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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


THERAS E A SUA CIDADE / Caroline Dale Snedeker
THERAS E A SUA CIDADE / Caroline Dale Snedeker

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio "SEBO"

 

 

 

THERAS E A SUA CIDADE

 

Theras já fizera sete anos e por isso tinha de ir para a escola, conforme prática corrente na cidade em que ele vivia. Era um dia emocionante para toda a familia, especialmente para o pequenito, pois até então nunca pudera deixar a companhia da mãe e dos criados, só lhe sendo permitido brincar dentro de casa ou na rua mesmo junto da porta da entrada. Agora tinha de ir para a escola com os outros rapazes. De futuro não lhe faltariam oportunidades de andar com o seu pai e dar uns passeios pela cidade. Já se considerava um homenzinho.

Nada entusiasmava tanto Theras como passear na sua cidade natal, a mais bonita do mundo! Não se tratava de uma cidade muito grande; ali todos se conheciam uns aos outros e sabiam quem era seu pai, sua mãe e primos. Nem muito rica. O pai de Theras residia numa casa simples e modesta, e toda a sua família e primos viviam também modestamente. Era, no entanto, naquela cidade que se encontravam os homens mais famosos e inteligentes do mundo e os mais belos edifícios.

Chamava-se Atenas. E, embora tenha atingido o seu esplendor há muitos anos, ninguém desde então conseguiu fundar cidade tão bela.

Não admira, pois, que Theras se mostrasse emocionado e pulasse de contente.

 

 

 

 

- Ainda não são horas de ir? - perguntou ele. - Ainda não são horas de ir?

A mãe olhou-o com ansiedade. Estava satisfeita por ele ter de ir, mas não ignorava que sentiria amargamente a sua ausência, uma vez que em Atenas, quando um rapaz ia para a escola, passava a participar da vida citadina - jamais ficaria em casa a fazer-lhe companhia!

- Sim, são horas - disse ela.

Entrou então na sala Feidon, o pai de Theras, que trazia consigo um homem bastante alto chamado Lampon.

- Lampon vai ser o teu pedagogo - disse Feidon, e mal acabou de dizer isto, Theras correu logo para o homem que lhe sorria com orgulho e lhe pegou na mão.

- Não deves deixar que o menino faça tudo o que quiser - recomendou Feidon. - De hoje em diante serás tu o seu pedagogo.

Com isto, queria dizer que Lampon teria de acompanhar sempre Theras à escola, tinha de lhe levar a placa de cera onde ele aprenderia a escrever (pois naquela altura não existiam lousas), o seu estilete (ou lápis) e a lira que era a sua harpa. Lampon velaria para que não acontecesse ao seu pupilo mal algum, e, se fosse necessário, devia castigá-lo. Em Atenas, mesmo os rapazes de catorze ou quinze anos tinham o seu pedagogo.

Lampon era um escravo. Quer isto dizer, claro está, que Feidon o comprara no mercado como se comprasse um cavalo ou uma vaca. Era um homem branco não muito diferente dos próprios Gregos. Toda a gente no mundo comprava escravos naquela época. A única diferença residia no facto de os Atenienses tratarem os seus escravos melhor que outros povos. Lampon já vivia com aquela família quando Theras nasceu. Gostava do seu patrão, Feidon, e da sua senhora; mas quanto ao "patrãozinho" Theras, adorava-o, e o mais provável era que o estragasse com mimos.

- Olha, Theras, aqui está a tua lira - disse o pai passando-lhe para as mãos uma harpa pequenina mas linda. Tinha cordas cintilantes e, por baixo delas, um desenho do deus Apolo a tocar. Todos os rapazes deviam ter uma lira nova no primeiro dia em que iam para a escola.

- É para mim? - gritou Theras com ar de espanto. - É mesmo para mim?

Empunhou-a para que as irmãzinhas a vissem e, quando Opis fez vibrar as cordas com

os seus dedos de bebé, da harpa desprendeu-se um som maravilhoso.

 

           Um passeio na cidade

Agora tinham de partir. A mãe de Theras

vestiu-lhe uma capa com que era costume sair, pois em casa usava só uma peça de vestuário semelhante a uma camisa de dormir que chegava até aos joelhos; e calçou-lhe também as sandálias, porque estava descalço. Então Aglaia e Ópis, as suas duas irmãzinhas, e a mãe beijaram-no. Quem visse até pensaria que ele ia fazer uma grande viagem!

Em seguida, o pai pegou-lhe na mão, pois sendo o primeiro dia de aulas, ele mesmo o queria levar ao professor. Assim lá partiram os dois sob um sol maravilhoso, seguidos de Lampon, o pedagogo. Como as ruas de Atenas eram muito estreitas e nas casas não havia janelas, dava a impressão de que caminhavam ao longo de duas muralhas com portas de longe a longe. Os Atenienses não costumavam construir casas luxuosas para si próprios, mas sòmente para os seus deuses. As ruas eram muito tortuosas e cheias de transversais, pelo que se tornava muito fácil uma pessoa perder-se.

Mas lá no alto, dominando a cidade, podiam ver o monte rochoso chamado "a Acrópole" com os seus templos de mármore - esses templos eram as igrejas de Atenas - pintados de vermelho, azul e dourado com as suas figuras aladas semelhantes a dragões em cada canto do telhado. Pareciam de um brilho fascinante, lá em cima, contra o sol.

- Pai - pediu Theras -, leve-me à Acrópole. Já tenho idade suficiente para lá ir.

- Levar-te-ei, não ponhas duvidas - disse-lhe Feidon-, mas hoje não, porque tens de ir para a escola.

De repente, desembocaram no grande largo do mercado, barulhento, arrumado, cheio de vida e cor.

- Comprem as minhas flores - gritavam as raparigas. Aquela parte do mercado tinha um ar alegre graças às cores variadas da mercadoria ali exposta.

- Comprem Os meus artigos - gritava um homenzarrão que vendia capas brancas e roxas:

- Comprem os meus brinquedos - apregoava outro postado diante de uma tenda com bolas, carroças pequeninas e nozes douradas.

Theras nunca vira lugar tão barulhento e estava encantado com todo aquele barulho. De um lado havia uma longa colunata, isto é, uma fila de colunas de mármore com um telhado, como um pórtico, e uma parede a todo o comprimento. Nesta estavam desenhadas figuras de guerreiros a tomarem a cidade de Tróia, bem como de mulheres a cavalo a atacarem homens que se defendiam com lanças.

Como nunca pusera os olhos num livro de desenhos, Theras achou aqueles maravilhosos. Na verdade vinha muita gente de longe através de caminhos poeirentos e mares bravos só para admirar aquelas pinturas de Polignota.

-Pai, pare! Oh, por favor, espere um bocadinho - pediu Theras.

Mas seu pai só parou para comprar dois bonecos de barro para as duas irmãzinhas de Theras que tinham ficado em casa, e depois seguiram o seu caminho.

-O mercado não é o lugar ideal para rapazes - disse ele.

- Olá, Feidon - exclamou um amigo. - Aonde é que vais com tanta pressa?

- Vou levar meu filho à escola - respondeu Feidon com orgulho.

Assim que entraram novamente numa das ruas estreitas, um outro amigo, Epikides, saudou-os.

-Vem comigo até ao Pnyx, Feidon, pois Fídias vai falar acerca da compra de barcos novos.

- Sem dúvida lá aparecerei - disse Feidon -, mas primeiro quero levar o meu filho à escola.

- Teu filho? Que bonito - exclamou Epikides que só tinha filhas em casa.

Theras sentiu o pai apertar-lhe um bocadinho mais a mão em sinal de carinho.

Que boa disposição, naquele dia maravilhoso!...

Na escola

Por fim chegaram à escola. Era relativamente pequena e só para trinta rapazes. Havia muitas escolas em Atenas, mas todas pequenas. Consistiam, normalmente, numa grande sala, que, no entanto, não passava de um pátio exposto ao sol com uma outra sala de um dos lados, onde os pedagogos se sentavam à espera dos seus pupilos.

Em Atenas tudo ficava ao ar livre - escolas, tribunais, teatros, tudo. O sol brilhava quase todos os dias do ano. Era ele e a vida ao ar livre que tornavam os habitantes de Atenas pessoas sadias e alegres.

Na parede da escola os alunos penduraram as liras, as placas de cera e as capas, depois sentaram-se em bancos, defronte do professor. Este tinha um ar severo e Theras logo se convenceu de que ele era capaz de dar chicotadas, merecidas ou não.

O professor deitou um olhar carrancudo ao novo aluno.

- O seu filho sabe cantar? - perguntou a Feidon.

-Bem, eu ensinei-lhe algum reportório de Harmódio e de Aristogíton - respondeu-lhe o interpelado-, mas já lá vai um ano. Ainda é muito pequenino. O que ele gosta é de brincar e de jogar.

Naquele tempo era muito importante em Atenas que um rapaz soubesse cantar. Isso dava-lhe possibilidades de fazer parte de um coro de rapazes, e portanto permitia-lhe integrar-se nas procissões em dias festivos. Os pais costumavam dizer: "Sim, o meu filho faz parte do coro de Dionísio" ou "do coro de Apolo".

Talvez esse coro ganhasse o prémio destinado àquele que cantasse melhor. Então toda a família se mostraria muito orgulhosa. A própria Atenas acharia que esses rapazes tinham feito algo para honrar a cidade.

Por isso é que o professor perguntara pri meiro que tudo se ele sabia cantar.

- Mas eu sei cantar, pai - disse Theras na sua voz aguda e distinta. - Eu sei toda a história de Telémaco e como partiu para a sua viagem marítima.

Os rapazes começaram a tocar com os cotovelos uns nos outros e desataram à gargalhada. Como Theras se sentiu envergonhado!...

- Silêncio - gritou o professor. - Theras, então canta lá essa história. Klínias, tu tocas a lira.

Theras, com intuito de não ficar mal colocado e não fazer fraca figura, começou imediatamente.

Cantou a tal história, bastante longa, a respeito do jovem Telémaco na longínqua Ítaca. Seu pai, Ulisses, sulcara os mares durante anos e anos. Homens malvados, julgando que ele morrera, invadiram a sua casa e levaram tudo que quiseram, comeram quanto encontraram, e amedrontaram a mãe de Telémaco, que se chamava Penélope. Isto preocupou bastante o rapazito. Mas que podia fazer ele, ainda tão pequeno, contra aquele bando de malvados?

Então a adorada deusa Atena veio ao encontro de Telémaco, disfarçada num homem bastante alto, e conversou com ele acerca do pai. O jovem, incitado pelas suas palavras, correu para a beira-mar e arranjou um barco. Convenceu alguns rapazes a acompanharem-no e, quando o Sol desapareceu no horizonte e começou a escurecer, puseram, em segredo, o barco em movimento, rumo ao mar alto. Telémaco ia empreender aquela viagem em busca de Ulisses, seu pai.

Theras cantou tudo isto em voz clara, às vezes um pouco fora do compasso da música mas com bastante entusiasmo. Assim que acabou, correu para o pai a gritar:

-Se o pai também andasse perdido no alto mar, eu arranjaria um barco e iria à sua procura até o encontrar, mesmo que isso me levasse muitos anos.

-Theras, Theras, onde é que aprendeste essa canção - perguntou Feidon.

- Ouvi o pai cantá-la - respondeu o filho.

- Mas eu nunca a cantei para tu ouvires.

-Não, mas sempre que o pai dá uma festa lá em casa, eu costumo ir para a porta da sala escutar, e foi assim que a aprendi.

-Mas devias estar na cama a essa hora.

- Eu salto da cama - disse Theras a rir-se.

Era uma prova de desobediência da parte do rapaz saltar da cama e ir escutar o pai durante as festas, quando o julgavam a dormir a sono solto, mas Feidon ficou tão satisfeito com o êxito por ele alcançado, que não teve coragem para o castigar.

Contudo, o facto não passou despercebido ao professor, que resolveu vigiá-lo bem dali por diante, para o castigaz no caso de o novo aluno se mostrar desobediente.

 

                 Instrução

Então Feidon foi-se embora e começou a aula. Naquele tempo devia ser fácil a vida escolar. Não havia história, nem geografia, nem desenho; e línguas só aprendiam a sua, que era o grego. Tinham de aprender a ler e a escrever, a tocar lira e a cantar versos. Estes eram todos tirados dos dois grandes poemas de Homero.

Um destes poemas, a "Ilíada", versava a história de um exército de guerreiros gregos que cruzaram o mar na ânsia de aventuras. Quando alcançaram Tróia, houve um grande combate com os Troianos e muitos morreram. Os rapazes adoravam esta história. Dois deles, mais velhos, sabiam a "Ilíada" de cor. Isto era tão difícil como decorar todo o "Novo Testamento", mas como nessa época os rapazes pouco mais tinham que fazer, na cidade havia muitos que se dedicavam a aprender de cor estas histórias.

Na primeira manhã que Theras passou na escola, um rapazote chamado Perimedes recitou, ou antes cantou (pois era sempre cantada), toda a história do Cavalo de Madeira, mais conhecido pelo Cavalo de Tróia. Theras ficou tão entusiasmado, que mal podia conservar-se quieto no seu lugar - ora batia com os pés no banco, ora se mclinava para diante para melhor escutar.

Quando a história acabou, Theras começou a escrever na sua placa. Esta consistia num pequeno quadrado coberto de cera mole. Para escrever tinha de usar um estilete bastante afiado. O professor escreveu "ABG", que é o correspondente em grego ao nosso "ABC", ou melhor, Alfa, Beta, Gama, Delta, pois o seu alfabeto diferia bastante do nosso. Theras fez várias tentativas, mas, apesar de riscar toda a placa, não conseguiu escrever sequer uma letra que fosse aprovada pelo professor. Este, então, colocou a placa por cima de um braseiro, aqueceu-a e desta maneira conseguiu alisar a cera. Isto correspondia nem mais nem menos ao que hoje fazemos com as lousas quando as queremos limpar. O professor, que não era para brincadeiras, bateu com a cana nos dedos de Theras e recomendou-lhe mais cuidado com a escrita. Assim, o rapazito esforçou-se ainda mais e lá conseguiu escrever "ABG".

Ficou radiante quando chegou a hora do almoço, pois já lhe doíam as costas de estar sentado naquele banco tão duro.

Desportos

Ao almoço os rapazes comeram queijo com pão e bolos de mel. Em seguida, todos juntos, empreenderam a divertida marcha através da cidade em direcção ao campo de desportos. Cada rapaz marchava ao lado do seu pedagogo. Todos envergavam as capas e seguiam de olhos baixos. Alguns dos mais velhos achavam-se atlèticamente bem desenvolvidos e tornavam-se notados pelos transeuntes.

- Reparem em Perimedes - segredavam eles. - Dizem que é formidável no salto em comprimento. Entrará nos Jogos Olímpicos do próximo ano.

- Aquele ali é Klínias - diziam outros -; ganhou um prémio a tocar lira e a cantar. E aqueloutro, Télamon, o melhor corredor da sua idade, em Atenas.

Os rapazes coravam com tais comentários e os pedagogos empurravam-nos a fim de andarem mais depressa e não poderem ouvir aqueles elogios que os envaideciam.

Deixando para trás a cidade, marcharam em direcção a um pequeno olival. Havia ali uma pista de corridas com monticulos de terra donde os rapazes podiam dar saltos.

Logo que os rapazes viram esses montículos, mostraram-se excitadíssimos. Descalçaram as sandálias, despiram as capas e as túnicas, ficando preparados para começarem os seus exercícios. Estavam todos muito tostados pelo sol, com o corpo tão moreno como o pescoço e os braços de certos rapazes depois dum período de praia.

O professor de ginástica, a quem chamavam

"gimnasiarca", estava à espera deles.

-Vinde cá, Klínias e Télamon; hoje ides fazer uma corrida.

Theras já gostava de Klínias, um rapaz excelente e muito bondoso. Sempre que, naquela manhã, o novo aluno lhe dirigira o olhar, ele correspondera-lhe com um sorrisso de simpatia.

Quando os outros rapazes se riam de Theras, Klínias ficava sempre muito sério. Agora encontrava-se ao lado de Télamon, ambos curvados para a frente, à espera da ordem de partida.

- Prontos Partam 1- gritou o gimnasiarca, e eles desataram numa correria doida ao longo da pista.

Como os seus calcanhares bronzeados brilhavam à luz do Sol! Atrás dos corredores erguia-se uma nuvem de poeira.

Pobre Klínias! Não podia, claro, vencer Télamon, pois este era, como já se disse atrás, o melhor corredor de Atenas. Os rapazes começaram a gritar:

- Télamon, Télamon!

-Força, força, Télamon!

- Klínias Olhem para Klínias Por Hermes, olhem para ele!

Sem dúvida Klínias estava a bater-se bem com Télamon. Lá continuavam a correr, lado a lado.

Theras gritava como um maluquinho, até perder o fôlego. Depois voltava a gritar. A certa altura Klínias passou à frente de Télamon. Theras começou a dançar e a pular de satisfeito. Lá estava Klínias na meta Oh Klínias Klínias!

- Ùltimamente tem treinado como um doido - comentavam os rapazes. - Imaginem! Vencer Télamon!

Theras ssntia-se tão feliz que só gritava:

- Klínias! Klínias!

Então um dos outros rapazes comentou:

- Olhem ali o Pele Branca!

Chamavam-lhe assim porque ele não tinha a pele tostada como os companheiros. Theras resolveu então apanhar banhos de sol sempre que possível, até ficar tão queimado como Klínias.

 

               Outra Corrida

A postos, rapazes! - disse o gimnasiarca.

-Cada um ao seu trabalho. Vós os mais novos, vinde treinar-vos no lançamento do disco.

Este era um prato redondo, de bronze.

Cada qual fazia o lançamento, quando chegava a sua vez. Curvava o corpo para a frente, sem elevar o disco, e então, com uma corrida curta e rápida e um movimento vivo do braço direito, arremessava-o pelo ar. Um pedagogo marcava com uma lança o local onde o disco caía.

Tudo isto constituía uma novidade para Theras. De todas as vezes que tentava o lançamento, o disco caía sempre mais perto que qualquer dos outros.

- Oh, Pele Branca Reparem no Pele Branca!

-Um gato faria a mesma figura que ele. Até uma galinha ou pintainho! Um pintainho recém-nascido!

Os rapazes zombaram tanto de Theras, que ele por fim já mal podia fazer o lançamento.

Depois deste exercício, os rapazes mais novos tinham de correr para cima dos montículos de terra e saltar de lá abaixo. Isto constituía um grande despique. Mas também aqui Theras se mostrava o pior de todos, e cada uma das suas tentativas era sublinhada com um coro de risos e zombarias. Sentia vontade de chorar, mas nunca deu a entender aos outros o que lhe ia no coração.

- Agora ides exercitar-vos na corridadisse o gimnasiarca aos mais novos. - Theras, tu, Drias e Koretas correreis em primeiro lugar.

Imediatamente Klínias apareceu a seu lado.

-Ouve, Theras, já praticaste este desporto - perguntou ele em voz baixa.

- Oh, já! - respondeu o rapazito. - Lampon ensinou-me e eu treino quase todos os dias.

- Julgo que te vais sair bem - acrescentou Klínias. - Esses dois rapazes que o professor escolheu para competirem contigo são os piores corredores da escola. Batê-los-ás se te esforçares por isso.

- Vamos lá depressa - chamou o gimnasiarca, e num repente os três rapazes estavam prontos na linha da partida.

- Preparar! Prontos! Sigam

Com um arranque formidável, Theras partiu à frente. Sabia, contudo, que devia poupar-se a princípio e correr com passo firme. Não tirava os olhos da meta.

"Klínias disse que eu poderia ganhar a corrida e hei-de consegui-lo". - Ele não dizia isto em voz alta, mas algo dentro de si o repetia constantemente. Corria a par de Drias, atrás de Koretas, agora na dianteira.

Com efeito, Theras ainda não se esforçara. Nem perdera o fôlego nem se sentia cansado. Gostava de correr.

"Grande Hermes - pensou de súbito -, ali está a meta. Agora tenho de dar tudo por tudo."

Ultrapassou Koretas e os companheiros desataram a gritar "Pele Branca! Pele Branca " mas ele não os ouvia, tão concentrado ia na corrida.

-Por Zeus. Muito bem, muito bem! aplaudiu o gimnasiarca dando-lhe palmadinhas nas costas. - Um segundo Feidon!

Theras sabia muito bem o que significavam as palavras do professor. E que seu pai, ganhara a corrida em Olímpia, ainda ele não tinha nascido.

Klínias veio a correr.

- Eu já contava que ganhasses - exclamou, animadamente. - Tens boas pernas e fôlego.

Era fora de dúvida que não existia no universo rapaz que se comparasse a Klínias.

Theras conta o seu feito

Após as corridas, os rapazes tomaram um chuveiro de água fria na fonte, e os pedagogos friccionaram-lhes o corpo de cima a baixo.

Depois, obtida a reacção, voltaram a vestir-see empreenderam o regresso à cidade.

- Teu pai disse que podias oferecer isto às tuas irmãs-lembrou Lampon, passando-lhe para as mãos os dois bonecos que Feidon

tinha comprado no mercado.

As duas miudinhas estavam à espera na aula - um pátio descoberto que era a sala de estar da casa. Mal o avistaram, correram para ele de braços abertos. Ficaram tão contentes

com os bonecos, que nem se lembraram de fazer perguntas a Theras acerca do seu primeiro dia na escola.

Mas a mãe, Aretusa, quis saber o que se passara e ele então começou a contar-lhe tudo o mais depressa que podia.

- Oh mãe, eu escrevia na placa de cera. Oh mãe, eu ganhei uma corrida. Oh mãe, lá na escola há um rapaz chamado Klínias.

Falou durante todo o jantar. A língua de Theras dir-se-ia o badalo duma campainha que agitassem contìnuamente.

Porém, terminada a refeição, os seus olhos reflectiram cansaço e ele começou a cabecear.

- Acho melhor ir para a cama - disse. - Não estou com muito sono, mas tenho de me levantar às cinco horas da manhã para ir para a escola.

A última parte da sua frase era verdadeira, pois, em Atenas, as aulas começavam muito cedo.

 

                 A roda do oleiro

Noutro dia, quando Theras e Lampon voltavam da escola, quem haviam de encontrar senão Feidon?

- O quê! Já de regresso a casa - perguntou o pai.

- Sim, pois hoje é meio feriado - respondeu Theras.

- Está bem - e o pai sorriu -, passarás o resto do dia comigo.

Encontravam-se na Rua dos Marmoristas, onde todos trabalhavam em estátuas. "Clinque, clinque, clinque" - em toda a extensão da rua só se ouvia o barulho dos martelos.

Dali Feidon e o filho encaminharam-se para Kerameikos, o Bairro dos Oleiros, onde pararam diante duma loja, aberta em toda a largura da fachada. Como era divertido admirar o oleiro acocorado defronte da sua roda, a fazer uma jarra com barro mole!

A roda, de madeira maciça, sem raios, estava na sua frente como uma mesa, e o oleiro fazia-a girar constantemente. Atirou para o meio da roda uma mão-cheia de barro húmido e deu àquela massa que girava uma forma arredondada.

Com ambas as mãos o oleiro fez pressão sobre os lados, e a massa ganhou altura; em seguida pousou no meio um punho cerrado, abnndo assim um buraco. Com o movimento da roda, a massa vibrava, dando a impressão de ter vida própria.

- Oh, repare, repare - gritou Theras. Está a fazer um jarro!

Nessa altura o barro já tinha uma base larga e um gargalo alongado. Então o oleiro, afoitamente, deu-lhe um apertão.

- Oh, pai, estragou-o - exclamou Theras. O oleiro sorriu.

- O menino julga que sim? - perguntou ele e com um toque de mestre transformou-o num autêntico jarro.

Parecia obra de magia!

No interior do estabelecimento viam-se muitos jarros a secar em prateleiras.

Na loja pegada havia um grande forno com uma fogueira de lenha por baixo a aquecê-lo. Feidon disse a Theras que nesse forno estavam jarros a cozer como se fossem pastéis.

Mais adiante deparou-se-lhes outra loja com jarros já prontos e pintados de preto. Um homem, com um pincel fino, delineava figuras no barro avermelhado de um jarro. Depois pintaria o fundo a preto, fazendo, deste modo, sobressair os desenhos. Aquele jarro, para Theras, era como que um livro de histórias. De um lado via-se Telémaco a entrar no barco e a deusa Atena de pé, à proa, para o ajudar; e do outro, Telémaco, já em Esparta, a perguntar ao velho Nestor se sabia de Ulisses.

- Oh pai, compre-me aquele jarro - pediu Theras.

- Não devemos querer tudo o que vemos - respondeu Feidon, com firmeza. - Vou comprar aquele jarro grande, acolá, para a mãe.

Este era enorme, da altura de Theras, e com um gargalo largo. Tinha só uma faixa preta pintada em toda a volta, sem quaisquer desenhos.

- Em tua opinião, que é que a mãe porá neste jarro? - perguntou Feidon.

- Vai enchê-lo de trigo para fazer farinha para nós comermos - respondeu Theras e, por estranho que pareça, acertou.

 

       Dois Homens Valentes

Passaram-se duas semanas sem que Feidon

pudesse cumprir a promessa de levar seu filho à Acrópole. O pai de Theras era um homem sempre muito ocupado, embora, na verdade, não tivesse qualquer negócio especial. Nenhum cidadão ateniense da boa sociedade se dedicava a negócios ou trabalhos remunerados. Feidon possuía uma boa quinta no sopé dos montes Himetos e vários barcos. Na quinta trabalhavam escravos, sob a superintendência de um em quem ele tinha plena confiança. Feidon visitava-a uma vez por semana. Os seus barcos eram comandados por dois capitães a quem pagava.

No entanto, Feidon tinha ocupações, mas o que fazia era em prol da cidade, e não recebia por isso qualquer remuneração. Naquele ano desempenhava o cargo de juiz em Atenas, tinha de ser justo nas decisões que tomava, pois, de contrário, poderia ser castigado no fim do seu mandato.

Feidon estava também a pagar do seu bolso os ensaios de um coro que cantaria numa das próximas festas e ele mesmo ajudava a ensaiá-lo.

Quando chegasse o dia do espectáculo, toda a gente apreciaria o canto e a boa música.

Acima de tudo, porém, o pai de Theras era soldado, e por isso diàriamente se exercitava em corridas e na luta livre, de modo que, se Atenas entrasse em guerra, estivesse apto a combater por ela. Os Gregos lutavam corpo a corpo, e assim os melhores soldados eram us mais fortes e ágeis.

Feidon adorava todas estas ocupações que lhe causavam grande prazer e lhe preenchiam o dia todo.

Certa manhã porém, veio acordar Theras, dizendo-lhe:

- Calça as sandálias e veste a túnica! Hoje sempre vamos à Acrópole. O meu barco "Dafne" regressou a salvo da sua viagem e eu vou agradecer à deusa Atena.

Não demorou muito que se encontrassem a calcorrear as atraentes e tortuosas ruas. Em todos os cantos e esquinas se lhe deparavam estátuas. Diante de cada porta havia um Apolo Aguieu, assim Lhe chamavam, que servia de guardião à casa e preservava do mal os seus moradores.

Por fim desembocaram num largo onde viram as estátuas de dois homens inclinados para a frente e com espadas desembainhadas.

- Oh pai 1 Estão vivos - perguntou Theras disparatadamente, pois achavam-se pintados de cores vivas.

- Não os reconheces - perguntou Feidon. - Harmódio e Aristógiton?

Eram nem mais nem menos os dois heróis de uma cançãozita que Theras cantara com seis anos apenas. Tinham existido havia muito tempo, durante o reinado de um insuportável rei chamado "O Tirano". Este não tolerava que alguém discordasse das suas opiniões. Ele próprio fazia as leis e todos tinham de lhe obedecer - coisa bem terrível para os Atenienses, um povo cioso da sua liberdade.

Os dois jovens, Harmódio e Aristógiton, esconderam as suas espadas nuns ramos de murta que levavam para uma festa e, parando naquela esquina, surgiram de súbito e mataram o Tirano quando este ali passava. Infelizmente, também foram logo mortos pelos guardas do rei, mas, pelo menos, Atenas recuperou a liberdade.

- Ah Sim, sim, eu conheço-os - respondeu Theras e imediatamente começou a entoar com voz forte e nítida a canção em que se falava de uma espada escondida num ramo de murta, e do modo como Harmódio e Aristógiton mataram o Tirano e fizeram de Atenas uma cidade para homens livres, canção que repetiu durante todo o caminho, princi palmente a parte final.

 

             A subida à Acrópole

Bem certo que naquela manhã o coração de Theras pulsava alegremente. Estava tão radiante que não conseguia andar como de costume, mas sim aos pulinhos ao lado do pai. Se o seu professor o visse naquela altura, com certeza lhe aplicava um castigo.

Mesmo em frente deles erguia-se a Acrópole, parecendo elevar-se até ao céu. Começaram a subi-la.

A Acrópole não é exactamente um monte, mas uma enorme e sólida rocha com escarpas semelhantes às paredes duma casa e plana no cimo como uma mesa. Só a parte da frente é em declive e ali existe uma escadaria de már more.

À medida que Feidon e Theras subiam, mais leve e mais fresco se tornava o ar. A brisa das montanhas sussurrava-lhes aos ouvidos.

- Olha para trás agora - disse Fcidon.

- Lá em baixo fica a nossa cidade.

Podiam de facto distinguir as casas, pequeninas como brinquedos e as ruas serpenteando por entre elas. Uma muralha circular envolvia a cidade, de modo que ela, assim vista lá de cima, parecia estar dentro de um ninho.

Esta muralha fazia de Atenas uma cidade inexpugnável. Nessa época não havia espingardas nem canhões; só se combatia com espadas, lanças, setas e fundas, e por isso, à noite, quando os enormes portões da cidade se fechavam, ninguém podia lá entrar.

Subiram ainda mais e já podiam ver a planície com as suas quintas e olivedos que ficavam para além da cidade. As folhas cinzentas das oliveiras, assim vistas do alto, pareciam formar um manto de seda cintilante.

Para além das planícies, a nascente, erguia-se uma montanha maravilhosa, de um negro aveludado e brilhante, cor de uma ameixa bem madura! No cume via-se como que um anel vermelho, pois o Sol nascia àquela hora por detrás dela.

-Oh, pai, olhe para Himetos, e para o maravilhoso nascer do Sol! -exclamou Theras. - Bom dia, Montanha do Mel.

Chamava-lhe Montanha do Mel porque nas vertentes abundavam as abelhas e quase todo o mel existente em Atenas provinha de Himetos. Naquele tempo não havia açúcar e assim todos os doces e rebuçados que Theras comia eram de mel. Ora, quem nunca provou destas uloseimas que experimente e verificará que são mais doces e apetitosas do que as feitas com açúcar.

O mar era azul, muito azul e com tantas ilhas! Ilhas que pareciam "escudetes brilhantes naquele abismo resplandecente". Aquelas ilhas pertenciam a Atenas.

E agora. oh, agora tinham chegado ao cino! Lá estavam eles cercados de centenas de estátuas, pintadas de tal modo que pareciam seres vivos, rodeados de templos com colunas, numa palavra, no meio de todos os tesouros de Atenas

Mesmo na sua frente erguia-se a estátua da deusa Atena, de tamanho colossal, cinco vezes maior que qualquer ser humano, feita de bronze brilhante. Tinha um capacete na cabeça e segurava uma lança na mão. Os raios solares incidiam de tal maneira no capacete, que este brilhava como um espelho, e a ponta da lança parecia em brasa.

- Atena, Atena - gritou, erguendo para ela as mãos como numa prece. - Minha querida deusa!

O rapaz estremecia de contentamento. Feidon sabia que aquilo não passava de uma estátua, mas seu filho tinha a impressão de

tratàr-se da deusa em carne e osso.

Não o censuro, pois trata-se de uma estátua tão maravilhosa, que eu de boa vontade daria duas vezes a volta ao mundo só para a admirar.

 

                 A deusa Atena

A pessoa mais importante em Atenas, mas de longe a mais importante, era a deusa Atena-mais importante que Feidon, apesar de ele ser juiz, que Eurípides, um grande poeta, e que Péricles, o cidadão mais notável da cidade.

Mas Atena - objectareis - não era uma pessoa. Era uma deusa, uma espécie de mito. Donde lhe vinha tanta importância?

É que todos os habitantes de Atenas, com excepção de alguns filósofos sensatos, acreditavam nela.

Para os Atenienses ela representava o próprio Deus.

Os Atenienses acreditavm na existência de muitos deuses; Zeus, que provocava a trovoada e que era o senhor de todo o céu; Hermes, que tinha asas nos calcanhares e levava quem quisesse nas suas viagens; Artemis, a deusa das meninas pequeniinas. Estas, depois de crescidas, deviam oferecer-lhe os seus brinquedos. Havia muitos deuses e deusas - assim pensavam os Gregos - e cada cidade tinha os seus.

Atena era a deusa de Atenas, cidade que preferia a qualquer outra, na opinião dos Atenienses. Muita gente até pensava que ela vivia numa casa lá no alto da Acrópole.

As suas estátuas mostravam-na uma linda donzela, muito mais bonita que quaqluer outra rapariga, com capacete e couraça, porque quando havia guerra sempre acompanhava os Atenienses e combatia por eles. Tinha olhos cinzentos e o sorriso mais belo que se possa imaginar.

Se alguém estivesse em apuros, Atena calçava as suas sandálias, que nunca envelheciam, e voava em seu auxílio. Provàvelmente essa pessoa não a reconheceria. Julgaria tratar-se de um bom amigo das suas relações. Falava-lhe e ela dava-lhe conselhos e assistência. Em seguida de repente "o bom amigo" envolver-se-ia numa nuvem ou em neblina rósea e desapareceria. Só então aquele que se vira em dificuldades ficava a saber que estivera na presença de Atena.

Theras acreditava em tudo isto, mas não julguemos mal por assim pensar, pois Atena era a sua deusa. Todos os habitantes da cidade, mesmo os intelectuais, acreditavam nela, respeitavam-na e adoravam-na.

Dirigiam-lhe, com frequência, preces tão fervorosas e achavam-na tão bondosa e amável, que o verdadeiro Deus Todo-Poderoso as ouvia.

 

                   Na Acrópole

Quando Theras chegou à acrópole, achava-se nos domínios de Atena. Não admira pois que ele pensasse ser a grande estátua de bronze a própria deusa.

Theras e Feidon passaram por muitas estátuas de deuses guerreiros e heróis, e também de rapazes vencedores em corridas ou no lançamento do disco - todos de tal maneira pintados, que davam a impressão de serem de carne e osso. Pai e filho dirigiram-se imediatamente para o Pártenon, o belo templo de Atena, pois Feidon queria, antes de mais, agradecer à deusa o feliz regresso do seu barco.

A porta do templo ficava voltada a nascente, de modo que o sol lhe batia mal despontava no cimo da montanha. Agora já os raios solares iluminavam o interior e Theras ficou deslumbrado com um refulgente clarão de ouro.

- Que é isto? - murmurou.

Feidon pegou-lhe na mão e respondeu em voz baixa e solene:

-É a nova imagem de Atena, esculpida recentemente por Fídias.

No interior do magnífico templo os raios do sol, vindos de trás deles, incidiam no peito da imagem e, qual neblina dourada, reflectiam-se-lhe no rosto. um rosto enorme e pensativo! Tinha precisamente a cor rosada da face de Ópis, ao acordar de manhã. Os olhos cinzentos da deusa pareciam fitar os de Theras. Dir-se-ia sentir prazer em contemplá-lo, aperceber-se realmente da sua presença e ao mesmo tempo sonhar com o paraíso.

- Ela esteve a sonhar? - perguntou Theras baixinho.

Feidon não respondeu, mas quando o filho olhou para ele, viu lágrimas a correrem-lhe pelas faces. Apesar de tudo, não teve coragem para lhe perguntar o motivo dessas lágrimas. Sem dúvida eram de alegria por aquela imagem ser tão bela. Fora colocada ali havia pouco e não estava completamente acabada; Feidon ainda não tivera oportunidade de a admirar.

Por fim saíram. Feidon esqueceu-se de dizer a Theras que a imagem, que chegava até ao tecto do templo, era de marfim e ouro. A essa imagem chamavam Criselefantino.

Crys, em grego, significa ouro. Deixarei à vossa inteligência descobrir porque "elefantino" significa marfim.

Depois de Feidon fazer o seu sacrifício no altar defronte do templo, já nada os detinha ali.

Quando chegaram de novo à escadaria de mármore, Theras reparou numa pequena estátua que se erguia ao lado, um pouco inclinada para a frente e com as mãos estendidas. Havia um exíguo altar a seus pés, mas não se via nele quaisquer dádivas.

- Pai - murmurou novamente Theras -, olhe para a pobre deusa a pedir e ninguém llhe deu nada!

Feidon riu-se.

- Oh, não, meu filho Ela não está a pedir,

mas sim a dar. É a estátua de Higia (Saúde). Péricles mandou-a colocar aqui em acção de graças a Atena, pela cura de um escravo de quem ele era muito amigo e que se ferira gravemente. Esse escravo andava a trabalhar além

no Partenon, e caiu de grande altura, ficando tão maltratado, que todos julgavam que morresse, mas depois de muitas orações, restabeleceu-se completamente. Então Péricles encarregou Fídias de £azer esta estátua de Higia distribuindo saúde.

Já a haviam ultrapassado, mas Theras voltou atrás a correr para observar melhor.

- Não, pai. Penso que a pobre deusa quer dádivas. Se pudéssemos dar-lhe alguma coisa!

- Já distribuí todas as oferendas que trouxe - respondeu Feidon.

Mas enquanto desciam as escadas e mesmo depois de chegar a casa, Theras não recordava a grande deusa com a lança comprida, nem a maravilhosa e sorridente deusa dourada que vira no templo, mas sim a pequena "Saúde" colocada ao cimo da escadaria de mármore, que não recebera dádivas nenhumas.

 

             A maneira como Teras fugiu

Certo dia, quando Theras já tinha dez anos, o pai deu-lhe duas dracmas.

Foi a primeira vez na vida que o miúdo recebeu dinheiro de Feidon que sempre achara preferível comprar ele próprio aquilo de que o filho precisasse.

Agora, porém, estava resolvido a levar Theras ao mercado, chamado Ágora, e deixá-lo por lá vaguear uns momentos, a fim de comprar algum brinquedo. Era uma época festiva e portanto havia férias na escola.

-Mas, filho, só te posso levar amanhã - disse Feidon. - Guarda cuidadosamente as duas dracmas até então.

Eram duas moedas tão lindas aquelas dracmas! Tinham a imagem de Atena de um lado e um mocho do outro e eram de prata brilhante.

Theras brincou com elas toda a manhã - atirava-as ao ar, corria a apanhá-las e fazia-as girar no solo como um pião.

Foi a velha Gorgo, a aia, que lhe deu uma nova ideia sem querer.

-Sim, continua a brincar com elas que ainda as perdes. Teu pai devia ter-te levado hoje para as gastares. Amanhã já não haverá dracmas!

-Não as perderei, Gorgo.

-Ai isso é que perdes, tenho a certeza,

pois conheço-te bem - disse ela.

Theras parou de brincar. Que ideia triste!

No dia seguinte, já não teria o dinheiro e por isso não iria ao mercado.

De repente pensou: "Devia mas era ir hoje ao mercado e ir sòzinho."

Sabia sem dúvida que aquilo era um disparate. Nenhum rapaz da sua idade tinha licença de ir ao mercado sòzinho. O pai mostrara-se demasiado indulgente em querer levá-lo, embora por breves momentos.

Theras saiu devagarinho. Pensava, talvez, em entreter-se a brincar defronte da casa e não ir mais longe, mas quando se apanhou cá fora, não se via ninguém ali perto, e até o velho escravo que servia de porteiro estava distraído, não dando pela sua presença.

Começou então a andar pela rua abaixo, a princípio muito devagar mas depois cada vez mais depressa, à medida que se entusiasmava com a ideia de ir sòzinho. Os rapazes daquela idade nunca andavam sem companhia a vaguear pela cidade; havia uma boa razão para assim se proceder e Theras iria descobri- la antes de o dia acabar. Conhecia o caminho muitíssimo bem, não fosse ele todos os dias para a escola com Lampon.

Pouco demorou a chegar ao mercado. Estava repleto de gente e lá se encontrava a tenda dos brinquedos e o homenzarrão sempre a gritar:

- Comprem os meus brinquedos! Comprem os meus brinquedos! Lindas bolas vermelhas para raparigas e rapazes!

Theras dirigiu-se à tenda e escolheu uma grande bola vermelha, que até Aglaia conseguiria agarrar.

"Eu e Aglaia vamo-nos divertir com ela" - pensou ele.

- Quanto custa? - perguntou.

- Essa é a melhor bola que tenho aqui na barraca. Custa uma dracma.

Theras ficou radiante por ter escolhido a melhor bola que o homem tinha à venda; e sem perda de tempo pagou-lhe uma dracma. Os olhos do homem até brilharam de contentamento. É que uma dracma valia cinco vezes mais que a bola. Era a primeira vez que o pequeno lidava com dinheiro.

Precisamente naquela altura alguém lhe falou

-Theras, filho de Feidon, que fazes tu aqui sòzinho no mercado?

Era nem mais nem menos que o amigo de seu pai, Epikides, que olhava para ele muito admirado.

O rapazito enrubesceu de tal maneira que ficou da cor da bola que tinha comprado.

- Vou agora para casa - disse, envergonhado. - Vou imediatamente.

- Acho bem - disse Epikides a sorrir-se.

Theras então atravessou, a correr, o mercado em direcção à rua por onde tinha vindo.

Uma vez ali notou, porém, que levava a bola vermelha numa das mãos e uma dracma na outra. Que pena não gastar as duas dracmas enquanto estava só!

Então, sùbitamente, pensou na pequena deusa da Acrópole, a deusa Higia que lá estava de mãos estendidas, mas sem esmolas. Que ideia maravilhosa, comprar um bolo de aveia para Higia e depois... Oh, e depois subir a Acrópole e oferecer-lho! Com certeza seu pai não se zangaria por ele dar presentes às deusas.

Esta era a melhor acção que um ateniense podia fazer!

Com todo o cuidado, Theras correu, furtivamente, de novo para o mercado; Epikides, porém, havia desaparecido. O pequeno dirigiu-se à barraca dos doces e lá encontrou os bolos de aveia, chatinhos, feitos especialmente para as deusas. Havia lá também mirra em pó para ser queimada no altar.

À volta daquela barraca pairava um agradável aroma que se desprendia da mirra. Os Atenienses pensavam que, quando o fumo perfumado chegava ao céu, os deuses aspiravam-no com imenso prazer.

- Quero dois bolos de aveia e um pouco de mirra - pediu Theras.

- São quatro óbolos - disse o homem.

- Uma dracma chega - perguntou o pequeno.

- Oh, chega, por ser para o menino - respondeu o vendedor, piscando o olho.

Ora como uma dracma tinha seis óbolos mais uma vez Theras pagava demasiado; mas ele estava muito satisfeito.

Depois de o homem lhe dar a mirra num vaso pequenino, Theras pôs- se a contemplar a colunata que ficava ali ao lado e onde se admi ravam os desenhos maravilhosos de Polignota. Ali se viam os guerreiros a lutar em Tróia tal como Perimedes se referira na canção que cantava na escola. Sim, aqueles maravilhosos guerreiros com as suas compridas lanças. Theras sabia os nomes de todos. E porque não? Se eles se encontravam escritos ao lado de cada um!

Lá estava Ulisses, pai de Telémaco, a construir o grande cavalo de madeira - Theras tê-lo-ia conhecido por isto, mesmo que o seu nome não se lesse ao lado -, um cavalo oco dentro do qual, mais adiante, os guerreiros se escondiam - e que, a seguir, os gregos ofereh ciam de presente aos troianos.

Theras, radiante, contemplou aquele quadro. Sempre desejara conhecer Ulisses e agora ali estava ele na figura de um grande guerreiro de capacete e espada. Ver desenhos constituía um prazer especial para um rapaz ateniense.

Olhou em volta e reparou que o vendedor de brinquedos também admirava os desenhos. Já tinha vendido tudo na sua barraca e agora divertia-se um pouco. O rapazito alegrou-se de o ver, mas naquela altura lembrou-se de que ainda tinha de ir à Acrópole oferecer os presentes à deusa da Saúde.

Assim, após outra olhadela aos desenhos, afastou-se apressadamente.

 

           Para a deusa que não tinha presentes

A rua larga ia directamente do mercado à Acrópole, e assim Theras não se podia enganar no caminho. De vez em quando, tirava para fora o vaso de mirra e deleltava-se com o perfume. Que cheirinho agradável e como a deusa iria ficar satisfeita com ele!

Por fim embrulhou os bolos e o vaso da mirra na capa. Era esta uma peça de vestuário sem a qual nenhum rapaz ateniense sairia de casa, e Theras, apesar de se ter escapado apressadamente, não se esquecera de levar a sua.

Começou então a subir as escadas de mármore da Acrópole, como da primeira vez que lá fora com o pai. Theras não tinha tempo de se voltar para trás a admirar a cidade maravilhosa ou os montes Himetos, mas quando viu o mar deu um profundo suspiro. Adorava-o.

Todos os Atenienses o adoravam.

Finalmente achou-se no cimo da escadaria entre uma verdadeira floresta de estátuas. Por trás destas, os dois templos de Atena - o pequeno Erecteon e o majestoso Pártenonpareciam sorrir-lhe de satisfação por o verem ali.

E logo ali a dois passos, à sua direita, estava a pequena deusa que ele viera visitar, ainda com as mãos estendidas à espera de donativos.

Theras olhou tìmidamente em redor, sem atinar o que fazer.

Um zelador do altar, dirigiu-se-lhe e perguntou:

- O menino procura o seu pedagogo?

-Não, não procuro. Eu tenho aqui uns presentes para a deusa Higia mas não sei como hos hei-de oferecer.

O zelador usava uma capa curta muito branca e trazia na cabeça uma coroa de flores.

Theras gostou dele mal o viu, pois tinha ar de boa alma.

- Eu ajudá-lo-ei - ofereceu-se o zelador com toda a amabilidade.

Trouxe então uns ramos de cedro e um archote aceso. Fez uma coroa de jacintos e colocou-a na cabeça de Theras. Pôs os ramos no altar de Higia e chegou-lhes o fogo com o archote.

- Agora, menino - disse ele, e Theras colocou em cima das chamas, primeiro a mirra e depois os bolos.

- Pensa que ela também gostaria da minha bola vermelha? - perguntou o rapazito num sussurro. - Já há tanto tempo que ninguém lhe trouxe presentes!

-Não! Julgo que prefere que o menino a guarde para si - respondeu o homem, amàvelmente.

Então o cheiro agradável da mirra perfumou a atmosfera. O fumo azul elevava-se em espirais à luz do Sol e chegava ao nariz da deusa. Theras convenceu-se de que Higia aspirava aquele aroma e lhe sorria.

Manteve-se em religioso silêncio, de mãos erguidas a pedir à deusa protecção para seu pai mãe e irmãzinhas.

- E lembra-te também de mim, Higia, que te trouxe estes presentes - suplicou ele.

Esta prece foi com certeza ouvida por alguém que naquele dia concedeu a Theras a sua protecção.

 

             O templo Pártenon

Terminada a cerimónia, o zelador retirou-se para tratar de outros serviços.

Theras dirigiu-se então, vagarosamente, para o Pártenon. Diante deste, por cima do pórtico - a parte chamada frontão - trabalhavam alguns homens. Andavam a esculpir uma estátua de Apolo. Ainda não estava acabada e tinha até um aspecto esquisito, como se um véu a cobrisse. O pequeno teve de adivinhar onde ficavam a cabeça, as mãos e os pés. Estava planeado esculpir estátuas de vános deuses por cima do pórtico do templo, sentados e como que reunidos a conversar.

Theras pôs-se a ver os homens a trabalhar e a admirar o templo. Que cores maravilhosas!

Vermelho, azul e dourado! E que altas e imponentes as colunas do pórúco bem como as que se erguiam em toda a volta! Nos cunhais viam" -se gárgulas de bronze em forma de grifos com as asas abertas. Dir-se-ia que todo o templo poderia voar graças àquelas asas.

Ali de pé, muito quieto, Theras sentia-se invadido por uma tranquila felicidade. Ele desconhecia a razão, mas essa felicidade resultava da beleza do templo, daquele templo a que a luz do Sol dava um ar de novo e sagrado.

Era o edifício mais belo do mundo e ainda hoje - já lá vão dois mil e quinhentos anos -, todo em ruínas, sem o telhado nem as maravilhosas estátuas dos deuses, continua a ser considerado como tal; e todos quantos o contemplam, experimentam essa estranha sensação de felicidade.

 

           O bondoso homem dos brinquedos

Alguém tocou no ombro de Theras e o interpelou nestes termos:

- Muito bem, menino! Então cá por fora sòzinho, a ver a cidade?

O rapazito voltou-se e deparou-se-lhe o homem da tenda dos brinquedos, aquele que lhe tinha vendido a bola.

- Sim - respondeu. - E agora vou-me embora.

- Já? Mas o menino pouco viu da nossa maravilhosa cidade.

- Vi o mercado e a Acrópole - insistiu Theras.

- Oh! Isso não é nada. O dia está ainda a começar. Já conhece o Pireu?

Apontou para baixo, para a beira-mar, para a pequena cidade do Pireu, onde os barcos enxameavam, como abelhas em volta dum canteiro de flores. Era ali que atracavam todas as embarcações de Atenas.

- Meu pai já me levou lá uma vez para ver os barcos - respondeu Theras.

-Oh, mas eu gostava de lhe mostrar o maravilhoso barco que agora lá está ancorado. É o Medusa, a mais moderna unidade da nossa Armada. Só lhe digo que o forte esporão que tem à proa semeia a morte entre as embarcações inimigas de Atenas...

-Vou pedir a meu pai que me leve lá amanhã - disse o pequeno.

-Amanhã é tarde, pois o barco levanta ferro hoje à noite.

Theras ficou muito triste.

- Eu levo-o agora, se quiser, e depois trago-o até à porta de sua casa - propôs o homem.

- Oh O senhor faz isso - exclamou Theras. - O senhor faz isso!

Pensou que o homem era muito bondoso por se ter oferecido para o acompanhar. Por princípio nenhum se mostraria indelicado recusando tal oferta. E queria tanto ver aquele barco! Seria mais um entretenimento antes de regressar a casa.

- Então vamos - disse radiante.

O homem pegou-lhe na mão. Theras, porém, ao reparar naqueles dedos sujos e grosseiros, libertou-se disfarçadamente, embora continuando ao lado do seu companheiro.

Seguiram então até uns degraus grosseiros talhados na rocha nas traseiras da Acrópole. Era aquele o caminho mais curto, disse o homem, Theras achou bem divertido descer por ali. Depois prosseguiram através de ruas desconhecidas e estreitas e da comprida estrada ladeada de muralhas que ligava Atenas ao Pireu. Quando por fim atingiram o porto, Theras estava estafado e a transpirar.

 

         O cruel homem dos brinquedos

Lá se encontrava o barco com um grande dragão pintado à proa, de aspecto terrível e balouçando com o movimento das ondas, dando até a impressão de ter vida própria. Por baixo do dragão viam-se bicos de ferro aguçados como lanças.

- Como vê, tem quatro bicos - disse o homem.

- Eu só vejo três - replicou Theras, que já esquecera a fadiga. O navio era de facto maravilhoso.

- Quatro, digo-lhe eu. Suba para ali e verá melhor.

Ajudou o pequeno a subir para a coberta dum pequeno barco que começou a navegar em direcção ao navio.

E o grande casco do Medusa foi ficando cada vez mais próximo, até que, por fim, a imponente embarcação se apresentou, aos seus olhos, vermelha e brilhante.

-Para onde é que vai? O Medusa já está para trás?

- Foi o vento que nos afastou um bocadinho, mas não faz mal.

- Mas então porque está a içar a vela? - perguntou Theras.

- Oh Há mais coisas para ver - respondeu o homem, com toda a calma.

Que pequeno começou, de súbito, a parecer o grande navio! Como ficavam agora distantes, bem distantes, os cais do Pireu! Em

redor deles só se via a imensidade do mar!

- Para onde vai - insistiu Theras cheio de medo.

- Cala-te! - ordenou o homem, em tom duro. - Se gritas, apanhas!

O pequeno ficou tão admirado, que por momentos não conseguiu falar. Por fim observou:

- Não se atreva! Sou filho de Feidon.

- Filho de Feidon ou não, mato-te se fizeres barulho.

Theras, graças à sua grande agilidade, de pressa chegou à borda do barco e lançou-se á água. Como era bom nadador, julgava que chegaria fàcilmente a terra.

De súbito porém, um marinheiro, surgido não se sabe donde, agarrou-lhe por uma perna e puxou-o para trás. Theras desatou então a gritar muito alto, mas já ninguém o ouvia, tão afastados estavam de terra.

Os dois homens amarraram-no de pés e mãos apesar da sua resistência e correram para a vela e para o leme.

- Para onde vamos - perguntou o marinheiro.

- Para Quio - respondeu o homem dos brinquedos.

- Oh não, não - replicou Theras, pois sabia que Quio era uma pequena ilha onde havia um mercado de escravos.

O homem ia, com certeza, vendê-lo como escravo. O pequeno chorava. De repente, porém, calou-se, convencido de que nada adiantava com isso. Ninguém o podia ouvir nem ajudar, tão longe se encontrava da costa.

Deixou-se, pois, estar sossegado e começou a estudar a forma de safar-se dali.

"Quando o mercador de escravos me comprar em Quio, dir-lhe-ei que Feidon de Atenas lhe pagará muito dinheiro pelo meu resgate e assim regressarei a casa" - pensou ele.

Sabia que o pai venderia todos os seus escravos, os seus navios e a sua casa para recuperar o filho querido. Pobre Feidon!

Aquela longa tarde lá se foi passando vagarosamente. Os dois homens amaldiçoaram o vento por este ter deixado de soprar, tornando inútil o uso da vela. Conseguiram, porém, avançar um pouco servindo-se dos remos, e entretanto iam falando de Theras.

- Quanto pensas que o rapaz renderá? - perguntou o marinheiro.

- Oh, espero que me paguem por ele duas moedas de prata. Tem bom aspecto, parece prometedor e capaz, para já, de fazer recados. Se não conseguir vendê-lo em Quio, irei a Éfeso. Conheço um mercador persa que costuma lá ir negociar.

Theras sentiu calafrios de medo e teve de fazer grandes esforços para não chorar. Iria ele ser moço de recados às ordens dum patrão cruel que o obrigaria a correr sob o sol ardente e lhe daria pancada todos os dias? Ou, o que seria ainda pior, escravo de um persa? Os Persas costumavam cortar as orelhas aos escravos desobedientes. Oh, nunca mais tornaria a ver seu pai! Ele sabia como seria fácil aqueles homens esconderem-se em qualquer baía das ilhas. Feidon jamais os encontraria. Theras pensou na mãe e na pequenina Ópis que, com certeza, perguntaria por ele.

Então o vento levantou-se novamente, e enfunou a vela, fazendo o barco mover-se a uma velocidade razoável.

- Óptimo. Bendito seja Zeus - exclamou o vendedor de brinquedos. Theras voltou-se para esconder a cara. Não podia reprimir as lágrimas, pois sabia que se estavam a aproximar de Quio.

Não soube por quanto tempo chorou, porque, por fim, adormeceu.

 

               O Salvamento

Foi acordado pelo balouçar do pequeno barco. Os dois homens andavam numa barafunda desatinada, uxando as velas como se hoúvessem perdido o juízo. Ora rezavam, ora praguejavam. Theras nunca ouvira tão horríveis palavras.

-Vira por de avante, que a Moira (*) te confunda! - gritou o vendedor de brinquedos.

- Avia-te, que não tarda aí.

Theras sentou-se. Não podendo usar os braços, por estarem amarrados, serviu-se dos

 

(*) O mesmo que Porca, em grego.

 

fortes músculos da cinta, como fazia no ginásio, e sentou-se de repente.

O Sol, qual bola vermelha, escondia-se no Ocidente, e o mar apresentava uma tonalidade purpurina tão intensa, que parecia capaz de tmgir o próprio barco que ah vogava. O céu era cor-de- rosa e nele se viam pequenas nuvens levemente rosadas.

Então Theras viu ao longe um navio grande, com muitos remos de ambos os lados, que brilhavam como asas em movimento. Aproximava- se a tal velocidade, que de momento para momento o seu tamanho aumentava.

Era, sem dúvida, o navio ateniense, o Medusa, que Theras vira no Pireu.

- Oh Atena - suplicou Theras. - Faz com que o navio me salve e me leve para Atenas, a tua cidade!

O Medusa aproximava-se cada vez mais. Agora já se distinguia o dragão vermelho da proa, que avançava mergulhando e emergindo das ondas a sorrir como se sentisse alegria por encontrar o pequeno barco. Sim, já estavam a aprontar a escada de corda.

Os compridos remos, ao embater na água, produziam um som plangente e atiravam ao ar borrifos cintilantes.

O vendedor de brinquedos, soltando um grito, pulou pela borda fora e afastou-se a nadar. O companheiro, porém, ficou tão assus tado, que não teve coragem para o imitar.

O navio já estava ao lado deles. Alguns marinheiros saltaram àgilmente para o pequeno barco, mas mais rápido que eles foi Feidon!

Ali estava o pai que Theras pensara nunca mais voltar a ver.

- Theras - chamou Feidon. - Meu filho, meu querido filho!

Pegou nele ao colo. Com a espada cortou as cordas que lhe sujeitavam os pulsos e os tornozelos. Beijou-lhe os braços e as pernas, feridos e a sangrar. Até chorava de alegria.

Em seguida subiu pela escada de corda, levando o filho ao colo. Quando chegou ao navio, voltou a cobrir Theras de beijos como nunca fizera antes.

Quanto ao pequeno, mantinha-se bem agarrado ao pai e escondia de encontro a ele o seu rosto, cheio de alegria.

- Fugi - balbuciou. - Oh Estou arrependido, bem arrependido!

-Os deuses já te castigaram, meu filho.

Tenho a certeza de que nunca mais fugirás.

Lá estava também Epikides, que ajudara a encontrar Theras.

O navio deu meia volta e pôs-se a navegar em direcção a Atenas.

- Filho; estás com fome – perguntou Feidon.

- Oh pai, tem alguma coisa que se coma? - quis saber Theras com uma cara tão engraçada, que os circunstantes desataram todos a rir.

Feidon deu-lhe pão, queijo, leite de cabra e mel. Nunca o rapazito comera coisa alguma que lhe soubesse tão bem.

- Oh pai Que bom ter trazido isto - exclamou com a boca cheia.

- A ideia foi da tua mãe - disse Feidon.

- Coitadinha!

Sim, coitadinha! O pequeno ficou mais envergonhado que nunca, pois a mãe continuava à espera em casa sem saber o que tinha acontecido.

- Olha - apontou o pai. - Lá está a nossa querida Atenas!

De facto divisava-se a praia, à beira-mar qual escura bruma de tom violáceo sobre a qual brilhava intensamente o clarão dourado - produzido pela lança de Atena sob a acção dos raios do sol, no seu ocaso - da grande estátua da deusa, a maior de todas, que se erguia na Acrópole, no exterior do templo, com a lança erguida para que os mareantes a vissem de longe.

Frente àquele espectáculo, os olhos de Theres encheram-se de lágrimas.

- Oh pai! Julguei nunca mais ver Atenas!

- Sim, filho, se Epikides não te tivesse encontrado sòzinho na Ágora, talvez nunca mais a visses.

Theras sentiu um nó na garganta, de medo e contentamento.

 

         O regresso a casa

A mãe esperava-os à porta para lhes dar as boas-vindas. Como ela sorria, chorava e voltava a sorrir cheia de alegria! Parecia extremamente pálida, como se estivesse doente há muito tempo. As pequenas Aglaia e Ópis pulavam em redor dos adultos, perguntando a si próprias por que razão se mostravam todos tão surpreendidos com o regresso de Theras cuja ausência se prolongara por um dia apenas.

- Mas ele não tinha ido para a escola? - perguntou Aglaia.

- Não - respondeu Gorgo, a ama -, e se fosse meu filho apanharia uma grande surra.

- Mas, Gorgo, eu não preciso de nenhuma surra - exclamou Theras. - Nunca mais fugirei! Nunca mais, nunca mais.

A pequena Ópis, apesar da sua pouca idade, parecia adivinhar que quase perdera o irmão mais velho. Agarrou-lhe na mão com todo o carinho e sentou-se a seu lado; e se Theras se levantava, corria logo atrás dele.

Não tardaram a ir todos para a cama. Com efeito a hora de deitar já passara havia muito.

Quando, porém, tentaram levar Ópis, esta desatou a chorar tanto, que até Gorgo teve pena dela.

- Então... então, queridinha - exclamou.

-A pequenita Ópis vai dormir esta noite mesmo ao lado do maroto do seu irmão.

- Maroto, não Maroto, não - protestou a pequenita.

Theras adormeceu mal a sua encantadora cabeça pousou no travesseiro e a pequenita Ópis deitou-se ao seu lado; mesmo a dormir conservava os seus dedinhos agarrados à mão do irmão.

 

           Um soldado maravillhoso

Certo dia, mais de um ano após o que acabámos de relatar, houve grande excitação em casa de Feidon, maior ainda do que quando do desaparecimento de Theras. Desta vez era Feidon que ia empreender uma perigosa viagem: ia combater por Atenas.

Atenas tinha numerosos pequenos estados sob o seu domínio. Constituíam-nos ilhas pouco extensas espalhadas pelo mar. Talvez se lhes pudesse atribuir diminuta importância devido ao seu reduzido tamanho. Cada uma dessas ilhas, porém, tinha uma cidade, divindades e leis próprias e dinheiro com a efígie dos seus deuses ou deusas. Qualquer delas era habitada havia centenas de anos, e algumas já gozavam de grande fama antes de Atenas existir.

Ora os habitantes de uma dessas ilhas, de nome Samos, tinham-se insubordinado e os Atenienses iam puni-los. Talvez pudessem tê- los tratado com mais brandura, mas o conflito azedara-se, e agora os bons atenienses tinham de partir.

Toda a gente da casa se reuniu em volta de Feidon, acarinhando-o. A maioria dos escravos chorava.

No pátio, Aretusa, com o auxílio de Lampon, ajudava Feidon a envergar a armadura que o protegeria das lanças e espadas do ini migo. Primeiramente colocou-lhe a couraça de bronze brilhante que lhe cobria o peito e as costas; em seguida, o saiote curto, de tiras de couro recobertas de metal; depois, as grevas ou polainas metálicas; e por fim as sandálias.

Entregou-lhe então o escudo que um escravo tinha polido de tal maneira que até parecia um espelho. Quando Theras se aproximou, pôde ver reflectidos nele a sua cara, redonda como a Lua, e bem assim todo o aposento, que parecia um pequeno quadro. No meio do escudo estava um "A" que queria dizer Atenas.

Depois, Aretusa, pondo-se em bicos de pés, colocou na cabeça do marido o capacete, também dourado e muito brilhante, com um penacho vermelho de crina de cavalo que se agitava brandamente no topo.

Theras, olhando para o pai, exclamou:

- Oh pai Que soldado maravilhoso! Nunca pensei que lhe ficasse tão bem. Deixe-me também ser soldado, pai!

- Quando tiveres idade, meu filho - disse Feidon, solenemente. - Com certeza um dia serás soldado.

Então Aretusa abraçou o marido e beijou-o, e em seguida correu pelas escadas acima, pois não queria que ele a visse chorar. Não o acompanharia ao navio. Isso não ficava bem a uma dama ateniense.

Theras, porém, ia com o pai até ao porto, e por isso estava radiante. Durante todo o caminho não se cansou de a admirar, observando com que graciosidade a alta pluma ondulava à brisa, como a ponta da sua lança brilhava. E como lhe pareciam estranhos o som dos passos do pai, o "clique, clique" do saiote metálico e o tinido do escudo ao roçar pelas grevas.

De todas as ruas e esquinas apareciam outros soldados atenienses com os seus capacetes, escudos e lanças, e o seu número foi aumencando até formarem multidão. Por fim, tomaram a estrada ladeada de muralhas que ligava a cidade ao Pireu.

Que esplêndido aspecto eles tinham! As lanças formavam uma floresta cintilante, que avançava compassadamente, e os penachos dos capacetes - vermelhos, azuis e cor de laranja tinham mais colorido que um jardim cheio de flores.

O mercado de escravos

De repente a estrada alargou. Achavam-se na cidade portuária do Pireu. As ruas estavam apinhadas de gente que acorrera para assistir à largada dos navios com os soldados.

- Lampon, pega no menino ao colo senão ele sufocará no meio de tanta gente.

O pedagogo pôs Theras aos ombros; assim ele podia aspirar o cheiro da água salgada e ver, para lá da multidão, os mastros dos navios e as velas de couro, vermelho-laranja. Que barulho! Comparado com aquele local o mercado de Atenas era bem sossegado. Aqui um marinheiro discutia acerca do seu salário; ali um grupo de capitães de barcos bebiam, muito animados. Noutro sítio, um comerciante gritava: "Deixem passar os meus cavalos e potros que acabam de desembarcar!" Mais além, um homem consertava o seu barco, ouvindo-se as pancadas do martelo. Escravos colocavam pesadas cargas sobre o lombo dos burros e faziam-nos caminhar soltando altos gritos.

Como Feidon abrisse caminho através do mercado de escravos, um vendedor deteve-lhe a marcha.

- Senhor, vem ver os meus escravos há pouco desembarcados. Trabalhadores possantes, escravas bonitas e dóceis para serviços domésticos. Vem, vem vê-los.

- Sai do meu caminho - exclamou Feidon, furioso. -Não vês que vou embarcar?

Mas naquele momento Theras gritou:

-Pai, pai, olhe aquele rapazinho acolá sobre o estrado. Está preso por um cadeado.

-Sim, filho, o mercador quer vendê-lo.

- Mas, pai, não é um escravo. Olhe para ele.

Feidon parou.

-Na verdade não parece um escravo.

O rapazinho era talvez dois anos mais novo que Theras. Lá estava de pé com a cabeça bem levantada, como que para toda a gente notar que não era escravo. Quem reparasse nos seus lábios, verificaria que tremiam e tinha os olhos fitos na distância como se sentisse saudades do lar. Talvez por isto é que Theras teve tanta pena dele.

- Suponho que eu me veria em iguais circunstâncias - lembrou Theras com a voz embargada - se o homem dos brinquedos tivesse conseguido levar-me!

- Deves agradecer a Atena - disse Feidon. Naquele momento um egípcio com olhos de lince dirigiu-se ao mercador e perguntou-lhe quanto pedia pelo rapazinho.

Theras soltou um grito de terror e, pulando dos braços de Lampon, sem que este conseguisse detê-lo, correu para o egípcio e bradou-lhe:

- O senhor não pode adquirir este rapaz! Ele é meu, muito meu, é o que lhe digo O meu pai vai comprar-mo.

Feidon seguiu-o apressadamente.

- Meu filho. meu querido e imprudente rapaz - cclamou. - Não me convém agora comprar um escravo.

- Oh, mas tenho a certeza que o pai não permitirá que ele seja vendido a mais ninguém!

Theras estava tão aflito e transtornado, que Feidon mudou de ideias. Estava satisfeito por ver que o filho tinha bom coração.

- Meu menino - perguntou ao pequeno escravo-, de onde és tu?

O rapazinho não respondeu. Com certeza não acreditava que alguém lhe voltasse a falar com tanta meiguice. Feidon teve de repetir a pergunta.

Pareceu então acordar dum sonho.

- Sou de Mileto.

- O teu pai era escravo em Mileto - inquiriu Feidon.

- Oh, não, não, não! Que o leva a pensar que meu pai era um escravo?

Os olhos do rapazinho estavam cheios de lágrimas.

- Meu pai - prosseguiu - era um grande senhor. Foi por isso que o rei Persa o matou.

-Oh! Então era inimigo do grande rei! Fazia muito bem.

- Sim - respondeu o pequeno, em tom sonhador. - Eu também nunca me ajoelharei diante do grande rei.

Estava, sem dúvida, a repetir uma frase que tinha ouvido ao pai e exprimia-se perfeitamente em grego.

-Por Zeus, não admito que se vendam verdadeiros gregos em Atenas. Ouve, menino. Vou comprar-te mas não para meu escravo. Quero-te, para companheiro de brinquedos de meu filho e, quando regressar, dar-te-ei a liberdade.

O rapaz atirou-se ao pescoço de Feidon que o apertou nos braços.

Theras tentou partir a corrente que prendia o rapazinho, mas não conseguiu. Foi o vendedor que teve de a cortar. Então o filho de Feidon começou a bater palmas.

- Vais ser o meu irmão, o meu irmãozinho - dizia para o outro rapaz.

Este, porém, paralisado pela estupefacção conservava-se agarrado ao pescoço de Feidon, e todo tremulo fitava Theras que dava saltos de alegria.

 

                   A partida do pai

Terems de nos apressar senão chegarei atrasado ao meu barco - disse Feidon. - Lampon, leva este menino que eu encarrego- me de Theras.

Naquele momento apareceu Epikides, também completamente equipado para embarcar.

- O quê, Feidon - exclamou com uma risada. -A comprar um escravo nesta altura?

- Foi por compaixão e quero deixá-lo a Theras para que ele se recorde semprc de mim.

"Que quereria o pai dizer com aquilo? " - cogitou Theras.

Depois de caminharem por momentos a passo apressado chegaram à base naval de Cântaros. Na verdade, o mar parecia habitado por deuses e dragões. Todos os navios tinham uma grande imagem pintada à proa. O Boar ostentava um feroz javali com dentes enormes; o Nilo um crocodilo; o Centauro a pintura de um ser meio homem e meio cavalo. Todas aquelas figuras dançavam e se moviam, sem descanso, na água como se tivessem vida própria.

A fim de embarcar os guerreiros, um navio deslizou majestoso para o cais de onde outro estava prestes a largar, enquanto um terceiro, à saída do porto, esperava pelos restantes. Muitos daqueles navios não eram de guerra, mas grandes barcos mercantes destinados ao transporte de tropas. As velas, vermelhas e cor de laranja, azuis e amarelas, eram tão garridas como um jardim florido.

Conversava-se, ria-se, davam-se ordens e gritavam-se adeuses.

Os barcos são talvez a mais bela obra do homem, mas entre os mais bonitos de todos contam-se os veleiros e as trirremes. Barcos à vela toda a gente conhece, mas as trirremes e as birremes hoje já não se constroem.

Trirremes eram barcos compridos e estreitos - alguns com mais de trinta metros. Dentro do casco e ao nível da linha de água sen tavam-se cinquenta e quatro remadores cujos remos passavam através de aberturas existentes

no casco do navio; a um nível superior, iam mais cinquenta e oito, com remos mais compridos, e, por último, acima destes, sessenta e dois com remos mais compridos ainda. Imaginem o que seria um barco com oitenta e sete longos remos de cada lado!

À proa sentavam-se dois chefes de remadores. Quando estes davam ordens, os remadores aprontavam-se. Então gritavam "Larguem!" e as três filas de remos de cada lado do navio, cento e setenta e quatro ao todo, caíam ao mesmo tempo produzindo um som forte ao embaterem na água, que espumava como se estivesse cheia de sabão, e o barco punha-se em andamento. No entanto, Theras não pensava em sabão, pois era coisa que ele nunca vira.

- Olha, Maro - chamou ele, pois o outro rapazinho já lhe tinha dito o nome. - Aí vem o navio do pai, o Euterpe, o que tem o busto duma deusa à proa e traz todas aquelas flamulas azuis a tremular ao vento... Oh, vai atracar!

Maro largou a mão de Lampon e veio logo para junto de Theras. Como um irmãozinho mais novo, sentiu-se mais satisfeito e seguro quando agarrou na mão do companheiro.

Então, como um cisne gracioso, a grande trirreme Eutere começou as manobras da atracagem, avançando, rodando sobre si própria e recuando hàbilmente, pois era comandada por homem muito experimentado.

Os soldados começaram a embarcar. Eram irmãos, primos e parentes que iam todos juntos - os Atenienses iam para a guerra em tribos, compostas por famílias reacionadas entre si.

De repente sentiu-se aumentar o tumulto entre a multidão.

- Viva Péricles Viva Péricles - gritava-se de todos os lados.

Um homem de elevada estatura dirigia-se vagarosamente para o navio. Era o general.

De capacete e penacho, apresentava-se, sem dúvida, como grande comandante que na realidade era. Virou-se para trás e agradeceu a manifestação, mas parecia preocupado com outros pensamentos, pelo que não dirigiu uma palavra a ninguém.

Theras estava boquiaberto a olhar para ele e nesse momento o pai curvou-se e deu-lhe um beijo de despedida.

-Adeus, meu filho. Agora o pai vai-se embora. Tens de portar-te como um homem e olhar pela mãe durante a minha ausência!

Theras desviou a atenção dos navios e de toda aquela barafunda.

- Pai, voltará depressa para junto de nós?

- Sim, meu filho - respondeu Feidon, soltando as mãos que o pequeno tinha bem apertadas no seu pescoço.

Theras não queria chorar, mas as lágrimas lutavam por brotar-lhe dos olhos e correr-lhe pela face, e ele não podia impedi-las.

- Olha os soldados a embarcar - apontou Lampon.

O rapazito, porém, não conseguia ver nada pois nunca encarara a hipótese de o pai se ausentar, e agora não sabia o que fazer!

No pequeno altar do convés do navio queimavam incenso em honra dos deuses. O tocador de flauta atacou uma ária, o chefe dos remadores deu a primeira ordem e, ao som da música, todos os remos entraram na água ao mesmo tempo. O navio deu um salto em frente, como ágil galgo, e o mar à sua volta ficou branco de espuma. E lá avançou, avançou sempre ao longo da água azul.

Então içaram as velas, que primeiro rumorejaram, deram estalidos e se agitaram, para depois ganharem bojo e se desenrugarem à medida que o vento as enfunava. O velame era púrpura porque Péricles, o general, estava a bordo.

Theras observava tudo aquilo, mas, ao ver o navio; agora tão pequeno, levando a bordo o querido pai na direcção ao ponto em que o mar tocava o céu, sentia o coração prestes

a despedaçar-se. A soluçar e debulhado em lágrimas, escondeu o rosto nas mãos.

- Então Então - exclamou Lampon. - Não deves chorar assim e ainda para mais agora que tens um novo irmãozinho. Vamos mas é para casa para o mostrarmos à mãe.

Assim, ligeiros, abriram caminho por entre a multidão e seguindo, outra vez, pela estrada ladeada de muralhas, regressaram à cidade. Era ao pôr-do-sol e durante todo o percurso podiam admirar o penhasco acastanhado da Acrópole dourado pelos raios solares e á ponta da lança de Atena que parecia incandescente.

Theras chamou a atenção de Maro para aquele espectáculo e não demorou muito que começasse, entusiasmado, a falar-lhe na sua nova casa.

-Vamos a ver se ele adivinha qual é a porta da nossa casa - disse Theras a Lampon.

- Não sei como é que pode acertar - afirmou o pedagogo sorridente.

- Como é a tua mãe? - perguntou Maro, num murmurio.

- A minha mãe? - tornou-lhe Theras, soltando uma gargalhada. - A minha mãe é a minha mãe.

Mas Lampon sorriu, amàvelmente, para o pequeno estrangeiro, e disse:

- Não te aflijas, meu rapazinho, que ela tratar-te-á bondosamente.

Seguiam ao longo de uma rua de casas baixas, à porta de cada uma das quais se via um Apolo tutelar. De súbito, os lábios de Theras desfranziram-se e os olhos brilharam-lhe.

Então Maro, que observava o rosto do companheiro, parou e disse:

- É esta a porta.

Não se enganava.

Precisamente naquele instante, na penumbra crepuscular, passava diante da porta, em voo silencioso, um mocho, que se perdeu no meio dos telhados da vizinhança.

- Boa sorte - exclamou Lampon. - O patrão regressará a casa. Foi Atena que enviou o seu mocho para nos dar a boa notícia!

 

                   Um dia triste

Theras passou as semanas seguintes tão ocupado a brincar com Maro, que não dispunha de tempo para pensar noutras coisas. Tinha de mostrar-lhe todos os esconderijos da casa, ensinar-lhe os jogos em que os rapazes se entretinham na rua, levá-lo consigo para a escola e de lutar com os companheiros que tentassem fazer pouco dele. Que esplêndido ter um novo irmãozinho! Theras vivia tão atarefado, que nem reparava na palidez da sua mãe, nem na forma deficiente como ela se alimentava. Essas coisas, porém, não escapavam a Maro.

Naqueles dias sombrios foi Maro quem maior conforto proporcionou a Aretusa. Quando ela estava sentada, sòzinha, no quarto, o pequenito costumava ir fazer-lhe companhia; tomava lugar a seu lado e reclinava a cabeça nos joelhos dela. Aretusa considerava Maro um esplêndido presente do marido.

Certo dia veio visitá-los um primo de Feidon - o seu mais próximo parente -, chamado Metion, e contou que o navio mercante em que o pai de Theras investira grande parte da sua fortuna fora afundado pelos Samianos.

"Que triste notícia para dar ao meu querido Feidon quando regressar!" - pensou Aretusa.

Mais tarde Lampon veio também dizer-lhe que as sementeiras na quinta nada tinham pro duzido naquele ano. A situação era bastante crítica. Theras entrou na sala e encontrou a mãe sentada a um canto, com os olhos inundados de lágrimas.

-Oh mãe! Não se aflija, que hei-de ajudá-la. Irei até à quinta como o pai e verei se os escravos trabalham ou não.

-Agora é demasiado tarde, meu filho. A seca deu cabo de tudo. Tenho de vender alguns escravos da quinta, a fim de arranjar dinheiro suficiente para vivermos até ao regresso do pai.

Certa manhã, pouco tempo depois, o primo Metíon voltou a visitá-los. Ao ouvir as notícias por ele trazidas, toda a gente da casa irrompeu em choro. Metíon contou que Feidon morrera na guerra.

Os Samianos haviam aprisionado alguns guerreiros de Atenas, e como estes combatiam debaixo das muralhas da cidade de Samos, os atenienses que se encontravam a bordo tinham visto Feidon cair.

Que triste manhã aquela! Theras estava ao lado da mãe, segurando-lhe na mão. Não chorava, pois não podia acreditar que o pai nunca mais regressaria a casa. Dir-se-ia adivinhar que algo ainda estava para acontecer. Sentia mais medo do que tristeza.

No entanto mantinha-se erecto como um homenzinho, pois lembrava-se de como o pai, antes de partir, lhe recomendara que tomasse bem conta da mãe. Aglaia encontrava-se do outro lado de Aretusa, com os braços à volta do seu pescoço, e a pequenina Ópis estava no colo materno.

Pobre mulher! Em tão triste situação, que outra coisa poderia fazer uma dama ateniense? Tinha de ficar assim, em casa, pois não lhe era permitido trabalhar para o sustento dos filhos. Tinha de contar com o auxílio de algum parente que quisesse ajudá-la.

Cerca de uma semana depois, o primo Metion voltou novamente a visitá-los.

Um dia mais triste

Aretusa detestava as visitas de Metíon. E tinha razões para isso. Ele era um homem egoísta que ficara em casa enquanto os outros iam para a guerra, só para guardar seus bens. Estava um pouco zangado por Feidon se ter deixado matar, e mais zangado ainda por este haver perdido a maior parte da sua fortuna.

Vinha acompanhado de um homem que Aretusa não conhecia - um velhote que não tirava de Theras os seus perspicazes olhos cinzentos como se na sala não estivesse outra pessoa.

- Este é Hípias, primo da minha mãe - disse Metíon. - Vive em Esparta.

Com Ópis nos braços, Aretusa levantou-se para os saudar. Lembrando-se da rivalidade existente entre as duas cidades, ela sentia que, de qualquer modo, esse facto tornava Metíon ainda mais desagradável do que tinha sido noutras circunstâncias.

- Hípias também vai contribuir com a sua ajuda. Como, certamente, calcula, vim cá para a levar a si e às duas miúdas para a minha companhia. Fecharei esta casa e vendê-la-ei. O produto da venda auxiliar-me-á a sustentar-vos. Hípias levará o rapaz.

- Que rapaz? - perguntou Aretusa, muito pálida.

- O seu filho Theras, claro!

- Oh! Eu tenho de olhar pela minha mãe. Foi o que me recomendou opai antes de partir.

- Não metas o nariz onde não és chamado

- observou Hípias, com ar carrancudo.

- O filho de Feidon não pode ir para Esparta - declarou Aretusa, com firmeza. - O pai não permitiria tal coisa.

-Feidon não é para aqui chamado. Já morreu - disse Metion.

- Esparta - exclamou Theras. - Oh! Não posso ir para lá. Fora de Atenas não conseguirei viver.

- Vais para Esparta e lá aprenderás a não falar sem autorização das pessoas mais velhas - afirmou Hípias.

Contou então a Aretusa, em tom amável, que perdera os seus dois filhos na guerra e mostrou-se satisfeito por ter encontrado um parente de Metíon para adoptar como seu filho. Possuía avultada fortuna que, por sua morte, seria herdada por Theras.

A pobre mulher acabou por convencer-se de que tinha de aceitar aquela proposta. Não lhe permitiriam sustentar os filhos com o produto do seu próprio trabalho; portanto, não devia privar theras da fortuna que Hípias lhe proporcionaria.

- Deixem-me, pelo menos, dizer adeus a meu filho - pediu ela.

Hípias havia-a informado de que partiria de Atenas naquela mesma manhã.

Aretusa levou Theras ao seu quarto. Ali, apertou-o nos braços e recomendou-lhe que nunca, nunca, se tornasse espartano.

- Oh mãe! Como posso tornar-me espartano, se sou ateniense?

- Nunca acredites no que eles te ensinarem acerca de Atenas.

- Não, não - respondeu ele, apertando-a mais.

- E quando fores grande, volta para junto da tua mãe.

- Oh mãe, hei-de voltar! Não poderei viver em Esparta por muito tempo.

- Depressa serás um homem. Os métodos espartanos hão-de tornar-te forte. Então regressarás. Adeus, meu querido filho. Hoje tens de te portar como um homem. Lembra-te que és ateniense e que um dia hás-de regressar a Atenas.

Estava a falar com tanta calma e seriedade, que Theras parou de chorar e levantou a cabeça.

Todos os escravos quiseram despedir-se de Theras, mas Aretusa não o permitiu, com receio de que eles o fizessem chorar novamente. Obrigou-os a retirarem-se todos, incluindo Lampon.

Hipias estava à espera à porta da rua. Aretusa arranjou as roupas todas de Theras e fez com elas uma pequena trouxa que o escravo de Hípias levaria. As irmãzinhas Aglaia e Ópis beijaram-no sem saberem porquê e Maro também o beijou mas logo se afastou para longe.

Então Aretusa acompanhou-o até à porta da rua. Ali ajoelhou-se e mais uma vez o abraçou.

- Não te esqueças - murmurou-lhe. Theras não conseguiu responder, mas tinha a certeza que nunca se esqueceria.

 

                               ESPARTA

 

           O velho Hipias

Com certeza não havia rapaz mais triste que Theras ao deixar a sua casa e a sua querida cidade, naquela manhã de Verão. Amava profundamente as ruas estreitas do bairro de Kerameikos. Eram-lhe familiares todas as portas com a sua estàtuazinha de Apolo a servir de sentinela, e conhecia os rapazes que viviam naquelas casas. Voltaria a vê-los, assim como aos seus companheiros da escola, Télamon, Koretas e Klínias? Estava satisfeito por não encontrar nenhum deles na rua a tão matutina hora. Ter-lhe-ia custado ouvir Klínias perguntar-lhe "Para onde vais? ", ou Koretas dizer "Theras, quem é o rude velho que te leva pela mão?"

É que o pai adoptivo segurava-lhe firmemente a mão, e do outro lado de Theras caminhava um escravo.

De repente, uma daquelas portas abriu-se e por ela saiu o velho Lisander, um dos juízes de Atenas, amigo de Feidon, acompanhado de vários homens, todos em conversa animada.

Com um movimento rápido, Theras libertou-se da mão do velho Hípias e correu para o velho amigo de seu pai.

- Lisander, oh Lisander! - exclamou. Salve-me Querem levar-me para muito longe!

O escravo foi-lhe no encalço, agarrou-o pelos ombros e arrastou-o de novo, para junto de Hípias, que lhe pregou dois bofetões.

-Então, seu rapazinho! Como te atreves a gritar dessa maneira? - vociferou.

Foi a primeira vez na vida que Theras apanhou e ficou tão furioso por lhe terem batido mesmo ali em plena rua, que, sem mais nem menos, começou a dar murros no peito de Hípias, como num tambor.

Foi tal a surpresa do velhote, que por pouco não caiu para trás.

- Já fica a saber que em mim não me bate, seu covarde! - exclamou.

O escravo, porém, agarrou-o novamente e fê-lo andar o mais depressa que podia, enquanto Hípias se recompunha e os seguia.

Se tivesse ouvido Theras a gritar, Lisander sem dúvida não deixaria que o levassem de Atenas, poupando-lhe, assim, muitos trabalhos e dias tristes. Infelizmente, porém, Lisander não o ouviu, pois, além de velho, era um pouco

surdo, e julgou que assistira a uma dessas brigas tão frequentes nas ruas de Atenas.

Última vista de Atenas

Às portas de Dipilon achavam-se alguns espartanos à espera de Hípias.

- Viva Hípias - gritaram.

- Que te aconteceu, Hípias, que não pareces muito satisfeito? - perguntou um deles.

- Tive uma amostra da educação ateniense - respondeu, com uma espécie de sorriso que não chegava a ser sorriso.

- Educação ateniense - repetiu o espartano. - Por Zeus, os Atenienses são uns bárbaros!

- E julgam-se bons guerreiros 1- retorquiu outro. - Não estão calados o tempo suficiente para poderem combater.

- Oh, isso não sei! - resmungou Hipias, esfregando o peito.

Theras ficou tão furioso ao ouvi-los escarnecer de Atenas, que até esqueceu a mágoa que lhe causava atravessar as portas da sua cidade pela última vez.

O grupo partiu, então, a passo ligeiro, pela estrada fora. Theras sentiu grande dificulade em aguentar aquele andamento. Chegaram por fim a um pequeno rio chamado Quifisso. Não havia qualquer ponte, para atravessá-lo, pois na Grécia poucas havia nesse tempo.

Os espartanos tinham de atravessar a vau, mas antes de o fazerem, dirigiram ao rio uma breve prece pedindo-lhe que os deixasse passar, pois acreditavam que nele habitava um deus ou deusa - uma divindade que lhe imprimia movimento e o fazia correr e murmurar.

Theras, porém, balbuciou uma oração muito sua.

- Oh Quifisso, deus deste rio - pediu. Permite que eu volte, que regresse a Atenas. Se me concederes esta graça, dar-te-ei um presente. Lançarei vinho e cevada nas tuas águas. Ignoro ainda onde conseguirei arranjá-los, mas hei-de cumprir a minha promessa, isso é que hei-de. Oh Quifisso, não te esqueças de me trazer de volta!

Os homens prosseguiram na sua apressada marcha e dentro em poùco iniciavam a subida do monte Aigaleos. Quantas vezes Theras viera até ali com outros rapazes e os pedagogos! Quando atingiram o cume desapareceram os taludes que até então ladeavam o caminho e acharam-se em pleno descampado.

Dali Theras podia olhar em todas as direcções. Na sua frente estendia-se o caminho encosta abaixo, direito a uma pequena e encantadora baía - a baía de Salamina - onde uma vez a esquadra grega travara combate com a persa, derrotando-a. Tal façanha constituía motivo de orgulho para todos os gregos, porquanto o número de navios inimigos era quatro vezes superior ao dos da Grécia, o que não os impedira de sofrer rotunda derrota.

- Lá está Salamina - disseram orgulhosamente os espartanos, pois as forças de Esparta também haviam tomado parte naquela batalha.

Theras, porém, não olhava para a baía de Salamina; olhava, sim, para trás, para Atenas, pois era aquela, não ignorava a última vez que poderia admirar a sua querida cidade. Certamente não a veria mais, a não ser que travasse grande luta para lá regressar; porém, por agora, ainda não via maneira de conseguir tal objectivo.

O sol já brilhava sobre a montanha de Himetos. A luz matinal inundava a pequena cidade. Theras podia ver a esplêndida muralha que a circundava e lhe dava uma protecção tão eficiente, a praça do Ágora, ou mercado, o bairro de Kerameikos, onde ficava a sua casa; as árvores do Ginásio do Liceu, para onde iria logo que tivesse idade para isso, se então estivesse em Atenas. Aos rapazes de classe inferior, só era permitido frequentar o Ginásio Kynosarges, situado fora da muralha, mas Theras iria para o melhor.

Como dali se via bem a Acrópole banhada pelo sol matinal, com os seus amados templos resplandecentes e cintilantes! Nenhuma cidade da Grécia possuía templos que se lhes pudessem comparar. Conseguia até vislumbrar a grande estátua de bronze de Atena, com a mão levantada, como que a chamá-lo. Ela parecia dizer-lhe:

- Theras Volta para trás. Porque te afastas para tão longe?

Sùbitamente o rapazito foi bruscamente sacudido por Hipias, que lhe observou, mal-humorado.

- Deixa de olhar para aquele burgo de inúteis. Não podemos ficar aqui eternamente.

Se Theras, naquela hora, pudesse falar, com certeza teria respondido à letra a Hípias, sujeitando-se mesmo a apanhar, mas estava tão comovido que não conseguia articular palavra.

E enquanto caminhava, ao lado do seu pai adotivo, pela colina abaixo, Theras ia pensando "Não faz mal, velho Hípias. Por mais que digas, não conseguirás convencer-me de que Atenas, a minha querida Atenas, não é a cidade mais bela do mundo!"

 

                 Rivais nos jogos

Os espartanos caminhavam em silêncio absoluto. Se se tratasse de atenienses, teriam falado de tudo que iam vendo, das guerras e da política da sua cidade, de maravilhosas peças de teatro e histórias - enfim, de qualquer assunto que os distraísse, para que o caminho lhes parecesse mais curto. Mas os espartanos, velhos ou novos, não diziam palavra.

Passaram pela pequena vila de Elêusis, sem abrirem a boca. Aqui, o escravo que tinha agarrado Theras na rua de Atenas e se chamava Hermos, aproximando-se, começou a zombar dele, pois iam atrás dos outros.

- Foste malcriado para o patrão, não é verdade? Eu não queria estar na tua pele. Oh! Nem por cem dracmas quereria apanhar as chicotadas com que te vão castigar.

Virando-se para ele, Theras perguntou em voz alta:

-Os escravos de Hípias costumam dirigir-se tão descaradamente ao seu filho?

Pensou que o escravo Lhe responderia novamente, mas, apesar de corpulento, ele afastou-se cheio de medo. Hípias era, com certeza, tão duro com os escravos, que os tornara uns medrosos.

Quando chegaram a Mégara, já caíra a noite. Acolheram-se ali numa hospedaria, uma espelunca miserável, sombria, onde as camas eram imundas e duras como pedras. Theras, porém, estava tão cansado, que dormiu toda a noite de um sono.

Ágis, um dos espartanos mais novos, acordou-o muito cedo, antes do nascer do Sol, mas ele achava-se tão esgotado, que lhe custou sair da cama.

Theras tinha ouvido falar muito de Mégara. Era a cidade mais próxima de Atenas e sua grande rival, pelo menos noutros tempos, pois havia muito já que esta a superava em todos os aspectos.

Ao passar nas ruas, Theras ia contemplando com ar desdenhoso os pequenos templos. Recordava- se também de quanto melhor que os jovens de Mégara se haviam portado os atletas atenienses nos Jogos Olímpicos do ano anterior. Tinham ganho sempre, todos os prémios, não só no salto em comprimento e nas corridas, como também naquela competição chamada pentatlo por constar de cinco provas.

A vontade do rapaz seria bradar bem alto:

- Oh Megarianos, quem ganhou os Jogos Olímpicos do ano passado?

 

         Os Penedos dos Ladrões

Depressa Mégara ficou muito para trás. Theras e os companheiros lá continuavam a palmilhar de novo, através dos campos. Os espartanos pareciam nunca se cansar, o que não admirava, pois tratava-se de homens feitos. Ágis, o mais novo, já tinha dezoito anos, enquanto Theras era apenas um rapazinho.

A certa altura, o caminho começou a tornar-se mais difícil. Encontravam-se nas montanhas e a estrada não passava de simples carreiro por entre penedias. Súbiam, subiam, mas continuavam a ver os cumes, lá muito em cima, de encontro ao céu. Theras via montanhas e mais montanhas, mas nem uma única casa. À esquerda do caminho, porém, lá muito em baixo, descortinava-se a penedia abrupta e o mar. O sol estava no ocaso e o oceano apresentava-se vermelho, como que a arder.

- Acho melhor pararmos aqui - disse Hípias. - Chegámos às rochas de Skiron.

Os outros riram-se como se o companheiro tivesse dito uma boa piada, e Theras sabia porque se riam.

As rochas de Skiron sempre haviam constituído bom esconderijo para ladrões. Os viajantes que ali passassem eram assaltados, maltratados e por vezes mortos, e espoliados de tudo. Os espartanos, como formavam um grupo bem armado, julgavam-se capazes de enfrentar qualquer ataque.

Em época já muito remota aquelas rochas tinham servido de esconderijo a um ladrão chamado Skiron. Este usava um processo prático de se desembaraçar das vítimas; atirava-as do alto do precipício para serem devoradas por uma tartaruga enorme que vivia lá em baixo, à beira-mar. Havia então por ali perto um outro ladrão, chamado Procustes, que tratava as suas vítimas de maneira diferente. Deitava-as numa espécie de leito e, às demasiado compridas, cortava-lhes as pernas se, pelo contrário, eram excessivamente curtas, puxava-lhes por elas. Isto parecia-lhe um jogo muito engraçado, mas penso que mais ninguém lhe achava graça.

Certo dia, passara por ali um guerreiro destemido, chamado Teseu, e matara Procustes e Skiron, atirando este pelo precipício, a fim de ser devorado pela sua amiguinha tartaruga.

Theras ouvira por várias vezes esta história contada por seu pai, Feidon, e agora, ao contemplar aquele lugar selvagem, quase esperava, a todo o instante, ver surgir diante de si a figura de Teseu.

Os espartanos sentaram-se, abriram umas trouxas que traziam e começaram a comer o seu jantar que constava de pão e queijo. Em circunstâncias idênticas, se se tratasse de atenienses, um dos do grupo teria tocado lira e entoado uma canção para animar o repasto. Os espartanos, porém, mantiveram-se silenciosos. Em lugar de conservarem Theras na sua companhia, deram-lhe uma ração e mandaram-no ir comê-la, sòzinho, sentado num penedo, a certa distância.

O pequeno sentia-se muito só e tão cansado devido àquela caminhada de dois longos dias, que lhe doíam as pernas e as costas. Comeu sôfregamente a ração e ficou a morrer por mais, mas não teve coragem de pedir. Em seguida estendeu-se sobre o penedo e pôs-se a contemplar, lá em baixo, o caminho por onde tinham vindo.

Durante toda a viagem Theras reparara em cada uma das curvas do percurso, na esperança de que isso lhe viesse a servir. Talvez um dia regressasse sòzinho e, com efeito, se tal acontecesse, precisava de conhecer o caminho. Como Atenas parecia já estar longe! Oh! Ficava noutro mundo, tão diferente da região que agora calcorreava e onde só se avistavam rochas e mar! Àquela hora em Atenas, Lampon devia estar a acender o archote no pátio, e sua mãe, sentada ali com a pequenita Ópis nos braços, certamente cantava, como era seu hábito. Theras quase podia ouvir a canção:

 

         "Dorrne, dorme, Ópis queridinha,

         Que Vésper já se escondeu.

         Já vejo baixa a andorinha,

         Vinda lá do alto do céu.

         Dorme, dorme, Ópis queridinha.

 

Oh! Theras agora ouvia-a com toda a clareza e perfeição. Porque não podia ele abeirar-se da mãe pela retaguarda e abraçá-la? Porque é que não lhe podia tocar? Porquê? Porque então já ele dormia a sono solto!

 

             Ataque de Surpresa

Cerca da meia-noite Theras acordou cheio de frio. Tinha-se enroscado como um cão ou um gato, mas mesmo assim estava gelado. Os espartanos, estendidos um pouco mais acima, em redor duma fogueira, dormiam a sono solto. Até o jovem que estava sentado, de sentinela, tinha a cabeça caída para a frente.

"Não acredito que ele esteja a vigiar - pensou Theras. - Parece profundamente adormecido."

Lembrou-se então da velha história de Skiron. Sem dúvida que ele já morrera havia muitos anos, mas o certo é que aquelas paragens ainda eram bem propícias para ladrões.

À luz das estrelas, aquele lugar, coberto de penedos e arbustos próprios para esconderijo de homens, tinha um aspecto bem terrível.

Mesmo sobranceira ao caminho estendia-se uma floresta de abetos, escura e silenciosa.

Não havia vento e o único barulho que se ouvia era o das ondas a rebentarem incessantemente, lá muito ao fundo do precipício.

"Se Aglaia viesse até aqui, sentir-se-ia cheia de medo - pensou Theras. - Claro, é uma rapariga. Mas um rapaz como eu..."

Então sentiu um sobressalto.

Estalara um ramo seco na floresta, como se alguém o tivesse calcado. Theras pôs-se à escuta, mas apenas ouviu o ruído das ondas na praia. Quem lhe dera que o mar se conservasse silencioso, permitindo-lhe perscrutar bem o que se passava ali à volta! Talvez aquele barulho tivesse sido provocado por uma raposa ou um urso.

Por fim convenceu-se de que não ouvira absolutamente nada.

Mas, de súbito, repetiu-se o mesmo som, sem dúvida de passos cautelosos.

Se, porém, Theras acordasse os espartanos, estes rir-se-iam dele. Era até possível que lhe chamassem covarde. Covarde um ateniense!

Qualquer coisa, não sabia o quê, desviou o olhar de Theras noutra direcção.

Dois homens, saindo detrás de um penedo, dirigiam-se, cautelosamente, para o caminho. Via-os nìtidamente.

Com um grito, o rapazito pôs-se em pé num ápice e correu para os companheiros.

- Ladrões, ladrões - gritou ele. - Estão ali entre as árvores, abaixo do caminho.

Os espartanos levantaram-se rápidos como gatos, de espada na mão direita.

- És parvinho - interveio a sentinela. Eu tê-los-ia visto. Estava...

- Silêncio! - gritou Hípias. - Escutem sim...

No momento em que estas palavras eram pronunciadas, uma pedra soltou-se na floresta e rolou por ali abaixo. Outra, atirada pelo ar, acertou em cheio no peito da sentinela.

- Para a floresta, depressa - gritou Hípias. Como se fossem um só, os espartanos correram imediatamente por ali acima, em direcção à floresta. Se os ladrões beneficiavam da protecção das árvores, também eles a iam aproveitar.

Hípias, apesar de velho, parecia capaz de acompanhar os outros. Pegou na mão de Theras, mas este conseguiu libertar-se no meio da confusão da corrida.

- Uma espada - exclamou o rapazito, ofegante. - Se ao menos eu tivesse uma espada!

Hípias pegou num punhal que trazia à cinta e entregou-lho. Theras sentiu que agora podia defender-se, embora não passasse de um rapaz.

Já estavam todos na floresta quando, inesperadamente, um dos espartanos esbarrou com um ladrão e logo os dois se engalfinharam. No meio das trevas e de toda aquela confusão não se conseguia avistar coisa alguma. De súbito ouviu-se um grito e um chorrilho de pragas num dialecto selvagem, bárbaro. Então Ágis começou a bradar:

- Oh, apanhei-o! Apanhei-o!

Ouviu-se um outro grito, uma pancada surda e depois o silêncio. A espada curta do espartano atingira o alvo.

Seguiu-se então o tropel dos ladrões a correrem colina acima, chocando com ramos de árvores, tropeçando em penedos, em fuga desenfreada.

 

                   De sentinela

Os espartanos foram-lhes no encalço, mas só por pouco tempo, pois era inútil aquela perseguição no meio de tantos penedos e árvores; além disso, os ladrões podiam dar uma volta e dirigir-se ao acampamento espartano.

Assim Hípias e o resto do grupo voltaram para junto dos seus pertences. Então, podem ter a certeza, ficaram todos de atalaia.

Retrocederam um pouco descendo a estrada até uma pequena colina que Hípias conhecia e mandaram os escravos transportar todas as mercadorias e fardos para o cimo dessa elevação e de terreno, donde tinham uma visão desimpedida em todas as direcções, tão longe quanto a luz das estrelas lhes permitia, e onde existiam umas rochas por trás das quais podiam esconder-se. Não acenderam fogueira que denunciaria aos ladrões a sua posição, e mantiveram-se de vigia, embrulhados nas suas capas. Testa vez Theras ficou junto deles.

Esqueceu a fadiga e nem mesmo se lembrou mais e que queria regressar a Atenas. Julgava-se a personagem de qualquer maravilhosa história: um Teseu ou Ulisses, que tantas aventuras realizaram em terra e no mar.

Assim se foram passando as horas.

- Skyllis - disse de súbito Hípias, muito zangado ao rapaz que estivera de sentinela antes do ataque -, como deixaste esses infames gatunos aproximarem-se tanto de nós? Porque não deste o alarme mais cedo?

Skyllis começou a arranjar desculpas.

- Oh, eu dei o alarme. Eu...

-Não deste alarme nenhum. Quem nos acordou foi Theras, não foste tu. Tu estavas a dormir. Serás castigado quando chegarmos a Esparta, seu mentiroso inútil.

-Mas, Hípias, por favor deixe-me falar.

- Cala-te - exclamou o ancião, em voz áspera. - Ouve, Theras Tu, que estavas acordado, é que podes dizer se Skylis se encontrava a dormir ou não.

Assim interpelado, Theras lembrou-se que seu pai lhe tinha ensinado que nunca se deve denunciar seja quem for. "Ninguém - costumava ele dizer - gosta dos delatores. Mesmo aqueles a quem a denúncia aproveita odeiam o delator".

Theras, pois, apressou-se a responder:

- Não sei, Hípias. Eu estava a olhar para o sítio da floresta donde vinha o barulho. Só sei dizer que Skyllis se encontrava sentado e muito direito.

- Muito direito, hem! Tens a certeza

- Sim, tenho a certeza.

- Hum - resmoneou o velho, dirigindo a Theras um olhar perspicaz. - Hum!

Em seguida reinou de novo o silêncio. Assim ficaram até que a luz pardacenta do amanhecer lhes mostrou o caminho lá em baixo, no sopé da colina, e o mar, mais ao fundo, qual neblina prateada.

Instantes depois raiava a aurora com indizível esplendor. Theras observava o movimento das nuvens rosadas, as entreabertas através das quais vislumbrava, lá muito ao longe, pedaços de céu dourado. Em dado momento pareceu-lhe ver sobre o mar uma delicada deusa abrir caminho através do espaço celeste e do nevoeiro. De repente, porém, ela desapareceu e logo o sol brilhou com tal intensidade, que até os seus olhos, apesar de jovens, não podiam enfrentá-lo.

"Terei, realmente, visto a deusa Aurora - perguntava de si para si -, na sua tarefa de iluminar o nascente?"

- Então, rapaz - chamou Hípias, abanando-o pelos ombros. - Não fiques aí a olhar como um idiota. Não vês que já nos vamos embora?

 

               Costumes de Esparta

Na verdade, os outros desciam a colina e já se haviam distanciado. Satisfeito, Theras correu atrás deles e em breve chegava ao local onde se travara a luta na noite passada. Ali viu Agis, o rapaz que matara um dos ladrões, a sair, apressadamente, da floresta, arrastando qualquer coisa. Oh, grande Zeus! Ágis arrastava nem mais nem menos que o cadáver ensanguentado do seu antagonista, soltando, entretanto, altos gritos. Sem se deter, continuou caminho abaixo, em direcção à beira da escarpa onde, com um pontapé, fez voar para o mar, lá no fundo, aquele miserável e desprezível despojo.

- Some-te! - gritou em tom feroz. - Que a velha tartaruga te devore e os deuses se esqueçam de ti e de todos os teus filhos!

Os outros espartanos também gritavam de contentamento. Theras, porém, sentiu calafrios e até tapou os olhos perante tão horrível cena.

Na ocasião do pequeno almoço não conseguiu tocar na comida, apesar das insistências de Hípias.

-Não sejas tolo, come, pois tens na tua frente um dia de dura caminhada. Mas que é que te impede de comer?

Toda a manhã Theras palmilhou ao longo da estrada rochosa com uma expressão de horror. Não lhe saía do pensamento a imagem do cadáver do infeliz ladrão empurrado sobre as pedras pela colina abaixo e depois atirado do alto precipício para o fundo do mar dourado. Os mortos que não eram enterrados transformavam- se em fantasmas que vagueavam para sempre em busca de lugar de descanso, tal era a crença do povo ateniense e assim lhe ensinara Gorgo, a sua velha ama, mulher muito supersticiosa.

Sendo assim, o pobre ladrão jamais encontraria descanso. Por isso os Atenienses consideravam um grande pecado não enterrar os mortos.

A certa altura, Ágis, que praticava todas aquelas barbaridades, veio para a retaguarda e começou a caminhar a par de Theras. Este voltou a cara para o outro lado para não ter de o encarar.

- Por Hermes, que tens tu - perguntou Ágis. - Porque andaste carrancudo toda a manhã? A maioria dos rapazes da tua idade sen tir-se-iam felizes por irem para Esparta como herdeiros de Hípias!

Feliz! Se era precisamente aquilo que Theras considerava a maior infelicidade da sua vida.

- Não me consideraria feliz mesmo que fosse para Esparta como herdeiro dos vossos dois reis, pois a minha cidade é Atenas - respondeu ele sem hesitar.

Theras, sem dúvida, não estava a ser muito delicado, mas Ágis não se portara melhor com o ladrão.

- Hum - resmungou o espartano. - Não está muito certo que tu digas isso, Theras, pois Atenas também não estava a tratar-te muito bem. Perdeste o teu pai, a tua fortuna, enfim tudo. A vida para os órfãos atenienses não é muito fácil. Certamente ouviste dizer isso, meu rapaz.

Theras estava furioso.

- Preferia continuar pobre em Atenas a ser muito rico em qualquer outro lugar - retorquiu ele. - Pelo menos estaria em Atenas a fazer o que o meu pai me pediu!

- E que te pediu ele?

-Que olhasse pela minha mãe e irmãs. Sei que alguns velhos amigos de meu pai me ajudariam, e, como estou a crescer, não duvidavam que, mais tarde, havia de pagar-lhes.

- Pagar-lhes - zombou Ágis. - Nunca vi um pintainho a sair da casca, cantar como um galo adulto.

- Eu faria mais do que cantar de galo, se estivesse agora em Atenas - insistiu Theras.

A sua voz, porém, esmoreceu um pouco ao recordar-se de que tantas vezes deixara de auxiliar sua mãe, quando o podia fazer. Agora, que ia a caminho de Esparta, sentia-se, de súbito, um homem adulto, capaz, realmente, de tomar o lugar do pai.

Ágis limitou-se a olhá-lo com desdém.

- Que parvo que tu és - disse, e afastou-se.

 

              Um barco em terra

A próxima paragem do pequeno grupo para pernoitarem foi em Corinto, mas antes de lá chegarem passaram no famoso istmo do mesmo nome. Este é uma estreita língua de terra, em alguns sítios só com cerca de três quilómetros de largura, que separa os dois mares. Chamavam a Corinto a Cidade dos Dois Mares, pois tinha o golfo de Corinto de um lado e o mar Egeu do outro. Os barcos dali eram os mais famosos de toda a Grécia.

Através do istmo, duma praia à outra, estendia-se um trilho de madeira sobre o qual os coríntios arrastavam os seus barcos do golfo para o mar Egeu e vice-versa. Assim, não tinham de navegar em volta da península da Grécia, o que tornava as viagens mais curtas umas centenas de milhas.

Mal se aproximaram, começou a ouvir-se homens a cantarem em coro, a enorme chiadeira, os guinchos e rangidos do barco. E a canção era repetida sem cessar:

 

             Vá, anda, eia!

             Vai depressa, vai devagar,

             anda, oh barco, para o mar!

             A terra, o lodo, a areia

             Não é sítio para um barco!

             Vá, anda, eia!

             Vá, anda, eia!

             Vai depressa, vai devagar,

             anda, oh barco, para o mar!

 

Theras correu à frente dos companheiros e em breve viu o enorme casco do barco, que se movia lentamente, com uma cabeça de dragão à proa, muito empertigado e de dentes arreganhados para os homens.

Parecia responder "Daqui não saio ", mas lá ia avançando um pouco, cada vez que os homens davam às cordas um puxão demorado e firme.

Chegado à rampa existente na praia, o barco deslocou-se mais depressa. Os homens entraram na água rindo, cantando e puxando ao mesmo tempo. Então, após um grito de "Atenção!", pularam para o lado e o barco, chapinhando, entrou no mar, onde deslizou com súbita leveza, qual avezinha que tivesse recuperado a liberdade. Os trilhos de madeira ficaram a fumegar devido a tão rápida descida.

Theras batia palmas de contente.

-Muito bem! Gostaste de ver isto, hem? - perguntou o seu pai adoptivo, olhando-o por baixo das suas sobrancelhas muito cerradas.

- Sim, gostei. Olhe onde o barco já vai!

Vejo daqui o homem do leme a guiá-lo!

Mais à tardinha, chegaram ao Estádio ístmico - um local onde se praticav a atletismo, quase tão famoso como Olímpia. Muitos jovens atenienses já ali tinham ganho prémios de salto em comprimento, corrida e lançamento do disco.

Feidon costumava dizer a Theras que, se ele se exercitasse na corrida, talvez brevemente pudesse concorrer aos Jogos ístmicos e, mais tarde, aos Jogos Olímpicos.

Theras trepou fiada após fiada as bancadas então vazias, até ao cimo. O estádio ficava numa depressão da vertente do monte, que o vento varria e perfumava com um cheiro agradável a maresia. Lá de cima, Theras olhou para baixo, para a pista das corridas, onde cresciam ervas, flores de tomilho, pois havia já muitos meses que não se realizavam ali competições.

Qual a sensação que se experimentaria a correr lá em baixo, com as bancadas completamente cheias de gente a seguir a prova, a agitarem-se de entusiasmo, a rirem e a gritarem, uns incitando-o a ele, outros animando o seu adversário se por acaso este fosse à frente? Grande Hermes, ele quase morreria se não ganhasse! O pai fora sempre um bom corredor. Theras havia de exercitar-se e... Olhou para o lado e lá estava Hípias, ofegante, devido à subida.

- Oh, Hípias, posso concorrer no próximo ano aos jogos daqui, se treinar muito na corrida? Sou bom corredor, segundo a opinião de meu pai.

- Sim, julgo que podes. Achas que serias capaz de te portar de molde a honrar Esparta e a mim?

Esparta! Esta palavra era um punhal a perfurá-lo. Por que razão havia ele de correr por Esparta e não pela sua querida Atenas?

Baixou a cabeça e afastou-se em silêncio.

Esparta é tão diferente de Atenas.

Theras ainda ia a pensar no mesmo, quando de repente se esbarrou com Ágis. Afastou-se dele com rapidez, mas o espartano agarrou-lhe pelo cotovelo:

- Anda cá meu parvalhão! Porque é que me olhas assim... como se eu fosse veneno?

Theras ainda abriu a boca, mas não disse nada. Não lhe queria responder:

- Desembucha - convidou Ágis. - Já estuu cheio desse teu ar carrancudo.

- Detesto o que fizeste àquele pobre ladrão - declarou Theras, com ar sincero. - Não tinhas o direito de atirar o seu cadáver ao mar.

- Não tinha o direito, hem? - riu-se Ágis, e ali ficou com as mãos na cinta, a olhar para o jovem ateniense.

- Não - acentuou Theras. - Matá-lo já era o bastante.

-Pareces esquecer que te salvei a ti e a todos os outros, por tê-lo morto primeiro?

-Não, não esqueço.

- E que pensas tu do vosso herói ateniense Teseu? Não foi ele quem matou o ladrão Skiron e atirou o seu cadáver ao mar? Eu tentei imitá-lo.

Theras não sabia responder. Olhou para a cara de Ágis, mas de súbito lembrou-se novamente da cena e ficou horrorizado.

- Não quero saber disso - replicou. - Não o devias ter feito. Foi um acto sacrílego. Agora o pobre ladrão vagueará sempre por aí!

Ágis pareceu amedrontado, pois todos os espartanos acreditavam em fantasmas.

-Nós, os Atenienses, não teríamos feito tal coisa - acrescentou. - Matá-lo seria suficiente.

Sem querer, Theras explicara toda a diferença que existia entre Atenas e Esparta. Atenas sabia sempre quando devia parar, mas o mesmo não acontecia com Esparta. Carrancudo, Ágis afastou-se.

 

                 Por fim Esparta!

A próxima paragem do pequeno grupo foi em Tégea, donde partiram antes do nascer do Sol, pois agora só se deteriam em Esparta.

Por fim, do cimo dum monte, avistaram toda a cidade. Os espartanos mostraram-se radiantes por se encontrarem de regresso à pátria.

Ora Theras nunca pensara que Esparta fosse uma cidade por aí além, mas sempre a imaginara melhor do que aquilo. Tratava-se de um burgo disperso, constituído por casas pequenas e humildes. O mesmo sucedia com os templos - uma das coisas notáveis da Grécia - e não tinham sequer uma Acrópole. Mais ainda: a cidade não era protegida por muralhas, o que, aos olhos de Theras, lhe dava na verdade um aspecto miserável. Os templos, além de mais, eram já muito velhos - simples relíquias do passado.

Havia alguns anos a cidade de Atenas fora incendiada pelos Persas e ardera por completo, mas os bravos e esforçados habitantes tinham-na reconstruído totalmente, dez vezes mais bela do que era antes, dez vezes mais bela, na verdade, do que qualquer outra cidade do mundo. Não admira, pois, que para um rapaz ateniense Esparta parecesse pobre. E, para cúmulo, ali não avia mar azul, só montanhas e mais montanhas, como que para isolarem aquela cidade do resto do mundo.

Os espartanos desceram o vale, atravessaram a ponte sobre o riacho, o Eurotas, e entraram nas estreitas ruas de Esparta. Theras caminhava ao lado deles silenciosamente, com o pensamento fixo na sua pátria.

De súbito, chegaram a um grande espaço livre, em cujo extremo mais afastado havia um pequeno bosque. De um lado estendia-se uma pista para corridas, e, mesmo em frente dos viajantes, via-se um campo de exercícios militares, grande e plano, onde, naquele momento, se treinavam cerca de cem rapazes.

Estes eram da idade de Theras, mas recebiam a instrução militar como se de adultos se tratasse. Em Atenas os rapazes cantavam em coros e até executavam danças guerreiras, mas nunca se dedicavam a coisas daquele género nem a exercícios de tal destreza.

Esses rapazes espartanos apresentavam-se completamente nus e com o corpo moreno como amoras. Eram magros e ágeis como pardais e destes tinham também a leveza e graça. Theras descobriria mais tarde a razão de tamanha magreza.

Além de graciosos eram rápidos. Obedeciam instantâneamente à voz de comando. Umas vezes davam um salto em frente, erguendo os escudos e escondendo-se por trás deles; outras, avançavam ràpidamente, com as lanças em riste, formando uma barreira onde não havia uma falha; causava na verdade pavor ver avançar aquela mortífera linha! Então de repente estacavam, em bicos de pés, voltavam-se todos ao mesmo tempo e retrocediam em aparente desor dem; mas quando chegavam à extremidade do campo de treinos, detinham-se... voltavam-se e... cada um daqueles jovens achava-se de novo no seu lugar, as lanças em linha perfeita, como antes.

Lembravam um bando de pombos que, com um bom guia, voam até às alturas, depois baixam, fazem círculos, por fim mergulham e pousam no solo, todos em formação impecável.

Theras sentia-se tão satisfeito, que mal podia aguentar-se quieto. Puxou então pela manga do pai adoptivo, a quem perguntou:

-Hípias! Também hei-de pertencer um dia àquela companhia?» Oh! Deixa-me fazer parte dela.

- O quê? Gostaste? Sem dúvida que pertencerás. Eh, Terpander! Vem cá por favor - chamou ele.

Com uma ordem dada em tom enérgico, o jovem comandante obrigou os seus pupilos a deter-se e, respeitosamente, caminhou ao encontro de Hípias.

- Este é o meu novo filho adoptivo - disse o velho, apontando para Theras. - Quero que o escolhas para uma dessas companhias.

Terpan er procurou não se mostrar estupefacto, fez uma vénia em sinal de respeito, e pegou na mão do jovem ateniense que se sentiu bem embaraçado enquanto o outro o levava para a vanguarda da formatura.

Em seguida o jovem espartano deu a seguinte voz de comando:

- Formar em locos (1)

Imediatamente a formatura se dividiu em pequenos grupos de vinte a trinta rapazes, cada qual com o seu chefe à frente.

-Aqui está um novo candidato. A que companhia deverá ser agregado? Vós é que resolvereis, por votos. Thalates, o teu grupo será o primeiro a votar.

 

(1) Pequena unidade do exército espartano.

 

A Theras levou algum tempo a compreender o que se estava a passar; na verdade ali mesmo diante de si, votava-se a sua admissão e, o que era pior, rejeitavam-no. O rapaz percebeu que Thalates fizera uma pergunta ao seu grupo, pergunta que fora acolhida com um silêncio mal-humorado.

Por fim Thalates inquiriu:

- Não?

- Não - gritou todo o grupo a plenos pulmões.

Consultou-se a companhia seguinte e o resultado foi o mesmo "Não!"

Chegou a vez do terceiro.

Nesta altura já Theras tinha o rosto a arder de vergonha.

Sentia a garganta apertada e os olhos cheios de lágrimas.

Correu indignadamente em direcção a Hípias e bradou-lhe, em alta voz:

- Se eu tivesse um filho não o queria ver ridicularizado por toda a cidade. Não permitiria que o pusessem em leilão como um escravo!

Deu meia volta e afastou-se a toda a pressa. Ainda não tinha feito planos alguns, mas o que ele queria naquele momento era fugir de gente tão grosseira.

Alguém o agarrou. Era Ágis, o sorridente e sempre trocista Ágis. Só com grande dificuldade conseguiu segurá-lo e em seguida levou-o novamente a Thalates.

- Segura-o bem, Thalates - recomendou, a rir - Ele escorrega como uma enguia.

Ágis então afastou-se, mas Theras achava-se tão ocupado a dar pontapés, a debater-se, ofegante, que nem reparou no que ele estaria a fazer.

Por fim Ágis apareceu de novo e gritou:

-Anda comigo, pequeno espalha brasas! Eu passo a ser o teu comandante. Só eu conseguirei dominar a tua insolência.

Se Theras tivesse reflectido um pouco, talvez houvesse verificado que Ágis lhe estava a fazer um favor. Contudo, não pensou nisso, nem alimentava qualquer esperança a respeito do espartano. E fez bem, pois este revelou-se um comandante severo, autoritário, sem quaisquer condescendências.

Os rapazes espartanos são soldados.

Theras foi imediatamente levado para a formatura e os exercicios militares continuaram. Tudo aquilo se apresentava bastante mais difícil do que ele supunha. Em primeiro lugar, as manobras eram executadas com admirável agilidade; em segundo lugar, o rapazito tinha difi culdade em entender as vozes de comando, dadas em dialecto dórico cerrado, que, apesar de pertencer à língua grega, diferia bastante do grego falado em Atenas.

Assim, quando os outros rapazes saltavam em frente, o salto de Theras era sempre atrasado. Se davam meia volta ou irrompiam em correria, empurravam-no, derrubavam-no, pulavam-lhe por cima e prosseguiam na sua corrida, gritando:

- Olhem a menina, olhem a Kora!

Chamavam assim a Theras por causa do seu cabelo muito comprido. Em Atenas, todos os rapazes o usavam assim até serem efebos, nome que davam aos adolescentes; só então é que o cortavam. Em Esparta, claro, faziam precisamente o contrário; em pequenos traziam o cabelo curto e depois de grandes deixavam-no crescer. Todos os homens espartanos tinham cabelo comprido.

No dialecto dórico o termo para "menina" era "Kora", mas Theras compreendia bem o seu significado.

O rapazito ateniense já estava cheio de calor e cansado, antes de iniciar o treino militar, devido à caminhada de tantos dias, mas ninguém parecia lembrar-se disso. Contudo, procurou aguentar- se até ao fim, pois tomara a inabalável resolução de aprender aqueles exercícios de modo a executá-los tão bem como qualquer espartano.

Por fim, o comandante ordenou "Para o Eurotas" e então afastaram-se do campo de treinos, marchando.

Apesar de fatigado, Theras estava tão entusiasmado com o treino militar, que nem se lembrava de Atenas. Pensava apenas "Hei-de aprender estes exercícios. Não descansarei enquanto o não conseguir!"

A formação parou na margem do rio. Ali aguardavam-nos escravos que distribuíram pequenas foucinhas pelos rapazes, os quais começaram todos, imediatamente, a cortar os juncos que cresciam nas margens do rio, o Eurotas. Theras perguntava a si próprio para que serviria aquilo. Iriam fazer cestas com o junco? Essa tarefa pertencia a escravos e não a rapazes que nasciam livres.

Nada indicava o que aqueles estranhos espartanos se propunham fazer, e nenhum deles lhe explicou a que se destinava o junco, nem disse:

- Corta, senão arrepender-te-ás!

Assim, Theras deixou- se ficar de pé, a olhá- los, com a foucinha na mão.

Por fim, obedecendo à voz de comando de Thalates, marcharam todos de regresso à cidade. Pararam junto de uma construção baixa feita de lodo seco, que constituía o seu aquartelamento. Aqui cada um fez a sua cama com os juncos que tinha cortado e olhando para Theras escarneciam:

- Olhem A Kora não tem cama!

Só então Theras se lembrou de que os rapazes espartanos dormiam sempre deitados em juncos que eles próprios tinham de arranjar. Não dispunham de outras camas.

Para a ceia tiveram apenas pão negro e a pior sopa que Theras havia provado até àquela altura. Parecia feita de sal e vinagre, mas ele estava com tanta fome, que comeu tudo e pela maneira como os espartanos lamberam os pratos (portavam-se muito mal à mesa) era evidente que também estavam ainda esfomeados quando terminaram a magra refeição.

Mal acabaram a ceia, foram todos para a cama. Theras, como não cortara juncos, dormiu no chão, mas estava tão cansado, que dormiu toda a noite.

 

             Adaptação

O primeiro dia em Esparta passou-o como um verdadeiro soldado: marchando, fazendo exercícios, comendo em mesas compridas, com o capitão à cabeceira.

Tudo isto constituía novidade para Theras e despertou nele enorme interesse. Ele gostava da vida de soldado. Na manhã seguinte, muito cedo, quando os rapazes se atiraram à água do Eurotas, para o banho matinal, começaram a nadar à compita. Theras arremessou-se depois dos seus novos companheiros, mas, mesmo assim, bateu-os a todos. É que os Atenienses eram bons nadadores. Isto fez com que os espartanos o começassem a respeitar, e naquele mesmo dia um deles, chamado Draco, ofereceu-lhe uma lança, o que constituia um sinal de grande amizade.

No terceiro dia, o loco ou companhia de Theras foi com os rapazes mais velhos para as florestas da montanha caçar javalis. Os montes Taígetos eram desertos e escarpados, muito mais que qualquer dos existentes à volta de Atenas. Havia profundos desfiladeiros e os matagais através de que os rapazes tinham de abrir caminho, pareciam indicar que nunca ninguém ali havia passado desde o principio do mundo. Algumas vertentes eram tão abruptas, que só tonseguiam escalá-las agarrando-se uns aos outros e empurrando-se mùtuamente.

Chegados ao cimo os cães de caça começaram a correr de um lado para o outro como loucos, com os focinhos bem rentes ao chão, latindo e rosnando.

- Já descobriram o rasto! - gritaram os rapazes e correram no encalço dos cães.

Que maravilhoso espectáculo constituiu, por fim, ver o javali a abrir, ruidosamente, caminho através dos arbustos, e dar enormes saltos, apesar do seu corpo mal feito! Então, numa depressão do terreno, o animal voltou-se para trás e atacou os cães. Grande Artemis! Que colmilhos ele tinha! Que guinchos agudos soltava! Com que fúria se entregava à luta!

Ágis, que parecia estar sempre na vanguarda, deu um salto rápido e espetou-lhe a lança mesmo no peito. Outros lhe seguiram o exemplo, e, dentro de momentos, aquele esplêndido e selvagem javali jazia por terra morto e bem morto.

Nessa noite a companhia de Theras não regressou ao seu aquartelamento, pois tinha licença de pernoitar nas montanhas. Acenderam uma grande fogueira. Os escravos trataram de esquartejar o animal, e, em breve, as postas mais tenras estavam a assar no fogo. Seguidamente deliciaram-se com o suculento manjar, como só rapazes famintos ao ar livre o podem fazer.

Theras nunca mais esqueceria aquela noite - a frescura da atmosfera, o cheiro a carne de javali, as chamas altivas e crepitantes a devassar a escuridão da noite e, lá longe, o perfil dos montes Taígetos erguendo-se no meio das estrelas. O rapazinho sentia-se grande - um homem.

Dormiram toda a noite no chão.

Será para admirar que Theras, no meio de tais aventuras, se sentisse alegre e feliz? Já não se lembraria de Atenas? Estaria a tornar-se um verdadeiro espartano? Theras tinha o espírito demasiado ocupado para pensar nisso, embora tudo indicasse achar-se mergulhado em profundas cogitações.

Havia uma coisa que não lhe saía da mente: as chicotadas que Hípias lhe tinha prometido. Seu pai adoptivo ameaçara chicoteá-lo, mas ainda não cumprira a ameaça. Não havia rapaz algum em Esparta que se gabasse de o terem poupado ou desculpado, e ele batera em Hípias! Oh, tinha a certeza de que Hípias não lhe perdoaria! Não era lá mutto agradável sentir o chicote suspenso sobre a cabeça. Se havia de sofrer o castigo, ao menos que não demorasse.

Uma tarde encontrou-se com Hípias.

- Como vão os exercícios militares? - inquiriu o ancião. - Não te saíste muito bem na quele primeiro dia, pois não?

- Não, mas agora já estou bastante melhor - declarou o rapaz, com ar alegre. - Esta manhã já não fiquei atrás dos outros.

- Sim, já me informaram disso.

- Hípias - começou Theras, mas não teve coragem para prosseguir.

- Vamos, desembucha:

- Se tencionas chicotear-me, prefiro que o faças já. Não, não gosto de viver na expec tativa.

-Sabes que as minhas chicotadas são a sério?

- Sim, sei. Já vi outros rapazes apanhá-las. Aí é que está o mal. Oh, castiga-me agora! Garantiram-me que quando prometes uma carga de chicotadas, nunca faltas.

- Meu rapaz - exclamou Hípias com ar se vero. - Deves pesar melhor as palavras. Harmos é que te prometeu as chicotadas, e a Agis também. Eu cá não prometi nada; mas, se queres que te faça o favor...

Levantou a mão, mas Theras fugiu-lhe.

-Então, na verdade, não pretendes chicotear-me? - exclamou, radiante. - Bendita seja Atena!

- Seria melhor dizeres "Bendita seja Ártemis!" Ártemis é a advogada das chicotadas.

Hípias deu uma risada áspera que não agradou muito a Theras. Parecia estar a zombar dele. Contudo, voltou para o seu aquartelamento bastante feliz.

 

               Saudades

Sim, Theras, apesar de tudo, sentia-se contente em Esparta. Passaram- se meses. Já conhecia tão bem os exercícios militares, que nunca se enganava e executava-os com tanta agilidade como os melhores da sua companhia. Aprendera o cântico arrastado das Leis Espartanas, que os rapazes tinham de cantar todos os dias, de manhã, e familiarizara-se com o curioso dialecto dórico. Então, de súbito, algo aconteceu.

Theras nunca soube bem o que era aquilo, mas qualquer coisa o tornava infeliz e inquieto - qualquer coisa o fez sentir-se estranho em Esparta, mais ainda do que no primeiro dia passado naquela cidade.

O jovem ateniense mostrara sempre grande interesse em aprender os costumes espartanos. Agora, que já os conhecia, esse interesse ia desaparecendo a pouco e pouco.

Primeiramente começou por sentir saudades das histórias cantadas que os rapazes atenienses que tanto se orgulhavam de saber de cor - referiam-se às aventuras de heróis em paragens distantes, às suas viagens por terra e mar; aos seus feitos de bravura. Sempre que ouvia cantar ou cantava essas histórias, Theras sentia-se transportado às terras longínquas onde tais coisas haviam acontecido.

E era tão agradável nas escolas atenienses ouvir o professor dizer inesperadamente:

- Vamos agora praticar atletismo! - Em Atenas as coisas iam múdando a toda a hora, não deixando que a vida se tornasse monótona.

Mas agora que Theras já aprendera todos os exercícios militares espartanos, parecia-lhe uma patetice repeti-los contìnuamente, sem a mínima alteração. O mesmo acontecia com o cântico das Leis, que achava muito monótono. Que aborrecido terem de entoá-lo manhã após manhã

Em Esparta os dias eram sempre iguais. Theras perguntou a um dos rapazes:

- Simias! Quando é que começamos a aprender as canções de Homero?

- Canções de Homero - zombou o interpelado.

- Nunca, mariquinhas. Um homem livre não toca a lira nem canta! Isso é trabalho de escravos!

Ora Theras sabia muito bem que Homero não era para escravos, pois na sua família sempre constituira uma honra aprender belas canções e dirigir os coros. E então, o seu amado pai... que maravilhosas histórias ele costumava cantar, que fantásticos feitos narrara ao seu querido filho. Os rapazes, espartanos raramente viam os pais. Estes vinham, às vezes, visitá-los aos aquartelamentos, mas mostravam-se tão estranhos e severos!

- Quando é que ides para casa? - perguntou Theras.

Mais uma vez Simias zombou dele.

-Casa! Nós não vamos para casa. Não somos bebés. Agora vivemos no acampamento.

Sim, viviam no acampamento. Que local tão desconfortável e solitário, comparado com o lar de Theras, na companhia do pai, da mãe, das irmãs e dos escravos de quem era tão amigo!

A sua querida mãe! Theras nunca teve coragem de dizer aos espartanos que pensava na mãe. No entanto ela andava-lhe sempre no pensamento. Havia tanto tempo que a não vira! Dir-se-ia que já passara um ano desde que a deixara! Ela prometera enviar-lhe notícias por alguém, se lhe fosse possível. Mas não sabia escrever, como naquele tempo sucedia com todas as mulheres.

Theras continuava, contudo, a aguardar uma mensagem de sua mãe. Sim de sua mãe, mas não do pai. Por mais que esperasse, por mais longa que fosse a sua existência, jamais receberia de seu ai qualquer mensagem. Não tornaria a ver-lhe o rosto.

Só agora é que Theras caíra em si e pensou a sério no que acontecera ao pai e sentiu-se triste, verdadeiramente triste. Amara-o semprc mais que a qualquer outra pessoa, mas agora o seu amor por ele duplicara.

Todas as noites o rapaz sonhava com o pai ou com alguém da sua casa - a mãe, Ópis ou Lampon - e costumava acordar com um grito; é que, ao despertar, a imagem do ente querido desaparecia. Às vezes sonhava mesmo com qualquer recanto de Atenas - por exemplo, a esquina de onde Harmódio e Aristogfton haviam surgido de espada em punho; outras, via a Acrópole, com todos os seus maravilhosos templos e magníficas estátuas.

Em Esparta não havia bonitas estátuas dos deuses; existiam apenas algumas antigas, em forma de colunas, nas quais se distinguiam apenas a cabeça e os braços.

De noite Theras sonhava, pois, com Atenas, mas durante o dia não dava a entender aos outros rapazes o que lhe ia no coração nem as saudades que tinha da sua pátria. Não daria aos espartanos oportunidade de se rirem dele.

O ateniense saía-se sempre bem na corrida e no salto em comprimento. Nestas duas provas batia todos os rapazes da sua companhia.

Certo dia, porém, lembrou-se das palavras pronunciadas por Hípias no Estádio Ístmico e pensou:

"Pratico o salto e a corrida para honra de Esparta e não de Atenas, e quando participar nos Jogos Ístmicos ou nas Olimpíadas, terei de correr e dar saltos para honra de Esparta. Ora suponhamos que corro ao lado de um rapaz ateniense e o venço? Nesse caso, eu serei, na verdade, motivo de grande vergonha para Atenas, a minha própria cidade!"

Este pensamento desencorajou-o. Não conseguia aplicar-se a fundo na corrida, e ao dar um salto, o assunto vinha-lhe à ideia e ele obtinha resultados medíocres.

- Que se passa contigo - perguntou-lhe Draco certo dia. - Costumavas ser o melhor da companhia e agora Simias, e até Skyllis te vencem com facilidade.

Theras sentiu-se envergonhado e disse consigo mesmo:

"Nunca mais me vencerão, nunca mais!"

Não conseguiu, porém, melhorar, até que uma noite acordou e começou a pensar:

"Quando for grande e me levarem a Olímpia para participar nas corridas, gritarei para toda a gente, para todo o estádio, que sou ateniense e que corro para honra de Atenas; e se Hípias me retirar da prova. não faz mal."

Daí em diante Theras passou a correr e a saltar melhor que nunca.

Certa manhã, depois de exercícios desportivos, Ágis foi ao seu encontro, exclamando:

-Muito bem! Afinal de contas Esparta não é tão má como pensavas, pois não?

- Não, não é - respondeu Theras, pois já aprendera a obediência espartana.

- É tão boa como Atenas, não é?

Theras ficou imóvel. A imagem do ginásio de Atenas veio-lhe de súbito à mente, e recordou-se dos rapazes alegres e bem dispostos, de Klínias e dos restantes companheiros, do seu pai quando o ia buscar e o levava para casa.

- Oh, não, não, não é - ripostou Theras, esquecendo-se da disciplina espartana. -Esparta não se pode comparar com Atenas. Nem sequer tem categoria para ser escrava da minha querida Atenas!

E, inesperadamente, desatou a correr pela rua abaixo, escondendo as lágrimas.

Ágis ficou-se a olhá-lo, estupefacto, e não seguiu.

 

             O vencedor de Ártemis

Uma tarde, precisamente quando os rapazes acabaram os treinos de atletismo, entrou no Dromo uma companhia de homens espartanos para iniciar os seus. Desembaraçaram-se das vestes e Theras reparou que um deles tinha as costas e os ombros cobertos de extensas cicatrizes. Que lhe teria acontecido? Theras ficou admirado e pensativo. Em seguida, vendo Draco dirigir-se para o acampamento correu-lhe no encalço. Draco costumava responder às suas perguntas e mostrava-se sempre muito delicado. Fora ele quem oferecera a Theras a lança.

-Draco! Quem é aquele guerreiro cheio de cicatrizes - inquiriu. - Deve ter tomado parte numa grande batalha. Mas que lugar esquisito para tantas cicatrizes. as costas e os ombros!

- Oh! Nunca entrou em nenhum combate - respondeu Draco. - Chama-se Strepon. É um vencedor de Ártemis. Temos muito orgulho nele.

- Um vencedor de... Ártemis. Que é isso.

- O quê! Não tendes vencedores de Ártemis em Atenas? Que estranha deve ser essa cidade!

- Mas explica-te - insistiu Theras.

- Bem! Nós, os Espartanos, temos a imagem de Ártemis mais famosa do mundo. Chama-se Ártemis Othia e é ainda a que Ifigénia trouxe de Táuris. Enquanto a imagem esteve em Táuris, era costume oferecerem-lhe vítimas humanas; por isso agora ela gosta de sangue humano. Todos os anos alguns rapazes são chicoteados diante do seu altar até sangrarem. Aquele que aguentar mais chicotadas é o vencedor e recebe a coroa de Ártemis. Strepon já sofreu essa prova há muitos anos, mas as cicatrizes nunca mais desapareceram.

- Esse suplício é infligido diante de toda a gente? - perguntou Theras, com os olhos arregalados de espanto. - E trata-se mesmo de chicotadas?

- Sim, e para isso usa-se um chicote comprido com pequeninas chapas metálicas nas pontas que se enterram na carne, provocando cortes profundos.

- Que coisa horrível - exclamou Theras. - Eu não me deixaria chicotear como um escravo!

- Chiu! Ártemis pode ouvir-te!

- Não me importo. Não acredito que a deusa Ártemis queira o sacrifício de vidas humanas. Em Atenas ela nunca exige tal sacrifício; apenas pede os brinquedos e as bnnecas de meninas pequenas. É uma deusa muito boa e não má como aqui a fazem!

- Está bem. Vai visitá- la e verás!

- Mas onde está ela - insistiu Theras.

- Vais por este caminho abaixo - disse Draco, apontando para sul - e a cerca de duas milhas daqui, em Amiclas, vê-la-ás.

A curiosidade de Theras foi despertada por essa horrenda Ártemis, deusa tão cruel que gostava de ver rapazes chicoteados até o sangue lhe correr das feridas.

Ao fim dessa mesma tarde, depois dos exercícios militares, ofereceu-se-lhe uma boa oportunidade para deixar o acampamento e ele aproveitou-a para dirigir-se a Amiclas. O comandante, com certeza, nunca sonhara que qualquer dos rapazes tivesse coragem de abandonar o acampamento sem licença. Nem reparou em Theras, e este estava tão cheio de obedecer a ordens a todo o instante, que constituiu para ele um alívio ausentar-se nem que fosse só por uma hora.

Dentro de momentos lá ia sòzinho, a assobiar, a caminho de Amiclas.

 

         O Pastorzinho

O Sol já estava a esconder-se quando Theras chegou ao santuário de Ártemis, um pequeno templo à beira da estrada. Lá dentro conforme podia observar-se da porta, que se encontrava aberta, erguia-se a imagem - uma horrível imagem com efeito - alta e direita como um poste, de madeira pintada, com uns braços rígidos, disformes; e uma cara das mais feias que Theras jamais vira. Tinha olhos vorazes, boca enorme e nariz aquilino.

Uma sacerdotisa, com uma túnica amarela, ocupava-se com as tarefas do templo:

- Que pretendes daqui, meu pequeno - perguntou. - Queres ser chicoteado em honra de Ártemis? Anda cá que eu chicoteio-te.

- Não, não quero - disse Teras, recuando para fora do templo.

Logo que se apanhou novamente na estrada, o rapazito desatou a correr com quantas pernas tinha, mas não em direcção a Esparta. Ágis, o seu capitão, com certeza não demoraria a apanhá-lo, se ele não fùgisse. Theras correu em direcção ao sul, para muito longe, onde se estendiam campos planos e verdejantes. Estes fizeram-lhe recordar a quinta de seu pai, nos montes Himetos, embora aqui se tratasse de terreno plano enquanto lá longe na Ática ele fosse bastante acidentado. No entanto o trigo alto e dourado e o ar perfumado lembraram-lhe a terra natal. Para além dos campos de trigo havia um prado de erva verdejante, e no meio deste Theras viu, à luz crepuscular, um rebanho e um pastorinho que o vigiava e entretanto tocava uma marcha alegre numa flauta tosca que trazia consigo.

Theras correu para ele e, quando o rapaz deu pela sua presença, parou de tocar e ficou de boca aberta muito espantado.

- Grande Hermes Donde surgiste tu? - perguntou. - Vens sòzinho

-Venho de Esparta e graças a Deus estou só.

- E porquê? Fugiste?

- Assim parece - respondeu Theras.

- O quê? - gritou o outro. - Eu não queria estar-te na pele quando te apanharem.

- Bem, espero que só me apanhem quando a noite já for adiantada - declarou Theras.

-Portanto agora nem quero pensar nisso.

O rapazito olhava-o muito admirado.

- Quem és tu? - Perguntou ele.

- Chamam-me o filho de Hípias, mas não sou. Sou Theras, filho de Feidon, natural de Atenas.

- De Atenas - murmurou o rapaz, dirigindo a Theras outro olhar de espanto. - Bem me queria parecer que não eras espartano. Que é que te fez fugir para aqui?

-Vim ver a terrível imagem de Ártemis - declarou, baixando a voz -, a imagem que exige sangue.

- Qual exige! - ripostou o rapaz. - Quem exige sangue são os Espartanos e não a imagem.

- Como é que o sabes - inquiriu Theras.

-Porque a imagem pertencia-nos antes de ser dos Espartanos. Conhecíamo-la bem antes de a levarem. É bondosa, especialmente com os caçadores. Se lhe pedires, ela dar-te-á sorte na caça.

- Ela também é bondosa em Atenas - de clarou Theras. - Só quer os brinquedos que as meninas põem de lado.

-Pois é, pois é. Não deves ter receio dela - disse o rapaz. - E também é boa para os animais, grandes e pequenos. Vês o meu cão, Kairos. Esteve muito doente quando era pequenino, quase me ia morrendo nos braços. Levei-o à presença de Ártemis e pedi-lhe para o salvar. Imediatamente o cão começou a melhorar. Onde estás, Kairos? Anda cá, patife

De entre uns arbustos saiu um cão de raça que começou a rosnar de pêlos eriçados, quando viu Theras.

- Quieto, Kairos - gritou o rapaz. - Theras não te faz mal. Vai à tua vida! Avia-te!

À voz do dono, o cão afastou-se e começou a juntar novamente o rebanho que se tinha espalhado a comer erva.

- Vês como ele é esperto? - observou o rapaz, com orgulho.

-É melhor seguirmo-lo, pois já são horas de regressar a casa. Tu também vens? - E como o ateniense hesitasse, acrescentou - Depois de ceares, mostro-te o caminho para Esparta.

Assim Theras acompanhou-o. O pequeno pastor começou a tocar na sua flauta uma marcha bárbara, viva, e ao som daquela música os dois puseram-se a caminho, com o rebanho à frente.

Porque será que alguns rapazes mal se encontram ficam ogo amigos, ao passo que outros, um ano depois de se conhecerem, ainda passam o tempo a bulhar como dois franganitos?

Enquanto caminhava ao lado daquele rapaz, Theras teve a impressão de que o conhecera sempre, tão bem como aos seus colegas da escola em Atenas. Teve até vontade de lhe contar certas coisas que sempre escondera dos rapazes de Esparta, embora aquele pequeno pastor fosse um escravo - pelo menos Theras assim o julgou.

 

             Os periecos de Esparta

LÁ foram caminhando através dos campos e em breve chegaram a uma quinta com o curral e medas de feno ao lado.

- Mãe! - gritou o rapaz. - Trouxe um companheiro para cear connosco!

- Quem é - perguntou uma voz agradável que vinha de dentro da casa.

- Um desconhecido.

De repente a mãe apareceu à porta, com uma cara muito assustada.

- Quem é, Abas - voltou a indagar. Onde o conheceste?

- Oh, é um bom rapaz - respondeu o interpelado imediatamente. -Fale com ele e verá! - E afastou-se, ligeiro, a fim de guardar o rebanho.

A mulher dirigiu ao estranho um olhar penetrante e inquiriu:

- Porque vieste até aqui?

- Porque me encontrava em Esparta ha tantas semanas, que já não podia aguentar mais. pelo menos hoje - tornou-lhe rindo.

É espantoso como a fisionomia daquela mulher se desanuviou, ao ouvir Theras falar! é que o rapazito tinha sotaque de Atenas, não de Esparta.

- Ah, não és espartano - exclamou. - Entra e vem cear connosco. Abas, Hémon, pai. a ceia está pronta.

Um homem curvado, com os estigmas do trabalho árduo, e um esplêndido moço apareceram então por detrás das medas de feno.

Entraram todos em casa - uma choupana simples, construída de pedra calcária, mas relativamente grande. Theras reparou que havia uma outra divisão nas traseiras, o que era bastante estranho numa casa de escravos. A mesa abundava em boa comida (pelo menos na opinião de Theras que já não comia uma boa refeição desde que deixara a sua casa em Atenas): carneiro assado, leite fresco de cabra, bom pão, passas, doces de mel e vinho. Theras estava de boca aberta. O pai ofereceu vinho aos deuses e então todos se sentaram.

- Olá - saudou Hémon, olhando para Theras.

- É o rapaz que o velho Hípias trouxe de Atenas. Eu vi-o à sua chegada a Esparta. Passaste um mau bocado nos exercícios militares, não foi assim, meu rapaz?

- É verdade - respondeu Theras. - Mas agora nada daquilo me embaraça, isso é que não!

- Eu logo vi que aprenderias depressa - disse Hémon, muito delicadamente.

- Então tu conhece-lo - interveio, Dinarcos, o pai.

No seu tom de voz notava-se um certo alívio, como se até àquela altura houvesse experimentado um certo receio de Theras. Este ficou satisfeito ao ver que já todos confiavam nele, e teve, mais tarde, motivos para ficar ainda mais satisfeito com aquela confiança.

Que simpático rapaz era Hémon! Forte mas delicado; Theras ainda não vira pessoas tão bem educadas desde que viera para Esparta, e perguntava a si próprio como podiam aqueles simples pastores, que deviam ser escravos, possuir tamanha abundância de tudo.

Sem querer, as palavras fugiram-lhe pela boca fora e ele perguntou:

-Vocês são escravos? Como pode ser isso?

Todos responderam em uníssono e com certo calor

-Escravos? Claro que não. Não, não, não!

Theras corou até às orelhas e, levantando-se, curvou-se numa pequena vénia como qualquer rapazinho ateniense bem educado faria.

- Desculpem-me, por favor - pediu ele:

- Eu já devia saber que sois metecos.

- Metecos? - exclamou Dinarcos. - Não somos metecos, nem coisa parecida.

Dir-se-ia ter ficado mais aborrecido com o nome de metecos do que pròpriamente com o de escravos. Aqueles eram pessoas que vinham de muito longe e nunca adquiriam plenos direitos de cidadãos.

-Digam a esse rapaz o que é que nós somos - pronunciou a mãe, em tom amável e dirigindo a Theras um sorriso maternal. -Como é natural de Atenas talvez nunca tivesse ouvido falar em nós.

- Nós somos periecos - explicou Hémon -; pelo menos os Espartanos chamam-nos assim, o que significa que "somos seus vizi nhos". Mas a verdade é que nós vivemos sempre nesta terra, tal como todos os nossos antepassados. Somos acaianos. A Acaia já nos pertencia antes mesmo da vinda dos Espartanos.

E prosseguiu, agora quase num murmúrio:

-Roubaram-nos as nossas cidades e tiraram-nos todos os direitos. Não conseguiram porém, privar-nos da terra. Se nos desalolojassem das nossas quintas, esses Espartanos não tardariam a morrer de fome.

- Cuidado, Hémon, fala baixo - aconselhou sua mãe, com certo receio. - És um imprudente! E tu, Theras, senta-te outra vez.

Já comeste o que tinhas no prato, mas não ficas assim. Matam-te à fome... esses Espartanos... eu bem sei. Serve-o outra vez. Dinarcos, dá-lhe de tudo!

- Pois claro que dou!

Assim, o prato de Theras apareceu novamente cheio e Abas apressou-se a oferecer-lhe mais bolos de mel.

- Conta-nos coisas da tua terra. Fala-nos da tua família e diz-nos porque é que vieste para tão longe - convidou Dinarcos.

Theras nunca se sentira tão feliz desde que deixara a sua querida Atenas.

 

               Uma prisão estranha

Achavam-se todos muito còmodamente instalados à mesa e Theras estava a falar quando Dinarcos levantou os braços e exclamou bruscamente:

-Que é aquilo?

Fez-se silêncio, e então todos ouviram passos lá fora.

Theras pensou logo que se tratava de espartanos que vinham à sua procura e num repente correu para o outro aposento. Mal acabara de se esconder atrás dumas túnicas que estavam dependuradas na parede, quando a sala da frente se encheu de homens armados.

A pobre mãe, Baukis, deu um grito de pavor, mas mais ninguém da família se mexeu ou disse palavra.

"Irão enunciar-me - pensou Theras. - Esses espartanos não os maltratarão por me encontrarem aqui? Se ao menos eu pudesse fugir."

Espreitou por detrás das túnicas e viu Strepon, o vencedor de Artemis, no compartimento iluminado, e bem assim outros espartanos armados. Estranhou que Ágis, o seu capitão, não estivesse com eles.

- Dinarcos - proferiu Strepon -, viemos cá para honrarmos a tua família. O teu filho Hémon, realizou um acto de bravura, que não podemos esquecer.

Baukis deu outro grito de pavor e tapou a boca com a mão. Hémon levantou-se com muita dignidade e fitou os circunstantes. Di narcos, o pai, seguiu-lhe o exemplo.

Theras começou a perguntar a si próprio o que pretenderiam, afinal, aqueles homens.

- Sabeis, ó espartanos, que não queremos honrarias - declarou Dinarcos. - Apenas desejamos tratar das nossas terras. Hoje matámos um carneiro, mas só comemos um bocadinho. É possível que aceiteis o resto.

A estupefacção de Theras era cada vez maior. Esticou mais o pescoço lá do seu esconderijo. Os espartanos não teriam vindo em sua perseguição? Segundo parecia, queriam fazer qualquer gentileza a Hémon. Porque se mostrava pois toda a familia tão mal disposta, tão aborrecida e atemorizada?

- Não, pai - dizia Hémon. - Porque lhes há-de oferecer o carneiro? Não será suficiente levarem-me a mim?

- assim que agradeces a honra que te fazemos - perguntou Strepon com um sorriso de escárnio. - Salvaste uma criança espartana da morte, portanto aqui tens a tua coroa!

Levantou então uma coroa de louros e encaminhou-se para Hémon. Este, rápido como um relâmpago, arrancou-lha da mão.

- Não me pões coroa nenhuma, seu mentiroso! Faz-me o que tens a fazer e deixa-te de fingimentos!

Então Hémon debruçou-se sobre o pai e deu-lhe um beijo de despedida, procedendo de igual modo com a mãe e Abas. Começaram os três a chorar amargamente, mas Hémon portou-se como um homem. Avançou para os espartanos e desapareceu com eles na escuridão da noite.

 

             Um jovem muito corajoso

Theras, metido no seu esconderijo, não sabia o que fazer. Dinarcos, Baukis e Abas esqueceram-no por completo. Debulhados em lágrimas não se cansavam de chamar pelo nome de Hémon.

-Nunca mais o voltaremos a ver, nunca mais - lamentavam. - Nunca mais veremos o nosso querido Hémon!

Passado um momento Theras saiu do seu esconderijo e pegou na mão de Abas.

-Vou-me embora. Tenho de regressar a Esparta.

- Eu vou contigo - respondeu imediatamente Abas, que estava ansioso por fugir daquele ambiente de choro e de tristeza.

Pouco tempo depois lá iam os dois rapazes a caminho de Esparta, alumiados pela frouxa luz das estradas.

- Não chores, Abas - disse Theras. - Tenho a certeza de que voltarás a ver Hémon. Apenas foi a Esparta.

- Não, não, ele não regressará mais. É assim que costumam fazer. Levaram-no para o matarem.

-Para o matarem! Que é que queres dizer?

- Sim, vão matá-lo - repetiu Abas, procurando abafar os soluços.

- Mas que fez teu irmão?

- Sòmente isto: a semana passada, Cleon caiu dum penedo escarpado. Agarrou-se a um ramo e ficou dependurado em perigo de cair no desfiladeiro, com uns trinta metros de pro£undidade. Fartou-se de gritar por socorro, mas nenhum dos colegas se aproximou. Chegavam à extremidade e recuavam. Hémon, porém, conseguiu rastejar até ele. É ágil como um gato.

- Nesta altura Abas começou a soluçar novamente. - Hémon auxiliou Cléon a alcançar uma espécie de plataforma e depois a subir pelos penedos acima. Salvou-lhe a vida.

- Mas, Abas, isso foi uma boa acção. Não vão matar Hémon por isso?...

- Sim, matam, matam! - gritou Abas. - Não permitem que um perieco, homem ou rapaz, se mostre tão corajoso, com receio de que afronte Esparta. E se, quando eu crescer, for corajoso e bom em tudo como meu irmão, hão-de matar-me também.

- Não, não, não se atreveriam - disse Theras, que não podia acreditar em tal coisa. - Vós não sois escravos.

- Não, somos periecos - afirmou Abas, levantando a cabeça. - Os Espartanos não nos tratam assim muitas vezes, mas Hémon era belo e orgulhoso e mostrou-se mais valente que eles próprios. Não lhe perdoarão - E num sussurro acrescentou - Aos Hilotas é que costumam tratar assim. Os Espartanos têm uma organização secreta chamada Criptia. Esta vai a toda a parte para espiar. Se um hilota desobedece ou tenta ser muito esperto, matam-no. De agora por diante também me vigiarão a mim por causa de Hémon. Se eu tivesse para onde ir, fugiria daqui para fora.

- Eu também hei-de fugir um dia - respondeu Theras-, mas para isso tenho de crescer mais e de me tornar mais forte. Se eu fugisse agora tomar-me-iam por um escravo e quem me encontrasse talvez me levasse. Há muitos ladrões de escravos pelas estradas.

- Sim, eu sei - concordou Abas a medo.

Por essa altura já os dois rapazes tinham chegado às primeiras casas de Esparta.

- Adeus - disse Abas. - Agora tenho de me ir embora o mais depressa possível. Olha, acolá está uma sentinela.

- Qualquer dia volto a fazer-te uma visita - prometeu Theras. - Será muito brevemente. Se vir Hémon em Esparta, aconselhá-lo-ei a regressar a casa sem demora.

Quando Theras acabou de falar, já Abas desaparecera na curva do caminho. Momentos depois a sentinela agarrou Theras, abanou-o e acompanhou-o até ao seu acampamento, onde Ágis lhe deu uma grande sova.

"Não importa - pensou Theras. - Estas poucas horas de liberdade valeram bem o castigo."

O pequeno ateniense jamais esqueceu os agradáveis momentos passados em casa daquela família de periecos - agradáveis para ele, mas muito tristes para os seus hospedeiros. Contudo, não acreditava que os Espartanos matassem Hémon. Não seriam tão cruéis e insensatos como isso. Se tencionassem liquidá-lo, com certeza tê-lo-iam levado de casa violentamente. Mas a verdade é que o haviam presenteado mesmo com uma coroa de louros e tratado com grande amabilidade.

Aquela cena, no entanto, não lhe saía do pensamento e, durante a noite, sonhou com o afável rosto de Hémon.

 

             Platanistos

Para Theras todos os dias em Esparta eram iguais, mas o mesmo não acontecia com os rapazes espartanos. Estes passavam o tempo a falar de alguma solenidade, festival ou procissão que em breve houvesse de realizar-se. Certo dia referiam-se a Platanistos.

- Platanistos é algum festival - perguntou Theras.

Os rapazes tocaram com os cotovelos uns nos outros e desataram à gargalhada.

- Não, anjinho, não é - respondeu Skyllis, em tom de escárnio.

- É uma procissão?

- Não, não é, embora também tenha algo parecido.

- É uma festa em honra de algum deus?

-Não... a não ser que o deus seja Ares.

- Deixem-se de brincadeiras - interveio Draco. -Vem comigo Theras, que eu explico-te.

Puseram-se ambos a caminho e o jovem espartano comentou:

- Estão sempre a zombar porque têm inveja de ti. Na semana passada venceste-os sempre no salto em comprimento e eles não te perdoam. Vou explicar-te. Platanistos é uma batalha em que tomam parte todos os rapazes mais crescidos. Eu lá estarei porque já tenho idade suficiente para isso. Sou mais velho que

qualquer um da tua companhia.

Draco sentia-se orgulhoso ao dizer isto.

- Uma batalha? - inquiriu Theras. – Uma batalha a sério, com verdadeiras lanças?

-Não, não é bem assim. Não levamos lanças ou qualquer outra arma. Temos de mostrar aquilo de que somos capazes apenas com os braços, pés e dentes.

Theras achava aquilo esplêndido e grandioso.

Durante aquela semana o jovem ateniense perguntou, por várias vezes, o que era feito de Hémon, mas ninguém parecia saber o que lhe sucedera.

O Platanistos, que era então o assunto de todas as conversas, chegou por fim. Nunca Theras vira os rapazes espartanos tão excitados. Ao princípio da tarde as duas companhias, ou grupos de lutadores, puseram-se em marcha pela estrada de Afeta, em direcção ao sul. Toda a cidade - homens, rapazes, e até mulheres - seguiram, apressados, no seu encalço, envoltos na poeira que se levantava à sua passagem. Todos os rapazes gritavam: "Vamos, Heraclianos!" ou "Vamos, Licurguianos"

Eram estes os nomes dos dois grupos contendores.

Não tardaram a chegar a um campo onde cresciam alguns arbustos e que era cercado por um largo riacho, de modo que, uma vez ali, nenhum rapaz podia fugir. Dir-se-ia uma pequena ilha. Os espectadores ficavam na margem oposta do rio, enquanto cada um dos grupos de lutadores atravessava a sua ponte para alcançar o local destinado ao combate.

As duas formações mantiveram-se em ordem, como dois pequenos exércitos que se enfrentassem. Então o chefe deu a ordem de avançar.

Com um grito ensurdecedor, cada um dos dois grupos correu ao encontro do outro. Theras, que estava à frente, viu-os muito bem. Oh grande Hermes, que rica luta, com abundância de socos, pontapés, saltos e gritos!

O pequeno ateniense gritava com os outros a incitar o grupo da sua simpatia.

De súbito, sobrepondo-se a toda aquela barulheira, soou agudo grito de dor. Um rapaz bastante forte atirara-se a Draco e tentava arrancar-lhe os olhos. Parecia esquecer-se de que aquilo não era um combate a sério.

- Não o deixem! - gritou Theras. - Não o deixem! Ele está a matar Draco... a matar Draco!

Mas ninguém lhe prestou atenção.

Então Draco caiu, o que significava ser imediatamente pisado e morto.

Theras puxou pela túnica do homem que estava junto de si.

- Pare com aquilo! Depressa, depressa! Salve Draco - pediu.

O homem, porém, repeliu-o com uma praga.

-Que aconteceu, tolinho? Deixa-me em paz.

Então Theras atirou-se desesperadamente ao riacho e começou a nadar em direcção aos lutadores. Esqueceu-se de que era muito pequeno. Apenas pensou que era seu dever auxiliar Draco. O homem, porém, atirou-se à água atrás dele, arrastou-o para terra e deu-lhe uma sova como Theras nunca levara na sua vida.

-Então, meu ratinho! Querias interferir com Platanistos? Não sabes que se trata de uma coisa sagrada? Não... não... meu pequeno selvagem!

O espartano parecia estar absolutamente doido, como se a fúria de Platanistos o tivesse contagiado.

- Mas Draco será morto - conseguiu Theras balbuciar por entre as pancadas.

- Morto! Pois claro que está morto. Que não caísse no chão. Não precisamos de rapazes que caem no Platanistos.

De súbito, um grito de alegria, mais selvagem que os anteriores, saído das gargantas dos circunstantes, chàmou a atenção do homem que segurava Theras; o pequeno conseguiu então libertar-se e desatou a fugir precipitadamente. Todo pisado, a sangrar, ofegante, correu sempre até aquele barulho louco, cruel, soar muito longe e mal se ouvir.

Aquilo assustava-o mais de que as chicotadas. "Draco foi morto! Draco foi morto."

E este pensamento enchia-lhe o coração de tristeza.

Theras não podia adivinhar que Draco, por uma incrível sorte, conseguira escapar-se aos pés assassinos dos lutadores e levantar- se de novo, graças à sua rapidez de movimentos -qualidade que Lhe valera ser admitido nas muito seleccionadas fileiras do Platanistos.

Agora, porém, achava-se afastado do lugar da luta, não podia imiscuir-se, de novo, nela.

Enfim, Draco estava salvo. Dois rapazes morreram naquela tarde, mas ele não estava incluido nesse número. Theras, no entanto, não teve conhecimento de nada disso. Até mesmo o espartano que o agredira, pensava que Draco morrera.

 

           Uma ação cruel

Theras correu, correu sem parar. Não fazia a mínima ideia da direcção em que seguia. Apenas pensava em Draco e com que crueldade os espartanos o haviam liquidado!

Por fim, já muito cansado, com o corpo todo a doer-lhe da tareia que apanhara e as roupas todas molhadas por se ter atirado ao rio, Theras deixou-se cair na berma da estrada. Não sabia há quanto tempo ali se conservava quando, levantando a cabeça, viu que estava a escurecer. O Sol já desaparecera no ocaso e sobre os campos estendia-se uma cortina de nevoeiro.

Eram horas de regressar ao acampamento! Ergueu-se de um salto, dizendo em voz alta "Não regressarei ao acampamento. Não voltarei a Esparta! Não quero ir mais para uma terra onde matam os seus próprios rapazes para se divertirem!"

Oh, como Theras detestava Esparta! Como odiava tudo quanto se relacionava com tal cidade. Atenas! Sim, Atenas era um paraíso comparada com Esparta. Theras detestava tanto Esparta porque não queria de maneira nenhuma tornar-se um bruto selvagem como os Espartanos.

Esparta, apesar das suas leis, da sua instrução militar (a melhor do mundo), dos seus homens perfeitos e destemidos, não passava de um estado selvagem, enquanto Atenas era civilizada. Quer dizer, os Atenienses, homens justos e razoáveis, tinham outras coisas de que gostavam mais do que de combates e carnificina; além disso, podiam pensar e exprimir à vontade as suas ideias, ao passo que os Espartanos não se atreviam a falar. Theras não sabia explicar estas diferenças. Ao pensar em Draco e na cruel alegria com que haviam observado a sua morte, limitava-se a tremer de horror.

De repente lembrou-se de Hémon. Sim, os espartanos também tinham morto Hémon. Que tolinho fora Theras em não acreditar que eles eram capazes de tal barbaridade! Tinham morto Hémon e matariam Abas, se arranjassem um pretexto para o fazerem. Pobre Abas!

"Não, não hão-de matar Abas, Abas não" - disse para consigo.

Então, de súbito, Theras teve uma ideia que lhe ocorreu com a rapidez do relâmpago como se Atena a tivesse inspirado: fugiria de Esparta, não mais tarde, mas imediatamente. Já, naquela mesma noite, e levaria Abas consigo! Assim os espartanos não apanhariam o seu amiguinho. Não... não

Theras estava tão entusiasmado com o novo plano, que até se esqueceu dos ladrões de escravos que o podiam assaltar de noite na estrada, ou de qualquer outro perigo.

Partiria naquele mesmo momento. Começou a olhar em volta. Mas quê! Lá em baixo, à beira da estrada, erguia-se o templo de Artemis. Só com dificuldade conseguia distingui-lo à frouxa luz crepuscular. Sim, Platanistos ficava na estrada de Amiclas. Theras correra em direcção ao sul e agora achava-se perto da casa do seu amigo Abas.

 

                           UMA VIAGEM DIFÍCIL

 

           Nas medas de feno

Theras desatou a correr velozmente, sempre um pouco afastado da estrada, com receio de se encontrar com alguém. Não demorou muito a chegar à casinha branca de pedra onde vivia Abas. Escondeu-se atrás das medas de feno. Receava aproximar-se mais da casa, pois Dinarcos e Baukis talvez o mandassem regressar a Esparta. E que diriam eles da sua ideia de levar Abas consigo? Com certeza não concordariam.

Theras tinha de falar a sós com Abas. Mas como?

Movendo-se cuidadosamente na escuridão, aproximou-se do curral. Ao vê-lo uma velha ovelha abeirou-se das grades e baliu repetidas vezes como que a pedir pasto. Theras ouviu o cão Kairos dentro de casa a latir e a voz de Dinarcos a ordenar ao filho:

- Vai, Abas, vai ver o que se passa com o rebanho.

E num repente Abas estava no curral.

- Abas, não te assustes. Sou eu... Theras.

O pequeno ateniense apressou-se a falar, pois Abas saltara de medo ao ver um vulto a mover-se na escuridão.

- Theras! Que fazes aqui? Porque...

Mas enquanto Abas falava, Theras ia-o

levando em direcção às medas de feno.

- Chiu! Vou fugir, Abas! Sim, esta noite, imediatamente, e quero que venhas comigo.

Abas estava tão admirado, que os seus olhos brilhavam na escuridão.

- Fugir contigo? Eu? Para onde?

- Para Atenas. Lá eu olharei por ti, Abas. Se ficares cá, matar-te-ão. Tenho a certeza de que os espartanos um dia te hão-de matar.

- Oh Ártemis! Achas que me vêm buscar agora?

Abas começou a chorar com medo.

- Não, não, Abas - sossegou-o Theras, sacudindo-o. - Será um dia mais tarde, como acabo de dizer-te. Logo que sejas um pouco maior. Também mataram Draco no Platanistos.

- Draco não - disse Abas -, pois ainda o vi esta manhã.

- Sim, mas mataram-no esta tarde. Pobre Draco!

Theras começou então a soluçar; no entanto, prosseguiu:

- Também mataram Hémon. Fartei-me de perguntar a toda a gente o que era feito dele mas ninguem me soube responder. Abas, queres vir?

- Quero, por Zeus - tornou-lhe tão sùbitamente, que Theras lhe estreitou a mão com verdadeiro alívio e alegria.

- E os teus pais concordarão com a nossa ideia? Deixar-te-ão partir comigo?

-A minha mãe deve deixar mas o meu pai é capaz de dizer que precisa de mim para o ajudar no amanho das terras.

- Que havemos de fazer? Partir sem dizermos nada a nenhum deles?

- Não... pelo menos tenho de avisar a minha mãe - disse Abas. - Talvez o pai vá para a cama. Espera aqui por mim!

Nesse momento Dinarcos apareceu à porta a chamar, em tom zangado:

-Abas, seu malandro, que estás a fazer aí há tanto tempo?

O filho correu para a porta ilunnada de sua casa enquanto o amigo se escondia mais uma vez atrás do feno.

Passaram-se minutos, meia hora, uma hora. Theras conseguia ouvir Dinarcos, como que a resmungar. Não iria mais para a cama. Por que é que Abas não saía? E se casualmente cometia a tolice de desvendar o segredo?

As mãos de Theras começaram a arrefecer só com esta ideia.

Se Abas demorasse muito, ele teria de partir sòzinho. Não podia esperar toda a noite e dar aos espartanos tempo para o apanharem. Theras levantou-se e sacudiu o feno que lhe agarrara à roupa. Teria na verdade de partir sòzinho?

 

               A partida

Precisamente naquele instante dois vultos surgiram à porta. Eram Baukis e Abas que saiam.

A mãe falava baixinho, denotando perplexidade.

-Porque me fizeste vir cá fora? O teu pai já foi para a cama e nós temos de ir também. Que me queres tu dizer?

- Theras está aqui fora - sussurrou Abas.

- Theras! Porquê?

O jovem ateniense correu então para eles.

- Pede à mãe - disse Abas ansiosamente.

Em voz baixa Theras contou mais uma vez a história de Draco e manifestou a sua resolução de fugir para Atenas e levar consigo Abas para que não viessem a matá-lo também.

A pobre Baukis deitou as mãos à cabeça, horrorizada com o que acabava de ouvir.

- Quem vai matar Abas Quem é - inquiriu ela.

- Ninguém, para já - tornou-lhe o filho.

- Mas os Espartanos hão-de vir um dia buscar-me, a mãe bem o sabe.

Baukis virou-se para Theras, bastante zangada.

- Para que vieste meter essas ideias na cabeça do meu filho?

-Não se trata de Lhe meter na cabeça ideias nenhumas, Baukis. Foi Abas quem se lembrou disso na noite em que vieram buscar Hemon.

À palavra "Hémon", a pobre mulher soltou um gemido abafado.

- Sois ainda muito pequenos - argumentou -, ambos demasiado pequenos para fugir.

- Se esperarmos até sermos grandes, então será tarde de mais - disse Abas.

- Se te apanharem a ti é que te matarão -afirmou Baukis, agitando o dedo, ameaçadoramente, diante do rosto do pequeno ateniense. - Sim, é mais certo matarem-te do que ao meu filho. Acho que era melhor regressares a Esparta.

- Eu não volto para trás, não - declarou Theras apesar de a ameaça dela o ter amedrontado um pouco.

A mãe de Abas começou a andar de um lado para o outro como se a picassem com uma lança e ela se esforçasse por fugir-lhe, pensou Theras. Entretanto ia falando sòzinha.

- O meu filho não pode ir. Não há dúvida que será morto. Oh, não, não! Que dirá Dinarcos? - E abanava a cabeça.

Os rapazes nem sabiam o que pensar. De repente ela parou junto a Theras.

-Que podes tu fazer por Abas em Atenas? Diz-me?

-Posso levá-lo a Epikides ou a qualquer outro amigo de meu pai e pedir-lhes que façam dele um homem livre.

-E como haveis de chegar a Atenas?

- Oh, Baukis, lembro-me bem da estrada, e, se tiver alguma dúvida, perguntarei.

- Sim, e sereis levados pelo primeiro ladrão de escravos que vos encontrar. Ouvi, pois, com atenção! Não ireis pela estrada. Sublreis aos montes Taígetos, passareis pelas terras de Erístenes até encontrardes a casa de Bíon. Aí tomareis a direcção do norte. tu sabes o caminho, Abas. e quando o dia nascer estareis em casa do filho de Bíon, um homem forte e corajoso. Passai o dia ali e, à noitinha, ele vos ensinará o caminho até à próxima herdade. Assim, ireis de quinta em quinta e os donos vos ajudarão a afastar-vos tanto de Esparta, que os espartanos não conseguirão mais apanhar-vos.

Dir-se-ia que algo Lhe prendia a voz.

-Esperai aqui por mim, pois precisais, pelo menos, de levar pão -, proferiu ela, correndo para dentro de casa.

Os rapazes olharam um para o outro.

- Creio que me deixa ir - disse Abas.

-Ainda não deu o "sim", mas vai dá-lo - respondeu Theras.

Pouco tempo depois Baukis apareceu novamente com um pequeno saco na mão e duas túnicas. Entregou tudo a Abas, beijou-o e estreitou-o nos braços.

-Nunca mais voltarei a ver-te, nunca, nunca mais - pronunciou, num sussurro. Pedirei, por ti a Ártemis a quem oferecerei um sacrifício. Agora, ala que se faz tarde!

Ao proferir estas palavras, deu um empurrão ao filho; mas no momento em que ela se voltava, quase dobrada a meio e de cabeça baixa, Theras experimentou uma sensação tão estranha e tamanha tristeza, que correu na sua direcção e lançou-lhe os braços ao pescoço, beijando-a como fizera à sua própria mãe em Atenas.

 

                   Nos montes Taígetos

Na escuridão os dois rapazes caminharam o mais depressa possível rumo às montanhas. Estavam ansiosos por deixar a planície onde podiam ser vistos por soldados espartanos. Não pronunciavam palavra. Ambos se sentiam mortalmente apavorados, mas tratavam de esconder do companheiro os seus receios e assim lá conseguiam manter a coragem.

Por fim chegaram às vertentes dos montes Taígetos e, a pouco e pouco, foram-se embrenhando na floresta. Dir-se-iam protegidos por um manto. Abas seguira na dianteira até um pequeno riacho e a partir da margem deste começaram a subir. Na floresta estava escuro como breu. Mal podiam ver um palmo à frente do nariz. A princípio a subida não era muito íngreme, mas em breve tornou-se difícil, árdua, até que Theras escorregou e feriu-se num joelho. Abas mostrou-se melhor trepador que o companheiro.

- Como consegues ver o caminho - perguntou Theras. - Está escuro como breu!

Pumba! Abas tropeçara numa pedra aguçada. Deteve-se e cambaleou ao agarrar com força no pé.

- Paremos um bocado - disse ele. – Já nos encontramos muito longe e o luar não tarda a nascer. Então caminharemos mais fàcilmente.

Sentaram-se, pois, nas rochas. Estava tão frio e húmido! Embrulharam-se nas duas túnicas que Baukis lhes dera, as quais, no entanto, acharam muito finas.

De súbito ouviram um ramo partir-se, ali em perto; não conseguiam ouvir passos mas sabiam que alguma coisa se deslocava furtivamente nas imediações.

- O que será? - murmurou Theras.

- Talvez uma lontra ou uma raposa, que vem beber no riacho - opinou Abas. Bem sabia, claro, que podia tratar-se de um gato bravo mas não diria tal coisa. é o que quer que fosse saltou para dentro da água, e eles podiam ouvir o barulho que o animal fazia com a lingua, ao beber.

Sùbitamente, chapinhou com força e fugiu para o seio da floresta.

- Deve ter dado pela nossa presença - disse Abas.

Ficaram contentes com o silêncio que se seguiu, o qual, no entanto, não durou muito tempo. De novo ouviram o estalido de arbustos que se quebravam. Desta vez era qualquer coisa que se aproximava aos saltos. Os rapazes puseram-se de pé.

- Os soldados - gritou Theras.

- Não, não são. Deve tratar-se de um animal - disse Abas, que estava mais familiarizado com a floresta. - Não ouves o barulho que faz a farejar o chão?

Ambos, porém, sabiam que talvez os espartanos os perseguissem com cães para lhes seguirem a pista.

- Depressa! - gritou Abas. - Sobe para esta árvore atrás de mim!

Mas ainda não iniciara a subida, quando um cão lhe saltou - um cão que irrompeu em latidos e ganidos de alegria, tal como uma pessoa a gritar de contentamento, que se atirou a Abas e lhe lambeu os pés.

O rapaz desceu da árvore e exclamou!

- É o Kairos! Ó meu querido Kairos! Conseguiste encontrar-nos, pois conseguiste? Não querias que fôssemos sòzinhos pela floresta, meu velho Kairos.

Os dois rapazes começaram a fazer-lhe festas na cabeça e no lombo como se o não vissem há um ano. Quanto a Kairos, quase largava a cauda de tanto a agitar.

- Como sabes, a sua companhia ser-nos-á útil - disse Abas, orgulhoso. - Pode caçar lebres que eu me encarregarei de esfolar e cozinhar. Aprendi com Hémon.

Contudo, à palavra "Hémon", ambos sentiram vontade de se pôr em marcha a toda a pressa.

- Lá está a Lua - exclamou Abas. - Não vês o luar através das árv ores?

Então os dois rapazes, acompanhados pelo cão, retomaram a subida a passo acelerado.

 

             De noite

Passava da meia-noite quando chegaram a uma plataforma rochosa a meio caminho do cume da montanha, onde havia um aglomerado de casas, em número de dez ou doze.

- Ali está a casa de Bion - disse Abas apontando para ela -, e este... sim, este é o carreiro que devemos seguir.

Assim os rapazes lá foram rompendo por entre aquelas grandes árvores, imponentes e tranquilas, seguindo o caminho que o luar salpicava de manchas. O cão acompanhava-os calmamente.

Era tal a excitação de ambos, que nem sentiam a fadiga resultante da íngreme subida. Caminharam durante horas a fio e, embora as pernas lhes começassem a doer e os olhos fechar-se com sono, nenhum deles pensou em parar. Sabiam muito bem que naquela primeira noite convinha distanciarem-se o mais possível de Esparta.

Por fim, Theras apercebeu-se de que já havia mais luminosidade entre as árvores, que da terra se desprendia um fresco e agradável odor; e, de sú ito, vinda não sabiam donde, percorreu a floresta uma brisa cortante e veloz, agitando os ramos.

- É quase dia - exclamou Abas. - No entanto, estou contente. O que quero é chegar a casa de Bíon.

Finalmente, após uma curva brusca do caminho, deparou-se-lhes a casa que procuravam, fechada e adormecida. Os dois cães de guarda, porém, estavam acordados e bem acordados. Latindo e rosnando ferozmente, romperam direitos a Theras, mas, quando viram Kairos, atiraram-se a ele. Num repente os três animais engalfinharam-se, ganindo e uivando, ofegantes.

- Bíon Bíon Vem cá depressa - gritou Abas.

Saltou para o meio dos cães para defender Kairos, e Theras apressou-se a ajudá-lo.

Quando Bíon saiu de casa deparou-se-lhe uma tumultuosa barafunda de rapazes e cães, de pernas humanas e caudas de animais, e ouviu os latidos agudos e os roucos rosnidos, próprios dos cães quando lutam uns com os outros.

A princípio Bíon desejava que os seus cães dessem uma boa lição àqueles intrusos que o vinham acordar tão cedo, mas quando reparou que se tratava de dois rapazinhos novos avançou para os animais.

- Gê, larga Cérbero, aqui. aqui! - e retirou os seus cães, enquanto Abas pegava em Kairos ao colo.

- Que quereis daqui? - perguntou Bíon, bastante zangado.

- Bíon, eu sou Abas. A minha mãe envia-te isto como prova de que vim com sua ordem - e o pequeno tirou do cinto uma amostra de pano finamente tecido, que sòmente Baukis saia fazer.

- Sim, é sem dúvida tecido por Baukis - concordou Bíon. - Mas porque vieste ter comigo?

Abas não abriu a boca, pois tinha receio de contar a Bíon o que se passara com ele.

- Bíon! Conhecias Hémon? - inquiriu Theras.

- Sim, muito bem. Mas porque perguntas?

- Os espartanos mataram-no e não queremos que façam o mesmo a Abas.

- Hémon, Hémon morto! Grande Zeus! - exclamou Bíon, cuja face ficou triste como a noite.

- Queremos esconder-nos em tua casa durante o dia de hoje - disse Theras.

- Não, não vos escondereis em minha casa. Eu sei de um sítio melhor. Vinde comigo.

Dirigiu-se então para as traseiras da habitação e começou a trepar monte acima até uma caverna cuja entrada ficava escondida entre uns arbustos.

- Escondei-vos aqui - disse-lhes carinhosamente. - Chamar-vos-ei quando for a altura de partirdes. - E ali os deixou.

Com um profundo suspiro de alívio, os rapazes sentaram-se. Abas abriu a saca que a mãe lhe entregara, onde encontrou pão escuro, queijo de cabra, figos e alguns doces de mel. Atiraram-se ambos àquele farnel como lobinhos esfaimados. E que bem lhes soube!

Quando já metade tinha desaparecido, Theras perguntou

-Não achas melhor guardarmos o resto para amanhã.

- Sim - anuiu Abas com um suspiro -, mas só podia comer isto tudo e muito mais!

- Também eu, mas devemos guardar o resto.

Meteram as sobras na saca e deitaram-se na caverna. Lá fora, na floresta, um tordo começou a entoar o seu longo e melodioso cântico matinal.

De repente, Theras começou a pensar: "Vou regressar a Atenas. Agora é verdade. Dentro de uma semana, ou talvez duas, verei as ruas, os templos, as casas, o meu lar e minha mãe!"

Dir-se-ia ser aquela a primeira vez que tinha consciência de que estava a caminho da sua querida terra! Ficou tão surpreendido com essa perspectiva, que o coração começou a saltar-lhe no peito e sentiu dores na garganta, como se estivesse prestes a irromper em choro.

Mas não chorou. Em vez disso, adormeceu mesmo na posição em que se encontrava.

 

              A Perseguição dos Espartanos

Cinco minutos depois, pelo menos assim lhe pareceu, Theras foi acordado por qualquer coisa, não sabia o quê. Lá fora, à entrada da gruta, viam-se as sombras da tarde e os raios horizontais do Sol.

Aquilo que o despertara eram vozes - vozes baixas. Certamente, mesmo durante o sono, o medo e a desconfiança perseguiam Theras, o que contribuiu para que ele acordasse tão fàcilmente. Deslizou até à entrada da caverna e espreitou através dos arbustos para casa de Bíon, lá em baixo.

Oh grande Zeus A casa de Bíon estava completamente cercada de homens... de espartanos! Estes tinham-nos encontrado! Sim, lá se via Ágis, o capitão, que naquele momento dizia

- Pois, Bíon, tens a certeza de que não viste o rapaz? Já sabes o que te acontecerá se descobrir que me estás a mentir.

Era sem dúvida uma ameaça.

- Porque havia eu de lhe mentir? Que me poderá interessar o rapaz? - tornou-lhe Bíon.

- Bem, nós vamos então revistar a tua casa!

- Perfeitamente. Podem fazê-lo à vontade. Theras sentiu calafrios de medo. E se Bíon os houvesse recolhido em sua casa, conforme lhe tinham pedido? Num ápice, o pequeno ateniense voltou para o fundo da gruta, onde Abas ainda dormia. Deveria acordá-lo para fugirem? Mas como? Correriam mais perigo de serem agarrados se tentassem a fuga. Não; seria preferível conservarem-se ali. Abas achava-se escon dido por trás de uma curva da parede da gruta. Theras escondeu-se também. Dali podia ainda ouvir as vozes.

- Bem, não encontrámos nada em tua casa - declarou Ágis desapontado.

- Para onde pensais que o rapaz se dirigia? - perguntou Bíon.

- Theras? Para Atenas, claro.

- Se assim é, desculpai-me a pergunta, porque o procurais aqui?

- Porque alguém o viu, ontem à noite, a correr pela a estrada de Amiclas, e o velho Hípias recomendou-nos que procurássemos também nos montes. Trabalho baldado, bem o sabemos. Evidentemente que outros percorrem a estrada para Atenas. Aí é que devem encontrá-lo.

- Oh Já sei a que rapaz te referes. Ouvi falar dele.

Theras nem respirava. Se ao menos esses espartanos se fossem embora! Mas continuavam a andar em redor da casa, sem se deterem.

- Perdemos os nossos cães - disse Ágis.

-Farejaram a pista de uma raposa e foram atrás dela em correria louca. Se tal não houvesse sucedido, e o rapaz aqui estivesse, com certeza o encontrariam.

Theras sentiu o cabelo erguer-se e arrepiar-se na sua cabeça. Os seus dentes começaram a bater. Nunca tivera tanto medo, nem mesmo quando se vira raptado pelo vendedor de brinquedos.

- Sim, na verdade, esses cães são de confiança - ouviu Bíon dizer.

Com que calma e naturalidade se exprimia! Dava a impressão de que, realmente, nada sabia acerca dos fugitivos.

- Bem... então adeus, Bíon - disse Ágis de repente. - Vamos regressar a Esparta. Mas, não te esqueças, se Theras por aqui passar e tu no-lo entregares, dar-te-emos uma recompensa.

Então partiram apressadamente. Oh, que agradável ouvir os seus passos em retirada!

Como tudo ficaria silencioso! Agora apenas se distinguia o chilrear dos pássaros. E os cães?

Que havia ele de fazer? Ficar ali ou fugir? Estava indeciso, e aquele escuro esconderijo parecia-lhe tão bom, que nem tinha coragem de sair de lá.

De súbito sentiu passos à entrada da gruta. E se Bíon. oh se Bíon viesse apanhá-lo com o fito na recompensa?

Este entrou na gruta com um jarro na mão.

- Então, rapazes - exclamou perscrutando a escuridão. - Toca a acordar - Abaixando-se, abanou Abas. - Acorda, vamos

- Os espartanos já se foram embora? - perguntou Theras a tremer. - Tem a certeza de que realmente se foram?

-Não sei, mas julgo que sim. Contudo, acho melhor que vos ponhais a caminho, o mais depressa possível. Tenho mais receio dos cães, que dos próprios espartanos. Bebei este leite e vinde daí!

Encheu uma tigela de bom leite de cabra e os rapazes beberam-no com tal sofreguidão, que nem lhe tomaram o gosto.

- Que se passa? - perguntou Abas. - A que cães se referem?

- Não é nada - disse Bíon. - O que tendes é de partir imediatamente. Agora aviai-vos!

Eu vou convosco.

Theras ficou novamente desconfiado. Iria ele levá-los a Esparta?

Bíon seguiu na frente dos rapazes monte acima, em direcção ao norte -precisamente aquela que eles desejavam seguir. Mas porque... sim, porque os acompanhava? theras cada vez estava mais preocupado. Ágis prometera uma recompensa a Bíon!

Por fim, detiveram-se junto de um riacho que descia, veloz e cantante, pela vertente do monte.

- Agora, meus rapazes, podeis agradecer à ninfa deste riacho o ter-vos salvo - disse Bíon.

- Metei-vos à água, vestidos e calçados, e ide por aí abaixo. sim, em direcção a Esparta. Encontrais-vos agora ao norte dessa cidade. Se caminhardes sempre na água, não deixareis rastro e os cães não poderão seguir-vos. E espero que os espartanos também vos não descubram. No cimo do monte há uma estrada realmente boa. Com certeza eles julgam que será por lá que passareis. Portanto, se fordes por aí abaixo, enganá-los-eis. Tu, Abas, deves conhecer o caminho que os rebanhos usam; começa por trás de um pinheiro alto e retorcido, precisamente no ponto em que o riacho faz uma curva. Quando lá chegardes, apressai-vos! Quanto mais andardes esta noite, tanto melhor para vós. Chegareis, com relativa facilidade, a casa de Licurgo, mas, se aguentardes mais um bocado vede se ides até casa de Níkias. Ide o mais longe que puderdes.

Depois de dar esta explicação a Abas, pegou num bocadinho de madeira que tinha tosca gravura de uma cabra e entregou-a a Theras.

-Níkias saberá que sois mandados por mim, se lhe mostrardes isto - disse ele. - Entrego-te a ti, porque é a ti que os espartanos procuram e não a Abas.

E assim os deixou.

Os rapazes lá partiram a toda a pressa, chapinhando pelo regato abaixo. Até se esqueceram de agradecer a Bíon. Theras sentiu grande alívio por saber que ele não os ia denunciar.

Felizmente o lusco-fusco ajudou-os, pois doutra maneira não conseguiriam descobrir o caminho através do áspero leito da corrente.

- Lá está o tal pinheiro retorcido - disse Abas, por fim - E, na verdade, o riacho faz ali uma curva apertada. Espera. sim... cá temos o tal caminho.

E avançaram, apressados.

Não, não agradeceram a Bíon, mas Theras jámais esqueceria que aquele pobre homem da cabana da montanha não traíra dois rapazitos a troco de uma recompensa.

Bom e honesto Bíon! O jovem ateniense recordá-lo-ia sempre com um sentimento de sincera gratidão.

 

               Através da floresta

Quando a noite caiu os pequenos viajantes caminhavam apressadamente através da floresta. O fiel Kairos acompanhava-os, trotando silencioso, no seu encalço, como já os seguira, pela corrente abaixo. O animal rompi, sem dificuldade, naquela densa escuridão, mas os rapazitos não conseguiam ver o caminho nem avançar sem constantes tropeções.

Resolveram por isso sentar-se à espera. Todos os ruídos lhes pareciam latidos de cães, e quando uma raposa ladrou mesmo, puseram-se de pé, num ápice, cheios de medo. Não há mais temíveis perseguidores que os cães de caça. Os rapazes sabiam que eles podiam farejar-lhes o rastro na vereda e, se assim sucedesse, ser-lhes-ia fácil descobrirem o seu paradeiro.

- Oh! - exclamou Abas, pondo-se de pé.

- Já estou arrependido de ter vindo!

- "Sim - pensou Theras -, se o não houvesse trazido comigo, a estas horas ele estaria em sua casa em segurança."

Em seguida perguntou-lhe em voz alta:

- Queres voltar para trás, Abas? Podes ir para casa de Bion, pois segundo este disse os espartanos não te perseguiam a ti.

Abas hesitou, mas a ideia de partir e deixar Theras sòzinho fê-lo sentir-se envergonhado.

- Não, não quero. Antes de sair de casa já sabia que iríamos passar um mau bocado. Lamento o que acabo de dizer.

Esperaram, pois, em silêncio.

A Lua ainda demoraria muito a aparecer?

Todos os minutos eram preciosos para se afastarem de Esparta, que ainda ficava muito perto, demasiado perto.

Por fim, eis que, devagar e em silêncio, o grande disco luminoso surgiu no firmamento.

O luar começou então a insinuar-se por entre as árvores da floresta. Aqui e ali o clarão prateado reflectia-se nos ramos. As folhas pareciam polidas e cintilantes.

Os rapazes tinham-se desviado um pouco do caminho, mas depressa o encontraram e partiram em marcha acelerada, mal respirando.

Tendo avistado uma casa, rodearam-na por largo, com receio de acordarem os cães de guarda. Já passava muito da meia-noite, quando chegaram à cabana de Licurgo.

- Vamos andando até à casa de Níkias - murmurou Theras.

- O dia já terá nascido quando lá chegarmos - disse Abas.

- Não faz mal. Vamos tentar.

E os seus pés, já muito cansados, lá prosseguiram caminho fora. Com efeito, o Sol nasceu, subiu no firmamento sem que eles avistassem a casa de Níkias.

- Não faz mal - comentou Theras. - Mais longe de Esparta nos achamos, cada vez mais longe!

Estas palavras pareceram revigorar-lhe as forças e ele pôde de novo apressar o andamento.

Quando, porém, chegaram à cabana de Níkiias, a meio da manhã, iam extremamente fatigados.

Depois de Theras apresentar a escultura da cabra que Bíon lhe dera, Níkias recebeu-os muito amàvelmente e levou-os para um velho curral abandonado, onde eles se deitaram a dormir.

À tardinha, Níkias ensinou-lhes o caminho para a cidade de Orestia, que seria a sua próxima paragem.

Mais uma vez se puseram em marcha pelo caminho de montanha, que parecia não ter fim, ora subindo ora descendo, contorneando cabeços rochosos, tendo agora e logo uma visão do vale da Lacónia, lá ao longe, muito abaixo deles, ainda banhado da luz frouxa do entardecer.

Seguiam pela parte mais alta das montanhas e as árvores eram pequenas e enfezadas. Durante essa noite transporiam a fronteira da Lacónia, o estado de Esparta, e entrariam na Arcádia.

-Pensas que já atravessámos a fronteira? -perguntava Theras de vez em quando. - Oh, que alegria a minha quando me vir fora dos limites de Esparta!

Por fim, já ao romper do dia, chegaram a um riacho que corria, apressado, dos píncaros da montanha.

Níkias tinha-os prevenido de que haviam de encontrar esse curso de água. Era o rio Alfeu. Agora sabiam que estavam no território de Arcádia.

-Já estamos na Arcádia! Já estamos na Arcádia - gritou Theras.

Ajoelhou-se, trémulo, na margem, para beber. Sentia-se muito cansado e doíam-lhe os pés e os tornozelos. Uma pequena paragem ali parecia-lhe maravilhosa bênção.

- vamos descansar aqui por uns momentos - sugeriu.

- Seria melhor continuarmos a viagem - opinou Abas -, pois ainda temos de... chegar hoje a Orestia.

Mas também ele se sentia tão cansado, que se sentou ao lado de Theras a contemplar o riacho.

- Quem me dera seguir o Alfeu até Olímpia! - disse Abas. - Gostava de ver o estádio onde homens e rapazes disputam corridas.

- Pois o que eu quero é chegar a Atenas - declarou Theras. - Sòmente a Atenas. E, Abas, quando lá chegarmos, mal tenha visto minha mãe e minhas irmãs, Aglaia e Ópis, irei direitinho a casa de Epikides. Ele é tão bom! Pedir-lhe-ei que te ajude, que te arranje trabalho. Mas viverás connosco, em nossa casa. E sei que Epikides fará de ti um homem livre. Será disso que tratarei antes de mais nada.

Assim, sentados na margem do famoso Alfeu, ambos faziam planos para quando chegassem a casa. Nem sequer pensavam na distância a que Atenas ainda ficava e como era longo e perigoso o caminho que Lhes faltava percorrer.

 

               Uma oração a Pã

Muito perto de Orestia pararam junto à casa de outro pastor chamado Leon.

Todos estes pastores e camponeses eram periecos, assim como Abas, e conheciam-se uns aos outros.

Os rapazes não seguiam a estrada habitual para Atenas. Se olharem para um mapa, verão quão afastado dela era o caminho que palmilhavam. Certamente nenhum espartano iria procurá-los nas montanhas de Arcádia, salvo se os denunciasse qualquer perieco; por isso Theras sugeriu que, depois de Orestia, viajassem durante o dia.

Que felizes se sentiam quando partiram daquela cidade da Arcádia, ao romper da aurora! Que alegria para eles já poderem andar à luz do dia, em vez de ser só à noite! As pequenas casas e os templos de Orestia, espalhados pela vertente do monte, ou semiescondidos em estreitos vales, brilhavam sob o sol matinal.

Assim, embrenharam-se numa região montanhosa. Os picos das montanhas próximas estavam cobertos de neve e pareciam tocar no céu, estendiam-se a perder de vista. A Arcádia é na verdade uma região muito acidentada.

Poucas árvores se viam. Naquelas montanhas e colinas nuas a luz vermelho-rosa, dourada, cor de púrpura, estendia-se serenamente na distância, de modo que o mundo parecia mergulhado numa grande neblina ou mar colorido.

Na véspera ambos os rapazes tinham os pés doridos de tanto andarem, e as sandálias, pràticamente desfeitas, mal lhes protegiam os pés. Mas o bom Leon de Orestia fornecera-lhes calçado que pertencera a seu filho, e de manhã as dores dos pés e das costas haviam desaparecido.

Theras cantava enquanto seguia pela estrada da montanha, pois os Atenienses cantavam em vez de assobiarem, e ele sentia-se feliz! Kairos também se mostrava satisfeito e precipitava-se por entre os arbustos, em perseguição de lebres, ou então corria à frente dos rapazes.

- Repara só nisto: já percorremos mais ou menos meio caminho para Atenas e não tivemos nenhum contratempo - lembrou Theras.

- Já nos perdemos por muitas vezes - disse Abas, que até receava confessar-se contente.

- Sim, mas sempre encontrámos de novo o caminho, e os espartanos nunca nos puseram a vista em cima.

-Tem cuidado, muito cuidado, que os deuses podem ouvir-te! -aconselhou Abas.

Nessa altura passavam por um pequeno santuário de Pã, que era o deus dos pastores.

Theras parou.

- Vamos oferecer a Pã todos os bolos que Leon nos deu- sugeriu.

Abas, criado nos hábitos parcimoniosos dos camponeses, gostaria de guardar alguns para o dia seguinte. Aquelas caminhadas no ar puro das montanhas faziam- lhe tanta fome!

Theras levantou as mãos bem alto defronte do santuário, de pé e com os olhos no céu, tal como os Atenienses sempre procediam nas suas orações.

-Ouve-nos, oh Pã! Leva-nos a salvo até Atenas que a minha mãe dar-te-á um presente dez vezes melhor que este que hoje te oferecemos.

Depois desta pequena oração puseram-se novamente a caminho. Theras lá ia todo entretido com a sua leve e bem afiada lança a mover-se acima da cabeça. Fora-lhe oferecida por Leon, que também presenteara Abas com um arco e flechas.

-Podeis ter a certeza de que precisareis disso - dissera-lhes. - Admira-me como conseguistes chegar até aqui sem uma arma qualquer. Protegeu-vos a sorte ou a bondade dos deuses.

- Foi Atena - respondera Theras. - Estou convencido de que ela deseja ver-nos novamente em Atenas.

Leon nunca teria pensado em dar a lança a Abas e o arco e as flechas a Theras, pois logo se apercebera de que este era um menino da sociedade e entre os gregos os rapazes bem-nascidos, ou cidadãos, só usavam lanças ou espadas, ao passo que a arma dos Periecos era o arco. Fizera bem em proceder assim, pois Abas estava treinado no arremesso de flechas e Theras, não só em Atenas mas também em Esparta, exercitara-se no uso da lança. Nunca pensara quão necessária lhe viria a ser tal prática.

 

                   Não era um Gato Vulgar

No dia seguinte dirigiram-se para Mantineia, outra cidade da Arcádia. Achar o caminho para lá era como procurar agulha em palheiro. A montanha erguia-se ainda mais alta e escarpada e muitas vezes a estrada não passava de estreito caminho de cabras.

A certa altura Abas notou que o carreirito estava a estreitar-se e a aparecer menos trilhado. Achavam-se lá tão alto, que as nuvens ficavam abaixo deles e deslizavam suavemente no espaço, como enormes flocos de neve.

- Aquelas nuvens são carneiros - disse Theras, a rir-se - e o vento o pastor que os guia.

Abas não respondeu. Estava bastante procupado com o caminho. Sim, e tinha razão, pois agora nem vestígios se viam dele.

- Decerto enganámo-nos no caminho. Temos de voltar para trás - disse.

- Está bem - concordou Theras, sem perder a boa disposição.

Voltaram para trás e encontraram outro caminho pelo qual seguiram. Este, porém, terminava junto de uma cabana em ruínas. Retrocederam de novo.

Agora achavam-se profundamente embaraçados, pois uma nuvem envolvera a montanha como que numa túnica, não os deixando ver o sol que sempre Lhes servira de guia, e não tardaria a cair a noite. Até Kairos não fazia outra coisa senão farejar, como se soubesse que não estavam no caminho devido.

- É melhor não prosseguirmos - disse Abas. - Podemos desviar-nos ainda mais do caminho. Temos de passar aqui a noite.

Dispunham ainda de dois bocaditos de pão que tinham guardado do almoço, e comeram-nos.

- Oh Aqui ficamos lindamente - exclamou Theras. - Quem me dera que matasses uma lebre! Se bem que não temos com que acender uma fogueira para a cozinhar.

- Pois não. Falta-nos uma pederneiradeclarou Abas. - O meu pai sabe acender lume com dois pauzitos, mas aqui, com esta humidade, nada conseguiria.

Com efeito, nas rochas formavam-se gotas de água devido à neblina, e as túnicas em que se agasalhavam achavam-se húmidas.

Contudo, apesar da humidade e do frio, não demorou muito que os dois adormecessem.

Kairos que se enroscava junto deles, rosnava de vez em quando.

Theras acordou antes do nascer do Sol.

- Olha, Abas - chamou -, as nuvens estão a desaparecer e já se pode enxergar em derredor. É melhor aproveitarmos, a ver se encontramos o caminho.

Levantaram-se, pois, e reiniciaram a marcha. Abas partiu à frente, com esperanças de caçar uma lebre. Talvez encontrassem a cabana de qualquer pastor que os deixasse assá-la. Ambos estavam com uma fome devoradora.

Entraram, então, num estreito vale onde cresciam alguns carvalhos enfezados e pinheiros. Sùbitamente os arbustos mexeram-se uma, duas vezes, Kairos ganiu de medo, e surgiu o maior gato que Theras jamais vira em toda a sua vida. Assemelhava-se a um gato doméstico, mas muito grande... grande e ágil O focinho, contudo, era bastante diferente. Largo e com ar feroz, tinha umas queixadas muito peludas e os dois enormes olhos fixavam-se em Abas, pois ainda não dera pela presença de Theras.

Abas voltou-se de repente. Viu-o, mas sem lhe dar tempo de disparar o seu arco, a fera caiu-lhe em cima.

O rapazito conseguiu esquivar-se às garras do animal e agarrou-lhe pelo pescoço. A sua força, no entanto, não bastava para suster a fúria da fera.

Theras, quase instantâneamente, apercebeu-se de que teria de arremessar a lança com firmeza e boa pontaria, se queria salvar a vida ao companheiro. Levantou a arma e apontou-a ao lombo do animal. De súbito pareceu possuir a força de um homem, e a lança foi atirada com violência.

Oh grande Zeus Que terrível uivo O gato bravo deu um salto para trás e começou a andar à volta, tentando arrancar a lança com os dentes.

- Atira-lhe, atira-lhe uma flecha - gritou Theras.

Abas pegou no arco que lhe tinha caído ao chão com o embate do gato, fez a melhor pontaria possível e disparou. Imaginem! A flecha entrou-lhe por um dos olhos! Então deixando a fera a estrebuchar e a soltar gemidos de dor, os dois rapazes deitaram a fugir em louca correria.

- Pode andar por aqui outro - gritou Theras. - Corramos, corramos!

 

           Hospitalidade na Arcádia

Uma vez fora do vale, continuaram a subir pela vertente do monte sempre a correr, só se detendo quando a falta de fôlego os impediu de prosseguir.

Theras apontou para uma colina que ficava do outro lado e perguntou:

- Que é aquele ponto negro? Uma casota, não achas?

Abas, fazendo pala com a mão, observou o ponto indicado.

- Sim, tens razão - respondeu.

Assim, tropeçando em troncos e pedras, os dois encaminharam-se na direcção da cabana, onde chegaram devia ser quase meio-dia. Lá estavam o pastor e a sua mulher, que ficaram admiradíssimos com a presença de dois rapazes famintos naquele sítio deserto.

- Estais muito longe da estrada - exclamaram. - Para onde vos dirigis? Como arranjaste esse arranhão - perguntaram, referindo-se a um profundo ferimento que o gato bravo fizera no ombro de Abas.

O pastor e sua mulher que eram muito bons, lavaram o ombro do rapaz e explicaram que a fera, com certeza, passara toda a noite em busca de caça, sem nada encontrar, e por isso os atacara com tamanha ferocidade.

A mulher ofereceu-lhes um bom pequeno almoço e depois o pastor acompanhou-os à procura da lança, do arco e das túnicas que haviam abandonado. Theras nunca mais daria com o caminho para o sítio, mas Abas levou-os lá sem dificuldade.

Encontraram o gato bravo perto do local onde o tinham deixado.

- Que Ártemis nos valha! É um lince ainda muito novo. Reparem-lhe na cauda curta e nos bigodes. Boa pontaria! -exclamou o pastor, arrancando a lança de Theras que se sentia um pouco vaidoso.

Esfolaram então o animal e depois levaram-no para a cabana do pastor.

Na manhã seguinte partiram de novo, resolvidos a observar atentamente o caminho.

- Mesmo na melhor estrada destas redondezas podem ser atacados por gatos bravos e ursos - disse o homem. - Isto não é sítio para dois rapazes viajarem sòzinhos.

Apesar de tão terrível aviso, os dois lá seguiram, penosamente, mas sem correrem verdadeiros perigos, passando por Alea e pela pequena cidade de Fílio, a caminho de Corinto.

Foi depois desta cidade que se lhes deparou o maior perigo, e então não de animais selvagens mas sim de homens.

 

       Uma estalagem perigosa

Os pastores e lavradores da região de Corinto não eram tão prestáveis. Quantas vezes Theras e Abas passaram fome! Certa ocasião até lhes recusaram abrigo. Mas isto raramente acontecia na Grécia, onde a boa acção, que merecia dos deuses a melhor recompensa, era a assistência aos viandantes.

Chegaram a Corinto ao princípio da tarde, tendo prosseguido viagem sem se deterem na cidade e, ao cair da noite, dirigiram- se a uma espécie de estalagem, cujo proprietário a princípio bastante brusco amansou de súbito e deixou-os entrar.

Essa estalagem era uma construção de pedra, com dois andares, e os rapazes foram instalados no de cima. Nunca, até então, Abas subira umas escadas.

- Isto não é nada - gabou-se Theras. Nós também temos escadas em casa e muito brevemente lá estaremos! - rematou com um suspiro de prazer.

Como de costume, fora Theras quem falara com o estalajadeiro, ois Abas, quanto mais longe se encontrava de sua casa, mais tímido e envergonhado se mostrava. O pequeno ateniense, porém, só com muita dificuldade conseguia perceber o homem, pois este falava um dialecto estranho. Aquilo era grego esquisito, rude, certamente originário de qualquer ilha do mar Egeu. É que afluía a Corinto gente das mais diversas proveniências.

Os dois rapazes estenderam as suas túnicas no chão e sentaram-se para comer a ceia, que felizmente tinham trazido consigo. Enquanto comia, Theras ia cantarolando e atirando bocados de comida a Kairos, que os engolia sem mastigar.

Abas agarrou no braço do companheiro e exclamou - Schiu Escuta!

Um grupo de homens entrara na estalagem e encontrava-se no andar de baixo a beber e a conversar.

- Não consigo perceber patavina - disse Theras.

- Percebo eu - declarou Abas, aterrado, com o rosto branco como um lençol, mas sempre à escuta. - Estão a dizer que nos levarão como escravos. O dono da estalagem quer prender-nos já, mas os outros acham que não podemos escapar-nos e que é melhor esperar até de manhã.

Theras pôs-se a pé dum salto.

- Não temos por onde escapar, a não ser pelas escadas abaixo e passando pelo meio deles - murmurou Abas.

Theras olhou para a única janela do compartimento. Era muito alta. Não havia dúvida que aquele quarto parecia uma verdadeira prisão.

O jovem ateniense trancou a porta com todo o cuidado.

- Não vale a pena - sussurrou o companheiro. - Isto é uma ratoeira. Fomos apanhados como coelhos numa armadilha.

O queixo de Abas tremia tanto, que ele mal podia falar. Theras continuava a olhar em redor e por fim murmurou:

- Não, não nos deixaremos apanhar. O único móvel do compartimento era um armàriozito tosco, a um canto.

- Ajuda-me a arrastar isto - disse baixinho. - Devagar, não faças barulho!

Pegaram um de cada lado e mudaram-no para debaixo da janela.

- Mas não vês que isto fica muito alto exclamou Abas, quase zangado. - Não podemos saltar.

Theras subiu para o armário e olhou lá para fora. Sim, apesar da escuridão, conseguiu ver que a colina descia a pique debaixo da janela e que o terreno era muito acidentado. Em redor da casa havia um muro bastante alto, mas, graças aos deuses, a cancela estava aberta.

De súbito Theras saltou do armário e, pegando na sua túnica, ligou-a com um apertado nó de marinheiro à ponta da de Abas, pois os rapazes atenienses recebiam também instrução naval. As túnicas não tinham qualquer feitio, não passavam de grandes quadrados de fazenda.

Em seguida, amarrou a outra ponta a uma das pegadeiras do armário, de modo que as túnicas transformaram-se numa espécie de corda grossa que ele atirou pela janela fora.

Abas ficou surpreendido com a ideia do companheiro e começou a alimentar esperanças de salvamento.

- Sim, muito bem - disse.

- Eu vou primeiro - anunciou Theras. Tu, quando eu já estiver do lado de fora, passas-me Kairos e a minha lança e segues-me imediatamente.

Enquanto falava, subiu para o armário, debruçou-se na janela e olhou para fora.

O pátio da estalagem estava deserto e os homens cantavam ao mesmo tempo que bebiam mais vinho.

Dirigindo uma prece a Atena, Theras atirou-se para o lado de fora e, entrelaçando as pernas e os braços na corda improvisada, começou a deslizar. Antes de chegar ao chão, Abas passou-lhe o cão e a lança e, em seguida, desceu ele com o arco e as flechas às costas.

 

                   Um lugar Solitário

Cuidadosamente e em bicos de pés, os rapazes atravessaram o pátio e transpuseram a cancela. Então desataram a correr como doidos através do pinhal. Era um terreno horrível, cheio de pedras e barrancos.

- Vamos Por aqui - indicou Theras, ofegante.

Encaminharam-se para a estrada, atravessaram-na e continuaram a correr pelo outro lado.

Com certeza procurar-nos-ão na floresta. Por isso devemos seguir pelos rochedos.

Assim, ora rastejando, ora trepando, ora caminhando tão apressadamente quanto o terreno lhes permitia, continuaram a viagem, sem nunca se desviarem dos rochedos. Lá no fundo, no sopé do despenhadeiro, via-se o mar que espumava e marulhava. As estrelas brilhavam no firmamento e a luminosidade, reflectida pela superfície da água, ajudava-os a orientar-se.

A estrada estendia-se em plano mais elevado, e eles iam-na acompanhando. Por vezes a falesia agresentava-se tão escarpada, que tinham de subir para a estrada durante momentos, mas, logo que podiam, deixavam-na, com receio de serem surpreendidos pelos negociantes de escravos.

De súbito Abas caiu desastradamente por entre os rochedos. Theras olhou para trás, a vê-lo levantar-se. O rapazito, porém, conservou-se por terra, dobrado sobre si próprio, a estrebuchar.

- Abas! Que te aconteceu? Tens de te levantar!

- Já sei, e levanto-me já, mas magoei-me no tornozelo.

Pôs-se de pé devagar e com todos os cuidados, mas sempre que se apoiava no pé esquerdo, não conseguia reprimir um gemido de dor.

Theras amparou-o com um braço e de novo se puseram em marcha. Abas mancava horrivelmente.

Nenhum deles proferiu palavra. Não ignoravam que tinham de prosseguir a caminhada se não queriam ser apanhados.

- vamos subir para a estrada - sugeriu Theras. -Acha-se deserta e ali caminharemos com mais facilidade.

Assim, durante cerca de uma hora, sempre com olhos e ouvidos atentos, lá foram andando lentamente. Abas, de vez em quando, soltava um gemido, mas sempre que tal acontecia logo acelerava o passo.

De súbito, porém, o rapazito dobrou-se e teria caído se Theras o não ouvesse segurado.

- Que foi, Abas? Que tens?

Mas Abas não respondeu. À pálida luz do luar que acabava de surgir, o seu rosto parecia branco como cal.

Theras abanou-o, chamou por ele. Não sabendo o que fazer, começou a chorar com pena do companheiro.

-Oh Abas! Eu não queria obrigar-te a andar depressa de mais! Não sabia que estavas tão magoado!

Kairos aproximou-se de Abas e lambeu-lhe a cara, soltando ganidos e latidos.

Então, calmamente, Abas abriu os olhos em volta. Em seguida, o rosto contorceu-se-Lhe num esgar de dor.

- Vamos - disse, tentando pôr-se de pé mas voltou a tombar. - A minha cabeça anda a roda. Eu... eu... É melhor não esperares por mim, Theras. Vai indo, por favor, vai indo. Seguir-te-ei logo que possa.

- Não te deixarei sòzinho - replicou Theras.

Começou a apalpar o tornozelo de Abas, que, ao contacto da mão do companheiro, estremeceu dos pés à cabeça.

- Olha, Abas - disse de súbito -, eu levo-te às costas.

- Não, não penses nisso. Não podes, Theras. Assim...

-Deixa-te de coisas! Eu levo-te.

Abaixou-se e ordenou:

-Salta para as minhas costas. Nem pio!

Vamos!

Abas pôs-se às costas do companheiro e agarrou-se-lhe ao pescoço.

- Tu não pesas nada - disse Theras. Oh grande Zeus! Assim é muito mais fácil.

Na verdade, Theras podia agora andar mais depressa. Lá seguiu, estrada fora, dirigindo ao

companheiro, de vez em quando, uma palavra encorajadora. A pequena rodela da Luafoi subindo, até que por fim se encontrava lá bem no alto sobre o mar. Momentos volvidos, começou a distinguir-se a luz cinzenta do amanhecer e o mar mostrou-se de uma estranha brancura.

Abas, porém, parecia pesar cada vez mais.

Na verdade, o seu peso pouco inferior seria ao de Theras.

Este estava grato ao treino que recebera em Esparta - esse treino que concorria para aumentar de dia para dia a resistência dum jovem e o ensinava a prosseguir, mesmo depois de se sentir exausto.

Por fim nasceu o dia. Theras encontrou um bom esconderijo entre umas rochas, junto a uma pequena queda de água. Pousou Abas, estendeu-lhe o membro ferido sobre as rochas e deitou-se também, adormecendo imediatamente.

 

           A carga de Theras

Quando Theras acordou, já depois do meio-dia, Abas estava a banhar na água da corrente o tornozelo ferido. Este, de tão inchado, mostrava-se absolutamente disforme, e uma mancha negra subia até meia distância do joelho. O rosto do rapaz achava-se pálido e tinha um ar cansado.

- Procura além, nos arbustos - disse. Enquanto esperava que acordasses matei um esquilo com uma flecha. Como estávamos muito calados, ele veio mesmo até ao pé de nós, mas não pude agarrá-lo.

Theras procurou no sítio indicado e, de facto, encontrou o esquilo. Ajudado por Abas, depois de muitas tentativas, conseguiu fazer uma fogueira servindo-se de duas pedras ásperas e de ervas secas. Entretanto o companheiro cortava o esquilo aos bocados, e assim assaram-no na ponta de um pau comprido.

Com que apetite o comeram! E quando acabaram aquela ligeira refeição, o sol já baixara no horizonte, de modo a permitir-lhes porem-se novamente a caminho.

Theras escalou a falésia a fim de fazer um reconhecimento pela estrada, e viu um grupo de homens de mau aspecto caminharem em sua direcção. Escondeu-se e, só depois de eles terem passado, voltou para junto de Abas.

- Não devemos ir pela estrada - disse ao companheiro. - Pelas rochas é muito melhor.

-E ajudou Abas a subir-lhe para as costas.

Sabia muito bem que estavam a aproximar-se das rochas de Skiron, onde os espartanos haviam sido atacados pelos ladrões; aquelas paragens gozavam de má fama devido aos bandos que se acoitavam nas florestas.

-Mas nós não interessamos nada a esses malditos ladrões, pois o que eles querem é mercadorias - disse Abas.

- Se nos vissem, deitavam-nos logo a mão - tornou Theras. - Vender-nos-iam por melhor preço que qualquer mercadoria.

Assim Theras pôs-se a caminho com o companheiro às costas, pelos rochedos. De vez em uando parava e punha Abas no chão para descansar, mas por pouco tempo. Quem lhe dera ser tão ágil como Kairos, que parecia andar com facilidade em qualquer terreno!

Ao cair da noite, os rochedos tornaram-se tão escarpados, que Theras viu-se forçado a voltar à estrada, mas também naquele sítio ela era muito íngreme. Agora Abas parecia pesar tanto como um homem e Theras já respirava com dificuldade. Ficou radiante quando raiou a aurora e pôde deitar-se outra vez a dormir.

Naquele dia Theras procurou uma ave, um coelho, ou um esquilo que pudesse matar, mas não encontrou nada. Não teve coragem de afastar-se muito de Abas, com receio de se perder dele.

À noite, cheio de fome e esgotado pelo esforço despendido, mais uma vez carregou com Abas às costas. Este opusera-se e tentara caminhar pelo seu pé, mas sem resultado. A debilidade manifestou-se de novo e Abas sentiu tonturas como se estivesse bêbado.

- Além disso, não irias mais depressa - retorquiu Theras. - Por um terreno destes só se pode caminhar vagarosamente.

Nessa noite, porém, as coisas não correram muito bem. Theras teve de pôr Abas no chão por várias vezes, para descansarem. Já depois da meia-noite, ao chegar ao cimo duma encosta, os joelhos de Theras de súbito cederam e ambos ficaram estendidos na estrada.

 

             Em situação desesperada

Depois de refeitos daquele percalço, Abas pôs-se a esfregar o seu azarento pé que sofrera mais uma torcedela, enquanto Teras enlaçava com as mãos os joelhos que continuavam a tremer e a vacilar. Alguma coisa dentro do seu peito o atormentava, e apetecia-lhe chorar.

Abas abanou a cabeça furiosamente.

- Theras, filho de Feidon, voltaste a magoar-me - disse ele.

- Desculpa-me - pediu o companheiro.

-Não darás nem mais um passo comigo às costas - continuou Abas. - Nem mais um passo. Não quero que me leves.

- Ai isso é que levo - replicou Theras com lábios trémulos.

-Não, por Hermes. Apenas sirvo para te embaraçar e assim acabaremos por morrer os dois. Eu tentarei a minha sorte e tu a tua. É melhor seguires viagem e, eu...

-Se me julgas capaz de te abandonar, porque vieste comigo?

- Não adianta teimares. Tu... tu... Já te disse, Theras, que não darás mais um passo comigo às costas. - A voz de Abas soou bastante estranha.

- Prometi a Baukis pôr-te em segurança e não descansarei enquanto o não conseguir. Portanto, escusas de insistir - declarou Theras.

-Os deuses querem que eu morra de contrário não me teriam ferido o tornozelo - disse Abas.

- Que tolice! Se os deuses te feriram, foi para verem se, mesmo assim, terias coragem para prosseguires.

- Coragem não me falta, ou eu não fosse um espartano!

-Não, não és. Dentro de pouco tempo serás um ateniense, e vais acompanhar-me.

-Não, não vou.

- Ai isso é que vais.

Os dois rapazes estavam quase a chorar por causa da sua zanga.

Theras levantou-se nas suas pernas trémulas.

- Ainda te dou um soco, Abas - vociferou. - Estás mas é a insultar-me apesar de... apesar de ter tentado... O que te digo é que posso levar-te às costas.

Rompeu para Abas, aparentemente resolvido a cumprir a sua ameaça, mas o companheiro levantou as mãos, como que a pedir misericórdia.

- A velha ovelha preta pode levar-me. Não precisas de preocupar-te comigo.

- A velha ovelha preta - repetiu Theras, sem compreender.

- Sim, a nossa Oeta, que vês além! – Abas apontou para uma rocha negra. - Ela pode levar-me muito bem, mas minha mãe tem de nos dar sopa antes de partirmos. É sovina, senão dava-nos sopa, já que estamos com tanta fome... tanta fome!

Theras fitou, muito espantado, a cara de Abas. Estava muito vermelha apesar do pó e da imundície, e os seus olhos tinham um brilho bem estranho. Nem parecia Abas.

Um arrepio de medo percorreu Theras.

-Abas, não podes ver nenhuma ovelha, e mesmo a tua mãe não está aqui.

Abas só repetia "fome, fome!"

Então o companheiro compreendeu. Abas estava muito doente. Iria morrer ali junto aos penedos? Que coisa horrível ouvi-lo pronunciar palavras destituídas de sentido!

Theras, de repente, deixou de experimentar as tremuras nas pernas. Levantou-se e começou a olhhar em volta.

- Preciso de lhe arranjar qualquer coisa para comer - disse em voz alta. - Tenho que procurar.

Não haviam encontrado qualquer casa durante toda a noite, mas mesmo que vissem alguma, Theras arriscar-se-ia a dirigir-se lá, depois do que lhes acontecera na estalagem?

Agarrou no arco e nas flechas de Abas e correu para um estreito vale onde alguns arbus tos baixos talvez escondessem um coelho, um esquilo ou uma ave. Fartou-se de procurar por toda a parte, mas a atmosfera estava cheia de nevoeiro. Por vezes chegava mesmo a esquecer-se do que andava a fazer, o que era de estranhar.

Trepou a outra colina e espreitou por cima de uma crista rochosa.

Por Hermes! Lá estava a estrada e por ela fora, à distância, vinha um grupo de homens a pé. Instantâneamente, Theras retrocedeu e foi esconder-se por detrás duns arbustos. Teve então vontade de dar mais uma vista de olhos ao grupo que se deslocava pela estrada. Era, na verdade, muito triste estar ali tão sòzinho.

Voltou novamente para junto das rochas donde podia observá-los. Sabia que isso era muito arriscado, pois podiam descobri-1o e levá-lo com eles.

Oh E se fossem homens bons e não ladrões! Se fossem bons até podiam salvar Abas. Theras não se veria forçado a assistir ali sòzinho à sua morte...

Vigiou-os até eles se aproximarem mais.

Pararam quase por baixo do sítio onde ele se encontrava. Abriram então uma grande cesta e sentaram-se a comer.

- Oh, Zeus, como Theras desejava aquele pão, aquele queijo, a maravilhosa galinha assada!

Apesar da distância parecia-lhe aspirar o cheiro daquelas iguarias... que tortura! Não aguentava mais.

Desceu a encosta para se aproximar mais do grupo. Conseguia ouvir-lhes as risadas e gracejos. O à-vontade com que aqueles homens falavam, fazia-lhe lembrar a sua querida casa em Atenas.

Então um dos do grupo deixou os companheiros e foi sentar-se um pouco distanciado, mas mais perto de Theras. Pegou numa coisa brilhante - uma lira, certamente uma lira

- Oh Atena auxilia-nos - cantava o homem.

Sem pensar em mais nada, Theras desandou por ali abaixo a correr, tropeçando nos rochedos, e surgiu de entre os arbustos como uma perdiz assustada.

Saltou para junto do homem e cingiu-lhe os joelhos com ambos os braços, pois era deste modo que os Gregos faziam uma súplica" ou pedido instante.

 

         Heródoto

- Grande Zeus tonante!

O homem largou a lira e segurou-a só por uma das cordas.

- Que é que tu queres, vagabundo? Larga-me! Larga-me!

- Ajude-me! Ajude o meu amigo Abas -balbuciou Theras, com dificuldade, devido aos soluços que lhe embargavam a voz.

Um escravo correu para Theras e puxou-o para trás.

- Uma isca, senhor! Os ladrões costumam enviar à frente um rapaz como este. Oh vós! Pegai nas vossas espadas, homens!

Estas palavras chamaram Theras à realidade.

- Eu não sou nenhuma isca! - gritou ele, em voz clara. - Um ateniense nunca ajudaria ladrões. Oh! Não vêem que sou ateniensc?

Porque Theras pensava ser fácil a qualquer pessoa ver que ele era um ateniense, filho de boa família, não sei, pois achava-se todo sujo, com o cabelo emaranhado, as roupas esfarrapadas e tão magro como uma pernalta escanzelada.

-O que lhe valeu foi o homem da lira ser pessoa sensata.

- Solta o rapaz, Jason - ordenou. - Anda cá, meu filho!

Então segurou na mão de Theras que tremia como varas verdes.

-Agora diz-me quem és tu?

-Eu sou filho de Feidon, de Atenas! Levaram-me para Esparta, mas estou de regresso a casa!

- Grande Zeus. Sòzinho!

- Não, não, acompanha-me o meu amigo Abas, que está acolá em cima, no meio dos rochedos, quase a morrer. Oh, senhor, venha conigo e salve-o. Venha! Não se preocupe comigo

- Eu já lhe disse, senhor - insistiu o escravo -, que o rapaz pertence a uma quadrilha de ladrões. Quer levar-nos até lá acima para nos apanhar numa armadilha.

Theras nem podia responder, pois estava cheio de medo. Simplesmente olhava para os olhos do velho, implorando, como um cão, que acreditassem nele. Que azul profundo o dos olhos do ancião! Bondosos, inteligentes, sérios, dando sempre, no entanto, a impressão

de sorrirem. Dir-se-ia trespassarem Theras de lado a lado. Sùbitamente aqueles olhos azuis encheram-se de lágrimas.

- Eu acredito neste rapaz, mesmo que todos vós o ponhais em dúvida! Quem quer vir comigo à procura do seu amigo Abas?

- Vou eu - respondeu um.

- E eu - respondeu outro.

- Eu também - respondeu um terceiro.

O homem pegou na mão de Theras e, seguidos pelos restantes, lá treparam às rochas donde Theras viera.

A princípio este não foi capaz de descobrir o estreito vale onde andara a caça de coelhos.

Desejava tanto provar àqueles homens que tudo o que dissera era verdade, que até se atrapalhava e não conseguia orientar-se. Mas, apesar disso, o velho não o julgava um mentiroso.

- Não te precipites - recomendou. - Depressa encontrarás o caminho.

Então, de súbito, Theras descobriu o tal vale, e dali por diante não teve mais dificuldades. Momentos depois, avistou Abas, que jazia como um monte de trapos, e desatou a correr à frente de todos os outros. Ajoelhou- se junto do companheiro e levantou-lhe a cabeça.

- Abas, Abas! Encontrei alguém que nos vai ajudar. Ouve-me, e pára de falar!

Mas Abas limitava-se a mover a cabeça de um lado para o outro, murmurando:

- Fome! Fome! Fome!

Oh! Que coisa maravilhosa ver o amável estrangeiro transportar Abas até à estrada e ali dar-lhe leite e pensar-lhe o tornozelo ferido com umas ervas medicinais de cheiro muito activo.

E Theras também comeu pão, queijo e frango assado. Com certeza tudo aquilo não passava de um sonho, não podia ser realidade. Por fim os escravos deitaram Abas numa maca improvisada, e assim o grupo se pôs a caminho. Instantes volvidos o amável ancião aproximou-se de Theras e levantou-o nos braços como se de uma criancinha se tratasse.

-Tu já não tens forças suficientes para ires a pé, meu filho. Eu e Jason levar-te-emos ao colo, meu bravo ateniense!

Theras passou-lhe os braços em volta do pescoço - naquele momento era a pessoa de quem mais gostava no mundo.

- Quem é o senhor? - perguntou-lhe admirativamente.

-Chamo-me Heródoto. Conheci bem o teu pai em Atenas!

 

     O homem que conecia todas as maravilhas do mundo

Heródoto estava porém enganado, e Theras dentro em pouco caminhava como todos os outros; ao aproximarem-se de Mégara, já se sentia completamente refeito. Talvez isso fosse devido à boa alimentação, ao sentimento de segurança depois de passar tantos perigos, ao facto de ver Abas tão confortàvelmente estendido naquela cama improvisada, já a abrir os olhos de vez em quando, ou à certeza de chegar a Atenas.

Talvez para tal resultado concorressem todas estas coisas. Quanto a mim, no entanto, a conversa de mistura com risadas e a música ao longo da viagem, mais que tudo, é que obraram o milagre. Com efeito, Heródoto sabia tocar muitas e alegres melodias.

Quem em determinada altura de longa penosa viagem, quando já quase não podia dar um passo, teve um companheiro que cantasse com bom ritmo, certamente compreenderá o que então aconteceu a Theras; as suas pernas começaram a mover-se, e os ombros a endireitar-se, chegando mesmo a esquecer a fadiga que antes o afligia. E o que ainda mais o entusiasmava era o facto de tratar-se de velhas árias de Atenas que ele tão bem conhecia.

Heródoto contou ainda as mais maravilhosas histórias que Theras ou qualquer outro rapaz do mundo até aí ouvira. Falou do Egipto, o país onde nunca chove, mas onde há um grande rio que costuma inundar tudo à sua volta; dos túmulos dos reis - grandes pirâmides semelhantes a verdadeiras montanhas onde se acreditava que viviam deuses-; de um maravilhoso pássaro negro parecido com o grou que lutava com as serpentes e as vencia; e ainda de um animal que nasce de um ovo do tamanho do de gansa e atingia cerca de dois metros e meio de comprimento.

-Os seus olhos parecem-se com os do suíno, os dentes são grandes como colmilhos, não tem língua e só levanta a maxila superior

nunca a inferior - contou Heródoto. – Veja se são capazes de fazer o mesmo.

Theras e Abas tentaram abrir a boca daquela maneira, mas acabaram por rir-se às gargalhadas, por causa das divertidas caretas que faziam.

Oh! Quantas histórias de reis e heróis.

Heródoto sabia! A de Ciro que, menino ainda à foi levado para uma montanha onde o deixaram abandonado para morrer, mas que conseguira descobrir o caminho de regresso e chegara a ser rei. O tirano Periandel que perdeu o seu anel no mar, mas que voltou a encontrá-lo dentro dum peixe que lhe serviram à ceia.

E o próprio Heródoto... que homem alto e galante ele era! As suas barbas compridas já mostravam alguns fios de prata, mas movia-se com enorme agilidade, como se os anos não lhe pesassem. Além disso nada havia à beira da estrada por mais insignificante que fosse, quer se tratasse de erva, animal ou nicho de dlvindade, cuja história completa ele não conhecesse. Bastava perguntar-lhe, que logo dava a informação pedida.

Theras caminhava durante horas e horas ao seu lado e sempre de mãos dadas. Não queria afastar-se muito dele, com receio de perder algumas das suas palavras. E, coisa curiosa, os adultos do grupo ouviam-no com tanta atenção como os rapazitos.

- Quem lhe ensinou todas essas coisas maravilhosas? - perguntou Theras, admirado.

Com efeito não havia livros que narrassem os factos por Heródoto referidos.

- Foram homens no Egipto, na Jónia na Pérsia, na Itália e nos Jardins de Hespérides - respondeu o interpelado -, mas aprendi mais ainda com os meus olhos.

-E já andou por tão longe, por todas essas terras?...

- Sim, meu filho, e por muitas mais. Eu nunca me canso de ver este mundo em que vivemos.

 

               A Baía de Salamina

Chegaram por fim à baía de Salamina, e ali Heródoto contou-lhes a mais maravilhosa de todas as histórias. A da vinda dos persas - milhões deles - para combater a Grécia, que dispunha apenas de algumas centenas de homens.

Descreveu-lhes a concentração de navios na baía de Salamina: trirremes com três fiadas de remadores de cada lado, veleiros de todas as espécies e barcos com esporões à proa para abrir rombo nos do inimigo. Havia embarcações de Atenas, de Egina, de Corinto, de Mégara e de Esparta. Heródoto citou mesmo o número de navios enviados por cada cidade, lembrando que pertencia a Atenas a maior quantidade.

Ali, na baía de Salamina, os barcos tinham esperado a grande esquadra persa e de toda a Ásia.

Heródoto apontou para o sítio onde cada barco fundeara e por fim Theras tinha a impressão de estar a ver a fiada de alvas e garbosas embarcações a baloiçarem nas águas azuis da baía de Salamina, e mesmo Abas ficou tão entusiasmado com a história, que se sentou na maca para admirar aquela baía em forma de concha.

Ambos os avós de Theras haviam estado naqueles barcos e tomado parte na grande batalha.

- Além, naquele monte - disse Heródoto com tal entoação que a história mais parecia um cântico- sentou-se o rei persa, Xerxes, para ver os seus navios atacarem a esquadra grega e destruí-la.

Theras começou a pular e a bater palmas, pois sabia bem como fora grande a decepção sofrida pelo monarca.

-Finalmente, surgiram os barcos persas, tornando branca toda a baía como se de um bando de gaivotas se tratasse. Por toda a parte só se viam barcos. A terrível esquadra entrou na baía e iniciaram logo o ataque.

Os gregos ficaram aterrados e começaram a recuar. Foi então que a grande deusa Atena desceu sobre os navios, em forma de nevoeiro, e gritou-lhes "Oh gregos, porque recuais? De que tendes medo?" Então um dos capitães atenienses, Amenias, deu a ordem para que o seu barco avançasse e atacou uma unidade da esquadra persa.

- Viva Amenias! - Gritou Theras, que andara com o filho dele na escola, em Atenas.

- Sim, viva Amenias - prosseguiu Heródoto -, pois, graças à sua coragem, a batalha começou da melhor forma! Daí a momentos dois barcos achavam-se presos um ao outro.

Então as restantes unidades gregas foram em auxílio de Amenias. A batalha generalizou-se.

Lutava-se ao longo de todo o canal. Este era tão estreito, que os navios persas mal podiam deslocar-se e a bordo havia tantos soldados, que se atrapalhavam uns aos outros. A confusão era geral. Os nossos navios, porém, combatiam com ordem, mantendo-se em formação impecável. Mostrámo-nos bons marinheiros e guerreiros calmos. Não admira, pois, que tenhamos derrotado os persas.

Assim, caminhando pela margem da baía azul, calma, sossegada, na companhia de Heródoto, esse magistral narrador de histórias, os dois rapazes como que assistiram a toda a batalha de Salamina, até os persas fugirem em debandada e os despojos dos seus barcos se espalharem pela costa, como os deuses haviam pedido.

 

                 Regresso a casa

Estavam quase a chegar a Elêusis. Nessa altura já nada prendia a atenção de Theras - nem os gloriosos feitos de outrora, nem a grande batalha de Salamina ou qualquer outra coisa-, apenas se lembrava que estava a quatro milhas de Atenas. Quando tal lhe ocorria, o seu coração acelerava-se e, como isso lhe ocorria constantemente, o coração palpitava sempre com violência. Corria impaciente, na vanguarda do grupo, arrastando consigo todos os companheiros apenas com a sua alegria.

Quando chegaram a Aigaleos, Theras correu até ao cimo do monte. Dali via Atenas, qual cidade de sonho, lá ao longe, envolta em neblina violácea. Sim, lá estavam a muralha, as casinhas todas juntas e a Acrópole com os seus templos a servir de sentinela.

Theras, porém, via mais que aquela parte terrena de Atenas, pois, além da cidade, julgava distinguir o rosto de Atena, a deusa que sempre ali se conservava.

Era o mesmo rosto que ele vira havia muito tempo no Pártenon, quando o sol matinal incidira no vestido doirado da deusa e se reflectira na sua perfeita e rósea face. Desde esse dia aquela face tivera sempre um lugar privilegiado no coração do pequeno e nunca o perdera.

Agora ele via-a ainda com mais vida, maior, a sorrir como o céu parece sorrir antes do nascer do Sol. Feliz do jovem que podia ver daquela maneira a sua deusa!

Quando Heródoto chegou ao cimo do monte, viu Theras extasiado, de cabeça erguida, de boca aberta, como se estivesse embebido na felicidade de voltar à sua casa.

Mas assim que o resto do grupo se juntou a eles, todos a conversar alegremente e a rir, Theras correu ao encontro de Abas.

- Olha, olha - gritou. - Acolá fica a Acrópole com os seus templos. E em baixo, na cidade, perto do largo do mercado, é a minha casa, que tambem vai ser a tua, Abas. Que diria Baukis se se encontrasse connosco neste momento? Na verdade, chegamos!

Entraram em Atenas pela porta de Dipilon, à hora do pôr-do-sol, suave e dourado, era o sexto dia do Festival Panatenaico, o dia mais importante do ano em Atenas Nas ruas viam-se inúmeras pessoas vestidas de cores garridas, que riam, gritavam umas para as outras, dirigindo-se já, apressadas, para as suas casas. Jovens, com vestes sumptuosas, serpenteavam a cavalo no meio da multidão, com um sorriso de orgulho, pois tinham tomado parte, com as suas montadas, na Procissão Panatenaica. Todos os altares espalhados pela cidade, achavam-se cobertos de flores. Oh cidade feliz e querida dos deuses! Oh Atenas maravilhosa!

Heródoto olhava à sua volta, com ar pesaroso.

- Oh, que pena! Devíamos ter chegado cá hoje de manhã. Perdemos a grande procissão e a "oferta da túnica" - lamentou ele. Heródoto sabia muito bem que o seu atraso fora ocasionado pelos dois rapazes, perdidos e fatigados, que encontrara à beira do caminho mas não o disse.

- Agora, meu filho - anunciou -, tenho de ir para a Casa do Conselho.

- Não vai primeiro a sua casa? - perguntou Theras.

- Não, pois já não moro em Atenas - respondeu Heródoto, com ar triste, e acrescentou: - Abas será transportado até onde tu quiseres. Encontrar-me-ei contigo amanhã. Tens a certeza de que já não precisas de mim?

- Oh não, muito obrigado - afirmou Theras, com dificuldade, pois a ânsia de chegar a casa quase lhe embargava a voz.

E, contudo, tinha de ir bem devagarinho ao lado da liteira de Abas! Atravessaram o largo do mercado onde se cruzaram com homens açodados que carregavam carne proveniente dos generosos sacrifícios feitos na Acrópole.

Toda a gente, até os mais pobres, se banqueteariam nessa noite com os seus familiares, ou na companhia de amigos. À passagem pelo mercado, Theras reparou na tenda onde seu pai comprara as bonecas para as suas irmãs Aglaia e Ópis.

De súbito a recordação do pai, seu admirável e forte protector, tornou-se-lhe mais viva, mais viva e saudosa. Ele não voltaria a sentar-se, como outrora, à cabeceira da mesa nos alegres festins em honra de Atena. Para um rapaz ateniense tais repastos eram uma festa animada, aquela que, pela sua alegria, mais se assemelhava ao nosso Natal.

Agora, porém, o pai não estaria lá.

Theras inclinou a cabeça para esconder as lágrimas, pois certamente Abas admirar-se-ia delas.

Oh! Ali estava o bairro de Kerameikos, e a seguir a rua, a sua rua. Mas como ela lhe parecia diferente! Theras conhecia todos os cantos e esquinas, todos os telhados, e lá estava a sua casa!

Correu à frente, pois não podia conter-se por mais tempo, agarrou-se ao querido ferrolho e abriu a porta num ápice. Um porteiro des conhecido estava do lado de dentro!

- Então que é isso, seu malandrote! Que queres daqui? Atreves-te a abrir-me a porta? Porque não bateste?

 

               Estranhos por toda a parte

- Onde está a minha mãe? – perguntou Theras, ao mesmo tempo que tentava afastar o porteiro. - Onde está Aretusa, a minha mãe?

-Aqui não, maroto. Aretusa já não vive aqui há cerca de um ano, como tu bem sabes -respondeu o escravo.

- Não vive aqui? Onde está ela? Que queres dizer?

A tristeza de Theras era tão visível, que mesmo o escravo teve pena dele.

-Não sei onde ela vive, meu rapaz. Na verdade, não sei - respondeu.

- Então quem vive aqui?

- Díon, o meu senhor, claro.

Theras mal podia articular palavra, devido à cólera, ao espanto e à súbita dor que o afligiam.

-Como veio ele viver para minha casa?

-Comprou-a a Metion.

- A casa não é dele, é minha! Eu sou o filho de Feidon.

-De qualquer maneira, Metíon vendeu-a e levou Aretusa para a sua companhia.

Theras só vagamente se lembrava do sítio onde seu primo Metíon vivia. A família de Feidon nunca gostara dele, de modo que não costumavam visitar-se.

Sem dizer mais palavra, Theras correu para a casa pegada e bateu, com força, à porta. Os vizinhos dir-lhe-iam para onde sua mãe e suas irmãs tinham ido.

Os vizinhos, porém, estavam todos para o Festival Panatenaico, incluindo as mulheres.

O rapaz bateu às portas seguintes, mas os escravos, azafamados com os preparativos dos banquetes especiais daquele dia, não souberam dar a informação pedida.

Theras estava desnorteado. De repente aquela rua que lhe era tão familiar, pareceu-lhe um deserto mais desolador do que Arcádia ou as rochas de Skiron. Sua mãe achava-se sempre em casa e agora estava ali a casa, mas a mãe desaparecera.

O mundo estava todo de pernas para o ar!

Abas sentou-se na liteira.

-Não encontras ninguém? Eu ajudo-te a procurar, pois já posso andar um bocadinho.

Theras, voltando-se com dificuldade, respondeu-lhe:

-Não, Abas, só agravarias mais o teu ferimento e terias de andar muito devagar. Oh, eu tenho de correr, de correr até a encontrar!

Ele queria estar só para ter liberdade de movimentos.

Então um dos escravos que transportavam Abas disse:

-Senhor, se quiserdes, voltaremos com Abas para junto de Heródoto, e depois poderei ir procurar Aretusa.

Os escravos não deviam deixar Theras sòzinho, bem o sabiam, mas estavam cheios de fome e ansiosos por comer a ceia.

- Sim, sim - tornou-lhes Theras. - Levai-o a Heródoto. Eu logo que a encontre, irei ter convosco.

Mas, ìntimamente, o rapazito não alimentava esperanças de encontrar Aretusa. Aquilo era tudo tão estranho e terrível! Chegara a Atenas, um facto que tanto o devia alegrar, e apenas sentia tristeza!

Sòzinho, à luz do crepúsculo, voltou a descer a estreita rua. Aonde se devia dirigir?

O primeiro pensamento foi, evidentemente, ir à sua antiga escola, e assim apressou o passo nessa direcção. Os antigos companheiros já lá não estariam àquela hora, mas o professor morava na casa pegada.

Não demorou muito a chegar ao pequeno pátio descoberto, onde funcionava a escola.

Lá estavam os mesmos bancos, as mesmas liras dependuradas na parede e as mesmas placas para a escrita. Mas achava-se tudo deserto.

Bateu à porta da casa pegada, mas ninguém respondeu. Certamente o professor também fora ao festival.

Theras começou a caminhar sem destino. Nem sequer se lembrou de ir ter com Heródoto. Apenas pensava em Aretusa e que não sabia onde encontrá-la.

Por fim chegou ao sopé da Acrópole. Ali pairava na atmosfera intenso cheiro a mirra e a Incenso, proveniente dos inúmeros sacrifícios.

Uma densa multidão enxameava ainda pelas escadas de mármore abaixo, coroada de flores, fatigada de tantas diversões. Mas naquela confusão e nas trevas que se iam adensando, Theras não distinguiu nenhuma cara sua conhecida.

Como era horrível uma pessoa sentir-se sòzinha, no meio duma multidão onde todos riam e se acotovelavam!

Theras deu meia volta, procurando desviar-se de toda aquela gente. As ruas já não lhe pareciam familiares. Inesperadamente achou-se de novo no mercado, que já não funcionava e estava todo desarrumado e sujo. Alguns escravos públicos ocupavam-se da limpeza, e de pé, parado a uma esquina, achava-se um homem de costas voltadas. Theras dirigiu-se então para ele. Aquelas costas... Era capaz de jurar que já as vira. E aquela espessa cabeleira...

- Pode dizer-me... - começou.

O homem voltou-se.

Oh, alegrias do Olimpo! Era Lampon, Lampon, não havia dúvida!

Theras lançou-lhe os braços ao pescoço, como costumava fazer quando era mais pequeno.

- Lampon, oh Lampon! Onde está a minha mãe? Leva-me até junto dela.

Lampon deu um salto e principiou a murmurar frases cabalísticas, como "Plim, plim, plim, plasma, livra-me deste fantasma!" e outras semelhantes. Mas Theras puxou-lhe pela túnica para lhe provar que era ele em carne e osso que estava ali a seu lado.

Então o seu antigo pedagogo apertou-o nos braços e cobriu-o de beijos.

- Oh, meu pequeno amo, meu pequeno amo! Por onde é que tendes andado? Como vieste cá parar? Oh, que dia tão alegre!

Lampon, porém, nem esperava pelas respostas e Theras tão feliz se sentia.

 

             O verdadeiro lar

- Com certeza que sei onde está Aretusa.

Vive com Epikides desde que o malvado Ietíon nos pôs fora de casa. Vamos processá-lo, isso é que vamos.

Apesar de toda a sua alegria, Theras começou a pensar como é que podiam apresentar uma queixa contra Metíon, se o seu pai não existia para tratar disso.

Lampon agarrou na mão de Theras e arrastou-o a toda a pressa através do mercado e depois ao longo da rua envolta em trevas.

Pararam junto duma casa, cuja porta estava profusamente iluminada para o festim daquela noite. Theras viu chegar convidados que alguém saudava à entrada.

Sùbitamente o rapaz soltou um grito de espanto que dir-se-ia de terror. É que a pessoa que estava a receber os convidados era nem mais nem menos que o seu queridopai, Feidon, em carne e osso. Agora fora a vez de Theras julgar que tinha na sua frente um fantasma.

Feidon voltou-se ao ouvir aquele grito e sentiu um sobressalto ao ver quem estava à entrada.

- Theras, Theras! - exclamou.

Encaminhou-se para o filho, ajoelhou-se com os braços abertos, e neles correu a refugiar-se Theras com todo o entusiasmo. A casa pareceu resplandecer e iluminar-se com a alegria daquelas duas almas.

- Donde vens, meu filho? Como chegaste até aqui - quis saber Feidon.

-Mas o pai tinha morrido, o pai tinha morrido! - soluçava Theras, disparatadamente.

Oh, aquele era o riso sincero de seu pai, o riso de que Theras tão bem se recurdava!

- Não te parece que estou vivo?

Como única resposta, o rapaz aconchegou-se ao pai com mais força. Tendo-o assim nos braços, Feidon parecia achar muito natural estar vivo, estranho seria que estivesse morto e nunca mais gozasse aquele doce convívio familiar.

- Fui feito prisioneiro em Samos – explicou Feidon. - A mim e a muitos outros deram-nos como mortos e foi essa a notícia que se espalhou aqui em Atenas. Mas já regressámos todos sãos e salvos.

- E a mãe, onde está - perguntou Theras.

- Espera, meu filho. Já teve uma grande surpresa com a minha chegada e agora apareces tu. Deixa-me primeiro prepará-la para receber a notícia.

Feidon pôs-se a pé e inclinou-se para dar outro beijo a Theras antes de o deixar. Em seguida desapareceu no pátio interior, e o filho ficou obedientemente à sua espera.

Ouviu falar baixinho, a voz querida e agradável do pai a dar a notícia, e depois um súbitn e agudo grito de dor, saído da garganta de sua mãe.

- Onde! Onde é que está o meu filho?

Theras não conseguiu aguentar-se por mais tempo. Precipitou-se para o pátio e para os braços de sua mãe.

As gargalhadas, beijos e lágrimas, as frases entrecortadas com que então tentaram expli car os tristes acontecimentos ocorridos nos últimos meses, seriam capazes de comover os corações mais insensíveis.

Aglaia também apareceu e a pequena Ópis foi acordada para vir ver o irmão. Como ela tinha crescido desde a partida de Theras! Já não se lembrava muito bem dele e até parecia um pouco assustada com toda aquela alegria e comoção.

Com efeito, como já devem ter notado, os Atenienses não eram pessoas muito fleumáticas; antes pelo contrário, revelavam exuberantemente tanto a alegria como a tristeza que sentiam.

Maro veio também, um pouco envergonhado, associar-se à alegria da família, e a bondosa Aretusa puxou-o para si e referiu-se ao conforto que aquele filho adoptivo representara para ela, enquanto o verdadeiro estivera ausente. Por uns segundos Theras chegou a sentir ciúmes dele.

- Mas como é que regressaste, meu filho? - perguntou Feidon. - Eu estava a preparar tudo para ir buscar-te a Esparta.

- Eu não sabia disso, pai, e fugi... eu e outro rapaz. Viemos através da Arcádia.

- Por tão longo caminho e sempre sòzinhos!

Havia uma certa admiração e muito orgulho na voz de Feidon.

- Grande Atena! Podíeis ter sido mortos cem vezes!

- Pouco faltou - disse Theras.

Então contou alegremente todos os perigos da jornada, a perseguição dos espartanos, a amizade dos periecos, o ataque do gato bravo, como haviam escapado ao malvado estalajadeiro e a entorse do tornozelo de Abas!

- Mas Abas também está em Atenas?

De súbito, o rosto de Feidon ensombrou-se, aborrecido.

- Meu filho, espero que não tenhas deixado o pobre rapaz sòzinho no caminho!

-Não, pai, trouxe-o às costas.

- Grande Zeus! Todo o caminho?

- Não; por fim caí de cansaço e nem Forças tinha para me levantar!

Aretusa pôs um braço à volta do filho e puxou-o para si. Feidon não o elogiou, mas o orgulho que sentia estava bem patente na sua face.

Como era bom estar em casa, junto dos seus!

- Mas que é feito de Abas - perguntou Feidon.

- Está com Heródoto. Heródoto foi quem nos salvou, pai. E que quantidade de coisas ele sabe! Sabe tudo, tudo!

Feidon riu-se alegremente.

- Heródoto! Quem havia de dizer! Que sorte a vossa! Com que então encontrastes-vos com Heródoto? Contou-vos histórias, hem?

-Oh, pai, as histórias mais maravilhosas e... e...

Feidon riu-se novamente.

- Histórias... não podia deixar de as contar. Heródoto é capaz de passar um dia e uma noite a contar ou ouvir histórias. Ele anda a escrever um livro acerca das nossas lutas com os Persas. Trata-se de uma obra grandiosa.

Assim, muito depois da nossa morte, os homens, lendo esse livro, ficarão a conhecer os feitos heróicos que, então, nós, os Gregos, praticámos.

 

               A marca do mocho

Apesar de já ser nuito tarde, Feidon e Theras não deixaram de ir nessa noite à Casa do Conselho ver Heródoto e certificar-se de que Abas se encontrava a salvo.

Ali, enquanto os dois rapazes convcrsavam como se já não se vissem há muitos anos, Heródoto, em voz baixa, contou a Feidon como encontrara Theras e como este carregara com o seu amigo Abas até cair por terra sem forças.

- Gostava que o tivesses visto quando ele veio ter comigo naquele dia - disse Heródotv.

- Parecia um cadáver e assim mesmo pensava mais no seu amigo que em si próprio. Quem me dera ter um filho assim!

Feidon agradeceu então aos deuses a sua sorte.

No dia seguinte Theras notou na testa do pai qualquer coisa de que este receava falar. Tratava-se de uma cicatriz enorme.

- Que é isso, pai? - inquiriu. - Assemelha-se a uma profunda queimadura já cicatrizada.

- Que aspecto tem ela?

- Oh pai, é uma coisa esquisita, mas, francamente, parece-se... realmente parece-se com um mocho.

- Já reparaste em Epikides? - perguntou Feidon, olhando na direcção do seu amigo que estava ali perto.

Com grande espanto, o jovem verificou que Epikides tinha uma cicatriz igual também na testa.

- Theras - pronunciou Feidon com ar triste -, teu pai foi sempre um homem bonito, mas agora deixou de o ser.

Theras nem sabia o que dizer, pois ter a cara defeituosa era para um ateniense um grande desgosto

- Mas como é que lhe fizeram essa cicatriz, pai?

- Estávamos a atacar as muralhas de Samos

quando, inesperadamente, os defensores saíram por uma porta secreta, e dirigiram-se para o nosso barco. Este escapou, levantando ferro, mas deixou-nos ali indefesos, e fomos feitos prisioneiros. Levaram-nos para dentro das muralhas e garantiram que se os atenienses matassem algum dos seus homens, far-nos-iam outro tanto. Os do nosso barco, porém, julgavam-nos mortos e foi essa a notícia que deram quando regressaram a Atenas. Por fim foi declarada a paz! Os sâmios levaram-nos para uma prisão e trouxeram ferros em brasa com a marca do mocho e marcaram-nos a todos na testa!

Theras contorceu-se, como se estivesse a sentir as dores de tal suplício.

- Sim - prosseguiu Feidon -, receei ficar cego nessa ocasião mas, graças aos deuses, os meus olhos salvaram-se.

- Mas porque escolheram um mocho? - perguntou Theras.

- É que, meu filho, como sabes, o mocho é o símbolo de Atenas. Marcaram-nos como atenienses.

Theras pensou por momentos no que seu pai acabara de dizer, e, com o rosto sorridente, disse:

-Apesar de tudo, é bom ter essa marca. Se tivesse andado perdido no ermo como me sucedeu a mim, quem os encontrasse... qualquer simples viajante... saberia imediatamente que estava na presença de um ateniense!

- Por Hermes! Muito bem dito, sim senhor - exclamou Epikides. - Os Atenienses honram-nos por isto. Ao fim e ao cabo são estas as nossas cicatrizes de guerra.

 

                   Adeus

Chegamos ao fim da história de Theras.

Só nos resta dizer que Feidon agradeceu aos deuses, fazendo-lhes as ofertas que o filho prometera durante a viagem de regresso a Atenas.

Ofereceu presentes à deusa Atena na Acrópole e a Pã na pequena gruta consagrada ao deus com pernas de cabra, situada na vertente rochosa da Acrópole. Presenteou ainda o alegre riacho, o Quifisso, que Theras atravessara mal saíra de Atenas.

Assim, fiel e piedoso atenicnse como era cumpriu todas as promessas de seu filho.

Devo ainda dizer-lhes que Feidon processou seu primo Metíon que teve de devolver-lhe a sua casa e as suas terras. Que alegre manhã aquela em que a família e os escravos regressaram ao antigo lar! É que havia já centenas de anos que lá viviam os antepassados de Feidon.

Theras veio a tornar-se um ateniense valente e lutou na guerra do Peloponeso, uma guerra triste onde não houve vencidos nem vencedores, como tantas vezes acontece.

Abas não se tornou um ateniense. Heródot, que gostava muito do rapazinho depois de ouvir a sua história da boca de Theras, resolveu adoptá-lo e levou-o para a sua casa em Turi, na Itália. Aqui o jovem transformou-se não só num verdadeiro cidadão, mas também num homem livre. Foi marinheiro e sulcou durante toda a sua vida o mar Egeu e o Adriático.

Nos anos que se seguiram, embora os espartanos nunca o soubessem, um colono vindo do ocidente desembarcou várias vezes ao sul da Lacónia e dirigiu-se a Amiclas. Ali, esse colono visitava um casal de velhos a quem ofereceu tudo quanto eles podiam desejar. Mas as dádivas que eles mais apreciavam eram a dedicação e o amor de um filho - o seu querido Abas, que constituía o seu orgulho e alegria.

E quando Abas desembarcava em Atenas aguardavam-no sempre as boas-vindas de um amigo sincero e tinha uma porta aberta para o receber, pois a amizade que nascera no meio de tantos perigos, havia de prolongar-se enquanto ele e Theras pertenceram ao número dos vivos!

 

                                                                                Caroline Dale Snedeker 

 

                      

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