Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites
TIETA DO AGRESTE
Silêncio e solidão, o rio penetra mar adentro no oceano sem limites sob o leito despejado, o fim e o começo. Dunas imensas, límpidas montanhas de areia, a menina correndo igual a uma cabrita para o alto, no rosto a claridade do sol E O zunido do vento, os pés leves e descalços pondo distância entre ela e o homem forte, na pujança dos quarenta anos, a persegui-la.
Arfando, o homem sobe, o chapéu na mão para que não voe e se perca. Os sapatos enterram-se na areia; o reflexo do sol cega-lhe os olhos; agudo fio de navalha, o vento corta-lhe a pele; o suor escorre pelo corpo inteiro; o desejo e a raiva - quando te pegar, peste tá arrombo e mato.
A menina volta-se e olha, mede a distância a separá-la do mascate, o medo e o desejo: se ele me pegar vai meter em mim, estremece apavorada; mas, se eu não esperar, ele desiste, ah; isso não, não pode permitir mesmo que queira pois o tempo é chegado.
O homem também parou e fala, grita palavras que não alcançam a menina, perdidas na areia, levadas pelo vento. Ela não ouve mas adivinha e responde: - assim cantam as cabras que ela pastoreia.
O desafio bate na face, penetra nos ouvidos do mascate, ergue-lhe as forças, ele avança. Atenta, a menina espera.
Lá atrás o rio, na frente o oceano, os olhos adolescentes percorrem e dominam a paisagem desmedida. Naquele momento de espera, de ânsia e de angústia, a menina fixou na memória a deslumbrante imensidão da cama de noiva que lhe coube. Do outro lado da barra, a beleza da praia larga e rasa do Saco, em mar de águas mansas, no Estado de Sergipe, a ampla aldeia de pescadores, com armazém, capela e escola, um vilarejo. O oposto dos cômoros monumentais onde ela se encontra, a invadirem as águas, o espaço do mar, contidos pelos vagalhões na fúria da guerra. Aqui o vento deposita diária colheita de areia, a mais alva, a mais. fina, escolhida a propósito para formar a praia singular de Mangue Seco, sem comparação com nenhuma outra, aqui onde a Bahia nasce na convulsa conjunção do rio Real com o octano.
Dúzia, dúzia e meia de casebres provisórios, mudando-se ao sabor do vento e da areia a invadi-los e soterrá-los, morada dos poucos pescadores a habitar desse lado da barra. Durante o dia, as mulheres pescam no mangue de caranguejos, os homens lançam as redes ao mar. Por vezes partem em pesca milagrosa, audazes a cruzar os vagalhões altos como as dunas nos únicos barcos capazes de enfrentá-los e prosseguir mar afora, ao encontro marcado com navios e escunas, em noites de breu, para o desembarque do contrabando.
O falso mascate vem na lancha a motor recolher as caixas de bebidas, de perfumes, os fardos de seda italiana, de casimira e linho ingleses, outras especiarias, e fazer o módico pagamento - dinheiro para a farinha, o café, o açúcar, a cachaça, o fumo de rolo. De quando em quando, traz uma vadia na lancha e enquanto caixas e fardos são transportados dos casebres, vai despachá-la nas dunas, sobre as palhas dos coqueiros para aproveitar o tempo. Um garanhão, o mascate; os pescadores o apreciam. Em mais de uma ocasião ele não os acompanhou nos barcos, indiferente às vagas, até o alto- mar de navios e tubarões.
A menina deixa que o homem chegue bem perto - só então dispara areia acima e do alto novamente canta o exigente e assustado chamado das cabras. De amor, não conhece outra expressão, outra palavra, outro som. linda naquele dia O ouvira da cabrita no primeiro cio quando O bode Inácio, pai do rebanho, se encaminhou para ela, balançando o cavanhaque e as trouxas. Depois o mascate apareceu e a menina aceitou o convite para o passeio de lancha, vinte minutos de rio, cinco de mar agitado e o esplendor de Mangue Seco. Como resistir, dizer obrigada, mas não vou. Mentira: não a seduzira a corrida no rio, a travessia do pedaço de mar, nem sequer as dunas bem-amadas desde a infância. A menina não tenta inocentar-se. Recusara convites anteriores, o mascate a tinha de olho há tempos. Desta vez agora ela disse vamos, sabendo a que ia.
Quando, porém, sente a mão pesada segurar-lhe o braço o medo a invade inteira, da cabeça aos pés. Contém-se, no entanto não busca fugir.
O homem a derruba sobre as folhas dos coqueiros, suspende-lhe a saia, arranca-lhe a calçola, trapo sujo. De joelhos sobre ela, enterra o chapéu na areia para que não voe e se perca, abre a braguilha. A menina o deixa fazer e quer que ele o faça. Para ela soara o tempo, como para as cabritas a hora temida e desejada, a boca implacável do bode Inácio, o saco quase a arrastar por terra de tão grande.
Sua hora chegara, já não lhe corria sangue entre as coxas todos os meses Nas dunas de Mangue Seco, Tieta, pastora de cabras, conheceu o gosto do bomom, mistura de mar e suor, de areia e vento. Quando o mascate a arrombou, igual à cabrita horas atrás, ela berrou. De dor e de contentamento.
Primeiro episódio morte e ressurreição de Tieta ou a filha pródiga contendo introdução e palpites do autor, inesquecíveis diálogos, finos detalhes psicológicos, pinceladas de paisagens, segredos, adivinhas, além da apresentação de algumas figuras que desempenharão destacado papel nos acontecimentos passados e futuros narrados neste apaixonante folhetim em cada página a dúvida, o mistério, a vil traição, o sublime devotamento, o ódio e o amor. Jorge Amado faz uma introdução onde o autor, um finório, tenta eximir-se de toda e qualquer responsabilidade e termina por lançar imprudente desafio a argúcia do leitor com sibilina pergunta começo por avisar: não assumo qualquer responsabilidade pela exatidão dos fatos, não ponho a mão no fogo, só um louco o faria. não apenas por serem decorridos mais de dez anos mas sobretudo porque verdade cada um possui a sua, razão também, e no caso em apreço não enxergo perspectiva de meio-termo, de acordo entre as partes.
Enredo incoerente, confuso episódio, pleno de contradições e absurdos, conseguiu atravessar a distancia a mediar entre a esquecida cidadezinha fronteiriça e a capital - os duzentos e setenta quilômetros de buracos no asfalto de segunda e os quarenta e oito de lama de primeira ou de poeira de primeiríssima, pó vermelho que seincrusta na pele e resiste aos sabonetes finos - indo ressoar na imprensa metropolitana.
Noticiário de começo entre galhofeiro e sensacionalista, logo após patriótico e discreto pois muito bem pago, dissolvendo-serápido em anúncios, alguns de página inteira.
Certo semanário de tradições duvidosas - adjetivo mal-empregado:
por que duvidosas? - meteu-se a valente em editorial de primeira página, com vermelha manchete agressiva, ameaçou enviar repórter e fotógrafo àqueles confins para esclarecer a gravíssima denúncia, o monstruoso conluio, o perigo estarrecedor, etc. e tal. Arrogância e indignação duraram apenas um número, a valentia o probo diretor a enfiou no rabo e esqueceu o escaldante tema. Ainda jovem mas já veterano nas lides da imprensa, arrotando em surdina ideologia radical e princípios explosivos, visando porém fins benéficos, Leonel Vieira afogou protesto e ameaças em uísque escocês, na grata companhia do doutor Mirko Stefano e de algumas apetitosas moças, todas elas relações públicas de muita animação e pouca vestimenta. Pouca, em termos: duas entre as mais bem modeladas exibiam longas túnicas transparentes e por baixo nada ou quase nada, túnicas essas, na opinião de entendidos, mais excitantes que os curtos shortes ou os sumários biquínis. Amável tema de debate entre o doutor e o jornalista, única divergência a separá-los, no bar, à borda da piscina. No mais, acordo total. Quanto a mim, se me permitem opinar, prefiro os longos transparentes lambidos por uma réstia de luz, revelando volumes e sombras, ai! Mas que importa minha opinião?
A minha, a vossa, outra qualquer ante os potentes argumentos do doutor Stefano, argumentos em divisas, afirmam, se bem não haja absoluta certeza sobre a moeda original, dólares ou marcos ocidentais, as duas talvez. Tão irresistível dialética do simpático testa- de- ferro, levou o trafego cronista social Dorian Gray Júnior a proclamá-lo Mirlais, o Magnífico Doutor, em desbunde de adulação. Simples testa-de-ferro de ignotos patrões, conforme insinuou o semanário naquele exclusivo e atrevido editorial - atrevido, exclusivo e muito bem capitalizado; sendo, além do mais, uma garantia à esquerda pois que outro órgão da imprensa falada ou escrita ousou interpelar e ameaçar? Posição clara e definida, prova a ser exibida, se necessário; ninguém sabe o que pode acontecer no dia de amanhã, recente, aí está, o exemplo de Portugal, quem poderia prever? ao demais, não hão de ser um simples cheque, por mais polpudo, garrafas de escocês e o ventre em Flor das permissivas relações- públicas que abalarão as convicções ideológicas, os sólidos princípios do intemerato e dúctil jornalista: Leonel Vieira possui fibra e caráter capazes de digerir cheques, licores e beldades, conservando imutáveis princípios e ideologia. Embolsa o cheque, escorna no uísque, baba cangotes e xibius, maneira o jornal e ao mesmo tempo proclama - baixinho - os princípios, radicalíssimo. Um porreta.
Quanto aos grandes patrões, esses não se mostram em bares, não brindam com jornalistas de cavação e preferem as formosas nuinhas de todo, no conforto e no recato, longe de qualquer exibição pública. Ai, quem me dera a honra, a glória suprema de que pelo menos um deles venha a aparecer nas mal-alinhadas páginas deste relato; seria o máximo para o modesto escriba contar com tamanha personagem. Realista, os pés na terra, não espero aconteça esse milagre; onde forças capazes de arrastar um lorde estrangeiro àquele cu-de-mundo, através de lama e poeira? Caso tudo dê certo, aprovado o projeto, instalado o complexo industrial, quando o progresso chegar com asfalto sólido, estradas de mão única, motéis, piscinas, moças de túnicas transparentes, polícia de segurança, aí sim, talvez tenhamos o privilégio de enxergar, com nossos olhos que a terra há de comer, um desses grandes do mundo, envolto em ouro.
De qualquer maneira, vou em frente, mesmo sabendo que alguns detalhes dificilmente merecerão crédito de parte das pessoas sensatas, pespegá-los exige martelo russo e prego caibral, para usar expressão da velha Milú repetida cada vez que o bardo Barbozinha termina de narrar sobre o além e o passado ou, indômito, penetra futuro adentro, voz eloqüente e empostada - empostada por uma embolia que o acometera anos atrás e por pouco O desencarna. não deu para tanto, suficiente porém para aposentá-lo do quadro de funcionários da Prefeitura da Capital, onde exerceu, com relativa capacidade e certo desleixo, funções de escriturário, e trazê-lo de volta às ruas poucas e pacatas de Sant'Ana do Agreste, cujos limites culturais, com tal retorno, logo de muito se ampliaram pois Barbozinha - Gregório Eustáquio de Matos Barbosa - é autor de três livros, publicados na Bahia, dois de poesia e um de máximas filosóficas.
De tudo isso se dará notícia no decorrer da ação. Aqui venho apenas livrar a cara, declinar de qualquer responsabilidade. Relato os fatos conforme me foram narrados, por uns e por outros. Se de quando em quando meto minha colher e situo opiniões e dúvidas, é que também não sou de ferro nem me pretendo indiferente às agitações sociais, vendavais do século a convulsionas o mundo (De Matos Barbosa, in Máximas e Mínimas da Filosofia - Demeval Chaves Editor- Bahia, 1950). Sou apenas prudente, o que nos tempos de agora não é virtude nem mérito e sim necessidade vital.
De uma coisa desejaria realmente ter certeza no momento em que colocar o ponto final nas páginas deste folhetim, e para isso conto com a ajuda dos senhores, lanço-lhe s um desafio: respondam-me quais os heróis da história, quem lutou pelo bem da terra e do povo. Em nome da terra e do povo todos falam, cada qual mais ardente e gratuito defensor. A gente vai ver descobre dinheiro pelo meio, no bolso dos sabidos, povo e terra que se danem.
Nesta embrulhada, cujos nós começo a desatar, quem merece nome em placa de rua, avenida ou praça, artigos laudatórios, homenagens, comendas, cidadania, ser proclamado herói? - digam-me os senhores. Aqueles que propugnam pelo progresso a todo custo - pague-se o preço sem reclamar, seja qual for - o exemplo de Ascânio Trindade? Se pagasse com a vida, teria pago menos caro. Se não forem eles, que outros? não há de ser a Barbozinha ou a dona Carmosina, a Dário, comandante sem tropa a comandar, que se confira tais honrarias, muito menos a Tieta, melhor dito, à madame. As palavras também valem dinheiro, herói é vocábulo nobre, de muita consideração.
Agradecerei a quem me elucidar quando juntos chegarmos ao fim, à moral da história. Se moral houver, do que duvido.
Cerimonioso capítulo onde se trava conhecimento com as três irmãs, a pobre, a remediada e a rica; estando a última ausente - quem sabe para todo o sempre; onde se conhece da carta mensal e do cheque idem, ansiosamente aguardados, sobretudo o cheque, como é natural, e também de pequenas misérias e mínima esperança, na hora do mormaço; onde em resumo se coloca inquietante pergunta: Tieta está viva ou morta singra os mares em cruzeiro de turismo ou...
Empertigada na cadeira, as mãos cruzadas sobre o peito magro, toda em negro dos sapatos ao xale, coberta assim de luto fechado desde a morte do marido, Perpétua baixa a voz, lança a fúnebre hipótese:
- E se sucedeu alguma coisa com ela? - adianta a cabeça para onde está a irmã, sussurra: - E se ela bateu a caçoleta? - mesmo sussurrada, a voz, sibilante e ríspida, é desagradável: - E se ela morreu?
Elisa estremece, solta o pano de prato, derrotada pelo mau presságio. Há dois dias e duas noites longas tenta arrancar da cabeça esse maldito pressentimento a persegui-la, a roubar-lhe o sono, a deixá-la com os nervos em ponta.
- Ai, Senhor meu Deus!
Perpétua descruza as mãos, alisa a saia de gorgorão bem passada, ratifica com um movimento de cabeça; não fez uma pergunta e sim uma afirmação.
De comprovação fácil, aliás:
- Estamos a vinte e oito, praticamente no fim do mês. A carta sempre chega por volta de cinco, nunca passa de dez. Para mim, ela bateu a caçoleta.
Mesmo no desalinho da manha de ocupações domésticas, o rosto de Elisa é bonito: morena de tez pálida, olhos melancólicos, lábios carnudos. Sob o desleixo do vestido velho e amarfanhado, chinelas gastas, ergue-se o corpo esbelto, de ancas altas e seios rijos. Um lampejo de curiosidade brota nos olhos assustados. Elisa busca na face da irmã outro sentimento além da preocupação pelo dinheiro. não encontra: a proclamada morte de Tieta não aflige Perpétua, teme somente pela sorte do cheque. A cessação da remessa mensal assusta igualmente Elisa: não só perderiam a ajuda indispensável como teriam de sustentar o pai e a mãe, onde arranjar o necessário? Um horror, Deus não permita!
Um horror, sem dúvida, porém havia mais e pior. ao calafrio de medo sucede a tristeza, um aperto no coração. Se ela morreu, então tudo se acabou para sempre, não somente o cheque, também a tênue esperança; sobrará apenas o vazio. Essa irmã Antonieta -meia- irmã, aliás, pois Elisa nascera do segundo e inesperado casamento do velho Zé Esteves - de quem não conserva lembrança, a respeito de quem sabe tão pouco, é a razão de ser de Elisa.
Nos últimos anos, sobretudo após o casamento, começara a idealizar a figura da ausente, espécie de gênio bom, heroína de conto da carochinha, imagem fugidia, quaseirreal, a se fazer concreta no auxílio mensal, nos esporádicos presentes. Reunindo frases ouvidas, narrativas de antigos enredos, comentários do pai e da mãe; a letra larga e redonda nas pequenas cartas - parcas em palavras e notícias, reduzidas às mesmas perguntas pela saúde dos velhos, das irmãs, dos sobrinhos, mas não secas e frias, contendo, além do cheque, abraços e beijos -o perfume ainda a evolar-se do envelope após tantos dias de correio; os embrulhos de roupa usada, pouco usada, quase nova; o título de comendador ostentado pelo marido; a fotografia na revista, Elisa construíra pouco a pouco imaginário retrato da irmã, fada alegre, bela e bondosa, habitando um mundo rico e feliz. Nessa visão pensa e nela se apoia quando sonha com outra vida, mais além da pasmaceira e do cansaço. Morta Antonieta, que restará a Elisa? As revistas de fotonovelas, nada mais. Nem isso, meu Deus! Onde os níqueis, sobrados das despesas, com que comprá-la s?
Tristeza por tudo quanto perderá, o dinheiro mensal, os presentes, o devaneio, o sonho, mas também tristeza simplesmente pela morte da irmã;
gostará de alguém tanto quanto gosta dessa meia- irmã que não conhece?
Reage, na necessidade de conservar pelo menos a esperança: Perpétua imagina sempre o pior, boca de agouro.
- Se ela tivesse morrido, a gente já tinha sabido, alguém havia de dar a notícia. Em casa dela tem nosso endereço, todo mês ela escreve, não é?
Haviam de avisar... - há dois dias, na labuta da casa, na cama de insônia, repete esses argumentos para si mesma.
- Avisar? Quem? Só se o marido dela e a família dele forem malucos.
- Malucos? não vejo por quê.
Perpétua estuda a irmã em silêncio, a se perguntar se deve ou não contar, decide-se por fim, de qualquer maneira ela terá de saber:
- Porque, com a morte dela, agente tem direito a uma parte da herança.
Nós três: o Velho, eu e você. Elisa volta a enxugar os pratos, de onde Perpétua tirara aquela idéia de herança? Cada bobagem!
- Quem vai herdar é o marido dela, o Comendador. Por que a gente havia de herdar? Pro pai, pode ser que ela deixe alguma coisa, tem sido boa filha, boa até demais. Mas, pra nós duas, por quê? Quando ela saiu de casa, eu tinha menos de um ano. E tu, não foi por tua culpa que ela foi embora?
- Ela foi embora porque quis. não me cabe culpa.
- Não foi tu que xeretou ao Pai? Abriu o bico, ele quebrou a pobre no pau, tocou ela rua afora, não foi? mãe me contou como se deu e Pai confirmou, disse que tu foi a culpada.
- Dizem isso agora, para adular. Depois que ela começou a mandar dinheiro, virou santa. Por que tua mãe não tomou as dores na ocasião? Quem foi que deu a surra, quem botou ela pra fora de casa? Eu ou o Velho?
Elisa estende sobre a mesa a toalha manchada de azeite, de feijão, de café - Astério tem mão podre, não sabe se servir sem derramar caldos e molhos, o infeliz. Encolhe os ombros, não responde à pergunta de Perpétua, o pai e a irmã que decidam entre eles de quem a culpa; dela, Elisa, é que não foi, não completara um ano de idade quando denúncia, expulsão e fuga aconteceram.
Perpétua semicerra os olhos gázeos, por que Elisa se empenha em recordar o passado? A própria Antonieta não esquecera, há muito, agravos e injustiças? não envia dinheiro, presentes? não ajuda nas despesas? Ademais, há males que vêm para bem, não é mesmo? Se ela não tivesse sido posta no olho da rua, em vez de partir para o Sul e triunfar em São Paulo, bem casada, cheia de dinheiro, feliz da vida, teria ficado ali, naquele buraco, vegetando na pobreza, sem direito a noivado e casamento pois a história com o caixeiro viajante logo se tornara de domínio público. Sem direito a nada, mera criada do pai e da madrasta.
- Se ela não lembra essas coisas por que tu há de lembrar?
- Não fiz por mal, só para mostrar que ela não tem motivo pra querer deixar herança pra nós duas.
- Não depende dela querer ou não querer... - Perpétua descerra os olhos, compõe a saia, retira invisível cisco da blusa: - Quando ela morrer, metade da fortuna fica para o marido e, como ela não tem filhos, a outra metade é dividida entre os parentes, os parentes próximos, o Velho e nós, o pai e as irmãs.
- Como é que tu sabe?
- Doutor Almiro me disse...
- O promotor? E tu foi falar isso com ele?
- Propriamente falar, não falei. Ele estava conversando com padre Mariano, eu e outras zeladoras de junto, ouvindo. Estavam falando da herança de seu Lito, que deixou o dinheiro todo para o padre dizer missa pela salvação da alma dele na Igreja da Senhora Sant'Ana. Pois já vai para mais de seis meses que ele morreu e até agora o padre não viu a cor do dinheiro. Está depositado na mão do juiz, em Esplanada, porque os parentes botaram questão, com advogado e tudo. Doutor Almiro disse que, pela lei, metade é deles. Daí eu fui perguntando, como quem não quer nada...
- Tu quer dizer que quando uma pessoa morre, metade do que ela tem fica pros parentes?
- É isso mesmo... - Perpétua busca no bolso da saia um lenço para enxugar o suor fino na testa, com o lenço aparece um terço de contas negras.
- Quer dizer que, se tu morrer, metade do que é teu fica pra mim e pro pai...
- Tu não presta atenção no que se fala. Só quando o falecido não tem filhos; é o caso dela, mas não o meu. O que eu deixar quando morrer vai ser repartido entre Ricardo e Peto, meus filhos, meus únicos herdeiros. Já foi assim quando o Major morreu - faz o sinal-da-cruz, eleva os olhos murmurando Deus o tenha em sua glória -, a herança foi dividida, metade para mim, metade para os meninos. O doutor Almiro...
- Tu perguntou isso também?
- Sempre vale a pena saber.
- Tu pensa que ela morreu e que o marido não diz nada para ficar com tudo?
- E não pode ser? Por que ela nunca deu o endereço para nós? Mandou a gente escrever para a caixa-postal, onde já se viu? Proibição do marido, para a gente não saber. Você sabe o sobrenome dele? Nem eu. É Comendador pra cá, Comendador pra lá, e acabou-se, nada de sobrenome. Por quê? Tu não atina nessas coisas mas eu tenho pensado muito nisso e tirei minhas conclusões.
Também Elisa havia atentado naquelas esquisitices. Em sua opinião, porém, outro era o significado da falta de endereço, de sobrenome, da ausência de maiores detalhes sobre vida e família: Antonieta perdoara os agravos, não guardara mágoa, mas não esquecera o passado, não queria maior aproximação com os parentes, gente mesquinha do interior, não desejava misturá-los a seu mundo maravilhoso. Ajudava pai e irmãs como cumpre às filhas quando em boa situação. Obrigação cumprida, a consciência em paz, ponto final: reserva e distância. Se querem saber, faz ela muito bem! Era isso e nada mais, não passando o resto de invenção de Perpétua, a cachola sempre a pensar malfeitos e desgraças. Se Antonieta decidisse deixar alguma coisa para o pai e as irmãs, após a morte, tomaria as medidas necessárias com antecedência, estaria tudo disposto e estabelecido.
- Não acredito, não. Se ela tivesse morrido, a gente havia de saber.
Termina de botar a mesa, fica parada, o olhar perdido:
- Está é viajando, gozando a vida. Toda vez que sai a passeio, a carta atrasa. Atrasa mas chega. Lembra quando foi a Buenos Aires e mandou aquele cartão tão bonito? Vida é a dela: viagens, passeios, festas. Tieta é muito boa de pensar na gente no meio de tanta animação. Se fosse comigo que tivesse acontecido, nunca mais, nunca mais mesmo, eu havia de dar notícias.
Volta a vista para Perpétua, agora a passar as contas do terço:
- Vou dizer uma coisa, acredite se quiser. Mesmo se fosse para herdar o dinheiro todinho, sem ter que dividir com ninguém, nem assim eu desejo a morte dela.
- E quem deseja? - Perpétua suspende a reza, a conta negra entre os dedos: - Mas, se não chegar mais cartas, então é sinal que Antonieta morreu.
Aí eu vou mover mundos e fundos até descobrir o marido dela e tomar minha parte.
- Tu acaba lesa de pensar tanta maluquice. Ela está é passeando, se divertindo. Por que agourar criatura tão direita? A carta não passa de amanhã.
- Tomara mesmo. Fui em casa do Velho, ele está nos azeites. Sabe o que me perguntou? Se Astério não tinha metido a mão no dinheiro e pago alguma dívida, como fez daquela vez que usou o cheque para resgatar a letra vencida. O Velho pensa que a gente vive roubando ele. - Volta a dedilhar o terço, os lábios sem pintura movem-se em silêncio.
Com Perpétua é assim, taco a taco: Elisa fizera referência à intriga que resultara na partida de Antonieta, Perpétua, na volta da conversa, deu o troco, desentocou o malsinado assunto da duplicata, velho de cinco anos. A voz cansada, Elisa revida sem veemência:
- Tu sabe que, se ele não pagasse a letra, a loja ia à falência. Tu sabe, o Pai sabe...
Não cresce o tom de voz, monótono:
- Mas que a gente vive roubando, ah!, isso vive, não adianta tu ficar aí sentada de terço na mão, mastigando padre- nosso com esse ar de santa.
- Nunca toquei num tostão do Velho. ..
- Nem ele ia deixar. É dela que a gente rouba. Para que ela manda o cheque todo mês?
- Para as despesas do Velho.
- E para que mais?
- Para ajudar na educação dos sobrinhos.
- Isso mesmo. Para ajudar na educação dos filhos da gente. O meu não chegou a completar dois anos e eu nunca mais peguei menino. Nunca mais, Deus não quis...
Os olhos vão da sala de jantar para o quarto de dormir, pela porta aberta vê a cama de casal ainda por arrumar. Deus não quis? Nem pra isso Astério serve... A voz neutra, prossegue:
- E tu? Será que tu mandou dizer a Tieta que Peto está no Grupo Escolar, não paga nem um vintém? Que padre Mariano arranjou com o Bispo o seminário de graça para Cardo? Eu sei o que tu mandou dizer: o preço da Escola de Dona Carlota, a mensalidade do seminário. Isso, sim, tu mandou dizer, pro resto boca trancada. Por que tu puxa de novo essa história de letra que Astério resgatou, se cada um de nós tem seus podres?
- Foi o Velho que falou, só repeti o que ele disse.
- Um dia eu ainda tomo coragem, escrevo a ela contando a verdade: que não tenho mais filho nenhum, o que tinha a doença levou mas que a gente precisa tanto do dinheiro que ela manda, mas tanto a ponto de me ter faltado forças para comunicar a morte de Toninho. Era capaz dela ficar com pena e mandar até mais do que manda. Só que não tenho coragem de arriscar... Por que a gente é assim, Perpétua? Por que a gente não presta? É por isso que ela não quer aproximação, não manda endereço, ajuda de longe.
A voz se faz pesada, áspera, quase desagradável como a de Perpétua:
- E ela age muito bem porque, se eu tivesse o endereço...
Os olhos fitam o vazio:
- Ah!, se eu soubesse o endereço já tinha arribado pra lá!
Perpétua chega ao fim do terço, beija a pequena cruz:
- Tem horas que tu nem parece mulher feita e casada, fala o que não deve. O que tu precisa é ir ajudar na igreja em vez de ficar em casa lendo revista e ouvindo rádio, gastando o tempo com essas porcarias.
Elisa deixa cair os braços, a voz novamente neutra:
- Amanhã, logo que a marinete chegue, passo no correio. Vem amanhã, tu vai ver.
- Deus te ouça. Com a desculpa da doença, Lula Pedreiro há três meses não paga aluguel. Agora mandou a chave, foi morar com o filho, deixou a casa imunda, um chiqueiro. Para alugar, vou ter que dar pelo menos uma demão de cal.
- Tu te queixa sem razão. Mora em casa própria e ainda tem mais duas para alugar, fora a pensão do falecido. A gente, se não fosse pelo dinheiro que ela manda pro anjinho, nem numa sessão de cinema podia ir.
- Amanhã, me avise logo se chegou ou não. Se não chegar, vou tomar minhas providências.
- Por que não fica para almoçar? O que dá pra dois, dá pra três.
- Eu? Comer carne em dia de sexta- feira? Tu bem sabe que é pecado.
É por isso que vocês não vão para a frente. não cumprem a lei de Deus.
Ergue-se da cadeira, guarda o terço no bolso da saia. Toda em negro, a blusa de mangas compridas, sem decote, fechada no pescoço, o coque alto coberto pela mantilha, o rosto severo, virtuosa e devota viúva. Benze-se ao ouvir o sino da Matriz nas badaladas do meio-dia, encaminha-se para a porta.
Na rua deserta, ressoam os passos de Astério. O mormaço sobe do chão, desce do céu. Elisa suspira, dirige-se para a cozinha.
E Elisa, linda de morrer, diante do espelho, e do marido Astério, bom de taco - capítulo onde nada acontece quando no dia seguinte a marinete de Jairo buzinou na curva próxima à entrada da cidade, Elisa, sentada à mesa antiga, quem sabe de valor, a servir de penteadeira, terminara de passar batom nos lábios e sorriu para a imagem refletida no espelho barato pendurado na parede. Achou-se bonita.
A negra, bravia cabeleira, agora cuidada, solta sobre os ombros, emoldura-lhe a face pálida, o langor dos olhos, a boca de lábios gulosos, acentuados pelo batom. Linda de morrer, como diz, ao referir-se a estrelas de rádio, tevê e cinema, o admirado locutor Mozart Cooper – pronuncia-se Cu...u...per -, voz de veludo nas ondas hertzianas a embalar os corações solitários. Coração solitário, linda de morrer.
Durante alguns minutos esqueceu-se de tudo quanto a afligia e ensaiou poses e trejeitos, imitados das cenas das fotonovelas: um muxoxo com os lábios, olhar apaixonado, sorriso tentador, desmaio de paixão, a boca se abrindo para o beijo, a ponta da língua a surgir entre os lábios, vermelha e úmida. Beijar a quem? Num gesto cansado, encolheu os ombros, os olhos cobriram-se de sombra. Volta a pensar na carta, busca tranqüilizar-se : está chegando na mala do correio, trazida pela marinete, de hoje não passa. E se não chegar?
Na véspera, na mesa do almoço, Astério, comilão e apressado, a boca cheia, mastigando feijão e palavras, repetira pergunta e lamúria:
- Por que tanta demora? Logo em novembro, mês de pouca venda, quase nenhuma. Que diabo pode ter acontecido?
Elisa trancara os lábios, se lançasse a suspeita a lhe queimar o peito o marido entraria em pânico. Esmorecido de natureza, incapaz de esforço e luta, o dia inteiro encostado ao balcão da loja à espera da minguada freguesia, animando-se apenas quando um dos parceiros do bilhar Seixas, Osnar, Aminthas ou Fidélio - aparece para comentar apostas e jogadas; se Ascânio Trindade treinasse, Astério teria adversário pela frente. Osnar, desocupado, faz ponto na loja, o cigarro de palha pendurado no lábio. Infalível aos sábados, quando o movimento cresce por causa da feira. Após vender a farinha, a carne- de- sol, o feijão, as frutas, o cultivo das roças e o barro cozido em pequenos fornos rudimentares - moringas e quartinhas, cavalos e bois, jagunços e soldados, o padre- cura e os noivos de mãos dadas, potes e panelas -, os sitiantes e roceiros enchem a loja a comprar fazendas, sapatos, calças e camisas, quinquilharias, vez por outra um rádio de pilha. Na moita, equilibrado numa velha cadeira, Osnar espreita as caboclas novas, puxando conversa quando lhe parece valer a pena. Nos sábados, o moleque Sabino ganha cinco cruzeiros para ajudar, atendendo a maioria dos rudes fregueses - cinco cruzeiros e o que rouba no troco.
Se Elisa contasse a conversa com Perpétua, Astério era capaz de ter um daqueles vexames repetidos a cada aperto maior de dinheiro, a cada problema com os fornecedores; suores frios, fraqueza nas pernas, tontura, vômitos.
Recolhe-se à cama, batendo o queixo, tiritando, a loja entregue a Sabino. Só Osnar consegue levantá-lo, arrastando-o para o bilhar, no Bar dos Açores, de seu Manuel Português.
No bilhar transforma-se, vira outro homem. Ri e graceja, arrota valentia, aposta sem medo, manda desafiar Ascânio, certo da vitória. Bom no taco. No taco do bilhar, somente no bilhar taco de ouro, surpreende-se Elisa a resmungar. Censuráveis resmungos, pensamentos ruins, surgiam assim de repente, perseguiam- na os malditos, cruz credo.
A face pensativa no espelho. Linda de morrer, ali perdida, a envelhecer naquelas ruas paradas, à espera da carta e do cheque. não fossem o rádio de pilha e as revistas, que seria de Elisa?
Se revelasse a Astério o tema debatido com Perpétua, a probabilidade para a irmã, a certeza- da morte de Tieta, ele vomitaria o feijão, o arroz, a carne, os pedaços de manga, ali mesmo em cima da mesa do almoço. Tirante o bilhar, um molengas, sem ânimo, sem ambição, sem conversa, sem alegria.
As raras prosas, as poucas risadas provinham ainda do bar, picantes histórias dos parceiros, de Seixas e Aminthas, raramente Fidélio, reservado de natureza e por cálculo, quase sempre Osnar, abastado, obsceno e mulherengo. As histórias de Osnar, entre as quais figura o notável caso da polaca, são de morrer de rir, em geral têm a ver com o descalibrado tamanho de seus órgãos sexuais. Estrovenga de jumento, afirma Astério, distanciando as mãos para indicar a medida espantosa: daqui para maior.
O cansado motor da eletricidade deixa de trabalhar às nove da noite, marcando a hora de dormir, confirmada pelas badaladas do sino da Matriz.
Astério conclui a partida, encosta o taco, recolhe ou paga as apostas, toma o caminho de casa. Vez por outra, se Elisa ainda não pegou no sono, Astério, ao despir-se, repete a mesma frase, prólogo do caso a narrar: Acontece cada uma!
Osnar ou Aminthas, Seixas ou Fidélio, fosse qualquer dos quatro O personagem, fosse outra figura da cidade, o enredo era quase sempre escabroso, envolvendo mulher e cama - cama ou mato, na beira do rio. Elisa ouve em silêncio, tensa, atrevendo-se de raro em raro a pedir detalhes, tão necessários no entanto à construção do imaginado mundo em que se trancara para subsistir, onde cada elemento importava; a grandeza de Antonieta, o postal de Buenos Aires, o perfume no envelope, as tramas de Seixas, os segredos de Fidélio, as patifarias de Aminthas, a anatomia de Osnar. Durante o dia, o rádio ligado sem parar, Elisa passa e remenda roupa, lava pratos, cozinha, lê e relê revistas, visita dona Carmosina no Correio, suporta, após o jantar, a lenga-lenga da vizinha, dona Lupicínia, cujo marido se mandara há mais de um lustro para as bandas do sul da Bahia e não tinha previsão de regresso; vai ver não volta nunca.
Linda de morrer, só mesmo para morrer, para que outra coisa, qual? A boca ante o espelho abre-se ávida para o beijo. Que beijo? Elisa levanta-se, ai quem lhe dera possuir espelho onde pudesse se ver de corpo inteiro! Linda de morrer, no fino da moda.
Afinal, pergunta-se a encolher os ombros novamente, por que gasta esse tempão em pintar-se, em ajeitar a negra cabeleira, em fazer-se tão elegante no vestido restaurado, presente de Tieta como todos que possui, cada qual de melhor fazenda e de padrão mais moderno - usados mas pouco, quase novos.
Para que tanto apuro, tanto cuidado com a maquiagem, para que o decote a mostrar os ombros, o nascer dos seios?
Para atravessar as roas desertas, de raros passantes, perceber o peso do olhar do árabe Chalita, a bigodaça de sultão, a barba por fazer, eterno palito entre os dentes, dono do Cinema Tupy e da sorveteria, velho e descuidado, ou sentir sem ver a mirada matreira do moleque Sabino fixa nos meneios das ancas da inacessível mulher do patrão, ouvir o assovio do pestilento Bafo de Bode, mendigo e bêbado? Tão podre e miserável, pode-se dar a todos os atrevimentos sem temer represálias. Esses três infelizes e acabou-se. Além disso, um boa tarde, dona; um chapéu levantado em muda saudação; a bênção do vigário e a incontida inveja das mulheres: Até parece que se vestiu para um baile, querida.
Discreta e comedida, esposa honesta e virtuosa, ao passar Elisa recolhe no decote o cúpido olhar do levantino: ao vê-la certamente recorda tempos de antanho e corpos de mulheres; a cobiça do moleque acentua-lhe o requebro da bunda, assim de noite Sabino sonhará com ela. não despreza sequer o assovio fétido do esmoler. Quanto à inveja das mulheres, tem igualmente merecimento e sabor. Modesta, Elisa responde: vestido mandado por minha irmã Tieta, é dela o gosto e a elegância, hei de botar fora. Louvam então em coro a ausente Antonieta, irmã generosa, filha exemplar, a infalível ajuda mensal, os presentes régios - régios, sim senhora, cada vestido desses vale um dinheirão!
Elisa recomenda à pequena Araci atenção na casa, fecha a porta da rua, dirige-se para o Correio. Atravessará a feira, passará pelo árabe, pelo moleque, pelo maluco, pelas comadres no adro da igreja. O rosto sério, como cumpre a uma senhora casada, bem casada. O coração apertado, lá dentro a certeza de que a carta não chegou.
Breve explicação do autor para uso daqueles que catam pulgas em elefante e apenas inicio o relato e já recebo criticas. Amigo íntimo, colega de trabalho e de letras, cultivando-as como eu ainda em amargo anonimato, Fúlvio D'Alambert (José Simplicio da Silva, na vida civil) tem a primazia da leitura dos meus originais que, em geral, me devolve entre elogios, agradáveis de ouvir, e uma ou outra correção ortográfica eu gramatical - vírgulas e pontos, tempos de verbo. Desta vez, porém, atreveu-se mais longe e eu retruco de imediato, enquanto Elisa marcha em direção ao Correio.
Fúlvio considera um absurdo o uso da palavra marinete, por ultrapassada, para designar veículo automotor para transporte de passageiros. Ônibus, autobus, pulman seriam termos modernos, corretos, próprios para a época desenvolvimentista em que nos cabe o privilégio de viver. Acusa-me de subdesenvolvido e argumenta. Quando rasgamos novas rodovias comparáveis às melhores do estrangeiro; quando são implantadas indústrias a granel; quando, atendendo às clarinadas do progresso, desperta um novo Nordeste redimido das secas, das epidemias, daquela fome centenária, e não esqueçamos do analfabetismo rapidamente erradicado; quando a imprensa, o rádio, a televisão uniformizam costumes, moral, modas e linguagem, varrendo como lixo os hábitos regionais, as expressões, os folguedos, quando os monumentais arranha-céus unificam a paisagem citadina, erguendo-se de sob os escombros da história e de casarios de pretenso valor artístico; quando nossa música popular se baseia por fim em melodias e temas universais, sobretudo ianques, abandonando ritmos de um desprezível folclore nacional; quando o misticismo hindu (e adjacentes) ilumina a alina dos jovens na fumaça da maconha alagoana; quando avançados ideólogos se esforçam para liquidar os princípios da mestiçagem e implantar o racismo entre nós, o branco, o negro e o amarelo, para que nada fiquemos a dever às nações realmente civilizadas e a violência marque nossa face, lavando-a da antiga cordialidade brasileira, sinal de atraso; quando a arte consciente de seu papel desconhece a terra e o homem e faz-se concreta, abstrata, objeto, igualzinha sem tirar nem pôr à européia, à norte-americana, à japonesa; quando criamos uma linguagem nova para a escrita dos literatos, esotérica mas extremamente revolucionária na forma e no conteúdo, tanto mais atuante quanto mais ininteligível; quando, na base da censura e da porrada, criamos a democracia, a verdadeira, não aquela antiga a conduzir o país ao abismo; quando entramos milagrosamente na época da prosperidade ao ritmo das nações ricas, produtoras de petróleo, de trigo, da bomba atômica e dos satélites, do uísque e das histórias em quadrinhos, ápice da literatura; quando passamos a ocupar nosso posto entre as grandes potências e, em fábricas aqui instaladas, produzimos veículos nacionais -mercedes Benz, Ford, Alfa-Romeo, Volkswagen, Dodge, Chevrolet, Toyota, etc. e tal e etc. e tal. - como se atreve um autor a apelidar de marinete o bus a conduzir passageiros de Sant'Ana do Agreste para Esplanada e vice- versa? Um quadrado, o autor, perdido no tempo, nas calendas gregas.
Perdoe-me D'Alambert, perdoem-me também os eméritos críticos universitários, com mestrado e doutorado, mas, no caso, trata-se mesmo de marinete. A última talvez - a fazer companhia às secas, às epidemias, à obstinada fome que, sertão afora, resistem, subversivas, à patriótica ofensiva dos artigos e dos discursos.
A última, sem dúvida, a trafegar em estrada brasileira mas trafegando impávida. Jamais ultrapassando a velocidade de trinta quilômetros por hora - média obtida no trecho dos cuidados seis quilômetros que cortam a fazenda do coronel Vasconcelos, na saída de Esplanada. Nos outros quarenta e dois, arrasta-se aos trancos e barrancos pois a estrada é apenas carroçável e nela não se aventuram veículos modernos, não possuem para tanto audácia e competência. Só o longo hábito permite o prodígio cotidiano - de segunda a sábado, com descanso aos domingos - praticado pela marinete de Jairo, familiar das crateras, dos lamaçais, dos mata- burros apodrecidos, das rampas e curvas impossíveis. A marinete de Jairo data da Segunda Grande Guerra Mundial, foi viatura moderna, de molejo macio, bancos confortáveis e até possuía vidros nas janelas. Naquele então, por mais incrível que pareça, cumpria ela o trajeto de ida- e- volta, Agreste - Esplanada - agreste, num só dia, saindo manhãzinha, regressando ao entardecer.
Tanto tempo depois ainda vale a pena vê-la, peça digna de museu, tudo nela é substituição e remendo. No motor e na carcaça coexistem peças de marcas e procedências as mais estranhas, inclusive um rádio russo. Engenhosas adaptações, inovações mecânicas, arames, pedaços de corda. Jornais velhos são úteis para tapar as janelas quando a poeira se faz insuportável. Os fregueses assíduos, experientes, levam almofadas para os bancos e lanches reforçados, garrafas de refrigerantes.
Velha e batida, imbatível, última e eterna, parte nas segundas, quartas e sextas de Agreste para Esplanada, nas terças, quintas e sábados regressa de Esplanada para casa. Bufando, tossindo, rateando, parando, parando muito, ameaçando pane definitiva, jamais definitiva, prosseguindo em atenção à capacidade de Jairo, aos pedidos, juras e adulações - Jairo trata o desmantelado veículo com ternuras de amante, a marinete é seu ganha- pão, seu único bem e a única ligação entre Sant'Ana do Agreste e o mundo.
Se tudo marcha à perfeição, a viagem dura três horas, com a excelente marca de tempo de dezesseis quilômetros por hora. No inverno, com as chuvas, a travessia torna-se mais prolongada, de horário imprevisível. Exato na partida, Jairo não admite atraso; a chegada, quando Deus quiser. Já aconteceu a marinete de Jairo dormir na estrada, enterrada na lama, à espera de juntas de boi. Para tais ocasiões Jairo conta com razoável repertório de anedotas familiares e com a colaboração do rádio russo. Fanhoso, rabugento, indolente, de humor instável, com apitos e descargas, o insólito aparelho concorre para matar o tempo com fragmentos de músicas e notícias. Isso de passar a noite na estrada se conta nos dedos da mão, raridade. Habitualmente, no inverno, o trajeto demora de cinco a seis horas.
Boa viagem, confortável e rápida, pelo menos na opinião expressa pelo coronel Artur da Tapitanga, octogenário plantador de mandioca e criador de cabras, chefe político, há mais de trinta anos sem pôr os pés fora das roças e currais e das ruas de Agreste. Após quase sete horas de caminho-a marinete rebentou três vezes -o fazendeiro, pondo-se de pé, declarou:
- Bicho mais ligeiro, essa marinete de Jairo. Um viajão!
- Ligeiro, coronel?
- No meu tempo se gastava dois dias a cavalo e olhe lá. ..
Seca, bexiga, maleita, lepra e fome, menino morrendo que dá gosto, isso eu sei que ainda sobra sertão afora. Agora marinete, penso não existir outra além dessa de Jairo. Ele a trata de condessa, minha negra, estrela-d'alva, dengosa, mãe West, beleza do Agreste, meu amor. Quando se dana, perde a cabeça e a xinga de puta para baixo.
Onde se trava conhecimento com dona Carmosina, cidadã importante, agente dos correios, e serem noticias dos filhos de seu Edmundo Pacheco, coletor, compensando a falta de carta e cheque de Tieta sobre cujo estado de saúde cresce o pessimismo ainda de longe, antes de transpor a porta dos correios, Elisa, na atitude de dona Carmosina, a comprovação do que já sabia com certeza: a carta não chegara. Braços caídos, semicerrados os olhos miúdos, o ar grave, a ativa funcionária vive, ela também, o drama do inexplicável atraso. Faz-se mais pálida a face de Elisa, os pés de chumbo, a voz inarticulada, quase um gemido:
- Nada?
Cinqüentona, sarará, corpulenta, cara larga, voz rouca, dona Carmosina indica a correspondência do dia, escassa, espalhada no balcão:
- Nada! Hoje não veio nenhuma carta registrada. Por via das dúvidas, passei as malas duas vezes, carta por carta. O que chegou está aí, pouca coisa.
Ainda não entreguei nada, você é a primeira a aparecer. Vieram jornais e revistas, isso sim, hoje é sábado. - Repara na palidez da amiga: - Quer um pouco d'água?
- não, obrigada. - as palavras saem estranguladas.
- Que demora, hein? Em todos esses anos, nunca atrasou tanto...
- Mais de dez anos... - gemeu Elisa.
- Onze anos e sete meses- corrigiu dona Carmosina, escrupulosa nos detalhes: - Inda me lembro da primeira carta, como se fosse hoje. Quando abri o saco, senti logo o cheiro, naquele tempo ela usava um perfume mais forte que o de agora, encheu a sala. Que carta será essa?, perguntei a mim mesma e li correndo o sobrescrito e o nome do remetente. Estava dirigida a seu pai ou a qualquer membro da família Esteves e quem enviava era Antonieta Esteves, Caixa-Postal 6211, São Paulo, Capital. Vou buscar água para lhe dar, com esse calorão e nada de carta, coitadinha...
Enquanto, de costas, dona Carmosina toma da moringa e enche o copo, Elisa curva-se sobre a correspondência, não por manter esperanças, mas por desencargo de consciência.
- Botei duas gotas de água de flor. Faz bem pros nervos.
Elisa bebe em pequenos goles, dona Carmosina retoma a narrativa:
- O envelope cor- de- rosa, lindo, parece que estou vendo. Pelo falecido seu Lima mandei recado para seu marido na loja, vocês estavam casadinhos de novo. Ele veio com Osnar, entreguei, leu aqui mesmo. Carta mais bonita, pedindo notícias do pai, das irmãs, como iam de saúde e devida, se precisavam de ajuda. Até colaborei na resposta, se lembra?
- Me lembro... o Major era vivo, foi ele quem escreveu...
- Era burro como uma porta mas tinha a letra bonita... Letra dele, redação minha. De lá pra cá nunca mais falhou. Todo mês a carta com o cheque, com o rico dinheirinho...
Empolgada, dona Carmosina nem sente o mormaço a entrar pelas duas portas, asfixiante. Pensativa, a olhar para Elisa:
- Nunca demorou desse jeito... esquisito mesmo.
Elisa percebe, na voz da amiga, inquietante sinal de alarme. Tenta acalmá-la e acalmar-se :
- Uma vez, quando ela estava passeando em Buenos Aires...
- Chegou no dia dezessete... dezessete de fevereiro, exatamente. Hoje estamos a vinte e oito de novembro. A que você atribui? Doença? - Os olhos pequeninos de dona Carmosina observam Elisa que segura o copo vazio sem encontrar resposta, o choro preso na garganta.
Felizmente aparece seu Edmundo, Edmundo Ribeiro, o coletor, enfarpelado, paletó, gravata e chapéu, deseja boa tarde:
- Alguma coisa para mim, Carmosina?
- Duas cartas, uma do filho, outra do genro... - ri com os lábios descorados, divertida: - aposto que os dois estão pedindo dinheiro...
O coletor recolhe as cartas, olha através dos envelopes contra a luz, quem pode impedir que dona Carmosina saiba e comente a vida a idéia, não passam por suas mãos (e vistas) telegramas e cartas? Carmosina, quase alheia, mais que ladina, voz masculina, língua ferina, doce assassina - declamava Aminthas, seu primo segundo e comensal assíduo. Dona Carmosina é de bom tempero, famosa no pirão de leite e no molho pardo. E o cuscuz de milho?
- Como se eu fosse um saco sem fundo, entupido de dinheiro... - se o Edmundo suspira, sem pressa de abrir os envelopes apesar do desejo de saber dos filhos. Dirige-se a Elisa: - Feliz é Zé Esteves, seu pai, dona Elisa. Tem filha rica que manda em vez de pedir. Comigo é o contrário...
Dona Carmosina relanceia a vista, considera Elisa, informa:
- Este mês a carta de Tieta ainda não chegou. Esquisito, não acha, seu Edmundo? Um atraso desses...
O coletor não esconde a surpresa, um dos envelopes aberto:
- Ainda não? Que é que houve, dona Elisa?
- Quem sabe, seu Edmundo? Para mim, ela está viajando, esses passeios que faz todos os anos, de navio...
- Cruzeiros marítimos... - esclarece dona Carmosina mas o olhar sob as sobrancelhas ruças exprime dúvida. Seu Edmundo balança a cabeça, não encontra comentário a fazer, retorna à carta do genro.
Elisa despede-se, uma fraqueza nas pernas que nem Astério:
- Obrigada, Carmosina.
- Agora, querida, só terça- feira. - Para levantar-lhe o ânimo, não deixá-la partir tão por baixo, acrescenta: - Você hoje está uma tetéia. Esse vestido eu ainda não conhecia...
- Foi Tieta quem mandou...
Seu Edmundo suspende a leitura da carta, escapa-lhe o desgosto da notícia:
- Suzana está esperando menino outra vez...
Elisa reúne forças:
- Parabéns, seu Edmundo. Quando escrever a Suzi, mande um abraço meu...
- O quarto, não é? O senhor ainda tão moço e já cheio de netos. Bonito, acho isso bonito.
- A voz rouca de dona Carmosina, sincera ou gozadora?
- Bonito? Eu é que sei quanto me custa... falta de juízo.
- Que é caro, lá isso é... Logo agora, tão fácil de evitar, com a pílula.
Na Bahia, se encontra em qualquer farmácia, a venda é livre... até a Igreja já aprova o uso - Acentua dona Carmosina, doce assassina.
Elisa diz até breve, atravessa a feira barulhenta, em direção à casa de Perpétua. não sente o peso do olhar do árabe, não lhe alisa a bunda a mirada de nenhum moleque nem lhe fere o ouvido o assovio do mendigo. Doença, insinuara Carmosina, para não falar no pior. Morta, sim. Elisa já não duvida, Perpétua sabe o que diz.
Há vinte e três anos na agência dos Correios, dona Carmosina emite julgamentos definitivos sobre pessoas e fatos:
- Moça boa e séria está aí, seu Edmundo. Conheço Elisa de menina, sempre direita, cumpridora. Faz tudo no capricho. Trabalhadeira, a casa dela é um brinco e gosta de se vestir, de se arrumar, não é como outras por aí, que vivem no desmazelo. Só que agora, pobrezinha...
Seu Edmundo, para melhor ouvir, interrompe a leitura da carta do filho estudante:
- A que atribui tanta demora?
- Se Tieta não morreu, deve estar muito doente. O marido dela bem podia dar notícia mas ele nunca quis conversa com os parentes daqui. Vou aconselhar Elisa ou Perpétua a telegrafar.
De volta à carta, o coletor explica:
- Idiota! Só serve para isso...
- O que é que Leléu fez dessa vez, seu Edmundo?
- Pegou uma carga de gonorréia; desculpe, Carmosina, quero dizer blenorragia, e pede dinheiro urgente para médico e remédios...
- Com duas doses de penicilina fica bom. É tiro e queda. Tratamento bacato, nem precisa de médico.
Dona Carmosina lê os jornais, antes de entregá-los, sabe do que vai pelo mundo, entende de cinema, política, ciência. Acumula o cargo nos Correios com a representação de ? Tarde, da Bahia, de revistas do Rio e de São Paulo.
- Coitada de Elisa, ficou tão transtornada, nem levou as revistas.
Depois deixo em casa dela.
Separa a carta endereçada a Ascânio Trindade pois o vê do outro lado da rua; carta de Máximo Lira, um amigo da capital, sem interesse. Antigamente, sim, tão romântico: quando Astrud escrevia cartas de amor e Ascânio em resposta enchia laudas de juras e saudades. Um poeta, Ascânio, pena não escreva versos, seriam lindos. Retorna dona Carmosina ao silêncio de Tieta:
- Quer saber minha opinião, seu Edmundo? Antonieta já não pertence a este mundo. Mortinha da silva.
Onde Ricardo, sobrinho e seminarista, acende veias contraditórias aos pés dos santos; capitulo banhado em lagrimas, algumas de crocodilo - Então cadê? - Interroga Perpétua e ela própria responde vitoriosa, aflita vitória: - Carta e cheque, babau, minha miss Bahia! derrama sobre a irmã o fel a lhe amargar a boca: -se eu fosse Astério, você não saía para a rua nesses trajes indecentes, de peitos de fora. Mas agora tudo vai acabar, esse desbarate de vestidos. Vai acabar tudo. Vai começar o tempo da pobreza.
Elisa deixa-se cair na cadeira, cobre o rosto com as mãos, não retruca:
poderia lembrar que, na hora da divisão dos presentes, Perpétua não critica os vestidos, trata de empalinar os mais finos e ousados para vendê-los a bom preço em Aracaju, a senhoras ricas. Cala-se, porém; gostaria, isso sim, de tapar os ouvidos para não escutar; a voz avinagrada da irmã torna as palavras mais cruéis.
Antes Elisa passara na loja, naquela hora já repleta, Osnar escorrega na cadeira. Trocara apenas um olhar com o marido, suficiente para Astério largar o metro e a peça de madrasto. Osnar pusera-se de pé: bom dia, dona Elisa.
Bom- dia, patroa - Sabino brechou rápido do decote no alto às ancas embaixo, salve salve quem inventou esses vestidos justos, colados ao corpo, marcando até as pregas da bunda, moda mais jeitosa. Um felizardo, o patrão.
- Três metros... - reclamou a freguesa a reparar também na elegância de Elisa, aquilo sim era fazenda.
Astério voltara a medir, mal sustendo metro e tesoura.
- Vou até a casa de Perpétua, daqui a pouco mando Araci com a marmita -avisara, despedindo-se - Até logo, seu Osnar, esteja a gosto.
Durante o percurso, não pudera impedir as lágrimas. Cada palavra, na loja, custara-lhe esforço e contenção. Agora, arreia na cadeira, sob a voz de Perpétua a criticar-lhe o decote como se não bastassem as mãos vazias de carta e cheque.
- Bateu a caçoleta, eu te disse. Tu ainda duvida? - Além da voz sibilante, o dedo em riste.
Elisa descobre a face, balança a cabeça, vencida, as lágrimas escorrem.
Lágrimas, de que adiantam? não resolvem nenhum problema, não substituem o cheque, não ressuscitam a morta, não determinam as medidas a tomar.
Perpétua, no entanto, conhece e respeita as conveniências, exigente nas formalidades. Do bolso da saia negra retira o lenço e com ele toca o canto dos olhos- nem por invisíveis deixam de ser lágrimas de luto. Coloca um acento de dor na rispidez da voz, ao gritar pelo filho mais velho:
- Cardo! Vem aqui, depressa! Ai, meu Deus!
Leva o lenço novamente aos olhos, Elisa deve ver, testemunhar o sentimento a afligi-la quando a hipótese se confirma e a morte de Antonieta já não admite controvérsia. Deus a tenha em sua guarda e lhe perdoe os pecados; a assistência ao pai e às irmãs há de contar a seu favor na hora do juízo final.
Surge correndo um rapagão suado, os pés descalços. Forte, alto, bonito, dezessete anos desabrochando em espinhas no rosto. Sobre o lábio risonho, a sombra do buço. Vestido apenas com um calção estava chutando bola no quintal - Tá me chamando, mãe? - aonotar Elisa, acrescenta: - Bênção, tia.
Respira saúde e satisfação, não percebe de imediato a atmosfera fúnebre da sala. Pela terceira vez, ante a presença do filho, Perpétua enxuga lágrimas escassas mas, finalmente, visíveis. O adolescente dá-se conta, põe-se sério:
- Aconteceu alguma coisa ao Avó? De manhã cedinho, quando fui ajudar a missa, vi ele na feira fazendo compras...
Perpétua ordena:
- Vá buscar uma vela benta, acenda no oratório. Tua tia Antonieta, coitada...
- Tia Tieta? Morreu?
Vencida, sim, convencida, não, Elisa levanta a cabeça, rebela-se :
- Ainda não se sabe de nada certo. .. de nada!
Perpétua nem responde, reafirma a ordem:
- Faça o que estou mandando, sei o que digo: uma vela nos pés de Nosso Senhor Jesus Cristo pela alma de Antonieta. Em seguida, tome banho, vista a batina, por hoje o recreio terminou. Cadê Peto?
- Foi pescar no rio.
- Diga a ele para vir para casa. Depois do almoço vamos falar com padre Mariano. - Um suspiro, a mão sobre o peito, a conter certamente o coração.
Atônito, Ricardo, sem palavras, preso à sala pela notícia. Volta-se para Elisa. Os ombros curvos acentuam o decote no colo moreno. Apesar das críticas constantes da mãe, o moço jamais reparara na elegância da tia. Pela primeira vez dá-se conta de como ela se veste bem e se enfeita; parece uma santa, ali desamparada na cadeira, sofrida, a recusar a morte da irmã, lutando contra a evidência refletida na fisionomia e nos gestos da mãe. Na voz da tia, abafada de choro, um pedido, uma súplica:
- Vamos esperar ter certeza para falar nisso com o Reverendo. .. por que tanta pressa?
Ricardo não entende os motivos da discordância, e antes mesmo de condoer-se pela morta, sente pena de tia Elisa, assim desolada igual à imagem de Santa Maria Madalena, num nicho da capela do seminário.
Perpétua não se abala:
- Nunca é cedo demais para se pedir um bom conselho. O que está esperando aí, Cardo? não ouviu o que mandei fazer?
- Já vou, mãe...
Deseja acrescentar uma palavra condizente com a notícia, o pensamento agora voltado para a tia desconhecida, de morte anunciada e discutida, nome obrigatório em suas orações: não enviava ela dinheiro todos os meses?
Quando ingressara no seminário, menino ainda, recebera, mandado de São Paulo, um breviário rico, lombada doirada, papel fino, letras de cor, numa caixa de veludo vermelho, coisa mais linda, presente da tia Antonieta para o futuro padre que mal viu e tocou preciosidade t amanhã, logo ofertada por Perpétua ao bispo Dom José por intermédio do padre Mariano. A bola de futebol número também fora ela quem mandara; às escondidas da mãe, Cardo escrevera uma cartinha à tia pedindo bola e segredo, se mamãe souber arranca meu couro. Recebeu bola, calção e camisa do Palmeiras. Tinham um segredo em comum, ele e tia Tieta. Levanta a cabeça, enfrenta Perpétua:
- Tomara não seja verdade.
Sai em busca das velas. Já não está alegre e, se não espreme lágrimas, sente um ardor nos olhos, uma espinha nasce-lhe no coração, incomoda como as do rosto. Por sua conta acenderá uma vela aos pés da Virgem e lhe prometerá um rosário de cinco terços, rezado de joelhos sobre grãos de milho, para que a má notícia não se confirme.
Na sala, cai o silêncio sobre as duas irmãs, sobre as duas e a outra múltiplas a face e a postura da ausente. Moça formosa e atrevida, enfrentando a ira do pai e a denúncia da irmã: tu tem é inveja porque nenhum homem repara em ti, tribufu; atrevida desde menina, pastora de cabras nos oiteiros da terra sáfara de Zé Esteves; a saltar, adolescente, a janela noturna para encontrar-se com homens, o caixeiro- viajante não fora o primeiro, Perpétua tem certeza; audaciosa, desleixada dos preceitos de Deus, igreja só para namorar a rir, tão cínica e bela, na boléia do caminhão, rumo da Bahia, indo embora para sempre; irmã rica, esposa de comendador, em São Paulo, a mandar mesada para pai e sobrinhos, merecedora de toda consideração, esquecido o feio passado, enterrada a louca adolescência, tia presente na oração das crianças, elogiada pelo padre Mariano; fada generosa dos sonhos de Elisa, a feliz e atenta benfeitora, a âncora da esperança; na cidade, exemplo de boa filha e boa irmã, uma zelação, uma lenda, inesgotável assunto.
Perpétua guarda o lenço, cumprido o ritual, pergunta:
- E Astério?
- Passei na loja... sabe que a carta não chegou mas hoje é sábado, não pode sair nem para o almoço. Por falar nisso, vou indo, tenho de mandar a marmita.
- De noite passo em casa de vocês, digo o que o padre aconselhou.
Vamos decidir o que fazer.
Elisa, de pé, um soluço a sacode:
- Por que a gente não espera até o fim do mês?
- Já se esperou até demais. Vamos logo discutir o que fazer. Eu não vou ficar de braços cruzados, não lhe disse? Quero minha parte.
- Já sem lágrimas, suspiros, lamentações, Perpétua troca o lenço pelo terço. Mais valem as orações.
Elisa gasta o derradeiro argumento:
- Quem sabe, a carta se perdeu no caminho...
- Carta registrada, não se perde. Nesses anos todos já se perdeu alguma? Tolice. Diga a Astério que me espere, nada de bilhar hoje. Com a cunhada morta...
- E o Pai ?
Perpétua começa a passar as contas do terço:
- Amanhã a gente avisa a ele.
- É capaz dele ter uma coisa...
- Quem? O Velho? Vai ficar uma fera, vai querer tomar dinheiro da gente, o mais que puder, isso sim. Se prepare, o tempo das larguezas se acabou.
Ao passar em frente ao corredor, Elisa enxerga ao fundo a chama das velas iluminando os santos no oratório. Uma, pela salvação da alma da morta, aos pés do Cristo crucificado; a outra, pela vida da tia, aos pés da Virgem.
Ouve a voz do rapazola rezando Salve- Rainha, mãe de misericórdia.
Misericórdia, meu Deus!
Da prece pela saúde da velha tia desconhecida, capítulo case o e devo e o. ...vida, doçura, esperança nossa, salve! as palavras da oração nascem sinceras e sentidas da incômoda espinha, do nebuloso pesar. Maquinais, no entanto, solta-se livre o pensamento de Ricardo em busca da tia nas vascas da morte ou já no caixão - dela pouco sabe, praticamente nada.
Vida, doçura e esperança, a tia de São Paulo, que não esteja defunta como garante a mãe - A mãe vê tudo em luto -, que se afirme a crença de tia Elisa e o perigo desapareça, a Vós bradamos os degradados filhos de Eva. A Vós suspiramos e oferecemos pela saúde de tia Antonieta um rosário rezado de joelhos sobre grãos de milho. Promessa mixa, mísera oferta em paga de portentoso milagre. Dá-se conta e, exagerado, a amplia para uma semana inteira de rosários completos e macerados joelhos, gemendo e chorando neste vale de lágrimas, salvai da morte a tia Antonieta.
Que doença a matara ou a estava matando? Nenhuma referência ouvira, a mãe e tia Elisa devem saber mas guardam segredo, na certa por se tratar de doença ruim, cujo nome não se pronuncia, tísica ou câncer. Quem comunicara a notícia, como chegara, em carta, em telegrama? Quando o pai de Austragésilo faleceu, houve um primeiro telegrama anunciando estado de saúde grave com hemoptise. Duas horas depois o Reitor do seminário viera em pessoa com um segundo telegrama, o fatal, e palavras de consolo. Apertara Austragésilo contra o peito, falara sobre o reino dos céus. Do mesmo modo agora, o primeiro telegrama já chegara comunicando doença e diagnóstico pessimista. A mãe, experiente da vida, percebera o engodo, a intenção de prepará-los para o pior; tia Elisa só perderia a esperança quando o segundo afirmasse a verdade nua e crua. Neste vale de lágrimas eia pois advogada nossa, para Vós mãe do Nosso Senhor o impossível não existe: podeis interromper o curso dos telegramas, revogar sentenças de morte, o Filho atende todos os Vossos pedidos. Contrito, Cardo renova a promessa sete vezes maior. Promessa e tanto.
Zero sobre a doença, e sobre tia Antonieta? Zero vezes zero, imprecisas, fugazes notícias, tia desconhecida, quase uma abstração. não obstante ninguém tão concreto, presente, indispensável na vida de cada um deles, de toda a fantasia. A tia de São Paulo, a ricaça.
Para Ricardo apenas um nome, um apelido de infância, Tieta, vagas e entusiásticas referências ao marido milionário e comendador, mensalmente a carta e o cheque, os presentes, a bola de futebol número cinco, dando solidez e contorno a uma imagem, que imagem?
Olhos misericordiosos a nós volvei, neste vate de lágrimas, de pobreza e limitações, a imagem da santa padroeira, a protetora, a possibilitar pequenas regalias e o dinheiro que a mãe deposita na Caixa Econômica para a festa da primeira missa, ainda tão distante, e para os estudos de Peto se um dia Peto se dispuser a estudar. ao pensar na tia jamais vista, não a compara com a Virgem a quem roga por ela e, sim, com a Senhora Sant'Ana, padroeira da cidade, protetora da família, da sagrada família e de todas as demais. Na chama das velas enxerga a imagem da velha senhora, mãos generosas, plena de ternura, doce patrona.
Será assim débil anciã ou ainda se mantém rija e disposta, igual à mãe?
Qual das duas a primogênita? Sobre a idade da tia, Ricardo nunca ouviu a menor referência, a mãe diminui a sua quando perguntada. A ausente deve ser bem mais velha, não é ela a rica, a poderosa, a doadora, o verdadeiro chefe da família, a quem o próprio avô reverencia? Boca de praga e maldições, a resmungar queixas e ameaças, o avô desmancha-se em louvores ao pronunciar o nome de Tieta, Deus lhe dê saúde e lhe aumente a fortuna, ela merece, a boa filha. Anciã de passo cansado, cabelos brancos - Ou ela ainda pinta os cabelos como outrora? Na chama das velas são brancos os cabelos da tia Antonieta.
Conhece-lhe a letra, grande, de escolar, incerta, enchendo com poucas palavras a bonita folia de papel ora azul, ora laranja, ora verde-cana, chique a valer. A letra e o perfume, fragrância rara para narinas habituadas ao fedor das velas consumidas, à morrinha das emboloradas alfaias, das fanadas flores, ao pobre odor das sacristias, das suarentas salas de aula, à fumaça do incenso.
Ao remeter a bola de futebol, a tia rabiscara uma página dirigida a Cardo: Para meu sobrinho querido, pálida lembrança da tia Tieta. Feliz, colocara o papel lilás dobrado em quatro entre as folhas do livro de missa e às escondidas aspirava-lhe o perfume. Num assomo de orgulho, exibiu dedicatória e aroma a Cosme, amigo predileto, companheiro de devoções e retiros espirituais, vizinho de carteira. Cosme, um asceta, recusou-se a cheirar; em tudo via pecado, tentação do demônio. Perfume? Pecado mortal; para os servos de Deus basta o incenso. O padre confessor tranqüilizou Ricardo: casto perfume de velha tia, não continha pecado, mortal nem venial.
Esses Vossos olhos misericordiosos a nós volvei - como seriam os olhos, a face de tia Antonieta? Austera como a da mãe, rígida e devota?
Inquieta, melancólica, igual à da tia Elisa? Ou semelhante à do avô, dura carranca de caboclo? Certa feita, há vários anos, meninote ainda, mostraram-lhe de relance uma foto da tia numa revista do Rio - revista da qual Elisa se apoderou e ninguém mais viu. Ricardo guardou memória exclusivamente dos cabelos loiros, encaracolados novelos de ouro- como explicá-los se todos na família eram bem morenos? Soube então que as mulheres oxigenavam e até pintavam os cabelos, sobre o assunto discutiram a mãe e tia Elisa. Moda condenável na opinião de Perpétua: Deus designa a cor dos cabelos de cada um, ninguém tem direito a mudá-la. Elisa retrucara, tachando a irmã de atrasadona, rata de igreja. Dos olhos, da boca, Ricardo não se lembra; recorda somente os novelos de ouro puro. Agora, à luz das velas, ele os enxerga brancos de algodão, tantos anos se passaram- era menino, agora é um rapaz.
E depois deste desterro, mostrai- nos Jesus, bendito fruto de Vosso ventre, há quantos anos dura o desterro da tia? Quando Ricardo nasceu Tieta partira há muito e jamais ele ouvira da mãe, de tia Elisa, do avô e de sua segunda mulher, vó Tonha, a menor referência àquela outra parenta; jamais escutou nome ou apelido a recordá-la. Da tia de São Paulo, só veio saber depois da primeira carta e ainda hoje sabe tão pouco, além da riqueza, da bondade, da velhice.
Se a Virgem a salvar, pode ser que um dia ela apareça de visita, em pele e osso, anciã amorável, de tão velha quase avó. Ricardo não conheceu avó verdadeira, a materna falecida antes do casamento tardio de Perpétua com o Major, cujos pais já repousavam no Cemitério das Quintas, na Bahia, quando o aposentado militar surgiu em Agreste, por acaso, e de chofre se curou da asma, recuperou as forças, clima de sanatório.
Tia Antonieta preenche o vazio das avós, Senhora Sant'Ana, a matriarca, a protetora da família. Se ela sarar, se a Virgem lhe restituir a saúde, Ricardo, após cumprir a promessa, poderá lhe escrever outra carta, solicitando uma vara de pesca com molinete, fio de náilon e iscas artificiais, semelhante à do anúncio na revista Caça e Pesca, folheada no Correio com permissão de dona Carmosina. Implorando segredo à tia - Se a mãe soubesse o mundo viria abaixo. Em troca dos joelhos macerados, da semana inteira de orações, não era pedir muito; vara de pesca, molinete, fios e iscas e um segredo a mais entre os dois. Coisa boa, um segredo. Ricardo tem segredos em comum com alguns santos, com a Virgem e sobretudo com Santa Rita de Cássia, de quem é devoto.
Ó clemente ó piedosa ó doce sempre Virgem Maria rogai por ela e por nós para que sejamos dignos das promessas de Cristo. Fazei com que a tia se erga do leito ou do caixão ó clemente ó piedosa ó doce sempre Virgem Maria.
Na vela acesa a mando da mãe pela alma da irmã, o fogo da morte vacila e se apaga sozinho. Esbugalham-se os olhos de Ricardo no assombro do milagre. Só a chama da vida persiste na outra vela, poderosa é a santa mãe de Deus, amém.
onde dona Carmosina lê um artigo, resolve problema de palavras cruzadas e problemas referentes a situação de Tieta, dignos dos mais sagazes detetives dos romances policiais e onde se trava conhecimento com o comandante Dário de Queluz, surgindo ao final do capitulo o Barbozinha (Gregório Eustáquio de Matos Barbosa, de coração partido - muito bem feito! cadeia com eles e - exclama em voz alta dona Carmosina, no auge do entusiasmo. Finalmente erguera-se um juiz independente e digno, capaz de ditar sentença justa, mandando os canalhas para o xadrez: - Cambada de assassinos!
Entusiasmo e indignação sem espectadores, sozinha na reaparição no começo da tarde. Mas o comandante Dário, ao saber, vai nadar em alegria, ele, tão apaixonado quando se discute poluição. Esses tipos deviam estar todos trancafiados na cadeia, minha boa Carmosina, são assassinos da humanidade. O Comandante é um tanto quanto retórico, ama frases de efeito. Barroco, na qualificação poética de Barbozinha.
Retira a página, vai guardá-la para o Comandante. não importa venha o jornal endereçado ao Cel. Artur de Figueiredo - O velho coronel Artur da Tapitanga, assinante de O Estado de São Paulo desde priscas eras; dona Carmosina tirara a limpo: desde 1924. Durante decênios o Estado manteve o fazendeiro a par das novidades do mundo. Atualmente, só de mês em mês o destinatário manda buscar o monte de jornais a entulhar a sala. Já não os lê - quem lê com gosto e proveito é dona Carmosina- mas renova a assinatura no prazo exato, a condição de assinante do diário paulista é atributo de sua linhagem e dona Carmosina, a maior interessada, recorda-lhe a obrigação a tempo, com elogios à gazeta e às cabras do coronel Página a mais página a menos, caderno a mais caderno a menos, para o octogenário - Oitenta e seis comemorados a 18 de janeiro, como pode informar dona Carmosina - já não faz diferença. Pouco se lhe dá o que vai por esse mundo louco, de guerras e convulsões, de violência e ódio, de mentiras sensacionalistas: essa história do homem ir à lua montado num foguete é conto da carochinha para engambelar os trouxas. Está no jornal, na primeira página do Estado? Nem assim acredito, Carmosina, estou velho mas não estou broco. Apesar da cancela da Fazenda Tapitanga não distar sequer um quilômetro do começo da rua, raramente o Coronel comparece a uma, sessão da Câmara Municipal de Sant'Ana do Agreste, à qual preside conselheiro municipal, edil, vereador eleito e reeleito um sem- número de vezes, ex-intendente e ex-prefeito. Quando vem, não falha na visita à agente dos Correios:
- Carmosina, me conte o que você leu no meu jornal. Mas não me venha com mentiras... - ameaça-a com a bengala, ainda sabe rir.
Manda o capanga pôr os jornais na carroça, utiliza-os em serventias diversas: para fazer embrulhos, acender o fogo, limpar-se na latrina. As cabras andaram comendo edições inteiras e, se não engordaram, mal não lhes fizeram.
Cuidadosamente, dona Carmosina dobra a folha de maneira a ficar o artigo à vista, matéria importante, no alto da página, o título em tipos fortes:
A Itália condena à prisão os que poluem seu mar. O Comandante vai se regalar.
Também Barbozinha seinteressa pelo problema, lastimando os inevitáveis malefícios inerentes ao progresso, enquanto o comandante Dário é radical no julgamento e condenação dessa Ioucura rotulada de progresso envenenando a humanidade inteira, ameaçando a continuação da vida sobre a terra, minha boa Carmosina! Dramático, os braços abertos:
- Se não se puser um paradeiro nisso, em breve as crianças já nascerão com câncer! Veja o Japão...
Para fugir de causas e efeitos, para gozar dos verdadeiros prazeres da existência enquanto ainda há tempo e lugar, abandonara promissora carreira na Marinha de Guerra, pendurando a farda no armário do bangalô, reduzindo os trajes a shortes e camisetas de marujo, ao luxo vespertino do pijama quando na praia, e à calça e camisa esporte na cidade. Isso, sim, era viver. No clima bendito do Agreste, na beleza sem par de Mangue Seco. No paraíso.
- Boa lição! - repete ainda dona Carmosina antes de entregar-se às palavras cruzadas e aos logogrifos.
Grande, a sede de saber de dona Carmosina, múltiplos e ecléticos os temas a interessá-la, da política à ciência, dos problemas mais graves do nosso tempo ao disse que disse em torno da vida sexual dos ídolos das multidões, da ONU à OEA, da CIA a KGB, da NASA aos OVNI, da MPB ao FEBEAPÁ, ai o que ele sabe de siglas!
Na coorte de amigos e admiradores a freqüentar a Agência dos Correios e Telégrafos, enchendo com pro e discussão as horas mortas, tantas!, dona Carmosina encontra parceiros para cada campo do conhecimento: com Aminthas e Fidélio - fracote, Fidélio - discute música, compositores e intérpretes; com Ascânio, o turismo no mundo e na Bahia; com Elisa transa fofocas em torno de astros e estrelas de nosso cintilante céu artístico; com Barbozinha, vasto é o campo de diálogo e polêmica: da delicada ou agreste flor da poesia aos arcanos da filosofia espiritualista, sendo o vate espírita teórico e vidente e ela, incrédula, negando encarnação e reencarnação, ímpia, a rir de céu e inferno, vangloriando-se da condição de atéia. Atéia não, atoa, Carmosina, mulher atoa: glosa Aminthas, metido a humorista.
não menor a pauta de debates com o comandante Dário: os problemas atuais do homem e do mundo, todos eles, das explosões atômicas à explosão demográfica; da poluição, estendendo-se sobre Los Angeles e São Paulo, Tóquio e Rio de Janeiro, à guerra colonial portuguesa; as probabilidades da terceira grande guerra e as intenções secretas dos dirigentes das potências e superpotências - não esqueça a China, minha boa amiga -; o Oriente Médio, o destino de Israel, o petróleo árabe, os palestinos, e a análise dos romances lidos, policiais e de ficção científica, preferindo o Comandante os últimos, a levá-lo universo afora a longínquos planetas, preferindo ela os de detetive, sobretudo os clássicos, à maneira de Agatha Christie, a desafiar a argúcia do leitor na descoberta do criminoso. Gaba-se dona Carmosina de acertar sempre, de apontar o assassino antes que o faça Hercules Poirot.
Dos centros culturais de Agreste, a Agência dos Correios é de longe o mais importante. Quando de sua sempre lembrada visita à cidade, convidado pelo vate Barbozinha, ex-companheiro de boemia nas ruas, bares e castelos da capital, o conhecido cronista de A Tarde, Giovanni Guimarães, infalível à tarde na sala da agência para uma boa prosa, a batizara de Areópago e o nome pegou. Sucede com freqüência juntarem-se ali os três à mesma hora, dona Carmosina, o Poeta e o comandante Dário: o Areópago pega fogo, fagulhas de talento arrastam gente do bar e das lojas, apenas para ouvir. O árabe Chalita é habituê, não perde uma única palavra; não entende nada mas como admira!
Divertimento elevado e gratuito. Supimpa.
Só com Osnar não mantém dona Carmosina tema de conversa, desde rapazola Osnar não seinteressa por outras coisas nesse mundo de Deus além de cerveja, bilhar e mulheres. Vasto o círculo de mulheres a despertar a cupidez de Osnar, não sendo ele exigente ou dogmático. Infelizmente, nessa numerosa assembléia de desejadas (algumas faturadas) não se encontra dona Carmosina. Admirador de seu intelecto, Osnar despreza-lhe o físico, essa não me Ievanta o pau. Para dizer toda a verdade, dona Carmosina não conseguira ainda despertar a concupiscência de nenhum homem.
Sinônimo da concupiscência de sete letras- dona Carmosina morde o lápis, rebusca na memória, já sabe: lascívia. não, lascívia tem oito letras; de sete, vamos ver, o que pode ser? Luxúria, está na cara. Os olhos miúdos de dona Carmosina, cercados de cílios ruços, perdem-se na rua onde prossegue o movimento do sábado de feira, carroceiros buscando no acanhado comércio de contadas lojas as compras indispensáveis, gastando as moedas parcas.
Luxúria, palavra forte.
Quando Perpétua casou, dona Carmosina teve um alento de esperança.
Mas isso já é outra história, aproveitemos e façamos uma pausa, dividindo O capítulo, deixando o leitor respirar.
Enquanto o leitor respira, o autor se aproveita e abusa boa idéia, sim, meritória. capítulos longos cansam, tornam a narrativa pesada e enfadonha, conduzem ao desinteresse e ao sono. Uma pausa abre, inclusive, tempo e espaço para necessárias explicações, sobre detalhes que os personagens torcem, modificam ou simplesmente suprimem, ao sabor de interesse variados, confessáveis ou escusos, mas cujo conhecimento cabal é direito sagrado do leitor - para saber ele paga os preços atuais, inaíveis!
Carmosina é useira e vezeira em guardar segredos, em baralhar pistas, em impedir a circulação completa ou parcial de determinadas notícias, causando grave dano às xeretas do adro da igreja e à população de Agreste em geral pois quem não se mete com a vida alheia, não pergunta, não conta, não comenta? Se exceção existe, não conheço. Falar da vida alheia é a diversão principal do lugar, grosseria e mau caráter de uns, arte e sutileza de outros.
Intolerável grosseria de Bafo de Bode, rebotalho da sociedade, apodrecido por dentro e por fora. Quando do grande porre semanal, aquele que começa na noite do sábado, após a feira onde esmolou ao sol o dia todo, e prossegue pelo domingo, esse detrito malcheiroso desce as ruas aos trancos e barrancos, a enlamear a honra de distintas famílias, a proclamar maledicências, injúrias e infâmias, desgraçadamente quase sempre comprovadas:
- Cuidado com os chifres, Chico Sobrinho, estão crescendo demais.
Tua mulher, Ritinha, vive dando na beira do rio... não vou dizer a quem, não sou dedo- duro.
Nem ele, nem eu, e daí? Arte sutil na voz antiga de dona Milú, mãe de Carmosina, uma santa, quem duvida?
- Estão dizendo que Ritinha anda de namoro com seu Lindolfo, mas deve ser mentira, o povo gosta de falar. Ritinha paga por ser muito dada, às vezes demais... o gênio dela é esse, não tem culpa.
A população está cansada de saber que Ritinha e Lindolfo, tesoureiro da Prefeitura, se encontram nos esconsos do rio. O melhor é fazer como Chico Sobrinho, para palavras loucas ouvidos moucos, quem dá atenção a Bafo de Bode?
Voltemos, porém, a Carmosina e ao comandante Dário pois deles se trata, entre os dois existe uma trama. não, nada do que estão pensando! Como diz Osnar, apontando o exemplo do Comandante, não há criatura perfeita.
Pelas frestas das janelas semi-abertas, olhares lânguidos ou ardentes, conforme idade e fogo, acompanham-lhe o passo gingado de convés quando ele desfila em Agreste, vistoso, todo feito de músculos, corpo jovem, rosto maduro e vivido, cabeleira rebelde e grisalha; pode dar-se ao luxo de escolher, dá-se ao desperdício de ignorar a todas elas, sem abrir exceção sequer para Carol, a amásia de Modesto Pires, obra- prima de Deus e da fusão de raças.
Monógamo declarado, o Comandante; amoroso da esposa, dona Laura, e Carmosina é sua amiga fiel. Amiga fiel, aí o xpto da questão. Para proveito dos leitores, utilizo a pausa e tento decifrar o enigma.
Vou direto ao assunto: qual a patente do nosso personagem, quantas divisas ostenta na farda esquecida no fundo do armário? Ninguém sabe, a todos basta o título de Comandante e foi isso exatamente o que lhe disse dona Carmosina quando ele, honrado e modesto, quis proclamar a verdade. Ela, a responsável. Tanto fala quanto esconde, tudo depende.
Que Dário de Queluz, valoroso filho de Agreste, pertenceu à Marinha de Guerra, dando realce e lustre ao torrão natal, nada mais certo, sobram as provas; fulge uma delas no bangalô em cima da escrivaninha, ao lado dos trabalhos em coco feitos pelo Comandante - Medalha de ouro, recordando ato de bravura, reluz sob o vidro da redoma. Que entrou modestamente de marinheiro, rapazola emigrado em busca de trabalho, todos sabem. Que subiu, degrau a degrau, pelo esforço e pelo estudo, durante os vinte anos de vida militar, também é fato de conhecimento público. Mas subiu até onde?
Eis o buslis: quando, despida a túnica, retornou aos ares pátrios e puros, alguém logo o proclamou Almirante. Ele recusou o título e a bajulação:
- Não cheguei lá, quem sou eu? ao demais, Almirante é título que só existe em tempo de guerra.
Disseram- no, então, Comandante e se curiosidade houve em saber até onde chegara, não se manifestou, ele impunha respeito e era um atleta.
Comandante, título perfeito em qualquer caso, em qualquer posto.
Arte sutil, ávida alheia. Um dia, os dois a sós conversando na repartição, Carmosina perguntou, como por acaso:
- Comandante, me esclareça. Na Marinha de Guerra, os praças podem chegar ao posto de Capitão-de-Fragata no quadro de Oficial Auxiliar da Armada, não é certo?
Percebeu Dário a sutileza; a curiosidade a corroer o coração da amiga.
Sorriu, tinha um sorriso sem malícia de homem bom e direito, e respondeu:
- Não subi tanto, minha boa Carmosina. Cheguei apenas a...
Ela tapou-lhe a boca com a mão:
- Baixinho, que ninguém mais ouça...
- E por quê?
- Os outros pensam que sim, que chegou e ultrapassou, estão orgulhosos disso. Por que desiludi-los? Comandante, basta e sobra.
Apurou o ouvido para ouvir, ouviu e acabou-se. Comandante agora a comandar mar e vento nos cômoros de Mangue Seco, desnecessários se tomam quaisquer detalhes, dragonas e ordens de serviço. Carmosina sabe, é quanto basta, a confidência não passou dali, nem mesmo à velha Milú ela contou. Contar à mãe? Estão loucos? No dia seguinte, Agreste inteiro saberia.
Eis aí em pratos limpos o que desejei esclarecer, aproveitando a interrupção do capítulo e terminando por escrever mais um, perdoem. Qual o posto de fato alcançado pelo Comandante? Ah!, isso não sei dizer, somente Carmosina sabe e, egoísta, faz boca de siri, esconde a informação. Se algum dos senhores por acaso a obtiver, seria favor comunicar-me.
Continuação do capítulo interrompido quando Perpétua casou, dona Carmosina teve um alento de esperança. se perpétua, mais velha, mais feia- sim, mais feia pois simpatia também marca ponto em concurso de miss - com aquela cara de prisão de ventre crônica, sem graça, ressentida, encontrara quem a quisesse, quem lhe pedisse a mão em casamento e a levasse ao altar de véu e grinalda, figura ridícula!, cabia a Carmosina, mais moça, inteligente, culta, cultíssima!, risonha e cordial, ao demais cozinheira de mão cheia, o direito a sonhar, a não cair em desespero.
Ah!, Major Cupertino Batista existiu um só, milagres não se repetem.
Reformado por motivos de saúde, cinqüentão asmático e cardíaco, curto de entendimento, duro de cabeça, obtuso, um bobo-alegre, nem por tudo isso partido desprezível. Solteiro, tinha economias, reservas monetárias e físicas:
aopartir para o reino dos céus, deixara Perpétua com dois filhos e herdeira de três casas, além da pensão e do dinheiro a render juros. A herança, Carmosina dava de barato mas - suspira - durante seis anos e um mês, setenta e três meses, duas mil duzentas e vinte e uma noites, contando a do ano bissexto, a bruaca, a desinfeliz - a sortuda, a felizarda! - dormira em cama de casal com homem ao lado, sob as mesmas cobertas, marido válido até a última gota, pois Perpétua tivera aborto pouco antes de o Major bater continência e a festa terminar.
Esaeve luxúria letra a letra nos quadrados do jogo de palavras cruzadas, o pensamento voa de Perpétua para Elisa (a pobre, agoniada, esquecera as revistas); de Elisa para Antonieta.
Antonieta, essa sim, merecera a vida conjugal e a fortuna: alegre, divertida, bondosa, um encanto de criatura. Muito chegada à casa de Carmosina, colegas na escola primária; dona Milú dedicava-lhe particular estima e a defendia quando as más línguas vinham tosar na pele da moça, melhor dito nas carnes da rapariga. Moça falada, na boca das comadres:
- Aquela já perdeu os tampos há muito...
- Já foi chamada às ordens...
- Moça, aquela sujeitinha? Rapariga é o que ela é... dá para Deus e o mundo...
Dona Milú punha fim à conversa, dispersava o elenco:
- Se ela está dando, dá o que é dela e eu nunca soube que se deitasse com homem por dinheiro, é o corpo que pede. Que pede a ela e a todas, não é mesmo, Roberta? As outras não dão, trancam com sete chaves mas só a caixa da periquita. O resto não faz mal, não é isso, Gesilda? Do sovaco ao fiofó, tudo vasculhado.
Parecia mudar de assunto:
- Que apelido mais bonito os rapazes botaram nas tuas gêmeas, Francisca. não sabe? Pois lhe informo: mãos de Ouro e Prata, achei lindo...
- Dona Milú era uma parada!
Quando Antonieta, surrada e expulsa, partiu no caminhão, Carmosina viera se despedir, a única. Vá dizer adeus a sua amiga, a mãe ordenara.
Visíveis, as marcas da véspera, o bordão atingira-lhe o rosto, roxas equimoses nas pernas, Tieta não se queixou. Pode ser para meu bem, disse. Acertara.
Nos últimos onze anos e sete meses, raro o dia em que dona Carmosina não recorda Antonieta. Desde a chegada da primeira missiva, acompanhara, carta a carta, a correspondência trocada entre Sant'Ana do Agreste e a Caixa Postal 6211 da Capital de São Paulo. Está por dentro de tudo, sabe mais do que as próprias irmãs de Tieta, muito mais. Por conhecimento direto e por dedução.
Vira o cheque engordar ao passar do tempo, com a desvalorização do cruzeiro e as lamúrias das irmãs. Corrigira-na pratica redigira-as cartas de Elisa, fraca na gramática; lera as de Perpétua, as de Perpétua e as demais.
As irmãs, após a morte do Major, haviam dividido o dever e o prazer das respostas, como dividiam o conteúdo das encomendas postais, vestidos, blusas e saias, camisolas. Perpétua, quando lhe cabia escrever, vinha com o envelope fechado, tolice! Dona Carmosina não mereceria o ordenado e o privilégio do cargo se não fosse perita em descolar envelopes, ler as páginas num piscar de olhos e pôr tudo em ordem novamente. Sd lhe custava conter o desejo de emendar os erros de português.
Além da indefectível benção do velho Zé Esteves, Deus te abençoe e te aumente, minha filha, cada carta continha queixas da vida, louvores à querida mana e a curiosidade das irmãs e do cunhado. Antonieta respondia com bilhetes curtos - a letra graúda, o papel caro e chique com um A gótico em alto- relevo - que Elisa e dona Carmosina devoravam juntas, ali mesmo na repartição.
Dona Carmosina lera também a carta de Ricardo, a de Ricardo e outras.
Aliás, fora a ingênua epistola do rapaz, pedindo à tia bênção, bola de futebol
e discrição, que... nada, isso não interessa a ninguém - dona Carmosina afasta a lembrança, retorna às palavras cruzadas: fruta brasileira de origem asiática, cinco letras. Fácil demais.
Essa longa correspondência, agora de repente encerrada sem explicação válida, a não ser doença grave ou morte de Tieta, revestia-se de aspectos dignos de atenção e estudo, a começar pela falta de endereço completo da destinatária de São Paulo, rua, número da porta e do apartamento, se vivesse em edifício; apenas uma caixa postal, fria e anônima. Apesar de Agreste não passar de um ovo onde todos se conheciam, tanto Perpétua quanto Elisa apressaram-se em enviar endereços completos. Perpétua Esteves Batista, Praça Desembargador Oliva, número 19; Elisa Esteves Simas, Rua do Rosado, 28; inclusive o endereço do pai: José Esteves Filho, Beco da Matança, s.n.
E o marido? Sem idade, sem rosto, impalpável. Prenome, comenda, vagas indústrias, os cabelos brancos na foto da revista. Dona Carmosina dedicou grande parte de seu tempo à análise e ao esclarecimento da apaixonante adivinha. Reunindo dados, pistas, conjecturando.
O Major, ainda vivo, encarregara-se da resposta inicial mas não chegou ao fim sem pedir auxílio a dona Carmosina. Ela pôs ordem nas notícias, dando ênfase aos fatos, quando necessário. Carta longa, relatório abarcando cerca de quinze anos de acontecimentos.
Notícias de toda a família, detalhadas. Do pai, Zé Esteves, beirando os oitenta mas sempre rijo, e de Tonha, a segunda esposa (mais moça do que Perpétua, da idade de Tieta, mas acabada na pobreza e no desleixo, simples apêndice do Velho). Vivia o casal da caridade de filhas e genros, nada possuindo de seu, nem bens nem rendas. Zé Esteves, trapalhão a julgar-se sabido, na ânsia de enganar os outros pusera fora terras, rebanho de cabras, plantações de mandioca, a casa própria, tudo. Abençoava a filha e a perdoava, pedia-lhe uma esmola. Dona Carmosina modificou a redação, a forma e o conteúdo, em lugar de Zé Esteves perdoar, pediu perdão à filha, falou da velhice e da pobreza, insinuando ajuda; um pai pode pedir perdão mas não pode pedir esmola aos filhos. Trecho tão comovente, na bela letra do Major, ia tocar o coração de Tieta, a própria dona Carmosina ficara de olhos úmidos.
Sempre tivera jeito para escrever, jeito e vontade. Mas, cadê coragem?
Relato do casamento de Perpétua, nome e título do marido, Major Cupertino Batista, oficial reformado da Policia Militar do Estado, seu cunhado às ordens. Deus abençoara o matrimônio, dera-lhe s dois filhos, Ricardo, de cinco anos, Cupertino, dito Peto, de dois, e agora novamente fecundara o ventre de Perpétua, grávida daquele que seria o terceiro se houvesse nascido. O Major, bom de espoleta, não negava fogo, constatara dona Carmosina, mas não tocou nesse trecho, não queria histórias com Perpétua. Encarregou-se, sim, de descrever o casamento de Elisa, a noiva mais linda já vista em Agreste, com Astério Simas, filho e herdeiro de seu Ananias, aquele da loja de fazendas da Rua da Frente (Rua Coronel Artur de Figueiredo), só que a loja nem parecia a mesma. Na longínqua e decadente cidade de Sant'Ana do Agreste o comércio reduzira-se à metade naqueles quinze anos. Também a população diminuíra, composta por uma maioria de velhos, pois o clima continuava admirável, prolongando a vida dos que ali se deixavam ficar apesar da pobreza, da falta de recursos e de futuro. O povo só não morria de fome porque o rio e o mangue forneciam com fartura peixes, guaiamus, caranguejos, pitus incomparáveis, e sobravam frutas o ano inteiro:
bananas, mangas, jacas, mangabas, pinhas, abacaxis, goiabas e araçás, sapotis e melancias e o coqueiral sem fim e sem dono.
Além das notícias, perguntas: ela, Antonieta, que fazia? Qual o endereço completo? Mandasse contar tudo, tintim por tintim.
A resposta não tardou sequer um mês. Antonieta enviou um cheque em nome do Major, pedindo-lhe o favor de descontá-lo e entregar o dinheiro a Zé Esteves, destinava-se a ajudar o pai e a madrasta nas despesas. O pai podia contar com aquele auxilio mensalmente. O valor do cheque despertou atenção e cobiça: dinheiro grosso, bem mais do que o casal necessitava para pagar o casebre onde habitava, mesmo pondo em dia os aluguéis atrasados, para a comida e para a cachaça medida mas indispensável à dieta de Zé Esteves. Perpétua insinuara divisão da ajuda mas um olhar do Velho, o bastão erguido em arma de guerra, foi suficiente para encerrar o assunto. Para evitar a ida do Major a Alagoinhas, onde fica a mais próxima agência do banco, seu Modesto Pires, dono do curtume, fez o favor de descontar o cheque. Esse primeiro, e todos os demais.
Quanto às perguntas, nem sombra de resposta, resumindo-se Antonieta a informar que, graças a D eus, gozava saúde, casara-se e era feliz apesar de não ter filhos. Sobre o marido, nome, profissão, idade, nenhuma palavra. Endereço? Nenhum melhor, mais seguro, do que a Caixa- Postal 6211, toda correspondência para ali dirigida chegaria às suas mãos.
No transcurso de mais de um decênio, as relações epistolares entre Tieta e a família mantiveram-se absolutamente regulares: uma carta por mês de cada lado, a de São Paulo, poucas linhas, papel e envelope de cor, perfumados.
Variando a cor de ano para ano, o perfume mudara uma única vez. Mais suave e discreto o último, estrangeiro, com certeza.
A quantia do cheque crescendo, não somente por causa da inflação.
Quando Elisa teve menino e dona Carmosina acentuou as dificuldades de Astério, Tieta somou à ajuda ao pai certa quantia mensal para o leite do menino e sua futura educação. Fazendo o mesmo quando Perpétua lhe escreveu dramática e, por uma vez na vida, sincera, chorando a morte do marido perfeito, a deixá-la viúva com dois filhos nos braços, necessitada. Boca de siri sobre as casas de aluguel, as economias no banco, mas Tieta já se dera conta da diferença de sorte das irmãs pois mandava para uma e outra importância igual: se Perpétua tinha dois filhos, bem maiores eram as dificuldades de Elisa. Começaram a chegar os pacotes de roupa usada, os presentes de Natal e de aniversário, mas dela e do marido pouco mais souberam.
Muito pouco, quase nada, mas o suficiente para dona Carmosina juntar as peças e desatar o nó.
Há uns nove anos - nove anos e nove meses, exatamente - num número de carnaval da revista Manchete, dona Carmosina reconheceu Antonieta, apesar dos cabelos oxigenados, numa fotografia de foliões em plena animação no baile do Teatro Excelsior, na Capital paulista. Ali estava ela, bem no centro da foto, feliz, aconchegada e amorosa nos braços de senhor de certa idade, a se acreditar nos cabelos brancos. Infelizmente, do cavalheiro via-se apenas as costas, pois dançavam; ela, sim, estava de frente, a boca aberta em riso, o rosto franco e brejeiro, uma gentil senhora, não mais a jovem estabanada cuja partida na boléia de um caminhão Carmosina testemunhara.
Crescera em formosura, opulenta de formas. Jamais fora magricela, sua beleza tinha onde pegar-se.
Dona Carmosina convocou a família inteira, foi uma sensação. Perpétua balançou a cabeça, concordando. Antonieta, não havia dúvida; engordara e oxigenara os cabelos. Também o velho Zé Esteves reconheceu a filha:
- Tá pimpona, de cabelo pintado, na moda. Deus te acrescente, minha filha! - olhava as outras duas, em desafio. Queria ver quem se atreveria a criticar. Na sua vista, ninguém.
Elisa ficou feito doida, não tinha idéia de como fosse a irmã, de agora em diante podia imaginá-la melhor, tão linda na fantasia de odalisca. A notícia da descoberta da revista, transmitida em carta de Elisa, trouxe a primeira pista pois Tieta, na resposta, revelou o prenome do marido: quem a tinha nos braços, no ritmo do samba camavalesco, era Felipe, seu bem-amado esposo.
Felipe de que, não disse.
Não muito depois, em carta datada de Curitiba, fez referência aos negócios de Felipe, industrial com interesses no Paraná. De outra feita, desculpando-se, atribuiu a demora do envio do cheque - uma semana de atraso -, à enfermidade do Comendador a cuja cabeceira a dedicada esposa dera tempo integral. Felipe, industrial e comendador.
Para Perpétua bastava; aliás bastava-lhe o cheque, sendo o resto supérfluo. Elisa, ao contrário, desejava saber mais, muito mais. Durante horas inteiras comentava com Carmosina as reservas da irmã: tem vergonha de nós, medo que a gente abuse da bondade dela. Esquiva-se, no fundo com razão.
Com razão, dona Carmosina é quem mais sabe. Tieta saíra corrida - aqui não é casa de puta! -, moída de pancada, por denúncia da irmã mais velha.
Boa demais, isso é o que ela é, pois esquecera vexame, delação, a surra, o cajado de marmelo para vir em socorro da família. Boa demais, um anjo, concordava dona Carmosina. Quanto ao motivo das reservas e das reticências a agente dos Correios e Telégrafos silenciava: sobre esse assunto traçara, em segredo, teoria própria.
Reuniu dados, indícios, pistas; mistério digno de Hercules Poirot. Dona Carmosina o resolveu em definitivo quando começaram a chegar as encomendas postais com os elegantes vestidos, as saias e blusas finas, de medidas diversas. Antonieta, em breve frase, explicara a razão dos diferentes talhes: - estou mandando uns vestidos quase novos, meus e de minhas enteadas.
Enteadas, notem bem, filhas do comendador Felipe mas não dela, que não tinha filhos. Claro como a luz do dia, dona Carmosina Sherlock Holmes.
Quem, em Agreste, a iguala, suplanta em inteligência?
Dissolução do vínculo conjugal com separação de corpos e bens, oito letras: divórcio.
Divórcio ou desquite, no Brasil não há divórcio, eta país mais atrasado!
E eis a explicação certa e correta, não há outra.
E aqui façamos nova pausa, um pouco de suspense, próprio dos folhetins. Voltaremos após os comerciais, como dizem os locutores quando, no melhor da intriga, no momento mais empolgante, interrompem as novelas radiofônicas para anunciar sabão em pó e marcas de cigarro, deixando Elisa trêmula e vibrante.
Outra vez o chato, na hora do descanso um rápido parêntesis - não me demoro - para revelar fatos condenáveis, iluminar com o facho da verdade detalhes obscuros, desmascarando mais uma vez a senhorita Carmosina luizer da consolação.
Não creiam que a persiga, que não lhe tenha estima. ao contrário, reconheço-lhe qualidades e louvo os motivos capazes de levá-la a violar a lei dos homens e a lei de Deus, quando generosos ou nobres. Quanto a persegui-la, quem ousaria, em Agreste? Nem o coronel Artur da Tapitanga, nem Ascânio Trindade, tão cumpridor da lei. Com Ascânio ela redige cartas aos jornais da capital, petições ao Governo do Estado, reclamando ajuda para Agreste. Inúteis, cartas e petições.
Há mais de quinze anos - dos vinte e três de sua nomeação para os Correios e Telégrafos - funciona o ilegal esquema estabelecido por ela e por Canuto Tavares, o outro funcionário da Agência, proprietário de oficina de consertos em Esplanada, onde ganha bons cobres, habilidoso como ele só.
Permanecesse em Agreste, não progrediria, vegetando a vida inteira, limitado ao magro ordenado de telegrafista em agência de última classe; decidiu abandonar o emprego, mudar-se de vez, levando as ferramentas e a ambição.
Ao saber da decisão do colega, Carmosina propôs-lhe barganha capaz de beneficiar os dois: Canuto iria tranqüilo cuidar da oficina em Esplanada, deixando exclusivamente por conta dela o funcionamento da Agência dos Correios e Telégrafos de Sant'Ana do Agreste, afinal não era trabalho de matar ninguém; em troca, ele lhe daria metade do ordenado. Para Canuto, disposto a demitir-se, a proposta caiu como sopa no mel. Para Carmosina, nem se fala: aumentando-lhe a renda necessária ao sustento da casa - para o qual dona Milú já não podia concorrer devido à idade: parteira quase aposentada, ainda pegava menino, mas de raro em raro - deixava-a senhora única e absoluta de cartas, telegramas, encomendas, revistas e jornais, da vida da cidade e do mundo. Funciona o arranjo há mais de quinze anos - ela saberia dizer exatamente quantos, anos e meses - e em nenhum momento passou pela cabeça de alguém denunciar o escandaloso envio mensal do livro de ponto da repartição a Esplanada para recolher a assinatura de Canuto, levado em mão própria por Jairo. Quem ousaria?
Nela, o que me desgosta é a parcialidade. Queria ver como agiria Carmosina se um dos filhos de Perpétua morresse e a mãe quisesse esconder o fato de Antonieta para conservar a ajuda pontual e íntegra. Se teria idêntico comportamento ao que teve quando Elisa entrou na Agência em desespero devido à morte de Toninho. Dona Carmosina a consolara, o inocente deixara de padecer, ruim de saúde desde o nascimento. Dona Milú, ao retirá-lo do ventre de Elisa, se assustara, parecia um feto em formação, verdadeiro milagre ter vivido tanto tempo. não adiantaram médico e remédio, pagos com as remessas de Tieta, a ida a Esplanada para consultar doutor Joelson, especialista em crianças. O pediatra balançara a cabeça: nem adianta receitar. O pobrezinho descansou e vocês também, quantas noites sem dormir? Mas nem assim Elisa se acalma.
Além de perder Toninho - por mais enfermo e raquítico, era filho e consolo-, perdia a ajuda da irmã, o dinheiro mensal destinado ao leite, aos remédios, aos médicos, à futura educação do sobrinho, e não a cosméticos, revistas, sessões semanais de cinema, pilhas para rádio. Com Toninho partiam para toda a eternidade essas regalias compradas com as sobras da caridade de Tieta. Que fazer, me diga, Carmosina?
Os olhos miúdos, apertados, fitaram Elisa - Carmosina a vira nascer.
Dona Milú, emérita a parteira de menino, chamada às pressas no meio da noite para atender Tonha nas dores do parto, a soprar garrafa vazia a mando
de Zé Esteves, levara a filha de ajudante. Carmosina e Tieta ferveram água, auxiliaram e assistiram a deliverança. Perpétua, pudica, trancara-se a rezar.
Cada qual ajuda à sua maneira.
Meninota, no caminho da escola, Elisa vinha pedir a benção à sua mãe-de-umbigo, dona Milú; regalava-se com queimados feitos de goiaba e coco, uma gostosura. Carmosina foi quem primeiro recordou a Elisa a existência de Tieta, cujo nome a família jamais pronunciava. Tema escandaloso, mas Carmosina arranjava maneira de lembrar a amiga. ao contar um caso, referia-lhe o apelido e a boniteza: Tieta, tua irmã, estava comigo, bonita de dar gosto.
Também Elisa crescera bonita de dar gosto, casara, parira; Carmosina a vira nascer. Elegante no vestido enviado por Antonieta, desesperada, nem sequer filho doente para cuidar, que fazer? Desditosa, era o adjetivo certo. Carmosina aproxima-se, murmura:
- Não mande contar nada...
- Hein?
- Faça como se Toninho não tivesse morrido...
- E se Perpétua fuxicar? Você conhece ela, toda moralista: não tolera mentiras, vive dizendo.
- Se ela ameaçar, você ameaça também: quem tem mais podres a esconder? Ou você pensa que ela fala a Tieta das casas, dos aluguéis, da herança do Major? Diz que deposita na Caixa o dinheiro que Tieta manda para as despesas dos meninos porque não lhe faz falta? Diz, uma ova.
Comprove-se a falta de moral de Carmosina a aconselhar mentira e chantagem à amiga em beco sem saída. Falta de honradez também: a par do conteúdo das cartas de Perpétua por abuso de poder não lhe cabe o direito de utilizar tal conhecimento. Mas Carmosina não liga importância aos conceitos da moral, às regras da honradez. não somente aconselha, dirige a intriga:
- Deixe Perpétua comigo. Eu mesma falo com ela.
Perpétua ergueu os olhos para os céus a pedir ao Senhor perdão do pecado, descerrou os lábios:
- Por mim não vai saber. Se Antonieta cortar o dinheiro que lhe dá, no fim quem vai ter de agüentar com ela e o marido sou eu.
Motivo justo, correto, Perpétua é osso duro de roer, não se deixa chantagear. Carmosina ri de leve, um riso de criança, tão inocente:
- Por isso ou pelo resto, o importante é calar o bico.
Mais um detalhe e vou-me embora. Lembram-se da carta de Ricardo, pedindo bola de futebol, recomendando segredo à tia? ao recordá-la, Carmosina por pouco deixa escapar a revelação: também ela escrevera a Antonieta, rememorando os dias distantes da adolescência, a antiga amizade, enviando lembranças de dona Milú que não a esquece. Além de um pedido: podia Antonieta comprar em São Paulo e lhe remeter, dizendo quanto custara, um bom, o melhor Dicionário de Rimas à venda nas livrarias? não mandava comprar em Aracaju ou na Bahia, para evitar mexericos. não tardou a receber o livro, com dedicatória: Para a querida amiga Carmô, pálida lembrança da amiga Tieta.
Madrugada adentro, à luz do candeeiro, na calada da noite, Carmosina escreve versos, conta sílabas, rima ressonar com Osnar, pejo com desejo.
Agora que os senhores sabem, eu os deixo novamente na Agência dos Correios e Telégrafos, ou melhor, no Areópago. Até breve.
Fim do capitulo duas vezes interrompido. ufa tão simples a adivinha, levara longo tempo a resolve-la pela falta de dados, a demora em reunir aquele mínimo de informações.
Desquite, uma das maiores provas de atraso do país, do subdesenvolvimento; indignada, dona Carmosina tem-se empenhado em discussões homéricas com o padre Mariano, com a professora Carlota Alves, com o doutor Caio Vilas Boas - vejam só: médico formado, com diploma de faculdade e tão retrógrado! Uma pessoa amarrada à outra ávida toda, mesmo depois de legalmente separada - corpos e bens -, sem poder casar de novo!
Dona Carmosina lera uma estatística sobre o número de casais em estado de concubinato - palavrão horrível! - no Brasil. Milhões. Vivendo como casados, aceitos, recebidos na sociedade, o senhor e a senhora fulano de tal, mas sem os direitos da lei. Esposa, não, concubina. Dona Carmosina encontra a solução, tão simples. Com um mínimo de pistas e o poder de dedução, chega à resposta da adivinha. Antonieta vive com o ricaço como casada mas sem o ser realmente. Admitida pela família, inclusive pelas filhas dele – referira-se mais de uma vez às enteadas e às sobrinhas do Comendador -, mas impossibilitada de legitimar a união por ser ele desquitado. Conhecedora dos preconceitos de Agreste, o pai a esperá-la na escuridão, ao lado da janela aberta, de cajado em punho, a surra acordando a rua inteira, Tieta se fecha em copas, envolve marido e casamento em mistério e silêncio. Faz bem.
Certa ocasião, apareceu um fiscal de rendas em Agreste, acompanhado da mulher, senhora distinta, agradável, educada por demais, mãe de um casal de gêmeos. De começo muito bem recebidos, até que a senhora contou ingenuamente serem desquitados ela e o marido, vivendo juntos e felizes há mais de dez anos. As portas se fecharam, as caras também. Tiveram de ir embora, em Agreste casamento tem de ser com juiz e padre, senão não vale.
Faz muito bem Antonieta em reservar-se, em manter sua vida conjugal distante dos linguarudos da cidade, a começar de Perpétua. Dona Carmosina gostaria de ver a tromba de Perpétua, se um dia viesse a saber Iá engolir a língua.
Para dona Carmosina, se o casal vive bem é o que importa, sendo de somenos padre e juiz, véu e grinalda. Ela própria desistiu há muito de qualquer exigência: marido ou seja lá o que seja, solteiro, viúvo, desquitado, casado com mulher e filhos, desde que varão de olhos postos nela e disposto a ir em frente, dona Carmosina estará de acordo. Em colchão de plumas ou na beira do rio, nos matos. Se lhe fosse dado escolher, Osnar seria o felizardo.
Na falta, servirá outro qualquer. Infelizmente, nem Osnar nem outro qualquer.
Esquece, porém, as decepções de amor e os problemas relacionados com a demora da carta de Antonieta, ao enxergar, vindo da feira, o Comandante.
Levanta-se, chega à porta, acena com o jornal. Quando ele se aproxima, ela vibra:
- Guardei para você ler. Vai lhe interessar.
O comandante Dário toma da página, dona Carmosina indica o artigo.
Começa a ler para si mas o assunto sem dúvida o empolga, eleva a voz:. .. as transformações políticas que marcaram a Europa ultimamente fizeram passar quase que desapercebido um importante acontecimento para os defensores do meio ambiente em todo o mundo: a condenação à prisão do presidente e quatro diretores da maior indústria química italiana, a Sociedade Montedison, acusada de poluir as águas do mar Mediterrâneo...
Abre-se largo sorriso no rosto do Comandante:
- Esse juiz é dos meus! Italiano topetudo! - prossegue na leitura:. .. o objeto do debate: a fábrica de dióxido de titânio de Scarlino, inaugurada com entusiasmo pelos pobres moradores desta província toscana e constantemente marcada por greves e interrupções do trabalho de seus 800 empregados...
Durante a leitura, chega o vate Barbozinha, fica a ouvir. O Comandante faz questão de começar de novo para o amigo não perder nenhum pormenor:
na Itália aparecera por fim um juiz macho!
- Ouça com atenção este pedaço: Um dos defensores dos acusados, o advogado Garaventa, utilizou este argumento: a diretoria da indústria sempre agiu com todas as autorizações administrativas necessárias. Qual será, no caso de uma condenação, a opinião dos cidadãos sobre a administraÇão pública que concedeu as permissões - Bem argumentado! - atalha Barbozinha - os homens estavam dentro da lei, agindo de acordo com as autoridades...
- Dentro da lei, coisíssima alguma! As autoridades é que são salafrárias, em conluio com os monstros ávidos de dinheiro. Ouça o resto: O argumento, entretanto, não intimidou o juiz Piglietta, pertencente a uma nova gerajão de jovens magistrados que não se detém ante os poderosos. Bravos, juiz!
- Mas se os homens estavam agindo de acordo com a lei...
- Que lei? Lei foi a que o juiz aplicou, escute e não interrompa, a gente discute depois, se você quiser: Ele se baseou numa lei italiana de 14 de julho de 1965... - o próprio Comandante interrompeu para comentar: - Bem recente, hein! Por fim, começam a aprovar as leis que se fazem necessárias...
- Retorna a leitura: -. .. raramente invocada, que prevê penalidades para todos os que lançam ao mar substâncias estranhas àquelas que fazem parte da composição normal das águas naturais, que constituam perigo para os peixes e que provoquem a alteração química ou física do meio aquático.
Prosseguiu a leitura até o fim, dona Carmosina ouvindo com renovado entusiasmo, Barbozinha distraidamente: Com seu veredicto, o juiz Piglietta pretendeu advertir todos aqueles que tomam o mar por uma lata de Iixo, ameaçando de morte o Mediterrâneo.
- Juiz porreta! Desses estamos precisando no mundo todo, a começar por São Paulo! Seu Barbozinha, nós não nos damos conta do privilégio que é viver nesse pedaço de paraíso, criado por Deus e felizmente esquecido pelos homens! - volta-se para dona Carmosina: - Posso guardar, Carmosina?
- Tirei a página para Ire dar. ..
Enquanto o Comandante dobra a folha de jornal, Barbozinha interroga dona Carmosina:
- Que houve com Tieta? Ouvi dizer que desencarnou...
A pergunta recorda-lhe as revistas esquecidas por Elisa, dona Carmosina vai buscá-las, coloca-as ao lado da bolsa:
- Tomara que não, mas tudo indica que sim.
- Quem? - quer saber o Comandante.
- Antonieta, Tieta, sabe quem é, não?...
- É claro que sim... sucedeu-lhe alguma coisa?
- Pelo jeito, morreu. não há informação, ainda.
- Vai ver, de câncer, na poluição de São Paulo. Só os milhares de automóveis a vomitar gases...
Despede-se, dona Laura o espera:
- Obrigado pelo artigo, Carmosina. Esse juiz lavou-me a alma.
Carmosina prepara-se para fechar a Agência, ainda deve passar em casa de Elisa antes do jantar, a pobre está agoniada. Barbozinha, cabeça baixa, distante, concentrado, enxerga no horizonte algo invisível para dona Carmosina. Barbozinha é vidente.
Ninguém sabe outro segredo jamais revelado, esse, nem à agente dos Correios ele o confiou - ter sido Tieta a musa inspiradora dos mais belos versos dos dois livros publicados e dos inéditos, cinco volumes inéditos, do poeta De Matos Barbosa. Antonieta Esteves, paixão devoradora, fatal.
Desencarnada, num círculo astral estrela candente. Escreverá um derradeiro poema, a morte não existe, ó bem amada, o corpo é reles envoltório, e de novo te encontrarei e serás finalmente minha pois te desejo desde há cinco mil anos quando, escravo, te reconheci princesa Maia e o amor custou-me a vida; quis te libertar de um monastério na Idade Média e fui atirado ao calabouço, amarrado de correntes, preso às rochas: segui tuas pegadas nos rios do Indostão e meu corpo apodrecido boiou nas águas; te reencontrei um dia, pastora de cabras, saltando sobre as pedras.
Das revistas de fotonovelas e das provas de amizade:
Capítulo reconfortante, prepara tudo da grande discussão familiar - você esqueceu de trazer as revistas. - dona Carmosina as deposita em cima da mesa, puxa uma cadeira.
A brisa do entardecer e as cores do crepúsculo envolvem Sant'Ana do Agreste. Barbozinha costuma parodiar os versos do poeta português: Que é dos pintores desse meu país divino que não vêm pintar? Ele, De Matos Barbosa, cumpre seu dever; mais de cinqüenta poemas e sonetos dedicou à paisagem de Agreste, ao rio Real correndo para o mar, às dunas da praia de Mangue Seco, onde, em distantes férias burocráticas, declamou para Tieta ardentes versos levados pelo vento. Barbozinha deixou dona Carmosina na porta da casa, não quis entrar. Coberto de dor, mastigando um poema, dirigiu-se ao Bar dos Açores.
Elisa não sente o frescor do fim da tarde, não enxerga as nuanças de amarelo e roxo, de vermelho e azul a queimar o firmamento, quando o sol, levado pelas águas do rio, vai se perder no mar, na distante linha dos tubarões, e a lua nasce por detrás das dunas. Tempo de lua cheia. Elisa, desfeita, os olhos inchados de chorar, dona Carmosina seimpressiona. Golpe terrível, não há dúvida, para ela e Astério, como equilibrar o orçamento sem a ajuda da irmã?
Vão terminar nas minhas costas, adivinhara Perpétua, por ocasião de desespero anterior.
Perdida, nem sequer folheia as revistas, ela sempre ávida de saber de amores feitos e desfeitos, casamentos e desquites, brigas, festas, a vida brilhante dos astros de cinema, rádio, teatro, televisão. Revistas, Perpétua não as pagará, nem uma só. Porcarias! Indivíduos sem temor a Deus, mulheres mostrando as vergonhas, uma indecência essas revistas. Em minha casa, não entram. Se eu fosse Astério... Felizmente não era, assim Elisa está a par de todas as fofocas e delira com as fotonovelas.
O conhecimento de Elisa reduz-se aos artistas brasileiros; uma especialista, pode-se dizer. não possui a visão universal de dona Carmosina, cuja erudição nesses apaixonantes assuntos não se limita às fronteiras pátrias. não há minúcia que ela desconheça sobre os Beatles, antes, durante e depois da formação e dissolução do conjunto. Erudição, conhecimento, curiosidade, pelo simples prazer intelectual de saber e dar quinaus em Aminthas, tarado pelos Beatles e por todos os conjuntos de rock, desvairado pelo som moderno.
Aminthas possui eletrola e gravador, gasta em discos e cassetes o que ganha e o que não ganha.
Dona Carmosina, coração romântico, em matéria de música prefere mesmo Casa de Caboclo e Luar do Sertão; isso, sim, é música com melodia e sentimento, e não essa barulheira sem pé nem cabeça dos cabeludos. Provoca a indignação de Aminthas, desmontando seus ídolos: essa tal de Yoko é horrível, e ainda tira retrato nua. Espie: a cara e a bunda são iguais.
- Vou buscar o dinheiro parapagar... - neutra, a voz de Elisa, os olhos ainda úmidos.
Passou a tarde chorando, constata dona Carmosina:
- Deixe para depois.
- Para essas, ainda tenho...
Os olhos buscam a amiga do peito, companheira de longas conversas sobre galas e estrelas do rádio e da TV. Elisa só assistiu televisão durante os três dias passados na Bahia, quando Astério foi consultar o médico, tirar radiografias; felizmente nada grave, apenas o susto a fazê-los despender aquele dinheirão. No modesto hotel próximo à Rodoviária, o luxo era o aparelho de televisão na saleta de frente, franqueado aos hóspedes. Elisa não desgrudou do vídeo, maravilha das maravilhas. Agora, nem mais as revistas.
Dos olhos saltam as lágrimas, as palavras são soluços:
- Se for verdade, para o mês não posso mais comprar. Tire meu nome da lista.
- De todas cinco? - Dona Carmosina sabe a resposta mas pergunta para ter o que dizer. Como poderá Elisa viver sem as revistas de fotonovela?
- De todas...
Dona Carmosina ergue-se, magnífica, amizade se prova nessas horas:
- De todas cinco, não! Duas eu lhe garanto, pago da minha comissão.
Sem nenhuma, você não fica.
Elisa se comove com o gesto mas a realidade seimpõe:
- Obrigada, Carmosina, você é boa demais. Mas, nem eu aceito, nem você é rica para botar dinheiro fora...
- Tudo não passa de conjecturas. É capaz de Tieta estar mais viva do que nós duas... - Dona Carmosina, aliviada, substitui por alento, por esperança, a precipitada promessa de revistas semanais.
- É o que eu digo a todo mundo, que ela está de passeio a bordo de um navio, como já sucedeu...
- Cruzeiros marítimos...- volta a esclarecer dona Carmosina.
...mas digo sem convicção, já me convenci que ela morreu.
- O pior é que a notícia está correndo na rua, é só no que se fala.
Barbozinha ficou desolado, o pobre. Teve um namoro com Tieta pouco antes dela ir embora. Ele pensa que eu não sei. ..
- Se u Barbozinha? Acabado daquele jeito. ..
- Faz quase trinta anos... era um rapagão, bem mais velho que ela, é verdade, e franzino. Franzino sempre foi. .. Tieta não gostava de mocinhos jovens... - Suspira, como passa o tempo! - Você não deve perder a esperança. Onde está a prova de que ela morreu? Me mostre, se puder. Agora, você indo. - Fica em dúvida, a pergunta a coçar-lhe a boca: - Você vai ao cinema? Se quiser, passo para lhe buscar.
- Hoje, não. Perpétua vai vir para discutir com Astério e comigo, ela inventou umas histórias de herança. .. mas não é por isso que não vou... não vou, porque hoje não tenho vontade, sabe? Nem ia ver o filme direito.
- Entendo... herança, que conversa é essa?
Elisa toma-lhe a mão, súplice:
- Se você deixasse o cinema para amanhã e voltasse, para mim ia ser tão bom! Acho que pra nós todos, até para Perpétua. Você entende dessas coisas...
- Pois eu volto, fique descansada. Engulo a comida, determino umas regras em casa, daqui a pouco estou aqui de novo.
Ora, se vinha! não há filme que a faça perder aquele prato, que invenção era essa, de herança? Perpétua não é tola. Ademais, o dever de amiga mandava-a estar ao lado de Elisa nessa hora de provação. As duas coisas: o dever e o prazer, há tão pouca diversão em Agreste, mesmo para a agente dos Correios.
Pena fosse sábado, dia de cinema. O filme vinha de Esplanada, pela marinete, sendo exibido no sábado à noite e duas vezes no domingo, a primeira às três da tarde, em matinê. A sessão de sábado reúne a melhor gente, os graúdos da cidade, vários com lugares marcados pelo hábito, naquelas cadeiras ninguém senta: as cadeiras de Modesto Pires e da esposa, dona Aída, e duas filas atrás, a de Carol. A matinê, repleta de meninos a gritar, insuportável: a cada tiro ou soco do caubói uma algazarra, a cada beijo do mocinho o mundo vem abaixo. Na soarê de domingo, repete-se a barulheira.
Derradeira exibição do filme, na bilheteria o árabe Chalita mercadeja lugares ao sabor da aceitação da película. Nas de pouco êxito, vende a qualquer preço.
Nos grandes sucessos, nem de pé é mais barato. A amizade exige sacrifícios:
amanhã, em companhia de dona Milú, dona Carmosina enfrentará a sessão noturna dos domingos, o berreiro, a fumaceira.
Cabeça baixa, ar doentio, Astério chega diretamente da loja, nos sábados só após o banho e o jantar vai às carambolas. Hoje terá Perpétua em lugar de Aminthas, Seixas e Fidélio, em lugar de Osnar, perde na troca. Dona Carmosina o considera, com lástima: um trapo.
- Boa noite, Astério. Vou em casa mas volto para a conversa.
- A conversa?...
- Sobre Tieta...
- Ah! Sim. Que coisa mais sem explicação. não entendo. ..
A luz dos postes, acesa ao toque da ave-maria, apenas atinge a calçada mas a lua cheia derrama ouro e mel sobre Agreste, iluminando as ruas e o rio, a estrada e os atalhos, os últimos feirantes no caminho das roças.
Do sensacional encontro entre Perpétua e Carmosina, com certa vantagem para a primeira no raunde inicial - quem disse foi doutor Almiro? ele sabe. eu nunca havia pensado nisso...
- Astério se anima, aplacam-se as dores, diminui o mal- estar, presta atenção à conversa.
Estirado na espreguiçadeira, não fosse a presença da cunhada e de dona Carmosina estaria na cama, enrolado nos lençóis; vem passando mal desde a hora em que Elisa lhe fez sinal na loja e ele soube: nem carta, nem cheque.
Doente, a ponto de não tocar no cuscuz, na banana frita, contentando-se com uma xícara de café com leite, pão e requeijão. Contrações no estômago.
Insuportáveis.
Perpétua chegara pouco antes das sete. Deixara Ricardo preparando os deveres, na segunda- feira o moço retornará ao seminário para as provas escritas e orais. As aulas terminadas, estando padre Mariano de passagem em Aracaju, trouxera o afilhado para o fim de semana em casa, com a obrigação de fazer banca, estudar para os exames. Uma reprovação custar-lhe - ia a gratuidade do curso, adverte mais uma vez Perpétua antes de sair. Quanto a Peto, fugira para o cinema, menino endemoninhado. Assistia cada filme três vezes, todas de graça, ajudava o árabe Chalita na bilheteria. Em Agreste, a censura não vigora, todas as películas são livres para qualquer idade, mães amamentam crianças de colo em plena sala, onde Peto, aos treze anos incompletos, aprende mais do que Ricardo, quase com dezessete, nas aulas do seminário. No cinema, na beira do rio onde passa boa parte do dia a pescar e a observar, no Bar dos Açores, torcendo, à tarde, pelo tio Astério. Osnar, quando ganha, oferece-lhe guaraná, sorvete, coca-cola. Petojá sabe manejar o taco. Debochado, Osnar:
- E o taco aí debaixo, Sargento Peto, já faz carambola? Tá chegando a idade de perder o cabaço...
Nem bem Perpétua tomara assento na cadeira de palha, a melhor da casa, ressoaram na porta as palinas e o sonoro com licença de dona Carmosina. Perpétua fechou a cara: que perdera ali de tão precioso a agente dos Correios para abandonar a sessão de cinema do sábado, compromisso sagrado? Vinha meter o bico onde não a chamavam, ditar razões, palpitar, exibir inteligência e astúcia, a sabichona. Elisa precipitara-se a acolher a amiga:
- Você chegou quase junto com Perpétua.
Sem esperar convite, dona Carmosina puxou o assunto, tomando a frente na conversa:
- Na rua, não se fala noutra coisa. Fui chegando em casa e mãe foi perguntando: que é que aconteceu com Antonieta? Ouvi dizer que ela morreu. Ninguém sabe de nada, lhe respondi, só que a carta com o dinheiro que ela remete todo mês, esse mês não chegou. mãe arregalou os olhos: não chegou? Então ela morreu, só morta havia de deixar de cumprir a obrigação.
Conheci muito essa menina, quando tomava uma determinação, não havia conselho, ameaça, castigo que lhe mudasse o pensamento. Pode escrever:
parou de mandar o dinheiro é que morreu. Vá lá, minha filha, e apresente meus pêsames.- Uma pausa, dona Carmosina acrescenta: - O zunzum na rua só faz aumentar.
A intrometida viera de propósito, preferindo a conversa ao cinema; é capaz de Elisa ter pedido para ela vir, Perpétua tocou com os dedos o crucifixo do terço, no bolso da saia negra, contendo-se. Deixa pra lá, talvez até seja de ajuda; a antipática passa o dia sem fazer nada, a ler revistas e jornais, artigos enormes, domina uma quantidade de assuntos, bota banca. Perpétua não tinha dúvidas:
- Bateu a caçoleta! Disse a Elisa desde ontem, ela é que quer se enganar e enganar os outros...
- Esconder a evidência... - ilustrou dona Carmosina.
Tais demonstrações de sapiência, Perpétua não as tolera. Dominou-se devido ao grito de Astério, lançado do fundo da espreguiçadeira: - Ai! Vocês estão dizendo que ela morreu? Que Antonieta morreu? É isso?
Elisa teve pena do marido, o pobre de Deus recebera um choque; até ali a possibilidade da morte da cunhada não lhe ocorrera. Pensara em carta extraviada, em dificuldades momentâneas de dinheiro - também os ricos têm seus apertos,
- em viagem, plausível explicação de Elisa. Em doença e morte, jamais. A afirmãção caiu sobre ele como uma tonelada de chumbo.
- Ai! - gemeu, apertando o estômago, no rosto uma careta de dor.
- Você é o único em Agreste que não sabe que ela morreu e sua mulher a única a duvidar... -a voz sibilante de Perpétua revolvendo a chaga.
Dona Carmosina voltou ao debate:
- A bem dizer, provas não existem. Suposições, sim.
Dura adversária, Perpétua atirou-lhe na cara a munição de dona Milú:
- Que outra prova você quer, além da falta de cartas? não ouviu o que sua mãe disse? Era assim mesmo: quando Antonieta decidia fazer uma coisa fazia até o fim, quem bem sabe sou eu.
- Não há dúvida... - concordou, em termos, dona Carmosina: Suposições apoiadas em fatos concretos, porém suposições...
- Estamos desgraçados! - gemeu Astério, dando-se conta da enormidade do acontecimento: - Como a gente vai viver, se ela morreu?
Contendo o choro, Elisa trouxe um comprimido e um copo com água:
- Tome, Astério, o remédio para o estômago...
- Que vai ser da gente? - O comprimido caiu da mão de Astério, Elisa e dona Carmosina a procurarem pelo chão de tijolos, encontraram. Elisa o põe na boca do marido, dá-lhe a água.
- Nem para remédio vai sobrar - conclui Astério num engulho.
Dona Carmosina balançou a cabeça, concordando: não será fácil. não tanto para Perpétua, possui casas de aluguel e dinheiro guardado, mas Elisa e Astério vivem da loja mal sortida, das vendas aos sábados, lucro minguado.
Dona Carmosina tentou deixar de lado esses detalhes, insignificantes diante do fato maior da morte de Tieta, amiga de infância e adolescência, cujas confidências ouvira há tantos anos. Insignificantes? não com o preço atual do ruge e do batom, do rímel e do esmalte, das revistas, cinco por semana - e Elisa esquecera de pagar as de hoje. Falara em pegar o dinheiro, não pegara.
Se a morte se confirmar, dona Carmosina não poderá cobrar, carregará com o prejuízo. Amizade prova-se nessas horas.
Mas eis que Perpétua ergue o busto, o coque parece crescer no alto da cabeça, a voz fanhosa ganha força:
- Ela morreu e nós somos seus herdeiros...
A tal história da herança, dona Carmosina liga todas as antenas. Astério, nas vascas da agonia, não entende:
- O que é que você disse? Herdeiros? Como?
Tempo suficiente para dona Carmosina consultar seus conhecimentos jurídicos e entrar de advogada:
- Hum! É capaz que você tenha razão. Casada mas sem filhos... Os parentes herdam... Já li sobre isso, deixe-me ver. ..
Superiora, Perpétua pôs em pratos limpos:
- Outro dia conversei com doutor Almiro, quando ele esteve aqui por causa da herança de seu Lito. Metade para o marido, metade para os parentes próximos. Pai, mãe, irmãos. Nem que o morto não queira.
Foi nessa altura da conversa que se aplacaram as dores de Astério, diminuiu o mal- estar do estômago, rogou confirmação:
- Quem disse foi doutor Almiro? Ele sabe. ..
Do segundo raunde, completamente favorável a dona Carmosina, a campeã dos correios e telégrafos nem dona Carmosina, tomada de surpresa, tenta negar que perpétua lavrara um tento. confirma a tese jurídica, mas exibe aquele sorriso inocente, suspeitíssimo, de quem possui naipe marcado, carta decisiva:
- É isso mesmo. Vocês estão aí, estão ricos. Metade para seu Zé Esteves, a outra metade para vocês duas. Só falta encontrar o marido, não é?
- Exatamente.
- Perpétua domina a conversa e mesmo a agente dos Correios ouve com atenção:
- A gente nunca soube o nome inteiro do marido dela. Felipe, como se não tivesse pai. Rico, isso se sabe, comendador também. Mas Felipe de quê? Que tipo de indústria? Comendador do Papa ou do Governo? Sempre achei isso esquisito mas encontrei logo a explicação, faz tempo.
Ao contrário do que pensara D. Carmosina, a Perpétua não bastara o cheque, o dinheiro mensal. Também ela pusera a cabeça a pensar, a deduzir.
Igual a dona Carmosina, em cujos lábios, no entanto, permanece o sorriso inocente, de criança.
- E que explicação encontrou?
Todos ansiosos por saber, Perpétua esconde a vaidade na voz sibilante, desagradável, apesar da súbita fortuna:
- O marido proibiu que ela nos falasse dele para não ter, um dia, de prestar contas... exatamente para isso.
- Será? - Dona Carmosina demonstra o ceticismo.
- Ela tinha era vergonha da gente, medo de que a gente, se soubesse mais sobre o marido dela, começasse a explorar. - Para Elisa, as sujeiras, as más intenções são dela, de Astério, de Perpétua, do pai. Tieta e os seus são ricos e bons, inatacáveis.
- Talvez. - Dona Carmosina parece pesar e medir, comparar os argumentos.
- Seja como for, minha parte ele vai me entregar, nem que eu tenha de virar mundos e fundos. - Cada vez maior na cadeira, Perpétua não se dá ao trabalho de contestar Elisa: - Vou descobrir o endereço, quando ele menos esperar estouro na casa dele. O que é meu e de meus filhos ninguém tira.
- Tu falou hoje com padre Mariano, o que foi que ele disse?
- Disse para não nos apressarmos, que ainda não há provas da morte de Antonieta, que a gente esperasse. Espere quem quiser, não eu! Segunda-feira me toco para Esplanada, vou conversar com o doutor Rubim...
- Com o Juiz de Direito?- Dona Carmosina balança a cabeça, parece de acordo. Os olhos pequenos, semicerrados, consideram Astério e Elisa, pousam na imponência de Perpétua refestelada na cadeira de palha, parece um sapo-cururu. Perdoa-me, Elisa, roubar a tua herança, tu e Astério merecem melhor sorte, mas não posso suportar a arrogância dessa caga-se bo.
- É, essa história de sobrenome do marido de Tieta, eu também sempre achei muito atrapalhada. Só que cheguei a outra conclusão, diferente das de vocês duas.
Perpétua não teme competição:
- Pois venha lá.
- Você, Perpétua, não levou em conta certos dados, eu diria pistas. Ela mandou falar nas enteadas, não?
- Sim, metade é para a família dele.
- não é de herança que falo, essa herança não existe...
- Como?
- Não diga isso. .. - pede Astério, recaindo em dores.
- Tenho pena, Astério, de lhe desiludir, mas se vocês pensarem um minuto, se puserem as células cinzentas em ação, compreenderão que Tieta vivia, ou vive, com este senhor Comendador como esposa mas sem casamento legal, certamente ele é desquitado. Um casal como milhares de outros no Brasil. É a única explicação que existe e, nesse caso, somente a família dele tem direito à herança.
- Ai!
- padece Astério, vendo a fama dissolver-se, a riqueza ir água abaixo, breve ilusão, novamente pobre como Jó.
Onde a campeã da sacristia reage e ganha o raunde, sendo a adversaria salva por inesperada e interrupção na luta e perpétua é a única que não se altera, a não ser que se chame de sorriso a leve contração dos lábios:
- Como teoria, é engenhosa. Fora disso, não vale nada.
- Você tem melhor?..
- A minha é melhor e tenho provas.
- Provas, como?
- Casada, casadinha da silva, no religioso e no civil. Posso garantir e vou provar.
- É o que eu quero ver. - Leve vacilação na voz de dona Carmosina.
Elisa, em lágrimas. Astério, rico e pobre, pobre e rico, sem saber se a dor persiste ou não. Do fundo do bolso, Perpétua extrai um envelope e do envelope um recorte de jornal:
- Você, que lê tanto jornal às custas dos outros, Carmosina, não leu esse.- Vangloria-se da ajuda divina: - Quem é devoto de Sant'Ana, quem ocupa seu tempo com as coisas da Igreja, conta com a proteção de Deus.
- Fale de uma vez! - Até Astério seirrita, ele, em geral tão tímido diante da cunhada.
- Desembuche!
Recorte na mão, Perpétua não tem pressa.
- Ainda não fazem dois meses, fui a Aracaju beijar a mão de Dom José, saber dos estudos de Ricardo. Aproveitei e fiz uma visita a dona Nícia, a esposa do doutor Simões, do Banco. ..
- Foi vender vestidos mandados por Tieta. ..
- Os que ficaram para mim. Melhor vender do que me exibir com eles.
Nas capitais, vá lá que se use, mas aqui. .. Dona Nícia me mostrou um jornal de São Paulo, Folha da Manha, a página social com as notícias da gente importante, onde falavam numa amiga dela que foi visitar parentes. Me apontou uma notícia, dizendo: Penso que é sobre sua irmã. Depois cortou o pedaço e me deu.
Coloca os óculos lentamente, aproxima o recorte da luz. Astério se levanta da cadeira, Elisa muda de lugar para ficar perto, ninguém quer perder uma palavra.
Nesse momento exato, ouvem-se vozes na porta da rua:
- Tenha calma, homem!
- Nem calma nem meia calma, cambada de ladrões!
O velho Zé Esteves penetra na sala, acompanhado de Tonha. Plantado sobre as pernas, o rosto fechado em ira, ergue o bordão e brada:
- Quero meu dinheiro, seus ladrões! Onde meteram, que fizeram dele?
O dinheiro que Tieta me manda e vocês roubam! Que invenção é essa de dizer que ela morreu e por isso o dinheiro não chegou? Cambada de ladrões! Quero meu dinheiro, agora!
Onde Perpétua assume a chefia da família, após derrotar dona Carmosina por nocaute - A benção, pai - fala perpétua, tranqüila na cadeira: - peço a vosmicê que se sente e a mãe Tonha também. para ouvir notícias de Antonieta e do marido dela.
- Ela está viva ou não? Que invenção é essa de dizer que ela morreu?
É só o que ouço falar. Foram lá em casa para mais de dez pessoas.
- O mais certo é que tenha morrido. Se morreu, como parece. ..
...nós estaremos ricos, seu Zé. Podres de ricos...- interrompe Astério, já sem dor, curado.
Dona Carmosina recupera-se :
- Seu Zé, Perpétua vai ler uma notícia, no jornal de São Paulo, que fala de Tieta.
Tonha ocupa uma cadeira, o Velho permanece de pé:
- Pois que leia.
Novamente o recorte próximo à luz, Perpétua pigarreia limpando a voz, informa antes de começar a leitura:
- Tomei nota da data do jornal, 11 de setembro, não tem ainda três meses...
- Dois meses e dezesseis dias... - ninguém liga para a conta de dona Carmosina.
- O Comendador Felipe de Almeida Couto - lê pausadamente Perpétua - e sua esposa, Antonieta, convidam os inúmeros amigos e admiradores do casal para a missa em ação de graças, comemorativa dos seus quinze anos de casamento, que será celebrada na Igreja da Sé pelo mesmo reverendo, padre Eugênio Melo, que celebrou o matrimônio. À noite, Antonieta e Felipe abrirão as portas de sua mansão para receber com a fidalguia de sempre. De Brasília virá especialmente para participar dos festejos o Ministro Lima Filho que, sendo na época juiz da capital, presidiu o ato civil. A champanhota se prolongará noite adentro, com danças e ceia à meia- noite.
O recorte passa de mão em mão, cada um o lê, o alivio é geral.
Perpétua fita dona Carmosina, num desafio:
- Que me diz, agora?
Quem responde é Elisa, a voz vibrante:
- Quer dizer que tu sabia o nome do marido dela e não disse nada à gente? - Elisa pensa na missa, na mansão, na festa, na champanhota.
- Sabia, há mais de dois meses. Contar a você pra quê? Para que, me dê?
Astério se exalta e propõe:
- Vou com você a Esplanada, falar com o juiz...
- Falar com o juiz? Por que? - pergunta Zé Esteves.
- Por causa da herança. Metade é da gente.
Perpétua explica:
- É, sim, Pai. Metade é da família dele, metade é nossa, da família de Antonieta.
- Eu vou também, quero saber disso direito.
- Não precisa ir ninguém. Eu vou sozinha, é melhor. Converso com o juiz em nome de todos, sem confusão. Depois a gente decide o que fazer. Expulsa a vencida dona Carmosina: - Nós, da família, sem estranhos.
Ereta na cadeira, o busto erguido, o coque no alto da cabeça, Perpétua é o chefe da família, assumiu o lugar.
Da morte e do enterro de Tieta com sermão e inesperadas revelações do padre Mariano - aoturíbulo o sobrinho Ricardo, coroinha naquele fim de semana em Sant’Ana do agreste, Tieta morreu e foi enterrada em meio à consternação geral. não se faltará à verdade dizendo-se que toda gente da cidadezinha participou do prematuro velório. A notícia atravessou os portões da Fazenda Tapitanga, tirou o coronel Artur de seu sossego dominical, trazendo-o aflito às ruas de Agreste. O rebanho de Zé Esteves só prosperara enquanto Tieta, meninota, dele se ocupou. Cabras gordas e parideiras.
Lágrimas e orações, tristeza e ameaças, compaixão e elogios, projetos e comentários, gente a apresentar pêsames. Alguns, rancorosos, mal escondendo a satisfação de ver chegada ao fim a imerecida boa vida de Zé Esteves, de cujo passado de enrolão maldoso e salafrário guardavam memória e cicatrizes.
- Na dependência de Perpétua, ele vai roer boca de sino. ..
- É o que tu pensa... agora é que o filho da puta vai se encher de grana, não há justiça na terra...
- Troque em miúdos.
- A família vai herdar um dinheirão, metade é dele.
Velhas comadres, xeretas de idade indefinível, esquecidas pela morte que só de raro em raro dá-se à pena de passar por aqueles cafundós, desenterraram do profundo esquecimento onde jaziam sepultados os desplantes e pecados da moça Tieta, de tampos comidos.
- Ainda me lembro da surra. Naquele tempo o Velho morava na praça, perto da gente. Foi quase de manha. Quebrou o pau com vontade.
- Também, aqui pra nós, ela fez por merecer. Desavergonhada, escandalosa. Até homem casado.
- Veja a cara de seu Barbozinha, é um desgosto só.
- Dizem que não se casou pensando nela.
- Será? É bem capaz. E essa história de herança, que é que vocês sabem?
- Psiu! Lá vem Perpétua.
Caras de enterro, olhos lamurientos seguindo Perpétua no caminho do adro. O busto empinado, um pente negro de espanhola enfiado no alto do coque - não o usava desde a morte do Major, presente dele -, o mesmo vestido dos funerais do marido, contudo parece mais moça do que aquela jovem de vinte e poucos anos, já velha de mantilha negra, já solteirona e carola apesar da pouca idade, a beata mais beata, a xereta mais xereta, indo xeretar da irmã ao pai: todas as noites pula a janela, vai encontrar o caixeiro- viajante na beira do rio. Todo mundo fala, ela nos cobre de vergonha.
Andam para Perpétua, cercam-na, num coro de louvores à falecida, filha e irmã admirável, a ajudar a família e agora a enriquecê-la. Quantas missas vai mandar dizer pela alma dela? Pelos pecados antigos, em parte certamente perdoados por Deus, resgatados em vida de decência e caridade.
Mesmo as mais obstinadas a recordar malfeitos reconhecem os atributos
de coração, bondade e gentileza, o riso alegre, o prazer em ajudar, sem falar na graça e na formosura, rosto angelical, corpo, ai, de requebro e dengue.
Dona Milú resume tudo numa frase:
- Nunca fez nada por mal e o bem que fez não tem medida.
A boa filha, aquela que, sem guardar rancor, fora o amparo dos pais e das irmãs, sendo a mãe apenas madrasta e a irmã mais moça apenas meia- irmã, o que torna ainda mais meritório o procedimento, mais valiosa cada moeda.
Tudo isso vindo de São Paulo, da grande metrópole, onde Antonieta triunfara, com marido rico e ilustre, industrial, comendador, paulista de quatrocentos anos, dinheiro à farta, à la godaça. Elevando o nome de Sant'Ana do Agreste.
Um filho da terra chegara a possuir padaria em Cascadura e, recordando a cidade natal e a santa padroeira, batizou-a de Panificação Sant'Ana do Agreste; enviou aos parentes fotografias da inauguração. Fotografias, várias;
dinheiro que é bom, nem um tostão -segundo parece, a esposa, unha de fome, não permitia. Na capital do Estado alguns se destacaram, à frente de todos o poeta De Matos Barbosa, cujo nome completo, Gregório Eustáquio de Matos Barbosa, se reduzira a Barbozinha na estima de seus concidadãos, em geral orgulhosos dos versos e da filosofia do ex-funcionário da Prefeitura Municipal de Salvador, do boêmio recordado nas mesas dos cafés que, aliás, já não existem. De crônica ainda mais extensa, o comandante Dário de Queluz, cujo amor ao clima de Agreste e à paisagem de Mangue Seco o fizera abandonar a Marinha de Guerra para vir instalar-se de vez e para sempre na terra onde nascera, trazendo com ele a esposa, dona Laura, robusta gaúcha logo adaptada aos costumes locais. Vive o casal mais na Toca da Sogra, casinhola plantada entre coqueiros ao lado das dunas de Mangue Seco, do que no pequeno bangalô da cidade onde se acumulam máscaras, barcos, santos, animais, peças esculpidas a canivete nas cascas de coco seco ou em pedaços de coqueiros. Como se não Lhe bastasse a patente, a condição invejável de militar, a saga das viagens - Até no Japão esteve -, acumula sucessos de artesão, a admiração geral, um artista de mão cheia. Ele e Barbozinha, os dois primeiros. Falando de cultura, talvez devêssemos acrescentar o nome de dona Carmosina Sluizer da Consolação, o que ela sabe é demais; nunca saiu, porém, de Agreste, a não ser em rápidas idas a Esplanada. Falta-lhe o verniz das cidades grandes, da vida metropolitana. não deve ser esquecido, entre os ilustres a triunfar lá fora, o Dr. José Augusto de Faria, farmacêutico em Aracaju. E terminou-se a lista, pois Ascânio Trindade não chegou a se formar, deixou a faculdade de Direito no segundo ano.
Ninguém, nenhum deles, poeta, militar, farmacêutico, dono de padaria no Rio de Janeiro, voou tão alto, obteve êxito igual, elevando aos páramos da glória o nome da obscura e decadente cidadezinha de Sant'Ana do Agreste, como Antonieta Esteves a brilhar na alta sociedade paulista, única entre todos a ostentar fortuna, gastando dinheiro a rodo, o nome nos jornais do Sul.
Aminthas, Osnar, Seixas e Fidélio, os tacos em repouso:
- Como é mesmo o nome do marido? Matarazzo?
- Nada disso, um nome tradicional, quatrocentão, Perpétua sabe.
- Prado, talvez.
- não, parece que são dois nomes, desses importantes.
- Astério vai lavar a égua... dinheirama ararretada.
Paulista sem preconceitos, casou com moça furada. Os costumes mudam de lugar para lugar; em Agreste e circunvizinhanças ainda hoje moça para casar deve ser virgem - e ainda assim raras casam pois os homens emigram em busca de trabalho, restando para as mulheres a igreja, a cozinha, as colchas de retalho, o crochê, os dias longos, as perturbadas noites.
No Rio e em São Paulo, porém, casamento já não exige virgindade, obsoleto prejuízo. Aliás, a moda se faz nacional, estende-se país afora, a pílula esconde o rombo. não chegou, porém, às margens do rio Real; houvesse Tieta permanecido em Agreste, nunca arranjaria marido. Mas, em São Paulo, quem liga para os três vinténs das moças? Lá o que conta é a categoria, a classe, a beleza, a inteligência. Nenhuma boa qualidade foi negada a Tieta, durante o fim de semana, quando a cidade se comoveu com o anúncio de seu falecimento. Enterraram-na virtuosa, exemplar.
Ao cair da tarde do domingo, na hora da bênção, ninguém mais sustentava a frágil tese de Elisa - Tieta está viajando, gozando a vida, em New York ou em Paris, em Saint-Tropez ou em Bariloche. Nem ela própria, desfeita, amparada pelo marido e por dona Carmosina. ao abençoar o povo, padre Mariano, sem querer assumir responsabilidade por notícia não inteiramente confirmada, referiu-se no entanto, com visível sentimento, à triste versão a circular nas ruas. Louvou o coração puro daquela que, tendo merecido os bens do mundo, não esqueceu a família distante, a terra onde nascera.
Emocionado, revelou aos fiéis ter sido doação de Antonieta, e não de ânimo paroquiano como fora dito na ocasião, a grande, a magnífica imagem em gesso da Senhora Sant'Ana, entronizada com festa e júbilo havia três anos, em substituição à anterior, velhíssima, semi-destruída pelo tempo, de carcomida madeira, sem valor nem arte.
Como se vê, também o padre Mariano possuía um segredo em comum com Tieta, conhecido apenas de dona Carmosina, é óbvio. Também ele, além da agente dos Correios e do sobrinho Ricardo, a ela se dirigira, às escondidas, em peditório. Sorri dona Carmosina, ao lado de Elisa. Por seu gosto estaria no fundo do adro com os rapazes, comentando. Amizade obriga, porém. O sobrinho chora, em frente ao altar, todo paramentado, a saia branca, a bata vermelha, a sacudir o turíbulo, odor de incenso, bastante para os servos de Deus, nunca mais o perfume no envelope.
- Beleza de coroinha! - murmura Cinira, gulosa, à beira do barricão, uma coceira nas partes.
- Divino! - Dona Edna estala a língua no outro lado da igreja, de joelhos ao lado de Terto, muito seu marido embora não pareça.
Ricardo, envolto em fumaça, ouve o louvor do padre à velha tia. Pensa nos cabelos brancos, nas rugas, nas mãos trêmulas, mais avó do que tia.
Modesta, a generosa doadora exigira não fosse revelado seu nome. Somente agora, quando fúnebres notícias se ouviam, padre Mariano, passando por cima da promessa feita, põe os pontos nos ü, para que todos os devotos da Senhora Sant'Ana rezem com ele pela saúde de tão piedosa filha de Agreste, rogando a Deus não passe a trágica nova de rebate falso, encontrando-se a boa dona Antonieta em gozo de perfeita saúde.
Alguns rezaram. Pela alma da defunta; em perfeita saúde ninguém a acreditou.
Post-scriptum sobre a velha imagem em nenhum momento falou padre Mariano sobre o destino da velha imagem. Ainda bem, pois o novo cardeal anda com a mania de investigar o sucedido com as antigas e valiosas esculturas de santos, roubadas das igrejas ou vendidas a antiquários e colecionadores.
Quem pode, de boa fé, culpar o Padre? A imagem, pedaço de pau corroído pelo tempo, em péssimo estado, inútil, ele não a jogara no lixo por ter sido consagrada séculos atrás. Mas quando o famoso artista apareceu, atraído pela beleza da praia de Mangue Seco, e enxergando a destronada imagem da padroeira relegada a um canto da sacristia, ofereceu por ela o dinheiro necessário à compra do turíbulo, padre Mariano não vacilou. O novo incensório, precioso nas mãos de Ricardo a cercar de odorosa fumaça a imagem da Senhora Sant'Ana -a nova, refulgente, em gesso, pintada de cores lindas, uma obra de arte - foi adquirido com o dinheiro pago pela apodrecida madeira carunchosa. O artista afirmara tratar-se de problema de devoção: no reino dos céus era a Senhora Sant'Ana a sua preferida e quanto lhe dissesse respeito, mesmo sem valor material- caso da velha imagem tocava-lhe a alma, por isso a levava deixando razoável quantia em doação à igreja. Só quem o conhece sabe até onde vai a lábia do pintor Carybé. Muitas dele eu poderia contar, se me restasse tempo, cada qual pior.
Hoje, restaurada, a velha imagem é parte da famosa coleção de outro celebrado artista, Mirabeau Sampaio. Como lá foi ter, não me atrevo sequer a pensar. As barganhas entre esses cavalheiros são mais sujas e imorais do que a de dona Carmosina com Canuto Tavares, por mim desmascarada antes.
Da ressurreição e do luto Tieta ressuscitou na terça-feira, as cinco e vinte da tarde, e somente então a família falou em luto. na preocupação com os problemas resultantes da falha do cheque e das possibilidades de herança, não houvera tempo. nem necessidade. morreu, acabou-se de que lhe serviria roupa preta dos parentes? missa, sim, pelo descanso da alma. de sétimo dia, com certeza. de mês, caso a dinheirama se confirmasse.
Na terça- feira, a marinete atrasou: dois pneus furados, o motor pifando a cada cinco quilômetros, nada além do costumeiro. Assim, só de tardezinha dona Carmosina abriu a mala do Correio.
Na mesma viagem, Perpétua regressou de Esplanada para onde fora na véspera, em companhia de Ricardo que ali tomou o ônibus para Aracaju. O juiz a recebeu após o jantar e ao final da conversa felicitou-a pelo empenho em defesa dos interesses dos filhos, do pai e da irmã. Para mim não quero nada, Meritíssimo, mas pelo direito de meus filhos, de minha irmã e de meu velho pai brigo até morrer. Pobre, sozinha e desprendida. O juiz seimpressionou e dona Guta, empolgada, serviu à corajosa viúva bolo de aipim e licor de pitanga.
De volta, Perpétua trouxe volumosa bagagem de conhecimentos e conselhos. Em São Paulo, informara o juiz, ela encontraria facilmente advogado disposto a se ocupar da causa, financiando-lhe as despesas, à base de participação nos lucros obtidos, se a questão, como parecia, oferecesse reais possibilidades de vitória. Cobram porcentagem elevada, naturalmente. Quantos por cento? não saberia dizer com exatidão: talvez quarenta, cinqüenta por cento. Tanto? Um despropósito, doutor! Minha cara senhora, para correr o risco, botar dinheiro no fogo, pedem caro, é justo. Os jornais do Sul publicam anúncios de escritórios de advocacia que trabalham nessas bases. Existem, inclusive, especialistas em causas perdidas, mas a porcentagem em tais casos sobe a Setenta, oitenta por cento.
Doutor Rubim releu a notícia no recorte da Folha da Manha. Os Alineida Couto, gente graúda, minha senhora, da nata, muito dinheiro e muitos brasões. Se os dados da questão estiverem corretos, tal como a senhora afirma, trata-se de causa ganha. O mais provável é que nem causa venha a haver, logo se chegue a acordo, gente desse porte não ama ver-seimiscuída em trincas na Justiça. A senhora e sua família precisam apenas de um bom advogado. Deus Lhe pagará, Meritíssimo, o tempo perdido com uma pobre viúva, sua criada às ordens. De volta, acertará com o Velho e com Astério a divisão das despesas da viagem: deixará Peto com Elisa, levando Ricardo, cujas férias começarão daí a uma semana. Em Esplanada averiguara os preços das passagens de ônibus para São Paulo, embarcaria em Feira de Sant'Ana. Nem o preço, as despesas, a distância, nem os perigos da cidade grande, nada a amedronta.
Não chegara a ir a Salvador com o Major como haviam programado; Perpétua sente um aperto no coração ao recordar o projeto. Mas não viajou sozinha.
Aracaju, para falar com o bispo, agradecer a matrícula de Ricardo? Fora e depois voltara várias vezes, onde o perigo? São Paulo é menor, capital mais desenvolvida, mas não pode ser muito maior nem muito mais assustadora, Aracaju é um colosso.
Encontrava-se Perpétua ainda no banho, tentando limpar-se da poeira, quando dona Carmosina abriu a sacola das cartas registradas. Havia apenas uma, a de Antonieta. Num brado de aleluia, dona Carmosina, abandonando resto da remessa, saiu, porta afora, desabalada para a casa de Elisa, a carta na mão, bandeira desfraldada ao vento:
- Chegou, Elisa, chegou!
- Deus seja louvado!
Abriram o envelope, lá estavam o cheque e novidades sensacionais:
houvera morte, sim, não existe fumaça sem fogo. Mas quem morrera fora o Comendador e não era nenhum Almeida Couto de quatrocentos anos e brasões. Nem por isso menos rico industrial paulista, Comendador Felipe Cantarelli, meu inesquecível esposo, quase um pai, cujo passamento me deixa viúva inconsolável. Para consolar-se, rever a família e, quem sabe, adquirir casa na cidade, terreno na praia, de preferência nas imediações de Mangue Seco - no futuro, viria curtir a velhice e esperar a morte na doçura do clima de Agreste - Antonieta anuncia próxima chegada. Avisarei com tempo e levo comigo Leonora, minha enteada, filha do primeiro matrimônio de Felipe.
- Ela vai vir, Carmosina! Ela vai vir, que coisa boa! - também Elisa ressuscita.
Convocados às pressas, acorreram todos: o pai e Tonha, Astério vindo do bar acompanhado pela turma solidária, Perpétua trazendo Peto pela orelha.
Como se fosse o chefe da família, dona Carmosina, de pé, solene, declamou a carta, Astério apoderou-se do cheque para descontá-lo.
Enquanto ouvia, Perpétua engoliu informações e conselhos do juiz, a viagem a São Paulo, a herança; com Antonieta viva, viúva milionária, mudara a situação, cabia adaptar-se. Perpétua ergueu-se das cinzas e fitando a família reunida, comandou:
- Fosse quem fosse, o falecido era nosso parente, genro, cunhado e tio.
Devemos mandar dizer missa por sua alma e botar luto. Quando nossa querida irmã chegar, deve nos encontrar vestidos de negro, sofrendo com ela.
Eu sei o que ela está passando, conheço a dor da viuvez.
Dona Carmosina não conhece mas pode imaginar. Virar a perna na cama de casal, à noite, e não encontrar o apoio do corpo do marido, do homem antes a compartilhar do leito, solidão medonha, ai! Maior só a solidão da solteirona, dor sem tamanho, nem sequer a recordação da gostosura.
Segundo episódio das paulistas felizes em Sant'Ana do agreste ou a viúva alegre com luto fechado, missa de defunto, os meninos do catecismo, minissaias e cafetas transparentes, banhos de rio, areias e dunas de mangue seco, intrigas diversas, sonhos pequeno- burgueses e ambições maternas, coxas, seios e umbigos, passeios e jantares, receitas culinárias, o discutido problema da luz elétrica, orações e tentações, o temor de deus, as artes do demônio, um casto idílio, outro nem tanto; onde se trava conhecimento com o beato possidônio, profeta antigo. diálogos românticos e cenas fortes para compensar primeiro fragmento de narrativa, na qual - durante a longa viagem de ônibus leito da capital de São Paulo a da Bahia - Tieta recorda e conta a bela Leonora Cantarelli episódios de sua vida. aqui vai a amostra:
Outros lances, mais substanciais, virão depois - penso que as cabras não sentiam o sol, não esse calorzinho daqui, o calorão de lá, o sol em brasa nas pedras. Nem elas, nem eu.
Nas pedras, as cabras imóveis sob o sol; pedras, estátuas, elas também.
De súbito saltam, disparam a correr, uma, logo outra, todas. Vão descobrir tufos de capim nos mais altos oiteiros.
- Eu ia atrás, pastoreando. As cabras me conheciam, eu botava nome, apelido em cada uma. Chamava, elas atendiam. Cuidava delas, quando uma se feria nos espinhos, eu tratava, punha mastruz nas feridas.
- Que idade você tinha, Mãezinha?
- Acho que dez anos, quando comecei. Dez ou onze, tinha terminado o grupo escolar.
Preferira o sol cozinhando pedras, a terra árida, os cactos, as serpentes, os lagartos, o coaxar dos sapos na água do riacho, os calvos cabeços dos morros, as touceiras de capim, as cabras - enquanto a primogênita cuidava da casa.
- Perpétua nasceu velha, nem sei como conseguiu casar. Mocinha, se meteu na sacristia da igreja com as carolas, a mais beata de todas. Para ela eu era o diabo em pessoa... - ri: - Tinha razão, eu não era gente. Desde pequena, vi o bode Inácio montando cabras.
Inteiro, sereno e majestoso, o bode Inácio, pai do rebanho, aparece, passo medido, cavanhaque longo, inhaca forte. De bagos assim de grandes, quase a tocar a terra, senhor da chibarrada, patriarca dos caprinos.
Lento e inexorável, vem vindo para o lado da cabrita irrequieta no primeiro cio, os quartos agitados à aproximação de Inácio, as patas traseiras escoiceando o ar, na idade de ser coberta e emprenhar. Caminha Inácio no rastro do afim da fêmea, o saco balançando. Emite o berro, vibrante e límpido, anúncio, ameaça, declaração de amor.
- Primeiro eu via, não ligava, era nova demais. Mas depois, quando comecei a ter as regras, o berro de Inácio entrava por mim adentro. Passei a espiar, me estendia no chão para ver melhor.
A cabrita dispara, Inácio não se dá ao trabalho de correr, pára e espera;
a menina aprende. Duas ou três escapadas mais e ele monta a indócil quando assim decide, dono, pai do rebanho.
Deitada no chão, a moleca aprecia, não perde detalhe. De bruços contra a terra sáfara, sente um calor subindo pelas pernas até os gorgomilos, vontade,
moleza. Inácio era um bodastro, um bodastro e tanto, a chiba se debateu quando ele a fez cabra e a emprenhou. Um berro final de dor e acolhimento.
Ecoando no ventre da menina. Conjugados cabra e bode na altura sobre as pedras, petrificados, rocha única, penhasco, capricórnio.
- Assim eu aprendi. Vi mais que isso, nos meus começos. Mais.
Não só assiste ao bode Inácio montar as cabras. Acontece-lhe ver, escondida nos oiteiros, moleques se pondo nelas. Osnar e seu bando de perdidos. Homens feitos também. O próprio pai, imaginando-a ausente.
- Em casa, um deus-nos-acuda, austero, moralista por demais, mandando todo mundo para a cama nem bem a gente se levantava da mesa do jantar. Em na moto, era proibido se falar.
Namorado de filha minha se chama palmatória e taça de tanger burro;
bordão de marmelo é o nome completo, roncava Zé Esteves. Punha-se nas cabras quando julgava o pasto vazio. Existiam cabras viciadas.
- Eu era uma cabrita, igual a elas. A primeira vez não teve diferença.
- Com que idade, mãezinha, a primeira vez?
- Sei lá. Treze, quatorze anos, botei sangue cedo.
- Depois?
- Fui cabra viciada, não havia homem que me desse abasto.
Onde o autor redige concisa noticia sobre o prospero e longínquo passado do município de Sant’Ana do agreste e sua decadência atual enquanto o povo comenta a excitante nova do próximo retorno da filha pródiga, as beatas na igreja, os ociosos no bar, os comentários fervendo, a Agência dos Correios engalanada em festa, aproveito para constatar desde logo a benéfica influência de Tieta. Ainda na rodagem para a Bahia e já influindo no burgo natal, retirando-o do marasmo no qual mergulhara havia tantos anos.
A notícia não atinge e comove somente a população urbana; espalha-se por todo o município, despertando curiosidade e interesse das mansas margens do rio às encapeladas vagas do mar atlântico, segundo revela Barbozinha em estado de poesia. Elabora um poema em versos livres e ático sabor, onde Vênus surge das ondas, nua, coberta de espumas e conchas, rediviva. Atualíssimo e um tanto erótico.
Ninguém ficou indiferente, em toda a população de alguns milhares de pessoas - nem mesmo dona Carmosina pode fornecer o número exato de habitantes de Agreste; no censo de 1960 somavam nove mil, setecentos e quarenta e dois cidadãos prestáveis e imprestáveis, pois vários passavam dos noventa e muitos dos oitenta anos; no último lustro após o recenseamento, a população diminuíra, não em conseqüência de mortes ainda mais raras que os nascimentos e sim da sistemática partida dos jovens em busca de oportunidades noutras terras.
O visitante, chegado a essas ruas mortas nos dias de hoje, exausto com a travessia na marinete de Jairo, entupido de poeira, hóspede da pensão de dona Amorzinho, não acreditará que, antes da construção da estrada de ferro ligando Bahia a Sergipe, Agreste foi terra de muito progresso e muito movimento comercial, entreposto da maior importância para todo o sertão dos dois Estados. Naquela época, a prosperidade presidia os destinos do atual cafundó de Judas. A situação privilegiada do município, às margens do rio, estendendo-se até o mar, fizera de Sant'Ana do Agreste o centro de abastecimento de toda uma enorme região. Navios e escunas vinham até à altura da barra de Mangue Seco, paravam ao largo, as alvarengas recolhiam a carga. De Agreste, no lombo dos burros, as mercadorias partiam no rumo do sertão.
Hoje, existe apenas a pensão de dona Amorzinho, no começo do século existiam para mais de dez, repletas sempre de comerciantes e caixeiros viajantes, as lojas e armazéns não davam abasto à freguesia. Casa de mulher dama, nem se conta, uma animação, um correr de dinheiro. As melhores residências da cidade datam dessa época, também o calçamento de pedras da Praça da Matriz e das ruas do centro. Os ricos mandavam vir pianos e gramofones, encomendavam retratos coloridos a firmas do Sul, para pendurar nas paredes das salas. Construíram o sobrado da Intendência, ergueram a nova Matriz de Sant'Ana, deixando a velha capela para a devoção de São João Batista, cuja festa em junho, precedida pela de Santo Antônio e seguida pela de São Pedro, trazia a Agreste forasteiros até de Sergipe, além dos numerosos estudantes em férias, libertos por quinze dias dos internatos na capital.
Agreste em junho era uma alegria só, danças e foguetório todas as noites, após as trezenas e novenas.
Das primeiras cidades a instalar eletricidade, das últimas a conservar a vacilante luz amarela e fraca do cansado motor, ainda não substituído pela ofuscante luz da usina de Paulo Afonso. Quem adquiriu o motor e iluminou o então florescente burgo foi o intendente coronel Francisco Trindade, avó de Ascânio. Deve-se ao neto, em dias recentes, obstinada luta para trazer até ali os fios de alta voltagem da Hidrelétrica do São Francisco que, como a estrada de ferro e a rodovia, haviam passado longe dos limites do município.
Nos últimos decênios, o progresso só fizera desfechar golpes contra Agreste. O primeiro, o mais terrível: a construção da estrada de ferro, trilhos a ligara capital baiana a Sergipe, chegando às ribanceiras do rio São Francisco, em Própria deixando nossa cidadezinha à margem, órfa de trem- de-ferro e de estação onde as moças namorarem. Tentou manter-se Agreste no convívio dos navios e escunas mas o transporte de mercadorias fez-se mais fácil e muito mais barato nos vagões da ferrovia. Dispersaram-se as tropas de burros, as alvarengas apodreceram junto aos mangues, de raros navios e escunas desembarca apenas contrabando e mesmo assim sem outro lucro para Agreste além da paga recebida pelos pescadores de Mangue Seco, pois não é do município que os gêneros tomam destino. As lanchas nem escalam em Agreste, indo diretas para o porto do Crasto, em Sergipe. Só Elieser, morador na cidade, ali ancora, de volta da entrega, vem dormir em casa. não se pode considerar comércio digno de tal nome a garrafa de uísque escocês, de gim inglês, de conhaque espanhol que Elieser surrupia e vende a Aminthas ou a Seixas, a Fidélio; nem o vidro de perfume com destino certo: Carol, a retraída moça de Modesto Pires. Essa moça, aliás, precisa aparecer mais nas páginas deste folhetim para proveito e gáudío de todos nós.
As esperanças do retorno à prosperidade concentraram-se durante longo tempo na rodagem, anunciada com ruidoso espalhafato, a vir do Sul cruzando o país inteiro pela costa. Enquanto isso, Agreste diminuíra a olhos vistos, os caixeiros- viajantes desertaram das ruas: restando poucas lojas e armazéns, os pedidos não pagavam as custas da viagem. Fecharam-se as pensões, já ninguém vinha de longe para as festas de junho, apesar da água continuar a fazer milagres, do clima manter-se digno de sanatório, da insólita beleza ribeirinha e da audácia da praia de Mangue Seco, incomparável.
A rodovia, como se sabe, passou a quarenta e oito quilômetros de poeira e lama. Novo e definitivo golpe do progresso, Agreste entregou-se de vez, reduzida à mandioca e às cabras. Nem trem- de- ferro, nem caminhões, nem sombra de estação, ferroviária ou rodoviária, onde as moças namorarem. No ancoradouro, meia dúzia de canoas, o barco de Pirica, a lancha de Elieser e os caranguejos, gordos, gordíssimos. Em matéria de comida, nada se compara a um escaldado de caranguejo com pirão de farinha de mandioca, verde escuro, pirão de lama como se chama aqui. Nunca comeram? Uma lástima, não sabem o que é bom. Manjar a exigir tempo e paciência para catar a carne dos caranguejos, pata por pata, faz-se raro até mesmo em Agreste onde sobram o tempo e o gosto. Mas vale a pena, eu asseguro. É de se lamber os dedos; come-se com a mão, ensopando-se o pirão na gordura verde do molho, na lama incomparável do caranguejo.
O povo já perdeu as derradeiras esperanças, os moços partem na marinete de Jairo, moços e moças, porque nos últimos anos também as mulheres começaram a buscar vida melhor em terras mais ricas. Vão ser copeira ou cozinheira, costureira ou bordadeira, grande número acaba na zona, em Salvador, em Aracaju, em Feira de Santana. Muito apreciadas, por sinal.
De Ascânio Trindade, intemerato patriota e lutador, com as duras penas que em sina lhe couberam só Ascânio Trindade não perde o fôlego de lutador nem a esperança de um milagre a salvar Agreste -ama a terra onde nasceu e à qual a doença do pai o fizera regressar, abandonando o curso de Direito. Já não tem obrigação a cumprir em Agreste, pois seu Leovigildo finalmente morrera após infindáveis cinco anos, preso à cama, sem movimentos, apenas um olho aberto a fitar o vazio. Ascânio fora enfermeiro e ama-se ca, pai e mãe, dando banho naquele corpo inerte, limpando-o, pondo-lhe o de - comer na boca, duras tarefas. Rafa, a escura mãe-de-leite, mal podia ajudar, por mais quisesse, velha e reumática, sem forças. Ascânio tomava nos braços o corpo do pai, levando-o para deitá-lo ao sol sob a goiabeira, no quintal, fazendo-lhe muda companhia horas e horas. Sempre tranqüilo, sem uma queixa, nem dos estudos interrompidos, nem da longa provação. O olhar do pai, um único olho, a acompanhá-lo agradecido, basta ao filho. Esse já ganhou o reino dos céus, diziam as beatas.
Após o enterro de seu Leovigildo, havia dois anos, Ascânio, se quisesse, poderia ter-se demitido do cargo de Secretário da Prefeitura, onde o pusera o padrinho, coronel Artur da Tapitanga, quando o viu sozinho com o pai paralítico e sem tostão. Demitir-se, para que? Para voltar à cidade da Bahia, recomeçara faculdade? Maior do que a falta de recursos, era a falta de vontade.
Na capital, Astrud, casada, ria a inesquecível, cristalina gargalhada aqui, em meu desterro, carregando a cruz de meu Calvário, ouço teu riso de cristal e reencontro forças; nos dias mais penosos a recordação de teus olhos verdes me sustenta o ânimo. Dona Carmosina derramara lágrimas lendo as violadas cartas, quanto amor!
Noutra coisa não pensou Ascânio no primeiro ano, senão no dia do retorno. Mas quando, abrupta, Astrud lhe comunicou o próximo casamento, sem sequer ter desfeito o noivado, ele jurou não pôr mais os pés na cidade onde habitava a traição. Sobretudo depois que Máximo Lima, seu colega de faculdade, advogado a prosperar na Justiça do Trabalho, lhe informara haver a inocente, a imaculada Astrud, casado de bucho inchado, não fosse solto O vestido de noiva e se enxergaria o volume da barriga de quase quatro meses.
Já de menino e ainda escrevendo cartas de amor para Ascânio, prosseguindo no casto idéio, cândida menina, puta sem rival! Isso lhe doía mais que tudo:
acreditara na pureza, no firme sentimento, deixara-seiludir como uma criança tola, ingênuo paspalhão.
Ademais, habituara-se à vida de Agreste, no que ela tinha de melhor: a água, o ar, a paisagem, a convivência dos amigos. Só não aceitara a passividade do atraso, da pobreza, o marasmo. A cabeça repleta de planos, não se deixa abater.
Terra tão mísera e largada, Agreste não interessa nem mesmo aos políticos, raça aliás em extinção. Entregue a Prefeitura ao doutor Mauritônio Dantas, cirurgião- dentista de forças reduzidas pelos desgostos e pela esclerose, trancado em casa a bem da moralidade pública, quem realmente manda e desmanda é Ascânio. Há um consenso geral: quando o doutor bater as botas, colocarão Ascânio no cargo vago, se possível prefeito para a vida inteira.
A verdade é que, praticamente sem receita além da quota federal do imposto de rendada escassa ajuda estadual, Ascânio mantém a cidade limpa, calçou, com pedras do rio, ruas e becos, inaugurou duas escolas municipais, uma na Rocinha, outra em Coqueiro, e busca obter, à custa de ofícios, petições às autoridades, cartas aos jornais e às estações de rádio, que se estendam a Agreste os fios da Hidrelétrica. Até agora, infelizmente, não teve sucesso. Postes e fios alteiam-se nos municípios vizinhos. Agreste é um dos poucos deixados de lado no plano recente de expansão dos serviços da Hidrelétrica. Ascânio não desanima, porém. Prossegue em sua luta. Acredita que um dia, fatalmente, a fama do clima, a qualidade da água, a beleza da paisagem trarão às artérias e às praias de Agreste turistas ávidos de paz e natureza.
Ao ouvi-lo falar há quem sorria do ardente entusiasmo, Agreste não tem jeito: mas há quem se empolgue e por um momento sonhe com ele, veja realidade nessa fantasia; como sempre, as opiniões se dividem. Somam-se unânimes, sem divergência, ao julgar o próprio Ascânio. não há, em todo O município, cidadão mais estimado, mais bem visto. As moças casadoiras não tiram os olhos dele. Ascânio completou vinte e oito anos, o que espera para escolher noiva? Quando prefeito não poderá continuar freguês da casa de Zuleika.
Por mais de uma vez, dona Carmosina lhe colocou o problema, na Agência dos Correios. Tanta moça bonita e prendada em Agreste e todas desejosas. Ele sorri apenas, sorriso triste. Dona Carmosina não insiste: leu a correspondência toda, linha por linha, repete de memória trechos da derradeira missiva, resposta à comunicação do próximo casamento - quem te esteve, Dalila, é um morto, frígido coração que, da sepultura onde o enterraste apunhalado, vem te desejar felicidade; que o remorso não turve tua vida e que Deus me conceda a graça de esquecer- te, arrancar do peito tua imagem... Um poeta, Ascânio Trindade, se escrevesse versos, nada ficaria a dever a Barbozinha. Pelo visto não esqueceu, não pensa em noiva.
Sorri apenas um sorriso triste. Outra? Jamais. Nem que um dia desembarque da marinete de Jairo a mais formosa das donzelas, a mais pura e sedutora. Coração aberto para o amor, minha querida dona Carmosina.
Da volta da filha pródiga a agreste, onde, no ponto da marinete, a aguardam a família em luto pela morte do comendador, os meninos do catecismo, padre Mariano, Ascânio Trindade, comandante Dário, poeta de matos Barbosa, o árabe Chalita, diversas outras figuras gradas, sem esquecer a malta do bilhar, muito menos dona Carmosina, na mão um buque de flores colhidas no jardim de casa por dona Milú, o clero, a burguesia e o povo, este representado pelo moleque Sabino e por bafo de bode agrupados em quatro ou cinco locais, nas vizinhanças do cinema, ponto de parada da marinete de Jairo, esperam ouvir a buzina rouquenha na curva da entrada da cidade. Na igreja, sob a batuta do padre Mariano, os meninos do catecismo, nas roupas domingueiras, além de Perpétua e do filho seminarista, de batina e livro de missa, risonho mocetão em férias. No adro, movimentam-se as beatas, bando de urubus a grasnar; prontas para o magno acontecimento, o desembarque da viúva rica: querem vê-la em luto e em pranto nos braços da família, e de quebra, a enteada, a forasteira. Dia gordo.
No Bar dos Açores, à exceção do proprietário em mangas de camisa, todos engravatados: Osnar, Seixas, Fidélio, Aminthas, guarda de honra do cunhado Astério, sufocado no terno negro, empréstimo de Seixas, magricela.
Perpétua concordara com que, durante a semana, Astério reduzisse o nojo à braçadeira preta, ao fumo no chapéu e na lapela. Mas, para a cerimônia das boas- vindas, exige luto fechado, traje, gravata e compunção.
- Faz questão porque não tem de comprar, vive de luto. Mas onde vou arranjar dinheiro para fazer terno?
- Tive de comprar para Peto.
- Um par de calças curtas, ora.
- Por que não toma emprestado? Seixas aliviou o luto.
Boa lembrança, não fosse a diferença de peso entre os dois. A duras penas, com o auxílio de Elisa, conseguiu enfiar as calças. O paletó não abotoa e abriu sob os dois sovacos mas o descosido só aparece quando Astério levanta os braços.
Peto foge da igreja e da mãe, vem para o bar. Cara lavada, cabelos penteados, coisas raras; camisa branca de mangas compridas, gravata borboleta, antigüidade do falecido Major. O pior são os sapatos. Os pés, livres nas ribanceiras e na correnteza do rio, não se adaptam. Osnar goza a figura e as caretas do menino:
- Sargento Peto, você está uma tetéia. Se eu fosse chegado a comer menino, hoje era seu dia. Sua sorte é que não sou apreciador.
- Não chateie.
Apesar dos sapatos, Peto não esconde a satisfação: durante a permanência da tia dormirá em casa de Astério, no quartinho dos fundos, longe das vistas e dos horários estritos da mãe, poderá acompanhar Osnar e Aminthas, Seixas e Fidélio pelas ruas, à noite, nas escusas caçadas a provocar comentários e risos:
- Passa fora, moleque, isso é conversa de homem...
Só Osnar abre-lhe perspectivas!
- Um dia desses, Sargento, eu lhe levo pra caça. Tá chegando a idade.
Vá preparando a espoleta.
Perpétua decidira que no quarto de Peto ficará a enteada de Antonieta.
Como o resto da casa, foi lavado com creolina, esfregado, varrido até a última partícula de pó, folhas de pitanga no chão, para perfumar. Há uma semana a pequena Araci, emprestada por Elisa pelo tempo que durar a estadia das paulistas, se entrega a uma faxina em regra.
Residência confortável, na esquina da Praça da Matriz com o Beco das Três Marias, Peto não necessitaria mudar-se, caso Perpétua tivesse aceito a opinião de Astério: as duas hóspedes no quarto de Ricardo, os dois meninos no de Peto. Mas Perpétua, num desparrame de cortesia - fora atacada da mania de grandeza ou tinha algum plano armado na cabeça? Dona Carmosina ainda não chegara a uma conclusão -, decidira colocar Antonieta na alcova Desca e ampla, deixando-lhe, por mais inacreditável possa parecer, o uso da cama de casal com colchão de lá de barriguda, onde rebolara com o Major durante o tempo feliz e curto do matrimônio. Contado não se acreditaria: o quarto dela e do Major? Impossível! Como as coisas mudam, Deus do Céu!
Dona Carmosina arregala ao máximo os olhos miúdos, num espanto.
Cama de casal, colchão de barriguda, penteadeira, armário enorme, móveis pesados, de jacarandá. O Major comprara a casa mobiliada nas vésperas do casamento, uma pechincha. O único herdeiro de dona Eufrosina, falecida aos noventa e quatro janeiros, um sobrinho, vivia em Porto Alegre, nunca pusera os pés em Agreste, mandou vender casa e móveis por qualquer oferta, desde que à vista. Tampouco havia outro candidato, nem à vista nem a prazo.
Da sala de visitas, enorme, oito janelas dando para a rua, sai o corredor até a sala de jantar. De cada lado, dois quartos, um dos quais, em frente à alcova, desde priscas eras transformado em gabinete de leitura pelo finado doutor Fulgêncio Neto, esposo de dona Eufrosina, médico de fama nos idos do progresso. A secretária, com dezoito gavetas, sendo uma delas cofre com segredo; a estante com livros de medicina em francês e obras de Alexandre Dumas e Victor Hugo. O Major não buliu no gabinete, gostava de nele permanecer após o almoço, sentado em frente à escrivaninha, lendo jornais da Bahia, atrasados de uma semana, ou tirando uma pestana na rede. Ali Ricardo faz banca, mesmo em férias, uma hora por dia. A seguir, face a face, os quartos de Ricardo e Peto, ambos requisitados por Perpétua. No de Ricardo, onde fica o oratório, dormirá ela própria; no de Peto, a tal de Leonora. Ricardo ocupará o gabinete onde já estão seus livros de estudo.
Acomoda a moleca Araci no depósito de frutas, no quintal, sobre improvisada enxerga. Perpétua comandou a arrumação e a limpeza da casa. Comandou tudo quanto se referiu à chegada e estadia de Tieta.
Cheia, a Agência dos Correios e Telégrafos: o comandante Dário e dona Laura, Barbozinha de barba feita, homenagem à antiga namorada, Ascânio Trindade, representando a Prefeitura - doutor Mauritônio cada vez pior, vendo mulheres nuas - e Elisa num negro, vaporoso e esvoaçante vestido de gaze, dos enviados por Antonieta nos pacotes de roupa usada. Exibira antes audacioso decote: agora composto, fechado no pescoço, exigência de Perpétua, fiscal de trajes e modos para o desembarque.
- Pelo menos tape os peitos. Isso é vestido mais para baile do que para luto, mas sendo o único preto que você tem, vá lá, desde que o arrume. Ela vai chegar de luto fechado, a gente tem de estar de acordo. Imagine que o Velho queria que se fizesse uma festa, convidasse meio mundo. Ela chega chorando a morte do marido e em vez de luto encontra festa, já pensou?
Para que as flores não murchem, dona Carmosina colocou o buquê dentro de um copo com água. Sob a influência da dialética de Perpétua, discutira com a mãe, talvez flores não caíssem bem por ocasião da chegada da viúva aflita, em nojo recente. Dona Milú não quis conversa: entregue as flores a ela e diga que fui eu quem mandou. Se agente manda flores até para defunto, por que viúva não há de ter direito? Ora essa...
-meu Deus, não chega nunca! - Elisa, por mais que se esforce para manter-se compungida, não consegue conter a agitação, misto de alegria e medo.
Alegria sem medida de conhecer a irmã, a fada, a rica, a elegante, a grã-fina, a paulista, a protetora. Receio por causa da louca mentira, da omissão da morte de Toninho com o fim de embolsar a ajuda mensal. Dona Carmosina fizera o possível para acalmá-la.
- Quando ela perguntar por Toninho, o que é que eu vou dizer?
- Diga a verdade. Diga que eu lhe aconselhei a não contar e deixe o resto por minha conta.
- Será que ela me perdoa?
- Conheço Tieta, não vai fazer caso. Pode deixar comigo.
Persiste outra nuvem a turvar sua alegria: a vinda da enteada, quase filha, dona de um lugar no coração de Tieta que Elisa deseja todo inteiro para si.
Na entrada do cinema, o árabe Chalita palita os dentes, perdido em tecordações: Tieta era mais bonita ainda do que a irmã, a mulher de Astério.
Bonita e atirada, um fogo a Lhe comer as carnes. Na porta lateral, a sorveteria:
um pequeno balcão, uma gaveta e a catimplora que o moleque Sabino maneja, enchendo-a diariamente de sorvete de fruta para ganhar uns níqueis, pagos pelo árabe. Também Sabino se botou de calça e camisa limpas, sapatos e meias. Por seu gosto, teria posto fumo no braço, considerava-se da família;
pau mandado de Astério, caixeiro, moço de recados, tirador de cocos. Só não usou braçadeira negra com medo de dona Perpétua, uma peste. Sentado no passeio, Bafo de Bode curte a cachaça em silêncio. Curioso de ver a estampa dessa falada filha de Zé Esteves, que ele não conhece: quando chegou a Agreste, havia vinte e cinco anos, em busca de remédio e de aguardente, ela já partira, coube-lhe recolher esmaecidos ecos da surra nos últimos comentários, gastos e vasqueiros.
No ponto exato onde a marinete pára, junto ao poste diante do cinema, na calçada, Zé Esteves e a esposa Tonha. Para o casamento de Elisa o Velho mandara tingir de preto, em Esplanada, antigo e desbotado traje azul. não O veste desde então. O paletó parece um saco, as calças frouxas. Zé Esteves já não é o gigante de outrora, um pé de jacarandá, uma fortaleza, mas ainda se mantém firme, ali, de pé, há quase duas horas, mascando fumo, apoiado no bastão. Tonha, se pudesse, pediria uma cadeira ao árabe; onde a coragem de expor ao Velho seu cansaço? Usa luto aliviado, apenas saia preta e faixa de crepe na blusa branca. Também remoto é o parentesco, como fez notar Perpétua, marcando diferenças e distâncias.
Com duas horas e dez minutos de atraso, soa na curva a buzina da marinete de Jairo, correria geral. Perpétua e padre Mariano ordenam as tropas. A marinete desponta no começo da rua. Ouve-se um primeiro soluço, antes da hora.
Minuciosa descrição do confuso desembarque de Tieta, a filha pródiga ou Antonieta Esteves Carelli, a viúva alegre na primeira fila, a família, tristeza expressa nos olhares, nas lágrimas, nos trajes. Um passo à frente dos demais, o velho Zé Esteves, mascando fumo. Em seguida aos enlutados parentes, o reverendo, os meninos do catecismo, as pessoas gradas, dona Carmosina, buquê em punho, o colorido alegre das flores destoando do crepe e do choro - essa criatura para aparecer passa por cima dos sentimentos mais sagrados, indigna-se Perpétua, por baixo do véu preso ao coque, a lhe cobrir o rosto. Depois, as beatas e o resto da população.
A marinete se aproxima, Jairo ao volante, poucos passageiros. Para Jairo dia magro, para Agreste dia gordo, dia de matar o carneiro pascoal, de foguetório e festa em honra da filha pródiga, não fosse ela viúva em nojo e dor.
Cabem somente luto e lágrimas, cantoria de igreja.
As conversas cessam, Peto se alteia na ponta dos pés, assim a tia desembarque ele cairá fora, arrancará os sapatos. A marinete estanca num rumor cansado de juntas e molas. Peto conta os passageiros que descem: seu Cunha, um, o casal de roceiros, dois, três, dona Carmelita, quatro, a criada, cinco, esse eu nunca vi, seis, nem esse, sete, seu Agostinho da padaria, oito, a mulher dele, nove, a filha, dez, a tia Antonieta e a moça vão ser os últimos.
Mesmo Jairo salta antes, carregado de maletas e bolsas das esperadas viajantes. Com Jairo fazem onze, agora doze, é ela, por fim.
Será ela? Peto fica em dúvida. não pode ser, a tia deve estar de luto, véu fúnebre tapando o rosto, igual à mãe, não pode ser de maneira alguma essa artista de cinema, Gina Lollobrigida. Na porta, sobre o degrau, majestosa, Antonieta Esteves - Antonieta Esteves Cantarelli, faça o favor, exige Perpétua. Deslumbrante. Alta, fornida de carnes, a longa cabeleira loira sobrando do turbante vermelho. Vermelho, sim, vermelho igual à blusa esporte, de malha, simples e elegante, marcando a firmeza dos seios volumosos dos quais se vê apreciável amostra através da gola de botões abertos. A calça Lee azul colada às coxas e à bunda, valorizando volumes e reentrâncias, que volumes!, que reentrâncias! Os pés calçados com finos mocassins Havana.
O único detalhe escuro em todo o traje da viúva são os óculos esfumaçados, lentes e armação quadradas, o podre do chique, assinados por Christian Dior.
O espanto dura uma fração mínima de tempo, um tempo imenso, uma eternidade.
Peto, vitorioso, exclama:
- A tia não está de luto, mãe. Posso tirar os sapatos e a gravata?
Antonieta, paralisada sobre o degrau, na porta do ônibus: diante dela a família de luto pela morte de Felipe, o inolvidável esposo, e ela em tecnicolor, em azul e vermelho, blusa aberta, esportivas calças Lee, ai, meu Deus, como não pensara em luto? Estudara cada pormenor e os discutira com Leonora, meticulosamente. Esquecera o mais importante. Mas já Zé Esteves cospe o pedaço de fumo e estende os braços para a filha pródiga:
- Minha filha! Pensei que não ia mais te ver mas Deus quis me dar essa consolação antes da morte.
De cima do degrau da marinete, Antonieta reconhece o pai. O pai e o bordão. É o mesmo, o mesmíssimo cajado que cantou em suas costas naquela noite de fim do mundo. Um frouxo de riso sobe dentro dela, não consegue contê-lo, estremece, incontrolável som a romper-lhe a boca, apenas tem tempo de encobrir o rosto com as mãos, antes de saltar. Acorrem todos a consolar a viúva em pranto, filha pródiga afogando os soluços nos braços do pai, comovente instante. Nem Perpétua se deu conta. Elisa chora e ri, de repente desafogada, a irmã sendo como imaginara, sem tirar nem pôr. Única a estranhar o curioso som inicial, dona Carmosina aproxima-se com as flores tão de acordo com o traje de viagem de Tieta.
Enquanto Tieta vai de abraço em abraço, disputada pelas irmãs, pelo cunhado, pelos sobrinhos - tire os sapatos, meu lindo, fique à vontade -, presa aos beijos sem conta, às lágrimas de Elisa, na porta da marinete de Jairo aparece a mais formosa, a mais doce e sedutora donzela, esbelta juventude, uma laide como logo reconheceu e proclamou o vate De Matos Barbosa.
Parada, a contemplar a emocionante cena, emocionada ela também. Encantadora no slaque delavê, boné da mesma fazenda rodeado de cabelos loiros, acinzentados pela poeira, Peto reconhece a própria mocinha dos filmes de caubói. Um murmúrio de admiração percorre a rua, Tieta, desprendendo-se dos beijos de Elisa, apresenta:
- Leonora Cantarelli, minha enteada, minha filha, não tem diferença.
Dona Carmosina volta-se para Ascânio Trindade e o surpreende embevecido. E agora, amigo? Leonora amplia o meigo sorriso, abarcando a todos, detendo-se em Ascânio a fixá-la, atoleimado.
- Feche a boca, Ascânio, e vá ajudar a moça a descer - Ordena dona Carmosina.
Adianta-se Ascânio, oferece a mão à paulista: seja bem- vinda às terras de Agreste, pobres, sadias e belas, perdoe o atraso e o desconforto. Ricardo põe o joelho em terra para pedir a benção à tia mas ela o ergue e o toma nos braços, beija-lhe as faces: meu padreco mais garboso!
Após compreensível indecisão, o padre Mariano resolve, não vai perder, por uma questão de protocolo, o difícil trabalho de adaptação de uma ladainha e de quinze dias de ensaios.
Faz um sinal, os meninos do catecismo cantam:
Vestida de negro ela apareceu Trazendo nos olhos As cores do luto.
Ave. Ave! Ave Anton Ietal A mão ainda na mão de Ascânio, encantada, Leonora deixa escapar o riso cristalino, muito mais cristalino, oh!, muito mais!, do que a danada Astrud. Finada e sepultada, ali, naquela hora, em frente ao cinema, sob os pneus carecas da marinete de Jairo.
Antonieta, de abraço em abraço:
- Carmô, meu anjo, que alegria! Como vai dona Milú? Foi ela quem colheu as flores? Carina... Veja, virei italiana em São Paulo, vou dizer querida e digo carina... - A Tieta de sempre, jovial, marota, não mudou, mesmo dizendo Carina para dizer querida.
- Barbozinha! É você? Quase não lhe reconheço!
- As agruras da vida, Tieta, o sofrimento...
- Sempre escrevendo versos? Lembra dos que fez para mim? Lindos.
- Somente e sempre para você. Está mais moça e ainda mais bonita.
- E você continua mentiroso, Barbozinha. Adulador.
Ei-la em Sant'Ana do Agreste, em meio à família em luto, a ouvir os meninos do catecismo: obrigada, padre, de todo o coração. Do mar, chega a brisa da tarde, vem saudá-la. Com a ajuda de Sabino, Jairo desembarca as malas, a bagagem viaja no teto da marinete, coberta com lona grossa como se alguma cobertura adiantasse contra a poeira do caminho.
- Vamos, minha filha - convida Zé Esteves oferecendo o braço, apoiando-se no bastão.
- Para minha casa - tenta comandar Perpétua em meio aos destroços da violada compunção.
Cabe-lhe a culpa, a mais ninguém. Como pudera imaginar Tieta vestindo luto por marido? Fizera da irmã a sua igual, como se dinheiro, alta sociedade, casamento com paulista rico e comendador do Papa pudessem consertar quem nasceu totta, rebelde a códigos, leis e respeito humano, sem régua nem compasso.
Antonieta Esteves Cantarelli toma do braço do pai, circula o olhar, sorri para as beatas, para o árabe Chalita, para o Comandante e dona Laura, para Jairo, para o moleque Sabino, para Bafo de Bode a fitá-la da calçada, a medir e conferir. De tão mísero e podre, cabe-lhe o direito à insolência. A voz molhada de cachaça vibra na rua, em aprovação entusiástica:
- Viva o belo pé de buceteiro!
- Viva! Viva! Vivaa! - Apoiam os meninos do catecismo.
De portas e janelas e do coração de Jesus na sala de visitas ou os primeiros momentos no seio da família na esquina da praça com o beco das três Marias, a comitiva se detém.
- Chegamos - Anuncia Perpétua. - Vamos entrar.
- Tua casa? Esta? A que era do Doutor e de dona Eufrosina? surpreende-se Antonieta. Nas cartas, Perpétua referia-se à nossa casinha, adquirida pelo Major antes do casamento, na praça Desembargador Oliva. Mas, aqui é a Praça da Matriz.
- O nome correto é Praça Desembargador Oliva - esclarece dona Carmosina.
A casa do Doutor, a casa de Lucas. Antonieta veio preparada para enfrentar as recordações mas os equívocos começaram logo ao desembarque, ao perceber o Velho empunhando o bastão. Nunca imaginara hospedar-se ali, na casa onde Lucas permanecera após a morte do Doutor, estudando as possibilidades de clinica. Valeria a pena estabelecer-se?
Perpétua atribui a surpresa da irmã exclusivamente à dimensão da casa, sentimentos opostos a possuem. Satisfação a deleitá-la, não é uma morta de fome, miserável mendiga. Medo da reação de Tieta que pode considerar abuso o pedido de ajuda mensal para a criação dos filhos. Impõe-se uma explicação:
- Foi uma dádiva de Deus, caída do céu. O Major pagou uma bagatela pela casa e tudo que tinha dentro.
Os amigos se despedem com promessas de visita próxima:
- Vamos aparecer uma hora dessas - Avisa o Comandante.
- Venham hoje de noite para se conversar.
- Hoje, não, é dia da família.
- Dia de matar saudades... - Acrescenta dona Laura, sorridente.
- Amanhã, então.
- Amanhã, sem falta.
Pelo gosto de Ascânio, voltaria nessa mesma noite, não basta à família o resto da tarde? Além do mais, Leonora é parente afim, encontra-se cm Agreste pela primeira vez, não tem saudades a matar, vai ficar à margem da conversa familiar. Pena ele não ter a cara dura de dona Carmosina:
- Pois eu venho é hoje mesmo, com mãe. Quando saí ela me disse:
Hoje de noite vou em casa de Perpétua, visitar Tieta.
- Trouxe uma lembrancinha para ela, uma tolice. Por que não vêm jantar com a gente? Posso convidar, Perpétua?
- A casa é sua. Graças a Deus, tem comida com fartura.
Antes mesmo de tomar banho - preciso de um banho imediatamente, tenho poeira até na alma, aliás precisamos, as duas -, Antonieta esclarece:
- Enquanto nós estivermos aqui, a despesa da casa corre por minha conta.
Perpétua esboça um gesto de protesto, não chega a completá-lo, a ricaça corta qualquer tentativa de discussão:
- Se não for assim, pegamos nossas malas e vamos para a pensão de Amorzinho.
- Nesse caso, não discuto... - Apressa-se Perpétua a concordar, liberta do peso maior. Resta o menor: as despesas feitas para acolhê-las convenientemente, divididas entre ela, Astério e o Velho.
Nem esse prejuízo terão, Antonieta completa:
- Começando pelo que já gastaram para nos esperar.
- Ah! Essa não! - intromete-se Elisa: - Uma besteira, coisa á toa.
Fizemos uma vaquinha, coube um pouco a cada um.
- Tu fala como se fosse rica
- Perpétua desmascara a irmã, não há coisa pior do que pobre metido a besta: - se esquece que Astério teve de tomar dinheiro emprestado a Osnar para completar a parte de vocês?
- Cala a boca, mulher! - Elisa empalidece. Perpétua a humilha de propósito em frente à irmã e à forasteira. Por que expor diante da enteada a pobreza do casal?
- Perpétua tem razão, Elisa, minha filha. Se eu não pudesse, está certo.
Mas por que hão de fazer sacrifícios sem necessidade? Mais tarde Perpétua ou Astério me diz quanto gastaram e pronto.
Enquanto fala, Antonieta aproxima-se, abraça Elisa, beija-a afetuosamente - há entre elas um ar de família, uma parecença no rosto e no jeito, só que a mais moça não herdou a obstinação, a teimosia do velho Zé Esteves a marcar Perpétua e Antonieta, aquela dureza de pedra, a audácia das cabras.
Mas não herdou tampouco a resignação da mãe.
- não tenha vergonha da pobreza, minha filha. Hoje possuo alguma coisa mas enquanto fui pobre- eu comi o pão que o diabo amassou -, nunca me fiz de rica. Se fizesse, quem ia me ajudar? Nem bem conheci Felipe, fui logo pedindo dinheiro emprestado a ele.
Acarinhada, tratada de filha, Elisa recupera as cores e o prejuízo:
- Pediu dinheiro emprestado ao noivo?
- Que noivo nem meio noivo, só depois é que veio o noivado. Quando fui apresentada a ele, estava tesa. Um dia, com mais tempo, eu conto. Agora, quero é tomar banho. Queremos, não é, Nora?
- Nora?
- É o apelido dela. Essa, eu criei. Veio para minha companhia menininha, o que sabe, eu ensinei. Onde fica nosso quarto?
- O seu aqui, Tieta, é a alcova. O de Leonora ali, aquele - aponta Perpétua. - Cardo, Peto, levem as malas. Ajude também, Astério.
Por que Tieta não protestou, não pediu para ficar junto com a filha de criação como exigiam as boas maneiras? A janela da alcova abre sobre o Beco das Três Marias, a porta face a face com a do gabinete.
- Dorme alguém no gabinete?
- Ricardo.
- Eu, tia. Qualquer coisa que precise de noite, é só chamar.
Moreno, alto e forte, a suar saúde e inocência na batina. Se fosse em São Paulo usaria cabelos nos ombros, não tomaria banho, puxaria fumo, perdido maconheiro como os filhos de tantos amigos seus: Antonieta está cansada de ouvir histórias tristes. Sorri para o sobrinho.
- Se o bicho-papão quiser me pegar, grito por você. - Está tocada pelas atenções e gentilezas: - Tomaram tanto incomodo por nossa causa.
- Demais. - a voz musical de Leonora, em tom menor, não se eleva nunca: - a gente pode ficar as duas no mesmo quarto.
- agora já está tudo determinado, é tarde - diz Tieta, por que diz? A sombra de Lucas, na alcova.
Astério, Ricardo e Peto sem sapatos, conduzem malas e pacotes.
- Cuidado com essa caixa, Peto. É frágil. Aliás, o melhor é eu entregar logo.
Antonieta toma o embrulho majestoso, coloca-o sobre a mesa da sala de jantar, em torno à ansiosa curiosidade dos parentes:
- Uma lembrança para tua casa, Perpétua.
Experiente, Astério desfaz os nós do cordão encerado, enrola-o, dobra o papel grosso, ótimos, mesmo sujos serão úteis na loja. Cresce a ansiedade ante o vistoso papel para presente, fita cor- de-rosa, larga, o laço formando uma flor.
- A fita você desata, Perpétua - Astério cede-lhe o lugar.
Contendo o alvoroço, Perpétua toma da ponta da fita, lê a etiqueta: Do Senhor Jesus - objetos religiosos à vista e a prazo. Pague sua devoção em doze meses. Será, por acaso, aquilo com que há tanto tempo sonha, acalentado projeto de compra, encomenda a ser feita na Bania? Teria havido inspiração divina a comandar a escolha, iluminando o pensamento de Tieta? Deus, por vezes, usa empedernidos pecadores como instrumento para recompensar os custos.
Puxa a fita, surge a caixa branca. Retira a tampa, entrega-a a Astério de que matéria é feita assim tão leve? Isopor, explica Antonieta ao cunhado.
Uma exclamação geral, de admiração e aplauso. Do peito em chamas de Perpétua escapa um oh! de gozo profundo ao enxergar, na caixa de isopor, o objeto de seus sonhos, apenas bem maior em tamanho e em boniteza, em virtude certamente. Quanto maior, mais bonita e cara a imagem, mais santa e milagrosa. Deus inspirara Antonieta: na caixa, alto- relevo em gesso, o Sagrado Coração de Jesus. Nos cabelos, na face, nas mãos, nas vestes, no manto, todas as cores do arco- íris. Exposto o rubro, amantíssimo coração, a chaga aberta. A gota de sangue semelha descomunal rubi. Peça digna do altar-mor da Matriz de Aracaju. Ajudada por Astério e Ricardo, com extremo cuidado Perpétua retira a pesada efígie - nem quadro nem escultura, tendo algo dos dois e sendo coisa nova, jamais vista em Agreste, alto- relevo para ser pendurado em parede. Nas costas, forte armação de arame; à parte, uma espécie de base de madeira onde pousá-lo. Até os pregos vieram, grandes, especiais, de aço cromado, coisa de ver-se. Tieta respira:
- Felizmente chegou inteiro. Para você botar em sua sala de visitas, Perpétua.
- Ai, que coisa mais divina! Até tenho palpitações. não sei como agradecer, mana!
Perpétua beija a irmã na face, de leve e de longe. Assim beija os filhos e a mão de Dom José, a do padre Mariano. ao Major, como teria beijado? Se lhe fosse perguntado, Perpétua responderia que os casais unidos em santo matrimônio, abençoados por Deus, têm direito ao convívio carnal. Direito e obrigação. Mas certamente não diria que da lembrança daqueles beijos ela vive.
Peto alisa o isopor:
- Dá a caixa pra mim, mãe?
- Está maluco? Largue essa caixa aí. Deixe também o papel e o cordão, Astério. Posso precisar.
- Vou buscar o martelo, mãe? - Ricardo se oferece, segurando a peanha.
- Não tem nenhum que se compare nem aqui nem em Esplanada. O de dona Aída e de seu Modesto, ao lado desse, desaparece - vangloria-se Perpétua.
- Irmã como essa é que não há igual no mundo. - mesmo ao adular, Zé Esteves é bravio e virulento.
Para Perpétua não é hora de discutir qualidades e defeitos de Tieta, nem sequer a maneira imprópria como conduz a viuvez. O ouro paulista, a comenda papalina, a imagem do Coração de Jesus fazem- na perfeita.
- Tem razão, Pai. Irmã generosa como Tieta não há.
Custa-lhe pronunciar as palavras mas o futuro dos filhos exige sacrifícios, o Major os deixou aos seus cuidados.
Ao voltar, Ricardo não encontra a tia; preparam-se, ela e a moça, para o banho. Os demais encontram-se na sala de visitas. Astério segura a peanha, Perpétua já escolheu o lugar para a divina imagem: entre os retratos coloridos, ela de noiva, o Major de farda - trabalho de uma firma do Paraná, encomenda feita logo após o casamento. Ricardo encosta a escada na parede, empunha o martelo. não chegou ainda a uma conclusão sobre a santa com a qual a tia se parece. Antes de vê-la, ele a imaginara Senhora Sant'Ana, a padroeira, a avó. Da Senhora Sant'Ana não tem nada. Talvez Santa Rosa de Lima, Santa Rita de Cássia? Elisa estende os pregos ao sobrinho. Aqui, mãe, está bom?
De cima da escada, Ricardo enxerga a tia saindo da alcova, levando a toalha de banho e a saboneteira, o banheiro fica no quintal. Morena, onde a longa cabeleira loira do desembarque? Cabelos negros, crespos anéis como os dos anjos na igreja do seminário. Pele trigueira, perna e coxa aparecendo sob o negligê agitado pela brisa, Ricardo desvia os olhos. Perpétua fita a parede, talvez um pouco acima, aí está bem. não vê a irmã aproximando-se, à lavontê no robe rendado sobre os seios, vaporoso, preso apenas por um cinto, esvoaçando na brisa da tarde a morrer nas barrancas do rio. não vê ou não quer ver? Tieta olha e aprova, vai ficar bacana. Elisa, babada com o santo e com o penhoar.
- Que amor, esse robe!
Perpétua prefere não reparar:
- Vou falar com padre M ariano para vir entronizar no domingo, depois da missa.
Nem Santa Rita de Cássia, nem Santa Rosa de Lima, com que outra então no flor-santório? A caminho do banho, as ancas balouçando, que santa será ela, a tia de São Paulo?
Capitulo dos presentes onde se abrandam corações a cerimônia da entrega dos presentes realiza-se após o jantar, festa de exclamações e risos: recolhidos os pratos pela pequena Araci, retirada a toalha, Antonieta roga a Ricardo e Astério busquem na alcova a mala azul, a grandona, única ainda fechada. Colocam- na sobre a mesa, Astério encarrega-se de abri-la. Risinhos nervosos, a família na expectativa, Peto indócil alongando o pescoço para espiar dentro da valise. Também Leonora trouxe do quarto uma bolsa de viagem e, tendo descerrado o zíper, a mantém no colo, caixa de surpresas.
Cabem a Zé Esteves as regalias de prioritário: num estojo de luxo, relógio e pulseira de ouro - banho de ouro:
- Repare a marca, Pai. Vosmicê sempre desejou ter um relógio Omega, me lembro da inveja que tinha do patacão do coronel Artur da Tapitanga. Por falar nele, ainda é vivo?
- Vivo e lúcido. não tarda a aparecer. Pergunta sempre por você. Quem informa é dona Carmosina, pimpona ao lado de dona Milú.
- Já não tenho vaidade, minha filha. Nem vaidade nem relógio desde que o meu se quebrou e Roque não deu jeito. Agora vou poder ver as horas de novo. Estou voltando a ser gente, depois que tu chegou.
Leonora mete a mão na bolsa:
- E aqui tem um radinho de pilha, um transistor, para o senhor e dona Tonha ouvirem música, seu José.
- Tomando trabalho com a gente, moça! Um rádio? Quem vai ficar contente é Tonha, não é mesmo, mulher? Vive me azucrinando os ouvidos para comprar um...
Tonha concorda, contente demais, tanto desejara! Certa vez realmente atrevera-se a insinuar a compra de um dos mais baratos, insinuação primeira e única, levara esporro medonho: tu quer que eu desperdice o dinheiro que minha filha me manda? E se a gente adoecer? E quando a gente esticar a canela? Tu pensa que alguém vai pagar médico e receita, padre e cemitério?
Não me peça para botar dinheiro fora. Ficou maluca?
A própria Nora coloca pilhas no pequeno aparelho, irrompe o som de um samba, prefixo de estação de Feira de Santana.
- Maior do que o nosso... - sussurra Elisa a Astério. Quem sabe o Pai aceita trocar, ficar com o deles, recebendo volta em dinheiro. Tieta pagou a quota das despesas e, separando o de Osnar, a sobra a gente pode...
Não será necessário trocar pois Antonieta tira da mala imponente aparelho, sofisticado, quantidade de botões, várias faixas de onda, antena embutida, entrega à irmã: para você e Astério, é japonês, não há melhor.
- Valha-me, minha Nossa Senhora! Tieta, você é demais! - Elisa em nova chuva de beijos, agradecendo o rádio e o perdão: dona Carmosina lhe confirmou já ter esclarecido o assunto da morte de Toninho, não se preocupe onde e quando, não pense mais nisso.- Veio com pilhas? Quero ouvir o som a gota mesmo.
- Devem estar colocadas. Funciona também na eletricidade. Essa carteira, Astério, é para você guardar o ganho das apostas no bilhar. E aqui tem mais umas bobagens para você, Elisa.
Sortimento completo de cosméticos. Cremes e pinturas, todos os produtos para maquiagem, quanta coisa, meu Deus, vou desmaiar! Ruge mais diferente, desse nunca vi. Experimente o batom cintilante, recomenda Leonora. No aparelho de rádio, sucedem-se estações da Bahia, do Rio, de Recife falando para o mundo, de São Paulo e, trocando de onda, veia! ao seu alcance os cinco continentes - que língua mais arrenegada é essa? Parece russo, mas é a Rádio de Belgrado, Belgrado é capital de que país? Da Iugoslávia, leciona dona Carmosina.
Foi assim, de música, risos e beijos, foi de festa aquele começo de noite.
Como ela pode adivinhar o gosto, o desejo de cada um? Como sabe das façanhas de Astério no bilhar? Dos sonhos de Cardo com a vara de pesca, o molinete, o fio de náilon, as iscas artificiais? Como adivinhou? Sorri dona Carmosina ao ouvir a pergunta repetida, sem resposta: inspiração divina. Para Peto traga qualquer coisa desde que não sejam livros de estudo, ele quer somente vadiar, nadar e mergulhar no rio, bater bola na rua com os moleques, assistir às partidas de bilhar, vai completar treze anos e cursa ainda o Grupo Escolar. Peto ganhou um equipamento de mergulhador: máscara, arpão, pés de pato. aos dois jovens, Leonora ofereceu chaveiros com a efígie do Rei Pelé.
A Astério, uma gravata. Mantilha cor de chumbo, de Nora para Perpétua.
Para Elisa um anelão moderno, de fibra de vidro, a pedra enorme, cor de âmbar, a sensação da noite. O último lançamento da rua Augusta na capital paulista, Antonieta e Leonora têm iguais, só diferem na cor. Nora vai buscá-los. O meu está na caixa de jóias, em cima da penteadeira, avisa Tieta. Caixa dejóias, soa bem aos ouvidos dos parentes. Leonora exibe os dois anéis, verde-esmeralda o seu, branco-esfumaçado o de Tieta. Criações de um artista famosíssimo, Aldemir Martins, seus quadros valem milhões. Muito amigo do Comendador, Tieta o conhece, conhece muita gente importante de São Paulo, na indústria, na política, no comércio, nas artes e nas letras. Menotti del Picchia freqüenta sua casa. Dona Carmosina, leitora de As máscaras e de Juca Mulato, quer saber do poeta, se é tão romântico em pessoa quanto sua poesia. Já está velhote mas vive cercado de moças bonitas, ainda não perdeu o apetite, conta Tieta.
Ninguém pense ter sido Tonha esquecida, por madrasta. Além do rádio, ganha saia e blusa, trazidas por Tieta; um colar azul e lilás, lembrança de Leonora. Nem sabe agradecer, limpa os olhos, faz tanto tempo do último presente, uma fivela para prender os cabelos, comprada pelo Velho na feira.
Ainda usa, em sua mão as coisas duram.
Para dona Carmosina, colar, pulseira e anel de fantasia, galanteza de conjunto. Gosta mesmo? Tieta quer saber. Adoro. Adorou também a caneta esferográfica com cargas de diversas cores: obrigada, Nora, considere-me sua amiga pata sempre. Para dona Milú fazer paciência, uma caixa com dois baralhos, de plástico, laváveis e um xale italiano para a cabeça. Até a pequena Araci, da porta da cozinha a espiar, ganhou um broche, bijuteria em forma de coração para o vestido dos domingos. Uma vez na vida outra na morte, vai à matinê.
Um ostensório para a igreja, venha ver, Perpétua. Acha que o padre vai gostar? Se vai gostar, que pergunta! Custódia mais bela, deve ter custado os tubos. não foi barato mas não foi também todo esse dinheiro. Para remir os meus pecados... - Tieta ri, joga a cabeça para trás, Ricardo não pode imaginá-la pecadora. Que santa reúne a alegria e a devoção?
Pronto, acabaram-se os presentes. Ainda não, falta o porta- retrato de prata onde Perpétua colocar a fotografia do Major envergando a farda de gala da Policia Militar. A viúva perde a fala, faz um gesto, Ricardo entende, vai buscar o retrato guardado a sete chaves na escrivaninha. Agora, emoldurado em prata sobre a mesa, o perene sorriso (o bestial sorriso do Major no dizer de Aminthas, metido a humorista), a fisionomia franca, só falta o vozeirão.
Perpétua fita longamente o falecido: o esposo fizera-lhe todas as vontades e dois filhos. Tieta conseguira comovê-la, uma lágrima brota dos olhos gázeos, a primeira lágrima genuína chorada por ela após o pranto pela morte do Major. Perpétua amolece, eleva a voz sibilante:
- Ele era bom demais. Eu não pensava mais em casar, muito menos num marido como ele. Minha natureza é. .. - procura a palavra:. ..ríspida. Padre Mariano diz que eu não sei o que seja misericórdia. Antes de casar com Cupertino, só pratiquei o mal pensando fazer o bem. Quero que você, Antonieta, me...
Dona Carmosina arregala os olhos miúdos. Perpétua vai pedir perdão à irmã, fato inaudito. Mas Tieta corta a frase:
- lsso tudo já passou, Perpétua. Eu também não mereci o homem bom que tive e fez de mim o que sou hoje. não demonstro mas sinto demais a falta dele. Pena que o Major tenha morrido sem dar tempo da gente se conhecer.
Mas ficaram os filhos. - Estende os braços: - Venham cá, meus amores, beijar essa coroa que é a tia de vocês.
De batina, tão engraçado e sem jeito, o mais velho. O mais novo, matreiro, esperto, um azougue. O beijo de Ricardo apenas roça-lhe as faces, o do pequeno é cálido, já tem malícia.
Do camisolão, da camisolinha, do jarro com água e da oração pagara a promessa ainda no seminário, na semana dos exames, após receber carta de Perpétua com as novidades: a tia gozando saúde e os projetos de viagem. Morte houvera mas do Comendador, antes assim. Durante sete noites, Ricardo macerara os joelhos sobre grãos de milho, obtidos na despensa, e adquirira o hábito de rezar uma salve- rainha pela saúde da tia anciã, de tão velhinha avó.
A vida é um alforje de surpresas, afuma Dom José nos sermões dominicais, sobra-lhe razão. Ricardo ficou abobado quando vislumbrou tia Antonieta na porta da marinete, de anciã e avó não tinha nada. Nem parecia viúva, não pusera luto. Cabeleira loira, saindo do turbante, rolando nos ombros, o corpo apertado na blusa vermelha, na calça jean, a despertar exclamações. não apenas o brado, o viva de Bafo de Bode, indecência!
Ricardo ouvira igualmente o comentário de Osnar, em voz baixa, destinado a Aminthas:
- Que pedaço de mulher ela virou! Quebre! Cabrona! - Elevava a voz: - Uma fruta madura, Capitão Astério, parabéns pela cunhada. Osnar distribuía patentes militares entre os amigos. Seu Manuel era Almirante. Dona Carmosina, Coronela da Artilharia Pesada.
Engraçado: não ficara nem desiludido nem frustrado com a brusca mudança da imagem concebida- surpreende-se Ricardo a pensar enquanto retira a batina, veste o camisolão, ajoelha-se para recitar as orações e bendizer ' o Senhor que fizera a tia adivinhar o presente desejado. Escondera a vara de pesca para impedir fosse Peto o primeiro a usá-la, o irmão não tem o menor respeito pela propriedade alheia, um anarquista. Reza a Salve- Rainha pela saúde da tia, merecedora.
Estende-se na rede. Da alcova, a luz acesa ilumina o corredor em frente ao gabinete, tia Antonieta fora ao banheiro. Em lugar de uma velhinha, de uma avó, uma verdadeira tia, alegre, flamante- e ele a imaginara mais idosa ' do que a mãe. Um absurdo. Ricardo a ouvira dizer a idade a Barbozinha:
quarenta e quatro, meu poeta. Aqui não posso esconder, todos sabem. Fazem vinte e seis anos que fui embora, acabara de completar dezoito. Em São Paulo ' confesso trinta e cinco, pareço mais?
A mãe, ele sabe, diminui a idade. Devota e exigente, não admite mentiras e, no entanto, na hora de revelar a idade... A verdadeira está na certidão de casamento, trancada ali na escrivaninha junto com as escrituras das casas, a patente do pai, a cademeta militar, os louvores nas ordens de serviço. A tia não precisa negar porque é bonita. Bonita não é bem o termo, Ricardo procura a palavra certa: bonitona. Nela tudo é grande e vistoso. Com que santa se parece? Com nenhuma das conhecidas, nem Santa Rita de Cássia, nem Santa Rosa de Lima. Tia Elisa, quando melancólica, recorda Santa Maria Madalena. A mãe sempre de luto é Santa Helena com traje negro de viúva e véu de cinzas. Mas a força a desprender-se da tia, qual delas a possui? Apenas chegou e imediatamente passou a comandar. Por ser rica e generosa, sim, certamente, mas não só por isso. Há algo mais, indefinível, a impressionar Ricardo, a impor-se, não sabe explicar o que seja. Ele a enxerga cercada por um halo luminoso, como certos santos. Santa? Pela bondade, pela grandeza da alma, mas ela exibe outros atributos, carnais. Humanos, não carnais, palavra maldita, os pecados carnais, pagos com as chamas do inferno durante a eternidade.
Passos no corredor, é a tia de volta do banheiro. A precedê-la, chega o perfume, o mesmo dos envelopes, desprendendo-se a cada passo, anunciando-lhe a presença próxima. Ainda bem que o padre confessor lhe disse não haver pecado em perfume de velha tia. Velha? Madura.
Fruta madura fora a expressão usada por Osnar para classificá-la. Na hora confusa do desembarque, Cardo achara todo o palavreado do boa vida uma falta de respeito. Mas agora, ao ouvir os passos da tia, ao sentir-lhe o perfume, a comparação com uma fruta madura, rica de sumo, na plenitude da força, parece-lhe correta, não vê desrespeito, despropósito, pecado. Desrespeito compará-la com as cabras, isso sim. Osnar não tem salvação.
Antonieta conduz o jarro esmaltado cheio de água. Nas sombras do corredor pisa a ponta do robe longo, tropeça, vacila, vai cair. Ricardo acorre a tempo de sustê-la e tomar do jarro, levando-o para a alcova.
- Obrigada, meu bem. - Com um sorriso gaiato, mede o sobrinho, enorme no camisolão de dormir: - Você ainda dorme de camisolão?
- No começo do ano, vou passar para a divisão dos maiores e dormir de pijama... - explica orgulhoso. - Mas mãe só vai comprar quando eu for pro seminário.
Por baixo do penhoar semi-aberto, a curta camisola cor- de-rosa mais revela do que esconde as graças da tia, Ricardo desvia os olhos, pousa o jarro na argola do lavatório.
- Traga o lavatório para aqui e bote um pouco de água na bacia- pede Antonieta, sentada ante o espelho da penteadeira, cremes diversos em sua frente, vidros com líquidos coloridos, algodão, um exagero de frascos e potes.
Tia Elisa não tem nem a metade, a mãe não se pinta desde a morte do pai.
Derrama a água, toma o rumo da porta. A tia observa-lhe os movimentos:
- Vai embora sem me pedir a bênção?
- A bênção, tia. Deus lhe dê boa noite. – Dobra o joelho: - obrigado pela vara de pesca.
- Assim, não. Aqui perto e com um beijo.
Cardo beija-lhe a mão, ela toma-lhe do rosto e o beija em cada face. O perfume sobe dos seios. Mesmo sem querer, Ricardo os vislumbra, ou os adivinha sobrando da camisola. Abre, dissera Osnar.
Deita-se na rede, a luz permanece acesa no quarto da tia a desfazer a maquiagem, entra uma réstia no gabinete pela fresta da porta. Ricardo, de sono fácil - apenas cai na cama e os olhos se fecham -, hoje não consegue adormecer. Estranha a rede, quem sabe? Confusão igual à do desembarque quando viu a tia na porta da marinete, o oposto da imagem concebida na hora do anúncio da morte. O melhor é rezar. Desce da rede, ajoelha-se, cruza as mãos, Padre Nosso que estais no céu. O pensamento em Deus, louvado seja.
Onde Perpétua, cunhada atenta, cuida da alma do comendador enquanto Tieta e Leonora, em elegantes modelos transparentes, empolgam o burgo e Ascânio trindade explica o problema da luz elétrica pela manha, durante o café gordo - inhame, aipim, fruta-pão, banana cozida, cuscuz de puba mandado por dona Milú; como manter a linha e não engordar? - Perpétua comunica os horários da missa pela alma do Comendador e da entronização, a missa no sábado, às oito horas, a entronização no domingo, às onze. Antonieta se alarma: se não contiver a irmã mais velha, passará a temporada de férias na igreja, adeus projetos de praia, de passeios.
- Missa? Já mandamos rezar, em São Paulo, na igreja da Sé. De sétimo dia, de mês. Várias.
- Isso não tem importância, quanto mais melhor para a alma dele.
Como é que a gente ia ficar se não mandasse celebrar nem uma missa? Eu, Elisa, o Velho? O que o povo havia de dizer? Um comendador do Papa, um nobre da Igreja, ainda hoje padre Mariano repetiu: temos de cuidar da alma dele. Fez uma carrada de elogios a você. Por causa do hostiário.
- Você já esteve com o padre, hoje? A que horas?
- Não perco a missa das seis. Nem eu nem Ricardo, quando está aqui.
É ele quem ajuda.
Ricardo aproveita e pergunta se pode tirar a batina, botar o calção, ir até o rio, experimentar o molinete. Antonieta adianta-se :
- Pode, sim, meu filho. Vá brincar. E só volte na hora do almoço.
- Obrigado, tia. - Sai rápido antes que a mãe proteste.
- Uma graça, esse teu filho estudante de padre, ainda não me acostumei. De dia de batina, de noite de camisolão. Tamanho homem, Perpétua!
Vou comprar um par de pijamas para ele.
- Vai começar a usar quando voltar para o seminário. Fiz uma promessa à Senhora Sant'Ana: se, um dia, Deus me desse um filho, ele seria padre.
Ricardo foi o primeiro, pusemos o nome do avô, do pai do Major. Gosta de estudar, tem temor a Deus, estou contente com ele.
Tieta vota ao assunto da missa:
- Que droga! Eu tinha pensado passar o fim de semana em Mangue Seco, mostrar a praia a Leonora, ver se escolho um terreno para comprar. Ia combinar hoje com o Comandante, ele nos convidou quando chegamos.
- Eu também vou, tia. - De calção, segurando os pés de pato e a máscara de mergulhador, Peto espera o irmão.
- Este sábado não vai dar jeito. Você não pode faltar na missa. Nem na entronização, foi você quem me deu o Sagrado Coração. Já pensou? São coisas santas, mais importantes do que praia e banho de mar - força Perpétua.
Antonieta controla-se, engole o mau humor. Também, que idéia a sua, vir carregada de troféus religiosos, ela que nunca fora de missa e sacristia!
Culpa de Carmosina: Perpétua tem uma Santa Ceia na sala de jantar, se você trouxer um Coração de Jesus para a sala de visitas, a beata vai ficar maluca de
contente. não esqueça uma lembrança para a Matriz, padre Mariano só faltou lhe canonizar no sermão em que fez seu epitáfio. Foi atrás dos conselhos de Carmô, o resultado é esse: um porre de igreja. Chegou sonhando com a praia de Mangue Seco, merda! Engole também o palavrão.
De shorte, à mostra as longas pernas, as modeladas coxas, a blusa amarrada sob os seios, o umbigo de fora (ai, esses costumes de São Paulo, os meninos vão perder a virgindade dos olhos! Perpétua toca com os dedos as contas do terço no bolso da saia), Leonora sorri, acalma Tieta:
- Vamos à praia noutro dia, mãezinha. Dona Perpétua tem razão, a missa é mais importante. - Sorri para Perpétua: - mãezinha veio falando em Mangue Seco a viagem toda. Mas a missa é sagrada.
Muito bem, assim fala uma boa filha, mesmo sendo paulista, pouco atenta ao rigor do luto, aos prolongados ritos da morte, obrigatórios e rígidos em Agreste. Se Leonora se vestisse com decência, Perpétua só encontraria elogios a lhe fazer. Que necessidade tem de exibir o umbigo, que beleza existe num umbigo, pelo amor de Deus? Quem sabe, Peto poderia responder pois O olho apreciador vai e volta, das coxas para o umbigo, para a barriga de bilha, torneada.
- Tem razão, Nora. Continuo cabeçuda como uma cabra velha.
Quando quero uma coisa não vejo nada em minha frente. Iremos a Mangue Seco no fim da outra semana.
Conduzidas por Ricardo - vista a batina, acompanhe sua tia - foram ' à tarde conhecer a casa de Elisa. Barraco de pobre, mana, caro só o aluguel.
Caro? Se fosse em São Paulo... Lá, para começar, só os multi-milionários moram em casas, os demais vivem atulhados em apartamentos ou apodrecem em cortiços, sardinhas em lata. Em compensação, cada apartamento mais maravilhoso, não é? O de vocês, conte... Fica para depois, com tempo, agora precisamos ir. não antes de comer uma fruta, um doce, tomar um cálice de licor senão me ofendo. Doce de araçá, raramente se faz, delicioso! Licor de jenipapo. O que eu vou engordar, meu Deus! Gulosa, de volta aos sabores da infância, Tieta repete a dose.
Na rua, encontram Ascânio Trindade. Por acaso ou de propósito, deixou ele a Prefeitura às moscas? Querem ir aonde? Tem um passeio bonito: ali adiante o rio se alarga e forma pequena bacia, reduto das lavadeiras, lugar lindo, chama-se Bacia de Catarina, nome certamente posto por um literato, antepassado de Barbozinha. Ou por ele mesmo noutra encarnação. Hoje não, tem de visitar a Agência dos Correios, prometeram a Carmosina. Vão ao Areópago? ao quê? Areópago, é o apelido que Giovanni Guimarães, um jornalista da capital, botou na Agência dos Correios quando esteve em Agreste: ali se reúnem os sábios. Gozado! Leonora aberta em riso, cristal a romper-se nas ruas de Agreste.
Breve parada na porta do cinema para dizer boa tarde ao árabe Chalita - ainda se lembra de mim? Quem pode te esquecer, Tieta? Sorvete de mangaba, Leonora não conhece, vai ver o que é bom. Hoje é de graça, oferta da casa: o árabe se cobra lavando a vista em Tieta e na moça. Regala-se com a visão de mil e uma noites sob o transparente tecido dos modelos, iluminados por um raio de sol. Combinação, anágua? Isso não se usa mais, peças de museu. Sutiã? Para que, se os seios são firmes, não precisam de armação de entretela a sustentá-los? Calçola? Minúsculo tapa-se xo e basta. Viva a civilização e voltem sempre, suplica o árabe progressista.
Nas janelas, solteironas e mocinhas debruçam-se para enxergar melhor, observando cada passo, cada gesto, comentando os trajes. Você tinha coragem de usar? Eu? Acho que não. Pois eu teria, se mamãe deixasse. Tieta trouxe para Elisa uma minissaia mas ela ainda não se atreveu a estrear.
Alvoroço no bar, a matilha nas portas, brechando. Até seu Manuel larga o balcão, também é filho de Deus. Leonora acha graça em tudo, soltos, o riso e os cabelos; Ascânio recolhe pela rua pedaços de cristal, recorda um verso ouvido não sabe onde: loira como um trigal maduro. Fica sabendo do adiamento da visita a Mangue Seco e é convidado para a missa pela alma do Comendador. Tieta deixa-o à vontade:
- Se não quiser, não vá. Essa história de missa de finado, só por obrigação. Aliás, Felipe tinha verdadeiro horror a tudo que cheirasse a morte, defunto, cemitério, missa de sétimo dia. Pelo meu gosto ia a Mangue Seco.
Mas Perpétua faz questão, paciência.
Ascânio não aprova nem desaprova, nessas divergências de opiniões entre as irmãs não dá palpite, mas quanto a ir à missa, isso com certeza:
- No próximo sábado? Comparecerei, sem falta. Já estarei de volta.
- Vai viajar? - surpreende-se Leonora.
- Para onde? - interessa-se Tieta.
- Vou a Paulo Afonso tratar do problema da luz elétrica. Estão colocando luz da Hidrelétrica nos municípios de toda essa zona do Estado, só deixaram de fora três cidades, uma delas é Agreste, uma discriminação sem justificativa, no meu entender. Estou vendo se consigo que voltem atrás e nosso município entre na relação dos beneficiados. Mandei ofícios para meio mundo, sem resultado. Alguns nem tiveram resposta. Decidi falar pessoalmente com o diretor da usina. Numa conversa cara a cara, quem sabe eu o convenço e boto abaixo essa injustiça.
- Vai demorar? - a pergunta de Leonora é um pedido: não demore, volte logo, estou à espera. Assim dizem os olhos.
- Não, só dois dias. Pego a marinete amanhã, amanhã mesmo me toco de Esplanada para Paulo Afonso. Fico lá o dia de depois de amanhã, quinta-feira estou de volta. Talvez com uma boa notícia para Agreste.
- Gosto de gente decidida como você - apoia Tieta: - Vá, brigue e convença o homem, traga essa luz que Agreste bem precisa.
- Vai conseguir! - exalta-se Leonora: - Vou ficar torcendo.
- Se eu já estava disposto a brigar, agora nem se fala.
Sente-se Ascânio armado cavaleiro andante, partindo para o campo de luta sob a inspiração de sua Dulcinéia. ao voltar vitorioso, tendo convencido os frios e distantes diretores e técnicos da importância histórica e das possibilidades turísticas de Agreste, difícil tarefa, árdua batalha, colocará aos pés de Leonora o troféu conquistado: a refulgente luz da Hidrelétrica em substituição à bruxuleante iluminação atual devida ao motor instalado por seu avô Francisco Trindade, quando intendente, no tempo do onça.
Leoncio, ex-soldado da Policia Militar, ex-jagunço, atualmente paisano e capenga- um tiro casual na zona, há vários anos- funcionário municipal, pau pra toda obra, de faxineiro a moço-de-recados, de guardião a jardineiro, surge na esquina, arrastando a perna: reclamam a presença de Ascânio na Prefeitura.
- Me desculpem, preciso ir, sei de que se trata. Até logo.
- Até quinta, não é? Fico esperando - diz Leonora, os doces olhos.
- Quinta, sim. Mas, se me permitem, passo hoje à noite em casa de dona Perpétua para me despedir.
- não precisa pedir licença, venha sempre que quiser- convida Tieta.
- Venha mesmo. Sem falta- reforça a moça.
Na esquina da Praça, Ascânio volta-se, Leonora levanta a mão, acena, ele responde. Tieta se diverte:
- Já conquistou a Prefeitura, hein, cabrita? Rapaz simpático.
- Um amor... - resume Nora, a voz de enleio.
Da poluição e dos objetos não identificados, capítulo muito incrementado ou a visita ao aeropago na porta da agencia dos correios e telégrafos, dona Carmosina estende as mãos em boas- vindas:
- Entrem, meninas, estava esperando.
Comandante Dário levanta-se para cumprimentar as paulistas, logo volta à leitura da notícia na primeira página de A Tarde, comenta indignado:
- Não é possível que o governo vá permitir esse absurdo. Os diretores de uma fábrica igual a essa, igualzinha, para produzir dióxido de titânio, foram condenados à prisão, na Itália. O juiz, um macho, meteu todos no xadrez.
- Fábrica de quê? Me explique, Comandante.
- Estou lendo na gazeta que acaba de ser constituída no Rio de Janeiro uma empresa para montar uma fábrica de dióxido de titânio no Brasil uma monstruosidade.
- Por quê? Troque em miúdos.
- É a indústria mais poluidora que se conhece. Basta lhe dizer que só existem seis fábricas desse tipo em todo o mundo. Nenhuma na América, nem do Norte, nem do Sul. Nenhum país quer essa desgraça em seus limites.
- É assim?
Dona Carmosina intervém:
- Traga o recorte do Estado para Tieta ler. O Estado d São Paulo, jornal de sua terra - ri da pilhéria - publicou um artigo contando que um juiz da Itália condenou os diretores de uma fábrica dessas à cadeia por crime de poluição.
- Por crime de poluição? É o que se precisa fazer em São Paulo: meter um bocado de gente no xadrez antes que a cidade acabe.
- O pior - acrescenta o Comandante - é que o jornal já adianta que as autoridades não vão permitir a instalação da fábrica no Sul do país. Querem situá-la no Nordeste. É sempre assim: o que é bom, fica no Sul. Para o Nordeste sobra o refugo.
- É que em São Paulo, Comandante, a poluição já está de uma forma que ninguém suporta mais.
- onde iremos parar? Felizmente, nosso pequeno paraíso privado, Agreste, está longe de tudo isso...
Leonora aproveita para o elogio:
- Mãezinha sempre me falava que aqui era bonito a beça mas não pensei que fosse tanto. É uma coisa!
- Você ainda não viu nada... - dona Carmosina seinflama. Agreste, em matéria de paisagem, não perde nem para a Suíça. Me fale depois de ir a Mangue Seco.
- Quando vão a Mangue Seco? Ficarão conosco, na Toca da Sogra, eu e Laura fazemos questão - oferece o Comandante.
- Muito obrigada. Aceito, até comprar terreno, levantar minha palhoça. Vai ser logo, logo - responde Tieta. - Tínhamos pensado ir nesse sábado, passar o domingo. Mas Perpétua encomendou uma missa para Felipe e vai entronizar o Sagrado Coração de Jesus na sala.
- Tieta trouxe um Sagrado Coração para Perpétua que é um colosso.
Pode ser que na Bahia tenha outro igual mas eu duvido - conta dona Carmosina.
- Verei hoje à noite, penso ir com Laura fazer nossa visita de boas vindas. Quanto a Mangue Seco, a casinha está às ordens quando quiserem.
Lá, todo dia é dia de domingo.
O grupo aumenta com a chegada de Aminthas e Seixas. Os olhos gulosos varam a transparência dos longos cafetas das duas elegantes. Seixas só falta babar. Aminthas pergunta ao Comandante:
- Mestre Dário, que história é essa que está correndo por aí? Me disseram que apareceu um disco- voador em Mangue Seco, todo mundo viu.
- Eu soube, os pescadores me contaram. Alguns garantem ter visto um objeto estranho e ruidoso sobrevoando a praia e o coqueiral. Pensei que fosse um avião mas eles juram que não, já viram passar muitos aviões, não iam se enganar.
- Devem ser os amigos de Barbozinha vindos do outro mundo para visitar nosso poeta. Ele diz que se comunica com todo o espaço, pela telepatia.
- Você brinca com Barbozinha mas ele é sincero em tudo que diz.
Acredita piamente nessas coisas - atalha dona Carmosina.
- Um homem tão inteligente - lastima Seixas.
- Para mim - diverte-se Aminthas - o que os pescadores viram foi o reflexo de alguma lancha de contrabando... essa história de disco é pura tapeação.
- Não - contesta Dário. - os pescadores não são tolos e por que haviam de querer me enganar? Estou farto de saber do contrabando e, quando acontece, é à noite. Alguma coisa eles viram e ouviram. O quê, não sei, mas bem que podia ser um disco- voador. Ou você não acredita na existência deles?
Eu acredito. não nos espíritos de Barbozinha mas em seres de outros ?
planetas. Por que só na Terra há de se encontrar vida e civilização A pequena Araci chega correndo:
- Dona Antonieta, sinhá Perpétua mandou chamar vosmicê e a dona, moça. Seu Modesto está lá com dona Aída, pra visitar.
- Que pena, a prosa estava gostosa. Vamos, Leonora. Apareçam à noite. Até logo, Comandante. Carmô, não falte.
Tieta do agreste pastora de cabras descem o degrau do passeio, lá se vão lá afora. o sol poente ilumina as duas mulheres, lambe-lhe os corpos e os revela doirados e desnudos, como se a luz do crepúsculo houvesse dissohado o vaporoso tecido dos cafetãs, fascinante moda importada das terras de sonho e fantasia onde nasceu Chalita.
De visitas e conversas, onde Leonora exprime inesperado desejo, a sala de visitas cheia, a noite. a pedido de Tieta, peto encomendara no bar volumoso carregamento de cerveja, guaraná, coca- cola. A tia Antonieta é o novo ídolo de Peto, desbancou os mocinhos do cinema, os heróis das histórias de quadrinhos. Sabino quebra uma pedra de gelo no quintal, enviada por Modesto Pires, do curtume. Na beira do rio, o moleque Sabino foi o único que conseguiu pescar com a vara nova, utilizando o molinete. Trouxe os peixes para Tieta e lhe pediu a benção. Cardo e Peto vieram carregados de pitus.
A prosa se estende sem compromisso ao sabor dos assuntos mais diversos, a partir da sensação causada pelas modas de São Paulo, as perucas, a transparência dos tecidos, as calças justas, as sandálias.
Perpétua é contra cafetãs transparentes, calças coladas modelando bundas, comprimindo ancas, shortes exibindo coxas, blusas amarradas sob os peitos, umbigos de fora, condena a devassidão que vai pelo mundo:
- Podem me chamar de atrasada. Moça solteira, moderninha, vá lá que use... - extrema concessão a Leonora. - Mas mulher casada, não acho decente. Viúva, muito menos, Antonieta que me desculpe. Se eu fosse Astério, não ia deixar Elisa usar a tal minissaia que você deu a ela.
- Você encruou no passado, mana. - Antonieta desata em riso.
- Agreste inteiro vive no passado - Ascânio Trindade culpa a pasmaceira, responsável pela língua das beatas. - até mesmo um homem viajado como o Comandante é contra o progresso. Quando eu falo em turismo para reerguer a economia do município, ele fecha a cara.
- Contra o progresso, vírgula, amigo Ascânio. não confunda as coisas.
Sou a favor de tudo que seja útil a Agreste mas sou contra tudo que venha roubar nossa tranqüilidade, essa paz que não tem preço que pague. não tenho nada contra a minissaia desde que a pessoa a usá-la tenha condições para isso.
Numa mulher de certa idade já não cai bem.
- Por exemplo? - desafia dona Carmosina.
- Cito o exemplo de duas lindas senhoras aqui presentes: Laura e Antonieta. No meu entender, já passaram da idade.
Dona Laura nunca pensou em minissaias mas ameaça o marido, bem humorada:
- Não sabia que você era tão entendido em minissaia, Dário! Até parece que já viu muitas... Pois eu vou tomar a de Elisa emprestada e saio desfilando por aí, você vai ver.
- Para mim não é uma questão de idade e, sim, de físico. Minissaia não vai com meu corpo, com minhas abundâncias - lastima-se Tieta.
Barbozinha, a fumar literário cachimbo, quase sempre apagado, consola:
- Tens o tipo clássico, Tieta. A beleza suprema, Vênus, era assim. não suporto esses esqueletos que andam exibindo os ossos. não me refiro a você, Leonora. Você é uma laide.
- Obrigada, seu Barbozinha.
- Infelizmente meu poeta ninguém pensa mais como você. És meu,, único eleitor. - Tieta volta-se para Ascânio - Turismo, em Agreste Acha possível?
- E por que não? A água é medicinal, os exames já foram feitos, Modesto Pires mandou as amostras para o genro que é engenheiro da Petrobrás. Os resultados foram formidáveis, tenho cópia na Prefeitura se quiser ver. Modesto Pires está estudando a possibilidade de engarrafamento.
O clima é o que se vê, cura qualquer doença. Em matéria de praia, onde mais bonitas?
- Isso é verdade, praia igual à de Mangue Seco não vi em lugar nenhum.
Copacabana, as praias de Santos, nem chegam perto. Mas daí... Enfim, não :' digo nada, não quero pôr água fria em suas esperanças. É preciso, porém, muito dinheiro, muito mesmo...
- Já disse a Ascânio: deixe Mangue Seco em paz enquanto a gente viver... - resume o Comandante.
- Vou comprar um terreno lá, fazer uma casinha de veraneio. Um dos motivos de minha viagem foi esse: adquirir terreno em Mangue Seco e uma casa aqui na cidade, quero terminar meus dias em Agreste. Enquanto não vier de vez, Pai e Tonha ficam morando na casa, tomam conta. Vim por isso e para tirar esta pobre da fumaceira de São Paulo - aponta Leonora. - anêmica como é, naquela podridão.
- É verdade, Tieta, o que os jornais dizem? Que a poluição em São Paulo está ficando intolerável?
- Uma coisa medonha. Tem lugares, nas zonas mais afetadas, onde as crianças estão morrendo e os adultos ficando cegos. A gente passa dias e dias sem enxergar a cor do céu.
- Com tudo isso, era lá que eu queria viver - desafia Elisa.
Tímida, Leonora contradiz, a voz mansa:
- Pois eu adoraria viver aqui. Se pudesse, não saía daqui nunca mais.
Aqui eu respiro, vivo, sonho. Lá não, lá se trabalha noite e dia, dia e noite.
Trabalha e morre.
Ascânio tem vontade de pedir bis: repita essas palavras, são favos de mel
Ah!, se ao menos ela fosse pobre...
Tão embevecido a contemplá-la, nem toma conhecimento do debate acalorado e filosófico, empolgante, travado entre dona Carmosina, Barbozinha e o Comandante Dário sobre o objeto não identificado, visto pelos pescadores quando sobrevoava as dunas de Mangue Seco e o coqueiral sem fim.
Barbozinha se exalta, em explicações esotéricas, enquanto o Comandante exibe vasta cultura de ficção científica e dona Carmosina fala em ilusão coletiva, fenômeno corriqueiro. O corte da luz, às nove horas, o badalar do sino da Matriz mandando o povo ordeiro para a cama, interrompe a discussão, todos se põem de pé, em despedida. Mas Tieta rompe a tradição:
- Nada disso, não são horas de ninguém dormir. Vamos conversar.
Perpétua, mande acender as placas. Onde já se viu dormir a essa hora? Ainda bem que o nosso jovem prefeito vai trazer a luz de Paulo Afonso. Para acabar com esses horários de galinheiro. Vamos tomar mais uma cervejinha, um refrigerante. A prosa está tão boa...
Rejubila-se Ascânio, prefeito ainda não, apenas provável candidato.
Volta a sentar-se. Mas o Comandante e dona Laura preferem deixar a continuação da conversa para o dia seguinte e levam dona Carmosina, vão acompanhá-la até em casa. Do bar, chegam Astério, Aminthas, Osnar.
- Cuidado, prima, para o lobisomem não lhe pegar - recomenda Aminthas a dona Carmosina.
- Se assunte, malcriado.
Elisa e Peto acompanham o grupo dos sonolentos, de má vontade. Elisa arvora ar de vítima, melancólica; Peto pensa em fugir mais tarde em busca de Osnar. Prometeu levá-lo à caça, não cumpre o prometido.
Tieta convida os dois compadres:
- Entrem, não fiquem aí na porta. Venham tomar um gole de cerveja.
Osnar e Aminthas são notívagos, aceitam. Ricardo acabou de acender e colocar lampiões de querosene na sala. Perpétua ordena-lhe :
- Cardo, vá dormir. Já passou da hora.
- Boa noite para todos, com a graça de Deus. A bênção, mãe.
Perpétua dá-lhe a mão a beijar, o rapaz dobra o joelho em ligeira genuflexão.
- A bênção, tia.
- Venha aqui para eu te abençoar. Nada de beija- mão. Meu beijo, quero no rosto, Dois, um de cada lado.
Agarra com as mãos a cabeça do sobrinho enfarpelado na batina, beijão nas duas faces, beijos estalados, deixam a marca do batom.
- Meu padreca!
Também Perpétua se despede:
- Boa noite. Fiquem à vontade. A casa é sua, Tieta.
Tão gentil, nem parece a mesma, irreconhecível.
- Tieta está domando a fera. .. - confia Osnar a Aminthas enquanto as irmãs trocam abraço e beijo. - Você já tinha visto dona Perpétua beijar alguém?
- Perpétua não beija, oscula - retifica Aminthas.
Interregno onde o autor, esse pilantra, explica sua posição oportunista enquanto Ascânio Trindade se apaixona, enquanto Elisa e Leonora sonham uma com São Paulo outra com a paz de Agreste, aproveito para referir-me à notícia publicada nas colunas de A Tarde, lida pelo indignado comandante Dário. Pobre Nordeste!, exclamou o bravo marujo ante a possibilidade da poluidora indústria estabelecer-se em nossas plagas onde já temos seca e latifúndio, o hábito da miséria, o gosto da fome e as famosas trevas do analfabetismo antes tão citadas hoje esquecidas: não se falando nelas talvez desapareçam na luz dos tempos novos. Jogar sobre tudo isso dióxido de titânio parece-lhe um exagero antipatriótico. Opinião dele, da qual, como se verá, há quem discorde, muitos e importantes personagens, alguns tão poderosos que me apresso a esclarecer minha posição: sou neutro. Contaram-me o caso quando aqui cheguei, eu o passo adiante, sem opinar.
Assim, por exemplo, a empresa referida na notícia e no comentário do jornal pode ser a mesma que deu lugar a tanta discussão, dividindo o povo em dois campos, mas pode não ser ela, e sim outra, pois nunca ficou completamente esclarecida a origem da sociedade nem a dos diretores, dos patrões verdadeiros. Como sabemos, o doutor Mirko Stefano não passa de um testa-de-ferro a comandar relações- públicas e privadas, assinando cheques, abrindo garrafas de uísque em rodas alegres, na gentil companhia de permissivas e agradáveis dondocas, acendendo esperanças e ambições, amaciando, passando vaselina para permitir mais fácil penetração de idéias e interesses.
Saiu uma notícia no jornal, em sua divulgação não tenho a menor responsabilidade, não transcrevo sequer o título registrado pela sociedade em causa, nem o dela nem o de nenhuma outra. Se a fabricação de dióxido de titânio faz economizar divisas aos cofres da nação e cria mercado de trabalho para uns quinhentos chefes de família- quinhentos vezes cinco são duas mil e quinhentas pessoas vivendo da empresa -, como acusar de falta de patriotismo quem em tal indústria coloca seu dinheiro e aqueles a apoiar suas pretensões? Para provar-lhe s o patriotismo e o desinteresse, argumentos não faltam, de todos os tipos e para todos os gêneros, inclusive aquele a convencer o nosso ardente Leonel Vieira, plumitivo cuja integridade ideológica exigiu que o cheque viesse acompanhado de razões sólidas. A fábrica ajudará a formação do proletariado, classe que, amanhã, bandeiras reivindicativas em punho, exigirá a posse do poder. Um teórico do talento de Leonel Vieira não pode desprezar tal argumento. Como se vê, de todos os tipos e para todos os gêneros. Sem dióxido de titânio não há progresso.
Não faltam igualmente razões aos que se opõem, pois na fumaça, nos gases expelidos, no dióxido de enxofre pairam a destruição e a morte. A presença de sol na atmosfera fabril é altamente danosa à saúde dos operários e dos habitantes que estão dentro do raio de diluição do gás, assim leu o Comandante no comentário do jornal. Morte para a flora e para a fauna, morte para as águas e para as terras. Pequeno ou grande, é o preço a pagar.
Não que eu fique indeciso: fico neutro, coisa muito diferente. não me meto na briga, quem sou eu? Desconhecido literato nas restauradas ruas antigas da Bahia, hoje atrações turísticas, enfermo a buscar saúde no clima do sertão, não me cabem conclusões. Nesseinterregno, nessa pausa na narrativa da chegada a Agreste de Tieta e de Leonora Cantarelli, enquanto Ascânio discute em Paulo Afonso, antes da missa pela alma do Comendador, nesseinterregno, repito, quero apenas colocar aqui uma afirmação que, em geral, seinscreve no início dos livros de ficção: toda semelhança é mera coincidência. Sem esquecer outro lugar- comum: a vida imita a arte. Falta-me arte, certamente, mas não estou disposto a responder a processo por crime de calúnia ou a ser agredido por um pau- mandado de Mirko Stefano, melifluo e untuoso, quase sempre. Colérico e violento, se preciso.
Novo fragmento da narrativa, na qual - durante a longa viagem de ônibus leito da capital de São Paulo a da Bahia - Tieta recorda e conta episódios de sua vida a bela Leonora Cantarelli - ti gulosa, gulosa de homens, quanto mais melhor. pai tinha muitas cabras, bode inteiro só um, Inácio. Eu era cabra com vários bodes, montada por esse ou por aquele, no chão de pedras, em cima do mato, na beira do rio, na areia da praia. Para mim, prazer de homem, só isso e nada mais:
deitar no chão e ser coberta. Na mesa do Velho, sempre a mesma coisa, feijão, farinha, carne-seca. Quem primeiro me ensinou os pratos finos, os que aumentam a gula em vez de saciá-la, foi Lucas, na cama do finado doutor Fulgêncio.
Jovem médico em busca de trabalho, doutor Lucas de Lima bateu-se para Agreste ao saber do falecimento do doutor Fulgêncio Neto. A viúva o hospedou na alcova pois nunca mais ali dormira, desde a morte do marido.
Mostrou-lhe o gabinete, as notas do meticuloso clínico sobre cada cliente.
Antigamente, antes de Judas descalçar as botas em Agreste, contaram-se até cinco médicos exercendo na cidade, ganhando bom dinheiro, construindo casas e pecúlio. Foram morrendo com o lugar, sem substitutos. Ficara doutor Fulgêncio, sozinho, no lombo do cavalo, no banco da canoa, tantas vezes de noite. A simples presença do ancião com a maleta preta bastava para aliviar dores e curar enfermos. Remédios simples e poderosos: óleo de rícino, Maravilha Curativa, Saúde da Mulher, Emulsão de Scott, Bromil, chá de sabugueiro. Aplicados com economia: o melhor remédio eram as águas e o ar de Agreste, a brisa do rio, o vento do mar. Dona Eufrosina mandara buscar as malas do doutor na pensão de dona Amorzinho. não iria deixar um colega do marido pagando hospedagem. Cozinhou para ele galinha de parida, prato preferido do doutor Fulgêncio, escalfado de pitu com ovos, carne- de- sol com pirão de leite. Na falta de doentes, os petiscos, os doces, as frutas.
Nem Tieta o segurou ali, naquele mundo saudável e agonizante. Talvez ficasse se a natureza, o rio, o mar, a praia selvagem significassem alguma coisa para ele. Outra, sua paisagem: notívago, boêmio nos castelos e cabarés da capital. Médico em Agreste não pode ser solteiro, deve ter esposa, constituir família, não tem direito a freqüentar casa de mulher- dama, a entregar-se à farra.
- Lucas tinha medo da língua das xeretas, todas de olho nele, dia e noite. Querer me agarrar, ele queria. Mas não na beira do rio, nem arriscar uma fugida a Mangue Seco. Quando eu soube que dormia na alcova, na cama do doutor Fulgêncio, ri e disse: deixe a janela aberta. Saltar janela sem ser vista, sem fazer barulho, era comigo.
Quando Lucas se deu conta, Tieta estava na cama, estendida no colchão de la de barriguda, afundando. Mole, não tinha a solidez do chão. Ela se abriu para ser montada.
- Pra ser coberta, outra coisa não sabia. Quando ele veio com os dedos me tocar, com a boca me beijar o corpo inteiro, a lâmina da língua e o hálito quente, quis impedir, sem entender. Com ele aprendi, na cama do doutor e dona Eufrosina, os molhos e os temperos, e soube que homem não é apenas bode. Com ele virei mulher. Mas penso que até hoje há em mim uma cabra solta que ninguém domina.
Nem mesmo Tieta o reteve. Quando no meio da noite ela chegou, deu com a janela fechada. Lucas beijara a face maternal de dona Eufrosina, volume embora enquanto é tempo. Apesar de Tieta, engordara quilos e começava a gostar daquela pasmaceira, fugiu antes que fosse tarde.
- Já não fui a mesma, diferente a minha gula. não demorou, veio o caso do caixeiro- viajante; quando ele apareceu rondando a casa, Perpétua pensou que fosse por ela, a infeliz. Logo se deu conta, seguiu meus passos. O Velho me quebrou no pau e eu fui embora, só queria reencontrar Lucas em qualquer parte da Bahia. não vi ele nunca mais, em troca fiz a vida no interior, vida de rapariga, em Jequié, em Milagres, em Feira, por aí afora. Eu te digo que escola de verdade é casa de mulher à- toa no sertão. Aí, sim, se aprende o ofício.
Quebrei a cabeça nesse mundéu até que me toquei pro Sul, cansada de sofrer.
Queria a boa vida, comer do bom e do melhor, beber champanha, provar as iguarias do homem. não feijão e carne-seca.
- Quem me dera o feijão e a carne-seca, um filho, um casal era tudo o que eu queria - disse a bela Leonora Cantarelli.
- Cada qual carrega seu castigo, nem as cabras são iguais em seu desejo, quanto mais as criaturas. Conheço cabra e gente, posso te dizer.
Da insônia no leito de dona Eufrosina, povoada de emoções; sentimentos e membrias na primeira noite, vencida pelo cansaço da viagem de marinete, rude prova, das emoções da chegada, após retirar a maquiagem, Tieta arriara na cama e dormira de um sono só, reparador. Há quantos anos não se recolhia às nove da noite? Ainda mocinha, já atravessava a madrugada nos escondidos de Agreste.
Na segunda noite, porém, quando por volta das onze as últimas visitas despedem-se, Tieta prossegue acesa, sem sono. Na porta, ela e Leonora renovam os votos de êxito a Ascânio na missão cívica a conduzi-lo a Paulo Afonso.
- Vá e vença... - deseja Tieta.
- E volte... - acrescenta Leonora.
Aminthas declara-se pessimista sobre os resultados: luz da Hidrelétrica?
Bobagem, nem pensar. Terra esquecida dos políticos, município de eleitorado ralo, sem prestígio, sem um chefe capaz de falar grosso, de influir na diretoria, de manobrar junto ao Presidente da Empresa e das autoridades federais, Agreste está destinado a continuar com a escassa luz do motor enquanto o motor ainda funciona. Depois, voltaremos aos fiofós e placas, prevê, em alarmante presságio. Ascânio merece todos os louvores, sujeito arretado, não se dá por vencido. Mas não tem prestígio político, força junto aos grandes, essa a verdade. não é mesmo, Ascânio? De fato, concorda o Secretário da Prefeitura. Nem por isso deixará de tentar.
- me perdoem, senhoras e senhores, mas eu sou contra essa luz de Paulo Afonso, forte, brilhante, iluminando as ruas a noite inteira- proclama Osnar. - Um desastre para os pobres caçadores noturnos, vai afugentar a caça...
- Que caça? - quis saber Leonora.
- Descaração de Osnar, minha filha. Com caça ele quer dizer mulher, esses debochados ficam procurando mulher nas ruas...
- A caça já é vasqueira, imagine com essa iluminação toda. ..
Em risos se separam, Barbozinha declamando farrapos de poemas de amor, de sua autoria, compostos todos, segundo diz, para uma única musa, adivinhem quem? Tieta eleva os olhos para os céus, põe a mão sobre o coração, suspira, gaiata. Perdem-se as visitas na escuridão.
Despede-se também Leonora:
- Estou morta de sono. Boa noite, mãezinha, estou adorando.
- Ainda bem. Tinha medo que você se chateasse.
No quarto, Tieta abre a janela sobre o beco, espia a noite, o céu de estrelas. Nos tempos de moça, sabia o nome de todas elas e gostava de fitá-las na hora do amor, quando o leito era o capim da beira do rio. Durante quantas noites pulara aquela janela para encontrar Lucas?
Apaga o lampião, deita-se, cadê o sono? Ali está ela, outra vez em Agreste em busca da moleca Tieta, pastora de cabras. Andara longo caminho, pisara pedras e cardos, rompera os pés e o coração, antes de começar a subir, a ganhar, juntar e aplicar dinheiro sob a orientação de Felipe, a ter propriedades e a ser senhora de seu nariz. Durante todos esses vinte e seis anos, imaginara a volta a Agreste, sonhara com esse dia.
Recorda o embaraço do desembarque, aflora-lhe aos lábios um sorriso:
A família de luto fechado, ela ostentando blusa e turbante vermelhos, Leonora em delavê azul, esposa e filha sem coração, desnaturadas. ao chegar em casa, dissera em brusca explicação: para mim luto se carrega é no peito, coisa íntima; a dor da ausência não se exibe, nem a saudade; assim eu penso mas cada um deve pensar como quiser e agir de acordo. Fim de papo, Perpétua.
Zé Esteves apoiara em virulenta língua de sotaque: muito bem dito, minha filha, luto não passa de hipocrisia; eu só botei essa roupa preta para não ser tachado de cabra ruim, mas se nem conheci o teu finado por que havia de pôr luto? Só porque era rico? Fosse ou não da boca para fora, a própria Perpétua concordara: cada qual pensa à sua maneira e age de acordo. A dela era o respeito aos costumes antigos; vestida de negro porque com a morte do Major - Deus o tenha em sua guarda! - perdera o gosto pela vida. Mas não criticava Antonieta, respeitando seu ponto de vista; não sendo nenhuma ignorante sabe que em São Paulo ninguém liga para esses hábitos do passado.
Pobre Perpétua! O que já engoliu de sapos de ontem para hoje! Faz visível esforço para mostrar-se atenciosa, tolerar a invasão de sua casa, a violação de tantos preconceitos. Antonieta não pode imaginá-la casada; pena não tê-la visto com o marido. Como se comportava? Precisa perguntar a Carmosina. Beijavam-se em público? Certamente, não. Percebera Aminthas segredando a Osnar que Perpétua não beija, oscula. ao Major, oscularia ou, perdida a tramontana, aplicava-lhe uns chupões? Na cama, como seria? não passavam, sem dúvida, nos embates noturnos, do clássico papai-e-mamãe.
Ou passariam? Nesse particular, o impossível acontece, Tieta pode dar testemunho. Devia ser algo monumental, Perpétua embolada com o marido naquela cama, sobre o colchão de lá de barriguda.
Tieta ri baixinho, imaginando Perpétua de pernas abertas por baixo do Major, visão insólita. Esquecendo-se de que, se não fosse a rápida passagem de Lucas por Agreste, tampouco ela provaria ali outro gosto de homem além do trivial. Acontecera também naquela cama de casal, de dona Eufrosina e do doutor Fulgêncio, louca coincidência. Durara pouco, algumas noites tão somente, todas elas por inteiro de delírio. Pela janela aberta penetrava o céu de mil estrelas. No seu xibiu nascia a estrela da manha.
Quando pela primeira vez pulou a janela, invadiu o quarto, subiu na cama e suspendeu a saia, era uma cabra em cio, faminta de homens, ignorante de tudo o mais. Lucas entendeu e riu. Vou te ensinar a amar, prometeu e ensinou do a ao Zé, passando pelo ipicilone.
- Não sabe como é, o ipicilone? É o melhor de tudo, vou-lhe mostrar.
No correr da vida tão vivida, Tieta não voltara a encontrar quem conhecesse a prática sensacional do ipicilone; a muitos ensinara, trunfo irresistível. Nas ruas da Bahia, procurara Lucas, inutilmente. Indagou de muitos: conhece doutor Lucas? Lucas de quê? não tivera curiosidade de perguntar, sabia-o apenas médico e bom de cama. Ninguém pôde lhe informar.
Educara-se em curso intensivo naquele leito de dona Eufrosina, onde depois Perpétua e o Major dormiram e fizeram filhos. Burro como um toco de pau, escrevera Carmosina na carta sobre os presentes, a propósito do falecido cunhado. Se o Major fosse vivo, você podia trazer para ele uma cangalha, ia-lhe bem. Curto de inteligência mas bem dotado de físico, um tipão: moreno carregado na cor, passo militar, e que apetite! Capaz de traçar Perpétua, carne de pescoço! Tanta moça dando sopa em Agreste, qualquer delas feliz se arranjasse casamento, fosse com ele ou com quem fosse, desde que vestisse calças, e o obtuso escolhe, prefere, leva ao altar a beata Perpétua, aquele estrepe, donzela encruada, cara de prisão de ventre. Mais estranho ainda, foram felizes e o luto que ela enverga, fechado e exposto, nada tem de hipócrita, reflete sentimento verdadeiro, dor profunda.
Deus tivera pena dos meninos, contara Carmosina na carta relatório, de tanta utilidade: saíram ao pai na parecença e no caráter, alegres, cordiais, simpáticos, da mãe herdaram somente a inteligência. Perpétua pode ter todos os defeitos, mas não é tapada, sabe raciocinar e agir, poço de ambição.
Tieta pensa nos meninos, gosta dos dois. Quando decidira a viagem, pensava que iria se apegar ao pequeno de Elisa, adorava crianças. Mas esse morrera, Carmosina explicara na carta o motivo do silêncio da irmã - a culpa é sobretudo minha, melhor dito da pobreza; sem a ajuda mensal, Elisa se encontraria privada de quase tudo, mentiu sob conselho meu. Tieta perdoara mas não esquecera. Sobraram os dois de Perpétua: no leito perseguindo O sono, a tia com os sobrinhos.
O pequeno, um malandro, malicioso, sabidíssimo. não tira os olhos dela e de Leonora, medindo as coxas desnudas, bispando nos decotes as curvas dos seios. Ainda não atingiu a idade mas para isso haverá limites rígidos, realmente?
Em troca, Ricardo é exemplo de recato e pudicícia, vive desviando a vista, com medo de pecar, violentado coroinha. Coroinha, não, seminarista, destinado ao serviço de Deus. Tamanho corpanzil e de camisolão! Tieta recorda e morde os lábios.
Um frangote, não chegou ao ponto exato. Se fosse mulher, estaria de pito aceso, homem tarda mais, sobretudo se lhe enfiam uma batina, capam-lhe os bagos com o temor de Deus, ameaçam- no com as chamas do inferno. O pequeno vai desarmar cedo, é um corisco; o destino de Ricardo é permanecer donzelo, que maldade!
Fosse mais taludo, a tia lhe ensinaria o que é bom. Está, porém, ainda muito verde. Tieta jamais gostou de homem jovem, preferindo-os sempre mais velhos do que ela. Bode bom de cabra é aquele que tem idade e experiência.
Da triste volta do cavaleiro andante, escorraçado, e dos telegramas enviados por Tieta motivando comentários, hipóteses e apostas precedidos, volta e telegrama, do dialogo entre Osnar e doutor caio Vilasboas que por frascario e inútil não devia figurar em obra literária pretensamente séria Tieta e Leonora aguardam a chegada da marinete na agencia dos Correios. Esperar a marinete, assistir ao desembarque dos passageiros, é das mais excitantes diversões de Agreste. Quando o atraso é grande, a espera toma-se por vezes enfadonha mas, em compensação, não se paga nada. Há sempre um grupo de vadios rondando a porta do cinema onde Jairo estaciona o glorioso veículo. Outros ficam de tocaia no bar, os ilustres batem papo com dona Carmosina.
Elisa veio encontrá-la s na Agência, muito excitada, querendo saber se
dona Carmosina estava a par do acontecido entre Osnar e doutor Caio Vilasboas; na véspera Astério a acordara para lhe contar o escabroso diálogo.
Esse Osnar não passa de um patife, não respeita ninguém: afinal doutor Caio é médico, possui terras e rebanhos, é compadre da Senhora de Sant'Ana, madrinha de sua filha Ana, cidadão de idade, devoto e respeitável. Dona Carmosina está a par, é claro. Aminthas, testemunha do encontro, amanhecera em casa de dona Milú; relatara palavra por palavra, a conversação na madrugada. Pois bem, de tudo o que Osnar dissera, nada se compara, na opinião de dona Carmosina, ao deboche final, pois esse doutor Caio é santo-de-pau-oco, minha filha, por fora Senhor São Bento, por dentro pão bolorento. Osnar é um porreta, de quando em quando lava a alma da gente.
Tieta interrompe a discussão, curiosa de saber de que conversa se trata, capaz de causar tanto riso, de provocar indignação e entusiasmo.
Dona Carmosina não se faz de rogada, capricha nos detalhes. Sucedera há dois dias, naquela noite em que Osnar e Aminthas ficaram até tarde em casa de Perpétua, saindo depois a mariscar nas ruas. Altas horas, quando voltavam da beira do rio, Osnar acompanhado de uma quenga de baixa extração, encontraram-se com o doutor Caio Vilasboas, um catão, vindo de atender à velha dona Raimunda, asmática incurável. Fosse algum pobre de Deus agonizando, o doutor não abandonaria o calor da cama, mas a velha dona Raimunda tinha dinheiro grosso, destinado em testamento a pagar a conta do médico quando o Senhor a chamasse ao seu seio.
Ao ver Osnar despedindo-se da esfarrapada criatura, medonhosa, doutor Caio, psicólogo amador, abelhudo de nascença, não se conteve:
- Satisfaça-me, caro Osnar, a curiosidade, respondendo a uma pergunta que me permito fazer-lhe.
- Mande brasa, meu doutor, sou seu criado às ordens.
- Você é um rapaz endinheirado, já meio entrado em anos mas sendo solteiro ainda passa por rapaz, de boa família, com hábitos de asseio, tendo com que pagar cortesa de melhor nível, por que não freqüenta a casa dirigida pela rapariga que atende por Zuleika Cinderela, onde, segundo me consta lá estive no exercício sagrado da medicina e não como cliente- praticam esseinfame comércio mulheres limpas, de belo porte e figura amena, por que prefere essas imundas, essas bruxas?
- Primeiro permita, meu doutor, que eu lhe informe ser um dos fregueses prediletos das meninas da casa de Zuleika e da própria patroa, boa de rabo. Parte sensível de minha renda se esvai naquele antro. É certo, porém, que não desprezo um bucho quando saio de caçada, vez por outra. Alguns, devo confessar, bastante deteriorados.
- E por quê? Deixe que eu lhe diga tratar-se de apaixonante problema de psicologia, digno de memória dirigida à Sociedade de Medicina Psiquiátrica.
- Vou lhe dizer por que, meu doutor, e escreva a razão se quiser, não me oponho. Se chamo um bucho aos peitos quando calha, o motivo é não viciar o pau, o Padre-mestre.
- Padre-mestre?
- Foi o apelido que ele ganhou, dado por uma beata ainda passável com quem andei praticando umas sacanagens, meu doutor. Imagine se eu servisse ao Padre-mestre somente pitéus finos, material de primeira, formosuras, perfumarias, e ele se acostumasse a comer apenas do bom e do melhor. De repente, um dia, por uma circunstância qualquer, dessas que acontecem quando a gente menos espera, me vejo obrigado a pegar um estrepe em más condições e o Padre-mestre, viciado, se recusa, fica pururuca, brocha. não lhe dou vício, vou comendo as bonitas e as feias e tem cada feia que vale mais do que um exército de bonitas porque uma coisa, meu doutor, é mulher para se ver e admirar a imagem e outra é o gosto da boceta.
Doutor Caio emudece, o queixo caído, Osnar conclui:
- De suas visitas profissionais à pensão de Zuleika, meu doutor, ouvi falar, Silvia Sabiá me contou muito em segredo que chuparino igual a vosmicê não há por essas bandas. Meus sinceros parabéns.
Enquanto riem as quatro - esse Osnar é de morte! -, buzina na curva a marinete, naquela quinta- feira por milagre quase no horário, desprezível atraso de vinte minutos, Jairo recebendo felicitações dos passageiros. Tieta, Leonora e Elisa preparam-se para ir ao encontro de Ascânio, mas ele salta à frente de todos e se afasta no caminho de casa, em marcha batida.
- Vai tomar banho. Depois de viajar na marinete de Jairo, ninguém pode fazer nada antes de gastar água e sabão. Muito menos ver a criatura dos seus sonhos... - esclarece dona Carmosina: - Daqui a pouco bate por aqui.
Demoram-se na Agência dos Correios, à espera. Aminthas vem juntar-se ao grupo, comentam o diálogo já agora histórico. Aminthas acrescenta o detalhe final: doutor Caio livido na madrugada, querendo falar sem poder, os olhos fuzilando. Osnar e ele, Aminthas, saíram de mansinho, não fosse o médico ter um ataque de apoplexia.
O tempo passa, Barbozinha surge, traz uma rosa na mão, uma rosa chá.
Ao ver Tieta estende-lhe a flor:
- Colhi para você no jardim de dona Milú, ia levá-la à casa de Perpétua, mas os meus guias dirigiram-me os passos para aqui. Pena não ter mais três para homenagear todas as presentes.
- E Ascânio? Vai aparecer ou não? - interroga Elisa, cansada de esperar.
Leonora, a criatura dos sonhos de Ascânio, na opinião de dona Carmosina, aguarda em silêncio, os olhos postos na rua. Nem sinal de Secretário da Prefeitura, de cavaleiro andante, limpo ou empoeirado. O jeito é mandar chamar. O moleque Sabino, requisitado, abandona a sorveteria, vai correndo com o recado para Ascânio: esperam- no impacientes na Agência dos Correios, venha rápido. Para matar o tempo, vão tomar sorvete de cajá, servido pelo próprio árabe. amanhã será de pitanga, difícil saber qual o mais gostoso.
Voltem para comparar e decidir.
Finalmente desponta na esquina o cavaleiro andante, o passo lento, a face descomposta, Cavaleiro da Triste Figura. Mesmo antes dele subir o degrau da porta da Agência dos Correios todos se dão conta da derrota do campeão de Agreste na batalha travada em Paulo Afonso. Os destroços do guerreiro, o fracasso da missão, o rosto em luto, sepulcral.
- Negativo, não foi? - pergunta Aminthas. - Eu avisei. não havia nenhuma possibilidade. Ainda bem que o motor vai agüentando: quando pifar, voltaremos ao fiofó.
- Não seimporte - disse Leonora. - Você fez o que pôde. Cumpriu o seu dever.
- Foi horrível, humilhante. O diretor da Companhia, o que fica permanente em Paulo Afonso, nem queria me receber. Tive que pedir e suplicar, por fim me atendeu. Nem comecei a expor, me cortou a palavra. não podia perder tempo, esse assunto de Agreste estava encerrado, não havendo nenhuma possibilidade de instalação de luz da usina no município. A Prefeitura não recebeu o memorando, negando o pedido? Então? não adiantava falar com os técnicos, Agreste tem de esperar sua vez e não vai ser tão cedo, daqui a alguns anos, quando levarmos força e luz aos últimos recantos dos Estados servidos pela Hidrelétrica. Agora, impossível, meu caro.
Não adianta argumentos, deixe-me trabalhar, meu tempo é precioso.
Ascânio suspende o relato, abana as mãos. Onde o entusiasmo, o ânimo de luta? Evaporaram-se, rolaram na cachoeira, esmagados pelo diretor da Companhia., - No fim, ainda me gozou: tem uma única maneira, disse. Obtenha uma ordem do presidente da Companhia do Vale do São Francisco, do presidente, não de um diretor igual a mim, mandando instalar luz em Agreste e no dia seguinte lá estaremos. Passe bem. Riu e me voltou as costas.
Um silêncio pesado cai sobre a Agência dos Correios. A primeira a abrir a boca, dona Carmosina:
- Filho da mãe! É por isso que eu sou contra essa gente.
Leonora aproxima-se de Ascânio:
- Não se aflija tanto, tudo no mundo tem jeito. - os doces olhos plenos de ternura.
Tieta levanta-se da cadeira onde ouvira em silêncio:
- Quem é o presidente, Ascânio, e o que é mesmo essa tal Companhia!
Me ilumine o pensamento.
Ascânio, ainda sem graça, deprimido, explica o que é a Companhia do Vale do São Francisco, a importância da Hidrelétrica de Paulo Afonso, termina citando o nome do deputado que exerce a Presidência da grande empresa estatal, aquele que manda e decide, o único a poder modificar planos estabelecidos. Mas, como atingi-lo? Impossível. Quem tem razão é Aminthas:
mais do que importância econômica, falta a Agreste o prestígio de um grande chefe, alguém cujo pedido seja uma ordem.
Tieta repete o nome do deputado:
- Já ouvi falar mas não conheço pessoalmente. Mas, em São Paulo, não tem político importante com quem eu não me dê - esclarece. - Todos amigos de Felipe, todos freqüentam minha casa. Carmô, Ascânio, me ajudem a redigir um telegrama. Ou melhor, dois.
Pronuncia nomes ilustres, mandachuvas em São Paulo e no país. Dona Carmosina escreve. Tieta pede-lhe s que intervenham em favor de Agreste junto ao presidente da Companhia do Vale do São Francisco, seguem-se as razões detalhadas por Ascânio mas a principal é o interesse de Antonieta, o favor que lhe farão e ela ficará devendo.
- Telegrama enorme - observa dona Carmosina. - Vai custar uma nota.
- A Prefeitura paga - adianta-se Ascânio.
- Quem paga sou eu, meu filho, que estou enviando. Carmô, assine Tieta do Agreste. Os amigos mais íntimos me tratam assim, era como Felipe gostava de me chamar.
Ainda não haviam retornado d casa de Perpétua e já a notícia dos telegramas abalava a cidade- dona Antonieta Esteves Cantarelli telegrafara a um senador paulista e ao próprio doutor Ademar, amigos do peito do falecido Comendador, pedindo a instalação em Agreste da luz de Paulo Afonso. Os comentários cívicos cobrem os ecos do fescenino diálogo sobre os hábitos sexuais de Osnar, se as mensagens telegráficas não resultarem em iluminação feérica, já terão servido à moral pública. Sucedem-se as hipóteses:
possuí a viúva realmente tanto prestígio, conhece, trata, é íntima de senadores e governadores ou apenas está fazendo farol? Qual o resultado: luz ou trevas?
Até apostas são feitas. Fídélio bota dinheiro no sucesso, Aminthas continua pessimista, por que esses lordes de São Paulo hão de se mover por Agreste, o cu-do-mundo? Dobro a aposta, Fidélio.
Por quê? Tieta poderia responder que se moverão exatamente por serem lordes e por ela ser Tieta do Agreste.
Do passeio na feira com o anúncio do próximo fim do mundo, capitulo de profecias semanal. no primeiro sábado após a chegada das paulistas, transformou-se num festival, em regozijo público, por pouco termina em fuzuê.
Após a missa pela alma do Comendador, Tieta e Leonora passam em casa para trocar de roupa: ninguém agüenta fazer feira com vestidos negros, pesados, elas nem sabem por que milagre os puseram na mala. A comitiva inclui Elisa, Barbozinha, Ascânio Trindade, Osnar. O velho Zé Esteves, paletó no braço, bastão e esposa, faz-lhe s companhia até a Praça do Mercado (Praça Coronel Francisco Trindade), de onde a feira se estende pelas ruas vizinhas. Ali se despede, à tarde irá buscar Tieta para correrem duas casas à venda, entre as muitas oferecidas, as únicas convenientes.
Perpétua agradece o convite, não aceita. Vai à feira cedo, acompanhada por Peto a carregar as cestas. Dia de feira, dia dos mendigos: Perpétua passa o resto das manhas de sábado em casa, distribuindo esmolas, mercadejando com Deus um lugar no Paraíso em troca da caridade hebdomadária. Em cada uma das casas das ruas principais, durante a semana, as famílias guardam as sobras de pão, as bolachas envelhecidas, restos de comida da véspera, frutas amassadas, algumas moedas, para a multidão de esmoleres a invadir a cidade, vindos quem sabe de onde. Seu Agostinho da padaria fornece por preço de ocasião sacos cheios de paes dormidos, duros como pedras, de bolachões moles, de bolos mofados, filantropia a preço módico. Quem dá aos pobres empresta a Deus. Com juros altos, bom emprego de capital.
Alguns pedintes são fixos em Agreste, passam diariamente pela manha ou ao cair da tarde, possuem freguesia certa. O cego Cristóvão senta-se na escadaria da igreja na hora da missa chova ou faça sol e ali se demora de mão estendida, a recitar sua litania. O beato Possidônio, somente aos sábados e na feira. Vem de Rocinha, sob o queixo a barba rala de profeta caboclo, sem dentes e boca de praga; traz um caixote de querosene, vazio, e uma cuia de queijo. Prega nas proximidades do local onde ficam os vendedores de pássaros, trepado no caixote, a cuia ao lado para as esmolas - só aceita dinheiro. Estende-se em nebulosa lengalenga sobre os pecados dos homens; anuncia desgraças aos montes, profeta de um Deus terrível, vingativo, cruel.
Cita os evangelhos, condena protestantes e maçons, proclama a santidade do padre Cícero Romão. Basta enxergar uma mulher mais pintada, ergue-se a insultá-la, destinando-a às chamas eternas.
A voz esganiçada, Perpétua queixa-se dos mendigos a Antonieta, fala deles como de inimigos: cada vez mais ousados e exigentes, o exercício da caridade transforma-se em sacrifício:
- Não aceitam nem mangas nem cajus, dizem que ninguém compra, que tem demais, manga não é esmola que se dê já viu? Mesmo banana, torcem a cara. não tem um trocado? Querem dinheiro. Outro dia um me chamou de canguinha.
Na feira, montes de frutas se sucedem, muitas delas Leonora não conhece; bate palmas, encantada. Que goiabinhas pequenas! não são goiabas, são araçás, araçá-mirim, araçá-cagão. Com elas se faz o doce que comemos em casa de Elisa. As goiabas estão aqui: vermelhas e brancas.
Comparadas às goiabas dos japoneses de São Paulo, são pequenas, mas sinta o gosto, meça a diferença. Melhor ainda se estiver bichada. Cajus, não há fruta igual para a saúde. A não ser jenipapo, que cura até doença do peito. Você precisa comer jenipapada para ficar forte. E o gosto? Para mim, não há nada mais gostoso. Vamos comprar agora mesmo; o jenipapo quanto mais encarquilhado melhor. Tieta escolhe, conhecedora. Mangabas, Cajás, Cajaranas, umbus, pitangas. Os mendigos têm razão ao recusar esmolas de manga, sobram pela feira, as cores de aquarela, as variedades numerosas: rosa, espada, Carlota, coração-de-boi, coração-magoado, itiúba, tantas. As jacas, duras e moles, descomunais, das talhadas expostas sobe um odor de mel. Que fruta é essa que parece pinha? Condessa. E essa maior? Jaca- de- pobre, o sorvete é sublime. Leonora quer ver de perto, quer tocá-la. Curva-se, exibe a calçola ' diminuta sob a minissaia. Júbilo geral Quando a viu de minissaia, Ascânio pensou desaconselhar o traje na visita à feira mas temeu passar por tabaréu, por retrógrado, calou-se. Agora é ir em frente, buscando não ver e não escutar. Difícil, pois a animação aumenta.
Nunca a feira de Agreste conheceu pagodeira igual. Barbozinha, entretido a explicar a Tieta problemas de desencarnação e reencamação, da vida no astral, assuntos em que é professor emérito, não se dá conta do sucesso, mas Ascânio Trindade aflige-se com tamanho atraso, indeciso sobre a maneira de agir. Aflito apenas? Ou sofre também ao ver expostas ao público aquelas formosuras que deseja exclusivas, reservadas a quem conduza ao altar a inocente Leonora Cantarelli? Inocente de todo mal, não imaginara o escândalo que provocaria indo à feira vestida de minissaia, moda banal no Sul do país e no estrangeiro. Nas páginas coloridas das revistas, Ascânio admirou minissaias bem mais ousadas, a de Leonora até que lhe encobre a bunda se ela se mantém a prumo.
- É melhor que ela se curve menos - sussurra Osnar a Ascânio.
Nem Osnar, um cínico, se anima a aconselhar a cândida vítima da ignorância local, quanto mais Ascânio. Prossegue o passeio pela feira arrancando exclamações de Leonora e do bando de moleques a seguir a comitiva.
De quando em vez um assovio, uma interjeição, uma frase em língua de sotaque:
- Espia, Manu, o andor da procissão está passando...
Sacos de alva, olorosa farinha de mandioca, torrada em casas- de- farinha da região; a puba, a tapioca, os beijos. Prove, Leonora. Com café são ótimos, vamos comprar. Esses molhados levam leite de coco, não há quem resista, vou engordar como uma porca. Mas que é isso, meu Deus, essa meninada a segui-los? Antonieta contempla o ajuntamento.
Não só meninos, homens feitos também, bando de ordinários. É a minissaia de Leonora, figurino inédito em Agreste. Antonieta olha para Ascânio, para Osnar, eles fingem não se dar conta da corja em zombaria.
Barbozinha está reencarnado pela sexta vez, em longínqua galáxia. As mãos nas cadeiras, à maneira das feirantes, Tieta fita o animado rebanho. O olhar da ricaça de São Paulo - ou o olhar da pastora de cabras? - entre severo e pícaro, dissolve o cortejo, restam apenas alguns moleques, admiradores mais renitentes. Ascânio respira, Osnar aprova. Para dizer a verdade, o que mais incomoda a Ascânio é a presença de Osnar, o olhar de verruma, a expressão de beatitude.
Duas cadeiras de barbeiro ao ar livre, ocupadas ambas, e o trovador Claudionor das Virgens a declamar os versos do folheto de cordel:
Três vezes já casei Com branca, preta, mulata No padre, no juiz, na mata Pela quarta casarei por ordem do delegado
Pra deixar de ser ousado.
Cala-se a voz do trovador das Virgens à passagem da comitiva. A minissaia o inspira, improvisa:
Quem me dera casar com Aurora Que pau a de cu-de-fora.
- É isso que você come em casa no café da manha - Tieta aponta as raízes de aipim, de inhame, as batatas- doces. A verde fruta- pão.
Elisa, inquieta, a constatar novo crescimento do grupo de basbaques, convida:
- Vamos indo para casa? Estou morrendo de calor.
Verdade, aliás. não trocara de roupa, está com o vestido negro posto para a missa, fechado no pescoço, o contrário de Leonora. O que mais aflige Elisa?
Os moleques, os assovios, o deboche do trovador, a falta de respeito, o achincalhe ou o sucesso da paulista?
- Ascânio prometeu me levar para ver os passarinhos... - doce pipilar de Leonora.
A procissão engrossa, enquanto rumam para a feira de passarinhos - os pássaros sofrê, os pássaros pintores, os pássaros negros, os cardeais, os azulões, os canários- da- terra, papagaios e periquitos e uma araponga a malhar o ferro com seu grito de bigorna. Leonora irradia felicidade, o acompanhamento toma aspecto de comício, com risos, dichotes, pregões.
- acho melhor a gente ir andando - insiste Elisa.
- Só um minuto mais. Olhe esse, que amor!
- É um pássaro sofrê, imita todos os passarinhos. Ouça. - Ascânio assovia, a ave responde.
Da turba em gozação, outros assovios, acanalhados. Fiofó, vai também o passarinho. Rindo, a pitar o cigarro de palha, solerte, Osnar avança em direção aos pândegos, agarra um molecote pela orelha, os demais recuam em correria, explodem em apupos, a troça se estende pela feira.
Ali perto, em cima do caixão de querosene, a cuia ao lado, o profeta Possidônio proclama o iminente fim do mundo, anunciado pela aparição de objetos luminosos em Mangue Seco, ígneas naves de gás conduzindo arcanjos enviados por Deus para escolher e marcar os locais onde se erguerão as fogueiras de enxofre sobrenatural, fabricado nas caldeiras do inferno para consumir o mundo entregue à devassidão, à orgia, à luxúria.
De costas para a cara do ascético beato, curva-se Leonora, oferecendo O dedo a um papagaio manso e falador - diz bom-dia, pede a bênção, fecha um olho, cômico. O beato Possidônio, por mais erudito em matéria de iniqüidade humana, de depravação, de impudicícias, jamais vira, com seus olhos queimados pelo sol do sertão, tal desregramento, amanhã imoralidade. O excitante traseiro de Leonora, praticamente nu, obra- prima de Satanás, aplaudido pela súcia de condenados, coloca-se diante das místicas ventas do profeta, provocação monstruosa!
- Arreda! Sai de minha frente, volta para as profundas do inferno, mulher imunda, pecadora, rameira!
Indignado, Ascânio marcha para o beato Possidônio:
- Cala a boca, maluco!
Mas Tieta o detém, segura-lhe o braço, diverte-se às pamparras.
- Deixa o velho, Ascânio. É a minissaia de Leonora.
- Hein? A minissaia... - Leonora não sabe se rir ou chorar. - não me diga, nunca pensei... - dirige-se a Ascânio. - Nunca me passou pela cabeça. Desculpe.
- Quem tem de pedir desculpas sou eu, pelo atraso do povo. Um dia vai mudar. - No fundo, nem ele próprio tem certeza. Mudança tão incerta quanto o fim do mundo do sermão de Possidônio.
Deixam para outro passeio boa parte da feira: as carnes- de- sol, os guaiamus, os potes e moringas, as figuras de barro, o caldo de cana extraído em primitivas prensas de madeira, tão sujo e tão delicioso. O beato continua a vociferar enquanto eles partem. Tieta a rir do acontecido, e logo a pedir a Osnar que lhe conte a célebre história da polaca, sobre a qual Carmosina lhe falara. Alguns moleques ainda os acompanham pela rua.
A notícia os precedeu, chegou ao bar e ao adro da igreja, um alvoroço para vê-los passar. Leonora anda o mais depressa possível, nunca pensara desencadear o fim do mundo.
- Está próximo, sim, tive aviso e confirmação, posso assegurar esclarece Barbozinha a par dos segredos dos deuses e da loucura dos homens.
- Vai ser uma explosão atômica colossal. Todas as bombas atômicas existentes, as americanas, as nossas, as francesas, as inglesas, as chinesas os chineses estão fabricando na surdina, tenho informações recentes - vão explodir ao mesmo tempo, às três horas da tarde de um dia primeiro de janeiro. não digo o ano para não alarmar ninguém.
Breve esclarecimento do autor sobre profecias e enxofre houve quem quisesse descobrir na arenga do beato Possidônio sobre o próximo e inevitável fim do mundo referências proféticas à indústria de dióxido de titânio. Quando, por exemplo, o iluminado aludiu ao enxofre procedente dos infernos para destruir a terra e a humanidade não citou :claramente os objetos não Identificados, vistos em Mangue Seco? Naves de gás?
Conotações existem, não há dúvida. Em tempos de tanto misticismo, o melhor é não negar nem discutir. Os profetas multiplicam-se, exibem-se no rádio e na televisão. ao contrário do beato Possidônio, não se contentam com escassa esmola. O beato Possidônio é profeta antigo, produto semi-feudal, perdido no sertão, ainda não percebeu as maravilhas da sociedade de consumo. não se dá conta de que nas minissaias lavamos a vista condenada à cegueira pela poluição. Quanto ao enxofre, é produzido nos Estados Unidos, nação privilegiada, não se faz necessário importá-lo dos infernos.
De pedintes e abusos, de ambições - capítulo de mesquinhos interesses alegre alvoroço, na feira e em todo o burgo, nascido da presença em Agreste de Tieta e da enteada, formosa e virginal. Tão meiga, lembra a Ricardo a noiva predileta do Senhor, Santa Terezinha do Menino Jesus, apesar da minissaia, do transparente cafetã e dos shortes ousados. Mesmo acompanhando as indecentes modas atuais, percebe-se na suave Leonora o odor da castidade, o encanto da inocência.
Após o passeio na feira, Elisa ameaçara vestir a minissaia trazida por Tieta, em solidariedade e em desagravo a Leonora - ou em competição?
Astério se opôs, contou com o apoio de Perpétua:
- Podem me chamar de atrasada; sou contra, pelo menos aqui. Em São Paulo, pode ser. Aqui o povo não aceita, acha imoral. Eu também, para ser franca. - a voz esganiçada, estridente, soprando as labaredas do inferno.
- Por mim, dona Perpétua, fique descansada. Nunca mais uso. não quero ser responsável pelo fim do mundo - promete a mansa Leonora num fugaz sorriso.
- não estou lhe censurando, sobrinha, você não teve culpa.
Não deseja ofender a querida parenta, sobrinha por adoção. Sobrinha, sim, pois enteada da irmã, filha do cunhado industrial e comendador do Papa, herdeira rica. Pena os meninos serem tão novos; quem está rondando a bolada é Ascânio, não parecia tão esperto.
- Sei que você não fez por mal, sua boba. Em São Paulo, nos Estados Unidos, nessas terras onde só tem protestante, não digo nada. Mas aqui ainda se cumpre a lei de Deus.
Conversa aparentemente sem conseqüência mas, por detrás da alegria a rodear Tieta existem esperanças, planos, alguns audazes. Reunido em torno à filha pródiga, o clã dos Esteves se desdobra em bajulação às paulistas, escondendo sob o manto da paz familiar uma efervescência de inconfessáveis ambições, de furtivas diligências. Entreolham-se, com suspeita, uns aos outros.
No correr da semana, sucederam-se as visitas, uma romaria. Os importantes do lugar, comerciantes, colegas de Astério, a professora Carlota, seu Edmundo Ribeiro, coletor, Chico Sobrinho com a esposa Rita, por coincidência acompanhados por Lindolfo Araújo, tesoureiro da Prefeitura e gala um dia ainda se enche de coragem e irá tentar a vitória num programa de calouros na televisão, em Salvador. Vieram o doutor Caio Vilasboas, circunspecto, falando difícil, metade médico, metade fazendeiro, se fosse viver de clinica em Agreste terminaria pedindo esmola aos sábados, e o coronel Artur da Tapitanga que demorou a tarde inteira conversando.
Conhecia Tieta de quando ela, meninota, pastoreava as cabras do pai, em terras vizinhas às suas, aliás hoje suas, compradas a Zé Esteves. Fez elogios à beleza de Leonora: parece com uma estatueta de biscuit que antigamente tinha na casa- grande, quebrou-se. Fosse ele ainda jovem, na sustança dos setenta, e lhe proporia casamento, mas aos oitenta e seis não quer correr o risco. Por Mais honesta que a moça seja, há perigo de chifre. Ria numa catarreira grossa, puxando a fumaça do charuto. Único a faltar, o prefeito da cidade, Mauritônio Dantas, ausência explicada por Ascânio Trindade por ocasião do desembarque: o digno mandatário vive confinado em casa, de miolo mole desde a deserção da esposa, Dona Amélia de apelido Mel, ativíssima militante da revolução sexual.
Os pobres, inumeráveis, vêm a qualquer hora, não passam da sala de jantar; a de visitas, Perpétua reserva aos graúdos. Cada pobre, uma história triste, uma súplica, um pedido. A fama da riqueza e da generosidade de Tieta alastra-se como erva ruim, veleja nas águas do rio, viaja nos lombos dos burros, alcança as fronteiras de Sergipe. Perpétua franze a testa, não tolera abusos nem esbanjamento.
- Não posso ver ninguém necessitado, passando fome- declara Tieta.
- Sei o que é precisão, dói em minha carne.
Perpétua, apesar da çhaleirice, não se contém:
- Não digo que não ajude um ou outro infeliz. Margarida, que o marido largou na cama, de barriga aberta, vá lá, não pode trabalhar. Calo minha boca. Mas David, um batoteiro, cabra ruim que nunca pegou no pesado, não merece esmola. Só sabe beber cachaça e roncar na beira do rio. É até pecado ajudar a preguiça, a vagabundagem. O melhor benefício que se pode prestar a essa gente é rezar por eles, pedir a Deus que lhes indique o bom caminho. Quem mais pratica a caridade sou eu: rezo por eles todas as noites.
Ainda ontem você deu dinheiro a Didinha. Uma perdida, com aquele renque de filhos, cada um de um pai e ainda por cima ladrona. Dona Aída teve pena, tomou de empregada, pegou roubando na despensa...
- Feijão para dar aos filhos, Perpétua, tenha piedade. Havia de deixar os pobrezinhos morrerem de fome?
- Não os tivesse. Na hora de deitar com o primeiro que aparece, não pensa no futuro, só na descaração, Deus me perdoe -a voz sibilina em nojo e reprovação.
- Nessa hora, Perpétua, ninguém pensa em nada, não é? não dá mesmo... - ri Antonieta. - Você foi casada, sabe disso, não sabe? - espia a irmã, um sorriso de galhofa.
- O dinheiro é seu, você faz com ele o que quiser, não tenho nada com isso. Mas que me dá pena esse desperdício, me dá, não nego.
- Lá isso é, minha filha. Uns aproveitadores. Sabem de seu bom coração, abusam. Por mim, metia todos eles na cadeia, é o que merecem. Zé Esteves, por uma vez, de acordo com Perpétua.
Todas as manhas o Velho passa para botar a bênção à filha pródiga: Deus te abençoe e te aumente, minha filha. Resmunga um Deus te dê a bênção para Perpétua, outro para Elisa, se a mais moça está presente. Relanceia o olhar pela sala onde conversam - numa rede na varanda, Leonora escuta os trinados do pássaro sofrê oferecido por Ascânio. Zé Esteves pousa o olhar em Perpétua, em Elisa, prossegue:
- Só querem lhe explorar. Todos. Sem exceção. Tome tento. Se você continuar de mão aberta, roubam tudo. - Refere-se aos pedintes? Os olhos em Perpétua, em Elisa, masca o naco de fumo de corda. - não está vendo dona Zulmira, toda devota, vive na igreja papando hóstia. Na hora de dizer quanto quer pela casa, como é para você pede um absurdo. Quem falou certo foi Modesto Pires: um roubo. Essa gente que vive metida na igreja. ..
Perpétua faz que não ouve, contida pela presença de Tieta. O Velho está pondo as manguinhas de fora, pela vontade dele a filha rica não ajudaria sequer as irmãs, os sobrinhos. Velho ruim como a necessidade. Vive agora na perspectiva da mudança para casa confortável em rua decente, a ser adquirida por Tieta para os dias da velhice. Enquanto ela não vier, Zé Esteves e Tonha desfrutarão sozinhos, isso já está assentado. não será tão breve que Antonieta, guapa, transbordante de vida, deixará o fausto de São Paulo para enterrar-se em Agreste. É muito mulher para casar de novo e aí então não virá nunca.
Nesse caso Zé Esteves ficará de dono, refestelado, de papo para o ar, com criada para cuidar da casa, mesada larga, tendo de um tudo, na vida que encomendou a Deus. Fazendo economia, pode até pensar em adquirir um pedacinho de terra e um par de cabras e recomeçar a criação. No mundo, não há coisa melhor e mais bonita do que um rebanho de cabras nos oiteiros.
De terrenos e casas a venda ou Tieta no mundo dos negócios imobiliários foi o dono do curtume quem chamou a atenção de Tieta para a casa de dona Zulmira.
De braço com a esposa, dona Aída, Modesto Pires visitara a badalada conterrânea logo no dia seguinte ao desembarque, apressado em conhecer melhor a emitente dos cheques mensais que ele descontava. Guardava vaga lembrança da molecota a pastorear cabras, namoradeira, expulsa de casa pelo pai, regressando agora viúva e rica. Admirou-lhe as carnes e a imponência, o requinte da peruca acaju, a saia aberta de um lado, refinamentos devidos à posição social e ao trato de São Paulo. Comparou-a com Carol, dois pancadões de mulher, diferentes uma da outra, mas ambas fartas, densas, desejáveis, mulheres para a cama.
Acompanhada de Leonora e de Ricardo - de batina - Tieta, dias depois, paga a visita. Modesto e dona Aída a recebem e tratam nas palmas das mãos: licor de jenipapo, bolo de milho, doce de banana em rodinhas, confeitos e bolachas de goma. Dona Aída, esconda essas tentações, estou engordando a olhos vistos, vou virar uma baleia. Que nada, a senhora está ótima. Leonora regala-se com o doce de banana em rodinhas, Tieta promete:
- Depois lhe digo como chamam esse doce aqui...
Risos na sala. Modesto Pires comporta-se como homem do mundo, liberal:
- Se quiser dizer, não se acanhe, dona Antonieta. Aída e o padrezinho tapam os ouvidos.
- Maluquice minha, sou uma estouvada. Me desculpe, dona Aída. O que quero pedir ao senhor, seu Modesto, é um conselho.
Homem rico, importante plantador de mandioca em Rocinha, criador de cabras e ovelhas, proprietário do curtume, de terras a perder de vista, na beira do rio, nas imediações de Mangue Seco, de várias casas de aluguel, entre as quais aquela onde Elisa reside, ninguém melhor do que Modesto Pires para aconselhar sobre casas e terrenos.
- Quanto a terreno em Mangue Seco, se desejar, eu mesmo posso lhe servir. Boa parte daquela área de coqueiral me pertence. Temos lá uma casa de veraneio, para receber os netos, só que não vêm.
Dona Aída não esconde a mágoa: apenas a filha mais velha, casada na Bahia com um engenheiro da Petrobrás, aparece nas férias e traz os dois meninos. O filho, médico no interior de São Paulo, sócio de uma casa de saúde, casado com paulista, promete muito, nunca se decide. Tampouco a filha mais nova; vive em Curitiba, o marido é paranaense, empresário, construtor de imóveis. Para ver filhos e netos Dona Aída tem de viajar, tomar o avião em Salvador, morre de medo. Antonieta simpatiza com a queixosa:
- A vida no Sul é muito absorvente, ninguém tem tempo para nada. É por isso que quero comprar casa aqui e terreno na praia.
Ali mesmo acertaram os detalhes sobre o lote em Mangue Seco, vizinho ao do comandante Dário, adquirido também a Modesto Pires. Depende dela ver e gostar, naturalmente.
- Vai adorar, o lugar é lindo e está a salvo da chuva de areia. De lá para as dunas, um pulo, uma caminhadinha a pé, boa para manter a forma.
- É bonito, sim - confirma Dona Aída. - Tomara que a senhora venha sempre, assim aumenta nossa colônia de veraneio. Daqui a uns dias estaremos lá. Logo que Marta e Pedro cheguem. - Refere-se à filha e ao genro engenheiro.
- Nós iremos com o Comandante, neste fim de semana. Estou contando as horas. Faz para mais de vinte e seis anos que não vejo a praia de Mangue Seco.
Modesto Pires informa:
- Quanto à casa na cidade, sei que dona Zulmira quer vender a dela, até já mandou me oferecer. não me interessei, comprar casa de aluguel em Agreste é comprar consumição. Os aluguéis são baixos, as casas sempre precisando de conserto, o pagamento atrasa. Tenho algumas, vivo me amofinando com elas. Mas essa casa de dona Zulmira vale a pena. Construção boa, terreno plantado. Ela quer se desfazer para dar o dinheiro à Igreja. Tem medo que o sobrinho, se ela morrer, faça como os parentes do finado Lito que botaram causa na Justiça, contestando o testamento pelo qual ele deixou tudo que tinha para o padre dizer missa. não sei a conselho de quem, dona Zulmira; resolveu vender a casa e dar logo o dinheiro à Senhora Sant'Ana. A velhinha só ocupa um pedaço da residência: um quarto, a cozinha e o banheiro, o resto - trancado, se estragando.
Onde ela vai morar?
- Tem uma casinha pequena, desalugada. Vai morar lá.
- E quanto ela está pedindo, o senhor sabe?
- Já lhe digo. - Modesto Pires vai em busca da pasta, retira um papel.
- Está aqui a quantia, escrita pela mão dela.
- Barato, não é?
Este, razoável. não digo que seja caro mas casa aqui não tem valor. Passe na rua e veja quantas ao abandono, em ruínas. Como diz minha filha Teresa, a que mora em Curitiba, Agreste é um cemitério.
- Um cemitério? Se Agreste, com esse clima, essa fartura de frutas e peixes, essa água santa, é um cemitério, o que se há de dizer de São Paulo?
- São Paulo, dona Antonieta, é uma grandeza, com aquele parque industrial, aquele movimento, aqueles edifícios, uma potência. Que idéia a sua, comparar Agreste com São Paulo.
- Não estou comparando, seu Modesto. Para quem quer ganhar dinheiro, São Paulo é a cidade ideal. Mas para viver, para descansar, gozar de um pouco de sossego, quando a gente cansou de trabalhar e de ganhar dinheiro...
- E tem quem se canse de ganhar dinheiro? Me diga, dona Antonieta?
Não sei de ninguém.
- Tem, sim, seu Modesto. - Tieta pensa em Madame Georgette passando o negócio adiante, embarcando para a França, no auge dos lucros.
- Pois eu não acredito, me perdoe. - Muda de assunto. - Soube que a senhora mandou telegramas para São Paulo pedindo que a Hidrelétrica nos forneça luz.
- Telegrafei para dois amigos de meu finado marido que me consideram. Pode ser que dé resultado.
- Deus permita. Estão falando por aí que um dos dois foi o doutor Ademar, será verdade?
- É, sim, dou-me muito com ele, lhe arranjei uns votos na última eleição. Felipe não votava nele, coisas de paulista metido a nobre. Mas se davam bem e comigo ele sempre foi muito atencioso.
- Para mim-seintenciou o dono do curtume - é um grande homem.
Rouba mas faz. Se todos fizessem como ele, seríamos rivais dos Estados Unidos. não pensa assim, dona Antonieta?
- Nessas trincas de política, sou ignorante, seu Modesto. Lhe digo apenas que grande coisa é ter amigos. Felizmente, eu tenho.
- se a senhora conseguir a luz da Hidrelétrica, o povo vai lhe entronizar no altar- mor da Matriz, junto com a Senhora Sant'Ana.
Idéia tão estapafúrdia, Antonieta riu às gargalhadas.
onde Tieta recusa a proposta de dona Zulmira e em troca vê uma proposta sua vetada pelo pai, pelo cunhado e por Elisa alguém, cujo nome não importa, aconselhara dona Zulmira a vender a casa e colocar o dinheiro vivo no altar necessitado da Senhora Sant'Ana, livre De contestação, garantindo-lhe o lugar no céu, à direita de Deus, entre os mais justos. Quem sabe, a mesma voz divina a aconselhou a pedir à ricaça de São Paulo o dobro do preço proposto a Modesto Pires. A bolsa de imóveis funcionando pela primeira vez em Agreste.
Se Antonieta não soubesse do preço anterior, talvez nem discutisse pois, mesmo pelo dobro, a vivenda ampla e fresca, em centro de terreno, com árvores e jardim, não lhe parece cara. Tinha, porém, horror de ser explorada, sabia o valor do dinheiro. Generosa, mas não esbanjadora. Perpétua se engana ao julgá-la. Conhecera dias podres, conserva vivo o travo da miséria. Custou-lhe esforço, habilidade, tato e malícia o que conseguiu juntar a duras penas, não pensa desperdiçar seu pé de meia. Com a morte de Felipe, secou-se a fonte. Recusa a proposta de Dona Zulmira, oferece a quantia pedida a Modesto Pires. não teve ainda resposta.
Em lua-de-mel com a família dá-se conta, no entanto, do encoberto interesse de cada um, da avidez maior ou menor a movê-los, apenas os sobrinhos escapam, ainda limpos, fora do círculo mesquinho onde os demais se movimentam. Mais do que os pedintes, os parentes a apoquentam.
Preocupada com o fato de Astério pagar aluguel, levantara a hipótese de, comprar a casa de dona Zulmira ou outra semelhante, igual em conforto, residirem juntos os dois casais: o Pai e Tonha, Astério e Elisa. Consultou a - uns e a outros, em separado.
- Não minha filha, não me obrigue a isso! - o velho bate com o cajado no chão, lança uma cusparada negra, de fumo mascado. - Elisa só pensa em modas e figurinos, o rádio naquelas alturas o dia todo. Astério, aqui pra nós, não vale um peido. Tenho que estar controlando para ele não meter a mão no dinheiro que você me manda. Se você faz questão e como não tenho outro jeito, vou morar com eles. Mas se você tem piedade de seu Pai, me poupe esse desgosto. Pode ser meu fim.
Tieta termina rindo, que outra coisa pode fazer? O Velho, forte, sadio, mandão, a fazer-se fraco e humilde para não viver com a filha e o genro.
- E se fosse com Perpétua, Pai? Vosmicê aceitava?
- Deus me livre e guarde, minha filha! Antes a morte. Me crave logo um punhal no peito mas não me peça isso.
- Vosmicê não toma jeito.
- Com você, eu posso morar, minha filha. Você é direita, saiu a mim.
Nossos gênios combinam.
Não menos categórica a reação de Astério e Elisa:
- Enquanto puder pagar o aluguel, prefiro que a gente more só, Elisa e eu. não por mãe Tonha, mas seu Zé Esteves é osso duro de roer. Tem cisma comigo. - Desculpa-se Astério, cheio de dedos.
- Pai só tem modos com você, com a gente é aos pontapés. Já pensou, ele e a gente morando na mesma casa? Quer saber de uma coisa, mana? Eu não tenho vontade de ter casa própria em Agreste. Até prefiro não ter.
Tieta não perguntou por quê. Sorriu para a irmã, essa pobre Elisa.
- se é assim, não se fala mais nisso.
Mais um fragmento da narrativa, na qual durante a longa viagem de ônibus-leito da capital de São Paulo a da Bahia Tieta recorda e conta episódios de sua vida a Leonor - quando me dei conta da intenção de Jarbas: queria que eu fizesse a vida, ficando para ele o ganho, para sustentar sua malandrice, senti uma raiva subir pelo meu peito, uma sufocação. O mais difícil foi arrancar o amor cravado em mim, no meu corpo inteiro. Tinha me apaixonado, estava entregue. Pela primeira vez não era só gozo de cama, era uma coisa diferente, tão boa.
Jarbas La Cumparsita subsistia com razoável largueza às custas do físico de gigolô latino-americano em filme de Hollywood. Esbelto, corpo de toureiro, negros cabelos lisos à força de brilhantina, o bigodinho, as unhas tratadas, a piteira longa e os olhos, ah!, olhos fatais. Aqui e ali, laboriosas, as trabalhadoras reunidas em cooperativa para sustentar os gastos do gala.
Ameaças quando preciso, uns bofetes, seindispensáveis, La Cumparsita vinha e recolhia a féria. Mas para chegar a bom resultado fazía-se necessário que a obrigação fosse precedida de namoro e conquista, levando a recruta ao delírio: faça de mim o que você quiser, meu amor. Jarbas possuía uma pequena voz agradável, cantava tangos e, por vezes, dizia-se argentino.
Quando falou de amor a Tieta, declarando-se enrabichado, disposto a viver com ela para todo o sempre, contando vantagens de dinheiro e importância social, não foi a perspectiva de largar a vida, ter mando e filho que a jogou nos braços dele.
- Xodó tão grande, eu não pensava em nada disso, ele não precisava prometer me tirar da zona. Se me levasse para viver com ele, em casa nossa, eu de rainha, muito que bem. Mas se quisesse apenas vir tarde da noite, após a ocupação, deitar comigo, falar de coisa à- toa, tomar de minha mão, dizer palavras doces, cantar em meu ouvido me abrindo por dentro e por fora, isso me bastava demais. Cega de amor.
Quando elas estavam presas sem remédio à melosa lábia e à inegável competência nos embates de alcova, então Jarbas decretava a lei, ditava os itens do regulamento das finanças do casal: para ele, no mínimo, setenta por cento da receita diária, daí para cima. Cafifa de tal status implica em despesas.
Empenho no trabalho, nada de vagabundagem, cadela.
- Eu estava desarvorada, no auge da paixão, no maior amor, e até começara a acalentar a idéia de morar com ele, largar o ofício, ser mulher direita, já pensou? Tudo conversa mole para engambelar. Depois, igual aos tangos que ele cantava, la comparsa de misérias enfim, só então compreendi por quê. Me deu uma raiva, dele e de mim. Ele nem tinha acabado de falar, eu juntei calça e paletó, camisa e gravata, atirei tudo no corredor: fora daqui, escroto!
Revolta e fúria, Jarbas não esperava. Vez ou outra, um gesto de recusa, boca e peito em choradeira. Resistência curta. Logo a lábia, a intimidação, a violência, em último caso: consolo e argumento decisivos. Tentou a escata inteira com Tieta, perdeu o tempo.
- Primeiro veio manso, depois gritou comigo, levantou a mão. Para mim, imagine! Eu, acostumada a labutar com cabras e bodes, Tieta do Agreste, curtida no mar de Mangue Seco. Me dei conta que o cabelo dele não cheirava, fedia a brilhantina. Saiu ventando. Mas, depois que ele saiu...
- Sim, mãezinha...
- Chorei como uma cabrita desmamada. não por ele, mas pela decepção, pelo sonho desvanecido. não há nada tão ruim como sonhar, minha filha.
- Sonho tanto...
- Quem sonha, paga caro. Bom é querer. Comecei tudo de novo, devo esse favor a Jarbas La Cumparsita. Disse pra mim mesma: puta posso ser mas de alto bordo. A partir daí cheguei ao que sou.
- Nunca mais se apaixonou, mãezinha?
- Paixão daquela, de perder a cabeça, nunca. Gostar, gostei de alguns.
De Felipe, demais.
Mesmo depois de Felipe ter falecido, Tieta não retirara o pijama e os chinelos do quarto de dormir, como se ele fosse voltar a qualquer momento.
Em hora incerta, como sempre, para o sorriso e o beijo.
- Com Felipe foi diferente, durou quase vinte anos. Quando me conheceu, eu ainda era jovem, estabanada.
- Era doido por você, mãezinha.
- Ele encontrava em mim alegria, o descanso, o outro lado da vida.
Também não sei definir meu sentimento. Amor, amizade, gratidão, mistura das três coisas? Por isso vim nessa viagem, porque ele morreu e fiquei de novo sozinha como no começo. Para pegar as duas pontas do novelo e dar um nó, ligar princípio e fim.
- Fim, mãezinha? Tão nova, tão bonita, com tantos pretendentes?
- não falo disso, ainda não apaguei o fogo, será que ele se apaga um dia?
Penso que só com a morte. Quero apenas mergulhar no que fui, saber como seria se eu tivesse ficado em Agreste em vez de vir para São Paulo. Quero tomar banho na Baia de Catarina, no rio, enterrar os pés na areia das dunas de Mangue Seco. Só isso. E encher teu peito de ar puro, curar tua anemia.
- Mãezinha, você é tão boa!
- Boa? Sou boa e ruim, quando tenho raiva ninguém pode comigo, viro cão.
- Já testemunhei, mãezinha. Mas a raiva passa, a bondade fica.
- Aprendi com o sofrimento. Uns trancam o coração, outros abrem, o meu se escancarou. Porque encontrei Felipe. Se não tivesse conhecido ele, talvez só a ruindade crescesse em mim, engordando na amargura. Para falar a verdade, não sei. Dizem que sou mandona.
- Penso que você já nasceu como é, mãezinha. Nasceu para ser pastora, cuidar do seu rebanho.
Do banho de rio com os sobrinhos, diverte-se Tieta com os sobrinhos. peto, com espoleta, reinador, matreiro, a rondar em torno delas, da tia de São Paulo e da formosa enteada, quando não está no bar seinstruindo no que não deve. No que não deve?
- Esse menino é minha cruz. Ponho de castigo, arreio-lhe a taça com vontade, nem assim. Em vez de estudar, vive no bar aprendendo porcarias...
tenho um desgosto! - lastima-se Perpétua, constatando a ausência do filho menor.
- Porcarias? - Antonieta adora arreliar a irmã, escandalizá-la. - Pois fique sabendo que já estão ensinando essas coisas nas escolas, li nos jornais que vai ser obrigatório, desde o primário.
- Nas escolas, o que?
- Aulas de educação sexual para meninos e meninas.
- Cruz credo! - benze-se, puxa do terço, o mundo está perdido.
Peto desemboca na varanda, contente da vida, o ar sonso, o olho velhaco regalando-se nos seios entrevistos, nas pernas e coxas à mostra; vai ter uma indigestão, sorri Tieta. Vem recordar o banho no rio, programado para aquela manha. Perpétua ordena a Ricardo que se prepare e acompanhe a tia. Irão à Bacia de Catarina.
No caminho, carregado com os instrumentos de pesca, Peto conversa com Leonora:
- Mãe disse que você é minha prima. É mesmo?
- Sou sim, Peto. Está contente com essa prima feiosa?
No bar, Peto escuta Osnar provocando Seixas sempre ocupado a levar as primas ao cinema, ao banho de rio, a passear com elas, são várias: minha prima Maria das Dores para cá, minha prima Lurdinha para lá, minha priminha Lalita chegou da roça. Osnar cantarola a paródia de certa melodia italiana, Come prima...: quem tem prima, come prima. No bar, aplicado, Peto se educa.
- Contente, pacas. Feiosa? Pô! - O olho atrevido atravessando a saída de banho. - Só é bonita. Seu Ascânio está gamado.
- Quem?
- Morda aqui - estende o dedo mínimo. - Diga que não sabe. Pb!
Mistura as expressões da terra com a glória ouvida no rádio, freguês de programas de música jovem. Tieta e Ricardo ficaram para trás.
- A tia é legal. Gosto dela pacas.
A Bacia de Catarina é uma pequena enseada na curva do rio, onde as margens se afastam, na maior distância. A correnteza serpeia entre pedras, seixos e rochedos, águas claras, límpido abrigo. Dali se avista o ancoradouro, os barcos, as canoas, a lancha de Elieser. Escondidos entre as rochas, à margem, recantos discretos, pousos de namoro e frete, o capim amassado pelos corpos.
Antigamente havia horário para homens e mulheres banharem-se separados na Bacia de Catarina, duas vezes por dia, pela manhã e à tarde. Com o aparecimento dos maios e a evolução dos costumes - mesmo em Agreste os costumes evoluem - desapareceram os horários e a separação. De manha cedinho é certo encontrar seu Edmundo Ribeiro, Aminthas e Fidélio. Seixas, na farra com Osnar até o alvorecer, aparece mais tarde comboiando primas.
Lavadeiras batem roupa sobre as pedras. Lavadeira foi Catarina, conta a lenda:
Lá vai Catarina com sua bacia, o patrão atrás de fala macia; água fria quente a bacia de Catarina.
Por volta das seis surge Carol, passa em silêncio, sem dar trela a ninguém, todos espiam. A água é fria, é quente a bacia, na de Carol mergulha somente Modesto Pires, um despropósito!
Ambas vestidas, despidas em sumários biquínis, Antonieta e Leonora deitam-se sobre as pedras. Estendidas de bruços, desabotoam os sutiãs para melhor bronzearem as costas, sobram volumes proibidos, dignos de ver-se.
Ricardo mergulha, nada para longe. Peto atira o anzol bem perto, aproveita, os olhos vão e vêm. O melhor banho é à noite, sob o luar. Quando alua crescer, virão com Ascânio, já combinaram.
Tieta admira Ricardo, nadando em grandes braçadas, mergulhando, atravessando o rio, um jovem atleta, o corpo moreno, musculoso. Alguém se aproxima, vem deitar-se perto, sobre as pedras: dona Edna, desejando Bom-dia. Acompanhada por Terto, seu marido embora não pareça. Ricardo vem vindo em direção à enseada, Tieta acompanha o olhar de dona Edna a envolver o rapaz, a cabra deve gostar de meninos, ei-la mordendo o lábio inferior. não vê que ainda não está no ponto, verde demais? Deslambida, descarada. Ricardo se aproxima, sai da água, senta-se nas pedras ao lado do irmão, sorri para a tia e para Leonora. Atrevida, dona Edna:
- Bom-dia, Ricardo.
- Bom-dia, dona Edna, não tinha visto a senhora.
- Você nada bem.
- Eu? Peto nada muito melhor.
Também dona Edna baixou as alças do maiô e Ricardo desvia a vista enquanto Peto confere e julga. não há comparação possível, as tetas da tia e as da prima vencem fácil e dão lambujem. Tieta acompanha a cena, apóia-se no cotovelo, deitada de lado. Casada e puta, dona Edna, e o marido, que mansidão de corno! Zangada, Antonieta? Ficou puritana ou protege a integridade da família e da Igreja? O sobrinho não chegou ao ponto, nem de vez está.
Peto, menino perdido, ousado, sem noção de respeito, toca o braço de Ricardo, segreda:
- Os cabelos da tia estão saindo do biquíni.
- Cabelos?
- Os de baixo, espie. Os pentelhos.
Ricardo não espia; severo, fita o irmão, olhar de censura e advertência, atira-se no rio novamente. Peto nem liga: Cardo vive por fora, um careta.
Enquanto passa creme nas costas da esposa- marido deve ter alguma serventia - Terto dirige-se a Tieta:
- É verdade, dona Antonieta, que a senhora. ..
- Telegrafei, sim. E o senhor, apostou? Achando que vai vir a luz ou não?
- Eu não apostei, onde vou buscar dinheiro para apostas? Edna acha. ..
Antonieta não seinteressa pela opinião de dona Edna. Vagabunda!
Prende o sutiã, durante a operação os seios aparecem duros, opulentos, não esses molambos que dona Edna faz questão de exibir. Põe-se de pé, de um salto mergulha nas águas da Bacia de Catarina, em braçadas largas nada para o meio do rio onde está Ricardo. Peto abandona vara e anzol, convida Leonora:
- Vamos?
Dona Edna mede o garoto, ainda não lhe acende o pito da massagem como ração
Ricardo mergulha, foge nas águas do rio. mergulha nas folhas do livro, na hora da banca, após o passeio, o bate-bola, a pesca, o banho antes do almoço, diariamente. De volta do banheiro, pingando água, a tia senta-se diante do espelho, afrouxa o penhoar, toma dos tubos de creme, dos potes, dos frascos. O perfume flutua, estende-se, invade as narinas do rapaz.
Do sobrinho mais velho, atencioso e recatado. Sempre às ordens da tia e da prima- não esqueça que Leonora é sua prima, recorda-lhe Perpétua mas não a segui-la, brechando contornos e profundezas, o olho vicioso, como o menor. ao contrário, a afastar a vista, a desviá-la para o outro lado quando um seio aflora ou uma sombra seilumina sob robes e shortes.
Mergulha nos livros, foge nos teoremas de álgebra, abstratos. Necessita manter-se atento, não se deixar distrair pois, apenas se distrai, os olhos rumam para o quarto onde a tia, porta aberta e nenhum cuidado, se embeleza.
Cometerá pecado mortal, com certeza absoluta, se espiar a tia. Mas quando acontece ver sem querer, por acaso? Por mais que faça, impossível não enxergar tão expostos atributos.
Pior que ver, é pensar. não olhara quando Peto chamou sua atenção para os pêlos da tia, atirou-se no rio. Mas, mesmo dentro da água, nadando, sem espiar, ele os imaginara. De olhos fechados ou abertos, queira ou não, pensa, imagina. A gente imagina sem querer, mesmo não querendo, é a maneira de Deus provar a fé, o zelo dos eleitos. É preciso controlar-se; vencer os maus pensamentos.
E os sonhos? Os sonhos, a gente não controla. Cosme, um asceta, o pusera em guarda contra os sonhos, neles o demônio tenta os homens, nem os anacoretas escaparam. Dormindo, a gente pode pecar e se condenar.
Cosme aconselha espalhar grãos de milho ou de feijão sobre o lençol, deitar em cima, castigando a carne. Na rede, impossível. Da rede, no escuro, ouve e percebe a tia na toalete noturna, retirando a maquiagem. Fechar a porta não resolve, ao contrário. De porta aberta fica reduzido a pequenos ruídos de potes e frascos, a limitadas amostras, vislumbres de carnação surgindo do robe. Mas para a imaginação não há limites, quando fecha a porta o robe se abre inteiro e é tão curta a camisola! Só as orações desviam vista e pensamento.
De qualquer maneira, de noite ou de dia, é árduo o combate com o demônio, só a ajuda de Deus permite a vitória. Na banca, antes do almoço, tenta absorver-se no estudo da matemática ou da história, enquanto, no quarto em frente, a tia se pinta e se perfuma. Os teoremas de álgebra, os navegadores portugueses. Impossível concentrar-se, o perfume acalentou seu sono no seminário, aqui o entontece.
- Cardo!
- Diga, tia.
- Está ocupado?
- Estou estudando, é hora da banca. Mas, se quiser alguma coisa...
- Quero, sim. Venha cá.
Ricardo deixa o livro, entra no quarto.
- Passe creme nos meus ombros, faça uma massagem. Abra a mão. Espreme a bisnaga, põe-lhe no côncavo da mão o creme oloroso. - Vá, espalhe primeiro, depois amasse com as mãos e os dedos.
Baixa o penhoar, exibe as espáduas nuas; com a mão fecha-o sobre os seios, fica composta, ainda bem. Curva-se para facilitar a tarefa do sobrinho.
Ricardo espalha o creme e começa, desajeitado, a esfregar-lhe os ombros.
- Nas costas, filho.
Esse não tem malícia, se fosse o pequeno estaria tentando ver a curva do busto sob as rendas. O rapaz sente o cheiro doce do creme, a maciez da pele.
Não pode entupir o nariz nem retirar as mãos. Sente, sem querer sentir. O Demônio o possui pelos dedos, pelas ventas. Que fazer, Senhor? Orar, pois a oração é a arma que Deus entregou aos homens para vencer as tentações, derrotar o inimigo. Padre-Nosso que estais no céu...
- Força, meu bem.
Curva-se ainda mais Antonieta, a mão já não prende o robe. Ricardo desvia a mirada pois o seio, solto, surge inteiro, moreno, volumoso. Onde parou, na oração? não nos deixeis cair em tentação...
- Chega, meu filho, muito obrigada.
Ao agradecer, volta-se com um sorriso, surpreende o sobrinho a mover os lábios.
- Que é que você está fazendo? Rezando?
Espoca em riso, Ricardo encabula, vermelho, escabreado.
- Tem medo de mim? não sou diabo, não.
- Oh!, tia.
- Nem fazer massagem no cangote da tia é pecado.
- Não pensei nada disso. Tenho o costume de rezar enquanto faço algum trabalho manual. -mente, ainda por cima.
- Então me dê um beijo e vá estudar.
Beijo do pequeno não seria esse distante roçar de lábios na face. Peto é um perigo. aos doze anos nem Tieta possuía igual atrevimento, tanta urgência.
Dos alegres dias quaseinteiramente livres de preocupações o programa de festejos continua e seintensifica. dias alegres, despreocupados, felizes; dias de passeio, de prosa e rede, no trino dos passarinhos a infinita paz.
Na rede pendurada na varanda, ouvindo o gorjeio do pássaro sofrê, Leonora Cantarelli pergunta-se como a vida pode ser tão maravilhosa.
Ascânio passa por um momento, para desejar bom-dia, a caminho da Prefeitura. Na cidade, conta ele, fervem as discussões sobre o problema da eletricidade: Tieta obterá, através de suas relações paulistas, mandões da política, a instalação dos postes da Hidrelétrica? Uns dizem que sim, outros que não, os últimos em maioria. Ninguém duvida da riqueza, da importância social da viúva do Comendador Cantarelli, mas daí a mover graúdos da estirpe de governador e senadores vai distância. De qualquer maneira, bom assunto para as conversas, os debates, para matar o tempo longo, as lentas horas arrastadas. Ditosas ao ver de Leonora.
Após cumprimentar as senhoras e comentar a polêmica da luz elétrica, Ascânio dirige-se ao trabalho. O rosto esfogueado, a loira cabeleira, o riso de cristal, finíssimo bacará aos ouvidos do rapaz, Leonora acena adeus da porta de casa. Adeus? Até logo, até daqui a pouco, pois ele passará de novo, meio sem jeito, com receio de parecer importuno. Mas, se demora a chegar, Leonora reclama, a fala doce queixume:
- Demorou, por quê?
- Medo de ser chato.
- Se repetir isso, me zango.
Sempre com numerosa e alegre comitiva, subiram e desceram o rio na; canoa a motor do Comandante, lerda e segura, na lancha de Elieser, no bote veloz de Pirica. No sábado finalmente irão a Mangue Seco, Tieta e Leonora serão hóspedes de dona Laura e do comandante Dário. O Secretário da Prefeitura, restabelecido, pelo menos em aparência, da decepção da viagem a Paulo Afonso, anuncia à bela Leonora Cantarelli:
- Já tomei as necessárias providências burocráticas para encomendar um luar deslumbrante para você. Sabe que noite de lua cheia em Mangue Seco é a coisa mais bela do mundo?
- Tem que ser um luar daqueles senão não aceito.
- Deixe comigo, sou chapa de São Jorge.
Um luar para namorados, gostaria ela de dizer mas se contém, tudo é tão novo e inesperado, um sonho antigo fazendo-se de súbito realidade. Tarde demais. Também Ascânio gostaria de dizer: encomendei um luar de namorados, onde a coragem? Pobre, reles funcionário municipal, como elevar os olhos para herdeira milionária? Nem em sonhos. Ainda assim, pensa Leonora, pensa Ascânio, são dias plenos, venturosos, benditos. O melhor é não pensar.
No meio da semana, jantaram em casa de dona Milú. Dona Carmosina anunciara espantoso cardápio, um despotismo de pratos todos eles da mais alta qualidade, para regalar o mais fino paladar sulista. Da maioria desses quitutes, Leonora nunca ouvira falar.
Na sala repleta de bibelôs, recordações de um tempo de abastança abastança dos Sluizer consumida pelo finado Juvenal Conceição, amigo do bom e do melhor, restaram apenas os bibelôs e o tenaz amor à vida da mãe e da filha -, Leonora seinforma com Ascânio:
Teiú!? Que bicho é esse? Uma ave?
- Um lagarto.
- E se come?
- Delicia. Mais gostoso do que capão. Daqui a pouco você vai ver.
Dona Milú chega da cozinha, onde comanda:
- A carne-de-sol está quase pronta, o pirão de leite também. A frigideira de maturi já está dourando no forno.
Leonora recorda-se de outra conversa e cobra:
- Por falar em comida, mãezinha, como se chama aquele doce de banana da casa de dona Aída, você ficou de me dizer...
Risos gaiatos, Ascânio encabulado, Perpétua fecha a cara, quem explica é dona Milú, a idade lhe concede privilégios:
- Doce de puta, minha filha. Dizem que tem desse doce em tudo que é casa de rapariga. não é, Osnar?
- A senhora pergunta logo a mim, Marechala? Eu que não sou chegado a doces e não freqüento essas casas... pergunte ao Tenente Seixas que é freguês... - Além de debochado, cínico.
Jantar de muitos convidados: afora as homenageadas, Perpétua, Elisa e Astério, Barbozinha, Ascânio, a malta do bilhar. O Comandante e dona Laura estão em Mangue Seco.
Sucedem-se os pratos, a frigideira de maturi levanta exclamações entusiásticas, Barbozinha proclama-a digna de um poema, pelo menos de um brinde, corre a cerveja, a conversa entremeada de pilhérias, de risos e de algumas piadas de mau gosto. Devidas a Osnar e a Aminthas, a propósito da lírica melancolia em que se consomem Leonora e Ascânio: ela sonhadora, ele ansioso. Retiraram-se para a varanda, querem estar a sós. Dona Carmosina, enternecida, adora alcovitar um namoro, torcendo pelo sucesso, pelo casamento - festa rara em Agreste. Tão bom se tudo desse certo, ele se recuperando do golpe vibrado por Astrud, a traiçoeira víbora, recuperando-se e a do fracasso do noivado com o ignóbil caça- dotes. Céu azul, sem nuvens.
- Não fiquem aí a fofocar, seus cretinos. não acham um quadro lindo?
Ela é tão mimosa!- dona Carmosina aponta o casal isolado, mastigando teiú e maturi entre suspiros.- Ascânio tirou o prêmio grande na loteria do amor.
- Loteria do amor, vulgarmente conhecida como golpe do baú - goza Osnar. - Em troca, perdemos nosso futuro prefeito.
- Não vejo por quê.
- Coronela, pelo amor de Deus... Onde está o tutu? Em São Paulo.
- Leonora já disse que gosta daqui.
- Diz isso agora, na influência do rabicho. Depois, passa Aminthas é cético como compete a um humorista. - Namoro sem futuro, Carmosina.
Não vai adiante.
- Se me falar que a Generala não vai deixar a enteada ficar aqui, mesmo que ela peça. Se Ascânio quiser, tem de ir para São Paulo - retorna Osnar.
- E quem vai ser prefeito, me diga? Só se for você, Coronela. Tem meu voto.
A Generala se empanturra, ouvindo, sem prestar atenção, o conversê de Barbozinha que se declara cozinheiro de mão cheia; não existe aliás profissão que ele não conheça a fundo, tendo-as exercido todas à perfeição. Tieta aprova com a cabeça ou com monossílabos, enquanto constata alarmada como está engordando, daqui a dias não caberá nos vestidos. Quisera ter a natureza de Leonora que não engorda. Passou tanta necessidade, ficou magra para o resto da vida. Procura a enteada com os olhos. Lá está ela, na varanda, derretida ao lado de Ascânio. Cabrita sofrida e direita, ninguém merece tanto ser feliz. Terá Ascânio t amanhã competência? Tieta não crê. Mesmo se ele quisesse, em Agreste seria impossível.
Dona Milú e dona Carmosina vêm juntar-se a Tieta e ao poeta:
- Nunca vi ninguém tão apaixonado como está Ascânio. - Dona Carmosina não tem outro assunto. - Você acredita que Leonora corresponda?
- Não sei... ela sofreu muito, já lhe contei, Carmô. Teve um noivo que só queria avançar no dinheiro dela, dona Milú. Foi uma decepção muito grande, até hoje está marcada.
Barbozinha confia na força do amor:
- Ninguém morre de amor, de amor se vive.
- Se me envergonha! Depois vem dizer que já morreu de amor por mim não sei quantas vezes. Também desencarna e reencarna com a maior facilidade.
- Vivo morrendo por você, Tieta. Se você lesse meus versos, saberia.
- Seu Barbozinha ainda é melhor na mentira do que na rima. Mentiroso igual não tem por essa redondeza - afirma dona Milú e muda de assunto. - E a casa, Tieta? Já achou outra, a seu gosto?
Todos a par da surpreendente alta ocorrida no preço dos imóveis com a chegada das paulistas ricas.
- Uma descaração! Como se eu fosse mesmo paulista, não tivesse nascido e me criado aqui, uma exploração. Mas, se dona Zulmira reduzir o preço, acabo comprando, é uma casa como eu quero. As outras que corri nenhuma me agradou.
Saem tarde do jantar. Ascânio as acompanha até a porta de casa Perpétua morta de sono, habitualmente dorme às nove da noite, às seis da manha firme na igreja para a missa. Leonora, nas nuvens, sorriso abobado olhar de quebranto, cabrita tola. Tieta sacode os ombros: no fundo não tem muita importância, não se morre de amor, de amor se vive; Barbozinha tem razão, alguém disse que os poetas têm sempre razão. Tendo passado o que passou, o namoro de Ascânio não poderá fazê-la mais infeliz. Alguma lágrimas no ônibus de volta, depois o esquecimento.
Antes de despedir-se, Ascânio assume um ar solene, convida dona Antonieta para ser madrinha da inauguração festiva do calçamento, do jardin e dos bancos da Praça Modesto Pires, antes denominada Praça do Curtume, o curtume de peles fica próximo, na ribanceira do rio. Obra da Prefeitura, contara com a ajuda do importante cidadão: Modesto Pires oferecera os três bancos de ferro. Agradecida e bajuladora, a Câmara Municipal decidira mudar o nome da Praça. A cerimônia será antes do Natal, com exibição de ternos de reis e do bumba-meu-boi de Valdemar Cotó.
- Quem deve ser madrinha é dona Aída, mulher de seu Modesto. Ela ou bem... - ri descontraída, ligeiramente tonta, abusou dos licores. ..Carol, ou as duas juntas para não haver injustiças...
Perturba-se Ascânio, dona Antonieta infunde-lhe certo temor, nunca se sabe quando fala a sério e quando brinca:
- É que tem duas placas para serem descerradas. Uma, com o nome novo da praça, quem vai puxar a fita é dona Aída. Mas a placa das obras, no obelisco, a mais importante, eu queria que fosse a senhora. Tive a idéia e meu padrinho, o coronel Artur, que é o Presidente da Câmara, achou ótima.
Mandou que convidasse a senhora em nome dele.
Licores docíssimos, tantos brindes à sua saúde, Tieta flutua. Noite encantada, cálida, alegre. Quem é ela para paraninfar inauguração de praça pública? Aceita, comovida.
- Se não fosse por outra coisa, bastavam os telegramas que a senhora mandou para São Paulo sobre a luz elétrica. Mesmo que não dê resultado, o gesto é valioso, a intenção merece. ..
- Nenhum gesto vale nada quando não dá certo, meu filho. Intenção?
De que serve intenção, por melhor que seja? Na vida, somente os resultados matam, não se engane. Muito obrigada e boa noite.
Deixa os dois na porta, ri sozinha, à toa.
Da emocionante visão e do pesadelo com cabuloso anjo antes de recolher-se, Tieta passa no banheiro. esta risonha e aérea, um pouco bebida, quase em estado de graça. Para a noite ser completa. .. bem, deixa isso para lá.
Vagarosa, no corredor, na mão a placa acesa. Comera como um bicho, há quantos anos não provava frigideira de maturi? Os quitutes, cada qual mais saboroso, de estalar a língua e revirar os olhos. Quantos repetira, todos engordantes? Quantos cálices dos licores de frutas- de pitanga, maravilha; e groselha, divino; de rosas, perfumado; o indispensável licor de jenipapo, tantos -, todos embriagadores. Para completar a noite, só falta. .. Cala a boca, viúva alegre, mais que alegre, libertina.
Em frente ao gabinete, no reflexo da luz da placa, Tieta enxerga a rede onde Ricardo dorme. Espia na porta, distingue na sombra o sobrinho a ressonar. Que é aquilo? Dá um passo, entra. Suspende a luz, espia e vê.
Descomposto, o camisolão subindo pelo peito e por baixo nada. Ela o julgava verde, nem de vez ainda. Enganara-se, quem tem razão é dona Edna, arguta. Já no ponto, e como! Desmesurado, benza Deus.
Para estar assim armado, com quem sonha o seminarista? Com os santos não há de ser. Aquele tesouro ali, à mão, e ela proibida, que injustiça mais medonha. não sabe bem por que proibida, mas deve existir uma razão a fazê-la afastar a vista, voltar as costas, andar para a alcova, a placa acesa, acesa ela também. Que desperdício!
Empanturrada, dorme sono agitado. Primeiro sonha com Leonora e Ascânio, fogem os dois pelas ruas de Agreste, perseguidos pela população, à frente dos linchadores estão o profeta Possidônio e Zé Esteves, brandindo O cajado. O pesadelo prossegue com Lucas a lhe ensinar posições e requintes enquanto Ricardo, de batina e asas de anjo, sobrevoa o leito. Suspende a batina, exibe a estrovenga. Lucas sumiu. Anjo decaído, o sobrinho propõe massagear-lhe o cangote com o magno instrumento. Mas quando Tieta vai agarrá-lo, os braços não se elevam, estão presos. O anjo não é mais Ricardo, é o bode Inácio. Ela não passa de uma cabra em cio, saltando sobre as pedras.
Capítulo culinário onde o autor oferece como brinde aos leitores, na intenção de segura-los, secreta receita de frigideira de maturi, de autoria desconhecida como sabem ou não sabem, maturi é o nome dado a castanha do caju quando ainda verde. Nós, baianos, mulatos gordos e sensuais, cultivados no azeite amarelo de dendê, no branco leite de coco e na ardida pimenta, utilizamos maturi num prato raro e de especial sabor. Aliás em mais de um, pois com a castanha verde do caju pode-se preparar moqueca ou frigideira.
Aqui nos ocuparemos apenas da frigideira, petisco oferecido por dona Milú à paulista Leonora Cantarelli para lhe ensinar os sabores da Bahia.
Quem temperou e deu o ponto foi Nice, no fogão de lenha onde moureja há cinqüenta anos. Mas a receita a seguir transcrita deve-se a dona Indayá Alves, ilustre cordon-bleu da capital baiana, professora de arte culinária, com muita teoria e longa prática. Dela a obtive e em brinde aos leitores a ofereço.
Lambendo os beiços, após fartarem-se no manjar sublime, talvez mais facilmente cheguem às páginas finais, ainda distantes, deste já extenso folhetim. Estamos na época da propaganda, da arte suprema da publicidade, vivemos sob suas regras e uma delas, das mais provadas, manda distribuir brindes à freguesia, irresistível chamariz.
Fúlvio D'Alambert, confrade e amigo, por pouco tem um enfarte:
- Receita de comida? Assim, não mais? ao menos para tapear a coloque num diálogo vivo e pitoresco entre a moça e a cozinheira, durante o qual esta última ensina a receita, de quando em quando interrompida pela paulista com perguntas e exclamações. Afinal, que pretende você nos impingir? Romance ou livro de cozinha?
- Sei lá!
A literatura tem canones precisos, se a queremos exercer devemos respeitá-los, ensina-me o erudito D'Alambert. Duvido-se teve já não tem.
Outro dia, jovem e genial diretor de teatro, o gostosão, o ai - Jesus da crítica, explicou-me ser o texto o elemento de menor valia numa peça, quanto menos O ouça o espectador melhor para a compreensão e a qualidade do espetáculo.
Diante disso, atrevo-me e, em seguida, passo a transcrever a receita de mestra do coco e do dendê.
Ingredientes:
duas xícaras de maturi;
quatro espetor de camarão seco;
quatro colheres de sopa de óleo (de soja, de amendoim ou de algodão);
três colheres de sopa de azeite doce, digo de azeite de oliva, português, italiano ou espanhol,·
três tomates; um pimentão;
um coco grande;
uma cebola também grande;
uma colher de extrato de tomate;
seis ovos;
coentro e sal - o necessário.
Afervente os maturis e os tempere com alho, sal e extrato de tomate.
Ponha o camarão seco de molho por algum tempo, depois o cate e o passe na máquina de moer juntamente com o coentro, o tomate e o pimentão.
Leve ao fogo uma caçarola com óleo e as cebolas cortadas para refogar.
A seguir, junte os maturis e o camarão seco passado na máquina com os temperos. Deixe apurar. Coloque então na caçarola a massa de meio coco ralado de costas de costas, o detalhe é importante se quiser que a massa do coco ralado saia como um fino creme - e o leite da outra metade, extraído do bagaço com o auxílio de meia xícara de água. Deixe cozinhar um pouco e acrescente o azeite doce e três ovos batidos, primeiro as claras, depois as gemas. Junte um pouco de farinha de trigo aos ovos. Prove para ver se o paladar está a gosto.
Por fim, tudo suficientemente cozido, coloque em assadeira untada com óleo para nela assar a frigideira de maturi, que será coberta com três ovos batidos, clara e gema juntos, e uma borrifada de farinha.
Ponha a dourar em forno quente. Só retire o quitute da assadeira quando ela estiver bem fria.
Aí está, em grifo, a cobiçada receita. Difícil mesmo é obter os maturis, não se encontram à venda. Se o leitor pedir por gentileza a Camafeu de Oxossi ou a Luíz Domingos, filho da finada Maria de São Pedro, ambos estabelecidos no Mercado Modelo da Bahia, talvez um deles obtenha e forneça uma ou duas mãos da castanha verde e tenra com sabor de virgem.
Ainda mais difícil será conseguir o ponto justo, o paladar divino. Por mais correta a receita, por mais estritamente observadas as leis da culinária, tudo depende do talento e do ofício da cozinheira, do mestre- cuca, do cordon-bleu - igual à literatura.
O melhor, o mais garantido, é encomendar o prato a Indayá, recebê-lo feito, regalar-se. Prometi aos leitores um brinde, ofereço dois, ambos de graça: a receita e o conselho.
Onde a mansa Leonora Cantarelli proclama no sábado pela madrugada, Tieta, Leonora e peto embarcam na canoa do comandante Dário que os veio buscar deixando dona Laura na Toca da Sogra ainda adormecida: quando acordar, vai cuidar dos preparativos para recepcionar as visitantes. No almoço, haverá moqueca, o peixe fresquinho, pescado na hora.
Os demais irão no domingo, sábado é dia de muita ocupação em Agreste. Ricardo preso à missa, Astério preso à loja, Elisa à cozinha, Ascânio à Prefeitura onde atende ao povaréu do interior do município até o fim da tarde. Dona Carmosina a esperar a marinete para distribuir jornais e revistas, entregar e receber cartas, ler e redigir algumas, a pedido de roceiros iletrados.
Para a gente dos povoados e do campo, sábado é o dia das compras, das queixas, das reclamações e dos pedidos à municipalidade, da correspondência com os parentes emigrados para o Sul.
Com dona Carmosina irá dona Milú levando comida para juntar à de dona Laura e fazerem um piquenique na sombra dos coqueiros. Também o vaie Barbozinha se estiver melhor do reumatismo a castigá-lo pela mania de ficar acordado até altas horas da noite, sondando o horizonte à espera de discos voadores, de naves espaciais de onde desçam seres das mais remotas galáxias, vindos de visita ao grão-mestre de todas as sociedades secretas, Gregório Eustáquio de Matos Barbosa, filósofo e vidente conhecido na imensidão do sistema celeste. Ultimamente recebeu irradiações poderosas, anúncios de acontecimentos extraordinários em futuro próximo. De quando em vez, num disco luminoso ou na pouco recomendável companhia de Osnar, de Seixas, de Fidélio e Aminthas, desembarca o poeta na casa mal-afamada de Zuleika Cinderela, no Beco da Amargura, onde range a música de velhos discos e se pode dançar com raparigas. Nos tempos boêmios e literários da capital, em companhia de Giovanni Guimarães, James Amado e Wilson Lins, no castelo de Vavá ou no da Ladeira da Montanha, o vate Barbozinha era apreciado pé- de- valsa. Hoje, envelhecido, meio entrevado, mesmo assim faz figura na cadência dos passos de um foxtrote, no rodopio de uma valsa.
Num tango ainda arranca palmas.
Tieta e Leonora assistem ao sol nascendo sobre o rio, a moça de São Paulo vai calada, um tênue sorriso: o Comandante a observa e percebe a emoção a dominá-la. Quando ele chegou de volta e fez esse mesmo caminho descendo o rio, não conteve as lágrimas. Tieta tampouco fala, a face fechada, quase dolorosa. Apenas Peto espana a água com as mãos quando não ajuda o Comandante nas manobras.
Na Toca da Sogra, onde dona Laura recebe os visitantes com água-de-coco e pequenos peixes fritos no azeite-de-dendê - tem batida de pitanga e de maracujá para quem quiser -, o Comandante desdobrou sobre a mesa uma planta rudimentar dos terrenos de propriedade de Modesto Pires, traçada por ele próprio:
- Aqui está a Toca, nosso terreno. Eu lhe aconselho, Tieta, a comprar esse aqui, vizinho ao nosso, nessa área do coqueiral. É a parte mais bonita e a mais defendida da areia. Podemos ir até lá, se quiser.
- Agora mesmo, para isso vim.
Não veio para isso, veio para rever as dunas e nelas se reencontrar. Mas demora de propósito, retém a vontade de correr para os cômoros, de subir ao alto e olhar a imensidão. Com o Comandante e Leonora, vai constatar as vantagens do terreno, quando regressar a Agreste efetuará a compra.
- Pode acertar aqui mesmo. Modesto e dona Aída estão na praia. Aliás ele mandou convidá-la s para tomar aperitivo em casa dele, antes do almoço.
Fica mais adiante, perto da povoação de pescadores.
- Tudo aqui é belo. Nunca vi nada igual- diz Leonora de retorno à Toca da Sogra, dona Laura exigindo que ela prove a batida de pitanga. Obrigada, dona Laura, mais tarde aceito. Agora, se me dão licença, vou andar na praia. - Mansa e discreta, tão querida.
- Olha que o almoço não demora e, antes, devemos ir à casa de seu Modesto. A moqueca já está sendo preparada, Gripa é especialista. - Na pequena cozinha, a gorda mulata clara sorri a escamar os peixes.
- Volto já, vou só dar uma espiada.
- Vou com você. - A voz rouca de Tieta.
Peto sai correndo na frente, começa a escalar as dunas, logo chega ao alto, monta numa palma seca de coqueiro, desce veloz a cavalgá-la. Convida a tia e Leonora. A ventania uiva, a areia voa em rodopio.
Tieta sente no rosto o sopro da maresia, o inconfundível olor. A areia fina, trazida do outro lado da barra na força do vento, penetra-lhe os cabelos.
O sol queima-lhe a pele. Ali fora mulher pela primeira vez.
Em Agreste, perguntara ao árabe Chalita pelo mascate. Pois não sabe?
Morreu de um tiro quando a policia quis prendê-lo na Vila de Santa Luzia, há uns dez anos mais ou menos. Valente, não se entregou, nunca encontraram a mercadoria, as provas. Chalita cofia a bigodeira.
- Gostava de levar umas quengas para Mangue Seco. Molecas também.
- Repousa em Tieta o olhar de sultão decadente. Entre eles, ali, na porta do cinema, por um instante redivivo, o contrabandista.
Os cômoros crescendo diante das duas mulheres, Peto a descer estendido na palma de coqueiro. Qual dessas dunas galgou Tieta na distante tarde do mascate? Leonora a interroga com os olhos, ela balança a cabeça:
- Quem pode saber? Sinto uma coisa por dentro, Leonora. Por estar aqui de novo, com esse vento na cara e esse mar na minha frente. Quase tudo no mundo já apodreceu, mas ficou Mangue Seco, você entende? Quando chegar lá em cima, você vai ver.
Estão próximas do cume, Peto as alcança, Leonora força o passo, os pés se enterram na areia.
- Ai! Que coisa! Isso não existe - exclama a moça paulista ao divisar inteira a paisagem ilimitada.
Busca Tieta com os olhos ofuscados pelo sol e a enxerga erguida no ponto mais alto, no extremo das dunas sobre o oceano, envolta pelo vento, invadida de areia, pastora de cabras diante de sua cama de noiva.
Leonora chega junto dela, a voz estrangulada:
- Mãezinha, não quero ir embora daqui, nunca mais. não vou voltar para São Paulo.
Peto as convida a cavalgar as palhas de coqueiro e escorregar, venham ver como é bom. O vento leva as loucas palavras de Leonora, Tieta não responde.
- Nunca mais! - repete a moça.
Melhor seria se afogar ali, nas vagas desmedidas, no mar enfurecido.
Onde Tieta compra um terreno em mangue seco e Leonora, bem educada, devaneia haviam voltado aos cômoros na noite enluarada, ela e Tieta.
Leonora parecia flutuar na paisagem encantada - de repente liberta do passado, recém- nascida na magia da lua cheia derramada sobre as dunas e o oceano, no embalo do marulho das ondas. Gostaria de demorar no cimo, deitada sobre a areia, invadida de paz. Mas, quando o Comandante veio recordar o encontro marcado com dona Aída e Modesto Pires, Leonora não quis ser desatenta, regressou com Tieta à Toca da Sogra.
Por sua vontade, teria permanecido no alto dos cômoros, sob o luar encomendado por Ascânio, deslumbrante como ele prometera, a sentir o mar noturno arrebentando contra as montanhas de areia. Mesmo sozinha: pensaria nele, cioso dos deveres de administrador, tão correto. Sujeito decente, diziam de Ascânio. Decência, virtude rara, constata Leonora. Teve de atravessar o Brasil, chegar ao sertão, para vislumbrá-la. Dá-se conta de que comete uma injustiça: Tieta é decente; a seu modo, sem dúvida. Decência não significa candura, castidade. Mulher direita, diziam dela no Refúgio.
Se estivesse nas dunas poderia escorregar, estendida sobre uma palma de coqueiro, igual a Peto, moleque travesso. não fora travessa, não fora moleca nem menina. não tivera infância, tampouco adolescência; não provara o gosto do primeiro beijo recebido ou dado em ímpeto de ternura. não tivera namorados, não ouvira palavras sussurradas, cálidas. aos treze anos já lhe apalpavam inexistentes seios.
Tenta reconhecer os sons da harmônica - há festa na povoação.
Passaram por lá, viram os pescadores reunidos diante de uma choupana em torno do tocador. não era outro senão Claudionor das Virgens, com a harmônica, as emboladas, as trovas, os improvisos, de lugarejo em lugarejo, de batizado em batizado, de casamento em casamento, onde houver festa. ao vê-los, saudara:
Salve o senhor Comandante E sua ilustre companhia.
Na Toca da Sogra, Antonieta, apressada como sempre que deseja alguma coisa, acerta os últimos detalhes da compra do terreno. Leonora persegue o som da harmônica, distante da conversa.
- Pague como bem entender, em quantas prestações quiser. Nem por ser dono vou mentir: terreno em Mangue Seco não se compra nem se vende.
De muitas dessas terras, ninguém sabe o dono. Faz para mais de quatro anos que vendi um lote. Para um gringo que apareceu por aqui; se lembra, Comandante?
- Lembro muito bem, era um alemão, pintor. Anunciou que ia se desfazer da casa na Baviera para vir morar em Mangue Seco.
- Pagou três prestações adiantadas dizendo que precisava de três meses para botar a vida em ordem na terra dele e voltar de vez. Nunca mais voltou nem acabou de pagar.
- Eu quero pagar à vista, seu Modesto. Dinheiro batido, moeda corrente... - Anuncia Tieta a rir.
- Vê-se que a senhora não é mulher de negócios, dona Antonieta: com a inflação, comprar a prazo sempre é melhor.
- Não gosto de dever, é por isso, mas não pense que sou tola. Como pago à vista, quero abatimento.
Foi a vez de Modesto Pires rir:
- Abatimento? Vá lá. Cinco por cento, que lhe parece? não por ser à vista mas pelo prazer da vizinhança.
Espreguiçadeiras, tamboretes, um banco rústico na porta de casa, debaixo dos coqueiros. Ali conversam enquanto a lua se desmancha. Peto adormecera deitado numa esteira.
Leonora escuta vagamente o diálogo, também ela, se pudesse, compraria terreno em Mangue Seco. não para a velhice mas para ficar desde agora.
Ansiara a vida inteira por sentimentos e verdades de cuja existência tinha notícia por ouvir dizer, através de filmes de cinema, das novelas de televisão.
Nada de mais, sentimentos normais, verdades corriqueiras. A avó, referindo-se à vida na aldeia Toscana antes da viagem, falava de coisas simples: família, sossego, paz, amor. Amor, como seria? Nas ruelas podres, no cortiço seboso, ninguém soubera responder.
Quanto mais por baixo, batida, derrotada, lacerada, rota por dentro, mais se refugiava Leonora no modesto sonho irrealizável: afeto, ternura, bem- querer de um homem. Vida limpa, como existia fora dos limites onde nascera, crescera e se fizera mulher, mais além do círculo de dor e desespero.
Subindo e descendo a Avenida nas frias madrugadas, carregando seu fardo, o castigo por ter nascido filha de pais tão pobres em terra tão rica, as chagas abertas, ainda assim sonhava. Se não sonhasse, só lhe restaria a morte.
Inesperadamente, quando o horizonte se fizera aperto na garganta, estertor final, conheceu a bondade e nela descansou, aprendeu novos valores, sentiu-se uma pessoa. Os sonhos loucos de amor eterno adormeceram pois, não sendo torpe a nova condição, apenas triste, menos carente estava. não de todo satisfeita: sempre no desejo, na intenção de sair daquele invólucro para a existência desejada: casa e companheiro - não previa casamento -, um par de filhos. Outros reclamam dinheiro e fama. Leonora nascera como a avó, para ser dona- de- casa, mãe de família, não almeja mais do que isso.
Ali em Agreste, mundo pacato e diferente, onde a vida parece ter adormecido e assim é vivida por inteiro, Leonora sente-se tomada de exaltação e medo. Em Agreste o sonho persiste além da imaginação, concretiza-se em recatado enleio, alimenta-se de olhares e sorrisos, gentilezas, meias palavras, cresce no canto do pássaro sofrê, presente do príncipe encantado que ela não deseja príncipe, nobre ou rico, apenas encantado, decente. Mesmo sabendo-o inatingível, Leonora anseia ao menos chegar à margem, tocar com a ponta dos dedos o simples, maravilhoso mundo.
Para agir corretamente, deve abrir-se com mãezinha, ouvi-la, seguir-lhe os conselhos. Receia, porém, que Tieta, temerosa das conseqüências, resolva apressar a volta a São Paulo. Leonora pretende apenas alguns dias de ternura, mesmo irremediavelmente contados, poucos - a certeza da morte não impede o homem de aproveitar a vida. Reivindica o direito a ouvir e a pronunciar palavras trêmulas, a esboçar gestos de carinho, o direito ao primeiro beijo, como será?
Para guardar essas recordações, ter com que encher de saudade a solidão.
Nunca sentiu saudade. De nada, de ninguém. Tudo foi ruim e sujo em seu percurso. Muita falta faz não ter um instante ao menos, um rosto, uma carícia, uma palavra a relembrar, não ter saudades. A solidão torna-se vazia e perigosa. Implora uns dias apenas, por misericórdia, suficientes para encher o coração de momentos ternos, dos quais se recordar. Então, dirá: vamos embora daqui, mãezinha, antes que seja tarde.
Prossegue Claudionor animando o arrasta-pé, pode atravessa noites e noites, firme na harmônica. Um ruído de motor se mistura à música, vem dos lados do rio, quem será? Leonora terá saudade desse minuto breve, do pressentimento e da ansiedade. Acompanha o barulho que cresce e se modifica: a embarcação enfrenta o mar na entrada da barra. Volta a reinar sozinha a harmônica festiva. Logo, os passos na areia, Leonora põe-se de pé. Ascânio aparece, desembarca do luar. Num ímpeto, a moça se adianta.
Na meia sombra as mãos se tocam, sorriem os lábios, brilham os olhos.
- Vim no barco de Pirica. Veio só me trazer, já está de volta. Novamente o barulho do motor, o casco de encontro às vagas.
- Não agüentou esperar até amanhã, Hein, mestre Ascânio? Fez muito bem: quem é aguardado não pode se atrasar - saúda o Comandante.
O rapaz busca uma desculpa:
- Prefiro viajar de noite do que acordar de madrugada.
Não sabe como agir: deve sentar-se a conversar ou partir com Leonora?
Dona Aída vem em seu socorro:
- Por que não leva Leonora para apreciar o luar de cima dos cômoros?
É tão... - ia dizer romântico, conteve-se -. .. tão lindo...
Sugestão aceita, a moça amarra um lenço na cabeça:
- Com licença...
O movimento acorda Peto: vou com vocês. Mas o Comandante, cúmplice, proíbe.
- É hora de menino estar dormindo.
Os vultos perdem-se entre os coqueiros. Dona Laura suspira:
- Nada se compara com a juventude. Só tenho pena de não ter namorado com Dário aqui em Mangue Seco. Quando vim, já tínhamos dez anos de casados.
- Foi nossa segunda lua-de-mel. .. - lembra o Comandante.
- Moça educada, essa... se vê logo que é de boa família - elogia dona Aída.
Pensativa, acompanhando com os olhos as duas sombras, Tieta retorna à conversa:
- Leonora? Um amor de criatura. Está saindo da fossa, de uma decepção tão grande que lhe abalou a saúde. Um patife, de quem foi noiva, só queria o dinheiro dela. Felizmente, me dei conta a tempo. Mas a pobre sofreu demais, uma crise terrível, não dormia, não comia, acabou anêmica.
Por isso trouxe ela comigo para curar-se nos ares de Agreste.
- Agiu certo, aqui ela vai se refazer em dois tempos. não há como leite de cabra para levantar as forças de um vivente - Aprova Modesto Pires.
- O mais curioso é que ele também teve uma desilusão medonha. não ouviu falar, dona Antonieta? - pergunta dona Aída.
Antonieta conhece a história tintim por tintim mas não quer furtar a dona Aída o prazer do relato, das minúcias e dos comentários:
- Não, senhora.
- Não? - admira-se dona Aída no cúmulo da satisfação:- Pois eu lhe conto.
Do primeiro beijo em frente a costa da África, capitulo de um romantismo atroz como não se usa mais sentam-se no alto da duna, diante deles o oceano.
- Obrigada - diz Leonora.
- De quê?
- Do luar. não foi você quem encomendou?
- Ah! - descontrai-se um pouco. - Gostou? não lhe disse que São Jorge é meu chapa?
- Obrigada também por ter vindo.
Um calor no peito de Ascânio, a emudecê-lo. Os ruídos da festa na povoação vêm morrer no embate das vagas contra os cômoros. Qualquer assunto serve para vencer a mudez:
- Festa de aniversário de Jonas, o chefe da colônia de pescadores. É maneta, o tubarão comeu-lhe o braço esquerdo.
- Tem tubarões aqui?
- No mar aberto, demais. Às vezes chegam até a praia. São ousados e vorazes. Qualquer descuido, é a morte.
Não é hora de lembrar a morte, talvez por isso retornam à contenção, ao retraimento, à timidez. Os dois em silêncio, reduzidos a furtivos olhares, ainda assim tão bom! A lua fincada no céu, feita de encomenda, exclusiva para eles. Luar de namorados, próprio para se falar de amor. Isso é o que Ascânio pretende dizer. Ensaia a frase, morre-lhe nos lábios, finalmente explica:
- Do outro lado fica a África.
- A África?
Ele aponta com o dedo, indica na distância:
- Do outro lado do mar.
- Ah!, sim. A África, eu sei. - não quer deixar o diálogo morrer. Teve muito trabalho hoje?
Não é de geografia nem de problemas de administração que desejam se ocupar. Mas onde o ânimo para as palavras ardentes, a declaração de amor ainda usada pelos namorados em Agreste?
A mesma coisa de todos os sábados: pedidos para consertar caminhos, limpar as fontes, fazer pequenas benfeitorias, um mata- burros, um pontilhão.
Leonora não pode imaginar a falta de recursos em Agreste. Já foi município rico, noutros tempos. Quando o avô de Ascânio era prefeito.
- Ouvi dizer que você vai ser o novo prefeito.
- Penso que sim. Sabe por quê? Porque ninguém quer o posto. Mas eu aceito. Vou lhe dizer uma coisa, se quiser me chame de visionário. Tenho confiança, penso que tudo vai mudar e Agreste voltará ao que foi. não suporto ver minha terra nessa pasmaceira.
- É bom ter confiança, sonhar. Você é louco por sua terra.
- Sou, sim. Quero que ela saia do marasmo em que afundou. Hei de conseguir. - Toma alento, está embalado, disposto. - A vida é engraçada.
Não faz um mês, eu não tinha mais fé em nada, nem esperança. Escrevia cartas aos jornais, reclamava ao governo, mas não acreditava em resultados.
Agora tudo me parece fácil. Depois que...
- Depois quê?
- Que vocês chegaram. Tudo mudou, ficou alegre. Até eu.
- Por causa de Mãezinha, onde ela chega, espanta a tristeza. É a pessoa melhor do mundo.
- Devido a ela também. Mas para mim...
Leonora aguarda, lateja-lhe o coração, descompassado. O vento traz farrapos de risos, sons de harmônica, o nome de Arminda gritado no forró.
A voz de Ascânio rompe-se num lamento:
- Eu era um morto-vivo, não achava graça em nada. Vou lhe contar, se permitir. Ela se chama Astrud.
Para que contar? Quem não sabe em Agreste? Dona Carmosina, romântica como Leonora, recitara as cartas para ela e Tieta, suspirara os detalhes tristes. Revoltara-se Leonora com o procedimento da fmgida. Tieta apenas rira, não era de sentimentalismos, de amor se vive, não se morre, não é mesmo, Barbozinha? Ascânio não esperou o consentimento. Leonora escuta e mais uma vez se emociona.
Os estudos na Bahia, o noivado, a doença do pai, a carta anunciando a ruptura e o próximo casamento. Por que continuara a jurar amor quando já nos braços de outro? Dando-lhe o que jamais consentira a Ascânio nem ele sequer solicitara pois a supunha inocente, angélica, santa. Um bobo alegre.
Dissera a dona Carmosina, confidente, boa amiga a sofrer com ele:
- Nem que um dia desembarque da marinete de Jairo a mulher mais bela, a mais doce e pura...
Afirmara pois não supunha possível tal milagre. Aconteceu, no entanto.
A mais bela, a mais doce, a mais pura das mulheres. Desembarcada da marinete de Jairo.
Ergue-se Leonora. De frente para o mar, os olhos na distância onde o luar se dissolve na noite. Levanta-se também Ascânio, ia completar: a mais bela, doce e pura das mulheres, ademais rica, por quê? Pobre Secretário da Prefeitura de Sant'Ana do Agreste, soldo mesquinho, ai! Por que tão rica?
Não chegou a falar de pobreza e riqueza. Trêmula, os olhos úmidos, Leonora se aproxima, toca-lhe a face com a mão, oferece-lhe os lábios. Desce a correr, na boca o gosto do primeiro beijo. Foge por entre a lua e as estrelas, feliz e desgraçada.
Ascânio não tenta segui-la, está fincado ali, quando sair vai conquistar o mundo. Ah!, um dia chegará diante dela e lhe dirá: não tenho para o luxo mas ganho para o sustento, vim te buscar. A lua desaparece na lonjura, no caminho do mar para as costas da África.
De como Perpétua negocia a ajuda de Deus para o triunfo de seus planos diabólicos anima-se a praia de mangue seco, no domingo, com a chegada de uma quantidade de amigos sob o comando de dona Carmosina, espantosa e inconsciente no maiô lilás. Até Perpétua se animara a acompanhar o grupo, o vestido negro, o luto fechado. Dona Milú desparrama alegria: não vinha a Mangue Seco há mais de seis meses. não por falta de convite, observou o comandante Dário. É verdade: convites não faltam e sobra o tempo, com a idade o que falta é disposição. Riem da mentira: não existe pessoa tão disposta; os anos passam, mãe cada vez mais serelepe, confirma dona Carmosina.
Na lancha, Barbozinha tirara o paletó e a gravata, expusera-se ao vento apesar do reumatismo. Certa noite subira os cômoros com Tieta, declamando versos escritos para ela, reunidos depois no livro Poemas de Agreste (De Matos Barboza, Poemas del Agreste, Ilustrações de Calasans Neto, Edições Macunaíma, Bahia, 1953), formando a primeira parte do volume, intitulada Estrofes do Mar Bravio, o mar bravio, a arrebentação de Mangue Seco e o corpo aceso da livre pastora na chama do desejo. Duas gloriosas noites de amor e poesia, breves, transitórias. Os deveres de funcionário municipal obrigaram- no a retornar à capital Ela prometera esperá-lo, sempre prometia. Alguns meses passados, carta de Agreste dava-lhe notícia da partida de Tieta. Somente agora, vinte e sete anos depois, alquebrado e reumático, voltara a vê-la, mais formosa ainda, opulenta, livre pastora, mar bravio. Viúva, ele solteiro. não casara, teria sido por causa de Tieta? Espera recitar-lhe nas dunas, ao luar, o grande poema que em seu louvor vem de escrever. Nele a proclama estrela d'alva, sendo ele obscurecido astro de bruxuleante luz. Se unissem os seus destinos, no entanto, renasceria o poeta, sol irrompendo do mar de Mangue Seco. Escolhera o estilo condoreiro, bom para declamação.
Vieram Aminthas e Osnar, Fidélio e Seixas, comboiando Astério. O som moderno invade Mangue Seco, substituindo a harmônica de Claudionor das Virgens enquanto o trovador curte, em sono agitado, o pileque da véspera.
Onde está Ricardo? No primeiro momento, cercada, abraçada, beijada, Antonieta não se deu conta da ausência do sobrinho. Mas, diminuída a confusão pergunta:
- E Cardo, cadê ele?
- Não pôde vir.- Explica Perpétua, contrafeita:- Padre Mariano foi realizar casamentos e batizados em Rocinha, vai duas vezes por ano, em junho e em dezembro, levou Ricardo que mandou lhe pedir a bênção, ele lhe adora.
Mas, sendo seminarista, teve de ir com o padre.
Tieta não responde nem comenta mas Perpétua percebe-lhe a decepção no franzir dos lábios e se alegra: a irmã rica sente falta do sobrinho, está se apegando aos meninos. Ainda bem.
- Todos ao mar! - O Comandante ordena e é obedecido.
Calções, maiôs, biquínis desfilam diante da reduzida população de Mangue Seco. ao contrário dos habitantes de Agreste, os pescadores não se escandalizam com a incontinente exibição de coxas e barrigas, bundas e umbigos. Ali, os meninos de quatorze e quinze anos cortam as ondas nus, os corpos de bronze.
Única a não cumprir a ordem do Comandante - Até dona Milú suspende a saia e vai banhar os pés no mar -, Perpétua busca na praia, embaixo dos coqueiros, sombra defendida do sol e do vento. Tira do bolso da saia o terço, começa a passar as contas. No tempo do Major todos os anos vinha à praia, no verão. Vestindo decente traje de banho, enfrentava os perigos do mar; o Major tomava-a nos braços a pretexto de lhe ensinar a nadar, mãos indiscretas, arteiras. Deleites passados, não voltarão. Cabe-lhe agora pensar nos filhos, no futuro dos meninos. Viúva, é mãe e pai, cumpre-lhe lutar. Os dedos nas contas do terço, os lábios na oração, o pensamento nos planos concebidos, em via de execução.
Devota exemplar, incapaz de faltar a uma obrigação religiosa, missa, bênção, confissão, a santa comunhão, as procissões, zeladora-chefe da Matriz, tesoureira da congregação, Perpétua espera contar com a compreensão e a ajuda do Senhor para atingir os calculados fins. Seu plano exige eficaz proteção de Deus e inocente colaboração dos meninos. A de Peto não lhe tem faltado. De onde está, Perpétua enxerga o filho nadando em torno da tia.
Assim, com perseverança e gentileza, se conquista o coração, o amor de parenta rica.
Tentara discutir com Ricardo, trazê-lo, mas o rapaz a derrotara, apoiado nas necessidades do reverendo; Vavá Muriçoca, o sacristão, amanhecera doente, não podia montar. Perpétua ficou sem argumentos, olhando o filho de batina no lombo do burro. Ainda mais do que ela, Ricardo merecia a proteção divina, tão piedoso e temente a Deus.
Queria os filhos, os dois, ao lado da tia o maior tempo possível arquitetara complicado plano com o fim de obter que a irmã fizesse dos meninos seus herdeiros únicos, adotando-os, se a medida legal se revelasse necessária. Precisa saber com certeza, projeta ida a Esplanada para se aconselhar com doutor Rubim.
O tempo é curto, torna-se urgente a ajuda de Deus para tocar o coração de Antonieta, para encaminhá-la à decisão correta. Fazendo obrigatória a involuntária colaboração de Ricardo e Peto. Depende de Deus e deles transformar a estima da parenta em ternura maternal. Agradem a tia, não deixem ela sozinha, recomenda. Ajuda-me, Senhor!, implora. O tempo é curto.
Antonieta não determinara a duração da temporada em Agreste mas evidentemente sua demora não passará de mês e meio, dois meses; deve voltar para reassumir o controle de seus negócios e já uns dez dias são decorridos.
Pouco a pouco, com astúcia e paciência, Perpétua conseguira tirar da irmã várias informações sobre o estado de suas finanças. Ficou a par dos quatro apartamentos e do andar térreo no centro da cidade, alugados cada um dos cinco por uma fortuna mensal- casa de aluguel barato somente em Agreste.
Ainda não obteve informação precisa sobre a espécie de negócio diretamente dirigido por Antonieta. não se trata de indústria, as indústrias são geridas pelos filhos do Comendador, sendo Antonieta sócia mas não administradora. Deve tratar-se de comércio, loja de modas pois tinha funcionárias.
Perpétua surpreendera conversa entre Tieta e Leonora em que faziam referência ao trabalho das meninas. Igual aos imóveis, essa casa comercial é propriedade exclusiva da irmã, presente do Comendador.
Perpétua vai perguntando, colhendo uma informação aqui, outra acolá.
Antonieta e Leonora não são de muito contar. Talvez de propósito para não despertar a cobiça dos parentes. Uma coisa é certa: a magnitude da fortuna.
Os negócios são grandes, múltiplos e rendosos, dinheiro é cama de gato.
Outro dia, de uma das malas, a que está sempre trancada à chave, Antonieta retirou pasta ou maleta - uma na exata designação de Peto, de enciclopédica cultura cinematográfica - e a abriu, mantendo-a no colo, voltada para si. Ainda assim Perpétua conseguira, levantando-se como quem não quer nada, vê-la repleta de dinheiro, notas altas, um desparrame, pacotes e mais pacotes.
- Ai! Santo Deus! - exclamara.
Tieta explicou ter trazido dinheiro vivo não só para as despesas como para pagar terreno em Mangue Seco, dar sinal pela casa, garantir a compra.
- Aqui não existe banco e eu não gosto de ficar devendo.
- Mas tem uma fortuna aí. Você é maluca, deixar esse dinheiro dentro de uma mala, no armário.
- Só quem sabe é Leonora e agora você. É só não falar nisso.
- Eu, falar? Deus me livre. - Bate com a mão na boca.- não vou mais é poder dormir sossegada.
Antonieta ri:
- Quando eu comprar o terreno e a casa, vai diminuir muito.
Fortuna de paulista, fartura de dinheiro, não essa riquezinha de Agreste, de Modesto Pires, do coronel Artur da Tapitanga, de cabras e mandiocas. O importante é evitar que um dia - todos nós, um dia, temos de morrer, não é mesmo?- parte do dinheiro e dos bens de Antonieta vá parar em mãos dos enteados, dos filhos do falecido Comendador, dessa silenciosa Leonora que não cheira nem fede, uma pamonha. Tieta é doida por ela, vive a cuidá-la, a lhe dar de comer, obrigando-a a tomar leite de cabra todas as manhas. A dita cuja deve ser igualmente muito rica, se bem Perpétua, na vistoria detalhada feita no quarto dela, quando examinou coisa por coisa, não tenha bispado mala de dinheiro. Nada está sob chaves, tudo aberto. Na bolsa, alguns milhares de cruzeiros, para Agreste bastante mas nem de longe comparável com o despropósito da de Antonieta. Perpétua se arrepia ao recordar.
A irmã gosta dos sobrinhos, trata-os com afeto, alegra-se quando os vê.
Faz-se necessário, no entanto, muito mais, é preciso que ela os trate como se fossem filhos, pois filhos devem ser. Os dois se possível, pelo menos um.
Reconhecidos legalmente. Herdeiros.
Caso Antonieta deseje levar um deles para São Paulo, Perpétua não se oporá, ótimo se escolher Peto. Menino perdido, solto em Agreste a matar aulas, tomando pau todos os anos, vagabundo no bar e no cinema, obteve em lugares piores. Mas se for Ricardo o escolhido para ir viver em São Paulo, tornar-se braço direito da tia, Perpétua estará de acordo. Peto tomará o lugar do primogênito no seminário, queira ou não queira, pois um dos dois pertence a Deus, assim ela prometera, encruada donzela, perdidas as esperanças terrenas, as últimas. Se Deus lhe desse esposo e filhos, um seria padre, a serviço da Santa Madre Igreja. Deus cumpriu, realizou o milagre, ela cumprirá também.
Na praia, os olhos semicerrados devido ao sol e ao vento, à luz violenta, propõe outra barganha ao Senhor. Se Antonieta adotar pelo menos um dos meninos, Perpétua se compromete a deixar para a Igreja, em testamento, uma das três casas herdadas do Major, a menorzinha, aquela onde morou Lula Pedreiro, agora alugada a Laerte Curte Couro, empregado de Modesto Pires.
Pequena mas bem situada, próxima ao curtume, na pracinha onde fica a capela de São João Batista. Pelo jeito, o Senhor recusa a proposta; íntima de Deus, Perpétua adivinha as reações celestes. Arrependida, retira a oferta, o Senhor tem razão de ficar aborrecido: uma casinha de pequena renda em troca da fortuna de Antonieta, proposta ridícula. Ainda tenta argumentar: a praça está sendo calçada e ajardinada, terá bancos de ferro, o aluguel vai ser aumentado. não adianta: se continuar, o Senhor pode até se ofender. Pede bens consideráveis, oferece ninharia. Mais do que de dinheiro e propriedades, Deus precisa de devoção e fé. Pois bem: se Antonieta tomar Ricardo ou Peto, como filho e herdeiro, qualquer deles, Perpétua irá com os dois à capital à Cidade da Bahia, sim, Senhor Deus! - e lá, a pé se dirigirá à Basílica, na Colina Sagrada, onde mandará rezar missa, deixando no Museu dos Milagres fotografia dos filhos com dedicatória para o todo- poderoso Nosso Senhor do Bomfim. Se a irmã adotar os dois, a missa será cantada. O senhor deve levar em conta, na proposta, o fato dos meninos já possuírem direitos assegurados;
apenas não são os únicos herdeiros.
O ideal seria que Antonieta, tendo adotado os dois, mandasse Ricardo completar o curso em seminário de São Paulo, desses que formam logo cônegos e bispos. No calor do sol, no correr do vento, no remoer de planos e promessas, Perpétua cerra completamente os olhos, adormece e sonha. Vê-se acompanhando a procissão da Senhora Sant'Ana, numa cidade imensa, maior do que Aracaju, deve ser São Paulo, na frente do andor um bispo em vermelho e roxo, um Cardeal, é seu filho Cupertino Batista Junior, Dom Peto. Um aviso do céu, compromisso selado, promessa aceita, milagre à vista.
Dos ciúmes e das esperanças de Elisa com curioso detalhe sobre questão de tratamento Elisa não sabe nadar. foram-lhe proibidos rio e mar na meninice e na adolescência. Zé Esteves, empobrecido, tornara-seintransigente e virulento - basta uma puta na família, advertia, o bastão em punho. No exemplo do sucedido com Tieta, Elisa cresceu de rédeas curtas, a qualquer pretexto o pau cantava-lhe nas pernas e nas costas. Bacia de Catarina, praia de Mangue Seco, nem pensar.
Se namorou foi de longe, namoro de caboclo, o olho comprido, vendo o velho expulsar os gabirus em ronda pela rua. Somente quando aparecer um bom partido, disposto a noivado e casamento: senão boto no convento, ameaçava. Ameaçava, cadê convento? Astério, filho único, herdara a loja onde desde menino trabalhava no balcão, rapaz direito. Pareceu um bom partido, Zé Esteves concordou. aos dezesseis anos, beleza de noiva, Elisa se casou, pensando que se libertava. Mudou de servidão.
Fica no raso, não se atreve a ir mais longe, enquanto Tieta e Leonora arriscam-se em meio às ondas e à animação da comitiva inteira no rastro das paulistas. Elisa ali sozinha, abandonada. Nem sequer o marido lhe faz companhia, prefere os amigos do bilhar. Também, pelo que vale e serve...
Elisa tem ciúmes. não que a irmã ou a moça paulista possam seinteressar por Astério, imagine-se! Leonora está de namoro com Ascânio, os dois sempre juntos, não se largam. Antonieta, viúva recente, não veio a Agreste tomar marido de ninguém. Tomaria, se quisesse, com facilidade.
Apesar dos quarenta e quatro anos confessados - proclamados! -, quando passa na rua, alegre e descontraída, os homens correm a saudá-la, assanhados.
A pele lisa e macia, tratada, tratadíssima, o corpo esplendoroso. Já fez plástica, com certeza, comentara Elisa com dona Carmosina, ambas a par dos hábitos das artistas e das grã-finas, dos milagres realizados por doutor Pitanguy em nacionais e estrangeiras. Certamente Tieta recondicionou sua beleza na clinica célebre, limpando-a de rugas e pelancas: basta ver-lhe os seios jovens, magníficos, opulentos porém firmes, mais firmes que os dela, Elisa.
Outros são os ciúmes de Elisa. Da riqueza que elas ostentam, dos hábitos da cidade grande, da falta de preconceitos, de limitações, ciúmes por não viver no mesmo mundo, tabaroa do sertão, condenada ao desconsolo.
Ciúmes também de Leonora, do amor que Tieta lhe dedica, a chamá-la pelo apelido: Nora, a dizê-la filha, com desvelos maternos. Deseja os mesmos cuidados, amor idêntico, sentir-se mimada como filha, adotada. Em certos momentos, Antonieta é extremosa com ela, alisa-lhe a cabeleira negra, beija-lhe a face, elogia-lhe a beleza: tu é bonita demais. Trata-a de filha e de Lisa, ternamente, tudo parece se encaminhar como ela deseja. Mas noutros momentos, a irmã a fita, pensativa, como se duvidasse do calor de seu afeto.
Elisa não consegue entender o motivo da desconfiança, do desagrado de Tieta. Intrigas de Leonora, quem sabe? Com receio da concorrência, medo de perder o lugar privilegiado junto àquela a quem chama de mãezinha.
Um dia, estando a sós com Tieta, também Elisa a tratara de mãezinha.
A irmã dirigiu-lhe um olhar estranho, disse ríspida:
- Prefiro que me chame de Tieta.
Voz e olhar deixaram Elisa trêmula:
- Desculpe. Só quis lhe agradar, agradecer o que tem feito por mim.
Adoçaram-se olhar e voz de Antonieta, afagou os cabelos negros da irmã mas não voltou atrás em relação ao tratamento:
- Não estou zangada. Apenas prefiro que você me chame de Tieta. Em Agreste todos me chamam assim, eu gosto. mãezinha é nome de São Paulo, coisa de Nora e das outras meninas.
- As filhas do finado?
- As filhas, as sobrinhas, a família é grande.
A essa família, sim, queria Elisa pertencer, prole de Comendador, de rico industrial, gente graúda, linhagem fina. Quer elevar-se da mediocridade de Agreste, salvar-se do cansaço, da inutilidade, da avidez quotidiana. Quer as luzes, o brilho, a agitação, as possibilidades, a aventura de São Paulo. Em Agreste, sem horizonte, sem futuro, vegeta, morre a cada dia.
Vestindo um maiô emprestado por Leonora - o seu está velho e fora de moda - que lhe molda o corpo esplêndido, os cabelos noturnos caindo no cangote, sai da água, vem sentar-se na praia. Enxerga Perpétua adormecida.
Elisa sabe que a irmã mais velha tem um plano traçado, essa é a opinião de dona Carmosina, a quem nada escapa. Perpétua ambiciona vender - vender muito bem vendidos - os dois meninos a Tieta, mandá-los para São Paulo, onde serão adotados como filhos e herdeiros. Plano diabólico, dona Carmosina o desvenda inteiro, de dedução em dedução.
Elisa não deseja tanto, não quer ser adotada de papel passado e sim de coração, não se candidata a herdeira única. Contenta-se com muito menos:
basta que a irmã se compadeça da mesquinha sorte dela e do bestalhão do Astério e os leve para São Paulo, dando a ele emprego nas fábricas da família e tendo ela, Elisa, a seu lado, irmã preferida, quase filha, amada tanto ou mais que Leonora. Já disse não desejar casa própria em Agreste. Se a irmã pretende lhe dar alguma coisa, que seja em São Paulo onde a vida é digna de viver-se, repleta de novidades e de tentações. Lá terá quem lhe admire a beleza, não apenas um árabe velho, um moleque sujo, um fétido mendigo. Será alguém, tendo onde e a quem mostrar-se. Em São Paulo tudo pode acontecer.
Sherlock Holmes
interrompo a narrativa para deixar claro que todos os dados necessários à solução do enigma a envolver Tieta (e com ela Leonora) estão colocados na mesa das deduções, diante do leitor. não é preciso ser Sherlock Holmes ou Hercule Poirot para tudo descobrir. Por que então dona Carmosina foi no embrulho? Os olhos cegos pela amizade, acreditou no conto.
Aliás, não houve em nenhum momento, de minha parte, a intenção de enganar o público, de esconder-lhe fatos, de baratiná-lo. Tampouco havia por que sair contando o fim logo no começo, desvendando o passado antes de fazer-se necessário. Nos folhetins sempre se considerou essencial um pouco de suspense para atiçar a emoção dos leitores.
Estão à disposição da capacidade de cada um, nas páginas já lidas, pistas e indícios, mais do que suficientes. A maioria com certeza deu-se conta da verdade desde o início e, se nada disse, fez bem para não alertar os lerdos de entendimento. não pensem sobretudo que eu escondi, torci ou inventei detalhes na intenção de não manchar a imagem de Tieta. Se ela, em respeito à família e aos preconceitos de Sant'Ana do Agreste, teceu uma teia de enganos, não me cabem responsabilidade e culpa. não a julgo, por isso, nem melhor nem pior, nem creio que a atuação posterior por ela desenvolvida tenha menos mérito por causa de sua condição. Mérito ou demérito, dependendo, é claro, da posição de cada um diante das propostas do Magnífico Doutor. Quer mais? Já veremos, no decorrer da narrativa.
Encontro-me em Agreste trazido pelo clima de sanatório mas não sou daqui, sou de Niterói, como se diz. não faço minhas as desvairadas paixões a abalar o burgo, a açoitar os habitantes. não me envolvo, apenas relato.
Onde é suspenso o véu que encobre o passado da bela Leonora Cantarelli e fica-se sabendo de tudo ou quase tudo lar, vida de família, calor humano, afeto verdadeiro, Leonora veio a conhecer somente quando, aos dezenove anos, chegou ao randevu Refúgio dos Lordes e obteve aprovação de Madame Antoinette. Antes aprendera em curso intensivo a fome, a maldade, o desconsolo.
Na infância, caixa de pancadas. A qualquer pretexto, os pais batiam-lhe na cara, um e outro, a magra Vicenza e o troncudo Vitório Cantarelli, quando não se batiam entre si - nem sempre Vitório levava a melhor. Cinco filhos, quatro homens e ela, a caçula. Os homens foram caindo fora do cortiço, um a um, para as fábricas ou a má vida. Giuseppe morreu mocinho, sob as rodas de um caminhão, ao voltar para casa, bêbado. Puseram o corpo em cima da mesa, os pés sobrando, dependurados. Único a ter compaixão da irmã, Giuseppe afagava-lhe o rosto imundo, dava-lhe vez por outra um caramelo.
Ela completara treze anos e queria ir-se dali para evitar a fábrica, destino próximo. Todos a achavam bonita e o diziam. não para felicitá-la, não em elogio, em bom presságio e, sim, em lástima, em ameaça:
- Non sa quello che 'aspetta di éssere cosi bella.
- Bonita e pobre, vai acabar mal Tinham razão. Rapazolas e homens perseguiam- na. Antes de ser púbere, tentaram violá-la no campo de futebol invadido pelo capim. De que adianta chorar se mais dia menos dia há de acontecer? Inexperiente, contou em casa, apanhou de Vicenza e de Vitório para deixar de ser debochada, para não viver na rua se oferecendo.
Freqüentou a escola, aprendeu a ler e a fazer contas devido à merenda, devorada -a comida em casa, insuficiente. Seu Rafael, dono da Pizzaria Etna, a barriga de nove meses, dava-lhe um pedaço de pizza dormida, de carne sentida, e lhe apertava os peitos enquanto ela engolia, sôfrega. A combinação durou meses e meses, nunca trocaram uma única palavra, estabeleceram e cumpriram em silêncio os termos do acordo. Um dia, vendo-a espiar os pratos expostos na vitrine, seu Rafael se adiantara, na mão um naco de pernil, mostrando-o como se atraísse um cão. Leonora entrara, ele avançou as duas mãos, uma a exibir a carne sedutora, a outra dirigida ao busto nascente, protuberâncias sem forma definida. A menina quis pegar o pedaço de pernil e sair, seu Rafael não deixou, sacudiu a cabeçorra proibindo: enquanto ela mastiga, ele apalpa, amassa, belisca os seios nascentes, corre-lhe a mão na bunda quando a gulosa volta as costas para ir embora. Assim Leonora pagou desde cedo comida e formosura sem conseguir, no entanto, saciar a fome.
Os seios cresceram, a beleza também, visível mesmo na farda pobre de escolar - Leonora dava um jeito no corpo, tentação. aos quinze anos, a curra. Era fatal, disseram os vizinhos: assim bonita, desamparada e metida a moça. Quatro no automóvel, um bem mais velho, de barbas, os outros três muito jovens, a exibir revólveres. O mais brutal não aparentava sequer a idade dela, picou-lhe perna e braço com um canivete. O barbado permaneceu ao volante, os três adolescentes desceram, empurraram-na para o fusca, os passantes viram, deram-se conta, ninguém tomou sua defesa. Quem é louco de se envolver com marginais armados, maconheiros? Levaram-na, serviram-se dela, espancaram-na, rasgaram-lhe o vestido, o único além da farda. Esteve na policia, ouviu graçolas, um tira propôs encontro, os jornais noticiaram a ocorrência em duas linhas, fato corrente, sem maior impacto. Tivessem- na matado, a matéria ganharia certo interesse. Estupro, curra - bobagens. Se alguma vez pensara em casamento, abandonou a idéia. Queria apenas ir embora, fosse para onde fosse, com quem a quisesse levar.
Vidrou-se em Pipo, o primeiro a quem se deu por bem querer. Achavam o máximo com os cabelos longos caindo no pescoço, despenteados; aos dezenove anos já citado nas páginas de esporte dos jornais, pinta de craque.
Elevado dos juvenis para o time de cima na ausência do titular da ponta esquerda, abafou. Finalmente, o ponteiro ofensivo de que tanto necessita nosso futebol. Foi o começo do sucesso de Pipo, o fim do romance de Leonora.
- não enche, civeta, não se enxerga?
Vez por outra, se quisesse, numa folga dos treinos e das boates, quando de visita ao bairro, à família no cortiço em tudo igual àquele onde vivia Leonora. Vez por outra, ela não quis; romântica, exigia carinho, doçura, amor, desejos absurdos naquele confuso labirinto.
Ainda chorava quando reencontrou Natacha, antiga vizinha, também de visita aos pais. Leonora lhe narrou a paixão e o abandono, da curra ela já sabia. Um punhal no peito, cravado pelo festejado Pipo, agora de automóvel, cercado de admiradores. Segundo a crônica esportiva, o sucesso está subindo à cabeça do rapaz, se continuar assim não irá longe. Natacha, bem posta e perfumada, lhe falou da profissão de puta. não contou vantagens, disse que dava para viver, se a fulana evitasse cafetões e gigolôs - para Natacha melhor do que oito horas na fábrica ou doméstica em casa rica. Para Leonora soara a hora decisiva - A fábrica ou a zona.
Dois anos andou aqui e ali, de mão em mão, em hotéis baratos, no quarto sem janela, dividido do vizinho por um tabique, foi presa, medida corretiva, viveu desvairada paixão por Cid Raposeira.
Quando o conheceu, Cid atravessava uma fase calma, os médicos deram- no como curado sem dúvida para se verem livres dele. Magro, calado, durão, quase sempre. De repente, terno e frágil. Para quem nada tivera, era bastante, Leonora se prendeu. Cid Raposeira odiava o mundo e a humanidade, mas excetuava a companheira, um dia vou casar contigo e teremos filhos.
Conversa de casamento e filhos, sinal de crise à vista - Amiudavam-se os ataques, cada vez mais curtos os intervalos de lucidez. Do carinho passava ao ódio, direto: sai de minha frente, demônio. Dias de xingos e tabefes, ameaças de morte, tentativas de suicídio, terminando no manicômio ou na delegacia.
Passada a crise, lá vinha ele humilde, esquelético, esfomeado, pedinchento, inútil Leonora, um aperto no coração, varada de pena, o acolhia. não Leonora ainda permanecesse com ele, sem coragem de abandoná-lo.
Novamente Natacha mudou-lhe o curso da vida. Cruzaram-se na rua por acaso, num começo de tarde. Leonora perseguindo michês, Natacha próspera, elegante, superiora.
- Agora, faço a vida em randevu. No melhor de São Paulo, o mais caro, o Refúgio dos Lordes, já ouviu falar?
Mediu Leonora cuja beleza não apenas resistira mas crescera, absurda beleza virginal, translúcida, os enormes olhos de água, os cabelos doirados, a face pura, toda ela recato e inocência.
- Quem sabe Madame Antoinette lhe aceita. Você faz o tipo moça de família. Se quiser, lhe apresento. Madame Antoinette pôs as mãos nas cadeiras, estudou a recém-chegada:
- O que deseja?
Natacha antecipou-se :
- Leonora...
- Perguntei a ela, não a você, cabrita.
- Desejo trabalhar aqui se a senhora me aceitar.
- Por quê?
- Para melhorar de sorte.
- É casada? Já foi?
- Não. Mas já vivi uns meses amigada.
- Por que deixou?
- Ele me deixou.
- Por que foi ser rapariga?
- Para não ir para a fábrica. Antes tivesseido.
- Tem algum homem? Algum rabicho? Cafetão, gigolô?
- Tive esse que falei. Era doente.
- Doente? De quê?
- Esquizofrênico. Quando estava são, era um cara legal.
- Filhos?
- não, senhora. não peguei nunca. Nisso tive sorte.
- Sorte? não gosta de crianças?
- Gosto demais. Por isso digo que tive sorte. não tenho com que criar menino. Para passar fome, não quero.
- Já teve doenças? não minta.
- A senhora quer dizer doença comprada, venérea?
- Isso mesmo.
- Me cuido muito, sempre tive medo. Sou asseada.
- Está bem. Vou fazer uma experiência com você. Pode começar hoje mesmo.
Alguns meses depois, Lourdes Veludo, morenaço digno da melhor consideração, uma das três mulheres de residência fixa no Refúgio, deixou a casa para incorporar-se a um show de mulatas, espetáculo de sucesso com possibilidades de excursão à Europa. Madame Antoinette, que apreciava a discrição e a gentileza de Leonora, convidou-a a ocupar a vaga. Acontecera dois anos atrás.
Ultimo fragmento da narrativa, na qual durante a longa viagem de ônibus-leito, da capital de São Paulo a da Bahia Tieta recorda e conta a bela Leonora Cantarelli episódios de sua vida
- quando conheci Felipe, ele não era ainda comendador e eu ainda era Tieta do Agreste, meu nome no sertão, na cidade da Bahia, no Rio de Janeiro e em meus começos em São Paulo. Felipe tinha voltado da Europa.
Felipe Camargo do Amaral, aos cinqüenta anos, considerava-se realizado como homem de negócios, empresário vitorioso em todos os setores onde atuava. Realizado também como paulista, cidadão e homem. Na Revolução de 32, não aceitou o cargo burocrático no gabinete do governador, providenciado pela família tradicional, marchou para a frente de combate, praça voluntário e, ali chegando, foi imediatamente promovido a primeiro- tenente, ajudante-de-ordens, um Camargo do Amaral não pode ser soldado raso.
Terminou major, no Estado-Maior Revolucionário, redigindo manifestos e proclamações. Nascera rico fazendeiro de café, já com fartas colheitas e com quatrocentos anos de cidadania ou mais, se for considerado o sangue indígena, algumas gotas, o suficiente para dar-lhe condição nativa, autêntico bandeirante.
Por conta própria tornou-seindustrial, um gênio para ganhar dinheiro, presidente de empresa, consórcios, bancos, entupido de ações e dividendos.
Rápida passagem pela política. Deputado, em 1933, ao regressar do cômodo exílio em Lisboa, não disputou a reeleição. Faltava-lhe paciência para os inócuos debates, para as sessões chatas e, quanto à astúcia, preferia empregá-la melhor do que em trincas eleitorais. Assim o fez, crescendo em riqueza e em sabedoria.
- Felipe sabia viver e me ensinou. Eu era uma cabrita andeja, com ele virei madame. Aprendi com Felipe o valor do dinheiro mas aprendi também que a gente deve ser dono e não escravo do dinheiro.
Sabedoria para ele era viver bem. não se deixar aprisionar pelos negócios. Música, quadros, livros, boa mesa, boa adega, viagens, mulheres.
Conheceu os cinco continentes, Europa e Estados Unidos de cabo a rabo, pagou montes de mulheres - mulher a gente paga de qualquer forma, o melhor é pagar com dinheiro, fica sempre mais barato e não dá aporrinhação.
Bom chefe de família, vivendo em paz com a esposa, escolhida no seio da exportação do café, em clã de muita linhagem e maior pecúnia, doido pelos filhos: um com ele, lugar- tenente na direção das empresas, o outro irremediavelmente ancorado no laboratório de pesquisas científicas da universidade norte-americana onde estudara e permanecera, casado com gringa. Felipe não tinha queixas da vida.
- Foi ele quem teve a idéia do Refúgio, muito antes de me conhecer.
O primeiro nome era francês.
A idéia propriamente não fora dele. Com um pequeno, selecionado grupo de senhores do mesmo padrão econômico e de idênticos altos ideais, financiara benemérito projeto de diligente e encantadora amiga, Madame Georgette. Um dos filhos de Felipe estudara nos Estados Unidos, o outro em Oxford, na Inglaterra. Ele, porém, preferia la douce France, familiar de Paris, guloso de vinhos, queijos e fêmeas. Quanto mais conheço outras cidades, mais gosto de Paris, dizia. Madame Georgette transportara para a capital paulista algumas especiarias francesas, condimentadas, picantes, às quais somara o melhor produto nacional. Perita na escolha das gentis parceiras.
O projeto referia-se ao estabelecimento de reservadísimo randevu a ser freqüentado apenas pelos reis do latifúndio e da indústria - terras e fábricas, financeiras e bancos - pelos maiorais da politica, ministros, senadores;
grandes das letras e das artes, excepcionalmente, para dar lustre à casa.
Experiente e capaz, Madame Georgette superou-se. Assim nasceu o Nid d'Amour onde os fatigados, nervosos senhores, repousavam em braços jovens, em colos perfumados, de dóceis e eruditas jeunes- filles.
- Quando Felipe chegava de viagem, vinha farto de brancas, tinha um pendor pela cor morena, assim tostada igual à minha - minha bisavó foi negra escrava. Cabrita montês, queimada de nascença, fui-lhe servida com champanha.
Madame Georgette conhecia o gosto de Monseigneur Le Prince Felipe - somente de príncipe o tratava -, guardara para ele pitéu digno de tão fino paladar: Tieta do Agreste, morena de cabelos anelados, curtida no sol do sertão, educada nos bordéis dos povoados pobres, a flor da casa.
- Por que se engraçou de mim, não sei. O certo é que não me deixou mais.
- Que homem não se engraçaria, mãezinha? Além de bonita, devia ser saliente, uma brasa, imagino.
- Eu era bonita, sim, e esporreteada. Falava pelos cotovelos, ria à toa e quando topava parceiro de respeito, não tinha rival na cama, te garanto. não sei se gostou de mim por isso ou porque acalentei seu sono.
O que prendeu Felipe e o fez constante? O conversê de moça a contar coisas do burgo e do sertão, da vida pacata, das cabras saltando sobre as pedras, do banho no rio? A competência? Ou o calor a desprender-se dela, a vida intensa e o gosto de viver? No quarto, com Tieta, sentiu-se jovem. não mais o gasto senhor, refugiado no randevu para repousar de afazeres e problemas com prostituta de alta classe, a ser usada uma vez, quase nunca repetida.
Madame Georgette mantinha vasto e renovado estoque, inumeráveis telefones no caderno azul, todas selecionadas no capricho. Ficara assombrada quando Le Prince Felipe pediu de novo a cabrita sertaneja e, depois de umas quantas vezes, a reservou - não fará mais a vida, fica por minha conta, à minha disposição.
Quando em São Paulo, Felipe mantinha-se assíduo ao corpo de agreste sabor, ao dengue, às carícias quase sempre castas, ao cafuné, aos ingênuos acalantos. Quando em viagem, tomava as medidas necessárias para que nada lhe faltasse, tivesse dinheiro bastante para não esquecê-lo e para respeitá-lo.
- Não botava chifres nele, mãezinha?
- Chifres? Quem podia botar chifres nele era a esposa, dona Olívia, mas não me consta que pusesse. Eu, era sua protegida. Nunca me proibiu nada, a não ser que eu fizesse a vida. Dei a quem quis, por querer, assim como dava em Agreste, antes de ser mulher-dama, para satisfazer o fogo me queimando o rabo, nunca por dinheiro. Fui discreta nos meus casos, sempre o respeitei e jamais falamos disso.
- E ele, não tinha outras?
- Nunca quis saber, nunca perguntei pelas mulheres que ele comia mundo afora. Me contaram de uma que ele trouxe da Suécia.
Alta escultura de trigo e neve, belíssima, disseram a Tieta as intrigantes.
Ela cerrara os dentes, não abrira a boca. Apenas recomeçou a freqüentá-la e se viu nos dengues, rindo, adormecendo no cafuné, Felipe despediu a escandinava. Despediu, não: a beldade foi cedida, em troca de charutos cubanos, a um amigo importador, maníaco de material estrangeiro. Mesmo de segunda mão, em bom estado - observou Felipe de bom humor, concluindo que, em matéria de rapariga, tinha tendências à monogamia.
- Penso que ele ficou comigo a vida inteira porque nunca liguei para a fortuna dele, para mim não fazia diferença que fosse rico ou não, o que me prendia eram as atenções. Nunca pedi nada a Felipe, a não ser, por duas vezes, dinheiro emprestado. A primeira, no dia que nos conhecemos, se não tivesse a quantia exata perderia a ocasião de comprar um casaco de napa, argentino, um espetáculo, novo em folha. Tudo mais que ele me deu foi de livre e espontânea vontade.
Os apartamentos, um a um, em prédios cuja construção incorporara.
Um dia chegou com a planta de um edifício, abriu na cama.
Estou construindo esse prédio, doze andares, na Alameda Santos.
- Puxa! Que colosso!
- Reservei um apartamento para você. São todos iguais: sala e dois quartos. Tem quatro em cada piso.
- Tu ficou doido? Para eu pagar com quê?
- Quem falou em pagar? É um presente, está completando três anos que nos conhecemos.
Com tanta coisa em que pensar, Felipe recordava datas, aniversários.
Apegara-se a Tieta, mais ainda se apegara ela a esse homem que lhe dava tanto e tão pouco lhe pedia. aos pés do leito, os chinelos sob os travesseiros, o pijama de Felipe. Os edifícios cresceram em andares, os apartamentos em tamanho. No último prédio, imenso, uma cidade, ganhou loja no andar térreo, ponto caríssimo. Se ela lhe deu carinho, ele pagou em dinheiro - Ou em bens, a mesma coisa: o melhor é pagar em dinheiro, fica mais barato e não dá aporrinhação.
- Um dia, Madame Georgette me chamou para conversar. Queria passar o negócio adiante, ia voltar para a França, me ofereceu a preferência.
Madame Georgette depositava na França economias e lucros, comprara casa na banlieue de Paris, sempre pensara no regresso e na aposentadoria.
Quando falou com Tieta, já adquirira a passagem de navio para daí a dois meses. Pela segunda vez, ela pediu a Felipe dinheiro emprestado.
- Você não me pagou ainda o que tomou no dia em que lhe conheci pôs-se ele a rir. - Deixe comigo, acerto com Georgette, o Nid é seu.
- Faz mais de treze anos que assumi. Reformei tudo, modernizei, separei um apartamento para mim e Felipe, aquele luxo. Mudei o nome e aumentei os preços.
- Por que mudou o nome, mãezinha?
- Nid d'Amour cheirava muito a casa de puta. Refúgio dos Lordes é mais decente. São todos uns lordes, os meus fregueses. Em troca, tive de mudar meu nome. Conselho de Felipe.
- Um randevu de alto bordo e preços de esfolar tem de ser dirigido por francesa, ma belle. Madame Antoinette, vai muito bem com seu tipo. Assim ele dissera.
- Nome francês com minha cor, meu bem? não pode ser.
- Francesa da Martinica, como Josefina, a de Napoleão.
Os fregueses fizeram-se amigos, o prestígio do randevu cresceu, freqüentar o Refúgio dos Lordes tornou-se privilégio mais disputado do que ser sócio do Jóquei Clube, da Sociedade Hípica, dos clubes mais fechados de São Paulo. No apartamento reservado, com o máximo conforto, aos pés do leito, os chinelos de Felipe, sob o travesseiro, o pijama. Envelhecera, enviuvara, d Papa agraciara-o com o título de comendador, viajava pouco, apenas superintendia as múltiplas empresas, cada vez mais presente à cama e ao riso cálido de Tieta.
- Para Felipe não mudei de nome, fui Tieta do Agreste até o fim.
Para os demais, Madame Antoinette, francesa nascida nas Antilhas do casamento de um General de La Republique com uma mestiça. Educada em Paris, desperdiçando charme, mestra no ofício de escolher mulheres, especiarias para o gosto caro dos fregueses, os mais ricos de São Paulo, Dieu Merci.
Para as duas ou três raparigas que, como Leonora, habitam permanentemente no Refúgio dos Lordes, é mãezinha, exigente e generosa, temida e amada.
do recado urgente
No melhor da festa, chega o recado urgente. devorado o almoço, repetida a sobremesa, dona Laura, Elisa e Leonora servem o cafezinho. Regabofe grandioso, com variado fundo musical: o moderníssimo som do toca-fitas competindo com a harmônica de Claudionor das Virgens. O trovador possui extraordinário faro para detectar odores culinários, perfume de batida, aroma de cachaça. Sem esperar convite, aparece de sanfona em punho, o sorriso aberto, caradura simpático e bem- vindo: com vossa permissão!
Enquanto Elisa, Aminthas, Fidélio, Seixas e Peto curtem o rock-androll, os demais aplaudem Claudionor e Elieser. O repertório do trovador dá preferência à música sertaneja enquanto o dono da lancha, habitualmente casmurro, de pouca conversa, animado pelos tragos, solta a voz agradável e, atendendo às sugestões saudosistas de Tieta e de dona Carmosina, canta esquecidas melodias. Tieta, sentada numa esteira, enorme chapéu de palha a defender-lhe o rosto, pede:
- Toque aquela que Chico Alves cantava, Claudionor.
- Qual?
- Uma que começa: Adeus, adeus, adeus, cinco letras que choram...
Elieser abre o peito, Claudionor acompanha na sanfona. Tieta deixa-se levar pela música, está distante, não participa das conversas. Leonora inquieta-se. Conhece mãezinha: quando está assim, calada, é porque algum problema a preocupa, uma chateação qualquer. O que será? não se anima a perguntar, não vale a pena, melhor é deixá-la em paz até o riso voltar. Quando estou de calundu, me larguem de mão, não se metam, recomendava ela no Refúgio. Em silêncio, senta-se a seu lado.
Tieta percebe a presença de Leonora, volta-se, acaricia-lhe a face. A moça toma-lhe da mão e a beija, com ternura. Cabrita sem juízo, reflete Tieta, corre o risco de se apaixonar, de perder a cabeça. Somente ela, de cabeça oca?
Mais ninguém?
Que espécie de obrigação inapelável exigira a presença de Ricardo ao lado do padre na devoção de Rocinha? Obrigação, coisa nenhuma! O sobrinho estava fugindo dela, isso sim; fora com o padre para não vir a Mangue Seco, não manchar os olhos castos - castos?, carolas! - na nudez da tia, soberba no reduzido biquíni, bestalhão! Nos últimos dias sentira a ausência do rapaz, no banho do rio, nos passeios. Até a hora da banca ele mudara, sem dúvida para não lhe fazer nova massagem. E Tieta, burra velha, a sonhar com o sobrinho, a vê-lo noite e dia com asas de anjo e aquele pé de mesa. Jamais seinteressara por jovens, muito menos por meninotes de dezessete anos, preferindo homens feitos, sempre mais idosos do que ela.
Fizera-se necessário voltar a Agreste para desejar um rapazola, sentir frio na espinha ao pensar nele, ficar mal- humorada, desagradável, vazia devido à sua ausência. Triste, irritada, em pleno calundu. Com essa não contava. Ainda por cima sobrinho e seminarista. Vendo-a tão longe, perdida em pensamentos, Leonora levanta-se, vai ao encontro de Ascânio. Tieta toca-lhe novamente a face, num afago.
- Sabe Foi tudo um sonho, Elieser?
- Sei mais ou menos, dona Antonieta. Mete os peitos, Claudionor!
Tietaveleja na música, conduz Ricardo pela mão. Osnar, encharcado de Cerveja, acomodou-se na sombra, mamando um charuto. Barbozinha ressona debaixo de um coqueiro, esquecido dos projetos de declamação no alto dos cômoros. O cansaço começa a se fazer sentir, no crescer da tarde, após a maratona de dendê e pimenta, coco e gengibre, batidas, cachaça, cerveja. A manha fora fatigante: banho de mar no embate das ondas bravias, escalada das dunas sob o sol de verão. Ainda assim, Ascânio e Leonora projetam uma fuga para a praia. Quando o calor diminua, antes da volta marcada para o pôr- do-sol.
Inesperado, o barulho de um motor na distância. Comandante Dário, a quem todos os ruídos do mar e do rio são familiares, decreta:
- É o barco de Pirica.
Pirica vem em busca de Ascânio, trazendo recado do coronel Artur da Tapitanga e notícia sensacional: os engenheiros da Hidrelétrica de Paulo Afonso encontram-se em Agreste e querem falar com alguém responsável pela Prefeitura. Foram à casa do prefeito, deu a maior confusão. Doutor Mauritônio não diz coisa com coisa, vive num mundo de fantasmas, agrediu o engenheiro- chefe, confundindo-o com o agrônomo Aristeu Regis, responsável pela deserção de Amélia Doce Mel. Insultados e expulsos, foram parar na fazenda do coronel Artur de Figueiredo, presidente da Câmara Municipal.
O octogenário enviara Pirica a Mangue Seco com ordens de trazer Ascânio.
Há uma animação geral, querem saber mais, reclamam detalhes, mas Pirica, além do já contado, acrescenta apenas uma informação: o Coronel estava muito contente quando o encarregara do recado:
- Diga a Ascânio que os homens da luz estão aqui, que ele venha imediatamente, não perca um minuto.
Fidélio exclama:
- Vão instalar a luz, ganhei a aposta. Viva dona Antonieta!
O primeiro viva, seguido de outros ali mesmo, sob os coqueiros. Prólogo às comemorações da cidade, Agreste vai vibrar com a notícia. Ascânio, empertigado, encaminha-se para Tieta:
- Permita, dona Antonieta, que eu lhe antecipe a gratidão do povo de Agreste.
Tieta estende a mão a Ascânio para que ele a ajude a levantar-se :
- Ainda não, Ascânio. não arrote antes de comer. Atenda ao chamado do Coronel, tire o assunto a limpo, por hora não se sabe de nada certo. Eu aprendi a não soltar foguete antes do tempo para não queimar a mão. Se for verdade, quem mais merece parabéns é você que lutou tanto. Eu pouco fiz, só fiz pedir.
- As intenções, os gestos não valem nada quando não trazem resultados, foi a senhora mesma quem me disse - retruca Ascânio.
- Você brigou, se bateu, não ficou na intenção. Vá saber o que há e, se for verdade, comemoraremos juntos.
- Nós e o povo todo, dona Antonieta. Vai ser a maior festa de Agreste.
O entusiasmo domina a alegre comitiva. Tieta, queira ou não, é abraçada, beijada, felicitada. Barbozinha ameaça discursar, fará um poema à luz de Paulo Afonso, luz nascida dos olhos de Tieta; Osnar propõe que a carreguem em triunfo - solte minha perna, seu aproveitador!; Aminthas promete a Fidélio pagar a aposta assim a notícia se confirme. Afetuoso abraço do Comandante; solenes felicitações de Modesto Pires, impressionadíssimo com o prestígio da conterrânea; nunca acreditara que os pedidos feitos por ela dessem resultado positivo; nem vão tomar conhecimento dos telegramas, jogam no lixo, garantira a dona Aída e a alguns amigos. Perpétua empina o peito: as relações da irmã na cúpula da política e do governo são um orgulho para a família, sua posição social eleva todos os parentes. Se não estivesse tão amuada, ao ouvir a palavra cúpula, Tieta abriria num frouxo de riso; ainda assim sorri nos braços de Perpétua. Elisa, emocionada, não contém o choro, cobre a irmã de beijos. Dona Carmosina e dona Milú jamais duvidaram, contavam as horas na espera da resposta. Agora, diante da presença dos engenheiros em Agreste, que dirão os incrédulos? Terão de dar a mão à palmatória. Tieta gostaria de participar da alegria geral mas aquele por cujo beijo anseia não está presente, não veio, não quis vir, preferindo seguir atrás do padre no lombo de um burro, o idiota! Que espécie de dor- de- cotovelo mais absurda! Seu rival é Deus. Pois Deus que se cuide, no particular Tieta do Agreste não costuma perder.
Por proposta de dona Carmosina, unanimemente aprovada, decidem voltar em seguida, acompanhando Ascânio, ninguém se sente capaz de demorar-se o resto da tarde em Mangue Seco, esperando o pôr-do-sol, com tamanha novidade em Agreste. Todos desejam ver os engenheiros.
Todos, menos Tieta. Anuncia sua decisão de aceitar o convite de dona Laura e do Comandante, de ficar na praia até quarta- feira quando, em companhia de Modesto Pires, voltará a Agreste para a escritura do terreno.
Enquanto os demais se arrumam, leva Perpétua à Toca da Sogra, entrega-lhe um molho de chaves:
- Quero que você me faça um favor. Abra a mala azul, repare na chave, pegue aquela maleta onde guardo dinheiro, a que você viu, abra com essa chave pequena, e retire...- calcula a quantia em voz alta, o necessário para dar um sinal a Modesto Pires, assegurando a compra do terreno, e para as despesas iniciais da construção.
- Você vai fazer casa? Em seguida?
- Imediatamente. Vou demarcar o terreno e começar uma casinha, pequena, o Comandante se ofereceu para tomar conta da obra, em Saco tem tudo que se precisa, em material e mão- de-obra, é só ter dinheiro para pagar.
O Comandante disse que a construção pode andar depressa. Quero ver minha casinha de pé, pelo menos as paredes, antes de regressar a São Paulo. Quando eu não estiver, você e os meninos ficam usando. Elisa também. - Fita a irmã, adoça a voz. - Tenho vontade de fazer alguma coisa por meus sobrinhos, Perpétua, já que não tenho filhos.
- Ah!, Mana, que alegria você me dá dizendo isso.- Brilham os olhos gázeos, tremula a voz esganiçada. O acordo com o Senhor, apenas estabelecido e já em pleno andamento.
- Em Agreste, a gente conversa sobre isso.
- Por quem mando o dinheiro e as chaves?
- Pelo Comandante, ele vai com a canoa, levando gente.
O Comandante não precisou ir, couberam todos na lancha de Elieser e no barco de Pirica onde se acomodarão, além de Ascânio, Leonora e Peto.
Tieta se aflige:
- E eu que preciso desse dinheiro amanhã bem cedo. Mande por qualquer um que venha para cá.
- Deixe comigo, eu dou jeito - garante Perpétua.
Tieta confia, já alegre, sorrindo. O calundu passou, constata Leonora ao despedir-se. No momento do embarque, na praia, a caravana improvisa ruidosa manifestação, sob a batuta de dona Carmosina:
- Então, como é que é?
O coro responde:
- Para Antonieta nada?
- Tudo!
Dona Carmosina junta-se aos demais:
- Hip, hip! Hip, hip! Hurra! Antonieta! Antonieta!
Modesto Pires repete:
- O povo de Agreste, se essa história da luz for verdade, como parece, vai lhe entronizar no altar- mor da Matriz, junto da Senhora Sant'Ana, dona Antonieta. Eu já lhe disse e repito.
Tieta desata em riso: mundo mais divertido.
Da recepção mal humorada na prefeitura, de bastante mau humor, o engenheiro- chefe informa ao ansioso Secretário da mudança havida no plano de extensão dos fios e postes da Hidrelétrica: Agreste fora incluído inesperadamente na relação de municípios a serem beneficiados com luz e força da usina. não apenas isso, já de si incrível absurdo, tinha mais. As ordens, vindas do alto, da própria presidência da Companhia, urgentes, eram de conceder a Agreste prioridade absoluta, iniciando-seimediatamente as obras necessárias para que fossem concluídas em tempo mínimo. Inconcebível decisão a trazê-los ali, a esses quintos do inferno, num domingo, dia de descanso, cobertos de poeira, putos da vida. Perdendo tempo, ainda por cima, pois há horas buscam um funcionário responsável com quem conversar.
Antes de informar sobre prazos e datas, existe uma coisa, uma única, que o engenheiro- chefe e seus subordinados desejam saber: como se explica que um município tão pobre e atrasado, cujo prefeito é maluco, precisando de camisa- de- força e internamento, o Presidente da Câmara de Vereadores um macróbio, houvesse conseguido modificar planos aprovados, definitivos, ordens de serviço em andamento, passando à frente de comunas ricas, prósperas, protegidas por políticos de renome, ocupando altos postos? Quem pedira por Agreste? Pedira, não, impusera! Por favor, o nome desse líder de tamanha força, dessa personalidade assim eminente, desse prepotente mandachuva, do potentado capaz de tal proeza? Tem de ser realmente alguém de muito poder, com certeza general.
Osnar, distribuidor de patentes, dizia-a Generala. Mas Ascânio silencia, para não aumentar o mau humor dos engenheiros. Sorriu modesto, vamos ao que interessa, às datas e aos prazos.
Do medo e da vontade dissolvidos em luar Generala? sozinha, deitada no alto das dunas, moleca de agreste, pastora de cabras. o marulho ingente das ondas, o odor de maresia, música e perfume dos começos do mundo. No céu, a lua e as estrelas, eternas.
Nos cômoros, ouvindo as vagas, nos oiteiros de terra pobre, no contato com o rebanho indócil, fizera-se forte e decidida, aprendera a desejar com intensidade e a lutar para conseguir. Mar bravio, terra árida, faces de um mesmo mundo agreste, duro, pobre e terrivelmente belo. Sentia-se plantada nas pedras onde as cabras saltavam e nas areias movidas pelo vento. Tinha da terra e do mar, da água doce e da salgada, correnteza de rio, ressaca de oceano.
Aprendeu a não ter medo, a não fugir, a olhar de frente, a assumir a iniciativa.
Tantas estrelas, incontáveis; quantos amores, o desejo preso na garganta, na ponta dos dedos, no fundo do estômago? Amores de fugidio instante, amor da vida inteira, o de Felipe. Ninguém conta as estrelas, para que contar as ânsias, a boca seca, a necessidade urgente? O número não importa e sim o beijo, a morte e a vida juntas, uma coisa só. Em Mangue Seco, sobre a areia, em Agreste, nos esconsos do rio, cabra montês. Em cama de casal, somente Lucas, quando ela deixou a aridez dos oiteiros e descobriu os atalhos do prazer. Ei-la de novo ali, nos cômoros, como da primeira vez. Tensa, pronta, à espera.
Longe, no rio, a luz; pode ser apenas o reflexo de uma estrela. Qualquer ruído se perde no rebentar dos vagalhões contra as montanhas de areia. Mas a lua cheia ilumina as dunas, suave claridade, macia. O vulto indeciso, no sopé dos cômoros, por qual se decidir? Tieta levanta-se, olha, adivinha, reconhece.
Modula o chamado da cabra, doce convocação de amor, berro ligeiro, sussurrado. Indicando rumo e desembarque.
Frente a frente, a tia e o sobrinho. Cardo veste o calção e a camisa do Palmeiras que Tieta lhe enviou. Sorri sem jeito:
- A bênção, tia. mãe mandou que eu viesse lhe trazer uma encomenda, deixei na mão do Comandante, lá embaixo.
- Foi só?
- Disse para eu ficar com a senhora, lhe ajudando.
- Mas tu não queria vir.
Atrapalha-se o rapazinho, tenta esboçar um gesto, baixa os olhos. A evasiva, entre gaguejada e orgulhosa:
- Está uma festa por lá, por causa da luz. O povo todo na rua, dando vivas pra tia. Diz que a tia...
- Tu tem medo de ficar, não é?
A resposta se espelha na confusão do rosto aberto ao luar, franco, sem malícia. Tieta prossegue:
- Me conte. É comigo que tu sonha aquelas coisas? não minta.
O adolescente baixa os olhos:
- Todas as noites. Me perdoe, tia, não é por meu querer.
- E tu tem medo, foge de mim?
- não adianta de nada. Nem me esconder nem rezar. Até na reza, penso em você..
- Tu me acha bonita?
- Demais. Bonita e boa. Eu é que não presto, sou ruim de natureza ou bem é castigo de Deus.
- Castigo? Por quê?
- Não sei, tia.
- Se tu não quer ficar, pode ir embora. Em seguida, neste instante.
Aponta para baixo, deita-se de novo sobre a areia, o corpo exposto: a saia aberta, a blusa desatada. A voz de Ricardo chega de longe, do fundo do tempo:
- Estou com medo de ofender a Deus e de lhe ofender, tia, mas tenho vontade de ficar.
- Aqui, junto de mim?
- Se a tia deixar. - Os olhos incendeiam.
Na lonjura, espoca o clarão dos foguetes subindo ao céu, estrela;
acendidas pelo povo de Agreste em honra e louvor da filha ilustre, da viúva rica e poderosa, da paulista com voz e mando no governo.
Tieta sorri, estende a mão:
- Tenha medo, não. Nem de mim nem de Deus. Venha, se deite.
Os corpos flutuam no luar, na música das vagas. Lua, estrelas, mar, os mesmos do passado, iguais. Que importam idade, parentesco, batina de seminarista? Uma mulher, um homem, eternos. Aqui, nas dunas, chiba em cio, um dia distante ela começou. Tieta toca seu princípio. Hoje, cabra de ubere farto, cansada do bode Inácio, defloradora de cabritos.
Intermezzo
A maneira de Dante Alighieri, autor de outro famoso folhetim (em versos ou o dialogo nas trevas já ia distante a lua no caminho da África, pejada de ais' de amor, quando por fim houve pausa e respiração. Desamarradas as coxas, separaram-se a vida e a morte, cada uma para seu lado, deixando de ser uma única coisa o ato de morrer e o de ressuscitar. Antes compunham um corpo único, um só foguete explodindo no alto dos céus, desfazendo-se em luz sobre as vagas do mar. Antes, a noite de Iuar foi ao mesmo tempo dia de sol, sol e lua, dia e noite acontecendo juntos. sem distâncias nem intervalos.
Quando por fim houve pausa e respiração, desapareceram o sol e a lua, as trevas cobriram o mundo, a noite despiu-se de calor e brilho, fez-se fria inimiga, ouviu-se na ressaca do oceano contra as dunas, na insana ventania transportando areia, a ata de acusação e a sentença. Mais além da vida, mais além da morte, ele pôde medir a extensão do crime. Para o castigo não havia medida humana, não se mede a eternidade. Num esforço que lhe rompeu a garganta e o peito, Ricardo encontrou o exercício da palavra:
- Ai, tia! O que foi que a gente fez? Que é que eu fiz?
Um dia, em voto solene, jurara castidade, consagrara-se a Deus. Prometera renegar os prazeres da carne, casto filho de Maria e de Jesus. Traíra o voto.
- Me desgracei e desgracei a senhora, tia. Me perdoe...
Escuta sons de riso, em surdina, nascente de água em meio à tempestade. Tão de areia e vendaval toca-lhe a face culpada, dedos de unhas longas tocam-lhe os lábios, contendo o soluço. Um homem não chora e a partir dali, do sucedido, que era ele senão um homem igual aos outros, cravada no coração a marca do pecado? Igual aos outros? Pior, pois os demais não tinham assumido compromisso e o sangue de Cristo derramado na Cruz os resgatara a todos, até o fim dos séculos. Mas ele fizera voto, prometera, jurara, assumira compromisso. Traíra a confiança de Deus. No negrume enxerga as chagas se abrindo em pus no corpo perverso, a lepra. Dedos pressionando a pele dos lábios impedem o grito e o espanto.
- Tia, só quando houver gente, tolo. não tendo, sou Tieta, tua Tieta Está rindo a infeliz, inconsciente, condenada por ele às penas do inferno.. Rindo, alegre; não se dá conta do horror que cometeram.
O demônio o possuíra, o mais perigoso, o mais sagaz e sutil, o pior de todos, o demônio da carne. não se contentando em levá-lo à perdição, utilizara-o como instrumento para tentar e corromper a tia, para perverter viúva honrada,, fiel à memória do marido, e transformá-la em fêmea enlouquecida, animal em cio, a gemer e a ganir, a berrar como as cabras nos oiteiros de agreste. Oh, tia, que desgraça! A mão percorre os lábios, as unhas arranham a pele, ameaçando pausa e distância.
Possuída pelo cão, ela também. Excomungada por culpa dele, exclusiva, que Tanto lhe devia: gratidão, respeito e puro amor de sobrinho e protegido. Não lhe mandara presentes de São Paulo, não trouxera vara de pesca e molinete, nã olhe dera dinheiro, camisa nova, pamas que a mãe guardara para o seminário, não ofertara imagem e ostensório à Igreja, piedosa criatura Alegre, informal, arrebatada, sim, mas generosa ovelha do rebanho de Deus, como a classificara padre Mariano Alma pura, inocente coração, digna da estima do Senhor, da recompensa divina, proclamara o padre no sermão, durante a missa. Merecedora de todo respeito e de muita gratidão, para pagar o terno afeto, a bondade, as generosas dádivas. A mãe recomendava cuidasse da tia, ficasse às suas ordens, fosse seu amigo.
Por acaso obedecera Buscara aproximá-la ainda mais de Deus e da Igreja, como era sua obrigação de sobrinho e seminarista falara-lhe dos santos e dos milagres, contara os prodígios da virgem e do Senhor, descrevera as maravilhas do reino dos céus Nada disso cumprira. ao contrário, pusera-se às ordens de Satanás na conquistada alma da tia, solene instrumento do maldito. Antes servo de Deus, anjo consagrado, depois escravo do cão, obediente comparsa, cúmplice ativo, anjo decaído.
- Me perdoe, tia.. .
A mão se alonga, cobre a boca inteira, a palma comprimida sobre os lábios, trincando os dentes.
- não diga tia, diga Tieta.
Depois da morte próxima do leproso - primeira demonstração da ira divina -, o castigo eterno, as chamas do inferno, para todo o sempre, sem apelo, sem repouso, sem intervalo, sem direito à contrição, sendo demasiado tarde para o arrependimento. Arrependimento A mão rodeia a boca, as unhas raspam de leve.
No inferno, para toda a eternidade, a carne pecadora e podre queimando e jamais acabando de queimar- salva ou condenada, a alma é imortal. Ouve o riso suave, nascido da ignorância, riso de quem não sabe da violência da cólera de Deus.
Por detrás do manso balido satisfeito, ele escuta a gargalhada do diabo, sinistra, vitoriosa, insultante: duas almas ganhas de uma vez, numa só parada, duas a mais para a prática do pecado e para as chamas do inferno, boa colheita.
Tantos dias, tantas noites de batalha. Porque ele lutara e resistira; com Pequenas forças e armas mínimas, não possuía a estatura dos santos verdadeiramente dignos de servir a Deus, fortaleza da lei, dos mandamentos. Ainda assim resistira, lutara, erguera trincheiras: na banca, curvado sobre os livros; nas águas do rio, mergulhando quando Peto, instruído pelo cão, dirigia-lhe a vista na Bacia de Catarina; nas orações, antes de deitar-se na rede; em rogo e promessa, na missa se a virgem o salvasse, comprometia-se a dormir estendido sobre grãos de milho durante todo o ano letivo. Trincheiras conquistadas, destruídas uma a uma pelo Coisa Ruim. Nos problemas de álgebra, nas páginas impressas, saltavam inteiros os seios entrevistos pela metade no decote do penhoar os fios de pêlo apontados pelo irmão na fresta do biquíni alongavam-se rio adentro, atando pulsos e tornozelos, trazendo-o de retorno às pedras onde ela descansava, descontraída, as pernas abertas, inocente de tanta cobiça e ousadia. Até mesmo durante o sagrado sacrifício da missa, a fumaça do turíbulo ao evolar-se traçava a sua tia e o baloiçar da bunda, redonda, solta, morena, percebida sob a curta camisola.
Labutara nas noites inquietas, a adivinhar devassidões quando se esforçava por enxergar no sonho castas imagens, vidas santas, alegrias puras. antes de perder-se por completo ali, em Mangue Seco, esteve à beira do pecado todas as noites, ora adormecido, ora acordado, e se jamais o completou foi por não saber como fazê-lo. Mal terminava as orações e cerrava os olhos, ainda com o nome de Deus nos lábios e o pensamento na salvação da alma, e já o Amaldiçoado enchia a rede de seios e coxas, de bundas e pêlos, a tia inteira e nua.
Nem os rogos, nem as preces, nem as promessas, nem a fuga. Transtornado, abrira o livro santo na página da fuga para o Egito, conselho de Deus. Montou no burro que tocou no rastro do padre Mariano para Rocinha em vez de tomara lancha para Mangue Seco onde poderia vê-la quase desnuda na praia, acompanhá-la mar adentro, salvando-a de morte certa quando a arrebentação da barra a estivesse afogando. Heróico, lutaria contra as vagas, tomando-a finalmente nos braços, trazendo para a praia o corpo inerte apertado de encontro ao peito.
Montado no burro, fugira da tentação. De que adiantara Durante todo o percurso para Rocinha ele a teve nos braços, apertada contra o peito no trote do animal. ao apertar-se contra a sela, comprimia entre as coxas as ancas da tia.
Débeis forças, vontade fraca, armas frágeis para enfrentar o poder e as tramas do Cão. Para tentá-lo na beira do rio, Belzebu utilizara Peto; para enviá-lo a Mangue Seco, por mais terrível que possa parecer, servira-se da mãe, devota e rígida.
Ele deveria ter se oposto, discutido, alegando a hora tardia, fingindo-se doente.
Não o fez. A mãe não precisou repetir a ordem: saíra correndo em busca de Pirica para contratar o barco. Compreendeu que o Tinhoso escolhera Mangue Seco para local do crime e não obstante para ali partira de livre vontade. Durante a travessia, dava pressa a Pirica apesar de saber que, se lá desembarcasse, estaria perdido. assim aconteceu: em Mangue Seco o Cão o derrotara e possuíra.
Os dedos rumam para o queixo, deixando na boca um gosto de polpa fresca.
As palavras, arrancadas do estômago, cortam o pulmão, estrangulador - Estou condenado e levo a tia comigo para o fogo do inferno. Sou ruim demais, me perdi e arrastei a tia.
A mão se espalma, toda ela de fogo, vindo do queixo para o pescoço. Na hora do pecado, até as labaredas são deleite, ninguém sente a dor das queimaduras. Mas outro é o fogo do inferno, tia, outro e eterno.
- Me leve, sim, cabrito. Novinho como os que eu carregava ao colo.
viúva honesta, ele a fizera renegar o recato e a virtude da cativa condição, manchar a memória do marido, enlouquecer a ponto de dizer coisas assim, sem pé nem cabeça, murmurar frases sem nexo, aberta em riso de contentamento, não se dando conta do mal praticado, indiferente ao castigo.
Ele fora o único culpado mas a condenação atingia os dois, sobre a cabeça da tia cairá igualmente a cólera de Deus. Sobre as duas almas que não souberam resistirão corpos vis, à carne podre. Ele, o único culpado. A tia lhe dissera que fosse embora, se quisesse, apontara para baixo dos cômoros, ele não quis, preferiu ficar.
Consciente de que, se ficasse, iria desrespeitá-la, ofender a Deus, prevaricar, entregando-se de vez a Satanás, servindo-lhe de agente na degradação da alma da viúva, responsável por sua perdição.
- Quem me dera morrer.
- Nos meus braços.
A mão desce dos ombros para o peito. Ai, tia, não. não vê que o Demônio está solto, sobrevoa dunas e mar, morcego imenso a tapar a lua, a impor a noite negra e fria o tentador está ali, presente, como sempre esteve, desde o momento em que a tia surgira na porta da marinete de Jairo. Fora ele, o demônio, quem falara pela boca de Osnar comparando-a a uma fruta madura, sumarenta. Naquela hora começara o combate, lá mesmo perdido. Perdido a cada momento mais, nos passos noturnos soando no corredor, nas rendas esvoaçantes do negligé, no biquíni minúsculo, na minúscula camisola, nas mãos untadas de creme, nas palavras truncadas do padre- nosso, nos sonhos prenhes de desejo quando a tinha nua junto a si, na rede, e não sabia o que fazer. Agora sabe e por isso pagará durante a eternidade. Pagarão os dois, o culpado e a vítima, ele e a tia. Quem sabe, Deus é justo, terá piedade da tia e lhe reduzirá a pena a um tempo de purgatório. Por mais longo seja, ainda que se estenda por milhões de anos, étempo e não eternidade, tem limite e fim. Um dia a sentença termina, liberta-se o condenado, mas as penas do inferno, essas não acabam jamais. Nunca jamais, repete a cada segundo o relógio do inferno. Assim contara Cosme ao falar do castigo eterno.
- Deus é bom e sábio, terá piedade, sabe que a tia não teve culpa.
Cresce o riso alegre e inconsciente, a mão desce pelo peito agoniado.
- Não diga tia, diga Tieta.
A mão no peito sufocado de vergonha, de remorso, roto de medo; como fitar a face de Deus na hora do juízo final. A mão acalma o pesadelo, transforma os sentimentos, desata o nó, rompe a treva, mas não apaga as fogueiras da ira celeste pois toda ela, palma, punho e dedos, é brasa ardida, calordivino. Divino Passim Satanás engana e condena os homens. Esse calor divino se transformará em dor insuportável nas profundas dos infernos, consumindo lenta e eternamente os pecadores.
- Só eu tenho culpa, Deus há de !he perdoar, tia.
- Tia, não. Tieta, sua Tieta.
Como não percebera a voz de Deus na voz da tia apontando-lhe a descida, o caminho certo, o sendeiro a conduzi-lo à salvação, ao sacerdócio, ao paraíso.
Paraíso, Qual mão conduz ao paraíso: ainda há pouco ele enxergara a doçura do céu em cada detalhe do corpo exposto ao luar. A mão brinca com os cabelos nascendo no peito jovem e másculo. O Major orgulhava-se do tronco cabeludo, peito e costas, prova de macheza. Um macho, o pai. O filho, castrado pelo voto feito, pela promessa da mãe, impedido. Mas o Demônio o levara a levantar-se contra a lei, despertara-lhe a carne morta, pervertendo-o. Fizera do mancebo casto, que desconhecia desejos e maus pensamentos, macho impuro sem controle sobre o corpo e a alma, um bode.
Não apenas: utilizara-o para conquistar a tia, perdê-la, condená-la.
- O purgatório dura uns tempos e acaba, tia. A culpa é minha, somente minha; Deus é justo, não mandará a tia para o inferno.
- Cabrito tolo, sou cabra velha. Me chame de cabra, diga minha cabra.
Jamais, mesmo se quisesse; nem sequer na hora do pecado, quando a cabeça não pensa e a boca geme e grita. Cabra dissera Osnar, voz do Demônio, quando a vira deslumbrante na porta da marinete de Jairo, acrescentando indecente comentário sobre a fartura do ubere, o Imundo. E ele Onde mergulhara a cabeça, pousara os lábios, onde, desvairado, mordera-me perdoe, tia. Jure que me perdoa.
- Diga Tieta.
Na barriga de músculos navegam os dedos em descoberta. O dedo minimo enfia-se no umbigo, faz cócegas, a brasa cresce em labareda, consumindo o pecado, cobrindo o nime, acendendo o luar.
- Quero lhe dizer, tia.. .
- Tieta.
- Quero lhe dizer que mesmo tendo de pagar durante a eternidade no fogo do inferno, ainda assim...
- Diga, meu cabrito...
. .. ainda assim, não me arrependo. E se o castigo pudesse ser pior, mesmo assim...
- Diga...... mesmo assim eu queria...
Onde a mão passa ma queima da ponta dos pés à ponta dos cabelos, percorre o corpo, a testa lateja, abre-se a boca, cresce o cão.
- Queria o quê, cabrito? Me diga...
- Estar aqui com a tia.
- Tieta.
A mão procura, encontra, apalpa, empunha. Desmedido Demônio.
- Tieta, não me arrependo, ai não, Tieta!
- Diga cabra, meu cabrito.
Onde estão as trevas e o inferno, o te morde Deus Sob o luar, o paraíso se abre para o cão, estreita porta de mel e rosa negra. E ali o inferno e muito mais, vem, meu cabrito! Ai, cabra, minha cabra, sou bode inteiro, em fogo me consumo.
Terceiro episódio o progresso chega aos cafundós de judas ou a ,Joana Darc do sertão com marcianos e venusianas, super-heróis, aeronaves espaciais e fêmeas sublimes onde se trata da produção de dióxido de titânio e da sorte de águas e peixes, colocando-se os termos do debate a dividir agreste e a terminar com o marasmo e a paz, assistindo-se ao nascimento da cobiça, da sede de poder, da ambição de mando e ao florescer do amor; acrescentando-se ainda reisado, bumba-meu-boi e outros detalhes folclóricos de que se encontrava carente este patético folhetim da primeira aparição dos super- heróis interrompendo pecaminosa e agradável pratica na hora cálida a primeira aparição de seres de outros planetas, dos super- heróis, no território de agreste, deu-se num começo de tarde, na hora do mormaro quando ninguém perturba a paz dos habitantes.
No comércio aberto por força do hábito, para cumprir o horário - das oito às doze, das quatorze às dezoito - só no armazém de Plínio Xavier há certo movimento, aliás suspeito. Duas ou três vezes por semana, na mesma hora vazia de fregueses, o comerciante de secos e molhados, cidadão respeitável, casado e pai, escondido por detrás dos fardos de carne-seca, ocupa-se em meter as mãos sob a saia da solteirona Cinira, tocando-lhe as partes com a ponta dos dedos. Voltada para as prateleiras, ela faz como se não visse nem sentisse mas abre as pernas para facilitar. Plínio Xavier também age em silêncio, o suor pinga-lhe do rosto. De repente Cinira suspira fundo, estremece, leva a mão onde sabe estar fora das calças a ansiada arma, aperta a forte e sai escarreirada e furtiva.
Naquele dia, quase ao chegar ao suspiro e ao estremeção, um abominável, sinistro ruído ecoou na rua, interrompendo bruscamente a deleitosa prática. ao ver-se em fuga na calçada, Cinira não pode conter o terror e sufocar o grito: a máquina desconhecida e monstruosa vinha sobre ela, rugindo, imensas rodas afundando o chão. Lançava ao ar negra fumaça pestilenta através dos canos e orifícios e de súbito emitiu lancinantes sons, jamais ali ouvidos. Fechando o último botão da braguilha, Plínio Xavier chegou à porta a tempo de observar o estrambótico veículo passando em frente ao armazém, conduzindo no bojo os indescritíveis seres, ao parecer macho e fêmea, se bem não se diferenciassem muito um do outro nos atributos e nos trajes espaciais, idênticos.
Dias antes, haviam circulado rumores, trazidos de Mangue Seco, onde os pescadores afirmavam ter visto objeto não identificado, faiscante contra o sol, vindo do mar e nele desaparecendo após haver sobrevoado a praia e o coqueiral. Nem por isso o burgo estava preparado e a comoção foi imensa.
Da nave na praça da matriz, quando se estabelecem os primeiros contatos entre os super-heróis e os humanos com referencias a hotéis e asfalto, enquanto Miss Vênus freta cada um dos homens, inclusive seu Manuel português deserta e silenciosa a praça da matriz quando a nave, num espaventoso clamor de gases soltos, ali se deteve e o ser provavelmente macho - em razão dos cabelos longos, sobrando do capacete, e das olheiras violetas, houve quem lhe discutisse o sexo- saltou por cima da porta da extravagante máquina, circulou o olhar em torno, não enxergou ninguém. Nas mãos, exibia grossas luvas de exótico material. Envergava flamante vestimenta, espécie de macacão azul com zíperes e bolsos nas pernas e braços, ilhoses e tachas de metal, a fulgurar. Observação mais detalhada, demonstrava tratar-se de calça e blusão, os bolsos repletos de objetos estranhos, armas mortais, imprevisíveis.
Vestido de maneira absolutamente igual, sem outra diferença além do volume do busto, o ser fêmea suspendeu o capacete e revelou-se ótima. Retirando as luvas, com os longos dedos afofou a cabeleira ruiva- não mais longa que a do companheiro - com uma faixa platinada ao centro a denunciar-lhe a origem venusiana ou carioca, de qualquer forma apaixonante.
Do escondido do bar, Osnar observava, estupefacto; presentes apenas ele e seu Manuel Português.
- Oh! Luso Almirante! Venha ver e me diga se é verdade ou delírio alcoólico o que estou vendo. Ontem bebi demais em casa de Zuleika.
Seu Manuel abandonou os copos nos quais passava água- também não precisa abusar da imundície, Vasco da Gama, dizia-lhe Aminthas apontando as marcas de sujeira em pratos, copos e talheres -, veio até a porta. Abriu a boca, coçou o queixo:
- Quem são esses valdevinos?
- De tanto Ascânio falar em turistas, eles apareceram... - Arriscou Osnar. - A não ser que sejam os tripulantes do disco voador de Mangue Seco.
Constatada a ausência de terráqueos, o ser provavelmente macho retornou à nave, a venusiana enfiou as luvas; os abomináveis sinistros ruídos recomeçaram, a negra fumaça soltou-se pelos canos e orifícios, o veículo decolou num salto e se perdeu num beco. Durante certo tempo ouviu-se na cidade a barulheira, acordando em susto os que tiravam uma pestana como Edmundo Ribeiro, o coletor, e o árabe Chalita; trazendo à porta das casas os surpresos, assombrados habitantes. Houve comerciante a fechar portas de loja e de armazém, quem sabe Lampião voltara dos infernos, motorizado.
Lampião nunca chegou a Agreste mas certa feita estivera perto, a três léguas de marcha, ainda hoje o fato é recordado.
Quando os super- heróis, percorridas ruas e becos, retornaram à praça da Matriz e outra vez aterrissaram, já Ascânio Trindade que os vira da janela do sobrado da prefeitura, descia a escada a correr, vindo-lhe s ao encontro. Osnar falara em turistas gozando o amigo, mas Ascânio, se o tivesse ouvido, aprovaria: turistas, por que não? Os primeiros a atender ao convite redigido por ele (com a preciosa ajuda de dona Carmosina) e enviado ao jornal A Tarde, da Capital, sugerindo aos turistas esticar de Salvador até a mais saudável cidade do Estado, Sant’Ana do Agreste, para conhecera mais bela praia do mundo, a praia das dunas de Mangue Seco. A gazeta publicara a carta na coluna dos leitores, lastimando, em pequena nota da redação, o péssimo estado da rodovia a impedir na prática a aceitação do convite. Ninguém de bom senso se disporia a jogar a sorte de seu automóvel nas crateras da estrada cada vez mais esburacada somente para conhecer Agreste, recanto realmente paradisíaco.
quem escapasseileso da buraqueira da via principal teria de enfrentar ainda os indescritíveis cinqüenta quilômetros de barro, a partir de Esplanada.
Ascânio arvora vitorioso sorriso no rosto em geral sério: mesmo assim, com a estrada de crateras e de sobra os quarenta e oito quilômetros- quarenta e oito e não cinqüenta - fatais, surgiam corajosos dispostos a atender ao chamado.
Empoeirados, suarentos, os estranhos seres acenaram gestos cordiais e sequiosos. A fêmea deu pressa, com a enorme pata de couro.
- Boa tarde... Sejam bem- vindos a Agreste! - saudou Ascânio alegremente.
- Bonjour, frère! - respondeu o espacial, tirando a luva para tomar de um lenço lilás e limpar a testa. - Que calorzinho, hein!
- Daqui a pouco refresca. As tardes, a partir das quatro, são fresquíssimas, de noite chega a fazer frio. Clima seco, ideal. - Ascânio Trindade inicia sua pregação.
- Vou acreditar em tudo que você me disser, paixão, se me arranjar alguma coisa para beber... - A voz do ser fêmea desmaia em promessas.
- O que quiserem, com prazer. Vamos até o bar.
Da mesa, Osnar constata:
- Estão vindo para cá, Almirante. Me segure pois sou capaz de perder o juízo e agarrar essa visão aqui mesmo. Sempre tive vontade de comer uma marciana na falta de uma polaca, pois igual a uma polaca não existe em nenhum planeta. - A célebre história da polaca de Osnar.
O grupo aproxima-se, boas- tardes de lado a lado, tomam mesa.
Manuel atende, solícito, enquanto Osnar não desgruda os olhos do ser fêmea que, à falta de água- de-coco - não pode faltar coco mole no bar, anota Ascânio -, aceita guaraná.
- Para mim uísque on the rocks... - pede o ser provavelmente macho.
- Scotch, naturalmente... Quero dizer, escocês.
- Só tenho nacional mas é do legítimo - Orgulha-se seu Manuel.
- não, por favor, não! Traga-me então uma mineral sem gás. Bem gelada.
- A água daqui é melhor do que qualquer mineral ,já foi examinada na Bahia e aprovada com os maiores elogios - esclarece Ascânio.
- Desde que seja gelada...
Seu Manuel serve o guaraná com canudinho, um requinte, e o copo com água e gelo. O marciano aprova: realmente muito boa água, dê-me um pouco mais, por favor, e diga quanto lhe devo.
A um sinal de Ascânio, seu Manuel curva-se :
- Não é nada... Foi um prazer...
- Muito obrigado... Aceito por essa vez mas de futuro... E o único bar da terra?
- Bem, no Beco da Amargura tem uma espécie de boteco, do negro Caloca. Mas em qualquer armazém se pode beber um trago de cachaça.
- Precisa melhorar o sortimento, my friend... Boas marcas de uísque, bons vinhos... E hotel, frère - frère ëra Ascânio, caíra-lhe na simpatia -, tem algum bom? Com banho privativo?
- Hotel propriamente não. Mas tem uma pensão muito boa, a de dona Amorzinho, comida de primeira, quartos limpos. não tem banho privativo.
Mas o torneirão do banheiro vale uma ducha.
- Vai ser preciso construir logo um bom hotel... - Falou o ser macho como se construir ali, em Agreste, um hotel de primeira, fosse a coisa mais simples do mundo. Exatamente a partir dessa afirmação - dessa decisão do super- herói - Ascânio Trindade começou a divagar.
- O pior é a estrada - constatou o ser fêmea, miando. - Esse último pedaço, então... Nunca levei tanto tranco nem engoli tanta poeira... - Afofa os cabelos poeirentos, ruivos com aquela mecha platinada. - Chego em Salvador, vou direta ao salão de Severiano lavar os cabelos e pentear...
- É só alargar e asfattar, darling. Quantos quilômetros, frère?
- Daqui à Bahia, à capital?
- Não, só o último trecho, o carroçável.
- Quarenta e oito quilômetros...
- Amorzinho, não minta! - rogou Miss Vênus a Ascânio. - Tem mais de cem... Estou descadeirada. - Levou a mão à bunda espacial.
- Ai! - gemeu Osnar, mas se alguém ouviu não demonstrou.
- Deve ser isso mesmo, darling, uns cinqüenta quilômetros. Num instante se asfalta.
Hotel, estrada asfaltada, o sonho prossegue, o coração de Ascânio se dilata.
- Me diga uma coisa, frère: uma lancha para descer o rio até a praia de...
Como é mesmo o nome?...
- Mangue Seco...
- C'est ça... É fácil alugar uma?
- Bem... Tem a lancha de Elieser. não é de aluguel mas eu falo com ele, peço para levá-los. É um bom sujeito.
- Pode dizer que eu pago bem...
Ascânio sai em trote rápido em busca de Elieser. Terá de convencê-lo:
em matéria de bom sujeito, Elieser é exemplo discutível, mas Ascânio tem prestígio. Nada dirá sobre hotéis e asfalto, o outro pode considerar tais planos grave ameaça a seus legítimos interesses. Ascânio já compreendeu que não se trata de simples visitantes ocasionais e sim de empresário estudando a possibilidade de inverter dinheiro grosso para fazer de Agreste o almejado centro turístico, projeto tantas vezes discutido na Agência dos Correios e Telégrafos. Falta infra- estrutura, dizia dona Carmosina. Falta alguém com dinheiro para estabelecê-la, o Município não tem condições, completava Ascânio. Pelo jeito, dinheiro ia sobrar.
Calados, sem tema de conversa, Osnar e seu Manuel sorriem bestamente para os estranhos. não tarda, Aminthas se junta a eles, interrompera um concerto dos Rolling Stones. A rainha do planeta Vênus freta com o olhar os três humanos, um a um, e a cada um sorri em particular, a revelar que teria prazer enorme em dormir com ele - só com você, amorzinho, e mais ninguém no mundo. Osnar está em vias de perder o fôlego, Ascânio volta a tempo. Elieser passou direto para o pequeno ancoradouro onde a lancha espera.
- Thanks! Andiamo, bela, não temos muito tempo. Arrivederci. ..
Quantas línguas falam no espaço? Osnar se engasga em português. O marciano estende a mão, Aminthas ainda está em dúvida se ele desmunheca ou não.
- É melhor deixar o veículo na praça, ir a pé, o caminho é ruim. Eu os acompanho...
Todos acompanham, mesmo seu Manuel, o bar vazio.
- Quanta gentileza... - Agradece Miss Vênus num gemido.
No caminho, Ascânio busca comprovação:
- Diga uma coisa... O senhor pretende estabelecer-se aqui?
- Quem sabe? Vai depender dos estudos... É possível.
- Com um hotel? Pode-se explorar a água mineral, não há melhor.
- Hotel? Também. Vai ser indispensável. Água? Talvez. Mas serão apenas inversões secundárias, diversificação de capital. Água, depois pode-se pensar nisso.
Chegam ao ancoradouro. Projetos ambiciosos, reflete Ascânio, grande empreendimento turístico, está na cara. Os seres magníficos embarcam na lancha, Elieser ao leme.
- Mais uma vez, merci, frère. Cião! -acena adeus.
- Ascânio Trindade, secretário da prefeitura, às ordens.
- Secretário da prefeitura? E o prefeito, quem é?
- Doutor Mauritonio Dantas. Está enfermo, eu respondo pelo expediente. Qualquer coisa, pode conversar comigo.
- OK. Iremos conversar, com certeza. Brevemente e muito.
A lancha parte, a da ruiva crina, da mecha platinada, lança um beijo, com O olhar se entrega; Elieser nem assim desamarra a cara. Ascânio Trindade sorri, parece um sonho: finalmente eles haviam desembarcado.
Dos comentários e da primeira discussão, ainda amável cresce a concentração na praça, pequena multidão acotovelando-se em torno ao veículo.
- Veja os pneus. Que brutalidade!
- Que beleza!
- Você ouviu a buzina? Tocou o começo de Cidade Maravilhosa.
- Cada coisa!
No bar, é grande o movimento. Os comerciantes abandonaram lojas e armazéns. Plínio Xavier orgulha-se de ter sido o primeiro a ver a máquina e a perceber os pilotos.
- Estava bem do meu, fazendo contas de uns fiados...
O riso de Osnar, ri de quê? Os olhares se desviam: na porta da igreja, Cinira conversa com as beatas. Ainda não assentou praça no batalhão mas não vai tardar.
... quando ouvi aquele barulho horrível, larguei tudo. ..
Astério e Elisa somam-se ao grupo. Na hora do perigo, ele fora correndo para casa, preocupado com a esposa: Elisa, na lua-de-mel da chegada da irmã, anda nervosa, aflita, num pé e noutro. Juntos vieram para a praça, espiar a máquina, ela tão nos trinques a ponto de quase botar no chinelo a Rainha do Espaço de mancha platinada nas ruivas melenas. A mancha platinada alucina Osnar que confidencia a Seixas e a Fidélio:
- Eu juro a vocês que se eu pegasse aquela marciana, começava a lamber da ponta do dedo grande do pé. Levava bem três horas até chegar no umbigo... Dava-lhe uma surra de língua...
- Porcalhão!
Seu Edmundo Ribeiro não é exatamente um puritano mas certos hábitos sexuais lhe parecem indignos de homem macho e honrado. Pegar mulher na cama, montá-la, muito que bem. Mas pôr a língua... Beijos, só na boca, e em boca limpa.
- Edmundinho, meu filho, não venha me dizer que você nunca fez um minete na vida... Nunca chupou um favo...
- Me respeite, sou homem sério e asseado.
Na Agência dos Correios e Telégrafos, ferve a discussão. Ascânio Trindade apresenta minucioso relatório a dona Carmosina, na presença do comandante Dário de Queluz que prevê, a voz de lástima:
- Você, meu querido Ascânio, com essa mania de turismo em Agreste, ainda vai pagar caro, você e todos nós. Um dia, um maluco qualquer lê essas bobagens que você e Carmosina mandam para os jornais, leva a sério, bota de pé um negócio para explorar a praia de Mangue Seco, a água e o clima de Agreste e nós vamos terminar mal. Em dois tempos, isso vira um inferno.
- Um inferno, por que, Comandante? Nunca ouvi dizer que uma estação de águas fosse um inferno. ao contrário, é um lugar de descanso, de repouso - intervém dona Carmosina. - Você bem sabe que ninguém defende mais do que eu a natureza, a atmosfera, a beleza de Agreste. M as que mal existe numa estação de águas?
- Uma estação de águas na cidade, vá lá. O pior é a praia que Ascânio quer entupir de gente, de toda espécie de porcaria...
Salta Ascânio:
- Que porcaria? Casas de veraneio para turistas, hotel, restaurantes. A praia de Acapulco, a de Saint-Tropez, a de Arembepe, são por acaso porcarias, infernos? O futuro de Agreste, Comandante, está no turismo.
- São infernos, sim, são porcarias. Ainda outro dia A Tarde publicou uma reportagem sobre Arembepe: virou a capital dos hippies, a capital sulamericana da maconha. Você já pensou Mangue Seco repleto de cabeludos e maconheiros? Deixe nosso paraíso em paz, Ascânio, pelo menos enquanto a gente viver.
- Quer dizer que o senhor prefeito, Comandante, que Agreste continue a ser um bom lugar para se esperar a morte?
- Prefiro, sim, meu filho. A morte aqui tarda e retarda, não desejo mais do que isso. O ar puro, sem contaminação. A praia limpa.
Ascânio olha para dona Carmosina, aliada, ela toma a Palavra:
- Quem falou em contaminar? Hippies não digo, se bem a filosofia deles seja também a minha, paz e amor, a coisa mais bonita que seinventou nesse século! O diabo é a droga. Mas turistas com dinheiro, não vejo o mal, Comandante. Boas casas de veraneio, comércio animado, bons filmes, e então? Ninguém pode ser contra.
- Arranha- céus, hotéis, a corrida imobiliária, o fim do coqueiral, das árvores, do sossego, da paz! Deus me livre e guarde! Felizmente isso não passa de delírio de vocês...
Peto chega correndo, a lancha está de volta. Antes de ir, Ascânio convida, contente:
- Pois eu creio, Comandante, que muito em breve teremos o turismo implantado em Agreste. O maluco já apareceu. Venha comigo, vamos conversar com ele.
- Vamos lá... - concorda o Comandante.
Mas quando chegam à praça, já o casal de super- heróis, cercado de curiosos, está de partida, na máquina refulgente. Ascânio ainda tenta dialogar mas eles levam pressa, vão chegar a Salvador tarde da noite.
- Em breve voltarei e aí então conversaremos. Quero tomar nota de seu nome.- Extrai uma caderneta de misterioso bolso na perna da calça, a caneta pendurada no pescoço parece um microfone de romance de espionagem. A máquina de retrato, pequeníssima e potentíssima, funciona nas mãos finas, de dedos longos, libertas de luvas, de Miss Vênus.
- Meu nome? Ascânio Trindade. Este aqui é o comandante Dário de Queluz.
- Comandante?
- Sim, da Marinha de Guerra.
- Reformado - esclarece o Comandante.
- Ah!- depois de uma pausa, credencia-se : - doutor Mirko Stefano.
A bientót. So long.
- Adeus, paixão! - chora Miss Vênus, os olhos em orgasmo.
Parte a máquina, levantando poeira, o ruído estourando os ouvidos mais sensíveis. Doutor? Parece um astronauta, um capitão de nave espacial, um moderno empresário desses que transformam a terra e a vida. Sobre o veículo, a informação exata foi dada por Peto - Ainda não conseguiu terminar o primário, não tem pressa, já sabe tudo sobre carros e pistas. Trata-se de um Bug, com rodas de magnésio, tala larga, kits, dupla carburação, a buzina incrementada. Todo incrementado, aliás, motor envenenado, o entusiasmo de Peto não tem limites. Corre para casa, vai contar as novidades a tia Antonieta e a Leonora.
Sobre os seres superiores, souberam pela boca de Elieser, de mau humor.
- O tipo estava interessado era nas áreas da beira do rio, no coqueiral, nas terras devolutas. Me perguntou de quem eram, eu disse que ninguém nunca soube que tivessem dono. Fizeram fotografias às pampas. Em Mangue Seco, tiraram a roupa e tomaram banho nus...
- Nus?
- Os dois... Como se eu não estivesse ali. A tipa é ousada, enfrentou a arrebentação.
- Vê você, Ascânio? Nudismo, para começo de conversa. Graças a Deus eu não estava lá, não iria permitir. - Igual a Edmundo Ribeiro, o comandante Dário também não é puritano mas nudismo em Mangue Seco, ah!, isso jamais! não, enquanto ele viver!
Ascânio vai responder mas Elieser não lhe dá tempo:
- O tipo perguntou quanto me devia, eu disse que não era nada, como você mandou. Quem vai pagar meu trabalho e a gasolina, Ascânio? Tu ou a prefeitura?
Osnar, a ouvir em silêncio, comenta escandalizado:
- Tu vê um mulherão daquele nua em pêlo e ainda quer dinheiro, Elieser? Pois eu pagava para espiar... Tu é um degenerado!
Da luz e das virtudes de Tieta, com citações em latim plantadores de mandioca, criadores de cabras, os pescadores e os contrabandistas, na cidade de Agreste e nos povoados vizinhos, das margens do rio às encapeladas vagas da barra, ninguém deixou de tomar conhecimento do espantoso evento e o beato Possidônio, em Rocinha, anunciou o apocalipse e o fim do mundo, assuntos de sua particular predileção. Apoiava-se nas escrituras, no Velho Testamento.
Eis que de repente, conforme constataram os habituês no Areópago, começavam a suceder coisas em Agreste, arrancando o burgo da pasmaceira habitual, provocando agitados comentários, suscitando discussões.
Os fios elétricos, suspensos sobre postes colossais, caminhavam pelo sertão no rumo do município e, em obediência às ordens superiores, o faziam com rapidez anormal em obras públicas. De quando em quando um jipe com engenheiros e técnicos desembocava nas ruas tranqüilas, o bar de seu Manuel ganhava animação. O engenheiro- chefe garantia que dentro de mês e meio, dois meses no máximo, os fios chegariam à cidade, trabalho concluído, podendo-se marcar a data para a festa de inauguração. Em se tratando de município de tanto prestígio federal, talvez comparecessem figuras da alta direção da Companhia do Vale de São Francisco, quem sabe até o diretor presidente vindo especialmente de Brasília.
Já não duvidava de nada o engenheiro- chefe depois que lhe informaram ter sido uma viúva em férias na terra natal quem obtivera, por intermédio de amigos do finado, em vida milionário e influente, as ordens preferenciais mandando reformar o projeto para que nele coubesse, com prioridade absoluta, o município de Sant'Ana do Agreste. Difícil de acreditar mas sendo a afirmação unânime, o engenheiro terminara demonstrando interesse em conhecer e saudar a ilustre dama capaz de modificar projetos aprovados, removendo postes, determinando rotas para luz e força.
Pessoa dada e simples, conforme lhe informou Aminthas. Nem por ser riquíssima viúva de comendador do Papa e freqüentar a alta sociedade do Sul, possuindo as melhores relações- das quais a prova mais concreta era o falado engenheiro estar ali no bar do lusitano, bebericando cerveja -, nem por tudo isso carrega o rei na barriga. Com dois telegramas resolvera o assunto, dera uma fubecada no diretor cheio de si que tratara o representante da cidade, Ascânio Trindade, secretário da prefeitura, como se ele fosse um João ninguém e Agreste não passasse de terra esquecida por Deus. Sem levar em consideração as credenciais de Ascânio, o fato do moço encontrar-se em Paulo Afonso em defesa de interesses legítimos de sua terra, o diretor presidente deixara-o mofar à espera antes de despachá-lo com redonda negativa, recusando-se a ouvir seus argumentos. Agreste, para ele, não passava de árido pasto de cabras e assim o disse. Indignou-se dona Antonieta ao saber do acontecido, telegrafou. Foi tiro e queda.
Aminthas enfeitara a história ao contá-la ao engenheiro- chefe, rindo-lhe nas fuças:
- Dona Antonieta Esteves Cantarelli, é o nome dela. Naturalmente o amigo já ouviu falar no Comendador Cantarelli, grande industrial paulista.
Empacotou recentemente.
O engenheiro, vencido, escondeu o desconhecimento: o nome lhe soava, disse, com o mesmo acento dos Matarazzo, dos Crespi, dos Filizzola. Ergueu o copo de cerveja, em respeitoso brinde à senhora Cantarelli. não só Aminthas o acompanhou, todos os presentes associaram-se à homenagem.
O povo, agradecido, ainda no espanto da dádiva inesperada, ao referir-se à nova iluminação não a designava Luz de Paulo Afonso, Luz da Hidrelétrica ou Luz da Companhia do Vale do São Francisco, como seria justo e correto e em toda parte se dizia. Para a gente de Agreste era a Luz de Tieta.
Quando, na quarta- feira seguinte aos festivos acontecimentos do domingo, Tieta viera de Mangue Seco para assinar no cartório a escritura dos terrenos, fora surpreendida com uma faixa colocada na praça da Matriz, entre dois carunchosos postes da iluminação antiga, nas proximidades da casa de Perpétua: O povo de Agreste saúda agradecido dona Antonieta Esteves Cantarelli. Apenas um senão: a palavra Esteves havia sido acrescentada, por exigência de Perpétua e Zé Esteves, depois da faixa concluída. Colocaram-na entre os dois outros nomes mas acima deles, defeito pequeno, não empanava o efeito impressionante das letras vermelhas sobre o fundo branco do madrasto.
Idéia de Ascânio, contara com o apoio geral, na boca do povo Tieta era a heroína da cidade. não a tinham colocado ainda no altar-mor da Matriz, ao lado da Senhora Sant'Ana, como previra Modesto Pires, mas pouco faltava.
Ao passar na rua, no princípio da tarde, em companhia de Leonora e de Perpétua, em caminho do cartório onde marcara encontro com o dono do trapiche, das casas saíam pessoas para cumprimentá-la, para lhe agradecer houve quem lhe beijasse a mão. ao sabê-la em Agreste, o coronel Artur da Tapitanga abandonou a casa- grande da fazenda, andando o quilômetro a separá-lo da rua, veio abraçar a benemérita cidadã:
- Minha filha, Deus escreve certo porlinhas tortas. Quando Zé Esteves lhe tocou daqui, era porque Deus queria fazer você voltar como rainha. Punha-lhe uns olhos de bode velho e lúbrico ,já sem forças nos ovos mas ainda com apetite no coração. - Quando vai me visitar, ver minhas cabras?
Também Bafo de Bode a homenageou à sua maneira, ao vê- a na porta do cinema:
- Viva dona Tieta que manda um bocado e é um pedaço de mau caminho!
Tieta, ao passar, colocou-lhe na mão negra de sujo o necessário para uma semana de cachaça farta e ao adiantar-se, na intenção de alegrar-lhe os olhos, soltou as cadeiras em requebro de proa de barco em meio a vendaval.
Concluída a escritura, lavrado o termo da compra do terreno, completado o pagamento em moeda viva, Tieta, antes de voltar para casa, passou na Agência dos Correios para abraçar dona Carmosina e despachar uma carta.
Já agora acompanhada também por Ascânio e pelo bardo De Matos Barbosa, atacado de saudade e reumatismo: tua presença, Tieta, é sol e medicina, basta-me fitar teu rosto para me sentir curado.
Dona Carmosina anunciou:
- De noite, vou lhe ver para a gente conversar. Tenho muitas novidades... - Os olhos indicavam Leonora e Ascânio, assunto predileto.
- Não estarei. Volto hoje mesmo, daqui a pouco, para Mangue Seco.
Passei para lhe ver e saber notícias de dona Milú.
- Volta hoje? Por que toda essa pressa?
- Estou levantando minha choupana, já comecei. Tu me conhece:
quando quero uma coisa, quero logo, tenho pressa. Desejo ver as paredes de pé antes de ir embora.
- Você não pode ir embora tão cedo. Nem fale nisso.
- Por que não?
- Antes da inauguração da luz? O povo não vai deixar.
Tieta riu:
- Até me sinto candidata a deputado... Você me representa na festa.
- Refletiu durante uns segundos, o olhar perdido.- Mas, quem sabe, talvez eu fique, prolongue as férias, não tanto pela festa mas para ver minha casinha de pé, em Mangue Seco.
- Fica, sim, com certeza. Ficam as duas... - Fitando a face melancólica de Leonora, dona Carmosina não resistiu: - Sei de alguém que talvez fique para sempre. - Os olhos miúdos faiscavam malícia.
Em casa, a sós com Perpétua, Tieta dera-lhe notícias de Ricardo:
menino bom, sobrinho querido, estava sendo de inestimável ajuda. Sob a orientação do Comandante, tomava iniciativas e providências, atravessara duas vezes para o arraial do Saco onde contratara o pessoal necessário, pedreiros e carpinas, mestre-de-obra, gente habituada a trabalhar com troncos de coqueiros sobre a areia movediça. Adiantara todos os detalhes, a construção iniciara-se na véspera. Ela o prenderia em Mangue Seco ainda uns dias, nomeara-o seu lugar-tenente.
- O tempo que você quiser, mana, ele está de férias.
Por falar em férias, Ricardo mandara pedir os livros de estudo, nem na raia se descuidava dos deveres escolares. Dormia na sala da Toca da Sogra, numa rede. Menino de ouro, Tieta queria ajudá-lo e para tanto decidira abrir una caderneta de poupança em nome dele, num banco de São Paulo. Na carta que deixara na Agência dos Correios, dava ordens à sua gerente para abrir a caderneta em nome do sobrinho com considerável depósito inicial Perpétua estremeceu ao ouvir a quantia - Aos quais todos os meses ela acrescentaria determinada importância, ainda não decidira quanto. Assim, quando Ricardo se ordenasse padre, somando capital, juros e correção monetária, teria um bom pecúlio. Perpétua elevou os olhos gratos para o céu, o Senhor começava a cumprir sua parte no trato feito. Depois de agradecer a Deus, fitou Tieta e a ela se dirigiu:
- Não sei nem o que lhe dizer, mana. Deus há de lhe pagar.- Tomou, num gesto inopinado, da mão da irmã, levou-a ao peito, apertando-a contra o coração. Usava corpete de tecido grosso, duro como um peitoril. Com o lenço negro enxugou os olhos lacrimosos.
Antes de regressar no fim da tarde a Mangue Seco, fugindo às manifestações de seus conterrâneos, cercada pela família, Tieta ainda recebeu a visita do padre Mariano. O reverendo agradeceu-lhe, em nome dos fiéis, a graça da iluminação nova que ia modificar a fisionomia da cidade, mudar-lhe os hábitos, imenso serviço prestado à comunidade. Beneficiando a todos, dona Antonieta criara, no entanto, sério problema para a paróquia, pois a instalação elétrica da Matriz encontrava-se em petição de miséria, incapaz de suportar o impacto da energia de Paulo Afonso. Um engenheiro da Hidrelétrica a quem ele consultara dissera-lhe ser absolutamente necessário mudar toda a instalação para impedir curto- circuito, evitar grave perigo de incêndio. Onde buscar o dinheiro necessário? A quem recorrer senão a ela? Muito já lhe devia Matriz, a começar pela imagem nova da Padroeira, o ostensório trazido de São Paulo, o padre era quem mais sabia mas sabia também da generosidade de dona Antonieta, alma de escol, ademais, viúva de comendador do Papa, ou seja, pessoa graduada na hierarquia da Igreja. Com um sorriso ambíguo, Tieta ouviu em silêncio, na presença do pai, da madrasta, das irmãs e de Leonora.
Perpétua repetiu as palavras do pároco pensando na caderneta de ou Ana:
palma de escola, o senhor disse tudo, padre Mariano.
O reverendo não conseguia ler resposta positiva no sorriso equívoco a entreabrir os lábios carnudos; apenas podia constatar que Tieta remoçara nesses dias em Mangue Seco, o ar satisfeito, bonita como nunca, o sol pusera tons de ouro no cobre da pele.
- Não se aflija, Padre, pode mudar os fios.
Tranqüilizado, ia o cura agradecer quando ela prosseguiu, a voz se abrindo em riso, em tom de brincadeira:
- Faço isso em pagamento à Senhora Sant'Ana por lhe ter roubado O sacristão por alguns dias, meu sobrinho Ricardo que está em Mangue Seco me ajudando.
Estremeceu Perpétua dentro do vestido negro, do luto fechado, da compostura devida ao sacerdote, não conseguindo esconder a satisfação de súbito refletida do rosto carrancudo, num olhar de vitória. Ligando O sobrinho aos donativos feitos à igreja, designando-o intermediário nas suas relações com Deus e os santos, Tieta dava largo passo no caminho a conduzir à adoção e à herança. Deus acabara de passar à categoria de devedor, ao receber, pela mão de Ricardo, a doação das novas instalações elétricas da Matriz.
Igualmente radiante, padre Mariano ergueu a voz, escolhendo os termos do louvor:
- Deus não esquece quem ajuda a Santa Madre Igreja multiplica cada, óbolo em perenes benesses. As bênçãos da Virgem, dona Antonieta, protegerão a si e aos seus familiares - elevou a mão, abençoando os Esteves e as Cantarelli, sorriu beatificamente. - De parte da Senhora Sant'Ana, posso adiantar que ela lhe cede de bom grado o escudeiro. Estando Ricardo em ;:.
companhia tão sacrossanta, só poderá aprender a praticar o bem.
Ao despedir-se, o reverendo referiu-se à aparência de Tieta: louca, garbosa. Os dias na praia, disse, tinham sido para ela um verdadeiro tônico, ressumbrava saúde ejúbílo, aprazimento, a beleza do rosto refletindo a pureza da alma, tota pulchra, benedicta Domini. Que Deus assim o preserve.
Zé Esteves foi o único a demonstrar insatisfação, remoendo críticas ao peditório e ao atendimento!
- Esse urubu de batina é um sabido: com a língua doce e o latinório vai arrecadando um dinheirão para a igreja, os tolos caem como patinhos. Me perdoe, minha filha, mas você precisa prestar mais atenção a seu dinheiro.
Não se esqueça que vai comprar casa, não pode estar desperdiçando.
Somente uma semana depois Tieta regressou a Agreste, atendendo exatamente a um chamado de Zé Esteves, transmitindo apelo urgente de dona Zulmira disposta a rebaixar o preço da casa, a entrar em acordo. Deixara Ricardo à frente das obras, as paredes subindo, sozinho na Toca da Sogra pois havia três dias o Comandante voltara com dona Laura para o bangalô na cidade. Três dias, ou melhor, três noites durante as quais a tia e o sobrinho trocaram o romântico areal das dunas pelo conforto do colchão de crina da cama de casal no quarto do marujo.
Prosseguindo na educação do sobrinho, a lhe ensinar o bem -o bem e o bom -, o colchão chegara na hora exata, quando atingiam um estágio superior no estudo da matéria em que Tieta era mestra competente, emérita catedrática, doctor honoris causa, como diria em latim o padre Mariano.
Ensinava-lhe em aulas práticas e intensivas quanto sabia, ou seja, tudo, o.
alfabeto inteiro, incluindo o indescritível ipicilone.
Tieta voltou a Agreste na manhã do dia do primeiro desembarque dos seres de espanto projetados do espaço, mas não os viu e deles só veio a ter notícias no fim da tarde por Ascânio exaltado, nó auge do entusiasmo:
- Capitalistas do Sul, estudando as possibilidades de empregar capital aqui, no município, em empresa de turismo, coisa de grande vulto, querem asfaltar a estrada e construir hotéis. Que lhe parece, dona Antonieta? Que diz a isso, Leonora?
Empresa de turismo? Em Agreste, aproveitando a água, o clima, a praia de Mangue Seco? Quem sabe, tudo é possível, por que não? Fizera bem em comprar o terreno na praia, devia aceitar a proposta de dona Zulmira, abandonando a posição intransigente, os preços da terra e dos imóveis podem sofrer súbita valorização, em São Paulo Tieta assistiu a coisas de espantar.
Com seu faro único, Felipe adquirira a preço de banana terrenos e mais terrenos em áreas pelas quais ninguém oferecia nada. Poucos anos depois, ganhava fortunas na revenda. Tieta pediu a Perpétua papel e caneta, escreveu um bilhete a dona Zulmira fechando o negócio, mandou Peto levar.
Decidiu demorar-se em Agreste o tempo necessário para concluir o trato, lavrar escritura, tomar posse da casa. Mesmo sentindo o apelo ardente do corpo a reclamar urgência no retomo, sabendo que o moço sofreria o fogo do inferno na noite insone, ainda assim resolveu cuidar antes do negócio.
Aprendera a não perder a cabeça, a não permitir que xodó por mais forte e exaltante lhe cause prejuízo.
Ascânio prosseguia a traçar as vias do radioso futuro de Agreste. A mudança começara com a chegada das duas paulistas à cidade, tudo se fazendo agora mais fácil, devido à decisão da Companhia do Vale do São Francisco de incluir Agreste entre os municípios com a energia de Paulo Afonso, a Luz de Tieta.
Capítulo onde Tieta busca definir o amor e não consegue Tieta deixa os namorados na porta da rua, sozinhos, livres para a despedida. Da sombra do corredor, porém, espicha o olho para ver o que se passa, onde as mãos vão parar, a força dos beijos, os lábios vorazes, as línguas se enrolando, aqueles primeiros passos no caminho do resto. Decepção completa e inquietante. Viu apenas um roçar dos lábios de Ascânio na face de Leonora, receoso e apressado, aquilo não era beijo coisíssima nenhuma, perdera o tempo a espionar o mais completo e acabado par de idiotas. Da porta, onde demora até perdê-lo de vista, Leonora acena longo adeus, certamente respondido por Ascânio. Mau sinal, não agrada a Tieta o rumo do idílio.
Leonora não correrá perigo maior se terminarem, ela e Ascânio, na Bacia de Catarina, em noite sem lua, por entre a penedia, no bem- bom. Depois, é lavar o xibiu bem lavado, acabou-se. Quando chegar a hora do retorno a São Paulo, derramará algumas lágrimas de tristeza e saudade no ônibus de volta - c'estfinie la comédie, como dizia Madame Georgette e Madame Antoinette repete quando enfrenta xodós e rabichos das meninas.
O perigo reside exatamente nos leves beijos medrosos, nesse namoro tonto, de cabodo, que já não se usa mais. Em Agreste, quando se namora assim, no respeito, contendo os impulsos, é porque se tem em mira noivado e casamento. Casamento, vida em Agreste: ilusões absurdas, sonhos delirantes. Em tais casos, não basta lavar a xoxota bem lavada. A separação custa duro sofrimento, não se reduz a umas poucas lágrimas no ônibus de volta.
Naquele dia, quando Tieta chegara de Mangue Seco, estuante de vida, vibrando de animação ao falar do terreno e da casa na praia, mais magra, o corpo no ponto exato, Leonora caíra-lhe nos braços, murmurando-lhe ao ouvido, ansiosa:
- Preciso muito conversar com você, mãezinha.
Durante o dia não tiveram ocasião, porém, de ficarem a sós. Perpétua sempre presente, a adular a irmã, já não lhe regateava louvores. Antigo poço de iniqüidades, Antonieta passara a ser poço de Jacó, misericórdia dos sedentos, turris eburnea. Para gabá-la gastava até as poucas expressões latinas que decorara em tantos anos de sacristia, antes reservadas à exaltação do Senhor e dos santos, sendo turris eburnea exclusiva da Virgem Maria. Agora tudo era pouco para as virtudes de Tieta.
Na hora do almoço, a mesa completa: Zé Esteves e Tonha, Elisa e Astério, Peto a pedir a bênção à tia, a regalar os olhos saudosos da carnação morena e farta. Fazendo-lhe companhia na praia, quem estava bem situado para brechar até fartar-se, para bispar os mínimos detalhes, a tia à la vontê no biquíni ínfimo, despreocupada, era Ricardo; mas o idiota do irmão desviava a vista para não enxergar, tirado a ermitão, a místico. Devia estar de venda nos olhos em Mangue Seco, o bobalhão; Deus dá nozes a quem não tem dentes, queixara-se Osnar. Falou, pô!
À tarde, foram à casa de dona Zulmira para confirmãr o acerto e de lá ao cartdrio, deixar os dados para a escritura e marcar o dia de assiná-la - quanto antes melhor, pedira Tieta, com pressa de voltar a Mangue Seco. As paredes da choupana - Assim designava a pequena casa da praia - começavam a subir, ela curtia cada tijolo, cada pá de massa, em companhia do sobrinho contagiado por seu entusiasmo. De noite, a sala de visitas se enchera: dona Carmosina, dona Milú, Barbozinha, a tropa do bilhar escoltando Astério;
Ascânio tinha aparecido no fim da tarde, ficara para jantar, não desgrudava de Leonora.
Também dona Carmosina anunciara necessidade imperiosa e urgente de longa conversa reservada com Tieta. Marcaram para o dia seguinte.
Amanhã sem falta! - recordara a agente dos Correios, ao despedir-se. - Mil coisas a comentar. Com os olhos apontava o par de namorados no sofá, distanciados um do outro pelo menos um palmo, a paulista com um sorriso babado de admiração, ouvindo o discurso de Ascânio sobre o radioso futuro de Agreste.
Ascânio, o último a sair, quando já Perpétua se recolhera: às seis em ponto, ajoelhada na primeira fila, a devota ouve missa na Matriz, não pode dormir tarde. Tieta abandona-os na porta, à vontade para a despedida apaixonada. Que fracasso!
Leonora vem sentar-se na cama da alcova, enquanto Tieta desfaz a maquiagem. Abre o coração: apaixonada, que fazer? Paixão roxa, não banal aventura, simples chamego, ela não era disso, mãezinha a conhecia, nesses três anos de Refúgio jamais tivera um caso. Amor, pela primeira vez.
- Me diga como agir, mãezinha. Contar a verdade, não posso.
- não pode mesmo, nem pense nisso. Só se ficasse doida e me tivesse ódio.
- Nunca pensei, como poderia contar? Mas estou desarvorada, sem saber o que fazer. Me ajude nesse transe, mãezinha. Só tenho você no mundo.
Tieta abandona os cremes de limpeza e o espelho, toma das mãos da moça, acaricia-lhe a crina loira, nem às irmãs queria tanto quanto àquela desditosa recolhida no trotoar, a pequena Nora, marcada pela má sorte e todavia capaz de sonho e esperança.
- Eu sei que tu nunca vai contar, conheço minhas cabritas, ai de mim se não as conhecesse. O que tu deve fazer? Aproveitar as férias, divertir-se.
Namore o rapaz, ele é simpático e bonitão, um pedaço de homem. Um pouco ingênuo para meu gosto mas direito. Durma com ele se tiver vontade. Tu deve estar morta de vontade, não é?
Leonora abana a cabeça afirmativamente e logo esconde o rosto nas mãos, Tieta vem sentar-se a seu lado na cama, prossegue:
- Durma com ele, passeie, namore, goze a vida mas não se prenda.
Tome cuidado para evitar escândalo. Só não entendo por que tu ainda não dormiu com ele.
- Ele pensa que sou virgem, mãezinha. Nunca vi ninguém tão crédulo e respeitador. não tenho coragem nem palavras para contar que não sou donzela. Tenho medo que ele se desiluda, não queira mais me ver.
- É capaz. Agreste não é São Paulo, é o cu do mundo, parou no século passado. Aqui, ou bem se é moça cabaçuda ou rapariga de porta aberta. não viu o que se passou comigo? Pai me mandou embora, me mandou ser puta longe daqui. Faz muito tempo mas continua sendo a mesma coisa hoje. Quem sabe, com jeito...
- Que jeito, mãezinha? Ele pensa que sou donzela e que sou rica, filha e herdeira do Comendador Felipe. Fica inibido até para me pegar na mão porque ele é um pobre de Jó e eu sou milionária. Sabe que ele ainda nem se declarou? Insinua umas coisas, suspira, parece que vai falar, engole em seco, fica calado, segura em minha mão, não sai disso. Em Mangue Seco fui eu quem beijou ele. Fora daí, roça os lábios no meu rosto quando se despede e nada mais.
- Eu vi, estava espiando, é de não se acreditar. Coitado do rapaz, deve estar desperdiçando o ordenado na casa de Zuleika para se desforrar, ou gastando a mão se lhe faltar dinheiro. - Sorri para Leonora: - Siga meu conselho: deixe o barco correr, dé tempo ao tempo, vá se divertindo. Pelo menos assim você não se chateia.
- Me chatear? mãezinha, vou lhe dizer: esses dias aqui foram os únicos felizes de minha vida. Estou amando. Pela primeira vez, mãezinha. Com Pipo e Cid foi outra coisa, nem de longe se parece. Já lhe contei, se lembra?
Diante da adolescente massacrada no sórdido cortiço, Pipo, com o nome repetido nos rádios de pilha, a fotografia nos jornais, aparecia como a personificação dos invencíveis heróis das histórias de quadrinhos, dos filmes de aventuras, das séries de televisão. Ser sua garota causava inveja a todas as demais chivetas da rua. Quando ele a chutou, sofrera principalmente na vaidade. Vez por outra podemos dar uma metida, se quiser, dissera Pipo, cheio de si. Isso jamais. não aceitara a humilhação, pretendendo-se a única, a inspiradora dos gols marcados pelo craque nos matches de futebol. Chorara a semana inteira com a gozação da vizinhança mas dele mesmo não sentira falta.
Quando, no inferninho asqueroso onde caçava o miché que lhe garantisse a comida do dia seguinte, encontrou Cid Raposeira na solidão, na droga, no abandono, amarfanhado rosto de Cristo, tão necessitado de companhia e ajuda, vibrara o coração de Leonora, sensível e solidário. Iniciou-se o trajeto do interminável desespero, alternando-se os raros dias de carinho e humildade, com os de loucura e violência desatadas. Menos que companheira e amante, sentira-se enfermeira, samaritana, irmã a cuidar de alguém ainda mais desgraçado do que ela. Casal de párias perdido na metrópole fechada em pedra e em fumaça, sem condições de alegria e felicidade. Um e outro, o glorioso Pipo e o contraditório Cid, nada tinham a ver com o renitente sonho de lar e paz, de carinho, de amor.
- É amor, sabe, mãezinha? Uma coisa diferente. Tudo que eu queria era poder ficar aqui, com ele, nunca mais ir embora.
Comove-se Tieta, pobre Leonora, escorraçada cabrita. Afaga-lhe os cabelos, belisca-lhe a face:
- Não é que eu seja contra, minha filha, é que não vejo jeito.
No jantar em casa de dona Milú, observando Leonora e Ascânio em idéio, Tieta já se preocupara. Fosse simples aventura, beijos, apertos, umas quedas na beira do rio, nos esconsos das rochas, nas areias cálidas de Mangue Seco, bons lugares para descarregar a natureza, não teria maior importância, bastando manter discrição para evitar a língua do povo de Agreste, longa e afiada. Se caísse na boca do povo, paciência. Nora partiria em breve para nunca mais voltar, pouco lhe interessava a imagem que dela guardasse aqueles tabacudos. Mas a moça pretende vida em comum, lar estabelecido, filhos. Ouvindo certa vez Tieta relatar os problemas da protegida, a insatisfação, o desejo de largar o ofício, trocando as larguezas do Refúgio dos Lordes por medíocres limites de casa e marido - de amor, como ela repetia exaltada -, Felipe, experiente e blasê, a classificara de pequeno- burguesa delirante, sem solução.
- Do meio dessa pequena burguesia desesperada é que surgem os marginais, os drogados, os que matam sem razão e os que se matam, os suicidas. não provocam minha simpatia.
Tieta ouvira a explicação, balançara a cabeça, tolice discutir com Felipe, homem de saber e entendimento, merecedor de crédito - não por acaso subira tão alto. Nem por isso deixava de simpatizar com o sonho de Leonora, romântico e piegas. não chegava a entender inteiramente a ânsia a consumir a rapariga, esse arrebatamento, a inconformidade com a situação - aliás privilegiada- em que vivia. Tais problemas jamais se haviam colocado para Tieta, pelo menos de idêntica maneira. Mas, ao contrário de Felipe, sentia ternura e simpatia pela insatisfação da moça, dava-lhe atenção e afeto. Entre as colaboradoras da casa- cabritas escolhidas a dedo para alegrar o ócio de bodes ricos, poderosos, exigentes, muitos deles cheios de manias e taras -, Leonora era a sua predileta. Talvez porque sobrasse a Tieta carinho a dar, devotamento disponível, tinha para com a infeliz rapariga desvelos de mãe para filha. ao ver de Felipe, pequeno- burguesa desesperada, sem solução, na opinião de Tieta, tola, sonhadora, sentimental. Como jamais conseguira ser sentimental e tola, apesar de sonhadora, por isso mesmo estimava a atitude da moça agarrada à ilusão de um dia poder mudar a vida, construí-la conforme seus modestos desejos.
Quando, ainda há pouco, da sombra do corredor, espionava a frustrada despedida, Tieta deixara escapar um suspiro: Deus do Céu, por que tanta tolice, tanta ânsia inútil? A vida pode ser simples e fácil, agradável, excitante, quando se sabe levá-la com audácia e prudência: um marchante, um protetor para companhia permanente, para fornecer dinheiro à farta, para garantir sólido pecúlio na velhice, exodós para a cama, quantos o corpo reclamar, a boa vida, alegria e riso que tristezas não pagam dívidas.
Na Bacia de Catarina ou nos cômoros de Mangue Seco, no escuro das grutas ou diante da imensidão do mar, poderia Nora saciar a sede de amor nos braços de Ascânio. Assim Tieta estava fazendo nos braços de Ricardo, no areal, na cama do Comandante. A seu modo, também ela andava apaixonada, e como! Apenas, ao contrário do que sucedia com Leonora, a paixão pelo sobrinho não a perturbava, dando-lhe apenas alegria. Paixão roxa, também:
estava devorando o seminarista, esfomeada, sequios - não era amor, por acaso?
Mas, depois, quando passasse a fúria do desejo, bastaria lavar o xibiu bem lavado para esquecer, até que novamente crescesse em labareda dentro dela a brasa acesa, inapagável, da paixão. Paixão, amor, que diferença existe? Com Felipe fora diferente. Durara tantos e tantos anos, felizes sempre, ele superior e generoso, ela dedicada e sabida, ternos amigos, cálidos amantes, senhor e serva. Serva ou rainha? Seria isso o amor tão falado. Provavelmente. não impedira, não obstante, as paixões, nem sabe quantas. Mundo complicado, difícil de entender, uma confusão.
Acarinha Leonora, a cabeça da moça repousando em seu colo, a cabeleira desnastra rolando sobre o lençol. Tieta necessita tomar providência rápida para colocar nos trilhos certos a vida de Leonora, para que as férias terminem alegremente como começaram, para que esse namoro bobelo se transforme em arrebatada paixão, saia do atoleiro onde se afundou para erguer-se em chamas na beira do rio, nos cômoros de Mangue Seco. Para que o amor, como deseja Barbozinha, seja motivo de vida e não de morte.
A mão materna nos cabelos e a voz de acalanto nos ouvidos acalmam a agitação de Leonora.
- Pode dormir tranqüila, cabrita, que eu vou cuidar de tua vida.
Da família reunida no cartório para a solenidade da escritura para assistir a solene cerimonia da escritura definitiva de compra E venda da casa antes de propriedade de dona Zulmira, que passará a pertencer, após tais formalidades e o respectivo pagamento, a dona Antonieta Esteves Cantarelli, a família Esteves encontra-se reunida no cartório do doutor Franklin Lins, à exceção do moço Ricardo, seminarista em férias em Mangue Seco, ocupado com encargos da tia paulista e rica (e louca).
Apoiado no bordão, a mascar fumo de corda, de tão contente, o velho Zé Esteves não cabe no larguíssimo terno de festa, feito sob medida nos distantes tempos de abastança, cortado em boa casimira azul de contrabando, mandado tingir de negro para o casamento de Elisa, retirado do baú para a chegada de Tieta. Pela segunda vez o veste em poucos dias, volta a ser alguém. Muito em breve estará habitando casa de qualidade, em artéria central, retirado pela filha pródiga do casebre de canto de rua, de moradia e endereço desmoralizantes.
Se dependesse dele, mudaria hoje mesmo, apenas dona Zulmira acabasse de retirar seus tréns. Antonieta, porém, decidira fazer alguns reparos na casa, conserta rbanheiro e latrina, pintar as paredes, retelhar, luxos de paulista; ele resmungara mas não discutira: quem paga, manda.
Sob o comando da filha, sua vida se refaz. No cartório, ouvindo doutor Franklin ler os termos da escritura, controlando as horas no relógio de ouro, marca Omega, sinal de sua restaurada importância, Zé Esteves escuta berro de cabras que se aproximam aos saltos sobre os cabeços dos morros, enxerga terra e rebanho. Junto a ele, humilde sombra do marido, Tonha, silenciosa e conformada. Casebre acanhado e pobre, vivenda ampla e rica, rua de frente ou beco lamacento, tudo lhe serve e basta, desde que esteja em companhia do amo e senhor. Há muito aprendeu a obedecer e conformar-se.
Perpétua, rígida no luto inapelável, traja vestido caro, reservado para a festa da Senhora Sant'Ana; na cabeça a mantilha trazida por Leonora. Atenta, disposta a impedir que na escritura seja introduzida cláusula capaz de prejudicar os interesses de seus filhos, sobretudo os de Ricardo, herdeiro presuntivo. Com o Velho, todo cuidado é pouco: passa o tempo bajulando Tieta, insinuando misérias contra as duas outras filhas, pedinchando. Ainda na véspera, a arrastara para um canto da casa, fora murmurar segredos, intrigas certamente, na tentativa de jogá-la contra as irmãs. Perpétua não perde uma palavra sequer das cláusulas e adendos.
Pela mão, mantém seguro o filho Peto. Esgrouvinhado, maldizendo os sapatos- usa alpargata aberta quando não pode andar descalço-o menino não entende por que motivo a mãe o obriga a estar ali, parado, envergando meias, camisa limpa, a ouvir o doutor Franklin ler, com a voz mais descansada do mundo, um rol de páginas de nunca acabar. Se a tia e a prima Nora ao menos estivessem à vontade, nos robes colantes, mal fechados, a vista ajudaria O
a passar o tempo. Mas uma e outra puseram-se nos trinques, tão compostas nunca as vira. Um saco!
Elisa e Astério escutam, reverentes; ela, o olhar de adoração posto em Tieta; ele, de cabeça baixa, fitando o chão. Nem mesmo Leonora, semi-escondida no fundo da sala, pode competir com o porte majestoso de Elisa:
a massa de cabelos negros, o busto erguido, as ancas altaneiras, elegante como se fosse desfilar numa passarela, o ar entre modesto e altivo, um deslumbre.
Casa em Agreste, tenha quem quiser, ela não. Da generosidade da irmã rica, aguarda mercê muito diferente: convite para acompanhá-la a São Paulo, para ir de muda, para irem ela e o marido, pois sozinha Tieta não a levará. Emprego para Astério numa das empresas da família Cantarelli; para Elisa, um lugar no coração e no apartamento da irmã, se possível o ocupado até agora pela enteada Nora.
Tudo quanto Elisa deseja é dar as costas a Agreste, limpar no caminho a poeira dos sapatos, nunca mais voltar. Há de conseguir: Tieta veio para ajudar a todos eles, transbordante de bondade e compreensão. Ademais, Elisa recorrera aos bons ofícios de dona Carmosina, amiga provada, a protegê-la desde menina, e íntima de Tieta. Pedira-lhe para interceder junto à irmã, possibilitando a realização do projeto de mudança. Em São Paulo a vida a aguarda, a verdadeira, repleta de acontecimentos e sensações, não essa apatia de Agreste, esse cansaço do sem jeito. O doutor Franklin emposta a voz nos termos jurídicos, Elisa ouve o excitante rumor das ruas atulhadas de automóveis luxuosos, num frêmito escuta a fala cariciosa dos homens elevando-se à sua passagem quando à tarde comparece à Rua Augusta, indo de compras com Tieta.
Astério ouve pensativo, um tanto contrafeito. O sogro vai ter onde habitar com decência e conforto, na casa da filha; será como se possuísse casa própria. Filha magnânima, Tieta. Outra qualquer guardaria ressentimento do pai que a pusera no olho da rua, da irmã que a delatara. Ela, não. Regressara com as mãos pejadas de dádivas para cada pessoa da família. Durante dias e dias, Astério se perguntara por que, na distribuição dos benefícios, naquele esbanjamento, a cunhada ainda não se fixara na irmã mais moça e no cunhado, reduzidos aos presentes da chegada. Sendo eles os mais precisados, no entanto, pois Zé Esteves, se nada tinha de seu, recebia farta mesada e praticamente não gastava dinheiro, barraco e comida custando-lhe ninharia, enquanto ele e Elisa viviam em eterno aperto, a loja e a ajuda dando na exata.
Perpétua não precisa de auxílio, tem de um tudo, mansão onde residir, casas de aluguel, pensão do marido, dinheiro na Caixa Econômica, em Aracaju, e a proteção de Deus. A proteção de Deus, sim, ria quem quiser- não lhe tem faltado. ao que Elisa soube e lhe contou, a ricaça abrira em banco de São
Paulo caderneta de poupança para os dois sobrinhos. Ele e Elisa nem filhos possuem, sobrinho a merecer a proteção da tia milionária, Toninho morrera e, não fosse dona Carmosina gostar tanto de Elisa, não se sabe como teria terminado aquele assunto: a mentira vil, a notícia surrupiada, chantagem suja.
Há algum tempo, no começo das prolongadas negociações para aquisição da casa de dona Zulmira, a cunhada propusera que, realizada a compra, ali fossem morar juntos, os dois casais, o Velho e mãe Tonha, ele e Elisa: na residência vasta e confortável cabiam os quatro e sobrava espaço. A idéia não o seduzira, agradando ainda menos a Elisa; Tieta ouvira as razões da recusa e com elas concordara. Diante disso, Astério ficara à espera de uma palavra da caridosa parenta referente à aquisição de casa própria para a mana mais moça, a quem dava mostras de tanta estima. Espera vá, jamais a cunhada voltara a conversar com eles sobre moradia. Somente na véspera Astério descobrira o motivo desse silêncio. ao voltar do bilhar, à noite, comentando a escritura a ser assinada no dia seguinte, a compra da casa de dona Zulmira finalmente decidida, Astério previra, esperançoso: quem sabe, agora vai chegar a nossa vez. Em resposta, ouvira a espantosa revelação, tomara conhecimento dos alarmantes planos de Elisa. A esposa lhe explicara dever-se a reserva de Antonieta ao desinteresse demonstrado por ela, Elisa, a respeito de casa própria em Agreste. Do meio dos lençóis, a voz fustigara, decidida, insensível, quase agressiva:
- Eu disse a Tieta que não queria ter casa própria aqui, em Agreste. Se ela quiser fazer alguma coisa por nós dois, que nos leve para São Paulo, arranje para você um bom emprego numa das fábricas, nos ceda um quarto em seu apartamento, é um apartamento enorme, duplex. Duplex quer dizer que tem dois andares, um sobrado.
Astério respondera com um gemido: a dor no estômago, ressurgindo, repentina e violenta. As palavras de Elisa soaram-lhe como um cantochão de funeral. Rasgaram-lhe as entranhas. Emprego em São Paulo, no escritório de: uma indústria? Monstruosa perspectiva! Sair da vida tranqüila de Agreste r;
Ir para enfrentar a correria da cidade imensa, sentar-se diante de uma escrivaninha a fazer contas ou a anotar relatórios, das oito da manha às seis da tarde, sem liberdade de ir e vir na hora que bem entendesse, sem amigos, sem o bar de seu Manuel, sem a mesa do bilhar, desgraça maior não podia ameaçá-lo.
Em Agreste, a vida do casal decorria na pobreza, é verdade, a loja mal dava para o essencial, quando dava, mas com a ajuda de Antonieta iam atravessando sem problemas, havia o suficiente para a casa, a comida e ainda sobrava para o cinema e para as revistas de Elisa. Ademais, à exceção de meia dúzia de privilegiados, todos na cidade eram remediados ou pobres e a vida transcorria sem percalços, na maciota. Tinha o moleque para ajudá-lo na loja,
Elisa tinha a moleca para ajudá-la em casa. Apenas o estômago o aperreava todas as vezes que o movimento comercial decrescia e um título a pagar começava a contar juros mas o médico, na Bahia, lhe garantira não ser câncer e sim nervosismo, não havia por que preocupar-se. Fora disso, vivia satisfeito, na boa companhia dos camaradas, das partilhas no bilhar Brunswick, com as apostas, as disputas, as vitórias, taco de ouro, a prosa agradável, poucos afazeres e a mulher bonita, a mais bonita de Agreste, à espera na cama, à disposição para as noites em que se punha nela, sempre na mesma clássica posição, quase respeitosamente, como devem praticar tais atos esposos que se prezam.
Quando solteiro, fora freguês assíduo da pensão de Zuleika Cinderela, amarrando rabichos, sempre por mulher de traseiro atrevido, de ancas bem torneadas, vistosas. Na cama, não recusava variações; constando indusive ser por demais chegado a comer bunda de mulher rapariga que dormisse com ele, se já não sabia, logo ia ficar sabendo dessa sua preferência. Quando ele aparecia na sala da pensão, onde dançavam, corria a voz entre as pequenas:
segurem o cu, Astério está na casa. ao que consta, não se reduzira a subilatórios de mulheres- da- vida, descadeirando igualmente várias solteironas, tendo merecido em priscas eras o apelido de Consolo do Fiofó das Vitalinas.
Casado, jamais lhe passara pela cachola possuir Elisa senão como conveniente, no buraco próprio e com decência, ele por cima, ela por baixo, papai e mamãe, como classificam as putas na pensão, posição de fazer filho, ou seja, própria para esposo e esposa. Tampouco lhe aflorara o pensamento montá-la por detrás, indo-lhe às traseiras magníficas, ancas de égua, sem igual em toda a redondeza. não que lhe faltasse vontade: fosse ela rapariga ou moleca, roceira ou solteirona, e ele não perderia pitéu assim apetitoso, aquela suntuosa bunda, motivo fundamental da paixão a dominá-lo, levando-o a noivado e casamento. Mas esposa não é para descaração, a mulher da gente deve ser respeitada, posta entre as santas, num altar. Quando muito, uma vez na vida outra na morte, na hora do gozo, elevando-o ao infinito, dando-lhe nova qualidade, Astério corre a mão nas ancas da mulher, em furtivo agrado.
Leitora das revistas de fofocas nas quais são cantados os feitos dos galas de rádio, televisão, cinema, Elisa ressente-se do aparente desinteresse sexual do esposo, de fornicação escalonada, burocrática- burocrata do sexo, assim a fogosa atriz classificara o ilustre comediante do qual vinha de se desquitar, em sensacionais declarações prestadas à revista Amiga -, da maneira única, repetida, sem as variações tão badaladas. O próprio Astério, de quando em vez, relatando a última de Osnar ou de Aminthas, de Seixas ou de Fidélio, se refere a outras curiosas formas e maneiras, sobre as quais tudo sabe dona Carmosina - ah!, infelizmente apenas na teoria, minha Elisa, quem me dera a prática! Quem lhe dera também a Elisa, talvez por isso injusta com o marido.
Desinteresse da parte dele não existe e sim a convicção de que amor de esposo e esposa tem de exercer-se pudico, isento de arroubos, de maus pensamentos e de extravagâncias, respeitoso. Represado, Astério contenta-se em set proprietário daquele rabo, de espiá-lo quase às escondidas, enquanto Elisa muda a roupa, de sentir-lhe a proximidade na cama. Digno, contido esposo.
Bastavam-lhe Agreste, a vida pacata da cidade, os prazeres, mínimos, a boa companhia, não queria mais. São Paulo? Emprego em escritório, bom ordenado, horário rígido? Quarto em casa da cunhada? Deus o livre e guarde.
Noite de discussão áspera e desagradável, Elisa perdera a cabeça e o acusara de indiferente e molengas, de egoísta a pensar unicamente nos próprios interesses, sem ligar aos dela. Para ele, um pamonha, o marasmo de Agreste ' podia ser o ideal de vida, mas ela, moça e viçosa, tinha ambições maiores: a cidade grande, plena de possibilidades, vida digna de viver-se. Onde, aliás, Astério, se quisesse, poderia progredir, tornar-se alguém, ganhar dinheiro, afirmar-se. Mas ele não a compreendia, não fazia caso dela, tratando-a como se ela fosse um pedaço de pau, um animal sem serventia, um trapo.
Segurando a barriga para conter as dores, Astério fugira para a sala. Elisa terminou vindo buscá-lo, ao ouvir-lhe os gemidos pungentes. Encontrou-o esvaído, pálido, cor de cera, numa daquelas violentas crises de estômago.
Dera-lhe remédio, pedira desculpas pelas más palavras, da exaltação passou às lágrimas. não recuara no entanto da disposição de usar de todos os recursos; junto à irmã para que ela os levasse a viver em São Paulo. Verde, a boca de fel, ele nada respondera mas entre os engulhos decidira tomar medidas urgentes para impedir a concretização do projeto, sem que Elisa viesse a saber e a responsabilizá-lo pelo fracasso dos monstruosos planos. Enquanto ouve doutor Franklin, medita e resolve.
Discreta, junto a uma estante onde se acumulam papéis, encontra-se a formosa Leonora Cantarelli, enteada da promitente compradora. Um sorriso suave no rosto delicado, talvez, entre todos os presentes, seja ela quem mais deseja possuir casa em Agreste, mesmo modesta, em rua sem calçamento, mas com um pequeno jardim plantado de cravinas e resedás, um coqueiro carregado no quintal, varanda onde estender a rede no calor da tarde. Ninho para ela e seu marido, marido com ou sem papel passado, não impunha exigências desde que fosse Ascânio Trindade. mãezinha prometera se ocupar do caso, dar jeito em sua vida, Madame Antonieta não é mulher de falar em vão. Leonora sente-se confortada, espera; escuta a leitura com paciência, viril de obtida em duro aprendizado.
Do outro lado da barricada, ouvindo a interminável lengalenga da escritura, dona Zulmira, velhíssima, ar de ave de rapina, óculos fora da moda escanchados no nariz adunco, o terço enrolado no punho magérrimo, no pescoço um medalhão com o retrato do finado marido quando jovem e noivo.
Sorri contente, a casa, convertida em dinheiro, servirá à salvação de sua alma e à glória da Senhora Sant'Ana, não irá parar nas mãos excomungadas de João Felicio, amaldiçoado sobrinho. O coisa ruim não poderá fazer com suas últimas vontades o que estavam fazendo com o testamento de seu Lito os maus parentes, discutindo-lhe a validade na justiça, tentando roubar a Santa Madre Igreja. Acolitando-a, padre Mariano: o dinheiro resultante da venda da casa destina-se a missas no altar- mor da Matriz diante da imagem da padroeira e em beneficio da alma da doadora, mas somente após sua morte.
Antes, depositado em mãos de Modesto Pires, renderá juros mensais que ajudarão às despesas de dona Zulmira, servirão para médico e remédios, conforme consta de documento anexo à escritura que o doutor Franklin está terminando de ler.
Emboscado no passeio em frente, o sobrinho João Felicio espia. Pequeno comerciante de secos e molhados, o rosto semelhante ao da tia, nariz curvo, queixo duro, gavião pronto a atacar a presa. A presa acaba de lhe escapar, levada céu afora pela santa, ídolo e superstição dos católicos romanos. Na casa confortável que esperara ocupar em breve - a Velha não pode durar muito - com a mulher e o filho pequeno, irá viver Zé Esteves, com a presunção, a arrogância e a mulher, pobre infeliz. Também de quem a culpa se ele, João Felicio, se casara contra a vontade da tia com moça protestante, filha do pastor da Igreja Batista de Esplanada? Católica à maneira antiga, desconhecendo as teses ecumênicas, para dona Zulmira protestante é sinônimo de herético, inimigo, raça perdida e condenada, com pés de bode. Os crentes são filhos do demônio aos quais os bons católicos devem negar pão e água, já que infelizmente se acabou a Santa Inquisição.
Terminada a leitura, doutor Franklin convida as partes interessadas, para o ato da assinatura. Como testemunhas, apõem suas irmãs Astério e o Padre e depois apertam-se as mãos, em mútua felicitação. Dos fundos bolsos da saia negra de gorgorão de seda, Perpétua, depositária provisória, saca rolos e rolos de dinheiro, entregando-os ao doutor Franklin, todos os olhos acompanhando a operação. O tabelião conta nota por nota, antes de passá-las às mãos de dona Zulmira.
Sorridente, Tieta remói uma apreensão: terreno e casa, comprados e pagos, escriturados em nome de Antonieta Esteves Cantarelli, pertencem sem sombra de dúvida e discussão a Antonieta Esteves, simplesmente? O advogado consultado em São Paulo, antes da viagem, garantira que sim, desde que existissem testemunhas de compra e pagamento, tratando-se então de simples engano de nome, facilmente corrigível. Quem o dissera não fora um corrigível qualquer, de porta de xadrez, e sim o Procurador- Geral do Estado, freguês constante do Refúgio, consultor jurídico de Madame Antoinette.
Do fim da e arde no areópago Tieta, depois de se despedir dos parentes e de ter contratado os serviços do mestre-de-obras Liberato, recomendado como excelente por Modesto Pires, consegue chegar sozinha à porta da Agência dos Correios para a conversa reservada, conforme prometera na véspera a dona Carmosina.
Finalmente as duas amigas irão passar em revista os últimos acontecimentos;
as duas interessadas em ouvir e contar, ruminando idéias e planos, escondendo, uma e outra, segundas intenções. ao ver Tieta subindo o degrau da porta, dona Carmosina larga o jornal e exclama:
- Enfim, sós! - ri, estendendo os braços para acolher a visita ilustre, figura importante. - Salve a minha líder!
Por demais ilustre e importante. não demoram sem companhia nem por "cinco minutos. Ainda ajeitam cadeiras, trocam palavras de afeto, Tieta perguntando como vai passando mãe Milú - costuma dizer que dona Milú é sua segunda mãe -, quando surgem os primeiros conhecidos e na porta do Areópago juntam-se os curiosos. Todos querem ver e saudar a conterrânea donatária da capitania de São Paulo, mandachuva no país. Ficam parados, sorrindo para ela. Pedintes que não a encontraram em casa, de faro aguçado pela necessidade, descobrem-na na Agência, cada qual recita história mais triste. Triste e verídica. Com dois deles, Tieta marca encontro para a manha seguinte, em casa. Dona Carmosina abana a cabeça, assim não dá. ao mesmo tempo, deixam- na alegre a gentileza e a paciência de Tieta a ouvir e ajudar os pobres, a dialogar com os ociosos que apenas desejam falar com ela, felicitá-la pela luz. Rindo. Antonieta desabafa:
- Essa história da luz já está me enchendo. ..
- Não fale assim, minha negra. O povo manifesta sua gratidão, é uma gente boa, ainda não está corrompida pela civilização.
Do passeio, a voz do comandante Dário vem liquidar as últimas esperanças de dona Carmosina. Ainda não será desta vez que conversarão a batons rompus - de quando em quando Tieta emprega uma expressão francesa; no Sul, conquistou, certamente sob influxo do marido, nível de cultura desabitual nos cafundós destes sertões, fez-se realmente uma senhora, não apenas pela elegância e riqueza, também pelo intelecto; dona Carmosina sente-se orgulhosa da amiga e assim devem sentir-se todos os cidadãos de Agreste.
Tomando de uma cadeira e nela escanchando as pernas, o Comandante demonstra sua decisão de ali se demorar batendo papo. Deseja saber quando Tieta pretende voltar a Mangue Seco. Ele e dona Laura regressarão no dia seguinte, logo depois do almoço, não quer aproveitar a canoa? Aproveitará, sim. Concluída a compra da casa, assinada a escritura, efetuado o pagamento, nada de especial a prende a Agreste. O Velho se encarregará de dirigir a limpeza e a pintura da vivenda, alguns consertos indispensáveis, antes de tudo a construção de banheiro e latrina decentes. Os que existem estão inservíveis.
Há muito dona Zulmira toma banho em bacia, faz cocô em penico. O Comandante escuta a relação das obras, dos tais pequenos consertos, prevê:
- Um mês de trabalho, daí para mais... Liberato é descansado.
- não com Pai de fiscal, em cima dele... - garante Antonieta. -o Velho está doido para mudar-se, seu Liberato vai andar de rédea curta.
- Fez empreitada ou vai pagar pelos dias de trabalho?
- Comandante, pelo amor de Deus, não se esqueça que nasci aqui.
Empreitada, é claro.
- Nesse caso, um mês. E Liberato, o que tem de descansado tem de competente. Nesse particular, pode ficar tranqüila.
- Veja como são as coisas, Comandante. Considero que fiz uma boa compra, adquirindo a casa de dona Zulmira...
- Cara para os preços daqui...
- Ainda assim. Custou um bocado de dinheiro, é uma casa ótima, vai entrar em obras, mas eu só penso na cabana de Mangue Seco. Minha cabeça está lá. Essa sim, me apaixona. não quero viajar sem que ela esteja de pé.
- O povo de Mangue Seco ainda é mais descansado do que o daqui.
Praia, sabe como é. Com aquele ventinho, não dá mesmo para se trabalhar muito...
- Por isso quero voltar logo, para dar um empurrão. Cardo não é o Velho, não é de dar bronca em ninguém... O pobre deve estar pensando que a tia o abandonou e foi embora para São Paulo. Menino de ouro, esse meu sobrinho, Comandante.
Os olhos brilham quando ela fala do sobrinho. Dona Carmosina e o marujo concordam com o elogio. Deus fora extremamente generoso com Perpétua: não apenas a retirara do barracão, milagre considerável, dera-lhe bom marido e bons filhos. Exercendo a arte sutil de falar da vida alheia, dona Carmosina e o Comandante regalaram-se durante alguns minutos considerando a bondade de Deus na premiação das virtudes eclesiásticas de Perpétua.
Eclesiásticas? O adjetivo para as virtudes de Perpétua devia-se a Barbozinha 'ï. e dona Carmosina o encontra poético e perfeito. Assim, em prosa e riso, corre o tempo. não adianta Tieta dizer que viera por uma noite e já se encontra há três dias - e ainda, imagine!, não tivera tempo para conversar uns assuntos urgentes com Carmô. Para fazê-lo se encontra ali, na Agência, mas amanhã retomará sem falta a Mangue Seco.
O Comandante nem parece ouvir a insinuação, explicando que Ricardo, estando onde está, em férias no próprio paraíso terrestre, só tem razões para sentir-se feliz. Enquanto ouve o Comandante, empolgado, a perorar sobre seu tema predileto, a beleza da praia de Mangue Seco, Tieta pensa ao pequeno Ricardo abandonado no colchão de crina, na imensidão selvagem das dunas sobre o mar. No paraíso, Comandante, mas curtindo as penas do inferno!
Deve estar plantado no cômoro mais alto, buscando descobrir nas lonjuras do rio sinal de lancha, ouvir ruído de motor. Ela tampouco deseja outra coisa senão descer a correnteza, atravessar a arrebentação da barra, desembarcar em Mangue Seco, correr para os braços de seu menino, sentir-lhe os pêlos arrepiados nas pernas e braços musculosos, no peito adolescente, o calor, a vibração do corpo, a timidez ainda não de todo vencida, o ímpeto, o mastro do saveiro erguido, as velas desatadas. As últimas noites, rolando sozinha no leito da alcova, tinham sido insones e agoniadas. Para acalmar-se, findara por deitar-se na rede, no antigo gabinete do doutor Fulgêncio, onde Ricardo dormira. Buscando a lembrança do sobrinho, encontrou sinais evidentes da batalha travada com o Demônio na rede onde ele a desejara contra a própria vontade, onde a tivera nua, em sonho voluptuoso, e não conseguira possuí-la por não saber como agir, pesadelo horrendo. Ali o donzelo seminarista começara a perder a castidade. Tieta espojou-se na rede, tocou a mancha branca, gemeu, cabra em cio.
Outro a aparecer para a prosa regalada, impedindo a conversa Intima e essencial: Ascânio. Chega acompanhado por Aminthas e Seixas. O Comandante não perde a ocasião de criticar as iniciativas do patriótico secretário da prefeitura, ameaçadores projetos turísticos, felizmente mirabolantes.
- Mirabolantes, uma conversa - protesta Ascânio. - a qualquer momento, o homem volta...
- Com a boazuda, espero... - corta Aminthas.
...para definir os planos, tenho certeza.
Comandante Dário eleva as mãos aos céus:
- Para terminar com o sossego da gente. Vou cavar trincheiras em Mangue Seco, armar barricadas. Quando esses nudistas aparecerem lá, recebo à bala, como Floriano ameaçou receber os ingleses.
- Nudistas? - interessou-se Tieta.
- Exatamente, não soube?
- Soube do casal que esteve aqui e foi a Mangue Seco...
...e lá chegando, tiraram a roupa e bumba! Na água, nuzinhos como Adão e Eva. Correndo praia afora...
Irreprimível frouxo de riso sacode Tieta, não se contém. Pensa em Ricardo já tão violentado, ainda por cima às voltas com nudistas. Era capaz de confundi-los com diabos, vindos dos infernos, para sacrílegas bacanais em Mangue Seco, missas negras, para consumar a definitiva condenação de sua alma. Reduzindo a zero os efeitos da longa pregação da tia, empenhada em acalmar seus temores, restaurando-lhe o ânimo e a confiança.
- Será que Ricardo viu essa gente nua?- pergunta, quando consegue controlar o riso.
Ao imaginar o seminarista em companhia do incrementado casal, todos riem, inclusive Ascânio. Comandante Dário conclui, vitorioso.
- É o que eu digo: Perpétua e os padres, o bispo Dom José, você, Tieta, todo mundo cuidando da inocência do menino e os amigos de Ascânio liquidam todo esse esforço numa tarde. De que adianta você zelar pela castidade de seu sobrinho? Ascânio importa a devassidão, entrega Mangue Seco aos proxenetas, nosso destino é o lenocínio...
Ascânio não se comove com o trágico panorama traçado pelo Comandante.
- Quando os terrenos valorizarem, a Toca da Sogra valer uma fortuna, o Comandante vai me agradecer e a senhora também, dona Tieta. Fez negócio na hora certa, os preços dos terrenos vão subir.
- não há preço que pague minha paz! - conclui, insensível, o Comandante. Volta-se para Tieta. - Então, amanhã logo depois do almoço, aí por volta de uma da tarde, de acordo? Vamos aproveitar esses últimos dias, antes que Ascânio transforme Mangue Seco em Sodoma e Gomorra.
- Vai amanhã, dona Antonieta? - pergunta o acusado secretário da prefeitura. - não esqueça que no outro sábado é a inauguração da praça e a senhora é a madrinha da festa.
- não esqueço, não. Pode contar, não faltarei. Volto a tempo.
Se não voltar, irão buscá-la à força, anuncia Aminthas. Ele e Seixas ali presente, com Astério, Osna regrumete Peto estão armando uma expedição punitiva para raptá-la na praia, trazê-la de volta. Mangue Seco é aquela maravilha, ninguém pode negar a evidência, praia ótima para passeios, piqueniques, uiquiendes, o banho de mar, a barra, as dunas, a vista, mas daí a demorar-se lá semanas inteiras quem vem a Agreste com tempo medido, isso seus concidadãos não podem tolerar. Dona Carmosina concorda e aplaude a idéia: uma expedição, quem sabe, no próximo domingo? Que diz a isso, Seixas?
- Bom, muito bom. Vou e levo minhas primas - aprova Seixas, opinando pela primeira vez na discussão.
A conversa reservada fica para a noite. Dona Carmosina suspira: mas, sem falta, heim! Se houver outro adiamento ela vai espocar, está inflada de assuntos, graves e excitantes. não lhe passa pela cabeça, porém, que a maior interessada na conversa é Tieta, apenas não demonstra.
Da conversa no caminho do rio Tieta passeia os olhos pelo céu, convertera-se em minguante a lua cheia que iluminara o areal de Mangue Seco mas faíscam estrelas aos milhares, inumeráveis, ela não se cansa de contemplá-la s, de admirar esse firmamento como já não existe nas cidades do Sul. Na cidade de São Paulo, onde vive e labuta, encoberto pela fumaça da poluição, é negrume o firmamento.
- Estou fartando a vista no céu de Agreste, Carmõ. Lá, não tem nada disso. Lá o céu acabou.
Para conversarem a sós, o único jeito foi fugir da casa repleta enquanto Barbozinha, invencível, atravessava o pantanal de Mato Grosso à frente de um regimento da Coluna Prestes, após haver sido um dos Dezoito do Forte, o único a escapar miraculosamente: um a mais, um a menos não aumenta o número, continuarão dezoito, essa a grandeza das legendas. Aminthas advertiu o bardo heróico:
- Cuidado com a língua, meu poeta. Que você seja o décimo- nono ou o vigésimo- terceiro dos Dezoito, não vejo mal além dos arranhões na verdade histórica. Mas, ao se meter na Coluna Prestes, passa a correr perigo de cadeia.
Por muito menos, andaram encanando gente em Esplanada.
(Zuando dona Carmosina chegou para a conversa reservada, encontrou a sala de visitas cheia de amigos, a varanda ocupada por Leonora e Ascânio, sobrando apenas o recurso da fuga. Aproveitando a deixa de dona Carmosina:
aqui a gente não vai poder conversar, tenho muita coisa a lhe falar mas não na vista desse povaréu, como se há de fazer?, Tieta propôs a retirada. Haviam escapado pelos fundos da casa, sem que ninguém se desse conta. Agora, andam no caminho do rio:
- Só que lá, Carmô, se ganha dinheiro. Quem quiser trabalhar, tiver disposição, pode fazer seu pé de meia. Aqui, a pobreza é demais, eu já tinha me esquecido do tamanho.
Tieta toma o braço de dona Carmosina, as duas amigas marcham em direção ao ancoradouro, ouve-se na sombra o rumorejar ainda distante da correnteza do rio. A brisa da noite as envolve, chegada do mar, das bandas de Mangue Seco onde Ricardo espera, certamente postado no alto das dunas, buscando enxergar sinal de luz na distância, crucificado em medo e desejo, em pecado e saudade, dilacerado.
- Aqui a pobreza é por demais, a começar por minha gente. Vivem tão apertados...
- Perpétua até que não... - retifica dona Carmosina. - Todo més coloca dinheiro na Caixa, em Aracaju, não é nenhuma tola.
- não pense que não sei, Carmô, não nasci ontem, conheço as cabras de meu rebanho e a que mais conheço é Perpétua. Sei que Ricardo estuda de graça, o Padre arranjou com Dom José, sei que Peto está no Grupo Escolar, não paga nada, sei mais do que ela e você podem imaginar. Mas, nem por isso, nego minha ajuda. Afinal, o que ela tem é tão pouco, só é alguma coisa em comparação com a pobreza dos outros, mas para o futuro dos meninos não é nada. Os meninos são uns amores, Ricardo é estudioso, compenetrado, sério, vestido de batina fica tão engraçado, parece um anjo torto. - Fita a velha amiga. - Mandei abrir uma caderneta de poupança em São Paulo em nome dele, como aliás você sabe...
- Eu sei? Que história é essa? não sei de nada, você não me falou, como havia de saber? - dona Carmosina reage nervosa, quaseinsultada com a indireta.
Tieta enche o caminho com uma risada alegre, divertida, aperta o braço da companheira, afetuosamente:
- Sabe porque leu a carta que eu escrevi à gerente do meu negócio mandando ela ir ao banco, abrir a caderneta, fazer o depósito. não me diga que não leu, Carmô, porque eu não acredito. Se eu fosse você, também lia.
A princípio confusa, sem resposta, dona Carmosina termina contagiada pelo riso da amiga, reclama:
- Também nunca vi cartas mais discretas, mais reservadas que as suas.
Não contam nada, nem as que você escrevia para a família nem as que escreve para São Paulo. Nunca vi tanta avareza de palavras: faça isso, faça aquilo, como vão as coisas, a clientela, firme? E as meninas, como se comportam? Até agora não descobri que espécie de negócio você tem, além das fábricas. Dessas todos sabem.
- Não há segredo, Carmô, apenas sou ruim de escrita, quanto menos escrevo menos erro. Além disso, não gosto que meus assuntos andem na boca do povo, ninguém precisa saber dos ganhos da gente; eu acredito em mau olhado. Mas a você, não tenho por que esconder. O que eu possuo em São '° Paulo é uma butique de luxo, com preços muito caros, para gente da alta sociedade, a clientela é de primeira ordem, rende um bom dinheiro. As meninas são as vendedoras, bonitas, elegantes, ganham bem. Por isso mesmo, por causa da freguesia tão chique, não quero gente de Agreste aparecendo por lá. Imagine só, Carmô, a loja cheia, aquela nata de São Paulo, tudo podre de rico, e me aparece o pessoal daqui... Por isso nunca mandei endereço. Nas fábricas não me importo que falem, que inventem o que quiserem, sabe por quê? Porque nas fábricas nada tenho, nem participação. Quando Felipe morreu, eu fiquei com os apartamentos, os imóveis e a butique que, aliás, já era minha, estava em meu nome. - No caminho mal iluminado, busca enxergar na fisionomia da amiga se a explicação fora convincente ou não.
Dona Carmosina bebera-lhe as palavras, uma a uma. Assídua leitora de romances policiais, admiradora de Agatha Christie, sentia-se a própria Miss Marple perdida em Sant'Ana do Agreste. De dedução em dedução, espremendo as células cinzentas, partindo de pistas mínimas, tinha chegado à verdade: nada do que Tieta agora lhe contara constituíra surpresa para a presidenta do Areópago:
- Exatamente o que eu imaginava, butique de alto luxo, preços de arrancar o couro e a fidalguia toda de São Paulo deixando o dinheirinho lá.
Você faz muito bem em guardar reserva sobre seus negócios e sua vida. Creio que, se Elisa soubesse de seu endereço em São Paulo, teria arranjado maneira de se tocar para lá. não sonha outra coisa, a pobrezinha.
Tieta riu:
- Você já pensou a parentada toda de Agreste, a começar pelo velho Zé Esteves, de cajado, cuspindo fumo, em minha porta em São Paulo, invadindo a butique? Até que ia ser engraçado, sd que estragava meu negócio para sempre.
Não fez referência a Elisa, como se não houvesse escutado o nome da irmã, mas dona Carmosina insiste, volta à carga:
- Você pensa levar Elisa para S ao Paulo, ela e Astério? É tudo o que ela deseja na vida, e me parece que...
Tema do desagrado de Tieta. Interrompeu a amiga antes que tomasse a peito a defesa da causa de Elisa:
- Levar, para quê? Aqui, eles vivem direitinho com a renda da loja e a ajuda que eu dou. Sem que eu lhe perguntasse nada, outro dia ela me disse que não quer Ter casa própria em Agreste. Vive falando em São Paulo, insinuando um convite, não tem outro assunto. Posso até aumentar a ajuda que dou a eles, mas levá-los para São Paulo, isso não.
- Posso perguntar por quê? Gosto de Elisa e queria vê-la feliz.
- Eu também desejo que ela seja feliz, também gosto dela, é minha irmã e sei que e lagosta de mim, não é hipócrita como Perpétua. Mas eu gosto dela e gosto também de Astério, Carmô. Aqui Astério vive contente, para ele São Paulo ia ser um degredo. Adoro ver pessoas felizes, é tão raro no mundo. Sei o que é ser infeliz, roí beira de penico quando fui embora. Tive sorte, encontrei um homem bom, o meu marido. Família sortuda, Carmô: Perpétua, com aquela cara, arranjou marido, milagre considerável, não foi o que o Comandante disse ontem? Milagre maior aconteceu comigo: eu era uma reles empregadinha no escritório de Felipe, acabei de aliança no dedo, - Exibe a aliança de ouro, diferente, trabalhada peça digna de antiquário. - Também Elisa deu sorte, casou, Astério é um bom rapaz, gosto dele. Em São Paulo, Astério ia ser mais infeliz do que Elisa é aqui.
- Será?
- Tenho certeza. Aqui, ele tem amigos, de quem iria ser amigo em São Paulo? não é homem para aquela correria, aquele Deus nos acuda. E ela, ia ser feliz em São Paulo, tua amiga Elisa? Tu conhece ela melhor do que eu, tu viu ela nascer, nós duas vimos, se lembra? Tu acha que Elisa, em São Paulo, vai agüentar o marido ganhando ordenadinho pequeno, que grande coisa ele não sabe fazer, vida modesta, com a estampa de rainha que ela tem? Me diga, Carmô. Com aquela beleza? Sabe onde ela ia terminar? Num randevu, fazendo a vida. Será essa, a felicidade que ela procura?
Dona Carmosina estremece, as palavras de Tieta ressoam-lhe no crânio, marteladas na cabeça. Desiste de lutar pela protegida. Prometera fazê-lo quando Elisa, quase chorando, lhe suplicara: fale com Tieta, Carmosina, diga que eu quero ir com ela, peça um emprego na fábrica paia Astério, um cantinho no duplex para nós..
- Você tem razão, não dá pé. Ia terminar mal. Como não pensei nisso, meu Deus? Você é ainda melhor irmã do que parece.
- Conheço minhas cabras. Foi bom você ter me falado nisso, eu estava mesmo querendo lhe pedir para tirar essas idéias da cabeça de Elisa, ela lhe ouve muito. Aqui, ela e Astério podem contar comigo. Fora daqui, nada.
- Vou falar com ela, não vai ser fácil. Mas você tem toda razão, não se pode arriscar. Já pensou? Ai, meu Deus!
- A vida é uma confusão, não dá para se entender. Elisa só pensa em ir para São Paulo, Leonora, agora, deu para falar que quer viver em Agreste, não quer sair daqui, nunca mais.
Um sorriso aparece, clareando o rosto anuviado de dona Carmosina, aquele era um tema exaltante. Aproximou-se do rio, cresce o rumor da correnteza sobre as pedras, rolam estrelas do céu, desfazem-se nas sombras.
- É verdade, ela me disse que já decidiu não ir mais embora. Conversamos muito, Nora e eu, nesses dias que você passou em Mangue Seco. Ela está gamada, morta de paixão. Coisa mais linda, Tieta. Dois desiludidos, dois... - busca na memória a palavra moderna, lida há poucos dias no artigo da revista -. .. carentes que se encontram, dão-se as mãos e se completam.
Está disposta a ficar aqui.
- E você pensa que ela vai se acostumar nesses confins? Por ora, está feliz porque no namoro com Ascânio esquece o que sofreu e ela sofreu como cabrito desmamado. Mas, depois? Eu nasci aqui e aqui quero terminar meus dias mas só voltarei de vez quando estiver velha, coroca. Antes, só a passeio.
Para quem chega de cidade grande, acostumar em Agreste não é fácil. Mesmo quem nunca arredou os pés daqui se queixa da pasmaceira, veja Elisa. Se eu imaginasse o que ia acontecer, não teria trazido Nora. É uma tolona, sentimental, acaba perdendo a cabeça, afeiçoando-se a Ascânio, vai dar problema.
- Eu sei. - Dona Carmosina suspira, dramática que nem autor de folhetim em cena culminante, de novela de rádio em fim de capítulo. - Ela é milionária, ele é pobre! Mas...
- não é por isso, Carmô, todos os dias a gente assiste a casamento de rico com pobre. Você pensa que eu ia me preocupar se o problema fosse esse?
Já estaria cuidando do enxoval.
- Qual é, então?
Tieta detém-se na beira do caminho para dar maior ênfase à confidência, persiste o clima de melodrama, o suspense. Dona Carmosina espera, tensa, incapaz de esconder a impaciência:
- O quê?
- Você sabe que ela foi noiva de um vigarista que só queria o dinheiro dela. Botou máscara de engenheiro, fachada não lhe faltava mas era tudo. Ela, cega de paixão, querendo financiar uns projetos do tipo, só não largou o dinheiro porque eu manjei a coisa e maneirei. Foi quando a policia apareceu atrás dele e se ficou sabendo da ficha completa do patife. A pobre caiu de cama, quase morreu. A mim não me surpreenderam as revelações da policia, não me engano com as pessoas, bato os olhos num fulano e já sei o que vale, a qualidade do caráter e o tamanho do cacete...
Dona Carmosina, descontraindo-se, explode numa gargalhada:
- Mulher mais maluca, nem depois de morta vai tomar jeito. Inventa cada uma: a qualidade do caráter, o tamanho do cacete... Essa é boa! perdida em riso, refaz-se aos poucos, volta ao amor de Nora e Ascânio. Disso tudo eu já sabia, você mesma tinha me contado. E é por isso que eu digo:
dois feridos que convalescem, dois carentes - Dona Carmosina aproveita para repetir a palavra recém-aprendida - que se completam. Se o problema da diferença de fortuna não atrapalha, então...
- Acontece que ela foi noiva desse tipo uns bons seis meses, Carmô.
Noivado em São Paulo não é como em Agreste. Lá, namorados e noivos têm muita liberdade, saem sozinhos para festas, para boates, fazem passeios que duram dias e dias... noites e noites... As moças andam com a pílula na bolsa, junto do batom.
- Estou entendendo...
- Pois é. Esse negócio de moça casar virgem, já era, como dizem os cabeludos. Só vigora em Agreste. O fato dele ser pobre não tem nenhuma importância, Nora não liga a mais mínima para isso. Nem ela, nem eu. Mas você acha que nosso amigo Ascânio... - uma pausa.- É por isso que estou preocupada, Carmô.
- Agora, quem fica ainda mais preocupada, sou eu. Preocupadíssima.
Por que a vida é tão complicada, Tieta?
- Sei lá! E podia ser tudo tão fácil, não é? Porca miséria!, como dizem meus patrícios, os italianos de São Paulo.
Voltam a andar, dona Carmosina digerindo a incômoda revelação, ai, meu Deus, o que fazer? Tieta completa, antes que alcancem as margens do rio:
- Agora que comprei a casa, mandei arrumar e pintar, instalo os velhos, deixo dinheiro com Ricardo para acabar de construir o barraco em Mangue Seco, pego Leonora e vou embora.
- Você não pode ir embora antes da inauguração da luz, já lhe disse. De eito nenhum.
- Tinha pensado em ficar mas não posso. não é tanto por mim, se bem não deva me retardar demais, deixei em São Paulo tudo que é meu na mão dos outros...
- Na mão de gente de confiança. ..
- Mesmo assim. Quem engorda o porco é o olho do dono. Eu ficaria para a festa, se não fosse por Nora. Preciso tirar ela daqui enquanto é tempo.
Ela não agüenta outro baque, pode até morrer...
- não se precipite. Espere uns dias, quando você voltar de Mangue Seco eu lhe direi alguma coisa.
- Sobre?
- Ascânio e Leonora...
- A vida pode ser tão fácil, a gente mesmo é quem complica tudo.
Atingem a beira do rio, as canoas descansam no ancoradouro. Um pouco além, na Bacia de Catarina, os pés de chorão debruçam-se sobre os penedos, aumentam a escuridão. A brisa traz um leve gemido, vem daquelas bandas.
As amigas avançam uns passos com pés de la. Vultos nos esconsos; sussurros, ais, sob os chorões. A vida pode ser tão fácil, repete Tieta. Sorriem as duas comadres, a bonita e a feia, a que conhece o gosto e a carente (para usar a palavra da moda, tão de agrado de dona Carmosina). Tieta anuncia:
- Já escolhi o nome para minha cabana em Mangue Seco.
- E qual é?
- Curral do Bode Inácio. Era o garanhão do rebanho do Velho, um bode que mais parecia um jegue de tão grande. O saco arrastava no chão. Com ele aprendi a querer e a conseguir.
Multiplicam-se os ais de amor na ribanceira. Apressadas, as duas amigas retomam o caminho da casa cheia em cuja sala de visitas o vate Barbozinha, em encarnação anterior, à frente do povo de Paris, assalta e conquista a Bastilha, liberta milhares de patriotas aprisionados. Magnífico episódio, com espadas e arcabuzes, fidalgos, tribunos, a carminhola e sem perigo de cadeia.
Onde o leitor reencontra o seminarista Ricardo, anjo decaído, sobre o qual ha bastante tempo são feitas apenas vagas referencias (quase sempre elogios na boca lasciva da tia e de como ele se atira ao mar do alto dos cômoros, Ricardo observa o rio na impaciência de assinalar a lancha de Elieser ou o barco de Pirica, talvez a canoa a motor do Comandante, e vislumbrar o vulto de Tieta. Como prosseguir ali sem ela, tendo o pecado por única companhia? Assim os viu desembarcar de uma canoa que eles próprios manobravam. não estavam todos os que haviam acampado nas proximidades do arraial do Saco, apenas dois casais e uma aliança pequena, de dois anos quando muito.
Curioso, Ricardo acompanha cada movimento. O rapaz escuro, de cabelo esgrouvinhado, levanta a improvisada âncora, pedra disforme, amarrada a uma corda, atira-a ao mar, prendendo a canoa. Toma a criança ao colo.
O outro, magro e alto, segura um violão. Das duas moças, uma exibe longos cabelos doirados escorridos sobre as costas, provavelmente a mãe da menina pois desce junto com o rapaz que leva a criança; a outra, com flores nos cabelos, é miúda e ágil, atravessa correndo entre as casas dos pescadores, perseguida pelo moço do violão. O som do riso sobe os cômoros e chega até Ricardo. Estão descalços os cinco e andam para a parte mais bela da praia, a que fica exatamente embaixo da duna mais é levada, de onde Ricardo espia. A mais bela e a mais perigosa, a arrebentação violenta impedindo o banho de mar. Somente quem nasceu e se criou em Mangue Seco atreve-se a nadar naquele trecho de mar erguido em fúria contra as montanhas de areia.
Nas férias anuais em Mangue Seco, quando o Major era vivo, Ricardo acompanhara algumas vezes os filhos de pescadores, aventurando-se entre os vagalhões, mas o pai, tendo-o pegado em flagrante, proibira tal loucura, sob ameaça de castigo severo. Mais de um banhista ali deixara a vida por ignorância ou por desejo de exibir-se, derrubado e arrastado pela violência das ondas, massacrado de encontro aos cômoros. Bravio mar de tubarões, sombras cor de chumbo em meio à água revolta. Inesperados e soberbos, alçam-se em meio às vagas, rondam a praia, esfomeados, multiplicando O perigo. Pouco antes, Ricardo enxergara os vultos de um bando ameaçador, saltando na tormenta. Foram-se mar afora, já não se distinguem as manchas de chumbo e morte.
Do alto, Ricardo vé os dois casais e a menina correndo pela praia, brincando. Sentam-se depois na areia e logo ressoa o som do violão, trazido pelo vento. Trechos rotos de melodia, parece música religiosa, lembra cantochão ouvido no convento dos franciscanos em São Cristóvão. Na véspera, tendo ido ao arraial do Saco tratar de compra e transporte de material para a construção, Ricardo soubera do acampamento dos hippies. Um grupo de mais de vinte moças, rapazes e crianças, novidade recente e provocante.
Os dois filhos do dono da cerâmica onde adquirira os tijolos -o pedreiro errara no cálculo, levando a tia a comprar quantidade bem menor que a necessária -, rapazolas mais ou menos de sua idade, convidaram- no a ir espiar, ele aceitou.
No Seminário e em Agreste escutara muita coisa sobre os hippies, opiniões as mais contraditórias, a maioria de virulenta crítica. Ascético e feroz, Cosme, comentando notícias dos jornais, condenara os hábitos indecentes, perniciosos, desses inimigos da moral, entregues à libertinagem e à droga, refugando a lei e os princípios sacrossantos, monstros da pior espécie.
Dias depois, por acaso, quando no pátio buscava entender a Imitação de Cristo, preparando-se para a meditação espiritual da manha seguinte, Ricardo surpreendera singular conversa, as vozes em discussão se elevando na roda próxima, formada por alguns padres, entre os quais o próprio Reitor, o reverendo ecônomo, o padre Alfonso - o reverendo Alfonso de Narbona y Rodomon - e Frei Timóteo, frade franciscano, vindo de São Cristóvão, para dar a aula semanal de Teologia Moral no Seminário Maior, cuja sapiência e santidade corriam mundo. Parecendo um caniço de tão magro, os cabelos revoltos, a barba rala, os olhos de água pura e a voz mansa, defendera os hippies dos ataques de Dom Alfonso de Narbona y Rodomon, a vociferar em dura mescla de espanhol e português. Nobre castelhano, guarda- costas de Deus e da pureza da fé, leão- de- chácara dos bons costumes, vigário da Catedral de Aracaju e professor de Teodicéia no Seminário Menor, Dom Alfonso era conhecido entre os fiéis pela alcunha de Labareda Eterna devido à virulência dos sermões repletos de ameaças aos pecadores.
Indiferente à veemência da condenação total aos hippies, enunciada em rude portunhol pelo fidalgo de Castela, Dom Timóteo os considerou não apenas filhos de Deus, como nós todos, mas os promoveu a filhos bem-amados pois renegam a hipocrisia, refugam a mentira, levantam-se, pacíficos, contra a falsidade, contra o cinismo anti-humano da sociedade atual, enfrentam a impiedade e a corrupção do mundo, suas armas são flores e canções, sua bandeira a de Cristo: paz e amor. Condenável a maneira como agem? Que desejava Dom Alfonso? Que eles tomem das armas, das bombas, das metralhadoras? Vão pelo mundo dando o bom exemplo da alegria de viver.
Perseguidos como sempre o foram todos os reformadores, os rebeldes, os contestatários da ordem vigente e podre. Os padres ouviram sem vontade ou sem coragem de contestar o renome de Frei Timóteo, sábio e santo, faziam carismático, os reverendos curvavam-se à sua passagem e o bispo Dom José o tratava de meu pai. Opiniões contraditórias, polêmica desatada, mas nos ouvidos de Ricardo ficara ressoando a voz serena do franciscano a repetir as ' palavras paz e amor, divisa de Cristo, saudação dos hippies.
Demorou-se com os dois companheiros espiando de longe o acampamento, onde rapazes e moças pareciam indiferentes ao tempo, sentados em grupo a conversar. Alguns trabalhavam metal e couro, um magricela tocava violão, outro descansava a cabeça no colo de uma jovenzinha, todos vestidos com aquelas roupas mal cuidadas, com rasgões e remendos, colares nos pescoços, multicores, símbolos místicos. Alguns descalços, sobretudo entre as mulheres. Ricardo viu de longe e pouco; quando um dos rapazes propôs chegarem até lá, recusou, necessitando voltar a Mangue Seco onde os operários esperavam material para as paredes da casa de veraneio da ingrata.
Agora, do alto dos cômoros, ele observa os dois casais e a menina.
Reconhece o magricela que dedilha o violão, vira-o na véspera. Deitaram-se na areia os quatro, a criança recolhe conchas, vem trazê-la s para a mãe.
Os olhos de Ricardo voltam-se para a lonjura do rio nas primeiras, sombras do crepúsculo. Que faz a tia, por que não volta? Por que o deixa ali, sozinho, sem a presença, a voz, os confusos argumentos ainda assim consoladores, a mão, os lábios, o seio acolhedor, o ventre em febre onde todos os problemas se resolvem, as dúvidas se desfazem, a aflição e o tormento transformam-se em alegria e exaltação? Estaria ausente apenas uma noite, uma, tão- somente, garantira. Duas já ele atravessara, insone e desolado.
Talvez porque a música houvesse cessado, Ricardo retorna o olhar vazio de esperança e fita a praia. Os casais despiram-se, o jovem do violão e a rapariga risonha trocam um longo beijo, estreito abraço. O rapaz escuro e a moça loira, com a menina, adiantam-se para o mar, quem sabe na intenção de banhar-se. Os cabelos da mulher rolam pelas espáduas, tocam-lhe as ancas. Ricardo põe-se de pé, grita, avisando do perigo. Para enfrentar as vagas que retornam enfurecidas da luta contra as dunas e se preparam para novo embate, é necessário ter nascido e crescido em Mangue Seco, na selvagem violência do oceano e do vento desatados. O perigo é mortal, sem falar na sombra fatídica dos tubarões.
O grito perde-se na ventania, não alcança a praia, pai, mãe e filha adentram-se no mar, Ricardo dispara cômoro abaixo, nem repara no outro casal a fazer amor, joga-se na água exatamente quando o vagalhão descomunal encobre os banhistas, derruba o rapaz e a moça, arranca a menina da mão da mãe e a arrasta para longe. Uns minutos mais e o pequenino corpo será lançado pelo mar contra a montanha de areia transformada em pedra.
Ricardo mergulha, desaparece sob as ondas, quando surge mais adiante traz a criança presa contra o peito. Utiliza apenas o braço livre para nadar.
Recordando conhecimentos adquiridos na infância, submerge outra vez para aproveitar a força da vaga no retorno. Durante um instante infinito, da praia enxergam-lhe apenas o braço erguido, sustentando a menina fora da água. E se não conseguir retornar, se perder a força e arriar o braço? Só respiram quando ele se alça em meio à espuma, liberto das vagas.
A mãe atraca-se com a filha, buscando sentir-lhe a respiração, treme da cabeça aos pés. O pai tenta dizer alguma coisa, não consegue, a voz estrangulada. O outro casal já não faz amor, estão os quatro de pé, unidos na angústia e no alivio; nus, de corpo e alma.
Ricardo apenas os enxerga. Ouve por fim o choro da criança, sorri e sai correndo enquanto a noite tomba de vez, sem prévio anúncio, noite de quarto minguante, dunas fantasmagóricas. Nas trevas da noite acorrem os demônios.
Do verdadeiro inferno nas trevas da noite acorrem os demônios. durante o dia, atendendo e ajudando os operários, trabalhando como se fosse um deles, serrando troncos de coqueiros, revolvendo a massa de barro, areia e cimento, transportando tijolos na canoa do velho Jonas, na qual atravessa a arrebentação da barra para ir ao arraial do Saco, Ricardo esquece a chaga exposta no peito, o pecado e a condenação. Chega a conceber esperança de perdão como se nada de grave houvesse sucedido.
Na canoa, durante a breve travessia, ao fitar a face plácida de Jonas, ouvindo-lhe a voz monocórdia, de imutável diapasão, acontece-lhe por vezes sentir repentino interesse pela vida. Pitando o cachimbo de barro, dominando a embarcação, mantendo-lhe o rumo, Jonas desenrola o novelo das histórias por ali acontecidas, casos de tubarões, aventuras de pesca e contrabando, atrapalhados, equívocos amores de Claudionor das Virgens. Sempre que o trovador aparece por aquelas bandas, pode-se apostar sem medo de perder: vai acabar em arrelia e confusão, mulherengo como ele não há outro. Jonas puxa fumaça do cachimbo, compara:
- Femieiro que nem padre cura...
Que nem um padre cura? E por quê? Jonas ri, um riso descansado, ao recordar a condição de Ricardo, aprendiz de padre, fornece explicação e conselho, envelheceu no mar, perdeu o braço esquerdo pescando cações, recolhendo contrabando, nada da vida lhe é estranho e indiferente:
- Tu vai ser padre, pois fique logo sabendo que padre sem catinga de mulher não presta. Como há de entender o povo se não sabe fazer menino?
Andou um desses no arraial, de nome Abdias, não se deu com ninguém, as mulheres tinham medo dele, a igreja ficou vazia. Já no tempo do padre Felisberto, que viveu no Saco uns cinco anos, por causa do reumatismo, um padre direito com comadre e sete filhos, a devoção era grande, até nós, de Mangue Seco, vinha pra missa, para ouvir ele falar, cada sermão mais desenvolvido, contando como o céu é bonito, com música e festa todos os dias.
Não era como Ooutro que, por desconhecer mulher, vivia no inferno, só sabia da maldade. Padre que não cheira a xibiu, cheira a cu, não presta.
Sem seimportar com o escândalo a refletir-se no rosto de Ricardo, Jonas manobra a canoa e conclui sua filosofia:
- Nenhum homem pode viver sem mulher, é contra a lei de Deus. Para que Deus fez Adão e Eva senão para isso? Me responda, se puder.
O moço não responde mas da mesma maneira que a labuta na construção da casa, a tosca visão de Jonas lhe dá ânimo e esperança de desatar o nó do desespero.
Desatá-lo ou cortá-lo com o fio agudo do desejo quando ela, a tia, alegre e aloucada, rompe as comportas do medo e da contenção em que ele se afoga.
Na presença de Tieta, esquece a chaga aberta no peito, o pecado, o voto rompido, a condenação, mesmo sendo noite e estando os demônios soltos. A presença, o riso, a voz morna, o amplexo, a boca, as mãos, as coxas, o ventre aceso valem lepra, estigma e inferno.
Na ausência da tia, porém, permanece leproso, marcado com o ferrete dos malditos, em danação, sem instancia de saúde, pois ela não estando, os demônios se apossam dele e o revestem inteiro de pecado, exibindo-o indigno e perdido.
Na rede, Ricardo a procura, por que ela demora tanto? Abandonara o colchão de crina da cama do Comandante e de dona Laura, como deitar-se ali sem a ingrata? Em Agreste, quando ainda lutava para conservar a castidade, nas noites de tentação, na rede pendurada no gabinete do doutor Fulgêncio, na insônia ou no sonho, ele a enxergava e sentia nua, a perturbá-lo até que aflito se esvaísse na tentativa de possuí-la sem saber como. Durante todas aquelas noites, a tivera a seu lado, não adiantando prece e promessa, nem o decidido propósito de repelir a visão satânica a torná-lo possesso.
Agora, no entanto, quando conhece a rota e o porto, nem em sonho ela aparece e se ele tenta imaginá-la na rede estendida, nua, vê apenas Satanás e o fogaréu.
Que faz a desalmada em Agreste que não vem em seu socorro, libertá-lo? Quase o ofende sabê-la na cidade, longe dele. Lá, todos os homens vivem de olhos postos nela; se atravessa a rua, as miradas e os comentários seguem-lhe o rastro das ancas em balouço. Cercada por um halo de desejo reprimido, ciranda de fogo da qual todos participam: de Osnar, com boca suja e a língua solta, a Barbozinha, cujos versos descrevem- na nua e impudica na espuma das ondas; do árabe Chalita, que a conheceu mocinha, a Seixas, que a prefere às primas; de Aminthas, metido a engraçado, a Bafo de Bode, em destempero e afronta. Ricardo, acompanhando a tia, vestido de batina, ouvira, ao passar, a fraseinfame do mendigo: ai, quem me dera morrer na sombra desse copado buceteiro! Em lugar de zangar-se, Tieta sorrira enquanto o semin aristaviraca o rosto para esconder a confusão. Aprisionada nesse círculo de desejo, distante de seus braços, quem sabe se, leviana, não sorrira para algum outro?
Qual? Ricardo não personaliza, todos lhe parecendo indignos dela, não merecendo sequer fitá-la, quanto mais recolher sorriso, olhar, gesto de interesse e atendimento.
Quem mais indigno, todavia, do que ele próprio, Ricardo, por menino, sobrinho e seminarista, com votos jurados e ignorância completa? não obstante, ela atentara em sua presença, sentira-se perturbada com a ânsia a devorá-lo, correspondera-lhe ao desejo. É verdade que, nesse estranho caso, Satanás encontrava-se envolvido, diretamente interessado na conquista de duas almas puras: a dele e a da tia. Os outros, eram todos uns perdidos, do bêbado imundo a Peto, com treze anos incompletos e desregrados.
Com qual deles? De repente, na noite aflita, de demônios soltos, Ricardo esquece o pecado, o medo do castigo, o temor de Deus, o sentimento de culpa, preso a um pensamento apenas, único e terrível, que se apossa dele e o mortifica, aperta-lhe o coração, sufoca-lhe o peito: imaginar que ela, Tieta, sua Tieta, sua mulher, sua amante, possa estar gemendo em outros braços, beijando outra boca, resvalando a mão por outro peito, enrolando as coxas noutras coxas. Com outro a enxerga, a suspirar e rir; será Ascânio, tio Astério, o Comandante, quem?
Ricardo não suporta pensar nisso, fecha os olhos para não ver. não existe lepra, estigma, fogo do inferno que se compare a esse sentimento a afogá-lo em raiva, destroçando-lhe as entranhas, pondo gosto de fel na saliva entre seus dentes, uma dor aguda a lhe atravessar os ovos. Em cama ou rede, em chão de terra ou de areia, com outro a desfalecer, a nascer e a morrer, ah, não! Se tal desgraça acontecesse, aos crimes contra a castidade ele acrescentaria crime de morte, de assassinato e suicídio. Somente Deus que dá a vida, pode dar a morte, Ricardo sabe. Mas se levantaria contra Deus, preferindo vê-la defunta do que em desmaio noutros braços e, sem ela, não deseja a vida e sim a morte.
A lua se desfaz em minguante na noite de destroços, Ricardo desce aos infernos, se consome no ciúme, como pode sofrer tanto? Salta da rede, corre para o mar, o camisolão o atrapalha, ele o arranca e joga longe, atira-se na água, nada até cansar, até o completo esgotamento. Adormece na praia, nu em pêlo.
Da meditação espiritual ainda adormecido, percebeu um rumor de risos alegres, som de violão e a melodia de um acalanto tão bonito e apaziguante que nele se embalou, encontrando por fim Tieta num extenso e tranqüilo território de campo e praia, morros e dunas; nua, com um bordão de flores retirado do altar de São José, ela conduz irrequietas cabras, leva-as a pastar nas ondas. Os pés alados não tocam a areia, tampouco os de Ricardo. Dão-se as mãos e se encaminham, limpos de corpo e alina, inocentes, para a mão de Deus aberta para recebê-los.
Deus contém o mundo em seu regaço: o campo, a praia, o mar, as cabras e os amantes. Soam então as trombetas do juízo final, terna cantiga de ninar, e o profeta Jonas, velho pescador de contrabandos, eleva-se das águas, cavalgando um tubarão, e proclama a verdade inconteste do Senhor: nenhum homem, seja rico ou pobre, velho ou moço, forte ou fraco, pode viver sem mulher, nem mulher sem homem, é contra a lei de Deus. Ruem as muralhas do mar, quando Jonas, estendendo o cotoco do braço, ensina que o amor não é pecado, nem mesmo de tia com sobrinho, de viúva com seminarista. Uma menina vem e orna de flores os cabelos de Tieta e os de Ricardo e diz paz e amor, numa voz de passarinho.
Música e canto prosseguem além do sonho e, ao toque dos dedos da criança, Ricardo descerra os olhos. Recorda-se do desvario da noite de ciúme, da desesperada prova de natação, da queda, exausto e nu, sobre a areia onde dormira e ainda se encontra. A menina lhe entrega a última flor, açucena do campo; ele está cercado por uma roda de moças e rapazes, algumas crianças, todos igualmente nus e sorridentes, a cantar para ninar seu sono. Acalanto a aquietar-lhe o coração, uma canção estranha, portadora de paz e alegria, música celeste. O violão que o magricela tange sobre o peito é harpa de anjo.
Ricardo senta-se devagar, sorri.
Não seimporta de estar completamente nu, nem repara, admirado ou curioso, com malícia ou cobiça, na nudez em torno, olha simplesmente e vê as moças belas, algumas quase meninas de tão jovens, os rapazes barbudos ou imberbes. Cabelos compridos, por vezes rolando sobre os ombros, não eram assim os cabelos de Jesus? Noutros, as crespas cabeleiras desabrocham em grandes flores desfiadas ou em emaranhados ninhos de pássaros. A roda prossegue em canto e dança, ciranda cirandinha vamos todos cirandar.
Ricardo põe-se de pé.
Encontra-se completamente livre do medo, da servidão, do pecado. Na barra da manha, a dança e o canto, o sorriso, a tranqüila face das moças e dos rapazes restituem-lhe a alegria e a paz perdidas.
Libertos do tempo, sem pressa e sem horário, cantam e dançam para ele na atmosfera azul onde nasce o dia. Uma das moças, a mãe da menina resgatada das ondas, na véspera, deixa a roda, se aproxima e o beija na face e sobre os lábios e Ricardo conheceu então a fraternidade, soube-lhe o significado e o gosto. Depois, correram todos para o mar e as crianças, tomando-o pelas mãos, o conduziram.
Tudo era mistério, sonho, fantasia. Sobre as águas serenas a manha desponta, enquanto moças e rapazes cortam as ondas mansas e as crianças recolhem conchas azuis, vermelhas, brancas, cor-de-rosa. Alguns casais amam-se na madrugada mas Ricardo não procura ver nem saber, estendido entre eles na praia, em silêncio, cercado de conchas que as crianças lhe oferecem.
Depois, tomando das roupas velhas, desbotadas, rotas, poucas e precárias, reunindo a meninada, rapazes e moças se dirigem para as canoas. não perguntaram o nome de Ricardo, não lhe disseram nada, nada lhe pediram e sim lhe deram alguma coisa grande, antes desconhecida para ele, uma pureza nova, não aquela do seminário dependente do medo e do castigo; agora o pecado já não existe. Nem o demônio, nem a maldade, nem o desespero, varridos da face da terra. Para sempre.
Da fímbria da praia, do começo do mar, gritam em despedida: paz e amor e vão-se embora. Paz e amor, irmão. Ricardo ficou parado, quieto e redimido.
Da inesperada confissão o ao se dirigir a praia para tomar a canoa onde Jonas o espera para levá-lo de volta a Mangue Seco, nas mãos os embrulhos com o serrote novo e os quilos de pregos, Ricardo enxerga, sentado numa espreguiçadeira, à sombra de um pé de tamarindo de tronco secular, silhueta muito sua conhecida. Apesar da calça de brim e da camisa esporte, reconhece Frei Timóteo e se recorda que os franciscanos de São Cristóvão possuem uma casa de veraneio no arraial do Saco.
Aproxima-se e lhe pede a bênção. O frade busca reconhecê-lo, onde viu aquele rosto adolescente? Ricardo explica: no seminário, meu pai. não é seu aluno, ainda está terminando o seminário menor, o curso secundário, somente depois vai realmente começar; contudo, já chegou à fronteira da decisão. E chegou não em tranqüila caminhada mas em desesperada luta com o demônio.
- Meu pai, quando posso vir me confessar?
- Quando quiser, meu filho, quando sentir necessidade.
- Pode ser agora mesmo, meu pai?
- Se deseja, meu filho.
Ricardo fica parado, esperando, certamente Frei Timóteo vai vestir a sotaina e levá-lo ao confessionário na capela do arraial. Mas o frade aponta a outra espreguiçadeira:
- Descanse os embrulhos, sente aqui junto de mim, primeiro vamos conversar, depois eu lhe confesso. A tarde está bonita, vamos aproveitá-la, Deus a fez assim gloriosa para que os homens fiquem felizes. A felicidade dos homens é a maior preocupação de Deus. Você está aqui de férias?
- Estou, sim, meu pai. Quer dizer, aqui não, em Mangue Seco.
- Mangue Seco é o lugar mais belo do mundo. não é verdade que Deus tenha descansado no sétimo dia, como rezam as escrituras. - o frade riu, como se achasse graça no absurdo que vinha de pronunciar. - No sétimo dia o Padre Eterno estava inspirado, resolveu escrever um poema, fez Mangue Seco. Aliás, até hoje ele continua fazendo Mangue Seco, com a ajuda do vento, não é mesmo? Você está com sua família?
- Só com minha tia mas há três dias estou sozinho, ela foi até Agreste, eu sou de lá. Minha tia mora em São Paulo, veio passear, tinha ido embora há muito tempo. Eu nunca tinha visto ela, antes.
Como o frade não comentasse, prossegue:
- A tia está fazendo uma casa em Mangue Seco, comprou terreno, é rica. Eu estou tomando conta da obra. Vim buscar material. O pedreiro, o carpinteiro, os serventes são daqui.
- O povo de Mangue Seco não exerce esses ofícios. quem nasce ali só sabe lidar com o mar e não é pouco. Raça forte, meu filho.
- Meu pai, um dia no seminário ouvi o senhor falando dos hippies para os reverendos padres, dizendo bem deles, dizendo que não são ruins.
- Não me lembro desse dia especialmente mas só digo bem dos hippies, são pássaros do jardim de Deus, todos eles, os místicos e os ateus.
- Os místicos e os ateus, como pode ser isso, meu pai? não cabe em meu entendimento.
- Não é o rótulo que dá qualidade à bebida, meu filho. Para Deus o que conta é o homem e não o rótulo. Você está com vontade de deixar o seminário e seguir com os hippies?
- não, meu pai. não sei se tenho vontade ou não de ir com eles, nunca pensei nisso. Mas, se tivesse, acho que não ia porque minha mãe era capaz de morrer. Para ela, os hippies são demônios, encontrou alguns em Aracaju, ficou horrorizada. Tem medo que meu irmão, se deparar com eles, vá atrás. Meu irmão menor, Peto. Ainda não fez treze anos e não gosta de estudar.
- Por isso você quis saber dos hippies, por causa de seu irmão?
- Não, meu pai. É que, ontem, eu estava de coração pesado, na certeza de ter ofendido a Deus e posto fim à minha vocação, estava cheio de raiva e de ciúme, como um amaldiçoado; só consegui dormir na praia, depois de nadar muito. Quando acordei, os hippies me cercavam e cantavam para mim.
Eles sossegaram meu coração, me deram a paz que eu procurava.
- Paz e amor, são palavras de Deus as que eles usam. Pássaros do jardim celeste, eu não lhe disse? Você sente vocação para o sacerdócio ou foi mandado para o seminário?
Ricardo medita, seinterroga, antes de responder:
- Mãe tinha feito uma promessa, acho que pela saúde de meu pai. Mas quando ela me contou, eu mesmo quis ir, desde pequeno mãe me ensinou a temer a Deus.
- A temer ou a amar?
- E se pode amar a Deus sem ter medo dele? não sei separar as duas coisas, meu pai.
- Pois deve separá-la s. Nada do que faça por medo é virtude. Nada do que faça por amor é pecado. Deus não preza o medo nem os medrosos. Você deseja mesmo ser padre?
- Desejo, sim, meu pai, mas não posso mais.
- E por que não pode, se deseja?
- não mereço. Pequei, violei a lei de Deus, desfiz o trato, rompi o voto.
- Deus não é homem de negócios, meu filho, não faz tratos de toma e dá e quando um filho seu viola a lei, tem o remédio à mão, a confissão. Você pecou contra a castidade, não foi?
- Foi, meu pai.
- Com mulher?
- Sim, meu pai. Com...
- não lhe perguntei com quem, isso não muda a qualidade da culpa.
- Pensei, meu pai.
- Diga-me apenas uma coisa: apesar do medo do castigo, você detestou o pecado ou acha que valeu a pena, mesmo tendo de pagar no inferno?
- Apesar do medo, não me arrependi, meu pai. não vou mentir.
Sorriu o frade com ternura e disse:
- Agora se ajoelhe para receber a penitência e a absolvição.
- Mas, meu pai, como vou receber a absolvição se não me confessei ainda?
- O que você vem de fazer, senão se confessar? Reze três padre-nossos e cinco ave-marias e, se pecar de novo, não fuja de Deus com medo como se ele fosse um carrasco. Se confesse, a um padre ou a Deus diretamente.
Ajoelhou-se Ricardo, recebeu bênção e absolvição mas ainda quer saber se deve ou não continuar no seminário, alcançar o seminário maior preparando-se para a santa missão de levar a palavra de Deus aos homens.
- Meu pai, depois do que eu fiz ainda posso aspirar ao sacerdócio?
Ainda sou digno?
- Por que não? Há quem diga que os padres devem casar, há quem diga que não, essa é uma discussão difícil que não cabe aqui. Eu não sei lhe dizer qual o melhor padre: se aquele que castiga o corpo, deixando-o amargar-se no desejo, aquele que se oprime para assim servir a Deus, macerando a própria carne, violentando-se, ou o que sofre por ter pecado, aquele que não resiste ao apelo, se entrega e se levanta para cair de novo. Um se martiriza, inimigo do próprio corpo, é forte, se santifica talvez. O outro peca, é fraco, mas ao pecar se humaniza, abranda o coração, não vive em luta com o próprio corpo.
Qual deles pode melhor servir a Deus e aos homens? não posso lhe dizer, sabe por quê?
Ricardo fita o velho sacerdote, frágil carcaça, olhos de água, luminosos, a mão ossuda que o abençoara e absolvera do pecado:
- Por que, meu pai?
A voz de Frei Timóteo é cálida e paterna:
- Quando eu me ordenei já era um velho. Velho e viúvo. Fui casado, sou pai de quatro filhos, tenho o corpo em paz. Procure servir a Deus, servindo aos homens, não sinta medo nem de Deus nem da vida; agindo assim será um bom pastor.
- E o Demônio, meu pai?
- O Demônio existe e se revela no ódio e na opressão. Antes de ter medo do pecado, meu filho, tenha medo da virtude, quando ela for triste e quiser limitar o homem. A virtude é o oposto da tristeza, o pecado é o oposto da alegria. Deus fez o homem livre, o Demônio o quer vencido pelo medo. O Demônio é a guerra, Deus é a paz e o amor. Vá em paz, meu filho, volte todas as vezes que quiser e, sobretudo, não tenha medo.
Ricardo beija a mão de Frei Timóteo, recolhe os embrulhos:
- Obrigado, meu pai, vou em paz. Agora, eu sei.
Da canoa se volta, para novamente ver na tarde luminosa o frade tão frágil e tão forte. Ainda em vida e já em odor de santidade.
Onde o autor, esse calhorda, mete-se com assuntos que não são de sua conta e dos quais nada entende ainda em vida e já em odor de santidade - retomo o pensamento do seminarista Ricardo, ao voltar à presença dos leitores para alguns rápidos e indispensáveis comentários com os quais busco fornecer baseideológica e conseqüência aos fatos e às reações dos personagens. Assim evito que me acusem de não estar engajado, de não ser participante, de fugir a comprometimento.
Não podem os senhores me culpar por metido, importuno e maçador:
a quantas páginas já andamos no terceiro episódio desse arrastado relato, sem que eu haja interrompido a narrativa? Afinal, cabe-me o direito de fazê-lo, sou o autor e não posso permitir que os personagens se dêem ao luxo de conduzir sozinhos os acontecimentos, ao sabor de emoções e ponto de vista nem sempre os mais convenientes à mensagem desejada.
Desta vez, quem me faz tomar da máquina de escrever é Frei Timóteo, frade franciscano, ao que tudo indica um desses muitos sacerdotes progressistas que estão tentando reformar a igreja, partindo de teorias ditas ecumênicas.
Reclamam, exigem um cristianismo militante, situado ao lado dos explorados contra os exploradores, da justiça contra a iniqüidade, da liberdade contra a tirania. Querem limpar a igreja de antiga incriminação: a de servir aos interesses das classes dominantes, dos aristocratas e dos burgueses, sendo ópio do povo, quando não é Santa Inquisição em caça às bruxas.
Contra tais avançados sacerdotes que estão rompendo preconceitos e reformulando teses, quem sabe reconduzindo a fé crista às suas origens, levanta-se grita violenta e agressiva, formulam-se libelos provocadores, acusações perigosas, são tachados de subversivos e, por vezes, vítimas de processo e de cadeia - padres na cadeia por subversivos, onde já se viu tal coisa depois de Nero e de Caligula?
Na discussão de dogmas não me envolvo, por não ser causa minha, se bem em princípio a polêmica travada contenha interesse geral. Em matéria de religião mantenho-me neutro por não possuir nenhuma, a todas respeitando. Reportando-me, porém, a conceitos expressos pelo frade e a casos narrados pelo canoeiro Jonas, quero dar meu testemunho sobre o problema em causa: as relações entre castidade e santidade, tão discutidas, e o faço com o espírito livre de prejuízo de qualquer ordem, apenas no interesse gratuito de concorrer para completo esclarecimento do assunto.
Durante séculos e séculos, a castidade constituiu elemento indispensável, ou quase, à produção de um santo ou de uma santa. Quanto mais flagelada a carne, maior a possibilidade de beatificação. Assim consta, ao que parece, do direito canônico.
Não aprovo o profeta Jonas, duvidoso profeta de contrabando surgindo sobre o dorso de vorazes tubarões em lugar de sair do ventre da bíblica baleia, quando afirma, em frase chula, eivada de palavrões, que padre se não cheira a vagina, cheira a ânus, tentando sem dúvida estabelecer discutível conotação entre o celibato clerical e a pederastia. Ora, isso nem sempre acontece, a conotação é imprópria e forçada. Sobra razão, não obstante, ao rude marujo ao garantir a Ricardo que o pecado contra a castidade não impede o sacerdote de atingir a bem-aventurança e o milagre.
Não me proponho analisar teses morais, preceitos religiosos, quem sou eu? Apenas desejo constatar a evidência acima enunciada, citando exemplos e apresentando provas. Posso começar pelo próprio Frei Timóteo, em odor de santidade ainda em vida, pois foi casado e é pai de filhos, provou do fruto e isso não impede que entendidos e leigos o considerem um eleito de Deus, e como tal o proclamem e venerem. Casamento e filhos aconteceram antes da ordenação? É certo, não discuto. não serve o exemplo, portanto? Eu o retiro, não preciso dele, existem muitos, passo a outro.
Passo ao padre Inocêncio, falecido há pouco mais de um decênio, na avançada idade de noventa e seis janeiros, ainda lúcido, capaz de distinguir uns dos outros seus tataranetos. Vigário por mais de cinqüenta anos na cidade de Laranjeiras, enterrou, com devoção e lágrimas, três concubinas, que lhe deram um total de dezenove filhos. Cinco, Deus levou na primeira infância, padre Inocêncio criou e educou quatorze, oito varões, todos direitos, e seis moças, todas bem casadas - exceto Mariquinha, muito dada a homens a ponto de Rubião perder a paciência e requerer o desquite. Essa saiu a mim, disse o bom padre na ocasião, inocentando-a, tomando a si as culpas da filha: para quem já tinha tanto pecado, uns quantos a mais não aumentariam a pena.
Na casa espaçosa cresceram netos e bisnetos, todos portando o honrado sobrenome do reverendo, Maltez, todos por Deus abençoados. Já avô de vários netos ainda fazia filhos, e quando lhe trouxeram o primeiro tataraneto, para que ele lhe deitasse a bênção e o batizasse, deu graças ao Senhor e louvou seu santo nome, não o fazendo em vão.
Certa feita um missionário, desses que vão de cidade em cidade pelo interior do Norte e do Nordeste, assustando o povo, e que não era outro senão W A, o nosso conhecido Dom Alfonso de Narbona y Rodomon cuja pronúncia da língua portuguesa já era prenúncio de condenação, ao vê-lo, patriarca no recesso do lar, em companhia da terceira e derradeira amásia, a mais linda das três, jovem de vinte e poucos anos - curima digna de um rei, no verso do violeiro Claudionor das Virgens, que rimou sua face de roma com a luz da manhã - aode vê-lo rodeado de filhos e netos, apontou-lhe um dedo acusador e apostrofou:
- Não tem vergonha, padre, de levar vida assim licenciosa, e, não contente de pecar, exibir publicamente as provas do pecado, escandalizando os fiéis?
- Deus disse: crescei e multiplicai-vos - respondeu padre Inocêncio Maltez, a voz pacata e o sorriso ameno. - Eu cumpro a lei de Deus. não vi, em parte nenhuma, notícia de que Deus houvesse dito que padre não pode ter mulher nem fazer filho. Muito depois é que inventaram essa lorota, obra de algum capado como Vossa Reverendíssima.
Quanto ao escândalo dos fiéis, para mortificação do missionário, ele próprio constatou não existir. ao contrário, o que havia era certo gáudio, dir-se-ia mesmo certo orgulho do vigor do santo varão, aos oitenta anos se gabando de ainda cumprir as obrigações inerentes ao seu estado de mancebia.
Não sendo padre Inocêncio homem de mentiras, os fiéis viram na potente façanha por ele revelada aspecto milagroso, evidente sinal da graça divina.
Aliás, ao que parece, os primeiros milagres o padre Inocêncio os realizou ainda em vida, antes de Deus o chamar ao paraíso onde o esperavam as três mulheres e nove filhos, os cinco mortos cedo, quatro adultos e alguns netos e bisnetos, um pequeno clã não foram, no entanto, grandiosas essas primeiras provas de santidade: pequenas curas, feitas à base de simples aplicação de água benta, de moléstias de pouca gravidade. Fez chover por duas vezes quando a seca ameaçou o povo de Sergipe.
Apenas faleceu, porém, e já no mesmo dia do funeral, acompanhado por toda a população da cidade e das vizinhanças, começou a safra dos prodígios, cada qual mais impressionante. Logo depois que o corpo do padre baixou à terra, ali mesmo junto ao jazigo perpétuo onde repousa ao lado dos restos mortais das três saudosas, uma paralítica invocou seu nome, largou as muletas e saiu andando com passo firme. A notícia se espalhou.
Depois desse espetacular começo, nunca mais se deteve o padre-mestre e até hoje as curas se sucedem, cada vez mais numerosas e extraordinárias.
Laranjeiras, cidade da maior beleza, esperara durante anos, inutilmente, igual a Agreste, os turistas que não vieram admirar-lhe o casario deslumbrante antes da completa destruição, obra do tempo e do descaso. Em troca, com os milagres do padre Inocêncio, há uma romaria permanente de enfermos e aflitos a acender velas na igreja e no cemitério, junto à campa onde atende o boníssimo e viril pastor de almas. Para mulher estéril, basta rezar um terço e fazer o pedido, é tiro e queda; se forçar a reza, nascem gêmeos.
Na data de aniversário de sua morte, a romaria cresce em santa missão e os peditórios somam milhares, a cidade ganha movimento, comércio e alegria.
Para acolher os peregrinos, além dos descendentes do reverendo, encontram-se gratos miraculados, à frente dos quais a hoje beata Marcolina, a que largou as muletas no dia do enterro do padre Inocêncio, a primeira agraciada.
Cito um exemplo, poderia citar vários, deixo de fazê-lo por não querer tomar mais tempo aos senhores. Antes de despedir-me, lastimo apenas que não exista em Agreste padre assim perfeito como o reverendo Inocêncio Maltez, o santo de Laranjeiras, para promover o turismo religioso na cidade.
Padre Mariano não dá asa a falatórios, por incorruptível ou discreto, não sei.
Não pretendo me imiscuir em sua vida, não o acompanho quando vai à capital, resolver assuntos da diocese, certamente; para dar vazão à natureza, segundo a má língua de Osnar e de outros debochados. Pelo menos escândalos não provoca, capazes de desencadear a ira de missionários em busca de pecados; em Agreste jamais deu o que falar. As beatas, a começar por Perpétua, estão de olho em cima dele, permanentemente, não afrouxam a vigilância.
Fugindo à tal vigilância, me despeço. Preparo-me para ir a Laranjeiras, muito em breve. A idade está chegando, sabem como é. Dizem que, com um óbolo para os pobres de padre Inocêncio, se obtêm surpreendentes resultados, tanto mais rígidos e duradouros quanto maior o óbolo. Assim seja.
Da segunda aparição dos super·heróis, desta vez vindos do mar, capítulo recheado de perspectivas e projetos, envolvendo diversos cidadãos: do magnífico doutor a Osnar, de peto a Ascânio Trindade quando os seres luminosos anunciados na profecia do beato Possidônio surgiram novamente em Agreste, vindos do Oceano Atlântico em potente lancha a motor, moderníssima, aumentados em número e em sexo pois aconteceram machos, fêmeas e andróginos, já se haviam extinguido os ecos do escândalo provocado pela minissaia de Leonora. A formosa paulista, com a compostura demonstrada no correr do tempo, silenciara os comentários e caíra nas boas graças das devotas. Elisa desistira de desobedecer ao marido, guardando o seu polêmico saiote para usá-lo em São Paulo, em breve, se Deus quisesse. não se atrevera a afrontar o deboche e a condenação de Agreste.
Com a segunda aparição dos seres extraterrenos, porém, a minissaia tornou-se objeto familiar aos olhos de toda a população da cidade.
Desabatado, Peto chega da beira do rio, a notícia empolga o bar: está desembarcando um batalhão de gringas. Mal acaba de falar e a praça se enche de marcianos. Ascânio Trindade despenca-se da prefeitura. Todas as fêmeas vestem minissaias de tecido xadrez - escocês graúdo, reconhece dona Carmosina -, blusa amarela, de malha, altas botas de pelica negra. Nem que fosse de propósito, com o objetivo de redimir Leonora por completo, a cidade é invadida por aquele desparrame de coxas e ancas expostas à brisa e aos olhares ávidos da multidão que acorre de todos os lados.
Idênticas no uniforme, devem ser parte de um exército ou de uma seita religiosa. Verdadeiramente lastimável a ausência do beato Possidônio, perde farta matéria para indignação e pragas, seria um pagode. Voltara para Rocinha onde medita e cura.
Veterana, pois vinha pela segunda vez, pernalta e flexível, comandante do batalhão ou sacerdotisa, assistente do guru, a ruiva acena com a mão e retira os óculos, oferecendo à admiração geral os olhos de rímel. Minissaia de boneca a revelar tudo, constata Osnar:
- Não mede um palmo dos meus...
E avança para saudar a viandante do espaço, para reatar antigo conhecimento:
- Por aqui, de novo? Uma honra para o condado de Sant'Ana do Agreste.
- Vá, lindo, me ofereça um guaraná, uma coca- cola, vá. Morro de sede.
Eu e todo o staff aqui presente.
Os demais membros do stafl aproximam-se álacres, efervescentes. Nos machos poucos reparam, os olhos não bastam para as fêmeas. Alguns seres deixam em dúvida atroz os tabacudos cidadãos, confundidos, sem saber o que pensar: aquele ali será macho ou fêmea, mulher ou homem? E aquela figura estranha, será hermafrodita?
Abre-se a janela da casa do prefeito, aparece o rosto aflito, a barba de três dias do dentista Mauritônio. O sucesso da minissaia de Leonora na feira provocara assovio, gargalhada, troça e trova; tantas minissaias reunidas na praça provocam pasmo e silêncio. Entupida a calçada em frente ao bar, esvaziam-se as lojas e os armazéns.
- No bar já tem água- de- coco - anuncia Ascânio Trindade convidando o Ente Excelso e seus companheiros. Seu Manuel curva-se para recebê-la.
- Que eficiência! - Miss Espaço eleva a voz, consulta os demais. Quem gosta de água- de- coco?
- Só com uísque, filha- responde Afrodite, a longa cabeleira batendo no rego da bunda, calça bem colada, blusão hindu, uma cascata de colares.
- Por que ela não está de minissaia? - pergunta Osnar, sentindo-se lesado por não poder admirar coxas e ancas tão prometedoras.
- Porque não é ela, lindo. É ele... Quer dizer... mais ou menos... É Rufo, nosso decorador. Tem um sucesso!...
- Negativo. O lindo aqui não aprecia, que se há de fazer?
Demoram pouco, estão de passagem, vindos de Mangue Seco onde outros ficaram, engenheiros e técnicos, conforme revela a nova Barbarela. Os que estão curtindo as paisagens são publicitários, assistentes, secretárias, relações- públicas, contatos: competentíssima equipe. Desalteram-se no bar antes de voltar à lancha e seguir rio acima no rumo de Sergipe.
- O queima-rodinha é Rufo, e vós, Princesa, quem sois e donde vindes?
Por acaso polaca?
- Elisabeth Valadares, Bety para os amigos, Bebê para os íntimos.
Carioca da gema, garota de Ipanema. Morou na rima?
Sorri com inúmeros dentes, alvíssimos, bem tratados, boca de anúncio de pasta dentifrícia:
- Trago um recado para você, amor. - amor é Ascânio Trindade para desaponto de Osnar. - Do M