dizendo o que e como devo falar com ele.

— Estou muito orgulhoso de você. Sabia que seu talento seria reconhecido. — Ele agradece. — Só se lembre daquilo que conversamos no primeiro dia em que nos encontramos.

— Claro! — Sorri. — Nunca abandonar minhas raízes e minhas essência, porque são elas que impulsionam meu talento.

— Exato!

Viviane volta com duas taças de champanhe.

— Podemos brindar? — pergunta animada.

Levanto o copo de uísque enquanto eles tocam de leve as taças. Novamente busco a garota loira com os olhos e tenho a grata surpresa de pegá-la me observando. Sorrio, aceno com a cabeça, e ela faz o mesmo.

Então vamos ver no que dá!


Acordei de ressaca hoje, e não foi por causa da quantidade de bebida que ingeri no vernissage; aquela quantidade, eu nem consideraria como beber. Viviane ficou puta por ter encarecido o orçamento com garrafas do meu uísque preferido e eu não estar bebendo, por isso, depois do evento, reuni todas as que sobraram e trouxe para meu apartamento.

Pensei que ia passar uma noite solitária, acompanhado apenas de um single malte e discos de jazz, mas, no meio da minha encenação de lobo solitário, Millos ligou me convidando para ir até seu loft. Neguei várias vezes, mas a porra do homem estava tão excitado com a cerveja que havia feito que não parava de insistir.

Resultado? A bebida realmente estava um espetáculo! Enchemos a cara, mesmo sob meus protestos, pois nunca curti muito beber cerveja, e comemos uns tira-gostos tão saborosos que teci elogios a sua habilidade na cozinha.

— Ah, não fui eu quem preparou, não! — Riu. — Encomendei no Hill.

Quase cuspi aquela porra para longe e o fuzilei com os olhos.

— Porra, eu querendo que aquela merda feche e você comprando lá? Está do lado de quem afinal?

— Do meu estômago! — respondeu comendo mais um dos bolinhos. — Estava com vontade de ter um acompanhamento, mas sem nenhum saco para preparar. Me lembrei do dia em que fomos lá e quis conferir se ainda continuavam tão gostosos!

— Ainda não te perdoo por aquela arapuca! — acusei.

Há uns dois anos, Millos me convidou para comemorar seu aniversário, coisa que vez ou outra fazemos quando ele está em clima de festa. Eu lhe disse que o encontraria no local, mas ele insistiu em me buscar em casa, e, quando chegamos e percebi que era no Hill, fiquei bem puto, mas a curiosidade de saber o motivo pelo qual o boteco estava se tornando um sucesso me impulsionou a entrar.

O que eu não contava era que, além de a mim, o filho da puta tinha convidado meus irmãos. Ficamos lá os quatro como se fôssemos bons amigos, compartilhando da armadilha de Millos. Aposto que Kostas e Alex detestaram cada momento, mas sorrimos, bebemos e experimentamos os quitutes da tal da Duda Hill.

Mesmo não gostando de admitir, era fato que a mulher sabia o que estava fazendo na cozinha. Os bolinhos tão tradicionais de um boteco tinham um requinte diferente, embora mantivessem a essência. Era como se ela conseguisse melhorar o que já era perfeito, e isso, tenho que admitir, é um dom.

Confessei isso ao meu primo? Nem sob tortura! Repreendi-o por ter comprado lá, aleguei que ela podia ter mandado envenenar os quitutes – fazendo um drama desnecessário, culpa da bebida –, mas não parei de comer.

— Ah, pedi a Sami para comprar para mim — respondeu.

— Você ainda está saindo com ela? — questionei surpreso, pois havia muito tempo não via a motoqueira que, de vez em quando, orbitava em volta dele.

— Não! Somos amigos, já disse isso, mas parece que você só enxerga a boceta de uma mulher, come até suas “amigas” — fez referência a Viviane.

— Por que você não gosta dela? — Provoquei: — Porque ela é independente, dona de si mesma e diz o que pensa?

— Não! Eu não curto mulher assim para comer, mas não tem nada a ver com o fato de eu achá-la fria e calculista, e nunca escondi isso de você. Aquela mulher gela meu sangue!

Ri do seu exagero, afinal, a Vivi não tem nada de fria. Millos implica com ela pelo simples fato de a mulher ter personalidade e não se deixar comandar por ninguém. No primeiro momento ele se sentiu atraído, Vivi é um espetáculo aos olhos, e ela também não disfarçou o interesse. No entanto, bastaram alguns minutos de conversa para que se odiassem.

— Hoje ela conseguiu algo incrível — comentei. — Valentina de Sá e Campos, já ouviu falar?

Ele riu.

— Dela não, mas conheço os sobrenomes. Família paulistana tradicional, bom currículo. — Cruzou os braços e me olhou debochado. — A futura senhora Theodoros Karamanlis?

— Talvez — fui sincero. — Conversei um pouco com ela nesta noite, achei-a divertida, inteligente e sedutora. A princípio achei que era muito nova, mas é madura e independente, cheia de opinião. Gosto do tipo.

— Eu sei. — Ele se levantou e foi pegar mais cerveja. — Foi Viviane quem te apresentou a ela? — Assenti. — Não sei se gosto disso, mas boa sorte.

Gargalhei pela implicância dele com a Vivi e resolvi desviar o assunto. Falamos da Karamanlis, de música, de motos e, por fim, já muito bêbado e com sono, caí sobre o sofá dele e acordei há pouco, com torcicolo e com uma puta dor de cabeça.

— Ei! — Millos me saúda estendendo uma xícara de café. — Você está destruído!

O desgraçado ri, mas nem posso mandá-lo tomar no cu, porque minha cabeça trepida parecendo que há uma britadeira no meu cérebro. Maldita cerveja! Malditos bolinhos envenenados da Duda Hill!

— Cara, você é fraco para minha cerveja! — Millos ri. — Ficou boa, não é? — Apenas assinto, ainda tomando o café para melhorar meu ânimo. — O que está programado para fazer nesse final de semana?

— Vou trabalhar. Como saí um pouco mais cedo ontem por causa do vernissage, Rômulo separou umas pastas para que eu lesse nesse final de semana. Coisa chata, principalmente da pauta da reunião do conselho.

— Por falar no conselho... — Ele se senta ao meu lado no sofá e apoia os pés descalços sobre a mesinha de centro. — Ontem tive notícia do Kostas. — Ri. — Parece que tomou um toco feio da Kika e está cuspindo marimbondos.

Gargalho, esquecendo a dor.

— Como queria ter visto esse embate!

— Eu também.

Bufo, mesmo divertido, lembrando que o meu problema continua.

— Preciso trazê-la de volta para a empresa com urgência. Há vários projetos dos hunters parados, e o Rômulo não está dando conta de organizá-los.

Millos rola de rir no sofá.

— Esse seu assistente é muito estranho. Sinceramente não entendo como você ainda o mantém trabalhando contigo!

— Gosto de ele ser metódico. — Dou de ombros. — É organizado, embora meio desastrado, nunca perde um prazo e faz tudo o que eu peço.

— Seu próprio espelho, não é? Nunca conheci ninguém mais chato que você para organização.

Ergo uma sobrancelha para ele e olho em volta para seu loft cheio de espaço, mas sem nenhuma lógica ou senso de estilo. Millos gosta de coisas rústicas, e respeito isso, acho legal, mas é tão bagunceiro que seus móveis caros de design parecem ser cacarecos de alguma casa demolida.

Os únicos locais arrumados são: a cozinha, o “laboratório” de cerveja (como ele mesmo se refere ao local) e onde dorme. O resto... tem peças de motos para todos os lados, mesmo a oficina ficando na parte de baixo do galpão que ele chama de loft, tem barris com os ingredientes que compra para a fabricação de cerveja, roupas, discos e óculos (nunca vi tantos para uma só pessoa) espalhados por todos os lados.

O homem é um caos completo em casa, mas, se alguém entrar na sala dele na empresa, vai acreditar que é o epítome da organização. Não entendo como consegue!

— Bem, sobre a Kika, eu posso te adiantar que não precisa se preocupar — Millos continua. — Falei com ela ontem, e vai voltar.

Expiro o ar, aliviado.

— Porra, Millos, porque não me contou antes? É um alívio do cacete não ter que lidar com mais esse problema e...

— Mas ela não quer ser mudada de andar.

— O quê? Ela está fazendo exigências?

Millos penteia a barba com os dedos, enervando-me com sua calma.

— Demonstramos desespero ao mandar o Kostas pedir arrego. — Concordo com ele nesse ponto. — Ela quer aumento, continuar no andar e... — Tenta conter o sorriso, e prevejo que vem bomba, mas ele vai dar um doce do cacete para falar.

Perco a paciência e esbravejo:

— O que mais ela quer?!

— Carta branca para mandar seu irmão se foder à vontade.

— Porra!

Ponho as mãos na cabeça, sentindo a dor de cabeça voltar com tudo e ouvindo a risada debochada do Millos.

Eles querem me enlouquecer, só pode!

 

 

A dor de cabeça me acompanhou ao longo de todo o final de semana. Tomei analgésico, antiácido e – seguindo os conselhos do meu primo – mais um pouco de cerveja. No entanto, não consegui me livrar do incômodo insistente.

Trabalhei o sábado inteiro, recebendo ligações do Rômulo quase de hora em hora, a ponto de ficar puto com ele e mandá-lo caçar algo para se divertir e me deixar em paz. Compreendo que ele queira me ajudar, mas, às vezes, sua dedicação exacerbada me estressa.

Recebi um convite para jantar de uma antiga amante que vinha a São Paulo de tempos em tempos, mas neguei. Queria apenas relaxar um pouco em casa depois de ter trabalhado em páginas e mais páginas de relatórios com uma dor de cabeça chata a me distrair.

Pedi comida em um restaurante de comida vegana, achando que pudesse ser a gordura dos bolinhos do Hill – velha e rançosa, com certeza – que me deu essa indisposição e resolvi assistir a alguns filmes antigos. Sou fã de “O poderoso chefão”, então comecei a assistir a cada um deles de novo.

Novamente dormi em um sofá, mas acordei melhor e resolvi correr um pouco. Passei umas duas horas no Ibirapuera e, na volta, encomendei o almoço de domingo, sentindo-me um pouco órfão sem a Vanda em casa.

Liguei para Millos a fim de fazermos algum programa à tarde, mas ele estava com alguma mulher em algum clube ou lugar que só Deus sabia, então voltei aos relatórios, e isso consumiu o resto do dia.

Debaixo do chuveiro, rememorando este final de semana de merda, ouço meu telefone tocar, mas o ignoro. Coloquei os jatos no mais forte possível para tentar aliviar um pouco a tensão que venho acumulando nesses dias. A verdade é que preciso trepar um pouco, divertir-me, talvez fazer uma viagem ou passar um final de semana com alguém sem pensar no trabalho.

A imagem da Valentina vem à minha mente, sua conversa gostosa, seu sorriso bonito. Contudo, ainda não me sinto completamente certo de que devo me envolver com ela, principalmente por uma questão: não senti muita atração.

Sei que isso é de momento e que pode mudar, principalmente se a convivência for boa. Nem sempre sentimos atração pela pessoa no primeiro encontro, e já vivi anos demais para saber que até um primeiro encontro explosivo pode depois esfriar e o tesão ser extinto, então, não me baseio apenas nessas primeiras impressões.

Fecho os olhos e penso na garota da boate há alguns anos. Ela vem preenchendo minhas fantasias há muito tempo, talvez por ter sido gostoso daquela vez e não ter tido mais notícia dela.

Mal lembro do seu rosto, de tão bêbado que estava, sempre quando fantasio vejo os cabelos e me lembro da loucura que foi nossa transa naquele banheiro.

O telefone volta a tocar, e desligo o chuveiro, saindo do boxe para ver quem é o chato. Rio ao ver o nome do Millos. Na mosca!

— Já terminou sua maluquice sexual com a “submissa” da vez? — provoco.

— Vá se foder e não se meta nos meus assuntos — rosna. — Liguei para saber se amanhã pode ir comigo a um restaurante que um amigo inaugurou nos Jardins.

— Boa comida ou é boteco?

— Não, seu fresco, é coisa fina! Vanda ainda não estará de volta, não é?

Suspiro, resignado.

— Não, ela ainda vai ficar um tempo no Rio de Janeiro. Está certo, amanhã combinamos isso melhor no escritório.

— Okay! — diz animado. — Vai almoçar no refeitório junto aos funcionários?

— Sempre há uma primeira vez, não é? — Deixo a toalha no suporte e sigo para o closet. — Além do mais, confio que servimos algo de qualidade aos funcionários.

Millos ri.

— Essa eu quero ver! Nos encontramos no almoço, então! Boa noite, Theo.

— Boa noite!

Desligo o telefone e me olho no espelho, lembrando-me do tempo em que comia qualquer coisa e em qualquer lugar, na maioria das vezes sujo e fedendo a peixe, sentindo-me feliz e livre.

— Quem é você, Theodoros Karamanlis?


O dia nem bem amanheceu, e eu já estava suando na academia com a Sandra. Hoje, sem Millos, o treino foi mais tranquilo, seguindo o ritmo normal dos exercícios. Tomei meu café sozinho na cozinha – café puro mesmo – sentindo imensamente a falta da Vanda, de sua conversa matutina animada e seus cuidados. Posso não admitir sempre, mas gosto de ser cuidado, de sentir esse afeto, coisa tão rara na minha vida.

Limpei os pensamentos e saí para trabalhar.

— Bom dia, Dionísio! — cumprimentei o motorista como em todos os dias, já pegando meu jornal para me inteirar sobre as principais notícias do dia. — Hoje vou almoçar na empresa, mas, à noite, vou sair do escritório direto para jantar com Millos.

— Levo o doutor ou trago o carro?

— Traz o carro, vou dirigindo.

Ele assentiu, e seguimos viagem em silêncio, ele concentrado no trânsito, e eu, nas notícias de economia do país e do mundo.

Cheguei à empresa já apagando incêndios. Um dos projetos de um cliente foi reprovado por uma comissão municipal, então Kostas teve que intervir mandando seus advogados e acompanhando todo o processo. Eu, como CEO, fiquei aguentando a aporrinhação do gerente responsável pela implantação da empresa multinacional aqui no Brasil.

Nem vi a hora passar, mal tomei meus cafés tão tradicionais ao longo da manhã, irritado com esse problema, com o Rômulo borboleteando ao meu redor me enchendo de perguntas: “quer café?”, “ligo para o doutor Konstantinos?”, “quer um calmante?”. Eu quase explodi de raiva, sentindo meu estômago fritar e a cabeça estourar.

Desci para o refeitório faltavam alguns minutos para o meio-dia e, para meu espanto, ainda não tinha nenhuma refeição pronta. Conferi as horas no Omega, um dos relógios mais precisos do mundo, e estranhei a demora. Rômulo apareceu e, quando lhe questionei o atraso, fiquei sabendo que o almoço era servido a partir da 1h da tarde.

Voltei para o escritório sob a insistência de Rômulo para me encomendar o almoço em algum restaurante.

— Não! Hoje vou comer no refeitório — insisti.

Millos me lançou um desafio por eu nunca ter comido na empresa desde que foi inaugurado o refeitório para os funcionários. Pensamos no restaurante para facilitar a vida de todos e, como tínhamos espaço, decidimos montar a estrutura. Estive presente no primeiro dia, na inauguração, há alguns anos, mas depois disso não botei mais os pés no local.

Exatamente às 13h desci novamente pensando em usufruir de um almoço tranquilo e nutritivo, porém, o que encontrei me deixou sem ação. Primeiro, os funcionários ficaram estarrecidos ao me ver ali; percebi em seguida que apenas o baixo escalão da empresa – de coordenadores para baixo – estava comendo ali. Não havia nenhum gerente ou diretor no meio dos mais de 100 funcionários da companhia.

Contudo, o que mais me surpreendeu foi a comida. Não, não era ruim, pelo contrário, era bem preparada, mas sem nenhuma opção para substituição.

— E quem não pode comer carne vermelha? — questionei ao Rômulo, e ele apenas corou, fingindo não ouvir. — Há cardápios diferentes ao longo da semana?

Rômulo continuava a montar seu prato sem emitir qualquer resposta, o que não é nada típico dele, e isso me irritou. Quando não era para falar, o homem tagarelava, mas, quando eu precisava de respostas, ficava mudo!

— Rômulo! — chamei-o de modo mais enérgico. — Eu estou tentando entender o que...

— Não, não há! — escuto a voz do Alex e me viro para encará-lo. — E seu querido assistente não sabe informar porque não come aqui também. — Meu irmão pegou um prato e se serviu naturalmente. — A questão do restaurante entrou em pauta numa reunião de diretoria, mas o senhor todo-poderoso do Olimpo achou que não era uma questão relevante para a economia da empresa e pulou o assunto.

Olhei de esguelha para Rômulo buscando confirmar a informação, e ele atestou. Xinguei mentalmente.

— Uma empresa é feita de mais do que números, Theodoros Karamanlis — seu desprezo pelo sobrenome era evidente. — E, quando fiz a proposta do restaurante, era para que, além de economizar o tempo dos funcionários e agilizar o serviço, também tivéssemos convívio com eles, porém, adivinha quem foi o primeiro a pular do barco e a incentivar o “alto escalão” a ir junto?

Bufei de raiva.

— Quem é o responsável pela gestão do restaurante? — ignorei o discurso do meu irmão idealista e perguntei ao Rômulo.

— É terceirizada, a mesma empresa do pessoal da manutenção.

Merda!

— Marque uma reunião com ela e peça ao Kostas para avaliar o contrato. — Rômulo mais do que depressa escreveu em seu tablet inseparável. — Dispare um memorando para todos os diretores e gerentes, lembrando da existência do restaurante e informando que, a quem for almoçar fora, será necessário cumprir o horário, ou seja, uma hora e nenhum minuto a mais.

Rômulo arregalou os olhos e assentiu.

— Eu pouco vejo você e percebo que nem é preciso! Você não mudou nada, o mesmo prepotente de sempre. — Alex passou por mim, ainda se servindo no bufê, rindo de deboche, e percebi olhares curiosos em nossa direção.

— Eu preciso lembrar que você também faz parte da diretoria e tem acesso irrestrito ao conselho? — Cheguei perto para falar baixo: — Se fosse meu projeto, nunca deixaria chegar aonde chegou só porque não sou o CEO. Isso demonstra que está mais preocupado em ir contra a direção do que lutando pelo bem-estar dos funcionários. Não é minha função tomar conta de tudo, não sou absolutista, eu delego e confio naqueles a quem passo esse poder. — Ele fechou a cara, perdendo o ar de superioridade. — Não tenho intenção alguma de prejudicar os que trabalham comigo, pelo contrário. Mas assumo meu erro em não ter frequentado o local para dar exemplo.

— Mas o doutor também não tem horário certo para almoçar, por isso...

Balancei a cabeça em negativa, freando a defesa de Rômulo. Não tinha desculpas, o exemplo era meu, e eu tinha falhado. Terminei de fazer meu prato, sentei-me a uma mesa com Rômulo e almocei mesmo sentindo um nó na garganta por ter mostrado falha e ter sido repreendido pelo Alex na frente de todo mundo.

Merda!

Ao longo do dia, a repercussão do almoço do CEO no restaurante da empresa, bem como o efeito do memorando para os diretores e gerentes agitaram a tarde na Karamanlis. Percebi todo mundo mais atento, mesmo na correria de sempre.

Tive uma resposta positiva da equipe de Kostas com relação ao projeto vetado e pude passar a boa notícia ao nosso cliente. Recebi vários relatórios dos setores e subsidiárias ao longo do dia, inclusive da K-Eng, dirigida pelo Alex.

Meu irmão é um sonhador idealista, defensor dos fracos e oprimidos, um rebelde que só trabalha conosco para contrariar a família. Cospe sobre nosso sobrenome, mas faz questão de ostentá-lo para afrontar o pappoús. Sempre achamos que ele tentaria afundar a empresa em represália ao tratamento que teve na infância, mas não, ele não só assumiu uma empresa praticamente independente como a fez crescer. Todavia, ainda sinto que há algo por trás disso.

Estaciono o carro na vaga do restaurante, afastando as lembranças do dia e conferindo o endereço que Millos me enviou por mensagem. Estar sem o Dionísio nesta noite é bom, porque vou moderar a bebida, afinal é segunda-feira, e prefiro tomar um copo de uísque quando estiver no meu apartamento.

Tenho expectativa de o jantar ser bom; já o almoço foi complicado e indigesto com a discussão com o Alex e a demonstração de que deixei as coisas correrem soltas demais. Claro que não sou arrogante a ponto de achar que meu irmão não estava com a razão sobre as coisas que me disse, afinal, ele convive mais com os funcionários que eu, mas não gostei de ser contrariado na frente de todos.

Entro no restaurante, e a primeira coisa que percebo é a arquitetura do lugar e a decoração de bom gosto. Isso realmente não diz muita coisa acerca da qualidade gastronômica deles, mas já conta pontos em matéria de conforto. Uma recepcionista, bem-vestida e muito bonita, cumprimenta-me, e lhe dou o nome de Millos, que foi quem fez a reserva.

— Ah, doutor Karamanlis, ele ainda não chegou, mas o senhor pode esperá-lo no bar, tudo bem?

Respiro fundo, conferindo as horas e calculando que ele – se viesse de moto, como sempre – já deveria estar aqui. Olho contrariado para o bar, logo na entrada do restaurante, e meus olhos são imediatamente atraídos para uma mulher vestida de preto, com os cabelos longos, castanhos e lisos, tomando uma taça de vinho.

Não consigo ver todo o seu rosto, apenas o perfil, e isso é suficiente para que eu queira vê-la toda.

— Tudo bem — concordo com a recepcionista, que me aponta o bar.

Caminho para lá e me sento na poltrona alta ao lado da bela mulher. Não a olho, prestando atenção ao bartender que vem pegar meu pedido.

— Scotch, por favor. — Ele pergunta a marca. — The Macallan.

Sorrio satisfeito ao vê-lo pegar exatamente a garrafa que costumo beber e, então, de esguelha, olho para a mulher ao meu lado, procurando algum indício de indisponibilidade – ou problema –, como uma aliança em seu dedo.

Ela não usa nem mesmo anéis. No entanto, o que chama minha atenção são as unhas curtas, bem cuidadas, mas sem esmalte. Hoje em dia o que as mulheres mais fazem é colorir as unhas! Como eu gosto de arte, logo sou atraído pela variedade de cores e a combinação com as mãos e os formatos. Porém, não com ela; suas mãos são lindas, dedos longos, sem precisar de nenhum tipo de enfeite.

Subo o olhar e a encontro me olhando também.

— Boa noite! — cumprimento-a sorrindo assim que o bartender deixa meu copo no balcão.

— Boa noite! — ela responde. Sua voz me causa uma sensação de frenesi, e fico imediatamente excitado. Ela é linda em todos os sentidos da palavra. Seu rosto é delicado, proporcional, olhos expressivos, nariz fino e uma boca generosa. Fico imaginando como será seu sorriso aberto, não apenas esse polido e educado que me dá agora.

Paro de encará-la para não a constranger e tomo um gole do uísque, questionando se devo ou não puxar conversa com ela.

Não sou inseguro, nunca fui, mas às vezes uma mulher só quer estar quieta bebendo sem alguém para importuná-la, por isso sempre espero ver algum indício de que quer papo antes de abordar.

Dou outra olhada de soslaio.

Vamos lá! Quero saber quem você é!


— É a primeira vez que venho aqui — é ela quem faz o movimento, e gosto disso, uma mulher decidida. — Estou surpresa pelo requinte sem a frieza esperada desses restaurantes com esse nível. O pessoal é simpático e organizado.

Rio.

— Você é da área — constato e me viro para ela, girando a poltrona em sua direção.

— Sou. — Sorri finalmente, e me sinto extasiado com a perfeição do gesto. Os olhos ficam levemente puxadinhos, e sua face inteira se ilumina. A mulher fica absurdamente linda quando sorri. Meu interesse é real agora. — Mas hoje vim como cliente.

— Eu só venho como cliente — brinco. — Não sei fritar um ovo!

Ela ri de novo e toma um gole de seu vinho.

— O que seria dos restaurantes se todos soubessem ou gostassem de cozinhar? — Levanta sua taça em minha direção. — Aos que são apenas clientes e podem desfrutar de uma deliciosa refeição sem ficar avaliando cada nuance do prato.

— Justo! — Brindo com ela. — Qual sua formação?

— Cozinha francesa. Diplôme de cuisini e pâtisserie.

Uau!

Meu corpo inteiro vibra e meu pau reage ao som do seu perfeito sotaque francês. Acompanho sua boca em volta da borda da taça de vinho, o leve ondular de sua garganta sorvendo a bebida e sua língua resgatando os resquícios da bebida em seus lábios.

Abaixo a cabeça e bebo um longo gole do uísque, tentando não parecer um tarado assediador, mas louco para perguntar se ela prefere na minha casa ou na dela.

— Pelo francês perfeito presumo que tenha estudado na França... — Ela concorda com um sorriso. — Le Cordón Bleu?

— Naturellement. Estudar gastronomia na França sem ser em Le Cordón Bleu é como ir a Roma e não ver o Papa!

Gargalho com sua comparação e a saúdo com minha bebida.

— É como ir até a Escócia e não provar um verdadeiro uísque.

Levo o copo até a boca e acompanho o olhar dela em mim.

— Sua escolha de bebida me surpreendeu — ela comenta, e franzo o cenho, olhando meu bom e velho single malte e me perguntando qual é o problema com ele. — É uma bebida conservadora, nada sofisticada, ao meu entender, não combinou muito. — Aponta para mim.

Finjo-me de ofendido, embora segure a risada, e cruzo os braços.

— E você é uma entendida em bebidas também? — provoco-a.

A risada dela é tão melodiosa que parece música, seus olhos se iluminam e as bochechas ficam levemente rosadas. Perfeita!

— Nem queira saber! — Beberica um pouco do seu vinho. — Praticamente cresci cercada delas.

— Hum... — Sorrio. — O que combinaria mais comigo, então?

Sou submetido a um olhar avaliador, passando pela minha roupa, sapatos e rosto. Sinto tão intensamente sua atenção sobre mim que é como se ela pudesse olhar além das minhas roupas. Estou exposto, nu, cada músculo aquecendo à medida que seus olhos percorrem meu corpo, concentrando ainda mais desejo em minha virilha. Porra, que delícia!

— Pelo estilo de roupas e o Omega que usa no pulso — ergo a sobrancelha, surpreso pelo bom olho que ela tem —, um Dry Martini.

Gargalho sem me conter, e ela me segue, ambos divertidos pela comparação que ela faz. James Bond? Sim, eu sei que o mais famoso espião dos cinemas só usa relógios da Omega, mas não me vejo com uma taça de Dry Martini na mão, exigindo do bartender: “batido e não mexido”. Gosto de pensar que sou mais rústico que isso. A prova é meu single malte caubói.

— A sofisticação é só uma casca, pode acreditar. Estou longe de ser tão refinado quanto o Bond, ou tão habilidoso. — Ela levanta uma sobrancelha questionadora, demonstrando que não acredita nessa minha “humildade”. — A propósito... — respiro fundo, indo devagar — meu nome é Theo.

Mais uma vez seu sorriso faz meu pau reagir, ficando dolorosamente duro e pulsando na cueca. Que porra de atração é essa? O que essa mulher tem? É divertida, a conversa está fluindo bem, além de ser linda, mas essa atração... não é assim que acontece, ainda mais em um ambiente tão frio quanto o em que estamos.

— Maria Eduarda. — Ela estende a mão, e eu a seguro.

Tudo em volta parece vibrar, e noto que ela também sente isso. Meu sorriso se expande. Não tiro os olhos dos seus. A energia gerada pelo toque esquenta meu corpo e aumenta minha percepção do dela.

Maria Eduarda tem um belo pescoço, e o cheiro suave de um bom perfume parece advir exatamente do ponto onde eu gostaria de passar minha língua. Os ombros são delicados, os braços longos e sem nenhum contorno muscular demonstram que ela não mantém regularidade de exercícios, sendo magra ao natural. Os peitos no decote do vestido são pequenos, porém, redondos e firmes.

O vestido, embora justo, tem um tamanho comportado, por isso não posso ver suas coxas – o que é uma pena –, tão somente as panturrilhas e uns pés lindos – esses, sim, com as unhas pintadas de vermelho – em sandálias de cor clara.

Apesar de ser uma mulher atraente e bonita, não é uma beleza exótica. Sem o sorriso, ela passaria a ser apenas mais uma mulher bonita como muitas outras que existem por aí, porém, não para mim. Algo nela chamou minha atenção desde o primeiro momento. Mesmo com ela de costas, sem nem ao menos ver seu rosto direito, senti-me atraído.

Agora ela me deixa em chamas, tentado a ser direto e lhe propor uma noite de pura sacanagem. Eu o faria se o local fosse mais descontraído e tivesse mais abertura da parte dela, não só a confirmação de que se sente atraída por mim. Em uma boate, por exemplo, eu seria mais efusivo.

— É um prazer enorme encontrá-la aqui — mesmo sendo sutil, quero deixar claro que ela chamou minha atenção. — Salvou minha noite, pode ter certeza.

Ela sorri e solta minha mão.

— Quase não vim — confessa e dá de ombros. — Assunto chato, companhia chata.

Gosto da sua sinceridade.

— Negócios? — Ela assente, e eu adoro a notícia. — Geralmente os meus jantares têm o mesmo motivo.

— Então veio para uma reunião também?

Nego com a cabeça antes de responder:

— Não, hoje só vim comer. Meu primo é amigo do dono daqui e me recomendou o restaurante.

— Isso é bom, espero que esteja à altura da sua expectativa.

— Ainda que não esteja, Maria Eduarda — cruzo os braços e a encaro —, no momento estou ligando o foda-se para a comida ou o restaurante.

Ela fica séria, mas não desvia os olhos.

— É mesmo?

Não respondo de imediato, curtindo esse jogo entre nós. Aposto que ela sabe o motivo pelo qual não tenho mais nenhum interesse na gastronomia do local. Ela quer que eu diga! Quer que eu dê o passo adiante, que demonstre o interesse claramente, o que é um ótimo sinal.

Deixo o silêncio e o ar vibrar entre nós por mais alguns momentos, sem tirar meus olhos de suas belíssimas íris castanhas.

— Porque minha fome é outra desde que encontrei você aqui. — Ela segura o fôlego. — Porque nossa conversa está cada vez mais interessante. — Abaixo o tom de voz: — Porque olhar você e sentir seu cheiro acordaram meus sentidos mais do que qualquer nuance de um prato é capaz de fazer.

Minhas mãos coçam de vontade de tocá-la, de sentir novamente aquela energia sexual percorrendo meu corpo, emanando dela. Não o faço porque ainda não vi sinais suficientes para avançar a esse ponto, e eu sempre espero a permissão de uma mulher para tocá-la.

— Você nem me conhece — ela responde um pouco ofegante.

— Estou louco para conhecer. — Encosto-me melhor à poltrona e me afasto um pouco dela para demonstrar que não a estou pressionando. — Não tenho pressa, Maria Eduarda, só preciso que saiba que você me atrai e que, embora esteja sentado aqui, estou louco para segurar sua nuca e provar o sabor desse vinho que bebe, diretamente nos seus lábios.

Ela suspira e desvia o olhar.

Esse é o momento quando ou eu tomo um fora, ou venço o jogo. Porém, podem dizer que é arrogância, eu sou um homem vivido e, se cheguei até aqui, se me expus dessa forma, é porque estou apostando minhas fichas em que o tesão é recíproco.

— E se eu for casada ou comprometida?

Bingo!

Pela entonação da pergunta, sei que ela não é.

— Eu me desculparei, mesmo ainda sentindo esse desejo maluco de te beijar, e me levantarei, indo para a mesa que meu primo reservou. Não trepo com comprometidas.

Ela levanta as sobrancelhas e assume uma expressão provocadora.

— Não trepa? — Ri, cínica. — Você é muito confiante achando que basta jogar meia dúzia de palavras em cima de uma mulher sozinha em um bar para garantir uma trepada.

— Eu sou confiante. — Aproximo-me a fim de lhe demonstrar de onde vem minha confiança. — Mas não são as “meia dúzias de palavras” que vão fazer você ter vontade de trepar comigo. — Seguro sua mão e com a outra deslizo meu dedo indicador do seu punho até o cotovelo, vendo todos seus pelos se arrepiarem com o leve contato. — É isso!

Maria Eduarda fica um tempo olhando o trajeto do meu dedo sobre sua pele, assistindo, como eu, à deliciosa reação causada por meu toque. Não falamos nada, apenas acompanhamos o leve vai e vem que eu faço no seu antebraço, apreciando o contato. É nítido para mim que ela está avaliando todas as possibilidades e talvez tentando entender como isso é possível.

Já não escuto mais nada, os sons das conversas, a música clássica baixa que toca, a correria do bartender limpando copos, organizando garrafas ou preparando aperitivos. Tudo ao redor some, e só sinto a potência do tesão que ela despertou em mim, esperando que sinta o mesmo e que admita isso.

Ela sorri, mas puxa a mão, rompendo o contato.

— Como já disse, a gente nem se conhece.

— Sou paciente, Maria Eduarda. — Recebo um sorriso tímido. — Vou adorar cada momento até te conhecer. — Afasto-me dela novamente e peço mais uma dose de uísque. — Aceita mais uma taça?

Aponto, mas ela nega, olhando para a entrada do restaurante.

— Infelizmente, não. — Respira fundo. — Meu compromisso chato acaba de chegar.

Viro-me para ver quem é o sortudo que vai jantar com ela, mas só vejo o Millos entrando com uma cara debochada e um sorriso contido. Olho para Maria Eduarda novamente e confirmo que ela não só se levantou à espera do Millos, como parece muito contrariada com a presença dele.

Por que Millos iria marcar para jantar com uma mulher e comigo ao mesmo tempo? As palavras “jantar de negócios” me causam um alerta, mas me recuso a enveredar pelo rumo que meus pensamentos querem ir.

— Ah, desculpem o atraso! — Millos exclama, indo cumprimentá-la. — Que bom que já se conheceram. — Maria Eduarda franze a testa e me encara. — Theo, eu acho que chegou a hora de conversarmos pessoalmente com a Duda.

Porra!

Levanto-me como se tivesse sentado em um formigueiro, estarrecido demais para articular qualquer palavra educada que não seja um palavrão bem cabeludo.

Duda? Olho-a de cima a baixo sem poder acreditar que a mulher que me atraiu como se tivesse um ímã é a infernal dona do boteco que tem feito minha vida um suplício por causa de sua teimosia.

— Theodoros Karamanlis? — ela parece tão chocada quanto eu e já não há nada além de desprezo em sua voz ao falar meu nome.

Desvio um olhar mortal para meu primo, que, além de parecer surpreso, está também muito interessado nessa interação entre nós.

Eu vou te matar, seu filho da puta!


— Aceita mais uma taça?

Minha vontade é de aceitar e pagar para ver Theo jogando todo seu charme para mim, usando armas pesadas para conseguir provar que temos realmente toda essa química que ele demonstrou com um simples roçar de dedos em meu braço.

E temos, sim! Não sou hipócrita a ponto de me enganar dizendo que não senti nada por ele. Assim que se sentou ao meu lado aqui, a esse balcão, meus olhos foram imediatamente atraídos para ele. Quando me cumprimentou, sua voz fez meu corpo inteiro reagir de uma forma estranha, e tive a nítida sensação de que o conhecia de algum lugar.

Porém, foi só quando se virou em minha direção, depois de eu ter puxado assunto descaradamente, que fiquei sem fôlego. Seus olhos são de um azul que eu nunca poderia esquecer caso já os tivesse visto. No entanto, a sensação de reconhecimento persiste. Ele é muito bonito, além de ter um sorriso de arrancar a calcinha de qualquer mulher.

Se Manola estivesse aqui comigo, com certeza iria dizer que ficou emocionada e que molhou a calcinha. Entretanto, aprendi com o tempo e com as responsabilidades a ser mais comedida e a não me deixar levar sem pensar. Um rosto e um corpo bonitos não querem dizer muita coisa sobre o caráter de alguém.

Estou para aceitar a proposta de mais uma taça e alongar o papo, mas minha visão periférica capta um movimento na entrada do restaurante, e me sinto murchar ao ver Millos Karamanlis adentrando. Esse homem não se cansa de tentar comprar o Hill, é um saco!

Quando me ligou, eu estava pronta para dizer um sonoro NÃO a ele, mas insistiu que era importante, que tinha uma situação que me interessava e por isso achava melhor conversarmos para tentar um acordo. Isso me deixou intrigada e temerosa, por isso estou aqui, neste momento, tendo que recusar a companhia agradável e intrigante do Theo.

— Infelizmente, não — respiro fundo, respondendo ao delicioso oferecimento desse deus com cuja companhia o destino me presenteou enquanto eu esperava pelo diabo. — Meu compromisso chato acaba de chegar.

Levanto-me, resignada, para receber o homem barbudo e muito estiloso, devo confessar, mas que é uma pedra no meu sapato.

Millos abre um sorriso e se aproxima para me saudar como sempre faz, com um beijo na bochecha e um curto aperto de mãos. Tenho verdadeiro trauma dele, de estar sempre rodeando minha vida à espera de um fracasso que o deixe comprar o bar da minha família, minha casa, o legado do meu pai. Contudo, tenho de admitir que, embora pondo pressão, ele sempre me tratou muito bem e com muita simpatia.

— Ah, desculpem o atraso! — Ele olha para o Theo e depois para mim. — Que bom que já se conheceram. — O quê? Como assim? Eles se conhecem?! — Theo, eu acho que chegou a hora de conversarmos pessoalmente com a Duda.

Millos Karamanlis conhece o Theo!

Meu sensual companheiro de bar se levanta e me encara de um jeito completamente alarmado. O olhar sedutor sumiu, bem como seu sorriso franco e relaxado. Agora apenas incredulidade está estampada em seu rosto bonito.

Oh, meu Deus, não pode ser!

Claro que eu acharia que o conhecia, afinal, já vi fotos suas em revistas da alta sociedade e em jornais, embora creia que nenhuma delas lhe tenha feito jus. O homem ao meu lado não é simplesmente “Theo”, é o diretor da porcaria da empresa que comprou toda a quadra onde fica o Hill e que vem tentando de todas as formas me tirar do meu lugar!

— Theodoros Karamanlis? — minha voz soa tão incrédula como me sinto.

Como não percebi quem era esse homem? Como pude me sentir atraída por ele a tal ponto de fantasiar uma noite ao seu lado? Eu o quis como havia muito tempo não me lembrava de ter querido alguém, uma atração que não sentia desde a época em que ainda pensava que tinha o mundo aos meus pés e que conquistaria tudo o que sonhasse ter.

Millos fica um tempo com a sobrancelha erguida, olhando de um para o outro, até que resolve quebrar o gelo.

— Podemos ir para a mesa?

Eu o olho ainda sem entender que tipo de palhaçada é essa. Eles fizeram de propósito? Será que Theo veio primeiro para tentar me seduzir, afinal, nós nunca fomos apresentados, ou foi só uma coincidência ele ter chegado antes e aí resolveu brincar comigo?

Não é possível que ele não soubesse que eu sou a Duda Hill!

— Millos, o que você pretende, afinal? — Theo questiona com a voz demonstrando toda sua irritação.

— Eu não acho que temos algo para conversar. — Pego minha bolsa, que estava pendurada na poltrona giratória. — Não vou mudar de opinião, não pretendo vender o Hill.

— Por que não? — Theo questiona de repente, e eu o olho. — O que uma chef formada por Le Cordón Bleu pode querer com um boteco? — Fecho minhas mãos com força na alça da bolsa. — Ou esse papinho de Paris e seus diplomas é só um sonho fantasioso de uma dona de bar?

Millos emite um palavrão baixo, prevendo que o tempo irá fechar. Ele me conhece bem, já me irritou várias vezes e saiu do Hill com uma resposta à altura.

— O que eu quero ou não só diz respeito a mim, doutor Theodoros Karamanlis — tento falar o mais baixo possível, mas meus olhos brilham de indignação, e espero que ele entenda a mensagem. — O boteco é meu, faço com ele o que eu quiser, e de uma coisa você pode ter certeza: Não. Vou. Vender. Para. Vocês! Ficou claro agora, ou preciso desenhar? — Olho para o Millos.

— Ei! Vamos nos sentar à mesa e conversar com calma! — ele tenta apaziguar o clima tenso entre mim e Theodoros. — Theo... — pede sua colaboração, mas o homem parece estar soltando fogo pelas ventas e não lhe dá atenção. — Vocês estão chamando a atenção dos outros clientes e...

— Foda-se! — falo em uníssono a Theodoros, e Millos ri, mesmo ainda nervoso.

O maître aparece para nos conduzir até a mesa reservada, e Millos faz um gesto para que o sigamos até lá. Encaro Theodoros Karamanlis por um tempo, ambos medindo forças para ver quem cede primeiro.

— Vamos? — Theodoros pergunta, e eu assinto, passando por ele sem nem ao menos emitir uma palavra. A mesa que Millos reservou é discreta, no fundo do salão, sem nenhuma outra por perto. Sento-me com as costas eretas, sem tirar a alça da bolsa do ombro, mostrando a eles a minha contrariedade por estar ali.

— Vamos fazer um pedido?

— Não, Millos, não pretendo ficar para comer — sou direta. — Preciso apenas que me fale sobre o assunto que não quis adiantar pelo telefone. O que vocês têm a ponto de me fazer querer fechar um acordo?

Theodoros olha para ele parecendo muito mais irritado e bufa de raiva. Millos balança a cabeça e começa a explicar:

— Duda, há alguns meses estamos de posse de uma...

— Enorme quantia de dinheiro — Theodoros o interrompe. — A proposta de compra aumentou, e seria interessante a senhorita reconsiderá-la, afinal, pode abrir um pequeno bistrô para exercer o que aprendeu em Paris.

— O quê? — Millos o encara, confuso. — Olha, eu desisto! — Chama um garçom e pede uma cerveja. — Eu realmente acho que podemos chegar a um acordo, mas vocês dois são teimosos como mulas!

— Não quero nenhum acordo com vocês! — declaro. — Tudo o que quero é que parem de ficar rondando minha propriedade como dois abutres!

— Boa definição, senhorita Hill. — Theodoros se inclina por sobre a mesa para ficar mais próximo a mim. — Seu negócio está agonizante e em breve perecerá, e, quando isso acontecer, irá lamentar não ter abaixado um pouco sua crista e ter aceitado minha oferta, porque só sobrará carcaça aos abutres!

— Theo! — Millos o repreende, mas depois começa a rir. — Que conversa de doido, viu? Não esperava por isso! — Bebe sua cerveja. — Confesso que está um pouco divertido.

— Vá se foder, Millos! — mal fala isso e volta a me olhar. — Não irei repetir a oferta, Duda Hill. A aconselho a aceitar o mais rápido possível.

Meus olhos faíscam de raiva, mas meu corpo traidor se arrepia inteiro ante a expressão dele. O homem é sexy demais, insuportavelmente arrogante, mas ainda assim, muito sexy!

— Não estou interessada — uso o mesmo tom de voz que ele. — Vendo para qualquer um, menos para vocês. — Ponho-me de pé. — Espero que desfrutem do jantar sem minha companhia. Eu não conseguiria comer aqui com vocês sem ter uma enorme indigestão.

Theodoros se põe de pé também, e Millos, com um sorriso debochado, cruza os braços e fica só esperando o próximo passo do seu chefe.

— Não diga depois que não a avisei, Duda Hill.

Rio, passando perto dele para sair do salão.

— Não tenho medo de suas ameaças, Theodoros Karamanlis. — Aproximo-me para falar bem perto do seu ouvido: — Cão que ladra não morde!

Ele segura meu braço e abre um sorriso – puta merda! – cheio de malícia.

— Eu morderei, Maria Eduarda, e o farei tão gostoso que você pedirá mais!

Olho para sua mão em meu braço, e ele me solta. Respiro fundo para controlar o formigamento em meu corpo e a tremedeira em minhas pernas e saio do restaurante o mais rápido possível.

— Deseja que traga seu carro, senhorita? — o manobrista me aborda na porta do restaurante.

— Po-por favor! — Merda! Respiro fundo mais uma vez. — Sim, obrigada.

Não é possível que esse homem ainda continue mexendo com minha libido desse jeito! Durante todo o tempo em que estávamos lá medindo forças, essa tensão sexual nunca deixou de pairar entre nós. Acho até que o Millos percebeu isso!

Droga! É o Theodoros Karamanlis, Duda! Inimigo, o diabo em pessoa, que quer fazer de tudo para destruir tudo o que você tem, tudo pelo qual você lutou para manter depois que seu pai se foi!

Claro que seria muito fácil aceitar uma oferta melhor, pagar as dívidas e abrir um “bistrô”, como ele mesmo aconselhou, mas só eu sei o quanto meus pais amavam aquele pedacinho no meio da Vila Madalena, o quanto se orgulhavam de tê-lo comprado juntos, com muita luta e esforço.

Não vou deixar que um homem arrogante ponha tudo ao chão e destrua todas as lembranças que tenho daquele lugar. Não só do Hill, mas da casa onde mamãe e papai passaram seus últimos momentos antes de me deixarem. Não! De jeito algum eu irei permitir isso! Se precisar vender, o farei para alguém que se comprometa a manter o imóvel, e não para uma empresa que quer demolir tudo para erguer ali algum prédio ou shopping!

Entro no carro e dirijo para casa, ainda sentindo o toque dele reverberando pelo meu corpo, sua voz arrepiando os pelos da minha nuca e seu olhar... Há algo naquele olhar que me desperta lembranças, talvez pela tonalidade – a mesma do mediterrâneo –, ou o jeito de me olhar como se estivesse realmente faminto.

Chego a casa e encontro tia Do Carmo jantando sozinha na sala e assistindo à novela.

— Ué, não ia jantar fora? — questiona quando ataco suas panelas.

— Ia, mas o lugar estava tóxico demais para meu estômago. — Ela franze a testa, sem entender, e eu rio. — A companhia era desagradável.

— Ah, sim.

— Cadê a Tessa? — pergunto enquanto me sirvo de deliciosas costelinhas de porco e angu, sentindo meu estômago roncar e minha boca salivar. Adoro a comida dela!

— Chegou da escola, fez dever, tomou banho, jantou e dormiu. — Rio do relatório completo. — Aquela menina é um anjo!

— Sim, ela é! — concordo, cheia de orgulho.

— Descobriu, pelo menos, o que aquele pessoal da Karamanlis queria?

Sento-me ao seu lado no sofá com o prato na mão.

— Aumentaram a proposta! — Dou de ombros. — E acabei conhecendo o CEO, Theodoros Karamanlis.

— Hum, já vi fotos dele naquela revista que assino. — Rolo os olhos, pois sempre achei um desperdício de dinheiro comprar uma revista que fica cobrindo a vida de artistas e da alta sociedade paulistana. — O homem é um pedaço de mau caminho.

Acompanho-a em suas risadinhas, achando uma graça que minha tia, solteirona e virgem, fale isso de um homem. Eu nunca soube o motivo pelo qual ela nunca quis se casar, nem mesmo namorar. Perguntei a ela se algum dia teve pretensão de ser religiosa, mas negou, dizendo que não tinha o dom.

Tia Do Carmo é uma caixinha de segredos bem guardados, essa é a verdade. Do mesmo jeito que ela adora acompanhar a vida alheia nas revistas e nos programas de fofocas, não abre a boca para falar da sua, nem mesmo para mim.

Ela é como uma mãe para mim e cuida de Tessa com tanto amor e dedicação que eu não poderia pensar em uma avó melhor para minha menina, mas não quer saber de arrumar alguém, nem mesmo para se distrair um pouco.

Há uns dois anos veio trabalhar conosco um senhor muito bem-apessoado, Joaquim, que ficava na recepção. O homem arrastou um bonde pela minha tia – que é uma linda senhora de 55 anos –, mas ela nem ao menos lhe deu um segundo olhar.

Enfim, eu aprendi a aceitar que ela é feliz assim, mesmo porque não estou indo para um caminho diferente, pois mal tenho tempo para namorar alguém. Além do meu namorado francês, tive mais uns dois já aqui no Brasil. Claro que já tive algumas transas avulsas, sem nenhum compromisso, mas já faz tanto tempo que nem isso acontece que, se hímen se regenerasse, o meu certamente já estaria completo de novo.

— Ele é bonito, sim, mas muito arrogante! — informo, tentando não demonstrar o quanto fiquei interessada no Theo. — De qualquer forma, recusei mais uma vez a proposta.

— Você tem certeza disso, minha filha? O sumiço do agiota tem tirado meu sono. Você sabe como essas pessoas são, por mais que sejam conhecidos. Além do mais, te vejo trabalhar como louca e entregar o dinheiro todo para custear essas dívidas. — Ela aponta para a casa, cheia dos mesmos móveis da época do casamento dos meus pais. — Duda, a gente mal tem se aguentado em pé!

— Não nos falta nada, tia!

— Não, Duda, não estou me queixando. Realmente não nos falta nada, temos comida, um teto, e Tessa pode estudar em uma boa escola, mas vale a pena se sacrificar do jeito que está fazendo? Você não tem tempo nem para namorar!

Gargalho.

— Essa é uma das minhas menores preocupações, tia.

— Eu sei, filha, e é isso que me preocupa. — Passa a mão no meu rosto, e fecho os olhos, gostando do carinho. — Há muitos anos você só cuida das pessoas, Duda. Assume responsabilidades demais e esquece de cuidar de si mesma.

— Estou bem! — afirmo, mas meu coração entende e concorda com ela. — Assim que terminar de pagar tudo o que devemos, vou poder cuidar de mim também, não se preocupe.

Ela suspira, resignada, pois me conhece bem e sabe que sou muito teimosa. Decidi lutar até o fim para manter a única coisa que me resta e não vou descansar até conseguir estar em paz com isso, mesmo que um certo CEO muito gostoso me encha de ameaças.

Inclusive uma que pareceu mais uma promessa...


Maria Eduarda passa por mim deixando para trás o rastro delicioso do seu perfume, agitando meu corpo. Tenho vontade de segurá-la por mais tempo, de sair com ela para algum lugar onde possamos dar vazão à atração que sentimos um pelo outro desde que nos encontramos no bar do restaurante.

Todavia, não dá para simplesmente ignorar quem somos!

Fico um tempo de pé, mesmo depois de ela já ter saído do restaurante, raciocinando quais seriam as consequências se Millos simplesmente não tivesse aparecido. Olho para meu primo, tranquilo, tomando sua cerveja e provavelmente a enchendo de defeitos.

— Isso foi a pior merda que você já aprontou! — digo, atraindo a sua atenção. — E olha que você tem um longo currículo de merdas!

— Vá se foder, Theo! — Fica sério. — Eu só estava tentando um acordo entre nós.

Rio, seco, não achando nenhuma graça e não comprando nem um pouco essa conversa mole de “acordo”. Millos nunca dá ponto sem nó e me conhece bem para saber que Duda seria extremamente atraente para mim. O desgraçado fez de caso pensado, só nunca irá admitir.

Pego o celular, que deixei em cima da mesa, e, sem nenhuma palavra ou mesmo um olhar, afasto-me de Millos, indo em direção à saída do restaurante.

Ouço-o me chamar, mas não me segue, e ando decidido até a calçada, encontro o manobrista e peço meu carro. Não tenho mais clima para jantar, muito menos para olhar aquela cara debochada. Bufo, frustrado demais, com fome e com o desejo sexual insatisfeito.

Porra!

Já no carro, não dirijo diretamente para casa, mas a esmo, pensando na loucura que foi o começo da noite. O conhecimento de quem era a mulher ao meu lado deveria ter sido suficiente para aplacar minha vontade de devorá-la toda, mas nem mesmo a diminuiu.

É uma das raras atrações fortes que já me aconteceram. Geralmente não é assim, é mais um jogo de disponibilidade e vontade, uma mulher gostosa e interessante e pronto! Raramente sou atraído a alguma como aconteceu com Maria Eduarda hoje. Eu olhei para ela e a quis.

É primitivo demais até para mim, mas aconteceu. Quem ela era, o que fazia ou mesmo sua disponibilidade – embora, se fosse casada, não rolaria – não importaram para mim naquele momento. Depois, a conversa, o sorriso, o jeito como o corpo dela reagiu ao meu, tudo isso só potencializou o que foi sentido ao primeiro olhar.

Duda Hill!

Paro o carro em frente ao boteco antigo na Vila Madalena, olhando sua fachada recentemente reformada, o sobrenome da família dela na entrada e algo que nunca me chamou atenção antes, um segundo andar com janelas grandes de vidro, seguindo a mesma arquitetura do bar, tijolos à mostra e cimento queimado.

Franzo o cenho ao me lembrar do dia em que estive no local, pois não vi nenhum mezanino ou mesmo escada de acesso. Há uma porta ao lado da fachada principal, pintada com outra cor, mas que não pertence ao prédio vizinho, já de propriedade da Karamanlis.

Ela mora em cima do bar? Novamente olho para o alto e, no exato momento, uma luz se acende em um dos cômodos, iluminando a janela com cortinas claras. Um apartamento!

Como eu nunca soube disso? Para mim, o imóvel era puramente comercial, como todos os outros do entorno, nunca sequer desconfiei que a irritante mulher pudesse morar no local.

Uma sombra passa pela janela, e meu pau pulsa na calça só pela possibilidade de ser Maria Eduarda se preparando para dormir. Fecho os olhos, aproveitando a total falta de movimentação na rua – ao que parece ninguém funciona às segundas-feiras – e imagino como ela seria apenas vestindo uma calcinha ou até uma camisola sexy.

Toco-me sobre a calça, sentindo como já estou em completa ereção, então abro os olhos e xingo, voltando a pôr o carro em movimento e saindo daqui o mais rápido possível. Eu pareço um maldito stalker tarado, parado em frente ao que suponho ser o apartamento dela e fantasiando.

Caralho!

 

 

Termino de assinar o último documento e o entrego para Rômulo, que sai apressado a fim de entregá-lo para o jurídico. Temos um maldito setor de correspondência e vários boys para esse trabalho, mas meu assistente é tão controlador com suas responsabilidades que ele mesmo gosta de entregar os documentos e de pegar a assinatura de quem os recebeu no caderno de protocolo antes de os colocar no sistema.

Eu sei que é motivo de piadinha aqui seu jeito burocrático, mas é exatamente por isso que confio nele para lidar com minhas coisas na empresa. Rômulo é responsável, organizado e sua “burocracia” nada mais é do que uma forma de nos garantir, proteger nosso trabalho e a companhia.

Gemo, colocando a mão na têmpora, amaldiçoando-me por ter consumido uma garrafa inteira de uísque ontem, depois que cheguei a casa, frustrado demais sexualmente e puto comigo mesmo por estar me sentindo assim pela Duda Hill.

Troquei mensagens com Millos, ameaçando sua integridade física por conta da palhaçada de ontem. Claro que ele fingiu não ter feito de propósito, mas se esqueceu de que o conheço bem. Eu só não sei o que ele pretende ainda. Contudo, não há dúvidas de que está tramando algo.

Uma notificação de mensagem chega ao meu celular. Pego-o, lendo a mensagem deixada pela Viviane acerca de um concerto musical e uma exposição de gravuras que irá acontecer esta semana. Dispenso, sem nenhuma vontade de comparecer, mas ela insiste.

 

 

 

Sim, ela tem razão!

Preciso estar focado no que realmente é importante para mim nesse momento. Uma atração como aconteceu entre mim e Maria Eduarda ontem é garantia de uma foda inesquecível, mas só isso, não resolve meu problema, e o tempo está se encurtando cada vez mais. Preciso de uma esposa e de um filho!

 

 

 

Envio a mensagem para ela e me recosto na cadeira, olhos fechados e dedos nas têmporas, querendo a porra de um analgésico para poder trabalhar sem que pareça que está ocorrendo alguma demolição na minha cabeça. Não devia ter bebido tanto sem ter comido nada!

Cheguei a casa já arrancando a roupa e entrando no banho. Demorei por lá, esperando que os jatos fortes de água fria abaixassem a temperatura do meu corpo e trouxessem minha racionalidade de volta. Não costumo me impressionar tanto assim por uma mulher; poucas foram as que mexeram comigo dessa forma.

Olhei para baixo, e lá estava a evidência de que nem mesmo a água iria resolver o problema. Encostei a testa na parede fria e toquei meu pau, gemendo com a sensação, pronto para gozar apenas com os estímulos da noite.

Eu gosto muito de trepar, adoro ser masturbado por mãos femininas – às vezes, pés também –, mas nunca fui um punheteiro. Nunca! O prazer de me tocar nunca se comparou ao de ser tocado, por isso, quase não me masturbo. Porém, ontem, não teve jeito! O cheiro do perfume dela estava impregnado em minhas narinas, a sensação de sua pele se arrepiando sob meu toque, o sorriso, os olhares... Em poucos minutos gozei como um louco, sujando a parede do boxe, gemendo dolorosamente de vontade de senti-la.

Pela primeira vez em muito tempo, os cabelos cor-de-rosa não apareceram durante meu gozo, e amaldiçoei essa percepção. A verdade é que troquei o objeto da minha fantasia. No entanto, diferentemente da garota de anos atrás, agora eu tenho um rosto, um nome e sei onde mora.

— Estou fodido! — falo em voz alta, achando que estou sozinho no escritório.

— Vou pegar um comprimido, chefe! — a voz de Rômulo faz com que eu me aprume, arregalando os olhos em sua direção.

— Mas que porra, Rômulo! Como você consegue ser tão silencioso às vezes? — digo emputecido por estar fantasiando com a mulher de novo em pleno horário de trabalho e sob as vistas do meu assistente.

— Eu percebi que o doutor está com dores de cabeça. — Ele vasculha sua bolsa. — E... Ah! Achei! — Sorri como se tivesse inventado a fórmula da água. — Paracetamol!

Ele vai até o aparador onde ficam as bebidas a fim de pegar um copo d´água para eu tomar com o comprimido, porém, peço que me traga café.

— Tem certeza? — titubeia.

— Vai acelerar a absorção e fará efeito mais rápido.

— Chefe, isso é perigoso!

— Anda logo, porra, tem uma britadeira no meu cérebro!

Ele fica nervoso, suas mãos tremem, fazendo o café respingar sobre o móvel, e eu bufo de impaciência. Rômulo é prestativo, um ótimo funcionário, mas me questiona muito, além de ser um tanto desastrado.

Mal engulo o comprimido, e o traidor, quer dizer, Millos entra no escritório.

— Tive uma ideia e vim dividi-la com você. — Olha a xícara na minha mão. — Cheguei em boa hora! Eu gostaria de um café também! — pede ao Rômulo, e eu fecho a cara.

— Esse não é o trabalho dele — corto-o. — Rômulo, vá até o jurídico e veja se Kostas já conseguiu adiantar a papelada que faltava.

— Sim, doutor! — O assistente sai correndo da sala.

— Quer a porra do café? Pegue você mesmo! Não dê ordens ao meu assistente!

Millos levanta as mãos pedindo calma e vai até a máquina, escolhendo um sabor e um tipo de preparação antes de voltar para próximo de mim.

A dor de cabeça aumentou um pouco, mas espero que, com o remédio do Santo Rômulo, eu melhore em breve. Além disso, não quero dar bandeira de que enchi a cara na noite passada e suportar as provocações de Millos.

— Qual foi a magnífica ideia que o fez levantar a bunda de sua cadeira e vir até aqui encher meu saco?

Millos ri.

— Estamos de bom humor hoje, hein? — Pega o café e se senta. — Você quer tirar a Duda Hill do imóvel, não é? — Franzo o cenho para ele, achando desnecessário responder, esperando que tenha sido uma pergunta retórica, para o bem de sua inteligência. — Já reparou que o único pub daquela quadra é o dela?

— Você comeu merda no café da manhã? — pergunto, e ele ri. — Claro que ele é o único, os outros imóveis já estão todos vazios porque compramos todos!

— Do outro lado da rua têm duas casas de show, uma boate de strip de luxo, dois restaurantes de comida japonesa e uma pizzaria famosa. — Ele cruza os braços. — Esse foi um dos motivos de o pub ter ficado tão movimentado, a diversidade de empreendimentos próximos. É uma área à qual os jovens vão para se divertir, e ela conseguiu agregar boa comida e boa música em um só local.

Faz sentido, claro. Ela aproveitou o movimento já existente e ofereceu um diferencial, um lugar para dançar, curtir com os amigos, arranjar companhia e ainda comer seus bolinhos famosos e premiados. Sorrio de leve, sentindo-me levemente excitado por ela ter tanto tino. Gosto de mulheres inteligentes!

— Você a isolou no momento em que comprou todos os imóveis e mandou os estabelecimentos fecharem. Ela é a única opção da área...

Ele se interrompe ao ouvir uma batida à porta.

— Pode entrar — autorizo, sabendo que não é o Rômulo.

Kostas aparece, seu tamanho e largura preenchendo a entrada da sala, o olhar azul e arrogante, o sorriso debochado e os cabelos negros penteados para trás com uma espécie de pomada de brilho molhado. Meu irmão é a cópia do nosso pai, e isso chega a me causar arrepios.

— Bom dia! — cumprimenta Millos e se senta ao seu lado. — Theodoros, tenho uma notícia boa e uma ruim, qual quer primeiro? — Dá risadas debochadas, e Millos o segue.

Isso é sério? Levanto uma sobrancelha, olhando-o carrancudo.

— Fala logo, Kostas! — ordeno.

— Bem, já que você não tem nenhum senso de humor. — Pisca para Millos. — Nós já sabíamos disso, mas não custava tentar! — Meu primo assente, e eu bufo de raiva. — Vou começar pela boa. Já ingressamos com o pedido de execução da nota promissória.

— Já não era sem tempo! Preciso comemorar por você ter conseguido fazer seu trabalho?

O desgraçado ri.

— A ruim, no entanto, também é sobre isso. — Ele me estende umas folhas. — Duda Hill deu entrada no inventário judicial após a morte do pai.

Leio os papéis, mas pouco entendo de legislações e procedimentos legais, então espero que ele pare de fazer cu doce e prossiga com suas explicações.

— Que merda! — Millos exclama, e isso é o suficiente para me deixar tenso.

— O que isso significa, porra?

Kostas se levanta, anda até o aparador e se serve de água.

— Você poderia ter bourbon aqui — comenta como se estivesse aqui para uma visita social. Xingo-o. — O processo não cumpriu nem metade de seu caminho natural, caro irmão. Já está aberto há quase quatro anos e pouco avançou, e isso porque tem apenas um imóvel a ser herdado por uma única herdeira. — Ele ri. — Adivinha qual?

O Hill! Merda!

— O que isso significa em nossos planos de adquirir aquela pocilga? — Irrito-me.

— Bem, assim que for declarado o débito por causa da confissão de dívida – a promissória –, nós vamos ser credores do espólio. — Bufo pelo uso dos termos técnicos desnecessários.

É Millos quem vem ao meu resgate.

— O homem está morto, Theo, não temos como cobrar dele, apenas dos bens que ele deixou, entendeu? Isso obriga a Duda a vender ou entregar o Hill em troca da dívida. — Sorrio, achando a notícia ótima. — Mas somente quando o inventário fechar, o que pode levar anos ainda.

— O quê?! — Levanto-me, esquecendo por completo a dor de cabeça.

— É isso, caro irmão! — Kostas dá de ombros. — Seja bem-vindo à realidade da justiça brasileira, em que inventários simples duram, em média, de oito a dez anos!

— Não há outra forma de recebermos?

— Não. — Kostas ri, satisfeito. — A dívida está no nome do pai dela, então só alcança bens deixados por ele.

— A vantagem é que ela não pode vender para outro também, não é? — Millos questiona.

— Teoricamente, não, mas se o comprador não se importar em não ter a escritura, ela consegue vender, sim. Tem muita gente que faz isso. Não é legal, mas faz.

— Puta que pariu! — explodo, virando-me em direção à vidraça.

— O jeito é tentar comprar, Theo, e alegar que somos credores e que, por isso mesmo, ela só pode vender para nós — Millos fala, e Kostas concorda.

— Ela não vai vender, disse ontem!

Sou um homem muito teimoso, sempre fui, e reconheço um igual de longe! Quando Duda Hill disse ontem que não ia vender para a Karamanlis, vi a teimosia brilhando em seus olhos.

— Além do mais, pelo que soube, os negócios vão bem — Kostas complementa, deixando-me ainda mais raivoso. — Ela não precisa vender.

Olho para Millos, e ele arregala os olhos ao ver a determinação nos meus.

— Fale de sua ideia!


O despertador me acorda pela segunda vez no dia. Tenho vontade de esconder a cabeça debaixo do travesseiro e fingir que não estou ouvindo, deixar que entre em modo “soneca” e que, com isso, eu ganhe mais alguns minutos na cama.

Suspiro, abro os olhos lentamente e pego o maldito telefone para cancelar o despertador. Ganhar minutos na cama significa perder minutos do dia, e isso definitivamente é uma coisa à qual não posso me dar ao luxo. Tenho que trabalhar, organizar minha cozinha e ser a primeira a estar nela quando os demais chegarem.

Espalho-me na antiga cama de casal dos meus pais, abrindo os braços em forma de cruz e esticando todo o meu corpo. Carreguei tanto peso hoje que, nessas horas, sinto falta de não ter um homem fortão trabalhando comigo nesse negócio pesado que é transportar as compras. Tento relaxar meus músculos, fecho os olhos e deixo a mente vagar por um segundo.

Em meio aos pensamentos de paz, natureza e tranquilidade, lindos olhos azuis aparecem, sedutores, emoldurados por cílios longos e escuros que fizeram sombra em seu rosto quando ele olhou minha pele se arrepiando ao seu contato. No mesmo momento sinto um gelo na barriga – desses que sentimos quando descemos uma ladeira inesperadamente de carro –, e um tremor perpassa pelo meu corpo, desde as pontas dos dedos até a raiz dos cabelos.

Emito um grunhido de irritação por, mais uma vez, Theodoros Karamanlis se infiltrar nos momentos em que busco relaxamento e pensamentos positivos para enfrentar o dia. Tem sido assim desde aquele maldito jantar, há quase uma semana!

Sento-me, notando o quanto estou suada, pois há alguns meses meu ar-condicionado do quarto teve uma pane elétrica, e não tive nem tempo, nem dinheiro para chamar a assistência técnica. O verão chegou com tudo este ano, e as temperaturas estão ameaçando bater recordes desde o final da primavera. Vou precisar arrumar o ar ou então ir dormir no quarto da tia Do Carmo.

Confiro as horas, meio-dia e alguns minutos, e sigo rápido para tomar a terceira chuveirada do dia!

O expediente no Hill durou até às 2h35 da manhã, quando gentilmente convidamos nosso último cliente a sair. Passei a encerrar mais cedo em dias de semana, pois sábado e domingo vamos até às 4h da manhã. Fechei a cozinha para pedidos exatamente à 1h para que desse tempo de todos os quitutes ficarem prontos e nossos clientes irem embora até às 2h30. Entretanto, sempre fica um agarrado a uma cerveja num canto, sempre!

A música ao vivo, de terça a domingo – menos quando temos campeonatos de futebol, pois aí na quarta-feira transmitimos os jogos – anima o pessoal e por isso mesmo precisa ser encerrada uma hora depois do fechamento da cozinha. Há toda uma preparação para que os clientes entendam que a hora de “dar tchau” chegou.

Hoje, sábado, é o dia mais desgastante para mim, pois a cozinha irá funcionar a todo vapor até às 3h30 da manhã, aceitando pedidos até uma hora antes disso, e o bar só será fechado às 4h. E adivinhem quem fecha o bar? Exatamente, eu!

Ou seja, terei 14 horas de trabalho incessante pela frente, a partir das 2h da tarde, sendo que noite passada não aguentei ficar acordada para ir até o CEAGESP, dormi às 3h e acordei às 4h, correndo para poder pegar um pouco do pescado bom, pois a venda para o atacado começa na madrugada e vai até às 6h da manhã. Descarreguei tudo no restaurante e voltei para a cama às 9h, por isso, sim, estou acordando ao meio-dia!

Saio do banho e já coloco a calça preta – uniforme do Hill –, uma camiseta branca por causa do calor e calço chinelos. Separo o uniforme, que minha tia já deixa passado, a dolma, o avental e meus turbantes. Deixarei os cabelos secarem para depois fazer um coque alto, bem firme, para que nenhum fio possa se desprender.

— Boa tarde! — tia Do Carmo me cumprimenta assim que apareço na sala. — Vai almoçar agora?

— Vou. — Suspiro, sentando-me. — E a Tessa?

— Acabou de ir para o inglês com a Marcela e a Diana. — Assinto, lamentando não ter me encontrado com ela aqui, mesmo que depois dê uma xeretada na minha cozinha.

Mal tenho tempo para ela! Sinto-me mal por isso, tento compensar, mas queria ser mais presente e sei que Tessa sente essa necessidade tanto quanto eu. Porém, minha menina já é tão madura que entende que essa rotina louca na qual vivo não é por minha escolha.

Tia Do Carmo me serve de sua comida simples, bem temperada e absurdamente viciante, e eu não penso em mais nada a não ser apreciar a iguaria. Ao longe, enquanto como, ouço o barulho da máquina de costuras dela, em seu quarto, trabalhando sem parar. Ela é teimosa e está sempre aceitando encomendas de reparos ou confecção de roupas, principalmente para o pessoal da igreja que frequenta.

Somos farinha do mesmo saco, teimosas ao extremo, e ela me culpa por eu recriminá-la por querer ajudar. Não é só por teimosia ou orgulho que peço tanto a ela para que se poupe, pois se aposentou há alguns anos por invalidez exatamente por passar horas e horas costurando desde menina e com isso ter ganhado algumas hérnias de disco ao longo de sua coluna.

A verdade é que, se não fosse pelas dívidas, eu poderia dar uma vida bem melhor a elas. O Hill vai muito bem, cada vez mais conhecido, atraindo clientes para essa área que nem é tão famosa por ter bares. Contudo, o boca a boca tem se espalhado pela cidade e trazido com ele nossos clientes.

Termino de comer, lavo a louça e termino de me arrumar para descer e só voltar no meio da madrugada. Faço uma oração curta antes de descer e grito para tia Do Carmo:

— Tia, estou no Hill se precisar de algo!

— Vai com Deus, minha filha! — grita de volta, cessando a costura. — Tente descansar em alguns momentos!

Apenas rio, porque a cozinha é uma correria aos finais de semana, e é impossível me sentar por uns minutos sem que alguma coisa desande, já que atendemos em média 400 clientes por sábado e uns 350 no domingo. O volume de comida que processamos é tão grande que fazemos compras nas madrugadas de terça, quinta e sábado.

Poderia até ir ao CEAGESP menos vezes, mas prefiro trabalhar com os ingredientes o mais frescos possível e, graças à câmara fria que instalamos, já me dei ao luxo de parar de ir todas as madrugadas. Vou sempre às terças e sábados e deixo Manola se virar na quinta-feira. A mulher adora ir para lá e demora o dobro do tempo que eu levo, sempre conversando com os comerciantes, pechinchando horrores e fazendo amizades. Como ela é sozinha, está sempre com o caderninho de telefone preenchido para quando quer companhia, e como trabalha como louca aqui, seu lugar de fazer contatos é lá na central de abastecimento.

Confesso que me divirto muito com suas histórias, assim como todo o resto de nós da cozinha.

Abro a entrada principal do bar, pois, infelizmente, quando papai montou o local, não pensou em saída de emergência, mesmo porque na sua época era todo aberto, então, quando transformei o boteco em um pub, tivemos que sacrificar a porta usada para carga e descarga e transformá-la para que estivéssemos em dia com a legislação dos bombeiros e da própria prefeitura.

Sempre que entro, já deixo a porta de aço aberta e tranco somente a de vidro, deixando um pouco de sol entrar através das paredes de vidro temperado.

Sigo diretamente para a cozinha, mas anotando mentalmente tudo o que precisará ser limpo com mais afinco, resultado da noite anterior. No bar, sempre tenho a satisfação de passar e ver o asseio do Kiko, seus utensílios todos nos lugares, limpos e secos, as chopeiras sem nenhum traço de respingo de chope, o chão brilhando.

Abro a cozinha, e o cheiro dos produtos de limpeza que usamos há algumas horas, assim que encerramos as atividades, recepciona-me. Faço meu coque, como sempre, ponho o turbante, lavo as mãos e começo a trabalhar, colocando alguns alimentos de molho, descongelando outros e conferindo as receitas, bem como o funcionamento de todos os equipamentos.

Ouço o barulho da porta, e uma risada preenche o lugar, indicando que Manola chegou junto ao seu fiel escudeiro, Arnaldo.

— Boa tarde, chef! — ela me cumprimenta, indo para o banheiro dos funcionários. — Hoje o Naldo está impossível!

— Você é que não aguenta ouvir umas verdades, Manola. — Arnaldo vem até onde estou e me dá um beijo na testa. — Carinha de cansada hoje, boneca!

— Dia de compras... — Aponto para a caixa de camarão no gelo que tirei da câmara para ele limpar. — Divirta-se!

— Ai, minha santa protetora dos dedos furados! — geme.

— Use luvas! — Manola grita, vindo do banheiro trajando o uniforme, seus cabelos ruivos presos em uma trança e seu turbante cheio de beijos já na cabeça. — No dia em que você perder um dedo, ainda processa a Duda!

— Deus me livre, Manola! — Bato na bancada de inox, e ela ri.

— É na madeira, querida! — Joga um beijo para mim e as luvas de fio de aço para o Arnaldo. — Não vai te proteger contra o camarão, mas quando for limpar as carnes, faça o favor de usá-las!

— Oui, chef! — ele debocha.

— Abusado! — diz, pegando as panelas guardadas e já as colocando no fogão. — Vou adiantar os molhos enquanto a Ana não chega. Ela ia levar o filho ao dentista hoje.

— Eu sei — concordo ainda lavando as folhas e temperos. — Cláudia também vem mais tarde hoje, mas adiantou muito suas sobremesas ontem. Trabalhou dobrado!

— Estou louca por aquela torta de duas mousses que fez! — Geme e estala a língua. — Adoro maracujá com chocolate, e a danada não me deixou pegar nem uma provinha!

— Diabetes te diz algo? — Arnaldo alfineta.

— Tenho pré, idiota! — Ressalta: —Pré-diabetes!

Rolo os olhos, já antevendo uma discussão sobre a quantidade de açúcar que ela não deve ingerir.

Minhas tardes são sempre assim, entre o trabalho na preparação para a noite e as conversas, discussões ou músicas dos meus colegas de trabalho. É bom, faz o tempo passar depressa e não deixa o serviço tedioso.

— Terminou aquela receita nova que estava escrevendo? — Arnaldo me pergunta um tempo depois.

— Ainda faltam uns ajustes, mas estou sem tempo para testar. — Dou de ombros. — Final de ano, né?

— Por falar nisso... — Manola se aproxima. — Como andam as encomendas? O pessoal gostou do menu deste ano?

— A Hana me entregou ontem uma pequena lista de encomendas. Ao que parece, o menu foi bem aceito, sim.

Manola bate palmas, e eu sorrio aliviada.

Todo ano abrimos o Hill e servimos pequenas ceias para o pessoal que não quer ter trabalho, mas percebemos que seria mais interessante, para nós e para nossos clientes, se houvesse um menu prévio e as encomendas entregues em casa.

Como começamos o delivery este ano, programei um menu com três tipos de proteínas – peru, bacalhau e presunto – e vários tipos de acompanhamento. As variações vão desde a mais simples e barata até as sofisticadas, dignas de um chef de cuisine, mais caras.

Por incrível que possa parecer, o menu luxo tem vendido mais do que o comum, e isso, além de me dar muito orgulho de ver minhas receitas tão bem aceitas, ainda me concede maior lucro.

Por conta desse menu especial, não abriremos o Hill para o público na véspera do Natal, daqui a alguns dias, e nem no dia, retomando as atividades somente no dia 26 de dezembro. Teremos que trabalhar muito para atender aos pedidos, mas tenho certeza de que daremos conta e que em pouco tempo encomendar a ceia no Hill será uma tradição.

É preciso manter a fé depois de tudo o que já passei na minha vida; sem ela, eu esmoreço. Não digo propriamente uma fé religiosa, mas a de desejar boas coisas, pensar positivo, manter a chama da esperança acesa de que tudo vai dar certo.

— Boa tarde! — a voz de Tessa faz meu sorriso se agigantar, e paro o que estou fazendo para ir abraçar minha pequena menina. — Ei, mãe, não!

Ela tenta correr ao ver minhas mãos molhadas, mas, quando a alcanço, explode em gargalhadas e me abraça apertado.

— Estava com saudades! Como foi a aula?

— Legal! — Faz um joia com a mão. — Ei, tia Manola!

— Tia uma ova! — Manola repreende, mas ri. — Sou no máximo sua irmã mais velha, pirralha!

Tessa gargalha de novo e faz gesto de que Manola é maluca, rodando o indicador ao lado da cabeça, e Arnaldo libera sua estridente gargalhada ao concordar com a menina.

— Quer alguma coisa especial daqui hoje? — pergunto, mas sem muita esperança.

— Não, tia Do Carmo disse que vai fazer lasanha à noite, e você não faz lasanha aqui!

— Não faço! — Cutuco suas bochechas com os indicadores bem onde elas formam covinhas quando Tessa sorri. — Cláudia fez uma torta especial. Vou levar para você mais tarde.

— Tem chocolate? — indaga animada.

— Tem, sim, pirralha! — é Manola quem responde. — E se ela tiver direito a um pedaço, eu, como irmã mais velha, também tenho!

Tessa mostra a língua para ela, Arnaldo ri, e eu balanço a cabeça, pois as duas parecem realmente irmãs, brigam e implicam uma com a outra, mas se adoram. Minha pequena se despede, e a acompanho até a entrada do bar, só voltando para a cozinha ao vê-la fechar a porta do acesso ao nosso apartamento.

Deus do Céu, como é bom ver minha menina feliz!

A segurança e a felicidade de Tessa são minhas prioridades, e vê-la crescendo tendo essas duas coisas me dá ânimo para aguentar mais um dia de trabalho e não pensar em coisas ruins. Nem mesmo nos Karamanlis, ainda que um deles tenha mexido comigo de tal forma que volta e meia está nos meus pensamentos – e não pelo motivo pelo qual deveria estar!


— Me and Mrs. Mrs. Jones, Mrs. Jones, Mrs. Jones, Mrs. Jones, we've got a thing going on. — Dedilho o arranjo ao piano, sentindo o peso dessa canção sobre mim e volto a cantar: — We both know that it's wrong, but it's much too strong to let it go now.3

Há anos não toco essa música tão famosa na voz do Billy Paul, mas algo me impulsionou a fazê-lo esta noite. Nada específico, creio eu. Contudo, meu interior está conturbado como há muito tempo não o sinto.

O paletó do terno que vesti hoje está em cima de uma das cadeiras da sala de jantar, a gravata precariamente pendurada sobre a borda do piano, enquanto estou aqui, camisa social semiaberta, mangas arregaçadas, uma garrafa de uísque em cima do instrumento e meu copo já quase vazio. Não parei de tocar desde que cheguei do concerto musical e apresentação de novos artistas de gravuras que ocorreu em uma galeria de artes aqui perto.

A verdade é que, desde quando Viviane me mandou o convite, não tive nenhum interesse em ir, embora fosse algo que geralmente chamaria minha atenção. Tive uma semana fodida demais, e não havia nenhum clima para entretenimentos. Tudo o que eu queria era uma massagem gostosa e uma trepada de alívio.

Termino a música e recosto a cabeça nas teclas do piano, quase não me reconhecendo. Não estou normal! Talvez essa época do ano, próxima demais do Natal, mexa comigo, evoque sentimentos que há muito tempo pensei ter perdido.

Sinto falta da Vanda nesta casa! Olho em volta e bebo o restante da dose de uísque. Tudo está tão vazio, tão silencioso, tão... estéril. Não tenho mais ninguém me esperando quando chego do trabalho, nenhum cheiro de tempero quando entro na cozinha – ou mesmo de café, porque o dela é incrível –, não há conversas amenas.

Não há nada!

Balanço a cabeça, irritado com o rumo dos pensamentos, com a energia negativa deles dentro de mim. Maldita semana!

O desastre começou na segunda-feira com aquele encontro deliciosamente desastroso com Duda Hill; depois aumentou com a notícia que o filho da mãe do Kostas nos deu sobre o imóvel onde funciona o Hill Wings.

A proposta de Millos ressoa em meus ouvidos, e, por mais que eu não ache muito sentido no que me propõe, penso se não é um caminho a seguir. Nunca fui um homem de indecisões. No entanto, entendo que, nesse assunto em particular, não posso me mover por impulso.

Volto a escutar a voz de meu primo como se estivesse aqui e o ouço apresentar todos os motivos para embasar sua ideia.

— Nosso erro foi deixá-la sozinha naquela rua, sem nenhuma concorrência! — argumentou.

— Quando fechamos a compra do último imóvel, aquilo lá ainda era só um pé-sujo com meia dúzia de clientes bêbados — justifiquei em contrapartida. — Não tínhamos com o que nos preocupar!

— Esse foi o erro do coelho naquela fábula — Kostas ironizou. — A arrogância do “já está no papo!”.

— Você falando de arrogância? — Ri, e Millos disfarçou seu riso também. — Não tem se olhado no espelho, não?

Kostas apoiou seu indicador logo abaixo da sobrancelha, ao lado do olho e me deu um meio sorriso e um olhar de desprezo. Ergui minha sobrancelha e balancei a cabeça, enfrentando-o. Se o bostinha achava que iria me intimidar como faz com seus advogados, estava muito enganado!

— Já terminaram de testar a testosterona de ambos? — Millos reclamou. — Minha ideia faz todo sentido! Se alugarmos algumas lojas próximas ao estabelecimento dela, damos a concorrência necessária para que recue um pouco no crescimento que vem tendo!

— Sabe o que não entendo? — Kostas interferiu. — Se ela vem fazendo tanto sucesso quanto vocês gostam de afirmar, por que não quitou a maldita promissória?

— Talvez não tivesse tido o suficiente ainda, pois, como o “agiota” mesmo informou, ela andava pagando os “juros” para que ele continuasse paciente — respondi. — Ademais, ela não poderia pegar um empréstimo para quitar uma dívida como essa.

— A verdade é que o pilantra nunca iria liberá-la da dívida. — Concordei com o ponto apresentado pelo Millos. — Gastamos quase o dobro do que a promissória realmente vale, e ele já tinha recebido anos de juros da Duda. O homem é um espertalhão!

— Então você acha que, colocando mais alguns bares naquela rua, teremos mais chances de quebrá-la? — inquiri. Millos assentiu, mas vi um leve sorriso no rosto de Kostas e, sinceramente, não gostei dele. — Como controlaríamos isso?

— Kostas! — Millos aponta. — Podemos amarrar bem o contrato de aluguel, especificando a atividade que o locador deve exercer.

— Isso é legal? — perguntei.

— Não posso dizer no contrato o que ele deve vender, mas posso amarrá-lo à atividade que já exerce, ou seja, se trocar de ramo, deixa o imóvel. — Olha para o Millos. — O pessoal da corretagem, que por sinal é subordinado ao nosso querido e esperto primo, é quem deve ter em mente quais são os tipos de locadores que devem aceitar.

Concordei, mas ainda não estava completamente convencido.

— Pense na questão. — Millos se pôs de pé. — Tempo é o que não falta, pelo que Kostas disse.

Meu irmão o acompanhou, o sorriso estranho ainda em seu rosto, como se estivesse acontecendo algo que só eu não soubesse.

Dali em diante, tudo pareceu ainda pior! Os dias se arrastaram até esta sexta-feira, vários setores da empresa dando problemas justamente nesta época em que o pessoal já parece estar entrando em ritmo de festas e esquecendo um pouco a nossa tão famosa correria paulistana.

Só soube que Valentina seria minha acompanhante nos eventos artísticos no meio do expediente, quando Viviane me ligou para perguntar se eu tinha o endereço do apartamento da moça.

— Você me disse que ela estaria lá, não que iria comigo! — resmunguei. — Nós mal trocamos algumas palavras naquele vernissage!

— Theo, meu querido, você quer ou não quer uma maldita esposa?! — minha sócia perdeu a paciência.

— Porra, mas não assim! Não precisava agir tão descaradamente como se eu estivesse desesperado, merda!

— Ela é a melhor candidata com que você já esbarrou por aí! É amante das artes como você, vem de uma família tradicional e rica como a sua, é linda, jovem e tem todos os infindáveis requisitos que você listou para a futura senhora Karamanlis! Dê uma chance a ela!


CONTINUA
Acordei de ressaca hoje, e não foi por causa da quantidade de bebida que ingeri no vernissage; aquela quantidade, eu nem consideraria como beber. Viviane ficou puta por ter encarecido o orçamento com garrafas do meu uísque preferido e eu não estar bebendo, por isso, depois do evento, reuni todas as que sobraram e trouxe para meu apartamento.

Pensei que ia passar uma noite solitária, acompanhado apenas de um single malte e discos de jazz, mas, no meio da minha encenação de lobo solitário, Millos ligou me convidando para ir até seu loft. Neguei várias vezes, mas a porra do homem estava tão excitado com a cerveja que havia feito que não parava de insistir.

Resultado? A bebida realmente estava um espetáculo! Enchemos a cara, mesmo sob meus protestos, pois nunca curti muito beber cerveja, e comemos uns tira-gostos tão saborosos que teci elogios a sua habilidade na cozinha.

— Ah, não fui eu quem preparou, não! — Riu. — Encomendei no Hill.

Quase cuspi aquela porra para longe e o fuzilei com os olhos.

— Porra, eu querendo que aquela merda feche e você comprando lá? Está do lado de quem afinal?

— Do meu estômago! — respondeu comendo mais um dos bolinhos. — Estava com vontade de ter um acompanhamento, mas sem nenhum saco para preparar. Me lembrei do dia em que fomos lá e quis conferir se ainda continuavam tão gostosos!

— Ainda não te perdoo por aquela arapuca! — acusei.

Há uns dois anos, Millos me convidou para comemorar seu aniversário, coisa que vez ou outra fazemos quando ele está em clima de festa. Eu lhe disse que o encontraria no local, mas ele insistiu em me buscar em casa, e, quando chegamos e percebi que era no Hill, fiquei bem puto, mas a curiosidade de saber o motivo pelo qual o boteco estava se tornando um sucesso me impulsionou a entrar.

O que eu não contava era que, além de a mim, o filho da puta tinha convidado meus irmãos. Ficamos lá os quatro como se fôssemos bons amigos, compartilhando da armadilha de Millos. Aposto que Kostas e Alex detestaram cada momento, mas sorrimos, bebemos e experimentamos os quitutes da tal da Duda Hill.

Mesmo não gostando de admitir, era fato que a mulher sabia o que estava fazendo na cozinha. Os bolinhos tão tradicionais de um boteco tinham um requinte diferente, embora mantivessem a essência. Era como se ela conseguisse melhorar o que já era perfeito, e isso, tenho que admitir, é um dom.

Confessei isso ao meu primo? Nem sob tortura! Repreendi-o por ter comprado lá, aleguei que ela podia ter mandado envenenar os quitutes – fazendo um drama desnecessário, culpa da bebida –, mas não parei de comer.

— Ah, pedi a Sami para comprar para mim — respondeu.

— Você ainda está saindo com ela? — questionei surpreso, pois havia muito tempo não via a motoqueira que, de vez em quando, orbitava em volta dele.

— Não! Somos amigos, já disse isso, mas parece que você só enxerga a boceta de uma mulher, come até suas “amigas” — fez referência a Viviane.

— Por que você não gosta dela? — Provoquei: — Porque ela é independente, dona de si mesma e diz o que pensa?

— Não! Eu não curto mulher assim para comer, mas não tem nada a ver com o fato de eu achá-la fria e calculista, e nunca escondi isso de você. Aquela mulher gela meu sangue!

Ri do seu exagero, afinal, a Vivi não tem nada de fria. Millos implica com ela pelo simples fato de a mulher ter personalidade e não se deixar comandar por ninguém. No primeiro momento ele se sentiu atraído, Vivi é um espetáculo aos olhos, e ela também não disfarçou o interesse. No entanto, bastaram alguns minutos de conversa para que se odiassem.

— Hoje ela conseguiu algo incrível — comentei. — Valentina de Sá e Campos, já ouviu falar?

Ele riu.

— Dela não, mas conheço os sobrenomes. Família paulistana tradicional, bom currículo. — Cruzou os braços e me olhou debochado. — A futura senhora Theodoros Karamanlis?

— Talvez — fui sincero. — Conversei um pouco com ela nesta noite, achei-a divertida, inteligente e sedutora. A princípio achei que era muito nova, mas é madura e independente, cheia de opinião. Gosto do tipo.

— Eu sei. — Ele se levantou e foi pegar mais cerveja. — Foi Viviane quem te apresentou a ela? — Assenti. — Não sei se gosto disso, mas boa sorte.

Gargalhei pela implicância dele com a Vivi e resolvi desviar o assunto. Falamos da Karamanlis, de música, de motos e, por fim, já muito bêbado e com sono, caí sobre o sofá dele e acordei há pouco, com torcicolo e com uma puta dor de cabeça.

— Ei! — Millos me saúda estendendo uma xícara de café. — Você está destruído!

O desgraçado ri, mas nem posso mandá-lo tomar no cu, porque minha cabeça trepida parecendo que há uma britadeira no meu cérebro. Maldita cerveja! Malditos bolinhos envenenados da Duda Hill!

— Cara, você é fraco para minha cerveja! — Millos ri. — Ficou boa, não é? — Apenas assinto, ainda tomando o café para melhorar meu ânimo. — O que está programado para fazer nesse final de semana?

— Vou trabalhar. Como saí um pouco mais cedo ontem por causa do vernissage, Rômulo separou umas pastas para que eu lesse nesse final de semana. Coisa chata, principalmente da pauta da reunião do conselho.

— Por falar no conselho... — Ele se senta ao meu lado no sofá e apoia os pés descalços sobre a mesinha de centro. — Ontem tive notícia do Kostas. — Ri. — Parece que tomou um toco feio da Kika e está cuspindo marimbondos.

Gargalho, esquecendo a dor.

— Como queria ter visto esse embate!

— Eu também.

Bufo, mesmo divertido, lembrando que o meu problema continua.

— Preciso trazê-la de volta para a empresa com urgência. Há vários projetos dos hunters parados, e o Rômulo não está dando conta de organizá-los.

Millos rola de rir no sofá.

— Esse seu assistente é muito estranho. Sinceramente não entendo como você ainda o mantém trabalhando contigo!

— Gosto de ele ser metódico. — Dou de ombros. — É organizado, embora meio desastrado, nunca perde um prazo e faz tudo o que eu peço.

— Seu próprio espelho, não é? Nunca conheci ninguém mais chato que você para organização.

Ergo uma sobrancelha para ele e olho em volta para seu loft cheio de espaço, mas sem nenhuma lógica ou senso de estilo. Millos gosta de coisas rústicas, e respeito isso, acho legal, mas é tão bagunceiro que seus móveis caros de design parecem ser cacarecos de alguma casa demolida.

Os únicos locais arrumados são: a cozinha, o “laboratório” de cerveja (como ele mesmo se refere ao local) e onde dorme. O resto... tem peças de motos para todos os lados, mesmo a oficina ficando na parte de baixo do galpão que ele chama de loft, tem barris com os ingredientes que compra para a fabricação de cerveja, roupas, discos e óculos (nunca vi tantos para uma só pessoa) espalhados por todos os lados.

O homem é um caos completo em casa, mas, se alguém entrar na sala dele na empresa, vai acreditar que é o epítome da organização. Não entendo como consegue!

— Bem, sobre a Kika, eu posso te adiantar que não precisa se preocupar — Millos continua. — Falei com ela ontem, e vai voltar.

Expiro o ar, aliviado.

— Porra, Millos, porque não me contou antes? É um alívio do cacete não ter que lidar com mais esse problema e...

— Mas ela não quer ser mudada de andar.

— O quê? Ela está fazendo exigências?

Millos penteia a barba com os dedos, enervando-me com sua calma.

— Demonstramos desespero ao mandar o Kostas pedir arrego. — Concordo com ele nesse ponto. — Ela quer aumento, continuar no andar e... — Tenta conter o sorriso, e prevejo que vem bomba, mas ele vai dar um doce do cacete para falar.

Perco a paciência e esbravejo:

— O que mais ela quer?!

— Carta branca para mandar seu irmão se foder à vontade.

— Porra!

Ponho as mãos na cabeça, sentindo a dor de cabeça voltar com tudo e ouvindo a risada debochada do Millos.

Eles querem me enlouquecer, só pode!

 

 

A dor de cabeça me acompanhou ao longo de todo o final de semana. Tomei analgésico, antiácido e – seguindo os conselhos do meu primo – mais um pouco de cerveja. No entanto, não consegui me livrar do incômodo insistente.

Trabalhei o sábado inteiro, recebendo ligações do Rômulo quase de hora em hora, a ponto de ficar puto com ele e mandá-lo caçar algo para se divertir e me deixar em paz. Compreendo que ele queira me ajudar, mas, às vezes, sua dedicação exacerbada me estressa.

Recebi um convite para jantar de uma antiga amante que vinha a São Paulo de tempos em tempos, mas neguei. Queria apenas relaxar um pouco em casa depois de ter trabalhado em páginas e mais páginas de relatórios com uma dor de cabeça chata a me distrair.

Pedi comida em um restaurante de comida vegana, achando que pudesse ser a gordura dos bolinhos do Hill – velha e rançosa, com certeza – que me deu essa indisposição e resolvi assistir a alguns filmes antigos. Sou fã de “O poderoso chefão”, então comecei a assistir a cada um deles de novo.

Novamente dormi em um sofá, mas acordei melhor e resolvi correr um pouco. Passei umas duas horas no Ibirapuera e, na volta, encomendei o almoço de domingo, sentindo-me um pouco órfão sem a Vanda em casa.

Liguei para Millos a fim de fazermos algum programa à tarde, mas ele estava com alguma mulher em algum clube ou lugar que só Deus sabia, então voltei aos relatórios, e isso consumiu o resto do dia.

Debaixo do chuveiro, rememorando este final de semana de merda, ouço meu telefone tocar, mas o ignoro. Coloquei os jatos no mais forte possível para tentar aliviar um pouco a tensão que venho acumulando nesses dias. A verdade é que preciso trepar um pouco, divertir-me, talvez fazer uma viagem ou passar um final de semana com alguém sem pensar no trabalho.

A imagem da Valentina vem à minha mente, sua conversa gostosa, seu sorriso bonito. Contudo, ainda não me sinto completamente certo de que devo me envolver com ela, principalmente por uma questão: não senti muita atração.

Sei que isso é de momento e que pode mudar, principalmente se a convivência for boa. Nem sempre sentimos atração pela pessoa no primeiro encontro, e já vivi anos demais para saber que até um primeiro encontro explosivo pode depois esfriar e o tesão ser extinto, então, não me baseio apenas nessas primeiras impressões.

Fecho os olhos e penso na garota da boate há alguns anos. Ela vem preenchendo minhas fantasias há muito tempo, talvez por ter sido gostoso daquela vez e não ter tido mais notícia dela.

Mal lembro do seu rosto, de tão bêbado que estava, sempre quando fantasio vejo os cabelos e me lembro da loucura que foi nossa transa naquele banheiro.

O telefone volta a tocar, e desligo o chuveiro, saindo do boxe para ver quem é o chato. Rio ao ver o nome do Millos. Na mosca!

— Já terminou sua maluquice sexual com a “submissa” da vez? — provoco.

— Vá se foder e não se meta nos meus assuntos — rosna. — Liguei para saber se amanhã pode ir comigo a um restaurante que um amigo inaugurou nos Jardins.

— Boa comida ou é boteco?

— Não, seu fresco, é coisa fina! Vanda ainda não estará de volta, não é?

Suspiro, resignado.

— Não, ela ainda vai ficar um tempo no Rio de Janeiro. Está certo, amanhã combinamos isso melhor no escritório.

— Okay! — diz animado. — Vai almoçar no refeitório junto aos funcionários?

— Sempre há uma primeira vez, não é? — Deixo a toalha no suporte e sigo para o closet. — Além do mais, confio que servimos algo de qualidade aos funcionários.

Millos ri.

— Essa eu quero ver! Nos encontramos no almoço, então! Boa noite, Theo.

— Boa noite!

Desligo o telefone e me olho no espelho, lembrando-me do tempo em que comia qualquer coisa e em qualquer lugar, na maioria das vezes sujo e fedendo a peixe, sentindo-me feliz e livre.

— Quem é você, Theodoros Karamanlis?


O dia nem bem amanheceu, e eu já estava suando na academia com a Sandra. Hoje, sem Millos, o treino foi mais tranquilo, seguindo o ritmo normal dos exercícios. Tomei meu café sozinho na cozinha – café puro mesmo – sentindo imensamente a falta da Vanda, de sua conversa matutina animada e seus cuidados. Posso não admitir sempre, mas gosto de ser cuidado, de sentir esse afeto, coisa tão rara na minha vida.

Limpei os pensamentos e saí para trabalhar.

— Bom dia, Dionísio! — cumprimentei o motorista como em todos os dias, já pegando meu jornal para me inteirar sobre as principais notícias do dia. — Hoje vou almoçar na empresa, mas, à noite, vou sair do escritório direto para jantar com Millos.

— Levo o doutor ou trago o carro?

— Traz o carro, vou dirigindo.

Ele assentiu, e seguimos viagem em silêncio, ele concentrado no trânsito, e eu, nas notícias de economia do país e do mundo.

Cheguei à empresa já apagando incêndios. Um dos projetos de um cliente foi reprovado por uma comissão municipal, então Kostas teve que intervir mandando seus advogados e acompanhando todo o processo. Eu, como CEO, fiquei aguentando a aporrinhação do gerente responsável pela implantação da empresa multinacional aqui no Brasil.

Nem vi a hora passar, mal tomei meus cafés tão tradicionais ao longo da manhã, irritado com esse problema, com o Rômulo borboleteando ao meu redor me enchendo de perguntas: “quer café?”, “ligo para o doutor Konstantinos?”, “quer um calmante?”. Eu quase explodi de raiva, sentindo meu estômago fritar e a cabeça estourar.

Desci para o refeitório faltavam alguns minutos para o meio-dia e, para meu espanto, ainda não tinha nenhuma refeição pronta. Conferi as horas no Omega, um dos relógios mais precisos do mundo, e estranhei a demora. Rômulo apareceu e, quando lhe questionei o atraso, fiquei sabendo que o almoço era servido a partir da 1h da tarde.

Voltei para o escritório sob a insistência de Rômulo para me encomendar o almoço em algum restaurante.

— Não! Hoje vou comer no refeitório — insisti.

Millos me lançou um desafio por eu nunca ter comido na empresa desde que foi inaugurado o refeitório para os funcionários. Pensamos no restaurante para facilitar a vida de todos e, como tínhamos espaço, decidimos montar a estrutura. Estive presente no primeiro dia, na inauguração, há alguns anos, mas depois disso não botei mais os pés no local.

Exatamente às 13h desci novamente pensando em usufruir de um almoço tranquilo e nutritivo, porém, o que encontrei me deixou sem ação. Primeiro, os funcionários ficaram estarrecidos ao me ver ali; percebi em seguida que apenas o baixo escalão da empresa – de coordenadores para baixo – estava comendo ali. Não havia nenhum gerente ou diretor no meio dos mais de 100 funcionários da companhia.

Contudo, o que mais me surpreendeu foi a comida. Não, não era ruim, pelo contrário, era bem preparada, mas sem nenhuma opção para substituição.

— E quem não pode comer carne vermelha? — questionei ao Rômulo, e ele apenas corou, fingindo não ouvir. — Há cardápios diferentes ao longo da semana?

Rômulo continuava a montar seu prato sem emitir qualquer resposta, o que não é nada típico dele, e isso me irritou. Quando não era para falar, o homem tagarelava, mas, quando eu precisava de respostas, ficava mudo!

— Rômulo! — chamei-o de modo mais enérgico. — Eu estou tentando entender o que...

— Não, não há! — escuto a voz do Alex e me viro para encará-lo. — E seu querido assistente não sabe informar porque não come aqui também. — Meu irmão pegou um prato e se serviu naturalmente. — A questão do restaurante entrou em pauta numa reunião de diretoria, mas o senhor todo-poderoso do Olimpo achou que não era uma questão relevante para a economia da empresa e pulou o assunto.

Olhei de esguelha para Rômulo buscando confirmar a informação, e ele atestou. Xinguei mentalmente.

— Uma empresa é feita de mais do que números, Theodoros Karamanlis — seu desprezo pelo sobrenome era evidente. — E, quando fiz a proposta do restaurante, era para que, além de economizar o tempo dos funcionários e agilizar o serviço, também tivéssemos convívio com eles, porém, adivinha quem foi o primeiro a pular do barco e a incentivar o “alto escalão” a ir junto?

Bufei de raiva.

— Quem é o responsável pela gestão do restaurante? — ignorei o discurso do meu irmão idealista e perguntei ao Rômulo.

— É terceirizada, a mesma empresa do pessoal da manutenção.

Merda!

— Marque uma reunião com ela e peça ao Kostas para avaliar o contrato. — Rômulo mais do que depressa escreveu em seu tablet inseparável. — Dispare um memorando para todos os diretores e gerentes, lembrando da existência do restaurante e informando que, a quem for almoçar fora, será necessário cumprir o horário, ou seja, uma hora e nenhum minuto a mais.

Rômulo arregalou os olhos e assentiu.

— Eu pouco vejo você e percebo que nem é preciso! Você não mudou nada, o mesmo prepotente de sempre. — Alex passou por mim, ainda se servindo no bufê, rindo de deboche, e percebi olhares curiosos em nossa direção.

— Eu preciso lembrar que você também faz parte da diretoria e tem acesso irrestrito ao conselho? — Cheguei perto para falar baixo: — Se fosse meu projeto, nunca deixaria chegar aonde chegou só porque não sou o CEO. Isso demonstra que está mais preocupado em ir contra a direção do que lutando pelo bem-estar dos funcionários. Não é minha função tomar conta de tudo, não sou absolutista, eu delego e confio naqueles a quem passo esse poder. — Ele fechou a cara, perdendo o ar de superioridade. — Não tenho intenção alguma de prejudicar os que trabalham comigo, pelo contrário. Mas assumo meu erro em não ter frequentado o local para dar exemplo.

— Mas o doutor também não tem horário certo para almoçar, por isso...

Balancei a cabeça em negativa, freando a defesa de Rômulo. Não tinha desculpas, o exemplo era meu, e eu tinha falhado. Terminei de fazer meu prato, sentei-me a uma mesa com Rômulo e almocei mesmo sentindo um nó na garganta por ter mostrado falha e ter sido repreendido pelo Alex na frente de todo mundo.

Merda!

Ao longo do dia, a repercussão do almoço do CEO no restaurante da empresa, bem como o efeito do memorando para os diretores e gerentes agitaram a tarde na Karamanlis. Percebi todo mundo mais atento, mesmo na correria de sempre.

Tive uma resposta positiva da equipe de Kostas com relação ao projeto vetado e pude passar a boa notícia ao nosso cliente. Recebi vários relatórios dos setores e subsidiárias ao longo do dia, inclusive da K-Eng, dirigida pelo Alex.

Meu irmão é um sonhador idealista, defensor dos fracos e oprimidos, um rebelde que só trabalha conosco para contrariar a família. Cospe sobre nosso sobrenome, mas faz questão de ostentá-lo para afrontar o pappoús. Sempre achamos que ele tentaria afundar a empresa em represália ao tratamento que teve na infância, mas não, ele não só assumiu uma empresa praticamente independente como a fez crescer. Todavia, ainda sinto que há algo por trás disso.


CONTINUA

Uma família separada pelo ódio...
Criado pelo avô, renegado pelo pai, odiado pelos irmãos, Theodoros Karamanlis recebeu o cargo de CEO da empresa da família. Sua principal meta é provar a todos que é mais competente do que o homem que sempre o renegou, seu pai. Para isso acontecer, falta apenas comprar o imóvel onde funciona um pequeno pub na Vila Madalena e assim fechar uma conta aberta há mais de dez anos.
Uma família mantida pelas lembranças...
Maria Eduarda Hill sempre teve o sonho de ser uma renomada chef de cozinha, mas, por circunstâncias do destino, acabou assumindo o antigo boteco de seu pai na Vila Madalena. Ela trabalha duro para manter o negócio e preservar a memória de sua família e luta bravamente contra o assédio de uma empresa que quer comprar e demolir o lugar.
Uma noite, um bar, e uma química explosiva...
Depois de cair em uma armadilha e conhecer a irritante cozinheira que o impede de fechar o maior negócio de sua empresa, Theo se vê dividido entre essa forte atração, conquistar o que seu pai não foi capaz e uma promessa feita ao avô. Por mais que resista, o grego não consegue ficar longe de Maria Eduarda, então começa uma implacável sedução para tê-la em sua cama.
Theo e Duda têm tudo para se odiarem. No entanto, mal sabem eles que a paixão não se conduz pelo óbvio!
A todas as Jujubas do meu potinho cheio de amor!

 

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— Parabéns, doutor Karamanlis! — Rômulo, meu assistente, soa exultante ao me cumprimentar. — Falta pouco agora para o senhor conseguir fechar essa conta! — Olha sua agenda. — O senhor tem uma reunião com o doutor Villazza daqui a...

Não dou muita atenção à falação dele, muito menos aos elogios animados. Sei bem que, embora tenha dado um passo gigante, ainda não conquistei minha vitória, não enquanto não tiver cumprido todas as metas que tracei para minha gestão à frente do negócio da família.

Olho para a parede esquerda do meu escritório, diretamente para o mapa emoldurado cujo círculo abrange a única propriedade que falta ser comprada para termos a total posse do quarteirão que mais tem se valorizado na área da Vila Madalena.

Foi exatamente por causa dessa bendita área que meu pai, o poderoso Nikolaous Karamanlis, perdeu seu reinado por aqui e foi substituído por seu renegado filho mais velho. Tenho consciência de que Rômulo tem razão quando me parabeniza pelo trabalho à frente da empresa. Millos, meu primo, e eu temos feito uma gestão muito produtiva, mas ainda não consigo estar satisfeito, não enquanto não conseguir comprar o último pedaço de terra daquele lugar.

Millos tem tentado me convencer a não me cobrar tanto sobre essa questão, afinal nem temos um cliente para instalar nessa área, perdido há muito tempo, quando meu pai prometeu o lugar e não conseguiu cumprir a promessa. O que ele não entende é que há muito tempo isso deixou de ser apenas um negócio, é uma questão de honra conseguir aquilo que meu progenitor não alcançou.

Balanço a cabeça ao pensar no meu pai e na nossa conturbada convivência. Não, não é hora de pensar em todas as merdas que aconteceram na nossa família!

Levanto-me e sirvo uma dose do meu puro malte favorito para relaxar um pouco, querendo já estar em casa.

Casa... Essa palavra me faz pensar em meu país, a Grécia e me desperta outra lembrança dolorosa: meu avô e a promessa que fiz a ele. Geórgios Karamanlis está prestes a completar 90 anos, mas, como diz o ditado por aí, vaso ruim não quebra facilmente. O homem que me criou, que me ensinou tudo sobre os negócios agora exige de mim uma família.

Uma família! Rio debochado a esse pensamento, a essa palavra tão sem sentido na minha vida e na dos meus irmãos. Família não significa nada mais do que pessoas que compartilham a mesma linhagem, pois os Karamanlis não são conhecidos por laços além dos de sangue. Somos todos fodidos de alguma forma, cada um com suas merdas para carregar, seus fantasmas e esqueletos no armário.

Somos ótimos trabalhando juntos, mas é só.

Não sei da vida particular de nenhum dos meus irmãos mais do que sei da de qualquer outro funcionário da empresa. Muito menos me importo com isso! Todos são adultos e, se querem continuar agindo como crianças chorosas e traumatizadas, o problema não é meu.

Rômulo volta à minha sala cheio de pastas com arquivos e me avisa que o carro já me aguarda para me levar até o Villazza SP, onde, além de conversar com Frank, vou aproveitar para almoçar no Vincenzo com ele como companhia, pois detesto comer sozinho.

Enquanto meu assistente se instala à sua mesa, passo na antessala e me despeço da Luíza, secretária da diretoria, deixando meu celular corporativo para trás, pois não quero ser incomodado na hora do meu almoço.

— Estou indo para a reunião com o CEO da rede Villazza; qualquer assunto, anote o recado. — Aponto para o celular. — Volto daqui umas duas ou três horas, pois vou almoçar por lá.

— Certo, doutor Karamanlis.

Despeço-me dela e sigo para a garagem subterrânea do prédio onde fica a nossa empresa, fundada no Brasil há décadas, instalada bem no coração da cidade de São Paulo, a Avenida Paulista. Tenho orgulho de ser o diretor executivo daqui; orgulho do nome e do respeito que conquistamos ao longo dos anos.

O setor imobiliário no Brasil passa por algumas crises, como acontece também no mundo inteiro, mas não para de avançar. Há sempre pessoas querendo moradia, empresas atrás de locais para seus negócios, então nós nunca ficamos sem fechar bons acordos rentáveis.

Meus pensamentos são levados para os Yannes, uma rede de resorts de aventura que tem unidades instaladas nos locais mais incríveis do mundo. Essa tem sido uma conta difícil, por causa de todos os entraves legais desse tipo de empreendimento, mas que, pelas últimas notícias que tive, isso irá ser solucionado em breve.

Sorrio largo ao pensar na Malu Ruschel, uma das minhas melhores gerentes e, com certeza, futura diretora da Karamanlis. A mulher é uma máquina de trabalhar, tanto que tive que a obrigar a tirar férias, mas a danada até descansando é atenta e descobriu o local que tanto procurávamos para o resort.

Malu, além de competente, é linda demais! Confesso que sempre tive uma enorme curiosidade de saber como é ter toda aquela tensão, toda aquela organização e meticulosidade debaixo do meu corpo, gemendo de prazer. Balanço a cabeça, afastando esse pensamento.

Mesmo me sentindo muito atraído por ela, nunca iria tentar qualquer coisa. Não por medo ou insegurança, pois acho que nos daríamos muito bem na cama, pois ela aparenta ser uma mulher segura de si, madura e que sabe separar o prazer do coração. Definitivamente, Malu não é daquelas que se apaixonam!

O que me impede de buscar um entendimento íntimo com ela é puramente ético. Eu não como funcionárias; por mais tesão e vontade, não faço isso. Ao contrário do meu irmão, Kostas, eu as enxergo como iguais e detestaria ter algum machista questionando a capacidade de uma delas apenas por estar trepando com o chefe. E, infelizmente, isso acontece muito nas empresas por aí. Quando um homem recebe uma promoção, é porque mereceu, mas, se é a mulher quem recebe, não foi por merecimento, mas porque ela tem uma boceta! É simplesmente ridículo e, por isso mesmo, prefiro não me envolver. Se há algum diretor ou gerente fazendo isso, é pelas minhas costas – porque todos sabem que não aprovo – e é discreto demais, pois isso não chegou aos meus ouvidos.

A regra geral na empresa é: evitem relacionamentos dentro do ambiente de trabalho, porque isso só causa problemas. Agora, se isso acontecer e as duas partes concordarem, acabarem se acertando, eu não as demito ou proíbo. Não sou babá de marmanjo! Há casais na Karamanlis, a maioria formada lá dentro mesmo. Eu seria hipócrita se fingisse que não há. Não me sinto à vontade para manter um caso com qualquer uma das minhas funcionárias, mas não sou arbitrário a ponto de, se acontecer com outros, demitir um ou mesmo os dois envolvidos.

Minha consciência diz que isso é só mais um dos traumas que carrego, mas a ignoro, mandando-a se foder.

Chego ao Villazza e sou recepcionado rapidamente pela assistente do Frank, Alice.

— Bom dia, doutor Karamanlis. Desculpa tê-lo feito vir para o hotel, mas é que estamos com uma pequena reforma na sala da diretoria no prédio administrativo, então viemos para cá.

— Sem problema, Alice! — Sorrio. — Eu vou aproveitar para almoçar com o carcamano no Vincenzo.

Ela faz careta.

— O senhor Villazza tem outra reunião na hora do almoço e vai sair daqui direto para ela.

Dou de ombros, resignado.

A parte administrativa do Villazza SP fica toda no térreo, mas Frank optou por usar uma das suítes preparadas como home offices, duplex com um escritório completo embaixo e quarto no mezanino.

— Espero que não esteja usando este lugar apenas como desculpa para comer fora do casamento... — falo assim que o vejo, concentrado em sua mesa. — Se Isabella te largar, juro que me caso com ela.

— Dovrai prima uccidermi, maledetto!1

— Não me tente, Frank Villazza! — Aperto sua mão. — Estou sendo pressionado.

O carcamano ri à minha custa.

— Seu pappoús2 ainda está querendo vê-lo casado? — Faço careta e assinto. — Você deveria levá-lo em consideração.

— É incrível como Isabella te domou! — Cruzo os braços e me sento em uma confortável poltrona. — Eu ainda me lembro de seus discursos anticasamento. — Rio. — Lembra como você se apresentou a mim naquele bar?

Frank sorri, embalado pelas lembranças de um tempo em que ainda ostentava o título de playboy. Nós dois aprontamos muitas coisas juntos, principalmente na época de Harvard, onde nos conhecemos. Promovemos algumas orgias, dividimos a mesma parceira, fumávamos baseados juntos e frequentávamos clubes de sadomasoquismo.

Nossa última aventura foi meses antes de ele conhecer sua esposa. Frank estava de férias na Itália, e, assim que eu soube que ele estava em Roma, chamei-o para me visitar em Atenas. Naquela semana em que ficou hospedado no meu apartamento, ele tentou de todas as formas me convencer a participar de um congresso na Suíça que ocorreria meses depois, mas para o qual era preciso garantir vaga. Nossos outros companheiros de Harvard já haviam feito reserva, mas eu declinei do convite, pois já estava me preparando para ir morar no Brasil e assumir a Karamanlis.

Viajamos de iate pelas ilhas naquela semana e, numa das mais belas do mar Jônico, fomos a uma boate muito louca, bebemos todas, e eu tive a trepada mais memorável da minha história.

Eu ainda me lembro dela! Era linda, corpo sarado, com uma barriga plana e de cintura fina de fora. Usava uma blusinha curta e minissaia de couro. Nos pés, botas altas, salto agulha, destacando suas pernas deliciosas. A mulher era um espetáculo para os olhos e me atraiu como ninguém.

Os cabelos, longos e pintados de rosa, balançavam ao ritmo da música. Ela estava acompanhada com mais cinco amigas, todas bem bonitas, sendo que duas delas desapareceram com Frank ao final da noite.

— Cazzo! — Frank xingava excitado ao vê-las dançando e nos oferecendo brindes com seus copos. — São muito novinhas!

— Foda-se! — eu disse sem conseguir tirar os olhos da mulher de cabelos rosa. Eu esperava apenas um movimento dela, apenas um sinal de que estava disposta, e, quando ele veio, olhei para meu amigo com um sorriso vitorioso. — A do cabelo rosa é minha!

Fomos até o grupo, dividimos suas bebidas – elas estavam bem abastecidas —, e, mesmo sem nenhuma apresentação, comecei a dançar com a beldade de cabelos coloridos. Frank ainda me dizia que eram garotas muito novas, ressaltando que deviam ter a idade de sua irmã caçula. Ele estava sempre tentando não trepar com moças jovens e inexperientes, mesmo que já tivesse sido surpreendido algumas vezes por elas, mas sempre acabava cedendo, como de fato ocorreu.

O dia estava amanhecendo quando duas se penduraram nele ao mesmo tempo, e o filho da puta parecia o rei do prazer. As duas se esfregavam nele, que as fazia tocarem uma à outra também, divertindo-se como um sultão. Sinceramente não senti nenhuma inveja; a mulher que estava comigo me deixava louco com sua dança, com nossos amassos e seus beijos etílicos. Eu queria sair dali, levá-la para algum hotel e passar o resto do dia a fodendo em desespero.

Ela dançava como se o mundo lhe pertencesse, movimentando seu corpo ao som das melodias, os músculos pulsando a cada batida, olhos brilhantes em minha direção e um sorriso safado no rosto. Tudo o que eu podia fazer além de tentar não enlouquecer de tesão era acompanhá-la, resvalar em sua pele acetinada quando colidíamos um no outro durante a dança e sentir nesse pequeno contato como se a mais viciante droga estivesse entrando em meu sistema.

— Preciso ir ao banheiro. — Parou, rindo, e apontou para um corredor do outro lado da pista. — Devo estar toda borrada e despenteada...

— Besteira! — respondi.

Seu inglês perfeito tinha um leve sotaque, mas, como as suas companheiras falavam em francês entre si, presumi que fosse por causa disso. A boate já estava vazia. Acompanhei-a até a porta do banheiro feminino e fiquei esperando do lado de fora.

Quer dizer, a intenção era essa!

Fui tomado de assalto quando ela apareceu e, sem dizer nada, simplesmente me arrastou para dentro do banheiro. O pequeno cômodo com várias repartições, espelhos e pias estava vazio. Excitado como um touro, não titubeei ao levá-la até um dos cubículos com vasos sanitários.

Esmaguei-a contra a parede de mármore, levantando-a no colo com suas pernas encaixadas nos meus quadris. Eu conseguia sentir a maciez de suas coxas, e ela, pelo jeito que gemia, sentia meu pau duro contra sua boceta ainda protegida pela calcinha. Estávamos bêbados demais para pensar, excitados demais para esperar, só queríamos provar o corpo um do outro e gozar juntos o prazer que tinha sido anunciado a noite toda.

Os gemidos dela me enlouqueciam. Eu sentia minha calça ficando úmida e, quando toquei sua calcinha, rosnei como um cão ao descobri-la completamente encharcada. Eu queria chupar aquela mulher, ouvi-la gritar de prazer, provar seu sabor até estar ainda mais bêbado e inebriado por ela.

Porém, ela tinha pressa!

Gargalhando como quem está numa grande aventura, abriu o botão da minha bermuda e puxou meu pau para fora da cueca, agarrando-o com força, fazendo-o doer, arrancando-me um gemido de antecipação. Ela se sentou no vaso e o engoliu com sua boca pintada de vermelho.

Fechei os olhos e deixei que ela fizesse o que quisesse, usasse sua língua, lábios e dentes. A sensação daquela boca quente e molhada sugando meu pau ainda mexe comigo, mesmo sendo apenas uma lembrança. E não é à toa, afinal quase gozei em sua garganta quando ela mordeu meu pau, encarando-me perversamente.

Puxei-a até a colocar de pé, virei-a de costas para mim, busquei uma camisinha no bolso de trás da bermuda embolada no chão e invadi sua boceta apertada, socando com força, levantando-a a cada vez que estocava, vendo seu rabo redondo e empinadinho se abrindo contra meus quadris.

Foi uma loucura sem tamanho, dentro de um banheiro público, numa boate praticamente vazia, ao nascer do dia, depois de passar a noite inteira dançando com ela.

— Goza para mim, safada! — eu dizia em seu ouvido, gemendo, mordiscando o lóbulo de sua orelha. — Goza sem se importar se estão ouvindo ou não! Foda-se!

Levei uma de minhas mãos para o meio de suas coxas, achei seu clitóris – o acesso facilitado por causa da depilação total que ela adotava – e o massageei até que ela se contorcesse.

— Grita! — ordenei, e ela obedeceu. — Porra, gostosa, encharca meu pau!

Não aguentei muito mais e tive que dar murros contra a parede de mármore do cubículo, tamanha a intensidade do prazer que senti.

Puxei meu pau de dentro dela, encarando-a completamente embevecido com sua beleza, com seu jeito safado, sorriso malicioso e olhos brilhantes. Joguei a camisinha no lixo e a puxei para fora daquele banheiro, pensando em levá-la para uma volta no iate.

— Ei! — uma das amigas, das que não tinham acompanhado Frank mais cedo, chamou-a. — Temos que resgatar a Allly e a Èlene, senão vamos perder o voo!

— Voo? — inquiri assustado.

— Temos que voltar para Paris — ela disse.

— Agora? — Ela assentiu. — Não!

A gostosa que acabara de gozar no meu pau e me dera um orgasmo fenomenal se aproximou, depositou um selinho na minha boca e se afastou.

— Foi uma noite deliciosa!

Bufei, resignado, não satisfeito, porque ainda queria comer mais aquela mulher, experimentar todo o seu corpo jovem, pele macia, músculos duros e tenros. No entanto... tinha valido a trepada no banheiro. Eu não ia sair correndo atrás dela implorando por mais.

— Boa viagem! — despedi-me.

Ela apenas piscou, sua maquiagem pesada, cílios longos e pintados da mesma cor que os cabelos. Desapareceu para sempre, sem nem mesmo me dizer como se chamava.

— Ei, stronzo, para de sonhar! — Frank ri, e eu volto a prestar atenção ao que ele fala. — A área que eu quero não é muito grande, apenas o suficiente para...

— Do que você está falando?

— Porca miseria, Theo! A casa de praia que quero construir para minha família, cazzo! O motivo pelo qual te chamei aqui! Está com a cabeça onde, porra?!

— A do meu pau? Enfiada naquela garota dos cabelos rosa naquela boate. Mal lembro do rosto dela, mas as sensações...

— Coglione! Está precisando de uma mulher pra foder, porra?!

— Não! — Lembro-me da que deixei essa manhã na cama. — Foi só uma lembrança. — Aprumo-me. — Vamos falar de negócios!


São Paulo, meses depois.


— A mulher anda irredutível! — Millos conversa comigo enquanto tomamos café. — Há anos tenho ido pessoalmente tentar negociar a compra, mas ela se recusa e tem conseguido manter suas contas em dia.

Desvio meus olhos do computador.

— Ela já sabe que temos a promissória?

— Não, simplesmente me expulsou de lá a pontapés quando fui tentar negociar! — Ri. — Você sabe que eu não curto uma mandona, mas ela me deixou levemente excitado.

— Porra, Millos, não fode o assunto! — Meu primo ri e deixa sua xícara vazia sobre o pires. — Já temos a dívida do pai dela; o que estamos esperando para executá-la? Isso a deixará sem alternativa a não ser vender o maldito bar para quitá-la!

— Theo, é uma promissória assinada há quase dez anos! Vamos ter que cobrar e...

— É para isso que aquele desgraçado do Kostas está aqui! — grito sem paciência. — Eu não aguento mais esses irlandeses no meu caminho!

— Ela é brasileira, Theo, o pai é que era...

— Foda-se! — Bato na mesa. — Tenho um diretor que não queria ter porque a porra da Malu Ruschel desertou para ficar embrenhada no mato com um peão e, ainda assim, não consigo fechar essa maldita conta!

— Ele conseguiu comprar a dívida do agiota e...

— Você está se escutando?! — Passo as mãos pelos cabelos. — Um diretor nosso negociou – sabe-se lá como – com um agiota! Esse mesmo cara está por aí, lidando com nosso dinheiro, comprando e vendendo imóveis em nosso nome! Não confio uma vírgula nele!

Millos se levanta e desenrola as mangas da camisa para esconder suas tatuagens. Eu não entendo por que ele cisma em manter essa pose conservadora aqui dentro da empresa, mas, como bem sei, cada um dos Karamanlis é fodido de algum jeito. Apesar da barba cheia e grande e do brinco que nunca tira, ele anda pelos corredores vestido de terno e gravata, sapatos de couro e uma pose de empresário burguês que só convence quem não o conhece.

— Eu preciso daquele quarteirão, Millos!

— Nós nem temos um cliente para ele...

— Foda-se! Quero a merda do quarteirão! — Ele concorda. — Vire-se para conseguir!

— Vou conversar com Kostas sobre a execução da promissória.

— Faça isso! Meu irmão pode ser um babaca filho da puta, mas é bom no que faz.

— Engraçado é que ele diz o mesmo de você!

O taciturno, mas incrivelmente inteligente grego sai da sala sacudindo a cabeça, sem entender como é que conseguimos trabalhar juntos sem nos matar. A verdade é que trabalhamos muito bem! Temos todos os mesmos propósitos, deixar nosso nome marcado na história desta empresa.

Nenhum Karamanlis da minha geração saiu ileso à maldição familiar. Todos temos fantasmas e esqueletos escondidos em nossos armários, traumas da infância, da adolescência ou apenas somos fodidos de nascimento. A amizade que tenho com Millos é algo que fugiu à regra, pois nutrimos sentimentos verdadeiros entre nós que vão além dos laços sanguíneos que nos unem.

O restante... bem, eu não conheço o restante o suficiente para julgar ou sentir qualquer coisa por eles. Nós nos suportamos por causa da empresa, do dever para com nosso nome e, claro, do respeito ao pappoús.

Kostas, alguns anos mais novo que eu, é um advogado competente, também um babaca arrogante que fala com qualquer pessoa se achando o rei de todo conhecimento e inteligência. Por vezes tenho que lidar com as merdas dele aqui dentro da empresa, principalmente quando sua falta de tato extrapola os limites de sua diretoria e acaba afetando outras.

Alex, um dos caçulas, é engenheiro, criativo, tem bons relacionamentos com todos na empresa, menos com a própria família. É o único que não faz nenhuma questão de agradar qualquer que seja dos Karamanlis, chegando por vezes até a renegar o nome em alguns trabalhos, quando assina apenas o sobrenome de sua mãe.

Kyra, a única menina e a mais nova de todos os filhos de Nikkós, é a única que não tem qualquer relação com os negócios da família. Montou sua empresa, não usou nossa grana, não tem qualquer contato – a não ser quando contratamos seus serviços em eventos – conosco. Suspiro ao pensar nela, principalmente porque ela não dirige a palavra a mim há mais de duas décadas.

O ponto de equilíbrio, o conciliador, a nossa Suíça, para explicar melhor, é o Millos. Meu primo tem relacionamento com todos os irmãos, escuta e aconselha a todos e, ainda assim, consegue permanecer neutro dentro da confusão que é essa família nada ortodoxa. Todos o conhecem por sua serenidade, sensatez e capacidade de pensar com racionalidade mesmo em meio ao caos. No entanto, eu sei a verdade! Por baixo de toda a placidez aparente, Millos esconde um lado seu que chega a me arrepiar os pelos.

A verdade é que nem mesmo o Karamanlis mais sensato é são!

Ando pelo escritório, noto cada detalhe da decoração, trazendo à mente o significado e o momento em que cada peça aqui disposta foi comprada. Algumas delas são remanescentes de um relacionamento que tive há alguns anos com uma decoradora de interiores; entre uma foda e outra, avaliávamos os objetos juntos e os comprávamos. Poucas aqui vieram de casa, na Grécia: uma deusa Atena esculpida em Carrara, um relicário da minha avó e um tinteiro do vovô.

Um fato sobre mim que me deixa orgulhoso é que sempre gostei de arte. Mesmo não tendo nenhum tipo de aptidão para pintura e escultura, gosto de apreciá-las, de viver cercado pelo belo, diferente e único. É claro que valorizo muito os clássicos, as obras e artistas já consolidados, mas meu faro empresarial também sabe reconhecer um iniciante com potencial, por isso tenho muitos investimentos na área.

Para estar por dentro de tudo o que acontece, preciso viver constantemente ligado a esse mundo, e isso, no momento, tem gerado alguns problemas. Fora compromissos e reuniões de trabalho, meu lazer é praticamente frequentar exposições, vernissages, festivais e até concursos. Por conta disso, só tenho me envolvido com mulheres do meio – o que para mim é maravilhoso, afinal, além do sexo, tenho o plus da conversa –, e a maioria delas não se encaixa no perfil da futura senhora Theodoros Karamanlis.

Pode parecer machismo, talvez seja, mas vocês hão de convir que, por mim, nunca haveria uma senhora Theo Karamanlis. Contudo, não posso deixar de atender a um pedido do meu avô. Imagina se o velho Geórgios, ateniense tradicional, aceitaria ver o neto mais velho se casando com uma artista alternativa, cheirando a incenso e tintas?

Esse é um dos motivos pelo qual comecei a frequentar as galerias mais chiques e tradicionais, com o pessoal da alta-roda paulistana e deixei de lado esse meu lado indie de aquarelas e carvão. Não entendam mal, não desgosto de estar nesse meio mais rebuscado, claro que não, arte é arte, e eu a aprecio de qualquer forma, mas é fato que as mulheres são bem diferentes. As descoladas são sempre mais divertidas.

Já que tenho que me casar, não quero um mero compromisso de conveniência. Por isso estou procurando, conhecendo, abrindo-me a encontrar uma pessoa com a qual eu me veja acordando de manhã e me deitando ao lado à noite. Se a encontrei? Não! Mais uma vez peço a vocês que não me entendam de forma errada. Eu não procuro por amor, essa porra já provou a mim que só serve para deixar o homem idiota e burro, então nem está sendo considerada. O que eu preciso é de uma parceira, uma mulher que eu consiga ver ao meu lado como amiga, além de ser a mãe dos meus filhos. Esse é o problema! Eu não as vejo assim, pelo menos nenhuma que tenha conhecido até agora.

Confiro as horas no Omega que uso no pulso esquerdo e balanço a cabeça. O tempo não para! Vovô não está ficando mais novo; eu não estou ficando mais jovem, e as chances de eu confiar o suficiente em uma mulher a ponto de pedi-la em casamento e gerar uma criança são quase nulas!

— Doutor Karamanlis? — Rômulo me chama, interrompendo meus pensamentos preocupados. — A reunião sobre o terreno para a rede de shoppings começa em 10 minutos...

— Obrigado, estarei lá. — Caminho até minha mesa para pegar umas anotações. — A equipe da senhorita Reinol já está posicionada?

Meu assistente apenas assente, ainda parado à porta, um tanto tenso, mais do que o normal.

— Algum problema? — inquiro diretamente, esperando a reposta positiva, pois é óbvia.

— Eu não me sinto à vontade para contar isso, mas...

— Pare de dar voltas e diga de uma vez! — A impaciência toma conta de mim, e de novo questiono minha sanidade ao manter o Rômulo como meu assistente. Ele é competente, sim! Organizado? Muito! Entretanto, tem umas manias que me tiram do sério, e, infelizmente, a falta de objetividade é uma delas. — Rômulo!

Ele pula assustado com o tom da minha voz e fecha os olhos, torcendo as mãos. Dá-me paciência!

— Aconteceu uma pequena desavença há pouco lá na sala de reuniões e... — bufo, arrependido, pois odeio fofoca — a Kika abandonou a apresentação e disse que o Leonardo é quem vai falar com o cliente.

Arregalo os olhos, surpreso.

Wilka Reinol, a Wilka a quem ele se referiu, é nossa gerente de hunter, ou seja, é a responsável pela equipe que pesquisa os imóveis de acordo com a necessidade dos clientes. Assim que a Malu Ruschel nos deixou para bancar Maria Chiquinha no meio do mato, foi natural que Kika assumisse a gerência, pois se mostrou pronta para a responsabilidade durante o período de férias da antiga gerente. Ela é um pouco mais solta que a Malu – que era um tanto obcecada pelo trabalho –, mas tão responsável e obstinada quanto a outra.

Kika, sob meu ponto de vista, tem tudo o que a Malu tinha e mais a humanidade necessária para o serviço. Ela sabe liderar a equipe, é carismática, todos os funcionários do prédio a conhecem, gostam dela e fazem de tudo para ajudá-la. Alex, meu irmão, brinca que, se a presidência da Karamanlis fosse por voto popular, ela ganharia fácil, e é bem provável.

Por isso mesmo, saber que alguém conseguiu irritá-la a ponto de fazer com que ela abandone uma apresentação na qual se empenhou... Respiro fundo, já sabendo o que aconteceu.

— Kostas?

Rômulo parece que vai desmaiar.

— É... Ele estava conversando com ela antes de... — Faz um gesto nervoso com as mãos. — Eu não sei o que houve, mas o pessoal ficou todo tenso e pediu para eu vir buscá-lo.

Não! De novo, não!

Há alguns meses, eu tive que apartar uma briga feia dos dois, quando Kostas decidiu interferir no trabalho da Malu no afã de fechar a conta do Grupo Yannes. A ex-gerente ainda estava no Pantanal, e Kika era quem gerenciava em seu lugar, e a pequena morena colocou o dedo bem no meio da cara do meu irmão, de mais de 1,90m, sem titubear nenhuma só vez.

Secretamente eu torci por ela, querendo vê-la dando uns bons tapas naquela cara anglo-grega e deixando o nariz dele, já quebrado sabe Deus lá como, ainda mais torto. Nunca tive tanta vontade de incitar a guerra, mas me lembrei do motivo para o qual tinha sido chamado e tentei conciliar os dois.

Kika, ainda bufando, mandou-nos à merda e saiu da sala batendo a porta. Kostas ria, mas eu pude perceber que havia um brilho de admiração nos olhos dele. Nós não estávamos – e nem estamos – acostumados a defender alguém com unhas e dentes como ela fez com a Malu. Foi realmente admirável e providencial, porque logo depois tudo se revolveu, e o próprio Kostas admitiu que as duas estavam certas ao não apresentarem a fazenda pantaneira ao cliente.

Depois desse episódio, no entanto, os dois passaram a se evitar, e a paz voltou a reinar na Karamanlis, o que me faz voltar a pensar no que aconteceu dessa vez para que a trégua tenha tido fim.

— Você vai atrás da Kika. — Rômulo fica branco. — Vou ter uma palavrinha com o meu irmão.

— Mas ela... — o assistente tenta argumentar, tremendo de medo.

— Coragem, Rômulo! — Passo por ele, segurando o riso por vê-lo apavorado por ter de falar com a Kika. — Ela não vai te arrancar pedaços... — Sorrio para ele. — Pelo menos, não muito grandes!

Escuto-o gemer e não resisto mais. Gargalho.


Andar pela Karamanlis sempre foi algo complicado. Não por causa das dimensões do prédio, que também não é pequeno, mas porque sempre cruzo com um ou mais gerentes ou diretores, e eles sempre têm algo a comentar comigo. Sempre!

A empresa ocupa do décimo ao vigésimo andar do enorme prédio comercial na Paulista. Os andares inferiores estão divididos para duas subsidiárias: a K-Eng, empresa que concentra todos os serviços de engenharia – em seus vários nichos – e que é dirigida pelo meu irmão caçula; e a K-Decor, empresa de arquitetura e design de interiores, também sob o comando do Alex, mas com acompanhamento do Millos.

Somos uma holding, atendemos o Brasil inteiro não só na compra e venda de imóveis, como também no gerenciamento, na construção desde o projeto, planejamento, decoração e design. Nossa cartela de clientes é formada, em sua esmagadora maioria, por empresas, mas às vezes temos alguns prédios residenciais sendo atendidos de alguma forma pela Karamanlis.

Nossa estrutura é completa, temos, para exemplificar, um andar inteiro dedicado ao pessoal de TI, que coordena todas as nossas redes, tão necessário para o pessoal que trabalha com georreferenciamento de imagens, satélite e sobreposição de manchas para marcarmos as propriedades. Temos utilizado muito essas ferramentas para regularização de fazendas, áreas enormes para as quais, se o serviço fosse feito em campo, levaríamos o triplo do tempo e gastaríamos o dobro de funcionários.

A divisão jurídica, comandada pelo Kostas, ocupa quase um andar inteiro, deixando apenas três salas para a gerência de hunter, que eu não sei por que ainda mantenho lá, mas que nunca me incomodou tanto quanto agora.

Definitivamente, os hunters precisam sair do andar antes que a Kika e o Kostas se matem!

Abro a porta que dá acesso ao enorme salão onde ficam os advogados, cada um trabalhando atentamente à sua mesa ao estilo baia, e sigo para a sala toda de vidro ao fundo.

Kostas me vê antes mesmo que eu bata à porta e faz sinal para que eu entre.

— Seu assistente já fofocou com você. — Ele ri, deixando seu charuto de lado.

Olho carrancudo para o fumo, algo que ele sabe que eu desaprovo dentro do local de trabalho, mas que ele sempre alega que é só para relaxar, coisa de seu sangue inglês. Porco arrogante!

— Rômulo já me informou da situação que ocorreu — corrijo-o. Sim, eu acho meu assistente fofoqueiro, mas só quem pode falar essa porra sou eu, por isso, defendo-o. — Eu pensei que já houvesse se estabelecido um tipo de trégua entre vocês aqui na Faixa de Gaza.

Kostas dá uma risada escrota quando eu falo do apelido do andar.

— Aquela mulher é muito petulante! — Dá de ombros. — Se eu fosse o CEO dessa “bagaça”, já teria mostrado a ela a porta da rua.

— Ainda bem que você não é! — corto-o. — Eu não demito funcionários porque eles falam umas verdades a um bundão como você. Kika é extremamente competente, e eu não tenho motivo algum para me desfazer dela.

— O bundão aqui é você! Ela enche meu saco, feministazinha do sovaco cabeludo, e ainda tem a coragem de querer ditar regras!

Balanço a cabeça, perdendo a paciência.

— Você enche meu saco, e, se eu pudesse, te colocaria para fora daqui agora mesmo...

— Só que você não pode! — Ri, arrogante, pegando seu charuto de volta. — Sou dono dessa merda tanto quanto você! Então me engula!

— Você está certo, e que isso fique bem claro, Kostas. — Caminho para perto dele. — Só aturo suas merdas porque não posso te pôr para fora, não porque eu goste de trabalhar com você. Não interessa se é um puta advogado, foda-se! Eu demito sem nenhuma dor na consciência funcionários que tenham metade da sua arrogância. — Soco a mesa, e ele fica sério, deixando de lado o sorriso debochado. — Agora, não me tente! Aposto com você que todos já estão de saco cheio de suas piadinhas preconceituosas, de seu jeito de se achar melhor que todos e, principalmente, de todas as confusões que você arruma aqui dentro! Duvido que os integrantes do conselho estejam dispostos a pôr o rabo na reta para te defender.

Vejo que atingi o ponto fraco dele, pois o filho da puta sabe que não tem apoio de ninguém aqui dentro. Nem mesmo Millos – o único a conseguir conviver com essa criatura – o defenderia diante do conselho.

Kostas por fim apaga o charuto, caminha pela sala e abre a porta de vidro.

— Sai.

Rio e constato que tudo o que falei, apesar de feri-lo, não o mudará jamais.

— Para de se meter no trabalho dos hunters — aviso-lhe antes de sair. — Eu não vou segurar essa porra e nem ficar igual a uma maldita galinha pisando em ovos com meus funcionários por sua causa! Tá frustrado e entediado? Vá trepar ou qualquer outra coisa que o deixe menos imbecil do que é.

— Sim, chefe — debocha.

— É bom lembrar disso, Konstantinos Karamanlis. Eu sou o seu chefe!

Saio daqui notando as expressões assustadas dos advogados, sem me importar o mínimo, afinal todos sabem que os irmãos Karamanlis não se dão. Ando sem olhar para trás, confiante, ainda que tenha consciência de que, se pudesse, meu irmão enfiaria uma faca em minhas costas sem dó nem piedade.

Tenho absoluta certeza de que só estou no comando porque passo certa segurança ao conselho administrativo da empresa. Se não fosse assim, aposto que nenhum Karamanlis estaria na diretoria executiva. Meu pai foi um desastre, era bom gestor, mas esteve envolvido em um escândalo após outro e, por fim, começou a fazer péssimas escolhas nos negócios, o que custou sua cabeça.

Kostas tem a agressividade de Nikkós. É o filho que mais se assemelha a ele, não só na aparência, mas também no gênio intratável. Detesto me comparar ao meu pai, mas não posso negar que a inconstância dele na vida pessoal, embora de um jeito completamente diferente, faça parte de quem sou. E, já em Alex, vejo uma impulsividade enorme, também herdada do maldito que nos gerou.

Quanto a Kyra... Bem, nunca pude formar opinião sobre ela. Tudo o que sei de minha irmã veio através de informações trazidas pelos outros. Não temos nenhum tipo de contato. Ainda tenho a imagem da menininha alegre que se pendurava nos meus ombros, mas isso foi há tanto tempo que não consigo mais ligar a imagem da mulher à da criança.

Sinto culpa por ter criado essa barreira entre nós. Reconheço meu erro, porém, já não somos mais imaturos, poderíamos ter lidado com isso se Kyra quisesse. Ela só não consegue me perdoar.

Encontro-me com Rômulo à espera do elevador. Ele se encolhe um pouco quando me vê, e eu dou um tapinha em seu ombro.

— Acalmou a fera? — brinco.

— Ela já retornou à sala de reuniões. — Sorrio, orgulhoso dele. — Mas xingou nossa espécie de todas as formas possíveis. — Rio, imaginando a cena. — Alguns que eu nem sabia que existia! Sabia que ela chama seu irmão de Bostas Karamanlis?

Gargalho, fazendo-o pular de susto.

— Ótimo apelido! — Ainda estou rindo ao entrar no elevador. — Por essas e outras é que ela tem meu total respeito! — Mal acabamos de entrar, vemos Kostas vindo em nossa direção. Com um sorriso malvado no rosto, aperto o botão para fechar portas, deixando-o para trás.

— Ele ia subir... — Rômulo argumenta.

— Não queremos o elevador fedendo, não é? — zombo, rindo de novo. — Bostas! Por que nunca pensei nisso antes?!

Meu assistente me olha como se eu tivesse enlouquecido, com suas grossas sobrancelhas escuras quase encostando em seus cabelos e a testa lotada de gomos de expressão. Minha gargalhada não cessa, imaginando a cara de Millos quando eu contar como o “todo poderoso” Kostas Karamanlis é chamado pelos funcionários da empresa.

 

 

Entro na sala de reuniões e dou de cara com a Kika, com seu jeito simpático e elétrico, distribuindo instruções, rindo com os colegas e averiguando sua apresentação. Nosso cliente ainda não chegou, mas não deve tardar muito; é senso comum que nós não gostamos de atrasos.

Cumprimento a equipe rapidamente com um leve inclinar de cabeça, desabotoo o último botão do meu paletó e me sento no lugar que sempre ocupo quando estamos nesta sala. O material em cima da mesa, com todas as informações sobre o imóvel escolhido pelos hunters chama minha atenção e, mesmo sabendo que isso os deixa apreensivos – admito que sinto certa perversidade de minha parte ao gostar de deixá-los assim –, pego a pasta e começo a folhear página por página lentamente.

Confiro as horas no meu relógio e encaro a Kika com as sobrancelhas franzidas.

— Senhorita Reinol? — chamo-a e bato de leve o dedo indicador sobre o relógio. — Alguma notícia?

Imediatamente ela chama uma mulher de sua equipe, que sai apressada da sala com um telefone celular na mão. Faço um gesto para que Kika se aproxime, e ela vem andando, sem nem mesmo demonstrar um pingo de apreensão, em minha direção. Admirável!

— Pois não, doutor?

— Você confirmou com o cliente a reunião hoje?

— Certamente! — Ela levanta o queixo. — Isso é a primeira coisa que fazemos, antes mesmo de disparar o memorando para a Diretoria Executiva informando o horário. Meu departamento é extremamente competente, doutor.

— Eles não costumam atrasar — observo. — Rômulo! — chamo meu assistente. — Traga aqueles relatórios que eu tinha separado para assinar enquanto espero. Odeio perder tempo!

Ele sai apressado, e eu escuto o bufo impaciente de Kika Reinol.

— Eu conversei com o Kostas — disparo ao voltar a ler a última página do material, sem olhá-la. — Sinceramente estou ficando cansado dessas rusgas entre vocês. A partir de amanhã, vou solicitar ao Millos que seu setor seja realojado.

— O quê?! — sua voz, um pouco mais alta que o normal, ecoa pela sala, causando um silêncio sepulcral e atraindo minha atenção. Ergo a sobrancelha direita para ela e cruzo os braços sobre o peito, deixando a pasta com os arquivos da apresentação sobre a mesa.

— Não faz mais sentido manter vocês dois tão próximos. — Abaixo meu tom de voz: — Não vou ficar bancando a mamãezinha e separando a briga de vocês como dois fedelhos. Se não sabem se comportar como adultos e profissionais, então não podem conviver no mesmo espaço.

— Isso é muito injusto, doutor! — sua voz, embora baixa, soa completamente irritada. — Eu nunca me meto no trabalho do doutor Konstantinos, embora a recíproca não seja verdadeira!

— Eu sei, Kika — chamo-a pelo apelido para demonstrar que não a culpo. — No entanto, a situação está saindo do controle, e eu não estou disposto a mandar você embora e, embora queira fazer isso com ele, não tenho esse poder.

Kika respira fundo e assente.

— Desculpe-me por estar causando tantos transtornos, doutor Theodoros. — Ela sorri. — Eu não sou uma pessoa difícil de lidar, mas ele...

— Eu sei, não se preocupe com isso.

— Eu espero que... — ela se interrompe de repente, e eu olho para a direção em que está olhando. Vejo a funcionária que saiu há pouco da sala fazendo muitos gestos para sua chefe, mesmo tentando disfarçar quando percebe que a estou observando também.

— Venha até aqui! — chamo-a.

A moça, provavelmente uma estagiária, pois é muito nova, fica vermelha e começa a torcer as mãos ao se aproximar.

— O que houve, Laura? — Kika pergunta.

— Liguei para nosso cliente e... bem... — A menina intercala olhares entre mim e Kika. — Ele disse que ligaram mais cedo cancelando a reunião.

— O quê?! — mais uma vez a voz da gerente ecoa pela sala, e eu fecho os olhos, prevendo mais confusão, pois é óbvio que não foi ela quem mandou desmarcar.

Kostas, seu filho da puta!


— O dia foi uma sucessão de merdas! — xingo ao entrar no carro, notando a expressão debochada de Dionísio.

Afrouxo a gravata e abro o botão torturador da gola da camisa, liberando assim meu pescoço do enforcamento diário. Eu preciso de um uísque! Abro o compartimento no meio do banco de couro da parte de trás do carro, onde estou, pego a garrafa da única marca de uísque que bebo, The Macallan, sirvo uma pequena dose no copo de cristal e respiro fundo antes de degustar a bebida escocesa.

Pela garganta, sinto a leve queimação. Notas de café e mel se misturam e logo se vão, deixando ao final um amargo sabor amadeirado, típico do single malt envelhecido em barris de xerez. A dor de cabeça que ameaça despontar some, e meu pescoço vai amolecendo, a cabeça pousa no encosto do banco e, finalmente, depois de um dia de cão, eu me sinto relaxar.

Ah, o milagre feito por uma dose de uísque de uma garrafa de pouco mais de dois mil reais!

Levanto um brinde imaginário ao meu dia fodido, querendo que ele se vá e que eu consiga livrar todas as tensões e preocupações de minha mente para que possa ter uma noite decente, ao menos.

O riso de Dionísio é de quem entendeu meu ritual, e eu esboço um leve repuxar de lábios, ainda muito rabugento para sorrir de verdade, e tomo mais um gole imaginando chegar a casa, tomar um banho e me submeter às competentes e pesadas mãos de Lavínia antes de trepar a noite inteira de novo.

— O doutor vai direto para seu apartamento?

Abro os olhos para olhar Dionísio pelo retrovisor e confirmo.

— Se o trânsito permitir, espero estar lá em breve. — Tiro o paletó e pego o celular, abrindo minha playlist favorita. — Dio, ligue o aparelho de som.

Em seguida ouço o jazz da incomparável Ella Fitzgerald e solto um suspiro de prazer, o primeiro neste dia desgraçado. Tento não pensar no Kostas, muito menos na enorme vontade de dar umas porradas naquela cara debochada, para não perder o pouco da paz que ouvir Ella e Armstrong cantando Isn’t this a lovely day? me traz.

Ah, como eu amo jazz! Não é à toa que mantenho um enorme piano de cauda no meio da sala principal do meu apartamento, além de ter centenas de discos – sim, são long players – cuidadosamente guardados na sala de som que fiz, com o toca-discos reinando absoluto. Chamem-me de retrô, sinceramente estou me fodendo para o que pensem disso. Prefiro, sim, o som da agulha sobre o vinil, o som encorpado e os ruídos que só um LP podem me proporcionar.

Não sou avesso à tecnologia, não quando sou cercado dela, mas há coisas de que não abro mão, como uma bela comida caseira com ingredientes frescos como comia em Atenas; meus discos, como vocês já souberam; e dirigir meu Aston Martin de câmbio manual.

Ah – sorrio olhando meu copo de scotch –, prefiro single malt a blend em matéria de uísque. Bem conservador para a maioria dos bebedores de hoje.

O trânsito agarra em alguns pontos do caminho da Paulista até o Vila Nova Conceição, onde moro, porém, Dio consegue me deixar na garagem do meu prédio exatamente 30 minutos depois de termos saído da Karamanlis.

Saio do carro levando comigo o paletó e a insuportável – e conservadora – pasta de couro com alguns documentos. Espero o elevador para me levar até o 36.º andar, para a cobertura duplex que comprei há três anos. Como detesto perder tempo, enquanto espero, mando mensagem para a Lavínia, uma deliciosa morena com quem tenho saído há algumas semanas, marcando um encontro com ela aqui em casa.

A resposta chega quando estou dentro do elevador com uma vizinha, e tenho de refrear a língua para não assustar a pobre senhora que me faz companhia neste pequeno cubículo. A safada me mandou uma foto – sem cabeça, como sempre – da sua indumentária de hoje à noite, um conjunto de lingerie sexy e quente que já me deixa completamente duro e ansioso.

Remexo-me desconfortável, porque conheço bem as calças desses ternos modernos, mais apertadas e de tecido mais fino, e escondo a evidência da minha excitação – ou seja, meu pau duro – colocando a pasta e o casaco na frente.

A senhora – cujo nome não sei, pois não conheço a maioria dos meus vizinhos, apenas os cumprimento quando nos esbarramos pelos corredores –, desce no 19.º andar, e eu sigo – livre e excitado – para a cobertura, embora tente me acalmar para não assustar a Vanda, governanta e cão de guarda do meu apê.

— Bem-vindo, doutor — ela me saúda assim que as portas do elevador se abrem no living, e se apressa a pegar minha pasta, deixando-me, como sempre, constrangido por ela ficar carregando peso enquanto eu sigo confortável como um inútil.

— Eu levo a pasta, Vanda, obrigado. — Evito que ela a pegue, mas ainda assim recebo um olhar feroz. — Tudo o que preciso é tomar um banho e daquele seu jantar.

Ela dá risadinhas.

— Já está quase pronto — diz orgulhosa da sua eficiência. — A Sandra ligou confirmando o horário de amanhã, e seu primo virá também.

Assinto, deixando-a para trás enquanto sigo para o quarto. Sandra é minha personal trainer, e nós treinamos juntos três vezes na semana e, às vezes, Millos, que também é seu aluno, adianta seu horário para vir malhar conosco.

Eu gosto de exercícios, sempre gostei. Sou magro naturalmente, e os treinos me ajudam a fortalecer os músculos e a manter um peso proporcional ao meu tamanho. Millos já faz a linha bombado, e isso combina com ele e sua personalidade.

Tenho apenas uma tatuagem, que fiz bêbado demais para lembrar, enquanto meu primo parece um gibi, todo desenhado. Gosto de malhar com ele porque sou competitivo até a raiz do cabelo, e ele não fica atrás, então ficamos medindo forças e levando um ao outro ao limite da resistência.

Minha suíte é enorme e confortável, toda em tons de cinza e azul-marinho, com paredes off-white, concebidas com carinho por uma de minhas parceiras de cama. Tenho sorte de ter conhecido mulheres que, além de ótimas de cama, eram profissionais competentes.

Caminho até o closet e deixo meu terno no local reservado para que Vanda o leve até a lavanderia, uma espécie de bag. Abro a gaveta de gravatas, enrolo a que usei hoje e a coloco no lugar, em seguida fazendo o mesmo com as abotoaduras. Verifico se meus sapatos estão precisando de limpeza e, como estão limpos, pois mal saí da empresa hoje, coloco-os na sapateira e jogo as meias e a cueca no cesto de roupa suja.

Eu sou organizado em casa também. Gosto de ser assim.

Programo o chuveiro, abrindo as duas duchas em direções diferentes, em jatos fortes e frios – está um calor do cão! – e gemo de prazer ao senti-los na pele.

Dia fodido!

Fico um tempo debaixo da ducha principal, avaliando cada momento da confusão que foi o final da tarde no escritório. Primeiro, a tensão entre a Kika e o Kostas, minha discussão com ele e, por último, o pedido de demissão dela.

Merda!

Pelo que posso julgar da personalidade dela, não será fácil convencê-la a voltar, e eu não posso perder outra gerente desse nível na empresa, não mesmo! Penso na discussão com o Kostas, nas palavras duras e verdadeiras que trocamos um com o outro e tento entender por que somos desse jeito. Que maldição é essa que nos mantém separados quando temos tudo para sermos unidos?

Balanço a cabeça, impedindo que me perca nestes pensamentos que nunca levam a lugar algum. Não há o que fazer para consertar anos de muros levantados em torno de cada um de nós. É impossível transpor as barreiras que o tempo e nossa situação ergueram. Não há nada a fazer!

Agora, preciso me concentrar nos negócios e no maldito pedido do pappoús! Tenho que trazer Kika de volta, comprar a porra daquele boteco na Vila Madalena e achar uma mulher que esteja à altura de ser a mãe do bisneto de Geórgios Karamanlis.

Escuto um barulho na porta do banheiro e abro um sorriso ao ver Lavínia parada na entrada. Ela se encosta ao batente, olha meu corpo inteiro com fome brilhando nos olhos e morde o lábio inferior. É o que basta para meu corpo, mesmo sob os jatos frios, reagir.

— Vem aqui! — chamo-a, mas ela nega.

— Finja que não estou aqui... — sussurra. — Deixe-me ver como você toca uma pensando em mim.

Sinceramente tenho vontade de revirar os olhos para ela, mas, para não quebrar o clima, faço o que me pede. Seguro meu pau bem forte e, lentamente, vou deslizando a mão para baixo e para cima, sem nunca tirar os olhos dos dela. O tesão vai aumentando, e eu fecho as pálpebras, evocando as imagens que me fazem gozar rapidamente. Som abafado, cheiro de fumaça, um perfume floral, cabelos cor-de-rosa e uma boceta quente e apertada... Merda!

Abro os olhos e encaro a mulher que me espera, apenas de calcinha e sutiã, roçando contra o batente da porta e gemendo.

— Vem aqui agora, Lavínia! — Abro a porta do boxe.

Ela arregala os olhos por causa do meu tom de voz impaciente e sorri, safada. Mal chega perto de mim, e já a viro contra a parede, seguro firme sua cintura, levantando-a e esfrego meu pau em sua calcinha molhada. Preciso foder essa mulher com urgência! Estico uma das mãos até o nicho onde uma caixa de acrílico guarda alguns envelopes de camisinha – eu adoro foder debaixo d’água, então sou prevenido – e rapidamente encapo meu pau e o afundo dentro dela.

As malditas sensações daquela noite ainda estão em minha mente, rondando-me como fantasmas. Enrolo os cabelos cacheados e negros no meu punho, mas, no ápice do prazer, vejo-os levemente rosados. Porra! Fodo-a com ainda mais força, ouvindo seus gemidos altos e descontrolados, pois sei o quanto ela gosta de trepar sem limites.

Quando a escuto falar que vai gozar, em desespero, aumento as estocadas para me deixar ir junto com ela e aliviar em parte essa fome que nunca cessa.

Foda-se, desconhecida!

 

 

Alguma coisa pinica meu nariz, e passo a mão, mudando de posição sobre os travesseiros. Estou em Atenas, com a família de minha mãe, vendendo peixe e tentando ser homem o suficiente para manter minha promessa. Não importa que eu não esteja preparado, não importa se tive de desistir de tudo, o amor é mais forte que tudo e por isso vou conseguir... vou...

Espirro.

Sento-me na cama, piscando os olhos, perdido no tempo e no espaço. Estava apenas sonhado de novo! Malditos pesadelos que, vira e mexe, estão retornando. Bufo. A vantagem desse é que não chegou ao apogeu do drama, porque alguma coisa... Uma risada abafada me faz olhar para o lado e encontrar um homem de quase 2m de altura, forte como um armário, cheio de tatuagens, com uma maldita pluma na mão.

— Porra, Millos!

O desgraçado cai na gargalhada, e eu me levanto da cama sem nenhum constrangimento diante da minha nudez e sigo para o banheiro.

— Não programou o despertador? — ele pergunta ainda no quarto.

— Programei. — Termino de mijar e dou descarga. — Você me incomodou com sua presença dez minutos antes. — Começo a escovar os dentes, e ele fica à espera. — Lavínia saiu daqui às 4h da manhã.

— Se elas não dormem aqui, não seria mais fácil comê-las em algum local neutro?

Saio do banheiro ainda secando o rosto, pego uma cueca no closet e a visto, voltando para o quarto.

— Não tenho problema algum com minha cama, pelo contrário! Prefiro meu espaço a qualquer outro. — Dou de ombros. — Você que tem essa mania de nunca trepar no seu apartamento.

Ele ri.

— Você sabe muito bem que eu não trepo! — Um sorriso descarado se forma em sua expressão. — Eu as conduzo ao prazer... É diferente!

Reviro os olhos.

— É claro que você trepa, porém, tem a mente mais fodida que a boceta de uma puta, por isso tem essas manias estranhas!

— Não fale do que você não sabe, Theodoros — adverte-me. — Cada um tem seu jeito de obter prazer; o meu é esse.

Concordo com ele, mesmo achando alguns de seus gostos um tanto estranhos demais para mim. Chame-me de conservador nisso também, mas tenho alguns limites bem definidos em relação às minhas fodas.

Millos me espera no quarto enquanto visto a roupa do treino, falando sobre um novo modelo da Ducati que está pensando em importar. O homem é completamente viciado em motos, faz parte de motoclubes e, nas férias, sai cortando estrada com esse pessoal. Já percorreu grande parte da América do Sul sobre duas rodas, fez a Route 66 nos Estados Unidos e percorreu toda a BR 101 aqui no Brasil.

Além disso, é obcecado por cerveja e fez vários cursos nessa área no mundo todo, produzindo sua própria bebida, buscando o sabor perfeito que seu paladar exigente ainda não encontrou em nenhuma marca já disponível. O desgraçado entende tanto do assunto que é convidado para festivais e fez parte do júri de vários campeonatos de mestre cervejeiro.

Millos mora em um loft, um antigo galpão que ele reformou todo. Na parte debaixo guarda suas motos e tem uma pequena oficina; na de cima, sem nenhuma divisória, ele tem uma confortável sala, uma cozinha industrial com os tonéis de cobre para a fermentação de sua cerveja e o quarto, onde nunca leva uma mulher para trepar.

Ah, esqueci... ele não trepa!

Tomamos juntos um suplemento de carboidratos pré-treino enquanto Vanda escuta alegremente as conversas de Millos sobre sua última experiência culinária – carne de rã marinada com cerveja – fazendo careta a cada vez que ele descreve o anfíbio sendo tostado na grelha.

Quando Sandra chega, já estamos os dois no segundo andar da cobertura, onde apenas uma enorme parede de vidro separa a academia da área de lazer com piscina, jacuzzi e área com churrasqueira gourmet.

— Bom dia, meninos! — Millos ri do cumprimento, porque a personal deve ser uns bons anos mais nova que nós dois, porém, sempre nos cumprimenta assim. — Prontos para suarem a camisa?

Um olha para o outro sem saber o que responder, pois nenhum usa camisa.

— Figura de linguagem, rapazes! — Rola os olhos. — Vocês, gregos, são muito literais!

Ela liga o som; uma música calma enche todo o ambiente.

— Bora alongar!

Bufo impaciente, mesmo sabendo da importância de preparar os músculos para os exercícios intensos, querendo dar uma surra no Millos hoje.

Vamos ver quem vai pedir arrego, meu primo!


Depois que terminamos o treino, tomamos nosso café da manhã antes de sair para o trabalho.

Millos sempre se veste aqui quando vem treinar comigo, então há sempre alguma roupa dele no quarto de hóspedes. Em poucos minutos o homem tatuado, debochado e um tanto sombrio desaparece, e ele assume seu papel de executivo calmo, frio e competente. A camiseta manchada, os jeans rasgados e os coturnos – roupa com que veio aqui antes de vestir a de malhar – dão lugar ao terno italiano, sapatos de couro, camisa de algodão egípcio e gravata de seda. Os cabelos revoltos estão no lugar, penteados para trás com algum tipo de pomada que os deixa fixos, a barba foi penteada e o brinco de argola dá lugar a um pequeno ponto na orelha, quase imperceptível.

Sinceramente não sei se ele adotou esse personagem para trabalhar com o pai, meu tio, ou se é algo que ele prefere fazer para não chocar ou causar descrença em nossos clientes. Realmente nunca entendi, e ele também nunca quis explicar, então não sei o que se passa na cabeça desse Millos Karamanlis executivo. O que me importa é que ele é meu braço direito, aquele em quem confio de olhos fechados nos negócios, porque, mesmo sendo tão diverso de sua personalidade, a frieza do executivo Millos é o que nos ajuda a controlar alguns incêndios dentro da Karamanlis.

— Soube da merda do Kostas dessa vez? — indago assim que entramos no carro, com Dionísio a dirigir.

— Como não saberia? A história correu pelos corredores da empresa no final da tarde de ontem. — Ele puxa mais a manga de sua camisa a fim de esconder as tatuagens do pulso. — A senhorita Reinol pediu mesmo demissão?

— Pediu! — Rio. — Foi uma saída de rainha no meio da discussão e com direito a água gelada na cara! — Gargalho. — Confesso que, se fosse café quente, eu teria sentido um pouco mais de prazer, mas nem tudo é perfeito.

— Porra, Theo, o Kostas está incontrolável, e eu não entendo o motivo. — Eu o encaro franzindo a testa, porque nunca falamos do meu irmão sem ser em termos profissionais, mesmo sabendo que Millos é quase um confidente de ambos. — Ele mudou muito nesses dias, parece... sei lá, encurralado.

— O Kostas encurralado? — debocho. — Aquele filho da puta é mais frio que uma pedra de gelo! O que poderia mexer com ele a ponto de deixá-lo assim?

Millos respira fundo e dá de ombros, fechando-se em copas novamente, como sempre faz quando o assunto é a vida pessoal dos meus irmãos. Esse jeito dele, essa lealdade toda me conforta e me frustra ao mesmo tempo. Sei que ele não comenta com os outros as coisas que lhe conto, mas gostaria de saber mais do que se passa com meus irmãos mais novos, principalmente Alex e Kyra.

Independentemente do que eu queira, sei que, por ele, nunca vou ficar sabendo de nada, e uma aproximação entre mim e meus irmãos é coisa muito improvável, então finjo não ligar para isso, mas sinto a culpa apertar meu peito a cada vez que algumas lembranças voltam.

— Seu assistente já confirmou sua presença no baile dos Villazzas no Ano Novo? — Assinto. — Não sei se vou. No último a que fui, eles ainda estavam em Curitiba!

— Muitos anos, já! Não tenho como não ir, sou amigo do Frank e quero ajudar a instituição do Bernardo Novak, que é uma das eleitas deste ano para receber parte das doações.

— Ah, sim, isso eu também quero fazer. A empresa da Kyra é quem está organizando, você sabe? — Balanço a cabeça positivamente. — Foi por isso que ela não pegou a festa da Karamanlis este ano...

— Foi a desculpa que ela deu, na verdade — corto-o. — A empresa dela já está crescendo sozinha, ela já pode se dar ao luxo de dispensar um contrato conosco e, assim, manter-se cada vez mais distante.

— Que seja... — Ranjo os dentes de raiva por ele não comentar nada. — Estou pensando em fazer um recesso entre o Ano Novo e a segunda semana de janeiro. — Millos estica as pernas, gemendo lentamente, e um sorriso de vitória me escapa. Está dolorido, desgraçado? — Ainda não sei se vou até Frankfurt conversar com um mestre cervejeiro de lá ou se faço alguma viagem longa de moto, mas estou querendo ficar fora dos negócios por um tempo.

Sinto uma pontada de inveja dele, pois costumo tirar no máximo uma semana de descanso entre as festas – Natal e Ano Novo –, e a única viagem que consigo fazer é ir até a Grécia para visitar o vovô, e nesse ano, como irei viajar em fevereiro no ano que vem para o aniversário dele, não vou tirar sequer essa semana de recesso.

— Eu não vejo problemas. Esse período é o mais devagar na empresa. — Ficamos um tempo mudos, apenas ouvindo o som do aparelho do carro tocando alguma estação de rádio. — Eu vou fazer aquele filho da puta ir atrás da Kika!

Millos me encara, olhos arregalados, e não por causa da fala inesperada depois do silêncio que fizemos.

— Eu acho que isso vai dar mais merda do que já deu.

Sorrio.

— Não, ele vai ter que pedir desculpas e prometer se comportar. — Encaro Millos, olhos brilhando, pensando em como obrigar o meu irmão arrogante a fazer minha vontade. — Preciso da sua ajuda!

 

 

Meu humor melhorou drasticamente depois da conversa com o Millos no carro e o plano que arquitetamos para fazer aquele idiota prepotente consertar a merda que fez aqui na empresa. Fazer Kostas ir até a Kika para implorar que volte será bom para mim por dois aspectos: terei minha gerente de volta e ainda colocarei meu irmão no seu lugar, abaixando um pouco sua crista de galo de briga.

Rômulo está irritantemente quieto hoje, e desvio o olhar a toda hora para sua mesinha apenas para conferir se o tagarela está bem e respirando. Hoje a empresa está um pouco sombria. Os funcionários estão falando mais baixo, há menos pessoas nos corredores, e os setores estão funcionando bem, mas sem o ritmo frenético a qual todos estamos acostumados.

Uma apatia geral tomou conta do lugar, e o clima aqui dentro está tão opressivo que me sinto sufocando algumas vezes. É como estar de luto, e isso é uma coisa incrível, pois bastou uma funcionária querida pedir demissão para parecer que o sol se pôs dentro deste prédio.

Preciso dessa mulher de volta!

Se o babaca do meu irmão não conseguir o feito de reintegrá-la à equipe, vou ter que jogar sujo e recorrer a Malu Ruschel lá no meio daquele mato onde vive. Espero conversar com ela para que convença sua amiga a voltar para nós.

Levanto-me, sentindo a tensão sobre meus ombros e meu pescoço duro. Ponho a culpa na tensão, nunca admitindo que a disputa ferrenha com Millos no treino de hoje de manhã me causou isso. Tenho 41 anos, não sou um garotão, mas sempre me consolo dizendo que pratico exercícios há muitos anos, então meu corpo está acostumado.

A verdade é que os anos estão realmente passando, e talvez eu esteja sentindo os efeitos do deus Cronos no corpo. Noitadas de sexo, balada e exposições têm me deixado cada vez mais cansado, além disso, comecei a notar que tenho necessitado de mais horas de sono do que precisava antes. Talvez tenha que ir a algum médico fazer um check-up ou buscar um geriatra.

Dou uma risadinha baixa, achando graça do meu humor negro. Fui contagiado pelo clima de enterro da Karamanlis, e esse silêncio todo me faz divagar. Gosto e estou acostumado à correria, a Rômulo transitando em volta de mim como mosca de padaria, sempre prestativo, falante e, na maioria das vezes, incômodo.

Porra, estou sentindo falta até da inconveniência dele!

Caminho até a vidraça da sala, olho a Paulista movimentada de carros lá embaixo e volto a refletir sobre a vida, principalmente a profissional. Já faz anos que assumi o cargo de CEO da empresa, anos que vim morar no Brasil, e, apesar de tudo isso, algumas coisas continuam como antes: o trabalho intenso, a desarmonia entre os irmãos Karamanlis, meus hábitos noturnos, hobbies e, claro, a maldita conta da Vila Madalena. A confusão de ontem desviou um pouco minha atenção desse objetivo, mas não posso perder o foco, não quando estou cada vez mais perto de conseguir comprar o maldito boteco!

— Rômulo — chamo-o sem olhar em sua direção. — Peça ao Millos para que venha até aqui, por favor.

— Ele estava em reunião com o doutor Kostas... — Viro-me para encará-lo, e o homem franzino e de óculos fundo de garrafa arregala os olhos. — Eu vou ver se ele já retornou.

Meu assistente sai todo atabalhoado do escritório, deixando alguns post-it caídos no chão marcando seu caminho como na história de João e Maria. Respiro fundo para não me irritar com ele, pois, apesar de um tanto fofoqueiro e atrapalhado, ele é muito eficiente, não posso negar. Apesar de todos os incômodos, eu não o trocaria por nenhum outro.

Volto a pensar na Vila Madalena e que Millos ficou de levantar as condições para executarmos a promissória assinada pelo falecido proprietário do bar. Preciso saber em que pé estamos para traçar novas estratégias de ataque, afinal, quero começar o próximo ano já com essa conta fechada e, assim, ter menos uma coisa a torturar minha cabeça.

Escuto passos apressados, típicos do meu assistente, e a porta se fechando.

— Ele já vem, doutor — diz resfolegando, o que demonstra que foi correndo até a sala do meu primo. Quanta falta de sutileza!

Balanço a cabeça, segurando o riso debochado ao imaginar a cena, e lhe agradeço:

— Obrigado.

Enquanto espero, decido tomar o... (não lembro quantos já foram hoje) café do dia. Sigo até a máquina de café expresso que fica no aparador de bebidas e coloco uma cápsula de um blend de cafés no modo ristretto enquanto aguardo meu primo. O cheiro agradável enche o ambiente do escritório, deixando-o menos opressor e mais acolhedor. Aspiro a fragrância lentamente, apoiado no aparador, olhos fechados e absorvendo o prazer que essa bebida me proporciona. Sim, sou viciado em café!

— Theo? — Millos bate à porta, tirando-me do transe gourmet. — O que houve?

Faço um gesto para que ele entre e aponto para a máquina, que está passando dois do néctar de café que mais gostamos. Um ristretto só é possível quando a máquina tem a pressurização correta e os grãos são de qualidade. O pó sai praticamente seco, tamanha a velocidade que a água fervente passa por ele, extraindo o melhor do grão.

Nunca me acostumei ao jeito brasileiro de tomar café longo ou mesmo o famoso carioquinha, acrescentando água para diluir a bebida. Preciso sentir o sabor do grão, as notas intermediárias dele e as que ficam depois na boca. No caso desse blend que fiz, há um leve frutado que diminui a acidez e depois resta na boca um sabor mais forte, tal qual chocolate amargo.

Pego a xícara de Millos e a entrego para ele.

— Como foi com o Kostas?

Millos relaxa, sentando-se numa das cadeiras em frente à minha mesa e se encostando nela, desfrutando do cheiro do café.

— Acho que mordeu a isca. Só espero que ele saiba convencê-la. — Dá de ombros. — O que mais você quer?

— Vamos beber o café primeiro. — Pego a outra xícara e tomo um gole. — Quero notícias sobre a promissória da família Hill.

— Ah... — Ele sorve lentamente a bebida quente, deixando-me em suspenso com sua resposta. — Encorpado e naturalmente doce, perfeito! — elogia o café.

— A máquina faz tudo! Para de enrolar e fala logo.

O desgraçado ri, tomando mais um gole.

— Kostas estava analisando, mas, com essa confusão toda... — Eu xingo, e ele sorri mais uma vez. — Estou pensando em fazer uma visitinha a Duda Hill de novo. Vamos?

— Eu não tenho nada a tratar com ela. Quero executar a porra da promissória e expulsá-la de lá! — Deixo o café de lado, contrariado demais para apreciar seu sabor. — Já estou esperando por isso há muito tempo, Millos. Estou começando a perder a paciência.

— Eu acho que você deveria tentar conversar com ela. — Franzo o cenho, sem entender. — Dizer que temos a promissória e que vamos executá-la, mas oferecer a ela a chance de comprar antes de irmos à justiça.

— Por que eu faria isso?

Realmente não entendo o que Millos quer com essa sugestão. Oferecer a promissória para ela pagar? Como se ela tivesse condições de arcar com o valor exorbitante sem vender o maldito bar! Se a pressionarmos demais, ela pode acabar vendendo para outra pessoa, e aí teríamos que começar as negociações do zero. Isso nunca!

— Por que você quer tanto aquele quarteirão? — indaga-me, fazendo com que eu o olhe surpreso.

Ficamos um tempo assim, encarando um ao outro, apenas o som da digitação do Rômulo a pairar sobre nós. Tento procurar um motivo mais forte para comprar o lugar, mas não consigo achar nenhum convincente o suficiente para desviar a atenção dele da verdade. Não quero nada ali, nem tenho sequer ideia do que fazer e para quem oferecer, mas é uma conta deixada pela gestão do meu pai, o que me impulsiona a querer comprar apenas para esfregar em sua cara que eu consegui, que o derrotei.

— Consiga comprar a merda do bar — digo entredentes, a voz baixa e sem desviar meus olhos dos dele. — Meus motivos não interessam, é uma conta aberta que prejudica a reputação da empresa, e, como CEO, não posso deixar isso acontecer.

— Justo! — Ele se levanta. — Vou fazer tudo o que estiver ao meu alcance para satisfazer a sua vontade e não prejudicar a reputação da empresa no mercado.

Aquiesço, porém, não satisfeito, reconhecendo certo sarcasmo em sua voz.

— Millos. — Ele me encara. — Eu preciso fazer isso.

Meu primo bufa.

— Eu sei, Theo. — Caminha até onde estou e toca em meu ombro, falando baixo para que apenas eu o ouça: — Eu queria mesmo que você não precisasse, assim como não achasse que deve ao pappoús até a sua alma! — Faço careta e abro a boca para defender nosso avô, mas ele continua: — Eu sei que você precisa disso e vou ajudar no que puder.

Agradeço mesmo não emitindo nenhuma palavra. Conhecemo-nos há tantos anos, já passamos por tantas coisas juntos que não é necessário que sempre haja palavras entre nós.

Millos sai da sala, deixando-me sob os olhares curiosos de Rômulo, que provavelmente ouviu os sussurros e ficou de antena ligada atrás de uma notícia quente.

— Volte ao trabalho, Rômulo! — admoesto-o.

Ele fica vermelho e abaixa a cabeça para volta a digitar no computador.

Preciso arranjar uma sala isolada para esse língua de trapo! Ah, se não fosse competente!

Sento-me à mesa e olho para a tela do computador, onde um contrato já ratificado pelo jurídico está à espera da minha assinatura eletrônica. Esse dia não está sendo fácil, embora o trabalho continue normalmente como em todos os outros. Não compreendo o motivo, talvez por ter conseguido a maldita promissória, mas a vontade de conseguir comprar o boteco e o colocar no chão tem estado constantemente em minha cabeça. Muito mais do que o normal!


Os cheiros se misturam aos sons em um caos perfeito, quase sistêmico, se for possível considerar que alguma confusão possa ter um padrão implícito. Há um ritmo a ser seguido, um conjunto de ações e reações em cadeia que faz com que todo o nosso processo ande em harmonia.

É assim a minha cozinha!

Respiro fundo mais uma vez, espantando o cansaço e buscando energia para continuar. Estou empreendida neste ritmo desde às 2h da tarde, quase 12 horas direto, mas envolvida em todos os passos da organização e funcionamento desde às 8h da manhã, quando acordei.

Ser chef de cozinha não é só glamour, quer dizer, nunca foi! O que as pessoas veem na televisão, os grandes cozinheiros que aparecem na mídia com seus restaurantes renomados, a maioria agora é só empresário, cozinha vez ou outra, mas todos já ralaram muito para conseguir algum nome.

Quando decidi ser chef, eu tinha oito anos de idade, estava na cozinha da minha avó materna no interior e fiz meu primeiro bolinho de chuva regado a açúcar e canela. Abro o sorriso por causa da força das recordações. As lembranças olfativas e gustativas, na minha opinião, são as estrelas do cérebro. Quem nunca pensou num prato e na lembrança pôde sentir seu cheiro e o sabor? Quem nunca foi transportado a uma lembrança afetiva ao comer? Eu sempre acreditei nesse poder e, a partir daquele dia, na casa da minha avó, percebi que queria deixar essa marca na vida das pessoas.

Foi o último ano com minha mãe. Ela já estava doente, câncer de mama, e o clima em casa não estava dos melhores. Papai andava deprimido, o bar não estava indo bem o suficiente para arcar sozinho com as despesas depois que ela teve que parar de trabalhar na cozinha, e meu irmão – com 14 anos na época – andava estranho e pelos cantos.

Estávamos em férias escolares, e vovô foi nos buscar para passar umas semanas com eles. Imagino o quanto estava sendo duro ver a filha definhando aos poucos, perdendo a luta contra essa doença tão dura. Diagnóstico atrasado, demora no acesso ao tratamento, tudo isso contribuiu para que ela vivesse seis meses depois da descoberta do câncer.

Metástase, a palavra que mais me dói ouvir até hoje.

Meu maior medo também.

A tristeza e o desânimo tomaram conta da família assim que o médico contou ao papai que o estágio era terminal. A mastectomia, o esvaziamento total das duas mamas, não foi suficiente para ela, pois as células cancerígenas já haviam se espalhado pelo abdômen. Tudo o que podíamos fazer era tentar dar a melhor qualidade de vida possível aos poucos meses que lhe restavam.

Minha mãe, Maria Aparecida Braga Hill, era a pessoa mais forte e alegre que eu conheci. Era a luz da nossa casa, a razão da vida do meu pai, quem eu queria ser quando crescesse. Sua doença não diminuiu suas características e, naquelas férias, ela pegou meu primeiro feito culinário – um tanto cru por dentro e tostado por fora –, colocou-o na boca e revirou os olhos de prazer.

— Hummm, Duda, tem o sabor da minha infância! — Sorriu.

— Ficou um pouco queimado... — tentei argumentar, desculpando-me.

— Isso é questão de prática, princesa! — Ela se abaixou para ficar da minha altura, seu corpo bem magro, olhos fundos e com olheiras, o lenço na cabeça. — O importante não é só a aparência da comida; são as sensações que ela nos traz, o que ela nos faz sentir. — Pegou mais um dos meus tristes bolinhos. — O seu bolinho de chuva me fez voltar a ser criança, encheu meu peito de alegria, e é isso que importa.

Abracei-a, orgulhosa, sentindo-me quase uma heroína por ter feito tudo isso por ela com apenas farinha, água, ovos, açúcar e sal. Minha cabeça infantil imaginou como ela se sentiria se eu lhe fizesse um prato como aqueles que via em suas revistas de culinária. Mamãe ficaria tão feliz!

Foi a partir desse dia que passei a me interessar pela comida, pelos ingredientes, pela mágica que a mistura dos sabores proporcionava.

Muito tempo depois que ela nos deixou, suas palavras, a felicidade em seu rosto e o carinho do seu abraço ficaram marcados em mim. Eu queria essa sensação novamente, eu precisava sentir que algo que fazia era capaz de tornar a vida de alguém mais feliz.

Aos 13 anos insisti com o papai para trabalhar no bar. O Hill era um boteco mesmo, no sentido mais estrito da palavra. Os frequentadores eram pinguços que se encostavam ao balcão do bar quando papai abria e só iam embora expulsos quando ele decidia fechar. Tudo o que servíamos era torresmo, ovo colorido e alguns caldos que fazíamos em dias programados. Segunda e quarta era dia de mocotó; terça e quinta era bucho, e o final de semana era inteiro da rainha do Hill: a feijoada.

Um cozinheiro muito louco, mas com o tempero mais incrível que eu já provei, era quem comandava a cozinha quase doméstica do bar. Ele foi meu primeiro carrasco e logo me colocou na limpeza, frustrando meus planos de ser a estrela do Hill. Assim, ficava horas depois do colégio a lavar a louça – que não era pouca, porque o homem era bagunceiro – e limpar o chão.

Ainda lembro que a primeira coisa que ele me pediu para fazer – que envolvesse o preparo de alimentos – foi picar temperos. Chorei descascando cebolas igual a quando assisti ao filme Titanic na TV e cortei o dedo algumas vezes. O filho da mãe ria toda vez que eu gemia ou xingava, mas não desisti.

Em pouco tempo ele estava me ensinando as poucas técnicas que sabia, obtidas com a experiência de trabalhar em cozinhas desde seu primeiro emprego. Meu carrasco virou meu anjo da guarda, e, toda vez que papai ameaçava me proibir de ir para o bar trabalhar, ele me defendia dizendo que precisava da minha ajuda.

Foi por causa dele que pude estudar fora. Quando fiz 15 anos, papai queria fazer uma festa para comemorar, mas Dalto – o cozinheiro anjo da guarda – conversou comigo sobre cursos de gastronomia e citou a França como referência. Meu presente foi o curso de francês, segundo ele, necessário para me abrir as portas.

Aos 18 anos comecei a cursar a graduação em gastronomia, um orgulho para meu pai, que, àquela altura, já acreditava que eu conseguiria ser uma grande chef. O curso durou quatro semestres, e, aos 21 anos, já trabalhando como ajudante de cozinha em um restaurante de uma rede internacional de hotéis, consegui um feito incrível, uma bolsa para estudar na mais famosa escola de Paris.

Eu tinha tudo o que sempre sonhara, consegui passar num processo seletivo muito criterioso, esforcei-me durante anos para aprender a língua, ganhei a bolsa, mas não tinha grana para viajar e me manter por lá. Nessa época papai tinha um carro seminovo, e não pensou duas vezes antes de vender o veículo e me entregar todo o dinheiro para que eu pudesse passar os meses do curso sem apertos.

Fiz contato com outra moça brasileira que já morava em Paris e consegui alugar uma vaga em seu apartamento, perto do instituto. Foram os melhores meses da minha vida! Dediquei-me de corpo e alma àquilo, ignorei tudo. E a recompensa veio!

Um mês antes de concluir o curso, fui convidada a integrar a equipe de um grande restaurante na capital francesa. Cargo pequeno, salário baixo, mas o primeiro degrau para a realização de todos os meus sonhos de menina.

— Duda! — Manola, meu braço direito aqui na cozinha agitada desse pub que já foi um boteco, me grita, tirando-me do flashback no qual estava. — A cozinha fecha em meia hora, e estamos cheias de pedidos ainda. Não estou achando o molho extra que você tinha preparado mais cedo.

Seco minhas mãos no avental e vou até a pequena câmara fria que instalei aqui há pouco mais de um ano. O investimento foi caro, mas valeu cada centavo, pois consegui armazenar mais ingredientes e de uma forma muito mais segura do que no freezer.

Entrego o molho que preparei mais cedo para Anabele, uma das assistentes de cozinha, e volto a olhar a costelinha de porco no forno, a última da noite.

Estou cansada mais do que o normal, pois tive mais uma noite insone. Tem sido difícil dormir em casa, e, mesmo quando tudo está calmo, pego-me sem nenhuma vontade de fechar os olhos. Nós temos estado em um ritmo alucinante desde que o Hill caiu nas graças do pessoal aqui na Vila Madalena e chamou a atenção da imprensa especializada. Saímos em algumas revistas, ganhamos destaque, mas ainda assim sinto como se andasse no fio da navalha todos os dias.

Não trabalho tanto para enriquecer, apenas preciso manter um teto sobre minha cabeça, o mínimo de estrutura para minha tia Do Carmo e para Tessa e conseguir saldar todas as dívidas deixadas pelo meu irmão e pelo papai.

Uma dor enorme me invade toda vez que penso nos dois. Minha família se desintegrou por completo! Primeiro, mamãe, levada pelo câncer, depois meu irmão, que nunca se recuperou da perda dela e se afundou nas drogas, morrendo de overdose e, por fim, papai, há alguns anos, devido a problemas cardíacos.

Meus avós maternos se foram ainda na minha adolescência, restando a mim apenas a tia Do Carmo e a Tessa. A sorte é que conto com todos aqui como se fossem da família.

Manola é, além de meu braço direito, uma grande amiga. Tenho muito orgulho dela, principalmente por nossas histórias serem tão parecidas em alguns pontos. Ela é filha do Dalto, o “carrasco” que me ajudou a ser a chef que sou hoje. O pai dela vive ainda em São Paulo, mas está aposentado, e, uma vez no mês, fazemos um almoço aqui no Hill, e é ele quem cozinha, deliciando-nos com seu tempero único.

O Arnaldo é nosso faz-tudo, aquele que nos mata de rir com suas piadas bem contadas, que faz as melhores carnes do mundo e que vive sendo consolado por todos por seu infortúnio no amor. Sua grande paixão foi o Marlon, um segurança que trabalha aqui no Hill algumas vezes na semana, mas o homem nunca lhe deu chances. Sofríamos com aquele amor platônico todo, essa é a verdade!

Além desses dois, que são cozinheiros incríveis, temos duas técnicas em gastronomia que sonham em se tornar um dia chefs de grandes restaurantes: a Cláudia, responsável pelas sobremesas da casa, e a Anabele, mestre dos molhos.

Aqui no Hill nós não temos cardápio de restaurante, é de bar mesmo! Bolinhos variados, anéis de cebola empanados, batatas feitas de várias formas e, claro, nossas porções de carne. O carro-chefe são as asas de frango com molhos, uma receita que aprendi com um americano e que caiu no gosto da nossa clientela.

Claro que, com um cardápio tão “tradicional” assim, nós nunca teríamos nos destacado se não fosse a constante variação que fazemos nas receitas. Inventamos onions rings recheadas com vários sabores; batatas com muitos tipos de coberturas, e nossas carnes sempre têm algum molho ou tempero especial.

Além disso tudo, eu conto com o Kiko, o mestre em drinques que encontrei há alguns anos servindo numa barraca de festa, fazendo freelance. Notei o talentoso bartender que ele era e não me arrependo nada disso. O homem é demais, além de ser um grande amigo.

No bar, ele trabalha com mais três ajudantes, que se encarregam de toda a bebida do pub e do controle do estoque. Kiko é um ótimo gerente, dei esse posto a ele por puro merecimento, demonstrando minha admiração. Ele sabe trabalhar em equipe, é muito organizado, sabe contornar conflitos e ter pulso firme com o time de vinte garçons e garçonetes que temos na casa.

O pequeno boteco ao estilo “pé sujo” hoje é uma empresa que gera renda e mantém dezenas de famílias.

Esse é mais um dos motivos pelos quais não posso fraquejar e deixar que as dívidas deixadas pelo papai e pelo meu irmão me façam perder tudo. Principalmente para os Karamanlis!

Respiro fundo só de pensar naquele bando de engravatado abutre rondando o pub como se ele fosse um animal agonizante prestes a perecer. Eu vendo o bar para qualquer um que quiser continuar o negócio, não importa que não seja meu – embora isso me doa –, mas nunca para eles.

Falta pouco para eu quitar a dívida do meu irmão. Papai começou a pagar ainda vivo, e eu continuei os pagamentos depois da morte dele. Devo a um traficante! Esse não é o tipo de pessoa a quem alguém quer dever, então os pagamentos precisam ser feitos religiosamente.

Mais um mês, e isso acaba!, penso aliviada.

Leonan – meu credor – me garantiu que, depois da dívida quitada, não haveria mais o nome da família Hill nos cadernos dele, e eu acredito que mantenha sua palavra. Para qualquer pessoa, essa minha fé em um traficante, quando meu irmão morreu de overdose, pode parecer contraditória, mas tem explicação. Quando João Pedro chegou ao fundo do poço e ficou fora de casa por mais de um mês, papai se desesperou e foi atrás do Leonan. Ele não fornecia mais nada ao meu irmão, mesmo porque JP já usava crack, droga com que ele não “trabalha”, porém, o homem conhecia todo tipo de “fornecedor” e a galera que se amontoava na cracolândia.

Acharam meu irmão lá, e meu pai, mesmo sem nenhuma condição financeira, levou-o para uma clínica de reabilitação. Pasmem, mas quem emprestou o dinheiro para financiar a recuperação foi o Leonan, e é por isso que eu lhe pago até hoje, mesmo porque ele se arriscou muito emprestando esse dinheiro, uma vez que é apenas um dos “gerentes” da boca.

Nós tentamos, mas JP não conseguiu se reerguer.

Quando voltei de Paris, ele já estava de novo vivendo nas ruas. Papai estava desesperado, doente, e eu, mesmo frustrada por ter dado tudo errado no meu sonho de viver na Cidade Luz e ser uma chef reconhecida, fiz a promessa de fazer qualquer coisa por eles. Cheguei precisando de apoio e consolo, e, mesmo em meio a toda essa situação – que ignorava até voltar para casa –, meu pai me recebeu de braços abertos.

Meu irmão foi encontrado morto na rua, um choque e, ao mesmo tempo, um alívio para nós. Ele estava irreconhecível, doente, parecendo ter o dobro da idade que tinha e sofrendo muito. O vício é uma doença, e o crack é quase uma sentença de morte. Pouquíssimas pessoas conseguem se livrar dele, e é por isso que, quem consegue, merece receber todo apoio e consideração, porque é uma luta enorme, uma superação.

Papai estava medicado, tocava o bar, e eu voltei a trabalhar na cozinha e comecei a mexer nos cardápios. No princípio ele não gostou muito, mas depois foi aceitando a ideia de modernizar as coisas. O dinheiro começou a entrar, porém, sempre que eu tocava no assunto reforma, ele desconversava.

Só descobri que ele era viciado em jogo logo depois do funeral, mas apenas soube o tamanho do problema há dois anos, quando recebi a “visita” de um dos agiotas que emprestou dinheiro a ele. Ele devia muito!

Tentei ir pagando ao longo desse tempo, no entanto, os juros que ele praticava só tornaram tudo uma grande bola de neve. Eu estava enxugando gelo e totalmente sem saída. Se vendesse o Hill, conseguiria quitar a dívida, mas como iria continuar mantendo as pessoas que dependem de mim e que necessitam desse trabalho? Além disso, esse é o único legado da família que me restou, pois a casa do meu pai, onde moro hoje, fica no andar de cima e faz parte da propriedade.

Eu tinha esperança de conseguir quitar a débito e fiz um investimento futuro que poderia me render um dinheiro suficiente para amortizar todos os juros e depois eu tentaria renegociar a dívida, mas algo aconteceu.

Fui tentar pagá-la há alguns meses, e, simplesmente, o agiota não me atende. Sempre entrei em contato pelo único número que ele me deixou. Entretanto, é como se nunca tivesse existido.

Um frio percorre minha espinha ao imaginar os prováveis motivos para que o homem não me atenda mais, e eu temo pelo que possa me acontecer.


A noite começou com correria. É sempre assim quando vou à abertura de um vernissage ao qual estou patrocinando. Dessa vez não será pintura, mas sim um jovem escultor descoberto em Paraisópolis que faz seu trabalho com argila, sucata ou qualquer outro material que possa transformar em arte.

Antes ele vendia suas esculturas como artesanato em uma feira de rua, e um dos meus contatos no mundo das artes me ligou assim que viu o material dele. Claro que o rapaz, de apenas 21 anos, tinha muito a se refinar ainda, mas era claro como o dia o talento que tinha para transformar em realidade tridimensional qualquer coisa que viesse à sua imaginação.

Assim que conversamos, propus que ele fosse estudar com um amigo meu, um megaescultor brasileiro cujas peças estão no mundo todo, e assim comecei a organizar seu caminho até o dia de hoje. Viviane, meu braço direito nos negócios com artes, levou-o a várias exposições, workshops, festas e qualquer outro evento que o ajudasse a fazer networking. Enquanto isso, ele estudava, e eu bancava suas despesas e o local onde trabalhava.

Dez meses depois ele já tinha uma quantidade absurda de material de qualidade surpreendente para ser apresentado, e Viviane começou, então, a organizar a exposição, a espalhar uma coisinha aqui e outra ali sobre ele, a mostrar – mesmo que de relance – algumas das melhores peças dele a colecionadores a fim de deixá-los curiosos.

Claro que exatamente essas peças são as que eu já separei para minha coleção particular, que já serão mostradas como vendidas nesta noite, causando assim alvoroço e incitando os outros compradores a adquirirem mais esculturas.

É assim que esse mercado funciona. Geralmente quem é colecionador é também um competidor nato e, ao saber da compra de um item que gostou, começa a sentir medo de ficar sem uma peça daquele artista e, mais tarde, ele se revelar o novo Michelangelo. É por isso que eu sou louco por essa área, por esse jogo pensante e cheio de estratégias como o de um tabuleiro de xadrez. Primeiro, preciso enxergar o potencial artístico de uma pessoa, depois é só começar a jogar e colocar cada peça em seu devido lugar até vencer o jogo.

Ah, não pensem que faço isso por caridade, claro que não! Eu sou um investidor, então tudo o que faço pelo artista está em contrato, e depois sou ressarcido de acordo com o sucesso obtido. Todavia, em algumas situações ocorrem contratempos que impedem o acordo de seguir em frente, nesse caso fico no prejuízo, e o artista volta a se virar sozinho. Meus prejuízos até hoje foram ínfimos diante do que já lucrei nesse negócio, por isso gosto cada vez mais de jogar esse jogo.

O único problema é conciliar meu trabalho burocrático na Karamanlis com a agenda que tenho que seguir, afinal, não “apadrinho” apenas um artista, geralmente tenho umas dezenas em vários estágios de preparação e sucesso. Por isso não dispenso a Viviane, pois ela coordena toda a agenda desse pessoal – excêntrico o suficiente, vale ressaltar – tão heterogêneo.

É uma empresa paralela que nem leva meu nome, porque há um impedimento no estatuto da Karamanlis de o CEO pertencer à diretoria, conselho ou ser sócio de qualquer outra empresa. Então, para todos os efeitos, Viviane Lamour é a dona, e eu, apenas um admirador, além de seu amante, como todos comentam.

Rio ao pensar nisso, dando o nó na gravata-borboleta de frente para o espelho. Conheci Viviane numa festa dada por um pintor muito louco, e ela, obviamente, chamou-me a atenção por seu belo porte, cabelos cortados bem curtos e com a franja alongada, completamente platinados a ponto de serem brancos, destacando sua pele morena. Por si só, ela já é uma obra de arte, de bom gosto, apenas para apreciação de pessoas com senso refinado e olhar crítico.

Saímos algumas vezes, fodemos na maioria delas, mas depois nos tornamos amigos, e o tesão passou. Hoje fico até incomodado com o jeito como ela me trata, como se eu fosse seu confidente, uma espécie de mulher ou amigo gay a quem ela conta detalhes íntimos (excitantes ou asquerosos). Nós nos divertimos juntos, já saímos com a mesma mulher ao mesmo tempo, e eu já a dividi com outro cara, mas tudo na base da amizade e sem nenhum tipo de amarra, e há muito tempo não temos mais esse contato, apenas o profissional e amistoso.

Além de Millos, ela é a única que sabe da vontade do pappoús e tem me auxiliado na busca de uma mulher que preencha o requisito da velha raposa grega – e os meus também, óbvio!

Viviane é mais do que minha sócia, ela é meu faro, o olhar de lince que preciso, além de ser uma ótima companhia, inteligente, divertida, moderna e muito agradável.

Meu celular toca, e vejo o nome dela aparecendo na tela, como se eu a tivesse evocado.

— Theo, meu lindo, você vai chegar a tempo?

Olho-me no espelho antes de responder. Traje de gala, smoking tradicional, preto, com camisa branca, gravata-borboleta de seda também preta e sapatos italianos de couro. Meus cabelos estão penteados para trás com uma pomada que os mantêm fixos, mas sem aquele aspecto molhado tão démodé, minha barba está bem aparada, do jeito que gosto, tudo no lugar.

— Vou, sim! — respondo abrindo a gaveta com relógios da Rolex.

Fico em dúvida por um instante, mas acabo optando pelo clássico day-date de platina, luneta lisa, pulseira presidente e mostrador de ouro branco 18 quilates, de fundo preto com listras. Clássico e moderno ao mesmo tempo!

Confiro o horário no convite e, em seguida, as horas no relógio já no meu pulso. Não gosto de joias, pulseiras, cordões e etc. O único acessório – que, nesse caso, é como uma joia, por ser feito de metal precioso – é meu relógio. Venho os comprando e colecionando há muitos anos e, quando mandei fazer o closet, incluí no projeto gavetas-cofre, todas com combinação para abrir, onde eles ficam aguardando para serem usados.

Tenho peças de várias marcas e muitos modelos de cada uma delas, com valores também variáveis, desde o de um carro popular ao de um apartamento. Minha paixão por relógios é a mesma que Millos tem por motos, por exemplo, ou a que o vovô tem por selos. Acho que todo Karamanlis gosta de acumular algo; não sei se ou o que meus irmãos gostam de colecionar apenas porque não os conheço bem.

Passo perfume antes de sair e, já na sala de estar, encontro-me com a Vanda a esperar, torcendo as mãos e parecendo ansiosa.

— Algum problema?

— Infelizmente, sim. — Ela dá um suspiro. — Minha filha acabou de me ligar... perdeu o bebê.

Caminho até ela e coloco a mão sobre seu ombro, consolando-a.

Vanda trabalha comigo há tantos anos que é como se eu conhecesse toda sua família. Ela tem dois filhos adultos – uma mulher de trinta e poucos anos e um rapaz ainda na casa dos vinte. Os dois moram longe, estudaram, foram trabalhar e formaram família. O rapaz – cujo nome nunca lembro – mora nos Estados Unidos e trabalha numa empresa de tecnologia lá. Já a mulher, Aurora – esse é um nome que nunca esqueço –, mora no Rio de Janeiro com o marido, com quem é casada há muito tempo.

Ainda me lembro da felicidade de Vanda ao me comunicar que finalmente seria avó. Por isso, entendo sua tristeza.

— Se precisar de uns dias para ficar com ela... — Ela concorda. — Vou pedir ao Rômulo que providencie as passagens de avião. — Pego o celular. — Ele tenta algo para hoje ainda?

Ela soluça, e isso me corta o coração. Nunca tive contato com minha mãe, e ela cuida de mim como se eu fosse seu filho. Claro que temos uma relação profissional, mas reconheço o trabalho e o afeto dela por mim.

— Eu gostaria de ir o mais rápido possível...

Rômulo atende no segundo toque, todo esbaforido como sempre, como se estivesse fazendo algum tipo de exercício que o deixasse sem fôlego.

— Rômulo, boa noite! Preciso que compre passagens para o Rio de Janeiro se possível ainda para hoje à noite.

— O doutor vai viajar? Não vi nada na agenda que...

— Rômulo... as passagens, estou esperando na linha — corto-o.

Ele demora alguns minutos, mas ainda posso ouvir sua respiração ofegante. Será que o filha da puta tem asma e nunca me contou?

— Tem um voo para às 22h20 com previsão para chegar lá no Galeão às 23h25, posso comprar?

Confiro as horas de novo; pouco mais de duas horas para a partida do voo.

— Compre e já faça o check-in online. É para a Vanda, têm todas as informações sobre ela na minha pasta pessoal.

Ele confirma, pergunta sobre a volta, e eu peço para reservar para daqui uma semana, mas com possibilidade de mudança.

Vanda vai correndo até seu quarto, entendendo o pouco tempo que tem até chegar a Guarulhos, e eu aproveito para ligar para o Dionísio, que já está na garagem do prédio me esperando.

— Dio, você vai levar a Vanda para o aeroporto o mais rápido possível. Ela tem que estar lá em uma hora para poder embarcar para o Rio. Vá rápido, mas com segurança. — Mal desligo e ligo de volta para o Rômulo. — Conseguiu?

— Já mandei o voucher para o celular dela, chefe! — diz todo animado, e eu reviro os olhos.

— Preciso que entre em contato com aquela empresa na qual alugamos carro e motorista quando me hospedei lá.

— Já fiz isso também, chefe! — sua voz agora está animada e orgulhosa.

— Muito bem! Bom trabalho, Rômulo! Boa noite!

Juro que posso ouvir um suspiro quando desligo o celular. Rio, balançando a cabeça, achando o jeito dele muito engraçado, mesmo que me irrite na maioria do tempo. Esse Rômulo!

Uma mensagem da Viviane chega, pois agora estou oficialmente atrasado, e retorno apenas para acalmá-la:

 

 

Sento-me no banco do piano, brincando com as teclas enquanto Vanda termina de arrumar sua bagagem, pensando em como as coisas mudam de uma hora para a outra dentro de uma família. Eu já senti essa reviravolta uma vez, embora na época tenha reconhecido que foi para melhor, mas ainda assim as lembranças dela causam a dor da sensação de não saber como teria sido.

Bufo de raiva por deixar isso voltar, mesmo depois de tantos anos. Tudo o que eu queria era uma noite de sucesso para meu investimento e, talvez, um sexo casual depois do evento.

Dedilho um blues aleatório ao piano para animar meu espírito antes de sair de casa.

Odeio essas noites corridas!

 

 

— Porra, achei que você não vinha mais! — Viviane me cumprimenta assim que eu piso na galeria. — Samuel Dias é o maior sucesso! — cochicha em meu ouvido enquanto finge um abraço. — Parabéns!

Retribuo o cochicho:

— Para nós dois!

Ela gargalha, e isso chama a atenção de algumas pessoas que estão tomando champanhe e conversando em um canto. Cumprimento-os com a cabeça, pois conheço a maioria deles, mas uma loirinha me atrai com seu sorriso contido e olhos esfomeados.

— Seus olhos não são bons só em detectar talentos... — Vivi sussurra. — Valentina de Sá e Campos, filha do deputado Cristóvão Campos e neta do diplomata Augusto de Sá.

— É um bom currículo! — debocho. — O que mais você sabe?

Viviane sorri lentamente, uma expressão que eu já conheço e que significa que ela sabe tudo o que eu quiser ter de informação sobre a garota.

— Tem 27 anos, formada em Direito, faz balé desde criança e toca piano muitíssimo bem. — Faço um gesto com a cabeça, admirado. — Pelo que eu sei, trabalha no escritório com a mãe, mas está estudando para ingressar na diplomacia como o avô.

— Uma mulher de carreira, então?

Vivi me olha como se eu tivesse duas cabeças, e ergo as mãos em rendição.

— Mulher de carreira! Que mente retrógrada! O que você quer, afinal? Uma dondoquinha que fique em casa sem fazer nada o dia todo?

— Uma mulher que cuide de meu filho e que não o abandone por causa da profissão.

Ela volta a me fuzilar com os olhos.

— Isso é revoltante, Theo! Há ótimas mães que também são ótimas profissionais, uma coisa não exclui a outra, pelo amor de Dadá! — ela sempre me arranca um sorriso quando diz essa expressão. — Você quer mesmo fazer isso? Começar a sair com alguém para se comprometer? Porque, a cada vez que encontra uma possibilidade, você arranja mais requisitos! Tá foda!

— Vamos cumprimentar o artista primeiro, depois você continua me contando a vida da menina. — Sorrio para ela. — Anota aí que eu também a achei muito nova.

— Puta que pariu, desisto de te ajudar! Aquela última tinha 35 anos, e você achou que ela já podia estar entrando na menopausa e que por isso ia ser difícil emprenhar. — Rola os olhos. — Cagão!

Gargalho, aceitando um copo de uísque que o garçom veio me servir.

— Macallan? — pergunto, sentindo o cheiro.

— Óbvio, trouxe exclusivamente para você. — Ela acena, e vejo Samuel Dias. — Elogie o rapaz, diga que eu contei como ele tem se saído bem nesta noite e se desculpe pela demora. Finja ser sensível!

— Mas eu sou, não preciso fingir! — respondo rindo, bebericando o uísque.

— O que há de errado? — Ela provavelmente percebeu que não estou bebendo de verdade, apenas fazendo cena.

— Estou dirigindo. Tive que pedir a Dionísio que me fizesse outro favor.

— Justo hoje? — mesmo com o sorriso congelado em sua face, sua voz não disfarça a irritação. — O que havia de tão importante?

— Nada para você se preocupar. — Cumprimento o artista da noite: — Parabéns, eu ouvi falar que tudo tem sido um sucesso!

— Obrigado, Theo! Nada disso seria possível sem...

— Não, nada disso! Vamos celebrar a sua conquista hoje! — corto seu discurso de gratidão. Ele não precisa disso, não lhe estou fazendo um favor. — Viviane, procure um garçom para servir algo ao rapaz! O serviço poderia estar melhor...

— Vá se foder, Theo — diz baixinho entredentes, mas faz o que peço.

Assim que ela se afasta, cumprimento Samuel como sinto que devo, sem Viviane a estar no meu ouvido dizendo o que e como devo falar com ele.

— Estou muito orgulhoso de você. Sabia que seu talento seria reconhecido. — Ele agradece. — Só se lembre daquilo que conversamos no primeiro dia em que nos encontramos.

— Claro! — Sorri. — Nunca abandonar minhas raízes e minhas essência, porque são elas que impulsionam meu talento.

— Exato!

Viviane volta com duas taças de champanhe.

— Podemos brindar? — pergunta animada.

Levanto o copo de uísque enquanto eles tocam de leve as taças. Novamente busco a garota loira com os olhos e tenho a grata surpresa de pegá-la me observando. Sorrio, aceno com a cabeça, e ela faz o mesmo.

Então vamos ver no que dá!


Acordei de ressaca hoje, e não foi por causa da quantidade de bebida que ingeri no vernissage; aquela quantidade, eu nem consideraria como beber. Viviane ficou puta por ter encarecido o orçamento com garrafas do meu uísque preferido e eu não estar bebendo, por isso, depois do evento, reuni todas as que sobraram e trouxe para meu apartamento.

Pensei que ia passar uma noite solitária, acompanhado apenas de um single malte e discos de jazz, mas, no meio da minha encenação de lobo solitário, Millos ligou me convidando para ir até seu loft. Neguei várias vezes, mas a porra do homem estava tão excitado com a cerveja que havia feito que não parava de insistir.

Resultado? A bebida realmente estava um espetáculo! Enchemos a cara, mesmo sob meus protestos, pois nunca curti muito beber cerveja, e comemos uns tira-gostos tão saborosos que teci elogios a sua habilidade na cozinha.

— Ah, não fui eu quem preparou, não! — Riu. — Encomendei no Hill.

Quase cuspi aquela porra para longe e o fuzilei com os olhos.

— Porra, eu querendo que aquela merda feche e você comprando lá? Está do lado de quem afinal?

— Do meu estômago! — respondeu comendo mais um dos bolinhos. — Estava com vontade de ter um acompanhamento, mas sem nenhum saco para preparar. Me lembrei do dia em que fomos lá e quis conferir se ainda continuavam tão gostosos!

— Ainda não te perdoo por aquela arapuca! — acusei.

Há uns dois anos, Millos me convidou para comemorar seu aniversário, coisa que vez ou outra fazemos quando ele está em clima de festa. Eu lhe disse que o encontraria no local, mas ele insistiu em me buscar em casa, e, quando chegamos e percebi que era no Hill, fiquei bem puto, mas a curiosidade de saber o motivo pelo qual o boteco estava se tornando um sucesso me impulsionou a entrar.

O que eu não contava era que, além de a mim, o filho da puta tinha convidado meus irmãos. Ficamos lá os quatro como se fôssemos bons amigos, compartilhando da armadilha de Millos. Aposto que Kostas e Alex detestaram cada momento, mas sorrimos, bebemos e experimentamos os quitutes da tal da Duda Hill.

Mesmo não gostando de admitir, era fato que a mulher sabia o que estava fazendo na cozinha. Os bolinhos tão tradicionais de um boteco tinham um requinte diferente, embora mantivessem a essência. Era como se ela conseguisse melhorar o que já era perfeito, e isso, tenho que admitir, é um dom.

Confessei isso ao meu primo? Nem sob tortura! Repreendi-o por ter comprado lá, aleguei que ela podia ter mandado envenenar os quitutes – fazendo um drama desnecessário, culpa da bebida –, mas não parei de comer.

— Ah, pedi a Sami para comprar para mim — respondeu.

— Você ainda está saindo com ela? — questionei surpreso, pois havia muito tempo não via a motoqueira que, de vez em quando, orbitava em volta dele.

— Não! Somos amigos, já disse isso, mas parece que você só enxerga a boceta de uma mulher, come até suas “amigas” — fez referência a Viviane.

— Por que você não gosta dela? — Provoquei: — Porque ela é independente, dona de si mesma e diz o que pensa?

— Não! Eu não curto mulher assim para comer, mas não tem nada a ver com o fato de eu achá-la fria e calculista, e nunca escondi isso de você. Aquela mulher gela meu sangue!

Ri do seu exagero, afinal, a Vivi não tem nada de fria. Millos implica com ela pelo simples fato de a mulher ter personalidade e não se deixar comandar por ninguém. No primeiro momento ele se sentiu atraído, Vivi é um espetáculo aos olhos, e ela também não disfarçou o interesse. No entanto, bastaram alguns minutos de conversa para que se odiassem.

— Hoje ela conseguiu algo incrível — comentei. — Valentina de Sá e Campos, já ouviu falar?

Ele riu.

— Dela não, mas conheço os sobrenomes. Família paulistana tradicional, bom currículo. — Cruzou os braços e me olhou debochado. — A futura senhora Theodoros Karamanlis?

— Talvez — fui sincero. — Conversei um pouco com ela nesta noite, achei-a divertida, inteligente e sedutora. A princípio achei que era muito nova, mas é madura e independente, cheia de opinião. Gosto do tipo.

— Eu sei. — Ele se levantou e foi pegar mais cerveja. — Foi Viviane quem te apresentou a ela? — Assenti. — Não sei se gosto disso, mas boa sorte.

Gargalhei pela implicância dele com a Vivi e resolvi desviar o assunto. Falamos da Karamanlis, de música, de motos e, por fim, já muito bêbado e com sono, caí sobre o sofá dele e acordei há pouco, com torcicolo e com uma puta dor de cabeça.

— Ei! — Millos me saúda estendendo uma xícara de café. — Você está destruído!

O desgraçado ri, mas nem posso mandá-lo tomar no cu, porque minha cabeça trepida parecendo que há uma britadeira no meu cérebro. Maldita cerveja! Malditos bolinhos envenenados da Duda Hill!

— Cara, você é fraco para minha cerveja! — Millos ri. — Ficou boa, não é? — Apenas assinto, ainda tomando o café para melhorar meu ânimo. — O que está programado para fazer nesse final de semana?

— Vou trabalhar. Como saí um pouco mais cedo ontem por causa do vernissage, Rômulo separou umas pastas para que eu lesse nesse final de semana. Coisa chata, principalmente da pauta da reunião do conselho.

— Por falar no conselho... — Ele se senta ao meu lado no sofá e apoia os pés descalços sobre a mesinha de centro. — Ontem tive notícia do Kostas. — Ri. — Parece que tomou um toco feio da Kika e está cuspindo marimbondos.

Gargalho, esquecendo a dor.

— Como queria ter visto esse embate!

— Eu também.

Bufo, mesmo divertido, lembrando que o meu problema continua.

— Preciso trazê-la de volta para a empresa com urgência. Há vários projetos dos hunters parados, e o Rômulo não está dando conta de organizá-los.

Millos rola de rir no sofá.

— Esse seu assistente é muito estranho. Sinceramente não entendo como você ainda o mantém trabalhando contigo!

— Gosto de ele ser metódico. — Dou de ombros. — É organizado, embora meio desastrado, nunca perde um prazo e faz tudo o que eu peço.

— Seu próprio espelho, não é? Nunca conheci ninguém mais chato que você para organização.

Ergo uma sobrancelha para ele e olho em volta para seu loft cheio de espaço, mas sem nenhuma lógica ou senso de estilo. Millos gosta de coisas rústicas, e respeito isso, acho legal, mas é tão bagunceiro que seus móveis caros de design parecem ser cacarecos de alguma casa demolida.

Os únicos locais arrumados são: a cozinha, o “laboratório” de cerveja (como ele mesmo se refere ao local) e onde dorme. O resto... tem peças de motos para todos os lados, mesmo a oficina ficando na parte de baixo do galpão que ele chama de loft, tem barris com os ingredientes que compra para a fabricação de cerveja, roupas, discos e óculos (nunca vi tantos para uma só pessoa) espalhados por todos os lados.

O homem é um caos completo em casa, mas, se alguém entrar na sala dele na empresa, vai acreditar que é o epítome da organização. Não entendo como consegue!

— Bem, sobre a Kika, eu posso te adiantar que não precisa se preocupar — Millos continua. — Falei com ela ontem, e vai voltar.

Expiro o ar, aliviado.

— Porra, Millos, porque não me contou antes? É um alívio do cacete não ter que lidar com mais esse problema e...

— Mas ela não quer ser mudada de andar.

— O quê? Ela está fazendo exigências?

Millos penteia a barba com os dedos, enervando-me com sua calma.

— Demonstramos desespero ao mandar o Kostas pedir arrego. — Concordo com ele nesse ponto. — Ela quer aumento, continuar no andar e... — Tenta conter o sorriso, e prevejo que vem bomba, mas ele vai dar um doce do cacete para falar.

Perco a paciência e esbravejo:

— O que mais ela quer?!

— Carta branca para mandar seu irmão se foder à vontade.

— Porra!

Ponho as mãos na cabeça, sentindo a dor de cabeça voltar com tudo e ouvindo a risada debochada do Millos.

Eles querem me enlouquecer, só pode!

 

 

A dor de cabeça me acompanhou ao longo de todo o final de semana. Tomei analgésico, antiácido e – seguindo os conselhos do meu primo – mais um pouco de cerveja. No entanto, não consegui me livrar do incômodo insistente.

Trabalhei o sábado inteiro, recebendo ligações do Rômulo quase de hora em hora, a ponto de ficar puto com ele e mandá-lo caçar algo para se divertir e me deixar em paz. Compreendo que ele queira me ajudar, mas, às vezes, sua dedicação exacerbada me estressa.

Recebi um convite para jantar de uma antiga amante que vinha a São Paulo de tempos em tempos, mas neguei. Queria apenas relaxar um pouco em casa depois de ter trabalhado em páginas e mais páginas de relatórios com uma dor de cabeça chata a me distrair.

Pedi comida em um restaurante de comida vegana, achando que pudesse ser a gordura dos bolinhos do Hill – velha e rançosa, com certeza – que me deu essa indisposição e resolvi assistir a alguns filmes antigos. Sou fã de “O poderoso chefão”, então comecei a assistir a cada um deles de novo.

Novamente dormi em um sofá, mas acordei melhor e resolvi correr um pouco. Passei umas duas horas no Ibirapuera e, na volta, encomendei o almoço de domingo, sentindo-me um pouco órfão sem a Vanda em casa.

Liguei para Millos a fim de fazermos algum programa à tarde, mas ele estava com alguma mulher em algum clube ou lugar que só Deus sabia, então voltei aos relatórios, e isso consumiu o resto do dia.

Debaixo do chuveiro, rememorando este final de semana de merda, ouço meu telefone tocar, mas o ignoro. Coloquei os jatos no mais forte possível para tentar aliviar um pouco a tensão que venho acumulando nesses dias. A verdade é que preciso trepar um pouco, divertir-me, talvez fazer uma viagem ou passar um final de semana com alguém sem pensar no trabalho.

A imagem da Valentina vem à minha mente, sua conversa gostosa, seu sorriso bonito. Contudo, ainda não me sinto completamente certo de que devo me envolver com ela, principalmente por uma questão: não senti muita atração.

Sei que isso é de momento e que pode mudar, principalmente se a convivência for boa. Nem sempre sentimos atração pela pessoa no primeiro encontro, e já vivi anos demais para saber que até um primeiro encontro explosivo pode depois esfriar e o tesão ser extinto, então, não me baseio apenas nessas primeiras impressões.

Fecho os olhos e penso na garota da boate há alguns anos. Ela vem preenchendo minhas fantasias há muito tempo, talvez por ter sido gostoso daquela vez e não ter tido mais notícia dela.

Mal lembro do seu rosto, de tão bêbado que estava, sempre quando fantasio vejo os cabelos e me lembro da loucura que foi nossa transa naquele banheiro.

O telefone volta a tocar, e desligo o chuveiro, saindo do boxe para ver quem é o chato. Rio ao ver o nome do Millos. Na mosca!

— Já terminou sua maluquice sexual com a “submissa” da vez? — provoco.

— Vá se foder e não se meta nos meus assuntos — rosna. — Liguei para saber se amanhã pode ir comigo a um restaurante que um amigo inaugurou nos Jardins.

— Boa comida ou é boteco?

— Não, seu fresco, é coisa fina! Vanda ainda não estará de volta, não é?

Suspiro, resignado.

— Não, ela ainda vai ficar um tempo no Rio de Janeiro. Está certo, amanhã combinamos isso melhor no escritório.

— Okay! — diz animado. — Vai almoçar no refeitório junto aos funcionários?

— Sempre há uma primeira vez, não é? — Deixo a toalha no suporte e sigo para o closet. — Além do mais, confio que servimos algo de qualidade aos funcionários.

Millos ri.

— Essa eu quero ver! Nos encontramos no almoço, então! Boa noite, Theo.

— Boa noite!

Desligo o telefone e me olho no espelho, lembrando-me do tempo em que comia qualquer coisa e em qualquer lugar, na maioria das vezes sujo e fedendo a peixe, sentindo-me feliz e livre.

— Quem é você, Theodoros Karamanlis?


O dia nem bem amanheceu, e eu já estava suando na academia com a Sandra. Hoje, sem Millos, o treino foi mais tranquilo, seguindo o ritmo normal dos exercícios. Tomei meu café sozinho na cozinha – café puro mesmo – sentindo imensamente a falta da Vanda, de sua conversa matutina animada e seus cuidados. Posso não admitir sempre, mas gosto de ser cuidado, de sentir esse afeto, coisa tão rara na minha vida.

Limpei os pensamentos e saí para trabalhar.

— Bom dia, Dionísio! — cumprimentei o motorista como em todos os dias, já pegando meu jornal para me inteirar sobre as principais notícias do dia. — Hoje vou almoçar na empresa, mas, à noite, vou sair do escritório direto para jantar com Millos.

— Levo o doutor ou trago o carro?

— Traz o carro, vou dirigindo.

Ele assentiu, e seguimos viagem em silêncio, ele concentrado no trânsito, e eu, nas notícias de economia do país e do mundo.

Cheguei à empresa já apagando incêndios. Um dos projetos de um cliente foi reprovado por uma comissão municipal, então Kostas teve que intervir mandando seus advogados e acompanhando todo o processo. Eu, como CEO, fiquei aguentando a aporrinhação do gerente responsável pela implantação da empresa multinacional aqui no Brasil.

Nem vi a hora passar, mal tomei meus cafés tão tradicionais ao longo da manhã, irritado com esse problema, com o Rômulo borboleteando ao meu redor me enchendo de perguntas: “quer café?”, “ligo para o doutor Konstantinos?”, “quer um calmante?”. Eu quase explodi de raiva, sentindo meu estômago fritar e a cabeça estourar.

Desci para o refeitório faltavam alguns minutos para o meio-dia e, para meu espanto, ainda não tinha nenhuma refeição pronta. Conferi as horas no Omega, um dos relógios mais precisos do mundo, e estranhei a demora. Rômulo apareceu e, quando lhe questionei o atraso, fiquei sabendo que o almoço era servido a partir da 1h da tarde.

Voltei para o escritório sob a insistência de Rômulo para me encomendar o almoço em algum restaurante.

— Não! Hoje vou comer no refeitório — insisti.

Millos me lançou um desafio por eu nunca ter comido na empresa desde que foi inaugurado o refeitório para os funcionários. Pensamos no restaurante para facilitar a vida de todos e, como tínhamos espaço, decidimos montar a estrutura. Estive presente no primeiro dia, na inauguração, há alguns anos, mas depois disso não botei mais os pés no local.

Exatamente às 13h desci novamente pensando em usufruir de um almoço tranquilo e nutritivo, porém, o que encontrei me deixou sem ação. Primeiro, os funcionários ficaram estarrecidos ao me ver ali; percebi em seguida que apenas o baixo escalão da empresa – de coordenadores para baixo – estava comendo ali. Não havia nenhum gerente ou diretor no meio dos mais de 100 funcionários da companhia.

Contudo, o que mais me surpreendeu foi a comida. Não, não era ruim, pelo contrário, era bem preparada, mas sem nenhuma opção para substituição.

— E quem não pode comer carne vermelha? — questionei ao Rômulo, e ele apenas corou, fingindo não ouvir. — Há cardápios diferentes ao longo da semana?

Rômulo continuava a montar seu prato sem emitir qualquer resposta, o que não é nada típico dele, e isso me irritou. Quando não era para falar, o homem tagarelava, mas, quando eu precisava de respostas, ficava mudo!

— Rômulo! — chamei-o de modo mais enérgico. — Eu estou tentando entender o que...

— Não, não há! — escuto a voz do Alex e me viro para encará-lo. — E seu querido assistente não sabe informar porque não come aqui também. — Meu irmão pegou um prato e se serviu naturalmente. — A questão do restaurante entrou em pauta numa reunião de diretoria, mas o senhor todo-poderoso do Olimpo achou que não era uma questão relevante para a economia da empresa e pulou o assunto.

Olhei de esguelha para Rômulo buscando confirmar a informação, e ele atestou. Xinguei mentalmente.

— Uma empresa é feita de mais do que números, Theodoros Karamanlis — seu desprezo pelo sobrenome era evidente. — E, quando fiz a proposta do restaurante, era para que, além de economizar o tempo dos funcionários e agilizar o serviço, também tivéssemos convívio com eles, porém, adivinha quem foi o primeiro a pular do barco e a incentivar o “alto escalão” a ir junto?

Bufei de raiva.

— Quem é o responsável pela gestão do restaurante? — ignorei o discurso do meu irmão idealista e perguntei ao Rômulo.

— É terceirizada, a mesma empresa do pessoal da manutenção.

Merda!

— Marque uma reunião com ela e peça ao Kostas para avaliar o contrato. — Rômulo mais do que depressa escreveu em seu tablet inseparável. — Dispare um memorando para todos os diretores e gerentes, lembrando da existência do restaurante e informando que, a quem for almoçar fora, será necessário cumprir o horário, ou seja, uma hora e nenhum minuto a mais.

Rômulo arregalou os olhos e assentiu.

— Eu pouco vejo você e percebo que nem é preciso! Você não mudou nada, o mesmo prepotente de sempre. — Alex passou por mim, ainda se servindo no bufê, rindo de deboche, e percebi olhares curiosos em nossa direção.

— Eu preciso lembrar que você também faz parte da diretoria e tem acesso irrestrito ao conselho? — Cheguei perto para falar baixo: — Se fosse meu projeto, nunca deixaria chegar aonde chegou só porque não sou o CEO. Isso demonstra que está mais preocupado em ir contra a direção do que lutando pelo bem-estar dos funcionários. Não é minha função tomar conta de tudo, não sou absolutista, eu delego e confio naqueles a quem passo esse poder. — Ele fechou a cara, perdendo o ar de superioridade. — Não tenho intenção alguma de prejudicar os que trabalham comigo, pelo contrário. Mas assumo meu erro em não ter frequentado o local para dar exemplo.

— Mas o doutor também não tem horário certo para almoçar, por isso...

Balancei a cabeça em negativa, freando a defesa de Rômulo. Não tinha desculpas, o exemplo era meu, e eu tinha falhado. Terminei de fazer meu prato, sentei-me a uma mesa com Rômulo e almocei mesmo sentindo um nó na garganta por ter mostrado falha e ter sido repreendido pelo Alex na frente de todo mundo.

Merda!

Ao longo do dia, a repercussão do almoço do CEO no restaurante da empresa, bem como o efeito do memorando para os diretores e gerentes agitaram a tarde na Karamanlis. Percebi todo mundo mais atento, mesmo na correria de sempre.

Tive uma resposta positiva da equipe de Kostas com relação ao projeto vetado e pude passar a boa notícia ao nosso cliente. Recebi vários relatórios dos setores e subsidiárias ao longo do dia, inclusive da K-Eng, dirigida pelo Alex.

Meu irmão é um sonhador idealista, defensor dos fracos e oprimidos, um rebelde que só trabalha conosco para contrariar a família. Cospe sobre nosso sobrenome, mas faz questão de ostentá-lo para afrontar o pappoús. Sempre achamos que ele tentaria afundar a empresa em represália ao tratamento que teve na infância, mas não, ele não só assumiu uma empresa praticamente independente como a fez crescer. Todavia, ainda sinto que há algo por trás disso.

Estaciono o carro na vaga do restaurante, afastando as lembranças do dia e conferindo o endereço que Millos me enviou por mensagem. Estar sem o Dionísio nesta noite é bom, porque vou moderar a bebida, afinal é segunda-feira, e prefiro tomar um copo de uísque quando estiver no meu apartamento.

Tenho expectativa de o jantar ser bom; já o almoço foi complicado e indigesto com a discussão com o Alex e a demonstração de que deixei as coisas correrem soltas demais. Claro que não sou arrogante a ponto de achar que meu irmão não estava com a razão sobre as coisas que me disse, afinal, ele convive mais com os funcionários que eu, mas não gostei de ser contrariado na frente de todos.

Entro no restaurante, e a primeira coisa que percebo é a arquitetura do lugar e a decoração de bom gosto. Isso realmente não diz muita coisa acerca da qualidade gastronômica deles, mas já conta pontos em matéria de conforto. Uma recepcionista, bem-vestida e muito bonita, cumprimenta-me, e lhe dou o nome de Millos, que foi quem fez a reserva.

— Ah, doutor Karamanlis, ele ainda não chegou, mas o senhor pode esperá-lo no bar, tudo bem?

Respiro fundo, conferindo as horas e calculando que ele – se viesse de moto, como sempre – já deveria estar aqui. Olho contrariado para o bar, logo na entrada do restaurante, e meus olhos são imediatamente atraídos para uma mulher vestida de preto, com os cabelos longos, castanhos e lisos, tomando uma taça de vinho.

Não consigo ver todo o seu rosto, apenas o perfil, e isso é suficiente para que eu queira vê-la toda.

— Tudo bem — concordo com a recepcionista, que me aponta o bar.

Caminho para lá e me sento na poltrona alta ao lado da bela mulher. Não a olho, prestando atenção ao bartender que vem pegar meu pedido.

— Scotch, por favor. — Ele pergunta a marca. — The Macallan.

Sorrio satisfeito ao vê-lo pegar exatamente a garrafa que costumo beber e, então, de esguelha, olho para a mulher ao meu lado, procurando algum indício de indisponibilidade – ou problema –, como uma aliança em seu dedo.

Ela não usa nem mesmo anéis. No entanto, o que chama minha atenção são as unhas curtas, bem cuidadas, mas sem esmalte. Hoje em dia o que as mulheres mais fazem é colorir as unhas! Como eu gosto de arte, logo sou atraído pela variedade de cores e a combinação com as mãos e os formatos. Porém, não com ela; suas mãos são lindas, dedos longos, sem precisar de nenhum tipo de enfeite.

Subo o olhar e a encontro me olhando também.

— Boa noite! — cumprimento-a sorrindo assim que o bartender deixa meu copo no balcão.

— Boa noite! — ela responde. Sua voz me causa uma sensação de frenesi, e fico imediatamente excitado. Ela é linda em todos os sentidos da palavra. Seu rosto é delicado, proporcional, olhos expressivos, nariz fino e uma boca generosa. Fico imaginando como será seu sorriso aberto, não apenas esse polido e educado que me dá agora.

Paro de encará-la para não a constranger e tomo um gole do uísque, questionando se devo ou não puxar conversa com ela.

Não sou inseguro, nunca fui, mas às vezes uma mulher só quer estar quieta bebendo sem alguém para importuná-la, por isso sempre espero ver algum indício de que quer papo antes de abordar.

Dou outra olhada de soslaio.

Vamos lá! Quero saber quem você é!


— É a primeira vez que venho aqui — é ela quem faz o movimento, e gosto disso, uma mulher decidida. — Estou surpresa pelo requinte sem a frieza esperada desses restaurantes com esse nível. O pessoal é simpático e organizado.

Rio.

— Você é da área — constato e me viro para ela, girando a poltrona em sua direção.

— Sou. — Sorri finalmente, e me sinto extasiado com a perfeição do gesto. Os olhos ficam levemente puxadinhos, e sua face inteira se ilumina. A mulher fica absurdamente linda quando sorri. Meu interesse é real agora. — Mas hoje vim como cliente.

— Eu só venho como cliente — brinco. — Não sei fritar um ovo!

Ela ri de novo e toma um gole de seu vinho.

— O que seria dos restaurantes se todos soubessem ou gostassem de cozinhar? — Levanta sua taça em minha direção. — Aos que são apenas clientes e podem desfrutar de uma deliciosa refeição sem ficar avaliando cada nuance do prato.

— Justo! — Brindo com ela. — Qual sua formação?

— Cozinha francesa. Diplôme de cuisini e pâtisserie.

Uau!

Meu corpo inteiro vibra e meu pau reage ao som do seu perfeito sotaque francês. Acompanho sua boca em volta da borda da taça de vinho, o leve ondular de sua garganta sorvendo a bebida e sua língua resgatando os resquícios da bebida em seus lábios.

Abaixo a cabeça e bebo um longo gole do uísque, tentando não parecer um tarado assediador, mas louco para perguntar se ela prefere na minha casa ou na dela.

— Pelo francês perfeito presumo que tenha estudado na França... — Ela concorda com um sorriso. — Le Cordón Bleu?

— Naturellement. Estudar gastronomia na França sem ser em Le Cordón Bleu é como ir a Roma e não ver o Papa!

Gargalho com sua comparação e a saúdo com minha bebida.

— É como ir até a Escócia e não provar um verdadeiro uísque.

Levo o copo até a boca e acompanho o olhar dela em mim.

— Sua escolha de bebida me surpreendeu — ela comenta, e franzo o cenho, olhando meu bom e velho single malte e me perguntando qual é o problema com ele. — É uma bebida conservadora, nada sofisticada, ao meu entender, não combinou muito. — Aponta para mim.

Finjo-me de ofendido, embora segure a risada, e cruzo os braços.

— E você é uma entendida em bebidas também? — provoco-a.

A risada dela é tão melodiosa que parece música, seus olhos se iluminam e as bochechas ficam levemente rosadas. Perfeita!

— Nem queira saber! — Beberica um pouco do seu vinho. — Praticamente cresci cercada delas.

— Hum... — Sorrio. — O que combinaria mais comigo, então?

Sou submetido a um olhar avaliador, passando pela minha roupa, sapatos e rosto. Sinto tão intensamente sua atenção sobre mim que é como se ela pudesse olhar além das minhas roupas. Estou exposto, nu, cada músculo aquecendo à medida que seus olhos percorrem meu corpo, concentrando ainda mais desejo em minha virilha. Porra, que delícia!

— Pelo estilo de roupas e o Omega que usa no pulso — ergo a sobrancelha, surpreso pelo bom olho que ela tem —, um Dry Martini.

Gargalho sem me conter, e ela me segue, ambos divertidos pela comparação que ela faz. James Bond? Sim, eu sei que o mais famoso espião dos cinemas só usa relógios da Omega, mas não me vejo com uma taça de Dry Martini na mão, exigindo do bartender: “batido e não mexido”. Gosto de pensar que sou mais rústico que isso. A prova é meu single malte caubói.

— A sofisticação é só uma casca, pode acreditar. Estou longe de ser tão refinado quanto o Bond, ou tão habilidoso. — Ela levanta uma sobrancelha questionadora, demonstrando que não acredita nessa minha “humildade”. — A propósito... — respiro fundo, indo devagar — meu nome é Theo.

Mais uma vez seu sorriso faz meu pau reagir, ficando dolorosamente duro e pulsando na cueca. Que porra de atração é essa? O que essa mulher tem? É divertida, a conversa está fluindo bem, além de ser linda, mas essa atração... não é assim que acontece, ainda mais em um ambiente tão frio quanto o em que estamos.

— Maria Eduarda. — Ela estende a mão, e eu a seguro.

Tudo em volta parece vibrar, e noto que ela também sente isso. Meu sorriso se expande. Não tiro os olhos dos seus. A energia gerada pelo toque esquenta meu corpo e aumenta minha percepção do dela.

Maria Eduarda tem um belo pescoço, e o cheiro suave de um bom perfume parece advir exatamente do ponto onde eu gostaria de passar minha língua. Os ombros são delicados, os braços longos e sem nenhum contorno muscular demonstram que ela não mantém regularidade de exercícios, sendo magra ao natural. Os peitos no decote do vestido são pequenos, porém, redondos e firmes.

O vestido, embora justo, tem um tamanho comportado, por isso não posso ver suas coxas – o que é uma pena –, tão somente as panturrilhas e uns pés lindos – esses, sim, com as unhas pintadas de vermelho – em sandálias de cor clara.

Apesar de ser uma mulher atraente e bonita, não é uma beleza exótica. Sem o sorriso, ela passaria a ser apenas mais uma mulher bonita como muitas outras que existem por aí, porém, não para mim. Algo nela chamou minha atenção desde o primeiro momento. Mesmo com ela de costas, sem nem ao menos ver seu rosto direito, senti-me atraído.

Agora ela me deixa em chamas, tentado a ser direto e lhe propor uma noite de pura sacanagem. Eu o faria se o local fosse mais descontraído e tivesse mais abertura da parte dela, não só a confirmação de que se sente atraída por mim. Em uma boate, por exemplo, eu seria mais efusivo.

— É um prazer enorme encontrá-la aqui — mesmo sendo sutil, quero deixar claro que ela chamou minha atenção. — Salvou minha noite, pode ter certeza.

Ela sorri e solta minha mão.

— Quase não vim — confessa e dá de ombros. — Assunto chato, companhia chata.

Gosto da sua sinceridade.

— Negócios? — Ela assente, e eu adoro a notícia. — Geralmente os meus jantares têm o mesmo motivo.

— Então veio para uma reunião também?

Nego com a cabeça antes de responder:

— Não, hoje só vim comer. Meu primo é amigo do dono daqui e me recomendou o restaurante.

— Isso é bom, espero que esteja à altura da sua expectativa.

— Ainda que não esteja, Maria Eduarda — cruzo os braços e a encaro —, no momento estou ligando o foda-se para a comida ou o restaurante.

Ela fica séria, mas não desvia os olhos.

— É mesmo?

Não respondo de imediato, curtindo esse jogo entre nós. Aposto que ela sabe o motivo pelo qual não tenho mais nenhum interesse na gastronomia do local. Ela quer que eu diga! Quer que eu dê o passo adiante, que demonstre o interesse claramente, o que é um ótimo sinal.

Deixo o silêncio e o ar vibrar entre nós por mais alguns momentos, sem tirar meus olhos de suas belíssimas íris castanhas.

— Porque minha fome é outra desde que encontrei você aqui. — Ela segura o fôlego. — Porque nossa conversa está cada vez mais interessante. — Abaixo o tom de voz: — Porque olhar você e sentir seu cheiro acordaram meus sentidos mais do que qualquer nuance de um prato é capaz de fazer.

Minhas mãos coçam de vontade de tocá-la, de sentir novamente aquela energia sexual percorrendo meu corpo, emanando dela. Não o faço porque ainda não vi sinais suficientes para avançar a esse ponto, e eu sempre espero a permissão de uma mulher para tocá-la.

— Você nem me conhece — ela responde um pouco ofegante.

— Estou louco para conhecer. — Encosto-me melhor à poltrona e me afasto um pouco dela para demonstrar que não a estou pressionando. — Não tenho pressa, Maria Eduarda, só preciso que saiba que você me atrai e que, embora esteja sentado aqui, estou louco para segurar sua nuca e provar o sabor desse vinho que bebe, diretamente nos seus lábios.

Ela suspira e desvia o olhar.

Esse é o momento quando ou eu tomo um fora, ou venço o jogo. Porém, podem dizer que é arrogância, eu sou um homem vivido e, se cheguei até aqui, se me expus dessa forma, é porque estou apostando minhas fichas em que o tesão é recíproco.

— E se eu for casada ou comprometida?

Bingo!

Pela entonação da pergunta, sei que ela não é.

— Eu me desculparei, mesmo ainda sentindo esse desejo maluco de te beijar, e me levantarei, indo para a mesa que meu primo reservou. Não trepo com comprometidas.

Ela levanta as sobrancelhas e assume uma expressão provocadora.

— Não trepa? — Ri, cínica. — Você é muito confiante achando que basta jogar meia dúzia de palavras em cima de uma mulher sozinha em um bar para garantir uma trepada.

— Eu sou confiante. — Aproximo-me a fim de lhe demonstrar de onde vem minha confiança. — Mas não são as “meia dúzias de palavras” que vão fazer você ter vontade de trepar comigo. — Seguro sua mão e com a outra deslizo meu dedo indicador do seu punho até o cotovelo, vendo todos seus pelos se arrepiarem com o leve contato. — É isso!

Maria Eduarda fica um tempo olhando o trajeto do meu dedo sobre sua pele, assistindo, como eu, à deliciosa reação causada por meu toque. Não falamos nada, apenas acompanhamos o leve vai e vem que eu faço no seu antebraço, apreciando o contato. É nítido para mim que ela está avaliando todas as possibilidades e talvez tentando entender como isso é possível.

Já não escuto mais nada, os sons das conversas, a música clássica baixa que toca, a correria do bartender limpando copos, organizando garrafas ou preparando aperitivos. Tudo ao redor some, e só sinto a potência do tesão que ela despertou em mim, esperando que sinta o mesmo e que admita isso.

Ela sorri, mas puxa a mão, rompendo o contato.

— Como já disse, a gente nem se conhece.

— Sou paciente, Maria Eduarda. — Recebo um sorriso tímido. — Vou adorar cada momento até te conhecer. — Afasto-me dela novamente e peço mais uma dose de uísque. — Aceita mais uma taça?

Aponto, mas ela nega, olhando para a entrada do restaurante.

— Infelizmente, não. — Respira fundo. — Meu compromisso chato acaba de chegar.

Viro-me para ver quem é o sortudo que vai jantar com ela, mas só vejo o Millos entrando com uma cara debochada e um sorriso contido. Olho para Maria Eduarda novamente e confirmo que ela não só se levantou à espera do Millos, como parece muito contrariada com a presença dele.

Por que Millos iria marcar para jantar com uma mulher e comigo ao mesmo tempo? As palavras “jantar de negócios” me causam um alerta, mas me recuso a enveredar pelo rumo que meus pensamentos querem ir.

— Ah, desculpem o atraso! — Millos exclama, indo cumprimentá-la. — Que bom que já se conheceram. — Maria Eduarda franze a testa e me encara. — Theo, eu acho que chegou a hora de conversarmos pessoalmente com a Duda.

Porra!

Levanto-me como se tivesse sentado em um formigueiro, estarrecido demais para articular qualquer palavra educada que não seja um palavrão bem cabeludo.

Duda? Olho-a de cima a baixo sem poder acreditar que a mulher que me atraiu como se tivesse um ímã é a infernal dona do boteco que tem feito minha vida um suplício por causa de sua teimosia.

— Theodoros Karamanlis? — ela parece tão chocada quanto eu e já não há nada além de desprezo em sua voz ao falar meu nome.

Desvio um olhar mortal para meu primo, que, além de parecer surpreso, está também muito interessado nessa interação entre nós.

Eu vou te matar, seu filho da puta!


— Aceita mais uma taça?

Minha vontade é de aceitar e pagar para ver Theo jogando todo seu charme para mim, usando armas pesadas para conseguir provar que temos realmente toda essa química que ele demonstrou com um simples roçar de dedos em meu braço.

E temos, sim! Não sou hipócrita a ponto de me enganar dizendo que não senti nada por ele. Assim que se sentou ao meu lado aqui, a esse balcão, meus olhos foram imediatamente atraídos para ele. Quando me cumprimentou, sua voz fez meu corpo inteiro reagir de uma forma estranha, e tive a nítida sensação de que o conhecia de algum lugar.

Porém, foi só quando se virou em minha direção, depois de eu ter puxado assunto descaradamente, que fiquei sem fôlego. Seus olhos são de um azul que eu nunca poderia esquecer caso já os tivesse visto. No entanto, a sensação de reconhecimento persiste. Ele é muito bonito, além de ter um sorriso de arrancar a calcinha de qualquer mulher.

Se Manola estivesse aqui comigo, com certeza iria dizer que ficou emocionada e que molhou a calcinha. Entretanto, aprendi com o tempo e com as responsabilidades a ser mais comedida e a não me deixar levar sem pensar. Um rosto e um corpo bonitos não querem dizer muita coisa sobre o caráter de alguém.

Estou para aceitar a proposta de mais uma taça e alongar o papo, mas minha visão periférica capta um movimento na entrada do restaurante, e me sinto murchar ao ver Millos Karamanlis adentrando. Esse homem não se cansa de tentar comprar o Hill, é um saco!

Quando me ligou, eu estava pronta para dizer um sonoro NÃO a ele, mas insistiu que era importante, que tinha uma situação que me interessava e por isso achava melhor conversarmos para tentar um acordo. Isso me deixou intrigada e temerosa, por isso estou aqui, neste momento, tendo que recusar a companhia agradável e intrigante do Theo.

— Infelizmente, não — respiro fundo, respondendo ao delicioso oferecimento desse deus com cuja companhia o destino me presenteou enquanto eu esperava pelo diabo. — Meu compromisso chato acaba de chegar.

Levanto-me, resignada, para receber o homem barbudo e muito estiloso, devo confessar, mas que é uma pedra no meu sapato.

Millos abre um sorriso e se aproxima para me saudar como sempre faz, com um beijo na bochecha e um curto aperto de mãos. Tenho verdadeiro trauma dele, de estar sempre rodeando minha vida à espera de um fracasso que o deixe comprar o bar da minha família, minha casa, o legado do meu pai. Contudo, tenho de admitir que, embora pondo pressão, ele sempre me tratou muito bem e com muita simpatia.

— Ah, desculpem o atraso! — Ele olha para o Theo e depois para mim. — Que bom que já se conheceram. — O quê? Como assim? Eles se conhecem?! — Theo, eu acho que chegou a hora de conversarmos pessoalmente com a Duda.

Millos Karamanlis conhece o Theo!

Meu sensual companheiro de bar se levanta e me encara de um jeito completamente alarmado. O olhar sedutor sumiu, bem como seu sorriso franco e relaxado. Agora apenas incredulidade está estampada em seu rosto bonito.

Oh, meu Deus, não pode ser!

Claro que eu acharia que o conhecia, afinal, já vi fotos suas em revistas da alta sociedade e em jornais, embora creia que nenhuma delas lhe tenha feito jus. O homem ao meu lado não é simplesmente “Theo”, é o diretor da porcaria da empresa que comprou toda a quadra onde fica o Hill e que vem tentando de todas as formas me tirar do meu lugar!

— Theodoros Karamanlis? — minha voz soa tão incrédula como me sinto.

Como não percebi quem era esse homem? Como pude me sentir atraída por ele a tal ponto de fantasiar uma noite ao seu lado? Eu o quis como havia muito tempo não me lembrava de ter querido alguém, uma atração que não sentia desde a época em que ainda pensava que tinha o mundo aos meus pés e que conquistaria tudo o que sonhasse ter.

Millos fica um tempo com a sobrancelha erguida, olhando de um para o outro, até que resolve quebrar o gelo.

— Podemos ir para a mesa?

Eu o olho ainda sem entender que tipo de palhaçada é essa. Eles fizeram de propósito? Será que Theo veio primeiro para tentar me seduzir, afinal, nós nunca fomos apresentados, ou foi só uma coincidência ele ter chegado antes e aí resolveu brincar comigo?

Não é possível que ele não soubesse que eu sou a Duda Hill!

— Millos, o que você pretende, afinal? — Theo questiona com a voz demonstrando toda sua irritação.

— Eu não acho que temos algo para conversar. — Pego minha bolsa, que estava pendurada na poltrona giratória. — Não vou mudar de opinião, não pretendo vender o Hill.

— Por que não? — Theo questiona de repente, e eu o olho. — O que uma chef formada por Le Cordón Bleu pode querer com um boteco? — Fecho minhas mãos com força na alça da bolsa. — Ou esse papinho de Paris e seus diplomas é só um sonho fantasioso de uma dona de bar?

Millos emite um palavrão baixo, prevendo que o tempo irá fechar. Ele me conhece bem, já me irritou várias vezes e saiu do Hill com uma resposta à altura.

— O que eu quero ou não só diz respeito a mim, doutor Theodoros Karamanlis — tento falar o mais baixo possível, mas meus olhos brilham de indignação, e espero que ele entenda a mensagem. — O boteco é meu, faço com ele o que eu quiser, e de uma coisa você pode ter certeza: Não. Vou. Vender. Para. Vocês! Ficou claro agora, ou preciso desenhar? — Olho para o Millos.

— Ei! Vamos nos sentar à mesa e conversar com calma! — ele tenta apaziguar o clima tenso entre mim e Theodoros. — Theo... — pede sua colaboração, mas o homem parece estar soltando fogo pelas ventas e não lhe dá atenção. — Vocês estão chamando a atenção dos outros clientes e...

— Foda-se! — falo em uníssono a Theodoros, e Millos ri, mesmo ainda nervoso.

O maître aparece para nos conduzir até a mesa reservada, e Millos faz um gesto para que o sigamos até lá. Encaro Theodoros Karamanlis por um tempo, ambos medindo forças para ver quem cede primeiro.

— Vamos? — Theodoros pergunta, e eu assinto, passando por ele sem nem ao menos emitir uma palavra. A mesa que Millos reservou é discreta, no fundo do salão, sem nenhuma outra por perto. Sento-me com as costas eretas, sem tirar a alça da bolsa do ombro, mostrando a eles a minha contrariedade por estar ali.

— Vamos fazer um pedido?

— Não, Millos, não pretendo ficar para comer — sou direta. — Preciso apenas que me fale sobre o assunto que não quis adiantar pelo telefone. O que vocês têm a ponto de me fazer querer fechar um acordo?

Theodoros olha para ele parecendo muito mais irritado e bufa de raiva. Millos balança a cabeça e começa a explicar:

— Duda, há alguns meses estamos de posse de uma...

— Enorme quantia de dinheiro — Theodoros o interrompe. — A proposta de compra aumentou, e seria interessante a senhorita reconsiderá-la, afinal, pode abrir um pequeno bistrô para exercer o que aprendeu em Paris.

— O quê? — Millos o encara, confuso. — Olha, eu desisto! — Chama um garçom e pede uma cerveja. — Eu realmente acho que podemos chegar a um acordo, mas vocês dois são teimosos como mulas!

— Não quero nenhum acordo com vocês! — declaro. — Tudo o que quero é que parem de ficar rondando minha propriedade como dois abutres!

— Boa definição, senhorita Hill. — Theodoros se inclina por sobre a mesa para ficar mais próximo a mim. — Seu negócio está agonizante e em breve perecerá, e, quando isso acontecer, irá lamentar não ter abaixado um pouco sua crista e ter aceitado minha oferta, porque só sobrará carcaça aos abutres!

— Theo! — Millos o repreende, mas depois começa a rir. — Que conversa de doido, viu? Não esperava por isso! — Bebe sua cerveja. — Confesso que está um pouco divertido.

— Vá se foder, Millos! — mal fala isso e volta a me olhar. — Não irei repetir a oferta, Duda Hill. A aconselho a aceitar o mais rápido possível.

Meus olhos faíscam de raiva, mas meu corpo traidor se arrepia inteiro ante a expressão dele. O homem é sexy demais, insuportavelmente arrogante, mas ainda assim, muito sexy!

— Não estou interessada — uso o mesmo tom de voz que ele. — Vendo para qualquer um, menos para vocês. — Ponho-me de pé. — Espero que desfrutem do jantar sem minha companhia. Eu não conseguiria comer aqui com vocês sem ter uma enorme indigestão.

Theodoros se põe de pé também, e Millos, com um sorriso debochado, cruza os braços e fica só esperando o próximo passo do seu chefe.

— Não diga depois que não a avisei, Duda Hill.

Rio, passando perto dele para sair do salão.

— Não tenho medo de suas ameaças, Theodoros Karamanlis. — Aproximo-me para falar bem perto do seu ouvido: — Cão que ladra não morde!

Ele segura meu braço e abre um sorriso – puta merda! – cheio de malícia.

— Eu morderei, Maria Eduarda, e o farei tão gostoso que você pedirá mais!

Olho para sua mão em meu braço, e ele me solta. Respiro fundo para controlar o formigamento em meu corpo e a tremedeira em minhas pernas e saio do restaurante o mais rápido possível.

— Deseja que traga seu carro, senhorita? — o manobrista me aborda na porta do restaurante.

— Po-por favor! — Merda! Respiro fundo mais uma vez. — Sim, obrigada.

Não é possível que esse homem ainda continue mexendo com minha libido desse jeito! Durante todo o tempo em que estávamos lá medindo forças, essa tensão sexual nunca deixou de pairar entre nós. Acho até que o Millos percebeu isso!

Droga! É o Theodoros Karamanlis, Duda! Inimigo, o diabo em pessoa, que quer fazer de tudo para destruir tudo o que você tem, tudo pelo qual você lutou para manter depois que seu pai se foi!

Claro que seria muito fácil aceitar uma oferta melhor, pagar as dívidas e abrir um “bistrô”, como ele mesmo aconselhou, mas só eu sei o quanto meus pais amavam aquele pedacinho no meio da Vila Madalena, o quanto se orgulhavam de tê-lo comprado juntos, com muita luta e esforço.

Não vou deixar que um homem arrogante ponha tudo ao chão e destrua todas as lembranças que tenho daquele lugar. Não só do Hill, mas da casa onde mamãe e papai passaram seus últimos momentos antes de me deixarem. Não! De jeito algum eu irei permitir isso! Se precisar vender, o farei para alguém que se comprometa a manter o imóvel, e não para uma empresa que quer demolir tudo para erguer ali algum prédio ou shopping!

Entro no carro e dirijo para casa, ainda sentindo o toque dele reverberando pelo meu corpo, sua voz arrepiando os pelos da minha nuca e seu olhar... Há algo naquele olhar que me desperta lembranças, talvez pela tonalidade – a mesma do mediterrâneo –, ou o jeito de me olhar como se estivesse realmente faminto.

Chego a casa e encontro tia Do Carmo jantando sozinha na sala e assistindo à novela.

— Ué, não ia jantar fora? — questiona quando ataco suas panelas.

— Ia, mas o lugar estava tóxico demais para meu estômago. — Ela franze a testa, sem entender, e eu rio. — A companhia era desagradável.

— Ah, sim.

— Cadê a Tessa? — pergunto enquanto me sirvo de deliciosas costelinhas de porco e angu, sentindo meu estômago roncar e minha boca salivar. Adoro a comida dela!

— Chegou da escola, fez dever, tomou banho, jantou e dormiu. — Rio do relatório completo. — Aquela menina é um anjo!

— Sim, ela é! — concordo, cheia de orgulho.

— Descobriu, pelo menos, o que aquele pessoal da Karamanlis queria?

Sento-me ao seu lado no sofá com o prato na mão.

— Aumentaram a proposta! — Dou de ombros. — E acabei conhecendo o CEO, Theodoros Karamanlis.

— Hum, já vi fotos dele naquela revista que assino. — Rolo os olhos, pois sempre achei um desperdício de dinheiro comprar uma revista que fica cobrindo a vida de artistas e da alta sociedade paulistana. — O homem é um pedaço de mau caminho.

Acompanho-a em suas risadinhas, achando uma graça que minha tia, solteirona e virgem, fale isso de um homem. Eu nunca soube o motivo pelo qual ela nunca quis se casar, nem mesmo namorar. Perguntei a ela se algum dia teve pretensão de ser religiosa, mas negou, dizendo que não tinha o dom.

Tia Do Carmo é uma caixinha de segredos bem guardados, essa é a verdade. Do mesmo jeito que ela adora acompanhar a vida alheia nas revistas e nos programas de fofocas, não abre a boca para falar da sua, nem mesmo para mim.

Ela é como uma mãe para mim e cuida de Tessa com tanto amor e dedicação que eu não poderia pensar em uma avó melhor para minha menina, mas não quer saber de arrumar alguém, nem mesmo para se distrair um pouco.

Há uns dois anos veio trabalhar conosco um senhor muito bem-apessoado, Joaquim, que ficava na recepção. O homem arrastou um bonde pela minha tia – que é uma linda senhora de 55 anos –, mas ela nem ao menos lhe deu um segundo olhar.

Enfim, eu aprendi a aceitar que ela é feliz assim, mesmo porque não estou indo para um caminho diferente, pois mal tenho tempo para namorar alguém. Além do meu namorado francês, tive mais uns dois já aqui no Brasil. Claro que já tive algumas transas avulsas, sem nenhum compromisso, mas já faz tanto tempo que nem isso acontece que, se hímen se regenerasse, o meu certamente já estaria completo de novo.

— Ele é bonito, sim, mas muito arrogante! — informo, tentando não demonstrar o quanto fiquei interessada no Theo. — De qualquer forma, recusei mais uma vez a proposta.

— Você tem certeza disso, minha filha? O sumiço do agiota tem tirado meu sono. Você sabe como essas pessoas são, por mais que sejam conhecidos. Além do mais, te vejo trabalhar como louca e entregar o dinheiro todo para custear essas dívidas. — Ela aponta para a casa, cheia dos mesmos móveis da época do casamento dos meus pais. — Duda, a gente mal tem se aguentado em pé!

— Não nos falta nada, tia!

— Não, Duda, não estou me queixando. Realmente não nos falta nada, temos comida, um teto, e Tessa pode estudar em uma boa escola, mas vale a pena se sacrificar do jeito que está fazendo? Você não tem tempo nem para namorar!

Gargalho.

— Essa é uma das minhas menores preocupações, tia.

— Eu sei, filha, e é isso que me preocupa. — Passa a mão no meu rosto, e fecho os olhos, gostando do carinho. — Há muitos anos você só cuida das pessoas, Duda. Assume responsabilidades demais e esquece de cuidar de si mesma.

— Estou bem! — afirmo, mas meu coração entende e concorda com ela. — Assim que terminar de pagar tudo o que devemos, vou poder cuidar de mim também, não se preocupe.

Ela suspira, resignada, pois me conhece bem e sabe que sou muito teimosa. Decidi lutar até o fim para manter a única coisa que me resta e não vou descansar até conseguir estar em paz com isso, mesmo que um certo CEO muito gostoso me encha de ameaças.

Inclusive uma que pareceu mais uma promessa...


Maria Eduarda passa por mim deixando para trás o rastro delicioso do seu perfume, agitando meu corpo. Tenho vontade de segurá-la por mais tempo, de sair com ela para algum lugar onde possamos dar vazão à atração que sentimos um pelo outro desde que nos encontramos no bar do restaurante.

Todavia, não dá para simplesmente ignorar quem somos!

Fico um tempo de pé, mesmo depois de ela já ter saído do restaurante, raciocinando quais seriam as consequências se Millos simplesmente não tivesse aparecido. Olho para meu primo, tranquilo, tomando sua cerveja e provavelmente a enchendo de defeitos.

— Isso foi a pior merda que você já aprontou! — digo, atraindo a sua atenção. — E olha que você tem um longo currículo de merdas!

— Vá se foder, Theo! — Fica sério. — Eu só estava tentando um acordo entre nós.

Rio, seco, não achando nenhuma graça e não comprando nem um pouco essa conversa mole de “acordo”. Millos nunca dá ponto sem nó e me conhece bem para saber que Duda seria extremamente atraente para mim. O desgraçado fez de caso pensado, só nunca irá admitir.

Pego o celular, que deixei em cima da mesa, e, sem nenhuma palavra ou mesmo um olhar, afasto-me de Millos, indo em direção à saída do restaurante.

Ouço-o me chamar, mas não me segue, e ando decidido até a calçada, encontro o manobrista e peço meu carro. Não tenho mais clima para jantar, muito menos para olhar aquela cara debochada. Bufo, frustrado demais, com fome e com o desejo sexual insatisfeito.

Porra!

Já no carro, não dirijo diretamente para casa, mas a esmo, pensando na loucura que foi o começo da noite. O conhecimento de quem era a mulher ao meu lado deveria ter sido suficiente para aplacar minha vontade de devorá-la toda, mas nem mesmo a diminuiu.

É uma das raras atrações fortes que já me aconteceram. Geralmente não é assim, é mais um jogo de disponibilidade e vontade, uma mulher gostosa e interessante e pronto! Raramente sou atraído a alguma como aconteceu com Maria Eduarda hoje. Eu olhei para ela e a quis.

É primitivo demais até para mim, mas aconteceu. Quem ela era, o que fazia ou mesmo sua disponibilidade – embora, se fosse casada, não rolaria – não importaram para mim naquele momento. Depois, a conversa, o sorriso, o jeito como o corpo dela reagiu ao meu, tudo isso só potencializou o que foi sentido ao primeiro olhar.

Duda Hill!

Paro o carro em frente ao boteco antigo na Vila Madalena, olhando sua fachada recentemente reformada, o sobrenome da família dela na entrada e algo que nunca me chamou atenção antes, um segundo andar com janelas grandes de vidro, seguindo a mesma arquitetura do bar, tijolos à mostra e cimento queimado.

Franzo o cenho ao me lembrar do dia em que estive no local, pois não vi nenhum mezanino ou mesmo escada de acesso. Há uma porta ao lado da fachada principal, pintada com outra cor, mas que não pertence ao prédio vizinho, já de propriedade da Karamanlis.

Ela mora em cima do bar? Novamente olho para o alto e, no exato momento, uma luz se acende em um dos cômodos, iluminando a janela com cortinas claras. Um apartamento!

Como eu nunca soube disso? Para mim, o imóvel era puramente comercial, como todos os outros do entorno, nunca sequer desconfiei que a irritante mulher pudesse morar no local.

Uma sombra passa pela janela, e meu pau pulsa na calça só pela possibilidade de ser Maria Eduarda se preparando para dormir. Fecho os olhos, aproveitando a total falta de movimentação na rua – ao que parece ninguém funciona às segundas-feiras – e imagino como ela seria apenas vestindo uma calcinha ou até uma camisola sexy.

Toco-me sobre a calça, sentindo como já estou em completa ereção, então abro os olhos e xingo, voltando a pôr o carro em movimento e saindo daqui o mais rápido possível. Eu pareço um maldito stalker tarado, parado em frente ao que suponho ser o apartamento dela e fantasiando.

Caralho!

 

 

Termino de assinar o último documento e o entrego para Rômulo, que sai apressado a fim de entregá-lo para o jurídico. Temos um maldito setor de correspondência e vários boys para esse trabalho, mas meu assistente é tão controlador com suas responsabilidades que ele mesmo gosta de entregar os documentos e de pegar a assinatura de quem os recebeu no caderno de protocolo antes de os colocar no sistema.

Eu sei que é motivo de piadinha aqui seu jeito burocrático, mas é exatamente por isso que confio nele para lidar com minhas coisas na empresa. Rômulo é responsável, organizado e sua “burocracia” nada mais é do que uma forma de nos garantir, proteger nosso trabalho e a companhia.

Gemo, colocando a mão na têmpora, amaldiçoando-me por ter consumido uma garrafa inteira de uísque ontem, depois que cheguei a casa, frustrado demais sexualmente e puto comigo mesmo por estar me sentindo assim pela Duda Hill.

Troquei mensagens com Millos, ameaçando sua integridade física por conta da palhaçada de ontem. Claro que ele fingiu não ter feito de propósito, mas se esqueceu de que o conheço bem. Eu só não sei o que ele pretende ainda. Contudo, não há dúvidas de que está tramando algo.

Uma notificação de mensagem chega ao meu celular. Pego-o, lendo a mensagem deixada pela Viviane acerca de um concerto musical e uma exposição de gravuras que irá acontecer esta semana. Dispenso, sem nenhuma vontade de comparecer, mas ela insiste.

 

 

 

Sim, ela tem razão!

Preciso estar focado no que realmente é importante para mim nesse momento. Uma atração como aconteceu entre mim e Maria Eduarda ontem é garantia de uma foda inesquecível, mas só isso, não resolve meu problema, e o tempo está se encurtando cada vez mais. Preciso de uma esposa e de um filho!

 

 

 

Envio a mensagem para ela e me recosto na cadeira, olhos fechados e dedos nas têmporas, querendo a porra de um analgésico para poder trabalhar sem que pareça que está ocorrendo alguma demolição na minha cabeça. Não devia ter bebido tanto sem ter comido nada!

Cheguei a casa já arrancando a roupa e entrando no banho. Demorei por lá, esperando que os jatos fortes de água fria abaixassem a temperatura do meu corpo e trouxessem minha racionalidade de volta. Não costumo me impressionar tanto assim por uma mulher; poucas foram as que mexeram comigo dessa forma.

Olhei para baixo, e lá estava a evidência de que nem mesmo a água iria resolver o problema. Encostei a testa na parede fria e toquei meu pau, gemendo com a sensação, pronto para gozar apenas com os estímulos da noite.

Eu gosto muito de trepar, adoro ser masturbado por mãos femininas – às vezes, pés também –, mas nunca fui um punheteiro. Nunca! O prazer de me tocar nunca se comparou ao de ser tocado, por isso, quase não me masturbo. Porém, ontem, não teve jeito! O cheiro do perfume dela estava impregnado em minhas narinas, a sensação de sua pele se arrepiando sob meu toque, o sorriso, os olhares... Em poucos minutos gozei como um louco, sujando a parede do boxe, gemendo dolorosamente de vontade de senti-la.

Pela primeira vez em muito tempo, os cabelos cor-de-rosa não apareceram durante meu gozo, e amaldiçoei essa percepção. A verdade é que troquei o objeto da minha fantasia. No entanto, diferentemente da garota de anos atrás, agora eu tenho um rosto, um nome e sei onde mora.

— Estou fodido! — falo em voz alta, achando que estou sozinho no escritório.

— Vou pegar um comprimido, chefe! — a voz de Rômulo faz com que eu me aprume, arregalando os olhos em sua direção.

— Mas que porra, Rômulo! Como você consegue ser tão silencioso às vezes? — digo emputecido por estar fantasiando com a mulher de novo em pleno horário de trabalho e sob as vistas do meu assistente.

— Eu percebi que o doutor está com dores de cabeça. — Ele vasculha sua bolsa. — E... Ah! Achei! — Sorri como se tivesse inventado a fórmula da água. — Paracetamol!

Ele vai até o aparador onde ficam as bebidas a fim de pegar um copo d´água para eu tomar com o comprimido, porém, peço que me traga café.

— Tem certeza? — titubeia.

— Vai acelerar a absorção e fará efeito mais rápido.

— Chefe, isso é perigoso!

— Anda logo, porra, tem uma britadeira no meu cérebro!

Ele fica nervoso, suas mãos tremem, fazendo o café respingar sobre o móvel, e eu bufo de impaciência. Rômulo é prestativo, um ótimo funcionário, mas me questiona muito, além de ser um tanto desastrado.

Mal engulo o comprimido, e o traidor, quer dizer, Millos entra no escritório.

— Tive uma ideia e vim dividi-la com você. — Olha a xícara na minha mão. — Cheguei em boa hora! Eu gostaria de um café também! — pede ao Rômulo, e eu fecho a cara.

— Esse não é o trabalho dele — corto-o. — Rômulo, vá até o jurídico e veja se Kostas já conseguiu adiantar a papelada que faltava.

— Sim, doutor! — O assistente sai correndo da sala.

— Quer a porra do café? Pegue você mesmo! Não dê ordens ao meu assistente!

Millos levanta as mãos pedindo calma e vai até a máquina, escolhendo um sabor e um tipo de preparação antes de voltar para próximo de mim.

A dor de cabeça aumentou um pouco, mas espero que, com o remédio do Santo Rômulo, eu melhore em breve. Além disso, não quero dar bandeira de que enchi a cara na noite passada e suportar as provocações de Millos.

— Qual foi a magnífica ideia que o fez levantar a bunda de sua cadeira e vir até aqui encher meu saco?

Millos ri.

— Estamos de bom humor hoje, hein? — Pega o café e se senta. — Você quer tirar a Duda Hill do imóvel, não é? — Franzo o cenho para ele, achando desnecessário responder, esperando que tenha sido uma pergunta retórica, para o bem de sua inteligência. — Já reparou que o único pub daquela quadra é o dela?

— Você comeu merda no café da manhã? — pergunto, e ele ri. — Claro que ele é o único, os outros imóveis já estão todos vazios porque compramos todos!

— Do outro lado da rua têm duas casas de show, uma boate de strip de luxo, dois restaurantes de comida japonesa e uma pizzaria famosa. — Ele cruza os braços. — Esse foi um dos motivos de o pub ter ficado tão movimentado, a diversidade de empreendimentos próximos. É uma área à qual os jovens vão para se divertir, e ela conseguiu agregar boa comida e boa música em um só local.

Faz sentido, claro. Ela aproveitou o movimento já existente e ofereceu um diferencial, um lugar para dançar, curtir com os amigos, arranjar companhia e ainda comer seus bolinhos famosos e premiados. Sorrio de leve, sentindo-me levemente excitado por ela ter tanto tino. Gosto de mulheres inteligentes!

— Você a isolou no momento em que comprou todos os imóveis e mandou os estabelecimentos fecharem. Ela é a única opção da área...

Ele se interrompe ao ouvir uma batida à porta.

— Pode entrar — autorizo, sabendo que não é o Rômulo.

Kostas aparece, seu tamanho e largura preenchendo a entrada da sala, o olhar azul e arrogante, o sorriso debochado e os cabelos negros penteados para trás com uma espécie de pomada de brilho molhado. Meu irmão é a cópia do nosso pai, e isso chega a me causar arrepios.

— Bom dia! — cumprimenta Millos e se senta ao seu lado. — Theodoros, tenho uma notícia boa e uma ruim, qual quer primeiro? — Dá risadas debochadas, e Millos o segue.

Isso é sério? Levanto uma sobrancelha, olhando-o carrancudo.

— Fala logo, Kostas! — ordeno.

— Bem, já que você não tem nenhum senso de humor. — Pisca para Millos. — Nós já sabíamos disso, mas não custava tentar! — Meu primo assente, e eu bufo de raiva. — Vou começar pela boa. Já ingressamos com o pedido de execução da nota promissória.

— Já não era sem tempo! Preciso comemorar por você ter conseguido fazer seu trabalho?

O desgraçado ri.

— A ruim, no entanto, também é sobre isso. — Ele me estende umas folhas. — Duda Hill deu entrada no inventário judicial após a morte do pai.

Leio os papéis, mas pouco entendo de legislações e procedimentos legais, então espero que ele pare de fazer cu doce e prossiga com suas explicações.

— Que merda! — Millos exclama, e isso é o suficiente para me deixar tenso.

— O que isso significa, porra?

Kostas se levanta, anda até o aparador e se serve de água.

— Você poderia ter bourbon aqui — comenta como se estivesse aqui para uma visita social. Xingo-o. — O processo não cumpriu nem metade de seu caminho natural, caro irmão. Já está aberto há quase quatro anos e pouco avançou, e isso porque tem apenas um imóvel a ser herdado por uma única herdeira. — Ele ri. — Adivinha qual?

O Hill! Merda!

— O que isso significa em nossos planos de adquirir aquela pocilga? — Irrito-me.

— Bem, assim que for declarado o débito por causa da confissão de dívida – a promissória –, nós vamos ser credores do espólio. — Bufo pelo uso dos termos técnicos desnecessários.

É Millos quem vem ao meu resgate.

— O homem está morto, Theo, não temos como cobrar dele, apenas dos bens que ele deixou, entendeu? Isso obriga a Duda a vender ou entregar o Hill em troca da dívida. — Sorrio, achando a notícia ótima. — Mas somente quando o inventário fechar, o que pode levar anos ainda.

— O quê?! — Levanto-me, esquecendo por completo a dor de cabeça.

— É isso, caro irmão! — Kostas dá de ombros. — Seja bem-vindo à realidade da justiça brasileira, em que inventários simples duram, em média, de oito a dez anos!

— Não há outra forma de recebermos?

— Não. — Kostas ri, satisfeito. — A dívida está no nome do pai dela, então só alcança bens deixados por ele.

— A vantagem é que ela não pode vender para outro também, não é? — Millos questiona.

— Teoricamente, não, mas se o comprador não se importar em não ter a escritura, ela consegue vender, sim. Tem muita gente que faz isso. Não é legal, mas faz.

— Puta que pariu! — explodo, virando-me em direção à vidraça.

— O jeito é tentar comprar, Theo, e alegar que somos credores e que, por isso mesmo, ela só pode vender para nós — Millos fala, e Kostas concorda.

— Ela não vai vender, disse ontem!

Sou um homem muito teimoso, sempre fui, e reconheço um igual de longe! Quando Duda Hill disse ontem que não ia vender para a Karamanlis, vi a teimosia brilhando em seus olhos.

— Além do mais, pelo que soube, os negócios vão bem — Kostas complementa, deixando-me ainda mais raivoso. — Ela não precisa vender.

Olho para Millos, e ele arregala os olhos ao ver a determinação nos meus.

— Fale de sua ideia!


O despertador me acorda pela segunda vez no dia. Tenho vontade de esconder a cabeça debaixo do travesseiro e fingir que não estou ouvindo, deixar que entre em modo “soneca” e que, com isso, eu ganhe mais alguns minutos na cama.

Suspiro, abro os olhos lentamente e pego o maldito telefone para cancelar o despertador. Ganhar minutos na cama significa perder minutos do dia, e isso definitivamente é uma coisa à qual não posso me dar ao luxo. Tenho que trabalhar, organizar minha cozinha e ser a primeira a estar nela quando os demais chegarem.

Espalho-me na antiga cama de casal dos meus pais, abrindo os braços em forma de cruz e esticando todo o meu corpo. Carreguei tanto peso hoje que, nessas horas, sinto falta de não ter um homem fortão trabalhando comigo nesse negócio pesado que é transportar as compras. Tento relaxar meus músculos, fecho os olhos e deixo a mente vagar por um segundo.

Em meio aos pensamentos de paz, natureza e tranquilidade, lindos olhos azuis aparecem, sedutores, emoldurados por cílios longos e escuros que fizeram sombra em seu rosto quando ele olhou minha pele se arrepiando ao seu contato. No mesmo momento sinto um gelo na barriga – desses que sentimos quando descemos uma ladeira inesperadamente de carro –, e um tremor perpassa pelo meu corpo, desde as pontas dos dedos até a raiz dos cabelos.

Emito um grunhido de irritação por, mais uma vez, Theodoros Karamanlis se infiltrar nos momentos em que busco relaxamento e pensamentos positivos para enfrentar o dia. Tem sido assim desde aquele maldito jantar, há quase uma semana!

Sento-me, notando o quanto estou suada, pois há alguns meses meu ar-condicionado do quarto teve uma pane elétrica, e não tive nem tempo, nem dinheiro para chamar a assistência técnica. O verão chegou com tudo este ano, e as temperaturas estão ameaçando bater recordes desde o final da primavera. Vou precisar arrumar o ar ou então ir dormir no quarto da tia Do Carmo.

Confiro as horas, meio-dia e alguns minutos, e sigo rápido para tomar a terceira chuveirada do dia!

O expediente no Hill durou até às 2h35 da manhã, quando gentilmente convidamos nosso último cliente a sair. Passei a encerrar mais cedo em dias de semana, pois sábado e domingo vamos até às 4h da manhã. Fechei a cozinha para pedidos exatamente à 1h para que desse tempo de todos os quitutes ficarem prontos e nossos clientes irem embora até às 2h30. Entretanto, sempre fica um agarrado a uma cerveja num canto, sempre!

A música ao vivo, de terça a domingo – menos quando temos campeonatos de futebol, pois aí na quarta-feira transmitimos os jogos – anima o pessoal e por isso mesmo precisa ser encerrada uma hora depois do fechamento da cozinha. Há toda uma preparação para que os clientes entendam que a hora de “dar tchau” chegou.

Hoje, sábado, é o dia mais desgastante para mim, pois a cozinha irá funcionar a todo vapor até às 3h30 da manhã, aceitando pedidos até uma hora antes disso, e o bar só será fechado às 4h. E adivinhem quem fecha o bar? Exatamente, eu!

Ou seja, terei 14 horas de trabalho incessante pela frente, a partir das 2h da tarde, sendo que noite passada não aguentei ficar acordada para ir até o CEAGESP, dormi às 3h e acordei às 4h, correndo para poder pegar um pouco do pescado bom, pois a venda para o atacado começa na madrugada e vai até às 6h da manhã. Descarreguei tudo no restaurante e voltei para a cama às 9h, por isso, sim, estou acordando ao meio-dia!

Saio do banho e já coloco a calça preta – uniforme do Hill –, uma camiseta branca por causa do calor e calço chinelos. Separo o uniforme, que minha tia já deixa passado, a dolma, o avental e meus turbantes. Deixarei os cabelos secarem para depois fazer um coque alto, bem firme, para que nenhum fio possa se desprender.

— Boa tarde! — tia Do Carmo me cumprimenta assim que apareço na sala. — Vai almoçar agora?

— Vou. — Suspiro, sentando-me. — E a Tessa?

— Acabou de ir para o inglês com a Marcela e a Diana. — Assinto, lamentando não ter me encontrado com ela aqui, mesmo que depois dê uma xeretada na minha cozinha.

Mal tenho tempo para ela! Sinto-me mal por isso, tento compensar, mas queria ser mais presente e sei que Tessa sente essa necessidade tanto quanto eu. Porém, minha menina já é tão madura que entende que essa rotina louca na qual vivo não é por minha escolha.

Tia Do Carmo me serve de sua comida simples, bem temperada e absurdamente viciante, e eu não penso em mais nada a não ser apreciar a iguaria. Ao longe, enquanto como, ouço o barulho da máquina de costuras dela, em seu quarto, trabalhando sem parar. Ela é teimosa e está sempre aceitando encomendas de reparos ou confecção de roupas, principalmente para o pessoal da igreja que frequenta.

Somos farinha do mesmo saco, teimosas ao extremo, e ela me culpa por eu recriminá-la por querer ajudar. Não é só por teimosia ou orgulho que peço tanto a ela para que se poupe, pois se aposentou há alguns anos por invalidez exatamente por passar horas e horas costurando desde menina e com isso ter ganhado algumas hérnias de disco ao longo de sua coluna.

A verdade é que, se não fosse pelas dívidas, eu poderia dar uma vida bem melhor a elas. O Hill vai muito bem, cada vez mais conhecido, atraindo clientes para essa área que nem é tão famosa por ter bares. Contudo, o boca a boca tem se espalhado pela cidade e trazido com ele nossos clientes.

Termino de comer, lavo a louça e termino de me arrumar para descer e só voltar no meio da madrugada. Faço uma oração curta antes de descer e grito para tia Do Carmo:

— Tia, estou no Hill se precisar de algo!

— Vai com Deus, minha filha! — grita de volta, cessando a costura. — Tente descansar em alguns momentos!

Apenas rio, porque a cozinha é uma correria aos finais de semana, e é impossível me sentar por uns minutos sem que alguma coisa desande, já que atendemos em média 400 clientes por sábado e uns 350 no domingo. O volume de comida que processamos é tão grande que fazemos compras nas madrugadas de terça, quinta e sábado.

Poderia até ir ao CEAGESP menos vezes, mas prefiro trabalhar com os ingredientes o mais frescos possível e, graças à câmara fria que instalamos, já me dei ao luxo de parar de ir todas as madrugadas. Vou sempre às terças e sábados e deixo Manola se virar na quinta-feira. A mulher adora ir para lá e demora o dobro do tempo que eu levo, sempre conversando com os comerciantes, pechinchando horrores e fazendo amizades. Como ela é sozinha, está sempre com o caderninho de telefone preenchido para quando quer companhia, e como trabalha como louca aqui, seu lugar de fazer contatos é lá na central de abastecimento.

Confesso que me divirto muito com suas histórias, assim como todo o resto de nós da cozinha.

Abro a entrada principal do bar, pois, infelizmente, quando papai montou o local, não pensou em saída de emergência, mesmo porque na sua época era todo aberto, então, quando transformei o boteco em um pub, tivemos que sacrificar a porta usada para carga e descarga e transformá-la para que estivéssemos em dia com a legislação dos bombeiros e da própria prefeitura.

Sempre que entro, já deixo a porta de aço aberta e tranco somente a de vidro, deixando um pouco de sol entrar através das paredes de vidro temperado.

Sigo diretamente para a cozinha, mas anotando mentalmente tudo o que precisará ser limpo com mais afinco, resultado da noite anterior. No bar, sempre tenho a satisfação de passar e ver o asseio do Kiko, seus utensílios todos nos lugares, limpos e secos, as chopeiras sem nenhum traço de respingo de chope, o chão brilhando.

Abro a cozinha, e o cheiro dos produtos de limpeza que usamos há algumas horas, assim que encerramos as atividades, recepciona-me. Faço meu coque, como sempre, ponho o turbante, lavo as mãos e começo a trabalhar, colocando alguns alimentos de molho, descongelando outros e conferindo as receitas, bem como o funcionamento de todos os equipamentos.

Ouço o barulho da porta, e uma risada preenche o lugar, indicando que Manola chegou junto ao seu fiel escudeiro, Arnaldo.

— Boa tarde, chef! — ela me cumprimenta, indo para o banheiro dos funcionários. — Hoje o Naldo está impossível!

— Você é que não aguenta ouvir umas verdades, Manola. — Arnaldo vem até onde estou e me dá um beijo na testa. — Carinha de cansada hoje, boneca!

— Dia de compras... — Aponto para a caixa de camarão no gelo que tirei da câmara para ele limpar. — Divirta-se!

— Ai, minha santa protetora dos dedos furados! — geme.

— Use luvas! — Manola grita, vindo do banheiro trajando o uniforme, seus cabelos ruivos presos em uma trança e seu turbante cheio de beijos já na cabeça. — No dia em que você perder um dedo, ainda processa a Duda!

— Deus me livre, Manola! — Bato na bancada de inox, e ela ri.

— É na madeira, querida! — Joga um beijo para mim e as luvas de fio de aço para o Arnaldo. — Não vai te proteger contra o camarão, mas quando for limpar as carnes, faça o favor de usá-las!

— Oui, chef! — ele debocha.

— Abusado! — diz, pegando as panelas guardadas e já as colocando no fogão. — Vou adiantar os molhos enquanto a Ana não chega. Ela ia levar o filho ao dentista hoje.

— Eu sei — concordo ainda lavando as folhas e temperos. — Cláudia também vem mais tarde hoje, mas adiantou muito suas sobremesas ontem. Trabalhou dobrado!

— Estou louca por aquela torta de duas mousses que fez! — Geme e estala a língua. — Adoro maracujá com chocolate, e a danada não me deixou pegar nem uma provinha!

— Diabetes te diz algo? — Arnaldo alfineta.

— Tenho pré, idiota! — Ressalta: —Pré-diabetes!

Rolo os olhos, já antevendo uma discussão sobre a quantidade de açúcar que ela não deve ingerir.

Minhas tardes são sempre assim, entre o trabalho na preparação para a noite e as conversas, discussões ou músicas dos meus colegas de trabalho. É bom, faz o tempo passar depressa e não deixa o serviço tedioso.

— Terminou aquela receita nova que estava escrevendo? — Arnaldo me pergunta um tempo depois.

— Ainda faltam uns ajustes, mas estou sem tempo para testar. — Dou de ombros. — Final de ano, né?

— Por falar nisso... — Manola se aproxima. — Como andam as encomendas? O pessoal gostou do menu deste ano?

— A Hana me entregou ontem uma pequena lista de encomendas. Ao que parece, o menu foi bem aceito, sim.

Manola bate palmas, e eu sorrio aliviada.

Todo ano abrimos o Hill e servimos pequenas ceias para o pessoal que não quer ter trabalho, mas percebemos que seria mais interessante, para nós e para nossos clientes, se houvesse um menu prévio e as encomendas entregues em casa.

Como começamos o delivery este ano, programei um menu com três tipos de proteínas – peru, bacalhau e presunto – e vários tipos de acompanhamento. As variações vão desde a mais simples e barata até as sofisticadas, dignas de um chef de cuisine, mais caras.

Por incrível que possa parecer, o menu luxo tem vendido mais do que o comum, e isso, além de me dar muito orgulho de ver minhas receitas tão bem aceitas, ainda me concede maior lucro.

Por conta desse menu especial, não abriremos o Hill para o público na véspera do Natal, daqui a alguns dias, e nem no dia, retomando as atividades somente no dia 26 de dezembro. Teremos que trabalhar muito para atender aos pedidos, mas tenho certeza de que daremos conta e que em pouco tempo encomendar a ceia no Hill será uma tradição.

É preciso manter a fé depois de tudo o que já passei na minha vida; sem ela, eu esmoreço. Não digo propriamente uma fé religiosa, mas a de desejar boas coisas, pensar positivo, manter a chama da esperança acesa de que tudo vai dar certo.

— Boa tarde! — a voz de Tessa faz meu sorriso se agigantar, e paro o que estou fazendo para ir abraçar minha pequena menina. — Ei, mãe, não!

Ela tenta correr ao ver minhas mãos molhadas, mas, quando a alcanço, explode em gargalhadas e me abraça apertado.

— Estava com saudades! Como foi a aula?

— Legal! — Faz um joia com a mão. — Ei, tia Manola!

— Tia uma ova! — Manola repreende, mas ri. — Sou no máximo sua irmã mais velha, pirralha!

Tessa gargalha de novo e faz gesto de que Manola é maluca, rodando o indicador ao lado da cabeça, e Arnaldo libera sua estridente gargalhada ao concordar com a menina.

— Quer alguma coisa especial daqui hoje? — pergunto, mas sem muita esperança.

— Não, tia Do Carmo disse que vai fazer lasanha à noite, e você não faz lasanha aqui!

— Não faço! — Cutuco suas bochechas com os indicadores bem onde elas formam covinhas quando Tessa sorri. — Cláudia fez uma torta especial. Vou levar para você mais tarde.

— Tem chocolate? — indaga animada.

— Tem, sim, pirralha! — é Manola quem responde. — E se ela tiver direito a um pedaço, eu, como irmã mais velha, também tenho!

Tessa mostra a língua para ela, Arnaldo ri, e eu balanço a cabeça, pois as duas parecem realmente irmãs, brigam e implicam uma com a outra, mas se adoram. Minha pequena se despede, e a acompanho até a entrada do bar, só voltando para a cozinha ao vê-la fechar a porta do acesso ao nosso apartamento.

Deus do Céu, como é bom ver minha menina feliz!

A segurança e a felicidade de Tessa são minhas prioridades, e vê-la crescendo tendo essas duas coisas me dá ânimo para aguentar mais um dia de trabalho e não pensar em coisas ruins. Nem mesmo nos Karamanlis, ainda que um deles tenha mexido comigo de tal forma que volta e meia está nos meus pensamentos – e não pelo motivo pelo qual deveria estar!


— Me and Mrs. Mrs. Jones, Mrs. Jones, Mrs. Jones, Mrs. Jones, we've got a thing going on. — Dedilho o arranjo ao piano, sentindo o peso dessa canção sobre mim e volto a cantar: — We both know that it's wrong, but it's much too strong to let it go now.3

Há anos não toco essa música tão famosa na voz do Billy Paul, mas algo me impulsionou a fazê-lo esta noite. Nada específico, creio eu. Contudo, meu interior está conturbado como há muito tempo não o sinto.

O paletó do terno que vesti hoje está em cima de uma das cadeiras da sala de jantar, a gravata precariamente pendurada sobre a borda do piano, enquanto estou aqui, camisa social semiaberta, mangas arregaçadas, uma garrafa de uísque em cima do instrumento e meu copo já quase vazio. Não parei de tocar desde que cheguei do concerto musical e apresentação de novos artistas de gravuras que ocorreu em uma galeria de artes aqui perto.

A verdade é que, desde quando Viviane me mandou o convite, não tive nenhum interesse em ir, embora fosse algo que geralmente chamaria minha atenção. Tive uma semana fodida demais, e não havia nenhum clima para entretenimentos. Tudo o que eu queria era uma massagem gostosa e uma trepada de alívio.

Termino a música e recosto a cabeça nas teclas do piano, quase não me reconhecendo. Não estou normal! Talvez essa época do ano, próxima demais do Natal, mexa comigo, evoque sentimentos que há muito tempo pensei ter perdido.

Sinto falta da Vanda nesta casa! Olho em volta e bebo o restante da dose de uísque. Tudo está tão vazio, tão silencioso, tão... estéril. Não tenho mais ninguém me esperando quando chego do trabalho, nenhum cheiro de tempero quando entro na cozinha – ou mesmo de café, porque o dela é incrível –, não há conversas amenas.

Não há nada!

Balanço a cabeça, irritado com o rumo dos pensamentos, com a energia negativa deles dentro de mim. Maldita semana!

O desastre começou na segunda-feira com aquele encontro deliciosamente desastroso com Duda Hill; depois aumentou com a notícia que o filho da mãe do Kostas nos deu sobre o imóvel onde funciona o Hill Wings.

A proposta de Millos ressoa em meus ouvidos, e, por mais que eu não ache muito sentido no que me propõe, penso se não é um caminho a seguir. Nunca fui um homem de indecisões. No entanto, entendo que, nesse assunto em particular, não posso me mover por impulso.

Volto a escutar a voz de meu primo como se estivesse aqui e o ouço apresentar todos os motivos para embasar sua ideia.

— Nosso erro foi deixá-la sozinha naquela rua, sem nenhuma concorrência! — argumentou.

— Quando fechamos a compra do último imóvel, aquilo lá ainda era só um pé-sujo com meia dúzia de clientes bêbados — justifiquei em contrapartida. — Não tínhamos com o que nos preocupar!

— Esse foi o erro do coelho naquela fábula — Kostas ironizou. — A arrogância do “já está no papo!”.

— Você falando de arrogância? — Ri, e Millos disfarçou seu riso também. — Não tem se olhado no espelho, não?

Kostas apoiou seu indicador logo abaixo da sobrancelha, ao lado do olho e me deu um meio sorriso e um olhar de desprezo. Ergui minha sobrancelha e balancei a cabeça, enfrentando-o. Se o bostinha achava que iria me intimidar como faz com seus advogados, estava muito enganado!

— Já terminaram de testar a testosterona de ambos? — Millos reclamou. — Minha ideia faz todo sentido! Se alugarmos algumas lojas próximas ao estabelecimento dela, damos a concorrência necessária para que recue um pouco no crescimento que vem tendo!

— Sabe o que não entendo? — Kostas interferiu. — Se ela vem fazendo tanto sucesso quanto vocês gostam de afirmar, por que não quitou a maldita promissória?

— Talvez não tivesse tido o suficiente ainda, pois, como o “agiota” mesmo informou, ela andava pagando os “juros” para que ele continuasse paciente — respondi. — Ademais, ela não poderia pegar um empréstimo para quitar uma dívida como essa.

— A verdade é que o pilantra nunca iria liberá-la da dívida. — Concordei com o ponto apresentado pelo Millos. — Gastamos quase o dobro do que a promissória realmente vale, e ele já tinha recebido anos de juros da Duda. O homem é um espertalhão!

— Então você acha que, colocando mais alguns bares naquela rua, teremos mais chances de quebrá-la? — inquiri. Millos assentiu, mas vi um leve sorriso no rosto de Kostas e, sinceramente, não gostei dele. — Como controlaríamos isso?

— Kostas! — Millos aponta. — Podemos amarrar bem o contrato de aluguel, especificando a atividade que o locador deve exercer.

— Isso é legal? — perguntei.

— Não posso dizer no contrato o que ele deve vender, mas posso amarrá-lo à atividade que já exerce, ou seja, se trocar de ramo, deixa o imóvel. — Olha para o Millos. — O pessoal da corretagem, que por sinal é subordinado ao nosso querido e esperto primo, é quem deve ter em mente quais são os tipos de locadores que devem aceitar.

Concordei, mas ainda não estava completamente convencido.

— Pense na questão. — Millos se pôs de pé. — Tempo é o que não falta, pelo que Kostas disse.

Meu irmão o acompanhou, o sorriso estranho ainda em seu rosto, como se estivesse acontecendo algo que só eu não soubesse.

Dali em diante, tudo pareceu ainda pior! Os dias se arrastaram até esta sexta-feira, vários setores da empresa dando problemas justamente nesta época em que o pessoal já parece estar entrando em ritmo de festas e esquecendo um pouco a nossa tão famosa correria paulistana.

Só soube que Valentina seria minha acompanhante nos eventos artísticos no meio do expediente, quando Viviane me ligou para perguntar se eu tinha o endereço do apartamento da moça.

— Você me disse que ela estaria lá, não que iria comigo! — resmunguei. — Nós mal trocamos algumas palavras naquele vernissage!

— Theo, meu querido, você quer ou não quer uma maldita esposa?! — minha sócia perdeu a paciência.

— Porra, mas não assim! Não precisava agir tão descaradamente como se eu estivesse desesperado, merda!

— Ela é a melhor candidata com que você já esbarrou por aí! É amante das artes como você, vem de uma família tradicional e rica como a sua, é linda, jovem e tem todos os infindáveis requisitos que você listou para a futura senhora Karamanlis! Dê uma chance a ela!


CONTINUA
Acordei de ressaca hoje, e não foi por causa da quantidade de bebida que ingeri no vernissage; aquela quantidade, eu nem consideraria como beber. Viviane ficou puta por ter encarecido o orçamento com garrafas do meu uísque preferido e eu não estar bebendo, por isso, depois do evento, reuni todas as que sobraram e trouxe para meu apartamento.

Pensei que ia passar uma noite solitária, acompanhado apenas de um single malte e discos de jazz, mas, no meio da minha encenação de lobo solitário, Millos ligou me convidando para ir até seu loft. Neguei várias vezes, mas a porra do homem estava tão excitado com a cerveja que havia feito que não parava de insistir.

Resultado? A bebida realmente estava um espetáculo! Enchemos a cara, mesmo sob meus protestos, pois nunca curti muito beber cerveja, e comemos uns tira-gostos tão saborosos que teci elogios a sua habilidade na cozinha.

— Ah, não fui eu quem preparou, não! — Riu. — Encomendei no Hill.

Quase cuspi aquela porra para longe e o fuzilei com os olhos.

— Porra, eu querendo que aquela merda feche e você comprando lá? Está do lado de quem afinal?

— Do meu estômago! — respondeu comendo mais um dos bolinhos. — Estava com vontade de ter um acompanhamento, mas sem nenhum saco para preparar. Me lembrei do dia em que fomos lá e quis conferir se ainda continuavam tão gostosos!

— Ainda não te perdoo por aquela arapuca! — acusei.

Há uns dois anos, Millos me convidou para comemorar seu aniversário, coisa que vez ou outra fazemos quando ele está em clima de festa. Eu lhe disse que o encontraria no local, mas ele insistiu em me buscar em casa, e, quando chegamos e percebi que era no Hill, fiquei bem puto, mas a curiosidade de saber o motivo pelo qual o boteco estava se tornando um sucesso me impulsionou a entrar.

O que eu não contava era que, além de a mim, o filho da puta tinha convidado meus irmãos. Ficamos lá os quatro como se fôssemos bons amigos, compartilhando da armadilha de Millos. Aposto que Kostas e Alex detestaram cada momento, mas sorrimos, bebemos e experimentamos os quitutes da tal da Duda Hill.

Mesmo não gostando de admitir, era fato que a mulher sabia o que estava fazendo na cozinha. Os bolinhos tão tradicionais de um boteco tinham um requinte diferente, embora mantivessem a essência. Era como se ela conseguisse melhorar o que já era perfeito, e isso, tenho que admitir, é um dom.

Confessei isso ao meu primo? Nem sob tortura! Repreendi-o por ter comprado lá, aleguei que ela podia ter mandado envenenar os quitutes – fazendo um drama desnecessário, culpa da bebida –, mas não parei de comer.

— Ah, pedi a Sami para comprar para mim — respondeu.

— Você ainda está saindo com ela? — questionei surpreso, pois havia muito tempo não via a motoqueira que, de vez em quando, orbitava em volta dele.

— Não! Somos amigos, já disse isso, mas parece que você só enxerga a boceta de uma mulher, come até suas “amigas” — fez referência a Viviane.

— Por que você não gosta dela? — Provoquei: — Porque ela é independente, dona de si mesma e diz o que pensa?

— Não! Eu não curto mulher assim para comer, mas não tem nada a ver com o fato de eu achá-la fria e calculista, e nunca escondi isso de você. Aquela mulher gela meu sangue!

Ri do seu exagero, afinal, a Vivi não tem nada de fria. Millos implica com ela pelo simples fato de a mulher ter personalidade e não se deixar comandar por ninguém. No primeiro momento ele se sentiu atraído, Vivi é um espetáculo aos olhos, e ela também não disfarçou o interesse. No entanto, bastaram alguns minutos de conversa para que se odiassem.

— Hoje ela conseguiu algo incrível — comentei. — Valentina de Sá e Campos, já ouviu falar?

Ele riu.

— Dela não, mas conheço os sobrenomes. Família paulistana tradicional, bom currículo. — Cruzou os braços e me olhou debochado. — A futura senhora Theodoros Karamanlis?

— Talvez — fui sincero. — Conversei um pouco com ela nesta noite, achei-a divertida, inteligente e sedutora. A princípio achei que era muito nova, mas é madura e independente, cheia de opinião. Gosto do tipo.

— Eu sei. — Ele se levantou e foi pegar mais cerveja. — Foi Viviane quem te apresentou a ela? — Assenti. — Não sei se gosto disso, mas boa sorte.

Gargalhei pela implicância dele com a Vivi e resolvi desviar o assunto. Falamos da Karamanlis, de música, de motos e, por fim, já muito bêbado e com sono, caí sobre o sofá dele e acordei há pouco, com torcicolo e com uma puta dor de cabeça.

— Ei! — Millos me saúda estendendo uma xícara de café. — Você está destruído!

O desgraçado ri, mas nem posso mandá-lo tomar no cu, porque minha cabeça trepida parecendo que há uma britadeira no meu cérebro. Maldita cerveja! Malditos bolinhos envenenados da Duda Hill!

— Cara, você é fraco para minha cerveja! — Millos ri. — Ficou boa, não é? — Apenas assinto, ainda tomando o café para melhorar meu ânimo. — O que está programado para fazer nesse final de semana?

— Vou trabalhar. Como saí um pouco mais cedo ontem por causa do vernissage, Rômulo separou umas pastas para que eu lesse nesse final de semana. Coisa chata, principalmente da pauta da reunião do conselho.

— Por falar no conselho... — Ele se senta ao meu lado no sofá e apoia os pés descalços sobre a mesinha de centro. — Ontem tive notícia do Kostas. — Ri. — Parece que tomou um toco feio da Kika e está cuspindo marimbondos.

Gargalho, esquecendo a dor.

— Como queria ter visto esse embate!

— Eu também.

Bufo, mesmo divertido, lembrando que o meu problema continua.

— Preciso trazê-la de volta para a empresa com urgência. Há vários projetos dos hunters parados, e o Rômulo não está dando conta de organizá-los.

Millos rola de rir no sofá.

— Esse seu assistente é muito estranho. Sinceramente não entendo como você ainda o mantém trabalhando contigo!

— Gosto de ele ser metódico. — Dou de ombros. — É organizado, embora meio desastrado, nunca perde um prazo e faz tudo o que eu peço.

— Seu próprio espelho, não é? Nunca conheci ninguém mais chato que você para organização.

Ergo uma sobrancelha para ele e olho em volta para seu loft cheio de espaço, mas sem nenhuma lógica ou senso de estilo. Millos gosta de coisas rústicas, e respeito isso, acho legal, mas é tão bagunceiro que seus móveis caros de design parecem ser cacarecos de alguma casa demolida.

Os únicos locais arrumados são: a cozinha, o “laboratório” de cerveja (como ele mesmo se refere ao local) e onde dorme. O resto... tem peças de motos para todos os lados, mesmo a oficina ficando na parte de baixo do galpão que ele chama de loft, tem barris com os ingredientes que compra para a fabricação de cerveja, roupas, discos e óculos (nunca vi tantos para uma só pessoa) espalhados por todos os lados.

O homem é um caos completo em casa, mas, se alguém entrar na sala dele na empresa, vai acreditar que é o epítome da organização. Não entendo como consegue!

— Bem, sobre a Kika, eu posso te adiantar que não precisa se preocupar — Millos continua. — Falei com ela ontem, e vai voltar.

Expiro o ar, aliviado.

— Porra, Millos, porque não me contou antes? É um alívio do cacete não ter que lidar com mais esse problema e...

— Mas ela não quer ser mudada de andar.

— O quê? Ela está fazendo exigências?

Millos penteia a barba com os dedos, enervando-me com sua calma.

— Demonstramos desespero ao mandar o Kostas pedir arrego. — Concordo com ele nesse ponto. — Ela quer aumento, continuar no andar e... — Tenta conter o sorriso, e prevejo que vem bomba, mas ele vai dar um doce do cacete para falar.

Perco a paciência e esbravejo:

— O que mais ela quer?!

— Carta branca para mandar seu irmão se foder à vontade.

— Porra!

Ponho as mãos na cabeça, sentindo a dor de cabeça voltar com tudo e ouvindo a risada debochada do Millos.

Eles querem me enlouquecer, só pode!

 

 

A dor de cabeça me acompanhou ao longo de todo o final de semana. Tomei analgésico, antiácido e – seguindo os conselhos do meu primo – mais um pouco de cerveja. No entanto, não consegui me livrar do incômodo insistente.

Trabalhei o sábado inteiro, recebendo ligações do Rômulo quase de hora em hora, a ponto de ficar puto com ele e mandá-lo caçar algo para se divertir e me deixar em paz. Compreendo que ele queira me ajudar, mas, às vezes, sua dedicação exacerbada me estressa.

Recebi um convite para jantar de uma antiga amante que vinha a São Paulo de tempos em tempos, mas neguei. Queria apenas relaxar um pouco em casa depois de ter trabalhado em páginas e mais páginas de relatórios com uma dor de cabeça chata a me distrair.

Pedi comida em um restaurante de comida vegana, achando que pudesse ser a gordura dos bolinhos do Hill – velha e rançosa, com certeza – que me deu essa indisposição e resolvi assistir a alguns filmes antigos. Sou fã de “O poderoso chefão”, então comecei a assistir a cada um deles de novo.

Novamente dormi em um sofá, mas acordei melhor e resolvi correr um pouco. Passei umas duas horas no Ibirapuera e, na volta, encomendei o almoço de domingo, sentindo-me um pouco órfão sem a Vanda em casa.

Liguei para Millos a fim de fazermos algum programa à tarde, mas ele estava com alguma mulher em algum clube ou lugar que só Deus sabia, então voltei aos relatórios, e isso consumiu o resto do dia.

Debaixo do chuveiro, rememorando este final de semana de merda, ouço meu telefone tocar, mas o ignoro. Coloquei os jatos no mais forte possível para tentar aliviar um pouco a tensão que venho acumulando nesses dias. A verdade é que preciso trepar um pouco, divertir-me, talvez fazer uma viagem ou passar um final de semana com alguém sem pensar no trabalho.

A imagem da Valentina vem à minha mente, sua conversa gostosa, seu sorriso bonito. Contudo, ainda não me sinto completamente certo de que devo me envolver com ela, principalmente por uma questão: não senti muita atração.

Sei que isso é de momento e que pode mudar, principalmente se a convivência for boa. Nem sempre sentimos atração pela pessoa no primeiro encontro, e já vivi anos demais para saber que até um primeiro encontro explosivo pode depois esfriar e o tesão ser extinto, então, não me baseio apenas nessas primeiras impressões.

Fecho os olhos e penso na garota da boate há alguns anos. Ela vem preenchendo minhas fantasias há muito tempo, talvez por ter sido gostoso daquela vez e não ter tido mais notícia dela.

Mal lembro do seu rosto, de tão bêbado que estava, sempre quando fantasio vejo os cabelos e me lembro da loucura que foi nossa transa naquele banheiro.

O telefone volta a tocar, e desligo o chuveiro, saindo do boxe para ver quem é o chato. Rio ao ver o nome do Millos. Na mosca!

— Já terminou sua maluquice sexual com a “submissa” da vez? — provoco.

— Vá se foder e não se meta nos meus assuntos — rosna. — Liguei para saber se amanhã pode ir comigo a um restaurante que um amigo inaugurou nos Jardins.

— Boa comida ou é boteco?

— Não, seu fresco, é coisa fina! Vanda ainda não estará de volta, não é?

Suspiro, resignado.

— Não, ela ainda vai ficar um tempo no Rio de Janeiro. Está certo, amanhã combinamos isso melhor no escritório.

— Okay! — diz animado. — Vai almoçar no refeitório junto aos funcionários?

— Sempre há uma primeira vez, não é? — Deixo a toalha no suporte e sigo para o closet. — Além do mais, confio que servimos algo de qualidade aos funcionários.

Millos ri.

— Essa eu quero ver! Nos encontramos no almoço, então! Boa noite, Theo.

— Boa noite!

Desligo o telefone e me olho no espelho, lembrando-me do tempo em que comia qualquer coisa e em qualquer lugar, na maioria das vezes sujo e fedendo a peixe, sentindo-me feliz e livre.

— Quem é você, Theodoros Karamanlis?


O dia nem bem amanheceu, e eu já estava suando na academia com a Sandra. Hoje, sem Millos, o treino foi mais tranquilo, seguindo o ritmo normal dos exercícios. Tomei meu café sozinho na cozinha – café puro mesmo – sentindo imensamente a falta da Vanda, de sua conversa matutina animada e seus cuidados. Posso não admitir sempre, mas gosto de ser cuidado, de sentir esse afeto, coisa tão rara na minha vida.

Limpei os pensamentos e saí para trabalhar.

— Bom dia, Dionísio! — cumprimentei o motorista como em todos os dias, já pegando meu jornal para me inteirar sobre as principais notícias do dia. — Hoje vou almoçar na empresa, mas, à noite, vou sair do escritório direto para jantar com Millos.

— Levo o doutor ou trago o carro?

— Traz o carro, vou dirigindo.

Ele assentiu, e seguimos viagem em silêncio, ele concentrado no trânsito, e eu, nas notícias de economia do país e do mundo.

Cheguei à empresa já apagando incêndios. Um dos projetos de um cliente foi reprovado por uma comissão municipal, então Kostas teve que intervir mandando seus advogados e acompanhando todo o processo. Eu, como CEO, fiquei aguentando a aporrinhação do gerente responsável pela implantação da empresa multinacional aqui no Brasil.

Nem vi a hora passar, mal tomei meus cafés tão tradicionais ao longo da manhã, irritado com esse problema, com o Rômulo borboleteando ao meu redor me enchendo de perguntas: “quer café?”, “ligo para o doutor Konstantinos?”, “quer um calmante?”. Eu quase explodi de raiva, sentindo meu estômago fritar e a cabeça estourar.

Desci para o refeitório faltavam alguns minutos para o meio-dia e, para meu espanto, ainda não tinha nenhuma refeição pronta. Conferi as horas no Omega, um dos relógios mais precisos do mundo, e estranhei a demora. Rômulo apareceu e, quando lhe questionei o atraso, fiquei sabendo que o almoço era servido a partir da 1h da tarde.

Voltei para o escritório sob a insistência de Rômulo para me encomendar o almoço em algum restaurante.

— Não! Hoje vou comer no refeitório — insisti.

Millos me lançou um desafio por eu nunca ter comido na empresa desde que foi inaugurado o refeitório para os funcionários. Pensamos no restaurante para facilitar a vida de todos e, como tínhamos espaço, decidimos montar a estrutura. Estive presente no primeiro dia, na inauguração, há alguns anos, mas depois disso não botei mais os pés no local.

Exatamente às 13h desci novamente pensando em usufruir de um almoço tranquilo e nutritivo, porém, o que encontrei me deixou sem ação. Primeiro, os funcionários ficaram estarrecidos ao me ver ali; percebi em seguida que apenas o baixo escalão da empresa – de coordenadores para baixo – estava comendo ali. Não havia nenhum gerente ou diretor no meio dos mais de 100 funcionários da companhia.

Contudo, o que mais me surpreendeu foi a comida. Não, não era ruim, pelo contrário, era bem preparada, mas sem nenhuma opção para substituição.

— E quem não pode comer carne vermelha? — questionei ao Rômulo, e ele apenas corou, fingindo não ouvir. — Há cardápios diferentes ao longo da semana?

Rômulo continuava a montar seu prato sem emitir qualquer resposta, o que não é nada típico dele, e isso me irritou. Quando não era para falar, o homem tagarelava, mas, quando eu precisava de respostas, ficava mudo!

— Rômulo! — chamei-o de modo mais enérgico. — Eu estou tentando entender o que...

— Não, não há! — escuto a voz do Alex e me viro para encará-lo. — E seu querido assistente não sabe informar porque não come aqui também. — Meu irmão pegou um prato e se serviu naturalmente. — A questão do restaurante entrou em pauta numa reunião de diretoria, mas o senhor todo-poderoso do Olimpo achou que não era uma questão relevante para a economia da empresa e pulou o assunto.

Olhei de esguelha para Rômulo buscando confirmar a informação, e ele atestou. Xinguei mentalmente.

— Uma empresa é feita de mais do que números, Theodoros Karamanlis — seu desprezo pelo sobrenome era evidente. — E, quando fiz a proposta do restaurante, era para que, além de economizar o tempo dos funcionários e agilizar o serviço, também tivéssemos convívio com eles, porém, adivinha quem foi o primeiro a pular do barco e a incentivar o “alto escalão” a ir junto?

Bufei de raiva.

— Quem é o responsável pela gestão do restaurante? — ignorei o discurso do meu irmão idealista e perguntei ao Rômulo.

— É terceirizada, a mesma empresa do pessoal da manutenção.

Merda!

— Marque uma reunião com ela e peça ao Kostas para avaliar o contrato. — Rômulo mais do que depressa escreveu em seu tablet inseparável. — Dispare um memorando para todos os diretores e gerentes, lembrando da existência do restaurante e informando que, a quem for almoçar fora, será necessário cumprir o horário, ou seja, uma hora e nenhum minuto a mais.

Rômulo arregalou os olhos e assentiu.

— Eu pouco vejo você e percebo que nem é preciso! Você não mudou nada, o mesmo prepotente de sempre. — Alex passou por mim, ainda se servindo no bufê, rindo de deboche, e percebi olhares curiosos em nossa direção.

— Eu preciso lembrar que você também faz parte da diretoria e tem acesso irrestrito ao conselho? — Cheguei perto para falar baixo: — Se fosse meu projeto, nunca deixaria chegar aonde chegou só porque não sou o CEO. Isso demonstra que está mais preocupado em ir contra a direção do que lutando pelo bem-estar dos funcionários. Não é minha função tomar conta de tudo, não sou absolutista, eu delego e confio naqueles a quem passo esse poder. — Ele fechou a cara, perdendo o ar de superioridade. — Não tenho intenção alguma de prejudicar os que trabalham comigo, pelo contrário. Mas assumo meu erro em não ter frequentado o local para dar exemplo.

— Mas o doutor também não tem horário certo para almoçar, por isso...

Balancei a cabeça em negativa, freando a defesa de Rômulo. Não tinha desculpas, o exemplo era meu, e eu tinha falhado. Terminei de fazer meu prato, sentei-me a uma mesa com Rômulo e almocei mesmo sentindo um nó na garganta por ter mostrado falha e ter sido repreendido pelo Alex na frente de todo mundo.

Merda!

Ao longo do dia, a repercussão do almoço do CEO no restaurante da empresa, bem como o efeito do memorando para os diretores e gerentes agitaram a tarde na Karamanlis. Percebi todo mundo mais atento, mesmo na correria de sempre.

Tive uma resposta positiva da equipe de Kostas com relação ao projeto vetado e pude passar a boa notícia ao nosso cliente. Recebi vários relatórios dos setores e subsidiárias ao longo do dia, inclusive da K-Eng, dirigida pelo Alex.

Meu irmão é um sonhador idealista, defensor dos fracos e oprimidos, um rebelde que só trabalha conosco para contrariar a família. Cospe sobre nosso sobrenome, mas faz questão de ostentá-lo para afrontar o pappoús. Sempre achamos que ele tentaria afundar a empresa em represália ao tratamento que teve na infância, mas não, ele não só assumiu uma empresa praticamente independente como a fez crescer. Todavia, ainda sinto que há algo por trás disso.


CONTINUA

Uma família separada pelo ódio...
Criado pelo avô, renegado pelo pai, odiado pelos irmãos, Theodoros Karamanlis recebeu o cargo de CEO da empresa da família. Sua principal meta é provar a todos que é mais competente do que o homem que sempre o renegou, seu pai. Para isso acontecer, falta apenas comprar o imóvel onde funciona um pequeno pub na Vila Madalena e assim fechar uma conta aberta há mais de dez anos.
Uma família mantida pelas lembranças...
Maria Eduarda Hill sempre teve o sonho de ser uma renomada chef de cozinha, mas, por circunstâncias do destino, acabou assumindo o antigo boteco de seu pai na Vila Madalena. Ela trabalha duro para manter o negócio e preservar a memória de sua família e luta bravamente contra o assédio de uma empresa que quer comprar e demolir o lugar.
Uma noite, um bar, e uma química explosiva...
Depois de cair em uma armadilha e conhecer a irritante cozinheira que o impede de fechar o maior negócio de sua empresa, Theo se vê dividido entre essa forte atração, conquistar o que seu pai não foi capaz e uma promessa feita ao avô. Por mais que resista, o grego não consegue ficar longe de Maria Eduarda, então começa uma implacável sedução para tê-la em sua cama.
Theo e Duda têm tudo para se odiarem. No entanto, mal sabem eles que a paixão não se conduz pelo óbvio!
A todas as Jujubas do meu potinho cheio de amor!

 

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— Parabéns, doutor Karamanlis! — Rômulo, meu assistente, soa exultante ao me cumprimentar. — Falta pouco agora para o senhor conseguir fechar essa conta! — Olha sua agenda. — O senhor tem uma reunião com o doutor Villazza daqui a...

Não dou muita atenção à falação dele, muito menos aos elogios animados. Sei bem que, embora tenha dado um passo gigante, ainda não conquistei minha vitória, não enquanto não tiver cumprido todas as metas que tracei para minha gestão à frente do negócio da família.

Olho para a parede esquerda do meu escritório, diretamente para o mapa emoldurado cujo círculo abrange a única propriedade que falta ser comprada para termos a total posse do quarteirão que mais tem se valorizado na área da Vila Madalena.

Foi exatamente por causa dessa bendita área que meu pai, o poderoso Nikolaous Karamanlis, perdeu seu reinado por aqui e foi substituído por seu renegado filho mais velho. Tenho consciência de que Rômulo tem razão quando me parabeniza pelo trabalho à frente da empresa. Millos, meu primo, e eu temos feito uma gestão muito produtiva, mas ainda não consigo estar satisfeito, não enquanto não conseguir comprar o último pedaço de terra daquele lugar.

Millos tem tentado me convencer a não me cobrar tanto sobre essa questão, afinal nem temos um cliente para instalar nessa área, perdido há muito tempo, quando meu pai prometeu o lugar e não conseguiu cumprir a promessa. O que ele não entende é que há muito tempo isso deixou de ser apenas um negócio, é uma questão de honra conseguir aquilo que meu progenitor não alcançou.

Balanço a cabeça ao pensar no meu pai e na nossa conturbada convivência. Não, não é hora de pensar em todas as merdas que aconteceram na nossa família!

Levanto-me e sirvo uma dose do meu puro malte favorito para relaxar um pouco, querendo já estar em casa.

Casa... Essa palavra me faz pensar em meu país, a Grécia e me desperta outra lembrança dolorosa: meu avô e a promessa que fiz a ele. Geórgios Karamanlis está prestes a completar 90 anos, mas, como diz o ditado por aí, vaso ruim não quebra facilmente. O homem que me criou, que me ensinou tudo sobre os negócios agora exige de mim uma família.

Uma família! Rio debochado a esse pensamento, a essa palavra tão sem sentido na minha vida e na dos meus irmãos. Família não significa nada mais do que pessoas que compartilham a mesma linhagem, pois os Karamanlis não são conhecidos por laços além dos de sangue. Somos todos fodidos de alguma forma, cada um com suas merdas para carregar, seus fantasmas e esqueletos no armário.

Somos ótimos trabalhando juntos, mas é só.

Não sei da vida particular de nenhum dos meus irmãos mais do que sei da de qualquer outro funcionário da empresa. Muito menos me importo com isso! Todos são adultos e, se querem continuar agindo como crianças chorosas e traumatizadas, o problema não é meu.

Rômulo volta à minha sala cheio de pastas com arquivos e me avisa que o carro já me aguarda para me levar até o Villazza SP, onde, além de conversar com Frank, vou aproveitar para almoçar no Vincenzo com ele como companhia, pois detesto comer sozinho.

Enquanto meu assistente se instala à sua mesa, passo na antessala e me despeço da Luíza, secretária da diretoria, deixando meu celular corporativo para trás, pois não quero ser incomodado na hora do meu almoço.

— Estou indo para a reunião com o CEO da rede Villazza; qualquer assunto, anote o recado. — Aponto para o celular. — Volto daqui umas duas ou três horas, pois vou almoçar por lá.

— Certo, doutor Karamanlis.

Despeço-me dela e sigo para a garagem subterrânea do prédio onde fica a nossa empresa, fundada no Brasil há décadas, instalada bem no coração da cidade de São Paulo, a Avenida Paulista. Tenho orgulho de ser o diretor executivo daqui; orgulho do nome e do respeito que conquistamos ao longo dos anos.

O setor imobiliário no Brasil passa por algumas crises, como acontece também no mundo inteiro, mas não para de avançar. Há sempre pessoas querendo moradia, empresas atrás de locais para seus negócios, então nós nunca ficamos sem fechar bons acordos rentáveis.

Meus pensamentos são levados para os Yannes, uma rede de resorts de aventura que tem unidades instaladas nos locais mais incríveis do mundo. Essa tem sido uma conta difícil, por causa de todos os entraves legais desse tipo de empreendimento, mas que, pelas últimas notícias que tive, isso irá ser solucionado em breve.

Sorrio largo ao pensar na Malu Ruschel, uma das minhas melhores gerentes e, com certeza, futura diretora da Karamanlis. A mulher é uma máquina de trabalhar, tanto que tive que a obrigar a tirar férias, mas a danada até descansando é atenta e descobriu o local que tanto procurávamos para o resort.

Malu, além de competente, é linda demais! Confesso que sempre tive uma enorme curiosidade de saber como é ter toda aquela tensão, toda aquela organização e meticulosidade debaixo do meu corpo, gemendo de prazer. Balanço a cabeça, afastando esse pensamento.

Mesmo me sentindo muito atraído por ela, nunca iria tentar qualquer coisa. Não por medo ou insegurança, pois acho que nos daríamos muito bem na cama, pois ela aparenta ser uma mulher segura de si, madura e que sabe separar o prazer do coração. Definitivamente, Malu não é daquelas que se apaixonam!

O que me impede de buscar um entendimento íntimo com ela é puramente ético. Eu não como funcionárias; por mais tesão e vontade, não faço isso. Ao contrário do meu irmão, Kostas, eu as enxergo como iguais e detestaria ter algum machista questionando a capacidade de uma delas apenas por estar trepando com o chefe. E, infelizmente, isso acontece muito nas empresas por aí. Quando um homem recebe uma promoção, é porque mereceu, mas, se é a mulher quem recebe, não foi por merecimento, mas porque ela tem uma boceta! É simplesmente ridículo e, por isso mesmo, prefiro não me envolver. Se há algum diretor ou gerente fazendo isso, é pelas minhas costas – porque todos sabem que não aprovo – e é discreto demais, pois isso não chegou aos meus ouvidos.

A regra geral na empresa é: evitem relacionamentos dentro do ambiente de trabalho, porque isso só causa problemas. Agora, se isso acontecer e as duas partes concordarem, acabarem se acertando, eu não as demito ou proíbo. Não sou babá de marmanjo! Há casais na Karamanlis, a maioria formada lá dentro mesmo. Eu seria hipócrita se fingisse que não há. Não me sinto à vontade para manter um caso com qualquer uma das minhas funcionárias, mas não sou arbitrário a ponto de, se acontecer com outros, demitir um ou mesmo os dois envolvidos.

Minha consciência diz que isso é só mais um dos traumas que carrego, mas a ignoro, mandando-a se foder.

Chego ao Villazza e sou recepcionado rapidamente pela assistente do Frank, Alice.

— Bom dia, doutor Karamanlis. Desculpa tê-lo feito vir para o hotel, mas é que estamos com uma pequena reforma na sala da diretoria no prédio administrativo, então viemos para cá.

— Sem problema, Alice! — Sorrio. — Eu vou aproveitar para almoçar com o carcamano no Vincenzo.

Ela faz careta.

— O senhor Villazza tem outra reunião na hora do almoço e vai sair daqui direto para ela.

Dou de ombros, resignado.

A parte administrativa do Villazza SP fica toda no térreo, mas Frank optou por usar uma das suítes preparadas como home offices, duplex com um escritório completo embaixo e quarto no mezanino.

— Espero que não esteja usando este lugar apenas como desculpa para comer fora do casamento... — falo assim que o vejo, concentrado em sua mesa. — Se Isabella te largar, juro que me caso com ela.

— Dovrai prima uccidermi, maledetto!1

— Não me tente, Frank Villazza! — Aperto sua mão. — Estou sendo pressionado.

O carcamano ri à minha custa.

— Seu pappoús2 ainda está querendo vê-lo casado? — Faço careta e assinto. — Você deveria levá-lo em consideração.

— É incrível como Isabella te domou! — Cruzo os braços e me sento em uma confortável poltrona. — Eu ainda me lembro de seus discursos anticasamento. — Rio. — Lembra como você se apresentou a mim naquele bar?

Frank sorri, embalado pelas lembranças de um tempo em que ainda ostentava o título de playboy. Nós dois aprontamos muitas coisas juntos, principalmente na época de Harvard, onde nos conhecemos. Promovemos algumas orgias, dividimos a mesma parceira, fumávamos baseados juntos e frequentávamos clubes de sadomasoquismo.

Nossa última aventura foi meses antes de ele conhecer sua esposa. Frank estava de férias na Itália, e, assim que eu soube que ele estava em Roma, chamei-o para me visitar em Atenas. Naquela semana em que ficou hospedado no meu apartamento, ele tentou de todas as formas me convencer a participar de um congresso na Suíça que ocorreria meses depois, mas para o qual era preciso garantir vaga. Nossos outros companheiros de Harvard já haviam feito reserva, mas eu declinei do convite, pois já estava me preparando para ir morar no Brasil e assumir a Karamanlis.

Viajamos de iate pelas ilhas naquela semana e, numa das mais belas do mar Jônico, fomos a uma boate muito louca, bebemos todas, e eu tive a trepada mais memorável da minha história.

Eu ainda me lembro dela! Era linda, corpo sarado, com uma barriga plana e de cintura fina de fora. Usava uma blusinha curta e minissaia de couro. Nos pés, botas altas, salto agulha, destacando suas pernas deliciosas. A mulher era um espetáculo para os olhos e me atraiu como ninguém.

Os cabelos, longos e pintados de rosa, balançavam ao ritmo da música. Ela estava acompanhada com mais cinco amigas, todas bem bonitas, sendo que duas delas desapareceram com Frank ao final da noite.

— Cazzo! — Frank xingava excitado ao vê-las dançando e nos oferecendo brindes com seus copos. — São muito novinhas!

— Foda-se! — eu disse sem conseguir tirar os olhos da mulher de cabelos rosa. Eu esperava apenas um movimento dela, apenas um sinal de que estava disposta, e, quando ele veio, olhei para meu amigo com um sorriso vitorioso. — A do cabelo rosa é minha!

Fomos até o grupo, dividimos suas bebidas – elas estavam bem abastecidas —, e, mesmo sem nenhuma apresentação, comecei a dançar com a beldade de cabelos coloridos. Frank ainda me dizia que eram garotas muito novas, ressaltando que deviam ter a idade de sua irmã caçula. Ele estava sempre tentando não trepar com moças jovens e inexperientes, mesmo que já tivesse sido surpreendido algumas vezes por elas, mas sempre acabava cedendo, como de fato ocorreu.

O dia estava amanhecendo quando duas se penduraram nele ao mesmo tempo, e o filho da puta parecia o rei do prazer. As duas se esfregavam nele, que as fazia tocarem uma à outra também, divertindo-se como um sultão. Sinceramente não senti nenhuma inveja; a mulher que estava comigo me deixava louco com sua dança, com nossos amassos e seus beijos etílicos. Eu queria sair dali, levá-la para algum hotel e passar o resto do dia a fodendo em desespero.

Ela dançava como se o mundo lhe pertencesse, movimentando seu corpo ao som das melodias, os músculos pulsando a cada batida, olhos brilhantes em minha direção e um sorriso safado no rosto. Tudo o que eu podia fazer além de tentar não enlouquecer de tesão era acompanhá-la, resvalar em sua pele acetinada quando colidíamos um no outro durante a dança e sentir nesse pequeno contato como se a mais viciante droga estivesse entrando em meu sistema.

— Preciso ir ao banheiro. — Parou, rindo, e apontou para um corredor do outro lado da pista. — Devo estar toda borrada e despenteada...

— Besteira! — respondi.

Seu inglês perfeito tinha um leve sotaque, mas, como as suas companheiras falavam em francês entre si, presumi que fosse por causa disso. A boate já estava vazia. Acompanhei-a até a porta do banheiro feminino e fiquei esperando do lado de fora.

Quer dizer, a intenção era essa!

Fui tomado de assalto quando ela apareceu e, sem dizer nada, simplesmente me arrastou para dentro do banheiro. O pequeno cômodo com várias repartições, espelhos e pias estava vazio. Excitado como um touro, não titubeei ao levá-la até um dos cubículos com vasos sanitários.

Esmaguei-a contra a parede de mármore, levantando-a no colo com suas pernas encaixadas nos meus quadris. Eu conseguia sentir a maciez de suas coxas, e ela, pelo jeito que gemia, sentia meu pau duro contra sua boceta ainda protegida pela calcinha. Estávamos bêbados demais para pensar, excitados demais para esperar, só queríamos provar o corpo um do outro e gozar juntos o prazer que tinha sido anunciado a noite toda.

Os gemidos dela me enlouqueciam. Eu sentia minha calça ficando úmida e, quando toquei sua calcinha, rosnei como um cão ao descobri-la completamente encharcada. Eu queria chupar aquela mulher, ouvi-la gritar de prazer, provar seu sabor até estar ainda mais bêbado e inebriado por ela.

Porém, ela tinha pressa!

Gargalhando como quem está numa grande aventura, abriu o botão da minha bermuda e puxou meu pau para fora da cueca, agarrando-o com força, fazendo-o doer, arrancando-me um gemido de antecipação. Ela se sentou no vaso e o engoliu com sua boca pintada de vermelho.

Fechei os olhos e deixei que ela fizesse o que quisesse, usasse sua língua, lábios e dentes. A sensação daquela boca quente e molhada sugando meu pau ainda mexe comigo, mesmo sendo apenas uma lembrança. E não é à toa, afinal quase gozei em sua garganta quando ela mordeu meu pau, encarando-me perversamente.

Puxei-a até a colocar de pé, virei-a de costas para mim, busquei uma camisinha no bolso de trás da bermuda embolada no chão e invadi sua boceta apertada, socando com força, levantando-a a cada vez que estocava, vendo seu rabo redondo e empinadinho se abrindo contra meus quadris.

Foi uma loucura sem tamanho, dentro de um banheiro público, numa boate praticamente vazia, ao nascer do dia, depois de passar a noite inteira dançando com ela.

— Goza para mim, safada! — eu dizia em seu ouvido, gemendo, mordiscando o lóbulo de sua orelha. — Goza sem se importar se estão ouvindo ou não! Foda-se!

Levei uma de minhas mãos para o meio de suas coxas, achei seu clitóris – o acesso facilitado por causa da depilação total que ela adotava – e o massageei até que ela se contorcesse.

— Grita! — ordenei, e ela obedeceu. — Porra, gostosa, encharca meu pau!

Não aguentei muito mais e tive que dar murros contra a parede de mármore do cubículo, tamanha a intensidade do prazer que senti.

Puxei meu pau de dentro dela, encarando-a completamente embevecido com sua beleza, com seu jeito safado, sorriso malicioso e olhos brilhantes. Joguei a camisinha no lixo e a puxei para fora daquele banheiro, pensando em levá-la para uma volta no iate.

— Ei! — uma das amigas, das que não tinham acompanhado Frank mais cedo, chamou-a. — Temos que resgatar a Allly e a Èlene, senão vamos perder o voo!

— Voo? — inquiri assustado.

— Temos que voltar para Paris — ela disse.

— Agora? — Ela assentiu. — Não!

A gostosa que acabara de gozar no meu pau e me dera um orgasmo fenomenal se aproximou, depositou um selinho na minha boca e se afastou.

— Foi uma noite deliciosa!

Bufei, resignado, não satisfeito, porque ainda queria comer mais aquela mulher, experimentar todo o seu corpo jovem, pele macia, músculos duros e tenros. No entanto... tinha valido a trepada no banheiro. Eu não ia sair correndo atrás dela implorando por mais.

— Boa viagem! — despedi-me.

Ela apenas piscou, sua maquiagem pesada, cílios longos e pintados da mesma cor que os cabelos. Desapareceu para sempre, sem nem mesmo me dizer como se chamava.

— Ei, stronzo, para de sonhar! — Frank ri, e eu volto a prestar atenção ao que ele fala. — A área que eu quero não é muito grande, apenas o suficiente para...

— Do que você está falando?

— Porca miseria, Theo! A casa de praia que quero construir para minha família, cazzo! O motivo pelo qual te chamei aqui! Está com a cabeça onde, porra?!

— A do meu pau? Enfiada naquela garota dos cabelos rosa naquela boate. Mal lembro do rosto dela, mas as sensações...

— Coglione! Está precisando de uma mulher pra foder, porra?!

— Não! — Lembro-me da que deixei essa manhã na cama. — Foi só uma lembrança. — Aprumo-me. — Vamos falar de negócios!


São Paulo, meses depois.


— A mulher anda irredutível! — Millos conversa comigo enquanto tomamos café. — Há anos tenho ido pessoalmente tentar negociar a compra, mas ela se recusa e tem conseguido manter suas contas em dia.

Desvio meus olhos do computador.

— Ela já sabe que temos a promissória?

— Não, simplesmente me expulsou de lá a pontapés quando fui tentar negociar! — Ri. — Você sabe que eu não curto uma mandona, mas ela me deixou levemente excitado.

— Porra, Millos, não fode o assunto! — Meu primo ri e deixa sua xícara vazia sobre o pires. — Já temos a dívida do pai dela; o que estamos esperando para executá-la? Isso a deixará sem alternativa a não ser vender o maldito bar para quitá-la!

— Theo, é uma promissória assinada há quase dez anos! Vamos ter que cobrar e...

— É para isso que aquele desgraçado do Kostas está aqui! — grito sem paciência. — Eu não aguento mais esses irlandeses no meu caminho!

— Ela é brasileira, Theo, o pai é que era...

— Foda-se! — Bato na mesa. — Tenho um diretor que não queria ter porque a porra da Malu Ruschel desertou para ficar embrenhada no mato com um peão e, ainda assim, não consigo fechar essa maldita conta!

— Ele conseguiu comprar a dívida do agiota e...

— Você está se escutando?! — Passo as mãos pelos cabelos. — Um diretor nosso negociou – sabe-se lá como – com um agiota! Esse mesmo cara está por aí, lidando com nosso dinheiro, comprando e vendendo imóveis em nosso nome! Não confio uma vírgula nele!

Millos se levanta e desenrola as mangas da camisa para esconder suas tatuagens. Eu não entendo por que ele cisma em manter essa pose conservadora aqui dentro da empresa, mas, como bem sei, cada um dos Karamanlis é fodido de algum jeito. Apesar da barba cheia e grande e do brinco que nunca tira, ele anda pelos corredores vestido de terno e gravata, sapatos de couro e uma pose de empresário burguês que só convence quem não o conhece.

— Eu preciso daquele quarteirão, Millos!

— Nós nem temos um cliente para ele...

— Foda-se! Quero a merda do quarteirão! — Ele concorda. — Vire-se para conseguir!

— Vou conversar com Kostas sobre a execução da promissória.

— Faça isso! Meu irmão pode ser um babaca filho da puta, mas é bom no que faz.

— Engraçado é que ele diz o mesmo de você!

O taciturno, mas incrivelmente inteligente grego sai da sala sacudindo a cabeça, sem entender como é que conseguimos trabalhar juntos sem nos matar. A verdade é que trabalhamos muito bem! Temos todos os mesmos propósitos, deixar nosso nome marcado na história desta empresa.

Nenhum Karamanlis da minha geração saiu ileso à maldição familiar. Todos temos fantasmas e esqueletos escondidos em nossos armários, traumas da infância, da adolescência ou apenas somos fodidos de nascimento. A amizade que tenho com Millos é algo que fugiu à regra, pois nutrimos sentimentos verdadeiros entre nós que vão além dos laços sanguíneos que nos unem.

O restante... bem, eu não conheço o restante o suficiente para julgar ou sentir qualquer coisa por eles. Nós nos suportamos por causa da empresa, do dever para com nosso nome e, claro, do respeito ao pappoús.

Kostas, alguns anos mais novo que eu, é um advogado competente, também um babaca arrogante que fala com qualquer pessoa se achando o rei de todo conhecimento e inteligência. Por vezes tenho que lidar com as merdas dele aqui dentro da empresa, principalmente quando sua falta de tato extrapola os limites de sua diretoria e acaba afetando outras.

Alex, um dos caçulas, é engenheiro, criativo, tem bons relacionamentos com todos na empresa, menos com a própria família. É o único que não faz nenhuma questão de agradar qualquer que seja dos Karamanlis, chegando por vezes até a renegar o nome em alguns trabalhos, quando assina apenas o sobrenome de sua mãe.

Kyra, a única menina e a mais nova de todos os filhos de Nikkós, é a única que não tem qualquer relação com os negócios da família. Montou sua empresa, não usou nossa grana, não tem qualquer contato – a não ser quando contratamos seus serviços em eventos – conosco. Suspiro ao pensar nela, principalmente porque ela não dirige a palavra a mim há mais de duas décadas.

O ponto de equilíbrio, o conciliador, a nossa Suíça, para explicar melhor, é o Millos. Meu primo tem relacionamento com todos os irmãos, escuta e aconselha a todos e, ainda assim, consegue permanecer neutro dentro da confusão que é essa família nada ortodoxa. Todos o conhecem por sua serenidade, sensatez e capacidade de pensar com racionalidade mesmo em meio ao caos. No entanto, eu sei a verdade! Por baixo de toda a placidez aparente, Millos esconde um lado seu que chega a me arrepiar os pelos.

A verdade é que nem mesmo o Karamanlis mais sensato é são!

Ando pelo escritório, noto cada detalhe da decoração, trazendo à mente o significado e o momento em que cada peça aqui disposta foi comprada. Algumas delas são remanescentes de um relacionamento que tive há alguns anos com uma decoradora de interiores; entre uma foda e outra, avaliávamos os objetos juntos e os comprávamos. Poucas aqui vieram de casa, na Grécia: uma deusa Atena esculpida em Carrara, um relicário da minha avó e um tinteiro do vovô.

Um fato sobre mim que me deixa orgulhoso é que sempre gostei de arte. Mesmo não tendo nenhum tipo de aptidão para pintura e escultura, gosto de apreciá-las, de viver cercado pelo belo, diferente e único. É claro que valorizo muito os clássicos, as obras e artistas já consolidados, mas meu faro empresarial também sabe reconhecer um iniciante com potencial, por isso tenho muitos investimentos na área.

Para estar por dentro de tudo o que acontece, preciso viver constantemente ligado a esse mundo, e isso, no momento, tem gerado alguns problemas. Fora compromissos e reuniões de trabalho, meu lazer é praticamente frequentar exposições, vernissages, festivais e até concursos. Por conta disso, só tenho me envolvido com mulheres do meio – o que para mim é maravilhoso, afinal, além do sexo, tenho o plus da conversa –, e a maioria delas não se encaixa no perfil da futura senhora Theodoros Karamanlis.

Pode parecer machismo, talvez seja, mas vocês hão de convir que, por mim, nunca haveria uma senhora Theo Karamanlis. Contudo, não posso deixar de atender a um pedido do meu avô. Imagina se o velho Geórgios, ateniense tradicional, aceitaria ver o neto mais velho se casando com uma artista alternativa, cheirando a incenso e tintas?

Esse é um dos motivos pelo qual comecei a frequentar as galerias mais chiques e tradicionais, com o pessoal da alta-roda paulistana e deixei de lado esse meu lado indie de aquarelas e carvão. Não entendam mal, não desgosto de estar nesse meio mais rebuscado, claro que não, arte é arte, e eu a aprecio de qualquer forma, mas é fato que as mulheres são bem diferentes. As descoladas são sempre mais divertidas.

Já que tenho que me casar, não quero um mero compromisso de conveniência. Por isso estou procurando, conhecendo, abrindo-me a encontrar uma pessoa com a qual eu me veja acordando de manhã e me deitando ao lado à noite. Se a encontrei? Não! Mais uma vez peço a vocês que não me entendam de forma errada. Eu não procuro por amor, essa porra já provou a mim que só serve para deixar o homem idiota e burro, então nem está sendo considerada. O que eu preciso é de uma parceira, uma mulher que eu consiga ver ao meu lado como amiga, além de ser a mãe dos meus filhos. Esse é o problema! Eu não as vejo assim, pelo menos nenhuma que tenha conhecido até agora.

Confiro as horas no Omega que uso no pulso esquerdo e balanço a cabeça. O tempo não para! Vovô não está ficando mais novo; eu não estou ficando mais jovem, e as chances de eu confiar o suficiente em uma mulher a ponto de pedi-la em casamento e gerar uma criança são quase nulas!

— Doutor Karamanlis? — Rômulo me chama, interrompendo meus pensamentos preocupados. — A reunião sobre o terreno para a rede de shoppings começa em 10 minutos...

— Obrigado, estarei lá. — Caminho até minha mesa para pegar umas anotações. — A equipe da senhorita Reinol já está posicionada?

Meu assistente apenas assente, ainda parado à porta, um tanto tenso, mais do que o normal.

— Algum problema? — inquiro diretamente, esperando a reposta positiva, pois é óbvia.

— Eu não me sinto à vontade para contar isso, mas...

— Pare de dar voltas e diga de uma vez! — A impaciência toma conta de mim, e de novo questiono minha sanidade ao manter o Rômulo como meu assistente. Ele é competente, sim! Organizado? Muito! Entretanto, tem umas manias que me tiram do sério, e, infelizmente, a falta de objetividade é uma delas. — Rômulo!

Ele pula assustado com o tom da minha voz e fecha os olhos, torcendo as mãos. Dá-me paciência!

— Aconteceu uma pequena desavença há pouco lá na sala de reuniões e... — bufo, arrependido, pois odeio fofoca — a Kika abandonou a apresentação e disse que o Leonardo é quem vai falar com o cliente.

Arregalo os olhos, surpreso.

Wilka Reinol, a Wilka a quem ele se referiu, é nossa gerente de hunter, ou seja, é a responsável pela equipe que pesquisa os imóveis de acordo com a necessidade dos clientes. Assim que a Malu Ruschel nos deixou para bancar Maria Chiquinha no meio do mato, foi natural que Kika assumisse a gerência, pois se mostrou pronta para a responsabilidade durante o período de férias da antiga gerente. Ela é um pouco mais solta que a Malu – que era um tanto obcecada pelo trabalho –, mas tão responsável e obstinada quanto a outra.

Kika, sob meu ponto de vista, tem tudo o que a Malu tinha e mais a humanidade necessária para o serviço. Ela sabe liderar a equipe, é carismática, todos os funcionários do prédio a conhecem, gostam dela e fazem de tudo para ajudá-la. Alex, meu irmão, brinca que, se a presidência da Karamanlis fosse por voto popular, ela ganharia fácil, e é bem provável.

Por isso mesmo, saber que alguém conseguiu irritá-la a ponto de fazer com que ela abandone uma apresentação na qual se empenhou... Respiro fundo, já sabendo o que aconteceu.

— Kostas?

Rômulo parece que vai desmaiar.

— É... Ele estava conversando com ela antes de... — Faz um gesto nervoso com as mãos. — Eu não sei o que houve, mas o pessoal ficou todo tenso e pediu para eu vir buscá-lo.

Não! De novo, não!

Há alguns meses, eu tive que apartar uma briga feia dos dois, quando Kostas decidiu interferir no trabalho da Malu no afã de fechar a conta do Grupo Yannes. A ex-gerente ainda estava no Pantanal, e Kika era quem gerenciava em seu lugar, e a pequena morena colocou o dedo bem no meio da cara do meu irmão, de mais de 1,90m, sem titubear nenhuma só vez.

Secretamente eu torci por ela, querendo vê-la dando uns bons tapas naquela cara anglo-grega e deixando o nariz dele, já quebrado sabe Deus lá como, ainda mais torto. Nunca tive tanta vontade de incitar a guerra, mas me lembrei do motivo para o qual tinha sido chamado e tentei conciliar os dois.

Kika, ainda bufando, mandou-nos à merda e saiu da sala batendo a porta. Kostas ria, mas eu pude perceber que havia um brilho de admiração nos olhos dele. Nós não estávamos – e nem estamos – acostumados a defender alguém com unhas e dentes como ela fez com a Malu. Foi realmente admirável e providencial, porque logo depois tudo se revolveu, e o próprio Kostas admitiu que as duas estavam certas ao não apresentarem a fazenda pantaneira ao cliente.

Depois desse episódio, no entanto, os dois passaram a se evitar, e a paz voltou a reinar na Karamanlis, o que me faz voltar a pensar no que aconteceu dessa vez para que a trégua tenha tido fim.

— Você vai atrás da Kika. — Rômulo fica branco. — Vou ter uma palavrinha com o meu irmão.

— Mas ela... — o assistente tenta argumentar, tremendo de medo.

— Coragem, Rômulo! — Passo por ele, segurando o riso por vê-lo apavorado por ter de falar com a Kika. — Ela não vai te arrancar pedaços... — Sorrio para ele. — Pelo menos, não muito grandes!

Escuto-o gemer e não resisto mais. Gargalho.


Andar pela Karamanlis sempre foi algo complicado. Não por causa das dimensões do prédio, que também não é pequeno, mas porque sempre cruzo com um ou mais gerentes ou diretores, e eles sempre têm algo a comentar comigo. Sempre!

A empresa ocupa do décimo ao vigésimo andar do enorme prédio comercial na Paulista. Os andares inferiores estão divididos para duas subsidiárias: a K-Eng, empresa que concentra todos os serviços de engenharia – em seus vários nichos – e que é dirigida pelo meu irmão caçula; e a K-Decor, empresa de arquitetura e design de interiores, também sob o comando do Alex, mas com acompanhamento do Millos.

Somos uma holding, atendemos o Brasil inteiro não só na compra e venda de imóveis, como também no gerenciamento, na construção desde o projeto, planejamento, decoração e design. Nossa cartela de clientes é formada, em sua esmagadora maioria, por empresas, mas às vezes temos alguns prédios residenciais sendo atendidos de alguma forma pela Karamanlis.

Nossa estrutura é completa, temos, para exemplificar, um andar inteiro dedicado ao pessoal de TI, que coordena todas as nossas redes, tão necessário para o pessoal que trabalha com georreferenciamento de imagens, satélite e sobreposição de manchas para marcarmos as propriedades. Temos utilizado muito essas ferramentas para regularização de fazendas, áreas enormes para as quais, se o serviço fosse feito em campo, levaríamos o triplo do tempo e gastaríamos o dobro de funcionários.

A divisão jurídica, comandada pelo Kostas, ocupa quase um andar inteiro, deixando apenas três salas para a gerência de hunter, que eu não sei por que ainda mantenho lá, mas que nunca me incomodou tanto quanto agora.

Definitivamente, os hunters precisam sair do andar antes que a Kika e o Kostas se matem!

Abro a porta que dá acesso ao enorme salão onde ficam os advogados, cada um trabalhando atentamente à sua mesa ao estilo baia, e sigo para a sala toda de vidro ao fundo.

Kostas me vê antes mesmo que eu bata à porta e faz sinal para que eu entre.

— Seu assistente já fofocou com você. — Ele ri, deixando seu charuto de lado.

Olho carrancudo para o fumo, algo que ele sabe que eu desaprovo dentro do local de trabalho, mas que ele sempre alega que é só para relaxar, coisa de seu sangue inglês. Porco arrogante!

— Rômulo já me informou da situação que ocorreu — corrijo-o. Sim, eu acho meu assistente fofoqueiro, mas só quem pode falar essa porra sou eu, por isso, defendo-o. — Eu pensei que já houvesse se estabelecido um tipo de trégua entre vocês aqui na Faixa de Gaza.

Kostas dá uma risada escrota quando eu falo do apelido do andar.

— Aquela mulher é muito petulante! — Dá de ombros. — Se eu fosse o CEO dessa “bagaça”, já teria mostrado a ela a porta da rua.

— Ainda bem que você não é! — corto-o. — Eu não demito funcionários porque eles falam umas verdades a um bundão como você. Kika é extremamente competente, e eu não tenho motivo algum para me desfazer dela.

— O bundão aqui é você! Ela enche meu saco, feministazinha do sovaco cabeludo, e ainda tem a coragem de querer ditar regras!

Balanço a cabeça, perdendo a paciência.

— Você enche meu saco, e, se eu pudesse, te colocaria para fora daqui agora mesmo...

— Só que você não pode! — Ri, arrogante, pegando seu charuto de volta. — Sou dono dessa merda tanto quanto você! Então me engula!

— Você está certo, e que isso fique bem claro, Kostas. — Caminho para perto dele. — Só aturo suas merdas porque não posso te pôr para fora, não porque eu goste de trabalhar com você. Não interessa se é um puta advogado, foda-se! Eu demito sem nenhuma dor na consciência funcionários que tenham metade da sua arrogância. — Soco a mesa, e ele fica sério, deixando de lado o sorriso debochado. — Agora, não me tente! Aposto com você que todos já estão de saco cheio de suas piadinhas preconceituosas, de seu jeito de se achar melhor que todos e, principalmente, de todas as confusões que você arruma aqui dentro! Duvido que os integrantes do conselho estejam dispostos a pôr o rabo na reta para te defender.

Vejo que atingi o ponto fraco dele, pois o filho da puta sabe que não tem apoio de ninguém aqui dentro. Nem mesmo Millos – o único a conseguir conviver com essa criatura – o defenderia diante do conselho.

Kostas por fim apaga o charuto, caminha pela sala e abre a porta de vidro.

— Sai.

Rio e constato que tudo o que falei, apesar de feri-lo, não o mudará jamais.

— Para de se meter no trabalho dos hunters — aviso-lhe antes de sair. — Eu não vou segurar essa porra e nem ficar igual a uma maldita galinha pisando em ovos com meus funcionários por sua causa! Tá frustrado e entediado? Vá trepar ou qualquer outra coisa que o deixe menos imbecil do que é.

— Sim, chefe — debocha.

— É bom lembrar disso, Konstantinos Karamanlis. Eu sou o seu chefe!

Saio daqui notando as expressões assustadas dos advogados, sem me importar o mínimo, afinal todos sabem que os irmãos Karamanlis não se dão. Ando sem olhar para trás, confiante, ainda que tenha consciência de que, se pudesse, meu irmão enfiaria uma faca em minhas costas sem dó nem piedade.

Tenho absoluta certeza de que só estou no comando porque passo certa segurança ao conselho administrativo da empresa. Se não fosse assim, aposto que nenhum Karamanlis estaria na diretoria executiva. Meu pai foi um desastre, era bom gestor, mas esteve envolvido em um escândalo após outro e, por fim, começou a fazer péssimas escolhas nos negócios, o que custou sua cabeça.

Kostas tem a agressividade de Nikkós. É o filho que mais se assemelha a ele, não só na aparência, mas também no gênio intratável. Detesto me comparar ao meu pai, mas não posso negar que a inconstância dele na vida pessoal, embora de um jeito completamente diferente, faça parte de quem sou. E, já em Alex, vejo uma impulsividade enorme, também herdada do maldito que nos gerou.

Quanto a Kyra... Bem, nunca pude formar opinião sobre ela. Tudo o que sei de minha irmã veio através de informações trazidas pelos outros. Não temos nenhum tipo de contato. Ainda tenho a imagem da menininha alegre que se pendurava nos meus ombros, mas isso foi há tanto tempo que não consigo mais ligar a imagem da mulher à da criança.

Sinto culpa por ter criado essa barreira entre nós. Reconheço meu erro, porém, já não somos mais imaturos, poderíamos ter lidado com isso se Kyra quisesse. Ela só não consegue me perdoar.

Encontro-me com Rômulo à espera do elevador. Ele se encolhe um pouco quando me vê, e eu dou um tapinha em seu ombro.

— Acalmou a fera? — brinco.

— Ela já retornou à sala de reuniões. — Sorrio, orgulhoso dele. — Mas xingou nossa espécie de todas as formas possíveis. — Rio, imaginando a cena. — Alguns que eu nem sabia que existia! Sabia que ela chama seu irmão de Bostas Karamanlis?

Gargalho, fazendo-o pular de susto.

— Ótimo apelido! — Ainda estou rindo ao entrar no elevador. — Por essas e outras é que ela tem meu total respeito! — Mal acabamos de entrar, vemos Kostas vindo em nossa direção. Com um sorriso malvado no rosto, aperto o botão para fechar portas, deixando-o para trás.

— Ele ia subir... — Rômulo argumenta.

— Não queremos o elevador fedendo, não é? — zombo, rindo de novo. — Bostas! Por que nunca pensei nisso antes?!

Meu assistente me olha como se eu tivesse enlouquecido, com suas grossas sobrancelhas escuras quase encostando em seus cabelos e a testa lotada de gomos de expressão. Minha gargalhada não cessa, imaginando a cara de Millos quando eu contar como o “todo poderoso” Kostas Karamanlis é chamado pelos funcionários da empresa.

 

 

Entro na sala de reuniões e dou de cara com a Kika, com seu jeito simpático e elétrico, distribuindo instruções, rindo com os colegas e averiguando sua apresentação. Nosso cliente ainda não chegou, mas não deve tardar muito; é senso comum que nós não gostamos de atrasos.

Cumprimento a equipe rapidamente com um leve inclinar de cabeça, desabotoo o último botão do meu paletó e me sento no lugar que sempre ocupo quando estamos nesta sala. O material em cima da mesa, com todas as informações sobre o imóvel escolhido pelos hunters chama minha atenção e, mesmo sabendo que isso os deixa apreensivos – admito que sinto certa perversidade de minha parte ao gostar de deixá-los assim –, pego a pasta e começo a folhear página por página lentamente.

Confiro as horas no meu relógio e encaro a Kika com as sobrancelhas franzidas.

— Senhorita Reinol? — chamo-a e bato de leve o dedo indicador sobre o relógio. — Alguma notícia?

Imediatamente ela chama uma mulher de sua equipe, que sai apressada da sala com um telefone celular na mão. Faço um gesto para que Kika se aproxime, e ela vem andando, sem nem mesmo demonstrar um pingo de apreensão, em minha direção. Admirável!

— Pois não, doutor?

— Você confirmou com o cliente a reunião hoje?

— Certamente! — Ela levanta o queixo. — Isso é a primeira coisa que fazemos, antes mesmo de disparar o memorando para a Diretoria Executiva informando o horário. Meu departamento é extremamente competente, doutor.

— Eles não costumam atrasar — observo. — Rômulo! — chamo meu assistente. — Traga aqueles relatórios que eu tinha separado para assinar enquanto espero. Odeio perder tempo!

Ele sai apressado, e eu escuto o bufo impaciente de Kika Reinol.

— Eu conversei com o Kostas — disparo ao voltar a ler a última página do material, sem olhá-la. — Sinceramente estou ficando cansado dessas rusgas entre vocês. A partir de amanhã, vou solicitar ao Millos que seu setor seja realojado.

— O quê?! — sua voz, um pouco mais alta que o normal, ecoa pela sala, causando um silêncio sepulcral e atraindo minha atenção. Ergo a sobrancelha direita para ela e cruzo os braços sobre o peito, deixando a pasta com os arquivos da apresentação sobre a mesa.

— Não faz mais sentido manter vocês dois tão próximos. — Abaixo meu tom de voz: — Não vou ficar bancando a mamãezinha e separando a briga de vocês como dois fedelhos. Se não sabem se comportar como adultos e profissionais, então não podem conviver no mesmo espaço.

— Isso é muito injusto, doutor! — sua voz, embora baixa, soa completamente irritada. — Eu nunca me meto no trabalho do doutor Konstantinos, embora a recíproca não seja verdadeira!

— Eu sei, Kika — chamo-a pelo apelido para demonstrar que não a culpo. — No entanto, a situação está saindo do controle, e eu não estou disposto a mandar você embora e, embora queira fazer isso com ele, não tenho esse poder.

Kika respira fundo e assente.

— Desculpe-me por estar causando tantos transtornos, doutor Theodoros. — Ela sorri. — Eu não sou uma pessoa difícil de lidar, mas ele...

— Eu sei, não se preocupe com isso.

— Eu espero que... — ela se interrompe de repente, e eu olho para a direção em que está olhando. Vejo a funcionária que saiu há pouco da sala fazendo muitos gestos para sua chefe, mesmo tentando disfarçar quando percebe que a estou observando também.

— Venha até aqui! — chamo-a.

A moça, provavelmente uma estagiária, pois é muito nova, fica vermelha e começa a torcer as mãos ao se aproximar.

— O que houve, Laura? — Kika pergunta.

— Liguei para nosso cliente e... bem... — A menina intercala olhares entre mim e Kika. — Ele disse que ligaram mais cedo cancelando a reunião.

— O quê?! — mais uma vez a voz da gerente ecoa pela sala, e eu fecho os olhos, prevendo mais confusão, pois é óbvio que não foi ela quem mandou desmarcar.

Kostas, seu filho da puta!


— O dia foi uma sucessão de merdas! — xingo ao entrar no carro, notando a expressão debochada de Dionísio.

Afrouxo a gravata e abro o botão torturador da gola da camisa, liberando assim meu pescoço do enforcamento diário. Eu preciso de um uísque! Abro o compartimento no meio do banco de couro da parte de trás do carro, onde estou, pego a garrafa da única marca de uísque que bebo, The Macallan, sirvo uma pequena dose no copo de cristal e respiro fundo antes de degustar a bebida escocesa.

Pela garganta, sinto a leve queimação. Notas de café e mel se misturam e logo se vão, deixando ao final um amargo sabor amadeirado, típico do single malt envelhecido em barris de xerez. A dor de cabeça que ameaça despontar some, e meu pescoço vai amolecendo, a cabeça pousa no encosto do banco e, finalmente, depois de um dia de cão, eu me sinto relaxar.

Ah, o milagre feito por uma dose de uísque de uma garrafa de pouco mais de dois mil reais!

Levanto um brinde imaginário ao meu dia fodido, querendo que ele se vá e que eu consiga livrar todas as tensões e preocupações de minha mente para que possa ter uma noite decente, ao menos.

O riso de Dionísio é de quem entendeu meu ritual, e eu esboço um leve repuxar de lábios, ainda muito rabugento para sorrir de verdade, e tomo mais um gole imaginando chegar a casa, tomar um banho e me submeter às competentes e pesadas mãos de Lavínia antes de trepar a noite inteira de novo.

— O doutor vai direto para seu apartamento?

Abro os olhos para olhar Dionísio pelo retrovisor e confirmo.

— Se o trânsito permitir, espero estar lá em breve. — Tiro o paletó e pego o celular, abrindo minha playlist favorita. — Dio, ligue o aparelho de som.

Em seguida ouço o jazz da incomparável Ella Fitzgerald e solto um suspiro de prazer, o primeiro neste dia desgraçado. Tento não pensar no Kostas, muito menos na enorme vontade de dar umas porradas naquela cara debochada, para não perder o pouco da paz que ouvir Ella e Armstrong cantando Isn’t this a lovely day? me traz.

Ah, como eu amo jazz! Não é à toa que mantenho um enorme piano de cauda no meio da sala principal do meu apartamento, além de ter centenas de discos – sim, são long players – cuidadosamente guardados na sala de som que fiz, com o toca-discos reinando absoluto. Chamem-me de retrô, sinceramente estou me fodendo para o que pensem disso. Prefiro, sim, o som da agulha sobre o vinil, o som encorpado e os ruídos que só um LP podem me proporcionar.

Não sou avesso à tecnologia, não quando sou cercado dela, mas há coisas de que não abro mão, como uma bela comida caseira com ingredientes frescos como comia em Atenas; meus discos, como vocês já souberam; e dirigir meu Aston Martin de câmbio manual.

Ah – sorrio olhando meu copo de scotch –, prefiro single malt a blend em matéria de uísque. Bem conservador para a maioria dos bebedores de hoje.

O trânsito agarra em alguns pontos do caminho da Paulista até o Vila Nova Conceição, onde moro, porém, Dio consegue me deixar na garagem do meu prédio exatamente 30 minutos depois de termos saído da Karamanlis.

Saio do carro levando comigo o paletó e a insuportável – e conservadora – pasta de couro com alguns documentos. Espero o elevador para me levar até o 36.º andar, para a cobertura duplex que comprei há três anos. Como detesto perder tempo, enquanto espero, mando mensagem para a Lavínia, uma deliciosa morena com quem tenho saído há algumas semanas, marcando um encontro com ela aqui em casa.

A resposta chega quando estou dentro do elevador com uma vizinha, e tenho de refrear a língua para não assustar a pobre senhora que me faz companhia neste pequeno cubículo. A safada me mandou uma foto – sem cabeça, como sempre – da sua indumentária de hoje à noite, um conjunto de lingerie sexy e quente que já me deixa completamente duro e ansioso.

Remexo-me desconfortável, porque conheço bem as calças desses ternos modernos, mais apertadas e de tecido mais fino, e escondo a evidência da minha excitação – ou seja, meu pau duro – colocando a pasta e o casaco na frente.

A senhora – cujo nome não sei, pois não conheço a maioria dos meus vizinhos, apenas os cumprimento quando nos esbarramos pelos corredores –, desce no 19.º andar, e eu sigo – livre e excitado – para a cobertura, embora tente me acalmar para não assustar a Vanda, governanta e cão de guarda do meu apê.

— Bem-vindo, doutor — ela me saúda assim que as portas do elevador se abrem no living, e se apressa a pegar minha pasta, deixando-me, como sempre, constrangido por ela ficar carregando peso enquanto eu sigo confortável como um inútil.

— Eu levo a pasta, Vanda, obrigado. — Evito que ela a pegue, mas ainda assim recebo um olhar feroz. — Tudo o que preciso é tomar um banho e daquele seu jantar.

Ela dá risadinhas.

— Já está quase pronto — diz orgulhosa da sua eficiência. — A Sandra ligou confirmando o horário de amanhã, e seu primo virá também.

Assinto, deixando-a para trás enquanto sigo para o quarto. Sandra é minha personal trainer, e nós treinamos juntos três vezes na semana e, às vezes, Millos, que também é seu aluno, adianta seu horário para vir malhar conosco.

Eu gosto de exercícios, sempre gostei. Sou magro naturalmente, e os treinos me ajudam a fortalecer os músculos e a manter um peso proporcional ao meu tamanho. Millos já faz a linha bombado, e isso combina com ele e sua personalidade.

Tenho apenas uma tatuagem, que fiz bêbado demais para lembrar, enquanto meu primo parece um gibi, todo desenhado. Gosto de malhar com ele porque sou competitivo até a raiz do cabelo, e ele não fica atrás, então ficamos medindo forças e levando um ao outro ao limite da resistência.

Minha suíte é enorme e confortável, toda em tons de cinza e azul-marinho, com paredes off-white, concebidas com carinho por uma de minhas parceiras de cama. Tenho sorte de ter conhecido mulheres que, além de ótimas de cama, eram profissionais competentes.

Caminho até o closet e deixo meu terno no local reservado para que Vanda o leve até a lavanderia, uma espécie de bag. Abro a gaveta de gravatas, enrolo a que usei hoje e a coloco no lugar, em seguida fazendo o mesmo com as abotoaduras. Verifico se meus sapatos estão precisando de limpeza e, como estão limpos, pois mal saí da empresa hoje, coloco-os na sapateira e jogo as meias e a cueca no cesto de roupa suja.

Eu sou organizado em casa também. Gosto de ser assim.

Programo o chuveiro, abrindo as duas duchas em direções diferentes, em jatos fortes e frios – está um calor do cão! – e gemo de prazer ao senti-los na pele.

Dia fodido!

Fico um tempo debaixo da ducha principal, avaliando cada momento da confusão que foi o final da tarde no escritório. Primeiro, a tensão entre a Kika e o Kostas, minha discussão com ele e, por último, o pedido de demissão dela.

Merda!

Pelo que posso julgar da personalidade dela, não será fácil convencê-la a voltar, e eu não posso perder outra gerente desse nível na empresa, não mesmo! Penso na discussão com o Kostas, nas palavras duras e verdadeiras que trocamos um com o outro e tento entender por que somos desse jeito. Que maldição é essa que nos mantém separados quando temos tudo para sermos unidos?

Balanço a cabeça, impedindo que me perca nestes pensamentos que nunca levam a lugar algum. Não há o que fazer para consertar anos de muros levantados em torno de cada um de nós. É impossível transpor as barreiras que o tempo e nossa situação ergueram. Não há nada a fazer!

Agora, preciso me concentrar nos negócios e no maldito pedido do pappoús! Tenho que trazer Kika de volta, comprar a porra daquele boteco na Vila Madalena e achar uma mulher que esteja à altura de ser a mãe do bisneto de Geórgios Karamanlis.

Escuto um barulho na porta do banheiro e abro um sorriso ao ver Lavínia parada na entrada. Ela se encosta ao batente, olha meu corpo inteiro com fome brilhando nos olhos e morde o lábio inferior. É o que basta para meu corpo, mesmo sob os jatos frios, reagir.

— Vem aqui! — chamo-a, mas ela nega.

— Finja que não estou aqui... — sussurra. — Deixe-me ver como você toca uma pensando em mim.

Sinceramente tenho vontade de revirar os olhos para ela, mas, para não quebrar o clima, faço o que me pede. Seguro meu pau bem forte e, lentamente, vou deslizando a mão para baixo e para cima, sem nunca tirar os olhos dos dela. O tesão vai aumentando, e eu fecho as pálpebras, evocando as imagens que me fazem gozar rapidamente. Som abafado, cheiro de fumaça, um perfume floral, cabelos cor-de-rosa e uma boceta quente e apertada... Merda!

Abro os olhos e encaro a mulher que me espera, apenas de calcinha e sutiã, roçando contra o batente da porta e gemendo.

— Vem aqui agora, Lavínia! — Abro a porta do boxe.

Ela arregala os olhos por causa do meu tom de voz impaciente e sorri, safada. Mal chega perto de mim, e já a viro contra a parede, seguro firme sua cintura, levantando-a e esfrego meu pau em sua calcinha molhada. Preciso foder essa mulher com urgência! Estico uma das mãos até o nicho onde uma caixa de acrílico guarda alguns envelopes de camisinha – eu adoro foder debaixo d’água, então sou prevenido – e rapidamente encapo meu pau e o afundo dentro dela.

As malditas sensações daquela noite ainda estão em minha mente, rondando-me como fantasmas. Enrolo os cabelos cacheados e negros no meu punho, mas, no ápice do prazer, vejo-os levemente rosados. Porra! Fodo-a com ainda mais força, ouvindo seus gemidos altos e descontrolados, pois sei o quanto ela gosta de trepar sem limites.

Quando a escuto falar que vai gozar, em desespero, aumento as estocadas para me deixar ir junto com ela e aliviar em parte essa fome que nunca cessa.

Foda-se, desconhecida!

 

 

Alguma coisa pinica meu nariz, e passo a mão, mudando de posição sobre os travesseiros. Estou em Atenas, com a família de minha mãe, vendendo peixe e tentando ser homem o suficiente para manter minha promessa. Não importa que eu não esteja preparado, não importa se tive de desistir de tudo, o amor é mais forte que tudo e por isso vou conseguir... vou...

Espirro.

Sento-me na cama, piscando os olhos, perdido no tempo e no espaço. Estava apenas sonhado de novo! Malditos pesadelos que, vira e mexe, estão retornando. Bufo. A vantagem desse é que não chegou ao apogeu do drama, porque alguma coisa... Uma risada abafada me faz olhar para o lado e encontrar um homem de quase 2m de altura, forte como um armário, cheio de tatuagens, com uma maldita pluma na mão.

— Porra, Millos!

O desgraçado cai na gargalhada, e eu me levanto da cama sem nenhum constrangimento diante da minha nudez e sigo para o banheiro.

— Não programou o despertador? — ele pergunta ainda no quarto.

— Programei. — Termino de mijar e dou descarga. — Você me incomodou com sua presença dez minutos antes. — Começo a escovar os dentes, e ele fica à espera. — Lavínia saiu daqui às 4h da manhã.

— Se elas não dormem aqui, não seria mais fácil comê-las em algum local neutro?

Saio do banheiro ainda secando o rosto, pego uma cueca no closet e a visto, voltando para o quarto.

— Não tenho problema algum com minha cama, pelo contrário! Prefiro meu espaço a qualquer outro. — Dou de ombros. — Você que tem essa mania de nunca trepar no seu apartamento.

Ele ri.

— Você sabe muito bem que eu não trepo! — Um sorriso descarado se forma em sua expressão. — Eu as conduzo ao prazer... É diferente!

Reviro os olhos.

— É claro que você trepa, porém, tem a mente mais fodida que a boceta de uma puta, por isso tem essas manias estranhas!

— Não fale do que você não sabe, Theodoros — adverte-me. — Cada um tem seu jeito de obter prazer; o meu é esse.

Concordo com ele, mesmo achando alguns de seus gostos um tanto estranhos demais para mim. Chame-me de conservador nisso também, mas tenho alguns limites bem definidos em relação às minhas fodas.

Millos me espera no quarto enquanto visto a roupa do treino, falando sobre um novo modelo da Ducati que está pensando em importar. O homem é completamente viciado em motos, faz parte de motoclubes e, nas férias, sai cortando estrada com esse pessoal. Já percorreu grande parte da América do Sul sobre duas rodas, fez a Route 66 nos Estados Unidos e percorreu toda a BR 101 aqui no Brasil.

Além disso, é obcecado por cerveja e fez vários cursos nessa área no mundo todo, produzindo sua própria bebida, buscando o sabor perfeito que seu paladar exigente ainda não encontrou em nenhuma marca já disponível. O desgraçado entende tanto do assunto que é convidado para festivais e fez parte do júri de vários campeonatos de mestre cervejeiro.

Millos mora em um loft, um antigo galpão que ele reformou todo. Na parte debaixo guarda suas motos e tem uma pequena oficina; na de cima, sem nenhuma divisória, ele tem uma confortável sala, uma cozinha industrial com os tonéis de cobre para a fermentação de sua cerveja e o quarto, onde nunca leva uma mulher para trepar.

Ah, esqueci... ele não trepa!

Tomamos juntos um suplemento de carboidratos pré-treino enquanto Vanda escuta alegremente as conversas de Millos sobre sua última experiência culinária – carne de rã marinada com cerveja – fazendo careta a cada vez que ele descreve o anfíbio sendo tostado na grelha.

Quando Sandra chega, já estamos os dois no segundo andar da cobertura, onde apenas uma enorme parede de vidro separa a academia da área de lazer com piscina, jacuzzi e área com churrasqueira gourmet.

— Bom dia, meninos! — Millos ri do cumprimento, porque a personal deve ser uns bons anos mais nova que nós dois, porém, sempre nos cumprimenta assim. — Prontos para suarem a camisa?

Um olha para o outro sem saber o que responder, pois nenhum usa camisa.

— Figura de linguagem, rapazes! — Rola os olhos. — Vocês, gregos, são muito literais!

Ela liga o som; uma música calma enche todo o ambiente.

— Bora alongar!

Bufo impaciente, mesmo sabendo da importância de preparar os músculos para os exercícios intensos, querendo dar uma surra no Millos hoje.

Vamos ver quem vai pedir arrego, meu primo!


Depois que terminamos o treino, tomamos nosso café da manhã antes de sair para o trabalho.

Millos sempre se veste aqui quando vem treinar comigo, então há sempre alguma roupa dele no quarto de hóspedes. Em poucos minutos o homem tatuado, debochado e um tanto sombrio desaparece, e ele assume seu papel de executivo calmo, frio e competente. A camiseta manchada, os jeans rasgados e os coturnos – roupa com que veio aqui antes de vestir a de malhar – dão lugar ao terno italiano, sapatos de couro, camisa de algodão egípcio e gravata de seda. Os cabelos revoltos estão no lugar, penteados para trás com algum tipo de pomada que os deixa fixos, a barba foi penteada e o brinco de argola dá lugar a um pequeno ponto na orelha, quase imperceptível.

Sinceramente não sei se ele adotou esse personagem para trabalhar com o pai, meu tio, ou se é algo que ele prefere fazer para não chocar ou causar descrença em nossos clientes. Realmente nunca entendi, e ele também nunca quis explicar, então não sei o que se passa na cabeça desse Millos Karamanlis executivo. O que me importa é que ele é meu braço direito, aquele em quem confio de olhos fechados nos negócios, porque, mesmo sendo tão diverso de sua personalidade, a frieza do executivo Millos é o que nos ajuda a controlar alguns incêndios dentro da Karamanlis.

— Soube da merda do Kostas dessa vez? — indago assim que entramos no carro, com Dionísio a dirigir.

— Como não saberia? A história correu pelos corredores da empresa no final da tarde de ontem. — Ele puxa mais a manga de sua camisa a fim de esconder as tatuagens do pulso. — A senhorita Reinol pediu mesmo demissão?

— Pediu! — Rio. — Foi uma saída de rainha no meio da discussão e com direito a água gelada na cara! — Gargalho. — Confesso que, se fosse café quente, eu teria sentido um pouco mais de prazer, mas nem tudo é perfeito.

— Porra, Theo, o Kostas está incontrolável, e eu não entendo o motivo. — Eu o encaro franzindo a testa, porque nunca falamos do meu irmão sem ser em termos profissionais, mesmo sabendo que Millos é quase um confidente de ambos. — Ele mudou muito nesses dias, parece... sei lá, encurralado.

— O Kostas encurralado? — debocho. — Aquele filho da puta é mais frio que uma pedra de gelo! O que poderia mexer com ele a ponto de deixá-lo assim?

Millos respira fundo e dá de ombros, fechando-se em copas novamente, como sempre faz quando o assunto é a vida pessoal dos meus irmãos. Esse jeito dele, essa lealdade toda me conforta e me frustra ao mesmo tempo. Sei que ele não comenta com os outros as coisas que lhe conto, mas gostaria de saber mais do que se passa com meus irmãos mais novos, principalmente Alex e Kyra.

Independentemente do que eu queira, sei que, por ele, nunca vou ficar sabendo de nada, e uma aproximação entre mim e meus irmãos é coisa muito improvável, então finjo não ligar para isso, mas sinto a culpa apertar meu peito a cada vez que algumas lembranças voltam.

— Seu assistente já confirmou sua presença no baile dos Villazzas no Ano Novo? — Assinto. — Não sei se vou. No último a que fui, eles ainda estavam em Curitiba!

— Muitos anos, já! Não tenho como não ir, sou amigo do Frank e quero ajudar a instituição do Bernardo Novak, que é uma das eleitas deste ano para receber parte das doações.

— Ah, sim, isso eu também quero fazer. A empresa da Kyra é quem está organizando, você sabe? — Balanço a cabeça positivamente. — Foi por isso que ela não pegou a festa da Karamanlis este ano...

— Foi a desculpa que ela deu, na verdade — corto-o. — A empresa dela já está crescendo sozinha, ela já pode se dar ao luxo de dispensar um contrato conosco e, assim, manter-se cada vez mais distante.

— Que seja... — Ranjo os dentes de raiva por ele não comentar nada. — Estou pensando em fazer um recesso entre o Ano Novo e a segunda semana de janeiro. — Millos estica as pernas, gemendo lentamente, e um sorriso de vitória me escapa. Está dolorido, desgraçado? — Ainda não sei se vou até Frankfurt conversar com um mestre cervejeiro de lá ou se faço alguma viagem longa de moto, mas estou querendo ficar fora dos negócios por um tempo.

Sinto uma pontada de inveja dele, pois costumo tirar no máximo uma semana de descanso entre as festas – Natal e Ano Novo –, e a única viagem que consigo fazer é ir até a Grécia para visitar o vovô, e nesse ano, como irei viajar em fevereiro no ano que vem para o aniversário dele, não vou tirar sequer essa semana de recesso.

— Eu não vejo problemas. Esse período é o mais devagar na empresa. — Ficamos um tempo mudos, apenas ouvindo o som do aparelho do carro tocando alguma estação de rádio. — Eu vou fazer aquele filho da puta ir atrás da Kika!

Millos me encara, olhos arregalados, e não por causa da fala inesperada depois do silêncio que fizemos.

— Eu acho que isso vai dar mais merda do que já deu.

Sorrio.

— Não, ele vai ter que pedir desculpas e prometer se comportar. — Encaro Millos, olhos brilhando, pensando em como obrigar o meu irmão arrogante a fazer minha vontade. — Preciso da sua ajuda!

 

 

Meu humor melhorou drasticamente depois da conversa com o Millos no carro e o plano que arquitetamos para fazer aquele idiota prepotente consertar a merda que fez aqui na empresa. Fazer Kostas ir até a Kika para implorar que volte será bom para mim por dois aspectos: terei minha gerente de volta e ainda colocarei meu irmão no seu lugar, abaixando um pouco sua crista de galo de briga.

Rômulo está irritantemente quieto hoje, e desvio o olhar a toda hora para sua mesinha apenas para conferir se o tagarela está bem e respirando. Hoje a empresa está um pouco sombria. Os funcionários estão falando mais baixo, há menos pessoas nos corredores, e os setores estão funcionando bem, mas sem o ritmo frenético a qual todos estamos acostumados.

Uma apatia geral tomou conta do lugar, e o clima aqui dentro está tão opressivo que me sinto sufocando algumas vezes. É como estar de luto, e isso é uma coisa incrível, pois bastou uma funcionária querida pedir demissão para parecer que o sol se pôs dentro deste prédio.

Preciso dessa mulher de volta!

Se o babaca do meu irmão não conseguir o feito de reintegrá-la à equipe, vou ter que jogar sujo e recorrer a Malu Ruschel lá no meio daquele mato onde vive. Espero conversar com ela para que convença sua amiga a voltar para nós.

Levanto-me, sentindo a tensão sobre meus ombros e meu pescoço duro. Ponho a culpa na tensão, nunca admitindo que a disputa ferrenha com Millos no treino de hoje de manhã me causou isso. Tenho 41 anos, não sou um garotão, mas sempre me consolo dizendo que pratico exercícios há muitos anos, então meu corpo está acostumado.

A verdade é que os anos estão realmente passando, e talvez eu esteja sentindo os efeitos do deus Cronos no corpo. Noitadas de sexo, balada e exposições têm me deixado cada vez mais cansado, além disso, comecei a notar que tenho necessitado de mais horas de sono do que precisava antes. Talvez tenha que ir a algum médico fazer um check-up ou buscar um geriatra.

Dou uma risadinha baixa, achando graça do meu humor negro. Fui contagiado pelo clima de enterro da Karamanlis, e esse silêncio todo me faz divagar. Gosto e estou acostumado à correria, a Rômulo transitando em volta de mim como mosca de padaria, sempre prestativo, falante e, na maioria das vezes, incômodo.

Porra, estou sentindo falta até da inconveniência dele!

Caminho até a vidraça da sala, olho a Paulista movimentada de carros lá embaixo e volto a refletir sobre a vida, principalmente a profissional. Já faz anos que assumi o cargo de CEO da empresa, anos que vim morar no Brasil, e, apesar de tudo isso, algumas coisas continuam como antes: o trabalho intenso, a desarmonia entre os irmãos Karamanlis, meus hábitos noturnos, hobbies e, claro, a maldita conta da Vila Madalena. A confusão de ontem desviou um pouco minha atenção desse objetivo, mas não posso perder o foco, não quando estou cada vez mais perto de conseguir comprar o maldito boteco!

— Rômulo — chamo-o sem olhar em sua direção. — Peça ao Millos para que venha até aqui, por favor.

— Ele estava em reunião com o doutor Kostas... — Viro-me para encará-lo, e o homem franzino e de óculos fundo de garrafa arregala os olhos. — Eu vou ver se ele já retornou.

Meu assistente sai todo atabalhoado do escritório, deixando alguns post-it caídos no chão marcando seu caminho como na história de João e Maria. Respiro fundo para não me irritar com ele, pois, apesar de um tanto fofoqueiro e atrapalhado, ele é muito eficiente, não posso negar. Apesar de todos os incômodos, eu não o trocaria por nenhum outro.

Volto a pensar na Vila Madalena e que Millos ficou de levantar as condições para executarmos a promissória assinada pelo falecido proprietário do bar. Preciso saber em que pé estamos para traçar novas estratégias de ataque, afinal, quero começar o próximo ano já com essa conta fechada e, assim, ter menos uma coisa a torturar minha cabeça.

Escuto passos apressados, típicos do meu assistente, e a porta se fechando.

— Ele já vem, doutor — diz resfolegando, o que demonstra que foi correndo até a sala do meu primo. Quanta falta de sutileza!

Balanço a cabeça, segurando o riso debochado ao imaginar a cena, e lhe agradeço:

— Obrigado.

Enquanto espero, decido tomar o... (não lembro quantos já foram hoje) café do dia. Sigo até a máquina de café expresso que fica no aparador de bebidas e coloco uma cápsula de um blend de cafés no modo ristretto enquanto aguardo meu primo. O cheiro agradável enche o ambiente do escritório, deixando-o menos opressor e mais acolhedor. Aspiro a fragrância lentamente, apoiado no aparador, olhos fechados e absorvendo o prazer que essa bebida me proporciona. Sim, sou viciado em café!

— Theo? — Millos bate à porta, tirando-me do transe gourmet. — O que houve?

Faço um gesto para que ele entre e aponto para a máquina, que está passando dois do néctar de café que mais gostamos. Um ristretto só é possível quando a máquina tem a pressurização correta e os grãos são de qualidade. O pó sai praticamente seco, tamanha a velocidade que a água fervente passa por ele, extraindo o melhor do grão.

Nunca me acostumei ao jeito brasileiro de tomar café longo ou mesmo o famoso carioquinha, acrescentando água para diluir a bebida. Preciso sentir o sabor do grão, as notas intermediárias dele e as que ficam depois na boca. No caso desse blend que fiz, há um leve frutado que diminui a acidez e depois resta na boca um sabor mais forte, tal qual chocolate amargo.

Pego a xícara de Millos e a entrego para ele.

— Como foi com o Kostas?

Millos relaxa, sentando-se numa das cadeiras em frente à minha mesa e se encostando nela, desfrutando do cheiro do café.

— Acho que mordeu a isca. Só espero que ele saiba convencê-la. — Dá de ombros. — O que mais você quer?

— Vamos beber o café primeiro. — Pego a outra xícara e tomo um gole. — Quero notícias sobre a promissória da família Hill.

— Ah... — Ele sorve lentamente a bebida quente, deixando-me em suspenso com sua resposta. — Encorpado e naturalmente doce, perfeito! — elogia o café.

— A máquina faz tudo! Para de enrolar e fala logo.

O desgraçado ri, tomando mais um gole.

— Kostas estava analisando, mas, com essa confusão toda... — Eu xingo, e ele sorri mais uma vez. — Estou pensando em fazer uma visitinha a Duda Hill de novo. Vamos?

— Eu não tenho nada a tratar com ela. Quero executar a porra da promissória e expulsá-la de lá! — Deixo o café de lado, contrariado demais para apreciar seu sabor. — Já estou esperando por isso há muito tempo, Millos. Estou começando a perder a paciência.

— Eu acho que você deveria tentar conversar com ela. — Franzo o cenho, sem entender. — Dizer que temos a promissória e que vamos executá-la, mas oferecer a ela a chance de comprar antes de irmos à justiça.

— Por que eu faria isso?

Realmente não entendo o que Millos quer com essa sugestão. Oferecer a promissória para ela pagar? Como se ela tivesse condições de arcar com o valor exorbitante sem vender o maldito bar! Se a pressionarmos demais, ela pode acabar vendendo para outra pessoa, e aí teríamos que começar as negociações do zero. Isso nunca!

— Por que você quer tanto aquele quarteirão? — indaga-me, fazendo com que eu o olhe surpreso.

Ficamos um tempo assim, encarando um ao outro, apenas o som da digitação do Rômulo a pairar sobre nós. Tento procurar um motivo mais forte para comprar o lugar, mas não consigo achar nenhum convincente o suficiente para desviar a atenção dele da verdade. Não quero nada ali, nem tenho sequer ideia do que fazer e para quem oferecer, mas é uma conta deixada pela gestão do meu pai, o que me impulsiona a querer comprar apenas para esfregar em sua cara que eu consegui, que o derrotei.

— Consiga comprar a merda do bar — digo entredentes, a voz baixa e sem desviar meus olhos dos dele. — Meus motivos não interessam, é uma conta aberta que prejudica a reputação da empresa, e, como CEO, não posso deixar isso acontecer.

— Justo! — Ele se levanta. — Vou fazer tudo o que estiver ao meu alcance para satisfazer a sua vontade e não prejudicar a reputação da empresa no mercado.

Aquiesço, porém, não satisfeito, reconhecendo certo sarcasmo em sua voz.

— Millos. — Ele me encara. — Eu preciso fazer isso.

Meu primo bufa.

— Eu sei, Theo. — Caminha até onde estou e toca em meu ombro, falando baixo para que apenas eu o ouça: — Eu queria mesmo que você não precisasse, assim como não achasse que deve ao pappoús até a sua alma! — Faço careta e abro a boca para defender nosso avô, mas ele continua: — Eu sei que você precisa disso e vou ajudar no que puder.

Agradeço mesmo não emitindo nenhuma palavra. Conhecemo-nos há tantos anos, já passamos por tantas coisas juntos que não é necessário que sempre haja palavras entre nós.

Millos sai da sala, deixando-me sob os olhares curiosos de Rômulo, que provavelmente ouviu os sussurros e ficou de antena ligada atrás de uma notícia quente.

— Volte ao trabalho, Rômulo! — admoesto-o.

Ele fica vermelho e abaixa a cabeça para volta a digitar no computador.

Preciso arranjar uma sala isolada para esse língua de trapo! Ah, se não fosse competente!

Sento-me à mesa e olho para a tela do computador, onde um contrato já ratificado pelo jurídico está à espera da minha assinatura eletrônica. Esse dia não está sendo fácil, embora o trabalho continue normalmente como em todos os outros. Não compreendo o motivo, talvez por ter conseguido a maldita promissória, mas a vontade de conseguir comprar o boteco e o colocar no chão tem estado constantemente em minha cabeça. Muito mais do que o normal!


Os cheiros se misturam aos sons em um caos perfeito, quase sistêmico, se for possível considerar que alguma confusão possa ter um padrão implícito. Há um ritmo a ser seguido, um conjunto de ações e reações em cadeia que faz com que todo o nosso processo ande em harmonia.

É assim a minha cozinha!

Respiro fundo mais uma vez, espantando o cansaço e buscando energia para continuar. Estou empreendida neste ritmo desde às 2h da tarde, quase 12 horas direto, mas envolvida em todos os passos da organização e funcionamento desde às 8h da manhã, quando acordei.

Ser chef de cozinha não é só glamour, quer dizer, nunca foi! O que as pessoas veem na televisão, os grandes cozinheiros que aparecem na mídia com seus restaurantes renomados, a maioria agora é só empresário, cozinha vez ou outra, mas todos já ralaram muito para conseguir algum nome.

Quando decidi ser chef, eu tinha oito anos de idade, estava na cozinha da minha avó materna no interior e fiz meu primeiro bolinho de chuva regado a açúcar e canela. Abro o sorriso por causa da força das recordações. As lembranças olfativas e gustativas, na minha opinião, são as estrelas do cérebro. Quem nunca pensou num prato e na lembrança pôde sentir seu cheiro e o sabor? Quem nunca foi transportado a uma lembrança afetiva ao comer? Eu sempre acreditei nesse poder e, a partir daquele dia, na casa da minha avó, percebi que queria deixar essa marca na vida das pessoas.

Foi o último ano com minha mãe. Ela já estava doente, câncer de mama, e o clima em casa não estava dos melhores. Papai andava deprimido, o bar não estava indo bem o suficiente para arcar sozinho com as despesas depois que ela teve que parar de trabalhar na cozinha, e meu irmão – com 14 anos na época – andava estranho e pelos cantos.

Estávamos em férias escolares, e vovô foi nos buscar para passar umas semanas com eles. Imagino o quanto estava sendo duro ver a filha definhando aos poucos, perdendo a luta contra essa doença tão dura. Diagnóstico atrasado, demora no acesso ao tratamento, tudo isso contribuiu para que ela vivesse seis meses depois da descoberta do câncer.

Metástase, a palavra que mais me dói ouvir até hoje.

Meu maior medo também.

A tristeza e o desânimo tomaram conta da família assim que o médico contou ao papai que o estágio era terminal. A mastectomia, o esvaziamento total das duas mamas, não foi suficiente para ela, pois as células cancerígenas já haviam se espalhado pelo abdômen. Tudo o que podíamos fazer era tentar dar a melhor qualidade de vida possível aos poucos meses que lhe restavam.

Minha mãe, Maria Aparecida Braga Hill, era a pessoa mais forte e alegre que eu conheci. Era a luz da nossa casa, a razão da vida do meu pai, quem eu queria ser quando crescesse. Sua doença não diminuiu suas características e, naquelas férias, ela pegou meu primeiro feito culinário – um tanto cru por dentro e tostado por fora –, colocou-o na boca e revirou os olhos de prazer.

— Hummm, Duda, tem o sabor da minha infância! — Sorriu.

— Ficou um pouco queimado... — tentei argumentar, desculpando-me.

— Isso é questão de prática, princesa! — Ela se abaixou para ficar da minha altura, seu corpo bem magro, olhos fundos e com olheiras, o lenço na cabeça. — O importante não é só a aparência da comida; são as sensações que ela nos traz, o que ela nos faz sentir. — Pegou mais um dos meus tristes bolinhos. — O seu bolinho de chuva me fez voltar a ser criança, encheu meu peito de alegria, e é isso que importa.

Abracei-a, orgulhosa, sentindo-me quase uma heroína por ter feito tudo isso por ela com apenas farinha, água, ovos, açúcar e sal. Minha cabeça infantil imaginou como ela se sentiria se eu lhe fizesse um prato como aqueles que via em suas revistas de culinária. Mamãe ficaria tão feliz!

Foi a partir desse dia que passei a me interessar pela comida, pelos ingredientes, pela mágica que a mistura dos sabores proporcionava.

Muito tempo depois que ela nos deixou, suas palavras, a felicidade em seu rosto e o carinho do seu abraço ficaram marcados em mim. Eu queria essa sensação novamente, eu precisava sentir que algo que fazia era capaz de tornar a vida de alguém mais feliz.

Aos 13 anos insisti com o papai para trabalhar no bar. O Hill era um boteco mesmo, no sentido mais estrito da palavra. Os frequentadores eram pinguços que se encostavam ao balcão do bar quando papai abria e só iam embora expulsos quando ele decidia fechar. Tudo o que servíamos era torresmo, ovo colorido e alguns caldos que fazíamos em dias programados. Segunda e quarta era dia de mocotó; terça e quinta era bucho, e o final de semana era inteiro da rainha do Hill: a feijoada.

Um cozinheiro muito louco, mas com o tempero mais incrível que eu já provei, era quem comandava a cozinha quase doméstica do bar. Ele foi meu primeiro carrasco e logo me colocou na limpeza, frustrando meus planos de ser a estrela do Hill. Assim, ficava horas depois do colégio a lavar a louça – que não era pouca, porque o homem era bagunceiro – e limpar o chão.

Ainda lembro que a primeira coisa que ele me pediu para fazer – que envolvesse o preparo de alimentos – foi picar temperos. Chorei descascando cebolas igual a quando assisti ao filme Titanic na TV e cortei o dedo algumas vezes. O filho da mãe ria toda vez que eu gemia ou xingava, mas não desisti.

Em pouco tempo ele estava me ensinando as poucas técnicas que sabia, obtidas com a experiência de trabalhar em cozinhas desde seu primeiro emprego. Meu carrasco virou meu anjo da guarda, e, toda vez que papai ameaçava me proibir de ir para o bar trabalhar, ele me defendia dizendo que precisava da minha ajuda.

Foi por causa dele que pude estudar fora. Quando fiz 15 anos, papai queria fazer uma festa para comemorar, mas Dalto – o cozinheiro anjo da guarda – conversou comigo sobre cursos de gastronomia e citou a França como referência. Meu presente foi o curso de francês, segundo ele, necessário para me abrir as portas.

Aos 18 anos comecei a cursar a graduação em gastronomia, um orgulho para meu pai, que, àquela altura, já acreditava que eu conseguiria ser uma grande chef. O curso durou quatro semestres, e, aos 21 anos, já trabalhando como ajudante de cozinha em um restaurante de uma rede internacional de hotéis, consegui um feito incrível, uma bolsa para estudar na mais famosa escola de Paris.

Eu tinha tudo o que sempre sonhara, consegui passar num processo seletivo muito criterioso, esforcei-me durante anos para aprender a língua, ganhei a bolsa, mas não tinha grana para viajar e me manter por lá. Nessa época papai tinha um carro seminovo, e não pensou duas vezes antes de vender o veículo e me entregar todo o dinheiro para que eu pudesse passar os meses do curso sem apertos.

Fiz contato com outra moça brasileira que já morava em Paris e consegui alugar uma vaga em seu apartamento, perto do instituto. Foram os melhores meses da minha vida! Dediquei-me de corpo e alma àquilo, ignorei tudo. E a recompensa veio!

Um mês antes de concluir o curso, fui convidada a integrar a equipe de um grande restaurante na capital francesa. Cargo pequeno, salário baixo, mas o primeiro degrau para a realização de todos os meus sonhos de menina.

— Duda! — Manola, meu braço direito aqui na cozinha agitada desse pub que já foi um boteco, me grita, tirando-me do flashback no qual estava. — A cozinha fecha em meia hora, e estamos cheias de pedidos ainda. Não estou achando o molho extra que você tinha preparado mais cedo.

Seco minhas mãos no avental e vou até a pequena câmara fria que instalei aqui há pouco mais de um ano. O investimento foi caro, mas valeu cada centavo, pois consegui armazenar mais ingredientes e de uma forma muito mais segura do que no freezer.

Entrego o molho que preparei mais cedo para Anabele, uma das assistentes de cozinha, e volto a olhar a costelinha de porco no forno, a última da noite.

Estou cansada mais do que o normal, pois tive mais uma noite insone. Tem sido difícil dormir em casa, e, mesmo quando tudo está calmo, pego-me sem nenhuma vontade de fechar os olhos. Nós temos estado em um ritmo alucinante desde que o Hill caiu nas graças do pessoal aqui na Vila Madalena e chamou a atenção da imprensa especializada. Saímos em algumas revistas, ganhamos destaque, mas ainda assim sinto como se andasse no fio da navalha todos os dias.

Não trabalho tanto para enriquecer, apenas preciso manter um teto sobre minha cabeça, o mínimo de estrutura para minha tia Do Carmo e para Tessa e conseguir saldar todas as dívidas deixadas pelo meu irmão e pelo papai.

Uma dor enorme me invade toda vez que penso nos dois. Minha família se desintegrou por completo! Primeiro, mamãe, levada pelo câncer, depois meu irmão, que nunca se recuperou da perda dela e se afundou nas drogas, morrendo de overdose e, por fim, papai, há alguns anos, devido a problemas cardíacos.

Meus avós maternos se foram ainda na minha adolescência, restando a mim apenas a tia Do Carmo e a Tessa. A sorte é que conto com todos aqui como se fossem da família.

Manola é, além de meu braço direito, uma grande amiga. Tenho muito orgulho dela, principalmente por nossas histórias serem tão parecidas em alguns pontos. Ela é filha do Dalto, o “carrasco” que me ajudou a ser a chef que sou hoje. O pai dela vive ainda em São Paulo, mas está aposentado, e, uma vez no mês, fazemos um almoço aqui no Hill, e é ele quem cozinha, deliciando-nos com seu tempero único.

O Arnaldo é nosso faz-tudo, aquele que nos mata de rir com suas piadas bem contadas, que faz as melhores carnes do mundo e que vive sendo consolado por todos por seu infortúnio no amor. Sua grande paixão foi o Marlon, um segurança que trabalha aqui no Hill algumas vezes na semana, mas o homem nunca lhe deu chances. Sofríamos com aquele amor platônico todo, essa é a verdade!

Além desses dois, que são cozinheiros incríveis, temos duas técnicas em gastronomia que sonham em se tornar um dia chefs de grandes restaurantes: a Cláudia, responsável pelas sobremesas da casa, e a Anabele, mestre dos molhos.

Aqui no Hill nós não temos cardápio de restaurante, é de bar mesmo! Bolinhos variados, anéis de cebola empanados, batatas feitas de várias formas e, claro, nossas porções de carne. O carro-chefe são as asas de frango com molhos, uma receita que aprendi com um americano e que caiu no gosto da nossa clientela.

Claro que, com um cardápio tão “tradicional” assim, nós nunca teríamos nos destacado se não fosse a constante variação que fazemos nas receitas. Inventamos onions rings recheadas com vários sabores; batatas com muitos tipos de coberturas, e nossas carnes sempre têm algum molho ou tempero especial.

Além disso tudo, eu conto com o Kiko, o mestre em drinques que encontrei há alguns anos servindo numa barraca de festa, fazendo freelance. Notei o talentoso bartender que ele era e não me arrependo nada disso. O homem é demais, além de ser um grande amigo.

No bar, ele trabalha com mais três ajudantes, que se encarregam de toda a bebida do pub e do controle do estoque. Kiko é um ótimo gerente, dei esse posto a ele por puro merecimento, demonstrando minha admiração. Ele sabe trabalhar em equipe, é muito organizado, sabe contornar conflitos e ter pulso firme com o time de vinte garçons e garçonetes que temos na casa.

O pequeno boteco ao estilo “pé sujo” hoje é uma empresa que gera renda e mantém dezenas de famílias.

Esse é mais um dos motivos pelos quais não posso fraquejar e deixar que as dívidas deixadas pelo papai e pelo meu irmão me façam perder tudo. Principalmente para os Karamanlis!

Respiro fundo só de pensar naquele bando de engravatado abutre rondando o pub como se ele fosse um animal agonizante prestes a perecer. Eu vendo o bar para qualquer um que quiser continuar o negócio, não importa que não seja meu – embora isso me doa –, mas nunca para eles.

Falta pouco para eu quitar a dívida do meu irmão. Papai começou a pagar ainda vivo, e eu continuei os pagamentos depois da morte dele. Devo a um traficante! Esse não é o tipo de pessoa a quem alguém quer dever, então os pagamentos precisam ser feitos religiosamente.

Mais um mês, e isso acaba!, penso aliviada.

Leonan – meu credor – me garantiu que, depois da dívida quitada, não haveria mais o nome da família Hill nos cadernos dele, e eu acredito que mantenha sua palavra. Para qualquer pessoa, essa minha fé em um traficante, quando meu irmão morreu de overdose, pode parecer contraditória, mas tem explicação. Quando João Pedro chegou ao fundo do poço e ficou fora de casa por mais de um mês, papai se desesperou e foi atrás do Leonan. Ele não fornecia mais nada ao meu irmão, mesmo porque JP já usava crack, droga com que ele não “trabalha”, porém, o homem conhecia todo tipo de “fornecedor” e a galera que se amontoava na cracolândia.

Acharam meu irmão lá, e meu pai, mesmo sem nenhuma condição financeira, levou-o para uma clínica de reabilitação. Pasmem, mas quem emprestou o dinheiro para financiar a recuperação foi o Leonan, e é por isso que eu lhe pago até hoje, mesmo porque ele se arriscou muito emprestando esse dinheiro, uma vez que é apenas um dos “gerentes” da boca.

Nós tentamos, mas JP não conseguiu se reerguer.

Quando voltei de Paris, ele já estava de novo vivendo nas ruas. Papai estava desesperado, doente, e eu, mesmo frustrada por ter dado tudo errado no meu sonho de viver na Cidade Luz e ser uma chef reconhecida, fiz a promessa de fazer qualquer coisa por eles. Cheguei precisando de apoio e consolo, e, mesmo em meio a toda essa situação – que ignorava até voltar para casa –, meu pai me recebeu de braços abertos.

Meu irmão foi encontrado morto na rua, um choque e, ao mesmo tempo, um alívio para nós. Ele estava irreconhecível, doente, parecendo ter o dobro da idade que tinha e sofrendo muito. O vício é uma doença, e o crack é quase uma sentença de morte. Pouquíssimas pessoas conseguem se livrar dele, e é por isso que, quem consegue, merece receber todo apoio e consideração, porque é uma luta enorme, uma superação.

Papai estava medicado, tocava o bar, e eu voltei a trabalhar na cozinha e comecei a mexer nos cardápios. No princípio ele não gostou muito, mas depois foi aceitando a ideia de modernizar as coisas. O dinheiro começou a entrar, porém, sempre que eu tocava no assunto reforma, ele desconversava.

Só descobri que ele era viciado em jogo logo depois do funeral, mas apenas soube o tamanho do problema há dois anos, quando recebi a “visita” de um dos agiotas que emprestou dinheiro a ele. Ele devia muito!

Tentei ir pagando ao longo desse tempo, no entanto, os juros que ele praticava só tornaram tudo uma grande bola de neve. Eu estava enxugando gelo e totalmente sem saída. Se vendesse o Hill, conseguiria quitar a dívida, mas como iria continuar mantendo as pessoas que dependem de mim e que necessitam desse trabalho? Além disso, esse é o único legado da família que me restou, pois a casa do meu pai, onde moro hoje, fica no andar de cima e faz parte da propriedade.

Eu tinha esperança de conseguir quitar a débito e fiz um investimento futuro que poderia me render um dinheiro suficiente para amortizar todos os juros e depois eu tentaria renegociar a dívida, mas algo aconteceu.

Fui tentar pagá-la há alguns meses, e, simplesmente, o agiota não me atende. Sempre entrei em contato pelo único número que ele me deixou. Entretanto, é como se nunca tivesse existido.

Um frio percorre minha espinha ao imaginar os prováveis motivos para que o homem não me atenda mais, e eu temo pelo que possa me acontecer.


A noite começou com correria. É sempre assim quando vou à abertura de um vernissage ao qual estou patrocinando. Dessa vez não será pintura, mas sim um jovem escultor descoberto em Paraisópolis que faz seu trabalho com argila, sucata ou qualquer outro material que possa transformar em arte.

Antes ele vendia suas esculturas como artesanato em uma feira de rua, e um dos meus contatos no mundo das artes me ligou assim que viu o material dele. Claro que o rapaz, de apenas 21 anos, tinha muito a se refinar ainda, mas era claro como o dia o talento que tinha para transformar em realidade tridimensional qualquer coisa que viesse à sua imaginação.

Assim que conversamos, propus que ele fosse estudar com um amigo meu, um megaescultor brasileiro cujas peças estão no mundo todo, e assim comecei a organizar seu caminho até o dia de hoje. Viviane, meu braço direito nos negócios com artes, levou-o a várias exposições, workshops, festas e qualquer outro evento que o ajudasse a fazer networking. Enquanto isso, ele estudava, e eu bancava suas despesas e o local onde trabalhava.

Dez meses depois ele já tinha uma quantidade absurda de material de qualidade surpreendente para ser apresentado, e Viviane começou, então, a organizar a exposição, a espalhar uma coisinha aqui e outra ali sobre ele, a mostrar – mesmo que de relance – algumas das melhores peças dele a colecionadores a fim de deixá-los curiosos.

Claro que exatamente essas peças são as que eu já separei para minha coleção particular, que já serão mostradas como vendidas nesta noite, causando assim alvoroço e incitando os outros compradores a adquirirem mais esculturas.

É assim que esse mercado funciona. Geralmente quem é colecionador é também um competidor nato e, ao saber da compra de um item que gostou, começa a sentir medo de ficar sem uma peça daquele artista e, mais tarde, ele se revelar o novo Michelangelo. É por isso que eu sou louco por essa área, por esse jogo pensante e cheio de estratégias como o de um tabuleiro de xadrez. Primeiro, preciso enxergar o potencial artístico de uma pessoa, depois é só começar a jogar e colocar cada peça em seu devido lugar até vencer o jogo.

Ah, não pensem que faço isso por caridade, claro que não! Eu sou um investidor, então tudo o que faço pelo artista está em contrato, e depois sou ressarcido de acordo com o sucesso obtido. Todavia, em algumas situações ocorrem contratempos que impedem o acordo de seguir em frente, nesse caso fico no prejuízo, e o artista volta a se virar sozinho. Meus prejuízos até hoje foram ínfimos diante do que já lucrei nesse negócio, por isso gosto cada vez mais de jogar esse jogo.

O único problema é conciliar meu trabalho burocrático na Karamanlis com a agenda que tenho que seguir, afinal, não “apadrinho” apenas um artista, geralmente tenho umas dezenas em vários estágios de preparação e sucesso. Por isso não dispenso a Viviane, pois ela coordena toda a agenda desse pessoal – excêntrico o suficiente, vale ressaltar – tão heterogêneo.

É uma empresa paralela que nem leva meu nome, porque há um impedimento no estatuto da Karamanlis de o CEO pertencer à diretoria, conselho ou ser sócio de qualquer outra empresa. Então, para todos os efeitos, Viviane Lamour é a dona, e eu, apenas um admirador, além de seu amante, como todos comentam.

Rio ao pensar nisso, dando o nó na gravata-borboleta de frente para o espelho. Conheci Viviane numa festa dada por um pintor muito louco, e ela, obviamente, chamou-me a atenção por seu belo porte, cabelos cortados bem curtos e com a franja alongada, completamente platinados a ponto de serem brancos, destacando sua pele morena. Por si só, ela já é uma obra de arte, de bom gosto, apenas para apreciação de pessoas com senso refinado e olhar crítico.

Saímos algumas vezes, fodemos na maioria delas, mas depois nos tornamos amigos, e o tesão passou. Hoje fico até incomodado com o jeito como ela me trata, como se eu fosse seu confidente, uma espécie de mulher ou amigo gay a quem ela conta detalhes íntimos (excitantes ou asquerosos). Nós nos divertimos juntos, já saímos com a mesma mulher ao mesmo tempo, e eu já a dividi com outro cara, mas tudo na base da amizade e sem nenhum tipo de amarra, e há muito tempo não temos mais esse contato, apenas o profissional e amistoso.

Além de Millos, ela é a única que sabe da vontade do pappoús e tem me auxiliado na busca de uma mulher que preencha o requisito da velha raposa grega – e os meus também, óbvio!

Viviane é mais do que minha sócia, ela é meu faro, o olhar de lince que preciso, além de ser uma ótima companhia, inteligente, divertida, moderna e muito agradável.

Meu celular toca, e vejo o nome dela aparecendo na tela, como se eu a tivesse evocado.

— Theo, meu lindo, você vai chegar a tempo?

Olho-me no espelho antes de responder. Traje de gala, smoking tradicional, preto, com camisa branca, gravata-borboleta de seda também preta e sapatos italianos de couro. Meus cabelos estão penteados para trás com uma pomada que os mantêm fixos, mas sem aquele aspecto molhado tão démodé, minha barba está bem aparada, do jeito que gosto, tudo no lugar.

— Vou, sim! — respondo abrindo a gaveta com relógios da Rolex.

Fico em dúvida por um instante, mas acabo optando pelo clássico day-date de platina, luneta lisa, pulseira presidente e mostrador de ouro branco 18 quilates, de fundo preto com listras. Clássico e moderno ao mesmo tempo!

Confiro o horário no convite e, em seguida, as horas no relógio já no meu pulso. Não gosto de joias, pulseiras, cordões e etc. O único acessório – que, nesse caso, é como uma joia, por ser feito de metal precioso – é meu relógio. Venho os comprando e colecionando há muitos anos e, quando mandei fazer o closet, incluí no projeto gavetas-cofre, todas com combinação para abrir, onde eles ficam aguardando para serem usados.

Tenho peças de várias marcas e muitos modelos de cada uma delas, com valores também variáveis, desde o de um carro popular ao de um apartamento. Minha paixão por relógios é a mesma que Millos tem por motos, por exemplo, ou a que o vovô tem por selos. Acho que todo Karamanlis gosta de acumular algo; não sei se ou o que meus irmãos gostam de colecionar apenas porque não os conheço bem.

Passo perfume antes de sair e, já na sala de estar, encontro-me com a Vanda a esperar, torcendo as mãos e parecendo ansiosa.

— Algum problema?

— Infelizmente, sim. — Ela dá um suspiro. — Minha filha acabou de me ligar... perdeu o bebê.

Caminho até ela e coloco a mão sobre seu ombro, consolando-a.

Vanda trabalha comigo há tantos anos que é como se eu conhecesse toda sua família. Ela tem dois filhos adultos – uma mulher de trinta e poucos anos e um rapaz ainda na casa dos vinte. Os dois moram longe, estudaram, foram trabalhar e formaram família. O rapaz – cujo nome nunca lembro – mora nos Estados Unidos e trabalha numa empresa de tecnologia lá. Já a mulher, Aurora – esse é um nome que nunca esqueço –, mora no Rio de Janeiro com o marido, com quem é casada há muito tempo.

Ainda me lembro da felicidade de Vanda ao me comunicar que finalmente seria avó. Por isso, entendo sua tristeza.

— Se precisar de uns dias para ficar com ela... — Ela concorda. — Vou pedir ao Rômulo que providencie as passagens de avião. — Pego o celular. — Ele tenta algo para hoje ainda?

Ela soluça, e isso me corta o coração. Nunca tive contato com minha mãe, e ela cuida de mim como se eu fosse seu filho. Claro que temos uma relação profissional, mas reconheço o trabalho e o afeto dela por mim.

— Eu gostaria de ir o mais rápido possível...

Rômulo atende no segundo toque, todo esbaforido como sempre, como se estivesse fazendo algum tipo de exercício que o deixasse sem fôlego.

— Rômulo, boa noite! Preciso que compre passagens para o Rio de Janeiro se possível ainda para hoje à noite.

— O doutor vai viajar? Não vi nada na agenda que...

— Rômulo... as passagens, estou esperando na linha — corto-o.

Ele demora alguns minutos, mas ainda posso ouvir sua respiração ofegante. Será que o filha da puta tem asma e nunca me contou?

— Tem um voo para às 22h20 com previsão para chegar lá no Galeão às 23h25, posso comprar?

Confiro as horas de novo; pouco mais de duas horas para a partida do voo.

— Compre e já faça o check-in online. É para a Vanda, têm todas as informações sobre ela na minha pasta pessoal.

Ele confirma, pergunta sobre a volta, e eu peço para reservar para daqui uma semana, mas com possibilidade de mudança.

Vanda vai correndo até seu quarto, entendendo o pouco tempo que tem até chegar a Guarulhos, e eu aproveito para ligar para o Dionísio, que já está na garagem do prédio me esperando.

— Dio, você vai levar a Vanda para o aeroporto o mais rápido possível. Ela tem que estar lá em uma hora para poder embarcar para o Rio. Vá rápido, mas com segurança. — Mal desligo e ligo de volta para o Rômulo. — Conseguiu?

— Já mandei o voucher para o celular dela, chefe! — diz todo animado, e eu reviro os olhos.

— Preciso que entre em contato com aquela empresa na qual alugamos carro e motorista quando me hospedei lá.

— Já fiz isso também, chefe! — sua voz agora está animada e orgulhosa.

— Muito bem! Bom trabalho, Rômulo! Boa noite!

Juro que posso ouvir um suspiro quando desligo o celular. Rio, balançando a cabeça, achando o jeito dele muito engraçado, mesmo que me irrite na maioria do tempo. Esse Rômulo!

Uma mensagem da Viviane chega, pois agora estou oficialmente atrasado, e retorno apenas para acalmá-la:

 

 

Sento-me no banco do piano, brincando com as teclas enquanto Vanda termina de arrumar sua bagagem, pensando em como as coisas mudam de uma hora para a outra dentro de uma família. Eu já senti essa reviravolta uma vez, embora na época tenha reconhecido que foi para melhor, mas ainda assim as lembranças dela causam a dor da sensação de não saber como teria sido.

Bufo de raiva por deixar isso voltar, mesmo depois de tantos anos. Tudo o que eu queria era uma noite de sucesso para meu investimento e, talvez, um sexo casual depois do evento.

Dedilho um blues aleatório ao piano para animar meu espírito antes de sair de casa.

Odeio essas noites corridas!

 

 

— Porra, achei que você não vinha mais! — Viviane me cumprimenta assim que eu piso na galeria. — Samuel Dias é o maior sucesso! — cochicha em meu ouvido enquanto finge um abraço. — Parabéns!

Retribuo o cochicho:

— Para nós dois!

Ela gargalha, e isso chama a atenção de algumas pessoas que estão tomando champanhe e conversando em um canto. Cumprimento-os com a cabeça, pois conheço a maioria deles, mas uma loirinha me atrai com seu sorriso contido e olhos esfomeados.

— Seus olhos não são bons só em detectar talentos... — Vivi sussurra. — Valentina de Sá e Campos, filha do deputado Cristóvão Campos e neta do diplomata Augusto de Sá.

— É um bom currículo! — debocho. — O que mais você sabe?

Viviane sorri lentamente, uma expressão que eu já conheço e que significa que ela sabe tudo o que eu quiser ter de informação sobre a garota.

— Tem 27 anos, formada em Direito, faz balé desde criança e toca piano muitíssimo bem. — Faço um gesto com a cabeça, admirado. — Pelo que eu sei, trabalha no escritório com a mãe, mas está estudando para ingressar na diplomacia como o avô.

— Uma mulher de carreira, então?

Vivi me olha como se eu tivesse duas cabeças, e ergo as mãos em rendição.

— Mulher de carreira! Que mente retrógrada! O que você quer, afinal? Uma dondoquinha que fique em casa sem fazer nada o dia todo?

— Uma mulher que cuide de meu filho e que não o abandone por causa da profissão.

Ela volta a me fuzilar com os olhos.

— Isso é revoltante, Theo! Há ótimas mães que também são ótimas profissionais, uma coisa não exclui a outra, pelo amor de Dadá! — ela sempre me arranca um sorriso quando diz essa expressão. — Você quer mesmo fazer isso? Começar a sair com alguém para se comprometer? Porque, a cada vez que encontra uma possibilidade, você arranja mais requisitos! Tá foda!

— Vamos cumprimentar o artista primeiro, depois você continua me contando a vida da menina. — Sorrio para ela. — Anota aí que eu também a achei muito nova.

— Puta que pariu, desisto de te ajudar! Aquela última tinha 35 anos, e você achou que ela já podia estar entrando na menopausa e que por isso ia ser difícil emprenhar. — Rola os olhos. — Cagão!

Gargalho, aceitando um copo de uísque que o garçom veio me servir.

— Macallan? — pergunto, sentindo o cheiro.

— Óbvio, trouxe exclusivamente para você. — Ela acena, e vejo Samuel Dias. — Elogie o rapaz, diga que eu contei como ele tem se saído bem nesta noite e se desculpe pela demora. Finja ser sensível!

— Mas eu sou, não preciso fingir! — respondo rindo, bebericando o uísque.

— O que há de errado? — Ela provavelmente percebeu que não estou bebendo de verdade, apenas fazendo cena.

— Estou dirigindo. Tive que pedir a Dionísio que me fizesse outro favor.

— Justo hoje? — mesmo com o sorriso congelado em sua face, sua voz não disfarça a irritação. — O que havia de tão importante?

— Nada para você se preocupar. — Cumprimento o artista da noite: — Parabéns, eu ouvi falar que tudo tem sido um sucesso!

— Obrigado, Theo! Nada disso seria possível sem...

— Não, nada disso! Vamos celebrar a sua conquista hoje! — corto seu discurso de gratidão. Ele não precisa disso, não lhe estou fazendo um favor. — Viviane, procure um garçom para servir algo ao rapaz! O serviço poderia estar melhor...

— Vá se foder, Theo — diz baixinho entredentes, mas faz o que peço.

Assim que ela se afasta, cumprimento Samuel como sinto que devo, sem Viviane a estar no meu ouvido dizendo o que e como devo falar com ele.

— Estou muito orgulhoso de você. Sabia que seu talento seria reconhecido. — Ele agradece. — Só se lembre daquilo que conversamos no primeiro dia em que nos encontramos.

— Claro! — Sorri. — Nunca abandonar minhas raízes e minhas essência, porque são elas que impulsionam meu talento.

— Exato!

Viviane volta com duas taças de champanhe.

— Podemos brindar? — pergunta animada.

Levanto o copo de uísque enquanto eles tocam de leve as taças. Novamente busco a garota loira com os olhos e tenho a grata surpresa de pegá-la me observando. Sorrio, aceno com a cabeça, e ela faz o mesmo.

Então vamos ver no que dá!


Acordei de ressaca hoje, e não foi por causa da quantidade de bebida que ingeri no vernissage; aquela quantidade, eu nem consideraria como beber. Viviane ficou puta por ter encarecido o orçamento com garrafas do meu uísque preferido e eu não estar bebendo, por isso, depois do evento, reuni todas as que sobraram e trouxe para meu apartamento.

Pensei que ia passar uma noite solitária, acompanhado apenas de um single malte e discos de jazz, mas, no meio da minha encenação de lobo solitário, Millos ligou me convidando para ir até seu loft. Neguei várias vezes, mas a porra do homem estava tão excitado com a cerveja que havia feito que não parava de insistir.

Resultado? A bebida realmente estava um espetáculo! Enchemos a cara, mesmo sob meus protestos, pois nunca curti muito beber cerveja, e comemos uns tira-gostos tão saborosos que teci elogios a sua habilidade na cozinha.

— Ah, não fui eu quem preparou, não! — Riu. — Encomendei no Hill.

Quase cuspi aquela porra para longe e o fuzilei com os olhos.

— Porra, eu querendo que aquela merda feche e você comprando lá? Está do lado de quem afinal?

— Do meu estômago! — respondeu comendo mais um dos bolinhos. — Estava com vontade de ter um acompanhamento, mas sem nenhum saco para preparar. Me lembrei do dia em que fomos lá e quis conferir se ainda continuavam tão gostosos!

— Ainda não te perdoo por aquela arapuca! — acusei.

Há uns dois anos, Millos me convidou para comemorar seu aniversário, coisa que vez ou outra fazemos quando ele está em clima de festa. Eu lhe disse que o encontraria no local, mas ele insistiu em me buscar em casa, e, quando chegamos e percebi que era no Hill, fiquei bem puto, mas a curiosidade de saber o motivo pelo qual o boteco estava se tornando um sucesso me impulsionou a entrar.

O que eu não contava era que, além de a mim, o filho da puta tinha convidado meus irmãos. Ficamos lá os quatro como se fôssemos bons amigos, compartilhando da armadilha de Millos. Aposto que Kostas e Alex detestaram cada momento, mas sorrimos, bebemos e experimentamos os quitutes da tal da Duda Hill.

Mesmo não gostando de admitir, era fato que a mulher sabia o que estava fazendo na cozinha. Os bolinhos tão tradicionais de um boteco tinham um requinte diferente, embora mantivessem a essência. Era como se ela conseguisse melhorar o que já era perfeito, e isso, tenho que admitir, é um dom.

Confessei isso ao meu primo? Nem sob tortura! Repreendi-o por ter comprado lá, aleguei que ela podia ter mandado envenenar os quitutes – fazendo um drama desnecessário, culpa da bebida –, mas não parei de comer.

— Ah, pedi a Sami para comprar para mim — respondeu.

— Você ainda está saindo com ela? — questionei surpreso, pois havia muito tempo não via a motoqueira que, de vez em quando, orbitava em volta dele.

— Não! Somos amigos, já disse isso, mas parece que você só enxerga a boceta de uma mulher, come até suas “amigas” — fez referência a Viviane.

— Por que você não gosta dela? — Provoquei: — Porque ela é independente, dona de si mesma e diz o que pensa?

— Não! Eu não curto mulher assim para comer, mas não tem nada a ver com o fato de eu achá-la fria e calculista, e nunca escondi isso de você. Aquela mulher gela meu sangue!

Ri do seu exagero, afinal, a Vivi não tem nada de fria. Millos implica com ela pelo simples fato de a mulher ter personalidade e não se deixar comandar por ninguém. No primeiro momento ele se sentiu atraído, Vivi é um espetáculo aos olhos, e ela também não disfarçou o interesse. No entanto, bastaram alguns minutos de conversa para que se odiassem.

— Hoje ela conseguiu algo incrível — comentei. — Valentina de Sá e Campos, já ouviu falar?

Ele riu.

— Dela não, mas conheço os sobrenomes. Família paulistana tradicional, bom currículo. — Cruzou os braços e me olhou debochado. — A futura senhora Theodoros Karamanlis?

— Talvez — fui sincero. — Conversei um pouco com ela nesta noite, achei-a divertida, inteligente e sedutora. A princípio achei que era muito nova, mas é madura e independente, cheia de opinião. Gosto do tipo.

— Eu sei. — Ele se levantou e foi pegar mais cerveja. — Foi Viviane quem te apresentou a ela? — Assenti. — Não sei se gosto disso, mas boa sorte.

Gargalhei pela implicância dele com a Vivi e resolvi desviar o assunto. Falamos da Karamanlis, de música, de motos e, por fim, já muito bêbado e com sono, caí sobre o sofá dele e acordei há pouco, com torcicolo e com uma puta dor de cabeça.

— Ei! — Millos me saúda estendendo uma xícara de café. — Você está destruído!

O desgraçado ri, mas nem posso mandá-lo tomar no cu, porque minha cabeça trepida parecendo que há uma britadeira no meu cérebro. Maldita cerveja! Malditos bolinhos envenenados da Duda Hill!

— Cara, você é fraco para minha cerveja! — Millos ri. — Ficou boa, não é? — Apenas assinto, ainda tomando o café para melhorar meu ânimo. — O que está programado para fazer nesse final de semana?

— Vou trabalhar. Como saí um pouco mais cedo ontem por causa do vernissage, Rômulo separou umas pastas para que eu lesse nesse final de semana. Coisa chata, principalmente da pauta da reunião do conselho.

— Por falar no conselho... — Ele se senta ao meu lado no sofá e apoia os pés descalços sobre a mesinha de centro. — Ontem tive notícia do Kostas. — Ri. — Parece que tomou um toco feio da Kika e está cuspindo marimbondos.

Gargalho, esquecendo a dor.

— Como queria ter visto esse embate!

— Eu também.

Bufo, mesmo divertido, lembrando que o meu problema continua.

— Preciso trazê-la de volta para a empresa com urgência. Há vários projetos dos hunters parados, e o Rômulo não está dando conta de organizá-los.

Millos rola de rir no sofá.

— Esse seu assistente é muito estranho. Sinceramente não entendo como você ainda o mantém trabalhando contigo!

— Gosto de ele ser metódico. — Dou de ombros. — É organizado, embora meio desastrado, nunca perde um prazo e faz tudo o que eu peço.

— Seu próprio espelho, não é? Nunca conheci ninguém mais chato que você para organização.

Ergo uma sobrancelha para ele e olho em volta para seu loft cheio de espaço, mas sem nenhuma lógica ou senso de estilo. Millos gosta de coisas rústicas, e respeito isso, acho legal, mas é tão bagunceiro que seus móveis caros de design parecem ser cacarecos de alguma casa demolida.

Os únicos locais arrumados são: a cozinha, o “laboratório” de cerveja (como ele mesmo se refere ao local) e onde dorme. O resto... tem peças de motos para todos os lados, mesmo a oficina ficando na parte de baixo do galpão que ele chama de loft, tem barris com os ingredientes que compra para a fabricação de cerveja, roupas, discos e óculos (nunca vi tantos para uma só pessoa) espalhados por todos os lados.

O homem é um caos completo em casa, mas, se alguém entrar na sala dele na empresa, vai acreditar que é o epítome da organização. Não entendo como consegue!

— Bem, sobre a Kika, eu posso te adiantar que não precisa se preocupar — Millos continua. — Falei com ela ontem, e vai voltar.

Expiro o ar, aliviado.

— Porra, Millos, porque não me contou antes? É um alívio do cacete não ter que lidar com mais esse problema e...

— Mas ela não quer ser mudada de andar.

— O quê? Ela está fazendo exigências?

Millos penteia a barba com os dedos, enervando-me com sua calma.

— Demonstramos desespero ao mandar o Kostas pedir arrego. — Concordo com ele nesse ponto. — Ela quer aumento, continuar no andar e... — Tenta conter o sorriso, e prevejo que vem bomba, mas ele vai dar um doce do cacete para falar.

Perco a paciência e esbravejo:

— O que mais ela quer?!

— Carta branca para mandar seu irmão se foder à vontade.

— Porra!

Ponho as mãos na cabeça, sentindo a dor de cabeça voltar com tudo e ouvindo a risada debochada do Millos.

Eles querem me enlouquecer, só pode!

 

 

A dor de cabeça me acompanhou ao longo de todo o final de semana. Tomei analgésico, antiácido e – seguindo os conselhos do meu primo – mais um pouco de cerveja. No entanto, não consegui me livrar do incômodo insistente.

Trabalhei o sábado inteiro, recebendo ligações do Rômulo quase de hora em hora, a ponto de ficar puto com ele e mandá-lo caçar algo para se divertir e me deixar em paz. Compreendo que ele queira me ajudar, mas, às vezes, sua dedicação exacerbada me estressa.

Recebi um convite para jantar de uma antiga amante que vinha a São Paulo de tempos em tempos, mas neguei. Queria apenas relaxar um pouco em casa depois de ter trabalhado em páginas e mais páginas de relatórios com uma dor de cabeça chata a me distrair.

Pedi comida em um restaurante de comida vegana, achando que pudesse ser a gordura dos bolinhos do Hill – velha e rançosa, com certeza – que me deu essa indisposição e resolvi assistir a alguns filmes antigos. Sou fã de “O poderoso chefão”, então comecei a assistir a cada um deles de novo.

Novamente dormi em um sofá, mas acordei melhor e resolvi correr um pouco. Passei umas duas horas no Ibirapuera e, na volta, encomendei o almoço de domingo, sentindo-me um pouco órfão sem a Vanda em casa.

Liguei para Millos a fim de fazermos algum programa à tarde, mas ele estava com alguma mulher em algum clube ou lugar que só Deus sabia, então voltei aos relatórios, e isso consumiu o resto do dia.

Debaixo do chuveiro, rememorando este final de semana de merda, ouço meu telefone tocar, mas o ignoro. Coloquei os jatos no mais forte possível para tentar aliviar um pouco a tensão que venho acumulando nesses dias. A verdade é que preciso trepar um pouco, divertir-me, talvez fazer uma viagem ou passar um final de semana com alguém sem pensar no trabalho.

A imagem da Valentina vem à minha mente, sua conversa gostosa, seu sorriso bonito. Contudo, ainda não me sinto completamente certo de que devo me envolver com ela, principalmente por uma questão: não senti muita atração.

Sei que isso é de momento e que pode mudar, principalmente se a convivência for boa. Nem sempre sentimos atração pela pessoa no primeiro encontro, e já vivi anos demais para saber que até um primeiro encontro explosivo pode depois esfriar e o tesão ser extinto, então, não me baseio apenas nessas primeiras impressões.

Fecho os olhos e penso na garota da boate há alguns anos. Ela vem preenchendo minhas fantasias há muito tempo, talvez por ter sido gostoso daquela vez e não ter tido mais notícia dela.

Mal lembro do seu rosto, de tão bêbado que estava, sempre quando fantasio vejo os cabelos e me lembro da loucura que foi nossa transa naquele banheiro.

O telefone volta a tocar, e desligo o chuveiro, saindo do boxe para ver quem é o chato. Rio ao ver o nome do Millos. Na mosca!

— Já terminou sua maluquice sexual com a “submissa” da vez? — provoco.

— Vá se foder e não se meta nos meus assuntos — rosna. — Liguei para saber se amanhã pode ir comigo a um restaurante que um amigo inaugurou nos Jardins.

— Boa comida ou é boteco?

— Não, seu fresco, é coisa fina! Vanda ainda não estará de volta, não é?

Suspiro, resignado.

— Não, ela ainda vai ficar um tempo no Rio de Janeiro. Está certo, amanhã combinamos isso melhor no escritório.

— Okay! — diz animado. — Vai almoçar no refeitório junto aos funcionários?

— Sempre há uma primeira vez, não é? — Deixo a toalha no suporte e sigo para o closet. — Além do mais, confio que servimos algo de qualidade aos funcionários.

Millos ri.

— Essa eu quero ver! Nos encontramos no almoço, então! Boa noite, Theo.

— Boa noite!

Desligo o telefone e me olho no espelho, lembrando-me do tempo em que comia qualquer coisa e em qualquer lugar, na maioria das vezes sujo e fedendo a peixe, sentindo-me feliz e livre.

— Quem é você, Theodoros Karamanlis?


O dia nem bem amanheceu, e eu já estava suando na academia com a Sandra. Hoje, sem Millos, o treino foi mais tranquilo, seguindo o ritmo normal dos exercícios. Tomei meu café sozinho na cozinha – café puro mesmo – sentindo imensamente a falta da Vanda, de sua conversa matutina animada e seus cuidados. Posso não admitir sempre, mas gosto de ser cuidado, de sentir esse afeto, coisa tão rara na minha vida.

Limpei os pensamentos e saí para trabalhar.

— Bom dia, Dionísio! — cumprimentei o motorista como em todos os dias, já pegando meu jornal para me inteirar sobre as principais notícias do dia. — Hoje vou almoçar na empresa, mas, à noite, vou sair do escritório direto para jantar com Millos.

— Levo o doutor ou trago o carro?

— Traz o carro, vou dirigindo.

Ele assentiu, e seguimos viagem em silêncio, ele concentrado no trânsito, e eu, nas notícias de economia do país e do mundo.

Cheguei à empresa já apagando incêndios. Um dos projetos de um cliente foi reprovado por uma comissão municipal, então Kostas teve que intervir mandando seus advogados e acompanhando todo o processo. Eu, como CEO, fiquei aguentando a aporrinhação do gerente responsável pela implantação da empresa multinacional aqui no Brasil.

Nem vi a hora passar, mal tomei meus cafés tão tradicionais ao longo da manhã, irritado com esse problema, com o Rômulo borboleteando ao meu redor me enchendo de perguntas: “quer café?”, “ligo para o doutor Konstantinos?”, “quer um calmante?”. Eu quase explodi de raiva, sentindo meu estômago fritar e a cabeça estourar.

Desci para o refeitório faltavam alguns minutos para o meio-dia e, para meu espanto, ainda não tinha nenhuma refeição pronta. Conferi as horas no Omega, um dos relógios mais precisos do mundo, e estranhei a demora. Rômulo apareceu e, quando lhe questionei o atraso, fiquei sabendo que o almoço era servido a partir da 1h da tarde.

Voltei para o escritório sob a insistência de Rômulo para me encomendar o almoço em algum restaurante.

— Não! Hoje vou comer no refeitório — insisti.

Millos me lançou um desafio por eu nunca ter comido na empresa desde que foi inaugurado o refeitório para os funcionários. Pensamos no restaurante para facilitar a vida de todos e, como tínhamos espaço, decidimos montar a estrutura. Estive presente no primeiro dia, na inauguração, há alguns anos, mas depois disso não botei mais os pés no local.

Exatamente às 13h desci novamente pensando em usufruir de um almoço tranquilo e nutritivo, porém, o que encontrei me deixou sem ação. Primeiro, os funcionários ficaram estarrecidos ao me ver ali; percebi em seguida que apenas o baixo escalão da empresa – de coordenadores para baixo – estava comendo ali. Não havia nenhum gerente ou diretor no meio dos mais de 100 funcionários da companhia.

Contudo, o que mais me surpreendeu foi a comida. Não, não era ruim, pelo contrário, era bem preparada, mas sem nenhuma opção para substituição.

— E quem não pode comer carne vermelha? — questionei ao Rômulo, e ele apenas corou, fingindo não ouvir. — Há cardápios diferentes ao longo da semana?

Rômulo continuava a montar seu prato sem emitir qualquer resposta, o que não é nada típico dele, e isso me irritou. Quando não era para falar, o homem tagarelava, mas, quando eu precisava de respostas, ficava mudo!

— Rômulo! — chamei-o de modo mais enérgico. — Eu estou tentando entender o que...

— Não, não há! — escuto a voz do Alex e me viro para encará-lo. — E seu querido assistente não sabe informar porque não come aqui também. — Meu irmão pegou um prato e se serviu naturalmente. — A questão do restaurante entrou em pauta numa reunião de diretoria, mas o senhor todo-poderoso do Olimpo achou que não era uma questão relevante para a economia da empresa e pulou o assunto.

Olhei de esguelha para Rômulo buscando confirmar a informação, e ele atestou. Xinguei mentalmente.

— Uma empresa é feita de mais do que números, Theodoros Karamanlis — seu desprezo pelo sobrenome era evidente. — E, quando fiz a proposta do restaurante, era para que, além de economizar o tempo dos funcionários e agilizar o serviço, também tivéssemos convívio com eles, porém, adivinha quem foi o primeiro a pular do barco e a incentivar o “alto escalão” a ir junto?

Bufei de raiva.

— Quem é o responsável pela gestão do restaurante? — ignorei o discurso do meu irmão idealista e perguntei ao Rômulo.

— É terceirizada, a mesma empresa do pessoal da manutenção.

Merda!

— Marque uma reunião com ela e peça ao Kostas para avaliar o contrato. — Rômulo mais do que depressa escreveu em seu tablet inseparável. — Dispare um memorando para todos os diretores e gerentes, lembrando da existência do restaurante e informando que, a quem for almoçar fora, será necessário cumprir o horário, ou seja, uma hora e nenhum minuto a mais.

Rômulo arregalou os olhos e assentiu.

— Eu pouco vejo você e percebo que nem é preciso! Você não mudou nada, o mesmo prepotente de sempre. — Alex passou por mim, ainda se servindo no bufê, rindo de deboche, e percebi olhares curiosos em nossa direção.

— Eu preciso lembrar que você também faz parte da diretoria e tem acesso irrestrito ao conselho? — Cheguei perto para falar baixo: — Se fosse meu projeto, nunca deixaria chegar aonde chegou só porque não sou o CEO. Isso demonstra que está mais preocupado em ir contra a direção do que lutando pelo bem-estar dos funcionários. Não é minha função tomar conta de tudo, não sou absolutista, eu delego e confio naqueles a quem passo esse poder. — Ele fechou a cara, perdendo o ar de superioridade. — Não tenho intenção alguma de prejudicar os que trabalham comigo, pelo contrário. Mas assumo meu erro em não ter frequentado o local para dar exemplo.

— Mas o doutor também não tem horário certo para almoçar, por isso...

Balancei a cabeça em negativa, freando a defesa de Rômulo. Não tinha desculpas, o exemplo era meu, e eu tinha falhado. Terminei de fazer meu prato, sentei-me a uma mesa com Rômulo e almocei mesmo sentindo um nó na garganta por ter mostrado falha e ter sido repreendido pelo Alex na frente de todo mundo.

Merda!

Ao longo do dia, a repercussão do almoço do CEO no restaurante da empresa, bem como o efeito do memorando para os diretores e gerentes agitaram a tarde na Karamanlis. Percebi todo mundo mais atento, mesmo na correria de sempre.

Tive uma resposta positiva da equipe de Kostas com relação ao projeto vetado e pude passar a boa notícia ao nosso cliente. Recebi vários relatórios dos setores e subsidiárias ao longo do dia, inclusive da K-Eng, dirigida pelo Alex.

Meu irmão é um sonhador idealista, defensor dos fracos e oprimidos, um rebelde que só trabalha conosco para contrariar a família. Cospe sobre nosso sobrenome, mas faz questão de ostentá-lo para afrontar o pappoús. Sempre achamos que ele tentaria afundar a empresa em represália ao tratamento que teve na infância, mas não, ele não só assumiu uma empresa praticamente independente como a fez crescer. Todavia, ainda sinto que há algo por trás disso.

Estaciono o carro na vaga do restaurante, afastando as lembranças do dia e conferindo o endereço que Millos me enviou por mensagem. Estar sem o Dionísio nesta noite é bom, porque vou moderar a bebida, afinal é segunda-feira, e prefiro tomar um copo de uísque quando estiver no meu apartamento.

Tenho expectativa de o jantar ser bom; já o almoço foi complicado e indigesto com a discussão com o Alex e a demonstração de que deixei as coisas correrem soltas demais. Claro que não sou arrogante a ponto de achar que meu irmão não estava com a razão sobre as coisas que me disse, afinal, ele convive mais com os funcionários que eu, mas não gostei de ser contrariado na frente de todos.

Entro no restaurante, e a primeira coisa que percebo é a arquitetura do lugar e a decoração de bom gosto. Isso realmente não diz muita coisa acerca da qualidade gastronômica deles, mas já conta pontos em matéria de conforto. Uma recepcionista, bem-vestida e muito bonita, cumprimenta-me, e lhe dou o nome de Millos, que foi quem fez a reserva.

— Ah, doutor Karamanlis, ele ainda não chegou, mas o senhor pode esperá-lo no bar, tudo bem?

Respiro fundo, conferindo as horas e calculando que ele – se viesse de moto, como sempre – já deveria estar aqui. Olho contrariado para o bar, logo na entrada do restaurante, e meus olhos são imediatamente atraídos para uma mulher vestida de preto, com os cabelos longos, castanhos e lisos, tomando uma taça de vinho.

Não consigo ver todo o seu rosto, apenas o perfil, e isso é suficiente para que eu queira vê-la toda.

— Tudo bem — concordo com a recepcionista, que me aponta o bar.

Caminho para lá e me sento na poltrona alta ao lado da bela mulher. Não a olho, prestando atenção ao bartender que vem pegar meu pedido.

— Scotch, por favor. — Ele pergunta a marca. — The Macallan.

Sorrio satisfeito ao vê-lo pegar exatamente a garrafa que costumo beber e, então, de esguelha, olho para a mulher ao meu lado, procurando algum indício de indisponibilidade – ou problema –, como uma aliança em seu dedo.

Ela não usa nem mesmo anéis. No entanto, o que chama minha atenção são as unhas curtas, bem cuidadas, mas sem esmalte. Hoje em dia o que as mulheres mais fazem é colorir as unhas! Como eu gosto de arte, logo sou atraído pela variedade de cores e a combinação com as mãos e os formatos. Porém, não com ela; suas mãos são lindas, dedos longos, sem precisar de nenhum tipo de enfeite.

Subo o olhar e a encontro me olhando também.

— Boa noite! — cumprimento-a sorrindo assim que o bartender deixa meu copo no balcão.

— Boa noite! — ela responde. Sua voz me causa uma sensação de frenesi, e fico imediatamente excitado. Ela é linda em todos os sentidos da palavra. Seu rosto é delicado, proporcional, olhos expressivos, nariz fino e uma boca generosa. Fico imaginando como será seu sorriso aberto, não apenas esse polido e educado que me dá agora.

Paro de encará-la para não a constranger e tomo um gole do uísque, questionando se devo ou não puxar conversa com ela.

Não sou inseguro, nunca fui, mas às vezes uma mulher só quer estar quieta bebendo sem alguém para importuná-la, por isso sempre espero ver algum indício de que quer papo antes de abordar.

Dou outra olhada de soslaio.

Vamos lá! Quero saber quem você é!


— É a primeira vez que venho aqui — é ela quem faz o movimento, e gosto disso, uma mulher decidida. — Estou surpresa pelo requinte sem a frieza esperada desses restaurantes com esse nível. O pessoal é simpático e organizado.

Rio.

— Você é da área — constato e me viro para ela, girando a poltrona em sua direção.

— Sou. — Sorri finalmente, e me sinto extasiado com a perfeição do gesto. Os olhos ficam levemente puxadinhos, e sua face inteira se ilumina. A mulher fica absurdamente linda quando sorri. Meu interesse é real agora. — Mas hoje vim como cliente.

— Eu só venho como cliente — brinco. — Não sei fritar um ovo!

Ela ri de novo e toma um gole de seu vinho.

— O que seria dos restaurantes se todos soubessem ou gostassem de cozinhar? — Levanta sua taça em minha direção. — Aos que são apenas clientes e podem desfrutar de uma deliciosa refeição sem ficar avaliando cada nuance do prato.

— Justo! — Brindo com ela. — Qual sua formação?

— Cozinha francesa. Diplôme de cuisini e pâtisserie.

Uau!

Meu corpo inteiro vibra e meu pau reage ao som do seu perfeito sotaque francês. Acompanho sua boca em volta da borda da taça de vinho, o leve ondular de sua garganta sorvendo a bebida e sua língua resgatando os resquícios da bebida em seus lábios.

Abaixo a cabeça e bebo um longo gole do uísque, tentando não parecer um tarado assediador, mas louco para perguntar se ela prefere na minha casa ou na dela.

— Pelo francês perfeito presumo que tenha estudado na França... — Ela concorda com um sorriso. — Le Cordón Bleu?

— Naturellement. Estudar gastronomia na França sem ser em Le Cordón Bleu é como ir a Roma e não ver o Papa!

Gargalho com sua comparação e a saúdo com minha bebida.

— É como ir até a Escócia e não provar um verdadeiro uísque.

Levo o copo até a boca e acompanho o olhar dela em mim.

— Sua escolha de bebida me surpreendeu — ela comenta, e franzo o cenho, olhando meu bom e velho single malte e me perguntando qual é o problema com ele. — É uma bebida conservadora, nada sofisticada, ao meu entender, não combinou muito. — Aponta para mim.

Finjo-me de ofendido, embora segure a risada, e cruzo os braços.

— E você é uma entendida em bebidas também? — provoco-a.

A risada dela é tão melodiosa que parece música, seus olhos se iluminam e as bochechas ficam levemente rosadas. Perfeita!

— Nem queira saber! — Beberica um pouco do seu vinho. — Praticamente cresci cercada delas.

— Hum... — Sorrio. — O que combinaria mais comigo, então?

Sou submetido a um olhar avaliador, passando pela minha roupa, sapatos e rosto. Sinto tão intensamente sua atenção sobre mim que é como se ela pudesse olhar além das minhas roupas. Estou exposto, nu, cada músculo aquecendo à medida que seus olhos percorrem meu corpo, concentrando ainda mais desejo em minha virilha. Porra, que delícia!

— Pelo estilo de roupas e o Omega que usa no pulso — ergo a sobrancelha, surpreso pelo bom olho que ela tem —, um Dry Martini.

Gargalho sem me conter, e ela me segue, ambos divertidos pela comparação que ela faz. James Bond? Sim, eu sei que o mais famoso espião dos cinemas só usa relógios da Omega, mas não me vejo com uma taça de Dry Martini na mão, exigindo do bartender: “batido e não mexido”. Gosto de pensar que sou mais rústico que isso. A prova é meu single malte caubói.

— A sofisticação é só uma casca, pode acreditar. Estou longe de ser tão refinado quanto o Bond, ou tão habilidoso. — Ela levanta uma sobrancelha questionadora, demonstrando que não acredita nessa minha “humildade”. — A propósito... — respiro fundo, indo devagar — meu nome é Theo.

Mais uma vez seu sorriso faz meu pau reagir, ficando dolorosamente duro e pulsando na cueca. Que porra de atração é essa? O que essa mulher tem? É divertida, a conversa está fluindo bem, além de ser linda, mas essa atração... não é assim que acontece, ainda mais em um ambiente tão frio quanto o em que estamos.

— Maria Eduarda. — Ela estende a mão, e eu a seguro.

Tudo em volta parece vibrar, e noto que ela também sente isso. Meu sorriso se expande. Não tiro os olhos dos seus. A energia gerada pelo toque esquenta meu corpo e aumenta minha percepção do dela.

Maria Eduarda tem um belo pescoço, e o cheiro suave de um bom perfume parece advir exatamente do ponto onde eu gostaria de passar minha língua. Os ombros são delicados, os braços longos e sem nenhum contorno muscular demonstram que ela não mantém regularidade de exercícios, sendo magra ao natural. Os peitos no decote do vestido são pequenos, porém, redondos e firmes.

O vestido, embora justo, tem um tamanho comportado, por isso não posso ver suas coxas – o que é uma pena –, tão somente as panturrilhas e uns pés lindos – esses, sim, com as unhas pintadas de vermelho – em sandálias de cor clara.

Apesar de ser uma mulher atraente e bonita, não é uma beleza exótica. Sem o sorriso, ela passaria a ser apenas mais uma mulher bonita como muitas outras que existem por aí, porém, não para mim. Algo nela chamou minha atenção desde o primeiro momento. Mesmo com ela de costas, sem nem ao menos ver seu rosto direito, senti-me atraído.

Agora ela me deixa em chamas, tentado a ser direto e lhe propor uma noite de pura sacanagem. Eu o faria se o local fosse mais descontraído e tivesse mais abertura da parte dela, não só a confirmação de que se sente atraída por mim. Em uma boate, por exemplo, eu seria mais efusivo.

— É um prazer enorme encontrá-la aqui — mesmo sendo sutil, quero deixar claro que ela chamou minha atenção. — Salvou minha noite, pode ter certeza.

Ela sorri e solta minha mão.

— Quase não vim — confessa e dá de ombros. — Assunto chato, companhia chata.

Gosto da sua sinceridade.

— Negócios? — Ela assente, e eu adoro a notícia. — Geralmente os meus jantares têm o mesmo motivo.

— Então veio para uma reunião também?

Nego com a cabeça antes de responder:

— Não, hoje só vim comer. Meu primo é amigo do dono daqui e me recomendou o restaurante.

— Isso é bom, espero que esteja à altura da sua expectativa.

— Ainda que não esteja, Maria Eduarda — cruzo os braços e a encaro —, no momento estou ligando o foda-se para a comida ou o restaurante.

Ela fica séria, mas não desvia os olhos.

— É mesmo?

Não respondo de imediato, curtindo esse jogo entre nós. Aposto que ela sabe o motivo pelo qual não tenho mais nenhum interesse na gastronomia do local. Ela quer que eu diga! Quer que eu dê o passo adiante, que demonstre o interesse claramente, o que é um ótimo sinal.

Deixo o silêncio e o ar vibrar entre nós por mais alguns momentos, sem tirar meus olhos de suas belíssimas íris castanhas.

— Porque minha fome é outra desde que encontrei você aqui. — Ela segura o fôlego. — Porque nossa conversa está cada vez mais interessante. — Abaixo o tom de voz: — Porque olhar você e sentir seu cheiro acordaram meus sentidos mais do que qualquer nuance de um prato é capaz de fazer.

Minhas mãos coçam de vontade de tocá-la, de sentir novamente aquela energia sexual percorrendo meu corpo, emanando dela. Não o faço porque ainda não vi sinais suficientes para avançar a esse ponto, e eu sempre espero a permissão de uma mulher para tocá-la.

— Você nem me conhece — ela responde um pouco ofegante.

— Estou louco para conhecer. — Encosto-me melhor à poltrona e me afasto um pouco dela para demonstrar que não a estou pressionando. — Não tenho pressa, Maria Eduarda, só preciso que saiba que você me atrai e que, embora esteja sentado aqui, estou louco para segurar sua nuca e provar o sabor desse vinho que bebe, diretamente nos seus lábios.

Ela suspira e desvia o olhar.

Esse é o momento quando ou eu tomo um fora, ou venço o jogo. Porém, podem dizer que é arrogância, eu sou um homem vivido e, se cheguei até aqui, se me expus dessa forma, é porque estou apostando minhas fichas em que o tesão é recíproco.

— E se eu for casada ou comprometida?

Bingo!

Pela entonação da pergunta, sei que ela não é.

— Eu me desculparei, mesmo ainda sentindo esse desejo maluco de te beijar, e me levantarei, indo para a mesa que meu primo reservou. Não trepo com comprometidas.

Ela levanta as sobrancelhas e assume uma expressão provocadora.

— Não trepa? — Ri, cínica. — Você é muito confiante achando que basta jogar meia dúzia de palavras em cima de uma mulher sozinha em um bar para garantir uma trepada.

— Eu sou confiante. — Aproximo-me a fim de lhe demonstrar de onde vem minha confiança. — Mas não são as “meia dúzias de palavras” que vão fazer você ter vontade de trepar comigo. — Seguro sua mão e com a outra deslizo meu dedo indicador do seu punho até o cotovelo, vendo todos seus pelos se arrepiarem com o leve contato. — É isso!

Maria Eduarda fica um tempo olhando o trajeto do meu dedo sobre sua pele, assistindo, como eu, à deliciosa reação causada por meu toque. Não falamos nada, apenas acompanhamos o leve vai e vem que eu faço no seu antebraço, apreciando o contato. É nítido para mim que ela está avaliando todas as possibilidades e talvez tentando entender como isso é possível.

Já não escuto mais nada, os sons das conversas, a música clássica baixa que toca, a correria do bartender limpando copos, organizando garrafas ou preparando aperitivos. Tudo ao redor some, e só sinto a potência do tesão que ela despertou em mim, esperando que sinta o mesmo e que admita isso.

Ela sorri, mas puxa a mão, rompendo o contato.

— Como já disse, a gente nem se conhece.

— Sou paciente, Maria Eduarda. — Recebo um sorriso tímido. — Vou adorar cada momento até te conhecer. — Afasto-me dela novamente e peço mais uma dose de uísque. — Aceita mais uma taça?

Aponto, mas ela nega, olhando para a entrada do restaurante.

— Infelizmente, não. — Respira fundo. — Meu compromisso chato acaba de chegar.

Viro-me para ver quem é o sortudo que vai jantar com ela, mas só vejo o Millos entrando com uma cara debochada e um sorriso contido. Olho para Maria Eduarda novamente e confirmo que ela não só se levantou à espera do Millos, como parece muito contrariada com a presença dele.

Por que Millos iria marcar para jantar com uma mulher e comigo ao mesmo tempo? As palavras “jantar de negócios” me causam um alerta, mas me recuso a enveredar pelo rumo que meus pensamentos querem ir.

— Ah, desculpem o atraso! — Millos exclama, indo cumprimentá-la. — Que bom que já se conheceram. — Maria Eduarda franze a testa e me encara. — Theo, eu acho que chegou a hora de conversarmos pessoalmente com a Duda.

Porra!

Levanto-me como se tivesse sentado em um formigueiro, estarrecido demais para articular qualquer palavra educada que não seja um palavrão bem cabeludo.

Duda? Olho-a de cima a baixo sem poder acreditar que a mulher que me atraiu como se tivesse um ímã é a infernal dona do boteco que tem feito minha vida um suplício por causa de sua teimosia.

— Theodoros Karamanlis? — ela parece tão chocada quanto eu e já não há nada além de desprezo em sua voz ao falar meu nome.

Desvio um olhar mortal para meu primo, que, além de parecer surpreso, está também muito interessado nessa interação entre nós.

Eu vou te matar, seu filho da puta!


— Aceita mais uma taça?

Minha vontade é de aceitar e pagar para ver Theo jogando todo seu charme para mim, usando armas pesadas para conseguir provar que temos realmente toda essa química que ele demonstrou com um simples roçar de dedos em meu braço.

E temos, sim! Não sou hipócrita a ponto de me enganar dizendo que não senti nada por ele. Assim que se sentou ao meu lado aqui, a esse balcão, meus olhos foram imediatamente atraídos para ele. Quando me cumprimentou, sua voz fez meu corpo inteiro reagir de uma forma estranha, e tive a nítida sensação de que o conhecia de algum lugar.

Porém, foi só quando se virou em minha direção, depois de eu ter puxado assunto descaradamente, que fiquei sem fôlego. Seus olhos são de um azul que eu nunca poderia esquecer caso já os tivesse visto. No entanto, a sensação de reconhecimento persiste. Ele é muito bonito, além de ter um sorriso de arrancar a calcinha de qualquer mulher.

Se Manola estivesse aqui comigo, com certeza iria dizer que ficou emocionada e que molhou a calcinha. Entretanto, aprendi com o tempo e com as responsabilidades a ser mais comedida e a não me deixar levar sem pensar. Um rosto e um corpo bonitos não querem dizer muita coisa sobre o caráter de alguém.

Estou para aceitar a proposta de mais uma taça e alongar o papo, mas minha visão periférica capta um movimento na entrada do restaurante, e me sinto murchar ao ver Millos Karamanlis adentrando. Esse homem não se cansa de tentar comprar o Hill, é um saco!

Quando me ligou, eu estava pronta para dizer um sonoro NÃO a ele, mas insistiu que era importante, que tinha uma situação que me interessava e por isso achava melhor conversarmos para tentar um acordo. Isso me deixou intrigada e temerosa, por isso estou aqui, neste momento, tendo que recusar a companhia agradável e intrigante do Theo.

— Infelizmente, não — respiro fundo, respondendo ao delicioso oferecimento desse deus com cuja companhia o destino me presenteou enquanto eu esperava pelo diabo. — Meu compromisso chato acaba de chegar.

Levanto-me, resignada, para receber o homem barbudo e muito estiloso, devo confessar, mas que é uma pedra no meu sapato.

Millos abre um sorriso e se aproxima para me saudar como sempre faz, com um beijo na bochecha e um curto aperto de mãos. Tenho verdadeiro trauma dele, de estar sempre rodeando minha vida à espera de um fracasso que o deixe comprar o bar da minha família, minha casa, o legado do meu pai. Contudo, tenho de admitir que, embora pondo pressão, ele sempre me tratou muito bem e com muita simpatia.

— Ah, desculpem o atraso! — Ele olha para o Theo e depois para mim. — Que bom que já se conheceram. — O quê? Como assim? Eles se conhecem?! — Theo, eu acho que chegou a hora de conversarmos pessoalmente com a Duda.

Millos Karamanlis conhece o Theo!

Meu sensual companheiro de bar se levanta e me encara de um jeito completamente alarmado. O olhar sedutor sumiu, bem como seu sorriso franco e relaxado. Agora apenas incredulidade está estampada em seu rosto bonito.

Oh, meu Deus, não pode ser!

Claro que eu acharia que o conhecia, afinal, já vi fotos suas em revistas da alta sociedade e em jornais, embora creia que nenhuma delas lhe tenha feito jus. O homem ao meu lado não é simplesmente “Theo”, é o diretor da porcaria da empresa que comprou toda a quadra onde fica o Hill e que vem tentando de todas as formas me tirar do meu lugar!

— Theodoros Karamanlis? — minha voz soa tão incrédula como me sinto.

Como não percebi quem era esse homem? Como pude me sentir atraída por ele a tal ponto de fantasiar uma noite ao seu lado? Eu o quis como havia muito tempo não me lembrava de ter querido alguém, uma atração que não sentia desde a época em que ainda pensava que tinha o mundo aos meus pés e que conquistaria tudo o que sonhasse ter.

Millos fica um tempo com a sobrancelha erguida, olhando de um para o outro, até que resolve quebrar o gelo.

— Podemos ir para a mesa?

Eu o olho ainda sem entender que tipo de palhaçada é essa. Eles fizeram de propósito? Será que Theo veio primeiro para tentar me seduzir, afinal, nós nunca fomos apresentados, ou foi só uma coincidência ele ter chegado antes e aí resolveu brincar comigo?

Não é possível que ele não soubesse que eu sou a Duda Hill!

— Millos, o que você pretende, afinal? — Theo questiona com a voz demonstrando toda sua irritação.

— Eu não acho que temos algo para conversar. — Pego minha bolsa, que estava pendurada na poltrona giratória. — Não vou mudar de opinião, não pretendo vender o Hill.

— Por que não? — Theo questiona de repente, e eu o olho. — O que uma chef formada por Le Cordón Bleu pode querer com um boteco? — Fecho minhas mãos com força na alça da bolsa. — Ou esse papinho de Paris e seus diplomas é só um sonho fantasioso de uma dona de bar?

Millos emite um palavrão baixo, prevendo que o tempo irá fechar. Ele me conhece bem, já me irritou várias vezes e saiu do Hill com uma resposta à altura.

— O que eu quero ou não só diz respeito a mim, doutor Theodoros Karamanlis — tento falar o mais baixo possível, mas meus olhos brilham de indignação, e espero que ele entenda a mensagem. — O boteco é meu, faço com ele o que eu quiser, e de uma coisa você pode ter certeza: Não. Vou. Vender. Para. Vocês! Ficou claro agora, ou preciso desenhar? — Olho para o Millos.

— Ei! Vamos nos sentar à mesa e conversar com calma! — ele tenta apaziguar o clima tenso entre mim e Theodoros. — Theo... — pede sua colaboração, mas o homem parece estar soltando fogo pelas ventas e não lhe dá atenção. — Vocês estão chamando a atenção dos outros clientes e...

— Foda-se! — falo em uníssono a Theodoros, e Millos ri, mesmo ainda nervoso.

O maître aparece para nos conduzir até a mesa reservada, e Millos faz um gesto para que o sigamos até lá. Encaro Theodoros Karamanlis por um tempo, ambos medindo forças para ver quem cede primeiro.

— Vamos? — Theodoros pergunta, e eu assinto, passando por ele sem nem ao menos emitir uma palavra. A mesa que Millos reservou é discreta, no fundo do salão, sem nenhuma outra por perto. Sento-me com as costas eretas, sem tirar a alça da bolsa do ombro, mostrando a eles a minha contrariedade por estar ali.

— Vamos fazer um pedido?

— Não, Millos, não pretendo ficar para comer — sou direta. — Preciso apenas que me fale sobre o assunto que não quis adiantar pelo telefone. O que vocês têm a ponto de me fazer querer fechar um acordo?

Theodoros olha para ele parecendo muito mais irritado e bufa de raiva. Millos balança a cabeça e começa a explicar:

— Duda, há alguns meses estamos de posse de uma...

— Enorme quantia de dinheiro — Theodoros o interrompe. — A proposta de compra aumentou, e seria interessante a senhorita reconsiderá-la, afinal, pode abrir um pequeno bistrô para exercer o que aprendeu em Paris.

— O quê? — Millos o encara, confuso. — Olha, eu desisto! — Chama um garçom e pede uma cerveja. — Eu realmente acho que podemos chegar a um acordo, mas vocês dois são teimosos como mulas!

— Não quero nenhum acordo com vocês! — declaro. — Tudo o que quero é que parem de ficar rondando minha propriedade como dois abutres!

— Boa definição, senhorita Hill. — Theodoros se inclina por sobre a mesa para ficar mais próximo a mim. — Seu negócio está agonizante e em breve perecerá, e, quando isso acontecer, irá lamentar não ter abaixado um pouco sua crista e ter aceitado minha oferta, porque só sobrará carcaça aos abutres!

— Theo! — Millos o repreende, mas depois começa a rir. — Que conversa de doido, viu? Não esperava por isso! — Bebe sua cerveja. — Confesso que está um pouco divertido.

— Vá se foder, Millos! — mal fala isso e volta a me olhar. — Não irei repetir a oferta, Duda Hill. A aconselho a aceitar o mais rápido possível.

Meus olhos faíscam de raiva, mas meu corpo traidor se arrepia inteiro ante a expressão dele. O homem é sexy demais, insuportavelmente arrogante, mas ainda assim, muito sexy!

— Não estou interessada — uso o mesmo tom de voz que ele. — Vendo para qualquer um, menos para vocês. — Ponho-me de pé. — Espero que desfrutem do jantar sem minha companhia. Eu não conseguiria comer aqui com vocês sem ter uma enorme indigestão.

Theodoros se põe de pé também, e Millos, com um sorriso debochado, cruza os braços e fica só esperando o próximo passo do seu chefe.

— Não diga depois que não a avisei, Duda Hill.

Rio, passando perto dele para sair do salão.

— Não tenho medo de suas ameaças, Theodoros Karamanlis. — Aproximo-me para falar bem perto do seu ouvido: — Cão que ladra não morde!

Ele segura meu braço e abre um sorriso – puta merda! – cheio de malícia.

— Eu morderei, Maria Eduarda, e o farei tão gostoso que você pedirá mais!

Olho para sua mão em meu braço, e ele me solta. Respiro fundo para controlar o formigamento em meu corpo e a tremedeira em minhas pernas e saio do restaurante o mais rápido possível.

— Deseja que traga seu carro, senhorita? — o manobrista me aborda na porta do restaurante.

— Po-por favor! — Merda! Respiro fundo mais uma vez. — Sim, obrigada.

Não é possível que esse homem ainda continue mexendo com minha libido desse jeito! Durante todo o tempo em que estávamos lá medindo forças, essa tensão sexual nunca deixou de pairar entre nós. Acho até que o Millos percebeu isso!

Droga! É o Theodoros Karamanlis, Duda! Inimigo, o diabo em pessoa, que quer fazer de tudo para destruir tudo o que você tem, tudo pelo qual você lutou para manter depois que seu pai se foi!

Claro que seria muito fácil aceitar uma oferta melhor, pagar as dívidas e abrir um “bistrô”, como ele mesmo aconselhou, mas só eu sei o quanto meus pais amavam aquele pedacinho no meio da Vila Madalena, o quanto se orgulhavam de tê-lo comprado juntos, com muita luta e esforço.

Não vou deixar que um homem arrogante ponha tudo ao chão e destrua todas as lembranças que tenho daquele lugar. Não só do Hill, mas da casa onde mamãe e papai passaram seus últimos momentos antes de me deixarem. Não! De jeito algum eu irei permitir isso! Se precisar vender, o farei para alguém que se comprometa a manter o imóvel, e não para uma empresa que quer demolir tudo para erguer ali algum prédio ou shopping!

Entro no carro e dirijo para casa, ainda sentindo o toque dele reverberando pelo meu corpo, sua voz arrepiando os pelos da minha nuca e seu olhar... Há algo naquele olhar que me desperta lembranças, talvez pela tonalidade – a mesma do mediterrâneo –, ou o jeito de me olhar como se estivesse realmente faminto.

Chego a casa e encontro tia Do Carmo jantando sozinha na sala e assistindo à novela.

— Ué, não ia jantar fora? — questiona quando ataco suas panelas.

— Ia, mas o lugar estava tóxico demais para meu estômago. — Ela franze a testa, sem entender, e eu rio. — A companhia era desagradável.

— Ah, sim.

— Cadê a Tessa? — pergunto enquanto me sirvo de deliciosas costelinhas de porco e angu, sentindo meu estômago roncar e minha boca salivar. Adoro a comida dela!

— Chegou da escola, fez dever, tomou banho, jantou e dormiu. — Rio do relatório completo. — Aquela menina é um anjo!

— Sim, ela é! — concordo, cheia de orgulho.

— Descobriu, pelo menos, o que aquele pessoal da Karamanlis queria?

Sento-me ao seu lado no sofá com o prato na mão.

— Aumentaram a proposta! — Dou de ombros. — E acabei conhecendo o CEO, Theodoros Karamanlis.

— Hum, já vi fotos dele naquela revista que assino. — Rolo os olhos, pois sempre achei um desperdício de dinheiro comprar uma revista que fica cobrindo a vida de artistas e da alta sociedade paulistana. — O homem é um pedaço de mau caminho.

Acompanho-a em suas risadinhas, achando uma graça que minha tia, solteirona e virgem, fale isso de um homem. Eu nunca soube o motivo pelo qual ela nunca quis se casar, nem mesmo namorar. Perguntei a ela se algum dia teve pretensão de ser religiosa, mas negou, dizendo que não tinha o dom.

Tia Do Carmo é uma caixinha de segredos bem guardados, essa é a verdade. Do mesmo jeito que ela adora acompanhar a vida alheia nas revistas e nos programas de fofocas, não abre a boca para falar da sua, nem mesmo para mim.

Ela é como uma mãe para mim e cuida de Tessa com tanto amor e dedicação que eu não poderia pensar em uma avó melhor para minha menina, mas não quer saber de arrumar alguém, nem mesmo para se distrair um pouco.

Há uns dois anos veio trabalhar conosco um senhor muito bem-apessoado, Joaquim, que ficava na recepção. O homem arrastou um bonde pela minha tia – que é uma linda senhora de 55 anos –, mas ela nem ao menos lhe deu um segundo olhar.

Enfim, eu aprendi a aceitar que ela é feliz assim, mesmo porque não estou indo para um caminho diferente, pois mal tenho tempo para namorar alguém. Além do meu namorado francês, tive mais uns dois já aqui no Brasil. Claro que já tive algumas transas avulsas, sem nenhum compromisso, mas já faz tanto tempo que nem isso acontece que, se hímen se regenerasse, o meu certamente já estaria completo de novo.

— Ele é bonito, sim, mas muito arrogante! — informo, tentando não demonstrar o quanto fiquei interessada no Theo. — De qualquer forma, recusei mais uma vez a proposta.

— Você tem certeza disso, minha filha? O sumiço do agiota tem tirado meu sono. Você sabe como essas pessoas são, por mais que sejam conhecidos. Além do mais, te vejo trabalhar como louca e entregar o dinheiro todo para custear essas dívidas. — Ela aponta para a casa, cheia dos mesmos móveis da época do casamento dos meus pais. — Duda, a gente mal tem se aguentado em pé!

— Não nos falta nada, tia!

— Não, Duda, não estou me queixando. Realmente não nos falta nada, temos comida, um teto, e Tessa pode estudar em uma boa escola, mas vale a pena se sacrificar do jeito que está fazendo? Você não tem tempo nem para namorar!

Gargalho.

— Essa é uma das minhas menores preocupações, tia.

— Eu sei, filha, e é isso que me preocupa. — Passa a mão no meu rosto, e fecho os olhos, gostando do carinho. — Há muitos anos você só cuida das pessoas, Duda. Assume responsabilidades demais e esquece de cuidar de si mesma.

— Estou bem! — afirmo, mas meu coração entende e concorda com ela. — Assim que terminar de pagar tudo o que devemos, vou poder cuidar de mim também, não se preocupe.

Ela suspira, resignada, pois me conhece bem e sabe que sou muito teimosa. Decidi lutar até o fim para manter a única coisa que me resta e não vou descansar até conseguir estar em paz com isso, mesmo que um certo CEO muito gostoso me encha de ameaças.

Inclusive uma que pareceu mais uma promessa...


Maria Eduarda passa por mim deixando para trás o rastro delicioso do seu perfume, agitando meu corpo. Tenho vontade de segurá-la por mais tempo, de sair com ela para algum lugar onde possamos dar vazão à atração que sentimos um pelo outro desde que nos encontramos no bar do restaurante.

Todavia, não dá para simplesmente ignorar quem somos!

Fico um tempo de pé, mesmo depois de ela já ter saído do restaurante, raciocinando quais seriam as consequências se Millos simplesmente não tivesse aparecido. Olho para meu primo, tranquilo, tomando sua cerveja e provavelmente a enchendo de defeitos.

— Isso foi a pior merda que você já aprontou! — digo, atraindo a sua atenção. — E olha que você tem um longo currículo de merdas!

— Vá se foder, Theo! — Fica sério. — Eu só estava tentando um acordo entre nós.

Rio, seco, não achando nenhuma graça e não comprando nem um pouco essa conversa mole de “acordo”. Millos nunca dá ponto sem nó e me conhece bem para saber que Duda seria extremamente atraente para mim. O desgraçado fez de caso pensado, só nunca irá admitir.

Pego o celular, que deixei em cima da mesa, e, sem nenhuma palavra ou mesmo um olhar, afasto-me de Millos, indo em direção à saída do restaurante.

Ouço-o me chamar, mas não me segue, e ando decidido até a calçada, encontro o manobrista e peço meu carro. Não tenho mais clima para jantar, muito menos para olhar aquela cara debochada. Bufo, frustrado demais, com fome e com o desejo sexual insatisfeito.

Porra!

Já no carro, não dirijo diretamente para casa, mas a esmo, pensando na loucura que foi o começo da noite. O conhecimento de quem era a mulher ao meu lado deveria ter sido suficiente para aplacar minha vontade de devorá-la toda, mas nem mesmo a diminuiu.

É uma das raras atrações fortes que já me aconteceram. Geralmente não é assim, é mais um jogo de disponibilidade e vontade, uma mulher gostosa e interessante e pronto! Raramente sou atraído a alguma como aconteceu com Maria Eduarda hoje. Eu olhei para ela e a quis.

É primitivo demais até para mim, mas aconteceu. Quem ela era, o que fazia ou mesmo sua disponibilidade – embora, se fosse casada, não rolaria – não importaram para mim naquele momento. Depois, a conversa, o sorriso, o jeito como o corpo dela reagiu ao meu, tudo isso só potencializou o que foi sentido ao primeiro olhar.

Duda Hill!

Paro o carro em frente ao boteco antigo na Vila Madalena, olhando sua fachada recentemente reformada, o sobrenome da família dela na entrada e algo que nunca me chamou atenção antes, um segundo andar com janelas grandes de vidro, seguindo a mesma arquitetura do bar, tijolos à mostra e cimento queimado.

Franzo o cenho ao me lembrar do dia em que estive no local, pois não vi nenhum mezanino ou mesmo escada de acesso. Há uma porta ao lado da fachada principal, pintada com outra cor, mas que não pertence ao prédio vizinho, já de propriedade da Karamanlis.

Ela mora em cima do bar? Novamente olho para o alto e, no exato momento, uma luz se acende em um dos cômodos, iluminando a janela com cortinas claras. Um apartamento!

Como eu nunca soube disso? Para mim, o imóvel era puramente comercial, como todos os outros do entorno, nunca sequer desconfiei que a irritante mulher pudesse morar no local.

Uma sombra passa pela janela, e meu pau pulsa na calça só pela possibilidade de ser Maria Eduarda se preparando para dormir. Fecho os olhos, aproveitando a total falta de movimentação na rua – ao que parece ninguém funciona às segundas-feiras – e imagino como ela seria apenas vestindo uma calcinha ou até uma camisola sexy.

Toco-me sobre a calça, sentindo como já estou em completa ereção, então abro os olhos e xingo, voltando a pôr o carro em movimento e saindo daqui o mais rápido possível. Eu pareço um maldito stalker tarado, parado em frente ao que suponho ser o apartamento dela e fantasiando.

Caralho!

 

 

Termino de assinar o último documento e o entrego para Rômulo, que sai apressado a fim de entregá-lo para o jurídico. Temos um maldito setor de correspondência e vários boys para esse trabalho, mas meu assistente é tão controlador com suas responsabilidades que ele mesmo gosta de entregar os documentos e de pegar a assinatura de quem os recebeu no caderno de protocolo antes de os colocar no sistema.

Eu sei que é motivo de piadinha aqui seu jeito burocrático, mas é exatamente por isso que confio nele para lidar com minhas coisas na empresa. Rômulo é responsável, organizado e sua “burocracia” nada mais é do que uma forma de nos garantir, proteger nosso trabalho e a companhia.

Gemo, colocando a mão na têmpora, amaldiçoando-me por ter consumido uma garrafa inteira de uísque ontem, depois que cheguei a casa, frustrado demais sexualmente e puto comigo mesmo por estar me sentindo assim pela Duda Hill.

Troquei mensagens com Millos, ameaçando sua integridade física por conta da palhaçada de ontem. Claro que ele fingiu não ter feito de propósito, mas se esqueceu de que o conheço bem. Eu só não sei o que ele pretende ainda. Contudo, não há dúvidas de que está tramando algo.

Uma notificação de mensagem chega ao meu celular. Pego-o, lendo a mensagem deixada pela Viviane acerca de um concerto musical e uma exposição de gravuras que irá acontecer esta semana. Dispenso, sem nenhuma vontade de comparecer, mas ela insiste.

 

 

 

Sim, ela tem razão!

Preciso estar focado no que realmente é importante para mim nesse momento. Uma atração como aconteceu entre mim e Maria Eduarda ontem é garantia de uma foda inesquecível, mas só isso, não resolve meu problema, e o tempo está se encurtando cada vez mais. Preciso de uma esposa e de um filho!

 

 

 

Envio a mensagem para ela e me recosto na cadeira, olhos fechados e dedos nas têmporas, querendo a porra de um analgésico para poder trabalhar sem que pareça que está ocorrendo alguma demolição na minha cabeça. Não devia ter bebido tanto sem ter comido nada!

Cheguei a casa já arrancando a roupa e entrando no banho. Demorei por lá, esperando que os jatos fortes de água fria abaixassem a temperatura do meu corpo e trouxessem minha racionalidade de volta. Não costumo me impressionar tanto assim por uma mulher; poucas foram as que mexeram comigo dessa forma.

Olhei para baixo, e lá estava a evidência de que nem mesmo a água iria resolver o problema. Encostei a testa na parede fria e toquei meu pau, gemendo com a sensação, pronto para gozar apenas com os estímulos da noite.

Eu gosto muito de trepar, adoro ser masturbado por mãos femininas – às vezes, pés também –, mas nunca fui um punheteiro. Nunca! O prazer de me tocar nunca se comparou ao de ser tocado, por isso, quase não me masturbo. Porém, ontem, não teve jeito! O cheiro do perfume dela estava impregnado em minhas narinas, a sensação de sua pele se arrepiando sob meu toque, o sorriso, os olhares... Em poucos minutos gozei como um louco, sujando a parede do boxe, gemendo dolorosamente de vontade de senti-la.

Pela primeira vez em muito tempo, os cabelos cor-de-rosa não apareceram durante meu gozo, e amaldiçoei essa percepção. A verdade é que troquei o objeto da minha fantasia. No entanto, diferentemente da garota de anos atrás, agora eu tenho um rosto, um nome e sei onde mora.

— Estou fodido! — falo em voz alta, achando que estou sozinho no escritório.

— Vou pegar um comprimido, chefe! — a voz de Rômulo faz com que eu me aprume, arregalando os olhos em sua direção.

— Mas que porra, Rômulo! Como você consegue ser tão silencioso às vezes? — digo emputecido por estar fantasiando com a mulher de novo em pleno horário de trabalho e sob as vistas do meu assistente.

— Eu percebi que o doutor está com dores de cabeça. — Ele vasculha sua bolsa. — E... Ah! Achei! — Sorri como se tivesse inventado a fórmula da água. — Paracetamol!

Ele vai até o aparador onde ficam as bebidas a fim de pegar um copo d´água para eu tomar com o comprimido, porém, peço que me traga café.

— Tem certeza? — titubeia.

— Vai acelerar a absorção e fará efeito mais rápido.

— Chefe, isso é perigoso!

— Anda logo, porra, tem uma britadeira no meu cérebro!

Ele fica nervoso, suas mãos tremem, fazendo o café respingar sobre o móvel, e eu bufo de impaciência. Rômulo é prestativo, um ótimo funcionário, mas me questiona muito, além de ser um tanto desastrado.

Mal engulo o comprimido, e o traidor, quer dizer, Millos entra no escritório.

— Tive uma ideia e vim dividi-la com você. — Olha a xícara na minha mão. — Cheguei em boa hora! Eu gostaria de um café também! — pede ao Rômulo, e eu fecho a cara.

— Esse não é o trabalho dele — corto-o. — Rômulo, vá até o jurídico e veja se Kostas já conseguiu adiantar a papelada que faltava.

— Sim, doutor! — O assistente sai correndo da sala.

— Quer a porra do café? Pegue você mesmo! Não dê ordens ao meu assistente!

Millos levanta as mãos pedindo calma e vai até a máquina, escolhendo um sabor e um tipo de preparação antes de voltar para próximo de mim.

A dor de cabeça aumentou um pouco, mas espero que, com o remédio do Santo Rômulo, eu melhore em breve. Além disso, não quero dar bandeira de que enchi a cara na noite passada e suportar as provocações de Millos.

— Qual foi a magnífica ideia que o fez levantar a bunda de sua cadeira e vir até aqui encher meu saco?

Millos ri.

— Estamos de bom humor hoje, hein? — Pega o café e se senta. — Você quer tirar a Duda Hill do imóvel, não é? — Franzo o cenho para ele, achando desnecessário responder, esperando que tenha sido uma pergunta retórica, para o bem de sua inteligência. — Já reparou que o único pub daquela quadra é o dela?

— Você comeu merda no café da manhã? — pergunto, e ele ri. — Claro que ele é o único, os outros imóveis já estão todos vazios porque compramos todos!

— Do outro lado da rua têm duas casas de show, uma boate de strip de luxo, dois restaurantes de comida japonesa e uma pizzaria famosa. — Ele cruza os braços. — Esse foi um dos motivos de o pub ter ficado tão movimentado, a diversidade de empreendimentos próximos. É uma área à qual os jovens vão para se divertir, e ela conseguiu agregar boa comida e boa música em um só local.

Faz sentido, claro. Ela aproveitou o movimento já existente e ofereceu um diferencial, um lugar para dançar, curtir com os amigos, arranjar companhia e ainda comer seus bolinhos famosos e premiados. Sorrio de leve, sentindo-me levemente excitado por ela ter tanto tino. Gosto de mulheres inteligentes!

— Você a isolou no momento em que comprou todos os imóveis e mandou os estabelecimentos fecharem. Ela é a única opção da área...

Ele se interrompe ao ouvir uma batida à porta.

— Pode entrar — autorizo, sabendo que não é o Rômulo.

Kostas aparece, seu tamanho e largura preenchendo a entrada da sala, o olhar azul e arrogante, o sorriso debochado e os cabelos negros penteados para trás com uma espécie de pomada de brilho molhado. Meu irmão é a cópia do nosso pai, e isso chega a me causar arrepios.

— Bom dia! — cumprimenta Millos e se senta ao seu lado. — Theodoros, tenho uma notícia boa e uma ruim, qual quer primeiro? — Dá risadas debochadas, e Millos o segue.

Isso é sério? Levanto uma sobrancelha, olhando-o carrancudo.

— Fala logo, Kostas! — ordeno.

— Bem, já que você não tem nenhum senso de humor. — Pisca para Millos. — Nós já sabíamos disso, mas não custava tentar! — Meu primo assente, e eu bufo de raiva. — Vou começar pela boa. Já ingressamos com o pedido de execução da nota promissória.

— Já não era sem tempo! Preciso comemorar por você ter conseguido fazer seu trabalho?

O desgraçado ri.

— A ruim, no entanto, também é sobre isso. — Ele me estende umas folhas. — Duda Hill deu entrada no inventário judicial após a morte do pai.

Leio os papéis, mas pouco entendo de legislações e procedimentos legais, então espero que ele pare de fazer cu doce e prossiga com suas explicações.

— Que merda! — Millos exclama, e isso é o suficiente para me deixar tenso.

— O que isso significa, porra?

Kostas se levanta, anda até o aparador e se serve de água.

— Você poderia ter bourbon aqui — comenta como se estivesse aqui para uma visita social. Xingo-o. — O processo não cumpriu nem metade de seu caminho natural, caro irmão. Já está aberto há quase quatro anos e pouco avançou, e isso porque tem apenas um imóvel a ser herdado por uma única herdeira. — Ele ri. — Adivinha qual?

O Hill! Merda!

— O que isso significa em nossos planos de adquirir aquela pocilga? — Irrito-me.

— Bem, assim que for declarado o débito por causa da confissão de dívida – a promissória –, nós vamos ser credores do espólio. — Bufo pelo uso dos termos técnicos desnecessários.

É Millos quem vem ao meu resgate.

— O homem está morto, Theo, não temos como cobrar dele, apenas dos bens que ele deixou, entendeu? Isso obriga a Duda a vender ou entregar o Hill em troca da dívida. — Sorrio, achando a notícia ótima. — Mas somente quando o inventário fechar, o que pode levar anos ainda.

— O quê?! — Levanto-me, esquecendo por completo a dor de cabeça.

— É isso, caro irmão! — Kostas dá de ombros. — Seja bem-vindo à realidade da justiça brasileira, em que inventários simples duram, em média, de oito a dez anos!

— Não há outra forma de recebermos?

— Não. — Kostas ri, satisfeito. — A dívida está no nome do pai dela, então só alcança bens deixados por ele.

— A vantagem é que ela não pode vender para outro também, não é? — Millos questiona.

— Teoricamente, não, mas se o comprador não se importar em não ter a escritura, ela consegue vender, sim. Tem muita gente que faz isso. Não é legal, mas faz.

— Puta que pariu! — explodo, virando-me em direção à vidraça.

— O jeito é tentar comprar, Theo, e alegar que somos credores e que, por isso mesmo, ela só pode vender para nós — Millos fala, e Kostas concorda.

— Ela não vai vender, disse ontem!

Sou um homem muito teimoso, sempre fui, e reconheço um igual de longe! Quando Duda Hill disse ontem que não ia vender para a Karamanlis, vi a teimosia brilhando em seus olhos.

— Além do mais, pelo que soube, os negócios vão bem — Kostas complementa, deixando-me ainda mais raivoso. — Ela não precisa vender.

Olho para Millos, e ele arregala os olhos ao ver a determinação nos meus.

— Fale de sua ideia!


O despertador me acorda pela segunda vez no dia. Tenho vontade de esconder a cabeça debaixo do travesseiro e fingir que não estou ouvindo, deixar que entre em modo “soneca” e que, com isso, eu ganhe mais alguns minutos na cama.

Suspiro, abro os olhos lentamente e pego o maldito telefone para cancelar o despertador. Ganhar minutos na cama significa perder minutos do dia, e isso definitivamente é uma coisa à qual não posso me dar ao luxo. Tenho que trabalhar, organizar minha cozinha e ser a primeira a estar nela quando os demais chegarem.

Espalho-me na antiga cama de casal dos meus pais, abrindo os braços em forma de cruz e esticando todo o meu corpo. Carreguei tanto peso hoje que, nessas horas, sinto falta de não ter um homem fortão trabalhando comigo nesse negócio pesado que é transportar as compras. Tento relaxar meus músculos, fecho os olhos e deixo a mente vagar por um segundo.

Em meio aos pensamentos de paz, natureza e tranquilidade, lindos olhos azuis aparecem, sedutores, emoldurados por cílios longos e escuros que fizeram sombra em seu rosto quando ele olhou minha pele se arrepiando ao seu contato. No mesmo momento sinto um gelo na barriga – desses que sentimos quando descemos uma ladeira inesperadamente de carro –, e um tremor perpassa pelo meu corpo, desde as pontas dos dedos até a raiz dos cabelos.

Emito um grunhido de irritação por, mais uma vez, Theodoros Karamanlis se infiltrar nos momentos em que busco relaxamento e pensamentos positivos para enfrentar o dia. Tem sido assim desde aquele maldito jantar, há quase uma semana!

Sento-me, notando o quanto estou suada, pois há alguns meses meu ar-condicionado do quarto teve uma pane elétrica, e não tive nem tempo, nem dinheiro para chamar a assistência técnica. O verão chegou com tudo este ano, e as temperaturas estão ameaçando bater recordes desde o final da primavera. Vou precisar arrumar o ar ou então ir dormir no quarto da tia Do Carmo.

Confiro as horas, meio-dia e alguns minutos, e sigo rápido para tomar a terceira chuveirada do dia!

O expediente no Hill durou até às 2h35 da manhã, quando gentilmente convidamos nosso último cliente a sair. Passei a encerrar mais cedo em dias de semana, pois sábado e domingo vamos até às 4h da manhã. Fechei a cozinha para pedidos exatamente à 1h para que desse tempo de todos os quitutes ficarem prontos e nossos clientes irem embora até às 2h30. Entretanto, sempre fica um agarrado a uma cerveja num canto, sempre!

A música ao vivo, de terça a domingo – menos quando temos campeonatos de futebol, pois aí na quarta-feira transmitimos os jogos – anima o pessoal e por isso mesmo precisa ser encerrada uma hora depois do fechamento da cozinha. Há toda uma preparação para que os clientes entendam que a hora de “dar tchau” chegou.

Hoje, sábado, é o dia mais desgastante para mim, pois a cozinha irá funcionar a todo vapor até às 3h30 da manhã, aceitando pedidos até uma hora antes disso, e o bar só será fechado às 4h. E adivinhem quem fecha o bar? Exatamente, eu!

Ou seja, terei 14 horas de trabalho incessante pela frente, a partir das 2h da tarde, sendo que noite passada não aguentei ficar acordada para ir até o CEAGESP, dormi às 3h e acordei às 4h, correndo para poder pegar um pouco do pescado bom, pois a venda para o atacado começa na madrugada e vai até às 6h da manhã. Descarreguei tudo no restaurante e voltei para a cama às 9h, por isso, sim, estou acordando ao meio-dia!

Saio do banho e já coloco a calça preta – uniforme do Hill –, uma camiseta branca por causa do calor e calço chinelos. Separo o uniforme, que minha tia já deixa passado, a dolma, o avental e meus turbantes. Deixarei os cabelos secarem para depois fazer um coque alto, bem firme, para que nenhum fio possa se desprender.

— Boa tarde! — tia Do Carmo me cumprimenta assim que apareço na sala. — Vai almoçar agora?

— Vou. — Suspiro, sentando-me. — E a Tessa?

— Acabou de ir para o inglês com a Marcela e a Diana. — Assinto, lamentando não ter me encontrado com ela aqui, mesmo que depois dê uma xeretada na minha cozinha.

Mal tenho tempo para ela! Sinto-me mal por isso, tento compensar, mas queria ser mais presente e sei que Tessa sente essa necessidade tanto quanto eu. Porém, minha menina já é tão madura que entende que essa rotina louca na qual vivo não é por minha escolha.

Tia Do Carmo me serve de sua comida simples, bem temperada e absurdamente viciante, e eu não penso em mais nada a não ser apreciar a iguaria. Ao longe, enquanto como, ouço o barulho da máquina de costuras dela, em seu quarto, trabalhando sem parar. Ela é teimosa e está sempre aceitando encomendas de reparos ou confecção de roupas, principalmente para o pessoal da igreja que frequenta.

Somos farinha do mesmo saco, teimosas ao extremo, e ela me culpa por eu recriminá-la por querer ajudar. Não é só por teimosia ou orgulho que peço tanto a ela para que se poupe, pois se aposentou há alguns anos por invalidez exatamente por passar horas e horas costurando desde menina e com isso ter ganhado algumas hérnias de disco ao longo de sua coluna.

A verdade é que, se não fosse pelas dívidas, eu poderia dar uma vida bem melhor a elas. O Hill vai muito bem, cada vez mais conhecido, atraindo clientes para essa área que nem é tão famosa por ter bares. Contudo, o boca a boca tem se espalhado pela cidade e trazido com ele nossos clientes.

Termino de comer, lavo a louça e termino de me arrumar para descer e só voltar no meio da madrugada. Faço uma oração curta antes de descer e grito para tia Do Carmo:

— Tia, estou no Hill se precisar de algo!

— Vai com Deus, minha filha! — grita de volta, cessando a costura. — Tente descansar em alguns momentos!

Apenas rio, porque a cozinha é uma correria aos finais de semana, e é impossível me sentar por uns minutos sem que alguma coisa desande, já que atendemos em média 400 clientes por sábado e uns 350 no domingo. O volume de comida que processamos é tão grande que fazemos compras nas madrugadas de terça, quinta e sábado.

Poderia até ir ao CEAGESP menos vezes, mas prefiro trabalhar com os ingredientes o mais frescos possível e, graças à câmara fria que instalamos, já me dei ao luxo de parar de ir todas as madrugadas. Vou sempre às terças e sábados e deixo Manola se virar na quinta-feira. A mulher adora ir para lá e demora o dobro do tempo que eu levo, sempre conversando com os comerciantes, pechinchando horrores e fazendo amizades. Como ela é sozinha, está sempre com o caderninho de telefone preenchido para quando quer companhia, e como trabalha como louca aqui, seu lugar de fazer contatos é lá na central de abastecimento.

Confesso que me divirto muito com suas histórias, assim como todo o resto de nós da cozinha.

Abro a entrada principal do bar, pois, infelizmente, quando papai montou o local, não pensou em saída de emergência, mesmo porque na sua época era todo aberto, então, quando transformei o boteco em um pub, tivemos que sacrificar a porta usada para carga e descarga e transformá-la para que estivéssemos em dia com a legislação dos bombeiros e da própria prefeitura.

Sempre que entro, já deixo a porta de aço aberta e tranco somente a de vidro, deixando um pouco de sol entrar através das paredes de vidro temperado.

Sigo diretamente para a cozinha, mas anotando mentalmente tudo o que precisará ser limpo com mais afinco, resultado da noite anterior. No bar, sempre tenho a satisfação de passar e ver o asseio do Kiko, seus utensílios todos nos lugares, limpos e secos, as chopeiras sem nenhum traço de respingo de chope, o chão brilhando.

Abro a cozinha, e o cheiro dos produtos de limpeza que usamos há algumas horas, assim que encerramos as atividades, recepciona-me. Faço meu coque, como sempre, ponho o turbante, lavo as mãos e começo a trabalhar, colocando alguns alimentos de molho, descongelando outros e conferindo as receitas, bem como o funcionamento de todos os equipamentos.

Ouço o barulho da porta, e uma risada preenche o lugar, indicando que Manola chegou junto ao seu fiel escudeiro, Arnaldo.

— Boa tarde, chef! — ela me cumprimenta, indo para o banheiro dos funcionários. — Hoje o Naldo está impossível!

— Você é que não aguenta ouvir umas verdades, Manola. — Arnaldo vem até onde estou e me dá um beijo na testa. — Carinha de cansada hoje, boneca!

— Dia de compras... — Aponto para a caixa de camarão no gelo que tirei da câmara para ele limpar. — Divirta-se!

— Ai, minha santa protetora dos dedos furados! — geme.

— Use luvas! — Manola grita, vindo do banheiro trajando o uniforme, seus cabelos ruivos presos em uma trança e seu turbante cheio de beijos já na cabeça. — No dia em que você perder um dedo, ainda processa a Duda!

— Deus me livre, Manola! — Bato na bancada de inox, e ela ri.

— É na madeira, querida! — Joga um beijo para mim e as luvas de fio de aço para o Arnaldo. — Não vai te proteger contra o camarão, mas quando for limpar as carnes, faça o favor de usá-las!

— Oui, chef! — ele debocha.

— Abusado! — diz, pegando as panelas guardadas e já as colocando no fogão. — Vou adiantar os molhos enquanto a Ana não chega. Ela ia levar o filho ao dentista hoje.

— Eu sei — concordo ainda lavando as folhas e temperos. — Cláudia também vem mais tarde hoje, mas adiantou muito suas sobremesas ontem. Trabalhou dobrado!

— Estou louca por aquela torta de duas mousses que fez! — Geme e estala a língua. — Adoro maracujá com chocolate, e a danada não me deixou pegar nem uma provinha!

— Diabetes te diz algo? — Arnaldo alfineta.

— Tenho pré, idiota! — Ressalta: —Pré-diabetes!

Rolo os olhos, já antevendo uma discussão sobre a quantidade de açúcar que ela não deve ingerir.

Minhas tardes são sempre assim, entre o trabalho na preparação para a noite e as conversas, discussões ou músicas dos meus colegas de trabalho. É bom, faz o tempo passar depressa e não deixa o serviço tedioso.

— Terminou aquela receita nova que estava escrevendo? — Arnaldo me pergunta um tempo depois.

— Ainda faltam uns ajustes, mas estou sem tempo para testar. — Dou de ombros. — Final de ano, né?

— Por falar nisso... — Manola se aproxima. — Como andam as encomendas? O pessoal gostou do menu deste ano?

— A Hana me entregou ontem uma pequena lista de encomendas. Ao que parece, o menu foi bem aceito, sim.

Manola bate palmas, e eu sorrio aliviada.

Todo ano abrimos o Hill e servimos pequenas ceias para o pessoal que não quer ter trabalho, mas percebemos que seria mais interessante, para nós e para nossos clientes, se houvesse um menu prévio e as encomendas entregues em casa.

Como começamos o delivery este ano, programei um menu com três tipos de proteínas – peru, bacalhau e presunto – e vários tipos de acompanhamento. As variações vão desde a mais simples e barata até as sofisticadas, dignas de um chef de cuisine, mais caras.

Por incrível que possa parecer, o menu luxo tem vendido mais do que o comum, e isso, além de me dar muito orgulho de ver minhas receitas tão bem aceitas, ainda me concede maior lucro.

Por conta desse menu especial, não abriremos o Hill para o público na véspera do Natal, daqui a alguns dias, e nem no dia, retomando as atividades somente no dia 26 de dezembro. Teremos que trabalhar muito para atender aos pedidos, mas tenho certeza de que daremos conta e que em pouco tempo encomendar a ceia no Hill será uma tradição.

É preciso manter a fé depois de tudo o que já passei na minha vida; sem ela, eu esmoreço. Não digo propriamente uma fé religiosa, mas a de desejar boas coisas, pensar positivo, manter a chama da esperança acesa de que tudo vai dar certo.

— Boa tarde! — a voz de Tessa faz meu sorriso se agigantar, e paro o que estou fazendo para ir abraçar minha pequena menina. — Ei, mãe, não!

Ela tenta correr ao ver minhas mãos molhadas, mas, quando a alcanço, explode em gargalhadas e me abraça apertado.

— Estava com saudades! Como foi a aula?

— Legal! — Faz um joia com a mão. — Ei, tia Manola!

— Tia uma ova! — Manola repreende, mas ri. — Sou no máximo sua irmã mais velha, pirralha!

Tessa gargalha de novo e faz gesto de que Manola é maluca, rodando o indicador ao lado da cabeça, e Arnaldo libera sua estridente gargalhada ao concordar com a menina.

— Quer alguma coisa especial daqui hoje? — pergunto, mas sem muita esperança.

— Não, tia Do Carmo disse que vai fazer lasanha à noite, e você não faz lasanha aqui!

— Não faço! — Cutuco suas bochechas com os indicadores bem onde elas formam covinhas quando Tessa sorri. — Cláudia fez uma torta especial. Vou levar para você mais tarde.

— Tem chocolate? — indaga animada.

— Tem, sim, pirralha! — é Manola quem responde. — E se ela tiver direito a um pedaço, eu, como irmã mais velha, também tenho!

Tessa mostra a língua para ela, Arnaldo ri, e eu balanço a cabeça, pois as duas parecem realmente irmãs, brigam e implicam uma com a outra, mas se adoram. Minha pequena se despede, e a acompanho até a entrada do bar, só voltando para a cozinha ao vê-la fechar a porta do acesso ao nosso apartamento.

Deus do Céu, como é bom ver minha menina feliz!

A segurança e a felicidade de Tessa são minhas prioridades, e vê-la crescendo tendo essas duas coisas me dá ânimo para aguentar mais um dia de trabalho e não pensar em coisas ruins. Nem mesmo nos Karamanlis, ainda que um deles tenha mexido comigo de tal forma que volta e meia está nos meus pensamentos – e não pelo motivo pelo qual deveria estar!


— Me and Mrs. Mrs. Jones, Mrs. Jones, Mrs. Jones, Mrs. Jones, we've got a thing going on. — Dedilho o arranjo ao piano, sentindo o peso dessa canção sobre mim e volto a cantar: — We both know that it's wrong, but it's much too strong to let it go now.3

Há anos não toco essa música tão famosa na voz do Billy Paul, mas algo me impulsionou a fazê-lo esta noite. Nada específico, creio eu. Contudo, meu interior está conturbado como há muito tempo não o sinto.

O paletó do terno que vesti hoje está em cima de uma das cadeiras da sala de jantar, a gravata precariamente pendurada sobre a borda do piano, enquanto estou aqui, camisa social semiaberta, mangas arregaçadas, uma garrafa de uísque em cima do instrumento e meu copo já quase vazio. Não parei de tocar desde que cheguei do concerto musical e apresentação de novos artistas de gravuras que ocorreu em uma galeria de artes aqui perto.

A verdade é que, desde quando Viviane me mandou o convite, não tive nenhum interesse em ir, embora fosse algo que geralmente chamaria minha atenção. Tive uma semana fodida demais, e não havia nenhum clima para entretenimentos. Tudo o que eu queria era uma massagem gostosa e uma trepada de alívio.

Termino a música e recosto a cabeça nas teclas do piano, quase não me reconhecendo. Não estou normal! Talvez essa época do ano, próxima demais do Natal, mexa comigo, evoque sentimentos que há muito tempo pensei ter perdido.

Sinto falta da Vanda nesta casa! Olho em volta e bebo o restante da dose de uísque. Tudo está tão vazio, tão silencioso, tão... estéril. Não tenho mais ninguém me esperando quando chego do trabalho, nenhum cheiro de tempero quando entro na cozinha – ou mesmo de café, porque o dela é incrível –, não há conversas amenas.

Não há nada!

Balanço a cabeça, irritado com o rumo dos pensamentos, com a energia negativa deles dentro de mim. Maldita semana!

O desastre começou na segunda-feira com aquele encontro deliciosamente desastroso com Duda Hill; depois aumentou com a notícia que o filho da mãe do Kostas nos deu sobre o imóvel onde funciona o Hill Wings.

A proposta de Millos ressoa em meus ouvidos, e, por mais que eu não ache muito sentido no que me propõe, penso se não é um caminho a seguir. Nunca fui um homem de indecisões. No entanto, entendo que, nesse assunto em particular, não posso me mover por impulso.

Volto a escutar a voz de meu primo como se estivesse aqui e o ouço apresentar todos os motivos para embasar sua ideia.

— Nosso erro foi deixá-la sozinha naquela rua, sem nenhuma concorrência! — argumentou.

— Quando fechamos a compra do último imóvel, aquilo lá ainda era só um pé-sujo com meia dúzia de clientes bêbados — justifiquei em contrapartida. — Não tínhamos com o que nos preocupar!

— Esse foi o erro do coelho naquela fábula — Kostas ironizou. — A arrogância do “já está no papo!”.

— Você falando de arrogância? — Ri, e Millos disfarçou seu riso também. — Não tem se olhado no espelho, não?

Kostas apoiou seu indicador logo abaixo da sobrancelha, ao lado do olho e me deu um meio sorriso e um olhar de desprezo. Ergui minha sobrancelha e balancei a cabeça, enfrentando-o. Se o bostinha achava que iria me intimidar como faz com seus advogados, estava muito enganado!

— Já terminaram de testar a testosterona de ambos? — Millos reclamou. — Minha ideia faz todo sentido! Se alugarmos algumas lojas próximas ao estabelecimento dela, damos a concorrência necessária para que recue um pouco no crescimento que vem tendo!

— Sabe o que não entendo? — Kostas interferiu. — Se ela vem fazendo tanto sucesso quanto vocês gostam de afirmar, por que não quitou a maldita promissória?

— Talvez não tivesse tido o suficiente ainda, pois, como o “agiota” mesmo informou, ela andava pagando os “juros” para que ele continuasse paciente — respondi. — Ademais, ela não poderia pegar um empréstimo para quitar uma dívida como essa.

— A verdade é que o pilantra nunca iria liberá-la da dívida. — Concordei com o ponto apresentado pelo Millos. — Gastamos quase o dobro do que a promissória realmente vale, e ele já tinha recebido anos de juros da Duda. O homem é um espertalhão!

— Então você acha que, colocando mais alguns bares naquela rua, teremos mais chances de quebrá-la? — inquiri. Millos assentiu, mas vi um leve sorriso no rosto de Kostas e, sinceramente, não gostei dele. — Como controlaríamos isso?

— Kostas! — Millos aponta. — Podemos amarrar bem o contrato de aluguel, especificando a atividade que o locador deve exercer.

— Isso é legal? — perguntei.

— Não posso dizer no contrato o que ele deve vender, mas posso amarrá-lo à atividade que já exerce, ou seja, se trocar de ramo, deixa o imóvel. — Olha para o Millos. — O pessoal da corretagem, que por sinal é subordinado ao nosso querido e esperto primo, é quem deve ter em mente quais são os tipos de locadores que devem aceitar.

Concordei, mas ainda não estava completamente convencido.

— Pense na questão. — Millos se pôs de pé. — Tempo é o que não falta, pelo que Kostas disse.

Meu irmão o acompanhou, o sorriso estranho ainda em seu rosto, como se estivesse acontecendo algo que só eu não soubesse.

Dali em diante, tudo pareceu ainda pior! Os dias se arrastaram até esta sexta-feira, vários setores da empresa dando problemas justamente nesta época em que o pessoal já parece estar entrando em ritmo de festas e esquecendo um pouco a nossa tão famosa correria paulistana.

Só soube que Valentina seria minha acompanhante nos eventos artísticos no meio do expediente, quando Viviane me ligou para perguntar se eu tinha o endereço do apartamento da moça.

— Você me disse que ela estaria lá, não que iria comigo! — resmunguei. — Nós mal trocamos algumas palavras naquele vernissage!

— Theo, meu querido, você quer ou não quer uma maldita esposa?! — minha sócia perdeu a paciência.

— Porra, mas não assim! Não precisava agir tão descaradamente como se eu estivesse desesperado, merda!

— Ela é a melhor candidata com que você já esbarrou por aí! É amante das artes como você, vem de uma família tradicional e rica como a sua, é linda, jovem e tem todos os infindáveis requisitos que você listou para a futura senhora Karamanlis! Dê uma chance a ela!


CONTINUA
Acordei de ressaca hoje, e não foi por causa da quantidade de bebida que ingeri no vernissage; aquela quantidade, eu nem consideraria como beber. Viviane ficou puta por ter encarecido o orçamento com garrafas do meu uísque preferido e eu não estar bebendo, por isso, depois do evento, reuni todas as que sobraram e trouxe para meu apartamento.

Pensei que ia passar uma noite solitária, acompanhado apenas de um single malte e discos de jazz, mas, no meio da minha encenação de lobo solitário, Millos ligou me convidando para ir até seu loft. Neguei várias vezes, mas a porra do homem estava tão excitado com a cerveja que havia feito que não parava de insistir.

Resultado? A bebida realmente estava um espetáculo! Enchemos a cara, mesmo sob meus protestos, pois nunca curti muito beber cerveja, e comemos uns tira-gostos tão saborosos que teci elogios a sua habilidade na cozinha.

— Ah, não fui eu quem preparou, não! — Riu. — Encomendei no Hill.

Quase cuspi aquela porra para longe e o fuzilei com os olhos.

— Porra, eu querendo que aquela merda feche e você comprando lá? Está do lado de quem afinal?

— Do meu estômago! — respondeu comendo mais um dos bolinhos. — Estava com vontade de ter um acompanhamento, mas sem nenhum saco para preparar. Me lembrei do dia em que fomos lá e quis conferir se ainda continuavam tão gostosos!

— Ainda não te perdoo por aquela arapuca! — acusei.

Há uns dois anos, Millos me convidou para comemorar seu aniversário, coisa que vez ou outra fazemos quando ele está em clima de festa. Eu lhe disse que o encontraria no local, mas ele insistiu em me buscar em casa, e, quando chegamos e percebi que era no Hill, fiquei bem puto, mas a curiosidade de saber o motivo pelo qual o boteco estava se tornando um sucesso me impulsionou a entrar.

O que eu não contava era que, além de a mim, o filho da puta tinha convidado meus irmãos. Ficamos lá os quatro como se fôssemos bons amigos, compartilhando da armadilha de Millos. Aposto que Kostas e Alex detestaram cada momento, mas sorrimos, bebemos e experimentamos os quitutes da tal da Duda Hill.

Mesmo não gostando de admitir, era fato que a mulher sabia o que estava fazendo na cozinha. Os bolinhos tão tradicionais de um boteco tinham um requinte diferente, embora mantivessem a essência. Era como se ela conseguisse melhorar o que já era perfeito, e isso, tenho que admitir, é um dom.

Confessei isso ao meu primo? Nem sob tortura! Repreendi-o por ter comprado lá, aleguei que ela podia ter mandado envenenar os quitutes – fazendo um drama desnecessário, culpa da bebida –, mas não parei de comer.

— Ah, pedi a Sami para comprar para mim — respondeu.

— Você ainda está saindo com ela? — questionei surpreso, pois havia muito tempo não via a motoqueira que, de vez em quando, orbitava em volta dele.

— Não! Somos amigos, já disse isso, mas parece que você só enxerga a boceta de uma mulher, come até suas “amigas” — fez referência a Viviane.

— Por que você não gosta dela? — Provoquei: — Porque ela é independente, dona de si mesma e diz o que pensa?

— Não! Eu não curto mulher assim para comer, mas não tem nada a ver com o fato de eu achá-la fria e calculista, e nunca escondi isso de você. Aquela mulher gela meu sangue!

Ri do seu exagero, afinal, a Vivi não tem nada de fria. Millos implica com ela pelo simples fato de a mulher ter personalidade e não se deixar comandar por ninguém. No primeiro momento ele se sentiu atraído, Vivi é um espetáculo aos olhos, e ela também não disfarçou o interesse. No entanto, bastaram alguns minutos de conversa para que se odiassem.

— Hoje ela conseguiu algo incrível — comentei. — Valentina de Sá e Campos, já ouviu falar?

Ele riu.

— Dela não, mas conheço os sobrenomes. Família paulistana tradicional, bom currículo. — Cruzou os braços e me olhou debochado. — A futura senhora Theodoros Karamanlis?

— Talvez — fui sincero. — Conversei um pouco com ela nesta noite, achei-a divertida, inteligente e sedutora. A princípio achei que era muito nova, mas é madura e independente, cheia de opinião. Gosto do tipo.

— Eu sei. — Ele se levantou e foi pegar mais cerveja. — Foi Viviane quem te apresentou a ela? — Assenti. — Não sei se gosto disso, mas boa sorte.

Gargalhei pela implicância dele com a Vivi e resolvi desviar o assunto. Falamos da Karamanlis, de música, de motos e, por fim, já muito bêbado e com sono, caí sobre o sofá dele e acordei há pouco, com torcicolo e com uma puta dor de cabeça.

— Ei! — Millos me saúda estendendo uma xícara de café. — Você está destruído!

O desgraçado ri, mas nem posso mandá-lo tomar no cu, porque minha cabeça trepida parecendo que há uma britadeira no meu cérebro. Maldita cerveja! Malditos bolinhos envenenados da Duda Hill!

— Cara, você é fraco para minha cerveja! — Millos ri. — Ficou boa, não é? — Apenas assinto, ainda tomando o café para melhorar meu ânimo. — O que está programado para fazer nesse final de semana?

— Vou trabalhar. Como saí um pouco mais cedo ontem por causa do vernissage, Rômulo separou umas pastas para que eu lesse nesse final de semana. Coisa chata, principalmente da pauta da reunião do conselho.

— Por falar no conselho... — Ele se senta ao meu lado no sofá e apoia os pés descalços sobre a mesinha de centro. — Ontem tive notícia do Kostas. — Ri. — Parece que tomou um toco feio da Kika e está cuspindo marimbondos.

Gargalho, esquecendo a dor.

— Como queria ter visto esse embate!

— Eu também.

Bufo, mesmo divertido, lembrando que o meu problema continua.

— Preciso trazê-la de volta para a empresa com urgência. Há vários projetos dos hunters parados, e o Rômulo não está dando conta de organizá-los.

Millos rola de rir no sofá.

— Esse seu assistente é muito estranho. Sinceramente não entendo como você ainda o mantém trabalhando contigo!

— Gosto de ele ser metódico. — Dou de ombros. — É organizado, embora meio desastrado, nunca perde um prazo e faz tudo o que eu peço.

— Seu próprio espelho, não é? Nunca conheci ninguém mais chato que você para organização.

Ergo uma sobrancelha para ele e olho em volta para seu loft cheio de espaço, mas sem nenhuma lógica ou senso de estilo. Millos gosta de coisas rústicas, e respeito isso, acho legal, mas é tão bagunceiro que seus móveis caros de design parecem ser cacarecos de alguma casa demolida.

Os únicos locais arrumados são: a cozinha, o “laboratório” de cerveja (como ele mesmo se refere ao local) e onde dorme. O resto... tem peças de motos para todos os lados, mesmo a oficina ficando na parte de baixo do galpão que ele chama de loft, tem barris com os ingredientes que compra para a fabricação de cerveja, roupas, discos e óculos (nunca vi tantos para uma só pessoa) espalhados por todos os lados.

O homem é um caos completo em casa, mas, se alguém entrar na sala dele na empresa, vai acreditar que é o epítome da organização. Não entendo como consegue!

— Bem, sobre a Kika, eu posso te adiantar que não precisa se preocupar — Millos continua. — Falei com ela ontem, e vai voltar.

Expiro o ar, aliviado.

— Porra, Millos, porque não me contou antes? É um alívio do cacete não ter que lidar com mais esse problema e...

— Mas ela não quer ser mudada de andar.

— O quê? Ela está fazendo exigências?

Millos penteia a barba com os dedos, enervando-me com sua calma.

— Demonstramos desespero ao mandar o Kostas pedir arrego. — Concordo com ele nesse ponto. — Ela quer aumento, continuar no andar e... — Tenta conter o sorriso, e prevejo que vem bomba, mas ele vai dar um doce do cacete para falar.

Perco a paciência e esbravejo:

— O que mais ela quer?!

— Carta branca para mandar seu irmão se foder à vontade.

— Porra!

Ponho as mãos na cabeça, sentindo a dor de cabeça voltar com tudo e ouvindo a risada debochada do Millos.

Eles querem me enlouquecer, só pode!

 

 

A dor de cabeça me acompanhou ao longo de todo o final de semana. Tomei analgésico, antiácido e – seguindo os conselhos do meu primo – mais um pouco de cerveja. No entanto, não consegui me livrar do incômodo insistente.

Trabalhei o sábado inteiro, recebendo ligações do Rômulo quase de hora em hora, a ponto de ficar puto com ele e mandá-lo caçar algo para se divertir e me deixar em paz. Compreendo que ele queira me ajudar, mas, às vezes, sua dedicação exacerbada me estressa.

Recebi um convite para jantar de uma antiga amante que vinha a São Paulo de tempos em tempos, mas neguei. Queria apenas relaxar um pouco em casa depois de ter trabalhado em páginas e mais páginas de relatórios com uma dor de cabeça chata a me distrair.

Pedi comida em um restaurante de comida vegana, achando que pudesse ser a gordura dos bolinhos do Hill – velha e rançosa, com certeza – que me deu essa indisposição e resolvi assistir a alguns filmes antigos. Sou fã de “O poderoso chefão”, então comecei a assistir a cada um deles de novo.

Novamente dormi em um sofá, mas acordei melhor e resolvi correr um pouco. Passei umas duas horas no Ibirapuera e, na volta, encomendei o almoço de domingo, sentindo-me um pouco órfão sem a Vanda em casa.

Liguei para Millos a fim de fazermos algum programa à tarde, mas ele estava com alguma mulher em algum clube ou lugar que só Deus sabia, então voltei aos relatórios, e isso consumiu o resto do dia.

Debaixo do chuveiro, rememorando este final de semana de merda, ouço meu telefone tocar, mas o ignoro. Coloquei os jatos no mais forte possível para tentar aliviar um pouco a tensão que venho acumulando nesses dias. A verdade é que preciso trepar um pouco, divertir-me, talvez fazer uma viagem ou passar um final de semana com alguém sem pensar no trabalho.

A imagem da Valentina vem à minha mente, sua conversa gostosa, seu sorriso bonito. Contudo, ainda não me sinto completamente certo de que devo me envolver com ela, principalmente por uma questão: não senti muita atração.

Sei que isso é de momento e que pode mudar, principalmente se a convivência for boa. Nem sempre sentimos atração pela pessoa no primeiro encontro, e já vivi anos demais para saber que até um primeiro encontro explosivo pode depois esfriar e o tesão ser extinto, então, não me baseio apenas nessas primeiras impressões.

Fecho os olhos e penso na garota da boate há alguns anos. Ela vem preenchendo minhas fantasias há muito tempo, talvez por ter sido gostoso daquela vez e não ter tido mais notícia dela.

Mal lembro do seu rosto, de tão bêbado que estava, sempre quando fantasio vejo os cabelos e me lembro da loucura que foi nossa transa naquele banheiro.

O telefone volta a tocar, e desligo o chuveiro, saindo do boxe para ver quem é o chato. Rio ao ver o nome do Millos. Na mosca!

— Já terminou sua maluquice sexual com a “submissa” da vez? — provoco.

— Vá se foder e não se meta nos meus assuntos — rosna. — Liguei para saber se amanhã pode ir comigo a um restaurante que um amigo inaugurou nos Jardins.

— Boa comida ou é boteco?

— Não, seu fresco, é coisa fina! Vanda ainda não estará de volta, não é?

Suspiro, resignado.

— Não, ela ainda vai ficar um tempo no Rio de Janeiro. Está certo, amanhã combinamos isso melhor no escritório.

— Okay! — diz animado. — Vai almoçar no refeitório junto aos funcionários?

— Sempre há uma primeira vez, não é? — Deixo a toalha no suporte e sigo para o closet. — Além do mais, confio que servimos algo de qualidade aos funcionários.

Millos ri.

— Essa eu quero ver! Nos encontramos no almoço, então! Boa noite, Theo.

— Boa noite!

Desligo o telefone e me olho no espelho, lembrando-me do tempo em que comia qualquer coisa e em qualquer lugar, na maioria das vezes sujo e fedendo a peixe, sentindo-me feliz e livre.

— Quem é você, Theodoros Karamanlis?


O dia nem bem amanheceu, e eu já estava suando na academia com a Sandra. Hoje, sem Millos, o treino foi mais tranquilo, seguindo o ritmo normal dos exercícios. Tomei meu café sozinho na cozinha – café puro mesmo – sentindo imensamente a falta da Vanda, de sua conversa matutina animada e seus cuidados. Posso não admitir sempre, mas gosto de ser cuidado, de sentir esse afeto, coisa tão rara na minha vida.

Limpei os pensamentos e saí para trabalhar.

— Bom dia, Dionísio! — cumprimentei o motorista como em todos os dias, já pegando meu jornal para me inteirar sobre as principais notícias do dia. — Hoje vou almoçar na empresa, mas, à noite, vou sair do escritório direto para jantar com Millos.

— Levo o doutor ou trago o carro?

— Traz o carro, vou dirigindo.

Ele assentiu, e seguimos viagem em silêncio, ele concentrado no trânsito, e eu, nas notícias de economia do país e do mundo.

Cheguei à empresa já apagando incêndios. Um dos projetos de um cliente foi reprovado por uma comissão municipal, então Kostas teve que intervir mandando seus advogados e acompanhando todo o processo. Eu, como CEO, fiquei aguentando a aporrinhação do gerente responsável pela implantação da empresa multinacional aqui no Brasil.

Nem vi a hora passar, mal tomei meus cafés tão tradicionais ao longo da manhã, irritado com esse problema, com o Rômulo borboleteando ao meu redor me enchendo de perguntas: “quer café?”, “ligo para o doutor Konstantinos?”, “quer um calmante?”. Eu quase explodi de raiva, sentindo meu estômago fritar e a cabeça estourar.

Desci para o refeitório faltavam alguns minutos para o meio-dia e, para meu espanto, ainda não tinha nenhuma refeição pronta. Conferi as horas no Omega, um dos relógios mais precisos do mundo, e estranhei a demora. Rômulo apareceu e, quando lhe questionei o atraso, fiquei sabendo que o almoço era servido a partir da 1h da tarde.

Voltei para o escritório sob a insistência de Rômulo para me encomendar o almoço em algum restaurante.

— Não! Hoje vou comer no refeitório — insisti.

Millos me lançou um desafio por eu nunca ter comido na empresa desde que foi inaugurado o refeitório para os funcionários. Pensamos no restaurante para facilitar a vida de todos e, como tínhamos espaço, decidimos montar a estrutura. Estive presente no primeiro dia, na inauguração, há alguns anos, mas depois disso não botei mais os pés no local.

Exatamente às 13h desci novamente pensando em usufruir de um almoço tranquilo e nutritivo, porém, o que encontrei me deixou sem ação. Primeiro, os funcionários ficaram estarrecidos ao me ver ali; percebi em seguida que apenas o baixo escalão da empresa – de coordenadores para baixo – estava comendo ali. Não havia nenhum gerente ou diretor no meio dos mais de 100 funcionários da companhia.

Contudo, o que mais me surpreendeu foi a comida. Não, não era ruim, pelo contrário, era bem preparada, mas sem nenhuma opção para substituição.

— E quem não pode comer carne vermelha? — questionei ao Rômulo, e ele apenas corou, fingindo não ouvir. — Há cardápios diferentes ao longo da semana?

Rômulo continuava a montar seu prato sem emitir qualquer resposta, o que não é nada típico dele, e isso me irritou. Quando não era para falar, o homem tagarelava, mas, quando eu precisava de respostas, ficava mudo!

— Rômulo! — chamei-o de modo mais enérgico. — Eu estou tentando entender o que...

— Não, não há! — escuto a voz do Alex e me viro para encará-lo. — E seu querido assistente não sabe informar porque não come aqui também. — Meu irmão pegou um prato e se serviu naturalmente. — A questão do restaurante entrou em pauta numa reunião de diretoria, mas o senhor todo-poderoso do Olimpo achou que não era uma questão relevante para a economia da empresa e pulou o assunto.

Olhei de esguelha para Rômulo buscando confirmar a informação, e ele atestou. Xinguei mentalmente.

— Uma empresa é feita de mais do que números, Theodoros Karamanlis — seu desprezo pelo sobrenome era evidente. — E, quando fiz a proposta do restaurante, era para que, além de economizar o tempo dos funcionários e agilizar o serviço, também tivéssemos convívio com eles, porém, adivinha quem foi o primeiro a pular do barco e a incentivar o “alto escalão” a ir junto?

Bufei de raiva.

— Quem é o responsável pela gestão do restaurante? — ignorei o discurso do meu irmão idealista e perguntei ao Rômulo.

— É terceirizada, a mesma empresa do pessoal da manutenção.

Merda!

— Marque uma reunião com ela e peça ao Kostas para avaliar o contrato. — Rômulo mais do que depressa escreveu em seu tablet inseparável. — Dispare um memorando para todos os diretores e gerentes, lembrando da existência do restaurante e informando que, a quem for almoçar fora, será necessário cumprir o horário, ou seja, uma hora e nenhum minuto a mais.

Rômulo arregalou os olhos e assentiu.

— Eu pouco vejo você e percebo que nem é preciso! Você não mudou nada, o mesmo prepotente de sempre. — Alex passou por mim, ainda se servindo no bufê, rindo de deboche, e percebi olhares curiosos em nossa direção.

— Eu preciso lembrar que você também faz parte da diretoria e tem acesso irrestrito ao conselho? — Cheguei perto para falar baixo: — Se fosse meu projeto, nunca deixaria chegar aonde chegou só porque não sou o CEO. Isso demonstra que está mais preocupado em ir contra a direção do que lutando pelo bem-estar dos funcionários. Não é minha função tomar conta de tudo, não sou absolutista, eu delego e confio naqueles a quem passo esse poder. — Ele fechou a cara, perdendo o ar de superioridade. — Não tenho intenção alguma de prejudicar os que trabalham comigo, pelo contrário. Mas assumo meu erro em não ter frequentado o local para dar exemplo.

— Mas o doutor também não tem horário certo para almoçar, por isso...

Balancei a cabeça em negativa, freando a defesa de Rômulo. Não tinha desculpas, o exemplo era meu, e eu tinha falhado. Terminei de fazer meu prato, sentei-me a uma mesa com Rômulo e almocei mesmo sentindo um nó na garganta por ter mostrado falha e ter sido repreendido pelo Alex na frente de todo mundo.

Merda!

Ao longo do dia, a repercussão do almoço do CEO no restaurante da empresa, bem como o efeito do memorando para os diretores e gerentes agitaram a tarde na Karamanlis. Percebi todo mundo mais atento, mesmo na correria de sempre.

Tive uma resposta positiva da equipe de Kostas com relação ao projeto vetado e pude passar a boa notícia ao nosso cliente. Recebi vários relatórios dos setores e subsidiárias ao longo do dia, inclusive da K-Eng, dirigida pelo Alex.

Meu irmão é um sonhador idealista, defensor dos fracos e oprimidos, um rebelde que só trabalha conosco para contrariar a família. Cospe sobre nosso sobrenome, mas faz questão de ostentá-lo para afrontar o pappoús. Sempre achamos que ele tentaria afundar a empresa em represália ao tratamento que teve na infância, mas não, ele não só assumiu uma empresa praticamente independente como a fez crescer. Todavia, ainda sinto que há algo por trás disso.


CONTINUA

Uma família separada pelo ódio...
Criado pelo avô, renegado pelo pai, odiado pelos irmãos, Theodoros Karamanlis recebeu o cargo de CEO da empresa da família. Sua principal meta é provar a todos que é mais competente do que o homem que sempre o renegou, seu pai. Para isso acontecer, falta apenas comprar o imóvel onde funciona um pequeno pub na Vila Madalena e assim fechar uma conta aberta há mais de dez anos.
Uma família mantida pelas lembranças...
Maria Eduarda Hill sempre teve o sonho de ser uma renomada chef de cozinha, mas, por circunstâncias do destino, acabou assumindo o antigo boteco de seu pai na Vila Madalena. Ela trabalha duro para manter o negócio e preservar a memória de sua família e luta bravamente contra o assédio de uma empresa que quer comprar e demolir o lugar.
Uma noite, um bar, e uma química explosiva...
Depois de cair em uma armadilha e conhecer a irritante cozinheira que o impede de fechar o maior negócio de sua empresa, Theo se vê dividido entre essa forte atração, conquistar o que seu pai não foi capaz e uma promessa feita ao avô. Por mais que resista, o grego não consegue ficar longe de Maria Eduarda, então começa uma implacável sedução para tê-la em sua cama.
Theo e Duda têm tudo para se odiarem. No entanto, mal sabem eles que a paixão não se conduz pelo óbvio!
A todas as Jujubas do meu potinho cheio de amor!

 

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— Parabéns, doutor Karamanlis! — Rômulo, meu assistente, soa exultante ao me cumprimentar. — Falta pouco agora para o senhor conseguir fechar essa conta! — Olha sua agenda. — O senhor tem uma reunião com o doutor Villazza daqui a...

Não dou muita atenção à falação dele, muito menos aos elogios animados. Sei bem que, embora tenha dado um passo gigante, ainda não conquistei minha vitória, não enquanto não tiver cumprido todas as metas que tracei para minha gestão à frente do negócio da família.

Olho para a parede esquerda do meu escritório, diretamente para o mapa emoldurado cujo círculo abrange a única propriedade que falta ser comprada para termos a total posse do quarteirão que mais tem se valorizado na área da Vila Madalena.

Foi exatamente por causa dessa bendita área que meu pai, o poderoso Nikolaous Karamanlis, perdeu seu reinado por aqui e foi substituído por seu renegado filho mais velho. Tenho consciência de que Rômulo tem razão quando me parabeniza pelo trabalho à frente da empresa. Millos, meu primo, e eu temos feito uma gestão muito produtiva, mas ainda não consigo estar satisfeito, não enquanto não conseguir comprar o último pedaço de terra daquele lugar.

Millos tem tentado me convencer a não me cobrar tanto sobre essa questão, afinal nem temos um cliente para instalar nessa área, perdido há muito tempo, quando meu pai prometeu o lugar e não conseguiu cumprir a promessa. O que ele não entende é que há muito tempo isso deixou de ser apenas um negócio, é uma questão de honra conseguir aquilo que meu progenitor não alcançou.

Balanço a cabeça ao pensar no meu pai e na nossa conturbada convivência. Não, não é hora de pensar em todas as merdas que aconteceram na nossa família!

Levanto-me e sirvo uma dose do meu puro malte favorito para relaxar um pouco, querendo já estar em casa.

Casa... Essa palavra me faz pensar em meu país, a Grécia e me desperta outra lembrança dolorosa: meu avô e a promessa que fiz a ele. Geórgios Karamanlis está prestes a completar 90 anos, mas, como diz o ditado por aí, vaso ruim não quebra facilmente. O homem que me criou, que me ensinou tudo sobre os negócios agora exige de mim uma família.

Uma família! Rio debochado a esse pensamento, a essa palavra tão sem sentido na minha vida e na dos meus irmãos. Família não significa nada mais do que pessoas que compartilham a mesma linhagem, pois os Karamanlis não são conhecidos por laços além dos de sangue. Somos todos fodidos de alguma forma, cada um com suas merdas para carregar, seus fantasmas e esqueletos no armário.

Somos ótimos trabalhando juntos, mas é só.

Não sei da vida particular de nenhum dos meus irmãos mais do que sei da de qualquer outro funcionário da empresa. Muito menos me importo com isso! Todos são adultos e, se querem continuar agindo como crianças chorosas e traumatizadas, o problema não é meu.

Rômulo volta à minha sala cheio de pastas com arquivos e me avisa que o carro já me aguarda para me levar até o Villazza SP, onde, além de conversar com Frank, vou aproveitar para almoçar no Vincenzo com ele como companhia, pois detesto comer sozinho.

Enquanto meu assistente se instala à sua mesa, passo na antessala e me despeço da Luíza, secretária da diretoria, deixando meu celular corporativo para trás, pois não quero ser incomodado na hora do meu almoço.

— Estou indo para a reunião com o CEO da rede Villazza; qualquer assunto, anote o recado. — Aponto para o celular. — Volto daqui umas duas ou três horas, pois vou almoçar por lá.

— Certo, doutor Karamanlis.

Despeço-me dela e sigo para a garagem subterrânea do prédio onde fica a nossa empresa, fundada no Brasil há décadas, instalada bem no coração da cidade de São Paulo, a Avenida Paulista. Tenho orgulho de ser o diretor executivo daqui; orgulho do nome e do respeito que conquistamos ao longo dos anos.

O setor imobiliário no Brasil passa por algumas crises, como acontece também no mundo inteiro, mas não para de avançar. Há sempre pessoas querendo moradia, empresas atrás de locais para seus negócios, então nós nunca ficamos sem fechar bons acordos rentáveis.

Meus pensamentos são levados para os Yannes, uma rede de resorts de aventura que tem unidades instaladas nos locais mais incríveis do mundo. Essa tem sido uma conta difícil, por causa de todos os entraves legais desse tipo de empreendimento, mas que, pelas últimas notícias que tive, isso irá ser solucionado em breve.

Sorrio largo ao pensar na Malu Ruschel, uma das minhas melhores gerentes e, com certeza, futura diretora da Karamanlis. A mulher é uma máquina de trabalhar, tanto que tive que a obrigar a tirar férias, mas a danada até descansando é atenta e descobriu o local que tanto procurávamos para o resort.

Malu, além de competente, é linda demais! Confesso que sempre tive uma enorme curiosidade de saber como é ter toda aquela tensão, toda aquela organização e meticulosidade debaixo do meu corpo, gemendo de prazer. Balanço a cabeça, afastando esse pensamento.

Mesmo me sentindo muito atraído por ela, nunca iria tentar qualquer coisa. Não por medo ou insegurança, pois acho que nos daríamos muito bem na cama, pois ela aparenta ser uma mulher segura de si, madura e que sabe separar o prazer do coração. Definitivamente, Malu não é daquelas que se apaixonam!

O que me impede de buscar um entendimento íntimo com ela é puramente ético. Eu não como funcionárias; por mais tesão e vontade, não faço isso. Ao contrário do meu irmão, Kostas, eu as enxergo como iguais e detestaria ter algum machista questionando a capacidade de uma delas apenas por estar trepando com o chefe. E, infelizmente, isso acontece muito nas empresas por aí. Quando um homem recebe uma promoção, é porque mereceu, mas, se é a mulher quem recebe, não foi por merecimento, mas porque ela tem uma boceta! É simplesmente ridículo e, por isso mesmo, prefiro não me envolver. Se há algum diretor ou gerente fazendo isso, é pelas minhas costas – porque todos sabem que não aprovo – e é discreto demais, pois isso não chegou aos meus ouvidos.

A regra geral na empresa é: evitem relacionamentos dentro do ambiente de trabalho, porque isso só causa problemas. Agora, se isso acontecer e as duas partes concordarem, acabarem se acertando, eu não as demito ou proíbo. Não sou babá de marmanjo! Há casais na Karamanlis, a maioria formada lá dentro mesmo. Eu seria hipócrita se fingisse que não há. Não me sinto à vontade para manter um caso com qualquer uma das minhas funcionárias, mas não sou arbitrário a ponto de, se acontecer com outros, demitir um ou mesmo os dois envolvidos.

Minha consciência diz que isso é só mais um dos traumas que carrego, mas a ignoro, mandando-a se foder.

Chego ao Villazza e sou recepcionado rapidamente pela assistente do Frank, Alice.

— Bom dia, doutor Karamanlis. Desculpa tê-lo feito vir para o hotel, mas é que estamos com uma pequena reforma na sala da diretoria no prédio administrativo, então viemos para cá.

— Sem problema, Alice! — Sorrio. — Eu vou aproveitar para almoçar com o carcamano no Vincenzo.

Ela faz careta.

— O senhor Villazza tem outra reunião na hora do almoço e vai sair daqui direto para ela.

Dou de ombros, resignado.

A parte administrativa do Villazza SP fica toda no térreo, mas Frank optou por usar uma das suítes preparadas como home offices, duplex com um escritório completo embaixo e quarto no mezanino.

— Espero que não esteja usando este lugar apenas como desculpa para comer fora do casamento... — falo assim que o vejo, concentrado em sua mesa. — Se Isabella te largar, juro que me caso com ela.

— Dovrai prima uccidermi, maledetto!1

— Não me tente, Frank Villazza! — Aperto sua mão. — Estou sendo pressionado.

O carcamano ri à minha custa.

— Seu pappoús2 ainda está querendo vê-lo casado? — Faço careta e assinto. — Você deveria levá-lo em consideração.

— É incrível como Isabella te domou! — Cruzo os braços e me sento em uma confortável poltrona. — Eu ainda me lembro de seus discursos anticasamento. — Rio. — Lembra como você se apresentou a mim naquele bar?

Frank sorri, embalado pelas lembranças de um tempo em que ainda ostentava o título de playboy. Nós dois aprontamos muitas coisas juntos, principalmente na época de Harvard, onde nos conhecemos. Promovemos algumas orgias, dividimos a mesma parceira, fumávamos baseados juntos e frequentávamos clubes de sadomasoquismo.

Nossa última aventura foi meses antes de ele conhecer sua esposa. Frank estava de férias na Itália, e, assim que eu soube que ele estava em Roma, chamei-o para me visitar em Atenas. Naquela semana em que ficou hospedado no meu apartamento, ele tentou de todas as formas me convencer a participar de um congresso na Suíça que ocorreria meses depois, mas para o qual era preciso garantir vaga. Nossos outros companheiros de Harvard já haviam feito reserva, mas eu declinei do convite, pois já estava me preparando para ir morar no Brasil e assumir a Karamanlis.

Viajamos de iate pelas ilhas naquela semana e, numa das mais belas do mar Jônico, fomos a uma boate muito louca, bebemos todas, e eu tive a trepada mais memorável da minha história.

Eu ainda me lembro dela! Era linda, corpo sarado, com uma barriga plana e de cintura fina de fora. Usava uma blusinha curta e minissaia de couro. Nos pés, botas altas, salto agulha, destacando suas pernas deliciosas. A mulher era um espetáculo para os olhos e me atraiu como ninguém.

Os cabelos, longos e pintados de rosa, balançavam ao ritmo da música. Ela estava acompanhada com mais cinco amigas, todas bem bonitas, sendo que duas delas desapareceram com Frank ao final da noite.

— Cazzo! — Frank xingava excitado ao vê-las dançando e nos oferecendo brindes com seus copos. — São muito novinhas!

— Foda-se! — eu disse sem conseguir tirar os olhos da mulher de cabelos rosa. Eu esperava apenas um movimento dela, apenas um sinal de que estava disposta, e, quando ele veio, olhei para meu amigo com um sorriso vitorioso. — A do cabelo rosa é minha!

Fomos até o grupo, dividimos suas bebidas – elas estavam bem abastecidas —, e, mesmo sem nenhuma apresentação, comecei a dançar com a beldade de cabelos coloridos. Frank ainda me dizia que eram garotas muito novas, ressaltando que deviam ter a idade de sua irmã caçula. Ele estava sempre tentando não trepar com moças jovens e inexperientes, mesmo que já tivesse sido surpreendido algumas vezes por elas, mas sempre acabava cedendo, como de fato ocorreu.

O dia estava amanhecendo quando duas se penduraram nele ao mesmo tempo, e o filho da puta parecia o rei do prazer. As duas se esfregavam nele, que as fazia tocarem uma à outra também, divertindo-se como um sultão. Sinceramente não senti nenhuma inveja; a mulher que estava comigo me deixava louco com sua dança, com nossos amassos e seus beijos etílicos. Eu queria sair dali, levá-la para algum hotel e passar o resto do dia a fodendo em desespero.

Ela dançava como se o mundo lhe pertencesse, movimentando seu corpo ao som das melodias, os músculos pulsando a cada batida, olhos brilhantes em minha direção e um sorriso safado no rosto. Tudo o que eu podia fazer além de tentar não enlouquecer de tesão era acompanhá-la, resvalar em sua pele acetinada quando colidíamos um no outro durante a dança e sentir nesse pequeno contato como se a mais viciante droga estivesse entrando em meu sistema.

— Preciso ir ao banheiro. — Parou, rindo, e apontou para um corredor do outro lado da pista. — Devo estar toda borrada e despenteada...

— Besteira! — respondi.

Seu inglês perfeito tinha um leve sotaque, mas, como as suas companheiras falavam em francês entre si, presumi que fosse por causa disso. A boate já estava vazia. Acompanhei-a até a porta do banheiro feminino e fiquei esperando do lado de fora.

Quer dizer, a intenção era essa!

Fui tomado de assalto quando ela apareceu e, sem dizer nada, simplesmente me arrastou para dentro do banheiro. O pequeno cômodo com várias repartições, espelhos e pias estava vazio. Excitado como um touro, não titubeei ao levá-la até um dos cubículos com vasos sanitários.

Esmaguei-a contra a parede de mármore, levantando-a no colo com suas pernas encaixadas nos meus quadris. Eu conseguia sentir a maciez de suas coxas, e ela, pelo jeito que gemia, sentia meu pau duro contra sua boceta ainda protegida pela calcinha. Estávamos bêbados demais para pensar, excitados demais para esperar, só queríamos provar o corpo um do outro e gozar juntos o prazer que tinha sido anunciado a noite toda.

Os gemidos dela me enlouqueciam. Eu sentia minha calça ficando úmida e, quando toquei sua calcinha, rosnei como um cão ao descobri-la completamente encharcada. Eu queria chupar aquela mulher, ouvi-la gritar de prazer, provar seu sabor até estar ainda mais bêbado e inebriado por ela.

Porém, ela tinha pressa!

Gargalhando como quem está numa grande aventura, abriu o botão da minha bermuda e puxou meu pau para fora da cueca, agarrando-o com força, fazendo-o doer, arrancando-me um gemido de antecipação. Ela se sentou no vaso e o engoliu com sua boca pintada de vermelho.

Fechei os olhos e deixei que ela fizesse o que quisesse, usasse sua língua, lábios e dentes. A sensação daquela boca quente e molhada sugando meu pau ainda mexe comigo, mesmo sendo apenas uma lembrança. E não é à toa, afinal quase gozei em sua garganta quando ela mordeu meu pau, encarando-me perversamente.

Puxei-a até a colocar de pé, virei-a de costas para mim, busquei uma camisinha no bolso de trás da bermuda embolada no chão e invadi sua boceta apertada, socando com força, levantando-a a cada vez que estocava, vendo seu rabo redondo e empinadinho se abrindo contra meus quadris.

Foi uma loucura sem tamanho, dentro de um banheiro público, numa boate praticamente vazia, ao nascer do dia, depois de passar a noite inteira dançando com ela.

— Goza para mim, safada! — eu dizia em seu ouvido, gemendo, mordiscando o lóbulo de sua orelha. — Goza sem se importar se estão ouvindo ou não! Foda-se!

Levei uma de minhas mãos para o meio de suas coxas, achei seu clitóris – o acesso facilitado por causa da depilação total que ela adotava – e o massageei até que ela se contorcesse.

— Grita! — ordenei, e ela obedeceu. — Porra, gostosa, encharca meu pau!

Não aguentei muito mais e tive que dar murros contra a parede de mármore do cubículo, tamanha a intensidade do prazer que senti.

Puxei meu pau de dentro dela, encarando-a completamente embevecido com sua beleza, com seu jeito safado, sorriso malicioso e olhos brilhantes. Joguei a camisinha no lixo e a puxei para fora daquele banheiro, pensando em levá-la para uma volta no iate.

— Ei! — uma das amigas, das que não tinham acompanhado Frank mais cedo, chamou-a. — Temos que resgatar a Allly e a Èlene, senão vamos perder o voo!

— Voo? — inquiri assustado.

— Temos que voltar para Paris — ela disse.

— Agora? — Ela assentiu. — Não!

A gostosa que acabara de gozar no meu pau e me dera um orgasmo fenomenal se aproximou, depositou um selinho na minha boca e se afastou.

— Foi uma noite deliciosa!

Bufei, resignado, não satisfeito, porque ainda queria comer mais aquela mulher, experimentar todo o seu corpo jovem, pele macia, músculos duros e tenros. No entanto... tinha valido a trepada no banheiro. Eu não ia sair correndo atrás dela implorando por mais.

— Boa viagem! — despedi-me.

Ela apenas piscou, sua maquiagem pesada, cílios longos e pintados da mesma cor que os cabelos. Desapareceu para sempre, sem nem mesmo me dizer como se chamava.

— Ei, stronzo, para de sonhar! — Frank ri, e eu volto a prestar atenção ao que ele fala. — A área que eu quero não é muito grande, apenas o suficiente para...

— Do que você está falando?

— Porca miseria, Theo! A casa de praia que quero construir para minha família, cazzo! O motivo pelo qual te chamei aqui! Está com a cabeça onde, porra?!

— A do meu pau? Enfiada naquela garota dos cabelos rosa naquela boate. Mal lembro do rosto dela, mas as sensações...

— Coglione! Está precisando de uma mulher pra foder, porra?!

— Não! — Lembro-me da que deixei essa manhã na cama. — Foi só uma lembrança. — Aprumo-me. — Vamos falar de negócios!


São Paulo, meses depois.


— A mulher anda irredutível! — Millos conversa comigo enquanto tomamos café. — Há anos tenho ido pessoalmente tentar negociar a compra, mas ela se recusa e tem conseguido manter suas contas em dia.

Desvio meus olhos do computador.

— Ela já sabe que temos a promissória?

— Não, simplesmente me expulsou de lá a pontapés quando fui tentar negociar! — Ri. — Você sabe que eu não curto uma mandona, mas ela me deixou levemente excitado.

— Porra, Millos, não fode o assunto! — Meu primo ri e deixa sua xícara vazia sobre o pires. — Já temos a dívida do pai dela; o que estamos esperando para executá-la? Isso a deixará sem alternativa a não ser vender o maldito bar para quitá-la!

— Theo, é uma promissória assinada há quase dez anos! Vamos ter que cobrar e...

— É para isso que aquele desgraçado do Kostas está aqui! — grito sem paciência. — Eu não aguento mais esses irlandeses no meu caminho!

— Ela é brasileira, Theo, o pai é que era...

— Foda-se! — Bato na mesa. — Tenho um diretor que não queria ter porque a porra da Malu Ruschel desertou para ficar embrenhada no mato com um peão e, ainda assim, não consigo fechar essa maldita conta!

— Ele conseguiu comprar a dívida do agiota e...

— Você está se escutando?! — Passo as mãos pelos cabelos. — Um diretor nosso negociou – sabe-se lá como – com um agiota! Esse mesmo cara está por aí, lidando com nosso dinheiro, comprando e vendendo imóveis em nosso nome! Não confio uma vírgula nele!

Millos se levanta e desenrola as mangas da camisa para esconder suas tatuagens. Eu não entendo por que ele cisma em manter essa pose conservadora aqui dentro da empresa, mas, como bem sei, cada um dos Karamanlis é fodido de algum jeito. Apesar da barba cheia e grande e do brinco que nunca tira, ele anda pelos corredores vestido de terno e gravata, sapatos de couro e uma pose de empresário burguês que só convence quem não o conhece.

— Eu preciso daquele quarteirão, Millos!

— Nós nem temos um cliente para ele...

— Foda-se! Quero a merda do quarteirão! — Ele concorda. — Vire-se para conseguir!

— Vou conversar com Kostas sobre a execução da promissória.

— Faça isso! Meu irmão pode ser um babaca filho da puta, mas é bom no que faz.

— Engraçado é que ele diz o mesmo de você!

O taciturno, mas incrivelmente inteligente grego sai da sala sacudindo a cabeça, sem entender como é que conseguimos trabalhar juntos sem nos matar. A verdade é que trabalhamos muito bem! Temos todos os mesmos propósitos, deixar nosso nome marcado na história desta empresa.

Nenhum Karamanlis da minha geração saiu ileso à maldição familiar. Todos temos fantasmas e esqueletos escondidos em nossos armários, traumas da infância, da adolescência ou apenas somos fodidos de nascimento. A amizade que tenho com Millos é algo que fugiu à regra, pois nutrimos sentimentos verdadeiros entre nós que vão além dos laços sanguíneos que nos unem.

O restante... bem, eu não conheço o restante o suficiente para julgar ou sentir qualquer coisa por eles. Nós nos suportamos por causa da empresa, do dever para com nosso nome e, claro, do respeito ao pappoús.

Kostas, alguns anos mais novo que eu, é um advogado competente, também um babaca arrogante que fala com qualquer pessoa se achando o rei de todo conhecimento e inteligência. Por vezes tenho que lidar com as merdas dele aqui dentro da empresa, principalmente quando sua falta de tato extrapola os limites de sua diretoria e acaba afetando outras.

Alex, um dos caçulas, é engenheiro, criativo, tem bons relacionamentos com todos na empresa, menos com a própria família. É o único que não faz nenhuma questão de agradar qualquer que seja dos Karamanlis, chegando por vezes até a renegar o nome em alguns trabalhos, quando assina apenas o sobrenome de sua mãe.

Kyra, a única menina e a mais nova de todos os filhos de Nikkós, é a única que não tem qualquer relação com os negócios da família. Montou sua empresa, não usou nossa grana, não tem qualquer contato – a não ser quando contratamos seus serviços em eventos – conosco. Suspiro ao pensar nela, principalmente porque ela não dirige a palavra a mim há mais de duas décadas.

O ponto de equilíbrio, o conciliador, a nossa Suíça, para explicar melhor, é o Millos. Meu primo tem relacionamento com todos os irmãos, escuta e aconselha a todos e, ainda assim, consegue permanecer neutro dentro da confusão que é essa família nada ortodoxa. Todos o conhecem por sua serenidade, sensatez e capacidade de pensar com racionalidade mesmo em meio ao caos. No entanto, eu sei a verdade! Por baixo de toda a placidez aparente, Millos esconde um lado seu que chega a me arrepiar os pelos.

A verdade é que nem mesmo o Karamanlis mais sensato é são!

Ando pelo escritório, noto cada detalhe da decoração, trazendo à mente o significado e o momento em que cada peça aqui disposta foi comprada. Algumas delas são remanescentes de um relacionamento que tive há alguns anos com uma decoradora de interiores; entre uma foda e outra, avaliávamos os objetos juntos e os comprávamos. Poucas aqui vieram de casa, na Grécia: uma deusa Atena esculpida em Carrara, um relicário da minha avó e um tinteiro do vovô.

Um fato sobre mim que me deixa orgulhoso é que sempre gostei de arte. Mesmo não tendo nenhum tipo de aptidão para pintura e escultura, gosto de apreciá-las, de viver cercado pelo belo, diferente e único. É claro que valorizo muito os clássicos, as obras e artistas já consolidados, mas meu faro empresarial também sabe reconhecer um iniciante com potencial, por isso tenho muitos investimentos na área.

Para estar por dentro de tudo o que acontece, preciso viver constantemente ligado a esse mundo, e isso, no momento, tem gerado alguns problemas. Fora compromissos e reuniões de trabalho, meu lazer é praticamente frequentar exposições, vernissages, festivais e até concursos. Por conta disso, só tenho me envolvido com mulheres do meio – o que para mim é maravilhoso, afinal, além do sexo, tenho o plus da conversa –, e a maioria delas não se encaixa no perfil da futura senhora Theodoros Karamanlis.

Pode parecer machismo, talvez seja, mas vocês hão de convir que, por mim, nunca haveria uma senhora Theo Karamanlis. Contudo, não posso deixar de atender a um pedido do meu avô. Imagina se o velho Geórgios, ateniense tradicional, aceitaria ver o neto mais velho se casando com uma artista alternativa, cheirando a incenso e tintas?

Esse é um dos motivos pelo qual comecei a frequentar as galerias mais chiques e tradicionais, com o pessoal da alta-roda paulistana e deixei de lado esse meu lado indie de aquarelas e carvão. Não entendam mal, não desgosto de estar nesse meio mais rebuscado, claro que não, arte é arte, e eu a aprecio de qualquer forma, mas é fato que as mulheres são bem diferentes. As descoladas são sempre mais divertidas.

Já que tenho que me casar, não quero um mero compromisso de conveniência. Por isso estou procurando, conhecendo, abrindo-me a encontrar uma pessoa com a qual eu me veja acordando de manhã e me deitando ao lado à noite. Se a encontrei? Não! Mais uma vez peço a vocês que não me entendam de forma errada. Eu não procuro por amor, essa porra já provou a mim que só serve para deixar o homem idiota e burro, então nem está sendo considerada. O que eu preciso é de uma parceira, uma mulher que eu consiga ver ao meu lado como amiga, além de ser a mãe dos meus filhos. Esse é o problema! Eu não as vejo assim, pelo menos nenhuma que tenha conhecido até agora.

Confiro as horas no Omega que uso no pulso esquerdo e balanço a cabeça. O tempo não para! Vovô não está ficando mais novo; eu não estou ficando mais jovem, e as chances de eu confiar o suficiente em uma mulher a ponto de pedi-la em casamento e gerar uma criança são quase nulas!

— Doutor Karamanlis? — Rômulo me chama, interrompendo meus pensamentos preocupados. — A reunião sobre o terreno para a rede de shoppings começa em 10 minutos...

— Obrigado, estarei lá. — Caminho até minha mesa para pegar umas anotações. — A equipe da senhorita Reinol já está posicionada?

Meu assistente apenas assente, ainda parado à porta, um tanto tenso, mais do que o normal.

— Algum problema? — inquiro diretamente, esperando a reposta positiva, pois é óbvia.

— Eu não me sinto à vontade para contar isso, mas...

— Pare de dar voltas e diga de uma vez! — A impaciência toma conta de mim, e de novo questiono minha sanidade ao manter o Rômulo como meu assistente. Ele é competente, sim! Organizado? Muito! Entretanto, tem umas manias que me tiram do sério, e, infelizmente, a falta de objetividade é uma delas. — Rômulo!

Ele pula assustado com o tom da minha voz e fecha os olhos, torcendo as mãos. Dá-me paciência!

— Aconteceu uma pequena desavença há pouco lá na sala de reuniões e... — bufo, arrependido, pois odeio fofoca — a Kika abandonou a apresentação e disse que o Leonardo é quem vai falar com o cliente.

Arregalo os olhos, surpreso.

Wilka Reinol, a Wilka a quem ele se referiu, é nossa gerente de hunter, ou seja, é a responsável pela equipe que pesquisa os imóveis de acordo com a necessidade dos clientes. Assim que a Malu Ruschel nos deixou para bancar Maria Chiquinha no meio do mato, foi natural que Kika assumisse a gerência, pois se mostrou pronta para a responsabilidade durante o período de férias da antiga gerente. Ela é um pouco mais solta que a Malu – que era um tanto obcecada pelo trabalho –, mas tão responsável e obstinada quanto a outra.

Kika, sob meu ponto de vista, tem tudo o que a Malu tinha e mais a humanidade necessária para o serviço. Ela sabe liderar a equipe, é carismática, todos os funcionários do prédio a conhecem, gostam dela e fazem de tudo para ajudá-la. Alex, meu irmão, brinca que, se a presidência da Karamanlis fosse por voto popular, ela ganharia fácil, e é bem provável.

Por isso mesmo, saber que alguém conseguiu irritá-la a ponto de fazer com que ela abandone uma apresentação na qual se empenhou... Respiro fundo, já sabendo o que aconteceu.

— Kostas?

Rômulo parece que vai desmaiar.

— É... Ele estava conversando com ela antes de... — Faz um gesto nervoso com as mãos. — Eu não sei o que houve, mas o pessoal ficou todo tenso e pediu para eu vir buscá-lo.

Não! De novo, não!

Há alguns meses, eu tive que apartar uma briga feia dos dois, quando Kostas decidiu interferir no trabalho da Malu no afã de fechar a conta do Grupo Yannes. A ex-gerente ainda estava no Pantanal, e Kika era quem gerenciava em seu lugar, e a pequena morena colocou o dedo bem no meio da cara do meu irmão, de mais de 1,90m, sem titubear nenhuma só vez.

Secretamente eu torci por ela, querendo vê-la dando uns bons tapas naquela cara anglo-grega e deixando o nariz dele, já quebrado sabe Deus lá como, ainda mais torto. Nunca tive tanta vontade de incitar a guerra, mas me lembrei do motivo para o qual tinha sido chamado e tentei conciliar os dois.

Kika, ainda bufando, mandou-nos à merda e saiu da sala batendo a porta. Kostas ria, mas eu pude perceber que havia um brilho de admiração nos olhos dele. Nós não estávamos – e nem estamos – acostumados a defender alguém com unhas e dentes como ela fez com a Malu. Foi realmente admirável e providencial, porque logo depois tudo se revolveu, e o próprio Kostas admitiu que as duas estavam certas ao não apresentarem a fazenda pantaneira ao cliente.

Depois desse episódio, no entanto, os dois passaram a se evitar, e a paz voltou a reinar na Karamanlis, o que me faz voltar a pensar no que aconteceu dessa vez para que a trégua tenha tido fim.

— Você vai atrás da Kika. — Rômulo fica branco. — Vou ter uma palavrinha com o meu irmão.

— Mas ela... — o assistente tenta argumentar, tremendo de medo.

— Coragem, Rômulo! — Passo por ele, segurando o riso por vê-lo apavorado por ter de falar com a Kika. — Ela não vai te arrancar pedaços... — Sorrio para ele. — Pelo menos, não muito grandes!

Escuto-o gemer e não resisto mais. Gargalho.


Andar pela Karamanlis sempre foi algo complicado. Não por causa das dimensões do prédio, que também não é pequeno, mas porque sempre cruzo com um ou mais gerentes ou diretores, e eles sempre têm algo a comentar comigo. Sempre!

A empresa ocupa do décimo ao vigésimo andar do enorme prédio comercial na Paulista. Os andares inferiores estão divididos para duas subsidiárias: a K-Eng, empresa que concentra todos os serviços de engenharia – em seus vários nichos – e que é dirigida pelo meu irmão caçula; e a K-Decor, empresa de arquitetura e design de interiores, também sob o comando do Alex, mas com acompanhamento do Millos.

Somos uma holding, atendemos o Brasil inteiro não só na compra e venda de imóveis, como também no gerenciamento, na construção desde o projeto, planejamento, decoração e design. Nossa cartela de clientes é formada, em sua esmagadora maioria, por empresas, mas às vezes temos alguns prédios residenciais sendo atendidos de alguma forma pela Karamanlis.

Nossa estrutura é completa, temos, para exemplificar, um andar inteiro dedicado ao pessoal de TI, que coordena todas as nossas redes, tão necessário para o pessoal que trabalha com georreferenciamento de imagens, satélite e sobreposição de manchas para marcarmos as propriedades. Temos utilizado muito essas ferramentas para regularização de fazendas, áreas enormes para as quais, se o serviço fosse feito em campo, levaríamos o triplo do tempo e gastaríamos o dobro de funcionários.

A divisão jurídica, comandada pelo Kostas, ocupa quase um andar inteiro, deixando apenas três salas para a gerência de hunter, que eu não sei por que ainda mantenho lá, mas que nunca me incomodou tanto quanto agora.

Definitivamente, os hunters precisam sair do andar antes que a Kika e o Kostas se matem!

Abro a porta que dá acesso ao enorme salão onde ficam os advogados, cada um trabalhando atentamente à sua mesa ao estilo baia, e sigo para a sala toda de vidro ao fundo.

Kostas me vê antes mesmo que eu bata à porta e faz sinal para que eu entre.

— Seu assistente já fofocou com você. — Ele ri, deixando seu charuto de lado.

Olho carrancudo para o fumo, algo que ele sabe que eu desaprovo dentro do local de trabalho, mas que ele sempre alega que é só para relaxar, coisa de seu sangue inglês. Porco arrogante!

— Rômulo já me informou da situação que ocorreu — corrijo-o. Sim, eu acho meu assistente fofoqueiro, mas só quem pode falar essa porra sou eu, por isso, defendo-o. — Eu pensei que já houvesse se estabelecido um tipo de trégua entre vocês aqui na Faixa de Gaza.

Kostas dá uma risada escrota quando eu falo do apelido do andar.

— Aquela mulher é muito petulante! — Dá de ombros. — Se eu fosse o CEO dessa “bagaça”, já teria mostrado a ela a porta da rua.

— Ainda bem que você não é! — corto-o. — Eu não demito funcionários porque eles falam umas verdades a um bundão como você. Kika é extremamente competente, e eu não tenho motivo algum para me desfazer dela.

— O bundão aqui é você! Ela enche meu saco, feministazinha do sovaco cabeludo, e ainda tem a coragem de querer ditar regras!

Balanço a cabeça, perdendo a paciência.

— Você enche meu saco, e, se eu pudesse, te colocaria para fora daqui agora mesmo...

— Só que você não pode! — Ri, arrogante, pegando seu charuto de volta. — Sou dono dessa merda tanto quanto você! Então me engula!

— Você está certo, e que isso fique bem claro, Kostas. — Caminho para perto dele. — Só aturo suas merdas porque não posso te pôr para fora, não porque eu goste de trabalhar com você. Não interessa se é um puta advogado, foda-se! Eu demito sem nenhuma dor na consciência funcionários que tenham metade da sua arrogância. — Soco a mesa, e ele fica sério, deixando de lado o sorriso debochado. — Agora, não me tente! Aposto com você que todos já estão de saco cheio de suas piadinhas preconceituosas, de seu jeito de se achar melhor que todos e, principalmente, de todas as confusões que você arruma aqui dentro! Duvido que os integrantes do conselho estejam dispostos a pôr o rabo na reta para te defender.

Vejo que atingi o ponto fraco dele, pois o filho da puta sabe que não tem apoio de ninguém aqui dentro. Nem mesmo Millos – o único a conseguir conviver com essa criatura – o defenderia diante do conselho.

Kostas por fim apaga o charuto, caminha pela sala e abre a porta de vidro.

— Sai.

Rio e constato que tudo o que falei, apesar de feri-lo, não o mudará jamais.

— Para de se meter no trabalho dos hunters — aviso-lhe antes de sair. — Eu não vou segurar essa porra e nem ficar igual a uma maldita galinha pisando em ovos com meus funcionários por sua causa! Tá frustrado e entediado? Vá trepar ou qualquer outra coisa que o deixe menos imbecil do que é.

— Sim, chefe — debocha.

— É bom lembrar disso, Konstantinos Karamanlis. Eu sou o seu chefe!

Saio daqui notando as expressões assustadas dos advogados, sem me importar o mínimo, afinal todos sabem que os irmãos Karamanlis não se dão. Ando sem olhar para trás, confiante, ainda que tenha consciência de que, se pudesse, meu irmão enfiaria uma faca em minhas costas sem dó nem piedade.

Tenho absoluta certeza de que só estou no comando porque passo certa segurança ao conselho administrativo da empresa. Se não fosse assim, aposto que nenhum Karamanlis estaria na diretoria executiva. Meu pai foi um desastre, era bom gestor, mas esteve envolvido em um escândalo após outro e, por fim, começou a fazer péssimas escolhas nos negócios, o que custou sua cabeça.

Kostas tem a agressividade de Nikkós. É o filho que mais se assemelha a ele, não só na aparência, mas também no gênio intratável. Detesto me comparar ao meu pai, mas não posso negar que a inconstância dele na vida pessoal, embora de um jeito completamente diferente, faça parte de quem sou. E, já em Alex, vejo uma impulsividade enorme, também herdada do maldito que nos gerou.

Quanto a Kyra... Bem, nunca pude formar opinião sobre ela. Tudo o que sei de minha irmã veio através de informações trazidas pelos outros. Não temos nenhum tipo de contato. Ainda tenho a imagem da menininha alegre que se pendurava nos meus ombros, mas isso foi há tanto tempo que não consigo mais ligar a imagem da mulher à da criança.

Sinto culpa por ter criado essa barreira entre nós. Reconheço meu erro, porém, já não somos mais imaturos, poderíamos ter lidado com isso se Kyra quisesse. Ela só não consegue me perdoar.

Encontro-me com Rômulo à espera do elevador. Ele se encolhe um pouco quando me vê, e eu dou um tapinha em seu ombro.

— Acalmou a fera? — brinco.

— Ela já retornou à sala de reuniões. — Sorrio, orgulhoso dele. — Mas xingou nossa espécie de todas as formas possíveis. — Rio, imaginando a cena. — Alguns que eu nem sabia que existia! Sabia que ela chama seu irmão de Bostas Karamanlis?

Gargalho, fazendo-o pular de susto.

— Ótimo apelido! — Ainda estou rindo ao entrar no elevador. — Por essas e outras é que ela tem meu total respeito! — Mal acabamos de entrar, vemos Kostas vindo em nossa direção. Com um sorriso malvado no rosto, aperto o botão para fechar portas, deixando-o para trás.

— Ele ia subir... — Rômulo argumenta.

— Não queremos o elevador fedendo, não é? — zombo, rindo de novo. — Bostas! Por que nunca pensei nisso antes?!

Meu assistente me olha como se eu tivesse enlouquecido, com suas grossas sobrancelhas escuras quase encostando em seus cabelos e a testa lotada de gomos de expressão. Minha gargalhada não cessa, imaginando a cara de Millos quando eu contar como o “todo poderoso” Kostas Karamanlis é chamado pelos funcionários da empresa.

 

 

Entro na sala de reuniões e dou de cara com a Kika, com seu jeito simpático e elétrico, distribuindo instruções, rindo com os colegas e averiguando sua apresentação. Nosso cliente ainda não chegou, mas não deve tardar muito; é senso comum que nós não gostamos de atrasos.

Cumprimento a equipe rapidamente com um leve inclinar de cabeça, desabotoo o último botão do meu paletó e me sento no lugar que sempre ocupo quando estamos nesta sala. O material em cima da mesa, com todas as informações sobre o imóvel escolhido pelos hunters chama minha atenção e, mesmo sabendo que isso os deixa apreensivos – admito que sinto certa perversidade de minha parte ao gostar de deixá-los assim –, pego a pasta e começo a folhear página por página lentamente.

Confiro as horas no meu relógio e encaro a Kika com as sobrancelhas franzidas.

— Senhorita Reinol? — chamo-a e bato de leve o dedo indicador sobre o relógio. — Alguma notícia?

Imediatamente ela chama uma mulher de sua equipe, que sai apressada da sala com um telefone celular na mão. Faço um gesto para que Kika se aproxime, e ela vem andando, sem nem mesmo demonstrar um pingo de apreensão, em minha direção. Admirável!

— Pois não, doutor?

— Você confirmou com o cliente a reunião hoje?

— Certamente! — Ela levanta o queixo. — Isso é a primeira coisa que fazemos, antes mesmo de disparar o memorando para a Diretoria Executiva informando o horário. Meu departamento é extremamente competente, doutor.

— Eles não costumam atrasar — observo. — Rômulo! — chamo meu assistente. — Traga aqueles relatórios que eu tinha separado para assinar enquanto espero. Odeio perder tempo!

Ele sai apressado, e eu escuto o bufo impaciente de Kika Reinol.

— Eu conversei com o Kostas — disparo ao voltar a ler a última página do material, sem olhá-la. — Sinceramente estou ficando cansado dessas rusgas entre vocês. A partir de amanhã, vou solicitar ao Millos que seu setor seja realojado.

— O quê?! — sua voz, um pouco mais alta que o normal, ecoa pela sala, causando um silêncio sepulcral e atraindo minha atenção. Ergo a sobrancelha direita para ela e cruzo os braços sobre o peito, deixando a pasta com os arquivos da apresentação sobre a mesa.

— Não faz mais sentido manter vocês dois tão próximos. — Abaixo meu tom de voz: — Não vou ficar bancando a mamãezinha e separando a briga de vocês como dois fedelhos. Se não sabem se comportar como adultos e profissionais, então não podem conviver no mesmo espaço.

— Isso é muito injusto, doutor! — sua voz, embora baixa, soa completamente irritada. — Eu nunca me meto no trabalho do doutor Konstantinos, embora a recíproca não seja verdadeira!

— Eu sei, Kika — chamo-a pelo apelido para demonstrar que não a culpo. — No entanto, a situação está saindo do controle, e eu não estou disposto a mandar você embora e, embora queira fazer isso com ele, não tenho esse poder.

Kika respira fundo e assente.

— Desculpe-me por estar causando tantos transtornos, doutor Theodoros. — Ela sorri. — Eu não sou uma pessoa difícil de lidar, mas ele...

— Eu sei, não se preocupe com isso.

— Eu espero que... — ela se interrompe de repente, e eu olho para a direção em que está olhando. Vejo a funcionária que saiu há pouco da sala fazendo muitos gestos para sua chefe, mesmo tentando disfarçar quando percebe que a estou observando também.

— Venha até aqui! — chamo-a.

A moça, provavelmente uma estagiária, pois é muito nova, fica vermelha e começa a torcer as mãos ao se aproximar.

— O que houve, Laura? — Kika pergunta.

— Liguei para nosso cliente e... bem... — A menina intercala olhares entre mim e Kika. — Ele disse que ligaram mais cedo cancelando a reunião.

— O quê?! — mais uma vez a voz da gerente ecoa pela sala, e eu fecho os olhos, prevendo mais confusão, pois é óbvio que não foi ela quem mandou desmarcar.

Kostas, seu filho da puta!


— O dia foi uma sucessão de merdas! — xingo ao entrar no carro, notando a expressão debochada de Dionísio.

Afrouxo a gravata e abro o botão torturador da gola da camisa, liberando assim meu pescoço do enforcamento diário. Eu preciso de um uísque! Abro o compartimento no meio do banco de couro da parte de trás do carro, onde estou, pego a garrafa da única marca de uísque que bebo, The Macallan, sirvo uma pequena dose no copo de cristal e respiro fundo antes de degustar a bebida escocesa.

Pela garganta, sinto a leve queimação. Notas de café e mel se misturam e logo se vão, deixando ao final um amargo sabor amadeirado, típico do single malt envelhecido em barris de xerez. A dor de cabeça que ameaça despontar some, e meu pescoço vai amolecendo, a cabeça pousa no encosto do banco e, finalmente, depois de um dia de cão, eu me sinto relaxar.

Ah, o milagre feito por uma dose de uísque de uma garrafa de pouco mais de dois mil reais!

Levanto um brinde imaginário ao meu dia fodido, querendo que ele se vá e que eu consiga livrar todas as tensões e preocupações de minha mente para que possa ter uma noite decente, ao menos.

O riso de Dionísio é de quem entendeu meu ritual, e eu esboço um leve repuxar de lábios, ainda muito rabugento para sorrir de verdade, e tomo mais um gole imaginando chegar a casa, tomar um banho e me submeter às competentes e pesadas mãos de Lavínia antes de trepar a noite inteira de novo.

— O doutor vai direto para seu apartamento?

Abro os olhos para olhar Dionísio pelo retrovisor e confirmo.

— Se o trânsito permitir, espero estar lá em breve. — Tiro o paletó e pego o celular, abrindo minha playlist favorita. — Dio, ligue o aparelho de som.

Em seguida ouço o jazz da incomparável Ella Fitzgerald e solto um suspiro de prazer, o primeiro neste dia desgraçado. Tento não pensar no Kostas, muito menos na enorme vontade de dar umas porradas naquela cara debochada, para não perder o pouco da paz que ouvir Ella e Armstrong cantando Isn’t this a lovely day? me traz.

Ah, como eu amo jazz! Não é à toa que mantenho um enorme piano de cauda no meio da sala principal do meu apartamento, além de ter centenas de discos – sim, são long players – cuidadosamente guardados na sala de som que fiz, com o toca-discos reinando absoluto. Chamem-me de retrô, sinceramente estou me fodendo para o que pensem disso. Prefiro, sim, o som da agulha sobre o vinil, o som encorpado e os ruídos que só um LP podem me proporcionar.

Não sou avesso à tecnologia, não quando sou cercado dela, mas há coisas de que não abro mão, como uma bela comida caseira com ingredientes frescos como comia em Atenas; meus discos, como vocês já souberam; e dirigir meu Aston Martin de câmbio manual.

Ah – sorrio olhando meu copo de scotch –, prefiro single malt a blend em matéria de uísque. Bem conservador para a maioria dos bebedores de hoje.

O trânsito agarra em alguns pontos do caminho da Paulista até o Vila Nova Conceição, onde moro, porém, Dio consegue me deixar na garagem do meu prédio exatamente 30 minutos depois de termos saído da Karamanlis.

Saio do carro levando comigo o paletó e a insuportável – e conservadora – pasta de couro com alguns documentos. Espero o elevador para me levar até o 36.º andar, para a cobertura duplex que comprei há três anos. Como detesto perder tempo, enquanto espero, mando mensagem para a Lavínia, uma deliciosa morena com quem tenho saído há algumas semanas, marcando um encontro com ela aqui em casa.

A resposta chega quando estou dentro do elevador com uma vizinha, e tenho de refrear a língua para não assustar a pobre senhora que me faz companhia neste pequeno cubículo. A safada me mandou uma foto – sem cabeça, como sempre – da sua indumentária de hoje à noite, um conjunto de lingerie sexy e quente que já me deixa completamente duro e ansioso.

Remexo-me desconfortável, porque conheço bem as calças desses ternos modernos, mais apertadas e de tecido mais fino, e escondo a evidência da minha excitação – ou seja, meu pau duro – colocando a pasta e o casaco na frente.

A senhora – cujo nome não sei, pois não conheço a maioria dos meus vizinhos, apenas os cumprimento quando nos esbarramos pelos corredores –, desce no 19.º andar, e eu sigo – livre e excitado – para a cobertura, embora tente me acalmar para não assustar a Vanda, governanta e cão de guarda do meu apê.

— Bem-vindo, doutor — ela me saúda assim que as portas do elevador se abrem no living, e se apressa a pegar minha pasta, deixando-me, como sempre, constrangido por ela ficar carregando peso enquanto eu sigo confortável como um inútil.

— Eu levo a pasta, Vanda, obrigado. — Evito que ela a pegue, mas ainda assim recebo um olhar feroz. — Tudo o que preciso é tomar um banho e daquele seu jantar.

Ela dá risadinhas.

— Já está quase pronto — diz orgulhosa da sua eficiência. — A Sandra ligou confirmando o horário de amanhã, e seu primo virá também.

Assinto, deixando-a para trás enquanto sigo para o quarto. Sandra é minha personal trainer, e nós treinamos juntos três vezes na semana e, às vezes, Millos, que também é seu aluno, adianta seu horário para vir malhar conosco.

Eu gosto de exercícios, sempre gostei. Sou magro naturalmente, e os treinos me ajudam a fortalecer os músculos e a manter um peso proporcional ao meu tamanho. Millos já faz a linha bombado, e isso combina com ele e sua personalidade.

Tenho apenas uma tatuagem, que fiz bêbado demais para lembrar, enquanto meu primo parece um gibi, todo desenhado. Gosto de malhar com ele porque sou competitivo até a raiz do cabelo, e ele não fica atrás, então ficamos medindo forças e levando um ao outro ao limite da resistência.

Minha suíte é enorme e confortável, toda em tons de cinza e azul-marinho, com paredes off-white, concebidas com carinho por uma de minhas parceiras de cama. Tenho sorte de ter conhecido mulheres que, além de ótimas de cama, eram profissionais competentes.

Caminho até o closet e deixo meu terno no local reservado para que Vanda o leve até a lavanderia, uma espécie de bag. Abro a gaveta de gravatas, enrolo a que usei hoje e a coloco no lugar, em seguida fazendo o mesmo com as abotoaduras. Verifico se meus sapatos estão precisando de limpeza e, como estão limpos, pois mal saí da empresa hoje, coloco-os na sapateira e jogo as meias e a cueca no cesto de roupa suja.

Eu sou organizado em casa também. Gosto de ser assim.

Programo o chuveiro, abrindo as duas duchas em direções diferentes, em jatos fortes e frios – está um calor do cão! – e gemo de prazer ao senti-los na pele.

Dia fodido!

Fico um tempo debaixo da ducha principal, avaliando cada momento da confusão que foi o final da tarde no escritório. Primeiro, a tensão entre a Kika e o Kostas, minha discussão com ele e, por último, o pedido de demissão dela.

Merda!

Pelo que posso julgar da personalidade dela, não será fácil convencê-la a voltar, e eu não posso perder outra gerente desse nível na empresa, não mesmo! Penso na discussão com o Kostas, nas palavras duras e verdadeiras que trocamos um com o outro e tento entender por que somos desse jeito. Que maldição é essa que nos mantém separados quando temos tudo para sermos unidos?

Balanço a cabeça, impedindo que me perca nestes pensamentos que nunca levam a lugar algum. Não há o que fazer para consertar anos de muros levantados em torno de cada um de nós. É impossível transpor as barreiras que o tempo e nossa situação ergueram. Não há nada a fazer!

Agora, preciso me concentrar nos negócios e no maldito pedido do pappoús! Tenho que trazer Kika de volta, comprar a porra daquele boteco na Vila Madalena e achar uma mulher que esteja à altura de ser a mãe do bisneto de Geórgios Karamanlis.

Escuto um barulho na porta do banheiro e abro um sorriso ao ver Lavínia parada na entrada. Ela se encosta ao batente, olha meu corpo inteiro com fome brilhando nos olhos e morde o lábio inferior. É o que basta para meu corpo, mesmo sob os jatos frios, reagir.

— Vem aqui! — chamo-a, mas ela nega.

— Finja que não estou aqui... — sussurra. — Deixe-me ver como você toca uma pensando em mim.

Sinceramente tenho vontade de revirar os olhos para ela, mas, para não quebrar o clima, faço o que me pede. Seguro meu pau bem forte e, lentamente, vou deslizando a mão para baixo e para cima, sem nunca tirar os olhos dos dela. O tesão vai aumentando, e eu fecho as pálpebras, evocando as imagens que me fazem gozar rapidamente. Som abafado, cheiro de fumaça, um perfume floral, cabelos cor-de-rosa e uma boceta quente e apertada... Merda!

Abro os olhos e encaro a mulher que me espera, apenas de calcinha e sutiã, roçando contra o batente da porta e gemendo.

— Vem aqui agora, Lavínia! — Abro a porta do boxe.

Ela arregala os olhos por causa do meu tom de voz impaciente e sorri, safada. Mal chega perto de mim, e já a viro contra a parede, seguro firme sua cintura, levantando-a e esfrego meu pau em sua calcinha molhada. Preciso foder essa mulher com urgência! Estico uma das mãos até o nicho onde uma caixa de acrílico guarda alguns envelopes de camisinha – eu adoro foder debaixo d’água, então sou prevenido – e rapidamente encapo meu pau e o afundo dentro dela.

As malditas sensações daquela noite ainda estão em minha mente, rondando-me como fantasmas. Enrolo os cabelos cacheados e negros no meu punho, mas, no ápice do prazer, vejo-os levemente rosados. Porra! Fodo-a com ainda mais força, ouvindo seus gemidos altos e descontrolados, pois sei o quanto ela gosta de trepar sem limites.

Quando a escuto falar que vai gozar, em desespero, aumento as estocadas para me deixar ir junto com ela e aliviar em parte essa fome que nunca cessa.

Foda-se, desconhecida!

 

 

Alguma coisa pinica meu nariz, e passo a mão, mudando de posição sobre os travesseiros. Estou em Atenas, com a família de minha mãe, vendendo peixe e tentando ser homem o suficiente para manter minha promessa. Não importa que eu não esteja preparado, não importa se tive de desistir de tudo, o amor é mais forte que tudo e por isso vou conseguir... vou...

Espirro.

Sento-me na cama, piscando os olhos, perdido no tempo e no espaço. Estava apenas sonhado de novo! Malditos pesadelos que, vira e mexe, estão retornando. Bufo. A vantagem desse é que não chegou ao apogeu do drama, porque alguma coisa... Uma risada abafada me faz olhar para o lado e encontrar um homem de quase 2m de altura, forte como um armário, cheio de tatuagens, com uma maldita pluma na mão.

— Porra, Millos!

O desgraçado cai na gargalhada, e eu me levanto da cama sem nenhum constrangimento diante da minha nudez e sigo para o banheiro.

— Não programou o despertador? — ele pergunta ainda no quarto.

— Programei. — Termino de mijar e dou descarga. — Você me incomodou com sua presença dez minutos antes. — Começo a escovar os dentes, e ele fica à espera. — Lavínia saiu daqui às 4h da manhã.

— Se elas não dormem aqui, não seria mais fácil comê-las em algum local neutro?

Saio do banheiro ainda secando o rosto, pego uma cueca no closet e a visto, voltando para o quarto.

— Não tenho problema algum com minha cama, pelo contrário! Prefiro meu espaço a qualquer outro. — Dou de ombros. — Você que tem essa mania de nunca trepar no seu apartamento.

Ele ri.

— Você sabe muito bem que eu não trepo! — Um sorriso descarado se forma em sua expressão. — Eu as conduzo ao prazer... É diferente!

Reviro os olhos.

— É claro que você trepa, porém, tem a mente mais fodida que a boceta de uma puta, por isso tem essas manias estranhas!

— Não fale do que você não sabe, Theodoros — adverte-me. — Cada um tem seu jeito de obter prazer; o meu é esse.

Concordo com ele, mesmo achando alguns de seus gostos um tanto estranhos demais para mim. Chame-me de conservador nisso também, mas tenho alguns limites bem definidos em relação às minhas fodas.

Millos me espera no quarto enquanto visto a roupa do treino, falando sobre um novo modelo da Ducati que está pensando em importar. O homem é completamente viciado em motos, faz parte de motoclubes e, nas férias, sai cortando estrada com esse pessoal. Já percorreu grande parte da América do Sul sobre duas rodas, fez a Route 66 nos Estados Unidos e percorreu toda a BR 101 aqui no Brasil.

Além disso, é obcecado por cerveja e fez vários cursos nessa área no mundo todo, produzindo sua própria bebida, buscando o sabor perfeito que seu paladar exigente ainda não encontrou em nenhuma marca já disponível. O desgraçado entende tanto do assunto que é convidado para festivais e fez parte do júri de vários campeonatos de mestre cervejeiro.

Millos mora em um loft, um antigo galpão que ele reformou todo. Na parte debaixo guarda suas motos e tem uma pequena oficina; na de cima, sem nenhuma divisória, ele tem uma confortável sala, uma cozinha industrial com os tonéis de cobre para a fermentação de sua cerveja e o quarto, onde nunca leva uma mulher para trepar.

Ah, esqueci... ele não trepa!

Tomamos juntos um suplemento de carboidratos pré-treino enquanto Vanda escuta alegremente as conversas de Millos sobre sua última experiência culinária – carne de rã marinada com cerveja – fazendo careta a cada vez que ele descreve o anfíbio sendo tostado na grelha.

Quando Sandra chega, já estamos os dois no segundo andar da cobertura, onde apenas uma enorme parede de vidro separa a academia da área de lazer com piscina, jacuzzi e área com churrasqueira gourmet.

— Bom dia, meninos! — Millos ri do cumprimento, porque a personal deve ser uns bons anos mais nova que nós dois, porém, sempre nos cumprimenta assim. — Prontos para suarem a camisa?

Um olha para o outro sem saber o que responder, pois nenhum usa camisa.

— Figura de linguagem, rapazes! — Rola os olhos. — Vocês, gregos, são muito literais!

Ela liga o som; uma música calma enche todo o ambiente.

— Bora alongar!

Bufo impaciente, mesmo sabendo da importância de preparar os músculos para os exercícios intensos, querendo dar uma surra no Millos hoje.

Vamos ver quem vai pedir arrego, meu primo!


Depois que terminamos o treino, tomamos nosso café da manhã antes de sair para o trabalho.

Millos sempre se veste aqui quando vem treinar comigo, então há sempre alguma roupa dele no quarto de hóspedes. Em poucos minutos o homem tatuado, debochado e um tanto sombrio desaparece, e ele assume seu papel de executivo calmo, frio e competente. A camiseta manchada, os jeans rasgados e os coturnos – roupa com que veio aqui antes de vestir a de malhar – dão lugar ao terno italiano, sapatos de couro, camisa de algodão egípcio e gravata de seda. Os cabelos revoltos estão no lugar, penteados para trás com algum tipo de pomada que os deixa fixos, a barba foi penteada e o brinco de argola dá lugar a um pequeno ponto na orelha, quase imperceptível.

Sinceramente não sei se ele adotou esse personagem para trabalhar com o pai, meu tio, ou se é algo que ele prefere fazer para não chocar ou causar descrença em nossos clientes. Realmente nunca entendi, e ele também nunca quis explicar, então não sei o que se passa na cabeça desse Millos Karamanlis executivo. O que me importa é que ele é meu braço direito, aquele em quem confio de olhos fechados nos negócios, porque, mesmo sendo tão diverso de sua personalidade, a frieza do executivo Millos é o que nos ajuda a controlar alguns incêndios dentro da Karamanlis.

— Soube da merda do Kostas dessa vez? — indago assim que entramos no carro, com Dionísio a dirigir.

— Como não saberia? A história correu pelos corredores da empresa no final da tarde de ontem. — Ele puxa mais a manga de sua camisa a fim de esconder as tatuagens do pulso. — A senhorita Reinol pediu mesmo demissão?

— Pediu! — Rio. — Foi uma saída de rainha no meio da discussão e com direito a água gelada na cara! — Gargalho. — Confesso que, se fosse café quente, eu teria sentido um pouco mais de prazer, mas nem tudo é perfeito.

— Porra, Theo, o Kostas está incontrolável, e eu não entendo o motivo. — Eu o encaro franzindo a testa, porque nunca falamos do meu irmão sem ser em termos profissionais, mesmo sabendo que Millos é quase um confidente de ambos. — Ele mudou muito nesses dias, parece... sei lá, encurralado.

— O Kostas encurralado? — debocho. — Aquele filho da puta é mais frio que uma pedra de gelo! O que poderia mexer com ele a ponto de deixá-lo assim?

Millos respira fundo e dá de ombros, fechando-se em copas novamente, como sempre faz quando o assunto é a vida pessoal dos meus irmãos. Esse jeito dele, essa lealdade toda me conforta e me frustra ao mesmo tempo. Sei que ele não comenta com os outros as coisas que lhe conto, mas gostaria de saber mais do que se passa com meus irmãos mais novos, principalmente Alex e Kyra.

Independentemente do que eu queira, sei que, por ele, nunca vou ficar sabendo de nada, e uma aproximação entre mim e meus irmãos é coisa muito improvável, então finjo não ligar para isso, mas sinto a culpa apertar meu peito a cada vez que algumas lembranças voltam.

— Seu assistente já confirmou sua presença no baile dos Villazzas no Ano Novo? — Assinto. — Não sei se vou. No último a que fui, eles ainda estavam em Curitiba!

— Muitos anos, já! Não tenho como não ir, sou amigo do Frank e quero ajudar a instituição do Bernardo Novak, que é uma das eleitas deste ano para receber parte das doações.

— Ah, sim, isso eu também quero fazer. A empresa da Kyra é quem está organizando, você sabe? — Balanço a cabeça positivamente. — Foi por isso que ela não pegou a festa da Karamanlis este ano...

— Foi a desculpa que ela deu, na verdade — corto-o. — A empresa dela já está crescendo sozinha, ela já pode se dar ao luxo de dispensar um contrato conosco e, assim, manter-se cada vez mais distante.

— Que seja... — Ranjo os dentes de raiva por ele não comentar nada. — Estou pensando em fazer um recesso entre o Ano Novo e a segunda semana de janeiro. — Millos estica as pernas, gemendo lentamente, e um sorriso de vitória me escapa. Está dolorido, desgraçado? — Ainda não sei se vou até Frankfurt conversar com um mestre cervejeiro de lá ou se faço alguma viagem longa de moto, mas estou querendo ficar fora dos negócios por um tempo.

Sinto uma pontada de inveja dele, pois costumo tirar no máximo uma semana de descanso entre as festas – Natal e Ano Novo –, e a única viagem que consigo fazer é ir até a Grécia para visitar o vovô, e nesse ano, como irei viajar em fevereiro no ano que vem para o aniversário dele, não vou tirar sequer essa semana de recesso.

— Eu não vejo problemas. Esse período é o mais devagar na empresa. — Ficamos um tempo mudos, apenas ouvindo o som do aparelho do carro tocando alguma estação de rádio. — Eu vou fazer aquele filho da puta ir atrás da Kika!

Millos me encara, olhos arregalados, e não por causa da fala inesperada depois do silêncio que fizemos.

— Eu acho que isso vai dar mais merda do que já deu.

Sorrio.

— Não, ele vai ter que pedir desculpas e prometer se comportar. — Encaro Millos, olhos brilhando, pensando em como obrigar o meu irmão arrogante a fazer minha vontade. — Preciso da sua ajuda!

 

 

Meu humor melhorou drasticamente depois da conversa com o Millos no carro e o plano que arquitetamos para fazer aquele idiota prepotente consertar a merda que fez aqui na empresa. Fazer Kostas ir até a Kika para implorar que volte será bom para mim por dois aspectos: terei minha gerente de volta e ainda colocarei meu irmão no seu lugar, abaixando um pouco sua crista de galo de briga.

Rômulo está irritantemente quieto hoje, e desvio o olhar a toda hora para sua mesinha apenas para conferir se o tagarela está bem e respirando. Hoje a empresa está um pouco sombria. Os funcionários estão falando mais baixo, há menos pessoas nos corredores, e os setores estão funcionando bem, mas sem o ritmo frenético a qual todos estamos acostumados.

Uma apatia geral tomou conta do lugar, e o clima aqui dentro está tão opressivo que me sinto sufocando algumas vezes. É como estar de luto, e isso é uma coisa incrível, pois bastou uma funcionária querida pedir demissão para parecer que o sol se pôs dentro deste prédio.

Preciso dessa mulher de volta!

Se o babaca do meu irmão não conseguir o feito de reintegrá-la à equipe, vou ter que jogar sujo e recorrer a Malu Ruschel lá no meio daquele mato onde vive. Espero conversar com ela para que convença sua amiga a voltar para nós.

Levanto-me, sentindo a tensão sobre meus ombros e meu pescoço duro. Ponho a culpa na tensão, nunca admitindo que a disputa ferrenha com Millos no treino de hoje de manhã me causou isso. Tenho 41 anos, não sou um garotão, mas sempre me consolo dizendo que pratico exercícios há muitos anos, então meu corpo está acostumado.

A verdade é que os anos estão realmente passando, e talvez eu esteja sentindo os efeitos do deus Cronos no corpo. Noitadas de sexo, balada e exposições têm me deixado cada vez mais cansado, além disso, comecei a notar que tenho necessitado de mais horas de sono do que precisava antes. Talvez tenha que ir a algum médico fazer um check-up ou buscar um geriatra.

Dou uma risadinha baixa, achando graça do meu humor negro. Fui contagiado pelo clima de enterro da Karamanlis, e esse silêncio todo me faz divagar. Gosto e estou acostumado à correria, a Rômulo transitando em volta de mim como mosca de padaria, sempre prestativo, falante e, na maioria das vezes, incômodo.

Porra, estou sentindo falta até da inconveniência dele!

Caminho até a vidraça da sala, olho a Paulista movimentada de carros lá embaixo e volto a refletir sobre a vida, principalmente a profissional. Já faz anos que assumi o cargo de CEO da empresa, anos que vim morar no Brasil, e, apesar de tudo isso, algumas coisas continuam como antes: o trabalho intenso, a desarmonia entre os irmãos Karamanlis, meus hábitos noturnos, hobbies e, claro, a maldita conta da Vila Madalena. A confusão de ontem desviou um pouco minha atenção desse objetivo, mas não posso perder o foco, não quando estou cada vez mais perto de conseguir comprar o maldito boteco!

— Rômulo — chamo-o sem olhar em sua direção. — Peça ao Millos para que venha até aqui, por favor.

— Ele estava em reunião com o doutor Kostas... — Viro-me para encará-lo, e o homem franzino e de óculos fundo de garrafa arregala os olhos. — Eu vou ver se ele já retornou.

Meu assistente sai todo atabalhoado do escritório, deixando alguns post-it caídos no chão marcando seu caminho como na história de João e Maria. Respiro fundo para não me irritar com ele, pois, apesar de um tanto fofoqueiro e atrapalhado, ele é muito eficiente, não posso negar. Apesar de todos os incômodos, eu não o trocaria por nenhum outro.

Volto a pensar na Vila Madalena e que Millos ficou de levantar as condições para executarmos a promissória assinada pelo falecido proprietário do bar. Preciso saber em que pé estamos para traçar novas estratégias de ataque, afinal, quero começar o próximo ano já com essa conta fechada e, assim, ter menos uma coisa a torturar minha cabeça.

Escuto passos apressados, típicos do meu assistente, e a porta se fechando.

— Ele já vem, doutor — diz resfolegando, o que demonstra que foi correndo até a sala do meu primo. Quanta falta de sutileza!

Balanço a cabeça, segurando o riso debochado ao imaginar a cena, e lhe agradeço:

— Obrigado.

Enquanto espero, decido tomar o... (não lembro quantos já foram hoje) café do dia. Sigo até a máquina de café expresso que fica no aparador de bebidas e coloco uma cápsula de um blend de cafés no modo ristretto enquanto aguardo meu primo. O cheiro agradável enche o ambiente do escritório, deixando-o menos opressor e mais acolhedor. Aspiro a fragrância lentamente, apoiado no aparador, olhos fechados e absorvendo o prazer que essa bebida me proporciona. Sim, sou viciado em café!

— Theo? — Millos bate à porta, tirando-me do transe gourmet. — O que houve?

Faço um gesto para que ele entre e aponto para a máquina, que está passando dois do néctar de café que mais gostamos. Um ristretto só é possível quando a máquina tem a pressurização correta e os grãos são de qualidade. O pó sai praticamente seco, tamanha a velocidade que a água fervente passa por ele, extraindo o melhor do grão.

Nunca me acostumei ao jeito brasileiro de tomar café longo ou mesmo o famoso carioquinha, acrescentando água para diluir a bebida. Preciso sentir o sabor do grão, as notas intermediárias dele e as que ficam depois na boca. No caso desse blend que fiz, há um leve frutado que diminui a acidez e depois resta na boca um sabor mais forte, tal qual chocolate amargo.

Pego a xícara de Millos e a entrego para ele.

— Como foi com o Kostas?

Millos relaxa, sentando-se numa das cadeiras em frente à minha mesa e se encostando nela, desfrutando do cheiro do café.

— Acho que mordeu a isca. Só espero que ele saiba convencê-la. — Dá de ombros. — O que mais você quer?

— Vamos beber o café primeiro. — Pego a outra xícara e tomo um gole. — Quero notícias sobre a promissória da família Hill.

— Ah... — Ele sorve lentamente a bebida quente, deixando-me em suspenso com sua resposta. — Encorpado e naturalmente doce, perfeito! — elogia o café.

— A máquina faz tudo! Para de enrolar e fala logo.

O desgraçado ri, tomando mais um gole.

— Kostas estava analisando, mas, com essa confusão toda... — Eu xingo, e ele sorri mais uma vez. — Estou pensando em fazer uma visitinha a Duda Hill de novo. Vamos?

— Eu não tenho nada a tratar com ela. Quero executar a porra da promissória e expulsá-la de lá! — Deixo o café de lado, contrariado demais para apreciar seu sabor. — Já estou esperando por isso há muito tempo, Millos. Estou começando a perder a paciência.

— Eu acho que você deveria tentar conversar com ela. — Franzo o cenho, sem entender. — Dizer que temos a promissória e que vamos executá-la, mas oferecer a ela a chance de comprar antes de irmos à justiça.

— Por que eu faria isso?

Realmente não entendo o que Millos quer com essa sugestão. Oferecer a promissória para ela pagar? Como se ela tivesse condições de arcar com o valor exorbitante sem vender o maldito bar! Se a pressionarmos demais, ela pode acabar vendendo para outra pessoa, e aí teríamos que começar as negociações do zero. Isso nunca!

— Por que você quer tanto aquele quarteirão? — indaga-me, fazendo com que eu o olhe surpreso.

Ficamos um tempo assim, encarando um ao outro, apenas o som da digitação do Rômulo a pairar sobre nós. Tento procurar um motivo mais forte para comprar o lugar, mas não consigo achar nenhum convincente o suficiente para desviar a atenção dele da verdade. Não quero nada ali, nem tenho sequer ideia do que fazer e para quem oferecer, mas é uma conta deixada pela gestão do meu pai, o que me impulsiona a querer comprar apenas para esfregar em sua cara que eu consegui, que o derrotei.

— Consiga comprar a merda do bar — digo entredentes, a voz baixa e sem desviar meus olhos dos dele. — Meus motivos não interessam, é uma conta aberta que prejudica a reputação da empresa, e, como CEO, não posso deixar isso acontecer.

— Justo! — Ele se levanta. — Vou fazer tudo o que estiver ao meu alcance para satisfazer a sua vontade e não prejudicar a reputação da empresa no mercado.

Aquiesço, porém, não satisfeito, reconhecendo certo sarcasmo em sua voz.

— Millos. — Ele me encara. — Eu preciso fazer isso.

Meu primo bufa.

— Eu sei, Theo. — Caminha até onde estou e toca em meu ombro, falando baixo para que apenas eu o ouça: — Eu queria mesmo que você não precisasse, assim como não achasse que deve ao pappoús até a sua alma! — Faço careta e abro a boca para defender nosso avô, mas ele continua: — Eu sei que você precisa disso e vou ajudar no que puder.

Agradeço mesmo não emitindo nenhuma palavra. Conhecemo-nos há tantos anos, já passamos por tantas coisas juntos que não é necessário que sempre haja palavras entre nós.

Millos sai da sala, deixando-me sob os olhares curiosos de Rômulo, que provavelmente ouviu os sussurros e ficou de antena ligada atrás de uma notícia quente.

— Volte ao trabalho, Rômulo! — admoesto-o.

Ele fica vermelho e abaixa a cabeça para volta a digitar no computador.

Preciso arranjar uma sala isolada para esse língua de trapo! Ah, se não fosse competente!

Sento-me à mesa e olho para a tela do computador, onde um contrato já ratificado pelo jurídico está à espera da minha assinatura eletrônica. Esse dia não está sendo fácil, embora o trabalho continue normalmente como em todos os outros. Não compreendo o motivo, talvez por ter conseguido a maldita promissória, mas a vontade de conseguir comprar o boteco e o colocar no chão tem estado constantemente em minha cabeça. Muito mais do que o normal!


Os cheiros se misturam aos sons em um caos perfeito, quase sistêmico, se for possível considerar que alguma confusão possa ter um padrão implícito. Há um ritmo a ser seguido, um conjunto de ações e reações em cadeia que faz com que todo o nosso processo ande em harmonia.

É assim a minha cozinha!

Respiro fundo mais uma vez, espantando o cansaço e buscando energia para continuar. Estou empreendida neste ritmo desde às 2h da tarde, quase 12 horas direto, mas envolvida em todos os passos da organização e funcionamento desde às 8h da manhã, quando acordei.

Ser chef de cozinha não é só glamour, quer dizer, nunca foi! O que as pessoas veem na televisão, os grandes cozinheiros que aparecem na mídia com seus restaurantes renomados, a maioria agora é só empresário, cozinha vez ou outra, mas todos já ralaram muito para conseguir algum nome.

Quando decidi ser chef, eu tinha oito anos de idade, estava na cozinha da minha avó materna no interior e fiz meu primeiro bolinho de chuva regado a açúcar e canela. Abro o sorriso por causa da força das recordações. As lembranças olfativas e gustativas, na minha opinião, são as estrelas do cérebro. Quem nunca pensou num prato e na lembrança pôde sentir seu cheiro e o sabor? Quem nunca foi transportado a uma lembrança afetiva ao comer? Eu sempre acreditei nesse poder e, a partir daquele dia, na casa da minha avó, percebi que queria deixar essa marca na vida das pessoas.

Foi o último ano com minha mãe. Ela já estava doente, câncer de mama, e o clima em casa não estava dos melhores. Papai andava deprimido, o bar não estava indo bem o suficiente para arcar sozinho com as despesas depois que ela teve que parar de trabalhar na cozinha, e meu irmão – com 14 anos na época – andava estranho e pelos cantos.

Estávamos em férias escolares, e vovô foi nos buscar para passar umas semanas com eles. Imagino o quanto estava sendo duro ver a filha definhando aos poucos, perdendo a luta contra essa doença tão dura. Diagnóstico atrasado, demora no acesso ao tratamento, tudo isso contribuiu para que ela vivesse seis meses depois da descoberta do câncer.

Metástase, a palavra que mais me dói ouvir até hoje.

Meu maior medo também.

A tristeza e o desânimo tomaram conta da família assim que o médico contou ao papai que o estágio era terminal. A mastectomia, o esvaziamento total das duas mamas, não foi suficiente para ela, pois as células cancerígenas já haviam se espalhado pelo abdômen. Tudo o que podíamos fazer era tentar dar a melhor qualidade de vida possível aos poucos meses que lhe restavam.

Minha mãe, Maria Aparecida Braga Hill, era a pessoa mais forte e alegre que eu conheci. Era a luz da nossa casa, a razão da vida do meu pai, quem eu queria ser quando crescesse. Sua doença não diminuiu suas características e, naquelas férias, ela pegou meu primeiro feito culinário – um tanto cru por dentro e tostado por fora –, colocou-o na boca e revirou os olhos de prazer.

— Hummm, Duda, tem o sabor da minha infância! — Sorriu.

— Ficou um pouco queimado... — tentei argumentar, desculpando-me.

— Isso é questão de prática, princesa! — Ela se abaixou para ficar da minha altura, seu corpo bem magro, olhos fundos e com olheiras, o lenço na cabeça. — O importante não é só a aparência da comida; são as sensações que ela nos traz, o que ela nos faz sentir. — Pegou mais um dos meus tristes bolinhos. — O seu bolinho de chuva me fez voltar a ser criança, encheu meu peito de alegria, e é isso que importa.

Abracei-a, orgulhosa, sentindo-me quase uma heroína por ter feito tudo isso por ela com apenas farinha, água, ovos, açúcar e sal. Minha cabeça infantil imaginou como ela se sentiria se eu lhe fizesse um prato como aqueles que via em suas revistas de culinária. Mamãe ficaria tão feliz!

Foi a partir desse dia que passei a me interessar pela comida, pelos ingredientes, pela mágica que a mistura dos sabores proporcionava.

Muito tempo depois que ela nos deixou, suas palavras, a felicidade em seu rosto e o carinho do seu abraço ficaram marcados em mim. Eu queria essa sensação novamente, eu precisava sentir que algo que fazia era capaz de tornar a vida de alguém mais feliz.

Aos 13 anos insisti com o papai para trabalhar no bar. O Hill era um boteco mesmo, no sentido mais estrito da palavra. Os frequentadores eram pinguços que se encostavam ao balcão do bar quando papai abria e só iam embora expulsos quando ele decidia fechar. Tudo o que servíamos era torresmo, ovo colorido e alguns caldos que fazíamos em dias programados. Segunda e quarta era dia de mocotó; terça e quinta era bucho, e o final de semana era inteiro da rainha do Hill: a feijoada.

Um cozinheiro muito louco, mas com o tempero mais incrível que eu já provei, era quem comandava a cozinha quase doméstica do bar. Ele foi meu primeiro carrasco e logo me colocou na limpeza, frustrando meus planos de ser a estrela do Hill. Assim, ficava horas depois do colégio a lavar a louça – que não era pouca, porque o homem era bagunceiro – e limpar o chão.

Ainda lembro que a primeira coisa que ele me pediu para fazer – que envolvesse o preparo de alimentos – foi picar temperos. Chorei descascando cebolas igual a quando assisti ao filme Titanic na TV e cortei o dedo algumas vezes. O filho da mãe ria toda vez que eu gemia ou xingava, mas não desisti.

Em pouco tempo ele estava me ensinando as poucas técnicas que sabia, obtidas com a experiência de trabalhar em cozinhas desde seu primeiro emprego. Meu carrasco virou meu anjo da guarda, e, toda vez que papai ameaçava me proibir de ir para o bar trabalhar, ele me defendia dizendo que precisava da minha ajuda.

Foi por causa dele que pude estudar fora. Quando fiz 15 anos, papai queria fazer uma festa para comemorar, mas Dalto – o cozinheiro anjo da guarda – conversou comigo sobre cursos de gastronomia e citou a França como referência. Meu presente foi o curso de francês, segundo ele, necessário para me abrir as portas.

Aos 18 anos comecei a cursar a graduação em gastronomia, um orgulho para meu pai, que, àquela altura, já acreditava que eu conseguiria ser uma grande chef. O curso durou quatro semestres, e, aos 21 anos, já trabalhando como ajudante de cozinha em um restaurante de uma rede internacional de hotéis, consegui um feito incrível, uma bolsa para estudar na mais famosa escola de Paris.

Eu tinha tudo o que sempre sonhara, consegui passar num processo seletivo muito criterioso, esforcei-me durante anos para aprender a língua, ganhei a bolsa, mas não tinha grana para viajar e me manter por lá. Nessa época papai tinha um carro seminovo, e não pensou duas vezes antes de vender o veículo e me entregar todo o dinheiro para que eu pudesse passar os meses do curso sem apertos.

Fiz contato com outra moça brasileira que já morava em Paris e consegui alugar uma vaga em seu apartamento, perto do instituto. Foram os melhores meses da minha vida! Dediquei-me de corpo e alma àquilo, ignorei tudo. E a recompensa veio!

Um mês antes de concluir o curso, fui convidada a integrar a equipe de um grande restaurante na capital francesa. Cargo pequeno, salário baixo, mas o primeiro degrau para a realização de todos os meus sonhos de menina.

— Duda! — Manola, meu braço direito aqui na cozinha agitada desse pub que já foi um boteco, me grita, tirando-me do flashback no qual estava. — A cozinha fecha em meia hora, e estamos cheias de pedidos ainda. Não estou achando o molho extra que você tinha preparado mais cedo.

Seco minhas mãos no avental e vou até a pequena câmara fria que instalei aqui há pouco mais de um ano. O investimento foi caro, mas valeu cada centavo, pois consegui armazenar mais ingredientes e de uma forma muito mais segura do que no freezer.

Entrego o molho que preparei mais cedo para Anabele, uma das assistentes de cozinha, e volto a olhar a costelinha de porco no forno, a última da noite.

Estou cansada mais do que o normal, pois tive mais uma noite insone. Tem sido difícil dormir em casa, e, mesmo quando tudo está calmo, pego-me sem nenhuma vontade de fechar os olhos. Nós temos estado em um ritmo alucinante desde que o Hill caiu nas graças do pessoal aqui na Vila Madalena e chamou a atenção da imprensa especializada. Saímos em algumas revistas, ganhamos destaque, mas ainda assim sinto como se andasse no fio da navalha todos os dias.

Não trabalho tanto para enriquecer, apenas preciso manter um teto sobre minha cabeça, o mínimo de estrutura para minha tia Do Carmo e para Tessa e conseguir saldar todas as dívidas deixadas pelo meu irmão e pelo papai.

Uma dor enorme me invade toda vez que penso nos dois. Minha família se desintegrou por completo! Primeiro, mamãe, levada pelo câncer, depois meu irmão, que nunca se recuperou da perda dela e se afundou nas drogas, morrendo de overdose e, por fim, papai, há alguns anos, devido a problemas cardíacos.

Meus avós maternos se foram ainda na minha adolescência, restando a mim apenas a tia Do Carmo e a Tessa. A sorte é que conto com todos aqui como se fossem da família.

Manola é, além de meu braço direito, uma grande amiga. Tenho muito orgulho dela, principalmente por nossas histórias serem tão parecidas em alguns pontos. Ela é filha do Dalto, o “carrasco” que me ajudou a ser a chef que sou hoje. O pai dela vive ainda em São Paulo, mas está aposentado, e, uma vez no mês, fazemos um almoço aqui no Hill, e é ele quem cozinha, deliciando-nos com seu tempero único.

O Arnaldo é nosso faz-tudo, aquele que nos mata de rir com suas piadas bem contadas, que faz as melhores carnes do mundo e que vive sendo consolado por todos por seu infortúnio no amor. Sua grande paixão foi o Marlon, um segurança que trabalha aqui no Hill algumas vezes na semana, mas o homem nunca lhe deu chances. Sofríamos com aquele amor platônico todo, essa é a verdade!

Além desses dois, que são cozinheiros incríveis, temos duas técnicas em gastronomia que sonham em se tornar um dia chefs de grandes restaurantes: a Cláudia, responsável pelas sobremesas da casa, e a Anabele, mestre dos molhos.

Aqui no Hill nós não temos cardápio de restaurante, é de bar mesmo! Bolinhos variados, anéis de cebola empanados, batatas feitas de várias formas e, claro, nossas porções de carne. O carro-chefe são as asas de frango com molhos, uma receita que aprendi com um americano e que caiu no gosto da nossa clientela.

Claro que, com um cardápio tão “tradicional” assim, nós nunca teríamos nos destacado se não fosse a constante variação que fazemos nas receitas. Inventamos onions rings recheadas com vários sabores; batatas com muitos tipos de coberturas, e nossas carnes sempre têm algum molho ou tempero especial.

Além disso tudo, eu conto com o Kiko, o mestre em drinques que encontrei há alguns anos servindo numa barraca de festa, fazendo freelance. Notei o talentoso bartender que ele era e não me arrependo nada disso. O homem é demais, além de ser um grande amigo.

No bar, ele trabalha com mais três ajudantes, que se encarregam de toda a bebida do pub e do controle do estoque. Kiko é um ótimo gerente, dei esse posto a ele por puro merecimento, demonstrando minha admiração. Ele sabe trabalhar em equipe, é muito organizado, sabe contornar conflitos e ter pulso firme com o time de vinte garçons e garçonetes que temos na casa.

O pequeno boteco ao estilo “pé sujo” hoje é uma empresa que gera renda e mantém dezenas de famílias.

Esse é mais um dos motivos pelos quais não posso fraquejar e deixar que as dívidas deixadas pelo papai e pelo meu irmão me façam perder tudo. Principalmente para os Karamanlis!

Respiro fundo só de pensar naquele bando de engravatado abutre rondando o pub como se ele fosse um animal agonizante prestes a perecer. Eu vendo o bar para qualquer um que quiser continuar o negócio, não importa que não seja meu – embora isso me doa –, mas nunca para eles.

Falta pouco para eu quitar a dívida do meu irmão. Papai começou a pagar ainda vivo, e eu continuei os pagamentos depois da morte dele. Devo a um traficante! Esse não é o tipo de pessoa a quem alguém quer dever, então os pagamentos precisam ser feitos religiosamente.

Mais um mês, e isso acaba!, penso aliviada.

Leonan – meu credor – me garantiu que, depois da dívida quitada, não haveria mais o nome da família Hill nos cadernos dele, e eu acredito que mantenha sua palavra. Para qualquer pessoa, essa minha fé em um traficante, quando meu irmão morreu de overdose, pode parecer contraditória, mas tem explicação. Quando João Pedro chegou ao fundo do poço e ficou fora de casa por mais de um mês, papai se desesperou e foi atrás do Leonan. Ele não fornecia mais nada ao meu irmão, mesmo porque JP já usava crack, droga com que ele não “trabalha”, porém, o homem conhecia todo tipo de “fornecedor” e a galera que se amontoava na cracolândia.

Acharam meu irmão lá, e meu pai, mesmo sem nenhuma condição financeira, levou-o para uma clínica de reabilitação. Pasmem, mas quem emprestou o dinheiro para financiar a recuperação foi o Leonan, e é por isso que eu lhe pago até hoje, mesmo porque ele se arriscou muito emprestando esse dinheiro, uma vez que é apenas um dos “gerentes” da boca.

Nós tentamos, mas JP não conseguiu se reerguer.

Quando voltei de Paris, ele já estava de novo vivendo nas ruas. Papai estava desesperado, doente, e eu, mesmo frustrada por ter dado tudo errado no meu sonho de viver na Cidade Luz e ser uma chef reconhecida, fiz a promessa de fazer qualquer coisa por eles. Cheguei precisando de apoio e consolo, e, mesmo em meio a toda essa situação – que ignorava até voltar para casa –, meu pai me recebeu de braços abertos.

Meu irmão foi encontrado morto na rua, um choque e, ao mesmo tempo, um alívio para nós. Ele estava irreconhecível, doente, parecendo ter o dobro da idade que tinha e sofrendo muito. O vício é uma doença, e o crack é quase uma sentença de morte. Pouquíssimas pessoas conseguem se livrar dele, e é por isso que, quem consegue, merece receber todo apoio e consideração, porque é uma luta enorme, uma superação.

Papai estava medicado, tocava o bar, e eu voltei a trabalhar na cozinha e comecei a mexer nos cardápios. No princípio ele não gostou muito, mas depois foi aceitando a ideia de modernizar as coisas. O dinheiro começou a entrar, porém, sempre que eu tocava no assunto reforma, ele desconversava.

Só descobri que ele era viciado em jogo logo depois do funeral, mas apenas soube o tamanho do problema há dois anos, quando recebi a “visita” de um dos agiotas que emprestou dinheiro a ele. Ele devia muito!

Tentei ir pagando ao longo desse tempo, no entanto, os juros que ele praticava só tornaram tudo uma grande bola de neve. Eu estava enxugando gelo e totalmente sem saída. Se vendesse o Hill, conseguiria quitar a dívida, mas como iria continuar mantendo as pessoas que dependem de mim e que necessitam desse trabalho? Além disso, esse é o único legado da família que me restou, pois a casa do meu pai, onde moro hoje, fica no andar de cima e faz parte da propriedade.

Eu tinha esperança de conseguir quitar a débito e fiz um investimento futuro que poderia me render um dinheiro suficiente para amortizar todos os juros e depois eu tentaria renegociar a dívida, mas algo aconteceu.

Fui tentar pagá-la há alguns meses, e, simplesmente, o agiota não me atende. Sempre entrei em contato pelo único número que ele me deixou. Entretanto, é como se nunca tivesse existido.

Um frio percorre minha espinha ao imaginar os prováveis motivos para que o homem não me atenda mais, e eu temo pelo que possa me acontecer.


A noite começou com correria. É sempre assim quando vou à abertura de um vernissage ao qual estou patrocinando. Dessa vez não será pintura, mas sim um jovem escultor descoberto em Paraisópolis que faz seu trabalho com argila, sucata ou qualquer outro material que possa transformar em arte.

Antes ele vendia suas esculturas como artesanato em uma feira de rua, e um dos meus contatos no mundo das artes me ligou assim que viu o material dele. Claro que o rapaz, de apenas 21 anos, tinha muito a se refinar ainda, mas era claro como o dia o talento que tinha para transformar em realidade tridimensional qualquer coisa que viesse à sua imaginação.

Assim que conversamos, propus que ele fosse estudar com um amigo meu, um megaescultor brasileiro cujas peças estão no mundo todo, e assim comecei a organizar seu caminho até o dia de hoje. Viviane, meu braço direito nos negócios com artes, levou-o a várias exposições, workshops, festas e qualquer outro evento que o ajudasse a fazer networking. Enquanto isso, ele estudava, e eu bancava suas despesas e o local onde trabalhava.

Dez meses depois ele já tinha uma quantidade absurda de material de qualidade surpreendente para ser apresentado, e Viviane começou, então, a organizar a exposição, a espalhar uma coisinha aqui e outra ali sobre ele, a mostrar – mesmo que de relance – algumas das melhores peças dele a colecionadores a fim de deixá-los curiosos.

Claro que exatamente essas peças são as que eu já separei para minha coleção particular, que já serão mostradas como vendidas nesta noite, causando assim alvoroço e incitando os outros compradores a adquirirem mais esculturas.

É assim que esse mercado funciona. Geralmente quem é colecionador é também um competidor nato e, ao saber da compra de um item que gostou, começa a sentir medo de ficar sem uma peça daquele artista e, mais tarde, ele se revelar o novo Michelangelo. É por isso que eu sou louco por essa área, por esse jogo pensante e cheio de estratégias como o de um tabuleiro de xadrez. Primeiro, preciso enxergar o potencial artístico de uma pessoa, depois é só começar a jogar e colocar cada peça em seu devido lugar até vencer o jogo.

Ah, não pensem que faço isso por caridade, claro que não! Eu sou um investidor, então tudo o que faço pelo artista está em contrato, e depois sou ressarcido de acordo com o sucesso obtido. Todavia, em algumas situações ocorrem contratempos que impedem o acordo de seguir em frente, nesse caso fico no prejuízo, e o artista volta a se virar sozinho. Meus prejuízos até hoje foram ínfimos diante do que já lucrei nesse negócio, por isso gosto cada vez mais de jogar esse jogo.

O único problema é conciliar meu trabalho burocrático na Karamanlis com a agenda que tenho que seguir, afinal, não “apadrinho” apenas um artista, geralmente tenho umas dezenas em vários estágios de preparação e sucesso. Por isso não dispenso a Viviane, pois ela coordena toda a agenda desse pessoal – excêntrico o suficiente, vale ressaltar – tão heterogêneo.

É uma empresa paralela que nem leva meu nome, porque há um impedimento no estatuto da Karamanlis de o CEO pertencer à diretoria, conselho ou ser sócio de qualquer outra empresa. Então, para todos os efeitos, Viviane Lamour é a dona, e eu, apenas um admirador, além de seu amante, como todos comentam.

Rio ao pensar nisso, dando o nó na gravata-borboleta de frente para o espelho. Conheci Viviane numa festa dada por um pintor muito louco, e ela, obviamente, chamou-me a atenção por seu belo porte, cabelos cortados bem curtos e com a franja alongada, completamente platinados a ponto de serem brancos, destacando sua pele morena. Por si só, ela já é uma obra de arte, de bom gosto, apenas para apreciação de pessoas com senso refinado e olhar crítico.

Saímos algumas vezes, fodemos na maioria delas, mas depois nos tornamos amigos, e o tesão passou. Hoje fico até incomodado com o jeito como ela me trata, como se eu fosse seu confidente, uma espécie de mulher ou amigo gay a quem ela conta detalhes íntimos (excitantes ou asquerosos). Nós nos divertimos juntos, já saímos com a mesma mulher ao mesmo tempo, e eu já a dividi com outro cara, mas tudo na base da amizade e sem nenhum tipo de amarra, e há muito tempo não temos mais esse contato, apenas o profissional e amistoso.

Além de Millos, ela é a única que sabe da vontade do pappoús e tem me auxiliado na busca de uma mulher que preencha o requisito da velha raposa grega – e os meus também, óbvio!

Viviane é mais do que minha sócia, ela é meu faro, o olhar de lince que preciso, além de ser uma ótima companhia, inteligente, divertida, moderna e muito agradável.

Meu celular toca, e vejo o nome dela aparecendo na tela, como se eu a tivesse evocado.

— Theo, meu lindo, você vai chegar a tempo?

Olho-me no espelho antes de responder. Traje de gala, smoking tradicional, preto, com camisa branca, gravata-borboleta de seda também preta e sapatos italianos de couro. Meus cabelos estão penteados para trás com uma pomada que os mantêm fixos, mas sem aquele aspecto molhado tão démodé, minha barba está bem aparada, do jeito que gosto, tudo no lugar.

— Vou, sim! — respondo abrindo a gaveta com relógios da Rolex.

Fico em dúvida por um instante, mas acabo optando pelo clássico day-date de platina, luneta lisa, pulseira presidente e mostrador de ouro branco 18 quilates, de fundo preto com listras. Clássico e moderno ao mesmo tempo!

Confiro o horário no convite e, em seguida, as horas no relógio já no meu pulso. Não gosto de joias, pulseiras, cordões e etc. O único acessório – que, nesse caso, é como uma joia, por ser feito de metal precioso – é meu relógio. Venho os comprando e colecionando há muitos anos e, quando mandei fazer o closet, incluí no projeto gavetas-cofre, todas com combinação para abrir, onde eles ficam aguardando para serem usados.

Tenho peças de várias marcas e muitos modelos de cada uma delas, com valores também variáveis, desde o de um carro popular ao de um apartamento. Minha paixão por relógios é a mesma que Millos tem por motos, por exemplo, ou a que o vovô tem por selos. Acho que todo Karamanlis gosta de acumular algo; não sei se ou o que meus irmãos gostam de colecionar apenas porque não os conheço bem.

Passo perfume antes de sair e, já na sala de estar, encontro-me com a Vanda a esperar, torcendo as mãos e parecendo ansiosa.

— Algum problema?

— Infelizmente, sim. — Ela dá um suspiro. — Minha filha acabou de me ligar... perdeu o bebê.

Caminho até ela e coloco a mão sobre seu ombro, consolando-a.

Vanda trabalha comigo há tantos anos que é como se eu conhecesse toda sua família. Ela tem dois filhos adultos – uma mulher de trinta e poucos anos e um rapaz ainda na casa dos vinte. Os dois moram longe, estudaram, foram trabalhar e formaram família. O rapaz – cujo nome nunca lembro – mora nos Estados Unidos e trabalha numa empresa de tecnologia lá. Já a mulher, Aurora – esse é um nome que nunca esqueço –, mora no Rio de Janeiro com o marido, com quem é casada há muito tempo.

Ainda me lembro da felicidade de Vanda ao me comunicar que finalmente seria avó. Por isso, entendo sua tristeza.

— Se precisar de uns dias para ficar com ela... — Ela concorda. — Vou pedir ao Rômulo que providencie as passagens de avião. — Pego o celular. — Ele tenta algo para hoje ainda?

Ela soluça, e isso me corta o coração. Nunca tive contato com minha mãe, e ela cuida de mim como se eu fosse seu filho. Claro que temos uma relação profissional, mas reconheço o trabalho e o afeto dela por mim.

— Eu gostaria de ir o mais rápido possível...

Rômulo atende no segundo toque, todo esbaforido como sempre, como se estivesse fazendo algum tipo de exercício que o deixasse sem fôlego.

— Rômulo, boa noite! Preciso que compre passagens para o Rio de Janeiro se possível ainda para hoje à noite.

— O doutor vai viajar? Não vi nada na agenda que...

— Rômulo... as passagens, estou esperando na linha — corto-o.

Ele demora alguns minutos, mas ainda posso ouvir sua respiração ofegante. Será que o filha da puta tem asma e nunca me contou?

— Tem um voo para às 22h20 com previsão para chegar lá no Galeão às 23h25, posso comprar?

Confiro as horas de novo; pouco mais de duas horas para a partida do voo.

— Compre e já faça o check-in online. É para a Vanda, têm todas as informações sobre ela na minha pasta pessoal.

Ele confirma, pergunta sobre a volta, e eu peço para reservar para daqui uma semana, mas com possibilidade de mudança.

Vanda vai correndo até seu quarto, entendendo o pouco tempo que tem até chegar a Guarulhos, e eu aproveito para ligar para o Dionísio, que já está na garagem do prédio me esperando.

— Dio, você vai levar a Vanda para o aeroporto o mais rápido possível. Ela tem que estar lá em uma hora para poder embarcar para o Rio. Vá rápido, mas com segurança. — Mal desligo e ligo de volta para o Rômulo. — Conseguiu?

— Já mandei o voucher para o celular dela, chefe! — diz todo animado, e eu reviro os olhos.

— Preciso que entre em contato com aquela empresa na qual alugamos carro e motorista quando me hospedei lá.

— Já fiz isso também, chefe! — sua voz agora está animada e orgulhosa.

— Muito bem! Bom trabalho, Rômulo! Boa noite!

Juro que posso ouvir um suspiro quando desligo o celular. Rio, balançando a cabeça, achando o jeito dele muito engraçado, mesmo que me irrite na maioria do tempo. Esse Rômulo!

Uma mensagem da Viviane chega, pois agora estou oficialmente atrasado, e retorno apenas para acalmá-la:

 

 

Sento-me no banco do piano, brincando com as teclas enquanto Vanda termina de arrumar sua bagagem, pensando em como as coisas mudam de uma hora para a outra dentro de uma família. Eu já senti essa reviravolta uma vez, embora na época tenha reconhecido que foi para melhor, mas ainda assim as lembranças dela causam a dor da sensação de não saber como teria sido.

Bufo de raiva por deixar isso voltar, mesmo depois de tantos anos. Tudo o que eu queria era uma noite de sucesso para meu investimento e, talvez, um sexo casual depois do evento.

Dedilho um blues aleatório ao piano para animar meu espírito antes de sair de casa.

Odeio essas noites corridas!

 

 

— Porra, achei que você não vinha mais! — Viviane me cumprimenta assim que eu piso na galeria. — Samuel Dias é o maior sucesso! — cochicha em meu ouvido enquanto finge um abraço. — Parabéns!

Retribuo o cochicho:

— Para nós dois!

Ela gargalha, e isso chama a atenção de algumas pessoas que estão tomando champanhe e conversando em um canto. Cumprimento-os com a cabeça, pois conheço a maioria deles, mas uma loirinha me atrai com seu sorriso contido e olhos esfomeados.

— Seus olhos não são bons só em detectar talentos... — Vivi sussurra. — Valentina de Sá e Campos, filha do deputado Cristóvão Campos e neta do diplomata Augusto de Sá.

— É um bom currículo! — debocho. — O que mais você sabe?

Viviane sorri lentamente, uma expressão que eu já conheço e que significa que ela sabe tudo o que eu quiser ter de informação sobre a garota.

— Tem 27 anos, formada em Direito, faz balé desde criança e toca piano muitíssimo bem. — Faço um gesto com a cabeça, admirado. — Pelo que eu sei, trabalha no escritório com a mãe, mas está estudando para ingressar na diplomacia como o avô.

— Uma mulher de carreira, então?

Vivi me olha como se eu tivesse duas cabeças, e ergo as mãos em rendição.

— Mulher de carreira! Que mente retrógrada! O que você quer, afinal? Uma dondoquinha que fique em casa sem fazer nada o dia todo?

— Uma mulher que cuide de meu filho e que não o abandone por causa da profissão.

Ela volta a me fuzilar com os olhos.

— Isso é revoltante, Theo! Há ótimas mães que também são ótimas profissionais, uma coisa não exclui a outra, pelo amor de Dadá! — ela sempre me arranca um sorriso quando diz essa expressão. — Você quer mesmo fazer isso? Começar a sair com alguém para se comprometer? Porque, a cada vez que encontra uma possibilidade, você arranja mais requisitos! Tá foda!

— Vamos cumprimentar o artista primeiro, depois você continua me contando a vida da menina. — Sorrio para ela. — Anota aí que eu também a achei muito nova.

— Puta que pariu, desisto de te ajudar! Aquela última tinha 35 anos, e você achou que ela já podia estar entrando na menopausa e que por isso ia ser difícil emprenhar. — Rola os olhos. — Cagão!

Gargalho, aceitando um copo de uísque que o garçom veio me servir.

— Macallan? — pergunto, sentindo o cheiro.

— Óbvio, trouxe exclusivamente para você. — Ela acena, e vejo Samuel Dias. — Elogie o rapaz, diga que eu contei como ele tem se saído bem nesta noite e se desculpe pela demora. Finja ser sensível!

— Mas eu sou, não preciso fingir! — respondo rindo, bebericando o uísque.

— O que há de errado? — Ela provavelmente percebeu que não estou bebendo de verdade, apenas fazendo cena.

— Estou dirigindo. Tive que pedir a Dionísio que me fizesse outro favor.

— Justo hoje? — mesmo com o sorriso congelado em sua face, sua voz não disfarça a irritação. — O que havia de tão importante?

— Nada para você se preocupar. — Cumprimento o artista da noite: — Parabéns, eu ouvi falar que tudo tem sido um sucesso!

— Obrigado, Theo! Nada disso seria possível sem...

— Não, nada disso! Vamos celebrar a sua conquista hoje! — corto seu discurso de gratidão. Ele não precisa disso, não lhe estou fazendo um favor. — Viviane, procure um garçom para servir algo ao rapaz! O serviço poderia estar melhor...

— Vá se foder, Theo — diz baixinho entredentes, mas faz o que peço.

Assim que ela se afasta, cumprimento Samuel como sinto que devo, sem Viviane a estar no meu ouvido dizendo o que e como devo falar com ele.

— Estou muito orgulhoso de você. Sabia que seu talento seria reconhecido. — Ele agradece. — Só se lembre daquilo que conversamos no primeiro dia em que nos encontramos.

— Claro! — Sorri. — Nunca abandonar minhas raízes e minhas essência, porque são elas que impulsionam meu talento.

— Exato!

Viviane volta com duas taças de champanhe.

— Podemos brindar? — pergunta animada.

Levanto o copo de uísque enquanto eles tocam de leve as taças. Novamente busco a garota loira com os olhos e tenho a grata surpresa de pegá-la me observando. Sorrio, aceno com a cabeça, e ela faz o mesmo.

Então vamos ver no que dá!


Acordei de ressaca hoje, e não foi por causa da quantidade de bebida que ingeri no vernissage; aquela quantidade, eu nem consideraria como beber. Viviane ficou puta por ter encarecido o orçamento com garrafas do meu uísque preferido e eu não estar bebendo, por isso, depois do evento, reuni todas as que sobraram e trouxe para meu apartamento.

Pensei que ia passar uma noite solitária, acompanhado apenas de um single malte e discos de jazz, mas, no meio da minha encenação de lobo solitário, Millos ligou me convidando para ir até seu loft. Neguei várias vezes, mas a porra do homem estava tão excitado com a cerveja que havia feito que não parava de insistir.

Resultado? A bebida realmente estava um espetáculo! Enchemos a cara, mesmo sob meus protestos, pois nunca curti muito beber cerveja, e comemos uns tira-gostos tão saborosos que teci elogios a sua habilidade na cozinha.

— Ah, não fui eu quem preparou, não! — Riu. — Encomendei no Hill.

Quase cuspi aquela porra para longe e o fuzilei com os olhos.

— Porra, eu querendo que aquela merda feche e você comprando lá? Está do lado de quem afinal?

— Do meu estômago! — respondeu comendo mais um dos bolinhos. — Estava com vontade de ter um acompanhamento, mas sem nenhum saco para preparar. Me lembrei do dia em que fomos lá e quis conferir se ainda continuavam tão gostosos!

— Ainda não te perdoo por aquela arapuca! — acusei.

Há uns dois anos, Millos me convidou para comemorar seu aniversário, coisa que vez ou outra fazemos quando ele está em clima de festa. Eu lhe disse que o encontraria no local, mas ele insistiu em me buscar em casa, e, quando chegamos e percebi que era no Hill, fiquei bem puto, mas a curiosidade de saber o motivo pelo qual o boteco estava se tornando um sucesso me impulsionou a entrar.

O que eu não contava era que, além de a mim, o filho da puta tinha convidado meus irmãos. Ficamos lá os quatro como se fôssemos bons amigos, compartilhando da armadilha de Millos. Aposto que Kostas e Alex detestaram cada momento, mas sorrimos, bebemos e experimentamos os quitutes da tal da Duda Hill.

Mesmo não gostando de admitir, era fato que a mulher sabia o que estava fazendo na cozinha. Os bolinhos tão tradicionais de um boteco tinham um requinte diferente, embora mantivessem a essência. Era como se ela conseguisse melhorar o que já era perfeito, e isso, tenho que admitir, é um dom.

Confessei isso ao meu primo? Nem sob tortura! Repreendi-o por ter comprado lá, aleguei que ela podia ter mandado envenenar os quitutes – fazendo um drama desnecessário, culpa da bebida –, mas não parei de comer.

— Ah, pedi a Sami para comprar para mim — respondeu.

— Você ainda está saindo com ela? — questionei surpreso, pois havia muito tempo não via a motoqueira que, de vez em quando, orbitava em volta dele.

— Não! Somos amigos, já disse isso, mas parece que você só enxerga a boceta de uma mulher, come até suas “amigas” — fez referência a Viviane.

— Por que você não gosta dela? — Provoquei: — Porque ela é independente, dona de si mesma e diz o que pensa?

— Não! Eu não curto mulher assim para comer, mas não tem nada a ver com o fato de eu achá-la fria e calculista, e nunca escondi isso de você. Aquela mulher gela meu sangue!

Ri do seu exagero, afinal, a Vivi não tem nada de fria. Millos implica com ela pelo simples fato de a mulher ter personalidade e não se deixar comandar por ninguém. No primeiro momento ele se sentiu atraído, Vivi é um espetáculo aos olhos, e ela também não disfarçou o interesse. No entanto, bastaram alguns minutos de conversa para que se odiassem.

— Hoje ela conseguiu algo incrível — comentei. — Valentina de Sá e Campos, já ouviu falar?

Ele riu.

— Dela não, mas conheço os sobrenomes. Família paulistana tradicional, bom currículo. — Cruzou os braços e me olhou debochado. — A futura senhora Theodoros Karamanlis?

— Talvez — fui sincero. — Conversei um pouco com ela nesta noite, achei-a divertida, inteligente e sedutora. A princípio achei que era muito nova, mas é madura e independente, cheia de opinião. Gosto do tipo.

— Eu sei. — Ele se levantou e foi pegar mais cerveja. — Foi Viviane quem te apresentou a ela? — Assenti. — Não sei se gosto disso, mas boa sorte.

Gargalhei pela implicância dele com a Vivi e resolvi desviar o assunto. Falamos da Karamanlis, de música, de motos e, por fim, já muito bêbado e com sono, caí sobre o sofá dele e acordei há pouco, com torcicolo e com uma puta dor de cabeça.

— Ei! — Millos me saúda estendendo uma xícara de café. — Você está destruído!

O desgraçado ri, mas nem posso mandá-lo tomar no cu, porque minha cabeça trepida parecendo que há uma britadeira no meu cérebro. Maldita cerveja! Malditos bolinhos envenenados da Duda Hill!

— Cara, você é fraco para minha cerveja! — Millos ri. — Ficou boa, não é? — Apenas assinto, ainda tomando o café para melhorar meu ânimo. — O que está programado para fazer nesse final de semana?

— Vou trabalhar. Como saí um pouco mais cedo ontem por causa do vernissage, Rômulo separou umas pastas para que eu lesse nesse final de semana. Coisa chata, principalmente da pauta da reunião do conselho.

— Por falar no conselho... — Ele se senta ao meu lado no sofá e apoia os pés descalços sobre a mesinha de centro. — Ontem tive notícia do Kostas. — Ri. — Parece que tomou um toco feio da Kika e está cuspindo marimbondos.

Gargalho, esquecendo a dor.

— Como queria ter visto esse embate!

— Eu também.

Bufo, mesmo divertido, lembrando que o meu problema continua.

— Preciso trazê-la de volta para a empresa com urgência. Há vários projetos dos hunters parados, e o Rômulo não está dando conta de organizá-los.

Millos rola de rir no sofá.

— Esse seu assistente é muito estranho. Sinceramente não entendo como você ainda o mantém trabalhando contigo!

— Gosto de ele ser metódico. — Dou de ombros. — É organizado, embora meio desastrado, nunca perde um prazo e faz tudo o que eu peço.

— Seu próprio espelho, não é? Nunca conheci ninguém mais chato que você para organização.

Ergo uma sobrancelha para ele e olho em volta para seu loft cheio de espaço, mas sem nenhuma lógica ou senso de estilo. Millos gosta de coisas rústicas, e respeito isso, acho legal, mas é tão bagunceiro que seus móveis caros de design parecem ser cacarecos de alguma casa demolida.

Os únicos locais arrumados são: a cozinha, o “laboratório” de cerveja (como ele mesmo se refere ao local) e onde dorme. O resto... tem peças de motos para todos os lados, mesmo a oficina ficando na parte de baixo do galpão que ele chama de loft, tem barris com os ingredientes que compra para a fabricação de cerveja, roupas, discos e óculos (nunca vi tantos para uma só pessoa) espalhados por todos os lados.

O homem é um caos completo em casa, mas, se alguém entrar na sala dele na empresa, vai acreditar que é o epítome da organização. Não entendo como consegue!

— Bem, sobre a Kika, eu posso te adiantar que não precisa se preocupar — Millos continua. — Falei com ela ontem, e vai voltar.

Expiro o ar, aliviado.

— Porra, Millos, porque não me contou antes? É um alívio do cacete não ter que lidar com mais esse problema e...

— Mas ela não quer ser mudada de andar.

— O quê? Ela está fazendo exigências?

Millos penteia a barba com os dedos, enervando-me com sua calma.

— Demonstramos desespero ao mandar o Kostas pedir arrego. — Concordo com ele nesse ponto. — Ela quer aumento, continuar no andar e... — Tenta conter o sorriso, e prevejo que vem bomba, mas ele vai dar um doce do cacete para falar.

Perco a paciência e esbravejo:

— O que mais ela quer?!

— Carta branca para mandar seu irmão se foder à vontade.

— Porra!

Ponho as mãos na cabeça, sentindo a dor de cabeça voltar com tudo e ouvindo a risada debochada do Millos.

Eles querem me enlouquecer, só pode!

 

 

A dor de cabeça me acompanhou ao longo de todo o final de semana. Tomei analgésico, antiácido e – seguindo os conselhos do meu primo – mais um pouco de cerveja. No entanto, não consegui me livrar do incômodo insistente.

Trabalhei o sábado inteiro, recebendo ligações do Rômulo quase de hora em hora, a ponto de ficar puto com ele e mandá-lo caçar algo para se divertir e me deixar em paz. Compreendo que ele queira me ajudar, mas, às vezes, sua dedicação exacerbada me estressa.

Recebi um convite para jantar de uma antiga amante que vinha a São Paulo de tempos em tempos, mas neguei. Queria apenas relaxar um pouco em casa depois de ter trabalhado em páginas e mais páginas de relatórios com uma dor de cabeça chata a me distrair.

Pedi comida em um restaurante de comida vegana, achando que pudesse ser a gordura dos bolinhos do Hill – velha e rançosa, com certeza – que me deu essa indisposição e resolvi assistir a alguns filmes antigos. Sou fã de “O poderoso chefão”, então comecei a assistir a cada um deles de novo.

Novamente dormi em um sofá, mas acordei melhor e resolvi correr um pouco. Passei umas duas horas no Ibirapuera e, na volta, encomendei o almoço de domingo, sentindo-me um pouco órfão sem a Vanda em casa.

Liguei para Millos a fim de fazermos algum programa à tarde, mas ele estava com alguma mulher em algum clube ou lugar que só Deus sabia, então voltei aos relatórios, e isso consumiu o resto do dia.

Debaixo do chuveiro, rememorando este final de semana de merda, ouço meu telefone tocar, mas o ignoro. Coloquei os jatos no mais forte possível para tentar aliviar um pouco a tensão que venho acumulando nesses dias. A verdade é que preciso trepar um pouco, divertir-me, talvez fazer uma viagem ou passar um final de semana com alguém sem pensar no trabalho.

A imagem da Valentina vem à minha mente, sua conversa gostosa, seu sorriso bonito. Contudo, ainda não me sinto completamente certo de que devo me envolver com ela, principalmente por uma questão: não senti muita atração.

Sei que isso é de momento e que pode mudar, principalmente se a convivência for boa. Nem sempre sentimos atração pela pessoa no primeiro encontro, e já vivi anos demais para saber que até um primeiro encontro explosivo pode depois esfriar e o tesão ser extinto, então, não me baseio apenas nessas primeiras impressões.

Fecho os olhos e penso na garota da boate há alguns anos. Ela vem preenchendo minhas fantasias há muito tempo, talvez por ter sido gostoso daquela vez e não ter tido mais notícia dela.

Mal lembro do seu rosto, de tão bêbado que estava, sempre quando fantasio vejo os cabelos e me lembro da loucura que foi nossa transa naquele banheiro.

O telefone volta a tocar, e desligo o chuveiro, saindo do boxe para ver quem é o chato. Rio ao ver o nome do Millos. Na mosca!

— Já terminou sua maluquice sexual com a “submissa” da vez? — provoco.

— Vá se foder e não se meta nos meus assuntos — rosna. — Liguei para saber se amanhã pode ir comigo a um restaurante que um amigo inaugurou nos Jardins.

— Boa comida ou é boteco?

— Não, seu fresco, é coisa fina! Vanda ainda não estará de volta, não é?

Suspiro, resignado.

— Não, ela ainda vai ficar um tempo no Rio de Janeiro. Está certo, amanhã combinamos isso melhor no escritório.

— Okay! — diz animado. — Vai almoçar no refeitório junto aos funcionários?

— Sempre há uma primeira vez, não é? — Deixo a toalha no suporte e sigo para o closet. — Além do mais, confio que servimos algo de qualidade aos funcionários.

Millos ri.

— Essa eu quero ver! Nos encontramos no almoço, então! Boa noite, Theo.

— Boa noite!

Desligo o telefone e me olho no espelho, lembrando-me do tempo em que comia qualquer coisa e em qualquer lugar, na maioria das vezes sujo e fedendo a peixe, sentindo-me feliz e livre.

— Quem é você, Theodoros Karamanlis?


O dia nem bem amanheceu, e eu já estava suando na academia com a Sandra. Hoje, sem Millos, o treino foi mais tranquilo, seguindo o ritmo normal dos exercícios. Tomei meu café sozinho na cozinha – café puro mesmo – sentindo imensamente a falta da Vanda, de sua conversa matutina animada e seus cuidados. Posso não admitir sempre, mas gosto de ser cuidado, de sentir esse afeto, coisa tão rara na minha vida.

Limpei os pensamentos e saí para trabalhar.

— Bom dia, Dionísio! — cumprimentei o motorista como em todos os dias, já pegando meu jornal para me inteirar sobre as principais notícias do dia. — Hoje vou almoçar na empresa, mas, à noite, vou sair do escritório direto para jantar com Millos.

— Levo o doutor ou trago o carro?

— Traz o carro, vou dirigindo.

Ele assentiu, e seguimos viagem em silêncio, ele concentrado no trânsito, e eu, nas notícias de economia do país e do mundo.

Cheguei à empresa já apagando incêndios. Um dos projetos de um cliente foi reprovado por uma comissão municipal, então Kostas teve que intervir mandando seus advogados e acompanhando todo o processo. Eu, como CEO, fiquei aguentando a aporrinhação do gerente responsável pela implantação da empresa multinacional aqui no Brasil.

Nem vi a hora passar, mal tomei meus cafés tão tradicionais ao longo da manhã, irritado com esse problema, com o Rômulo borboleteando ao meu redor me enchendo de perguntas: “quer café?”, “ligo para o doutor Konstantinos?”, “quer um calmante?”. Eu quase explodi de raiva, sentindo meu estômago fritar e a cabeça estourar.

Desci para o refeitório faltavam alguns minutos para o meio-dia e, para meu espanto, ainda não tinha nenhuma refeição pronta. Conferi as horas no Omega, um dos relógios mais precisos do mundo, e estranhei a demora. Rômulo apareceu e, quando lhe questionei o atraso, fiquei sabendo que o almoço era servido a partir da 1h da tarde.

Voltei para o escritório sob a insistência de Rômulo para me encomendar o almoço em algum restaurante.

— Não! Hoje vou comer no refeitório — insisti.

Millos me lançou um desafio por eu nunca ter comido na empresa desde que foi inaugurado o refeitório para os funcionários. Pensamos no restaurante para facilitar a vida de todos e, como tínhamos espaço, decidimos montar a estrutura. Estive presente no primeiro dia, na inauguração, há alguns anos, mas depois disso não botei mais os pés no local.

Exatamente às 13h desci novamente pensando em usufruir de um almoço tranquilo e nutritivo, porém, o que encontrei me deixou sem ação. Primeiro, os funcionários ficaram estarrecidos ao me ver ali; percebi em seguida que apenas o baixo escalão da empresa – de coordenadores para baixo – estava comendo ali. Não havia nenhum gerente ou diretor no meio dos mais de 100 funcionários da companhia.

Contudo, o que mais me surpreendeu foi a comida. Não, não era ruim, pelo contrário, era bem preparada, mas sem nenhuma opção para substituição.

— E quem não pode comer carne vermelha? — questionei ao Rômulo, e ele apenas corou, fingindo não ouvir. — Há cardápios diferentes ao longo da semana?

Rômulo continuava a montar seu prato sem emitir qualquer resposta, o que não é nada típico dele, e isso me irritou. Quando não era para falar, o homem tagarelava, mas, quando eu precisava de respostas, ficava mudo!

— Rômulo! — chamei-o de modo mais enérgico. — Eu estou tentando entender o que...

— Não, não há! — escuto a voz do Alex e me viro para encará-lo. — E seu querido assistente não sabe informar porque não come aqui também. — Meu irmão pegou um prato e se serviu naturalmente. — A questão do restaurante entrou em pauta numa reunião de diretoria, mas o senhor todo-poderoso do Olimpo achou que não era uma questão relevante para a economia da empresa e pulou o assunto.

Olhei de esguelha para Rômulo buscando confirmar a informação, e ele atestou. Xinguei mentalmente.

— Uma empresa é feita de mais do que números, Theodoros Karamanlis — seu desprezo pelo sobrenome era evidente. — E, quando fiz a proposta do restaurante, era para que, além de economizar o tempo dos funcionários e agilizar o serviço, também tivéssemos convívio com eles, porém, adivinha quem foi o primeiro a pular do barco e a incentivar o “alto escalão” a ir junto?

Bufei de raiva.

— Quem é o responsável pela gestão do restaurante? — ignorei o discurso do meu irmão idealista e perguntei ao Rômulo.

— É terceirizada, a mesma empresa do pessoal da manutenção.

Merda!

— Marque uma reunião com ela e peça ao Kostas para avaliar o contrato. — Rômulo mais do que depressa escreveu em seu tablet inseparável. — Dispare um memorando para todos os diretores e gerentes, lembrando da existência do restaurante e informando que, a quem for almoçar fora, será necessário cumprir o horário, ou seja, uma hora e nenhum minuto a mais.

Rômulo arregalou os olhos e assentiu.

— Eu pouco vejo você e percebo que nem é preciso! Você não mudou nada, o mesmo prepotente de sempre. — Alex passou por mim, ainda se servindo no bufê, rindo de deboche, e percebi olhares curiosos em nossa direção.

— Eu preciso lembrar que você também faz parte da diretoria e tem acesso irrestrito ao conselho? — Cheguei perto para falar baixo: — Se fosse meu projeto, nunca deixaria chegar aonde chegou só porque não sou o CEO. Isso demonstra que está mais preocupado em ir contra a direção do que lutando pelo bem-estar dos funcionários. Não é minha função tomar conta de tudo, não sou absolutista, eu delego e confio naqueles a quem passo esse poder. — Ele fechou a cara, perdendo o ar de superioridade. — Não tenho intenção alguma de prejudicar os que trabalham comigo, pelo contrário. Mas assumo meu erro em não ter frequentado o local para dar exemplo.

— Mas o doutor também não tem horário certo para almoçar, por isso...

Balancei a cabeça em negativa, freando a defesa de Rômulo. Não tinha desculpas, o exemplo era meu, e eu tinha falhado. Terminei de fazer meu prato, sentei-me a uma mesa com Rômulo e almocei mesmo sentindo um nó na garganta por ter mostrado falha e ter sido repreendido pelo Alex na frente de todo mundo.

Merda!

Ao longo do dia, a repercussão do almoço do CEO no restaurante da empresa, bem como o efeito do memorando para os diretores e gerentes agitaram a tarde na Karamanlis. Percebi todo mundo mais atento, mesmo na correria de sempre.

Tive uma resposta positiva da equipe de Kostas com relação ao projeto vetado e pude passar a boa notícia ao nosso cliente. Recebi vários relatórios dos setores e subsidiárias ao longo do dia, inclusive da K-Eng, dirigida pelo Alex.

Meu irmão é um sonhador idealista, defensor dos fracos e oprimidos, um rebelde que só trabalha conosco para contrariar a família. Cospe sobre nosso sobrenome, mas faz questão de ostentá-lo para afrontar o pappoús. Sempre achamos que ele tentaria afundar a empresa em represália ao tratamento que teve na infância, mas não, ele não só assumiu uma empresa praticamente independente como a fez crescer. Todavia, ainda sinto que há algo por trás disso.

Estaciono o carro na vaga do restaurante, afastando as lembranças do dia e conferindo o endereço que Millos me enviou por mensagem. Estar sem o Dionísio nesta noite é bom, porque vou moderar a bebida, afinal é segunda-feira, e prefiro tomar um copo de uísque quando estiver no meu apartamento.

Tenho expectativa de o jantar ser bom; já o almoço foi complicado e indigesto com a discussão com o Alex e a demonstração de que deixei as coisas correrem soltas demais. Claro que não sou arrogante a ponto de achar que meu irmão não estava com a razão sobre as coisas que me disse, afinal, ele convive mais com os funcionários que eu, mas não gostei de ser contrariado na frente de todos.

Entro no restaurante, e a primeira coisa que percebo é a arquitetura do lugar e a decoração de bom gosto. Isso realmente não diz muita coisa acerca da qualidade gastronômica deles, mas já conta pontos em matéria de conforto. Uma recepcionista, bem-vestida e muito bonita, cumprimenta-me, e lhe dou o nome de Millos, que foi quem fez a reserva.

— Ah, doutor Karamanlis, ele ainda não chegou, mas o senhor pode esperá-lo no bar, tudo bem?

Respiro fundo, conferindo as horas e calculando que ele – se viesse de moto, como sempre – já deveria estar aqui. Olho contrariado para o bar, logo na entrada do restaurante, e meus olhos são imediatamente atraídos para uma mulher vestida de preto, com os cabelos longos, castanhos e lisos, tomando uma taça de vinho.

Não consigo ver todo o seu rosto, apenas o perfil, e isso é suficiente para que eu queira vê-la toda.

— Tudo bem — concordo com a recepcionista, que me aponta o bar.

Caminho para lá e me sento na poltrona alta ao lado da bela mulher. Não a olho, prestando atenção ao bartender que vem pegar meu pedido.

— Scotch, por favor. — Ele pergunta a marca. — The Macallan.

Sorrio satisfeito ao vê-lo pegar exatamente a garrafa que costumo beber e, então, de esguelha, olho para a mulher ao meu lado, procurando algum indício de indisponibilidade – ou problema –, como uma aliança em seu dedo.

Ela não usa nem mesmo anéis. No entanto, o que chama minha atenção são as unhas curtas, bem cuidadas, mas sem esmalte. Hoje em dia o que as mulheres mais fazem é colorir as unhas! Como eu gosto de arte, logo sou atraído pela variedade de cores e a combinação com as mãos e os formatos. Porém, não com ela; suas mãos são lindas, dedos longos, sem precisar de nenhum tipo de enfeite.

Subo o olhar e a encontro me olhando também.

— Boa noite! — cumprimento-a sorrindo assim que o bartender deixa meu copo no balcão.

— Boa noite! — ela responde. Sua voz me causa uma sensação de frenesi, e fico imediatamente excitado. Ela é linda em todos os sentidos da palavra. Seu rosto é delicado, proporcional, olhos expressivos, nariz fino e uma boca generosa. Fico imaginando como será seu sorriso aberto, não apenas esse polido e educado que me dá agora.

Paro de encará-la para não a constranger e tomo um gole do uísque, questionando se devo ou não puxar conversa com ela.

Não sou inseguro, nunca fui, mas às vezes uma mulher só quer estar quieta bebendo sem alguém para importuná-la, por isso sempre espero ver algum indício de que quer papo antes de abordar.

Dou outra olhada de soslaio.

Vamos lá! Quero saber quem você é!


— É a primeira vez que venho aqui — é ela quem faz o movimento, e gosto disso, uma mulher decidida. — Estou surpresa pelo requinte sem a frieza esperada desses restaurantes com esse nível. O pessoal é simpático e organizado.

Rio.

— Você é da área — constato e me viro para ela, girando a poltrona em sua direção.

— Sou. — Sorri finalmente, e me sinto extasiado com a perfeição do gesto. Os olhos ficam levemente puxadinhos, e sua face inteira se ilumina. A mulher fica absurdamente linda quando sorri. Meu interesse é real agora. — Mas hoje vim como cliente.

— Eu só venho como cliente — brinco. — Não sei fritar um ovo!

Ela ri de novo e toma um gole de seu vinho.

— O que seria dos restaurantes se todos soubessem ou gostassem de cozinhar? — Levanta sua taça em minha direção. — Aos que são apenas clientes e podem desfrutar de uma deliciosa refeição sem ficar avaliando cada nuance do prato.

— Justo! — Brindo com ela. — Qual sua formação?

— Cozinha francesa. Diplôme de cuisini e pâtisserie.

Uau!

Meu corpo inteiro vibra e meu pau reage ao som do seu perfeito sotaque francês. Acompanho sua boca em volta da borda da taça de vinho, o leve ondular de sua garganta sorvendo a bebida e sua língua resgatando os resquícios da bebida em seus lábios.

Abaixo a cabeça e bebo um longo gole do uísque, tentando não parecer um tarado assediador, mas louco para perguntar se ela prefere na minha casa ou na dela.

— Pelo francês perfeito presumo que tenha estudado na França... — Ela concorda com um sorriso. — Le Cordón Bleu?

— Naturellement. Estudar gastronomia na França sem ser em Le Cordón Bleu é como ir a Roma e não ver o Papa!

Gargalho com sua comparação e a saúdo com minha bebida.

— É como ir até a Escócia e não provar um verdadeiro uísque.

Levo o copo até a boca e acompanho o olhar dela em mim.

— Sua escolha de bebida me surpreendeu — ela comenta, e franzo o cenho, olhando meu bom e velho single malte e me perguntando qual é o problema com ele. — É uma bebida conservadora, nada sofisticada, ao meu entender, não combinou muito. — Aponta para mim.

Finjo-me de ofendido, embora segure a risada, e cruzo os braços.

— E você é uma entendida em bebidas também? — provoco-a.

A risada dela é tão melodiosa que parece música, seus olhos se iluminam e as bochechas ficam levemente rosadas. Perfeita!

— Nem queira saber! — Beberica um pouco do seu vinho. — Praticamente cresci cercada delas.

— Hum... — Sorrio. — O que combinaria mais comigo, então?

Sou submetido a um olhar avaliador, passando pela minha roupa, sapatos e rosto. Sinto tão intensamente sua atenção sobre mim que é como se ela pudesse olhar além das minhas roupas. Estou exposto, nu, cada músculo aquecendo à medida que seus olhos percorrem meu corpo, concentrando ainda mais desejo em minha virilha. Porra, que delícia!

— Pelo estilo de roupas e o Omega que usa no pulso — ergo a sobrancelha, surpreso pelo bom olho que ela tem —, um Dry Martini.

Gargalho sem me conter, e ela me segue, ambos divertidos pela comparação que ela faz. James Bond? Sim, eu sei que o mais famoso espião dos cinemas só usa relógios da Omega, mas não me vejo com uma taça de Dry Martini na mão, exigindo do bartender: “batido e não mexido”. Gosto de pensar que sou mais rústico que isso. A prova é meu single malte caubói.

— A sofisticação é só uma casca, pode acreditar. Estou longe de ser tão refinado quanto o Bond, ou tão habilidoso. — Ela levanta uma sobrancelha questionadora, demonstrando que não acredita nessa minha “humildade”. — A propósito... — respiro fundo, indo devagar — meu nome é Theo.

Mais uma vez seu sorriso faz meu pau reagir, ficando dolorosamente duro e pulsando na cueca. Que porra de atração é essa? O que essa mulher tem? É divertida, a conversa está fluindo bem, além de ser linda, mas essa atração... não é assim que acontece, ainda mais em um ambiente tão frio quanto o em que estamos.

— Maria Eduarda. — Ela estende a mão, e eu a seguro.

Tudo em volta parece vibrar, e noto que ela também sente isso. Meu sorriso se expande. Não tiro os olhos dos seus. A energia gerada pelo toque esquenta meu corpo e aumenta minha percepção do dela.

Maria Eduarda tem um belo pescoço, e o cheiro suave de um bom perfume parece advir exatamente do ponto onde eu gostaria de passar minha língua. Os ombros são delicados, os braços longos e sem nenhum contorno muscular demonstram que ela não mantém regularidade de exercícios, sendo magra ao natural. Os peitos no decote do vestido são pequenos, porém, redondos e firmes.

O vestido, embora justo, tem um tamanho comportado, por isso não posso ver suas coxas – o que é uma pena –, tão somente as panturrilhas e uns pés lindos – esses, sim, com as unhas pintadas de vermelho – em sandálias de cor clara.

Apesar de ser uma mulher atraente e bonita, não é uma beleza exótica. Sem o sorriso, ela passaria a ser apenas mais uma mulher bonita como muitas outras que existem por aí, porém, não para mim. Algo nela chamou minha atenção desde o primeiro momento. Mesmo com ela de costas, sem nem ao menos ver seu rosto direito, senti-me atraído.

Agora ela me deixa em chamas, tentado a ser direto e lhe propor uma noite de pura sacanagem. Eu o faria se o local fosse mais descontraído e tivesse mais abertura da parte dela, não só a confirmação de que se sente atraída por mim. Em uma boate, por exemplo, eu seria mais efusivo.

— É um prazer enorme encontrá-la aqui — mesmo sendo sutil, quero deixar claro que ela chamou minha atenção. — Salvou minha noite, pode ter certeza.

Ela sorri e solta minha mão.

— Quase não vim — confessa e dá de ombros. — Assunto chato, companhia chata.

Gosto da sua sinceridade.

— Negócios? — Ela assente, e eu adoro a notícia. — Geralmente os meus jantares têm o mesmo motivo.

— Então veio para uma reunião também?

Nego com a cabeça antes de responder:

— Não, hoje só vim comer. Meu primo é amigo do dono daqui e me recomendou o restaurante.

— Isso é bom, espero que esteja à altura da sua expectativa.

— Ainda que não esteja, Maria Eduarda — cruzo os braços e a encaro —, no momento estou ligando o foda-se para a comida ou o restaurante.

Ela fica séria, mas não desvia os olhos.

— É mesmo?

Não respondo de imediato, curtindo esse jogo entre nós. Aposto que ela sabe o motivo pelo qual não tenho mais nenhum interesse na gastronomia do local. Ela quer que eu diga! Quer que eu dê o passo adiante, que demonstre o interesse claramente, o que é um ótimo sinal.

Deixo o silêncio e o ar vibrar entre nós por mais alguns momentos, sem tirar meus olhos de suas belíssimas íris castanhas.

— Porque minha fome é outra desde que encontrei você aqui. — Ela segura o fôlego. — Porque nossa conversa está cada vez mais interessante. — Abaixo o tom de voz: — Porque olhar você e sentir seu cheiro acordaram meus sentidos mais do que qualquer nuance de um prato é capaz de fazer.

Minhas mãos coçam de vontade de tocá-la, de sentir novamente aquela energia sexual percorrendo meu corpo, emanando dela. Não o faço porque ainda não vi sinais suficientes para avançar a esse ponto, e eu sempre espero a permissão de uma mulher para tocá-la.

— Você nem me conhece — ela responde um pouco ofegante.

— Estou louco para conhecer. — Encosto-me melhor à poltrona e me afasto um pouco dela para demonstrar que não a estou pressionando. — Não tenho pressa, Maria Eduarda, só preciso que saiba que você me atrai e que, embora esteja sentado aqui, estou louco para segurar sua nuca e provar o sabor desse vinho que bebe, diretamente nos seus lábios.

Ela suspira e desvia o olhar.

Esse é o momento quando ou eu tomo um fora, ou venço o jogo. Porém, podem dizer que é arrogância, eu sou um homem vivido e, se cheguei até aqui, se me expus dessa forma, é porque estou apostando minhas fichas em que o tesão é recíproco.

— E se eu for casada ou comprometida?

Bingo!

Pela entonação da pergunta, sei que ela não é.

— Eu me desculparei, mesmo ainda sentindo esse desejo maluco de te beijar, e me levantarei, indo para a mesa que meu primo reservou. Não trepo com comprometidas.

Ela levanta as sobrancelhas e assume uma expressão provocadora.

— Não trepa? — Ri, cínica. — Você é muito confiante achando que basta jogar meia dúzia de palavras em cima de uma mulher sozinha em um bar para garantir uma trepada.

— Eu sou confiante. — Aproximo-me a fim de lhe demonstrar de onde vem minha confiança. — Mas não são as “meia dúzias de palavras” que vão fazer você ter vontade de trepar comigo. — Seguro sua mão e com a outra deslizo meu dedo indicador do seu punho até o cotovelo, vendo todos seus pelos se arrepiarem com o leve contato. — É isso!

Maria Eduarda fica um tempo olhando o trajeto do meu dedo sobre sua pele, assistindo, como eu, à deliciosa reação causada por meu toque. Não falamos nada, apenas acompanhamos o leve vai e vem que eu faço no seu antebraço, apreciando o contato. É nítido para mim que ela está avaliando todas as possibilidades e talvez tentando entender como isso é possível.

Já não escuto mais nada, os sons das conversas, a música clássica baixa que toca, a correria do bartender limpando copos, organizando garrafas ou preparando aperitivos. Tudo ao redor some, e só sinto a potência do tesão que ela despertou em mim, esperando que sinta o mesmo e que admita isso.

Ela sorri, mas puxa a mão, rompendo o contato.

— Como já disse, a gente nem se conhece.

— Sou paciente, Maria Eduarda. — Recebo um sorriso tímido. — Vou adorar cada momento até te conhecer. — Afasto-me dela novamente e peço mais uma dose de uísque. — Aceita mais uma taça?

Aponto, mas ela nega, olhando para a entrada do restaurante.

— Infelizmente, não. — Respira fundo. — Meu compromisso chato acaba de chegar.

Viro-me para ver quem é o sortudo que vai jantar com ela, mas só vejo o Millos entrando com uma cara debochada e um sorriso contido. Olho para Maria Eduarda novamente e confirmo que ela não só se levantou à espera do Millos, como parece muito contrariada com a presença dele.

Por que Millos iria marcar para jantar com uma mulher e comigo ao mesmo tempo? As palavras “jantar de negócios” me causam um alerta, mas me recuso a enveredar pelo rumo que meus pensamentos querem ir.

— Ah, desculpem o atraso! — Millos exclama, indo cumprimentá-la. — Que bom que já se conheceram. — Maria Eduarda franze a testa e me encara. — Theo, eu acho que chegou a hora de conversarmos pessoalmente com a Duda.

Porra!

Levanto-me como se tivesse sentado em um formigueiro, estarrecido demais para articular qualquer palavra educada que não seja um palavrão bem cabeludo.

Duda? Olho-a de cima a baixo sem poder acreditar que a mulher que me atraiu como se tivesse um ímã é a infernal dona do boteco que tem feito minha vida um suplício por causa de sua teimosia.

— Theodoros Karamanlis? — ela parece tão chocada quanto eu e já não há nada além de desprezo em sua voz ao falar meu nome.

Desvio um olhar mortal para meu primo, que, além de parecer surpreso, está também muito interessado nessa interação entre nós.

Eu vou te matar, seu filho da puta!


— Aceita mais uma taça?

Minha vontade é de aceitar e pagar para ver Theo jogando todo seu charme para mim, usando armas pesadas para conseguir provar que temos realmente toda essa química que ele demonstrou com um simples roçar de dedos em meu braço.

E temos, sim! Não sou hipócrita a ponto de me enganar dizendo que não senti nada por ele. Assim que se sentou ao meu lado aqui, a esse balcão, meus olhos foram imediatamente atraídos para ele. Quando me cumprimentou, sua voz fez meu corpo inteiro reagir de uma forma estranha, e tive a nítida sensação de que o conhecia de algum lugar.

Porém, foi só quando se virou em minha direção, depois de eu ter puxado assunto descaradamente, que fiquei sem fôlego. Seus olhos são de um azul que eu nunca poderia esquecer caso já os tivesse visto. No entanto, a sensação de reconhecimento persiste. Ele é muito bonito, além de ter um sorriso de arrancar a calcinha de qualquer mulher.

Se Manola estivesse aqui comigo, com certeza iria dizer que ficou emocionada e que molhou a calcinha. Entretanto, aprendi com o tempo e com as responsabilidades a ser mais comedida e a não me deixar levar sem pensar. Um rosto e um corpo bonitos não querem dizer muita coisa sobre o caráter de alguém.

Estou para aceitar a proposta de mais uma taça e alongar o papo, mas minha visão periférica capta um movimento na entrada do restaurante, e me sinto murchar ao ver Millos Karamanlis adentrando. Esse homem não se cansa de tentar comprar o Hill, é um saco!

Quando me ligou, eu estava pronta para dizer um sonoro NÃO a ele, mas insistiu que era importante, que tinha uma situação que me interessava e por isso achava melhor conversarmos para tentar um acordo. Isso me deixou intrigada e temerosa, por isso estou aqui, neste momento, tendo que recusar a companhia agradável e intrigante do Theo.

— Infelizmente, não — respiro fundo, respondendo ao delicioso oferecimento desse deus com cuja companhia o destino me presenteou enquanto eu esperava pelo diabo. — Meu compromisso chato acaba de chegar.

Levanto-me, resignada, para receber o homem barbudo e muito estiloso, devo confessar, mas que é uma pedra no meu sapato.

Millos abre um sorriso e se aproxima para me saudar como sempre faz, com um beijo na bochecha e um curto aperto de mãos. Tenho verdadeiro trauma dele, de estar sempre rodeando minha vida à espera de um fracasso que o deixe comprar o bar da minha família, minha casa, o legado do meu pai. Contudo, tenho de admitir que, embora pondo pressão, ele sempre me tratou muito bem e com muita simpatia.

— Ah, desculpem o atraso! — Ele olha para o Theo e depois para mim. — Que bom que já se conheceram. — O quê? Como assim? Eles se conhecem?! — Theo, eu acho que chegou a hora de conversarmos pessoalmente com a Duda.

Millos Karamanlis conhece o Theo!

Meu sensual companheiro de bar se levanta e me encara de um jeito completamente alarmado. O olhar sedutor sumiu, bem como seu sorriso franco e relaxado. Agora apenas incredulidade está estampada em seu rosto bonito.

Oh, meu Deus, não pode ser!

Claro que eu acharia que o conhecia, afinal, já vi fotos suas em revistas da alta sociedade e em jornais, embora creia que nenhuma delas lhe tenha feito jus. O homem ao meu lado não é simplesmente “Theo”, é o diretor da porcaria da empresa que comprou toda a quadra onde fica o Hill e que vem tentando de todas as formas me tirar do meu lugar!

— Theodoros Karamanlis? — minha voz soa tão incrédula como me sinto.

Como não percebi quem era esse homem? Como pude me sentir atraída por ele a tal ponto de fantasiar uma noite ao seu lado? Eu o quis como havia muito tempo não me lembrava de ter querido alguém, uma atração que não sentia desde a época em que ainda pensava que tinha o mundo aos meus pés e que conquistaria tudo o que sonhasse ter.

Millos fica um tempo com a sobrancelha erguida, olhando de um para o outro, até que resolve quebrar o gelo.

— Podemos ir para a mesa?

Eu o olho ainda sem entender que tipo de palhaçada é essa. Eles fizeram de propósito? Será que Theo veio primeiro para tentar me seduzir, afinal, nós nunca fomos apresentados, ou foi só uma coincidência ele ter chegado antes e aí resolveu brincar comigo?

Não é possível que ele não soubesse que eu sou a Duda Hill!

— Millos, o que você pretende, afinal? — Theo questiona com a voz demonstrando toda sua irritação.

— Eu não acho que temos algo para conversar. — Pego minha bolsa, que estava pendurada na poltrona giratória. — Não vou mudar de opinião, não pretendo vender o Hill.

— Por que não? — Theo questiona de repente, e eu o olho. — O que uma chef formada por Le Cordón Bleu pode querer com um boteco? — Fecho minhas mãos com força na alça da bolsa. — Ou esse papinho de Paris e seus diplomas é só um sonho fantasioso de uma dona de bar?

Millos emite um palavrão baixo, prevendo que o tempo irá fechar. Ele me conhece bem, já me irritou várias vezes e saiu do Hill com uma resposta à altura.

— O que eu quero ou não só diz respeito a mim, doutor Theodoros Karamanlis — tento falar o mais baixo possível, mas meus olhos brilham de indignação, e espero que ele entenda a mensagem. — O boteco é meu, faço com ele o que eu quiser, e de uma coisa você pode ter certeza: Não. Vou. Vender. Para. Vocês! Ficou claro agora, ou preciso desenhar? — Olho para o Millos.

— Ei! Vamos nos sentar à mesa e conversar com calma! — ele tenta apaziguar o clima tenso entre mim e Theodoros. — Theo... — pede sua colaboração, mas o homem parece estar soltando fogo pelas ventas e não lhe dá atenção. — Vocês estão chamando a atenção dos outros clientes e...

— Foda-se! — falo em uníssono a Theodoros, e Millos ri, mesmo ainda nervoso.

O maître aparece para nos conduzir até a mesa reservada, e Millos faz um gesto para que o sigamos até lá. Encaro Theodoros Karamanlis por um tempo, ambos medindo forças para ver quem cede primeiro.

— Vamos? — Theodoros pergunta, e eu assinto, passando por ele sem nem ao menos emitir uma palavra. A mesa que Millos reservou é discreta, no fundo do salão, sem nenhuma outra por perto. Sento-me com as costas eretas, sem tirar a alça da bolsa do ombro, mostrando a eles a minha contrariedade por estar ali.

— Vamos fazer um pedido?

— Não, Millos, não pretendo ficar para comer — sou direta. — Preciso apenas que me fale sobre o assunto que não quis adiantar pelo telefone. O que vocês têm a ponto de me fazer querer fechar um acordo?

Theodoros olha para ele parecendo muito mais irritado e bufa de raiva. Millos balança a cabeça e começa a explicar:

— Duda, há alguns meses estamos de posse de uma...

— Enorme quantia de dinheiro — Theodoros o interrompe. — A proposta de compra aumentou, e seria interessante a senhorita reconsiderá-la, afinal, pode abrir um pequeno bistrô para exercer o que aprendeu em Paris.

— O quê? — Millos o encara, confuso. — Olha, eu desisto! — Chama um garçom e pede uma cerveja. — Eu realmente acho que podemos chegar a um acordo, mas vocês dois são teimosos como mulas!

— Não quero nenhum acordo com vocês! — declaro. — Tudo o que quero é que parem de ficar rondando minha propriedade como dois abutres!

— Boa definição, senhorita Hill. — Theodoros se inclina por sobre a mesa para ficar mais próximo a mim. — Seu negócio está agonizante e em breve perecerá, e, quando isso acontecer, irá lamentar não ter abaixado um pouco sua crista e ter aceitado minha oferta, porque só sobrará carcaça aos abutres!

— Theo! — Millos o repreende, mas depois começa a rir. — Que conversa de doido, viu? Não esperava por isso! — Bebe sua cerveja. — Confesso que está um pouco divertido.

— Vá se foder, Millos! — mal fala isso e volta a me olhar. — Não irei repetir a oferta, Duda Hill. A aconselho a aceitar o mais rápido possível.

Meus olhos faíscam de raiva, mas meu corpo traidor se arrepia inteiro ante a expressão dele. O homem é sexy demais, insuportavelmente arrogante, mas ainda assim, muito sexy!

— Não estou interessada — uso o mesmo tom de voz que ele. — Vendo para qualquer um, menos para vocês. — Ponho-me de pé. — Espero que desfrutem do jantar sem minha companhia. Eu não conseguiria comer aqui com vocês sem ter uma enorme indigestão.

Theodoros se põe de pé também, e Millos, com um sorriso debochado, cruza os braços e fica só esperando o próximo passo do seu chefe.

— Não diga depois que não a avisei, Duda Hill.

Rio, passando perto dele para sair do salão.

— Não tenho medo de suas ameaças, Theodoros Karamanlis. — Aproximo-me para falar bem perto do seu ouvido: — Cão que ladra não morde!

Ele segura meu braço e abre um sorriso – puta merda! – cheio de malícia.

— Eu morderei, Maria Eduarda, e o farei tão gostoso que você pedirá mais!

Olho para sua mão em meu braço, e ele me solta. Respiro fundo para controlar o formigamento em meu corpo e a tremedeira em minhas pernas e saio do restaurante o mais rápido possível.

— Deseja que traga seu carro, senhorita? — o manobrista me aborda na porta do restaurante.

— Po-por favor! — Merda! Respiro fundo mais uma vez. — Sim, obrigada.

Não é possível que esse homem ainda continue mexendo com minha libido desse jeito! Durante todo o tempo em que estávamos lá medindo forças, essa tensão sexual nunca deixou de pairar entre nós. Acho até que o Millos percebeu isso!

Droga! É o Theodoros Karamanlis, Duda! Inimigo, o diabo em pessoa, que quer fazer de tudo para destruir tudo o que você tem, tudo pelo qual você lutou para manter depois que seu pai se foi!

Claro que seria muito fácil aceitar uma oferta melhor, pagar as dívidas e abrir um “bistrô”, como ele mesmo aconselhou, mas só eu sei o quanto meus pais amavam aquele pedacinho no meio da Vila Madalena, o quanto se orgulhavam de tê-lo comprado juntos, com muita luta e esforço.

Não vou deixar que um homem arrogante ponha tudo ao chão e destrua todas as lembranças que tenho daquele lugar. Não só do Hill, mas da casa onde mamãe e papai passaram seus últimos momentos antes de me deixarem. Não! De jeito algum eu irei permitir isso! Se precisar vender, o farei para alguém que se comprometa a manter o imóvel, e não para uma empresa que quer demolir tudo para erguer ali algum prédio ou shopping!

Entro no carro e dirijo para casa, ainda sentindo o toque dele reverberando pelo meu corpo, sua voz arrepiando os pelos da minha nuca e seu olhar... Há algo naquele olhar que me desperta lembranças, talvez pela tonalidade – a mesma do mediterrâneo –, ou o jeito de me olhar como se estivesse realmente faminto.

Chego a casa e encontro tia Do Carmo jantando sozinha na sala e assistindo à novela.

— Ué, não ia jantar fora? — questiona quando ataco suas panelas.

— Ia, mas o lugar estava tóxico demais para meu estômago. — Ela franze a testa, sem entender, e eu rio. — A companhia era desagradável.

— Ah, sim.

— Cadê a Tessa? — pergunto enquanto me sirvo de deliciosas costelinhas de porco e angu, sentindo meu estômago roncar e minha boca salivar. Adoro a comida dela!

— Chegou da escola, fez dever, tomou banho, jantou e dormiu. — Rio do relatório completo. — Aquela menina é um anjo!

— Sim, ela é! — concordo, cheia de orgulho.

— Descobriu, pelo menos, o que aquele pessoal da Karamanlis queria?

Sento-me ao seu lado no sofá com o prato na mão.

— Aumentaram a proposta! — Dou de ombros. — E acabei conhecendo o CEO, Theodoros Karamanlis.

— Hum, já vi fotos dele naquela revista que assino. — Rolo os olhos, pois sempre achei um desperdício de dinheiro comprar uma revista que fica cobrindo a vida de artistas e da alta sociedade paulistana. — O homem é um pedaço de mau caminho.

Acompanho-a em suas risadinhas, achando uma graça que minha tia, solteirona e virgem, fale isso de um homem. Eu nunca soube o motivo pelo qual ela nunca quis se casar, nem mesmo namorar. Perguntei a ela se algum dia teve pretensão de ser religiosa, mas negou, dizendo que não tinha o dom.

Tia Do Carmo é uma caixinha de segredos bem guardados, essa é a verdade. Do mesmo jeito que ela adora acompanhar a vida alheia nas revistas e nos programas de fofocas, não abre a boca para falar da sua, nem mesmo para mim.

Ela é como uma mãe para mim e cuida de Tessa com tanto amor e dedicação que eu não poderia pensar em uma avó melhor para minha menina, mas não quer saber de arrumar alguém, nem mesmo para se distrair um pouco.

Há uns dois anos veio trabalhar conosco um senhor muito bem-apessoado, Joaquim, que ficava na recepção. O homem arrastou um bonde pela minha tia – que é uma linda senhora de 55 anos –, mas ela nem ao menos lhe deu um segundo olhar.

Enfim, eu aprendi a aceitar que ela é feliz assim, mesmo porque não estou indo para um caminho diferente, pois mal tenho tempo para namorar alguém. Além do meu namorado francês, tive mais uns dois já aqui no Brasil. Claro que já tive algumas transas avulsas, sem nenhum compromisso, mas já faz tanto tempo que nem isso acontece que, se hímen se regenerasse, o meu certamente já estaria completo de novo.

— Ele é bonito, sim, mas muito arrogante! — informo, tentando não demonstrar o quanto fiquei interessada no Theo. — De qualquer forma, recusei mais uma vez a proposta.

— Você tem certeza disso, minha filha? O sumiço do agiota tem tirado meu sono. Você sabe como essas pessoas são, por mais que sejam conhecidos. Além do mais, te vejo trabalhar como louca e entregar o dinheiro todo para custear essas dívidas. — Ela aponta para a casa, cheia dos mesmos móveis da época do casamento dos meus pais. — Duda, a gente mal tem se aguentado em pé!

— Não nos falta nada, tia!

— Não, Duda, não estou me queixando. Realmente não nos falta nada, temos comida, um teto, e Tessa pode estudar em uma boa escola, mas vale a pena se sacrificar do jeito que está fazendo? Você não tem tempo nem para namorar!

Gargalho.

— Essa é uma das minhas menores preocupações, tia.

— Eu sei, filha, e é isso que me preocupa. — Passa a mão no meu rosto, e fecho os olhos, gostando do carinho. — Há muitos anos você só cuida das pessoas, Duda. Assume responsabilidades demais e esquece de cuidar de si mesma.

— Estou bem! — afirmo, mas meu coração entende e concorda com ela. — Assim que terminar de pagar tudo o que devemos, vou poder cuidar de mim também, não se preocupe.

Ela suspira, resignada, pois me conhece bem e sabe que sou muito teimosa. Decidi lutar até o fim para manter a única coisa que me resta e não vou descansar até conseguir estar em paz com isso, mesmo que um certo CEO muito gostoso me encha de ameaças.

Inclusive uma que pareceu mais uma promessa...


Maria Eduarda passa por mim deixando para trás o rastro delicioso do seu perfume, agitando meu corpo. Tenho vontade de segurá-la por mais tempo, de sair com ela para algum lugar onde possamos dar vazão à atração que sentimos um pelo outro desde que nos encontramos no bar do restaurante.

Todavia, não dá para simplesmente ignorar quem somos!

Fico um tempo de pé, mesmo depois de ela já ter saído do restaurante, raciocinando quais seriam as consequências se Millos simplesmente não tivesse aparecido. Olho para meu primo, tranquilo, tomando sua cerveja e provavelmente a enchendo de defeitos.

— Isso foi a pior merda que você já aprontou! — digo, atraindo a sua atenção. — E olha que você tem um longo currículo de merdas!

— Vá se foder, Theo! — Fica sério. — Eu só estava tentando um acordo entre nós.

Rio, seco, não achando nenhuma graça e não comprando nem um pouco essa conversa mole de “acordo”. Millos nunca dá ponto sem nó e me conhece bem para saber que Duda seria extremamente atraente para mim. O desgraçado fez de caso pensado, só nunca irá admitir.

Pego o celular, que deixei em cima da mesa, e, sem nenhuma palavra ou mesmo um olhar, afasto-me de Millos, indo em direção à saída do restaurante.

Ouço-o me chamar, mas não me segue, e ando decidido até a calçada, encontro o manobrista e peço meu carro. Não tenho mais clima para jantar, muito menos para olhar aquela cara debochada. Bufo, frustrado demais, com fome e com o desejo sexual insatisfeito.

Porra!

Já no carro, não dirijo diretamente para casa, mas a esmo, pensando na loucura que foi o começo da noite. O conhecimento de quem era a mulher ao meu lado deveria ter sido suficiente para aplacar minha vontade de devorá-la toda, mas nem mesmo a diminuiu.

É uma das raras atrações fortes que já me aconteceram. Geralmente não é assim, é mais um jogo de disponibilidade e vontade, uma mulher gostosa e interessante e pronto! Raramente sou atraído a alguma como aconteceu com Maria Eduarda hoje. Eu olhei para ela e a quis.

É primitivo demais até para mim, mas aconteceu. Quem ela era, o que fazia ou mesmo sua disponibilidade – embora, se fosse casada, não rolaria – não importaram para mim naquele momento. Depois, a conversa, o sorriso, o jeito como o corpo dela reagiu ao meu, tudo isso só potencializou o que foi sentido ao primeiro olhar.

Duda Hill!

Paro o carro em frente ao boteco antigo na Vila Madalena, olhando sua fachada recentemente reformada, o sobrenome da família dela na entrada e algo que nunca me chamou atenção antes, um segundo andar com janelas grandes de vidro, seguindo a mesma arquitetura do bar, tijolos à mostra e cimento queimado.

Franzo o cenho ao me lembrar do dia em que estive no local, pois não vi nenhum mezanino ou mesmo escada de acesso. Há uma porta ao lado da fachada principal, pintada com outra cor, mas que não pertence ao prédio vizinho, já de propriedade da Karamanlis.

Ela mora em cima do bar? Novamente olho para o alto e, no exato momento, uma luz se acende em um dos cômodos, iluminando a janela com cortinas claras. Um apartamento!

Como eu nunca soube disso? Para mim, o imóvel era puramente comercial, como todos os outros do entorno, nunca sequer desconfiei que a irritante mulher pudesse morar no local.

Uma sombra passa pela janela, e meu pau pulsa na calça só pela possibilidade de ser Maria Eduarda se preparando para dormir. Fecho os olhos, aproveitando a total falta de movimentação na rua – ao que parece ninguém funciona às segundas-feiras – e imagino como ela seria apenas vestindo uma calcinha ou até uma camisola sexy.

Toco-me sobre a calça, sentindo como já estou em completa ereção, então abro os olhos e xingo, voltando a pôr o carro em movimento e saindo daqui o mais rápido possível. Eu pareço um maldito stalker tarado, parado em frente ao que suponho ser o apartamento dela e fantasiando.

Caralho!

 

 

Termino de assinar o último documento e o entrego para Rômulo, que sai apressado a fim de entregá-lo para o jurídico. Temos um maldito setor de correspondência e vários boys para esse trabalho, mas meu assistente é tão controlador com suas responsabilidades que ele mesmo gosta de entregar os documentos e de pegar a assinatura de quem os recebeu no caderno de protocolo antes de os colocar no sistema.

Eu sei que é motivo de piadinha aqui seu jeito burocrático, mas é exatamente por isso que confio nele para lidar com minhas coisas na empresa. Rômulo é responsável, organizado e sua “burocracia” nada mais é do que uma forma de nos garantir, proteger nosso trabalho e a companhia.

Gemo, colocando a mão na têmpora, amaldiçoando-me por ter consumido uma garrafa inteira de uísque ontem, depois que cheguei a casa, frustrado demais sexualmente e puto comigo mesmo por estar me sentindo assim pela Duda Hill.

Troquei mensagens com Millos, ameaçando sua integridade física por conta da palhaçada de ontem. Claro que ele fingiu não ter feito de propósito, mas se esqueceu de que o conheço bem. Eu só não sei o que ele pretende ainda. Contudo, não há dúvidas de que está tramando algo.

Uma notificação de mensagem chega ao meu celular. Pego-o, lendo a mensagem deixada pela Viviane acerca de um concerto musical e uma exposição de gravuras que irá acontecer esta semana. Dispenso, sem nenhuma vontade de comparecer, mas ela insiste.

 

 

 

Sim, ela tem razão!

Preciso estar focado no que realmente é importante para mim nesse momento. Uma atração como aconteceu entre mim e Maria Eduarda ontem é garantia de uma foda inesquecível, mas só isso, não resolve meu problema, e o tempo está se encurtando cada vez mais. Preciso de uma esposa e de um filho!

 

 

 

Envio a mensagem para ela e me recosto na cadeira, olhos fechados e dedos nas têmporas, querendo a porra de um analgésico para poder trabalhar sem que pareça que está ocorrendo alguma demolição na minha cabeça. Não devia ter bebido tanto sem ter comido nada!

Cheguei a casa já arrancando a roupa e entrando no banho. Demorei por lá, esperando que os jatos fortes de água fria abaixassem a temperatura do meu corpo e trouxessem minha racionalidade de volta. Não costumo me impressionar tanto assim por uma mulher; poucas foram as que mexeram comigo dessa forma.

Olhei para baixo, e lá estava a evidência de que nem mesmo a água iria resolver o problema. Encostei a testa na parede fria e toquei meu pau, gemendo com a sensação, pronto para gozar apenas com os estímulos da noite.

Eu gosto muito de trepar, adoro ser masturbado por mãos femininas – às vezes, pés também –, mas nunca fui um punheteiro. Nunca! O prazer de me tocar nunca se comparou ao de ser tocado, por isso, quase não me masturbo. Porém, ontem, não teve jeito! O cheiro do perfume dela estava impregnado em minhas narinas, a sensação de sua pele se arrepiando sob meu toque, o sorriso, os olhares... Em poucos minutos gozei como um louco, sujando a parede do boxe, gemendo dolorosamente de vontade de senti-la.

Pela primeira vez em muito tempo, os cabelos cor-de-rosa não apareceram durante meu gozo, e amaldiçoei essa percepção. A verdade é que troquei o objeto da minha fantasia. No entanto, diferentemente da garota de anos atrás, agora eu tenho um rosto, um nome e sei onde mora.

— Estou fodido! — falo em voz alta, achando que estou sozinho no escritório.

— Vou pegar um comprimido, chefe! — a voz de Rômulo faz com que eu me aprume, arregalando os olhos em sua direção.

— Mas que porra, Rômulo! Como você consegue ser tão silencioso às vezes? — digo emputecido por estar fantasiando com a mulher de novo em pleno horário de trabalho e sob as vistas do meu assistente.

— Eu percebi que o doutor está com dores de cabeça. — Ele vasculha sua bolsa. — E... Ah! Achei! — Sorri como se tivesse inventado a fórmula da água. — Paracetamol!

Ele vai até o aparador onde ficam as bebidas a fim de pegar um copo d´água para eu tomar com o comprimido, porém, peço que me traga café.

— Tem certeza? — titubeia.

— Vai acelerar a absorção e fará efeito mais rápido.

— Chefe, isso é perigoso!

— Anda logo, porra, tem uma britadeira no meu cérebro!

Ele fica nervoso, suas mãos tremem, fazendo o café respingar sobre o móvel, e eu bufo de impaciência. Rômulo é prestativo, um ótimo funcionário, mas me questiona muito, além de ser um tanto desastrado.

Mal engulo o comprimido, e o traidor, quer dizer, Millos entra no escritório.

— Tive uma ideia e vim dividi-la com você. — Olha a xícara na minha mão. — Cheguei em boa hora! Eu gostaria de um café também! — pede ao Rômulo, e eu fecho a cara.

— Esse não é o trabalho dele — corto-o. — Rômulo, vá até o jurídico e veja se Kostas já conseguiu adiantar a papelada que faltava.

— Sim, doutor! — O assistente sai correndo da sala.

— Quer a porra do café? Pegue você mesmo! Não dê ordens ao meu assistente!

Millos levanta as mãos pedindo calma e vai até a máquina, escolhendo um sabor e um tipo de preparação antes de voltar para próximo de mim.

A dor de cabeça aumentou um pouco, mas espero que, com o remédio do Santo Rômulo, eu melhore em breve. Além disso, não quero dar bandeira de que enchi a cara na noite passada e suportar as provocações de Millos.

— Qual foi a magnífica ideia que o fez levantar a bunda de sua cadeira e vir até aqui encher meu saco?

Millos ri.

— Estamos de bom humor hoje, hein? — Pega o café e se senta. — Você quer tirar a Duda Hill do imóvel, não é? — Franzo o cenho para ele, achando desnecessário responder, esperando que tenha sido uma pergunta retórica, para o bem de sua inteligência. — Já reparou que o único pub daquela quadra é o dela?

— Você comeu merda no café da manhã? — pergunto, e ele ri. — Claro que ele é o único, os outros imóveis já estão todos vazios porque compramos todos!

— Do outro lado da rua têm duas casas de show, uma boate de strip de luxo, dois restaurantes de comida japonesa e uma pizzaria famosa. — Ele cruza os braços. — Esse foi um dos motivos de o pub ter ficado tão movimentado, a diversidade de empreendimentos próximos. É uma área à qual os jovens vão para se divertir, e ela conseguiu agregar boa comida e boa música em um só local.

Faz sentido, claro. Ela aproveitou o movimento já existente e ofereceu um diferencial, um lugar para dançar, curtir com os amigos, arranjar companhia e ainda comer seus bolinhos famosos e premiados. Sorrio de leve, sentindo-me levemente excitado por ela ter tanto tino. Gosto de mulheres inteligentes!

— Você a isolou no momento em que comprou todos os imóveis e mandou os estabelecimentos fecharem. Ela é a única opção da área...

Ele se interrompe ao ouvir uma batida à porta.

— Pode entrar — autorizo, sabendo que não é o Rômulo.

Kostas aparece, seu tamanho e largura preenchendo a entrada da sala, o olhar azul e arrogante, o sorriso debochado e os cabelos negros penteados para trás com uma espécie de pomada de brilho molhado. Meu irmão é a cópia do nosso pai, e isso chega a me causar arrepios.

— Bom dia! — cumprimenta Millos e se senta ao seu lado. — Theodoros, tenho uma notícia boa e uma ruim, qual quer primeiro? — Dá risadas debochadas, e Millos o segue.

Isso é sério? Levanto uma sobrancelha, olhando-o carrancudo.

— Fala logo, Kostas! — ordeno.

— Bem, já que você não tem nenhum senso de humor. — Pisca para Millos. — Nós já sabíamos disso, mas não custava tentar! — Meu primo assente, e eu bufo de raiva. — Vou começar pela boa. Já ingressamos com o pedido de execução da nota promissória.

— Já não era sem tempo! Preciso comemorar por você ter conseguido fazer seu trabalho?

O desgraçado ri.

— A ruim, no entanto, também é sobre isso. — Ele me estende umas folhas. — Duda Hill deu entrada no inventário judicial após a morte do pai.

Leio os papéis, mas pouco entendo de legislações e procedimentos legais, então espero que ele pare de fazer cu doce e prossiga com suas explicações.

— Que merda! — Millos exclama, e isso é o suficiente para me deixar tenso.

— O que isso significa, porra?

Kostas se levanta, anda até o aparador e se serve de água.

— Você poderia ter bourbon aqui — comenta como se estivesse aqui para uma visita social. Xingo-o. — O processo não cumpriu nem metade de seu caminho natural, caro irmão. Já está aberto há quase quatro anos e pouco avançou, e isso porque tem apenas um imóvel a ser herdado por uma única herdeira. — Ele ri. — Adivinha qual?

O Hill! Merda!

— O que isso significa em nossos planos de adquirir aquela pocilga? — Irrito-me.

— Bem, assim que for declarado o débito por causa da confissão de dívida – a promissória –, nós vamos ser credores do espólio. — Bufo pelo uso dos termos técnicos desnecessários.

É Millos quem vem ao meu resgate.

— O homem está morto, Theo, não temos como cobrar dele, apenas dos bens que ele deixou, entendeu? Isso obriga a Duda a vender ou entregar o Hill em troca da dívida. — Sorrio, achando a notícia ótima. — Mas somente quando o inventário fechar, o que pode levar anos ainda.

— O quê?! — Levanto-me, esquecendo por completo a dor de cabeça.

— É isso, caro irmão! — Kostas dá de ombros. — Seja bem-vindo à realidade da justiça brasileira, em que inventários simples duram, em média, de oito a dez anos!

— Não há outra forma de recebermos?

— Não. — Kostas ri, satisfeito. — A dívida está no nome do pai dela, então só alcança bens deixados por ele.

— A vantagem é que ela não pode vender para outro também, não é? — Millos questiona.

— Teoricamente, não, mas se o comprador não se importar em não ter a escritura, ela consegue vender, sim. Tem muita gente que faz isso. Não é legal, mas faz.

— Puta que pariu! — explodo, virando-me em direção à vidraça.

— O jeito é tentar comprar, Theo, e alegar que somos credores e que, por isso mesmo, ela só pode vender para nós — Millos fala, e Kostas concorda.

— Ela não vai vender, disse ontem!

Sou um homem muito teimoso, sempre fui, e reconheço um igual de longe! Quando Duda Hill disse ontem que não ia vender para a Karamanlis, vi a teimosia brilhando em seus olhos.

— Além do mais, pelo que soube, os negócios vão bem — Kostas complementa, deixando-me ainda mais raivoso. — Ela não precisa vender.

Olho para Millos, e ele arregala os olhos ao ver a determinação nos meus.

— Fale de sua ideia!


O despertador me acorda pela segunda vez no dia. Tenho vontade de esconder a cabeça debaixo do travesseiro e fingir que não estou ouvindo, deixar que entre em modo “soneca” e que, com isso, eu ganhe mais alguns minutos na cama.

Suspiro, abro os olhos lentamente e pego o maldito telefone para cancelar o despertador. Ganhar minutos na cama significa perder minutos do dia, e isso definitivamente é uma coisa à qual não posso me dar ao luxo. Tenho que trabalhar, organizar minha cozinha e ser a primeira a estar nela quando os demais chegarem.

Espalho-me na antiga cama de casal dos meus pais, abrindo os braços em forma de cruz e esticando todo o meu corpo. Carreguei tanto peso hoje que, nessas horas, sinto falta de não ter um homem fortão trabalhando comigo nesse negócio pesado que é transportar as compras. Tento relaxar meus músculos, fecho os olhos e deixo a mente vagar por um segundo.

Em meio aos pensamentos de paz, natureza e tranquilidade, lindos olhos azuis aparecem, sedutores, emoldurados por cílios longos e escuros que fizeram sombra em seu rosto quando ele olhou minha pele se arrepiando ao seu contato. No mesmo momento sinto um gelo na barriga – desses que sentimos quando descemos uma ladeira inesperadamente de carro –, e um tremor perpassa pelo meu corpo, desde as pontas dos dedos até a raiz dos cabelos.

Emito um grunhido de irritação por, mais uma vez, Theodoros Karamanlis se infiltrar nos momentos em que busco relaxamento e pensamentos positivos para enfrentar o dia. Tem sido assim desde aquele maldito jantar, há quase uma semana!

Sento-me, notando o quanto estou suada, pois há alguns meses meu ar-condicionado do quarto teve uma pane elétrica, e não tive nem tempo, nem dinheiro para chamar a assistência técnica. O verão chegou com tudo este ano, e as temperaturas estão ameaçando bater recordes desde o final da primavera. Vou precisar arrumar o ar ou então ir dormir no quarto da tia Do Carmo.

Confiro as horas, meio-dia e alguns minutos, e sigo rápido para tomar a terceira chuveirada do dia!

O expediente no Hill durou até às 2h35 da manhã, quando gentilmente convidamos nosso último cliente a sair. Passei a encerrar mais cedo em dias de semana, pois sábado e domingo vamos até às 4h da manhã. Fechei a cozinha para pedidos exatamente à 1h para que desse tempo de todos os quitutes ficarem prontos e nossos clientes irem embora até às 2h30. Entretanto, sempre fica um agarrado a uma cerveja num canto, sempre!

A música ao vivo, de terça a domingo – menos quando temos campeonatos de futebol, pois aí na quarta-feira transmitimos os jogos – anima o pessoal e por isso mesmo precisa ser encerrada uma hora depois do fechamento da cozinha. Há toda uma preparação para que os clientes entendam que a hora de “dar tchau” chegou.

Hoje, sábado, é o dia mais desgastante para mim, pois a cozinha irá funcionar a todo vapor até às 3h30 da manhã, aceitando pedidos até uma hora antes disso, e o bar só será fechado às 4h. E adivinhem quem fecha o bar? Exatamente, eu!

Ou seja, terei 14 horas de trabalho incessante pela frente, a partir das 2h da tarde, sendo que noite passada não aguentei ficar acordada para ir até o CEAGESP, dormi às 3h e acordei às 4h, correndo para poder pegar um pouco do pescado bom, pois a venda para o atacado começa na madrugada e vai até às 6h da manhã. Descarreguei tudo no restaurante e voltei para a cama às 9h, por isso, sim, estou acordando ao meio-dia!

Saio do banho e já coloco a calça preta – uniforme do Hill –, uma camiseta branca por causa do calor e calço chinelos. Separo o uniforme, que minha tia já deixa passado, a dolma, o avental e meus turbantes. Deixarei os cabelos secarem para depois fazer um coque alto, bem firme, para que nenhum fio possa se desprender.

— Boa tarde! — tia Do Carmo me cumprimenta assim que apareço na sala. — Vai almoçar agora?

— Vou. — Suspiro, sentando-me. — E a Tessa?

— Acabou de ir para o inglês com a Marcela e a Diana. — Assinto, lamentando não ter me encontrado com ela aqui, mesmo que depois dê uma xeretada na minha cozinha.

Mal tenho tempo para ela! Sinto-me mal por isso, tento compensar, mas queria ser mais presente e sei que Tessa sente essa necessidade tanto quanto eu. Porém, minha menina já é tão madura que entende que essa rotina louca na qual vivo não é por minha escolha.

Tia Do Carmo me serve de sua comida simples, bem temperada e absurdamente viciante, e eu não penso em mais nada a não ser apreciar a iguaria. Ao longe, enquanto como, ouço o barulho da máquina de costuras dela, em seu quarto, trabalhando sem parar. Ela é teimosa e está sempre aceitando encomendas de reparos ou confecção de roupas, principalmente para o pessoal da igreja que frequenta.

Somos farinha do mesmo saco, teimosas ao extremo, e ela me culpa por eu recriminá-la por querer ajudar. Não é só por teimosia ou orgulho que peço tanto a ela para que se poupe, pois se aposentou há alguns anos por invalidez exatamente por passar horas e horas costurando desde menina e com isso ter ganhado algumas hérnias de disco ao longo de sua coluna.

A verdade é que, se não fosse pelas dívidas, eu poderia dar uma vida bem melhor a elas. O Hill vai muito bem, cada vez mais conhecido, atraindo clientes para essa área que nem é tão famosa por ter bares. Contudo, o boca a boca tem se espalhado pela cidade e trazido com ele nossos clientes.

Termino de comer, lavo a louça e termino de me arrumar para descer e só voltar no meio da madrugada. Faço uma oração curta antes de descer e grito para tia Do Carmo:

— Tia, estou no Hill se precisar de algo!

— Vai com Deus, minha filha! — grita de volta, cessando a costura. — Tente descansar em alguns momentos!

Apenas rio, porque a cozinha é uma correria aos finais de semana, e é impossível me sentar por uns minutos sem que alguma coisa desande, já que atendemos em média 400 clientes por sábado e uns 350 no domingo. O volume de comida que processamos é tão grande que fazemos compras nas madrugadas de terça, quinta e sábado.

Poderia até ir ao CEAGESP menos vezes, mas prefiro trabalhar com os ingredientes o mais frescos possível e, graças à câmara fria que instalamos, já me dei ao luxo de parar de ir todas as madrugadas. Vou sempre às terças e sábados e deixo Manola se virar na quinta-feira. A mulher adora ir para lá e demora o dobro do tempo que eu levo, sempre conversando com os comerciantes, pechinchando horrores e fazendo amizades. Como ela é sozinha, está sempre com o caderninho de telefone preenchido para quando quer companhia, e como trabalha como louca aqui, seu lugar de fazer contatos é lá na central de abastecimento.

Confesso que me divirto muito com suas histórias, assim como todo o resto de nós da cozinha.

Abro a entrada principal do bar, pois, infelizmente, quando papai montou o local, não pensou em saída de emergência, mesmo porque na sua época era todo aberto, então, quando transformei o boteco em um pub, tivemos que sacrificar a porta usada para carga e descarga e transformá-la para que estivéssemos em dia com a legislação dos bombeiros e da própria prefeitura.

Sempre que entro, já deixo a porta de aço aberta e tranco somente a de vidro, deixando um pouco de sol entrar através das paredes de vidro temperado.

Sigo diretamente para a cozinha, mas anotando mentalmente tudo o que precisará ser limpo com mais afinco, resultado da noite anterior. No bar, sempre tenho a satisfação de passar e ver o asseio do Kiko, seus utensílios todos nos lugares, limpos e secos, as chopeiras sem nenhum traço de respingo de chope, o chão brilhando.

Abro a cozinha, e o cheiro dos produtos de limpeza que usamos há algumas horas, assim que encerramos as atividades, recepciona-me. Faço meu coque, como sempre, ponho o turbante, lavo as mãos e começo a trabalhar, colocando alguns alimentos de molho, descongelando outros e conferindo as receitas, bem como o funcionamento de todos os equipamentos.

Ouço o barulho da porta, e uma risada preenche o lugar, indicando que Manola chegou junto ao seu fiel escudeiro, Arnaldo.

— Boa tarde, chef! — ela me cumprimenta, indo para o banheiro dos funcionários. — Hoje o Naldo está impossível!

— Você é que não aguenta ouvir umas verdades, Manola. — Arnaldo vem até onde estou e me dá um beijo na testa. — Carinha de cansada hoje, boneca!

— Dia de compras... — Aponto para a caixa de camarão no gelo que tirei da câmara para ele limpar. — Divirta-se!

— Ai, minha santa protetora dos dedos furados! — geme.

— Use luvas! — Manola grita, vindo do banheiro trajando o uniforme, seus cabelos ruivos presos em uma trança e seu turbante cheio de beijos já na cabeça. — No dia em que você perder um dedo, ainda processa a Duda!

— Deus me livre, Manola! — Bato na bancada de inox, e ela ri.

— É na madeira, querida! — Joga um beijo para mim e as luvas de fio de aço para o Arnaldo. — Não vai te proteger contra o camarão, mas quando for limpar as carnes, faça o favor de usá-las!

— Oui, chef! — ele debocha.

— Abusado! — diz, pegando as panelas guardadas e já as colocando no fogão. — Vou adiantar os molhos enquanto a Ana não chega. Ela ia levar o filho ao dentista hoje.

— Eu sei — concordo ainda lavando as folhas e temperos. — Cláudia também vem mais tarde hoje, mas adiantou muito suas sobremesas ontem. Trabalhou dobrado!

— Estou louca por aquela torta de duas mousses que fez! — Geme e estala a língua. — Adoro maracujá com chocolate, e a danada não me deixou pegar nem uma provinha!

— Diabetes te diz algo? — Arnaldo alfineta.

— Tenho pré, idiota! — Ressalta: —Pré-diabetes!

Rolo os olhos, já antevendo uma discussão sobre a quantidade de açúcar que ela não deve ingerir.

Minhas tardes são sempre assim, entre o trabalho na preparação para a noite e as conversas, discussões ou músicas dos meus colegas de trabalho. É bom, faz o tempo passar depressa e não deixa o serviço tedioso.

— Terminou aquela receita nova que estava escrevendo? — Arnaldo me pergunta um tempo depois.

— Ainda faltam uns ajustes, mas estou sem tempo para testar. — Dou de ombros. — Final de ano, né?

— Por falar nisso... — Manola se aproxima. — Como andam as encomendas? O pessoal gostou do menu deste ano?

— A Hana me entregou ontem uma pequena lista de encomendas. Ao que parece, o menu foi bem aceito, sim.

Manola bate palmas, e eu sorrio aliviada.

Todo ano abrimos o Hill e servimos pequenas ceias para o pessoal que não quer ter trabalho, mas percebemos que seria mais interessante, para nós e para nossos clientes, se houvesse um menu prévio e as encomendas entregues em casa.

Como começamos o delivery este ano, programei um menu com três tipos de proteínas – peru, bacalhau e presunto – e vários tipos de acompanhamento. As variações vão desde a mais simples e barata até as sofisticadas, dignas de um chef de cuisine, mais caras.

Por incrível que possa parecer, o menu luxo tem vendido mais do que o comum, e isso, além de me dar muito orgulho de ver minhas receitas tão bem aceitas, ainda me concede maior lucro.

Por conta desse menu especial, não abriremos o Hill para o público na véspera do Natal, daqui a alguns dias, e nem no dia, retomando as atividades somente no dia 26 de dezembro. Teremos que trabalhar muito para atender aos pedidos, mas tenho certeza de que daremos conta e que em pouco tempo encomendar a ceia no Hill será uma tradição.

É preciso manter a fé depois de tudo o que já passei na minha vida; sem ela, eu esmoreço. Não digo propriamente uma fé religiosa, mas a de desejar boas coisas, pensar positivo, manter a chama da esperança acesa de que tudo vai dar certo.

— Boa tarde! — a voz de Tessa faz meu sorriso se agigantar, e paro o que estou fazendo para ir abraçar minha pequena menina. — Ei, mãe, não!

Ela tenta correr ao ver minhas mãos molhadas, mas, quando a alcanço, explode em gargalhadas e me abraça apertado.

— Estava com saudades! Como foi a aula?

— Legal! — Faz um joia com a mão. — Ei, tia Manola!

— Tia uma ova! — Manola repreende, mas ri. — Sou no máximo sua irmã mais velha, pirralha!

Tessa gargalha de novo e faz gesto de que Manola é maluca, rodando o indicador ao lado da cabeça, e Arnaldo libera sua estridente gargalhada ao concordar com a menina.

— Quer alguma coisa especial daqui hoje? — pergunto, mas sem muita esperança.

— Não, tia Do Carmo disse que vai fazer lasanha à noite, e você não faz lasanha aqui!

— Não faço! — Cutuco suas bochechas com os indicadores bem onde elas formam covinhas quando Tessa sorri. — Cláudia fez uma torta especial. Vou levar para você mais tarde.

— Tem chocolate? — indaga animada.

— Tem, sim, pirralha! — é Manola quem responde. — E se ela tiver direito a um pedaço, eu, como irmã mais velha, também tenho!

Tessa mostra a língua para ela, Arnaldo ri, e eu balanço a cabeça, pois as duas parecem realmente irmãs, brigam e implicam uma com a outra, mas se adoram. Minha pequena se despede, e a acompanho até a entrada do bar, só voltando para a cozinha ao vê-la fechar a porta do acesso ao nosso apartamento.

Deus do Céu, como é bom ver minha menina feliz!

A segurança e a felicidade de Tessa são minhas prioridades, e vê-la crescendo tendo essas duas coisas me dá ânimo para aguentar mais um dia de trabalho e não pensar em coisas ruins. Nem mesmo nos Karamanlis, ainda que um deles tenha mexido comigo de tal forma que volta e meia está nos meus pensamentos – e não pelo motivo pelo qual deveria estar!


— Me and Mrs. Mrs. Jones, Mrs. Jones, Mrs. Jones, Mrs. Jones, we've got a thing going on. — Dedilho o arranjo ao piano, sentindo o peso dessa canção sobre mim e volto a cantar: — We both know that it's wrong, but it's much too strong to let it go now.3

Há anos não toco essa música tão famosa na voz do Billy Paul, mas algo me impulsionou a fazê-lo esta noite. Nada específico, creio eu. Contudo, meu interior está conturbado como há muito tempo não o sinto.

O paletó do terno que vesti hoje está em cima de uma das cadeiras da sala de jantar, a gravata precariamente pendurada sobre a borda do piano, enquanto estou aqui, camisa social semiaberta, mangas arregaçadas, uma garrafa de uísque em cima do instrumento e meu copo já quase vazio. Não parei de tocar desde que cheguei do concerto musical e apresentação de novos artistas de gravuras que ocorreu em uma galeria de artes aqui perto.

A verdade é que, desde quando Viviane me mandou o convite, não tive nenhum interesse em ir, embora fosse algo que geralmente chamaria minha atenção. Tive uma semana fodida demais, e não havia nenhum clima para entretenimentos. Tudo o que eu queria era uma massagem gostosa e uma trepada de alívio.

Termino a música e recosto a cabeça nas teclas do piano, quase não me reconhecendo. Não estou normal! Talvez essa época do ano, próxima demais do Natal, mexa comigo, evoque sentimentos que há muito tempo pensei ter perdido.

Sinto falta da Vanda nesta casa! Olho em volta e bebo o restante da dose de uísque. Tudo está tão vazio, tão silencioso, tão... estéril. Não tenho mais ninguém me esperando quando chego do trabalho, nenhum cheiro de tempero quando entro na cozinha – ou mesmo de café, porque o dela é incrível –, não há conversas amenas.

Não há nada!

Balanço a cabeça, irritado com o rumo dos pensamentos, com a energia negativa deles dentro de mim. Maldita semana!

O desastre começou na segunda-feira com aquele encontro deliciosamente desastroso com Duda Hill; depois aumentou com a notícia que o filho da mãe do Kostas nos deu sobre o imóvel onde funciona o Hill Wings.

A proposta de Millos ressoa em meus ouvidos, e, por mais que eu não ache muito sentido no que me propõe, penso se não é um caminho a seguir. Nunca fui um homem de indecisões. No entanto, entendo que, nesse assunto em particular, não posso me mover por impulso.

Volto a escutar a voz de meu primo como se estivesse aqui e o ouço apresentar todos os motivos para embasar sua ideia.

— Nosso erro foi deixá-la sozinha naquela rua, sem nenhuma concorrência! — argumentou.

— Quando fechamos a compra do último imóvel, aquilo lá ainda era só um pé-sujo com meia dúzia de clientes bêbados — justifiquei em contrapartida. — Não tínhamos com o que nos preocupar!

— Esse foi o erro do coelho naquela fábula — Kostas ironizou. — A arrogância do “já está no papo!”.

— Você falando de arrogância? — Ri, e Millos disfarçou seu riso também. — Não tem se olhado no espelho, não?

Kostas apoiou seu indicador logo abaixo da sobrancelha, ao lado do olho e me deu um meio sorriso e um olhar de desprezo. Ergui minha sobrancelha e balancei a cabeça, enfrentando-o. Se o bostinha achava que iria me intimidar como faz com seus advogados, estava muito enganado!

— Já terminaram de testar a testosterona de ambos? — Millos reclamou. — Minha ideia faz todo sentido! Se alugarmos algumas lojas próximas ao estabelecimento dela, damos a concorrência necessária para que recue um pouco no crescimento que vem tendo!

— Sabe o que não entendo? — Kostas interferiu. — Se ela vem fazendo tanto sucesso quanto vocês gostam de afirmar, por que não quitou a maldita promissória?

— Talvez não tivesse tido o suficiente ainda, pois, como o “agiota” mesmo informou, ela andava pagando os “juros” para que ele continuasse paciente — respondi. — Ademais, ela não poderia pegar um empréstimo para quitar uma dívida como essa.

— A verdade é que o pilantra nunca iria liberá-la da dívida. — Concordei com o ponto apresentado pelo Millos. — Gastamos quase o dobro do que a promissória realmente vale, e ele já tinha recebido anos de juros da Duda. O homem é um espertalhão!

— Então você acha que, colocando mais alguns bares naquela rua, teremos mais chances de quebrá-la? — inquiri. Millos assentiu, mas vi um leve sorriso no rosto de Kostas e, sinceramente, não gostei dele. — Como controlaríamos isso?

— Kostas! — Millos aponta. — Podemos amarrar bem o contrato de aluguel, especificando a atividade que o locador deve exercer.

— Isso é legal? — perguntei.

— Não posso dizer no contrato o que ele deve vender, mas posso amarrá-lo à atividade que já exerce, ou seja, se trocar de ramo, deixa o imóvel. — Olha para o Millos. — O pessoal da corretagem, que por sinal é subordinado ao nosso querido e esperto primo, é quem deve ter em mente quais são os tipos de locadores que devem aceitar.

Concordei, mas ainda não estava completamente convencido.

— Pense na questão. — Millos se pôs de pé. — Tempo é o que não falta, pelo que Kostas disse.

Meu irmão o acompanhou, o sorriso estranho ainda em seu rosto, como se estivesse acontecendo algo que só eu não soubesse.

Dali em diante, tudo pareceu ainda pior! Os dias se arrastaram até esta sexta-feira, vários setores da empresa dando problemas justamente nesta época em que o pessoal já parece estar entrando em ritmo de festas e esquecendo um pouco a nossa tão famosa correria paulistana.

Só soube que Valentina seria minha acompanhante nos eventos artísticos no meio do expediente, quando Viviane me ligou para perguntar se eu tinha o endereço do apartamento da moça.

— Você me disse que ela estaria lá, não que iria comigo! — resmunguei. — Nós mal trocamos algumas palavras naquele vernissage!

— Theo, meu querido, você quer ou não quer uma maldita esposa?! — minha sócia perdeu a paciência.

— Porra, mas não assim! Não precisava agir tão descaradamente como se eu estivesse desesperado, merda!

— Ela é a melhor candidata com que você já esbarrou por aí! É amante das artes como você, vem de uma família tradicional e rica como a sua, é linda, jovem e tem todos os infindáveis requisitos que você listou para a futura senhora Karamanlis! Dê uma chance a ela!


CONTINUA
Acordei de ressaca hoje, e não foi por causa da quantidade de bebida que ingeri no vernissage; aquela quantidade, eu nem consideraria como beber. Viviane ficou puta por ter encarecido o orçamento com garrafas do meu uísque preferido e eu não estar bebendo, por isso, depois do evento, reuni todas as que sobraram e trouxe para meu apartamento.

Pensei que ia passar uma noite solitária, acompanhado apenas de um single malte e discos de jazz, mas, no meio da minha encenação de lobo solitário, Millos ligou me convidando para ir até seu loft. Neguei várias vezes, mas a porra do homem estava tão excitado com a cerveja que havia feito que não parava de insistir.

Resultado? A bebida realmente estava um espetáculo! Enchemos a cara, mesmo sob meus protestos, pois nunca curti muito beber cerveja, e comemos uns tira-gostos tão saborosos que teci elogios a sua habilidade na cozinha.

— Ah, não fui eu quem preparou, não! — Riu. — Encomendei no Hill.

Quase cuspi aquela porra para longe e o fuzilei com os olhos.

— Porra, eu querendo que aquela merda feche e você comprando lá? Está do lado de quem afinal?

— Do meu estômago! — respondeu comendo mais um dos bolinhos. — Estava com vontade de ter um acompanhamento, mas sem nenhum saco para preparar. Me lembrei do dia em que fomos lá e quis conferir se ainda continuavam tão gostosos!

— Ainda não te perdoo por aquela arapuca! — acusei.

Há uns dois anos, Millos me convidou para comemorar seu aniversário, coisa que vez ou outra fazemos quando ele está em clima de festa. Eu lhe disse que o encontraria no local, mas ele insistiu em me buscar em casa, e, quando chegamos e percebi que era no Hill, fiquei bem puto, mas a curiosidade de saber o motivo pelo qual o boteco estava se tornando um sucesso me impulsionou a entrar.

O que eu não contava era que, além de a mim, o filho da puta tinha convidado meus irmãos. Ficamos lá os quatro como se fôssemos bons amigos, compartilhando da armadilha de Millos. Aposto que Kostas e Alex detestaram cada momento, mas sorrimos, bebemos e experimentamos os quitutes da tal da Duda Hill.

Mesmo não gostando de admitir, era fato que a mulher sabia o que estava fazendo na cozinha. Os bolinhos tão tradicionais de um boteco tinham um requinte diferente, embora mantivessem a essência. Era como se ela conseguisse melhorar o que já era perfeito, e isso, tenho que admitir, é um dom.

Confessei isso ao meu primo? Nem sob tortura! Repreendi-o por ter comprado lá, aleguei que ela podia ter mandado envenenar os quitutes – fazendo um drama desnecessário, culpa da bebida –, mas não parei de comer.

— Ah, pedi a Sami para comprar para mim — respondeu.

— Você ainda está saindo com ela? — questionei surpreso, pois havia muito tempo não via a motoqueira que, de vez em quando, orbitava em volta dele.

— Não! Somos amigos, já disse isso, mas parece que você só enxerga a boceta de uma mulher, come até suas “amigas” — fez referência a Viviane.

— Por que você não gosta dela? — Provoquei: — Porque ela é independente, dona de si mesma e diz o que pensa?

— Não! Eu não curto mulher assim para comer, mas não tem nada a ver com o fato de eu achá-la fria e calculista, e nunca escondi isso de você. Aquela mulher gela meu sangue!

Ri do seu exagero, afinal, a Vivi não tem nada de fria. Millos implica com ela pelo simples fato de a mulher ter personalidade e não se deixar comandar por ninguém. No primeiro momento ele se sentiu atraído, Vivi é um espetáculo aos olhos, e ela também não disfarçou o interesse. No entanto, bastaram alguns minutos de conversa para que se odiassem.

— Hoje ela conseguiu algo incrível — comentei. — Valentina de Sá e Campos, já ouviu falar?

Ele riu.

— Dela não, mas conheço os sobrenomes. Família paulistana tradicional, bom currículo. — Cruzou os braços e me olhou debochado. — A futura senhora Theodoros Karamanlis?

— Talvez — fui sincero. — Conversei um pouco com ela nesta noite, achei-a divertida, inteligente e sedutora. A princípio achei que era muito nova, mas é madura e independente, cheia de opinião. Gosto do tipo.

— Eu sei. — Ele se levantou e foi pegar mais cerveja. — Foi Viviane quem te apresentou a ela? — Assenti. — Não sei se gosto disso, mas boa sorte.

Gargalhei pela implicância dele com a Vivi e resolvi desviar o assunto. Falamos da Karamanlis, de música, de motos e, por fim, já muito bêbado e com sono, caí sobre o sofá dele e acordei há pouco, com torcicolo e com uma puta dor de cabeça.

— Ei! — Millos me saúda estendendo uma xícara de café. — Você está destruído!

O desgraçado ri, mas nem posso mandá-lo tomar no cu, porque minha cabeça trepida parecendo que há uma britadeira no meu cérebro. Maldita cerveja! Malditos bolinhos envenenados da Duda Hill!

— Cara, você é fraco para minha cerveja! — Millos ri. — Ficou boa, não é? — Apenas assinto, ainda tomando o café para melhorar meu ânimo. — O que está programado para fazer nesse final de semana?

— Vou trabalhar. Como saí um pouco mais cedo ontem por causa do vernissage, Rômulo separou umas pastas para que eu lesse nesse final de semana. Coisa chata, principalmente da pauta da reunião do conselho.

— Por falar no conselho... — Ele se senta ao meu lado no sofá e apoia os pés descalços sobre a mesinha de centro. — Ontem tive notícia do Kostas. — Ri. — Parece que tomou um toco feio da Kika e está cuspindo marimbondos.

Gargalho, esquecendo a dor.

— Como queria ter visto esse embate!

— Eu também.

Bufo, mesmo divertido, lembrando que o meu problema continua.

— Preciso trazê-la de volta para a empresa com urgência. Há vários projetos dos hunters parados, e o Rômulo não está dando conta de organizá-los.

Millos rola de rir no sofá.

— Esse seu assistente é muito estranho. Sinceramente não entendo como você ainda o mantém trabalhando contigo!

— Gosto de ele ser metódico. — Dou de ombros. — É organizado, embora meio desastrado, nunca perde um prazo e faz tudo o que eu peço.

— Seu próprio espelho, não é? Nunca conheci ninguém mais chato que você para organização.

Ergo uma sobrancelha para ele e olho em volta para seu loft cheio de espaço, mas sem nenhuma lógica ou senso de estilo. Millos gosta de coisas rústicas, e respeito isso, acho legal, mas é tão bagunceiro que seus móveis caros de design parecem ser cacarecos de alguma casa demolida.

Os únicos locais arrumados são: a cozinha, o “laboratório” de cerveja (como ele mesmo se refere ao local) e onde dorme. O resto... tem peças de motos para todos os lados, mesmo a oficina ficando na parte de baixo do galpão que ele chama de loft, tem barris com os ingredientes que compra para a fabricação de cerveja, roupas, discos e óculos (nunca vi tantos para uma só pessoa) espalhados por todos os lados.

O homem é um caos completo em casa, mas, se alguém entrar na sala dele na empresa, vai acreditar que é o epítome da organização. Não entendo como consegue!

— Bem, sobre a Kika, eu posso te adiantar que não precisa se preocupar — Millos continua. — Falei com ela ontem, e vai voltar.

Expiro o ar, aliviado.

— Porra, Millos, porque não me contou antes? É um alívio do cacete não ter que lidar com mais esse problema e...

— Mas ela não quer ser mudada de andar.

— O quê? Ela está fazendo exigências?

Millos penteia a barba com os dedos, enervando-me com sua calma.

— Demonstramos desespero ao mandar o Kostas pedir arrego. — Concordo com ele nesse ponto. — Ela quer aumento, continuar no andar e... — Tenta conter o sorriso, e prevejo que vem bomba, mas ele vai dar um doce do cacete para falar.

Perco a paciência e esbravejo:

— O que mais ela quer?!

— Carta branca para mandar seu irmão se foder à vontade.

— Porra!

Ponho as mãos na cabeça, sentindo a dor de cabeça voltar com tudo e ouvindo a risada debochada do Millos.

Eles querem me enlouquecer, só pode!

 

 

A dor de cabeça me acompanhou ao longo de todo o final de semana. Tomei analgésico, antiácido e – seguindo os conselhos do meu primo – mais um pouco de cerveja. No entanto, não consegui me livrar do incômodo insistente.

Trabalhei o sábado inteiro, recebendo ligações do Rômulo quase de hora em hora, a ponto de ficar puto com ele e mandá-lo caçar algo para se divertir e me deixar em paz. Compreendo que ele queira me ajudar, mas, às vezes, sua dedicação exacerbada me estressa.

Recebi um convite para jantar de uma antiga amante que vinha a São Paulo de tempos em tempos, mas neguei. Queria apenas relaxar um pouco em casa depois de ter trabalhado em páginas e mais páginas de relatórios com uma dor de cabeça chata a me distrair.

Pedi comida em um restaurante de comida vegana, achando que pudesse ser a gordura dos bolinhos do Hill – velha e rançosa, com certeza – que me deu essa indisposição e resolvi assistir a alguns filmes antigos. Sou fã de “O poderoso chefão”, então comecei a assistir a cada um deles de novo.

Novamente dormi em um sofá, mas acordei melhor e resolvi correr um pouco. Passei umas duas horas no Ibirapuera e, na volta, encomendei o almoço de domingo, sentindo-me um pouco órfão sem a Vanda em casa.

Liguei para Millos a fim de fazermos algum programa à tarde, mas ele estava com alguma mulher em algum clube ou lugar que só Deus sabia, então voltei aos relatórios, e isso consumiu o resto do dia.

Debaixo do chuveiro, rememorando este final de semana de merda, ouço meu telefone tocar, mas o ignoro. Coloquei os jatos no mais forte possível para tentar aliviar um pouco a tensão que venho acumulando nesses dias. A verdade é que preciso trepar um pouco, divertir-me, talvez fazer uma viagem ou passar um final de semana com alguém sem pensar no trabalho.

A imagem da Valentina vem à minha mente, sua conversa gostosa, seu sorriso bonito. Contudo, ainda não me sinto completamente certo de que devo me envolver com ela, principalmente por uma questão: não senti muita atração.

Sei que isso é de momento e que pode mudar, principalmente se a convivência for boa. Nem sempre sentimos atração pela pessoa no primeiro encontro, e já vivi anos demais para saber que até um primeiro encontro explosivo pode depois esfriar e o tesão ser extinto, então, não me baseio apenas nessas primeiras impressões.

Fecho os olhos e penso na garota da boate há alguns anos. Ela vem preenchendo minhas fantasias há muito tempo, talvez por ter sido gostoso daquela vez e não ter tido mais notícia dela.

Mal lembro do seu rosto, de tão bêbado que estava, sempre quando fantasio vejo os cabelos e me lembro da loucura que foi nossa transa naquele banheiro.

O telefone volta a tocar, e desligo o chuveiro, saindo do boxe para ver quem é o chato. Rio ao ver o nome do Millos. Na mosca!

— Já terminou sua maluquice sexual com a “submissa” da vez? — provoco.

— Vá se foder e não se meta nos meus assuntos — rosna. — Liguei para saber se amanhã pode ir comigo a um restaurante que um amigo inaugurou nos Jardins.

— Boa comida ou é boteco?

— Não, seu fresco, é coisa fina! Vanda ainda não estará de volta, não é?

Suspiro, resignado.

— Não, ela ainda vai ficar um tempo no Rio de Janeiro. Está certo, amanhã combinamos isso melhor no escritório.

— Okay! — diz animado. — Vai almoçar no refeitório junto aos funcionários?

— Sempre há uma primeira vez, não é? — Deixo a toalha no suporte e sigo para o closet. — Além do mais, confio que servimos algo de qualidade aos funcionários.

Millos ri.

— Essa eu quero ver! Nos encontramos no almoço, então! Boa noite, Theo.

— Boa noite!

Desligo o telefone e me olho no espelho, lembrando-me do tempo em que comia qualquer coisa e em qualquer lugar, na maioria das vezes sujo e fedendo a peixe, sentindo-me feliz e livre.

— Quem é você, Theodoros Karamanlis?


O dia nem bem amanheceu, e eu já estava suando na academia com a Sandra. Hoje, sem Millos, o treino foi mais tranquilo, seguindo o ritmo normal dos exercícios. Tomei meu café sozinho na cozinha – café puro mesmo – sentindo imensamente a falta da Vanda, de sua conversa matutina animada e seus cuidados. Posso não admitir sempre, mas gosto de ser cuidado, de sentir esse afeto, coisa tão rara na minha vida.

Limpei os pensamentos e saí para trabalhar.

— Bom dia, Dionísio! — cumprimentei o motorista como em todos os dias, já pegando meu jornal para me inteirar sobre as principais notícias do dia. — Hoje vou almoçar na empresa, mas, à noite, vou sair do escritório direto para jantar com Millos.

— Levo o doutor ou trago o carro?

— Traz o carro, vou dirigindo.

Ele assentiu, e seguimos viagem em silêncio, ele concentrado no trânsito, e eu, nas notícias de economia do país e do mundo.

Cheguei à empresa já apagando incêndios. Um dos projetos de um cliente foi reprovado por uma comissão municipal, então Kostas teve que intervir mandando seus advogados e acompanhando todo o processo. Eu, como CEO, fiquei aguentando a aporrinhação do gerente responsável pela implantação da empresa multinacional aqui no Brasil.

Nem vi a hora passar, mal tomei meus cafés tão tradicionais ao longo da manhã, irritado com esse problema, com o Rômulo borboleteando ao meu redor me enchendo de perguntas: “quer café?”, “ligo para o doutor Konstantinos?”, “quer um calmante?”. Eu quase explodi de raiva, sentindo meu estômago fritar e a cabeça estourar.

Desci para o refeitório faltavam alguns minutos para o meio-dia e, para meu espanto, ainda não tinha nenhuma refeição pronta. Conferi as horas no Omega, um dos relógios mais precisos do mundo, e estranhei a demora. Rômulo apareceu e, quando lhe questionei o atraso, fiquei sabendo que o almoço era servido a partir da 1h da tarde.

Voltei para o escritório sob a insistência de Rômulo para me encomendar o almoço em algum restaurante.

— Não! Hoje vou comer no refeitório — insisti.

Millos me lançou um desafio por eu nunca ter comido na empresa desde que foi inaugurado o refeitório para os funcionários. Pensamos no restaurante para facilitar a vida de todos e, como tínhamos espaço, decidimos montar a estrutura. Estive presente no primeiro dia, na inauguração, há alguns anos, mas depois disso não botei mais os pés no local.

Exatamente às 13h desci novamente pensando em usufruir de um almoço tranquilo e nutritivo, porém, o que encontrei me deixou sem ação. Primeiro, os funcionários ficaram estarrecidos ao me ver ali; percebi em seguida que apenas o baixo escalão da empresa – de coordenadores para baixo – estava comendo ali. Não havia nenhum gerente ou diretor no meio dos mais de 100 funcionários da companhia.

Contudo, o que mais me surpreendeu foi a comida. Não, não era ruim, pelo contrário, era bem preparada, mas sem nenhuma opção para substituição.

— E quem não pode comer carne vermelha? — questionei ao Rômulo, e ele apenas corou, fingindo não ouvir. — Há cardápios diferentes ao longo da semana?

Rômulo continuava a montar seu prato sem emitir qualquer resposta, o que não é nada típico dele, e isso me irritou. Quando não era para falar, o homem tagarelava, mas, quando eu precisava de respostas, ficava mudo!

— Rômulo! — chamei-o de modo mais enérgico. — Eu estou tentando entender o que...

— Não, não há! — escuto a voz do Alex e me viro para encará-lo. — E seu querido assistente não sabe informar porque não come aqui também. — Meu irmão pegou um prato e se serviu naturalmente. — A questão do restaurante entrou em pauta numa reunião de diretoria, mas o senhor todo-poderoso do Olimpo achou que não era uma questão relevante para a economia da empresa e pulou o assunto.

Olhei de esguelha para Rômulo buscando confirmar a informação, e ele atestou. Xinguei mentalmente.

— Uma empresa é feita de mais do que números, Theodoros Karamanlis — seu desprezo pelo sobrenome era evidente. — E, quando fiz a proposta do restaurante, era para que, além de economizar o tempo dos funcionários e agilizar o serviço, também tivéssemos convívio com eles, porém, adivinha quem foi o primeiro a pular do barco e a incentivar o “alto escalão” a ir junto?

Bufei de raiva.

— Quem é o responsável pela gestão do restaurante? — ignorei o discurso do meu irmão idealista e perguntei ao Rômulo.

— É terceirizada, a mesma empresa do pessoal da manutenção.

Merda!

— Marque uma reunião com ela e peça ao Kostas para avaliar o contrato. — Rômulo mais do que depressa escreveu em seu tablet inseparável. — Dispare um memorando para todos os diretores e gerentes, lembrando da existência do restaurante e informando que, a quem for almoçar fora, será necessário cumprir o horário, ou seja, uma hora e nenhum minuto a mais.

Rômulo arregalou os olhos e assentiu.

— Eu pouco vejo você e percebo que nem é preciso! Você não mudou nada, o mesmo prepotente de sempre. — Alex passou por mim, ainda se servindo no bufê, rindo de deboche, e percebi olhares curiosos em nossa direção.

— Eu preciso lembrar que você também faz parte da diretoria e tem acesso irrestrito ao conselho? — Cheguei perto para falar baixo: — Se fosse meu projeto, nunca deixaria chegar aonde chegou só porque não sou o CEO. Isso demonstra que está mais preocupado em ir contra a direção do que lutando pelo bem-estar dos funcionários. Não é minha função tomar conta de tudo, não sou absolutista, eu delego e confio naqueles a quem passo esse poder. — Ele fechou a cara, perdendo o ar de superioridade. — Não tenho intenção alguma de prejudicar os que trabalham comigo, pelo contrário. Mas assumo meu erro em não ter frequentado o local para dar exemplo.

— Mas o doutor também não tem horário certo para almoçar, por isso...

Balancei a cabeça em negativa, freando a defesa de Rômulo. Não tinha desculpas, o exemplo era meu, e eu tinha falhado. Terminei de fazer meu prato, sentei-me a uma mesa com Rômulo e almocei mesmo sentindo um nó na garganta por ter mostrado falha e ter sido repreendido pelo Alex na frente de todo mundo.

Merda!

Ao longo do dia, a repercussão do almoço do CEO no restaurante da empresa, bem como o efeito do memorando para os diretores e gerentes agitaram a tarde na Karamanlis. Percebi todo mundo mais atento, mesmo na correria de sempre.

Tive uma resposta positiva da equipe de Kostas com relação ao projeto vetado e pude passar a boa notícia ao nosso cliente. Recebi vários relatórios dos setores e subsidiárias ao longo do dia, inclusive da K-Eng, dirigida pelo Alex.

Meu irmão é um sonhador idealista, defensor dos fracos e oprimidos, um rebelde que só trabalha conosco para contrariar a família. Cospe sobre nosso sobrenome, mas faz questão de ostentá-lo para afrontar o pappoús. Sempre achamos que ele tentaria afundar a empresa em represália ao tratamento que teve na infância, mas não, ele não só assumiu uma empresa praticamente independente como a fez crescer. Todavia, ainda sinto que há algo por trás disso.


CONTINUA

Uma família separada pelo ódio...
Criado pelo avô, renegado pelo pai, odiado pelos irmãos, Theodoros Karamanlis recebeu o cargo de CEO da empresa da família. Sua principal meta é provar a todos que é mais competente do que o homem que sempre o renegou, seu pai. Para isso acontecer, falta apenas comprar o imóvel onde funciona um pequeno pub na Vila Madalena e assim fechar uma conta aberta há mais de dez anos.
Uma família mantida pelas lembranças...
Maria Eduarda Hill sempre teve o sonho de ser uma renomada chef de cozinha, mas, por circunstâncias do destino, acabou assumindo o antigo boteco de seu pai na Vila Madalena. Ela trabalha duro para manter o negócio e preservar a memória de sua família e luta bravamente contra o assédio de uma empresa que quer comprar e demolir o lugar.
Uma noite, um bar, e uma química explosiva...
Depois de cair em uma armadilha e conhecer a irritante cozinheira que o impede de fechar o maior negócio de sua empresa, Theo se vê dividido entre essa forte atração, conquistar o que seu pai não foi capaz e uma promessa feita ao avô. Por mais que resista, o grego não consegue ficar longe de Maria Eduarda, então começa uma implacável sedução para tê-la em sua cama.
Theo e Duda têm tudo para se odiarem. No entanto, mal sabem eles que a paixão não se conduz pelo óbvio!
A todas as Jujubas do meu potinho cheio de amor!

 

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— Parabéns, doutor Karamanlis! — Rômulo, meu assistente, soa exultante ao me cumprimentar. — Falta pouco agora para o senhor conseguir fechar essa conta! — Olha sua agenda. — O senhor tem uma reunião com o doutor Villazza daqui a...

Não dou muita atenção à falação dele, muito menos aos elogios animados. Sei bem que, embora tenha dado um passo gigante, ainda não conquistei minha vitória, não enquanto não tiver cumprido todas as metas que tracei para minha gestão à frente do negócio da família.

Olho para a parede esquerda do meu escritório, diretamente para o mapa emoldurado cujo círculo abrange a única propriedade que falta ser comprada para termos a total posse do quarteirão que mais tem se valorizado na área da Vila Madalena.

Foi exatamente por causa dessa bendita área que meu pai, o poderoso Nikolaous Karamanlis, perdeu seu reinado por aqui e foi substituído por seu renegado filho mais velho. Tenho consciência de que Rômulo tem razão quando me parabeniza pelo trabalho à frente da empresa. Millos, meu primo, e eu temos feito uma gestão muito produtiva, mas ainda não consigo estar satisfeito, não enquanto não conseguir comprar o último pedaço de terra daquele lugar.

Millos tem tentado me convencer a não me cobrar tanto sobre essa questão, afinal nem temos um cliente para instalar nessa área, perdido há muito tempo, quando meu pai prometeu o lugar e não conseguiu cumprir a promessa. O que ele não entende é que há muito tempo isso deixou de ser apenas um negócio, é uma questão de honra conseguir aquilo que meu progenitor não alcançou.

Balanço a cabeça ao pensar no meu pai e na nossa conturbada convivência. Não, não é hora de pensar em todas as merdas que aconteceram na nossa família!

Levanto-me e sirvo uma dose do meu puro malte favorito para relaxar um pouco, querendo já estar em casa.

Casa... Essa palavra me faz pensar em meu país, a Grécia e me desperta outra lembrança dolorosa: meu avô e a promessa que fiz a ele. Geórgios Karamanlis está prestes a completar 90 anos, mas, como diz o ditado por aí, vaso ruim não quebra facilmente. O homem que me criou, que me ensinou tudo sobre os negócios agora exige de mim uma família.

Uma família! Rio debochado a esse pensamento, a essa palavra tão sem sentido na minha vida e na dos meus irmãos. Família não significa nada mais do que pessoas que compartilham a mesma linhagem, pois os Karamanlis não são conhecidos por laços além dos de sangue. Somos todos fodidos de alguma forma, cada um com suas merdas para carregar, seus fantasmas e esqueletos no armário.

Somos ótimos trabalhando juntos, mas é só.

Não sei da vida particular de nenhum dos meus irmãos mais do que sei da de qualquer outro funcionário da empresa. Muito menos me importo com isso! Todos são adultos e, se querem continuar agindo como crianças chorosas e traumatizadas, o problema não é meu.

Rômulo volta à minha sala cheio de pastas com arquivos e me avisa que o carro já me aguarda para me levar até o Villazza SP, onde, além de conversar com Frank, vou aproveitar para almoçar no Vincenzo com ele como companhia, pois detesto comer sozinho.

Enquanto meu assistente se instala à sua mesa, passo na antessala e me despeço da Luíza, secretária da diretoria, deixando meu celular corporativo para trás, pois não quero ser incomodado na hora do meu almoço.

— Estou indo para a reunião com o CEO da rede Villazza; qualquer assunto, anote o recado. — Aponto para o celular. — Volto daqui umas duas ou três horas, pois vou almoçar por lá.

— Certo, doutor Karamanlis.

Despeço-me dela e sigo para a garagem subterrânea do prédio onde fica a nossa empresa, fundada no Brasil há décadas, instalada bem no coração da cidade de São Paulo, a Avenida Paulista. Tenho orgulho de ser o diretor executivo daqui; orgulho do nome e do respeito que conquistamos ao longo dos anos.

O setor imobiliário no Brasil passa por algumas crises, como acontece também no mundo inteiro, mas não para de avançar. Há sempre pessoas querendo moradia, empresas atrás de locais para seus negócios, então nós nunca ficamos sem fechar bons acordos rentáveis.

Meus pensamentos são levados para os Yannes, uma rede de resorts de aventura que tem unidades instaladas nos locais mais incríveis do mundo. Essa tem sido uma conta difícil, por causa de todos os entraves legais desse tipo de empreendimento, mas que, pelas últimas notícias que tive, isso irá ser solucionado em breve.

Sorrio largo ao pensar na Malu Ruschel, uma das minhas melhores gerentes e, com certeza, futura diretora da Karamanlis. A mulher é uma máquina de trabalhar, tanto que tive que a obrigar a tirar férias, mas a danada até descansando é atenta e descobriu o local que tanto procurávamos para o resort.

Malu, além de competente, é linda demais! Confesso que sempre tive uma enorme curiosidade de saber como é ter toda aquela tensão, toda aquela organização e meticulosidade debaixo do meu corpo, gemendo de prazer. Balanço a cabeça, afastando esse pensamento.

Mesmo me sentindo muito atraído por ela, nunca iria tentar qualquer coisa. Não por medo ou insegurança, pois acho que nos daríamos muito bem na cama, pois ela aparenta ser uma mulher segura de si, madura e que sabe separar o prazer do coração. Definitivamente, Malu não é daquelas que se apaixonam!

O que me impede de buscar um entendimento íntimo com ela é puramente ético. Eu não como funcionárias; por mais tesão e vontade, não faço isso. Ao contrário do meu irmão, Kostas, eu as enxergo como iguais e detestaria ter algum machista questionando a capacidade de uma delas apenas por estar trepando com o chefe. E, infelizmente, isso acontece muito nas empresas por aí. Quando um homem recebe uma promoção, é porque mereceu, mas, se é a mulher quem recebe, não foi por merecimento, mas porque ela tem uma boceta! É simplesmente ridículo e, por isso mesmo, prefiro não me envolver. Se há algum diretor ou gerente fazendo isso, é pelas minhas costas – porque todos sabem que não aprovo – e é discreto demais, pois isso não chegou aos meus ouvidos.

A regra geral na empresa é: evitem relacionamentos dentro do ambiente de trabalho, porque isso só causa problemas. Agora, se isso acontecer e as duas partes concordarem, acabarem se acertando, eu não as demito ou proíbo. Não sou babá de marmanjo! Há casais na Karamanlis, a maioria formada lá dentro mesmo. Eu seria hipócrita se fingisse que não há. Não me sinto à vontade para manter um caso com qualquer uma das minhas funcionárias, mas não sou arbitrário a ponto de, se acontecer com outros, demitir um ou mesmo os dois envolvidos.

Minha consciência diz que isso é só mais um dos traumas que carrego, mas a ignoro, mandando-a se foder.

Chego ao Villazza e sou recepcionado rapidamente pela assistente do Frank, Alice.

— Bom dia, doutor Karamanlis. Desculpa tê-lo feito vir para o hotel, mas é que estamos com uma pequena reforma na sala da diretoria no prédio administrativo, então viemos para cá.

— Sem problema, Alice! — Sorrio. — Eu vou aproveitar para almoçar com o carcamano no Vincenzo.

Ela faz careta.

— O senhor Villazza tem outra reunião na hora do almoço e vai sair daqui direto para ela.

Dou de ombros, resignado.

A parte administrativa do Villazza SP fica toda no térreo, mas Frank optou por usar uma das suítes preparadas como home offices, duplex com um escritório completo embaixo e quarto no mezanino.

— Espero que não esteja usando este lugar apenas como desculpa para comer fora do casamento... — falo assim que o vejo, concentrado em sua mesa. — Se Isabella te largar, juro que me caso com ela.

— Dovrai prima uccidermi, maledetto!1

— Não me tente, Frank Villazza! — Aperto sua mão. — Estou sendo pressionado.

O carcamano ri à minha custa.

— Seu pappoús2 ainda está querendo vê-lo casado? — Faço careta e assinto. — Você deveria levá-lo em consideração.

— É incrível como Isabella te domou! — Cruzo os braços e me sento em uma confortável poltrona. — Eu ainda me lembro de seus discursos anticasamento. — Rio. — Lembra como você se apresentou a mim naquele bar?

Frank sorri, embalado pelas lembranças de um tempo em que ainda ostentava o título de playboy. Nós dois aprontamos muitas coisas juntos, principalmente na época de Harvard, onde nos conhecemos. Promovemos algumas orgias, dividimos a mesma parceira, fumávamos baseados juntos e frequentávamos clubes de sadomasoquismo.

Nossa última aventura foi meses antes de ele conhecer sua esposa. Frank estava de férias na Itália, e, assim que eu soube que ele estava em Roma, chamei-o para me visitar em Atenas. Naquela semana em que ficou hospedado no meu apartamento, ele tentou de todas as formas me convencer a participar de um congresso na Suíça que ocorreria meses depois, mas para o qual era preciso garantir vaga. Nossos outros companheiros de Harvard já haviam feito reserva, mas eu declinei do convite, pois já estava me preparando para ir morar no Brasil e assumir a Karamanlis.

Viajamos de iate pelas ilhas naquela semana e, numa das mais belas do mar Jônico, fomos a uma boate muito louca, bebemos todas, e eu tive a trepada mais memorável da minha história.

Eu ainda me lembro dela! Era linda, corpo sarado, com uma barriga plana e de cintura fina de fora. Usava uma blusinha curta e minissaia de couro. Nos pés, botas altas, salto agulha, destacando suas pernas deliciosas. A mulher era um espetáculo para os olhos e me atraiu como ninguém.

Os cabelos, longos e pintados de rosa, balançavam ao ritmo da música. Ela estava acompanhada com mais cinco amigas, todas bem bonitas, sendo que duas delas desapareceram com Frank ao final da noite.

— Cazzo! — Frank xingava excitado ao vê-las dançando e nos oferecendo brindes com seus copos. — São muito novinhas!

— Foda-se! — eu disse sem conseguir tirar os olhos da mulher de cabelos rosa. Eu esperava apenas um movimento dela, apenas um sinal de que estava disposta, e, quando ele veio, olhei para meu amigo com um sorriso vitorioso. — A do cabelo rosa é minha!

Fomos até o grupo, dividimos suas bebidas – elas estavam bem abastecidas —, e, mesmo sem nenhuma apresentação, comecei a dançar com a beldade de cabelos coloridos. Frank ainda me dizia que eram garotas muito novas, ressaltando que deviam ter a idade de sua irmã caçula. Ele estava sempre tentando não trepar com moças jovens e inexperientes, mesmo que já tivesse sido surpreendido algumas vezes por elas, mas sempre acabava cedendo, como de fato ocorreu.

O dia estava amanhecendo quando duas se penduraram nele ao mesmo tempo, e o filho da puta parecia o rei do prazer. As duas se esfregavam nele, que as fazia tocarem uma à outra também, divertindo-se como um sultão. Sinceramente não senti nenhuma inveja; a mulher que estava comigo me deixava louco com sua dança, com nossos amassos e seus beijos etílicos. Eu queria sair dali, levá-la para algum hotel e passar o resto do dia a fodendo em desespero.

Ela dançava como se o mundo lhe pertencesse, movimentando seu corpo ao som das melodias, os músculos pulsando a cada batida, olhos brilhantes em minha direção e um sorriso safado no rosto. Tudo o que eu podia fazer além de tentar não enlouquecer de tesão era acompanhá-la, resvalar em sua pele acetinada quando colidíamos um no outro durante a dança e sentir nesse pequeno contato como se a mais viciante droga estivesse entrando em meu sistema.

— Preciso ir ao banheiro. — Parou, rindo, e apontou para um corredor do outro lado da pista. — Devo estar toda borrada e despenteada...

— Besteira! — respondi.

Seu inglês perfeito tinha um leve sotaque, mas, como as suas companheiras falavam em francês entre si, presumi que fosse por causa disso. A boate já estava vazia. Acompanhei-a até a porta do banheiro feminino e fiquei esperando do lado de fora.

Quer dizer, a intenção era essa!

Fui tomado de assalto quando ela apareceu e, sem dizer nada, simplesmente me arrastou para dentro do banheiro. O pequeno cômodo com várias repartições, espelhos e pias estava vazio. Excitado como um touro, não titubeei ao levá-la até um dos cubículos com vasos sanitários.

Esmaguei-a contra a parede de mármore, levantando-a no colo com suas pernas encaixadas nos meus quadris. Eu conseguia sentir a maciez de suas coxas, e ela, pelo jeito que gemia, sentia meu pau duro contra sua boceta ainda protegida pela calcinha. Estávamos bêbados demais para pensar, excitados demais para esperar, só queríamos provar o corpo um do outro e gozar juntos o prazer que tinha sido anunciado a noite toda.

Os gemidos dela me enlouqueciam. Eu sentia minha calça ficando úmida e, quando toquei sua calcinha, rosnei como um cão ao descobri-la completamente encharcada. Eu queria chupar aquela mulher, ouvi-la gritar de prazer, provar seu sabor até estar ainda mais bêbado e inebriado por ela.

Porém, ela tinha pressa!

Gargalhando como quem está numa grande aventura, abriu o botão da minha bermuda e puxou meu pau para fora da cueca, agarrando-o com força, fazendo-o doer, arrancando-me um gemido de antecipação. Ela se sentou no vaso e o engoliu com sua boca pintada de vermelho.

Fechei os olhos e deixei que ela fizesse o que quisesse, usasse sua língua, lábios e dentes. A sensação daquela boca quente e molhada sugando meu pau ainda mexe comigo, mesmo sendo apenas uma lembrança. E não é à toa, afinal quase gozei em sua garganta quando ela mordeu meu pau, encarando-me perversamente.

Puxei-a até a colocar de pé, virei-a de costas para mim, busquei uma camisinha no bolso de trás da bermuda embolada no chão e invadi sua boceta apertada, socando com força, levantando-a a cada vez que estocava, vendo seu rabo redondo e empinadinho se abrindo contra meus quadris.

Foi uma loucura sem tamanho, dentro de um banheiro público, numa boate praticamente vazia, ao nascer do dia, depois de passar a noite inteira dançando com ela.

— Goza para mim, safada! — eu dizia em seu ouvido, gemendo, mordiscando o lóbulo de sua orelha. — Goza sem se importar se estão ouvindo ou não! Foda-se!

Levei uma de minhas mãos para o meio de suas coxas, achei seu clitóris – o acesso facilitado por causa da depilação total que ela adotava – e o massageei até que ela se contorcesse.

— Grita! — ordenei, e ela obedeceu. — Porra, gostosa, encharca meu pau!

Não aguentei muito mais e tive que dar murros contra a parede de mármore do cubículo, tamanha a intensidade do prazer que senti.

Puxei meu pau de dentro dela, encarando-a completamente embevecido com sua beleza, com seu jeito safado, sorriso malicioso e olhos brilhantes. Joguei a camisinha no lixo e a puxei para fora daquele banheiro, pensando em levá-la para uma volta no iate.

— Ei! — uma das amigas, das que não tinham acompanhado Frank mais cedo, chamou-a. — Temos que resgatar a Allly e a Èlene, senão vamos perder o voo!

— Voo? — inquiri assustado.

— Temos que voltar para Paris — ela disse.

— Agora? — Ela assentiu. — Não!

A gostosa que acabara de gozar no meu pau e me dera um orgasmo fenomenal se aproximou, depositou um selinho na minha boca e se afastou.

— Foi uma noite deliciosa!

Bufei, resignado, não satisfeito, porque ainda queria comer mais aquela mulher, experimentar todo o seu corpo jovem, pele macia, músculos duros e tenros. No entanto... tinha valido a trepada no banheiro. Eu não ia sair correndo atrás dela implorando por mais.

— Boa viagem! — despedi-me.

Ela apenas piscou, sua maquiagem pesada, cílios longos e pintados da mesma cor que os cabelos. Desapareceu para sempre, sem nem mesmo me dizer como se chamava.

— Ei, stronzo, para de sonhar! — Frank ri, e eu volto a prestar atenção ao que ele fala. — A área que eu quero não é muito grande, apenas o suficiente para...

— Do que você está falando?

— Porca miseria, Theo! A casa de praia que quero construir para minha família, cazzo! O motivo pelo qual te chamei aqui! Está com a cabeça onde, porra?!

— A do meu pau? Enfiada naquela garota dos cabelos rosa naquela boate. Mal lembro do rosto dela, mas as sensações...

— Coglione! Está precisando de uma mulher pra foder, porra?!

— Não! — Lembro-me da que deixei essa manhã na cama. — Foi só uma lembrança. — Aprumo-me. — Vamos falar de negócios!


São Paulo, meses depois.


— A mulher anda irredutível! — Millos conversa comigo enquanto tomamos café. — Há anos tenho ido pessoalmente tentar negociar a compra, mas ela se recusa e tem conseguido manter suas contas em dia.

Desvio meus olhos do computador.

— Ela já sabe que temos a promissória?

— Não, simplesmente me expulsou de lá a pontapés quando fui tentar negociar! — Ri. — Você sabe que eu não curto uma mandona, mas ela me deixou levemente excitado.

— Porra, Millos, não fode o assunto! — Meu primo ri e deixa sua xícara vazia sobre o pires. — Já temos a dívida do pai dela; o que estamos esperando para executá-la? Isso a deixará sem alternativa a não ser vender o maldito bar para quitá-la!

— Theo, é uma promissória assinada há quase dez anos! Vamos ter que cobrar e...

— É para isso que aquele desgraçado do Kostas está aqui! — grito sem paciência. — Eu não aguento mais esses irlandeses no meu caminho!

— Ela é brasileira, Theo, o pai é que era...

— Foda-se! — Bato na mesa. — Tenho um diretor que não queria ter porque a porra da Malu Ruschel desertou para ficar embrenhada no mato com um peão e, ainda assim, não consigo fechar essa maldita conta!

— Ele conseguiu comprar a dívida do agiota e...

— Você está se escutando?! — Passo as mãos pelos cabelos. — Um diretor nosso negociou – sabe-se lá como – com um agiota! Esse mesmo cara está por aí, lidando com nosso dinheiro, comprando e vendendo imóveis em nosso nome! Não confio uma vírgula nele!

Millos se levanta e desenrola as mangas da camisa para esconder suas tatuagens. Eu não entendo por que ele cisma em manter essa pose conservadora aqui dentro da empresa, mas, como bem sei, cada um dos Karamanlis é fodido de algum jeito. Apesar da barba cheia e grande e do brinco que nunca tira, ele anda pelos corredores vestido de terno e gravata, sapatos de couro e uma pose de empresário burguês que só convence quem não o conhece.

— Eu preciso daquele quarteirão, Millos!

— Nós nem temos um cliente para ele...

— Foda-se! Quero a merda do quarteirão! — Ele concorda. — Vire-se para conseguir!

— Vou conversar com Kostas sobre a execução da promissória.

— Faça isso! Meu irmão pode ser um babaca filho da puta, mas é bom no que faz.

— Engraçado é que ele diz o mesmo de você!

O taciturno, mas incrivelmente inteligente grego sai da sala sacudindo a cabeça, sem entender como é que conseguimos trabalhar juntos sem nos matar. A verdade é que trabalhamos muito bem! Temos todos os mesmos propósitos, deixar nosso nome marcado na história desta empresa.

Nenhum Karamanlis da minha geração saiu ileso à maldição familiar. Todos temos fantasmas e esqueletos escondidos em nossos armários, traumas da infância, da adolescência ou apenas somos fodidos de nascimento. A amizade que tenho com Millos é algo que fugiu à regra, pois nutrimos sentimentos verdadeiros entre nós que vão além dos laços sanguíneos que nos unem.

O restante... bem, eu não conheço o restante o suficiente para julgar ou sentir qualquer coisa por eles. Nós nos suportamos por causa da empresa, do dever para com nosso nome e, claro, do respeito ao pappoús.

Kostas, alguns anos mais novo que eu, é um advogado competente, também um babaca arrogante que fala com qualquer pessoa se achando o rei de todo conhecimento e inteligência. Por vezes tenho que lidar com as merdas dele aqui dentro da empresa, principalmente quando sua falta de tato extrapola os limites de sua diretoria e acaba afetando outras.

Alex, um dos caçulas, é engenheiro, criativo, tem bons relacionamentos com todos na empresa, menos com a própria família. É o único que não faz nenhuma questão de agradar qualquer que seja dos Karamanlis, chegando por vezes até a renegar o nome em alguns trabalhos, quando assina apenas o sobrenome de sua mãe.

Kyra, a única menina e a mais nova de todos os filhos de Nikkós, é a única que não tem qualquer relação com os negócios da família. Montou sua empresa, não usou nossa grana, não tem qualquer contato – a não ser quando contratamos seus serviços em eventos – conosco. Suspiro ao pensar nela, principalmente porque ela não dirige a palavra a mim há mais de duas décadas.

O ponto de equilíbrio, o conciliador, a nossa Suíça, para explicar melhor, é o Millos. Meu primo tem relacionamento com todos os irmãos, escuta e aconselha a todos e, ainda assim, consegue permanecer neutro dentro da confusão que é essa família nada ortodoxa. Todos o conhecem por sua serenidade, sensatez e capacidade de pensar com racionalidade mesmo em meio ao caos. No entanto, eu sei a verdade! Por baixo de toda a placidez aparente, Millos esconde um lado seu que chega a me arrepiar os pelos.

A verdade é que nem mesmo o Karamanlis mais sensato é são!

Ando pelo escritório, noto cada detalhe da decoração, trazendo à mente o significado e o momento em que cada peça aqui disposta foi comprada. Algumas delas são remanescentes de um relacionamento que tive há alguns anos com uma decoradora de interiores; entre uma foda e outra, avaliávamos os objetos juntos e os comprávamos. Poucas aqui vieram de casa, na Grécia: uma deusa Atena esculpida em Carrara, um relicário da minha avó e um tinteiro do vovô.

Um fato sobre mim que me deixa orgulhoso é que sempre gostei de arte. Mesmo não tendo nenhum tipo de aptidão para pintura e escultura, gosto de apreciá-las, de viver cercado pelo belo, diferente e único. É claro que valorizo muito os clássicos, as obras e artistas já consolidados, mas meu faro empresarial também sabe reconhecer um iniciante com potencial, por isso tenho muitos investimentos na área.

Para estar por dentro de tudo o que acontece, preciso viver constantemente ligado a esse mundo, e isso, no momento, tem gerado alguns problemas. Fora compromissos e reuniões de trabalho, meu lazer é praticamente frequentar exposições, vernissages, festivais e até concursos. Por conta disso, só tenho me envolvido com mulheres do meio – o que para mim é maravilhoso, afinal, além do sexo, tenho o plus da conversa –, e a maioria delas não se encaixa no perfil da futura senhora Theodoros Karamanlis.

Pode parecer machismo, talvez seja, mas vocês hão de convir que, por mim, nunca haveria uma senhora Theo Karamanlis. Contudo, não posso deixar de atender a um pedido do meu avô. Imagina se o velho Geórgios, ateniense tradicional, aceitaria ver o neto mais velho se casando com uma artista alternativa, cheirando a incenso e tintas?

Esse é um dos motivos pelo qual comecei a frequentar as galerias mais chiques e tradicionais, com o pessoal da alta-roda paulistana e deixei de lado esse meu lado indie de aquarelas e carvão. Não entendam mal, não desgosto de estar nesse meio mais rebuscado, claro que não, arte é arte, e eu a aprecio de qualquer forma, mas é fato que as mulheres são bem diferentes. As descoladas são sempre mais divertidas.

Já que tenho que me casar, não quero um mero compromisso de conveniência. Por isso estou procurando, conhecendo, abrindo-me a encontrar uma pessoa com a qual eu me veja acordando de manhã e me deitando ao lado à noite. Se a encontrei? Não! Mais uma vez peço a vocês que não me entendam de forma errada. Eu não procuro por amor, essa porra já provou a mim que só serve para deixar o homem idiota e burro, então nem está sendo considerada. O que eu preciso é de uma parceira, uma mulher que eu consiga ver ao meu lado como amiga, além de ser a mãe dos meus filhos. Esse é o problema! Eu não as vejo assim, pelo menos nenhuma que tenha conhecido até agora.

Confiro as horas no Omega que uso no pulso esquerdo e balanço a cabeça. O tempo não para! Vovô não está ficando mais novo; eu não estou ficando mais jovem, e as chances de eu confiar o suficiente em uma mulher a ponto de pedi-la em casamento e gerar uma criança são quase nulas!

— Doutor Karamanlis? — Rômulo me chama, interrompendo meus pensamentos preocupados. — A reunião sobre o terreno para a rede de shoppings começa em 10 minutos...

— Obrigado, estarei lá. — Caminho até minha mesa para pegar umas anotações. — A equipe da senhorita Reinol já está posicionada?

Meu assistente apenas assente, ainda parado à porta, um tanto tenso, mais do que o normal.

— Algum problema? — inquiro diretamente, esperando a reposta positiva, pois é óbvia.

— Eu não me sinto à vontade para contar isso, mas...

— Pare de dar voltas e diga de uma vez! — A impaciência toma conta de mim, e de novo questiono minha sanidade ao manter o Rômulo como meu assistente. Ele é competente, sim! Organizado? Muito! Entretanto, tem umas manias que me tiram do sério, e, infelizmente, a falta de objetividade é uma delas. — Rômulo!

Ele pula assustado com o tom da minha voz e fecha os olhos, torcendo as mãos. Dá-me paciência!

— Aconteceu uma pequena desavença há pouco lá na sala de reuniões e... — bufo, arrependido, pois odeio fofoca — a Kika abandonou a apresentação e disse que o Leonardo é quem vai falar com o cliente.

Arregalo os olhos, surpreso.

Wilka Reinol, a Wilka a quem ele se referiu, é nossa gerente de hunter, ou seja, é a responsável pela equipe que pesquisa os imóveis de acordo com a necessidade dos clientes. Assim que a Malu Ruschel nos deixou para bancar Maria Chiquinha no meio do mato, foi natural que Kika assumisse a gerência, pois se mostrou pronta para a responsabilidade durante o período de férias da antiga gerente. Ela é um pouco mais solta que a Malu – que era um tanto obcecada pelo trabalho –, mas tão responsável e obstinada quanto a outra.

Kika, sob meu ponto de vista, tem tudo o que a Malu tinha e mais a humanidade necessária para o serviço. Ela sabe liderar a equipe, é carismática, todos os funcionários do prédio a conhecem, gostam dela e fazem de tudo para ajudá-la. Alex, meu irmão, brinca que, se a presidência da Karamanlis fosse por voto popular, ela ganharia fácil, e é bem provável.

Por isso mesmo, saber que alguém conseguiu irritá-la a ponto de fazer com que ela abandone uma apresentação na qual se empenhou... Respiro fundo, já sabendo o que aconteceu.

— Kostas?

Rômulo parece que vai desmaiar.

— É... Ele estava conversando com ela antes de... — Faz um gesto nervoso com as mãos. — Eu não sei o que houve, mas o pessoal ficou todo tenso e pediu para eu vir buscá-lo.

Não! De novo, não!

Há alguns meses, eu tive que apartar uma briga feia dos dois, quando Kostas decidiu interferir no trabalho da Malu no afã de fechar a conta do Grupo Yannes. A ex-gerente ainda estava no Pantanal, e Kika era quem gerenciava em seu lugar, e a pequena morena colocou o dedo bem no meio da cara do meu irmão, de mais de 1,90m, sem titubear nenhuma só vez.

Secretamente eu torci por ela, querendo vê-la dando uns bons tapas naquela cara anglo-grega e deixando o nariz dele, já quebrado sabe Deus lá como, ainda mais torto. Nunca tive tanta vontade de incitar a guerra, mas me lembrei do motivo para o qual tinha sido chamado e tentei conciliar os dois.

Kika, ainda bufando, mandou-nos à merda e saiu da sala batendo a porta. Kostas ria, mas eu pude perceber que havia um brilho de admiração nos olhos dele. Nós não estávamos – e nem estamos – acostumados a defender alguém com unhas e dentes como ela fez com a Malu. Foi realmente admirável e providencial, porque logo depois tudo se revolveu, e o próprio Kostas admitiu que as duas estavam certas ao não apresentarem a fazenda pantaneira ao cliente.

Depois desse episódio, no entanto, os dois passaram a se evitar, e a paz voltou a reinar na Karamanlis, o que me faz voltar a pensar no que aconteceu dessa vez para que a trégua tenha tido fim.

— Você vai atrás da Kika. — Rômulo fica branco. — Vou ter uma palavrinha com o meu irmão.

— Mas ela... — o assistente tenta argumentar, tremendo de medo.

— Coragem, Rômulo! — Passo por ele, segurando o riso por vê-lo apavorado por ter de falar com a Kika. — Ela não vai te arrancar pedaços... — Sorrio para ele. — Pelo menos, não muito grandes!

Escuto-o gemer e não resisto mais. Gargalho.


Andar pela Karamanlis sempre foi algo complicado. Não por causa das dimensões do prédio, que também não é pequeno, mas porque sempre cruzo com um ou mais gerentes ou diretores, e eles sempre têm algo a comentar comigo. Sempre!

A empresa ocupa do décimo ao vigésimo andar do enorme prédio comercial na Paulista. Os andares inferiores estão divididos para duas subsidiárias: a K-Eng, empresa que concentra todos os serviços de engenharia – em seus vários nichos – e que é dirigida pelo meu irmão caçula; e a K-Decor, empresa de arquitetura e design de interiores, também sob o comando do Alex, mas com acompanhamento do Millos.

Somos uma holding, atendemos o Brasil inteiro não só na compra e venda de imóveis, como também no gerenciamento, na construção desde o projeto, planejamento, decoração e design. Nossa cartela de clientes é formada, em sua esmagadora maioria, por empresas, mas às vezes temos alguns prédios residenciais sendo atendidos de alguma forma pela Karamanlis.

Nossa estrutura é completa, temos, para exemplificar, um andar inteiro dedicado ao pessoal de TI, que coordena todas as nossas redes, tão necessário para o pessoal que trabalha com georreferenciamento de imagens, satélite e sobreposição de manchas para marcarmos as propriedades. Temos utilizado muito essas ferramentas para regularização de fazendas, áreas enormes para as quais, se o serviço fosse feito em campo, levaríamos o triplo do tempo e gastaríamos o dobro de funcionários.

A divisão jurídica, comandada pelo Kostas, ocupa quase um andar inteiro, deixando apenas três salas para a gerência de hunter, que eu não sei por que ainda mantenho lá, mas que nunca me incomodou tanto quanto agora.

Definitivamente, os hunters precisam sair do andar antes que a Kika e o Kostas se matem!

Abro a porta que dá acesso ao enorme salão onde ficam os advogados, cada um trabalhando atentamente à sua mesa ao estilo baia, e sigo para a sala toda de vidro ao fundo.

Kostas me vê antes mesmo que eu bata à porta e faz sinal para que eu entre.

— Seu assistente já fofocou com você. — Ele ri, deixando seu charuto de lado.

Olho carrancudo para o fumo, algo que ele sabe que eu desaprovo dentro do local de trabalho, mas que ele sempre alega que é só para relaxar, coisa de seu sangue inglês. Porco arrogante!

— Rômulo já me informou da situação que ocorreu — corrijo-o. Sim, eu acho meu assistente fofoqueiro, mas só quem pode falar essa porra sou eu, por isso, defendo-o. — Eu pensei que já houvesse se estabelecido um tipo de trégua entre vocês aqui na Faixa de Gaza.

Kostas dá uma risada escrota quando eu falo do apelido do andar.

— Aquela mulher é muito petulante! — Dá de ombros. — Se eu fosse o CEO dessa “bagaça”, já teria mostrado a ela a porta da rua.

— Ainda bem que você não é! — corto-o. — Eu não demito funcionários porque eles falam umas verdades a um bundão como você. Kika é extremamente competente, e eu não tenho motivo algum para me desfazer dela.

— O bundão aqui é você! Ela enche meu saco, feministazinha do sovaco cabeludo, e ainda tem a coragem de querer ditar regras!

Balanço a cabeça, perdendo a paciência.

— Você enche meu saco, e, se eu pudesse, te colocaria para fora daqui agora mesmo...

— Só que você não pode! — Ri, arrogante, pegando seu charuto de volta. — Sou dono dessa merda tanto quanto você! Então me engula!

— Você está certo, e que isso fique bem claro, Kostas. — Caminho para perto dele. — Só aturo suas merdas porque não posso te pôr para fora, não porque eu goste de trabalhar com você. Não interessa se é um puta advogado, foda-se! Eu demito sem nenhuma dor na consciência funcionários que tenham metade da sua arrogância. — Soco a mesa, e ele fica sério, deixando de lado o sorriso debochado. — Agora, não me tente! Aposto com você que todos já estão de saco cheio de suas piadinhas preconceituosas, de seu jeito de se achar melhor que todos e, principalmente, de todas as confusões que você arruma aqui dentro! Duvido que os integrantes do conselho estejam dispostos a pôr o rabo na reta para te defender.

Vejo que atingi o ponto fraco dele, pois o filho da puta sabe que não tem apoio de ninguém aqui dentro. Nem mesmo Millos – o único a conseguir conviver com essa criatura – o defenderia diante do conselho.

Kostas por fim apaga o charuto, caminha pela sala e abre a porta de vidro.

— Sai.

Rio e constato que tudo o que falei, apesar de feri-lo, não o mudará jamais.

— Para de se meter no trabalho dos hunters — aviso-lhe antes de sair. — Eu não vou segurar essa porra e nem ficar igual a uma maldita galinha pisando em ovos com meus funcionários por sua causa! Tá frustrado e entediado? Vá trepar ou qualquer outra coisa que o deixe menos imbecil do que é.

— Sim, chefe — debocha.

— É bom lembrar disso, Konstantinos Karamanlis. Eu sou o seu chefe!

Saio daqui notando as expressões assustadas dos advogados, sem me importar o mínimo, afinal todos sabem que os irmãos Karamanlis não se dão. Ando sem olhar para trás, confiante, ainda que tenha consciência de que, se pudesse, meu irmão enfiaria uma faca em minhas costas sem dó nem piedade.

Tenho absoluta certeza de que só estou no comando porque passo certa segurança ao conselho administrativo da empresa. Se não fosse assim, aposto que nenhum Karamanlis estaria na diretoria executiva. Meu pai foi um desastre, era bom gestor, mas esteve envolvido em um escândalo após outro e, por fim, começou a fazer péssimas escolhas nos negócios, o que custou sua cabeça.

Kostas tem a agressividade de Nikkós. É o filho que mais se assemelha a ele, não só na aparência, mas também no gênio intratável. Detesto me comparar ao meu pai, mas não posso negar que a inconstância dele na vida pessoal, embora de um jeito completamente diferente, faça parte de quem sou. E, já em Alex, vejo uma impulsividade enorme, também herdada do maldito que nos gerou.

Quanto a Kyra... Bem, nunca pude formar opinião sobre ela. Tudo o que sei de minha irmã veio através de informações trazidas pelos outros. Não temos nenhum tipo de contato. Ainda tenho a imagem da menininha alegre que se pendurava nos meus ombros, mas isso foi há tanto tempo que não consigo mais ligar a imagem da mulher à da criança.

Sinto culpa por ter criado essa barreira entre nós. Reconheço meu erro, porém, já não somos mais imaturos, poderíamos ter lidado com isso se Kyra quisesse. Ela só não consegue me perdoar.

Encontro-me com Rômulo à espera do elevador. Ele se encolhe um pouco quando me vê, e eu dou um tapinha em seu ombro.

— Acalmou a fera? — brinco.

— Ela já retornou à sala de reuniões. — Sorrio, orgulhoso dele. — Mas xingou nossa espécie de todas as formas possíveis. — Rio, imaginando a cena. — Alguns que eu nem sabia que existia! Sabia que ela chama seu irmão de Bostas Karamanlis?

Gargalho, fazendo-o pular de susto.

— Ótimo apelido! — Ainda estou rindo ao entrar no elevador. — Por essas e outras é que ela tem meu total respeito! — Mal acabamos de entrar, vemos Kostas vindo em nossa direção. Com um sorriso malvado no rosto, aperto o botão para fechar portas, deixando-o para trás.

— Ele ia subir... — Rômulo argumenta.

— Não queremos o elevador fedendo, não é? — zombo, rindo de novo. — Bostas! Por que nunca pensei nisso antes?!

Meu assistente me olha como se eu tivesse enlouquecido, com suas grossas sobrancelhas escuras quase encostando em seus cabelos e a testa lotada de gomos de expressão. Minha gargalhada não cessa, imaginando a cara de Millos quando eu contar como o “todo poderoso” Kostas Karamanlis é chamado pelos funcionários da empresa.

 

 

Entro na sala de reuniões e dou de cara com a Kika, com seu jeito simpático e elétrico, distribuindo instruções, rindo com os colegas e averiguando sua apresentação. Nosso cliente ainda não chegou, mas não deve tardar muito; é senso comum que nós não gostamos de atrasos.

Cumprimento a equipe rapidamente com um leve inclinar de cabeça, desabotoo o último botão do meu paletó e me sento no lugar que sempre ocupo quando estamos nesta sala. O material em cima da mesa, com todas as informações sobre o imóvel escolhido pelos hunters chama minha atenção e, mesmo sabendo que isso os deixa apreensivos – admito que sinto certa perversidade de minha parte ao gostar de deixá-los assim –, pego a pasta e começo a folhear página por página lentamente.

Confiro as horas no meu relógio e encaro a Kika com as sobrancelhas franzidas.

— Senhorita Reinol? — chamo-a e bato de leve o dedo indicador sobre o relógio. — Alguma notícia?

Imediatamente ela chama uma mulher de sua equipe, que sai apressada da sala com um telefone celular na mão. Faço um gesto para que Kika se aproxime, e ela vem andando, sem nem mesmo demonstrar um pingo de apreensão, em minha direção. Admirável!

— Pois não, doutor?

— Você confirmou com o cliente a reunião hoje?

— Certamente! — Ela levanta o queixo. — Isso é a primeira coisa que fazemos, antes mesmo de disparar o memorando para a Diretoria Executiva informando o horário. Meu departamento é extremamente competente, doutor.

— Eles não costumam atrasar — observo. — Rômulo! — chamo meu assistente. — Traga aqueles relatórios que eu tinha separado para assinar enquanto espero. Odeio perder tempo!

Ele sai apressado, e eu escuto o bufo impaciente de Kika Reinol.

— Eu conversei com o Kostas — disparo ao voltar a ler a última página do material, sem olhá-la. — Sinceramente estou ficando cansado dessas rusgas entre vocês. A partir de amanhã, vou solicitar ao Millos que seu setor seja realojado.

— O quê?! — sua voz, um pouco mais alta que o normal, ecoa pela sala, causando um silêncio sepulcral e atraindo minha atenção. Ergo a sobrancelha direita para ela e cruzo os braços sobre o peito, deixando a pasta com os arquivos da apresentação sobre a mesa.

— Não faz mais sentido manter vocês dois tão próximos. — Abaixo meu tom de voz: — Não vou ficar bancando a mamãezinha e separando a briga de vocês como dois fedelhos. Se não sabem se comportar como adultos e profissionais, então não podem conviver no mesmo espaço.

— Isso é muito injusto, doutor! — sua voz, embora baixa, soa completamente irritada. — Eu nunca me meto no trabalho do doutor Konstantinos, embora a recíproca não seja verdadeira!

— Eu sei, Kika — chamo-a pelo apelido para demonstrar que não a culpo. — No entanto, a situação está saindo do controle, e eu não estou disposto a mandar você embora e, embora queira fazer isso com ele, não tenho esse poder.

Kika respira fundo e assente.

— Desculpe-me por estar causando tantos transtornos, doutor Theodoros. — Ela sorri. — Eu não sou uma pessoa difícil de lidar, mas ele...

— Eu sei, não se preocupe com isso.

— Eu espero que... — ela se interrompe de repente, e eu olho para a direção em que está olhando. Vejo a funcionária que saiu há pouco da sala fazendo muitos gestos para sua chefe, mesmo tentando disfarçar quando percebe que a estou observando também.

— Venha até aqui! — chamo-a.

A moça, provavelmente uma estagiária, pois é muito nova, fica vermelha e começa a torcer as mãos ao se aproximar.

— O que houve, Laura? — Kika pergunta.

— Liguei para nosso cliente e... bem... — A menina intercala olhares entre mim e Kika. — Ele disse que ligaram mais cedo cancelando a reunião.

— O quê?! — mais uma vez a voz da gerente ecoa pela sala, e eu fecho os olhos, prevendo mais confusão, pois é óbvio que não foi ela quem mandou desmarcar.

Kostas, seu filho da puta!


— O dia foi uma sucessão de merdas! — xingo ao entrar no carro, notando a expressão debochada de Dionísio.

Afrouxo a gravata e abro o botão torturador da gola da camisa, liberando assim meu pescoço do enforcamento diário. Eu preciso de um uísque! Abro o compartimento no meio do banco de couro da parte de trás do carro, onde estou, pego a garrafa da única marca de uísque que bebo, The Macallan, sirvo uma pequena dose no copo de cristal e respiro fundo antes de degustar a bebida escocesa.

Pela garganta, sinto a leve queimação. Notas de café e mel se misturam e logo se vão, deixando ao final um amargo sabor amadeirado, típico do single malt envelhecido em barris de xerez. A dor de cabeça que ameaça despontar some, e meu pescoço vai amolecendo, a cabeça pousa no encosto do banco e, finalmente, depois de um dia de cão, eu me sinto relaxar.

Ah, o milagre feito por uma dose de uísque de uma garrafa de pouco mais de dois mil reais!

Levanto um brinde imaginário ao meu dia fodido, querendo que ele se vá e que eu consiga livrar todas as tensões e preocupações de minha mente para que possa ter uma noite decente, ao menos.

O riso de Dionísio é de quem entendeu meu ritual, e eu esboço um leve repuxar de lábios, ainda muito rabugento para sorrir de verdade, e tomo mais um gole imaginando chegar a casa, tomar um banho e me submeter às competentes e pesadas mãos de Lavínia antes de trepar a noite inteira de novo.

— O doutor vai direto para seu apartamento?

Abro os olhos para olhar Dionísio pelo retrovisor e confirmo.

— Se o trânsito permitir, espero estar lá em breve. — Tiro o paletó e pego o celular, abrindo minha playlist favorita. — Dio, ligue o aparelho de som.

Em seguida ouço o jazz da incomparável Ella Fitzgerald e solto um suspiro de prazer, o primeiro neste dia desgraçado. Tento não pensar no Kostas, muito menos na enorme vontade de dar umas porradas naquela cara debochada, para não perder o pouco da paz que ouvir Ella e Armstrong cantando Isn’t this a lovely day? me traz.

Ah, como eu amo jazz! Não é à toa que mantenho um enorme piano de cauda no meio da sala principal do meu apartamento, além de ter centenas de discos – sim, são long players – cuidadosamente guardados na sala de som que fiz, com o toca-discos reinando absoluto. Chamem-me de retrô, sinceramente estou me fodendo para o que pensem disso. Prefiro, sim, o som da agulha sobre o vinil, o som encorpado e os ruídos que só um LP podem me proporcionar.

Não sou avesso à tecnologia, não quando sou cercado dela, mas há coisas de que não abro mão, como uma bela comida caseira com ingredientes frescos como comia em Atenas; meus discos, como vocês já souberam; e dirigir meu Aston Martin de câmbio manual.

Ah – sorrio olhando meu copo de scotch –, prefiro single malt a blend em matéria de uísque. Bem conservador para a maioria dos bebedores de hoje.

O trânsito agarra em alguns pontos do caminho da Paulista até o Vila Nova Conceição, onde moro, porém, Dio consegue me deixar na garagem do meu prédio exatamente 30 minutos depois de termos saído da Karamanlis.

Saio do carro levando comigo o paletó e a insuportável – e conservadora – pasta de couro com alguns documentos. Espero o elevador para me levar até o 36.º andar, para a cobertura duplex que comprei há três anos. Como detesto perder tempo, enquanto espero, mando mensagem para a Lavínia, uma deliciosa morena com quem tenho saído há algumas semanas, marcando um encontro com ela aqui em casa.

A resposta chega quando estou dentro do elevador com uma vizinha, e tenho de refrear a língua para não assustar a pobre senhora que me faz companhia neste pequeno cubículo. A safada me mandou uma foto – sem cabeça, como sempre – da sua indumentária de hoje à noite, um conjunto de lingerie sexy e quente que já me deixa completamente duro e ansioso.

Remexo-me desconfortável, porque conheço bem as calças desses ternos modernos, mais apertadas e de tecido mais fino, e escondo a evidência da minha excitação – ou seja, meu pau duro – colocando a pasta e o casaco na frente.

A senhora – cujo nome não sei, pois não conheço a maioria dos meus vizinhos, apenas os cumprimento quando nos esbarramos pelos corredores –, desce no 19.º andar, e eu sigo – livre e excitado – para a cobertura, embora tente me acalmar para não assustar a Vanda, governanta e cão de guarda do meu apê.

— Bem-vindo, doutor — ela me saúda assim que as portas do elevador se abrem no living, e se apressa a pegar minha pasta, deixando-me, como sempre, constrangido por ela ficar carregando peso enquanto eu sigo confortável como um inútil.

— Eu levo a pasta, Vanda, obrigado. — Evito que ela a pegue, mas ainda assim recebo um olhar feroz. — Tudo o que preciso é tomar um banho e daquele seu jantar.

Ela dá risadinhas.

— Já está quase pronto — diz orgulhosa da sua eficiência. — A Sandra ligou confirmando o horário de amanhã, e seu primo virá também.

Assinto, deixando-a para trás enquanto sigo para o quarto. Sandra é minha personal trainer, e nós treinamos juntos três vezes na semana e, às vezes, Millos, que também é seu aluno, adianta seu horário para vir malhar conosco.

Eu gosto de exercícios, sempre gostei. Sou magro naturalmente, e os treinos me ajudam a fortalecer os músculos e a manter um peso proporcional ao meu tamanho. Millos já faz a linha bombado, e isso combina com ele e sua personalidade.

Tenho apenas uma tatuagem, que fiz bêbado demais para lembrar, enquanto meu primo parece um gibi, todo desenhado. Gosto de malhar com ele porque sou competitivo até a raiz do cabelo, e ele não fica atrás, então ficamos medindo forças e levando um ao outro ao limite da resistência.

Minha suíte é enorme e confortável, toda em tons de cinza e azul-marinho, com paredes off-white, concebidas com carinho por uma de minhas parceiras de cama. Tenho sorte de ter conhecido mulheres que, além de ótimas de cama, eram profissionais competentes.

Caminho até o closet e deixo meu terno no local reservado para que Vanda o leve até a lavanderia, uma espécie de bag. Abro a gaveta de gravatas, enrolo a que usei hoje e a coloco no lugar, em seguida fazendo o mesmo com as abotoaduras. Verifico se meus sapatos estão precisando de limpeza e, como estão limpos, pois mal saí da empresa hoje, coloco-os na sapateira e jogo as meias e a cueca no cesto de roupa suja.

Eu sou organizado em casa também. Gosto de ser assim.

Programo o chuveiro, abrindo as duas duchas em direções diferentes, em jatos fortes e frios – está um calor do cão! – e gemo de prazer ao senti-los na pele.

Dia fodido!

Fico um tempo debaixo da ducha principal, avaliando cada momento da confusão que foi o final da tarde no escritório. Primeiro, a tensão entre a Kika e o Kostas, minha discussão com ele e, por último, o pedido de demissão dela.

Merda!

Pelo que posso julgar da personalidade dela, não será fácil convencê-la a voltar, e eu não posso perder outra gerente desse nível na empresa, não mesmo! Penso na discussão com o Kostas, nas palavras duras e verdadeiras que trocamos um com o outro e tento entender por que somos desse jeito. Que maldição é essa que nos mantém separados quando temos tudo para sermos unidos?

Balanço a cabeça, impedindo que me perca nestes pensamentos que nunca levam a lugar algum. Não há o que fazer para consertar anos de muros levantados em torno de cada um de nós. É impossível transpor as barreiras que o tempo e nossa situação ergueram. Não há nada a fazer!

Agora, preciso me concentrar nos negócios e no maldito pedido do pappoús! Tenho que trazer Kika de volta, comprar a porra daquele boteco na Vila Madalena e achar uma mulher que esteja à altura de ser a mãe do bisneto de Geórgios Karamanlis.

Escuto um barulho na porta do banheiro e abro um sorriso ao ver Lavínia parada na entrada. Ela se encosta ao batente, olha meu corpo inteiro com fome brilhando nos olhos e morde o lábio inferior. É o que basta para meu corpo, mesmo sob os jatos frios, reagir.

— Vem aqui! — chamo-a, mas ela nega.

— Finja que não estou aqui... — sussurra. — Deixe-me ver como você toca uma pensando em mim.

Sinceramente tenho vontade de revirar os olhos para ela, mas, para não quebrar o clima, faço o que me pede. Seguro meu pau bem forte e, lentamente, vou deslizando a mão para baixo e para cima, sem nunca tirar os olhos dos dela. O tesão vai aumentando, e eu fecho as pálpebras, evocando as imagens que me fazem gozar rapidamente. Som abafado, cheiro de fumaça, um perfume floral, cabelos cor-de-rosa e uma boceta quente e apertada... Merda!

Abro os olhos e encaro a mulher que me espera, apenas de calcinha e sutiã, roçando contra o batente da porta e gemendo.

— Vem aqui agora, Lavínia! — Abro a porta do boxe.

Ela arregala os olhos por causa do meu tom de voz impaciente e sorri, safada. Mal chega perto de mim, e já a viro contra a parede, seguro firme sua cintura, levantando-a e esfrego meu pau em sua calcinha molhada. Preciso foder essa mulher com urgência! Estico uma das mãos até o nicho onde uma caixa de acrílico guarda alguns envelopes de camisinha – eu adoro foder debaixo d’água, então sou prevenido – e rapidamente encapo meu pau e o afundo dentro dela.

As malditas sensações daquela noite ainda estão em minha mente, rondando-me como fantasmas. Enrolo os cabelos cacheados e negros no meu punho, mas, no ápice do prazer, vejo-os levemente rosados. Porra! Fodo-a com ainda mais força, ouvindo seus gemidos altos e descontrolados, pois sei o quanto ela gosta de trepar sem limites.

Quando a escuto falar que vai gozar, em desespero, aumento as estocadas para me deixar ir junto com ela e aliviar em parte essa fome que nunca cessa.

Foda-se, desconhecida!

 

 

Alguma coisa pinica meu nariz, e passo a mão, mudando de posição sobre os travesseiros. Estou em Atenas, com a família de minha mãe, vendendo peixe e tentando ser homem o suficiente para manter minha promessa. Não importa que eu não esteja preparado, não importa se tive de desistir de tudo, o amor é mais forte que tudo e por isso vou conseguir... vou...

Espirro.

Sento-me na cama, piscando os olhos, perdido no tempo e no espaço. Estava apenas sonhado de novo! Malditos pesadelos que, vira e mexe, estão retornando. Bufo. A vantagem desse é que não chegou ao apogeu do drama, porque alguma coisa... Uma risada abafada me faz olhar para o lado e encontrar um homem de quase 2m de altura, forte como um armário, cheio de tatuagens, com uma maldita pluma na mão.

— Porra, Millos!

O desgraçado cai na gargalhada, e eu me levanto da cama sem nenhum constrangimento diante da minha nudez e sigo para o banheiro.

— Não programou o despertador? — ele pergunta ainda no quarto.

— Programei. — Termino de mijar e dou descarga. — Você me incomodou com sua presença dez minutos antes. — Começo a escovar os dentes, e ele fica à espera. — Lavínia saiu daqui às 4h da manhã.

— Se elas não dormem aqui, não seria mais fácil comê-las em algum local neutro?

Saio do banheiro ainda secando o rosto, pego uma cueca no closet e a visto, voltando para o quarto.

— Não tenho problema algum com minha cama, pelo contrário! Prefiro meu espaço a qualquer outro. — Dou de ombros. — Você que tem essa mania de nunca trepar no seu apartamento.

Ele ri.

— Você sabe muito bem que eu não trepo! — Um sorriso descarado se forma em sua expressão. — Eu as conduzo ao prazer... É diferente!

Reviro os olhos.

— É claro que você trepa, porém, tem a mente mais fodida que a boceta de uma puta, por isso tem essas manias estranhas!

— Não fale do que você não sabe, Theodoros — adverte-me. — Cada um tem seu jeito de obter prazer; o meu é esse.

Concordo com ele, mesmo achando alguns de seus gostos um tanto estranhos demais para mim. Chame-me de conservador nisso também, mas tenho alguns limites bem definidos em relação às minhas fodas.

Millos me espera no quarto enquanto visto a roupa do treino, falando sobre um novo modelo da Ducati que está pensando em importar. O homem é completamente viciado em motos, faz parte de motoclubes e, nas férias, sai cortando estrada com esse pessoal. Já percorreu grande parte da América do Sul sobre duas rodas, fez a Route 66 nos Estados Unidos e percorreu toda a BR 101 aqui no Brasil.

Além disso, é obcecado por cerveja e fez vários cursos nessa área no mundo todo, produzindo sua própria bebida, buscando o sabor perfeito que seu paladar exigente ainda não encontrou em nenhuma marca já disponível. O desgraçado entende tanto do assunto que é convidado para festivais e fez parte do júri de vários campeonatos de mestre cervejeiro.

Millos mora em um loft, um antigo galpão que ele reformou todo. Na parte debaixo guarda suas motos e tem uma pequena oficina; na de cima, sem nenhuma divisória, ele tem uma confortável sala, uma cozinha industrial com os tonéis de cobre para a fermentação de sua cerveja e o quarto, onde nunca leva uma mulher para trepar.

Ah, esqueci... ele não trepa!

Tomamos juntos um suplemento de carboidratos pré-treino enquanto Vanda escuta alegremente as conversas de Millos sobre sua última experiência culinária – carne de rã marinada com cerveja – fazendo careta a cada vez que ele descreve o anfíbio sendo tostado na grelha.

Quando Sandra chega, já estamos os dois no segundo andar da cobertura, onde apenas uma enorme parede de vidro separa a academia da área de lazer com piscina, jacuzzi e área com churrasqueira gourmet.

— Bom dia, meninos! — Millos ri do cumprimento, porque a personal deve ser uns bons anos mais nova que nós dois, porém, sempre nos cumprimenta assim. — Prontos para suarem a camisa?

Um olha para o outro sem saber o que responder, pois nenhum usa camisa.

— Figura de linguagem, rapazes! — Rola os olhos. — Vocês, gregos, são muito literais!

Ela liga o som; uma música calma enche todo o ambiente.

— Bora alongar!

Bufo impaciente, mesmo sabendo da importância de preparar os músculos para os exercícios intensos, querendo dar uma surra no Millos hoje.

Vamos ver quem vai pedir arrego, meu primo!


Depois que terminamos o treino, tomamos nosso café da manhã antes de sair para o trabalho.

Millos sempre se veste aqui quando vem treinar comigo, então há sempre alguma roupa dele no quarto de hóspedes. Em poucos minutos o homem tatuado, debochado e um tanto sombrio desaparece, e ele assume seu papel de executivo calmo, frio e competente. A camiseta manchada, os jeans rasgados e os coturnos – roupa com que veio aqui antes de vestir a de malhar – dão lugar ao terno italiano, sapatos de couro, camisa de algodão egípcio e gravata de seda. Os cabelos revoltos estão no lugar, penteados para trás com algum tipo de pomada que os deixa fixos, a barba foi penteada e o brinco de argola dá lugar a um pequeno ponto na orelha, quase imperceptível.

Sinceramente não sei se ele adotou esse personagem para trabalhar com o pai, meu tio, ou se é algo que ele prefere fazer para não chocar ou causar descrença em nossos clientes. Realmente nunca entendi, e ele também nunca quis explicar, então não sei o que se passa na cabeça desse Millos Karamanlis executivo. O que me importa é que ele é meu braço direito, aquele em quem confio de olhos fechados nos negócios, porque, mesmo sendo tão diverso de sua personalidade, a frieza do executivo Millos é o que nos ajuda a controlar alguns incêndios dentro da Karamanlis.

— Soube da merda do Kostas dessa vez? — indago assim que entramos no carro, com Dionísio a dirigir.

— Como não saberia? A história correu pelos corredores da empresa no final da tarde de ontem. — Ele puxa mais a manga de sua camisa a fim de esconder as tatuagens do pulso. — A senhorita Reinol pediu mesmo demissão?

— Pediu! — Rio. — Foi uma saída de rainha no meio da discussão e com direito a água gelada na cara! — Gargalho. — Confesso que, se fosse café quente, eu teria sentido um pouco mais de prazer, mas nem tudo é perfeito.

— Porra, Theo, o Kostas está incontrolável, e eu não entendo o motivo. — Eu o encaro franzindo a testa, porque nunca falamos do meu irmão sem ser em termos profissionais, mesmo sabendo que Millos é quase um confidente de ambos. — Ele mudou muito nesses dias, parece... sei lá, encurralado.

— O Kostas encurralado? — debocho. — Aquele filho da puta é mais frio que uma pedra de gelo! O que poderia mexer com ele a ponto de deixá-lo assim?

Millos respira fundo e dá de ombros, fechando-se em copas novamente, como sempre faz quando o assunto é a vida pessoal dos meus irmãos. Esse jeito dele, essa lealdade toda me conforta e me frustra ao mesmo tempo. Sei que ele não comenta com os outros as coisas que lhe conto, mas gostaria de saber mais do que se passa com meus irmãos mais novos, principalmente Alex e Kyra.

Independentemente do que eu queira, sei que, por ele, nunca vou ficar sabendo de nada, e uma aproximação entre mim e meus irmãos é coisa muito improvável, então finjo não ligar para isso, mas sinto a culpa apertar meu peito a cada vez que algumas lembranças voltam.

— Seu assistente já confirmou sua presença no baile dos Villazzas no Ano Novo? — Assinto. — Não sei se vou. No último a que fui, eles ainda estavam em Curitiba!

— Muitos anos, já! Não tenho como não ir, sou amigo do Frank e quero ajudar a instituição do Bernardo Novak, que é uma das eleitas deste ano para receber parte das doações.

— Ah, sim, isso eu também quero fazer. A empresa da Kyra é quem está organizando, você sabe? — Balanço a cabeça positivamente. — Foi por isso que ela não pegou a festa da Karamanlis este ano...

— Foi a desculpa que ela deu, na verdade — corto-o. — A empresa dela já está crescendo sozinha, ela já pode se dar ao luxo de dispensar um contrato conosco e, assim, manter-se cada vez mais distante.

— Que seja... — Ranjo os dentes de raiva por ele não comentar nada. — Estou pensando em fazer um recesso entre o Ano Novo e a segunda semana de janeiro. — Millos estica as pernas, gemendo lentamente, e um sorriso de vitória me escapa. Está dolorido, desgraçado? — Ainda não sei se vou até Frankfurt conversar com um mestre cervejeiro de lá ou se faço alguma viagem longa de moto, mas estou querendo ficar fora dos negócios por um tempo.

Sinto uma pontada de inveja dele, pois costumo tirar no máximo uma semana de descanso entre as festas – Natal e Ano Novo –, e a única viagem que consigo fazer é ir até a Grécia para visitar o vovô, e nesse ano, como irei viajar em fevereiro no ano que vem para o aniversário dele, não vou tirar sequer essa semana de recesso.

— Eu não vejo problemas. Esse período é o mais devagar na empresa. — Ficamos um tempo mudos, apenas ouvindo o som do aparelho do carro tocando alguma estação de rádio. — Eu vou fazer aquele filho da puta ir atrás da Kika!

Millos me encara, olhos arregalados, e não por causa da fala inesperada depois do silêncio que fizemos.

— Eu acho que isso vai dar mais merda do que já deu.

Sorrio.

— Não, ele vai ter que pedir desculpas e prometer se comportar. — Encaro Millos, olhos brilhando, pensando em como obrigar o meu irmão arrogante a fazer minha vontade. — Preciso da sua ajuda!

 

 

Meu humor melhorou drasticamente depois da conversa com o Millos no carro e o plano que arquitetamos para fazer aquele idiota prepotente consertar a merda que fez aqui na empresa. Fazer Kostas ir até a Kika para implorar que volte será bom para mim por dois aspectos: terei minha gerente de volta e ainda colocarei meu irmão no seu lugar, abaixando um pouco sua crista de galo de briga.

Rômulo está irritantemente quieto hoje, e desvio o olhar a toda hora para sua mesinha apenas para conferir se o tagarela está bem e respirando. Hoje a empresa está um pouco sombria. Os funcionários estão falando mais baixo, há menos pessoas nos corredores, e os setores estão funcionando bem, mas sem o ritmo frenético a qual todos estamos acostumados.

Uma apatia geral tomou conta do lugar, e o clima aqui dentro está tão opressivo que me sinto sufocando algumas vezes. É como estar de luto, e isso é uma coisa incrível, pois bastou uma funcionária querida pedir demissão para parecer que o sol se pôs dentro deste prédio.

Preciso dessa mulher de volta!

Se o babaca do meu irmão não conseguir o feito de reintegrá-la à equipe, vou ter que jogar sujo e recorrer a Malu Ruschel lá no meio daquele mato onde vive. Espero conversar com ela para que convença sua amiga a voltar para nós.

Levanto-me, sentindo a tensão sobre meus ombros e meu pescoço duro. Ponho a culpa na tensão, nunca admitindo que a disputa ferrenha com Millos no treino de hoje de manhã me causou isso. Tenho 41 anos, não sou um garotão, mas sempre me consolo dizendo que pratico exercícios há muitos anos, então meu corpo está acostumado.

A verdade é que os anos estão realmente passando, e talvez eu esteja sentindo os efeitos do deus Cronos no corpo. Noitadas de sexo, balada e exposições têm me deixado cada vez mais cansado, além disso, comecei a notar que tenho necessitado de mais horas de sono do que precisava antes. Talvez tenha que ir a algum médico fazer um check-up ou buscar um geriatra.

Dou uma risadinha baixa, achando graça do meu humor negro. Fui contagiado pelo clima de enterro da Karamanlis, e esse silêncio todo me faz divagar. Gosto e estou acostumado à correria, a Rômulo transitando em volta de mim como mosca de padaria, sempre prestativo, falante e, na maioria das vezes, incômodo.

Porra, estou sentindo falta até da inconveniência dele!

Caminho até a vidraça da sala, olho a Paulista movimentada de carros lá embaixo e volto a refletir sobre a vida, principalmente a profissional. Já faz anos que assumi o cargo de CEO da empresa, anos que vim morar no Brasil, e, apesar de tudo isso, algumas coisas continuam como antes: o trabalho intenso, a desarmonia entre os irmãos Karamanlis, meus hábitos noturnos, hobbies e, claro, a maldita conta da Vila Madalena. A confusão de ontem desviou um pouco minha atenção desse objetivo, mas não posso perder o foco, não quando estou cada vez mais perto de conseguir comprar o maldito boteco!

— Rômulo — chamo-o sem olhar em sua direção. — Peça ao Millos para que venha até aqui, por favor.

— Ele estava em reunião com o doutor Kostas... — Viro-me para encará-lo, e o homem franzino e de óculos fundo de garrafa arregala os olhos. — Eu vou ver se ele já retornou.

Meu assistente sai todo atabalhoado do escritório, deixando alguns post-it caídos no chão marcando seu caminho como na história de João e Maria. Respiro fundo para não me irritar com ele, pois, apesar de um tanto fofoqueiro e atrapalhado, ele é muito eficiente, não posso negar. Apesar de todos os incômodos, eu não o trocaria por nenhum outro.

Volto a pensar na Vila Madalena e que Millos ficou de levantar as condições para executarmos a promissória assinada pelo falecido proprietário do bar. Preciso saber em que pé estamos para traçar novas estratégias de ataque, afinal, quero começar o próximo ano já com essa conta fechada e, assim, ter menos uma coisa a torturar minha cabeça.

Escuto passos apressados, típicos do meu assistente, e a porta se fechando.

— Ele já vem, doutor — diz resfolegando, o que demonstra que foi correndo até a sala do meu primo. Quanta falta de sutileza!

Balanço a cabeça, segurando o riso debochado ao imaginar a cena, e lhe agradeço:

— Obrigado.

Enquanto espero, decido tomar o... (não lembro quantos já foram hoje) café do dia. Sigo até a máquina de café expresso que fica no aparador de bebidas e coloco uma cápsula de um blend de cafés no modo ristretto enquanto aguardo meu primo. O cheiro agradável enche o ambiente do escritório, deixando-o menos opressor e mais acolhedor. Aspiro a fragrância lentamente, apoiado no aparador, olhos fechados e absorvendo o prazer que essa bebida me proporciona. Sim, sou viciado em café!

— Theo? — Millos bate à porta, tirando-me do transe gourmet. — O que houve?

Faço um gesto para que ele entre e aponto para a máquina, que está passando dois do néctar de café que mais gostamos. Um ristretto só é possível quando a máquina tem a pressurização correta e os grãos são de qualidade. O pó sai praticamente seco, tamanha a velocidade que a água fervente passa por ele, extraindo o melhor do grão.

Nunca me acostumei ao jeito brasileiro de tomar café longo ou mesmo o famoso carioquinha, acrescentando água para diluir a bebida. Preciso sentir o sabor do grão, as notas intermediárias dele e as que ficam depois na boca. No caso desse blend que fiz, há um leve frutado que diminui a acidez e depois resta na boca um sabor mais forte, tal qual chocolate amargo.

Pego a xícara de Millos e a entrego para ele.

— Como foi com o Kostas?

Millos relaxa, sentando-se numa das cadeiras em frente à minha mesa e se encostando nela, desfrutando do cheiro do café.

— Acho que mordeu a isca. Só espero que ele saiba convencê-la. — Dá de ombros. — O que mais você quer?

— Vamos beber o café primeiro. — Pego a outra xícara e tomo um gole. — Quero notícias sobre a promissória da família Hill.

— Ah... — Ele sorve lentamente a bebida quente, deixando-me em suspenso com sua resposta. — Encorpado e naturalmente doce, perfeito! — elogia o café.

— A máquina faz tudo! Para de enrolar e fala logo.

O desgraçado ri, tomando mais um gole.

— Kostas estava analisando, mas, com essa confusão toda... — Eu xingo, e ele sorri mais uma vez. — Estou pensando em fazer uma visitinha a Duda Hill de novo. Vamos?

— Eu não tenho nada a tratar com ela. Quero executar a porra da promissória e expulsá-la de lá! — Deixo o café de lado, contrariado demais para apreciar seu sabor. — Já estou esperando por isso há muito tempo, Millos. Estou começando a perder a paciência.

— Eu acho que você deveria tentar conversar com ela. — Franzo o cenho, sem entender. — Dizer que temos a promissória e que vamos executá-la, mas oferecer a ela a chance de comprar antes de irmos à justiça.

— Por que eu faria isso?

Realmente não entendo o que Millos quer com essa sugestão. Oferecer a promissória para ela pagar? Como se ela tivesse condições de arcar com o valor exorbitante sem vender o maldito bar! Se a pressionarmos demais, ela pode acabar vendendo para outra pessoa, e aí teríamos que começar as negociações do zero. Isso nunca!

— Por que você quer tanto aquele quarteirão? — indaga-me, fazendo com que eu o olhe surpreso.

Ficamos um tempo assim, encarando um ao outro, apenas o som da digitação do Rômulo a pairar sobre nós. Tento procurar um motivo mais forte para comprar o lugar, mas não consigo achar nenhum convincente o suficiente para desviar a atenção dele da verdade. Não quero nada ali, nem tenho sequer ideia do que fazer e para quem oferecer, mas é uma conta deixada pela gestão do meu pai, o que me impulsiona a querer comprar apenas para esfregar em sua cara que eu consegui, que o derrotei.

— Consiga comprar a merda do bar — digo entredentes, a voz baixa e sem desviar meus olhos dos dele. — Meus motivos não interessam, é uma conta aberta que prejudica a reputação da empresa, e, como CEO, não posso deixar isso acontecer.

— Justo! — Ele se levanta. — Vou fazer tudo o que estiver ao meu alcance para satisfazer a sua vontade e não prejudicar a reputação da empresa no mercado.

Aquiesço, porém, não satisfeito, reconhecendo certo sarcasmo em sua voz.

— Millos. — Ele me encara. — Eu preciso fazer isso.

Meu primo bufa.

— Eu sei, Theo. — Caminha até onde estou e toca em meu ombro, falando baixo para que apenas eu o ouça: — Eu queria mesmo que você não precisasse, assim como não achasse que deve ao pappoús até a sua alma! — Faço careta e abro a boca para defender nosso avô, mas ele continua: — Eu sei que você precisa disso e vou ajudar no que puder.

Agradeço mesmo não emitindo nenhuma palavra. Conhecemo-nos há tantos anos, já passamos por tantas coisas juntos que não é necessário que sempre haja palavras entre nós.

Millos sai da sala, deixando-me sob os olhares curiosos de Rômulo, que provavelmente ouviu os sussurros e ficou de antena ligada atrás de uma notícia quente.

— Volte ao trabalho, Rômulo! — admoesto-o.

Ele fica vermelho e abaixa a cabeça para volta a digitar no computador.

Preciso arranjar uma sala isolada para esse língua de trapo! Ah, se não fosse competente!

Sento-me à mesa e olho para a tela do computador, onde um contrato já ratificado pelo jurídico está à espera da minha assinatura eletrônica. Esse dia não está sendo fácil, embora o trabalho continue normalmente como em todos os outros. Não compreendo o motivo, talvez por ter conseguido a maldita promissória, mas a vontade de conseguir comprar o boteco e o colocar no chão tem estado constantemente em minha cabeça. Muito mais do que o normal!


Os cheiros se misturam aos sons em um caos perfeito, quase sistêmico, se for possível considerar que alguma confusão possa ter um padrão implícito. Há um ritmo a ser seguido, um conjunto de ações e reações em cadeia que faz com que todo o nosso processo ande em harmonia.

É assim a minha cozinha!

Respiro fundo mais uma vez, espantando o cansaço e buscando energia para continuar. Estou empreendida neste ritmo desde às 2h da tarde, quase 12 horas direto, mas envolvida em todos os passos da organização e funcionamento desde às 8h da manhã, quando acordei.

Ser chef de cozinha não é só glamour, quer dizer, nunca foi! O que as pessoas veem na televisão, os grandes cozinheiros que aparecem na mídia com seus restaurantes renomados, a maioria agora é só empresário, cozinha vez ou outra, mas todos já ralaram muito para conseguir algum nome.

Quando decidi ser chef, eu tinha oito anos de idade, estava na cozinha da minha avó materna no interior e fiz meu primeiro bolinho de chuva regado a açúcar e canela. Abro o sorriso por causa da força das recordações. As lembranças olfativas e gustativas, na minha opinião, são as estrelas do cérebro. Quem nunca pensou num prato e na lembrança pôde sentir seu cheiro e o sabor? Quem nunca foi transportado a uma lembrança afetiva ao comer? Eu sempre acreditei nesse poder e, a partir daquele dia, na casa da minha avó, percebi que queria deixar essa marca na vida das pessoas.

Foi o último ano com minha mãe. Ela já estava doente, câncer de mama, e o clima em casa não estava dos melhores. Papai andava deprimido, o bar não estava indo bem o suficiente para arcar sozinho com as despesas depois que ela teve que parar de trabalhar na cozinha, e meu irmão – com 14 anos na época – andava estranho e pelos cantos.

Estávamos em férias escolares, e vovô foi nos buscar para passar umas semanas com eles. Imagino o quanto estava sendo duro ver a filha definhando aos poucos, perdendo a luta contra essa doença tão dura. Diagnóstico atrasado, demora no acesso ao tratamento, tudo isso contribuiu para que ela vivesse seis meses depois da descoberta do câncer.

Metástase, a palavra que mais me dói ouvir até hoje.

Meu maior medo também.

A tristeza e o desânimo tomaram conta da família assim que o médico contou ao papai que o estágio era terminal. A mastectomia, o esvaziamento total das duas mamas, não foi suficiente para ela, pois as células cancerígenas já haviam se espalhado pelo abdômen. Tudo o que podíamos fazer era tentar dar a melhor qualidade de vida possível aos poucos meses que lhe restavam.

Minha mãe, Maria Aparecida Braga Hill, era a pessoa mais forte e alegre que eu conheci. Era a luz da nossa casa, a razão da vida do meu pai, quem eu queria ser quando crescesse. Sua doença não diminuiu suas características e, naquelas férias, ela pegou meu primeiro feito culinário – um tanto cru por dentro e tostado por fora –, colocou-o na boca e revirou os olhos de prazer.

— Hummm, Duda, tem o sabor da minha infância! — Sorriu.

— Ficou um pouco queimado... — tentei argumentar, desculpando-me.

— Isso é questão de prática, princesa! — Ela se abaixou para ficar da minha altura, seu corpo bem magro, olhos fundos e com olheiras, o lenço na cabeça. — O importante não é só a aparência da comida; são as sensações que ela nos traz, o que ela nos faz sentir. — Pegou mais um dos meus tristes bolinhos. — O seu bolinho de chuva me fez voltar a ser criança, encheu meu peito de alegria, e é isso que importa.

Abracei-a, orgulhosa, sentindo-me quase uma heroína por ter feito tudo isso por ela com apenas farinha, água, ovos, açúcar e sal. Minha cabeça infantil imaginou como ela se sentiria se eu lhe fizesse um prato como aqueles que via em suas revistas de culinária. Mamãe ficaria tão feliz!

Foi a partir desse dia que passei a me interessar pela comida, pelos ingredientes, pela mágica que a mistura dos sabores proporcionava.

Muito tempo depois que ela nos deixou, suas palavras, a felicidade em seu rosto e o carinho do seu abraço ficaram marcados em mim. Eu queria essa sensação novamente, eu precisava sentir que algo que fazia era capaz de tornar a vida de alguém mais feliz.

Aos 13 anos insisti com o papai para trabalhar no bar. O Hill era um boteco mesmo, no sentido mais estrito da palavra. Os frequentadores eram pinguços que se encostavam ao balcão do bar quando papai abria e só iam embora expulsos quando ele decidia fechar. Tudo o que servíamos era torresmo, ovo colorido e alguns caldos que fazíamos em dias programados. Segunda e quarta era dia de mocotó; terça e quinta era bucho, e o final de semana era inteiro da rainha do Hill: a feijoada.

Um cozinheiro muito louco, mas com o tempero mais incrível que eu já provei, era quem comandava a cozinha quase doméstica do bar. Ele foi meu primeiro carrasco e logo me colocou na limpeza, frustrando meus planos de ser a estrela do Hill. Assim, ficava horas depois do colégio a lavar a louça – que não era pouca, porque o homem era bagunceiro – e limpar o chão.

Ainda lembro que a primeira coisa que ele me pediu para fazer – que envolvesse o preparo de alimentos – foi picar temperos. Chorei descascando cebolas igual a quando assisti ao filme Titanic na TV e cortei o dedo algumas vezes. O filho da mãe ria toda vez que eu gemia ou xingava, mas não desisti.

Em pouco tempo ele estava me ensinando as poucas técnicas que sabia, obtidas com a experiência de trabalhar em cozinhas desde seu primeiro emprego. Meu carrasco virou meu anjo da guarda, e, toda vez que papai ameaçava me proibir de ir para o bar trabalhar, ele me defendia dizendo que precisava da minha ajuda.

Foi por causa dele que pude estudar fora. Quando fiz 15 anos, papai queria fazer uma festa para comemorar, mas Dalto – o cozinheiro anjo da guarda – conversou comigo sobre cursos de gastronomia e citou a França como referência. Meu presente foi o curso de francês, segundo ele, necessário para me abrir as portas.

Aos 18 anos comecei a cursar a graduação em gastronomia, um orgulho para meu pai, que, àquela altura, já acreditava que eu conseguiria ser uma grande chef. O curso durou quatro semestres, e, aos 21 anos, já trabalhando como ajudante de cozinha em um restaurante de uma rede internacional de hotéis, consegui um feito incrível, uma bolsa para estudar na mais famosa escola de Paris.

Eu tinha tudo o que sempre sonhara, consegui passar num processo seletivo muito criterioso, esforcei-me durante anos para aprender a língua, ganhei a bolsa, mas não tinha grana para viajar e me manter por lá. Nessa época papai tinha um carro seminovo, e não pensou duas vezes antes de vender o veículo e me entregar todo o dinheiro para que eu pudesse passar os meses do curso sem apertos.

Fiz contato com outra moça brasileira que já morava em Paris e consegui alugar uma vaga em seu apartamento, perto do instituto. Foram os melhores meses da minha vida! Dediquei-me de corpo e alma àquilo, ignorei tudo. E a recompensa veio!

Um mês antes de concluir o curso, fui convidada a integrar a equipe de um grande restaurante na capital francesa. Cargo pequeno, salário baixo, mas o primeiro degrau para a realização de todos os meus sonhos de menina.

— Duda! — Manola, meu braço direito aqui na cozinha agitada desse pub que já foi um boteco, me grita, tirando-me do flashback no qual estava. — A cozinha fecha em meia hora, e estamos cheias de pedidos ainda. Não estou achando o molho extra que você tinha preparado mais cedo.

Seco minhas mãos no avental e vou até a pequena câmara fria que instalei aqui há pouco mais de um ano. O investimento foi caro, mas valeu cada centavo, pois consegui armazenar mais ingredientes e de uma forma muito mais segura do que no freezer.

Entrego o molho que preparei mais cedo para Anabele, uma das assistentes de cozinha, e volto a olhar a costelinha de porco no forno, a última da noite.

Estou cansada mais do que o normal, pois tive mais uma noite insone. Tem sido difícil dormir em casa, e, mesmo quando tudo está calmo, pego-me sem nenhuma vontade de fechar os olhos. Nós temos estado em um ritmo alucinante desde que o Hill caiu nas graças do pessoal aqui na Vila Madalena e chamou a atenção da imprensa especializada. Saímos em algumas revistas, ganhamos destaque, mas ainda assim sinto como se andasse no fio da navalha todos os dias.

Não trabalho tanto para enriquecer, apenas preciso manter um teto sobre minha cabeça, o mínimo de estrutura para minha tia Do Carmo e para Tessa e conseguir saldar todas as dívidas deixadas pelo meu irmão e pelo papai.

Uma dor enorme me invade toda vez que penso nos dois. Minha família se desintegrou por completo! Primeiro, mamãe, levada pelo câncer, depois meu irmão, que nunca se recuperou da perda dela e se afundou nas drogas, morrendo de overdose e, por fim, papai, há alguns anos, devido a problemas cardíacos.

Meus avós maternos se foram ainda na minha adolescência, restando a mim apenas a tia Do Carmo e a Tessa. A sorte é que conto com todos aqui como se fossem da família.

Manola é, além de meu braço direito, uma grande amiga. Tenho muito orgulho dela, principalmente por nossas histórias serem tão parecidas em alguns pontos. Ela é filha do Dalto, o “carrasco” que me ajudou a ser a chef que sou hoje. O pai dela vive ainda em São Paulo, mas está aposentado, e, uma vez no mês, fazemos um almoço aqui no Hill, e é ele quem cozinha, deliciando-nos com seu tempero único.

O Arnaldo é nosso faz-tudo, aquele que nos mata de rir com suas piadas bem contadas, que faz as melhores carnes do mundo e que vive sendo consolado por todos por seu infortúnio no amor. Sua grande paixão foi o Marlon, um segurança que trabalha aqui no Hill algumas vezes na semana, mas o homem nunca lhe deu chances. Sofríamos com aquele amor platônico todo, essa é a verdade!

Além desses dois, que são cozinheiros incríveis, temos duas técnicas em gastronomia que sonham em se tornar um dia chefs de grandes restaurantes: a Cláudia, responsável pelas sobremesas da casa, e a Anabele, mestre dos molhos.

Aqui no Hill nós não temos cardápio de restaurante, é de bar mesmo! Bolinhos variados, anéis de cebola empanados, batatas feitas de várias formas e, claro, nossas porções de carne. O carro-chefe são as asas de frango com molhos, uma receita que aprendi com um americano e que caiu no gosto da nossa clientela.

Claro que, com um cardápio tão “tradicional” assim, nós nunca teríamos nos destacado se não fosse a constante variação que fazemos nas receitas. Inventamos onions rings recheadas com vários sabores; batatas com muitos tipos de coberturas, e nossas carnes sempre têm algum molho ou tempero especial.

Além disso tudo, eu conto com o Kiko, o mestre em drinques que encontrei há alguns anos servindo numa barraca de festa, fazendo freelance. Notei o talentoso bartender que ele era e não me arrependo nada disso. O homem é demais, além de ser um grande amigo.

No bar, ele trabalha com mais três ajudantes, que se encarregam de toda a bebida do pub e do controle do estoque. Kiko é um ótimo gerente, dei esse posto a ele por puro merecimento, demonstrando minha admiração. Ele sabe trabalhar em equipe, é muito organizado, sabe contornar conflitos e ter pulso firme com o time de vinte garçons e garçonetes que temos na casa.

O pequeno boteco ao estilo “pé sujo” hoje é uma empresa que gera renda e mantém dezenas de famílias.

Esse é mais um dos motivos pelos quais não posso fraquejar e deixar que as dívidas deixadas pelo papai e pelo meu irmão me façam perder tudo. Principalmente para os Karamanlis!

Respiro fundo só de pensar naquele bando de engravatado abutre rondando o pub como se ele fosse um animal agonizante prestes a perecer. Eu vendo o bar para qualquer um que quiser continuar o negócio, não importa que não seja meu – embora isso me doa –, mas nunca para eles.

Falta pouco para eu quitar a dívida do meu irmão. Papai começou a pagar ainda vivo, e eu continuei os pagamentos depois da morte dele. Devo a um traficante! Esse não é o tipo de pessoa a quem alguém quer dever, então os pagamentos precisam ser feitos religiosamente.

Mais um mês, e isso acaba!, penso aliviada.

Leonan – meu credor – me garantiu que, depois da dívida quitada, não haveria mais o nome da família Hill nos cadernos dele, e eu acredito que mantenha sua palavra. Para qualquer pessoa, essa minha fé em um traficante, quando meu irmão morreu de overdose, pode parecer contraditória, mas tem explicação. Quando João Pedro chegou ao fundo do poço e ficou fora de casa por mais de um mês, papai se desesperou e foi atrás do Leonan. Ele não fornecia mais nada ao meu irmão, mesmo porque JP já usava crack, droga com que ele não “trabalha”, porém, o homem conhecia todo tipo de “fornecedor” e a galera que se amontoava na cracolândia.

Acharam meu irmão lá, e meu pai, mesmo sem nenhuma condição financeira, levou-o para uma clínica de reabilitação. Pasmem, mas quem emprestou o dinheiro para financiar a recuperação foi o Leonan, e é por isso que eu lhe pago até hoje, mesmo porque ele se arriscou muito emprestando esse dinheiro, uma vez que é apenas um dos “gerentes” da boca.

Nós tentamos, mas JP não conseguiu se reerguer.

Quando voltei de Paris, ele já estava de novo vivendo nas ruas. Papai estava desesperado, doente, e eu, mesmo frustrada por ter dado tudo errado no meu sonho de viver na Cidade Luz e ser uma chef reconhecida, fiz a promessa de fazer qualquer coisa por eles. Cheguei precisando de apoio e consolo, e, mesmo em meio a toda essa situação – que ignorava até voltar para casa –, meu pai me recebeu de braços abertos.

Meu irmão foi encontrado morto na rua, um choque e, ao mesmo tempo, um alívio para nós. Ele estava irreconhecível, doente, parecendo ter o dobro da idade que tinha e sofrendo muito. O vício é uma doença, e o crack é quase uma sentença de morte. Pouquíssimas pessoas conseguem se livrar dele, e é por isso que, quem consegue, merece receber todo apoio e consideração, porque é uma luta enorme, uma superação.

Papai estava medicado, tocava o bar, e eu voltei a trabalhar na cozinha e comecei a mexer nos cardápios. No princípio ele não gostou muito, mas depois foi aceitando a ideia de modernizar as coisas. O dinheiro começou a entrar, porém, sempre que eu tocava no assunto reforma, ele desconversava.

Só descobri que ele era viciado em jogo logo depois do funeral, mas apenas soube o tamanho do problema há dois anos, quando recebi a “visita” de um dos agiotas que emprestou dinheiro a ele. Ele devia muito!

Tentei ir pagando ao longo desse tempo, no entanto, os juros que ele praticava só tornaram tudo uma grande bola de neve. Eu estava enxugando gelo e totalmente sem saída. Se vendesse o Hill, conseguiria quitar a dívida, mas como iria continuar mantendo as pessoas que dependem de mim e que necessitam desse trabalho? Além disso, esse é o único legado da família que me restou, pois a casa do meu pai, onde moro hoje, fica no andar de cima e faz parte da propriedade.

Eu tinha esperança de conseguir quitar a débito e fiz um investimento futuro que poderia me render um dinheiro suficiente para amortizar todos os juros e depois eu tentaria renegociar a dívida, mas algo aconteceu.

Fui tentar pagá-la há alguns meses, e, simplesmente, o agiota não me atende. Sempre entrei em contato pelo único número que ele me deixou. Entretanto, é como se nunca tivesse existido.

Um frio percorre minha espinha ao imaginar os prováveis motivos para que o homem não me atenda mais, e eu temo pelo que possa me acontecer.


A noite começou com correria. É sempre assim quando vou à abertura de um vernissage ao qual estou patrocinando. Dessa vez não será pintura, mas sim um jovem escultor descoberto em Paraisópolis que faz seu trabalho com argila, sucata ou qualquer outro material que possa transformar em arte.

Antes ele vendia suas esculturas como artesanato em uma feira de rua, e um dos meus contatos no mundo das artes me ligou assim que viu o material dele. Claro que o rapaz, de apenas 21 anos, tinha muito a se refinar ainda, mas era claro como o dia o talento que tinha para transformar em realidade tridimensional qualquer coisa que viesse à sua imaginação.

Assim que conversamos, propus que ele fosse estudar com um amigo meu, um megaescultor brasileiro cujas peças estão no mundo todo, e assim comecei a organizar seu caminho até o dia de hoje. Viviane, meu braço direito nos negócios com artes, levou-o a várias exposições, workshops, festas e qualquer outro evento que o ajudasse a fazer networking. Enquanto isso, ele estudava, e eu bancava suas despesas e o local onde trabalhava.

Dez meses depois ele já tinha uma quantidade absurda de material de qualidade surpreendente para ser apresentado, e Viviane começou, então, a organizar a exposição, a espalhar uma coisinha aqui e outra ali sobre ele, a mostrar – mesmo que de relance – algumas das melhores peças dele a colecionadores a fim de deixá-los curiosos.

Claro que exatamente essas peças são as que eu já separei para minha coleção particular, que já serão mostradas como vendidas nesta noite, causando assim alvoroço e incitando os outros compradores a adquirirem mais esculturas.

É assim que esse mercado funciona. Geralmente quem é colecionador é também um competidor nato e, ao saber da compra de um item que gostou, começa a sentir medo de ficar sem uma peça daquele artista e, mais tarde, ele se revelar o novo Michelangelo. É por isso que eu sou louco por essa área, por esse jogo pensante e cheio de estratégias como o de um tabuleiro de xadrez. Primeiro, preciso enxergar o potencial artístico de uma pessoa, depois é só começar a jogar e colocar cada peça em seu devido lugar até vencer o jogo.

Ah, não pensem que faço isso por caridade, claro que não! Eu sou um investidor, então tudo o que faço pelo artista está em contrato, e depois sou ressarcido de acordo com o sucesso obtido. Todavia, em algumas situações ocorrem contratempos que impedem o acordo de seguir em frente, nesse caso fico no prejuízo, e o artista volta a se virar sozinho. Meus prejuízos até hoje foram ínfimos diante do que já lucrei nesse negócio, por isso gosto cada vez mais de jogar esse jogo.

O único problema é conciliar meu trabalho burocrático na Karamanlis com a agenda que tenho que seguir, afinal, não “apadrinho” apenas um artista, geralmente tenho umas dezenas em vários estágios de preparação e sucesso. Por isso não dispenso a Viviane, pois ela coordena toda a agenda desse pessoal – excêntrico o suficiente, vale ressaltar – tão heterogêneo.

É uma empresa paralela que nem leva meu nome, porque há um impedimento no estatuto da Karamanlis de o CEO pertencer à diretoria, conselho ou ser sócio de qualquer outra empresa. Então, para todos os efeitos, Viviane Lamour é a dona, e eu, apenas um admirador, além de seu amante, como todos comentam.

Rio ao pensar nisso, dando o nó na gravata-borboleta de frente para o espelho. Conheci Viviane numa festa dada por um pintor muito louco, e ela, obviamente, chamou-me a atenção por seu belo porte, cabelos cortados bem curtos e com a franja alongada, completamente platinados a ponto de serem brancos, destacando sua pele morena. Por si só, ela já é uma obra de arte, de bom gosto, apenas para apreciação de pessoas com senso refinado e olhar crítico.

Saímos algumas vezes, fodemos na maioria delas, mas depois nos tornamos amigos, e o tesão passou. Hoje fico até incomodado com o jeito como ela me trata, como se eu fosse seu confidente, uma espécie de mulher ou amigo gay a quem ela conta detalhes íntimos (excitantes ou asquerosos). Nós nos divertimos juntos, já saímos com a mesma mulher ao mesmo tempo, e eu já a dividi com outro cara, mas tudo na base da amizade e sem nenhum tipo de amarra, e há muito tempo não temos mais esse contato, apenas o profissional e amistoso.

Além de Millos, ela é a única que sabe da vontade do pappoús e tem me auxiliado na busca de uma mulher que preencha o requisito da velha raposa grega – e os meus também, óbvio!

Viviane é mais do que minha sócia, ela é meu faro, o olhar de lince que preciso, além de ser uma ótima companhia, inteligente, divertida, moderna e muito agradável.

Meu celular toca, e vejo o nome dela aparecendo na tela, como se eu a tivesse evocado.

— Theo, meu lindo, você vai chegar a tempo?

Olho-me no espelho antes de responder. Traje de gala, smoking tradicional, preto, com camisa branca, gravata-borboleta de seda também preta e sapatos italianos de couro. Meus cabelos estão penteados para trás com uma pomada que os mantêm fixos, mas sem aquele aspecto molhado tão démodé, minha barba está bem aparada, do jeito que gosto, tudo no lugar.

— Vou, sim! — respondo abrindo a gaveta com relógios da Rolex.

Fico em dúvida por um instante, mas acabo optando pelo clássico day-date de platina, luneta lisa, pulseira presidente e mostrador de ouro branco 18 quilates, de fundo preto com listras. Clássico e moderno ao mesmo tempo!

Confiro o horário no convite e, em seguida, as horas no relógio já no meu pulso. Não gosto de joias, pulseiras, cordões e etc. O único acessório – que, nesse caso, é como uma joia, por ser feito de metal precioso – é meu relógio. Venho os comprando e colecionando há muitos anos e, quando mandei fazer o closet, incluí no projeto gavetas-cofre, todas com combinação para abrir, onde eles ficam aguardando para serem usados.

Tenho peças de várias marcas e muitos modelos de cada uma delas, com valores também variáveis, desde o de um carro popular ao de um apartamento. Minha paixão por relógios é a mesma que Millos tem por motos, por exemplo, ou a que o vovô tem por selos. Acho que todo Karamanlis gosta de acumular algo; não sei se ou o que meus irmãos gostam de colecionar apenas porque não os conheço bem.

Passo perfume antes de sair e, já na sala de estar, encontro-me com a Vanda a esperar, torcendo as mãos e parecendo ansiosa.

— Algum problema?

— Infelizmente, sim. — Ela dá um suspiro. — Minha filha acabou de me ligar... perdeu o bebê.

Caminho até ela e coloco a mão sobre seu ombro, consolando-a.

Vanda trabalha comigo há tantos anos que é como se eu conhecesse toda sua família. Ela tem dois filhos adultos – uma mulher de trinta e poucos anos e um rapaz ainda na casa dos vinte. Os dois moram longe, estudaram, foram trabalhar e formaram família. O rapaz – cujo nome nunca lembro – mora nos Estados Unidos e trabalha numa empresa de tecnologia lá. Já a mulher, Aurora – esse é um nome que nunca esqueço –, mora no Rio de Janeiro com o marido, com quem é casada há muito tempo.

Ainda me lembro da felicidade de Vanda ao me comunicar que finalmente seria avó. Por isso, entendo sua tristeza.

— Se precisar de uns dias para ficar com ela... — Ela concorda. — Vou pedir ao Rômulo que providencie as passagens de avião. — Pego o celular. — Ele tenta algo para hoje ainda?

Ela soluça, e isso me corta o coração. Nunca tive contato com minha mãe, e ela cuida de mim como se eu fosse seu filho. Claro que temos uma relação profissional, mas reconheço o trabalho e o afeto dela por mim.

— Eu gostaria de ir o mais rápido possível...

Rômulo atende no segundo toque, todo esbaforido como sempre, como se estivesse fazendo algum tipo de exercício que o deixasse sem fôlego.

— Rômulo, boa noite! Preciso que compre passagens para o Rio de Janeiro se possível ainda para hoje à noite.

— O doutor vai viajar? Não vi nada na agenda que...

— Rômulo... as passagens, estou esperando na linha — corto-o.

Ele demora alguns minutos, mas ainda posso ouvir sua respiração ofegante. Será que o filha da puta tem asma e nunca me contou?

— Tem um voo para às 22h20 com previsão para chegar lá no Galeão às 23h25, posso comprar?

Confiro as horas de novo; pouco mais de duas horas para a partida do voo.

— Compre e já faça o check-in online. É para a Vanda, têm todas as informações sobre ela na minha pasta pessoal.

Ele confirma, pergunta sobre a volta, e eu peço para reservar para daqui uma semana, mas com possibilidade de mudança.

Vanda vai correndo até seu quarto, entendendo o pouco tempo que tem até chegar a Guarulhos, e eu aproveito para ligar para o Dionísio, que já está na garagem do prédio me esperando.

— Dio, você vai levar a Vanda para o aeroporto o mais rápido possível. Ela tem que estar lá em uma hora para poder embarcar para o Rio. Vá rápido, mas com segurança. — Mal desligo e ligo de volta para o Rômulo. — Conseguiu?

— Já mandei o voucher para o celular dela, chefe! — diz todo animado, e eu reviro os olhos.

— Preciso que entre em contato com aquela empresa na qual alugamos carro e motorista quando me hospedei lá.

— Já fiz isso também, chefe! — sua voz agora está animada e orgulhosa.

— Muito bem! Bom trabalho, Rômulo! Boa noite!

Juro que posso ouvir um suspiro quando desligo o celular. Rio, balançando a cabeça, achando o jeito dele muito engraçado, mesmo que me irrite na maioria do tempo. Esse Rômulo!

Uma mensagem da Viviane chega, pois agora estou oficialmente atrasado, e retorno apenas para acalmá-la:

 

 

Sento-me no banco do piano, brincando com as teclas enquanto Vanda termina de arrumar sua bagagem, pensando em como as coisas mudam de uma hora para a outra dentro de uma família. Eu já senti essa reviravolta uma vez, embora na época tenha reconhecido que foi para melhor, mas ainda assim as lembranças dela causam a dor da sensação de não saber como teria sido.

Bufo de raiva por deixar isso voltar, mesmo depois de tantos anos. Tudo o que eu queria era uma noite de sucesso para meu investimento e, talvez, um sexo casual depois do evento.

Dedilho um blues aleatório ao piano para animar meu espírito antes de sair de casa.

Odeio essas noites corridas!

 

 

— Porra, achei que você não vinha mais! — Viviane me cumprimenta assim que eu piso na galeria. — Samuel Dias é o maior sucesso! — cochicha em meu ouvido enquanto finge um abraço. — Parabéns!

Retribuo o cochicho:

— Para nós dois!

Ela gargalha, e isso chama a atenção de algumas pessoas que estão tomando champanhe e conversando em um canto. Cumprimento-os com a cabeça, pois conheço a maioria deles, mas uma loirinha me atrai com seu sorriso contido e olhos esfomeados.

— Seus olhos não são bons só em detectar talentos... — Vivi sussurra. — Valentina de Sá e Campos, filha do deputado Cristóvão Campos e neta do diplomata Augusto de Sá.

— É um bom currículo! — debocho. — O que mais você sabe?

Viviane sorri lentamente, uma expressão que eu já conheço e que significa que ela sabe tudo o que eu quiser ter de informação sobre a garota.

— Tem 27 anos, formada em Direito, faz balé desde criança e toca piano muitíssimo bem. — Faço um gesto com a cabeça, admirado. — Pelo que eu sei, trabalha no escritório com a mãe, mas está estudando para ingressar na diplomacia como o avô.

— Uma mulher de carreira, então?

Vivi me olha como se eu tivesse duas cabeças, e ergo as mãos em rendição.

— Mulher de carreira! Que mente retrógrada! O que você quer, afinal? Uma dondoquinha que fique em casa sem fazer nada o dia todo?

— Uma mulher que cuide de meu filho e que não o abandone por causa da profissão.

Ela volta a me fuzilar com os olhos.

— Isso é revoltante, Theo! Há ótimas mães que também são ótimas profissionais, uma coisa não exclui a outra, pelo amor de Dadá! — ela sempre me arranca um sorriso quando diz essa expressão. — Você quer mesmo fazer isso? Começar a sair com alguém para se comprometer? Porque, a cada vez que encontra uma possibilidade, você arranja mais requisitos! Tá foda!

— Vamos cumprimentar o artista primeiro, depois você continua me contando a vida da menina. — Sorrio para ela. — Anota aí que eu também a achei muito nova.

— Puta que pariu, desisto de te ajudar! Aquela última tinha 35 anos, e você achou que ela já podia estar entrando na menopausa e que por isso ia ser difícil emprenhar. — Rola os olhos. — Cagão!

Gargalho, aceitando um copo de uísque que o garçom veio me servir.

— Macallan? — pergunto, sentindo o cheiro.

— Óbvio, trouxe exclusivamente para você. — Ela acena, e vejo Samuel Dias. — Elogie o rapaz, diga que eu contei como ele tem se saído bem nesta noite e se desculpe pela demora. Finja ser sensível!

— Mas eu sou, não preciso fingir! — respondo rindo, bebericando o uísque.

— O que há de errado? — Ela provavelmente percebeu que não estou bebendo de verdade, apenas fazendo cena.

— Estou dirigindo. Tive que pedir a Dionísio que me fizesse outro favor.

— Justo hoje? — mesmo com o sorriso congelado em sua face, sua voz não disfarça a irritação. — O que havia de tão importante?

— Nada para você se preocupar. — Cumprimento o artista da noite: — Parabéns, eu ouvi falar que tudo tem sido um sucesso!

— Obrigado, Theo! Nada disso seria possível sem...

— Não, nada disso! Vamos celebrar a sua conquista hoje! — corto seu discurso de gratidão. Ele não precisa disso, não lhe estou fazendo um favor. — Viviane, procure um garçom para servir algo ao rapaz! O serviço poderia estar melhor...

— Vá se foder, Theo — diz baixinho entredentes, mas faz o que peço.

Assim que ela se afasta, cumprimento Samuel como sinto que devo, sem Viviane a estar no meu ouvido dizendo o que e como devo falar com ele.

— Estou muito orgulhoso de você. Sabia que seu talento seria reconhecido. — Ele agradece. — Só se lembre daquilo que conversamos no primeiro dia em que nos encontramos.

— Claro! — Sorri. — Nunca abandonar minhas raízes e minhas essência, porque são elas que impulsionam meu talento.

— Exato!

Viviane volta com duas taças de champanhe.

— Podemos brindar? — pergunta animada.

Levanto o copo de uísque enquanto eles tocam de leve as taças. Novamente busco a garota loira com os olhos e tenho a grata surpresa de pegá-la me observando. Sorrio, aceno com a cabeça, e ela faz o mesmo.

Então vamos ver no que dá!


Acordei de ressaca hoje, e não foi por causa da quantidade de bebida que ingeri no vernissage; aquela quantidade, eu nem consideraria como beber. Viviane ficou puta por ter encarecido o orçamento com garrafas do meu uísque preferido e eu não estar bebendo, por isso, depois do evento, reuni todas as que sobraram e trouxe para meu apartamento.

Pensei que ia passar uma noite solitária, acompanhado apenas de um single malte e discos de jazz, mas, no meio da minha encenação de lobo solitário, Millos ligou me convidando para ir até seu loft. Neguei várias vezes, mas a porra do homem estava tão excitado com a cerveja que havia feito que não parava de insistir.

Resultado? A bebida realmente estava um espetáculo! Enchemos a cara, mesmo sob meus protestos, pois nunca curti muito beber cerveja, e comemos uns tira-gostos tão saborosos que teci elogios a sua habilidade na cozinha.

— Ah, não fui eu quem preparou, não! — Riu. — Encomendei no Hill.

Quase cuspi aquela porra para longe e o fuzilei com os olhos.

— Porra, eu querendo que aquela merda feche e você comprando lá? Está do lado de quem afinal?

— Do meu estômago! — respondeu comendo mais um dos bolinhos. — Estava com vontade de ter um acompanhamento, mas sem nenhum saco para preparar. Me lembrei do dia em que fomos lá e quis conferir se ainda continuavam tão gostosos!

— Ainda não te perdoo por aquela arapuca! — acusei.

Há uns dois anos, Millos me convidou para comemorar seu aniversário, coisa que vez ou outra fazemos quando ele está em clima de festa. Eu lhe disse que o encontraria no local, mas ele insistiu em me buscar em casa, e, quando chegamos e percebi que era no Hill, fiquei bem puto, mas a curiosidade de saber o motivo pelo qual o boteco estava se tornando um sucesso me impulsionou a entrar.

O que eu não contava era que, além de a mim, o filho da puta tinha convidado meus irmãos. Ficamos lá os quatro como se fôssemos bons amigos, compartilhando da armadilha de Millos. Aposto que Kostas e Alex detestaram cada momento, mas sorrimos, bebemos e experimentamos os quitutes da tal da Duda Hill.

Mesmo não gostando de admitir, era fato que a mulher sabia o que estava fazendo na cozinha. Os bolinhos tão tradicionais de um boteco tinham um requinte diferente, embora mantivessem a essência. Era como se ela conseguisse melhorar o que já era perfeito, e isso, tenho que admitir, é um dom.

Confessei isso ao meu primo? Nem sob tortura! Repreendi-o por ter comprado lá, aleguei que ela podia ter mandado envenenar os quitutes – fazendo um drama desnecessário, culpa da bebida –, mas não parei de comer.

— Ah, pedi a Sami para comprar para mim — respondeu.

— Você ainda está saindo com ela? — questionei surpreso, pois havia muito tempo não via a motoqueira que, de vez em quando, orbitava em volta dele.

— Não! Somos amigos, já disse isso, mas parece que você só enxerga a boceta de uma mulher, come até suas “amigas” — fez referência a Viviane.

— Por que você não gosta dela? — Provoquei: — Porque ela é independente, dona de si mesma e diz o que pensa?

— Não! Eu não curto mulher assim para comer, mas não tem nada a ver com o fato de eu achá-la fria e calculista, e nunca escondi isso de você. Aquela mulher gela meu sangue!

Ri do seu exagero, afinal, a Vivi não tem nada de fria. Millos implica com ela pelo simples fato de a mulher ter personalidade e não se deixar comandar por ninguém. No primeiro momento ele se sentiu atraído, Vivi é um espetáculo aos olhos, e ela também não disfarçou o interesse. No entanto, bastaram alguns minutos de conversa para que se odiassem.

— Hoje ela conseguiu algo incrível — comentei. — Valentina de Sá e Campos, já ouviu falar?

Ele riu.

— Dela não, mas conheço os sobrenomes. Família paulistana tradicional, bom currículo. — Cruzou os braços e me olhou debochado. — A futura senhora Theodoros Karamanlis?

— Talvez — fui sincero. — Conversei um pouco com ela nesta noite, achei-a divertida, inteligente e sedutora. A princípio achei que era muito nova, mas é madura e independente, cheia de opinião. Gosto do tipo.

— Eu sei. — Ele se levantou e foi pegar mais cerveja. — Foi Viviane quem te apresentou a ela? — Assenti. — Não sei se gosto disso, mas boa sorte.

Gargalhei pela implicância dele com a Vivi e resolvi desviar o assunto. Falamos da Karamanlis, de música, de motos e, por fim, já muito bêbado e com sono, caí sobre o sofá dele e acordei há pouco, com torcicolo e com uma puta dor de cabeça.

— Ei! — Millos me saúda estendendo uma xícara de café. — Você está destruído!

O desgraçado ri, mas nem posso mandá-lo tomar no cu, porque minha cabeça trepida parecendo que há uma britadeira no meu cérebro. Maldita cerveja! Malditos bolinhos envenenados da Duda Hill!

— Cara, você é fraco para minha cerveja! — Millos ri. — Ficou boa, não é? — Apenas assinto, ainda tomando o café para melhorar meu ânimo. — O que está programado para fazer nesse final de semana?

— Vou trabalhar. Como saí um pouco mais cedo ontem por causa do vernissage, Rômulo separou umas pastas para que eu lesse nesse final de semana. Coisa chata, principalmente da pauta da reunião do conselho.

— Por falar no conselho... — Ele se senta ao meu lado no sofá e apoia os pés descalços sobre a mesinha de centro. — Ontem tive notícia do Kostas. — Ri. — Parece que tomou um toco feio da Kika e está cuspindo marimbondos.

Gargalho, esquecendo a dor.

— Como queria ter visto esse embate!

— Eu também.

Bufo, mesmo divertido, lembrando que o meu problema continua.

— Preciso trazê-la de volta para a empresa com urgência. Há vários projetos dos hunters parados, e o Rômulo não está dando conta de organizá-los.

Millos rola de rir no sofá.

— Esse seu assistente é muito estranho. Sinceramente não entendo como você ainda o mantém trabalhando contigo!

— Gosto de ele ser metódico. — Dou de ombros. — É organizado, embora meio desastrado, nunca perde um prazo e faz tudo o que eu peço.

— Seu próprio espelho, não é? Nunca conheci ninguém mais chato que você para organização.

Ergo uma sobrancelha para ele e olho em volta para seu loft cheio de espaço, mas sem nenhuma lógica ou senso de estilo. Millos gosta de coisas rústicas, e respeito isso, acho legal, mas é tão bagunceiro que seus móveis caros de design parecem ser cacarecos de alguma casa demolida.

Os únicos locais arrumados são: a cozinha, o “laboratório” de cerveja (como ele mesmo se refere ao local) e onde dorme. O resto... tem peças de motos para todos os lados, mesmo a oficina ficando na parte de baixo do galpão que ele chama de loft, tem barris com os ingredientes que compra para a fabricação de cerveja, roupas, discos e óculos (nunca vi tantos para uma só pessoa) espalhados por todos os lados.

O homem é um caos completo em casa, mas, se alguém entrar na sala dele na empresa, vai acreditar que é o epítome da organização. Não entendo como consegue!

— Bem, sobre a Kika, eu posso te adiantar que não precisa se preocupar — Millos continua. — Falei com ela ontem, e vai voltar.

Expiro o ar, aliviado.

— Porra, Millos, porque não me contou antes? É um alívio do cacete não ter que lidar com mais esse problema e...

— Mas ela não quer ser mudada de andar.

— O quê? Ela está fazendo exigências?

Millos penteia a barba com os dedos, enervando-me com sua calma.

— Demonstramos desespero ao mandar o Kostas pedir arrego. — Concordo com ele nesse ponto. — Ela quer aumento, continuar no andar e... — Tenta conter o sorriso, e prevejo que vem bomba, mas ele vai dar um doce do cacete para falar.

Perco a paciência e esbravejo:

— O que mais ela quer?!

— Carta branca para mandar seu irmão se foder à vontade.

— Porra!

Ponho as mãos na cabeça, sentindo a dor de cabeça voltar com tudo e ouvindo a risada debochada do Millos.

Eles querem me enlouquecer, só pode!

 

 

A dor de cabeça me acompanhou ao longo de todo o final de semana. Tomei analgésico, antiácido e – seguindo os conselhos do meu primo – mais um pouco de cerveja. No entanto, não consegui me livrar do incômodo insistente.

Trabalhei o sábado inteiro, recebendo ligações do Rômulo quase de hora em hora, a ponto de ficar puto com ele e mandá-lo caçar algo para se divertir e me deixar em paz. Compreendo que ele queira me ajudar, mas, às vezes, sua dedicação exacerbada me estressa.

Recebi um convite para jantar de uma antiga amante que vinha a São Paulo de tempos em tempos, mas neguei. Queria apenas relaxar um pouco em casa depois de ter trabalhado em páginas e mais páginas de relatórios com uma dor de cabeça chata a me distrair.

Pedi comida em um restaurante de comida vegana, achando que pudesse ser a gordura dos bolinhos do Hill – velha e rançosa, com certeza – que me deu essa indisposição e resolvi assistir a alguns filmes antigos. Sou fã de “O poderoso chefão”, então comecei a assistir a cada um deles de novo.

Novamente dormi em um sofá, mas acordei melhor e resolvi correr um pouco. Passei umas duas horas no Ibirapuera e, na volta, encomendei o almoço de domingo, sentindo-me um pouco órfão sem a Vanda em casa.

Liguei para Millos a fim de fazermos algum programa à tarde, mas ele estava com alguma mulher em algum clube ou lugar que só Deus sabia, então voltei aos relatórios, e isso consumiu o resto do dia.

Debaixo do chuveiro, rememorando este final de semana de merda, ouço meu telefone tocar, mas o ignoro. Coloquei os jatos no mais forte possível para tentar aliviar um pouco a tensão que venho acumulando nesses dias. A verdade é que preciso trepar um pouco, divertir-me, talvez fazer uma viagem ou passar um final de semana com alguém sem pensar no trabalho.

A imagem da Valentina vem à minha mente, sua conversa gostosa, seu sorriso bonito. Contudo, ainda não me sinto completamente certo de que devo me envolver com ela, principalmente por uma questão: não senti muita atração.

Sei que isso é de momento e que pode mudar, principalmente se a convivência for boa. Nem sempre sentimos atração pela pessoa no primeiro encontro, e já vivi anos demais para saber que até um primeiro encontro explosivo pode depois esfriar e o tesão ser extinto, então, não me baseio apenas nessas primeiras impressões.

Fecho os olhos e penso na garota da boate há alguns anos. Ela vem preenchendo minhas fantasias há muito tempo, talvez por ter sido gostoso daquela vez e não ter tido mais notícia dela.

Mal lembro do seu rosto, de tão bêbado que estava, sempre quando fantasio vejo os cabelos e me lembro da loucura que foi nossa transa naquele banheiro.

O telefone volta a tocar, e desligo o chuveiro, saindo do boxe para ver quem é o chato. Rio ao ver o nome do Millos. Na mosca!

— Já terminou sua maluquice sexual com a “submissa” da vez? — provoco.

— Vá se foder e não se meta nos meus assuntos — rosna. — Liguei para saber se amanhã pode ir comigo a um restaurante que um amigo inaugurou nos Jardins.

— Boa comida ou é boteco?

— Não, seu fresco, é coisa fina! Vanda ainda não estará de volta, não é?

Suspiro, resignado.

— Não, ela ainda vai ficar um tempo no Rio de Janeiro. Está certo, amanhã combinamos isso melhor no escritório.

— Okay! — diz animado. — Vai almoçar no refeitório junto aos funcionários?

— Sempre há uma primeira vez, não é? — Deixo a toalha no suporte e sigo para o closet. — Além do mais, confio que servimos algo de qualidade aos funcionários.

Millos ri.

— Essa eu quero ver! Nos encontramos no almoço, então! Boa noite, Theo.

— Boa noite!

Desligo o telefone e me olho no espelho, lembrando-me do tempo em que comia qualquer coisa e em qualquer lugar, na maioria das vezes sujo e fedendo a peixe, sentindo-me feliz e livre.

— Quem é você, Theodoros Karamanlis?


O dia nem bem amanheceu, e eu já estava suando na academia com a Sandra. Hoje, sem Millos, o treino foi mais tranquilo, seguindo o ritmo normal dos exercícios. Tomei meu café sozinho na cozinha – café puro mesmo – sentindo imensamente a falta da Vanda, de sua conversa matutina animada e seus cuidados. Posso não admitir sempre, mas gosto de ser cuidado, de sentir esse afeto, coisa tão rara na minha vida.

Limpei os pensamentos e saí para trabalhar.

— Bom dia, Dionísio! — cumprimentei o motorista como em todos os dias, já pegando meu jornal para me inteirar sobre as principais notícias do dia. — Hoje vou almoçar na empresa, mas, à noite, vou sair do escritório direto para jantar com Millos.

— Levo o doutor ou trago o carro?

— Traz o carro, vou dirigindo.

Ele assentiu, e seguimos viagem em silêncio, ele concentrado no trânsito, e eu, nas notícias de economia do país e do mundo.

Cheguei à empresa já apagando incêndios. Um dos projetos de um cliente foi reprovado por uma comissão municipal, então Kostas teve que intervir mandando seus advogados e acompanhando todo o processo. Eu, como CEO, fiquei aguentando a aporrinhação do gerente responsável pela implantação da empresa multinacional aqui no Brasil.

Nem vi a hora passar, mal tomei meus cafés tão tradicionais ao longo da manhã, irritado com esse problema, com o Rômulo borboleteando ao meu redor me enchendo de perguntas: “quer café?”, “ligo para o doutor Konstantinos?”, “quer um calmante?”. Eu quase explodi de raiva, sentindo meu estômago fritar e a cabeça estourar.

Desci para o refeitório faltavam alguns minutos para o meio-dia e, para meu espanto, ainda não tinha nenhuma refeição pronta. Conferi as horas no Omega, um dos relógios mais precisos do mundo, e estranhei a demora. Rômulo apareceu e, quando lhe questionei o atraso, fiquei sabendo que o almoço era servido a partir da 1h da tarde.

Voltei para o escritório sob a insistência de Rômulo para me encomendar o almoço em algum restaurante.

— Não! Hoje vou comer no refeitório — insisti.

Millos me lançou um desafio por eu nunca ter comido na empresa desde que foi inaugurado o refeitório para os funcionários. Pensamos no restaurante para facilitar a vida de todos e, como tínhamos espaço, decidimos montar a estrutura. Estive presente no primeiro dia, na inauguração, há alguns anos, mas depois disso não botei mais os pés no local.

Exatamente às 13h desci novamente pensando em usufruir de um almoço tranquilo e nutritivo, porém, o que encontrei me deixou sem ação. Primeiro, os funcionários ficaram estarrecidos ao me ver ali; percebi em seguida que apenas o baixo escalão da empresa – de coordenadores para baixo – estava comendo ali. Não havia nenhum gerente ou diretor no meio dos mais de 100 funcionários da companhia.

Contudo, o que mais me surpreendeu foi a comida. Não, não era ruim, pelo contrário, era bem preparada, mas sem nenhuma opção para substituição.

— E quem não pode comer carne vermelha? — questionei ao Rômulo, e ele apenas corou, fingindo não ouvir. — Há cardápios diferentes ao longo da semana?

Rômulo continuava a montar seu prato sem emitir qualquer resposta, o que não é nada típico dele, e isso me irritou. Quando não era para falar, o homem tagarelava, mas, quando eu precisava de respostas, ficava mudo!

— Rômulo! — chamei-o de modo mais enérgico. — Eu estou tentando entender o que...

— Não, não há! — escuto a voz do Alex e me viro para encará-lo. — E seu querido assistente não sabe informar porque não come aqui também. — Meu irmão pegou um prato e se serviu naturalmente. — A questão do restaurante entrou em pauta numa reunião de diretoria, mas o senhor todo-poderoso do Olimpo achou que não era uma questão relevante para a economia da empresa e pulou o assunto.

Olhei de esguelha para Rômulo buscando confirmar a informação, e ele atestou. Xinguei mentalmente.

— Uma empresa é feita de mais do que números, Theodoros Karamanlis — seu desprezo pelo sobrenome era evidente. — E, quando fiz a proposta do restaurante, era para que, além de economizar o tempo dos funcionários e agilizar o serviço, também tivéssemos convívio com eles, porém, adivinha quem foi o primeiro a pular do barco e a incentivar o “alto escalão” a ir junto?

Bufei de raiva.

— Quem é o responsável pela gestão do restaurante? — ignorei o discurso do meu irmão idealista e perguntei ao Rômulo.

— É terceirizada, a mesma empresa do pessoal da manutenção.

Merda!

— Marque uma reunião com ela e peça ao Kostas para avaliar o contrato. — Rômulo mais do que depressa escreveu em seu tablet inseparável. — Dispare um memorando para todos os diretores e gerentes, lembrando da existência do restaurante e informando que, a quem for almoçar fora, será necessário cumprir o horário, ou seja, uma hora e nenhum minuto a mais.

Rômulo arregalou os olhos e assentiu.

— Eu pouco vejo você e percebo que nem é preciso! Você não mudou nada, o mesmo prepotente de sempre. — Alex passou por mim, ainda se servindo no bufê, rindo de deboche, e percebi olhares curiosos em nossa direção.

— Eu preciso lembrar que você também faz parte da diretoria e tem acesso irrestrito ao conselho? — Cheguei perto para falar baixo: — Se fosse meu projeto, nunca deixaria chegar aonde chegou só porque não sou o CEO. Isso demonstra que está mais preocupado em ir contra a direção do que lutando pelo bem-estar dos funcionários. Não é minha função tomar conta de tudo, não sou absolutista, eu delego e confio naqueles a quem passo esse poder. — Ele fechou a cara, perdendo o ar de superioridade. — Não tenho intenção alguma de prejudicar os que trabalham comigo, pelo contrário. Mas assumo meu erro em não ter frequentado o local para dar exemplo.

— Mas o doutor também não tem horário certo para almoçar, por isso...

Balancei a cabeça em negativa, freando a defesa de Rômulo. Não tinha desculpas, o exemplo era meu, e eu tinha falhado. Terminei de fazer meu prato, sentei-me a uma mesa com Rômulo e almocei mesmo sentindo um nó na garganta por ter mostrado falha e ter sido repreendido pelo Alex na frente de todo mundo.

Merda!

Ao longo do dia, a repercussão do almoço do CEO no restaurante da empresa, bem como o efeito do memorando para os diretores e gerentes agitaram a tarde na Karamanlis. Percebi todo mundo mais atento, mesmo na correria de sempre.

Tive uma resposta positiva da equipe de Kostas com relação ao projeto vetado e pude passar a boa notícia ao nosso cliente. Recebi vários relatórios dos setores e subsidiárias ao longo do dia, inclusive da K-Eng, dirigida pelo Alex.

Meu irmão é um sonhador idealista, defensor dos fracos e oprimidos, um rebelde que só trabalha conosco para contrariar a família. Cospe sobre nosso sobrenome, mas faz questão de ostentá-lo para afrontar o pappoús. Sempre achamos que ele tentaria afundar a empresa em represália ao tratamento que teve na infância, mas não, ele não só assumiu uma empresa praticamente independente como a fez crescer. Todavia, ainda sinto que há algo por trás disso.

Estaciono o carro na vaga do restaurante, afastando as lembranças do dia e conferindo o endereço que Millos me enviou por mensagem. Estar sem o Dionísio nesta noite é bom, porque vou moderar a bebida, afinal é segunda-feira, e prefiro tomar um copo de uísque quando estiver no meu apartamento.

Tenho expectativa de o jantar ser bom; já o almoço foi complicado e indigesto com a discussão com o Alex e a demonstração de que deixei as coisas correrem soltas demais. Claro que não sou arrogante a ponto de achar que meu irmão não estava com a razão sobre as coisas que me disse, afinal, ele convive mais com os funcionários que eu, mas não gostei de ser contrariado na frente de todos.

Entro no restaurante, e a primeira coisa que percebo é a arquitetura do lugar e a decoração de bom gosto. Isso realmente não diz muita coisa acerca da qualidade gastronômica deles, mas já conta pontos em matéria de conforto. Uma recepcionista, bem-vestida e muito bonita, cumprimenta-me, e lhe dou o nome de Millos, que foi quem fez a reserva.

— Ah, doutor Karamanlis, ele ainda não chegou, mas o senhor pode esperá-lo no bar, tudo bem?

Respiro fundo, conferindo as horas e calculando que ele – se viesse de moto, como sempre – já deveria estar aqui. Olho contrariado para o bar, logo na entrada do restaurante, e meus olhos são imediatamente atraídos para uma mulher vestida de preto, com os cabelos longos, castanhos e lisos, tomando uma taça de vinho.

Não consigo ver todo o seu rosto, apenas o perfil, e isso é suficiente para que eu queira vê-la toda.

— Tudo bem — concordo com a recepcionista, que me aponta o bar.

Caminho para lá e me sento na poltrona alta ao lado da bela mulher. Não a olho, prestando atenção ao bartender que vem pegar meu pedido.

— Scotch, por favor. — Ele pergunta a marca. — The Macallan.

Sorrio satisfeito ao vê-lo pegar exatamente a garrafa que costumo beber e, então, de esguelha, olho para a mulher ao meu lado, procurando algum indício de indisponibilidade – ou problema –, como uma aliança em seu dedo.

Ela não usa nem mesmo anéis. No entanto, o que chama minha atenção são as unhas curtas, bem cuidadas, mas sem esmalte. Hoje em dia o que as mulheres mais fazem é colorir as unhas! Como eu gosto de arte, logo sou atraído pela variedade de cores e a combinação com as mãos e os formatos. Porém, não com ela; suas mãos são lindas, dedos longos, sem precisar de nenhum tipo de enfeite.

Subo o olhar e a encontro me olhando também.

— Boa noite! — cumprimento-a sorrindo assim que o bartender deixa meu copo no balcão.

— Boa noite! — ela responde. Sua voz me causa uma sensação de frenesi, e fico imediatamente excitado. Ela é linda em todos os sentidos da palavra. Seu rosto é delicado, proporcional, olhos expressivos, nariz fino e uma boca generosa. Fico imaginando como será seu sorriso aberto, não apenas esse polido e educado que me dá agora.

Paro de encará-la para não a constranger e tomo um gole do uísque, questionando se devo ou não puxar conversa com ela.

Não sou inseguro, nunca fui, mas às vezes uma mulher só quer estar quieta bebendo sem alguém para importuná-la, por isso sempre espero ver algum indício de que quer papo antes de abordar.

Dou outra olhada de soslaio.

Vamos lá! Quero saber quem você é!


— É a primeira vez que venho aqui — é ela quem faz o movimento, e gosto disso, uma mulher decidida. — Estou surpresa pelo requinte sem a frieza esperada desses restaurantes com esse nível. O pessoal é simpático e organizado.

Rio.

— Você é da área — constato e me viro para ela, girando a poltrona em sua direção.

— Sou. — Sorri finalmente, e me sinto extasiado com a perfeição do gesto. Os olhos ficam levemente puxadinhos, e sua face inteira se ilumina. A mulher fica absurdamente linda quando sorri. Meu interesse é real agora. — Mas hoje vim como cliente.

— Eu só venho como cliente — brinco. — Não sei fritar um ovo!

Ela ri de novo e toma um gole de seu vinho.

— O que seria dos restaurantes se todos soubessem ou gostassem de cozinhar? — Levanta sua taça em minha direção. — Aos que são apenas clientes e podem desfrutar de uma deliciosa refeição sem ficar avaliando cada nuance do prato.

— Justo! — Brindo com ela. — Qual sua formação?

— Cozinha francesa. Diplôme de cuisini e pâtisserie.

Uau!

Meu corpo inteiro vibra e meu pau reage ao som do seu perfeito sotaque francês. Acompanho sua boca em volta da borda da taça de vinho, o leve ondular de sua garganta sorvendo a bebida e sua língua resgatando os resquícios da bebida em seus lábios.

Abaixo a cabeça e bebo um longo gole do uísque, tentando não parecer um tarado assediador, mas louco para perguntar se ela prefere na minha casa ou na dela.

— Pelo francês perfeito presumo que tenha estudado na França... — Ela concorda com um sorriso. — Le Cordón Bleu?

— Naturellement. Estudar gastronomia na França sem ser em Le Cordón Bleu é como ir a Roma e não ver o Papa!

Gargalho com sua comparação e a saúdo com minha bebida.

— É como ir até a Escócia e não provar um verdadeiro uísque.

Levo o copo até a boca e acompanho o olhar dela em mim.

— Sua escolha de bebida me surpreendeu — ela comenta, e franzo o cenho, olhando meu bom e velho single malte e me perguntando qual é o problema com ele. — É uma bebida conservadora, nada sofisticada, ao meu entender, não combinou muito. — Aponta para mim.

Finjo-me de ofendido, embora segure a risada, e cruzo os braços.

— E você é uma entendida em bebidas também? — provoco-a.

A risada dela é tão melodiosa que parece música, seus olhos se iluminam e as bochechas ficam levemente rosadas. Perfeita!

— Nem queira saber! — Beberica um pouco do seu vinho. — Praticamente cresci cercada delas.

— Hum... — Sorrio. — O que combinaria mais comigo, então?

Sou submetido a um olhar avaliador, passando pela minha roupa, sapatos e rosto. Sinto tão intensamente sua atenção sobre mim que é como se ela pudesse olhar além das minhas roupas. Estou exposto, nu, cada músculo aquecendo à medida que seus olhos percorrem meu corpo, concentrando ainda mais desejo em minha virilha. Porra, que delícia!

— Pelo estilo de roupas e o Omega que usa no pulso — ergo a sobrancelha, surpreso pelo bom olho que ela tem —, um Dry Martini.

Gargalho sem me conter, e ela me segue, ambos divertidos pela comparação que ela faz. James Bond? Sim, eu sei que o mais famoso espião dos cinemas só usa relógios da Omega, mas não me vejo com uma taça de Dry Martini na mão, exigindo do bartender: “batido e não mexido”. Gosto de pensar que sou mais rústico que isso. A prova é meu single malte caubói.

— A sofisticação é só uma casca, pode acreditar. Estou longe de ser tão refinado quanto o Bond, ou tão habilidoso. — Ela levanta uma sobrancelha questionadora, demonstrando que não acredita nessa minha “humildade”. — A propósito... — respiro fundo, indo devagar — meu nome é Theo.

Mais uma vez seu sorriso faz meu pau reagir, ficando dolorosamente duro e pulsando na cueca. Que porra de atração é essa? O que essa mulher tem? É divertida, a conversa está fluindo bem, além de ser linda, mas essa atração... não é assim que acontece, ainda mais em um ambiente tão frio quanto o em que estamos.

— Maria Eduarda. — Ela estende a mão, e eu a seguro.

Tudo em volta parece vibrar, e noto que ela também sente isso. Meu sorriso se expande. Não tiro os olhos dos seus. A energia gerada pelo toque esquenta meu corpo e aumenta minha percepção do dela.

Maria Eduarda tem um belo pescoço, e o cheiro suave de um bom perfume parece advir exatamente do ponto onde eu gostaria de passar minha língua. Os ombros são delicados, os braços longos e sem nenhum contorno muscular demonstram que ela não mantém regularidade de exercícios, sendo magra ao natural. Os peitos no decote do vestido são pequenos, porém, redondos e firmes.

O vestido, embora justo, tem um tamanho comportado, por isso não posso ver suas coxas – o que é uma pena –, tão somente as panturrilhas e uns pés lindos – esses, sim, com as unhas pintadas de vermelho – em sandálias de cor clara.

Apesar de ser uma mulher atraente e bonita, não é uma beleza exótica. Sem o sorriso, ela passaria a ser apenas mais uma mulher bonita como muitas outras que existem por aí, porém, não para mim. Algo nela chamou minha atenção desde o primeiro momento. Mesmo com ela de costas, sem nem ao menos ver seu rosto direito, senti-me atraído.

Agora ela me deixa em chamas, tentado a ser direto e lhe propor uma noite de pura sacanagem. Eu o faria se o local fosse mais descontraído e tivesse mais abertura da parte dela, não só a confirmação de que se sente atraída por mim. Em uma boate, por exemplo, eu seria mais efusivo.

— É um prazer enorme encontrá-la aqui — mesmo sendo sutil, quero deixar claro que ela chamou minha atenção. — Salvou minha noite, pode ter certeza.

Ela sorri e solta minha mão.

— Quase não vim — confessa e dá de ombros. — Assunto chato, companhia chata.

Gosto da sua sinceridade.

— Negócios? — Ela assente, e eu adoro a notícia. — Geralmente os meus jantares têm o mesmo motivo.

— Então veio para uma reunião também?

Nego com a cabeça antes de responder:

— Não, hoje só vim comer. Meu primo é amigo do dono daqui e me recomendou o restaurante.

— Isso é bom, espero que esteja à altura da sua expectativa.

— Ainda que não esteja, Maria Eduarda — cruzo os braços e a encaro —, no momento estou ligando o foda-se para a comida ou o restaurante.

Ela fica séria, mas não desvia os olhos.

— É mesmo?

Não respondo de imediato, curtindo esse jogo entre nós. Aposto que ela sabe o motivo pelo qual não tenho mais nenhum interesse na gastronomia do local. Ela quer que eu diga! Quer que eu dê o passo adiante, que demonstre o interesse claramente, o que é um ótimo sinal.

Deixo o silêncio e o ar vibrar entre nós por mais alguns momentos, sem tirar meus olhos de suas belíssimas íris castanhas.

— Porque minha fome é outra desde que encontrei você aqui. — Ela segura o fôlego. — Porque nossa conversa está cada vez mais interessante. — Abaixo o tom de voz: — Porque olhar você e sentir seu cheiro acordaram meus sentidos mais do que qualquer nuance de um prato é capaz de fazer.

Minhas mãos coçam de vontade de tocá-la, de sentir novamente aquela energia sexual percorrendo meu corpo, emanando dela. Não o faço porque ainda não vi sinais suficientes para avançar a esse ponto, e eu sempre espero a permissão de uma mulher para tocá-la.

— Você nem me conhece — ela responde um pouco ofegante.

— Estou louco para conhecer. — Encosto-me melhor à poltrona e me afasto um pouco dela para demonstrar que não a estou pressionando. — Não tenho pressa, Maria Eduarda, só preciso que saiba que você me atrai e que, embora esteja sentado aqui, estou louco para segurar sua nuca e provar o sabor desse vinho que bebe, diretamente nos seus lábios.

Ela suspira e desvia o olhar.

Esse é o momento quando ou eu tomo um fora, ou venço o jogo. Porém, podem dizer que é arrogância, eu sou um homem vivido e, se cheguei até aqui, se me expus dessa forma, é porque estou apostando minhas fichas em que o tesão é recíproco.

— E se eu for casada ou comprometida?

Bingo!

Pela entonação da pergunta, sei que ela não é.

— Eu me desculparei, mesmo ainda sentindo esse desejo maluco de te beijar, e me levantarei, indo para a mesa que meu primo reservou. Não trepo com comprometidas.

Ela levanta as sobrancelhas e assume uma expressão provocadora.

— Não trepa? — Ri, cínica. — Você é muito confiante achando que basta jogar meia dúzia de palavras em cima de uma mulher sozinha em um bar para garantir uma trepada.

— Eu sou confiante. — Aproximo-me a fim de lhe demonstrar de onde vem minha confiança. — Mas não são as “meia dúzias de palavras” que vão fazer você ter vontade de trepar comigo. — Seguro sua mão e com a outra deslizo meu dedo indicador do seu punho até o cotovelo, vendo todos seus pelos se arrepiarem com o leve contato. — É isso!

Maria Eduarda fica um tempo olhando o trajeto do meu dedo sobre sua pele, assistindo, como eu, à deliciosa reação causada por meu toque. Não falamos nada, apenas acompanhamos o leve vai e vem que eu faço no seu antebraço, apreciando o contato. É nítido para mim que ela está avaliando todas as possibilidades e talvez tentando entender como isso é possível.

Já não escuto mais nada, os sons das conversas, a música clássica baixa que toca, a correria do bartender limpando copos, organizando garrafas ou preparando aperitivos. Tudo ao redor some, e só sinto a potência do tesão que ela despertou em mim, esperando que sinta o mesmo e que admita isso.

Ela sorri, mas puxa a mão, rompendo o contato.

— Como já disse, a gente nem se conhece.

— Sou paciente, Maria Eduarda. — Recebo um sorriso tímido. — Vou adorar cada momento até te conhecer. — Afasto-me dela novamente e peço mais uma dose de uísque. — Aceita mais uma taça?

Aponto, mas ela nega, olhando para a entrada do restaurante.

— Infelizmente, não. — Respira fundo. — Meu compromisso chato acaba de chegar.

Viro-me para ver quem é o sortudo que vai jantar com ela, mas só vejo o Millos entrando com uma cara debochada e um sorriso contido. Olho para Maria Eduarda novamente e confirmo que ela não só se levantou à espera do Millos, como parece muito contrariada com a presença dele.

Por que Millos iria marcar para jantar com uma mulher e comigo ao mesmo tempo? As palavras “jantar de negócios” me causam um alerta, mas me recuso a enveredar pelo rumo que meus pensamentos querem ir.

— Ah, desculpem o atraso! — Millos exclama, indo cumprimentá-la. — Que bom que já se conheceram. — Maria Eduarda franze a testa e me encara. — Theo, eu acho que chegou a hora de conversarmos pessoalmente com a Duda.

Porra!

Levanto-me como se tivesse sentado em um formigueiro, estarrecido demais para articular qualquer palavra educada que não seja um palavrão bem cabeludo.

Duda? Olho-a de cima a baixo sem poder acreditar que a mulher que me atraiu como se tivesse um ímã é a infernal dona do boteco que tem feito minha vida um suplício por causa de sua teimosia.

— Theodoros Karamanlis? — ela parece tão chocada quanto eu e já não há nada além de desprezo em sua voz ao falar meu nome.

Desvio um olhar mortal para meu primo, que, além de parecer surpreso, está também muito interessado nessa interação entre nós.

Eu vou te matar, seu filho da puta!


— Aceita mais uma taça?

Minha vontade é de aceitar e pagar para ver Theo jogando todo seu charme para mim, usando armas pesadas para conseguir provar que temos realmente toda essa química que ele demonstrou com um simples roçar de dedos em meu braço.

E temos, sim! Não sou hipócrita a ponto de me enganar dizendo que não senti nada por ele. Assim que se sentou ao meu lado aqui, a esse balcão, meus olhos foram imediatamente atraídos para ele. Quando me cumprimentou, sua voz fez meu corpo inteiro reagir de uma forma estranha, e tive a nítida sensação de que o conhecia de algum lugar.

Porém, foi só quando se virou em minha direção, depois de eu ter puxado assunto descaradamente, que fiquei sem fôlego. Seus olhos são de um azul que eu nunca poderia esquecer caso já os tivesse visto. No entanto, a sensação de reconhecimento persiste. Ele é muito bonito, além de ter um sorriso de arrancar a calcinha de qualquer mulher.

Se Manola estivesse aqui comigo, com certeza iria dizer que ficou emocionada e que molhou a calcinha. Entretanto, aprendi com o tempo e com as responsabilidades a ser mais comedida e a não me deixar levar sem pensar. Um rosto e um corpo bonitos não querem dizer muita coisa sobre o caráter de alguém.

Estou para aceitar a proposta de mais uma taça e alongar o papo, mas minha visão periférica capta um movimento na entrada do restaurante, e me sinto murchar ao ver Millos Karamanlis adentrando. Esse homem não se cansa de tentar comprar o Hill, é um saco!

Quando me ligou, eu estava pronta para dizer um sonoro NÃO a ele, mas insistiu que era importante, que tinha uma situação que me interessava e por isso achava melhor conversarmos para tentar um acordo. Isso me deixou intrigada e temerosa, por isso estou aqui, neste momento, tendo que recusar a companhia agradável e intrigante do Theo.

— Infelizmente, não — respiro fundo, respondendo ao delicioso oferecimento desse deus com cuja companhia o destino me presenteou enquanto eu esperava pelo diabo. — Meu compromisso chato acaba de chegar.

Levanto-me, resignada, para receber o homem barbudo e muito estiloso, devo confessar, mas que é uma pedra no meu sapato.

Millos abre um sorriso e se aproxima para me saudar como sempre faz, com um beijo na bochecha e um curto aperto de mãos. Tenho verdadeiro trauma dele, de estar sempre rodeando minha vida à espera de um fracasso que o deixe comprar o bar da minha família, minha casa, o legado do meu pai. Contudo, tenho de admitir que, embora pondo pressão, ele sempre me tratou muito bem e com muita simpatia.

— Ah, desculpem o atraso! — Ele olha para o Theo e depois para mim. — Que bom que já se conheceram. — O quê? Como assim? Eles se conhecem?! — Theo, eu acho que chegou a hora de conversarmos pessoalmente com a Duda.

Millos Karamanlis conhece o Theo!

Meu sensual companheiro de bar se levanta e me encara de um jeito completamente alarmado. O olhar sedutor sumiu, bem como seu sorriso franco e relaxado. Agora apenas incredulidade está estampada em seu rosto bonito.

Oh, meu Deus, não pode ser!

Claro que eu acharia que o conhecia, afinal, já vi fotos suas em revistas da alta sociedade e em jornais, embora creia que nenhuma delas lhe tenha feito jus. O homem ao meu lado não é simplesmente “Theo”, é o diretor da porcaria da empresa que comprou toda a quadra onde fica o Hill e que vem tentando de todas as formas me tirar do meu lugar!

— Theodoros Karamanlis? — minha voz soa tão incrédula como me sinto.

Como não percebi quem era esse homem? Como pude me sentir atraída por ele a tal ponto de fantasiar uma noite ao seu lado? Eu o quis como havia muito tempo não me lembrava de ter querido alguém, uma atração que não sentia desde a época em que ainda pensava que tinha o mundo aos meus pés e que conquistaria tudo o que sonhasse ter.

Millos fica um tempo com a sobrancelha erguida, olhando de um para o outro, até que resolve quebrar o gelo.

— Podemos ir para a mesa?

Eu o olho ainda sem entender que tipo de palhaçada é essa. Eles fizeram de propósito? Será que Theo veio primeiro para tentar me seduzir, afinal, nós nunca fomos apresentados, ou foi só uma coincidência ele ter chegado antes e aí resolveu brincar comigo?

Não é possível que ele não soubesse que eu sou a Duda Hill!

— Millos, o que você pretende, afinal? — Theo questiona com a voz demonstrando toda sua irritação.

— Eu não acho que temos algo para conversar. — Pego minha bolsa, que estava pendurada na poltrona giratória. — Não vou mudar de opinião, não pretendo vender o Hill.

— Por que não? — Theo questiona de repente, e eu o olho. — O que uma chef formada por Le Cordón Bleu pode querer com um boteco? — Fecho minhas mãos com força na alça da bolsa. — Ou esse papinho de Paris e seus diplomas é só um sonho fantasioso de uma dona de bar?

Millos emite um palavrão baixo, prevendo que o tempo irá fechar. Ele me conhece bem, já me irritou várias vezes e saiu do Hill com uma resposta à altura.

— O que eu quero ou não só diz respeito a mim, doutor Theodoros Karamanlis — tento falar o mais baixo possível, mas meus olhos brilham de indignação, e espero que ele entenda a mensagem. — O boteco é meu, faço com ele o que eu quiser, e de uma coisa você pode ter certeza: Não. Vou. Vender. Para. Vocês! Ficou claro agora, ou preciso desenhar? — Olho para o Millos.

— Ei! Vamos nos sentar à mesa e conversar com calma! — ele tenta apaziguar o clima tenso entre mim e Theodoros. — Theo... — pede sua colaboração, mas o homem parece estar soltando fogo pelas ventas e não lhe dá atenção. — Vocês estão chamando a atenção dos outros clientes e...

— Foda-se! — falo em uníssono a Theodoros, e Millos ri, mesmo ainda nervoso.

O maître aparece para nos conduzir até a mesa reservada, e Millos faz um gesto para que o sigamos até lá. Encaro Theodoros Karamanlis por um tempo, ambos medindo forças para ver quem cede primeiro.

— Vamos? — Theodoros pergunta, e eu assinto, passando por ele sem nem ao menos emitir uma palavra. A mesa que Millos reservou é discreta, no fundo do salão, sem nenhuma outra por perto. Sento-me com as costas eretas, sem tirar a alça da bolsa do ombro, mostrando a eles a minha contrariedade por estar ali.

— Vamos fazer um pedido?

— Não, Millos, não pretendo ficar para comer — sou direta. — Preciso apenas que me fale sobre o assunto que não quis adiantar pelo telefone. O que vocês têm a ponto de me fazer querer fechar um acordo?

Theodoros olha para ele parecendo muito mais irritado e bufa de raiva. Millos balança a cabeça e começa a explicar:

— Duda, há alguns meses estamos de posse de uma...

— Enorme quantia de dinheiro — Theodoros o interrompe. — A proposta de compra aumentou, e seria interessante a senhorita reconsiderá-la, afinal, pode abrir um pequeno bistrô para exercer o que aprendeu em Paris.

— O quê? — Millos o encara, confuso. — Olha, eu desisto! — Chama um garçom e pede uma cerveja. — Eu realmente acho que podemos chegar a um acordo, mas vocês dois são teimosos como mulas!

— Não quero nenhum acordo com vocês! — declaro. — Tudo o que quero é que parem de ficar rondando minha propriedade como dois abutres!

— Boa definição, senhorita Hill. — Theodoros se inclina por sobre a mesa para ficar mais próximo a mim. — Seu negócio está agonizante e em breve perecerá, e, quando isso acontecer, irá lamentar não ter abaixado um pouco sua crista e ter aceitado minha oferta, porque só sobrará carcaça aos abutres!

— Theo! — Millos o repreende, mas depois começa a rir. — Que conversa de doido, viu? Não esperava por isso! — Bebe sua cerveja. — Confesso que está um pouco divertido.

— Vá se foder, Millos! — mal fala isso e volta a me olhar. — Não irei repetir a oferta, Duda Hill. A aconselho a aceitar o mais rápido possível.

Meus olhos faíscam de raiva, mas meu corpo traidor se arrepia inteiro ante a expressão dele. O homem é sexy demais, insuportavelmente arrogante, mas ainda assim, muito sexy!

— Não estou interessada — uso o mesmo tom de voz que ele. — Vendo para qualquer um, menos para vocês. — Ponho-me de pé. — Espero que desfrutem do jantar sem minha companhia. Eu não conseguiria comer aqui com vocês sem ter uma enorme indigestão.

Theodoros se põe de pé também, e Millos, com um sorriso debochado, cruza os braços e fica só esperando o próximo passo do seu chefe.

— Não diga depois que não a avisei, Duda Hill.

Rio, passando perto dele para sair do salão.

— Não tenho medo de suas ameaças, Theodoros Karamanlis. — Aproximo-me para falar bem perto do seu ouvido: — Cão que ladra não morde!

Ele segura meu braço e abre um sorriso – puta merda! – cheio de malícia.

— Eu morderei, Maria Eduarda, e o farei tão gostoso que você pedirá mais!

Olho para sua mão em meu braço, e ele me solta. Respiro fundo para controlar o formigamento em meu corpo e a tremedeira em minhas pernas e saio do restaurante o mais rápido possível.

— Deseja que traga seu carro, senhorita? — o manobrista me aborda na porta do restaurante.

— Po-por favor! — Merda! Respiro fundo mais uma vez. — Sim, obrigada.

Não é possível que esse homem ainda continue mexendo com minha libido desse jeito! Durante todo o tempo em que estávamos lá medindo forças, essa tensão sexual nunca deixou de pairar entre nós. Acho até que o Millos percebeu isso!

Droga! É o Theodoros Karamanlis, Duda! Inimigo, o diabo em pessoa, que quer fazer de tudo para destruir tudo o que você tem, tudo pelo qual você lutou para manter depois que seu pai se foi!

Claro que seria muito fácil aceitar uma oferta melhor, pagar as dívidas e abrir um “bistrô”, como ele mesmo aconselhou, mas só eu sei o quanto meus pais amavam aquele pedacinho no meio da Vila Madalena, o quanto se orgulhavam de tê-lo comprado juntos, com muita luta e esforço.

Não vou deixar que um homem arrogante ponha tudo ao chão e destrua todas as lembranças que tenho daquele lugar. Não só do Hill, mas da casa onde mamãe e papai passaram seus últimos momentos antes de me deixarem. Não! De jeito algum eu irei permitir isso! Se precisar vender, o farei para alguém que se comprometa a manter o imóvel, e não para uma empresa que quer demolir tudo para erguer ali algum prédio ou shopping!

Entro no carro e dirijo para casa, ainda sentindo o toque dele reverberando pelo meu corpo, sua voz arrepiando os pelos da minha nuca e seu olhar... Há algo naquele olhar que me desperta lembranças, talvez pela tonalidade – a mesma do mediterrâneo –, ou o jeito de me olhar como se estivesse realmente faminto.

Chego a casa e encontro tia Do Carmo jantando sozinha na sala e assistindo à novela.

— Ué, não ia jantar fora? — questiona quando ataco suas panelas.

— Ia, mas o lugar estava tóxico demais para meu estômago. — Ela franze a testa, sem entender, e eu rio. — A companhia era desagradável.

— Ah, sim.

— Cadê a Tessa? — pergunto enquanto me sirvo de deliciosas costelinhas de porco e angu, sentindo meu estômago roncar e minha boca salivar. Adoro a comida dela!

— Chegou da escola, fez dever, tomou banho, jantou e dormiu. — Rio do relatório completo. — Aquela menina é um anjo!

— Sim, ela é! — concordo, cheia de orgulho.

— Descobriu, pelo menos, o que aquele pessoal da Karamanlis queria?

Sento-me ao seu lado no sofá com o prato na mão.

— Aumentaram a proposta! — Dou de ombros. — E acabei conhecendo o CEO, Theodoros Karamanlis.

— Hum, já vi fotos dele naquela revista que assino. — Rolo os olhos, pois sempre achei um desperdício de dinheiro comprar uma revista que fica cobrindo a vida de artistas e da alta sociedade paulistana. — O homem é um pedaço de mau caminho.

Acompanho-a em suas risadinhas, achando uma graça que minha tia, solteirona e virgem, fale isso de um homem. Eu nunca soube o motivo pelo qual ela nunca quis se casar, nem mesmo namorar. Perguntei a ela se algum dia teve pretensão de ser religiosa, mas negou, dizendo que não tinha o dom.

Tia Do Carmo é uma caixinha de segredos bem guardados, essa é a verdade. Do mesmo jeito que ela adora acompanhar a vida alheia nas revistas e nos programas de fofocas, não abre a boca para falar da sua, nem mesmo para mim.

Ela é como uma mãe para mim e cuida de Tessa com tanto amor e dedicação que eu não poderia pensar em uma avó melhor para minha menina, mas não quer saber de arrumar alguém, nem mesmo para se distrair um pouco.

Há uns dois anos veio trabalhar conosco um senhor muito bem-apessoado, Joaquim, que ficava na recepção. O homem arrastou um bonde pela minha tia – que é uma linda senhora de 55 anos –, mas ela nem ao menos lhe deu um segundo olhar.

Enfim, eu aprendi a aceitar que ela é feliz assim, mesmo porque não estou indo para um caminho diferente, pois mal tenho tempo para namorar alguém. Além do meu namorado francês, tive mais uns dois já aqui no Brasil. Claro que já tive algumas transas avulsas, sem nenhum compromisso, mas já faz tanto tempo que nem isso acontece que, se hímen se regenerasse, o meu certamente já estaria completo de novo.

— Ele é bonito, sim, mas muito arrogante! — informo, tentando não demonstrar o quanto fiquei interessada no Theo. — De qualquer forma, recusei mais uma vez a proposta.

— Você tem certeza disso, minha filha? O sumiço do agiota tem tirado meu sono. Você sabe como essas pessoas são, por mais que sejam conhecidos. Além do mais, te vejo trabalhar como louca e entregar o dinheiro todo para custear essas dívidas. — Ela aponta para a casa, cheia dos mesmos móveis da época do casamento dos meus pais. — Duda, a gente mal tem se aguentado em pé!

— Não nos falta nada, tia!

— Não, Duda, não estou me queixando. Realmente não nos falta nada, temos comida, um teto, e Tessa pode estudar em uma boa escola, mas vale a pena se sacrificar do jeito que está fazendo? Você não tem tempo nem para namorar!

Gargalho.

— Essa é uma das minhas menores preocupações, tia.

— Eu sei, filha, e é isso que me preocupa. — Passa a mão no meu rosto, e fecho os olhos, gostando do carinho. — Há muitos anos você só cuida das pessoas, Duda. Assume responsabilidades demais e esquece de cuidar de si mesma.

— Estou bem! — afirmo, mas meu coração entende e concorda com ela. — Assim que terminar de pagar tudo o que devemos, vou poder cuidar de mim também, não se preocupe.

Ela suspira, resignada, pois me conhece bem e sabe que sou muito teimosa. Decidi lutar até o fim para manter a única coisa que me resta e não vou descansar até conseguir estar em paz com isso, mesmo que um certo CEO muito gostoso me encha de ameaças.

Inclusive uma que pareceu mais uma promessa...


Maria Eduarda passa por mim deixando para trás o rastro delicioso do seu perfume, agitando meu corpo. Tenho vontade de segurá-la por mais tempo, de sair com ela para algum lugar onde possamos dar vazão à atração que sentimos um pelo outro desde que nos encontramos no bar do restaurante.

Todavia, não dá para simplesmente ignorar quem somos!

Fico um tempo de pé, mesmo depois de ela já ter saído do restaurante, raciocinando quais seriam as consequências se Millos simplesmente não tivesse aparecido. Olho para meu primo, tranquilo, tomando sua cerveja e provavelmente a enchendo de defeitos.

— Isso foi a pior merda que você já aprontou! — digo, atraindo a sua atenção. — E olha que você tem um longo currículo de merdas!

— Vá se foder, Theo! — Fica sério. — Eu só estava tentando um acordo entre nós.

Rio, seco, não achando nenhuma graça e não comprando nem um pouco essa conversa mole de “acordo”. Millos nunca dá ponto sem nó e me conhece bem para saber que Duda seria extremamente atraente para mim. O desgraçado fez de caso pensado, só nunca irá admitir.

Pego o celular, que deixei em cima da mesa, e, sem nenhuma palavra ou mesmo um olhar, afasto-me de Millos, indo em direção à saída do restaurante.

Ouço-o me chamar, mas não me segue, e ando decidido até a calçada, encontro o manobrista e peço meu carro. Não tenho mais clima para jantar, muito menos para olhar aquela cara debochada. Bufo, frustrado demais, com fome e com o desejo sexual insatisfeito.

Porra!

Já no carro, não dirijo diretamente para casa, mas a esmo, pensando na loucura que foi o começo da noite. O conhecimento de quem era a mulher ao meu lado deveria ter sido suficiente para aplacar minha vontade de devorá-la toda, mas nem mesmo a diminuiu.

É uma das raras atrações fortes que já me aconteceram. Geralmente não é assim, é mais um jogo de disponibilidade e vontade, uma mulher gostosa e interessante e pronto! Raramente sou atraído a alguma como aconteceu com Maria Eduarda hoje. Eu olhei para ela e a quis.

É primitivo demais até para mim, mas aconteceu. Quem ela era, o que fazia ou mesmo sua disponibilidade – embora, se fosse casada, não rolaria – não importaram para mim naquele momento. Depois, a conversa, o sorriso, o jeito como o corpo dela reagiu ao meu, tudo isso só potencializou o que foi sentido ao primeiro olhar.

Duda Hill!

Paro o carro em frente ao boteco antigo na Vila Madalena, olhando sua fachada recentemente reformada, o sobrenome da família dela na entrada e algo que nunca me chamou atenção antes, um segundo andar com janelas grandes de vidro, seguindo a mesma arquitetura do bar, tijolos à mostra e cimento queimado.

Franzo o cenho ao me lembrar do dia em que estive no local, pois não vi nenhum mezanino ou mesmo escada de acesso. Há uma porta ao lado da fachada principal, pintada com outra cor, mas que não pertence ao prédio vizinho, já de propriedade da Karamanlis.

Ela mora em cima do bar? Novamente olho para o alto e, no exato momento, uma luz se acende em um dos cômodos, iluminando a janela com cortinas claras. Um apartamento!

Como eu nunca soube disso? Para mim, o imóvel era puramente comercial, como todos os outros do entorno, nunca sequer desconfiei que a irritante mulher pudesse morar no local.

Uma sombra passa pela janela, e meu pau pulsa na calça só pela possibilidade de ser Maria Eduarda se preparando para dormir. Fecho os olhos, aproveitando a total falta de movimentação na rua – ao que parece ninguém funciona às segundas-feiras – e imagino como ela seria apenas vestindo uma calcinha ou até uma camisola sexy.

Toco-me sobre a calça, sentindo como já estou em completa ereção, então abro os olhos e xingo, voltando a pôr o carro em movimento e saindo daqui o mais rápido possível. Eu pareço um maldito stalker tarado, parado em frente ao que suponho ser o apartamento dela e fantasiando.

Caralho!

 

 

Termino de assinar o último documento e o entrego para Rômulo, que sai apressado a fim de entregá-lo para o jurídico. Temos um maldito setor de correspondência e vários boys para esse trabalho, mas meu assistente é tão controlador com suas responsabilidades que ele mesmo gosta de entregar os documentos e de pegar a assinatura de quem os recebeu no caderno de protocolo antes de os colocar no sistema.

Eu sei que é motivo de piadinha aqui seu jeito burocrático, mas é exatamente por isso que confio nele para lidar com minhas coisas na empresa. Rômulo é responsável, organizado e sua “burocracia” nada mais é do que uma forma de nos garantir, proteger nosso trabalho e a companhia.

Gemo, colocando a mão na têmpora, amaldiçoando-me por ter consumido uma garrafa inteira de uísque ontem, depois que cheguei a casa, frustrado demais sexualmente e puto comigo mesmo por estar me sentindo assim pela Duda Hill.

Troquei mensagens com Millos, ameaçando sua integridade física por conta da palhaçada de ontem. Claro que ele fingiu não ter feito de propósito, mas se esqueceu de que o conheço bem. Eu só não sei o que ele pretende ainda. Contudo, não há dúvidas de que está tramando algo.

Uma notificação de mensagem chega ao meu celular. Pego-o, lendo a mensagem deixada pela Viviane acerca de um concerto musical e uma exposição de gravuras que irá acontecer esta semana. Dispenso, sem nenhuma vontade de comparecer, mas ela insiste.

 

 

 

Sim, ela tem razão!

Preciso estar focado no que realmente é importante para mim nesse momento. Uma atração como aconteceu entre mim e Maria Eduarda ontem é garantia de uma foda inesquecível, mas só isso, não resolve meu problema, e o tempo está se encurtando cada vez mais. Preciso de uma esposa e de um filho!

 

 

 

Envio a mensagem para ela e me recosto na cadeira, olhos fechados e dedos nas têmporas, querendo a porra de um analgésico para poder trabalhar sem que pareça que está ocorrendo alguma demolição na minha cabeça. Não devia ter bebido tanto sem ter comido nada!

Cheguei a casa já arrancando a roupa e entrando no banho. Demorei por lá, esperando que os jatos fortes de água fria abaixassem a temperatura do meu corpo e trouxessem minha racionalidade de volta. Não costumo me impressionar tanto assim por uma mulher; poucas foram as que mexeram comigo dessa forma.

Olhei para baixo, e lá estava a evidência de que nem mesmo a água iria resolver o problema. Encostei a testa na parede fria e toquei meu pau, gemendo com a sensação, pronto para gozar apenas com os estímulos da noite.

Eu gosto muito de trepar, adoro ser masturbado por mãos femininas – às vezes, pés também –, mas nunca fui um punheteiro. Nunca! O prazer de me tocar nunca se comparou ao de ser tocado, por isso, quase não me masturbo. Porém, ontem, não teve jeito! O cheiro do perfume dela estava impregnado em minhas narinas, a sensação de sua pele se arrepiando sob meu toque, o sorriso, os olhares... Em poucos minutos gozei como um louco, sujando a parede do boxe, gemendo dolorosamente de vontade de senti-la.

Pela primeira vez em muito tempo, os cabelos cor-de-rosa não apareceram durante meu gozo, e amaldiçoei essa percepção. A verdade é que troquei o objeto da minha fantasia. No entanto, diferentemente da garota de anos atrás, agora eu tenho um rosto, um nome e sei onde mora.

— Estou fodido! — falo em voz alta, achando que estou sozinho no escritório.

— Vou pegar um comprimido, chefe! — a voz de Rômulo faz com que eu me aprume, arregalando os olhos em sua direção.

— Mas que porra, Rômulo! Como você consegue ser tão silencioso às vezes? — digo emputecido por estar fantasiando com a mulher de novo em pleno horário de trabalho e sob as vistas do meu assistente.

— Eu percebi que o doutor está com dores de cabeça. — Ele vasculha sua bolsa. — E... Ah! Achei! — Sorri como se tivesse inventado a fórmula da água. — Paracetamol!

Ele vai até o aparador onde ficam as bebidas a fim de pegar um copo d´água para eu tomar com o comprimido, porém, peço que me traga café.

— Tem certeza? — titubeia.

— Vai acelerar a absorção e fará efeito mais rápido.

— Chefe, isso é perigoso!

— Anda logo, porra, tem uma britadeira no meu cérebro!

Ele fica nervoso, suas mãos tremem, fazendo o café respingar sobre o móvel, e eu bufo de impaciência. Rômulo é prestativo, um ótimo funcionário, mas me questiona muito, além de ser um tanto desastrado.

Mal engulo o comprimido, e o traidor, quer dizer, Millos entra no escritório.

— Tive uma ideia e vim dividi-la com você. — Olha a xícara na minha mão. — Cheguei em boa hora! Eu gostaria de um café também! — pede ao Rômulo, e eu fecho a cara.

— Esse não é o trabalho dele — corto-o. — Rômulo, vá até o jurídico e veja se Kostas já conseguiu adiantar a papelada que faltava.

— Sim, doutor! — O assistente sai correndo da sala.

— Quer a porra do café? Pegue você mesmo! Não dê ordens ao meu assistente!

Millos levanta as mãos pedindo calma e vai até a máquina, escolhendo um sabor e um tipo de preparação antes de voltar para próximo de mim.

A dor de cabeça aumentou um pouco, mas espero que, com o remédio do Santo Rômulo, eu melhore em breve. Além disso, não quero dar bandeira de que enchi a cara na noite passada e suportar as provocações de Millos.

— Qual foi a magnífica ideia que o fez levantar a bunda de sua cadeira e vir até aqui encher meu saco?

Millos ri.

— Estamos de bom humor hoje, hein? — Pega o café e se senta. — Você quer tirar a Duda Hill do imóvel, não é? — Franzo o cenho para ele, achando desnecessário responder, esperando que tenha sido uma pergunta retórica, para o bem de sua inteligência. — Já reparou que o único pub daquela quadra é o dela?

— Você comeu merda no café da manhã? — pergunto, e ele ri. — Claro que ele é o único, os outros imóveis já estão todos vazios porque compramos todos!

— Do outro lado da rua têm duas casas de show, uma boate de strip de luxo, dois restaurantes de comida japonesa e uma pizzaria famosa. — Ele cruza os braços. — Esse foi um dos motivos de o pub ter ficado tão movimentado, a diversidade de empreendimentos próximos. É uma área à qual os jovens vão para se divertir, e ela conseguiu agregar boa comida e boa música em um só local.

Faz sentido, claro. Ela aproveitou o movimento já existente e ofereceu um diferencial, um lugar para dançar, curtir com os amigos, arranjar companhia e ainda comer seus bolinhos famosos e premiados. Sorrio de leve, sentindo-me levemente excitado por ela ter tanto tino. Gosto de mulheres inteligentes!

— Você a isolou no momento em que comprou todos os imóveis e mandou os estabelecimentos fecharem. Ela é a única opção da área...

Ele se interrompe ao ouvir uma batida à porta.

— Pode entrar — autorizo, sabendo que não é o Rômulo.

Kostas aparece, seu tamanho e largura preenchendo a entrada da sala, o olhar azul e arrogante, o sorriso debochado e os cabelos negros penteados para trás com uma espécie de pomada de brilho molhado. Meu irmão é a cópia do nosso pai, e isso chega a me causar arrepios.

— Bom dia! — cumprimenta Millos e se senta ao seu lado. — Theodoros, tenho uma notícia boa e uma ruim, qual quer primeiro? — Dá risadas debochadas, e Millos o segue.

Isso é sério? Levanto uma sobrancelha, olhando-o carrancudo.

— Fala logo, Kostas! — ordeno.

— Bem, já que você não tem nenhum senso de humor. — Pisca para Millos. — Nós já sabíamos disso, mas não custava tentar! — Meu primo assente, e eu bufo de raiva. — Vou começar pela boa. Já ingressamos com o pedido de execução da nota promissória.

— Já não era sem tempo! Preciso comemorar por você ter conseguido fazer seu trabalho?

O desgraçado ri.

— A ruim, no entanto, também é sobre isso. — Ele me estende umas folhas. — Duda Hill deu entrada no inventário judicial após a morte do pai.

Leio os papéis, mas pouco entendo de legislações e procedimentos legais, então espero que ele pare de fazer cu doce e prossiga com suas explicações.

— Que merda! — Millos exclama, e isso é o suficiente para me deixar tenso.

— O que isso significa, porra?

Kostas se levanta, anda até o aparador e se serve de água.

— Você poderia ter bourbon aqui — comenta como se estivesse aqui para uma visita social. Xingo-o. — O processo não cumpriu nem metade de seu caminho natural, caro irmão. Já está aberto há quase quatro anos e pouco avançou, e isso porque tem apenas um imóvel a ser herdado por uma única herdeira. — Ele ri. — Adivinha qual?

O Hill! Merda!

— O que isso significa em nossos planos de adquirir aquela pocilga? — Irrito-me.

— Bem, assim que for declarado o débito por causa da confissão de dívida – a promissória –, nós vamos ser credores do espólio. — Bufo pelo uso dos termos técnicos desnecessários.

É Millos quem vem ao meu resgate.

— O homem está morto, Theo, não temos como cobrar dele, apenas dos bens que ele deixou, entendeu? Isso obriga a Duda a vender ou entregar o Hill em troca da dívida. — Sorrio, achando a notícia ótima. — Mas somente quando o inventário fechar, o que pode levar anos ainda.

— O quê?! — Levanto-me, esquecendo por completo a dor de cabeça.

— É isso, caro irmão! — Kostas dá de ombros. — Seja bem-vindo à realidade da justiça brasileira, em que inventários simples duram, em média, de oito a dez anos!

— Não há outra forma de recebermos?

— Não. — Kostas ri, satisfeito. — A dívida está no nome do pai dela, então só alcança bens deixados por ele.

— A vantagem é que ela não pode vender para outro também, não é? — Millos questiona.

— Teoricamente, não, mas se o comprador não se importar em não ter a escritura, ela consegue vender, sim. Tem muita gente que faz isso. Não é legal, mas faz.

— Puta que pariu! — explodo, virando-me em direção à vidraça.

— O jeito é tentar comprar, Theo, e alegar que somos credores e que, por isso mesmo, ela só pode vender para nós — Millos fala, e Kostas concorda.

— Ela não vai vender, disse ontem!

Sou um homem muito teimoso, sempre fui, e reconheço um igual de longe! Quando Duda Hill disse ontem que não ia vender para a Karamanlis, vi a teimosia brilhando em seus olhos.

— Além do mais, pelo que soube, os negócios vão bem — Kostas complementa, deixando-me ainda mais raivoso. — Ela não precisa vender.

Olho para Millos, e ele arregala os olhos ao ver a determinação nos meus.

— Fale de sua ideia!


O despertador me acorda pela segunda vez no dia. Tenho vontade de esconder a cabeça debaixo do travesseiro e fingir que não estou ouvindo, deixar que entre em modo “soneca” e que, com isso, eu ganhe mais alguns minutos na cama.

Suspiro, abro os olhos lentamente e pego o maldito telefone para cancelar o despertador. Ganhar minutos na cama significa perder minutos do dia, e isso definitivamente é uma coisa à qual não posso me dar ao luxo. Tenho que trabalhar, organizar minha cozinha e ser a primeira a estar nela quando os demais chegarem.

Espalho-me na antiga cama de casal dos meus pais, abrindo os braços em forma de cruz e esticando todo o meu corpo. Carreguei tanto peso hoje que, nessas horas, sinto falta de não ter um homem fortão trabalhando comigo nesse negócio pesado que é transportar as compras. Tento relaxar meus músculos, fecho os olhos e deixo a mente vagar por um segundo.

Em meio aos pensamentos de paz, natureza e tranquilidade, lindos olhos azuis aparecem, sedutores, emoldurados por cílios longos e escuros que fizeram sombra em seu rosto quando ele olhou minha pele se arrepiando ao seu contato. No mesmo momento sinto um gelo na barriga – desses que sentimos quando descemos uma ladeira inesperadamente de carro –, e um tremor perpassa pelo meu corpo, desde as pontas dos dedos até a raiz dos cabelos.

Emito um grunhido de irritação por, mais uma vez, Theodoros Karamanlis se infiltrar nos momentos em que busco relaxamento e pensamentos positivos para enfrentar o dia. Tem sido assim desde aquele maldito jantar, há quase uma semana!

Sento-me, notando o quanto estou suada, pois há alguns meses meu ar-condicionado do quarto teve uma pane elétrica, e não tive nem tempo, nem dinheiro para chamar a assistência técnica. O verão chegou com tudo este ano, e as temperaturas estão ameaçando bater recordes desde o final da primavera. Vou precisar arrumar o ar ou então ir dormir no quarto da tia Do Carmo.

Confiro as horas, meio-dia e alguns minutos, e sigo rápido para tomar a terceira chuveirada do dia!

O expediente no Hill durou até às 2h35 da manhã, quando gentilmente convidamos nosso último cliente a sair. Passei a encerrar mais cedo em dias de semana, pois sábado e domingo vamos até às 4h da manhã. Fechei a cozinha para pedidos exatamente à 1h para que desse tempo de todos os quitutes ficarem prontos e nossos clientes irem embora até às 2h30. Entretanto, sempre fica um agarrado a uma cerveja num canto, sempre!

A música ao vivo, de terça a domingo – menos quando temos campeonatos de futebol, pois aí na quarta-feira transmitimos os jogos – anima o pessoal e por isso mesmo precisa ser encerrada uma hora depois do fechamento da cozinha. Há toda uma preparação para que os clientes entendam que a hora de “dar tchau” chegou.

Hoje, sábado, é o dia mais desgastante para mim, pois a cozinha irá funcionar a todo vapor até às 3h30 da manhã, aceitando pedidos até uma hora antes disso, e o bar só será fechado às 4h. E adivinhem quem fecha o bar? Exatamente, eu!

Ou seja, terei 14 horas de trabalho incessante pela frente, a partir das 2h da tarde, sendo que noite passada não aguentei ficar acordada para ir até o CEAGESP, dormi às 3h e acordei às 4h, correndo para poder pegar um pouco do pescado bom, pois a venda para o atacado começa na madrugada e vai até às 6h da manhã. Descarreguei tudo no restaurante e voltei para a cama às 9h, por isso, sim, estou acordando ao meio-dia!

Saio do banho e já coloco a calça preta – uniforme do Hill –, uma camiseta branca por causa do calor e calço chinelos. Separo o uniforme, que minha tia já deixa passado, a dolma, o avental e meus turbantes. Deixarei os cabelos secarem para depois fazer um coque alto, bem firme, para que nenhum fio possa se desprender.

— Boa tarde! — tia Do Carmo me cumprimenta assim que apareço na sala. — Vai almoçar agora?

— Vou. — Suspiro, sentando-me. — E a Tessa?

— Acabou de ir para o inglês com a Marcela e a Diana. — Assinto, lamentando não ter me encontrado com ela aqui, mesmo que depois dê uma xeretada na minha cozinha.

Mal tenho tempo para ela! Sinto-me mal por isso, tento compensar, mas queria ser mais presente e sei que Tessa sente essa necessidade tanto quanto eu. Porém, minha menina já é tão madura que entende que essa rotina louca na qual vivo não é por minha escolha.

Tia Do Carmo me serve de sua comida simples, bem temperada e absurdamente viciante, e eu não penso em mais nada a não ser apreciar a iguaria. Ao longe, enquanto como, ouço o barulho da máquina de costuras dela, em seu quarto, trabalhando sem parar. Ela é teimosa e está sempre aceitando encomendas de reparos ou confecção de roupas, principalmente para o pessoal da igreja que frequenta.

Somos farinha do mesmo saco, teimosas ao extremo, e ela me culpa por eu recriminá-la por querer ajudar. Não é só por teimosia ou orgulho que peço tanto a ela para que se poupe, pois se aposentou há alguns anos por invalidez exatamente por passar horas e horas costurando desde menina e com isso ter ganhado algumas hérnias de disco ao longo de sua coluna.

A verdade é que, se não fosse pelas dívidas, eu poderia dar uma vida bem melhor a elas. O Hill vai muito bem, cada vez mais conhecido, atraindo clientes para essa área que nem é tão famosa por ter bares. Contudo, o boca a boca tem se espalhado pela cidade e trazido com ele nossos clientes.

Termino de comer, lavo a louça e termino de me arrumar para descer e só voltar no meio da madrugada. Faço uma oração curta antes de descer e grito para tia Do Carmo:

— Tia, estou no Hill se precisar de algo!

— Vai com Deus, minha filha! — grita de volta, cessando a costura. — Tente descansar em alguns momentos!

Apenas rio, porque a cozinha é uma correria aos finais de semana, e é impossível me sentar por uns minutos sem que alguma coisa desande, já que atendemos em média 400 clientes por sábado e uns 350 no domingo. O volume de comida que processamos é tão grande que fazemos compras nas madrugadas de terça, quinta e sábado.

Poderia até ir ao CEAGESP menos vezes, mas prefiro trabalhar com os ingredientes o mais frescos possível e, graças à câmara fria que instalamos, já me dei ao luxo de parar de ir todas as madrugadas. Vou sempre às terças e sábados e deixo Manola se virar na quinta-feira. A mulher adora ir para lá e demora o dobro do tempo que eu levo, sempre conversando com os comerciantes, pechinchando horrores e fazendo amizades. Como ela é sozinha, está sempre com o caderninho de telefone preenchido para quando quer companhia, e como trabalha como louca aqui, seu lugar de fazer contatos é lá na central de abastecimento.

Confesso que me divirto muito com suas histórias, assim como todo o resto de nós da cozinha.

Abro a entrada principal do bar, pois, infelizmente, quando papai montou o local, não pensou em saída de emergência, mesmo porque na sua época era todo aberto, então, quando transformei o boteco em um pub, tivemos que sacrificar a porta usada para carga e descarga e transformá-la para que estivéssemos em dia com a legislação dos bombeiros e da própria prefeitura.

Sempre que entro, já deixo a porta de aço aberta e tranco somente a de vidro, deixando um pouco de sol entrar através das paredes de vidro temperado.

Sigo diretamente para a cozinha, mas anotando mentalmente tudo o que precisará ser limpo com mais afinco, resultado da noite anterior. No bar, sempre tenho a satisfação de passar e ver o asseio do Kiko, seus utensílios todos nos lugares, limpos e secos, as chopeiras sem nenhum traço de respingo de chope, o chão brilhando.

Abro a cozinha, e o cheiro dos produtos de limpeza que usamos há algumas horas, assim que encerramos as atividades, recepciona-me. Faço meu coque, como sempre, ponho o turbante, lavo as mãos e começo a trabalhar, colocando alguns alimentos de molho, descongelando outros e conferindo as receitas, bem como o funcionamento de todos os equipamentos.

Ouço o barulho da porta, e uma risada preenche o lugar, indicando que Manola chegou junto ao seu fiel escudeiro, Arnaldo.

— Boa tarde, chef! — ela me cumprimenta, indo para o banheiro dos funcionários. — Hoje o Naldo está impossível!

— Você é que não aguenta ouvir umas verdades, Manola. — Arnaldo vem até onde estou e me dá um beijo na testa. — Carinha de cansada hoje, boneca!

— Dia de compras... — Aponto para a caixa de camarão no gelo que tirei da câmara para ele limpar. — Divirta-se!

— Ai, minha santa protetora dos dedos furados! — geme.

— Use luvas! — Manola grita, vindo do banheiro trajando o uniforme, seus cabelos ruivos presos em uma trança e seu turbante cheio de beijos já na cabeça. — No dia em que você perder um dedo, ainda processa a Duda!

— Deus me livre, Manola! — Bato na bancada de inox, e ela ri.

— É na madeira, querida! — Joga um beijo para mim e as luvas de fio de aço para o Arnaldo. — Não vai te proteger contra o camarão, mas quando for limpar as carnes, faça o favor de usá-las!

— Oui, chef! — ele debocha.

— Abusado! — diz, pegando as panelas guardadas e já as colocando no fogão. — Vou adiantar os molhos enquanto a Ana não chega. Ela ia levar o filho ao dentista hoje.

— Eu sei — concordo ainda lavando as folhas e temperos. — Cláudia também vem mais tarde hoje, mas adiantou muito suas sobremesas ontem. Trabalhou dobrado!

— Estou louca por aquela torta de duas mousses que fez! — Geme e estala a língua. — Adoro maracujá com chocolate, e a danada não me deixou pegar nem uma provinha!

— Diabetes te diz algo? — Arnaldo alfineta.

— Tenho pré, idiota! — Ressalta: —Pré-diabetes!

Rolo os olhos, já antevendo uma discussão sobre a quantidade de açúcar que ela não deve ingerir.

Minhas tardes são sempre assim, entre o trabalho na preparação para a noite e as conversas, discussões ou músicas dos meus colegas de trabalho. É bom, faz o tempo passar depressa e não deixa o serviço tedioso.

— Terminou aquela receita nova que estava escrevendo? — Arnaldo me pergunta um tempo depois.

— Ainda faltam uns ajustes, mas estou sem tempo para testar. — Dou de ombros. — Final de ano, né?

— Por falar nisso... — Manola se aproxima. — Como andam as encomendas? O pessoal gostou do menu deste ano?

— A Hana me entregou ontem uma pequena lista de encomendas. Ao que parece, o menu foi bem aceito, sim.

Manola bate palmas, e eu sorrio aliviada.

Todo ano abrimos o Hill e servimos pequenas ceias para o pessoal que não quer ter trabalho, mas percebemos que seria mais interessante, para nós e para nossos clientes, se houvesse um menu prévio e as encomendas entregues em casa.

Como começamos o delivery este ano, programei um menu com três tipos de proteínas – peru, bacalhau e presunto – e vários tipos de acompanhamento. As variações vão desde a mais simples e barata até as sofisticadas, dignas de um chef de cuisine, mais caras.

Por incrível que possa parecer, o menu luxo tem vendido mais do que o comum, e isso, além de me dar muito orgulho de ver minhas receitas tão bem aceitas, ainda me concede maior lucro.

Por conta desse menu especial, não abriremos o Hill para o público na véspera do Natal, daqui a alguns dias, e nem no dia, retomando as atividades somente no dia 26 de dezembro. Teremos que trabalhar muito para atender aos pedidos, mas tenho certeza de que daremos conta e que em pouco tempo encomendar a ceia no Hill será uma tradição.

É preciso manter a fé depois de tudo o que já passei na minha vida; sem ela, eu esmoreço. Não digo propriamente uma fé religiosa, mas a de desejar boas coisas, pensar positivo, manter a chama da esperança acesa de que tudo vai dar certo.

— Boa tarde! — a voz de Tessa faz meu sorriso se agigantar, e paro o que estou fazendo para ir abraçar minha pequena menina. — Ei, mãe, não!

Ela tenta correr ao ver minhas mãos molhadas, mas, quando a alcanço, explode em gargalhadas e me abraça apertado.

— Estava com saudades! Como foi a aula?

— Legal! — Faz um joia com a mão. — Ei, tia Manola!

— Tia uma ova! — Manola repreende, mas ri. — Sou no máximo sua irmã mais velha, pirralha!

Tessa gargalha de novo e faz gesto de que Manola é maluca, rodando o indicador ao lado da cabeça, e Arnaldo libera sua estridente gargalhada ao concordar com a menina.

— Quer alguma coisa especial daqui hoje? — pergunto, mas sem muita esperança.

— Não, tia Do Carmo disse que vai fazer lasanha à noite, e você não faz lasanha aqui!

— Não faço! — Cutuco suas bochechas com os indicadores bem onde elas formam covinhas quando Tessa sorri. — Cláudia fez uma torta especial. Vou levar para você mais tarde.

— Tem chocolate? — indaga animada.

— Tem, sim, pirralha! — é Manola quem responde. — E se ela tiver direito a um pedaço, eu, como irmã mais velha, também tenho!

Tessa mostra a língua para ela, Arnaldo ri, e eu balanço a cabeça, pois as duas parecem realmente irmãs, brigam e implicam uma com a outra, mas se adoram. Minha pequena se despede, e a acompanho até a entrada do bar, só voltando para a cozinha ao vê-la fechar a porta do acesso ao nosso apartamento.

Deus do Céu, como é bom ver minha menina feliz!

A segurança e a felicidade de Tessa são minhas prioridades, e vê-la crescendo tendo essas duas coisas me dá ânimo para aguentar mais um dia de trabalho e não pensar em coisas ruins. Nem mesmo nos Karamanlis, ainda que um deles tenha mexido comigo de tal forma que volta e meia está nos meus pensamentos – e não pelo motivo pelo qual deveria estar!


— Me and Mrs. Mrs. Jones, Mrs. Jones, Mrs. Jones, Mrs. Jones, we've got a thing going on. — Dedilho o arranjo ao piano, sentindo o peso dessa canção sobre mim e volto a cantar: — We both know that it's wrong, but it's much too strong to let it go now.3

Há anos não toco essa música tão famosa na voz do Billy Paul, mas algo me impulsionou a fazê-lo esta noite. Nada específico, creio eu. Contudo, meu interior está conturbado como há muito tempo não o sinto.

O paletó do terno que vesti hoje está em cima de uma das cadeiras da sala de jantar, a gravata precariamente pendurada sobre a borda do piano, enquanto estou aqui, camisa social semiaberta, mangas arregaçadas, uma garrafa de uísque em cima do instrumento e meu copo já quase vazio. Não parei de tocar desde que cheguei do concerto musical e apresentação de novos artistas de gravuras que ocorreu em uma galeria de artes aqui perto.

A verdade é que, desde quando Viviane me mandou o convite, não tive nenhum interesse em ir, embora fosse algo que geralmente chamaria minha atenção. Tive uma semana fodida demais, e não havia nenhum clima para entretenimentos. Tudo o que eu queria era uma massagem gostosa e uma trepada de alívio.

Termino a música e recosto a cabeça nas teclas do piano, quase não me reconhecendo. Não estou normal! Talvez essa época do ano, próxima demais do Natal, mexa comigo, evoque sentimentos que há muito tempo pensei ter perdido.

Sinto falta da Vanda nesta casa! Olho em volta e bebo o restante da dose de uísque. Tudo está tão vazio, tão silencioso, tão... estéril. Não tenho mais ninguém me esperando quando chego do trabalho, nenhum cheiro de tempero quando entro na cozinha – ou mesmo de café, porque o dela é incrível –, não há conversas amenas.

Não há nada!

Balanço a cabeça, irritado com o rumo dos pensamentos, com a energia negativa deles dentro de mim. Maldita semana!

O desastre começou na segunda-feira com aquele encontro deliciosamente desastroso com Duda Hill; depois aumentou com a notícia que o filho da mãe do Kostas nos deu sobre o imóvel onde funciona o Hill Wings.

A proposta de Millos ressoa em meus ouvidos, e, por mais que eu não ache muito sentido no que me propõe, penso se não é um caminho a seguir. Nunca fui um homem de indecisões. No entanto, entendo que, nesse assunto em particular, não posso me mover por impulso.

Volto a escutar a voz de meu primo como se estivesse aqui e o ouço apresentar todos os motivos para embasar sua ideia.

— Nosso erro foi deixá-la sozinha naquela rua, sem nenhuma concorrência! — argumentou.

— Quando fechamos a compra do último imóvel, aquilo lá ainda era só um pé-sujo com meia dúzia de clientes bêbados — justifiquei em contrapartida. — Não tínhamos com o que nos preocupar!

— Esse foi o erro do coelho naquela fábula — Kostas ironizou. — A arrogância do “já está no papo!”.

— Você falando de arrogância? — Ri, e Millos disfarçou seu riso também. — Não tem se olhado no espelho, não?

Kostas apoiou seu indicador logo abaixo da sobrancelha, ao lado do olho e me deu um meio sorriso e um olhar de desprezo. Ergui minha sobrancelha e balancei a cabeça, enfrentando-o. Se o bostinha achava que iria me intimidar como faz com seus advogados, estava muito enganado!

— Já terminaram de testar a testosterona de ambos? — Millos reclamou. — Minha ideia faz todo sentido! Se alugarmos algumas lojas próximas ao estabelecimento dela, damos a concorrência necessária para que recue um pouco no crescimento que vem tendo!

— Sabe o que não entendo? — Kostas interferiu. — Se ela vem fazendo tanto sucesso quanto vocês gostam de afirmar, por que não quitou a maldita promissória?

— Talvez não tivesse tido o suficiente ainda, pois, como o “agiota” mesmo informou, ela andava pagando os “juros” para que ele continuasse paciente — respondi. — Ademais, ela não poderia pegar um empréstimo para quitar uma dívida como essa.

— A verdade é que o pilantra nunca iria liberá-la da dívida. — Concordei com o ponto apresentado pelo Millos. — Gastamos quase o dobro do que a promissória realmente vale, e ele já tinha recebido anos de juros da Duda. O homem é um espertalhão!

— Então você acha que, colocando mais alguns bares naquela rua, teremos mais chances de quebrá-la? — inquiri. Millos assentiu, mas vi um leve sorriso no rosto de Kostas e, sinceramente, não gostei dele. — Como controlaríamos isso?

— Kostas! — Millos aponta. — Podemos amarrar bem o contrato de aluguel, especificando a atividade que o locador deve exercer.

— Isso é legal? — perguntei.

— Não posso dizer no contrato o que ele deve vender, mas posso amarrá-lo à atividade que já exerce, ou seja, se trocar de ramo, deixa o imóvel. — Olha para o Millos. — O pessoal da corretagem, que por sinal é subordinado ao nosso querido e esperto primo, é quem deve ter em mente quais são os tipos de locadores que devem aceitar.

Concordei, mas ainda não estava completamente convencido.

— Pense na questão. — Millos se pôs de pé. — Tempo é o que não falta, pelo que Kostas disse.

Meu irmão o acompanhou, o sorriso estranho ainda em seu rosto, como se estivesse acontecendo algo que só eu não soubesse.

Dali em diante, tudo pareceu ainda pior! Os dias se arrastaram até esta sexta-feira, vários setores da empresa dando problemas justamente nesta época em que o pessoal já parece estar entrando em ritmo de festas e esquecendo um pouco a nossa tão famosa correria paulistana.

Só soube que Valentina seria minha acompanhante nos eventos artísticos no meio do expediente, quando Viviane me ligou para perguntar se eu tinha o endereço do apartamento da moça.

— Você me disse que ela estaria lá, não que iria comigo! — resmunguei. — Nós mal trocamos algumas palavras naquele vernissage!

— Theo, meu querido, você quer ou não quer uma maldita esposa?! — minha sócia perdeu a paciência.

— Porra, mas não assim! Não precisava agir tão descaradamente como se eu estivesse desesperado, merda!

— Ela é a melhor candidata com que você já esbarrou por aí! É amante das artes como você, vem de uma família tradicional e rica como a sua, é linda, jovem e tem todos os infindáveis requisitos que você listou para a futura senhora Karamanlis! Dê uma chance a ela!


CONTINUA
Acordei de ressaca hoje, e não foi por causa da quantidade de bebida que ingeri no vernissage; aquela quantidade, eu nem consideraria como beber. Viviane ficou puta por ter encarecido o orçamento com garrafas do meu uísque preferido e eu não estar bebendo, por isso, depois do evento, reuni todas as que sobraram e trouxe para meu apartamento.

Pensei que ia passar uma noite solitária, acompanhado apenas de um single malte e discos de jazz, mas, no meio da minha encenação de lobo solitário, Millos ligou me convidando para ir até seu loft. Neguei várias vezes, mas a porra do homem estava tão excitado com a cerveja que havia feito que não parava de insistir.

Resultado? A bebida realmente estava um espetáculo! Enchemos a cara, mesmo sob meus protestos, pois nunca curti muito beber cerveja, e comemos uns tira-gostos tão saborosos que teci elogios a sua habilidade na cozinha.

— Ah, não fui eu quem preparou, não! — Riu. — Encomendei no Hill.

Quase cuspi aquela porra para longe e o fuzilei com os olhos.

— Porra, eu querendo que aquela merda feche e você comprando lá? Está do lado de quem afinal?

— Do meu estômago! — respondeu comendo mais um dos bolinhos. — Estava com vontade de ter um acompanhamento, mas sem nenhum saco para preparar. Me lembrei do dia em que fomos lá e quis conferir se ainda continuavam tão gostosos!

— Ainda não te perdoo por aquela arapuca! — acusei.

Há uns dois anos, Millos me convidou para comemorar seu aniversário, coisa que vez ou outra fazemos quando ele está em clima de festa. Eu lhe disse que o encontraria no local, mas ele insistiu em me buscar em casa, e, quando chegamos e percebi que era no Hill, fiquei bem puto, mas a curiosidade de saber o motivo pelo qual o boteco estava se tornando um sucesso me impulsionou a entrar.

O que eu não contava era que, além de a mim, o filho da puta tinha convidado meus irmãos. Ficamos lá os quatro como se fôssemos bons amigos, compartilhando da armadilha de Millos. Aposto que Kostas e Alex detestaram cada momento, mas sorrimos, bebemos e experimentamos os quitutes da tal da Duda Hill.

Mesmo não gostando de admitir, era fato que a mulher sabia o que estava fazendo na cozinha. Os bolinhos tão tradicionais de um boteco tinham um requinte diferente, embora mantivessem a essência. Era como se ela conseguisse melhorar o que já era perfeito, e isso, tenho que admitir, é um dom.

Confessei isso ao meu primo? Nem sob tortura! Repreendi-o por ter comprado lá, aleguei que ela podia ter mandado envenenar os quitutes – fazendo um drama desnecessário, culpa da bebida –, mas não parei de comer.

— Ah, pedi a Sami para comprar para mim — respondeu.

— Você ainda está saindo com ela? — questionei surpreso, pois havia muito tempo não via a motoqueira que, de vez em quando, orbitava em volta dele.

— Não! Somos amigos, já disse isso, mas parece que você só enxerga a boceta de uma mulher, come até suas “amigas” — fez referência a Viviane.

— Por que você não gosta dela? — Provoquei: — Porque ela é independente, dona de si mesma e diz o que pensa?

— Não! Eu não curto mulher assim para comer, mas não tem nada a ver com o fato de eu achá-la fria e calculista, e nunca escondi isso de você. Aquela mulher gela meu sangue!

Ri do seu exagero, afinal, a Vivi não tem nada de fria. Millos implica com ela pelo simples fato de a mulher ter personalidade e não se deixar comandar por ninguém. No primeiro momento ele se sentiu atraído, Vivi é um espetáculo aos olhos, e ela também não disfarçou o interesse. No entanto, bastaram alguns minutos de conversa para que se odiassem.

— Hoje ela conseguiu algo incrível — comentei. — Valentina de Sá e Campos, já ouviu falar?

Ele riu.

— Dela não, mas conheço os sobrenomes. Família paulistana tradicional, bom currículo. — Cruzou os braços e me olhou debochado. — A futura senhora Theodoros Karamanlis?

— Talvez — fui sincero. — Conversei um pouco com ela nesta noite, achei-a divertida, inteligente e sedutora. A princípio achei que era muito nova, mas é madura e independente, cheia de opinião. Gosto do tipo.

— Eu sei. — Ele se levantou e foi pegar mais cerveja. — Foi Viviane quem te apresentou a ela? — Assenti. — Não sei se gosto disso, mas boa sorte.

Gargalhei pela implicância dele com a Vivi e resolvi desviar o assunto. Falamos da Karamanlis, de música, de motos e, por fim, já muito bêbado e com sono, caí sobre o sofá dele e acordei há pouco, com torcicolo e com uma puta dor de cabeça.

— Ei! — Millos me saúda estendendo uma xícara de café. — Você está destruído!

O desgraçado ri, mas nem posso mandá-lo tomar no cu, porque minha cabeça trepida parecendo que há uma britadeira no meu cérebro. Maldita cerveja! Malditos bolinhos envenenados da Duda Hill!

— Cara, você é fraco para minha cerveja! — Millos ri. — Ficou boa, não é? — Apenas assinto, ainda tomando o café para melhorar meu ânimo. — O que está programado para fazer nesse final de semana?

— Vou trabalhar. Como saí um pouco mais cedo ontem por causa do vernissage, Rômulo separou umas pastas para que eu lesse nesse final de semana. Coisa chata, principalmente da pauta da reunião do conselho.

— Por falar no conselho... — Ele se senta ao meu lado no sofá e apoia os pés descalços sobre a mesinha de centro. — Ontem tive notícia do Kostas. — Ri. — Parece que tomou um toco feio da Kika e está cuspindo marimbondos.

Gargalho, esquecendo a dor.

— Como queria ter visto esse embate!

— Eu também.

Bufo, mesmo divertido, lembrando que o meu problema continua.

— Preciso trazê-la de volta para a empresa com urgência. Há vários projetos dos hunters parados, e o Rômulo não está dando conta de organizá-los.

Millos rola de rir no sofá.

— Esse seu assistente é muito estranho. Sinceramente não entendo como você ainda o mantém trabalhando contigo!

— Gosto de ele ser metódico. — Dou de ombros. — É organizado, embora meio desastrado, nunca perde um prazo e faz tudo o que eu peço.

— Seu próprio espelho, não é? Nunca conheci ninguém mais chato que você para organização.

Ergo uma sobrancelha para ele e olho em volta para seu loft cheio de espaço, mas sem nenhuma lógica ou senso de estilo. Millos gosta de coisas rústicas, e respeito isso, acho legal, mas é tão bagunceiro que seus móveis caros de design parecem ser cacarecos de alguma casa demolida.

Os únicos locais arrumados são: a cozinha, o “laboratório” de cerveja (como ele mesmo se refere ao local) e onde dorme. O resto... tem peças de motos para todos os lados, mesmo a oficina ficando na parte de baixo do galpão que ele chama de loft, tem barris com os ingredientes que compra para a fabricação de cerveja, roupas, discos e óculos (nunca vi tantos para uma só pessoa) espalhados por todos os lados.

O homem é um caos completo em casa, mas, se alguém entrar na sala dele na empresa, vai acreditar que é o epítome da organização. Não entendo como consegue!

— Bem, sobre a Kika, eu posso te adiantar que não precisa se preocupar — Millos continua. — Falei com ela ontem, e vai voltar.

Expiro o ar, aliviado.

— Porra, Millos, porque não me contou antes? É um alívio do cacete não ter que lidar com mais esse problema e...

— Mas ela não quer ser mudada de andar.

— O quê? Ela está fazendo exigências?

Millos penteia a barba com os dedos, enervando-me com sua calma.

— Demonstramos desespero ao mandar o Kostas pedir arrego. — Concordo com ele nesse ponto. — Ela quer aumento, continuar no andar e... — Tenta conter o sorriso, e prevejo que vem bomba, mas ele vai dar um doce do cacete para falar.

Perco a paciência e esbravejo:

— O que mais ela quer?!

— Carta branca para mandar seu irmão se foder à vontade.

— Porra!

Ponho as mãos na cabeça, sentindo a dor de cabeça voltar com tudo e ouvindo a risada debochada do Millos.

Eles querem me enlouquecer, só pode!

 

 

A dor de cabeça me acompanhou ao longo de todo o final de semana. Tomei analgésico, antiácido e – seguindo os conselhos do meu primo – mais um pouco de cerveja. No entanto, não consegui me livrar do incômodo insistente.

Trabalhei o sábado inteiro, recebendo ligações do Rômulo quase de hora em hora, a ponto de ficar puto com ele e mandá-lo caçar algo para se divertir e me deixar em paz. Compreendo que ele queira me ajudar, mas, às vezes, sua dedicação exacerbada me estressa.

Recebi um convite para jantar de uma antiga amante que vinha a São Paulo de tempos em tempos, mas neguei. Queria apenas relaxar um pouco em casa depois de ter trabalhado em páginas e mais páginas de relatórios com uma dor de cabeça chata a me distrair.

Pedi comida em um restaurante de comida vegana, achando que pudesse ser a gordura dos bolinhos do Hill – velha e rançosa, com certeza – que me deu essa indisposição e resolvi assistir a alguns filmes antigos. Sou fã de “O poderoso chefão”, então comecei a assistir a cada um deles de novo.

Novamente dormi em um sofá, mas acordei melhor e resolvi correr um pouco. Passei umas duas horas no Ibirapuera e, na volta, encomendei o almoço de domingo, sentindo-me um pouco órfão sem a Vanda em casa.

Liguei para Millos a fim de fazermos algum programa à tarde, mas ele estava com alguma mulher em algum clube ou lugar que só Deus sabia, então voltei aos relatórios, e isso consumiu o resto do dia.

Debaixo do chuveiro, rememorando este final de semana de merda, ouço meu telefone tocar, mas o ignoro. Coloquei os jatos no mais forte possível para tentar aliviar um pouco a tensão que venho acumulando nesses dias. A verdade é que preciso trepar um pouco, divertir-me, talvez fazer uma viagem ou passar um final de semana com alguém sem pensar no trabalho.

A imagem da Valentina vem à minha mente, sua conversa gostosa, seu sorriso bonito. Contudo, ainda não me sinto completamente certo de que devo me envolver com ela, principalmente por uma questão: não senti muita atração.

Sei que isso é de momento e que pode mudar, principalmente se a convivência for boa. Nem sempre sentimos atração pela pessoa no primeiro encontro, e já vivi anos demais para saber que até um primeiro encontro explosivo pode depois esfriar e o tesão ser extinto, então, não me baseio apenas nessas primeiras impressões.

Fecho os olhos e penso na garota da boate há alguns anos. Ela vem preenchendo minhas fantasias há muito tempo, talvez por ter sido gostoso daquela vez e não ter tido mais notícia dela.

Mal lembro do seu rosto, de tão bêbado que estava, sempre quando fantasio vejo os cabelos e me lembro da loucura que foi nossa transa naquele banheiro.

O telefone volta a tocar, e desligo o chuveiro, saindo do boxe para ver quem é o chato. Rio ao ver o nome do Millos. Na mosca!

— Já terminou sua maluquice sexual com a “submissa” da vez? — provoco.

— Vá se foder e não se meta nos meus assuntos — rosna. — Liguei para saber se amanhã pode ir comigo a um restaurante que um amigo inaugurou nos Jardins.

— Boa comida ou é boteco?

— Não, seu fresco, é coisa fina! Vanda ainda não estará de volta, não é?

Suspiro, resignado.

— Não, ela ainda vai ficar um tempo no Rio de Janeiro. Está certo, amanhã combinamos isso melhor no escritório.

— Okay! — diz animado. — Vai almoçar no refeitório junto aos funcionários?

— Sempre há uma primeira vez, não é? — Deixo a toalha no suporte e sigo para o closet. — Além do mais, confio que servimos algo de qualidade aos funcionários.

Millos ri.

— Essa eu quero ver! Nos encontramos no almoço, então! Boa noite, Theo.

— Boa noite!

Desligo o telefone e me olho no espelho, lembrando-me do tempo em que comia qualquer coisa e em qualquer lugar, na maioria das vezes sujo e fedendo a peixe, sentindo-me feliz e livre.

— Quem é você, Theodoros Karamanlis?


O dia nem bem amanheceu, e eu já estava suando na academia com a Sandra. Hoje, sem Millos, o treino foi mais tranquilo, seguindo o ritmo normal dos exercícios. Tomei meu café sozinho na cozinha – café puro mesmo – sentindo imensamente a falta da Vanda, de sua conversa matutina animada e seus cuidados. Posso não admitir sempre, mas gosto de ser cuidado, de sentir esse afeto, coisa tão rara na minha vida.

Limpei os pensamentos e saí para trabalhar.

— Bom dia, Dionísio! — cumprimentei o motorista como em todos os dias, já pegando meu jornal para me inteirar sobre as principais notícias do dia. — Hoje vou almoçar na empresa, mas, à noite, vou sair do escritório direto para jantar com Millos.

— Levo o doutor ou trago o carro?

— Traz o carro, vou dirigindo.

Ele assentiu, e seguimos viagem em silêncio, ele concentrado no trânsito, e eu, nas notícias de economia do país e do mundo.

Cheguei à empresa já apagando incêndios. Um dos projetos de um cliente foi reprovado por uma comissão municipal, então Kostas teve que intervir mandando seus advogados e acompanhando todo o processo. Eu, como CEO, fiquei aguentando a aporrinhação do gerente responsável pela implantação da empresa multinacional aqui no Brasil.

Nem vi a hora passar, mal tomei meus cafés tão tradicionais ao longo da manhã, irritado com esse problema, com o Rômulo borboleteando ao meu redor me enchendo de perguntas: “quer café?”, “ligo para o doutor Konstantinos?”, “quer um calmante?”. Eu quase explodi de raiva, sentindo meu estômago fritar e a cabeça estourar.

Desci para o refeitório faltavam alguns minutos para o meio-dia e, para meu espanto, ainda não tinha nenhuma refeição pronta. Conferi as horas no Omega, um dos relógios mais precisos do mundo, e estranhei a demora. Rômulo apareceu e, quando lhe questionei o atraso, fiquei sabendo que o almoço era servido a partir da 1h da tarde.

Voltei para o escritório sob a insistência de Rômulo para me encomendar o almoço em algum restaurante.

— Não! Hoje vou comer no refeitório — insisti.

Millos me lançou um desafio por eu nunca ter comido na empresa desde que foi inaugurado o refeitório para os funcionários. Pensamos no restaurante para facilitar a vida de todos e, como tínhamos espaço, decidimos montar a estrutura. Estive presente no primeiro dia, na inauguração, há alguns anos, mas depois disso não botei mais os pés no local.

Exatamente às 13h desci novamente pensando em usufruir de um almoço tranquilo e nutritivo, porém, o que encontrei me deixou sem ação. Primeiro, os funcionários ficaram estarrecidos ao me ver ali; percebi em seguida que apenas o baixo escalão da empresa – de coordenadores para baixo – estava comendo ali. Não havia nenhum gerente ou diretor no meio dos mais de 100 funcionários da companhia.

Contudo, o que mais me surpreendeu foi a comida. Não, não era ruim, pelo contrário, era bem preparada, mas sem nenhuma opção para substituição.

— E quem não pode comer carne vermelha? — questionei ao Rômulo, e ele apenas corou, fingindo não ouvir. — Há cardápios diferentes ao longo da semana?

Rômulo continuava a montar seu prato sem emitir qualquer resposta, o que não é nada típico dele, e isso me irritou. Quando não era para falar, o homem tagarelava, mas, quando eu precisava de respostas, ficava mudo!

— Rômulo! — chamei-o de modo mais enérgico. — Eu estou tentando entender o que...

— Não, não há! — escuto a voz do Alex e me viro para encará-lo. — E seu querido assistente não sabe informar porque não come aqui também. — Meu irmão pegou um prato e se serviu naturalmente. — A questão do restaurante entrou em pauta numa reunião de diretoria, mas o senhor todo-poderoso do Olimpo achou que não era uma questão relevante para a economia da empresa e pulou o assunto.

Olhei de esguelha para Rômulo buscando confirmar a informação, e ele atestou. Xinguei mentalmente.

— Uma empresa é feita de mais do que números, Theodoros Karamanlis — seu desprezo pelo sobrenome era evidente. — E, quando fiz a proposta do restaurante, era para que, além de economizar o tempo dos funcionários e agilizar o serviço, também tivéssemos convívio com eles, porém, adivinha quem foi o primeiro a pular do barco e a incentivar o “alto escalão” a ir junto?

Bufei de raiva.

— Quem é o responsável pela gestão do restaurante? — ignorei o discurso do meu irmão idealista e perguntei ao Rômulo.

— É terceirizada, a mesma empresa do pessoal da manutenção.

Merda!

— Marque uma reunião com ela e peça ao Kostas para avaliar o contrato. — Rômulo mais do que depressa escreveu em seu tablet inseparável. — Dispare um memorando para todos os diretores e gerentes, lembrando da existência do restaurante e informando que, a quem for almoçar fora, será necessário cumprir o horário, ou seja, uma hora e nenhum minuto a mais.

Rômulo arregalou os olhos e assentiu.

— Eu pouco vejo você e percebo que nem é preciso! Você não mudou nada, o mesmo prepotente de sempre. — Alex passou por mim, ainda se servindo no bufê, rindo de deboche, e percebi olhares curiosos em nossa direção.

— Eu preciso lembrar que você também faz parte da diretoria e tem acesso irrestrito ao conselho? — Cheguei perto para falar baixo: — Se fosse meu projeto, nunca deixaria chegar aonde chegou só porque não sou o CEO. Isso demonstra que está mais preocupado em ir contra a direção do que lutando pelo bem-estar dos funcionários. Não é minha função tomar conta de tudo, não sou absolutista, eu delego e confio naqueles a quem passo esse poder. — Ele fechou a cara, perdendo o ar de superioridade. — Não tenho intenção alguma de prejudicar os que trabalham comigo, pelo contrário. Mas assumo meu erro em não ter frequentado o local para dar exemplo.

— Mas o doutor também não tem horário certo para almoçar, por isso...

Balancei a cabeça em negativa, freando a defesa de Rômulo. Não tinha desculpas, o exemplo era meu, e eu tinha falhado. Terminei de fazer meu prato, sentei-me a uma mesa com Rômulo e almocei mesmo sentindo um nó na garganta por ter mostrado falha e ter sido repreendido pelo Alex na frente de todo mundo.

Merda!

Ao longo do dia, a repercussão do almoço do CEO no restaurante da empresa, bem como o efeito do memorando para os diretores e gerentes agitaram a tarde na Karamanlis. Percebi todo mundo mais atento, mesmo na correria de sempre.

Tive uma resposta positiva da equipe de Kostas com relação ao projeto vetado e pude passar a boa notícia ao nosso cliente. Recebi vários relatórios dos setores e subsidiárias ao longo do dia, inclusive da K-Eng, dirigida pelo Alex.

Meu irmão é um sonhador idealista, defensor dos fracos e oprimidos, um rebelde que só trabalha conosco para contrariar a família. Cospe sobre nosso sobrenome, mas faz questão de ostentá-lo para afrontar o pappoús. Sempre achamos que ele tentaria afundar a empresa em represália ao tratamento que teve na infância, mas não, ele não só assumiu uma empresa praticamente independente como a fez crescer. Todavia, ainda sinto que há algo por trás disso.

 

 


                                                       CONTINUA