Almeida Garrett
Representada, a primeira vez em Lisboa, no Teatro Thalia, pela sociedade particular do mesmo nome, em onze de abril de 1844.
PESSOAS: MANUEL SIMPLÍCIO LUÍS DE MELO DONA CÂNDIDA DONA LÚCIA DONA TERESA DOUTOR SIMÕES VICENTE
Lugar da cena: uma quinta na província.
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ATO ÚNICO Sala ornada com elegância. Portas no fundo, e portas laterais. Uma caixa de costura sobre uma viera à direita, à esquerda outra banca com escrivaninha.
CENA I Doutor Simões, Vicente; depois D. Teresa.
VICENTE Faz favor de entrar, senhor doutor; eu vou chamar o senhor Manuel Simplício.
SIMÕES Por que, ainda está na Cama?
VICENTE
Não, senhor, há mais de duas horas que anda por esse palácio com os armadores e os pintores, toda essa gente que ele mandou vir da cidade.
SIMÕES (à parte) O palácio! Chama-se agora o palácio! Fidalguias da senhora D. Teresa. (Alto) Deixa-o estar, não o incomodes. Aqui vem a senhora D. Teresa. (Vicente sai)
D. TERESA Oh! é o senhor Simões...
SIMÕES As minhas homenagens respeitosas e humildes à madame la belle mère.
D. TERESA Deu em se fazer desejar o senhor doutor: há um século que o não vejo.
SIMÕES Não se queixe, minha senhora, é bom sinal! Quando o médico falta, é que não falta a saúde. Que notícias temos das Caldas? Desde que foi a senhora D. Cândida, não tenho que fazer nesta casa, senão vir de vez em quando perguntar se volta... se já voltou...
D. TERESA Ainda não: amanhã partimos nós, eu e seu marido, para a irmos buscar.
SIMÕES Há de estar impaciente o nosso Manuel Simplício, morto de saudades pela sua rica noiva.
D. TERESA
Oh! essa justiça lhe faço eu; estremece-a, adora-a, é louco por ela.
SIMÕES Cada vez me glorio mais de ter feito este casamento.
D. TERESA É verdade, acertou. E é o seu forte: por isso dizem que os doentes do doutor Simões são mais os que casam do que os que saram.
SIMÕES Assim é, convenho. A minha medicina é toda filosófica e moral, é a verdadeira homeopatia transcendente; curo os contrários com os contrários. São os meus princípios. Manuel Simplício era meu amigo e meu doente; sujeitei-o à minha clínica, fi-lo casar. Pobre Simplício! não tinha a menor ideia de fazer tal.
D. TERESA Pois deve-lhe estar muito obrigado, ele...
SIMÕES Também me parece que pela sua parte a senhora D. Teresa não tem de que se queixar. Manuel Simplício tinha-se deixado estar solteiro um par de anos... um bom par de anos, a falar a verdade... voltou do Brasil milionário e sexagenário ou muito perto disso: – eram hábitos velhos: Olhai que com todo o amor que lhe inspirou a senhora D. Cândida, resistiu muito tempo... Tinha aquela ideia fixa de não querer deserdar um certo sobrinho que Deus lhe deu, e que é o único parente que tem. Desde lá do Cantagalo, ou do Ouro Preto, ou do jacaré Açu, ou não sei de que bentas terras de Minas Gerais, donde esteve cavando essa riqueza toda que trouxe, vinha com o projeto feito de comprar esta quinta, e de fundar aqui no caro sobrinho uma dinastia de fidalgos de aldeia que perpetuasse a memória dos Simplícios por essas gerações adiante.
D. TERESA Bem sei... um tal sobrinho a quem ele quer muito... Felizmente que não é senão sobrinho... que estes solteirões velhos às vezes...
SIMÕES Esteja descansada; o meu amigo Manuel Simplício tem um caráter fraco, a dizer a verdade, mas lá nisso...
D. TERESA Sim, é o que se chama um bom homem.
SIMÕES Boníssimo. E dali não há que desconfiar.
D. TERESA Não, não, e o pior é que há dezoito meses que estão casados e... e nada! Bem vê que tenho razão de recear, doutor: se meu genro viesse a falecer sem filhos...
SIMÕES Há de tê-los, há de tê-los... Um marido de sessenta anos! isso é infalível.
D. TERESA Bem o desejo; mas Cândida há dois meses que está nas Caldas, e parece-me longa de mais esta ausência. Eu não estava aqui quando ela foi, estava em Lisboa por causa daquela maldita demanda que me demorou até agora: não cheguei senão há três dias; quando não, tinha-me oposto a esta viagem, ou pelo menos havia de acompanhar eu minha filha.
SIMÕES Bom seria; mas a senhora D. Cândida está muito bem acompanhada. Em primeiro lugar levou consigo a prima Lúcia...
D. TERESA Lúcia! Está bom... E quase da idade dela.
SIMÕES E ambas as primas foram na companhia aqui da senhora D. Joana Pacheco, e de seu marido o nosso governador civil, pessoas de todo o respeito... É outro casamento que eu fiz também.
D. TERESA Mas para que havia de ela sair de casa, ir agora para as Caldas? Estava doente?
SIMÕES Pois enfim já que é preciso dizer-lhe, estava... estava doente... aborrecia-se, tinha histéricos, tinha nervos, tinha vapores... Eu já não sabia o que lhe havia de receitar, mandei-a para as Caldas.
D. TERESA O que me admira é o marido deixá-la ir assim... Mas calemo-nos que ele aí vem.
CENA II Manuel Simplício e ditos.
SIMPLÍCIO (entra, recuando, da esquerda, e falando para o bastidor) Olhem lá aquela cômoda que não está direita... deixem descair mais o espelho... as cortinas mais tomadas... Sacode a franja... Agora sim, ah! bom! assim. (Virando para a cena) Como passou a noite, senhora D. Teresa? Bela mamã... Não é assim que se deve dizer, doutor?
SIMÕES Parfait! à moda de Paris. Está outro, está guapo, amável como um estrangeiro o nosso Simplício. E a saúde excelente sempre?
SIMPLÍCIO Quanto à saúde... Espere, dê-me licença. (Torna a virar-se para a porta da esquerda) O toucador à esquerda... a jarra do Japão no canto, ali ao pé da janela.
SIMÕES
Então que é isso? Mobiliamos de novo estes quartos para aqui?
SIMPLÍCIO É o quarto particular da minha mulher... o boudoir, bela mamã: não é assim que se chama?
D. TERESA Sim, é.
SIMÕES Agora que tudo vem de França, modas, palavras, ideias...
SIMPLÍCIO Algumas... das palavras são mais bonitas sem dúvida. Por exemplo, bela mama, para não dizer sogra, que é uma palavra tão feia.
SIMÕES (à parte) Como a coisa: e já é dizer.
SIMPLÍCIO Mas outras, a falar verdade... esta de boudoir, nem eu sei bem o que isso quer dizer, mas não me agrada.
D. TERESA É uma expressão bonita, e para pessoas de bem, senhor Simplício; não há senhora nenhuma na corte que não tenha o seu boudoir.
SIMPLÍCIO Ah! se as fidalgas da corte têm o seu boudoir, isso é outro caso, também minha mulher há de ter o seu; e por isso é que eu... (Tornando-se a virar para a porta) O sofá e o vis-à-vis à direita... defronte do espelho; o aparelho de Saxônia em cima da mesa. Vão devagar e aviem-se.
D. TERESA Em se tratando da mulher anda aquela cabeça...
SIMPLÍCIO (voltando para a cena) Agora aqui me tem, meu doutor.
SIMÕES Então já sei que vai buscar a sua bela metade.
SIMPLÍCIO Vou, meu amigo, e já era tempo; pesa-me esta viuvez. Minha mulher é tão alegre, tão divertida, tão viva; nem eu sei como tenho podido viver estes dois meses tão compridos, sem a ver.
SIMÕES Mas por que não foi com ela?
SIMPLÍCIO Isso queria eu, mas ela e que não quis pela muita amizade que me tem: entendeu que me fazia mal as Caldas. Coitada! é tão minha amiga...
SIMÕES É um anjo.
SIMPLÍCIO E além disso aproveitei esta ocasião para reedificar este lado esquerdo da casa... do meu palácio... era um gosto que ela fazia; achava-o triste, gótico; e eu, obras é a minha paixão.
SIMÕES Também daí não se segue mal nenhum... uma pequena ausência aviva mais a ternura conjugal.
SIMPLÍCIO A minha não precisava disso, doutor. Mas, enfim, já lá vai: agora em ela voltando fica a minha felicidade quase completa; digo quase, porque verdade seja... completa, completa não é... quando penso naquele pobre rapaz meu sobrinho...
D. TERESA Sempre com este sobrinho!
SIMPLÍCIO Sequer, se ele soubesse do meu casamento...
SIMÕES Pois quê, não lhe deu parte?
SIMPLÍCIO Não, ainda não; ele está lá para Lisboa, tão longe... e este casamento, corro sabem, fez-se com tanto segredo e tão depressa...
D. TERESA Com efeito, meu genro, a sua fraqueza faz aflição, e uma coisa que nunca se viu, um tio que tem medo que o sobrinho lhe ralhe.
SIMPLÍCIO E que a falar a verdade, ele tinha razão se ralhasse, se me dissesse o que eu me digo a mim mesmo. A minha posição é mais delicada do que cuidam. Luís é filho de minha irmã, irmã querida e única, excelente criatura, mas que não tinha nada de seu: foi casar com um cavalheiro muito ilustre, muito fidalgo, creio eu, mas que nunca passou de tenente do regimento de... e morreu deixando-lhe... este filho. Achei-a viúva quando voltei do Brasil, e quase morta... Com toda a minha riqueza mal pude adoçar-lhe os últimos instantes da vida. Parece-me que a estou vendo ainda, moribunda, apertando-me a mão, e recomendando-me o filho; jurei-lhe que o tomava Por meu, que lhe havia de servir de pai, e enfim deixar-lhe toda a minha fazenda. Renovei o juramento trinta vezes em cartas, em conversas com Luís quando ele aqui veio estar comigo há dois anos; e decerto que tinha firme intenção de o não quebrar. Não sei como foi que se meteu o diabo nisto...
D. TERESA Senhor Simplício!
SIMPLÍCIO Não foi o diabo, não, minha senhora, perdoe-me por quem é... Mas como hei de eu dizer a meu sobrinho que o enganei, que lhe faltei à palavra, que sou um mau tio, caí em... que... enfim que estou casado?
D. TERESA Por fim de contas é preciso acabar por lho dizer.
SIMPLÍCIO Sim, daqui a algum tempo, veremos... Mesmo agora seria dificultoso porque não sei o que é feito dele.
D. TERESA De seu sobrinho?
SIMPLÍCIO Já me dá cuidado. Há coisa de um mês, ou um mês e meio, que recebi uma carta dele, avisando-me que sala de Lisboa, e que vinha passar algum tempo comigo. Imaginem o meu susto; andei quinze dias com febre... mas não veio, e de então para cá não soube mais dele.
D. TERESA Excelente ocasião de lhe escrever, deixando cair duas palavras sobre o casamento.
SIMPLÍCIO Acha?... Há de afligi-lo muito, coitado!
D. TERESA Olhem a grande desgraça! E muito amor de mais para um sobrinho, senhor Simplício, é uma ternura desarrazoada e fora de todo o termo, que não diz com o seu novo estado. Dá-lhe tudo quanto ele quer... deixa-lhe fazer despesas exorbitantes...
SIMPLÍCIO
Pudera! Se lhe eu não mandasse dinheiro, vinha-o ele cá buscar.
D. TERESA Pois sim, mas é preciso acabar com isto... uma carta pelo correio e adeus! não se pensa mais nisso, e fica feito.
SIMÕES Siga o parecer da senhora D. Teresa; não se pode viver nesse desassossego, é preciso tranquilizar-se.
SIMPLÍCIO Então querem por força...
D. TERESA E se se demora, escrevo-lhe eu.
SIMPLÍCIO Não se altere, bela mamã, já o vou fazer.
D. TERESA Pois é já, aqui.
SIMPLÍCIO Neste momento.
D. TERESA Ora graças a Deus!... E no entretanto vou eu à cidade a casa do governador civil: ele vai amanhã conosco buscar a mulher; combinaremos a hora da partida.
SIMÕES Quer que lhe ofereça o meu braço, minha senhora?
D. TERESA Com muito gosto. Senhor Simplício, olhe agora se se esquece.
SIMPLÍCIO
Bem sabe que quando eu prometo uma coisa...
CENA III
SIMPLÍCIO (só) Ora vamos a isto... já que não há remédio. (Põe-se à mesa e prepara-se para escrever) Maldita carta! se eu sei por onde hei de principiar... O Luís é muito bom rapaz... mas fica furioso... E então um tio... uma pessoa de respeito... ter de se acusar diante do seu sobrinho... ter de lhe confessar!... quase que é pedir-lhe perdão... Tem que se lhe diga, é de exame... Mas quem manda é minha sogra; vamos. (Escreve) “Meu sobrinho... meu rico Luís...”
CENA IV Simplício, Vicente e depois Luís.
VICENTE (no fundo) Senhor?...
SIMPLÍCIO Vêm-me interromper... Inda bem! – Que queres tu, Vicente?
VICENTE Senhor, um senhor, um rapaz novo que lhe quer falar.
SIMPLÍCIO (levantando-se) Um rapaz novo!... Quem é? Conhecê-lo?
VICENTE Não senhor, não quis dizer quem era, diz que lhe queria aparecer de repente para lhe dar um alegrão.
SIMPLÍCIO Ai, meu Deus! Que suores frios!...
VICENTE Mando entrar?
SIMPLÍCIO Pois Sim... certamente... (Vicente sai) Oh! que tolice estar-me eu a assustar! Não pode ser. (Vai ver ao fundo) Jesus! é ele, é o Luís... Tremem-me as pernas, não me posso ter...
LUÍS (olhando muito para o tio sem o conhecer) Oh senhor, perdoe! o seu criado enganou-se, eu procuro o senhor Manuel Simplício.
SIMPLÍCIO (abrindo os braços) Luís, meu sobrinho!
LUÍS Meu tio! (Abraçam-se)
SIMPLÍCIO Então já me não conhecias?
LUÍS Minha palavra de honra que não. E se o tio se não visse a si desde o tempo que eu o não vejo, há dois anos, aposto o que quiser que não era capaz de se reconhecer a si mesmo. Jesus! como está mudado!
SIMPLÍCIO (assustado) Achas?
LUÍS Mas dou-lhe os parabéns, tio, está outro, não tem comparação: anda direito, está fresco e belo... e então tafulo!... não tem que ver, é uma transformação completa.
SIMPLÍCIO Ah! isso é outra coisa.
LUÍS E tanto que, se vamos neste andar, em Poucos anos está mais moço que eu.
SIMPLÍCIO Sim, eu agora ando bom... E tu, meu Luís, como vamos de saúde? E a respeito de?... vamos: diverte-se a gente?
LUÍS Assim, assim, meu tio... Mas aqui está o que é ser homem solteiro! O tio vive sem pesares, sem cuidados...
SIMPLÍCIO (à parte) Está bom... não desconfia de nada... estou mais sossegado. (Alto) Tu hás de estar moldo da viagem, homem?
LUÍS Não, tio. – Ora o que me fez mais barulho logo assim à primeira, foi o seu modo de vestir: eu que o tinha visto sempre de calça justa por baixo da bota, e com aquela sua casaca, vi-lo agora achar de penteado moyen-áge, fraque à inglesa!...
SIMPLÍCIO Sabes tu que já me davas cuidado?
LUÍS Oh! meu querido tio, mas é que realmente está um petimetre... Ai, Deus me perdoe! pois foi-se também? coitado!
SIMPLÍCIO Quem?
LUÍS Aquele rabichinho tão galante, tão travesso, que o tio trazia, e que realmente era...
SIMPLÍCIO
Era um incômodo, pegava-se à gola da casaca...
LUÍS Que metamorfose! Pois eu por mim gostava mais do outro tio dantes... Este, a falar a verdade, parece-me um tio virado.
SIMPLÍCIO Então! não me acabas de analisar dos pés à cabeça.
LUÍS Por quê? Deixe-me gozar da minha admiração. Até a quinta e esta casa toda está que ninguém a conhece. Era tão triste! e agora tem um ar de opulência, de animação. Não parece senão que andou por aqui alguma fada boa.
SIMPLÍCIO (à parte) Está insuportável com as suas reflexões. (Alto) Então que queres? Aborreci-me da vida de ermitão que levava, comecei a viver com gente... por aqui os vizinhos... pessoas muito de bem... bem vês... para os receber em casa era preciso...
LUÍS Fez muito bem, tio... isso é que eu acho de juízo. Quantas vezes lho tenho dito?... que não sabe gozar da sua fortuna... gaste... divirtase... não se apoquente por amor de mim... Contanto que me deixe o que lhe sobrar, ainda me há de ficar bastante.
SIMPLÍCIO (à parte) Pobre rapaz!... Está-me enterrando punhais no coração...
LUÍS Não é que eu despreze a riqueza... por certo não; e muito sinceramente lhe digo se me não dá de ser rico. Mas graças a meu tio, nunca me faltou nada. E particularmente há um ano a esta parte, ou dezoito meses... têm fervido os cartuchos de peças, as notas do banco... de modo que para as poder gastar foi-me preciso empreender esta pequena viagem.
SIMPLÍCIO (à parte) E eu que cuidei que assim é que o impedia de vir!
LUÍS Faz favor de me dar uma pitada, tio!
SIMPLÍCIO Uma pitada!... pois tomas tabaco?
LUÍS Às vezes, da caixa dos outros.
SIMPLÍCIO É um mau vício... Eu deixei-me dele.
LUÍS Mais outra mudança... É extraordinário!
SIMPLÍCIO Tu hás de precisar de tomar alguma coisa. Deixa-me chamar Vicente. (Toca a campainha)
LUÍS Vicente?... É um dos criados novos? À entrada dei com uma quantidade de lacaios, todos moços tafulos... de librés novas... A propósito que caminho levou a Gertrudes... a sua ama velha que era tão sua amiga?
SIMPLÍCIO Coitada! estava bem velha.
LUÍS Pouco mais ou menos da sua idade.
SIMPLÍCIO
Aposentei-a... estabeleci-lhe uma pensão... mas não se fala nisso... que foi às escondidas.
LUÍS Como, às escondidas? Pois meu tio não é senhor do que é seu? Quem é que tem direito de?...
SIMPLÍCIO Não, certamente... ninguém tem direito de... mas é que, bem vês... há sempre más-línguas... podiam entrar a supor... E este diabo deste Vicente sem vir! (Toca com violência a campainha, depois duas ao mesmo tempo)
LUÍS Devagar, meu tio, não se impaciente... dá-me tanto gosto estar aqui a conversar...
VICENTE (entrando) O senhor quer alguma coisa?
SIMPLÍCIO Em te chamando estás sempre uma hora primeiro que venhas... Vai preparar de almoçar o mais depressa possível.
VICENTE Vou já, senhor. (Sai)
LUÍS (à parte) O que é que ele tem este meu tio?
SIMPLÍCIO No entanto, meu amigo, conversemos um pouco a teu respeito... dos teus negócios... que a minha amizade não é como o mais, essa é sempre a mesma. – Agora quando tu chegaste, te estava eu a escrever.
LUÍS Deveras?
SIMPLÍCIO É verdade. Para saber novas tuas... davas-me cuidado... Escrevesteme há dois meses que saías de Lisboa...
LUÍS E com efeito parti... mas demorei-me no caminho... fiz uma voltazita para chegar aqui... E sucedeu-me uma aventura interessantíssima... Hei de lha contar.
SIMPLÍCIO Ah maganão! madama no caso?
LUÍS Nada, nada. Desta vez é uma menina... uma menina solteira... um anjo!
SIMPLÍCIO Melhor, melhor, porque enfim tu não tens nada que te empeça... de... casar.
LUÍS Casar!... não tenho pressa... na minha idade... quando a gente se diverte... que é feliz...
SIMPLÍCIO Ah... maroto... com quê casar... para você, e como o tomar tabaco? Não quer senão da caixa dos outros...
LUÍS Se visse como ela é bonita? Disse-me que ia para Lisboa... Eu não quis passar tão perto daqui sem lhe vir dar um abraço, tio; mas a falar verdade... se não fosse...
SIMPLÍCIO Dize, explica-te.
LUÍS Tenho medo de o desgostar.
SIMPLÍCIO Não importa... anda, dize.
LUÍS Pois a verdade é... que estou morrendo por ir atrás dela... e querialhe pedir licença para me logo pôr a caminho.
SIMPLÍCIO Faze o que quiseres, filho... eu antes queria ter-te aqui algum tempo comigo... mas uma vez que é impossível...
LUÍS Impossível não; se o tio quer...
SIMPLÍCIO Não, não te incomodes... Queres partir hoje?
LUÍS Amanhã de manhã... que lhe parece?
SIMPLÍCIO Cai mesmo a propósito... tinha-me esquecido de to dizer; também eu parto amanhã... uma digressãozita pequena.
LUÍS Para a banda do Porto... ou para Lisboa?
SIMPLÍCIO Não, o contrário.
LUÍS O contrário!
VICENTE (no fundo) Senhor, o almoço está na mesa.
SIMPLÍCIO Vai almoçar, anda, rapaz... desculpa-me que te não posso fazer companhia... almoço muito mais cedo.
LUÍS Era o que faltava, que fizesse agora cerimônia comigo.
SIMPLÍCIO Vicente?
VICENTE (chegando-se) Senhor.
SIMPLÍCIO Ouve. (Fala-lhe ao ouvido)
VICENTE Basta, senhor, esteja descansado.
SIMPLÍCIO Luís?... Ensina-lhe o caminho, Vicente.
LUÍS E é preciso; está tudo tão mudado, tão grandioso... não sei se eu acertaria com a casa de jantar.
CENA V
SIMPLÍCIO (só) Ah! respiremos... Umas poucas de vezes me ia perdendo... que fortuna estar minha mulher fora de casa!... Enfim como ele parte amanhã, daqui a alguns dias lhe escreverei. Por hoje, tomando as minhas precauções... acautelando-me e tal, posso-me ainda livrar...
A Vicente recomendei-lhe segredo, e que advertisse os outros criados... O caso agora é prevenir minha sogra... tarda bem! (Vai ao fundo) Parece-me que a ouço... Ei-la aí com efeito... Que senhoras são estas que vêm com ela? Santo Deus!... minha mulher... Cândida! E a prima Lúcia... Está tudo perdido.
CENA VI Simplício, D. Teresa, D. Cândida, D. Lúcia.
SIMPLÍCIO Minha querida filha... Como ela vem bonita! (Abraça a mulher)
D. LÚCIA Então, e a mim, primo, não me diz nada?
SIMPLÍCIO Adeus, minha rica Lúcia.
D. TERESA Quando eu entrava em casa do governador civil, chegava a caleça destas senhoras.
D. LÚCIA Não me esperavam tão cedo?... Não cabe em si de contente o primo.
SIMPLÍCIO Decerto... Estou numa alegria... Mas o que – estava ajustado era irmo-las nós lá buscar.
D. LÚCIA Foi Cândida que quis vir por força; andava aborrecida, numa melancolia...
SIMPLÍCIO E é verdade... não reparei ao princípio. Tu que eras tão alegre, tão...
D. TERESA Saudades do marido, da sua mamã... Não é assim, minha filha?
D. CÂNDIDA Sim, mamã, sim... já não podia estar sem os ver, precisava de Vir para aqui, de... Eu não tenho andado boa.
SIMPLÍCIO Doente! Oh! já, já chamar o doutor.
D. LÚCIA Não é preciso, encontramo-lo, e não tarda aí decerto... é uma visita mais que se conta.
SIMPLÍCIO De que serve ir às Caldas para vir doente? Então vocês não se divertiram?
D. LÚCIA Nada, não! Divertimo-nos imenso; todos os dias bailes, funções, passeios.
SIMPLÍCIO Espera... não ouviram passos aqui por este lado?
D. TERESA Não...
SIMPLÍCIO (sossegando) Ah! então iam ao baile... tinham funções?...
D. LÚCIA Não faz ideia, primo; era uma delícia. E sabem? Cândida e eu passávamos por meninas solteiras.
SIMPLÍCIO Ah?... Cândida também!...
D. LÚCIA Também: foi uma brincadeira que muito nos divertiu. Maria do Ó, a mulher do governador, é que fazia de mamã: foi concertado com ela. Era um gosto ver como todos nos queriam fazer a corte... à Cândida mais, porque andava mais tafula, mais rica... Muito rimos nós com ver os rapazes que queriam casar com ela.
SIMPLÍCIO Sim?... tinha sua graça.
D. LÚCIA Era o que eu lhe dizia: é pena que não possas casar duas vezes... tinha muita graça.
D. TERESA Muito pouca gravidade nesses brinquedos, Lúcia; cada vez me pesa mais não ter eu ido com vocês.
D. LÚCIA Ó tia, posso-lhe afirmar que a gente não fazia caso nenhum deles... dos nossos rendidos. Pela minha parte, só um ou dois é que poderiam assim...
SIMPLÍCIO (sobressaltado) Ouçam!... parece-me que senti abrir uma porta...
D. TERESA E então!... creio que está a sonhar.
SIMPLÍCIO Não fale tão alto... Tem um metal de voz esta senhora!
D. TERESA Então que é isto? Aqui há coisa extraordinária.
SIMPLÍCIO
É verdade, há: então que quer?... Estou num lance, num aperto...
D. TERESA Por quê? diga.
SIMPLÍCIO Por quê?... porque está ali ele... chegou.
D. CÂNDIDA Ele quem?
SIMPLÍCIO Meu sobrinho.
D. TERESA Seu sobrinho está aqui?
D. LÚCIA Aquele que era seu herdeiro, e de quem se escondeu este casamento?
SIMPLÍCIO (fazendo-lhe sinal que fale baixo) Esse mesmo... Está resolvido a partir amanhã, e eu quero ver se faço com que ele parta hoje.
D. TERESA Tem razão... seu sobrinho há de ser rapaz galante, certamente: se, ficasse aqui... podia haver receio...
SIMPLÍCIO Receio... medo de tudo!... Mas já agora não há outro remédio senão este, é não lhe aparecer. Vão para os seus quartos e deixem-se estar até... até à tarde, não é muito tempo.
D. TERESA Também sou desse voto.
D. LÚCIA Que pena! Uma casa tão só como esta, e onde quase nunca se vê uma figura humana!
D. TERESA Minha sobrinha!
D. LÚCIA Eu não disse isto pela tia.
D. CÂNDIDA Não façam caso do que ela diz. Há de se fazer como querem: a mais interessada nisso sou eu. Seu sobrinho não pode ter gosto em me ver: há de me ter por sua inimiga; eu estimo muito mais não o encontrar... Além disso basta que seja sua vontade...
SIMPLÍCIO É um anjo, um gênio de pomba... Ora isto... isto! Tê-la eu aqui ao pé de mim, depois de uma ausência tamanha, e vir este diacho deste Luís...
D. LÚCIA Luís!
D. CÂNDIDA Luís!
SIMPLÍCIO Sim, e o nome dele. Então prometem estar em segredo todas três!
D. LÚCIA (à parte) E mais eu tinha bem curiosidade.
SIMPLÍCIO Perdoa-me, Cândida, separar-me de ti... O que era melhor era iremse fechar na casa do café no jardim... está mais longe, mais só.
D. CÂNDIDA Pois Sim, como quiser.
SIMPLÍCIO Vão por dentro dos quartos, que não sinta ele...
CENA VII Simplício e depois Luís.
SIMPLÍCIO (à parte, da esquerda, seguindo com os olhos a mulher) Que pena! Nunca a vi tão boa comigo, tão mansinha, tão... Adeus, adeus! (Atirando-lhe beijos)
LUÍS (entrando da direita) Apre, senhor meu tio.
SIMPLÍCIO (fechando a porta de repente) Hein! Então que é isso?
LUÍS Digo-lhe, meu tio, que a sua cozinha sempre está! seguiu a marcha da civilização; é deste século o seu cozinheiro, é um homem de luzes, não tem dúvida.
SIMPLÍCIO (à parte) Pregou-me um susto!...
LUÍS Agora, meu tio, estou pronto a correr os seus estados: venha-me mostrar as mudanças, os melhoramentos, todas essas coisas novas... Leio-lhe nos olhos que está morrendo por isso, e eu também estou com minha curiosidade de saber...
SIMPLÍCIO (à parte) Como há de ser para o resolver a partir já?
LUÍS Primeiro vamos ao jardim se quiser... Parece-me de longe uma casa de fresco nova... e linda... É um quiosque... ou é?...
SIMPLÍCIO (à parte) Tem um instinto para me atormentar, este meu sobrinho!... (Alto) Com muito gosto eu ia... mas estou num cuidado...
LUÍS Coisa que o aflige, tio?
SIMPLÍCIO E verdade; e não sei como to hei de dizer.
LUÍS Alguma notícia desagradável?
SIMPLÍCIO Muito desagradável! (À parte) Bom! chegamos a elas. (Alto) Uma carta de Lisboa, que recebi neste instante, em que me avisam que uma casa em que eu tinha bastante dinheiro, cem mil cruzados, está a falir.
LUÍS Diacho! É terrível essa.
SIMPLÍCIO Agora o ponto era não perder um instante... Bem vês que a mais pequena demora... Eu tinha-me lembrado que talvez tu... se te não desse...
LUÍS De partir hoje? Em casos tais não se olha a coisa nenhuma: estou à sua disposição.
SIMPLÍCIO
Queres? Não esperava menos de ti. Vou escrever depressa duas palavras e trazer-te os papéis necessários... Tratarás de te entender com o meu correspondente.
LUÍS Em o tio acabando monto a cavalo.
SIMPLÍCIO Meu Luís! Ninguém tem um sobrinho como eu. (À parte) Estou livre dele. (Alto) Espera aqui, eu venho já. (Vicente atravessa o teatro do fundo para a esquerda com uma caixa de chapéus, um xaile e um guarda-sol de senhora)
LUÍS Tio Simplício!
SIMPLÍCIO Hein!
LUÍS O que é aquilo que ali vai? o seu criado com um xaile... um guardasol de senhora?
SIMPLÍCIO (à parte) Bonita a fez Vicente! tem um juízo!
VICENTE Chama-me, o senhor?
SIMPLÍCIO Não, não; vai-te.
LUÍS Então tem senhoras em casa o tio, e não mo dizia?
SIMPLÍCIO
Senhoras... Ah! sim... é que fiem já me lembrava... E uma pessoa... uma senhora daquela quinta no alto... Vai para o Porto... e...
LUÍS Ah! vai para o Porto! anda tudo por aqui a viajar, pelo que vejo.
SIMPLÍCIO Teve medo de descer na liteira lá daquelas alturas... ofereci-lhe que viesse aqui esperá-la... e...
LUÍS É mais cômodo... E é moça a tal senhora?
SIMPLÍCIO Está bom! Uma idade respeitável. Querem ver que já tu cuidavas?... Oh! está sossegado, não tenhas medo. Quando me acontecesse... Adeus! não tardo aqui dez minutos.
CENA VIII
LUÍS DE MELO (só) Senhor meu tio, senhor meu tio! aqui há coisa, seja ela qual for. Por modo que se quer ver livre de mim. Já esta manhã não instou comigo para ficar. E agora de repente esta casa de Lisboa que quebrou assim como de encomenda... Aqui há mistério... Eu já tinha minhas suspeitas... Este casarão velho todo arranjado de novo... meu tio deixado de tomar tabaco... com o rabicho cortado... E este luxo, estes trastes elegantes... E esperem; eu ainda não tinha visto aquilo... uma caixa de costura... isto não pode ser. (Abre a caixa) Tal e qual. Bordados... lãs!... Que maganão que é o tio Simplício! Demitiu a Gertrudes velha, e deu o lugar a alguma criadinha moça e tafula, meia ama, meia criada... O costume! É o flagelo dos solteirões velhos. Pobre tio Simplício! Mas onde a tem ele escondida? Se terá ciúmes de mim? Oh! isso agora é que me faria rir.
CENA IX Luís e D. Lúcia.
D. LÚCIA (entrando pé ante pé) Não posso resistir. Por força hei de ver este sobrinho que mete medo a toda a gente.
LUÍS Esta não é má! Eu lhe prometo que hei de descobri-la... Vou revolver a casa toda. (Vai a sair)
D. LÚCIA (dando de repente com os olhos nele) Ai!
LUÍS É possível!
D. LÚCIA Pois é o senhor?
LUÍS A Sra. D. Lúcia aqui? Conhece meu tio Simplício?
D. LÚCIA Seu tio!... Então o senhor é que é o sobrinho?
LUÍS Que feliz acaso! Tenho tantas coisas que lhe perguntar!... E primeiro que tudo, aquela menina que andava em sua companhia nas Caldas... sua prima, creio eu... onde está, que é dela? Aqui... estou vendo. Não se separaram...
D. LÚCIA Pois separámo-nos, e bem sabe o senhor... Por quê? ela não lhe disse que voltava para Lisboa?
LUÍS É verdade, e foi tudo quanto me disse... Mas a Sra. D. Lúcia conhecer meu tio? De onde o conhece? Dar-se-á o caso que sejamos parentes? Não veio sozinha para esta quinta... decerto. Fica aqui muito tempo?
D. LÚCIA Não, não senhor, foi um acaso... de passagem...
LUÍS Ah! vai para o Porto?
D. LÚCIA Dê-me licença que me retire... Se nos vissem aqui a conversar...
LUÍS Que quererá dizer isto?... Temos outro mistério...
CENA X Ditos e Simões.
SIMÕES Ah! Sra. D. Lúcia! Venho correndo com uma pressa... O Sr. Simplício disse que viesse, que viesse... quer que lhe eu veja imediatamente a mulher.
LUÍS Sua mulher!
SIMÕES Certamente.
D. LÚCIA (à parte) Vamos já dar parte a minha tia. (Escapa-se pelo fundo)
LUÍS Então meu tio é casado?
SIMÕES (à parte) Ai, que é o sobrinho!... Fi-la bonita.
LUÍS É horrível... é indigno isto! Casar-se, e ocult ar-me o seu casamento! Nunca cuidei que fosse capaz de me enganar assim...
SIMÕES (à parte) Vejamos se o sossego. (Alto) Venha cá, senhor; a coisa não é tão feia como lhe parece.
LUÍS Mas enfim como se fez este casamento?... que tempo há... com quem? Há de sabê-lo o senhor... creio que é seu amigo.
SIMÕES Sou... isto é, sou o seu facultativo.
LUÍS Não vem a ser bem a mesma coisa... mas não importa... Quem é que lhe meteu na cabeça semelhante loucura? Não foi coisa dele... é que abusaram da sua fraqueza.
SIMÕES Permita-me que lhe diga que os meus princípios me não deixam meter em negócios de família; todo o meu tempo é dos meus doentes... Há de permitir... (Querendo partir)
LUÍS Por quem é, senhor, responda-me... Quem é esta mulher?... Está aqui na quinta? Não poderei sequer ao menos vê-la?...
SIMÕES Torno a repetir-lhe, senhor... Mas espere... olhe: aqui vem uma senhora que lhe pode explicar tudo isso muito melhor do que eu.
(Aparece D. Teresa no fundo)
LUÍS Uma senhora!
SIMÕES Safa! lá se avenham como puderem. (Vai-se pela esquerda)
CENA XI Luís, D. Teresa.
LUÍS (à parte) Querem ver que é esta? Com a fortuna!... E tem-me cara de o ser...
D. TERESA (à parte) Há de estar desesperado... mas eu o farei entrar na razão.
LUÍS Minha senhora... acabo de saber neste instante...
D. TERESA Que seu tio está casado?... Sim senhor, é verdade; e fez muito mal em lho encobrir... por meu voto não foi; e se ele tomasse os meus conselhos, há muito que seu sobrinho o saberia.
LUÍS (à parte) Bem no dizia eu!... É minha tia. Vamos... o doutor não deixa de ter razão... o mal não é tamanho como se cuidava.
D. TERESA Seu tio tem-lhe muita amizade; e eu espero que o senhor não há de procurar, nem pelas suas palavras nem pelo seu procedimento, destruir a felicidade de um parente que o tem enchido de benefícios.
LUÍS Assim é, minha senhora.
D. TERESA E se assim não fosse... eu bem sei como me hei de haver... desde já lho declaro.
LUÍS (à parte) Parece-me extremamente amável a tal minha tia. (Alto) Confessolhe, minha senhora, que no primeiro momento... não pude ser senhor de mim... Bem vê que era natural... eu não sabia que este casamento tinha sido tão acertado, tão igual... em todos os sentidos.
D. TERESA (à parte) Que quererá ele dizer com isto?
LUÍS E não posso deixar de louvar a meu tio o ter escolhido uma esposa cujas qualidades amadurecidas pela idade e pela experiência...
D. TERESA (à parte) isto é mangação, ou?...
LUÍS E pela minha parte... eu também espero que me não hão de alienar o coração de meu tio; e que em vez de perder a sua amizade, antes hei de merecer a da minha respeitável tia. (Faz-lhe uma inclinação profunda)
D. TERESA (à parte) Pois então!... não está persuadido que!... Não me atrevo a desenganá-lo.
LUÍS (à parte) Meu pobre, desgraçado tio!... Foi mesmo de quem estava abandonado de Deus.
CENA XII Ditos e Simplício.
SIMPLÍCIO (entrando) Luís, aqui tens a carta e os papéis... (Parando) A sogra! justos céus!
LUÍS (dando-lhe a mão) Toque, meu tio, toque. (À parte) Coitado!
SIMPLÍCIO (admirado) Com muito gosto, meu Luís... mas dizes-me isso com um modo...
LUÍS (chamando-o de parte) Já sei a desgraça que lhe sucedeu.
SIMPLÍCIO (em voz baixa) A desgraça?
LUÍS Caluda!
D. TERESA (à parte) Deus queira que me não vá ele agora desmentir!
LUÍS (compungido) Diga-me se é feliz, tio; preciso saber se é feliz, tio Simplício.
SIMPLÍCIO Ora esta! Que pergunta! Tu conheces-me, sabes que não me amofino facilmente... E demais, quando a gente é livre, quando é...
LUÍS Quando é casado...
SIMPLÍCIO Hein! Que dizes tu... (Assustado)
LUÍS Eu sei tudo, meu tio.
SIMPLÍCIO (à parte) Deus do céu, que horrível sogra! Foi ela que me deitou a perder.
LUÍS Não receie das minhas queixas, tio, não; realmente é um casamento muito razoável.
SIMPLÍCIO (muito animado) Não é verdade? Parece-me que é muito razoável... Entretanto há pessoas que notam a desproporção da idade.
LUÍS Nessa parte têm sua razão. Meu tio é muito moço de mais para ela, mas.
SIMPLÍCIO Estás zombando?
D. TERESA (à parte) Que estarão eles dizendo?
LUÍS Salvo, contudo, se inclinação antiga, de outros tempos... e de...
SIMPLÍCIO Antiga!... O quê?... como?
LUÍS Então... algum amor de infância... a sua primeira paixão... Por que não seria?
SIMPLÍCIO (à parte) Que me melem se eu entendo o que ele diz.
LUÍS No seu tempo havia de ser bela mulher... E examinando-a bem inda agora...
SIMPLÍCIO Hein? Examinando quem? (Olha para todos os lados)
LUÍS Veja o perfil. (Apontando para D. Teresa) É clássico... Veja... é como dizem agora os jornalistas, é plástico... Eu não sei bem o que é, nem eles... mas não importa.
SIMPLÍCIO Sim, sim; ainda tem os seus restos... (À parte) Começo a desconfiar.
LUÍS Ora vamos, já sei; é alguma paixão do seu tempo... Mas fale com ela: é esquisito estarmos nós assim a, conversar para aqui sós, à parte...
SIMPLÍCIO É verdade... (A D. Teresa) Minha se... minha querida, pelo que vejo já informou... tu já informaste meu sobrinho...
D. TERESA O acaso fez tudo... e eu assentei que não devia negar...
SIMPLÍCIO (à parte) Que excelente invenção! (Alto) Olha... não sabes quanto sou feliz; e se conhecesses tua tia... é um anjo, um serafim. (Beija a mão de D. Teresa)
LUÍS (à parte) Ainda bem que a vê com tão bons olhos!
SIMPLÍCIO Quanto a ti, meu caro Luís, este casamento pouco te deve assustar... a idade da minha mulher...
D. TERESA Senhor!...
SIMPLÍCIO (a D. Teresa) Cale-se: é para o persuadir mais.
LUÍS (à parte) Não é muito amável com a noiva o tal meu tio Simplício.
SIMPLÍCIO Podes ficar descansado, não tens que recear de outros herdeiros...
D. TERESA Basta, senhor, basta.
LUÍS Meu tio!...
CENA XIII Ditos e Simões.
SIMÕES (à parte) Estão juntos, e tiveram já tempo de se explicarem.
SIMPLÍCIO (à parte) O doutor? Sempre vem fora de propósito.
SIMÕES Andava à sua procura, Sr. Simplício, porque queria dizer-lhe que se não falham certos indícios, a cara esposa não está muito boa.
SIMPLÍCIO (à parte) Oh meu Deus!
SIMÕES Ainda não posso definir o que é... mas tem alguma coisa... pareceme que não há dúvida: também já era tempo...
D. TERESA Está louco, doutor, não é possível... e pelo menos... Eu nunca me senti tão bem.
SIMÕES A Sra. D. Teresa?
SIMPLÍCIO Certamente: basta vê-la, aquela cor... aquela frescura.
SIMÕES Então, então, entendamo-nos.
D. TERESA (baixo ao doutor) Cale-se, doutor.
SIMÕES (à parte) Ah! isso é outro caso; pelos modos cometi outra imprudência.
SIMPLÍCIO O doutor queria assustar-nos. (A parte) Pobre Cândida, e eu sem estar ao pé dela.
SIMÕES Em todo o caso eu voltarei outra vez, preciso estudar os sintomas.
SIMPLÍCIO É isso, venha jantar conosco, verá que apetite que ela traz... E tu, meu sobrinho, podes voltar para Lisboa, sem o menor cuidado na saúde de tua tia.
(Saem o doutor e D. Teresa)
CENA XIV Simplício, Luís.
LUÍS Partir? então sempre quer que parta?
SIMPLÍCIO Que remédio? Aquela quebra... os meus dez contos de réis!...
LUÍS Tinha-me dito cem mil cruzados.
SIMPLÍCIO Cem mil cruzados, é verdade... Maior motivo para te apressares... Toma: aqui está a carta e os papéis.
LUÍS (pegando-lhe) Basta, meu tio. (À parte) Cuidas que me enganas?...
SIMPLÍCIO A mala está no teu quarto onde tu costumas ficar.
LUÍS Sim senhor, meu tio. (Vai-se)
CENA XV
SIMPLÍCIO (só) Ah! desta vez ainda eu escapei. Safa, que medo! Mas a pobre Cândida que está à minha espera... Se eu fosse... enquanto meu sobrinho está no seu quarto arranjando-se... É arriscado, mas não importa: vou. (Toma para a porta da esquerda)
CENA XVI Simplício, D. Cândida.
D. CÂNDIDA Está só?
SIMPLÍCIO ÉS tu, querida? Então vieste só para me ver, anjinho? (Com pieguice)
D. CÂNDIDA Tenho que lhe dizer... e é coisa séria. Está certo que ninguém nos ouve?
SIMPLÍCIO Meu sobrinho foi para o seu quarto aprontar-se para partir.
D. CÂNDIDA Seu sobrinho já sabe tudo: disse-mo Lúcia. Descobriu o nosso casamento e diz que me quer ver.
SIMPLÍCIO Qual! não fazes ideia que engano tão gracioso. Pois não foi cuidar o pateta do rapaz que tua mãe era a minha mulher?
D. CÂNDIDA (com ironia) Ah!... Sim?...
SIMPLÍCIO E ratão... não achas? Pobre rapaz! Pois digo-te que tenho remorsos de o enganar desta maneira! Mas eu o recompensarei quando se casar, que me parece que há de ser cedo.
D. CÂNDIDA O quê? Pois pensa!...
SIMPLÍCIO Penso!... Ele contou-me certos segredos...
D. CÂNDIDA (com vivacidade) Quais? Diga, não posso sabê-los eu?
SIMPLÍCIO Por ora não há nada positivo... Uma menina que ele adora... que espera encontrar em Lisboa... Mas que tens tu? Estás agora pior: que sentes?
D. CÂNDIDA Bem sabe que a minha saúde... O doutor havia de lhe dizer...
SIMPLÍCIO Ora o doutor não sabe o que diz. Eu acho-te melhor do que antes da jornada... O teu rosto tomou uma expressão... (Quer abraçá-la)
D. CÂNDIDA Vou-me embora... Jesus, se seu sobrinho!...
SIMPLÍCIO Por modo que ainda tens mais medo dele do que eu?
D. CÂNDIDA Confesso-lhe que enquanto ele aqui estiver...
SIMPLÍCIO Não receies... por um momento que estou só contigo... (Quer abraçála)
CENA XVII Ditos e D. Lúcia.
D. LÚCIA (do fundo) Meu primo... senhor Manuel Simplício?
SIMPLÍCIO (à parte) Agora é a prima... Que diabo de parentela!
D. LÚCIA Tu aqui, Cândida?
SIMPLÍCIO Vamos, priminha, que quer?
D. LÚCIA E que seu sobrinho, andava eu a passear no jardim... e... ele viu-me da janela...
SIMPLÍCIO Imprudente! Para que saiu? Tinha-me prometido não sair?... (Ouvindo bulha) Aí vou, aí vou depressa. Temos ainda outra história que arranjar.
D. LÚCIA Contanto que ele me não seguisse.
SIMPLÍCIO Andem, entrem ambas para aquele quarto, e não me saiam dali.
D. LÚCIA Veja se nos deixa fechadas até amanhã.
SIMPLÍCIO Vamos, que eu as avisarei quando ele tiver partido. Tomem sentido; quando esta campainha tocar, que é sinal... Maldito sobrinho! Não o torno a largar enquanto o não vir a cavalo. (Vai-se)
CENA XVIII D. Cândida, D. Lúcia.
D. CÂNDIDA Lúcia, vamo-nos daqui.
D. LÚCIA Ora! pois não. O tio que o prenda para ele cá não vir.
D. CÂNDIDA Tu fizeste mal em lhe aparecer.
D. LÚCIA Sim! havia de estar todo o dia fechada! E demais, eu não sei para que mandam o rapaz embora.
D. CÂNDIDA Então! é a vontade de meu marido.
D. LÚCIA Tu não lhe disseste que o tínhamos encontrado nas Caldas?
D. CÂNDIDA Não. E faz-me o favor de o não dizeres a ninguém... Lembra-te que mo prometeste.
D. LÚCIA Por quê? Talvez isso fizesse com que ele ficasse... E sabes que mais?... olha, falando a verdade, este é um dos dois que se me não dava...
D. CÂNDIDA O quê? pois tu... Dar-se-á o caso que tu?...
D. LÚCIA Decerto... E ele... pareceu-me ler-lhe nos olhos... quando dançávamos ambos... Adiante! Eu cá me entendo.
D. CÂNDIDA Talvez te enganes...
D. LÚCIA
Sim, bem sei o que queres dizer, que também a ti te fazia a corte... Pode ser, não digo que não. Homens! É sabido. Mas eu bem vi que ele dançava contigo por tu seres minha prima, nada mais. De sorte que bem sei que para ti, Cândida, que ele fique que não fique, é a mesma coisa, porque já estás casada. Agora eu... se ele aqui se demorasse algum tempo... Quem sabe... têm-se visto coisas mais extraordinárias.
D. CÂNDIDA Deixa-te disso, Lúcia... não penses em tal.
D. LÚCIA Mas por quê?
D. CÂNDIDA Porque te cansavas debalde... Este rapaz não te faz conta...
D. LÚCIA Se eu já te disse que me fazia conta...
D. CÂNDIDA Lembra-te que ele se vai embora... que daqui a uma hora estará muito longe daqui... e é provável que nunca mais o vejas...
D. LÚCIA (vendo Luís) Nada, não! Olha, ele aí vem.
D. CÂNDIDA Ah!...
CENA XIX Ditas e Luís.
LUÍS (a D. Cândida) Que vejo! Ah! tinham-me enganado ambas.
D. LÚCIA Onde está o Sr. Manuel Simplício?
LUÍS Não tenha receio, fechei-o à chave no meu quarto.
D. LÚCIA (rindo) Ah! ah! ah! Tocou-lhe a sua vez de ficar preso.
D. CÂNDIDA Anda., Lúcia, vamo-nos embora... Vamos já, vamos.
LUÍS (segurando-a) Não, não me escapa segunda vez, desengane-se... Cuidava ir encontrá-la em Lisboa, e venho achá-la aqui. Que mistério é: este? É preciso explicar-mo, Sra. D. Cândida.
D. CÂNDIDA Explicar-lhe, o quê?
LUÍS Hei de sabê-lo, quero sabê-lo.
D. LÚCIA Para que é mau? Que tem o senhor com isso? faz favor de me dizer.
D. CÂNDIDA Lúcia, faze-me o favor de ir soltar o Sr. Simplício. Eu não devo consentir que...
D. LÚCIA Tens medo que ele se aborreça de estar fechado?
LUÍS Sim, minha senhora, vá... vá por caridade soltar o meu pobre tio... Eu não me atrevo a fazê-lo... Há de estar num acesso de cólera contra mim!
D. LÚCIA Como ambos querem, lá vou.
LUÍS Vá... (à parte) que a chave está aqui.
D. LÚCIA (à parte) Ai, ai! parece-me que o que eles querem é ficar sós. (Alto) Eu vou; eu vou. (Sai)
CENA XX Luís, D. Cândida.
LUÍS Estamos sós... agora explique-me, responda-me.
D. CÂNDIDA E se me fosse impossível fazê-lo? Por quem é não inste mais... Por bem do meu sossego lhe peço que não inste... que não pergunte nada a ninguém... e que não procure mais ver-me...
LUÍS Não tornar a vê-la! Por quê?... Duvida da minha ternura... do meu amor? Sossegue: os seus parentes conhecem decerto meu tio e em eu lhe contando tudo... em ele sabendo do nosso amor... de...
D. CÂNDIDA (vivamente) Ah! que diz? Quer-me deitar a perder?
LUÍS Perder!
D. CÂNDIDA Por quem é, não fale em tal a seu tio... que tanto o estima... e que tamanha afeição me tem...
LUÍS A quem? A ti, Cândida? como? por que título?
D. CÂNDIDA Que lhe importa?... a minha sorte depende dele... E ele tão sincero, tão generoso! Ah, que não saiba ele nunca... Eu morria, morria, decerto.
LUÍS Que ouço? Então que é isto? Pois meu tio?... Que lhe vem ele a ser, meu tio Simplício? Diga.
D. CÂNDIDA Não mo pergunte, trema de o saber... Luís... Em nome do Céu, se me tem ainda algum amor, parta já... não o devo tornar a ver... Seja esta a última vez.
LUÍS A última vez!
D. CÂNDIDA Assim é preciso. Adeus... adeus! (Sai pela esquerda)
CENA XXI
LUÍS (só) Fugiu... Que será isto? Ela depende de meu tio... meu tio é... Oh santo Deus! e este receio de o afligir... Não há dúvida, é sua filha; não pode ser outra coisa.
CENA XXII Luís, Simões.
SIMÕES (entrando pelo fundo como quem procura alguém)
Oh meu Deus! É o sobrinho... safa!...
LUÍS (segurando-o) Espere, Sr. Doutor, foi o céu que o trouxe aqui.
SIMÕES Não, meu senhor, foi a hora do jantar. Mas aonde está seu tio? Tenho-o procurado por toda a Parte...
LUÍS O Sr. Doutor tem relações com meu tio há muito tempo?
SIMÕES Há mais de dez anos, meu senhor.
LUÍS Está bem: ninguém pode servir-me melhor... Eu espero que me não recusará um favor que lhe vou pedir.
SIMÕES Está doente? Talvez a mudança de ar... Vejamos o pulso.
LUÍS Não, doutor, por ora não; depois veremos... pode ser, não perca a esperança: mas agora o que eu lhe peço é que se empenhe com meu tio Para...
SIMÕES Sr. Luís de Melo, eu tenho por princípio de me não intrometer...
LUÍS Já mo disse... Mas trata-se de uma coisa tão simples... tão natural... eu sei tudo, doutor, sei a razão por que meu tio se casou. E eu que o criminava por isso, agora acho que fez o que devia... Fez bem, fez muito bem; contudo a sua culpa para comigo sempre é a mesma; e não há senão um meio de a reparar.
SIMÕES Qual é esse meio?
LUÍS Dar-me a sua filha em casamento.
SIMÕES E esta!... Que é o que diz?
LUÍS Bem, bem, meu doutor! Guarde o seu segredo, ninguém lho pergunta... o que se quer é que fale a meu tio por mim, e lhe peça a mão de sua filha.
SIMÕES De sua filha? Qual filha?
LUÍS Por quê? quantas tem ele?
SIMÕES Quantas! Eu realmente não sei aonde estou.
LUÍS Não vou eu mesmo fazê-lo já, porque não tenho ânimo de ir lançar no rosto a meu tio uma falta... uma fraqueza de outro tempo... Não quero que ele core diante de seu sobrinho... O doutor é outra coisa... um amigo velho...
SIMÕES Como! Pois está certo de que ele tem uma filha? (À parte) O caso não é impossível.
LUÍS Diga-lhe que assim fica tudo arranjado... tudo se remedeia. Os seus deveres para com ela, e as promessas que tantas vezes me fez.
SIMÕES E vossa senhoria pretende estabelecer-se... ficar morando nestes sítios?
LUÍS Tenho essas tenções, não há dúvida.
SIMÕES (à parte) Bem... mais uma casa... um partido certo...
LUÍS Encarregue-se de a pedir, que eu arranjarei o resto.
SIMÕES E que dirá madame Simplício?
CENA XXIII Ditos, Simplício.
SIMPLÍCIO (de fora) Maldito sobrinho! Nunca, nunca lho hei de perdoar.
LUÍS Ouve-o? ele aí vem contra mim. (À parte) Alguém o soltou. (Alto) Meu doutor, aí lho deixo.
SIMÕES Espere... ouça...
LUÍS (correndo) Nada... nada, safo-me...
CENA XXIV Simões, Simplício, D. Teresa.
SIMÕES O rapaz tem um fogo... E eu que nada sabia!... Não se fiaram de mim.
SIMPLÍCIO (entrando da esquerda, seguido de D. Teresa) Aonde está ele? aonde está? não está aqui...
D. TERESA Fechar seu tio à chave! Ainda bem que eu tinha outra.
SIMPLÍCIO Terá ele partido sem esperar a repreensão?
SIMÕES Nada, não partiu; agora sai ele daqui.
SIMPLÍCIO Saiu agora daqui? Falou-lhe, doutor?
SIMÕES É verdade, e encarregou-me de uma comissão bem delicada.
SIMPLÍCIO Bom, temos outra.
SIMÕES Mas não sei se devo falar diante da senhora D. Teresa.
D. TERESA Por quê? ele tem segredos com seu tio... era o que faltava.
SIMPLÍCIO Sossegue, bela mamã, sossegue. Vamos, doutor, não se faça rogar.
SIMÕES Pois bem, eu creio que o senhor é homem de bem, e não há de encobrir nada em um caso tão melindroso.
SIMPLÍCIO Tão melindroso! O doutor quer-me assustar.
D. TERESA Explique-se, explique-se, doutor.
SIMÕES Então aí vai em duas palavras. O senhor seu sobrinho rogou-me que lhe pedisse para ele a mão de sua filha...
D. TERESA Sua filha!... Aí está, aí está o que eu receava.
SIMPLÍCIO Minha filha! Quem julga ele então que é minha filha?
D. TERESA Uma filha! meu Deus, que indignidade, que infâmia!... Vejam que fortuna espera a minha pobre Cândida.
SIMPLÍCIO Ora, senhor doutor, sabe que a graça que me não vai agradando?
SIMÕES O quê... pois a senhora não sabia?...
D. TERESA Não, doutor, enganou-me! enganou minha filha... Isto... Isto é o cúmulo do desaforo.
SIMÕES Ah! senhor Manuel Simplício, senhor Manuel Simplício!
SIMPLÍCIO Também o doutor! Então hoje anda o diabo à solta contra mim!
SIMÕES Acredite, minha senhora, que eu ignorava absolutamente... aliás nunca teria coadjuvado...
D. TERESA Pobre Cândida... vítima desgraçada!
SIMPLÍCIO (ironicamente) Desgraçada!
D. TERESA Há muito que eu desconfiava quem o senhor Simplício era! Mas creia que o caso não fica assim. Há leis nesta terra, há tribunais...
SIMPLÍCIO Sim, bela mamã?
D. TERESA Cale-se, sedutor!...
SIMPLÍCIO Sabe, senhora sogra, que me vai fugindo a paciência?
SIMÕES A falar a verdade, senhor Simplício, o seu procedimento... é...
SIMPLÍCIO Vá para o diabo, senhor doutor.
D. TERESA O senhor é um velho libertino!
SIMPLÍCIO E a senhora uma velha tonta!
D. TERESA
Acuda-me, doutor. Ai! que tenho o meu ataque de nervos. (O doutor vai a sair)
CENA XXV Ditos e Luís (entrando quando o doutor sai).
LUÍS Então, doutor?
SIMÕES Meu caro, fale por si, que eu não costumo intrometer-me... Até logo. (Sai pela esquerda)
SIMPLÍCIO Meu sobrinho! Senhora, peço-lhe que... que se modere diante dele.
LUÍS Meu tio, o doutor não lhe falou?
SIMPLÍCIO Falou sim, senhor. E com as suas graças foi vossa mercê causa de eu... de eu ter um desgosto muito grande em minha casa... É verdade: pois vais dizer a esse médico falador que eu tinha uma filha, para ele ma vir pedir para casar, diante da senhora, desta querida mulher... que por um pouco se não encolerizou...
LUÍS Talvez eu devesse primeiro dirigir-me à senhora.
D. TERESA A mim!
LUÍS Sem dúvida, pois não é sua mãe?
D. TERESA (não se podendo conter)
Justo céu! Veja, senhor, veja ao que me expõe.
SIMPLÍCIO Eu endoideço! Palavra de honra.
LUÍS Julga talvez que o meu amor é um capricho, um destes namoricos?... Não, meu tio, essa jovem senhora de quem lhe falava esta manhã, que lhe disse que tinha encontrado nas Caldas...
D. TERESA Nas Caldas?
LUÍS Sim, meu tio; e não sei porque ela me disse que ia para Lisboa. Julgue qual seria o meu gosto encontrando-a aqui nesta casa. Ignorava que fosse sua filha: ela é que há pouco mo deu a entender, apesar do terror que lhe inspirou o meu título de sobrinho... porque estou certo que a haviam de prevenir...
SIMPLÍCIO É verdade, e verdade.
D. TERESA (à parte) Será minha sobrinha?
LUÍS Parece-me que o tio tinha passado palavra a todos, mesmo a sua prima, que eu igualmente aqui vi, e que é muito galante também. Lá nas Caldas fiz a corte a ambas, a falar a verdade, mas...
SIMPLÍCIO Ah! tu fazias a corte a ambas?
LUÍS Mas uma só é que amo deveras; e parece-me que agora nada obsta à satisfação dos meus desejos.
SIMPLÍCIO Sim, sim, quando voltares da tua viagem, veremos.
LUÍS Não, meu tio, quero agora mesmo uma resposta decisiva.
SIMPLÍCIO Eu sei, meu Luís! fala com tua tia.
D. TERESA Primeiro que tudo parece-me que deveríamos consultar...
LUÍS Sua filha? É justo... contudo eu preferiria... É talvez uma criancice... mas não fazem ideia do terror com que ela ficou quando lhe falei em a pedir a meu tio.
D. TERESA (à parte) Meu Deus! se eu me enganaria... se Cândida?...
SIMPLÍCIO (à parte) É singular! Não sei por que razão Lúcia...
LUÍS Talvez que o tio seja muito severo de mais com ela. Eu suponho que a tiraniza o seu tanto. A prova disso e que nas Caldas fugia de mim ao princípio, não me queria ouvir, evitava-me.
D. TERESA Ao princípio? e depois?
LUÍS Depois um amor violento e sincero como o meu... bem sabe... D. Teresa (à parte) Estou em ânsias.
SIMPLÍCIO (refletindo)
Na verdade custa-me a acreditar.
D. TERESA O que acaba de dizer resolveu-me... Eu não dou o meu consentimento.
SIMPLÍCIO (à parte) Ela recusa!
LUÍS Pois bem, senhora; a minha felicidade e a sua talvez dependam do seu consentimento, porque ela... ama-me e... tenho provas disso.
SIMPLÍCIO Tu via-la todos os dias, ias a sua casa?
LUÍS Não... Ao princípio, já lhe disse, fugia de mim, não me queria aparecer: rigor que mais me apaixonava... até que enfim...
SIMPLÍCIO Enfim?...
LUÍS Uma noite... num baile alcancei uma confissão...
D. TERESA (à parte) Como hei de eu interromper esta conversação maldita?
SIMPLÍCIO Mais uma palavra... Tu não nos disseste qual das duas primas...
D. TERESA Basta, senhor, esta conversa aflige-o... Não está bom, está...
SIMPLÍCIO Não é nada... deixe-me...
LUÍS Com efeito, meu tio está alterado!
SIMPLÍCIO Vamos, tu deves saber os nomes: responde-me.
D. TERESA Está pálido! Eu vou chamar alguém. (Corre à campainha e toca com muita força)
SIMPLÍCIO Espere, senhora. (À parte) já não é tempo, elas aí vêm.
LUÍS (à parte) Como ele está fora de si!
SIMPLÍCIO O seu nome... o seu nome?... dize-mo.
LUÍS Mas que é isto, meu tio, que tem?
SIMPLÍCIO O seu nome? pergunto-te o seu nome.
(Neste momento D. Lúcia e D. Cândida aparecem no fundo)
CENA XXVI Ditos, D. Lúcia, D. Cândida.
D. TERESA Venha cá, senhora.
D. LÚCIA Aqui estou... quer-me alguma coisa?
D. CÂNDIDA (à parte) Ainda ele aqui está?
D. LÚCIA Como a tia está zangada!
D. TERESA E tenho razão para isso, senhora... mas é inútil recordar coisas que...
SIMPLÍCIO Não é inútil, não é inútil: eu quero esclarecer este negócio.
D. TERESA Ora, senhor!
SIMPLÍCIO Nada! eu tenho as minhas razões... Lúcia... responda-me: em nome de sua tia e no meu lhe pergunto qual foi o seu procedimento nas Caldas?
LUÍS (à parte) Ora esta! ele engana-se.
D. LÚCIA O que eu fiz nas Caldas?... Dancei, não é assim, Cândida?... passeei...
D. CÂNDIDA (à parte) Eu morro!
LUÍS Mas meu tio...
D. TERESA Silêncio, senhor, não a defenda.
D. LÚCIA
Defender-me! de quê?
SIMPLÍCIO Não se recorda de certo baile... de um passeio... de?...
D. CÂNDIDA (à parte) Meu Deus!
LUÍS (à parte olhando para D. Cândida) Que suspeita!
D. LÚCIA Um passeio? Lembras-te disso, Cândida?
SIMPLÍCIO Nada de rodeios, senhora; meu sobrinho contou-nos tudo.
D. CÂNDIDA (à parte) Ele!
D. LÚCIA Foi ele, o senhor que disse? Eu não me atrevo a desmenti-lo; mas ou eu me esqueci, ou... Cândida talvez se lembre melhor.
SIMPLÍCIO Então, Cândida... já que sua prima nada quer dizer, fale, recorde-se.
D. TERESA (à parte) Isto é morrer...
SIMPLÍCIO Não responde?
D. CÂNDIDA Senhor...
D. LÚCIA
Avia-te, responde a teu marido.
LUÍS (estupefato) Seu marido! Meu Deus... que fui eu dizer! (Tomando resolução)
D. TERESA (que o percebe) Já era tempo.
LUÍS (à parte) É preciso valer-lhe. (Alto) Meu tio, para que está com esses interrogatórios? A senhora D. Când... ela ignorava esta aventura, e quando a soubesse, e tão amiga de sua prima, não a quer acusar.
D. TERESA Tem razão, diz muito bem.
LUÍS (a D. Lúcia) Quanto à senhora D. Lúcia, peço-lhe que não dissimule por mais tempo a indiscrição que eu cometi de falar dos nossos amores a meu tio...
D. LÚCIA Sim? E esta!
LUÍS O erro é imperdoável, convenho; mas tome o meu conselho, o meu exemplo, imite a minha franqueza. (Baixo a D. Lúcia) Não me desminta, que eu caso.
D. LÚCIA Não é possível!
LUÍS Sim, adorada Lúcia, é preciso confessar tudo; assim poderemos esperar que...
D. LÚCIA (à parte)
Isto é um sonho.
SIMPLÍCIO (tornando a si e alegre) Então é verdade, Lúcia, que meu sobrinho te fez a corte, que tu lhe correspondeste nas Caldas?
D. LÚCIA Ora, meu primo...
D. CÂNDIDA (à parte) Ela confessa!
SIMPLÍCIO Foste tu que naquele baile passeaste com ele?
LUÍS (baixo) Ânimo!
D. LÚCIA Espere... parece-me que sim... Sim, agora me lembra.
SIMPLÍCIO Vejam lá a santinha!... E como ela negava com uma serenidade!...
D. LÚCIA No meu lugar todas fariam o mesmo.
SIMPLÍCIO Sim, lá isso é verdade... E tu, Cândida, minha querida, perdoas-me?
D. CÂNDIDA O quê?
SIMPLÍCIO Nada, nada. (À parte) É o mesmo; mas antes quero que, Lúcia seja a mulher de meu sobrinho do que a minha...
D. TERESA
Ah! até que enfim respiro...
CENA XXVII Ditos, Simões.
SIMÕES Meus senhores, venho dizer – lhes que o jantar está na mesa.
SIMPLÍCIO Venha cá, doutor, há casamentos por aqui, venha.
SIMÕES Sim! então arranjou-se tudo?...
SIMPLÍCIO Meu sobrinho casa com a priminha...
SIMÕES Ah! aposto que essa era a tal filha que ele cuidava?
SIMPLÍCIO Pobre Luís, deves estar muito contra mim.
LUÍS Meu tio, acredita que eu penso em tal! E então agora! tão feliz, tão...
SIMPLÍCIO Sim, hás de sê-lo: e para começar a tua fortuna dou-te vinte contos de réis.
LUÍS e D. LÚCIA Meu tio!
SIMPLÍCIO
E se querem ficar conosco, esta casa é grande, os jardins também... (A D. Cândida) Não é assim, querida? Aqui podem passear sós... à noite... para se lembrarem...
LUÍS Não, meu tio; eu volto para Lisboa com minha mulher... sempre preferi a capital
D. LÚCIA Decerto! Nós preferimos a capital.
SIMÕES (à parte) Ah, se eu tal soubesse! É uma casa de menos.
SIMPLÍCIO Então, meu amigo, não te arrependes? Estás contente?
LUÍS Sim, meu tio, e muito. (À parte) Era minha tia!
SIMÕES Como todos estão contentes, vamos jantar.
SIMPLÍCIO Dá o braço a tua tia, rapaz.
LUÍS (indo a dar o braço a D. Cândida para e vai oferecê-lo a D. Lúcia) Meu tio!... não: agora começam as minhas obrigações de marido.
D. LÚCIA (baixo, por um lado, a Luís) Muito bem!
D. CÂNDIDA (baixo, por outro lado) Muito bem!
D. TERESA Vamos jantar.
TODOS Vamos
Almeida Garrett
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