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O ANJO DO SEGUNDO ANDAR
Carter Brigham – Carter Webright Brigham, como aparecia nos sumários de diversas revistas populares – acordou sobressaltado, passando do estado inconsciente para a plena consciência com rapidez excessiva para duvidar que seu sono tivesse sido perturbado por algo exterior.
Não havia luar, e seu apartamento dava para o lado contrário das luzes da rua. A escuridão à sua volta era completa; ele sequer enxergava o pé da cama.
Prendendo a respiração, e não se movendo após aquele primeiro sobressalto, permaneceu deitado, de olhos e ouvidos bem abertos. No instante seguinte, sobreveio um barulho – talvez a repetição do som que o despertara – do aposento vizinho: um movimento furtivo de pés atravessando as tábuas corridas. Um momento de silêncio... e uma cadeira arrastando sobre o chão, como que deslocada pelo esbarrão de uma canela. Em seguida, silêncio novamente, e um leve ruge-ruge, como se um corpo roçasse contra o papel áspero da parede.
Carter Brigham não era nem herói, nem covarde, e não estava armado. Não havia nada mais letal em seu apartamento do que um par de candelabros, e mesmo estes – nada desprezíveis como armas em uma situação de emergência – estavam do outro lado do aposento de onde vinham os barulhos.
Tivesse sido acordado por ruídos muito leves e pouco repetitivos vindos do outro aposento – barulhos do tipo que nem o ladrão mais habilidoso consegue evitar – é provável que Carter se limitasse a permanecer na cama e a tentar afugentar o ladrão a brados. Ele não teria desconsiderado o fato de que, naquelas condições, o invasor possuiria todas as vantagens em um confronto corpo a corpo.
Porém, o invasor em questão fizera grande comoção, esbarrara até em uma cadeira, mostrara-se um incompetente no quesito sutileza. Não ocorreu ao homem na cama que um ladrão inexperiente pode ser tão perigoso quanto um profissional.
Talvez fosse porque, nas muitas histórias policiais que escrevera, a eficácia do matador sempre se aliasse a um certo grau de habilidade, e os trapalhões sempre fossem relativamente inócuos e fáceis de derrotar. Ele passara a encarar essa teoria como uma verdade absoluta. Afinal, mais cedo ou mais tarde, as pessoas acabam por acreditar naquilo que afirmam com freqüência.
De qualquer modo, Carter Brigham deslizou com cuidado seu corpo mais ou menos musculoso de entre os lençóis e avançou silenciosamente nas pontas dos pés descalços em direção à porta aberta do aposento de onde tinham vindo os sons. Passou de sua cama para dentro da sala ao lado, as costas contra a parede da porta, aproveitando um interlúdio de silêncio da parte do invasor.
O aposento em que Carter se encontrava estava tão escuro quanto aquele de onde viera; então permaneceu imóvel, aguardando algum movimento que indicasse a posição do invasor.
Não foi preciso muita paciência. Logo o ladrão se moveu de novo, audivelmente; e, em seguida, Carter distinguiu contra o retângulo da janela – um pouco mais claro apenas do que o resto do aposento – uma sombra humana, ligeiramente mais escura, que avançava em sua direção. A sombra passou a janela e se perdeu na escuridão que tudo envolvia.
Com o corpo retesado, Carter não se moveu até achar que o ladrão havia alcançado um ponto em que não havia móveis no caminho. Aí, lançou-se para a frente, com mãos em garra projetando-se de braços muito abertos.
Seu ombro atingiu o invasor, e ambos foram ao chão. Um antebraço ergueu-se contra o pescoço de Carter, apertando-o. Ele o arrancou e sentiu um golpe atingir-lhe a face. Enlaçando com um braço o corpo do ladrão, devolveu-lhe o golpe com o outro punho. Rolaram várias vezes pelo chão até pararem contra as pernas de uma mesa maciça, o ladrão por cima.
Tirando um prazer quase selvagem do exercício da própria força, que se mostrara amplamente superior à do outro na luta até então, Carter girou seu corpo, esmagando seu adversário contra a mesa pesada. Em seguida, enterrou o punho no corpo do qual acabara de se desvencilhar e apressou-se em ficar de joelhos, buscando um ponto para agarrar o pescoço do ladrão. Quando o encontrou, descobriu que o invasor jazia imóvel, sem esboçar reação. Rindo em triunfo, Carter ficou de pé e acendeu as luzes.
A moça no chão não se mexeu.
Permanecia inanimada, meio deitada, meio curvada, sobre o pé da mesa contra a qual ele a impelira. Parada e contorcida, trajava um terninho preto austero – uma manga se rasgara na altura do ombro –, com uma massa confusa de cabelos castanhos cortados curtos encimando um rosto branco como linho, a não ser nos locais avermelhados pelos golpes. Seus olhos estavam fechados. Um braço se projetava pelo chão, e o outro se pendurava molemente a seu lado. Uma perna sedosa encontrava-se estendida; a outra, dobrada sob seu corpo.
Para o canto da sala rolara seu chapéu, um pequeno toque preto. Não longe do chapéu, encontrava-se um pé-de-cabra mínimo, que ela usara para forçar sua entrada.
A janela que dava para a escada de emergência – à noite, sempre travada – estava escancarada, seu fecho dependurado torto.
De modo metódico, quase mecânico – pois até pouco tempo antes fora repórter em um jornal matutino, e o aprendizado de anos não se desaprende em algumas semanas –, os olhos de Carter registraram esses detalhes e os comunicaram a seu cérebro, enquanto ele se esforçava para vencer o espanto.
Após algum tempo, os neurônios retomaram suas funções, e ele foi se ajoelhar ao lado da moça. O pulso estava regular, mas, fora isso, não havia sinais de vida. Ergueu-a do chão e carregou-a até o sofá de couro do outro lado da sala. Em seguida, trouxe água fria do banheiro e pegou conhaque na estante. Generosas doses da primeira aplicadas às suas têmporas e ao seu rosto e do segundo por entre seus lábios surtiram finalmente um tremor na sua boca e uma ligeira agitação de suas pálpebras.
Na seqüência, abriu os olhos, examinou confusa a sala a seu redor e tentou se erguer. Ele pressionou sua cabeça levemente contra o sofá.
– Fique quieta mais um pouquinho, até você se sentir melhor.
Parecia que ela o via então pela primeira vez, e que se dava conta de onde se encontrava. Desvencilhou sua cabeça da mão repressora e sentou-se, impelindo os pés de encontro ao chão.
– Então, perdi de novo – disse, afetando uma indiferença que traía um leve resquício de amargura, seus olhos encontrando os dele.
Eram olhos verdes, muito compridos, e iluminavam seu rosto que antes, desprovido de sua luz, parecera severo demais para ser belo, apesar da regularidade polida de suas feições.
O olhar de Carter fixou a bochecha manchada dela, no lugar em que seu punho deixara marcas lívidas.
– Sinto muito ter batido em você – se desculpou. – No escuro, imaginei naturalmente que se tratasse de um homem. Não teria...
– Deixa para lá – ela ordenou friamente. – Faz parte do jogo.
– Mas, eu...
– Ai, pára com isso! – Impaciente. – Não é nada. Estou bem.
– Folgo em saber.
Os dedões do pé desnudos insinuaram-se em seu campo de visão, e ele foi ao quarto buscar chinelos e roupão. Quando voltou, a moça o observava em silêncio, o rosto calmo e desafiante.
– Agora – sugeriu ele, aproximando a cadeira –, por que você não me conta o que está acontecendo?
Ela deu uma risadinha.
– É uma longa história, e os homens devem estar chegando a qualquer momento; então não dá tempo de contar.
– A polícia?
– É.
– Mas eu não os chamei. Por que haveria de fazer isso?
– Sabe-se lá! – Ela deu uma olhadela pelo quarto e, abruptamente, fitou-lhe olho no olho. – Se você acha que vou negociar minha liberdade, companheiro – sua voz desdenhosamente gélida –, está muito enganado!
Ele rechaçou a idéia. Em seguida:
– Então me diz do que se trata.
– Prontinho para ouvir uma história triste? – zombou. – Bem, vamos lá: deu uns contratempos nos últimos serviços que fiz e tive que dar uma desaparecida, tão desaparecida que passei uns dois dias sem comer nada. Calculei que teria que fazer mais um servicinho para conseguir grana para me mandar, dar um tempo longe da cidade. E o serviço era este aqui. Estava meio zonza por causa da fome e fiz barulho demais. Mesmo assim – risada desdenhosa –, você nunca teria me agarrado se eu estivesse armada.
Carter estava de pé.
– Tem um pouco de comida na geladeira. A gente come antes de continuar a conversa.
Ouviu-se um grunhido da janela aberta pela qual entrara a moça. Ambos se viraram em sua direção. Estava enquadrado nela um homem rubro e corpulento vestindo um terno reluzente de sarja azul e um chapéu-coco preto. Ele atravessou uma perna grossa por cima do peitoril e entrou na sala, com a agilidade pesada de um urso.
– Ora, ora – as palavras surgiam com satisfação de seus lábios grossos, sombreados por um bigode cinza tosquiado –, não é que é a minha velha amiguinha Angel Grace!
– Cassidy! – exclamou debilmente a moça, e em seguida recaiu na impassibilidade obstinada de antes.
Carter deu um passo para a frente.
– Pode ficar tranqüilo! – assegurou-lhe o recém-chegado, ostentando o distintivo reluzente. – Detetive-sargento Cassidy. Estava passando por aqui e percebi alguém subindo a sua escada de incêndio. Resolvi esperar e flagrar o elemento na saída. Mas cansei de ficar esperando e subi para dar uma olhada.
Voltou-se jovial para a moça.
– E acabou que é a Angel em pessoa! Vamos embora, menina, vamos dar uma voltinha.
Carter estendeu a mão para impedir a moça, que já se encaminhava submissa em direção ao detetive.
– Espera aí um minutinho. Não podemos dar um jeito? Eu não quero registrar queixa.
Cassidy olhou maliciosamente para a moça, para Carter, de novo para a moça, e meneou a cabeça em negativa.
– Sem chance! O anjinho aqui está sendo procurado por meia dúzia de serviços. Não faz diferença se o senhor dá queixa ou não... de qualquer jeito, ela vai responder por muita coisa.
Ela assentiu com um movimento da cabeça.
– Obrigado, meu caro – disse ela a Carter, com menos displicência do que pretendia –, mas eles me querem muito.
Mas Carter não iria ceder tão facilmente assim. Os deuses não enviam uma ladra em carne e osso para o apartamento de um escritor todas as noites da semana. Valia a pena brigar para manter uma dádiva daquelas. Dentro dessa moça, imaginou, deveria haver matéria-prima para milhares ou dezenas de milhares de palavras de ficção. Era possível entregar de bandeja um prêmio assim? Sem falar que era atraente, o que por si só já era alguma coisa. Outro motivo ainda mais forte – embora talvez fosse o mais difícil de explicar – exigia que ele a ajudasse: a mancha colorida deixada por seus punhos na carne lisa da sua bochecha.
– Não dá para a gente chegar a alguma espécie de acordo? – perguntou. – Será que não tem um jeito... hum... extra-oficial de contornar as acusações por enquanto?
As sobrancelhas pesadas de Cassidy se contraíram e a vermelhidão natural de suas faces se fez mais escura.
– O senhor está tentando...
Parou no meio da frase, e seus pequenos olhos azuis se estreitaram ao ponto de quase desaparecerem por completo.
– Pode continuar. Quem manda é o senhor.
Carter sabia que suborno era um assunto sério, principalmente em se tratando de um policial. A lei não pode ser desviada de forma leviana, pervertida por um indivíduo. Jogar alguns pedacinhos de papel-moeda na direção desse instrumento poderoso, na expectativa de desviá-lo do seu propósito, seria, no mínimo, um procedimento temeroso.
Porém, a lei que se lhe apresentava na pessoa desse Cassidy gordo, em trajes mal-ajambrados e nada impecáveis, embora fosse sem dúvida a mesma lei, parecia menos intimidante, menos inacessível. Tomava quase uma dimensão humana... a dimensão de um homem não inteiramente desprovido de falhas e fraquezas. Para dizer a verdade, a lei nesse momento o encarava através de pequenos olhos azuis que traíam claramente a ganância, apesar da indiferença com que o rosto em que se situavam tentava dissimular esse fato.
Carter hesitou, buscando as palavras mais atraentes para envolver sua proposta, mas o detetive lhe livrou da incumbência de abordar o assunto.
– Olha só, doutor – disse com franqueza –, já captei a proposta! Mas, numa boa, duvido que valha o que vai lhe custar.
– E quanto custaria?
– Bem, só de recompensa pela captura são quatrocentos, que eu saiba... talvez seja até mais.
Quatrocentos dólares! Era bem mais do que Carter imaginara pagar. Mesmo assim, as informações que ele conseguiria com ela valeriam muitas vezes mais.
– Fechado! – respondeu. – Quatrocentos, então.
– Pera lá! – murmurou Cassidy. – Isso não me adianta nada! O senhor está achando que sou otário? Se eu entrego ela, não só me dão os quatrocentos, como ganho pontos, para ser promovido. Por que cargas d’água eu vou soltar ela para ganhar o mesmo valor e ainda correr o risco de me danar se alguma coisa vaza?
Carter teve de reconhecer a justeza do raciocínio do detetive.
– Quinhentos – ofereceu.
Cassidy meneou a cabeça enfaticamente.
– Na boa, não dá para deixar por menos de mil... e o senhor seria trouxa se pagasse isso. Ela é uma garota bacana, eu sei, mas o mundo está cheio de garotas tão bacanas quanto ela, e muito mais baratas.
– Não posso pagar mil – afirmou Carter lentamente. Ele só tinha alguns dólares a mais do que isso na conta bancária.
O bom senso aconselhava-o a não gastar tudo que tinha para ajudar a moça; rezava que mesmo o pagamento de quinhentos dólares por sua liberdade seria romper com os limites da conduta racional.
Erguia a cabeça para reconhecer a derrota e para autorizar Cassidy a levá-la embora, quando seus olhos fixaram a moça. Embora ela ainda se esforçasse para manter sua postura de indiferença irônica para com o seu destino – e conseguiu, de fato, estampar no rosto um sorriso estouvado –, seu queixo tremia e já não posicionava os ombros com tanta empáfia.
Os ditames da razão contavam por quase nada diante de tais indícios de desespero.
Independentemente da vontade consciente, Carter ouviu-se dizer:
– O máximo que posso oferecer são setecentos e cinqüenta.
Cassidy meneou a cabeça vigorosamente, mas prendeu um canto do lábio inferior entre os dentes, o que esvaziou o gesto de seu teor definitivo.
Encorajada pela indecisão do detetive-sargento, a moça colocou uma impulsiva mão sobre o seu braço e acresceu à tentação do dinheiro o peso da sua personalidade.
– Ah, vamos lá, Cassidy – implorou. – Seja um cara legal... quebra esse galho para mim! Pega aí os setecentos e cinqüenta! Você já tem a reputação ótima; não precisa me entregar!
Cassidy se voltou abruptamente para Carter.
– Estou dando uma de otário, mas vai lá, passa logo a grana.
Quando viu Carter retirar o talão de cheques da gaveta da escrivaninha, Cassidy quis voltar atrás, exigindo pagamento em espécie. Conseguiram convencê-lo finalmente a aceitar um cheque ao portador.
Chegando à porta, ele se virou e balançou um dedo gordo para Carter.
– Não se esqueça – ameaçou –, se tentar aprontar alguma coisa com esse cheque, eu acabo com você, nem que para isso eu tenha que forjar as provas!
– Não vou aprontar nada – assegurou Carter.
Ninguém poderia duvidar que a moça tinha fome. Ela devorou o rosbife frio, salada, pão, doces e café que Carter lhe ofereceu. Nenhum dos dois falou muito enquanto ela comia. A comida monopolizava sua atenção, enquanto o cérebro de Carter se ocupava em planejar como tirar o máximo proveito da oportunidade que se lhe apresentava.
Quando chegaram aos cigarros, o humor da moça suavizou um pouco, e Carter conseguiu persuadi-la a falar de si. Permaneceu claro, no entanto, que ela o aceitara com muitas reservas, e não deu nenhum sinal de baixar a guarda.
Contou-lhe sua história sucintamente, sem entrar em maiores detalhes.
– Meu velho se chamava John Cardigan, porém era mais conhecido como “John Caixa de Papelão” por causa do truque que tinha de carregar suas ferramentas numa caixa de sapatos, o que não levantava suspeitas. Sem querer puxar a brasa demais, ele era um dos ladrões mais habilidosos que já vi no crime! Não me lembro muito bem de minha mãe. Ela morreu ou se mandou ou alguma coisa assim quando eu era garotinha, e o velho não gostava de falar dela.
“Mas eu tive uma criação das melhores, do ponto de vista do crime. O velho era um gênio na sua área, e meu irmão mais velho, Frank – ele está cumprindo pena de um a quatorze anos em Deer Lodge –, não era nenhum amador com o abridor de latas... arrombamento de cofres, entendeu? Juntando eles com as gangues que freqüentavam, eu tive uma formação muito boa, num certo sentido.
“Tudo estava indo muito bem, eu cuidando da casa para o velho e Frank, e eles me dando tudo que eu queria, até uma noite em que o velho foi apagado por um vigia noturno na Filadélfia. Algumas semanas depois, eles apanharam Frank em algum cafundó lá de Montana... uma tal de Great Falls. Aí fiquei na dureza. Não tínhamos muito dinheiro guardado – o que entra fácil, sai fácil –, e o pouco que tinha, eu mandei para o advogado de Frank, para que tentasse soltar ele. Mas não deu em nada; pegaram ele de jeito e não teve senão.
“Depois disso, tive que me virar. Ou eu aproveitava os conhecimentos que Frank e o velho tinham me passado, ou eu virava mulher da vida. É claro que eu não teria que ir parar na rua mesmo; tinha vários caras dispostos a me bancar. Acontece que é uma maneira canalha de ganhar a vida. Não quero pertencer a ninguém!
“Vai ver você acha que eu devia ter conseguido um emprego numa loja ou numa fábrica ou alguma coisa assim. Mas, para começo de conversa, não é fácil uma garota sem experiência ganhar o suficiente para se sustentar. Além do mais, metade dos tiras da cidade sabiam que eu era filha do velho, e não iam guardar segredo se me encontrasse trabalhando em algum lugar... no mínimo iam achar que eu estava estudando o local para preparar algum golpe.
“Então, pesando as opções, resolvi me arriscar no ofício do velho. Foi moleza desde o começo. Eu sabia todos os truques e não era difícil colocá-los em prática. O fato de eu ser garota até ajudou. Mais de uma vez, quando me pegaram com a boca na botija, as pessoas acreditaram que eu tinha entrado no lugar errado por engano.
“Mas ser garota também tinha suas desvantagens. Como só tinha eu de mulher no ramo, meu trabalho logo ficou conhecido. Não demorou para os tiras pegarem o meu rastro. Me apanharam umas duas ou três vezes, mas eu tinha um bom advogado, que conseguia me livrar das acusações. Eles acabavam me soltando, mas não me esqueciam.
“Aí teve uns trabalhos que deram errado. Fiz uns serviços dos quais sabiam que eu não ia conseguir me safar, e passaram a me procurar direto. Para piorar, eu dispensei vários caras que tentaram me cantar uma ou outra vez, e esses aí passaram a falar mal de mim. Diziam para todo mundo que eu era metida, e isso me sujou com gente que podia ter me dado uma força na hora do aperto.
“Então, além de me esconder dos tiras, eu tinha que driblar metade dos bandidos da cidade também, com medo que me dedurassem. Essa história de ladrão com ética não funciona muito em Nova York!
“No final, a coisa ficou tão difícil que eu não conseguia nem voltar para o meu quarto, onde guardava minhas roupas e a pouca grana que tinha. Fiquei num esconderijo do outro lado da cidade, só prestando atenção nos tiras que estavam vigiando o lugar e sabendo que, se mostrasse a cara, eles me pegavam.
“Chegou uma hora que não dava mais para ficar lá. Não tinha comida, e eu não conseguia encontrar ninguém de confiança; então apostei tudo e fugi pelo telhado, com a idéia de dar uma investida no primeiro lugar que encontrasse, para ver se conseguia um mínimo para comer e para dar no pé da cidade.
“E foi este aqui o lugar que escolhi, e cá estamos, no fim da minha historinha.”
Ficaram em silêncio durante um momento, ela observando Carter de esguelha para tentar adivinhar seus pensamentos, ele contemplando o relato e admirando seu potencial literário.
Ela começou a falar de novo, a voz recuperando o tom ligeiramente metálico que possuíra antes que ela se descuidasse um pouco de sua postura desconfiada, na ânsia de contar a história.
– Olha só, meu camarada, não sei qual é o seu jogo, mas já te avisei que não estou a fim de conversa.
Carter riu.
– Angel Grace... é um bom nome, pois você foi enviada por inspiração divina – comentou, acrescentando com leve acanhamento: – Meu nome é Brigham, Carter Webright Brigham.
Pausou, traindo certa expectativa, que logo se concretizou.
– O que, o escritor?
O reconhecimento imediato da moça o deixou radiante. Ainda não havia alcançado o patamar de sucesso em que esperava que todos o conhecessem.
– Você já leu alguma coisa minha? – indagou.
– Claro! “Veneno para um” e “O acordo” na Warner’s Magazine, “Vingança S.A.” na revista National e todos os seus contos na Cody’s!
O tom da voz não deixava dúvida de que havia gostado de suas histórias, mesmo sem levar em consideração o testemunho adicional dado pela admiração que substituíra em seus olhos o cálculo.
– Pois está aí a sua resposta – disse ele. – O dinheiro que dei para Cassidy é um investimento em uma mina de ouro. Seus relatos darão grandes contos, e as revistas vão adorar!
Curiosamente, não pareceu lhe dar prazer a descoberta de que o interesse dele era de ordem estritamente profissional. Ao contrário, surgiram pequenas sombras nos límpidos campos verdes de seus olhos.
Percebendo-as, Carter logo acrescentou, por alguma apreensão intuitiva:
– Mas creio que teria feito a mesma coisa, mesmo que não houvesse histórias. Não podia deixar que ele a levasse para a prisão.
Ela sorriu um tanto descrente, mas seus olhos se desanuviaram.
– Está muito bem – observou ela –, até onde vai. Mas não esqueça que Cassidy não é o único detetive da cidade na minha cola. E não se esqueça que vai sobrar para você se me ajudar.
Carter aterrissou.
– É verdade! Vamos ter que pensar no que fazer.
A moça falou:
– Na certa vou ter que sair da cidade! Tem muita gente me procurando, e sou conhecida demais. E tem mais uma coisa: você só pode confiar no Cassidy enquanto ele não gastar todo o dinheiro, o que não vai demorar. Se vacilar, ele está perdendo tudo no carteado agorinha mesmo. Assim que ele estiver duro, volta a procurar você. Você está seguro, porque ele teria que se incriminar para provar qualquer coisa contra você; mas se eu estiver por perto, ele me prende no ato, a não ser que você ofereça mais grana. E ele vai tentar usar você para me encontrar. A única solução para mim é fugir.
– É isso que faremos – exclamou Carter. – Escolheremos um lugar seguro, não muito longe, para onde você possa ir ainda hoje. Eu encontro você lá amanhã, e faremos planos mais definitivos.
Quando concluíram sua combinação, já era o meio da manhã.
Carter foi ao banco assim que abriu e sacou tudo que tinha, deixando apenas o valor dos cheques que estavam na praça, incluindo o do detetive-sargento. A moça precisaria de dinheiro para comida e hospedagem, e também para comprar roupas, pois tinha certeza de que seu quarto continuava a ser vigiado pela polícia.
Ela deixou o apartamento de Carter em um táxi, com instruções para comprar roupas de cor e estilo diferentes das que usava, para destoar da descrição que estava nas mãos da polícia. Em seguida, devia pegar um outro táxi e seguir até uma estação ferroviária distante da cidade, evitando a possibilidade de ser reconhecida, apesar das roupas novas, por policiais nas estações de trem e balsa. Na estação distante, apanharia um trem para uma cidade do interior do estado, onde haviam marcado encontro.
Carter iria no dia seguinte.
Ele não a acompanhou até a porta da rua, mas despediu-se dela dentro do apartamento. Na hora de partir, ela deixou de lado o jeito cínico, durão, e tentou manifestar sua gratidão.
Mas ele a impediu, arremedando desajeitadamente a recomendação feita por ela na noite anterior:
– Ai, pára com isso!
Carter Brigham não trabalhou naquele dia. O conto que escrevia lhe pareceu duro e sem vida e inteiramente sem relação com a realidade. O dia e a noite se arrastaram mas, embora devagar, acabaram passando, e finalmente ele se viu descendo de um trem sujo na cidadezinha onde ela devia estar à sua espera.
Ao registrar-se no hotel que haviam escolhido, deu uma olhadela na página em que estavam os registros do dia anterior. Não constava o nome que ela deveria usar, “sra. H.H. Moore”. Indagando discretamente, descobriu que ela não havia chegado.
Carter enviou suas malas para o quarto e saiu para verificar os dois outros hotéis da cidade. Ela não estava em nenhum dos dois. Comprou no jornaleiro um monte de jornais de Nova York. Não havia nada sobre a prisão dela. Não havia sido apanhada na saída da cidade, senão os jornais teriam dado destaque à história.
Durante três dias ele se agarrou à esperança de que ela não tivesse fugido. Passou três dias em seu apartamento de Nova York, os ouvidos em alerta para escutar o tilintar do telefone, checando obsessivamente sua correspondência, sempre a esperar o mensageiro, que não veio. De vez em quando, mandava telegramas para o hotel do interior, telegramas inúteis.
Acabou aceitando a verdade incontestável: ela decidira – talvez sempre tivesse tido esta intenção – não correr o risco de reencontrá-lo e escolhera um outro esconderijo. Não tivera intenção de cumprir suas obrigações para com ele, apenas recebera sua ajuda e partira.
Passou mais um dia ocioso enquanto se acostumava com a amarga consciência do fato. Em seguida, decidiu resgatar o que podia da situação. Felizmente, parecia ser bastante. O enredo simples que a moça lhe havia relatado podia ser transformado com facilidade em uma novela, para a qual haveria mercado certo. As histórias de ladrão estavam sempre em demanda, em especial uma que tivesse uma legítima ladra-donzela, retratada do modelo vivo.
Ao debruçar-se sobre a máquina de escrever, a atenção voltada para seu ofício, sua decepção começou a se desfazer. A moça havia partido. Ela o havia tratado de modo ingrato, mas talvez fosse melhor assim. O dinheiro que ela lhe havia custado seria reposto com juros pela venda dos direitos de veiculação da história como folhetim. Quanto à questão pessoal: ela era de fato linda, fascinante e até simpática, mas não deixava de ser uma criminosa...
Durante vários dias, só saiu de frente da máquina de escrever para comer e dormir, e mesmo assim pouco.
Finalmente o manuscrito ficou pronto, e ele o colocou no correio. Durante os dois dias seguintes, descansou com a mesma intensidade com que havia trabalhado, ficando na cama até tarde, passando o dia sem fazer nada, repondo o desgaste de energia nervosa que o trabalho sempre lhe custava.
No terceiro dia veio um bilhete do editor da revista à qual havia enviado a história, pedindo que comparecesse à redação no dia seguinte às duas e meia.
Havia quatro homens com o editor na hora em que ele entrou no escritório. Dois deles, ele conhecia: Gerald Fulton e Harry Mack, também escritores. Ele foi apresentado aos outros dois: John Deitch e Walton Dohlman. Embora não os conhecesse pessoalmente, conhecia o seu trabalho; eles escreviam para algumas das mesmas revistas que publicavam seus contos.
Quando todos estavam sentados, com cigarros e charutos acesos, o editor sorriu para os rostos que o encaravam com franca curiosidade.
– Agora, vamos ao assunto. De início, vocês vão pensar que é um assunto bastante esdrúxulo, mas vou tentar não me alongar mais do que o necessário.
Voltou-se para Carter:
– Sr. Brigham, o senhor se importaria de nos contar como obteve a idéia para a sua história “O anjo do segundo andar”?
– Claro que não – principiou Carter. – Foi até bastante curioso. Acordei certa noite com o barulho de um ladrão no meu apartamento e me levantei para investigar a situação. Derrubei-o e lutamos no escuro por algum tempo. Aí acendi as luzes e...
– Era uma mulher, uma moça! – interrompeu Gerald Fulton, quase sem voz.
Carter deu um salto.
– Como sabia? – exigiu ele.
Percebeu então que Fulton, Mack, Deitch e Dohlman estavam todos eretos em suas cadeiras e que seus rostos tão heterogêneos traziam todos a mesma expressão estupefata.
– E após algum tempo, entrou um detetive?
Era a voz de Mack, mas rouca e amortecida.
– Seu nome era Cassidy!
– E por um preço, ajeitava as coisas – arrematou Deitch.
Depois disso, houve um longo silêncio, enquanto o editor fingia interessar-se pelos contornos de um peso de papel redondo, de vidro, que se encontrava sobre a mesa, e os quatro escritores profissionais fitavam intensamente o nada, os rostos acanhados e ruborizados como beterrabas.
O editor abriu a gaveta e retirou uma pilha de manuscritos.
– Aqui estão – disse ele. – Eu sabia que havia algo de errado quando recebi cinco histórias em dez dias que, embora diferentes no tratamento, eram sem dúvida todas sobre a mesma garota!
– Joga a minha no lixo – instruiu Mack, com delicadeza, e os outros menearam a cabeça concordando com a idéia. Todos, menos Dohlman, que parecia estar relutando com uma idéia. Finalmente, ele se dirigiu ao editor.
– É uma boa história, não é, em todas as suas cinco versões?
O editor assentiu.
– Sim, eu teria comprado uma, mas cinco...
– Por que não comprar uma? A gente tira na sorte...
– Tudo bem, acho justo – disse o editor.
Assim foi feito. Ganhou Mack.
Os olhos azuis de Gerald Fulton ficaram mais redondos do que nunca, olhando atônito para o grupo. Afinal, encontrou palavras:
– Meu Deus! Quantos outros estarão a escrever agora mesmo essa mesma história?
Mas transitava pela cabeça de Carter uma dúvida de ordem inteiramente diversa.
Diacho! Será que ela beijou também o resto desse bando de marmanjos?
MEDO DE TIRO
Owen Sack virou-se do fogão quando a porta de sua cabana se abriu, deixando entrar “Rip” Yust, e com a mão que não segurava a cafeteira fez um gesto hospitaleiro indicando a mesa, onde a comida fumegava diante de uma cadeira.
– Olá, Rip! Sente aí e aproveite enquanto está quente. Só leva um minuto preparar mais pra mim.
Assim era Owen Sack, um homem baixo e de uma magreza compacta, olhos redondos azul-porcelana e redondas faces rubicundas, só a escassez de cabelos cor de palha denunciando os cinqüenta e tantos anos, um homenzinho tranqüilo, cuja simpatia demasiado ávida às vezes sugeria timidez.
Rip Yust atravessou a sala até a mesa, mas não ligou para a comida. Em vez disso, pôs dois grandes punhos no tampo, curvou o peso sobre eles e franziu o cenho para Owen. Era grandão, esse tal Rip Yust, pançudo, ombros caídos, membros grossos, sempre com uma espécie de mau humor fleumático. Mas agora tinha as fortes feições retorcidas numa carranca.
– Pegaram “Lucky” hoje de manhã – disse após um instante, e a voz não era a de alguém que traz uma notícia. Era acusadora.
– Quem pegou ele?
Owen Sack desviou os olhos dos do outro ao fazer a pergunta e lambeu os lábios, nervoso. Sabia quem tinha pegado o irmão de Rip.
– Quem você acha que foi? – perguntou Rip, com grande desprezo. – A Lei Seca! Você sabe!
O homenzinho piscou os olhos.
– Ora, Rip. Como é que eu ia saber? Não vou na cidade faz uma semana, e ninguém passa mais por aqui.
– É, imagino como você ia saber.
Yust contornou a mesa até onde estava Owen Sacks – com pequenos glóbulos de umidade reluzindo na cara redonda –, agarrou-o pela folga da camisa azul no peito e levantou-o do chão. Deu-lhe duas sacudidas – com uma falta de veemência que tinha mais força que qualquer violência – e tornou a depositá-lo no chão.
– Você sabia onde era o esconderijo da gente – acusou, ainda segurando a folga do peito da camisa numa das mãos musculosas – e mais ninguém fora da gente sabia. Os tiras apareceram lá hoje de manhã e pegaram Lucky. Quem contou a eles onde era? Você, seu rato!
– Eu, não, Rip! Eu, não! Eu juro por...
Yust cortou a lamúria do homenzinho pondo a larga palma da mão sobre sua boca.
– Talvez não. Pra falar a verdade, ainda não estou muito certo... senão não ia estar aqui conversando com você. – Afastou a aba do paletó, desnudando por um segundo o cabo marrom de um revólver que despontava do coldre de ombro. – Mas parece que não podia ser mais ninguém. Como eu não faço mal a ninguém que não faz a mim, estou dando uma olhada para ter certeza. Mas se descobrir que foi você mesmo...
Fechou as grandes mandíbulas com um estalo. Fez um gesto de enfiar rápido a mão direita dentro do paletó, perto da axila esquerda. Balançou devagar a cabeça sem muita ênfase e deixou a cabana.
Por algum tempo, Owen Sack não se mexeu. Permaneceu rígido, fitando com vazios olhos azuis a porta pela qual o visitante desaparecera; e agora parecia velho. O rosto exibia rugas que não tinha antes; e o corpo, apesar de toda a rigidez, parecia mais frágil.
Ele acabou por sacudir os ombros de modo brusco, e voltou para o fogão com a aparência de quem afastara o episódio da mente; mas logo depois o corpo desmoronou, sem ânimo. Foi até a cadeira, desabou nela e empurrou a comida que esfriava, para apoiar a cabeça nos antebraços.
Sentia arrepios, os joelhos tremiam, exatamente como sentira arrepios e os joelhos haviam tremido quando ajudara a carregar Cardwell para casa. Diziam as más línguas que Cardwell falara demais sobre um certo contrabando no rio Kootenai. Fora encontrado uma manhã num matagal abaixo de Dime, com um buraco na nuca, por onde entrara a bala, e outro maior na frente, por onde ela saíra. Ninguém sabia quem a disparara, no entanto as más línguas em Dime tinham palpites, e cuidavam para que tais palpites não chegassem aos ouvidos dos irmãos Yust.
Não fosse por Cardwell, Owen sabia que poderia ter convencido Rip Yust de sua inocência. Mas, sempre que via um dos Yusts, tornava a ver o morto; e nessa tarde, quando Rip entrou em sua cabana e lançou do outro lado da mesa seu acusador: “Pegaram Lucky hoje de manhã”, Owen Sack só pôde pensar em Cardwell, e em nada mais – foi tomado por um medo que o fez falar e agir como se houvesse de fato guiado os agentes da Lei Seca até o esconderijo dos Yusts. Por isso Yust saiu mais que meio convencido de que suas suspeitas eram corretas.
Owen Sack sabia que Yust era um sujeito justo, segundo suas próprias luzes. Não faria coisa alguma enquanto não tivesse certeza de que era ele o homem. Então, atacaria sem aviso nem piedade.
Olho por olho era o código dos Rip Yusts do mundo, e o inimigo tinha de ser eliminado sem escrúpulos. E de pouco conforto servia para Owen o fato de que Yust não atacaria enquanto não se convencesse de que tinha o homem certo.
Yust não possuía uma das mentes mais lúcidas do mundo; não estava equipado, apesar de toda sua paciência e determinação, para peneirar sem erro o falso do verdadeiro. Muita coisa que, vista corretamente, não teria significado, poderia, para ele, parecer prova irrefutável da culpa de Owen – agora que os temores deste o haviam levado a bancar a testemunha contra si mesmo.
E uma bela manhã o corpo de Owen seria encontrado como o de Cardwell. Talvez também as suspeitas contra Cardwell fossem injustas.
Owen Sack empertigou-se, erguendo os ombros e franzindo a boca, numa débil tentativa de recompor-se. Apertou a testa com os punhos e por um momento tentou convencer-se de que procurava chegar a uma decisão, estabelecer o que fazer. Mas no fundo sabia o tempo todo que mentia para si mesmo. Ia fugir mais uma vez. Sempre fugia. O momento de resistir passara.
Trinta anos atrás, podia ter resistido.
Daquela vez em que, numa espelunca no Marsh Market Space, em Baltimore, uma disputa sobre a contagem dos dados o deixara frente a frente com a pistola de calibre grosso e cano curto de um marinheiro inglês. A mão do homem tremera; os dois estavam muito próximos; o inglês parecia estar com tanto medo quanto ele. Um puxão, um soco – não teria sido nada difícil. Mas, após um instante, ele sucumbira; deixara o inglês não apenas expulsá-lo do jogo, mas da cidade.
O medo das balas fora forte demais para ele. Não era um covarde (naquele tempo, não); uma faca, que a maioria dos homens teme, não lhe parecia especialmente assustadora naquele tempo. Viajava a uma velocidade calculável e discernível; a gente a via vindo; podia julgar o tempo; desviá-la, desviar-se; ou virar-se para que o ferimento fosse leve. E mesmo que acertasse, fosse fundo, era afiada e cortava fácil a carne, uma separação limpa e nítida dos tecidos.
Mas uma bala, uma bola de metal, quente dos gases que a impeliam, voando invisível para a gente – a uma velocidade ignorada –, não para abrir caminho com um gume afiado, mas uma estrada a marretadas com a ponta rombuda, varando tudo que ficasse no caminho. Um bolo de chumbo quente, abrindo seu irresistível túnel na carne e tendões, despedaçando ossos! Isso não podia enfrentar.
Portanto, fugira da cidade de Maryland, para evitar a possibilidade de outro encontro com o marinheiro inglês e sua pistola de cano curto.
E essa fora só a primeira vez.
Aonde quer que fosse, mais cedo ou mais tarde se vira olhando a boca de uma arma ameaçadora. Era como se o próprio temor atraísse a coisa temida. Quando menino, diziam-lhe que um cão morde a gente se acha que a gente está com medo dele. Com as armas, tinha sido assim.
Cada repetição o deixara pior que antes; agora, a simples visão de uma arma ameaçadora o paralisava, e até mesmo a idéia de uma o deixava com a mente embotada pelo terror.
Naqueles primeiros dias, não era covarde, a não ser no caso das armas de fogo; mas fugira demais; e esse medo, aumentando, espalhara-se como o alastramento de um tumor canceroso, até que, aos poucos, ele mudara de um homem de razoável coragem, com um único medo mórbido, para outro, sem coragem alguma, com medos que incluíam a maioria das formas de violência física.
No começo, porém, seu medo não era tão grande que o fizesse recuar. Poderia tê-lo superado aquela vez em Baltimore. Isso teria exigido um esforço enorme, mas poderia. E também na vez seguinte, em Nova Gales do Sul, quando, ao contrário, cavalgara loucamente até Bourke, cruzando mais de quinhentos quilômetros de pastagens, para fugir de uma arma nas mãos de um cavaleiro valentão da fronteira – uma fuga desesperada, por uma estrada cujos buracos se projetavam do chão como dormentes de ferrovia, coelhos assustados e melões brotando dos raros trechos de capim do caminho.
Também não teria sido tarde demais três meses depois, no norte de Queensland. Mas tornara a fugir. Correra para Cairns e o vapor de Cooktown, dessa vez fugindo da ameaça de um revólver enferrujado, na gigantesca mão de um negro junto ao qual trabalhara mergulhado até os joelhos, no rio branco da mineração de prata de Muldiva.
Depois disso, já não tinha mais recuperação. Não poderia então, de modo algum, dominar o medo. Estava vencido, e sabia que estava. Daí por diante, corria sem sequer uma vergonha decente em sua covardia, e passara a fugir de outras coisas além das armas de fogo.
Deixara, por exemplo, que um garimpeiro mestiço o expulsasse de Morro Velho, do seu emprego na britânica Companhia de Mineração São João del Rey, e de Tita. A boca rubra de Tita passara do sorriso à zombaria, mas nem uma coisa nem outra tivera força suficiente para impedir que Owen Sack recuasse diante do floreio da faca na mão de um homem que ele poderia ter dominado com faca e tudo. Dos campos de petróleo de Bakersfield fora expulso pelos simples punhos de um trapaceiro baixote. E agora dali...
As outras vezes não tinham, de certa forma, sido tão ruins como essa. Ele era mais jovem então, e sempre outros lugares o atraíam – um lugar era tão bom quanto outro. Mas agora era diferente.
Não era mais jovem, e ali, nas Cabinet Mountains, pretendia ficar para sempre. Passara a encarar sua cabana como seu lar. Só queria duas coisas agora: um sustento e tranqüilidade, e até então os encontrara em Dime. Em 1923, ainda era possível lavar do Kootenai pó de ouro suficiente para ganhar um salário – bons salários. Não para amealhar riqueza, certamente, mas não queria riqueza; queria um lar tranqüilo, e durante seis meses o tivera ali.
E então dera por acaso com o esconderijo dos Yusts. Sabia, como toda Dime, que o rio Kootenai – serpeando pela British Columbia abaixo para expor a maioria dos seus duzentos e tantos quilômetros em Montana e Idaho, antes de retornar à província onde nascia e juntar-se ao grande Colúmbia – era a estrada líquida pela qual chegava muita bebida, transportada depois para Spokane, não distante. Isso era coisa que todos sabiam, e Owen Sack, logo ele, não tinha desejo algum de maiores conhecimentos sobre o contrabando no rio.
Por que, então, o mandara sua sorte tropeçar com o lugar onde escondiam aquela bebida toda, até ficar pronta para a viagem por terra? E num momento em que os Yusts se achavam lá para testemunhar sua descoberta? E depois, como se já não bastasse isso, os agentes da Lei Seca haviam baixado lá dentro de uma semana.
Agora os Yusts desconfiavam de que fora ele quem os delatara; era só uma questão de tempo até que aqueles cérebros estúpidos se convencessem desse fato; então atacariam – com um revólver. Uma pepita de chumbo atravessaria os tecidos de Owen como outra atravessara os de Cardwell...
Owen Sack levantou-se da cadeira e pôs-se a arrumar os pertences que pretendia levar consigo – para onde? Um lugar era igual a outro – um pouco de paz e conforto, e depois a ameaça de outra arma de fogo, mandando-o para outra parte. Baltimore, Nova Gales do Sul, norte de Queensland, Brasil, Califórnia, ali – trinta anos daquilo! Já estava velho, as pernas endurecidas para a fuga, mas a fuga tornara-se parte integrante dele.
Arrumou as coisas um pouco sem fôlego, os dedos errando atrapalhados na pressa.
O crepúsculo descia sobre o vale do Koonetai quando Owen Sack, curvado sob a trouxa feita com o cobertor nos ombros, atravessou a ponte para Dime. Ficara na cabana até o último minuto, para poder pegar a diligência que o levaria até a estrada de ferro pouco antes de o trem partir, evitando com isso despedidas e encontros embaraçosos. Agora apressava-se.
Mas, de novo, a sorte estava contra ele.
Ao dobrar a esquina do New Dime Hotel, para chegar à estação da diligência – duas portas adiante do salão de refrescos e bilhar de Henny Upshaw –, viu Rip Yust descendo a rua em sua direção. Percebeu que ele tinha o rosto vermelho e inchado e caminhava bamboleando. Estava bêbado.
Owen Sack parou no meio da calçada e logo percebeu que não era isso que devia fazer. A segurança estava – se estava em alguma parte – em continuar como se não se passasse nada fora do comum.
Atravessou a rua para a calçada oposta, maldizendo-se por essa demonstração clara do desejo de evitar o outro, mas mesmo assim incapaz de impedir as pernas de cruzarem às pressas a rua empoeirada. Talvez, pensou, os olhos de Rip Yust, turvados pelo uísque, não o vissem correndo para a estação da diligência com uma trouxa nas costas. Mas no momento mesmo em que sentia crescer a esperança, sabia que ela era fútil, infantil.
Rip Yust avistou-o, veio para o meio-fio do seu lado da rua e berrou:
– Ei, você! Aonde vai?
Owen Sack imobilizou-se, uma estátua de medo. O pavor congelou sua mente – o pavor e a lembrança de Cardwell.
Yust deu um risinho estúpido e repetiu:
– Aonde vai?
Owen Sack tentou responder, dizer alguma coisa – a segurança parecia estar nas palavras –, mas, embora conseguisse emitir um som, foi desarticulado, e nada teria dito ao outro, mesmo que chegasse a mais de três metros da garganta do homenzinho.
Yust deu uma risada trovejante. Parecia estar de muito bom humor.
– Se lembre do que eu lhe disse hoje de tarde – rugiu, balançando um grosso indicador para Owen Sack. – Se eu descobrir que foi você...
O grosso indicador voltou e bateu no peito esquerdo do paletó.
Owen Sack gritou com o repentino do gesto – um gritinho agudo de terror, que pareceu engraçado à bêbada imaginação do homenzarrão.
Outra risada trovejante partiu da garganta de Yust, e o revólver apareceu em sua mão. A prisão do irmão e o suposto papel de Owen Sack nela achavam-se no momento esquecidos no gozo do medo ridículo do homenzinho.
À visão do revólver, o último farrapo de sanidade de Owen Sack abandonou-o. O terror o tinha em suas garras. Ele tentou implorar, mas a boca não podia formar as palavras. Tentou erguer as mãos bem acima da cabeça, na posição universal de submissão, uma postura que o salvara muitas vezes antes. Mas a correia que prendia a mochila o atrapalhou. Tentou afrouxar a correia, soltá-la.
Para os olhos e cérebro turvados pelo álcool do homem no outro lado da rua, a mão de Owen Sack tentava enfiar-se sob o lado esquerdo do paletó. Rip Yust só pôde ver uma intenção nesse movimento – o homenzinho ia pegar o revólver.
A arma na mão de Rip Yust cuspiu chama!
Owen Sack deu um soluço. Alguma coisa o atingiu com força de um lado. Ele caiu sentado na calçada, os olhos arregalados, interrogadores e fixos na arma fumegante do outro lado da rua.
Descobriu que alguém se curvava sobre ele. Era Henny Upshaw, na frente de cuja loja caíra. Os olhos de Owen Sack retornaram ao homem no meio-fio defronte, que, agora sóbrio, o rosto de granito, aguardava os acontecimentos, a arma ainda na mão.
Owen Sack não sabia se se levantava, ficava imóvel ou deitava-se. Upshaw empurrara-o para o lado a tempo de salvá-lo da primeira bala; mas, e se o sujeito tornasse a atirar?
– Onde ele o atingiu? – perguntava Upshaw.
– Que foi?
– Agora fique calmo – aconselhou Upshaw. – Vai ficar bem. Vou chamar um dos rapazes para me ajudar com você.
Owen Sack ferrou os dedos numa das mangas de Upshaw.
– Que-que foi que houve? – perguntou.
– Rip lhe deu um tiro, mas você vai ficar bem. Basta...
Owen Sack largou a manga de Upshaw e tateou o corpo com as mãos, examinando-se. Uma delas voltou vermelha e pegajosa do lado direito, e ele sentiu aquele lado – onde recebera o impacto que o derrubara – quente e dormente.
– Ele atirou em mim? – perguntou, num grito excitado.
– Claro, mas você está bem.
Upshaw acalmou-o e chamou os homens que saíam devagar para a rua, atraídos pela curiosidade, mas retardados pela visão de Yust ainda parado, arma na mão, à espera para ver o que acontecia a seguir.
– Deus do céu! – arquejou Owen Sack em extremo pasmo. – E é só isso!
Saltou de pé – a trouxa soltando-se –, evitou as mãos que tentavam agarrá-lo e correu para a porta do estabelecimento de Upshaw. Numa prateleira embaixo da caixa registradora, encontrou a automática negra do dono, e, segurando-a rigidamente à frente, o braço esticado, voltou-se para a rua.
Tinha os olhos azuis de porcelana arregalados de pasmo, e de sua boca risonha saiu uma espécie de cantiga:
Andei fugindo estes anos todos
E é só isso.
Andei fugindo estes anos todos.
E é só isso!
Rip Yust, que agora cruzava a rua, estava no meio quando Owen Sack saiu da porta de Upshaw.
Os curiosos espalharam-se; Rip ergueu o revólver e trovejou. Um borrifo dos cabelos louros de Owen Sack voou para trás.
Ele deu uma risadinha e disparou três vezes, rápido. Nenhuma das balas atingiu o homenzarrão. Owen Sack sentiu uma coisa queimar-lhe o braço esquerdo. Tornou a atirar, e a errar.
– Preciso chegar mais perto – disse a si mesmo em voz alta.
Atravessou a calçada – a automática estendida rígida à frente –, desceu para a rua e começou a andar para onde, da arma de Yust, lápis de fogo brotavam ao seu encontro.
Enquanto andava, o homenzinho cantava a tola cantiga, e atirava, atirava, atirava... A certa altura alguma coisa bateu num de seus ombros, e outra em seu braço – acima de onde sentira a queimadura –, mas ele não se perguntou o que era.
Quando se achava a três metros de Rip, este se virou como para ir embora, deu um passo, o corpanzil curvou-se de repente num arco grotesco e ele foi arriando na areia da rua.
Owen Sack descobriu que a arma em sua mão estava vazia, já estava há algum tempo. Voltou-se. Distinguiu vagamente a larga entrada da loja de Upshaw. O chão grudava-se a seus pés, tentando puxá-lo para baixo, prendê-lo, mas ele chegou à entrada, à caixa registradora, tateou a prateleira e devolveu-lhe a automática.
Vozes falavam-lhe, braços envolviam-no. Ele ignorou as vozes, afastou os braços, tornou a alcançar a rua. Outras mãos a afastar. Mas o ar deu-lhe força. Entrou em outra casa, encostou-se no mostrador de armas da loja de Jeff Hamline.
– Quero as duas maiores armas de mão que você tenha, Jeff, e muita bala. Prepare tudo pra mim, que eu volto pra pegar daqui a pouco.
Sabia que Jeff lhe respondera, mas não pôde distinguir as palavras do ronco dentro de sua cabeça.
Outra vez o ar mais quente da rua. A areia da rua, que chegava aos tornozelos, puxava seus pés. A calçada defronte. A porta do dr. Johnstone. Alguém ajudando-o a subir os estreitos degraus. Um sofá ou mesa sob seu corpo: via e ouvia melhor, agora que se achava deitado.
– Me dê um jeito depressa, Doc! Preciso cuidar de um monte de coisas.
A suave voz profissional do médico:
– Não vai precisar cuidar de nada por algum tempo, a não ser de você mesmo.
– Tenho de viajar um bocado, Doc. Depressa!
– Você está bem, Sack. Não precisa ir embora. Da minha janela, eu vi Yust derrubar você primeiro, e meia dúzia de outros também viu. Legítima defesa, se algum dia já houve um caso!
– Não é isso! – Doc era um homem bom, mas não entendia muita coisa. – Preciso ir a muitos lugares, procurar muitos homens.
– Com certeza. Com certeza. – O médico falava-lhe como se ele fosse uma criança a quem tivesse de fazer a vontade, ou um bêbado.
– Deus do céu, Doc! Preciso refazer toda a minha vida da frente pra trás, e não sou mais nenhum menino. Preciso encontrar uns homens em Baltimore, na Austrália, no Brasil, na Califórnia, e sabe Deus onde mais. E alguns deles vão ser difíceis de encontrar. Preciso dar muito tiro. Não sou mais menino, e é um trabalho enorme. Preciso ir andando! O senhor tem de trabalhar depressa, Doc! Precisa...
A voz de Owen Sack engrolou-se num resmungo, num murmúrio, e sumiu.
TOM, DICK OU HARRY
Não sei se Frank Toplin era alto ou baixo. A única coisa dele que cheguei a ver foi a cabeça redonda – o escalpo nu e a cara enrugada, tudo da cor e textura de papel manilha – apoiada em travesseiros brancos, numa grande cama de dossel. Uma montanha de roupa de cama sepultava o resto do corpo.
Também no quarto, naquela primeira vez, achavam-se sua esposa, uma mulher gorducha, com umas rugas no rosto rechonchudo que pareciam arranhões em marfim; a filha Phyllis, uma dessas integrantes da turma elegante e popular da nova geração; e a criada que me abrira a porta, uma loura grandona, de avental e touca.
Apresentara-me como representante do escritório de San Francisco da Companhia de Seguros Norte-americana, o que eu era mesmo, de certa forma. Não havia vantagem imediata em receber um detetive da Agência de Detetives Continental, no momento contratado pela companhia de seguros, por isso omiti essa parte.
– Quero uma relação do material que vocês perderam – disse a Toplin –, mas primeiro...
– Material? – A esfera amarela do crânio de Toplin saltou dos travesseiros, e ele choramingou para o teto. – Cem mil dólares, no mínimo, e ele chama de material!
A sra. Toplin empurrou a cabeça do marido de volta aos travesseiros, com a mão de dedos gordos.
– Vamos, Frank, não fique excitado – acalmou-o.
Os olhos negros de Phyllis Toplin faiscaram, e ela me deu uma piscadela.
O homem na cama tornou a voltar o rosto para mim, sorriu meio envergonhado e deu uma risadinha.
– Bem, se vocês querem chamar de material sua perda de 75 mil dólares, eu acho que agüento pelos meus 25 mil.
– Quer dizer então que soma cem mil dólares? – perguntei.
– É. Nada estava segurado pelo valor total, e uma parte nem seguro tinha.
Isso era muito comum. Não me lembro de ninguém jamais haver admitido que alguma coisa roubada fora segurada pelo valor total – a apólice sempre cobria a metade ou, no máximo, três quartos.
– Que tal me contar exatamente o que aconteceu? – sugeri, e acrescentei, para fugir de outro discurso que em geral vem a seguir: – Sei que já contou tudo à polícia, mas preciso ouvir do senhor.
– Bem, nós estávamos nos vestindo para ir à casa dos Bauers ontem à noite. Eu trouxe as jóias de minha esposa e minha filha, as peças valiosas, comigo, do cofre do banco. Tinha acabado de vestir o paletó e gritado para que elas se apressassem, quando a campainha da porta tocou.
– Que horas foi isso?
– Pouco depois das oito e meia. Eu saí deste quarto para a sala de visita do outro lado do corredor, e punha alguns charutos no estojo quando Hilda – indicou com a cabeça a criada loura – entrou no quarto, andando de costas. Comecei a perguntar a ela se tinha ficado maluca, andando de costas daquele jeito, quando vi o ladrão. Ele...
– Só um momento. – Voltei-me para a criada: – O que aconteceu quando a senhorita atendeu à campainha?
– Ora, eu abri, claro, e lá estava aquele homem parado, com um revólver na mão, e enfiou na minha... minha barriga, e me empurrou de costas para o quarto onde estava o sr. Toplin, e atirou no sr. Toplin e...
– Quando eu o vi, e o revólver na mão dele – Toplin reassumiu a história –, aquilo me deu uma espécie de susto, e o estojo de charutos me escorregou da mão. Quando tentei pegá-lo – não há sentido em estragar bons charutos, mesmo que estejamos sendo assaltados –, ele deve ter pensado que eu ia pegar uma arma ou alguma coisa assim. Seja como for, me deu um tiro na perna. Minha esposa e Phyllis entraram correndo quando ouviram o tiro, e ele apontou o revólver para elas, pegou todas as jóias delas e me fez esvaziar os bolsos. Depois mandou que elas me arrastassem para o quarto de Phyllis, que entrássemos no armário, e nos trancou a todos lá dentro. E veja bem, não disse uma palavra o tempo todo, nem uma palavra... só fez gestos com a arma e a mão esquerda.
– Qual a gravidade do ferimento em sua perna?
– Depende de se o senhor quer acreditar em mim ou no médico. Ele diz que não é nada demais. Diz que é só um arranhão, mas foi minha perna que levou o tiro, não a dele!
– Ele disse alguma coisa quando a senhorita abriu a porta? – perguntei à criada.
– Não, senhor.
– Algum de vocês o ouviu dizer alguma coisa enquanto esteve aqui?
Nenhum deles ouvira.
– O que aconteceu depois que ele trancou vocês no armário?
– Nada que soubéssemos – disse Toplin – até que McBirney e um policial vieram nos soltar.
– Quem é McBirney?
– O zelador.
– Por que ele apareceu com um policial?
– Ouviu o tiro e subiu, no momento em que o ladrão começava a descer, depois de sair daqui. O ladrão se virou e correu para cima, entrou num apartamento do sétimo andar e ficou lá, mantendo a mulher que mora lá, uma certa srta. Eveleth, calada com o revólver, até ter uma oportunidade de escapulir para fora e fugir. Deixou-a inconsciente antes de ir embora... e é só isso. McBirney chamou a polícia logo depois de ver o ladrão, mas eles chegaram tarde demais para fazer alguma coisa.
– Quanto tempo vocês ficaram no armário?
– Dez minutos... talvez quinze.
– Que aparência tinha o ladrão?
– Baixo, magro e...
– Da sua altura, talvez, ou talvez mais baixo.
– Um metro e sessenta e cinco, sessenta e sete, digamos? Qual seria o peso?
– Oh, eu não sei... talvez 55, sessenta. Era meio fracote.
– Idade?
– Não mais de 22 ou 23.
– Oh, papai – protestou Phyllis. – Tinha uns trinta, ou perto disso.
– Que acha a senhora? – perguntei à sra. Toplin.
– Vinte e cinco, eu diria.
– E a senhorita? – perguntei à criada.
– Não sei ao certo, senhor, mas não era muito velho.
– Louro ou moreno?
– Era louro – disse Toplin. – Não tinha se barbeado e a barba era amarelada.
– Mais castanho-clara – corrigiu Phyllis.
– Pode ser, mas era amarela.
– Cor dos olhos?
– Eu não sei. Ele tinha o boné puxado sobre eles. Pareciam negros, mas pode ser porque estavam na sombra.
– Como descreveria a parte do rosto que pôde ver?
– Pálido, e com uma aparência meio fraca... queixo pequeno. Mas não se podia ver muita coisa do rosto dele, tinha a gola erguida e o boné abaixado.
– Como estava vestido?
– Um boné azul puxado sobre os olhos, terno azul, sapatos pretos e luvas pretas... de seda.
– Maltrapilho ou arrumado?
– Umas roupas baratas, horrivelmente amassadas.
– Que tipo de arma?
Phyllis Toplin falou antes do pai.
– Papai e Hilda ficam chamando de revólver, mas era uma automática... uma 38.
– Vocês o reconheceriam se o vissem de novo?
– Sim – todos concordaram.
Abri um espaço na mesa-de-cabeceira e peguei lápis e papel.
– Quero uma relação do que ele pegou, com uma descrição tão detalhada de cada peça quanto possível, o preço que pagaram e quando.
Obtive a lista uma hora depois.
– Sabem o número do apartamento da srta. Eveleth? – perguntei.
– É o 702, dois andares acima.
Subi até lá e toquei a campainha. A porta foi aberta por uma jovem de vinte e poucos anos, o nariz oculto por esparadrapo. Tinha belos e claros olhos de avelã, cabelos escuros e aparência atlética.
– Srta. Eveleth?
– Sim.
– Eu sou da companhia de seguros que segurou as jóias dos Toplins e estou procurando informações sobre o roubo.
Ela tocou o nariz bandado e deu um sorriso dolorido.
– Isto é parte da minha informação.
– Como foi que aconteceu?
– Castigo por feminilidade. Esqueci de não me meter onde não era chamada. Mas o que o senhor deseja, suponho, é saber o que eu sei sobre o vagabundo. A campainha tocou alguns minutos antes das nove ontem à noite e, quando abri a porta, lá estava ele. Assim que abri, ele me encostou a pistola e disse:
“‘– Pra dentro, menina!’
“Eu o deixei entrar sem nenhuma hesitação; fui muito espontânea e ele fechou a porta atrás com o pé.
“‘– Onde fica a escada de incêndio?’, perguntou.
“A escada de incêndio não chega a nenhuma das minhas janelas, e eu disse isso, mas ele não quis acreditar em mim. Me empurrou na frente até cada uma das janelas: mas claro que não encontrou nenhuma escada de incêndio, e ficou bravo, como se fosse minha culpa. Não gostei de algumas coisas que ele me disse, e era tão fracote que tentei pegá-lo na mão. Mas... bem, o homem ainda é o animal dominante no que me diz respeito. Em resumo, ele me estourou o nariz e me deixou no lugar onde caí. Então eu corri para o corredor lá fora e encontrei alguns policiais na escada. Contei soluçando minha historinha patética e eles me falaram do assalto aos Toplins. Dois deles me acompanharam de volta e revistaram o apartamento. Eu não o tinha visto partir mesmo, e acharam que ele era astuto ou desesperado o bastante para se enfiar num armário e ficar lá até que a costa estivesse limpa. Mas não o encontraram.”
– Quanto tempo acha que passou desde que ele a derrubou até quando a senhorita correu para o corredor?
– Oh, talvez uns cinco minutos. Talvez só metade disso.
– Que aparência tinha o sr. Ladrão?
– Era baixo, menor que eu; com uma barba de uns dois dias; vestia roupas azuis surradas, com luvas de pano pretas.
– Idade?
– Não muita. Tinha a barba rala e uma cara meio de menino.
– Notou os olhos?
– Azuis; os cabelos, onde apareciam por baixo do boné, eram louros muito claros, quase brancos.
– Que tipo de voz?
– Um baixo muito profundo, embora ele pudesse estar forçando.
– A senhorita o reconheceria se o visse de novo?
– Sim, sem dúvida! – Ela levou o dedo delicadamente ao nariz bandado. – De qualquer modo, meu nariz reconheceria, como diz o anúncio!
Do apartamento da srta. Eveleth desci para o escritório no primeiro andar, onde encontrei o zelador, sr. McBirney, e sua esposa, que cuidavam do prédio. Ela era uma mulherzinha magrela, com a boca e o nariz angulosos de uma megera; ele era alto, ombros largos, cabelos e bigode grisalhos, um rosto bem-humorado e irrequieto, e olhos joviais, de um azul aguado e claro.
McBirney contou com voz arrastada o que sabia do assalto.
– Eu estava consertando a carrapeta de uma torneira quando ouvi o tiro. Subi para ver o que se passava, e quando já tinha chegado a uma distância de onde, na escada, podia ver a porta dos Toplins, o sujeito saiu. A gente viu um ao outro ao mesmo tempo, e ele me apontou o revólver. Eu podia ter feito muitas coisas, mas o que fiz foi me abaixar e tirar a cabeça da linha de tiro. Ouvi o sujeito correr para cima e subi bem a tempo de ver ele dobrar a volta entre o quinto e o sexto andares.
“Não fui atrás dele. Não tinha arma nem nada, e imaginei que ele estava acuado. Um homem pode sair deste prédio para o telhado do vizinho pelo quarto andar, e talvez pelo quinto, mas não de nenhum lugar acima; e o apartamento dos Toplins fica no quinto. Imaginei que a gente tinha o sujeito. Eu podia ficar parado diante do elevador e vigiar as escadas da frente e dos fundos, e chamei o elevador e disse a Ambrose, o ascensorista, que desse o alarme e corresse para fora, para ficar de olho na escada de incêndio, até a polícia chegar.
“A patroa subiu com minha arma um ou dois minutos depois e me disse que Martínez – o irmão de Ambrose, que cuida da central telefônica e da porta da frente – tinha ido chamar a polícia. Eu podia ver bem as duas escadas, e o sujeito não desceu por elas; e só demorou alguns minutos até a polícia, um monte deles, chegar da delegacia de Richmond. Aí a gente tirou os Toplins de dentro do armário e começou a vasculhar o prédio. E então a srta. Eveleth desceu correndo a escada, o rosto coberto de sangue, e disse que ele estava no apartamento dela; por isso a gente teve toda certeza de que tinha fisgado o sujeito. Mas não tinha. Revistamos cada apartamento do prédio, mas nem sinal dele.”
– Claro que não encontraram! – disse a sra. McBirney, de um modo desagradável. – Mas se você tivesse...
– Eu sei – disse o zelador, com o ar tolerante de alguém que aprendeu a aceitar as críticas como parte normal da vida de casado –, se eu fosse um herói, tinha pegado ele eu mesmo, e me esbagaçado todo. Bem, eu não sou tolo como o velho Toplin, que levou um tiro no pé, nem Blanche Eveleth, que teve o nariz rebentado. Eu sou um homem de juízo, que sabe quando está por baixo... não vou saltar em cima de arma nenhuma!
– Não! Não vai fazer nada que...
Essa briga não ia me levar a parte alguma, por isso cortei com uma pergunta à mulher.
– Quem é o inquilino mais recente aqui?
– O sr. e a sra. Jerald... chegaram anteontem.
– Que apartamento?
– O 704... junto do da srta. Eveleth.
– Quem são esses Jeralds?
– Vieram de Boston. Ele me contou que veio para cá abrir uma filial de uma empresa industrial. É um homem de pelo menos cinqüenta anos, magro e com ar de quem não tem boa digestão.
– Só ele e a esposa?
– É. Ela também é doente... passou um ou dois anos num sanatório.
– Quem é o mais novo inquilino depois deles?
– O sr. Heaton, do 535. Mora aqui há duas semanas, mas no momento está em Los Angeles. Viajou há três dias e ia ficar dez ou doze dias fora.
– Como é ele e o que faz?
– Trabalha com uma agência teatral e é meio gordo e vermelho.
– O mais novo seguinte?
– A srta. Eveleth.
– E o seguinte?
– Os Wageners, do 923. Estão aqui já há dois meses.
– Quem são?
– Ele é corretor imobiliário aposentado. Os outros são a esposa e o filho Jack... um rapaz, de uns dezenove anos. Anda muito com Phyllis Toplin.
– Há quanto tempo os Toplins estão aqui?
– Vai fazer dois anos no mês que vem.
Eu me voltei da sra. McBirney para o marido.
– A polícia revistou os apartamentos de todas essas pessoas?
– É – disse. – A gente entrou em tudo que é quarto, tudo que é vão, tudo que é armário, do porão ao telhado.
– O senhor deu uma boa olhada no ladrão?
– É. Tem uma luz no corredor diante da porta dos Toplins, e bateu direto na cara dele quando eu o vi.
– Podia ser um dos inquilinos?
– Não, não podia, não.
– Reconhece o sujeito se vir de novo?
– Pode apostar.
– Como era ele?
– Meio enfezado, um rapaz de cara branca, 23 ou 24 anos, com um terno azul velho.
– Posso falar com Ambrose e Martínez, os rapazes do elevador e da portaria, agora?
O zelador olhou o seu relógio.
– É. Eles já devem estar de serviço. Chegam às duas.
Fui até o saguão e encontrei-os juntos, contando moedas. Eram irmãos, rapazes filipinos esbeltos, olhos brilhantes. Não acrescentaram grande coisa.
Ambrose descera ao saguão e mandara o irmão chamar a polícia assim que McBirney lhe dera a ordem, depois saíra pela porta dos fundos para vigiar a escada de incêndio. As escadas de incêndio desciam no fundo por um dos lados do prédio. Postando-se um pouco recuado da quina das paredes, o filipino podia manter um olho nas duas, e também na porta dos fundos.
Disse que havia muita iluminação, ele podia ver as duas escadas até o telhado, e não vira ninguém.
Martínez chamara a polícia pelo telefone e depois vigiara a porta da frente e o pé da escada da frente. Não vira nada.
Eu acabava de interrogar os filipinos, quando a porta da rua se abriu e entraram dois homens. Um deles eu conhecia: Bill Garren, detetive de polícia do Esquadrão de Lojas de Penhores. O outro era um rapaz louro baixinho, muito vistoso numas calças pregueadas, paletó curto de ombros quadrados e sapatos de couro com manchas amarelas combinando com o chapéu e as luvas. Fazia um biquinho de mau humor. Parecia não gostar de estar com Garren.
– Que está fazendo por aqui? – o detetive me saudou.
– O material de Toplin, para a companhia de seguros – expliquei.
– Está conseguindo alguma coisa? – perguntou.
– Estou quase para fazer uma prisão – disse eu, não inteiramente a sério nem inteiramente brincando.
– Quanto mais alegres somos, mais alegres ficamos – sorriu ele. – Eu já fiz a minha. – Indicou com a cabeça o rapaz embonecado. – Suba com a gente.
Entramos os três no elevador e Ambrose nos levou ao quinto andar. Antes de apertar a campainha dos Toplins, Garren me contou o que sabia.
– Esse garoto tentou empenhar um anel numa loja da Third Street ainda há pouco... um anel de esmeralda e diamante que parece ser um dos roubados dos Toplins. Está bancando o mudo agora; não falou uma palavra... ainda. Vou mostrá-lo a essas pessoas e depois levá-lo para o Tribunal de Justiça e arrancar palavras dele... palavras arrumadinhas em boas frases e tudo!
O preso olhava casmurro para o chão e não deu atenção a essa ameaça. Garren tocou a campainha e a criada Hilda abriu a porta. Ela arregalou os olhos quando viu o rapaz, mas não disse nada ao nos deixar entrar na sala de visitas, onde estavam a sra. Toplin e a filha. Elas ergueram o olhar para nós.
– Olá, Jack! – Phyllis cumprimentou o preso.
– Olá, Phyl – resmungou ele, sem olhar para ela.
– Entre amigos, hein? Bem, qual é a resposta? – perguntou Garren à moça.
Ela empinou o queixo, e embora enrubescesse, olhou altiva para o detetive.
– Se importa de tirar o chapéu? – perguntou.
Bill não é um sujeito mau, mas não tem nada de manso. Respondeu a ela quebrando o chapéu para cima de um olho e voltando-se para a mãe.
– Já viu esse rapaz antes?
– Ora, certamente! – exclamou a sra. Toplin. – É o sr. Wagener, que mora aí em cima.
– Bem – disse Bill. – O sr. Wagener foi apanhado numa loja de penhores tentando se livrar deste anel. – Tirou um vistoso anel verde e branco do bolso. – Conhece?
– Certamente! – disse a sra. Toplin, olhando o anel. – É de Phyllis, e o ladrão... – Deixou cair o queixo, ao começar a entender. – Como pode o sr. Wagener...
– É, como? – repetiu Bill.
A moça meteu-se entre mim e Garren, dando as costas a ele para me olhar.
– Eu posso explicar tudo – anunciou.
Isso pareceu demais uma legenda de filme para ser muito promissor, mas...
– Vá em frente – encorajei-a.
– Eu encontrei esse anel no corredor, perto da porta, quando acabou o barulho. O ladrão deve tê-lo deixado cair. Eu não disse nada a papai e mamãe, porque achei que ninguém ia nunca saber a diferença, e não estava no seguro, logo achei que era melhor vendê-lo e ficar com o dinheiro. Perguntei a Jack ontem de noite se podia vendê-lo para mim e ele disse que sabia exatamente como resolver o problema. Ele não teve nada a ver com o anel fora isso, mas achei que tivesse juízo suficiente para não empenhá-lo imediatamente.
Olhou com desprezo para o cúmplice.
– Está vendo o que você fez? – acusou-o.
Ele se mexeu e fez biquinho para os pés.
– Ha! Ha! Ha! – fez Bill de cara fechada. – Essa é ótima! Já ouviu a dos dois irlandeses que entraram por engano na Associação Judaica de Moços?
Ela não respondeu se ouvira ou não.
– Sra. Toplin – perguntei –, tirando as roupas diferentes e a cara não-barbeada, esse rapaz podia ser o ladrão?
Ela balançou a cabeça com ênfase.
– Não! Não podia!
– Largue seu preso, Bill – sugeri –, e vamos para um canto ter uma conferência só entre nós.
– Certo!
Arrastou uma pesada cadeira para o centro da sala, sentou Wagener nela, ancorou-o ali com algemas – não exatamente necessárias, mas Bill estava furioso por não ter seu preso identificado como o ladrão – e saiu comigo para o corredor. Podíamos ficar de olho na sala de visita dali, sem que ouvissem nossa conversa.
– É muito simples – sussurrei na orelhona vermelha dele. – Só há cinco maneiras de imaginar a coisa. Primeiro: Wagener roubou o material para os Toplins. Segundo: os Toplins arranjaram o roubo sozinhos e mandaram Wagener vender. Terceiro: Wagener e a moça fizeram um trato sem os velhos saberem. Quarto: Wagener agiu por conta própria e a moça lhe deu cobertura. Quinto: ela nos contou a verdade. Nenhuma explica por que o companheirinho dela seria burro o suficiente para aparecer com o anel no centro hoje de manhã, mas isso nenhum sistema explica. Qual das cinco você prefere?
– Eu gosto de todas – resmungou. – Porém o que mais gosto é que peguei esse boneco... peguei ele tentando passar o anel. Isso me basta.Você cuida dos palpites. Não quero mais do que já consegui.
– Também não me aborrece – concordei. – Do jeito que a coisa está, a companhia de seguros pode dar um calote nas apólices... mas eu gostaria que a coisa ardesse mais um pouco, o bastante para pôr em cana todos que tentaram dar um golpe na Norte-americana. Vamos arrancar tudo que pudermos do garoto, jogá-lo no xilindró e depois ver que outros danos podemos causar.
– Tudo bem – disse Garren. – Que tal ir buscar o zelador e a tal Eveleth, enquanto eu mostro o rapaz ao velho Toplin e peço a opinião da criada?
Fiz que sim com a cabeça e segui pelo corredor, deixando a porta aberta atrás. Tomei o elevador até o sétimo andar e disse a Ambrose que chamasse McBirney e o mandasse ao apartamento dos Toplins. Depois toquei a campainha de Blanche Eveleth.
– Pode descer por um ou dois minutos? – perguntei-lhe. – Temos um preso que pode ser o seu amiguinho de ontem à noite.
– Se posso? – Ela dirigiu-se à escada comigo. – E se for ele, posso retribuir-lhe minha beleza arruinada?
– Pode – prometi. – Faça o que quiser, contanto que não o estropie demais para impedi-lo de ir a julgamento.
Levei-a ao apartamento dos Toplins sem tocar a campainha e encontrei todo mundo no quarto de Frank. Uma olhada à cara amarrada de Garren me disse que nem o velho nem a criada haviam identificado o preso.
Apontei Jack Wagener. A decepção tomou os olhos de Blanche Eveleth.
– Você se enganou – disse ela. – Não é ele.
Garren armou-lhe uma carranca. Era claro que, se os Toplins estivessem mancomunados com o jovem Wagener, não iriam identificá-lo como o ladrão. Bill contava que essa identificação viesse dos dois de fora – Blanche Eveleth e o zelador –, e agora um deles falhara.
O outro tocou a campainha nesse momento e a criada o introduziu.
Apontei para Jack Wagener, parado carrancudo ao lado de Garren, de olhos baixos.
– Conhece, sr. McBirney?
– É, o filho do sr. Wagener, Jack.
– É o homem que o ameaçou com um revólver ontem de noite?
Os olhos aguados do sr. McBirney saltaram de surpresa.
– Não – disse, com decisão, e começou a parecer em dúvida.
– Com um terno velho, boné puxado para os olhos e a barba crescida... podia ser ele?
– Não – disse o zelador, arrastando a voz. – Acho que não, embora... Sabe, agora que penso nisso, tinha alguma coisa conhecida naquele sujeito, e talvez... Diabos, acho que talvez o senhor tenha razão... embora eu não possa dizer bem com certeza.
– Chega! – grunhiu Garren enojado.
Uma identificação como a feita pelo zelador não vale nada num sentido ou noutro. Mesmo as identificações positivas e imediatas nem sempre são as boas. Muita gente sem juízo – e algumas que o têm, ou deviam ter – deu má fama à prova circunstancial. É enganosa às vezes. Mas quanto à inconfiabilidade autêntica, integral, do pré-guerra, não chega à distância de um tiro do testemunho humano. Peguem qualquer um que queiram – a menos que seja aquele um em cem mil com a mente treinada para manter tudo nos seus lugares –, façam-no ficar excitado, mostrem-lhe alguma coisa, dêem-lhe algumas horas para pensar e discutir bem, e depois perguntem a respeito. Dez a um como vão ter problema para descobrir qualquer ligação entre o que ele viu e o que diz ter visto. Como aquele McBirney – mais uma hora, e estaria disposto a apostar a vida em que Jack Wagener era o ladrão.
Garren pegou o rapaz pelo braço e dirigiu-se à porta.
– Para onde, Bill? – perguntei.
– Lá pra cima, conversar com os pais dele. Você vem?
– Fique um pouco por aqui – convidei. – Vou dar uma festinha. Mas primeiro, me diga, os tiras que vieram aqui quando disparou o alarme fizeram um bom serviço?
– Eu não vi – disse o detetive de polícia. – Só cheguei depois que os fogos de artifício já haviam acabado, mas pelo que sei o pessoal fez tudo que se podia esperar deles.
Virei-me para Frank Toplin. Falava com ele porque nós – sua esposa, a filha, a criada, o zelador, Blanche Eveleth, Garren e seu preso, e eu – nos reuníamos em torno da cama do velho, e olhando para ele eu via a todos com um dos olhos.
– Alguém andou me fazendo de bobo em algum ponto – comecei meu discurso. – Se tudo o que me disseram sobre este caso está certo, então a Lei Seca também está. As histórias de vocês não se encaixam, nem chegam perto disso. Vejam o sujeito que assaltou vocês. Parece que conhecia muito bem seus movimentos. Talvez fosse sorte ter atacado o apartamento numa hora em que todas as jóias estavam à mão, em vez de outro apartamento, ou este mesmo em outra hora. Mas eu não acredito em sorte. Prefiro imaginar que ele sabia o que fazia. Saqueou vocês, depois correu para o apartamento da srta. Eveleth. Talvez fosse descer quando deu com o sr. Birney, talvez não. De qualquer modo, subiu e entrou no apartamento da srta. Eveleth, procurando uma escada de incêndio. Engraçado, hum? Ele sabia o bastante sobre a casa para fazer um assalto lucrativo, mas não sabia que não havia escadas de incêndio no lado da srta. Eveleth do prédio.
“Ele não falou com vocês nem com o sr. McBirney, mas falou com a srta. Eveleth, numa voz grave. Muito, muito profunda. Engraçado, hum? Do apartamento da srta. Eveleth, sumiu, com todas as saídas vigiadas. Os policiais devem ter chegado antes que ele deixasse o apartamento da srta. Eveleth, e a primeira coisa que fizeram foi bloquear as saídas, quer McBirney e Ambrose já tivessem feito isso ou não. Mas ele fugiu. Engraçado, hum? Ele usava um terno amassado, que podia ter sido tirado de uma trouxa pouco antes do serviço, e era baixinho. A srta. Eveleth não é uma mulher pequena, mas seria um homem pequeno. Um sujeito de espírito desconfiado quase pensaria que Blanche Eveleth era o ladrão.”
Frank Toplin, sua esposa, o jovem Wagener, o zelador e a criada me olhavam boquiabertos. Garren media com os olhos entrecerrados a tal Eveleth, que me fuzilava com o olhar. Phyllis Toplin me olhava com uma espécie de desprezo piedoso por meu retardamento.
Bill Garren concluiu o exame da moça e balançou a cabeça, devagar.
– Ela podia conseguir – deu sua opinião –, dentro do prédio e de bico calado.
– Exatamente – disse eu.
– Exatamente uma ova! – explodiu Phyllis Toplin. – Vocês dois, detetives formados por curso de correspondência, acham que nós não íamos saber a diferença entre um homem e uma mulher em trajes de homem? Ele tinha uma barba de um ou dois dias na cara... pêlos de verdade, se entendem o que eu digo. Acha que ele podia nos enganar com pêlos falsos? Isto aqui aconteceu mesmo, vocês sabem, não está numa peça!
Os outros fecharam a boca e balançaram a cabeça.
– Phyllis tem razão. – Frank Toplin apoiou seu rebento. – Era um homem... não uma mulher vestida de homem.
A esposa, a criada e o zelador balançaram a cabeça em vigoroso endosso.
Mas eu sou um sujeito teimoso quando se trata de seguir os indícios até o fim. Virei-me e olhei para Blanche Eveleth.
– Pode dar alguma contribuição? – perguntei-lhe.
Ela deu um sorriso muito meigo e balançou a cabeça.
– Tudo bem, sua vagabunda – disse eu. – Está presa. Vamos.
Então pareceu que ela podia dar uma contribuição. Tinha alguma coisa a dizer, muitas coisinhas a dizer, e todas sobre mim. Não eram coisas bonitas. Com raiva, sua voz tornava-se estridente, e no momento estava mais furiosa do que se pensaria que alguém podia ficar com tão breve aviso prévio. Senti por isso. Aquele serviço tinha corrido de maneira pacífica e delicada até então, não fora arranhado por nada desagradável, fora quase elegante em cada detalhe; e eu esperava que assim fosse até o fim. Porém quanto mais ela gritava comigo, mais desbocada ficava. Não disse nenhuma palavra que eu não tivesse ouvido antes, mas as arrumava em combinações novas para mim.
Então a derrubei com um soco na boca.
– Vamos! Vamos! – berrou Bill Garren, agarrando meu braço.
– Poupe sua força, Bill – aconselhei-o, sacudindo a mão dele e abaixando-me para levantar a tal Eveleth do chão. – Seu cavalheirismo lhe faz honra, mas acho que vai descobrir que o verdadeiro nome de Blanche é Tom, Dick ou Harry.
Levantei-a (ou levantei-o, como preferirem) e perguntei-lhe:
– Quer nos contar?
Como resposta, recebi um rosnado.
– Tudo bem – disse eu aos outros –, na ausência de informação autorizada, vou dar meu serviço. Se Blanche Eveleth podia ser o ladrão, a não ser pela barba e o problema de uma mulher se passar por homem, por que não poderia o ladrão ser Blanche Eveleth antes e depois do assalto, usando um, como é que se chama, forte depilatório na cara? É difícil uma mulher se fantasiar de homem, mas muitos homens convencem num papel feminino. Não podia esse sujeito, após alugar o apartamento como Blanche Eveleth e arrumar tudo, se trancar lá uns dois dias, deixando a barba crescer? Descer e liquidar o serviço? Correr para cima, tirar os pêlos da cara e entrar no papel feminino em, digamos, quinze minutos? Meu palpite é que podia. E ele teve quinze minutos. Não sei do nariz quebrado. Talvez tenha tropeçado ao subir a escada, e mudou os planos para explicar isso... ou talvez o tenha quebrado intencionalmente.
Meus palpites não estavam longe da verdade, embora ele se chamasse Fred – Frederick Agnew Rudd. Era conhecido em Toronto, e cumprira pena no Reformatório de Ontário aos dezenove anos, depois de apanhado por roubo em uma loja vestido de mulher. Não confessou, e jamais encontramos a arma nem o terno azul, o boné e as luvas pretas, embora descobríssemos um buraco no colchão onde ele os escondeu da polícia até mais tarde naquela noite, quando pôde livrar-se deles. Mas as jóias dos Toplins vieram à luz peça por peça quando mandamos os bombeiros desmontarem os canos e radiadores do apartamento 702.
UMA HORA
I
– Este é o senhor Chrostwaite – disse Vance Richmond.
Chrostwaite, entalado entre os braços de uma das grandes cadeiras do advogado, rosnou algo que valia por um agradecimento da apresentação. Resmungei também de volta para ele e procurei uma cadeira.
Esse tal Chrostwaite era um grande balão em forma de homem, metido num terno verde amarrotado que não o tornava menor do que era. Na sua gravata espalhafatosa o amarelo predominava, com um grande diamante bem no centro, e mais pedras preciosas cobriam suas mãos rechonchudas. A gordura esponjosa borrava suas feições, tornando impossível para o rosto redondo avermelhado expressar outra coisa que não o azedo descontentamento que lhe era habitual. Ele recendia a gim.
– O sr. Chrostwaite é o agente para a costa do Pacífico da Mutual Fire Extinguisher Manufacturing Company – começou Vance Richmond, tão logo me sentei. – Seu escritório é na Kearny Street, perto da California Street. Ontem, por volta de 2h45 da tarde, ele foi ao escritório e deixou o carro, um Hudson, na frente, com o motor ligado. Voltou minutos depois e o carro tinha sumido.
Olhei para Chrostwaite. Ele contemplava seus gordos joelhos, sem demonstrar qualquer interesse no que o advogado estava dizendo. Olhei rapidamente de volta para Vance Richmond; sua limpa face cinzenta e seu corpo magro pareciam francamente bonitos em comparação com seu inchado cliente.
– Um homem chamado Newhouse – o advogado estava dizendo –, proprietário de uma gráfica na California Street, bem na esquina do escritório do sr. Chrostwaite, foi atropelado e morto pelo carro do sr. Chrostwaite, na esquina da Clay com a Kearny Street, cinco minutos depois de o sr. Chrostwaite ter deixado o carro em frente ao escritório. A polícia encontrou o carro pouco depois, a uma quadra somente do local do acidente, na Montgomery Street, perto da Clay.
“As coisas parecem bastante óbvias. Alguém roubou o carro logo depois de o sr. Chrostwaite o ter deixado; ao fugir rapidamente, atropelou Newhouse; e então, assustado, abandonou o carro. Mas aqui surge uma outra complicação para o sr. Chrostwaite: três noites atrás, enquanto dirigia de maneira talvez um tanto descuidada...”
– Bêbado – disse Chrostwaite, sem tirar os olhos dos joelhos dobrados; e em sua voz áspera, rouca, com a rouquidão de uma garganta queimada pelo uísque, não havia qualquer emoção.
– Enquanto dirigia de maneira talvez um tanto descuidada pela Van Ness Avenue – continuou Vance Richmond, ignorando a interrupção –, o sr. Chrostwaite atropelou um pedestre. O homem não chegou a se machucar muito e está sendo generosamente recompensado por seus ferimentos. Mas nós devemos nos apresentar diante do tribunal na próxima segunda-feira, para fazer face à acusação de direção imprudente, e estou temeroso de que esse acidente de ontem, em que o gráfico morreu, possa nos prejudicar.
“Ninguém acha que o sr. Chrostwaite estava no carro quando este matou o gráfico; temos uma montanha de provas de que ele não estava. Mas tenho medo de que a morte do gráfico possa se tornar uma arma contra nós, quando enfrentarmos a acusação pelo caso da Van Ness Avenue. Como advogado, sei de quanto capital o promotor dispõe, se ele quiser se aproveitar do fato, na verdade insignificante, de que o mesmo carro que atropelou o homem da Van Ness Avenue matou um outro homem ontem. E como advogado, sei que o promotor com toda a probabilidade vai se valer disso. E pode utilizar isso de uma maneira tal que teremos pouca ou até nenhuma oportunidade de nos defendermos.
“O pior que pode acontecer, claro, é que, em lugar da tradicional multa, o sr. Chrostwaite seja mandado para a cadeia por trinta ou sessenta dias. Isso seria de fato muito ruim e o que nós queremos é...”
Chrostwaite falou outra vez, ainda olhando para os joelhos:
– Merda de aborrecimento! – exclamou.
– É o que queremos evitar – continuou o advogado. – Desejamos pagar uma multa pesada e é o que esperamos, pelo acidente da Van Ness Avenue, que foi claramente culpa do sr. Chrostwaite. Mas nós...
– Bêbado como um lorde! – disse Chrostwaite.
– Mas nós não queremos nos envolver com esse outro acidente, com o qual nada tivemos a ver mas que pode dar um peso falso, pela conexão, a um acidente mais leve. Queremos portanto encontrar o homem ou os homens que roubaram o carro e atropelaram John Newhouse. Se eles fossem presos antes de nossa ida ao tribunal, não correríamos o risco de sofrer por causa de seus atos. Você acredita que pode encontrá-los antes de segunda-feira?
– Vou tentar – prometi –, mas não é...
O balão humano me interrompeu ao erguer-se e procurar com seus gordos dedos cobertos de jóias pelo relógio.
– Três horas – disse. – Tenho um jogo de golfe às três e meia.
Apanhou o chapéu e as luvas de cima da escrivaninha.
– Você vai encontrá-los, não? Ir pra cadeia é uma merda de um tremendo aborrecimento!
E saiu.
II
Do escritório do advogado dirigi-me ao Palácio de Justiça e, depois de alguns minutos de procura, encontrei um policial que havia chegado à esquina da Clay com a Kearny Street segundos depois do atropelamento de Newhouse.
– Eu estava acabando de sair do Palácio quando vi uma banheira dobrando à toda a esquina da Clay Street – disse o policial, um grandalhão de cabelos cor de areia chamado Coffee. – Em seguida vi pessoas se juntando, de modo que fui até lá e encontrei esse tal de John Newhouse esticado no chão. Já estava morto. Meia dúzia de pessoas presenciou o acidente e uma delas pegou a placa do carro. Encontramos o carro vazio na esquina da Montgomery Street, voltado para a direção norte. Havia dois homens no carro, quando ele atingiu Newhouse, mas ninguém chegou a ver como eles eram. Não havia ninguém dentro do carro, quando o achamos.
– Em que direção Newhouse estava caminhando?
– Direção norte, pela Kearny Street, e estava a cerca de três quartos de distância da Clay quando foi derrubado. O carro também ia pela Kearny no rumo norte e virou para leste na Clay. A culpa não podia ter sido toda só dos sujeitos do carro, segundo os que viram o acidente. Newhouse estava atravessando a rua olhando para um pedaço de papel que tinha na mão. Encontrei um pedaço de dinheiro estrangeiro na sua mão e acho que era para isso que ele estava olhando. O tenente me contou que era dinheiro holandês; uma nota de cem florins, segundo ele.
– Descobriu alguma coisa sobre os homens no carro?
– Nada. Alinhamos todos os caras que encontramos nas proximidades da Kearny e da California Street, onde o carro fora roubado, e da Clay e da Montgomery Street, onde foi abandonado. Mas ninguém se lembrava de ter visto os sujeitos entrando ou saindo dele. O proprietário do carro não o estava dirigindo; ele foi roubado, eu acho. A princípio achei que havia alguma coisa esquisita com o acidente. O tal John Newhouse tinha um olho preto de dois ou três dias. Mas investigamos e descobrimos que ele sofrera um ataque de coração ou algo assim uns dias antes e caíra, machucando o olho contra uma cadeira. Ficara doente em casa durante uns três dias. Saíra de casa cerca de meia hora antes do acidente.
– Onde ele morava?
– Na Sacramento Street. Tenho o endereço aqui, em algum lugar.
Folheou as páginas de uma agenda sebosa e ganhei o número da casa do morto e os nomes e endereços das testemunhas do acidente que Coffee havia interrogado.
Essas eram todas as informações de que o policial dispunha, e eu o deixei.
III
Minha próxima jogada iria ser vasculhar as vizinhanças dos locais onde o carro fora roubado e onde fora abandonado e então ouvir as testemunhas. O fato de que a polícia já explorara esse terreno sem resultados tornava improvável o fato de que eu descobrisse alguma coisa de valor; mas eu não podia deixar isso de lado. Noventa e nove por cento do trabalho do detetive é uma paciente coleta de detalhes – e esses detalhes devem ser, tanto quanto possível, colhidos em primeira mão, não importa quem tenha explorado o terreno antes de você.
No entanto, antes de tomar esse caminho, decidi dar um pulo na gráfica do morto, a apenas três quadras de distância do Palácio de Justiça, e verificar se algum de seus empregados ouvira qualquer coisa que pudesse me ajudar.
O estabelecimento de Newhouse ocupava o andar térreo de um pequeno edifício da California Street, entre a Kearny e a Montgomery. Um escritório pequeno se posicionava na entrada, com uma porta interna que dava para a oficina, nos fundos.
O único ocupante do pequeno escritório, quando entrei, era um homem louro, baixo e forte, de uns quarenta anos e olhar preocupado. Estava sentado sem paletó atrás da escrivaninha, verificando números num livro de contabilidade, em meio a um monte de papéis.
Eu me apresentei, dizendo-lhe que trabalhava para a Agência de Detetives Continental e que estava interessado na morte de Newhouse. Ele disse chamar-se Ben Soules e que era o gerente de Newhouse. Apertamos as mãos e em seguida ele me apontou uma cadeira em frente à escrivaninha. Arredou os papéis e o livro em que estava trabalhando e coçou desgostoso a cabeça com o lápis que tinha na mão.
– Isso é terrível! – disse. – Quando menos se espera, o trabalho está na maior confusão e eu tenho de me virar com esses livros de que não entendo nada, e...
Interrompeu-se para atender o telefone, que tinha chamado.
– Sim, aqui é Soules... Nós estamos trabalhando neles agora... Eu lhe entrego até segunda-feira ao meio-dia, no mais tardar... Sei! Sei! Mas a morte do chefe nos atrasou. Explique isso ao sr. Chrostwaite. E... e prometo que os entregarei a você na segunda-feira de manhã, com certeza!
Soules bateu irritado o telefone e me olhou.
– Já que foi o seu próprio carro que matou o patrão, ele deveria de ter a decência de pelo menos não ficar reclamando do atraso!
– Chrostwaite?
– Sim. Era um dos empregados dele. Estamos imprimindo alguns folhetos para ele. A promessa era de que estariam prontos ontem mas, devido à morte do chefe e da contratação de pessoal novo, estamos com tudo atrasado. Estou aqui há oito anos e é a primeira vez que atrasamos um pedido – e todos esses malditos clientes ficam reclamando aos berros. Se fôssemos como a maioria das gráficas, eles já estariam acostumados a esperar; mas temos sido bons demais com eles. Mas esse Chrostwaite! Ele deveria ter um pouco mais de decência, sabendo que foi seu carro que matou o patrão!
Sacudi a cabeça em sinal de apoio, estendi um charuto por cima da escrivaninha e esperei até que ele estivesse fumegando na boca de Soules, antes de perguntar:
– Você falou de um pessoal novo contratado. Como assim?
– Sim. O sr. Newhouse despediu dois de nossos impressores na semana passada, Fincher e Keys. Descobrimos que eles pertenciam à IWW1, de modo que os mandamos embora.
– Algum problema com os sujeitos ou havia algo mais contra eles, além do fato de que eram integrantes da organização?
– Não. Eles eram ótimos empregados.
– Algum problema com eles, depois que foram despedidos? – perguntei.
– Nenhum grande problema, embora tenham ficado de cabeça quente. Fizeram um verdadeiro comício, antes de irem embora.
– Lembra-se em que dia isso aconteceu?
– Quarta-feira da semana passada, eu acho. Sim, quarta, porque contratei os dois homens novos na quinta.
– Com quantos homens trabalha?
– Três, sem contar comigo.
– O sr. Newhouse costumava ficar doente?
– Não doente o suficiente para faltar com freqüência, embora de vez em quando seu coração pifasse e ele tivesse de ficar de cama uma semana ou dez dias. Ele de fato nunca estava bem. Não fazia nada que não fosse o trabalho de escritório; eu dirigia o estabelecimento.
– Quando ele ficou doente pela última vez?
– A sra. Newhouse ligou terça-feira de manhã e disse que ele sofrera outro ataque, não ia poder sair durante alguns dias. Ele esteve aqui ontem à tarde, ou seja, quinta-feira, durante uns dez minutos e disse que voltaria a trabalhar esta manhã. Foi morto assim que saiu.
– Como parecia ele: muito doente?
– Nem tanto. Nunca parecia bem, é claro, mas não pude notar muita diferença dos outros dias. O último ataque não tinha sido pior do que os outros. Em geral, acho eu, ele ficava de cama uma semana ou mais.
– Ele falou aonde ia, quando saiu? O motivo de minha pergunta é que, vivendo na Sacramento Street, ele naturalmente iria pegar um carro naquela rua se fosse para casa, mas foi atropelado na Clay Street.
– Ele disse que ia à Portsmouth Square, para sentar lá e pegar um pouco de sol durante uma meia hora. Tinha ficado fechado dentro de casa durante dois ou três dias, disse, e queria pegar um pouco de sol antes de voltar para casa.
– Ele tinha um pedaço de dinheiro estrangeiro na mão quando foi atingido. – Sabe alguma coisa sobre isso?
– Sim. Ele pegou a nota aqui. Um de nossos clientes, um homem chamado Van Pelt, veio pagar um trabalho que fizemos ontem à tarde, enquanto o chefe estava aqui. Quando Van Pelt puxou a carteira para pagar a conta, essa nota de dinheiro da Holanda – não sei como é o nome dele – estava entre as outras notas. Acho que ele disse que ela valia algo como 38 dólares. De qualquer modo, o patrão a pegou e deu o troco a Van Pelt. O patrão disse que queria mostrar o dinheiro holandês para os filhos e que mais tarde poderia trocá-lo por dinheiro americano.
– Quem é esse Van Pelt?
– É um holandês. Está planejando abrir aqui um negócio grande de fumo, dentro de um ou dois meses. Não sei muita coisa sobre ele, afora isso.
– Onde é a casa, ou o escritório, dele?
– Seu escritório é na Bush Street, perto de Sansome.
– Ele sabia que Newhouse estava doente?
– Não sei. O chefe não parecia muito diferente do habitual.
– Como é o nome todo de Van Pelt?
– Hendrik Van Pelt.
– Como é a aparência dele?
Antes que Soules pudesse responder, três zumbidos espaçados soaram por sobre o barulho e a trepidação das máquinas impressoras nos fundos da loja.
Fiz deslizar o cano da minha arma – eu a estava segurando no colo já fazia uns cinco minutos – por sobre a escrivaninha, de modo que Ben Soules a pudesse ver.
– Coloque as duas mãos em cima da mesa – eu disse.
Ele as colocou.
A porta da oficina estava exatamente atrás dele, de modo que, olhando-o por sobre a escrivaninha, eu a podia ver acima de seus ombros. Seu corpo robusto servia como um biombo para esconder minha arma da vista de qualquer um que entrasse pela porta, em resposta ao sinal de Soules.
Não tive de esperar muito.
Três homens, pretos de tinta, entraram pela porta no pequeno escritório.
Caminhavam de maneira distraída e descuidada, rindo e brincando uns com os outros.
Mas um deles lambeu os lábios, ao transpor a porta. Os olhos de outro mostravam pequenos círculos brancos em torno da íris. O terceiro era o melhor ator, mas mantinha os ombros um pouco tensos demais para estarem de acordo com a atitude de outro modo relaxada.
– Parem aí! – gritei, assim que o terceiro entrou no escritório. E levantei minha arma até onde eles a pudessem ver.
Eles pararam, como se estivessem todos sob o mesmo par de pernas.
Empurrei minha cadeira para trás e me ergui.
Não estava gostando nada da minha posição. O escritório era absolutamente pequeno para mim. Eu tinha uma arma, é verdade, e qualquer arma que aqueles homens pudessem ter não estava à vista. Mas os quatros estavam muito próximos de mim; e uma arma não faz milagres. É uma concepção mecânica capaz de ir até certo ponto e não mais.
Se aqueles homens decidissem pular sobre mim, podia abater apenas um deles, antes que os outros três caíssem sobre mim. Eu sabia disso e eles sabiam disso.
– Levantem as mãos – ordenei – e virem-se!
Nenhum deles obedeceu. Um dos homens molhados de tinta sorriu com maldade; Soules sacudiu a cabeça lentamente; os outros dois permaneceram parados, me olhando.
Fiquei um pouco perdido. Você não pode atirar num homem só porque ele se recusa a obedecer uma ordem – mesmo que ele seja um criminoso. Se eles tivessem me dado as costas, eu poderia tê-los alinhado contra a parede e, estando atrás deles, os mantido imobilizados enquanto usava o telefone.
Mas a coisa não funcionou.
Minha idéia seguinte foi a de recuar através do escritório até a porta da rua, mantendo-os sob minha mira, e então da porta da rua gritar por socorro; ou levá-los até a rua, onde eu poderia enfrentá-los. Mas botei essa idéia de lado tão rapidamente quanto ela me veio.
Os quatro homens estavam prontos para saltar sobre mim – não havia dúvida disso. Tudo o que eles precisavam era de uma faísca, de qualquer tipo, para acioná-los. Estavam com as pernas tensas e rígidas, à espera de algum movimento de minha parte. Se desse um passo para trás, a batalha começaria.
Estávamos tão próximos que qualquer um dos quatro esticando o braço poderia me tocar. Num deles eu poderia atirar, antes de ser apagado – num dos quatro. Isso significava que cada um deles tinha uma chance em quatro de ser a vítima – um risco roazoavelmente pequeno para qualquer um, mas não para homens extremamente covardes.
Esbocei o que supus ser um sorriso confiante – porque eu tinha de bancar o durão – e levei a mão ao telefone: tinha de fazer alguma coisa! Depois me xinguei! Eu apenas trocara o sinal para o ataque. Ele viria agora que pegara o fone.
Mas não podia voltar atrás – isso, também, seria um sinal –, tinha agora de ir em frente.
O suor escorria-me de sob o chapéu pelas têmporas, enquanto trazia com a mão esquerda o fone mais próximo de mim.
A porta da rua se abriu! Uma exclamação de surpresa veio detrás de mim.
Falei rapidamente, sem tirar os olhos dos quatro homens à minha frente:
– Depressa! O telefone! Chame a polícia!
Com a chegada dessa pessoa desconhecida – um dos clientes de Newhouse, provavelmente – calculei que ganhava uma vantagem. Ainda que ela não fizesse nada, além de chamar a polícia, o inimigo teria de se dividir para cuidar dela – e isso me daria a oportunidade de acertar pelo menos dois deles, antes de ir a nocaute. Dois em quatro – cada um deles tinha uma chanche igual de ser abatido – o que é o suficiente para fazer relutar até o mais controlado dos homens, antes que ele parta para o ataque.
– Depressa! – apressei o recém-chegado.
– Sim! Sim! – disse ele. E o som borrado do “s” trazia um inconfundível sotaque estrangeiro.
Alerta como estava, eu não precisava de nenhum aviso além desse.
Joguei-me de lado – um cego impulso de onde estava. Mas não fui suficientemente rápido.
O golpe vindo detrás não me atingiu em cheio, mas foi forte o bastante para me dobrar as pernas, como se os joelhos tivessem dobradiças de papel, e caí embolado no assoalho...
Algo escuro cresceu em minha direção. Eu o aparei com as duas mãos. Podia ser um pé chutando meu rosto. Eu o torci como uma lavadeira torce uma toalha.
Embaixo minha espinha estalava. Talvez alguém me estivesse golpeando na cabeça. Não sei. Minha cabeça estava numa nuvem. O golpe que me derrubara me deixara totalmente entorpecido. Meus olhos não estavam nada bem. Sombras flutuavam diante deles de um lado para outro – e isso era tudo. Eu golpeava, puxava, cortava na direção das sombras. Às vezes nada encontrava. Às vezes achava coisas que pareciam partes de corpos. Então as golpeava, rasgava-as. Minha arma sumira.
Minha audição não estava melhor do que a visão – ou não tão boa. Não existia um som no mundo. Mergulhei num silêncio que era mais completo do que qualquer silêncio que já conhecera. Eu era um fantasma lutando com fantasmas.
Descobri por fim que meus pés estavam outra vez sob mim, embora alguma coisa incômoda me pressionasse as costas e me impedisse de me esticar. Uma coisa quente e úmida, como uma mão, estava no meu rosto.
Cravei os dentes nela. Joguei a cabeça para trás, até onde ela podia ir. Talvez tenha se esmagado contra o rosto a que se destinava. Não sei. De qualquer modo a pressão nas minhas costas desapareceu.
Compreendi em meio à confusão que era atingido por golpes e estava entorpecido demais para sentir. Incessantemente, com a cabeça, ombros, cotovelos, punhos, joelhos e pés, eu atingia as sombras à minha volta...
De repente podia ver de novo – não com clareza, mas as sombras estavam ganhando cores; e meus ouvidos se recuperaram um pouco, de modo que gemidos, rosnados, palavrões e o impacto dos golpes soavam neles. Meu olhar apertado descansou sobre uma escarradeira de metal a uns vinte centímetros dos meus olhos. Soube então que estava outra vez caído no chão.
Enquanto me torcia para desferir um pontapé num corpo macio acima de mim, algo como uma queimadura, mas que não era uma queimadura, correu ao longo de uma das pernas – uma faca. A agulhada me devolveu a consciência num átimo.
Agarrei a escarradeira de metal e a usei para golpear ao redor dos meus pés – para abrir um claro espaço à minha frente. Homens se jogavam sobre mim. Girei a escarradeira e a arremessei por sobre suas cabeças através da porta de vidro crespo que dava para a California Street.
Então lutamos mais um pouco.
Você não pode atirar uma escarradeira de metal através de uma porta de vidro na California Street, entre a Montgomery e a Kearny, sem atrair atenção – ela está bem no coração da agitação diária de San Francisco. Pouco depois – quando estava outra vez no chão, com trezentos ou quatrocentos quilos de carne pressionando meu rosto contra o assoalho – fomos separados e acabei arrancado do fundo da pilha por um grupo de policiais.
O grandalhão Coffee de cabelos cor de areia era um deles, mas custou muita discussão convencê-lo de que eu era o agente da Continental que havia conversado com ele um pouco antes.
– Homem! – ele exclamou, quando por fim o convenci. – Aqueles caras, santo Deus, fizeram um trabalho e tanto com você! Seu rosto parece um gerânio molhado!
Não ri. Não era engraçado.
Olhei com o único olho ainda funcionando para os cinco homens alinhados no escritório – Soules, os três impressores sujos de tinta e o homem do “s” de som borrado que havia começado o massacre ao me atingir na nuca.
Era um homem ligeiramente alto, de cerca de trinta anos, com um rosto redondo avermelhado que agora ostentava alguns hematomas. Estivera, ao que tudo indicava, bem-vestido por uma cara roupa preta, mas que agora estava rasgada. Sabia quem era, sem precisar perguntar – Hendrik van Pelt.
– Bem, cara, qual é a resposta a tudo isso? – Coffee estava me perguntando.
Descobri que segurando firmemente um dos lados do queixo com uma das mãos eu era capaz de falar sem sentir muita dor.
– Essa é a turma que atropelou Newhouse – expliquei. – E não foi um acidente. Eu não teria me incomodado de me inteirar de mais alguns detalhes, mas as coisas se precipitaram antes que eu pudesse colher mais informações. Newhouse tinha uma nota de cem florins na mão quando foi atropelado. Ele se encaminhava à polícia. Estava a apenas meia quadra do Palácio de Justiça.
“Soules me disse que Newhouse lhe declarara que estava indo para a Portsmouth Square, para sentar ao sol. Mas Soules não parecia saber que Newhouse estava com um olho preto – aquele que você me disse que investigara. Se Soules não tinha visto o olho preto, então eu podia apostar que na verdade ele não havia percebido Newhouse naquele dia!
“Newhouse estava caminhando de sua gráfica em direção à sede da polícia com um pedaço de papel-moeda estrangeiro na mão – não se esqueça disso!
“Ele sofria de freqüentes ataques da doença, os quais, de acordo com o amigo Soules, sempre o mantinham preso em casa por uma semana ou até dez dias, a cada vez. Dessa vez, ficara de cama apenas dois dias e meio.
“Soules diz que o estabelecimento está três dias atrasado com as encomendas e que é a primeira vez em oito anos que isso acontece. E culpa por isso a morte de Newhouse – que só aconteceu ontem. Aparentemente, as doenças anteriores de Newhouse nunca provocaram qualquer atraso – por que isso iria acontecer com o último ataque?
“Dois impressores foram demitidos na semana passada e dois novos contratados já no dia seguinte – bota rapidez nisso. O carro que atropelou Newhouse foi roubado logo ali na esquina e abandonado perto da gráfica. Foi deixado voltado para o norte, o que mostra muito bem que seus ocupantes tomaram rumo sul, depois de saltarem. Ladrões comuns de carro não voltariam para a direção de onde tinham vindo.
“Eu acho o seguinte: esse Van Pelt é holandês e possui algumas placas para a impressão de notas de cem florins falsas. Procurou, até achar, um impressor que se associasse com ele. Encontrou Soules, o gerente de uma gráfica cujo proprietário de vez em quando ficava em casa uma semana ou mais, por causa de um coração doente. Um dos impressores sob as ordens de Soules estava querendo participar da trama. Talvez os outros dois tenham recusado a oferta. Talvez Soules não os tenha convidado. De qualquer modo, eles foram despedidos e dois amigos de Soules ocuparam seus lugares.
“Nossos amigos então prepararam tudo e esperaram pela próxima pifada do coração de Newhouse. Ela aconteceu segunda-feira à noite. Assim que sua esposa ligou no dia seguinte e disse que ele estava doente, os gaviões deram início à falsificação. Foi por isso que o trabalho normal atrasou. Mas o ataque de Newhouse foi mais leve que o habitual. Em dois dias ele estava de pé e ontem à tarde veio aqui por alguns minutos.
“Deve ter entrado enquanto nossos amigos estavam muito ocupados em algum canto. Deve ter notado uma parte do dinheiro falso, imediatamente compreendeu o que se passava, pegou uma das notas para mostrar à polícia e se dirigiu para a delegacia – sem dúvida acreditando que não fora visto pelos nossos amigos aqui.
“Eles, no entanto, devem tê-lo visto sair. Dois deles o seguiram. Eles não podiam, a pé, atacá-lo com segurança a uma ou duas quadras do Palácio de Justiça. Mas, ao dobrarem a esquina, descobriram o carro de Chrostwaite parado lá, dando sopa. Isso resolveu o problema deles. Entraram no carro e saíram atrás de Newhouse. Acredito que a idéia inicial era atirar nele – mas ele atravessou a Clay Street com os olhos fixos no dinheiro falso que levava na mão. Foi a chance dourada pela qual eles esperavam. Jogaram o carro em cima dele. Era morte certa, eles sabiam – o coração avariado da vítima finalizaria o trabalho, se a colisão em si não o matasse. Depois abandoram o carro e voltaram para cá.
“Ainda há uma porção de pormenores a serem esclarecidos, mas a linha de raciocínio que acabei de expor se ajusta a todos os fatos que conhecemos – e aposto um mês de salário como não estou muito errado. Deve haver uma colheita de três dias de notas de dinheiro holandês escondida por aí! Pessoal, se vocês...”
Acho que continuaria falando sem parar – tonto, a cabeça girando da completa exaustão que tomava conta de mim – se o policial grandalhão de cabelo cor de areia não me tivesse calado, ao colocar a enorme mão na minha boca.
– Fique quieto, homem! – disse, levantando-me da cadeira e estendendo-me ao comprido, de costas, sobre a escrivaninha. – A ambulância que vem buscá-lo estará aqui num segundo.
O escritório girava diante do meu único olho aberto – o teto amarelo descia em minha direção, subia outra vez, desaparecia, voltava tomando formas estranhas. Voltei a cabeça de lado, para evitar isso, e meu olhar descansou sobre o mostrador branco de um despertador.
Por fim o mostrador se imobilizou e pude ler – quatro horas.
Lembrei que Chrostwaite interrompera nossa conferência no escritório de Vance Richmond às três e que imediatamente eu começara a trabalhar.
– Em uma hora! – tentei contar a Coffee, antes de mergulhar no sono.
A polícia acabou o trabalho enquanto eu jazia de costas na cama. No escritório de Van Pelt, na Bush Street, ela encontrou um grande fardo de notas de cem florins. Van Pelt, descobriu-se, tinha uma reputação considerável na Europa como falsificador de primeira. Um dos impressores confessou que Van Pelt e Soules foram os dois homens que seguiram Newhouse quando este saiu da gráfica e que eles o mataram.
1 IWW, sigla do movimento sindical Industrial Workers of the World, considerado radical. (N.T.)
QUEM MATOU BOB TEAL?
– Teal foi morto na noite passada.
O Velho – gerente da Agência de Detetives Continental de San Francisco – falou sem me olhar. A voz era suave como o sorriso e não deixava transparecer o tumulto que crepitava em sua mente.
Se fiquei quieto, esperando que o Velho prosseguisse, não foi porque a novidade deixasse de ter significado para mim. Eu gostava de Bob Teal – todos nós. Ele entrara para a agência recém-chegado da faculdade dois anos antes; e homem nenhum levava mais jeito para detetive do que aquele rapaz magro, de ombros largos. Dois anos é muito pouco tempo para se aprender os princípios básicos da arte do detetive, mas Bob Teal, com seu olho rápido, frieza de nervos, boa cabeça e interesse apaixonado pelo trabalho, já estava a caminho de se tornar um bamba. Eu tinha um interesse quase paternal nele, uma vez que fora responsável por seu treinamento inicial.
O Velho não me olhou, ao prosseguir. Falava para a janela aberta sob seu cotovelo.
– Ele foi morto com dois tiros de calibre 32, bem no coração. Foi alvejado sob uma fileira de outdoors, no terreno vazio da esquina noroeste da Hyde e com a Eddy Street, às dez da noite passada. Seu corpo foi encontrado por um policial, pouco depois das onze. A arma foi achada a cerca de quarenta metros de distância. Eu o vi, estive no local. A chuva da última noite apagou quaisquer pistas que pudessem ter sido deixadas no chão, mas pelas roupas de Teal, e pela posição em que foi achado, diria que não houve luta e que foi morto onde foi encontrado, não foi carregado até lá. Estava caído sob os outdoors, a cerca de sessenta metros da calçada, e tinha as mãos vazias. A arma foi disparada tão de perto que chamuscou seu casaco na altura do peito. Aparentemente, ninguém viu nem ouviu o tiro. A chuva e o vento tiraram os pedestres da rua e teriam de qualquer modo abafado o som de um 32, que não é muito alto.
O lápis do Velho começou a batucar na mesa e o barulhinho me irritou.
Depois cessou e o Velho prosseguiu:
– Teal estava seguindo um tal de Herbert Whitacre. Estava atrás dele há três dias. Whitacre é um dos sócios da firma Ogburn & Whitacre, de empreendimentos agrícolas. Eles têm opções de compra sobre uma grande extensão de terra, em vários dos novos distritos de irrigação. Ogburn é o encarregado das vendas dos lotes, enquanto Whitacre cuida dos outros aspectos do negócio, inclusive da contabilidade.
“Na semana passada Ogburn descobriu que o sócio tinha feito lançamentos falsos. Os livros mostram alguns pagamentos de terras que, Ogburn descobriu, não tinham sido feitos. Ele calcula que os desfalques de Whitacre podem chegar de 150 a até 250 mil dólares. Veio me ver três dias atrás, me contou tudo isso e pediu que Whitacre fosse seguido, na tentativa de se descobrir o que fez com o dinheiro roubado. A firma deles é uma sociedade, e é claro que um sócio não pode ser processado por roubar da sociedade. De modo que Ogburn não pôde levar o sócio a ser preso, mas esperava localizar o dinheiro e então recuperá-lo por meio de uma ação cível. Além disso, estava com medo de que Whitacre pudesse dar no pé.
“Designei Teal para seguir Whitacre, que supostamente não sabia que o sócio desconfiava dele. Agora vou mandar você atrás de Whitacre. Estou determinado a encontrá-lo e condená-lo, nem que tenha de pôr tudo o mais de lado e concentrar todos os meus homens nesse trabalho durante um ano. Você pode se inteirar dos relatórios de Teal com as secretárias. Fique em contato comigo.”
Isso tudo, vindo do Velho, valia mais que o juramento de um homem comum escrito com sangue.
No escritório consegui os dois relatórios que Bob fizera. Não havia nenhum, é claro, referente ao terceiro dia, já que ele só o escreveria à noite, na hora de largar o trabalho. O primeiro dos dois relatórios já fora copiado e uma das cópias enviadas a Ogburn; uma datilógrafa estava agora se ocupando do segundo.
Em seus informes, Bob descrevia Whitacre como um homem ao redor dos 37 anos, olhos e cabelos castanhos, jeito nervoso, rosto barbeado de tamanho médio, pés um tanto pequenos. Tinha cerca de 1,72 m de altura, pesava em torno de 73 quilos e se vestia na moda, embora sem espalhafato. Vivia com a mulher num apartamento da Gough Street. O casal não tinha filhos. Ogburn dera a Bob uma descrição da sra. Whitacre: uma loira de pouco menos de trinta anos, baixa e gorda.
Os que se lembram desse caso sabem que a cidade, a agência de detetives e as pessoas envolvidas tiveram seus nomes mudados. Mas sabem também que os fatos que conto são verdadeiros. Nomes, de certa maneira, são essenciais à clareza e, quando o uso de nomes reais pode causar embaraços, ou até mesmo sofrimento, pseudônimos são a alternativa mais satisfatória.
Ao seguir Whitacre, Bob não descobrira nada que parecesse ser útil à localização do dinheiro roubado. Whitacre continuara a trabalhar como sempre, pelo menos na aparência, e Bob não o vira fazer nada de claramente suspeito. Mas Whitacre parecia nervoso, parara várias vezes para olhar em redor, como se suspeitasse de que estava sendo seguido, sem ter certeza disso. Em várias ocasiões Bob tivera de perdê-lo de vista, para evitar ser reconhecido. Em uma dessas ocasiões, enquanto esperava nas redondezas da casa de Whitacre por seu retorno, Bob vira a sra. Whitacre – ou uma mulher que cabia dentro da descrição que Ogburn lhe fizera – tomar um táxi. Bob não tentara segui-la, mas fez um memorando com o número da placa do táxi.
Depois de ler e praticamente memorizar os dois relatórios, deixei a agência e me dirigi às instalações da Ogburn & Whitacre, no edifício Packard. Uma estenógrafa me introduziu num escritório mobiliado com bom gosto, onde Ogburn, sentado atrás de uma escrivaninha, assinava a correspondência. Ele me ofereceu uma cadeira. Eu me apresentei. Era um homem de estatura média de talvez 35 anos, com o cabelo castanho liso e o queixo pontudo, que na minha mente estão associados a oradores, advogados e caixeiros-viajantes.
– Ah, sim! – disse ele, pondo de lado a correspondência, enquanto o rosto inteligente se iluminava. – O sr. Teal descobriu alguma coisa?
– O sr. Teal foi morto a tiros na noite passada.
Ele me dirigiu um olhar vazio por um momento, com os olhos castanhos bem abertos, e então repetiu:
– Morto?
– Sim – retruquei. E lhe contei o pouco que sabia.
– O senhor não pensa... – começou ele, quando terminei de falar; e então parou. – O senhor não pensa que Herb faria uma coisa dessas, pensa?
– O que o senhor acha?
– Não acredito que Herb fosse cometer um assassinato! Ele tem andado inquieto nos últimos dias e eu estava começando a pensar que ele desconfiava que eu tivesse descoberto seus roubos, mas não acredito que chegasse a esse ponto, ainda que tivesse descoberto que o sr. Teal o estava seguindo. Sinceramente, não!
– Suponhamos – sugeri – que ontem, em algum momento, Teal descobriu onde ele havia posto o dinheiro roubado e que Whitacre tenha tomado conhecimento disso. Não acha que, nessas circunstâncias, Whitacre possa tê-lo matado?
– Talvez – disse vagarosamente –, mas eu odiaria pensar isso. Num momento de pânico Herb poderia... não, de fato eu não penso que ele faria isso.
– Quando o viu pela última vez?
– Ontem. Estivemos juntos aqui no escritório a maior parte do dia. Ele foi para casa alguns minutos antes das seis. Mas falei com ele por telefone mais tarde. Ligou para a minha casa um pouco depois das sete e disse que iria me ver, precisava conversar comigo. Pensei que ele iria confessar sua desonestidade e que talvez pudéssemos dar um jeito e resolver esse assunto escabroso. Sua esposa ligou por volta das dez. Queria que ele levasse para casa qualquer coisa aqui do centro, mas é claro que ele não estava lá. Esperei por ele toda a noite, mas ele não...
Gaguejou, parou de falar e seu rosto ficou lívido.
– Meu Deus, estou acabado – disse quase num sussurro, como se a idéia da situação em que se achava só agora lhe ocorresse. – Herb se foi, o dinheiro se foi, o trabalho de três anos se foi, a troco de nada! E ainda sou legalmente responsável por cada centavo que ele roubou. Por Deus!
Olhou-me com olhos que pediam por contradição, mas nada pude fazer, exceto assegurar-lhe que seria feito todo o possível para que Whitacre e o dinheiro fossem encontrados. Quando saí, ele tentava freneticamente falar por telefone com seu advogado.
Do escritório de Ogburn fui ao apartamento de Whitacre. Ao dobrar a esquina e entrar na Gough Street vi um homem grande e robusto subindo as escadas do prédio de apartamentos e reconheci George Dean. Apressando-me para me juntar a ele, lamentei que ele tivesse sido designado para o trabalho, em vez de qualquer outro detetive da delegacia de homicídios. Dean não é um mau sujeito, mas não é tão bom trabalhar com ele quanto com alguns outros; isto é, você nunca pode ter certeza de que ele não está escondendo algum detalhe importante, de modo que no fim só George Dean brilhe como o grande detetive. Trabalhando com um homem desse tipo, você está sujeito a se acostumar a esse comportamento – que não estimula o trabalho em equipe.
Cheguei ao vestíbulo no momento em que Dean apertava o botão da campainha de Whitacre.
– Alô – disse eu. – Você também está metido nisso?
– Uh-huh. O que é que você sabe?
– Nada. Acabei de começar.
A porta em frente se abriu com um zumbido e subimos juntos para o apartamento de Whitacre, no terceiro andar. Uma mulher loira e gorda, num vestido doméstico azul-claro, abriu a porta do apartamento. Era razoavelmente bonita, de um modo espesso e inerte.
– Sra. Whitacre? – perguntou Dean.
– Sim.
– O sr. Whitacre está?
– Não. Ele foi a Los Angeles esta manhã – disse ela. Seu rosto era convincente.
– Sabe como podemos fazer contato com ele lá?
– Talvez no Ambassador, mas acho que estará de volta amanhã ou depois de amanhã.
Dean mostrou o distintivo.
– Queremos lhe fazer algumas perguntas – disse a ela, que, não parecendo surpresa, abriu a porta para que entrássemos.
Introduziu-nos numa sala de estar azul e creme, onde sentamos. Ela se sentou diante de nós num grande sofá azul.
– Onde seu marido estava ontem à noite? – perguntou Dean.
– Em casa. Por quê? – seus redondos olhos azuis estavam ligeiramente curiosos.
– Ficou em casa a noite toda?
– Sim, estava uma noite chuvosa horrível. Por quê? – desviou os olhos de Dean para mim.
O olhar de Dean encontrou o meu e fiz que sim com a cabeça, em resposta à pergunta que lia em seus olhos.
– Sra. Whitacre – disse ele bruscamente –, tenho um mandado de prisão para seu marido.
– Um mandado de prisão? Mas por quê?
– Por assassinato.
– Assassinato? – era como um grito abafado.
– Exatamente. E na noite passada.
– Mas eu lhe disse que ele estava...
– E Ogburn me disse – interrompi, inclinando-me para a frente – que a senhora telefonou para o apartamento dele na noite passada, duas vezes, para perguntar se o seu marido estava lá.
Olhou-me distraída durante uma dezena de segundos; e então riu, o riso claro de alguém que foi vítima de uma brincadeira leve.
– Você ganhou – disse ela. Não havia vergonha ou humilhação no seu rosto ou na sua voz. – Agora ouça – o divertimento a abandonara –, eu não sei o que Herb fez, ou que atitude devo tomar; e não devia falar até ver um advogado. Mas eu gosto de resolver qualquer problema que aparece. Se vocês me derem sua palavra de honra que vão me dizer o que está acontecendo, pode ser que eu lhes diga o que sei, se é que sei alguma coisa. Quero dizer, se o fato de falar irá tornar as coisas mais fáceis para mim, se vocês me mostrarem isso, talvez eu fale; desde que saiba alguma coisa.
A proposta parecia justa, ainda que um pouco surpreendente. Aparentemente, essa mulher rechonchuda que podia mentir com toda a aparência de sinceridade, e rir quando se via numa armadilha, não estava interessada em nada que não fosse o próprio conforto.
– Fale você – Dean me indicou.
Despejei tudo de uma vez:
– Seu marido fraudou os livros de contabilidade durante um certo período e lesou o sócio numa quantia em torno de duzentos mil dólares, antes que Ogburn percebesse. Este mandou que seu marido fosse seguido, para ver se encontrava o dinheiro. Na noite passada, seu marido surpreendeu o homem que o estava seguindo num terreno e atirou nele.
O rosto dela se contraiu em pensamentos. De maneira mecânica, pegou uma carteira de cigarros de uma marca popular que jazia sobre uma mesa atrás do sofá e os ofereceu a Dean e a mim. Nós dois sacudimos a cabeça. Ela enfiou um cigarro na boca, riscou um fósforo na sola do chinelo, acendeu o cigarro e observou a ponta queimar. Por fim, encolheu os ombros, o rosto relaxado e nos encarou.
– Eu vou falar – disse. – Nunca peguei qualquer dinheiro e seria uma boba se fosse me sacrificar por causa de Herb. Ele sempre foi legal, mas se ele deu no pé e me deixou sem um tostão, não tem sentido eu ficar arrumando incômodos por causa disso. Vou contar: não sou a sra. Whitacre, a não ser para constar. Meu nome é Mae Landis. Pode ser que exista uma sra. Whitacre de verdade, pode ser que não. Não sei. Herb e eu vivemos juntos aqui há um ano.
“Há cerca de um mês ele começou a ficar agitado, nervoso, pior ainda do que de hábito. Disse que estava preocupado com os negócios. Então, uns dois dias atrás, descobri que sua pistola sumira da gaveta onde tinha estado desde que vim para cá, e que ele a estava usando. Eu lhe perguntei: ‘O que é que está planejando?’. Ele disse que achava que estava sendo seguido e me perguntou se vira alguém rondando pela vizinhança, como se estivesse vigiando a nossa casa. Eu lhe disse que não; achei que estava maluco.
“Anteontem à noite, ele me disse que tinha se metido numa confusão e talvez tivesse de se mandar e que não poderia me levar com ele, mas que me daria dinheiro suficiente para que eu pudesse me manter por um tempo. Parecia excitado, arrumou as malas, para que estivessem prontas se precisasse delas de repente, queimou todas as suas fotos e um monte de cartas e papéis. As malas ainda estão no quarto, se vocês quiserem dar uma olhada nelas. Quando ele não voltou para casa na noite passada, tive o pressentimento de que tinha se mandado sem as malas e sem me avisar, e ainda por cima sem me deixar qualquer dinheiro – deixando-me com apenas vinte dólares em meu nome e pouca coisa que possa empenhar, e isso com o aluguel vencendo dentro de quatro dias.”
– Quando o viu pela última vez?
– Cerca de oito horas da noite passada. Ele me disse que ia ao apartamento do sr. Ogburn para tratar de negócios com ele, mas não apareceu. Sei disso. Meus cigarros tinham acabado – eu gosto de Elixir Russo e não é possível consegui-los aqui no centro –, de modo que telefonei para o sr. Ogburn, para pedir a Herb que me trouxesse uma carteira quando voltasse, e o senhor Ogburn me disse que ele não tinha estado lá.
– Há quanto tempo a senhora conhece Whitacre?
– Há uns dois anos, eu acho. Creio que o encontrei pela primeira vez num hotel de praia.
– Ele tem algum parente?
– Não que eu saiba. Não sei muita coisa sobre ele. Ah, sim! Sei que ficou preso três anos numa penitenciária do Oregon por falsificação. Ele me contou isso numa noite em que estava de porre. Foi preso sob o nome de Barber, ou Barbee, ou alguma coisa assim. Disse que depois disso andava se comportando.
Dean mostrou uma pequena pistola automática, de aparência quase nova, apesar da lama que aderira a ela, e entregou-a à mulher.
– Já a viu antes?
– Claro. É a do Herb, ou então é a irmã gêmea dela – sacudiu afirmativa a cabeça loira.
Dean guardou outra vez a arma no bolso e nos levantamos.
– Como é que eu fico? – perguntou ela. – Vocês não vão me deter como testemunha ou qualquer outra coisa assim, vão?
– No momento, não. – Dean lhe assegurou. – Fique onde nós possamos encontrá-la, se isso for necessário, e a senhora não terá qualquer problema. Tem alguma idéia de que rumo Whitacre possa ter tomado?
– Não.
– Gostaríamos de dar uma olhadinha no apartamento. Se importa?
– Podem dar – convidou. – Revirem tudo, se quiserem. Estou o tempo todo do lado de vocês.
Vasculhamos todo o apartamento, mas nada encontramos de valioso. Whitacre, quando queimou as coisas que poderiam denunciá-lo, fez um belo trabalho.
– Alguma vez ele tirou fotos com um fotógrafo profissional? – indaguei, antes que saíssemos.
– Não que eu saiba.
– A senhora nos informa se ouvir alguma coisa ou se lembrar de algo que possa nos ajudar?
– Com certeza – disse ela calorosamente. – Com certeza.
Dean e eu descemos pelo elevador em silêncio e fomos caminhando pela Gough Street.
– O que você acha de tudo isso? – perguntei, quando estávamos lá fora.
– Ela é um sonho, não? – deu uma risadinha. – Fico pensando o quanto ela sabe. Ela identificou a arma e nos deu a informação sobre a sentença por falsificação lá no norte, mas de qualquer forma acabaríamos descobrindo isso. Se ela foi esperta, nos disse tudo que sabia que iríamos descobrir, o que lhe daria mais força em relação ao restante. Você acha que ela é boba ou esperta?
– Não seria capaz de dizer – falei. – Vamos segui-la e controlar sua correspondência. Tenho o número de um táxi que ela usou há uns dois dias. Vamos verificar isso também.
Na drogaria da esquina telefonei para o Velho, pedindo-lhe para instruir uma dupla dos rapazes a manter Mae Landis e seu apartamento sob vigilância dia e noite; e também para que os Correios nos informassem se ela viesse a receber qualquer correspondência que pudesse ter sido enviada por Whitacre. Disse ao Velho que iria ver Ogburn e conseguir algumas amostras da letra do fugitivo, para compará-la com a da correspondência mandada para a mulher.
Em seguida, Dean e eu saímos atrás do táxi em que Bob Teal vira a mulher embarcar. Depois de meia hora no escritório da empresa já sabíamos que ela fora levada a um certo número da Greenwich Street. Seguimos para o endereço.
Era um cortiço, dividido em pequenos apartamentos espantosamente feios. Encontramos a proprietária no porão: uma mulher esquelética num vestido cinza imundo, com uma boca endurecida de lábios finos e olhos apagados e suspicazes. Balançava-se vigorosamente numa cadeira rangente, costurando um avental, enquanto três crianças sujas brincavam com um vira-lata, correndo de um lado para outro do aposento.
Dean mostrou-lhe o distintivo e disse-lhe que precisava falar com ela em particular. Ela se levantou para pôr as crianças e o cachorro para fora e depois ficou de mãos nos quadris nos encarando.
– Bem, o que desejam? – perguntou, azeda.
– Informações sobre os seus inquilinos – disse Dean. – Fale-nos sobre eles.
– Falar sobre eles? – tinha uma voz que soaria áspera mesmo se não estivesse de mau humor. – O que é que acham que eu tenho a dizer sobre eles? O que é que vocês acham que eu sou? Sou uma mulher que tem seu próprio negócio! Ninguém pode dizer que eu não dirijo um respeitável...
Isso não ia nos levar a lugar nenhum.
– Quem mora no número um? – perguntei.
– Os Auds; um casal de velhos com os netos. Se souberem de alguma coisa contra eles, sabem mais do que quem vive com eles faz dez anos!
– Quem vive no número dois?
– A sra. Codman com os filhos, Frank e Fred. Estão aqui há três anos e...
Eu a levei de apartamento a apartamento, até finalmente chegarmos a um do segundo piso, que não tornava tão óbvia minha estupidez por suspeitar de seus habitantes, não importa qual fosse o motivo pelo qual suspeitava deles.
– Aqui vivem os Quirks – e ela meramente fez cara feia, em vez de conservar a atitude esquiva de antes. – E se me perguntar, diria que são pessoas direitas!
– Há quanto tempo eles vivem aqui?
– Seis meses ou mais.
– E ele vive do quê?
– Não sei – disse, emburrada. – Viagens, talvez.
– São quantas pessoas na família?
– Apenas ele e ela; e são pessoas muito tranqüilas.
– Como é a aparência dele?
– A de um homem comum. Não sou detetive, não fico xeretando a aparência dos outros para ver com o que eles se parecem ou metendo o bedelho na vida deles. Eu não...
– Que idade ele tem?
– Uns 45 ou cinqüenta anos, nem mais nem menos.
– Alto ou baixo?
– Ele nem é tão baixo quanto o senhor nem tão alto quanto esse cara que está com o senhor – ela olhou com desprezo de minha curta robustez para o grande volume ocupado por Dean. – E não é tão gordo quanto vocês dois.
– Usa bigode?
– Não.
– Cabelo claro?
– Não. Escuro – parecia triunfante.
– Olhos escuros também?
– Acho que sim.
Dean, em pé num dos cantos, olhou-me por sobre o ombro da mulher. Seus lábios desenharam o nome “Whitacre”.
– E quanto à sra. Quirk. Como ela é? – continuei.
– Ela tem cabelo claro, é baixa e entroncada e não deve ter trinta anos.
Dean e eu trocamos com satisfação um balançar de cabeças; tinha de ser Mae Landis, estava evidente.
– Eles ficam muito em casa? – prossegui.
– Não sei – a magricela resmungou com rancor e percebi que ela sabia, de modo que esperei, olhando-a, até que ela acrescentou de mau humor: – Acho que eles ficam muito tempo fora, mas não tenho certeza.
– Sei – arrisquei. – Estão em casa muito raramente e isso só durante o dia; e a senhora sabe disso.
Ela não negou, de modo que perguntei:
– Eles estão agora?
– Acho que não; mas pode ser.
– Vamos dar uma olhada nessa espelunca – sugeri a Dean.
Ele concordou com a cabeça e disse à mulher:
– Leve-nos até o apartamento deles e abra a porta para nós.
– Não vou fazer isso! – disse ela com toda a ênfase. – Vocês não têm o direito de entrar na casa dos outros, a não ser que tenham um mandado de busca. Vocês têm um?
– Não temos – Dean deu uma risadinha. – Mas podemos conseguir vários se a senhora nos criar problema. A senhora é responsável por este local; pode entrar em qualquer dos apartamentos na hora que quiser e pode nos botar lá dentro; nos ajude e nós livraremos a sua cara; mas se começar a nos criar problema, então estará correndo o risco de envolvimento com os Quirks e talvez acabe dividindo uma cela com eles. Pense bem nisso.
Ela pensou e depois, rosnando e resmungando a cada passo, nos levou ao apartamento dos Quirks. Certificou-se de que não estavam em casa e então nos deixou entrar.
O apartamento tinha três cômodos, um banheiro e uma cozinha, mobiliado no estilo deteriorado para o qual o aspecto de cortiço do prédio havia nos preparado. Encontramos umas poucas peças de roupa masculina e feminina, artigos de higiene e coisas assim. Mas o lugar não guardava nenhuma das marcas de uma residência permanente: não havia quadros, nem almofadas, nenhuma das dezenas de miudezas de uso pessoal que normalmente são encontradas nas casas. A cozinha tinha o aspecto de não ser usada há muito tempo; os interiores das latas de café, farinha, chá e temperos estavam vazios.
Duas coisas que encontramos tinham significado: um punhado de cigarros Elixir Russo sobre uma mesa; e uma caixa nova de cartuchos 32 – dos quais dez estavam faltando – numa gaveta da penteadeira.
Durante toda a nossa busca a proprietária nos volteou, com seus olhos curiosos e sem brilho; por fim a expulsamos de lá, dizendo-lhe que, com lei ou sem lei, estávamos tomando conta do apartamento.
– Isto era, ou é, um esconderijo para Whitacre e a mulher, está na cara – disse Dean quando ficamos sós. – A única questão é se ele pretendia permanecer aqui ou se era apenas um local onde preparava sua fuga. Acho que o melhor a fazer é conseguir que o capitão ponha um homem aqui dia e noite, até que topemos com o nosso chapa Whitacre.
– É o mais seguro – concordei. Ele foi telefonar da sala da frente, para providenciar isso.
Depois que Dean telefonou, liguei para o Velho, para averiguar se algo de novo ocorrera.
– Nada de novo – ele me disse. – Como vocês estão se saindo?
– Muito bem. Talvez tenhamos algumas novidades para esta noite.
– Você conseguiu aquelas amostras da letra de Whitacre com Ogburn? Ou devo mandar alguém se encarregar disso?
– Eu as conseguirei esta noite – prometi.
Perdi dez minutos tentando falar inutilmente com Ogburn no escritório, até que olhei o relógio e vi que já passava das seis da tarde. Encontrei o número do telefone de sua casa na lista e liguei para ele.
– Tem alguma coisa escrita por Whitacre em sua casa? – perguntei. – Quero um par de amostras da letra. Gostaria de tê-las esta noite, mas se necessário posso esperar até amanhã.
– Acho que tenho algumas cartas dele aqui. Se vier agora, posso entregá-las a você.
– Estarei aí dentro de quinze minutos – disse.
– Vou à casa de Ogburn – informei a Dean – para pegar alguns rabiscos de Whitacre, enquanto você fica esperando que nosso homem apareça para resolver as coisas por aqui. Encontrarei você no States, tão logo você possa sair. Comeremos lá, enquanto planejamos a noite.
– Uh-huh – ronronou. Instalou-se confortavelmente numa cadeira, um pé sobre o outro, enquanto eu saía.
Ogburn estava se vestindo quando cheguei a seu apartamento, tinha o colarinho e a gravata na mão quando abriu a porta.
– Encontrei algumas das cartas de Herb – disse, enquanto nos encaminhávamos para o seu quarto.
Examinei as quinze ou mais cartas que estavam sobre uma mesa, selecionando as que queria, enquanto Ogburn continuava a se vestir.
– Como está indo? – perguntou.
– Assim, assim. Ouviu alguma coisa que possa ajudar?
– Não, mas há alguns minutos me lembrei de que Herb costumava ir ao Edifício Mills com freqüência. Eu o vi entrar e sair de lá muitas vezes, mas nunca refleti sobre isso. Não sei se isso tem alguma importância ou...
Saltei da cadeira.
– É isso! – gritei. – Posso usar o telefone?
– Claro. Está no corredor, perto da porta – olhou-me surpreso. – É um telefone público. Você tem trocado?
– Tenho. – Já estava passando pela porta do quarto.
– O botão da luz é perto da porta – gritou ele às minhas costas –, se precisar de claridade. Você acha que...
Mas não me detive para ouvir sua pergunta. Corria para o telefone, procurando nos bolsos por uma moeda. Ao pegar a moeda com pressa, deixei-a cair – não inteiramente por acidente, já que tinha um pressentimento que queria exercitar. A moeda rolou pelo corredor acarpetado. Acendi a luz, recuperei a moeda e disquei o número dos “Quirks”. Fico contente de ter seguido aquele pressentimento.
Dean ainda estava lá.
– Esqueça essa espelunca – gritei. – Leve a proprietária para a delegacia e prenda a Landis também. Encontrarei vocês lá, na delegacia.
– Tem certeza do que está fazendo? – sussurrou ele.
– Quase – disse. E desliguei.
Apaguei a luz do corredor e, assobiando uma música baixinho, caminhei para o quarto onde deixara Ogburn. A porta não estava inteiramente fechada. Avancei para ela, abri-a com um pontapé e saltei para trás, abraçando-me à parede.
Dois tiros – em espaço tão curto que soaram quase como um único – espocaram.
Achatado contra a parede, bati com os pés no assoalho e no rodapé e soltei uma saraivada de gritos e gemidos dignos de um selvagem num festim.
No momento seguinte Ogburn surgiu na porta, revólver na mão, expressão de lobo. Estava decidido a me matar. Era minha vida ou a dele, de modo que...
Desci com vontade minha arma no topo macio, castanho, de sua cabeça.
Quando ele abriu os olhos, dois policiais o erguiam para metê-lo na traseira de um camburão.
Encontrei Dean na sala de reuniões de detetives do Palácio de Justiça.
– A proprietária identificou Mae Landis como sendo a sra. Quirk – disse ele. – E agora?
– Onde está ela?
– Uma policial está tomando conta das duas no escritório do capitão.
– Ogburn está detido no escritório do setor de Penhores – disse-lhe. – Vamos levar a proprietária para dar uma olhada nele.
Ogburn, sentado curvado para a frente, segurava a cabeça com as mãos e observava com amargura os pés do homem uniformizado que o vigiava, no momento em que introduzimos na sala a proprietária magricela.
– Conhece? – perguntei a ela.
– Sim – respondeu relutante. – É o sr. Quirk.
Ogburn não levantou o olhar nem deu a mínima atenção a nós.
Depois de dizermos à proprietária que ela podia ir para casa, Dean me levou até um canto afastado da sala de reuniões, onde podíamos conversar sem ser incomodados.
– Agora desembucha tudo – trovejou. – Como deslindou esses fatos incríveis, como gostam de chamar os meninos dos jornais?
– Bem, em primeiro lugar, eu sabia que a pergunta “Quem matou Bob Teal?” só podia ter uma resposta. Bob não era um boboca! Ele até poderia deixar um homem que estava seguindo atraí-lo para debaixo de uma fileira de outdoors numa noite escura, mas estaria preparado para o que desse e viesse. Não morreria de mãos vazias, com um tiro disparado tão de perto que chamuscou seu casaco. O assassino só podia ser alguém em quem Bob confiasse, de modo que não poderia ser Whitacre. Bob era um rapaz muito consciencioso e não deixaria de seguir Whitacre para ir procurar um amigo em algum lugar. Só um homem poderia tê-lo persuadido a desistir de seguir Whitacre por um momento, e esse homem era aquele que o contratara: Ogburn.
“Se não conhecesse Bob, poderia ter pensado que se escondera atrás dos outdoors para vigiar Whitacre; mas Bob não era um amador. Era muito bem preparado para querer bancar o detetive das histórias espetaculares. De modo que não sobrava ninguém que não fosse Ogburn!
“Com tudo isso em mente, o resto era moleza. Todo aquele papo de Mae Landis – identificando a arma como sendo a de Whitacre e fornecendo um álibi a Ogburn, ao dizer que falara com ele pelo telefone às dez da noite –, tudo isso me convenceu de que ela e Ogburn estavam agindo juntos. Quando a proprietária nos descreveu “Quirk”, tive quase certeza disso. Sua descrição servia tanto para Whitacre quanto para Ogburn, mas não fazia sentido Whitacre ter um apartamento na Greenwich Street, ao passo que se Ogburn e a tal Landis eram cúmplices, precisariam de um local de encontro. A sobra da carteira de cigarros foi de alguma utilidade.
“Então hoje à noite resolvi fazer um pequeno teatro no apartamento de Ogburn, caçando uma moeda pelo chão, enquanto procurava traços de lama seca que pudessem ter escapado à limpeza que ele sem dúvida fez no tapete e nas roupas, após voltar para casa, depois de ter caminhado por um terreno enlameado. Vamos deixar os peritos decidirem se essa lama é a do terreno onde Bob foi morto; e o júri pode decidir que era.
“Há mais uns detalhes miúdos – como a pistola. A tal Landis disse que Whitacre a possuía há mais de um ano, mas, apesar de enlameada, ela me pareceu um tanto nova. Vamos mandar o número de série para a fábrica e descobrir quando foi comercializada.
“Quanto ao motivo, por enquanto a única coisa de que tenho certeza é sobre o envolvimento da mulher, o que é suficiente. Mas acho que quando os livros de Ogburn e Whitacre forem auditados e suas finanças examinadas, vamos encontrar muita coisa. Mas aposto qualquer coisa como Whitacre vai aparecer, agora que foi inocentado da acusação de assassinato.”
E foi exatamente o que aconteceu.
No dia seguinte, Herbert Whitacre entrou na delegacia de polícia em Sacramento e se entregou.
Ogburn e Mae Landis nunca falaram sobre o que sabiam, mas com o depoimento de Whitacre, apoiado pelas provas que pudemos juntar aqui e ali, conseguimos por ocasião do julgamento convencer o júri de que os fatos se passaram da seguinte maneira:
Ogburn e Whitacre haviam montado a empresa de venda de lotes agrícolas para aplicar um golpe. Tinham opções de compra sobre uma grande área de terra e planejaram vendê-la em tantos pedaços quanto fosse possível, antes que chegasse o momento de exercer suas opções. Pretendiam então arrumar as malas e sumir. Whitacre não tinha muita coragem e se lembrava bem dos três anos que passara na prisão por falsificação; assim, para estimular sua coragem, Ogburn disse ao sócio que tinha um amigo nos Correios, em Washington, que o alertaria no instante em que a suspeita das autoridades fosse levantada.
Os dois sócios ganharam um bom dinheiro com a empresa, dinheiro esse que ficaria aos cuidados de Ogburn, até que chegasse o momento da separação. Enquanto isso, Ogburn e Mae Landis – a suposta esposa de Whitacre – tinham se tornado íntimos e alugaram o apartamento da Greenwich Street, onde se encontravam nas tardes em que Whitacre estava entretido no escritório e supunha-se que Ogburn ocupava-se da caça de novas vítimas. No apartamento, Ogburn e a mulher armaram seus planos, pelos quais se veriam livres de Whitacre, ficariam com toda a grana e livrariam Ogburn da acusação de cumplicidade criminosa nos negócios da Ogburn & Whitacre.
Ogburn dirigira-se ao escritório da Continental e contara a historinha sobre a desonestidade do sócio, contratando Bob para segui-lo. Dissera depois a Whitacre que recebera a dica do seu amigo de Washington de que uma investigação estava para começar. Os dois sócios combinaram que deixariam a cidade separadamente na próxima semana. Na noite seguinte, Mae Landis disse a Whitacre ter visto um homem rondando a vizinhança, aparentemente espionando o edifício em que eles viviam. Whitacre – julgando que Bob fosse um inspetor dos Correios – ficara em frangalhos e contara com os esforços combinados da mulher e do sócio – ao que tudo indica trabalhando em separado – para que não fugisse de imediato. Eles o persuadiram a ficar mais uns dias.
Na noite do crime, Ogburn, fingindo duvidar da história de Whitacre de que havia alguém atrás dele, prontificou-se a encontrar o sócio com o propósito de saber se ele de fato estava sendo seguido. Tinham caminhado pela rua, na chuva, durante uma hora. Então Ogburn, convencido, anunciara a intenção de voltar e falar com o suposto inspetor dos Correios, para ver se ele podia ser subornado. Whitacre recusara-se a acompanhar o sócio, mas concordara em esperar por ele junto a um portal escuro.
Ogburn levara Bob Teal para trás dos outdoors, sob algum pretexto, e o matara. Depois correra para o sócio, gritando: “Meu Deus, ele me agarrou e atirei nele. Temos de fugir!”
Whitacre, num pânico cego, deixara San Francisco sem parar para pegar as malas e sem sequer avisar Mae Landis. Ogburn iria fugir por outra rota. Eles deveriam se encontrar em Oklahoma City dez dias depois, quando Ogburn – após ter saqueado os bancos de Los Angeles, onde abrira contas sob diversos nomes – daria a Whitacre a sua parte; e então eles se separariam para sempre.
Em Sacramento, no dia seguinte, Whitacre leu os jornais e compreendeu o que tinham feito com ele. Ele fizera toda a contabilidade, todos os lançamentos falsos nos livros da Ogburn & Whitacre, com a sua letra. Mae Landis revelara seu passado criminal e atribuíra a propriedade da pistola – na verdade de Ogburn – a ele. Estava completamente enrascado! Não tinha qualquer possibilidade de se defender.
Tinha consciência de que sua história soaria exagerada e como uma frágil mentira; ele possuía antecedentes criminais. Se se entregasse e contasse a verdade, teria conseguido apenas que rissem dele.
Como resultado de tudo, Ogburn acabou enforcado, Mae Landis cumpre hoje uma sentença de quinze anos de prisão e Whitacre, em troca de seu depoimento e da devolução do dinheiro, não foi processado por sua participação no negócio fraudulento com terras.
UM HOMEM CHAMADO SPADE
Samuel Spade desligou o telefone e olhou para o relógio. Ainda não eram quatro horas. Ele chamou:
– Eiii!
Effie Perine entrou no escritório. Estava comendo um pedaço de bolo de chocolate.
– Avise a Sid Wise que não vou poder me encontrar com ele esta tarde – ele disse.
Ela enfiou o último bocado do bolo na boca e lambeu a ponta do indicador e do polegar.
– É a terceira vez esta semana.
Quando ele sorriu, as covinhas do seu queixo, boca e sobrancelhas tornaram-se mais alongadas.
– Eu sei, mas tenho de sair para salvar uma vida. – Ele inclinou a cabeça indicando o telefone. – Alguém está assustando Max Bliss.
Ela riu.
– Provavelmente, alguém chamado John-consciência.
Spade levantou a cabeça para ela, desviando a atenção do cigarro que começara a enrolar.
– Você sabe alguma coisa que eu devia estar sabendo a respeito dele?
– Nada de novo. Estava apenas me lembrando da vez em que ele deixou o irmão ir para San Quentin.
Spade deu de ombros.
– Ele já fez coisa pior. – Acendeu o cigarro, levantou-se e esticou a mão para apanhar o chapéu. – Mas é um bom sujeito hoje em dia. Todos os clientes de Samuel Spade são honestos. Gente que acredita em Deus. Se eu não estiver de volta até a hora de fechar, é só ir saindo, certo?
Ele se dirigiu para um edifício residencial bastante alto, em Nob Hill, e apertou um botão na moldura da porta com a numeração 10K. A porta foi aberta imediatamente por um homem corpulento, de pele escura e vestido com roupas escuras. Ele era quase calvo e tinha um chapéu cinzento numa das mãos.
O homem corpulento disse:
– Olá, Sam. – E sorriu, mas os seus olhos pequenos não perderam o brilho inquisitivo. – O que está fazendo aqui?
Spade respondeu:
– Olá, Tom. – A sua fisionomia ficou dura, sua voz inexpressiva. – Bliss está?
– É ele! – Tom esticou para baixo os cantos da boca de lábios espessos. – Não precisa se preocupar.
As sobrancelhas de Spade se juntaram.
– Bem...?
Um homem apareceu no vestíbulo atrás de Tom. Era menor do que Spade e Tom, mas de compleição compacta. Tinha um rosto vermelho, quadrado, e um bigode bem-aparado e encanecido. Vestia roupas elegantes. Usava um chapéu-coco preto empoleirado atrás da cabeça.
Spade dirigiu-se a ele por cima dos ombros de Tom.
– Olá, Dundy.
Dundy respondeu com um breve aceno de cabeça e aproximou-se da porta. Os seus olhos azuis tinham expressão dura e indagativa.
– De que se trata? – perguntou ele a Tom.
– B-l-i-s-s, M-a-x – Spade soletrou pacientemente. – Quero vê-lo. E ele quer me ver. Entendeu?
Tom riu. Dundy não. Tom disse:
– Apenas um de vocês vai conseguir o que deseja.
Então, ele olhou de soslaio para Dundy e abruptamente parou de rir. Parecia pouco à vontade.
Spade franziu as sobrancelhas.
– Certo. Isso quer dizer que ele está morto ou que matou alguém?
Dundy impôs o seu rosto quadrado diante de Spade e pareceu empurrar as palavras com o lábio inferior.
– Por que acha que é uma coisa ou outra?
Spade respondeu:
– Mas é óbvio! Venho visitar o sr. Bliss e sou barrado na porta por uma dupla de policiais da Homicídios. Vou achar o quê? Que estou interrompendo o carteado de vocês?
– Um pouco de calma, Sam. – Tom grunhiu, sem olhar para Spade nem Dundy. – Ele está morto.
– Assassinado?
Tom balançou a cabeça vagarosamente para cima e para baixo. E só então encarou Spade.
– O que tem você a ver com isso?
Spade replicou com voz deliberadamente monótona:
– Ele me telefonou hoje de tarde... Faltavam uns cinco minutos para as quatro... Olhei para o meu relógio depois que ele desligou e ainda faltava um minuto para as quatro. Ele disse que tinha alguém atrás do escalpo dele. Pediu que eu desse um pulo até aqui. Parecia estar com medo de verdade. Alguma coisa séria. – Spade fez um gesto curto com uma das mãos. – Bem, aqui estou eu.
– Ele não falou quem ou como? – Dundy perguntou.
Spade sacudiu a cabeça.
– Não. Apenas que alguém tinha ameaçado matá-lo e que ele acreditava que era para valer. E pediu que eu viesse imediatamente.
– Ele não... – Dundy começou a dizer.
– Ele não disse mais nada – concluiu Spade. – E vocês, rapazes? O que têm para me dizer?
Dundy disse laconicamente:
– Entre e dê uma olhada nele.
Tom acrescentou:
– É um espetáculo!
Eles atravessaram o vestíbulo e passaram por uma porta para uma sala de estar verde e rosa.
Um homem próximo à porta parou de borrifar pó branco sobre a extremidade de uma mesinha de tampo de vidro para dizer:
– Olá, Sam.
Spade acenou com a cabeça, dizendo:
– Como está, Phels? – E depois acenou para os dois homens de pé que conversavam junto à janela.
O homem morto estava estendido no chão com a boca escancarada. Algumas das suas peças de roupas haviam sido arrancadas. A garganta estava estufada e escura. A língua pendia para o canto da boca e estava roxa e inchada. Sobre o peito nu, bem em cima do coração, fora desenhada uma estrela de cinco pontas, com tinta preta, e, no centro dela, um T.
Spade olhou para o homem morto caído e, por alguns instantes, observou-o em silêncio. Depois, perguntou:
– Esse aí foi o jeito como ele foi encontrado?
– Quase – respondeu Tom. – Nós movemos o corpo, mas só um pouco. – Ele apontou o polegar na direção da camisa, camiseta, colete e casaco jogados em cima da mesa. – Estava tudo espalhado pelo chão.
Spade coçou o queixo. Os seus olhos de um amarelo-acinzentado mostravam-se vagos.
– Quando?
Tom respondeu:
– Chegamos aqui às quatro e vinte. A filha dele foi quem nos chamou. – Moveu a cabeça para indicar uma porta fechada. – Você vai falar com ela depois.
– Mas ela pode dar alguma pista?
– Só Deus sabe – replicou Tom entediado. – Até agora não conseguimos nos entender muito bem com ela. – Ele se virou para Dundy. – Quer tentar conversar com a garota de novo agora?
Dundy acenou positivamente, depois instruiu um dos homens na janela:
– Comece a peneirar os papéis dele, Mack. Parece que ele estava sendo ameaçado.
Mack respondeu:
– Certo. – Então, puxou o chapéu para baixo, sobre os olhos, e caminhou na direção de uma escrivaninha verde no outro extremo da sala.
Um homem entrou, vindo do corredor, um sujeito pesadão de cerca de cinqüenta anos, rosto de contornos bem definidos, face acinzentada sob o chapéu preto de abas largas. Ele falou:
– Olá, Sam. – E então disse, voltando-se para Dundy: – Ele recebeu uma visita por volta das duas e meia, alguém que ficou exatamente uma hora aqui. Um grandalhão louro com terno marrom, de quarenta ou talvez 45 anos de idade. Não disse seu nome a ninguém. Soube disso pelo filipino, no elevador que trouxe o sujeito até aqui em cima e depois para baixo, na saída.
– Tem certeza de que ficou somente uma hora? – Dundy quis saber.
O homem de face acinzentada assentiu com a cabeça.
– E o filipino tem certeza de que não eram mais de três e meia quando o tal cara saiu. Ele disse que os jornais da tarde chegaram logo depois que o tal homem foi embora. – Ele afastou o chapéu para coçar a cabeça, depois apontou com o dedo grosso para o desenho a tinta feito no peito do morto e perguntou algo, num tom queixoso: – Que diabo você acha que isso aí significa?
Ninguém respondeu. Dundy perguntou:
– Acha que o ascensorista conseguiria identificar o sujeito louro?
– Ele disse que conseguiria, a questão não é essa. Disse que nunca o tinha visto antes. – O policial ficou parado por instantes observando o homem morto. – A garota vai me dar uma lista das chamadas telefônicas. Como vão as coisas, Sam?
Spade respondeu que iam bem. Depois, acrescentou, lentamente:
– O irmão dele é grandalhão e louro e deve ter uns quarenta ou 45 anos.
Os olhos azuis de Dundy brilharam com firmeza:
– E daí?
– Você se lembra da trapaça Graystone Loan, não lembra? Estavam ambos envolvidos, porém Max jogou tudo em cima do Theodore e isso custou ao irmão uma condenação de um a quatro anos em San Quentin.
Dundy estava assentindo com a cabeça lentamente para cima e para baixo:
– Eu me lembro agora. Onde ele está?
Spade deu de ombros e começou a enrolar um cigarro.
Dundy cutucou Tom com o cotovelo:
– Descubra.
Tom disse:
– Sem problemas! Mas, se ele esteve aqui até às três e meia e esse cara ainda estava vivo às cinco para as quatro...
– ... E, se ele quebrou a perna, e por isso não pôde se enfiar aqui dentro de volta... – disse ironicamente o homem de rosto cinzento.
– Descubra – Dundy repetiu.
Tom respondeu:
– Certo, certo. – E dirigiu-se para o telefone.
Dundy dirigiu-se ao homem de rosto cinzento:
– Verifique os jornais. Veja a que horas eles foram realmente entregues, esta tarde.
O homem de rosto cinzento concordou com a cabeça e deixou a sala.
O homem que havia examinado a escrivaninha exclamou:
– Hum-hum! – E virou-se, segurando um envelope numa das mãos, uma folha de papel na outra.
Dundy estendeu a mão.
– Alguma coisa?
O homem repetiu:
– Hum-hum! – E passou para Dundy a folha de papel.
Spade ficou espiando por cima dos ombros de Dundy.
Era uma folha pequena de papel branco comum, contendo uma mensagem a lápis, escrita numa caligrafia nítida, mas sem particularidades.
Quando esta alcançar você, estarei perto demais para você escapar desta vez. Vamos ajustar as nossas contas para sempre.
A assinatura era uma estrela de cinco pontas circundando um T, o mesmo desenho feito sobre o peito esquerdo do homem morto.
Dundy estendeu a mão para receber o envelope. O selo era francês. O endereço fora datilografado:
MAX BLISS
condomínio AMSTERDAM,
SAN FRANCISCO, CALIF.
EUA
– Carimbo postal de Paris – disse ele. – Despachado no dia 2. – Ele contou rápido nos dedos. – Isso chegaria aqui hoje, está certo. – Dobrou a mensagem lentamente, colocou-a dentro do envelope e pôs o envelope no bolso do seu casaco. – Continue procurando – disse para o homem que encontrou a mensagem.
O homem acenou com a cabeça e retornou para a escrivaninha.
Dundy olhou para Spade.
– O que você acha?
O cigarro marrom de Spade movia-se para cima e para baixo com as palavras.
– Não estou gostando nada disso. Nada.
Tom acabara de desligar o telefone.
– O irmão saiu no dia quinze do mês passado – disse. – Mandei tentarem localizar o cara.
Spade foi até o telefone, discou um número e perguntou pelo sr. Darrell. Então:
– Olá, Harry, aqui é Sam Spade... Bem. Como vai Lil?... Sim... Escute, Harry, o que uma estrela de cinco pontas com um T maiúsculo no meio significa?... O quê? Como se soletra isso?... Sim, entendo... E se você encontra isso num cadáver...? Nem eu... Sim, e obrigado. Direi a você do que se trata quando passar aí para uma visita. Sim, telefone... Muito obrigado. Tchau.
Dundy e Tom ficaram por perto, observando-o com atenção. Spade retornou do telefone e disse:
– É um amigo que sabe das coisas algumas vezes. Ele me disse que se trata de um pentagrama com um tau grego... t-a-u... no meio. Um sinal que os mágicos costumam usar. Talvez os rosa-cruzes ainda usem isso.
– E o que é um rosa-cruz? – perguntou Tom.
– Poderia ser a inicial de Theodore, também – arriscou Dundy.
Spade deu de ombros e disse sem emoção:
– Pode ser, mas se a intenção era deixar o trabalho autografado, ia ser muito mais fácil para ele assinar o nome inteiro. – E, retomando o raciocínio anterior: – Há rosa-cruzes em San Jose e em Point Loma. Não entendo muito dessas coisas, mas pode ser bom consultá-los.
Dundy assentiu.
Spade olhou para as roupas do homem morto sobre a mesa:
– Algo nos bolsos?
– Somente o que se esperaria encontrar – replicou Dundy. – Está tudo ali em cima da mesa.
Spade foi até a mesa e examinou a pequena pilha de objetos. Havia o relógio de bolso e a corrente, chaves, carteira, uma caderneta de endereços, dinheiro, uma lapiseira de ouro, um lenço e a caixa de óculos, além das roupas. Ele não as tocou, mas, vagarosamente, examinou, uma de cada vez, a camisa do homem morto, a camiseta, o colete e o casaco. Havia uma gravata azul debaixo delas. Olhou irritado para ela:
– Ele não usou esta gravata – reclamou.
Dundy, Tom e o legista – ele era um homem baixo com um rosto fino, escuro e inteligente –, que haviam permanecido em silêncio por todo esse tempo, junto à janela, vieram todos examinar a gravata de seda azul sem sequer uma ruga.
Tom gemeu desconsolado. Dundy praguejou, soltando o ar. Spa de ergueu a gravata para verificar a parte de trás. A etiqueta era de um armarinho em Londres.
Spade exclamou alegre:
– Mas que ótimo! San Francisco, Point Loma, San Jose, Paris, Londres.
Dundy encarou-o com raiva.
O homem de face cinzenta entrou:
– Os jornais chegaram aqui às três e trinta. Isso confere – disse. Seus olhos abriram-se um pouco: – O que está acontecendo?
Enquanto atravessava a sala na direção dos outros, disse:
– Não consigo encontrar ninguém que tenha visto o tal louro se esgueirar cá para dentro de novo. – Sem entender, ele fixou o olhar na gravata, até que Tom grunhiu:
– Está novinha em folha. – E então ele assobiou suavemente.
Dundy virou-se para Spade.
– Dane-se! – disse, amargo. – Ele tinha um irmão com motivos suficientes para não gostar dele. O irmão acabou de sair da prisão. Alguém parecido com esse tal irmão saiu daqui às três e meia. Vinte e cinco minutos mais tarde, ele telefonou para você dizendo que havia sido ameaçado. Menos de meia hora depois, a filha entra e encontra o cara morto... estrangulado. – Ele cutucou o peito do homem baixo de rosto escuro. – Correto?
– Estrangulado – o homem de rosto escuro respondeu decidido – ... por um homem. As mãos eram grandes.
– Certo! – Dundy voltou-se para Spade novamente. – Achamos uma carta ameaçadora. E pode ser que fosse disso que ele queria falar com você. Talvez o irmão tenha dito alguma coisa a ele. Não vamos querer adivinhar. Vamos nos concentrar no que sabemos. Sabemos que ele...
O homem na escrivaninha virou-se e disse:
– Mais uma. – A fisionomia dele traía certa presunção.
Os olhos com que os cinco homens na mesa olharam para ele eram, por sua vez, indiferentes, inamistosos.
Sem se deixar perturbar com a hostilidade, ele leu em voz alta:
Bliss:
Escrevo-lhe esta para lhe dizer pela última vez que quero o meu dinheiro de volta, e quero no dia primeiro do mês. Todo ele. Se não conseguir, vou resolver esse assunto de qualquer maneira e você pode adivinhar o que quero dizer com isso. Não pense que estou brincando.
Sinceramente,
Daniel Talbot.
Ele sorriu:
– Mais um T para vocês. – Ele pegou o envelope. – Carimbo postal de San Diego, do dia 25 do mês passado. – Ele sorriu novamente. – Mais uma cidade também para vocês.
Spade sacudiu a cabeça:
– Point Loma fica lá perto – disse.
Ele e Dundy examinaram a carta. Foi escrita com tinta azul, em papel branco de boa qualidade, assim como o endereço no envelope, numa caligrafia espremida, angular, que em nada se parecia com a da carta escrita a lápis.
Spade ironizou:
– Agora, sim, estamos chegando a algum lugar.
Dundy fez um gesto de impaciência:
– Vamos nos concentrar no que sabemos – rosnou.
– Claro – Spade concordou. – E o que é isto?
Não houve resposta.
Spade apanhou fumo e papéis de cigarro no bolso.
– Quando é que vamos falar com a filha? – perguntou.
– Daqui a pouco... – Dundy virou a cabeça, depois subitamente franziu a testa, olhando o homem morto no chão. Lançou subitamente o polegar para o homem baixo de rosto escuro. – Tudo terminado por aqui?
– Por mim, sim.
Dundy dirigiu-se a Tom laconicamente:
– Livre-se dessa coisa. – A seguir, voltou-se para o de cabeça grisalha: – Quero falar com os dois ascensoristas, depois de conversar com a moça.
Ele caminhou na direção da porta fechada que Tom tinha indicado para Spade e bateu nela.
Uma voz feminina ligeiramente áspera perguntou lá de dentro:
– Quem é?
– Tenente Dundy. Desejo falar com a senhorita Bliss.
Houve uma pausa, depois a voz disse:
– Entre.
Dundy abriu a porta e Spade seguiu-o para o interior de uma sala preta, cinzenta e prateada, onde uma mulher grandalhona, ossuda e feia, de meia-idade, vestida de preto com avental branco, estava sentada ao lado da cama na qual a moça estava deitada.
A moça deitada, cotovelo no travesseiro, mão no rosto, encarava a mulher grandona, ossuda e feia. Aparentava cerca de dezoito anos. Usava um conjunto cinzento. Os cabelos eram louros e curtos, o rosto tinha traços firmes e notavelmente simétricos. Ela não olhou para os dois homens que entraram na sala.
Dundy falou para a mulher ossuda e grande, enquanto Spade acendia o cigarro:
– Queremos lhe fazer algumas perguntas também, senhora Hooper. A senhora é a governanta da casa, não é?
A mulher respondeu:
– Sou. – A voz ligeiramente áspera, certa intensidade de seus olhos, de um cinzento profundo, a quietude e o tamanho de suas mãos que repousavam no seu colo, todo esse conjunto contribuía para a impressão de uma força tranqüila.
– O que a senhora sabe sobre o crime?
– Absolutamente nada. Recebi licença para me ausentar do serviço, esta manhã, para ir até Oakland e assistir ao funeral do meu sobrinho. Quando voltei, o senhor e seus colegas já estavam aqui e... já havia acontecido!
Dundy acenou e perguntou:
– Mas não tem palpite nenhum?
– Não – replicou ela, simplesmente.
– Era do seu conhecimento que ele estivesse esperando acontecer algo assim?
De repente, a moça desviou o olhar da senhora Hooper. Ela se sentou na cama, virou-se inteiramente e, olhos excitados sobre Dundy, perguntou:
– O que você está querendo dizer?
– Exatamente o que eu disse. Ele tinha sido ameaçado. Disse isso aqui ao Spade – indicou Spade com a cabeça – pelo telefone, apenas alguns minutos antes de ser assassinado.
– Mas... quem? – murmurou ela.
– É o que estamos querendo descobrir – retrucou Dundy. – Quem teria um motivo para fazer isso?
Ela o fitou assombrada:
– Ninguém.
Dessa vez, Spade a interrompeu, falando macio o bastante para as palavras parecerem menos brutais do que eram na realidade.
– Mas alguém tinha, sim. – Quando ela voltou o olhar para o detetive, ele perguntou: – Você não soube de nenhuma ameaça que ele tenha recebido?
Ela sacudiu a cabeça de um lado para o outro enfaticamente.
Spade voltou-se para a senhora Hooper:
– E a senhora?
– Não, senhor – respondeu ela.
O detetive concentrou-se outra vez na moça:
– Conhece um homem chamado Daniel Talbot?
– Conheço... mas por quê? – Ela ficou intrigada. – Ele esteve jantando aqui na noite passada.
– Quem é ele?
– Não sei... Só sei que mora em San Diego. Ele e papai tinham algum tipo de negócio juntos. Nunca havia me encontrado com ele, até ontem.
– E como estavam agindo um com o outro?
Ela franziu um pouco a testa, antes de responder devagar:
– Bem... cordialmente.
Dundy indagou:
– Que negócios são esses em que seu pai estava metido?
– Ele promovia shows.
– Quer dizer... era empresário de espetáculos?
– Isso, acho que pode dizer assim.
– Onde Talbot está? Voltou para San Diego?
– Não sei.
– Pode nos dar uma descrição dele?
Ela franziu a testa novamente, pensativa:
– Era um tipo grandalhão. Tinha o rosto vermelho, cabelos brancos e usava bigode.
– Velho?
– Acho que uns sessenta anos. Cinqüenta e cinco no mínimo.
Dundy olhou para Spade, que amassou o toco do seu cigarro num cinzeiro sobre a mesa e assumiu o interrogatório:
– Há quanto tempo não vê o seu tio?
O rosto dela ficou vermelho.
– O senhor está falando do tio Ted?
Ele confirmou com a cabeça.
– Desde... – ela começou, mas depois mordeu o lábio. Finalmente, disse: – Bem, o senhor deve saber... Não o vejo desde que ele saiu da prisão.
– Ele veio aqui?
– Veio, sim.
– Para ver o seu pai?
– Claro.
– Mas em que termos os dois se relacionavam?
Ela arregalou os olhos.
– Ora, os dois são meio fechados... – disse ela. – Mas são irmãos. Papai estava dando dinheiro para ele tentar abrir algum negócio.
– Quer dizer que eram amigos?
– Eram – replicou ela, numa entonação de alguém respondendo a uma pergunta idiota.
– Onde ele mora?
– Na Post Street – disse ela, e deu um número.
– E você não o viu depois disso?
– Não. Ele sentia vergonha... o senhor sabe... por ter estado na prisão... – ela terminou a frase gesticulando.
Spade dirigiu-se à senhora Hooper:
– E a senhora, não o viu mais?
– Não, senhor.
Ele enrugou os lábios e perguntou vagarosamente:
– Nenhuma de vocês duas sabe se ele esteve aqui esta tarde?
Disseram não juntas.
– Onde...?
Alguém bateu na porta.
Dundy exclamou:
– Entre.
Tom abriu a porta só o suficiente para enfiar a cabeça:
– O irmão dele está aqui – disse.
A moça inclinou-se para a frente e chamou:
– Oi, tio Ted!
Um grandalhão louro de terno marrom apareceu atrás de Tom. Ele estava tão queimado de sol que seus dentes reluziam, parecendo ainda mais brancos, e seus olhos claros pareciam ainda mais azuis do que eram na realidade.
Ele perguntou:
– Qual é o problema, Miriam?
– Papai está morto – disse e começou a chorar.
Dundy acenou para Tom, que saiu da frente de Theodore Bliss e deixou-o entrar no quarto.
Uma mulher entrou atrás dele, lenta e hesitantemente. Ela era alta, beirando os trinta, loura, quase rechonchuda. Seus traços eram generosos, rosto simpático e inteligente. Usava um pequeno chapéu marrom e um casaco de pele de mink.
Bliss pôs um braço em volta da sua sobrinha, beijou a sua testa e sentou-se na cama ao seu lado.
– Calma, garota. Calma – disse ele todo desajeitado.
Ela se deu conta da presença da mulher loura e fixou os olhos nela, através das suas lágrimas, por um instante. A seguir, disse:
– Como vai, srta. Barrow?
– Estou muito triste pelo que...
Bliss pigarreou e emendou:
– Ela agora é a sra. Bliss. Nós nos casamos esta tarde.
Dundy olhou zangado para Spade. Spade, fazendo um cigarro, parecia prestes a rir.
Depois de um momento de silêncio constrangedor, Miriam Bliss disse:
– Ah, eu desejo a você toda felicidade do mundo. De verdade! – Ela se virou para o tio enquanto a mulher dele murmurava obrigada e disse: – E a você também, tio Ted.
Ele lhe deu uns tapinhas carinhosos no ombro e a apertou junto dele. Bliss voltou-se para Spade e Dundy com ar intrigado.
– Seu irmão morreu esta tarde – disse Dundy. – Ele foi assassinado.
A sra. Bliss prendeu a respiração. Os braços de Bliss apertaram a cintura da sobrinha com um repuxo, mas sem ainda demonstrar qualquer mudança na fisionomia:
– Assassinado! – Ele repetiu como se não tivesse entendido.
– Isso mesmo. – Dundy levou a mão ao bolso do casaco. – O senhor esteve aqui esta tarde?
Theodore Bliss empalideceu um pouco sob a sua pele queimada, mas respondeu com firmeza:
– Sim, estive.
– Por quanto tempo?
– Cerca de uma hora. Cheguei aqui perto das duas e meia e... – Ele se virou para a sua mulher: – Eram quase três e meia quando eu telefonei para você, não foi?
Ela respondeu:
– Sim.
– Bem, eu saí logo depois.
– Tinha um encontro marcado com ele? – perguntou Dundy.
– Não. Telefonei para o escritório dele e... – fez um sinal com a cabeça em direção à sua mulher – ... e me disseram que ele tinha ido para casa. Então, vim para cá. Eu queria ver meu irmão antes de Elise e eu partirmos, é claro, e queria que ele fosse ao casamento. Mas ele não podia. Disse que estava esperando uma pessoa. Sentamos aqui e ficamos conversando por mais tempo do que eu pretendia. Por isso, tive de telefonar para Elise para ela se encontrar comigo na Prefeitura.
Após uma pausa pensando, Dundy perguntou:
– A que horas foi isso?
– Que nos encontramos lá? – Bliss ficou olhando em dúvida para a sua mulher, que disse:
– Faltavam quinze para as quatro. – Ela riu um pouco. – Cheguei lá primeiro e fiquei olhando o tempo todo para o relógio.
Bliss refletiu um pouco e falou:
– Passava um pouco das quatro, quando nos casamos. Tivemos que esperar pelo juiz Whitefield mais ou menos uns dez minutos. E ainda demorou alguns minutos, até começar, para ele concluir o caso que estava julgando. Vocês podem checar tudo. Suprema Corte. Bloco Dois, acho.
Spade girou nos pés e apontou para Tom.
– Talvez seja melhor checar isso agora.
– Deixe comigo! – respondeu Tom.
– Se foi como disse, está tudo bem, sr. Bliss – falou Dundy. – Mas tenho de lhe perguntar essas coisas. Agora, o seu irmão disse quem ele estava esperando?
– Não.
– Falou alguma coisa sobre ter sido ameaçado?
– Não. Ele nunca falava muito sobre os seus assuntos com ninguém, nem mesmo comigo. Ele tinha sido ameaçado?
Os lábios de Dundy comprimiram-se um pouco.
– Vocês dois eram amigos?
– Sim, acho que sim.
– Não tem certeza? – perguntou Dundy. – Tem certeza de que nenhum de vocês guardava rancor do outro?
Theodore Bliss soltou o braço da cintura da sobrinha. A crescente palidez fez com que a pele queimada de sol adquirisse um tom amarelado. Ele disse:
– Todo mundo aqui sabe que eu estive em San Quentin. Pode falar claramente, se é sobre isso que quer conversar.
– É sobre isso! – Dundy declarou e, depois de uma pausa: – Então?
Bliss levantou-se:
– Então, o quê? – respondeu, perdendo a paciência. – Se guardo ressentimento contra ele por isso? Não. Por que ia guardar? Nós dois estávamos envolvidos na coisa. Ele conseguiu se livrar, eu, não. Mas eu tinha certeza de que ia ser condenado, mesmo que ele fosse absolvido, não fazia diferença. Se ele tivesse ido parar na prisão também não ia me ajudar em nada. Discutimos a coisa toda e decidimos que eu deveria ir sozinho. Deixei ele de fora para colocar as coisas no lugar. E foi isso o que ele fez. Se der uma olhada na conta bancária dele, vai verificar que ele me deu um cheque de 25 mil dólares, dois dias após eu ter saído de San Quentin. E o registro da National Steel Corporation pode confirmar que mil ações foram transferidas do nome dele para o meu.
Ele sorriu, como se pedisse desculpas, e sentou-se na cama novamente.
– Sinto muito. Sei que precisa perguntar todas essas coisas.
Dundy ignorou a retratação:
– Conhece um sujeito chamado Daniel Talbot? – perguntou.
– Não.
Mas sua mulher interveio:
– Eu conheço. Quer dizer, ele tem aparecido no escritório. Esteve por lá, ontem.
Dundy olhou-a de alto a baixo cuidadosamente antes de perguntar:
– Que escritório?
– Eu sou... eu era a secretária do sr. Bliss e...
– De Max Bliss?
– Sim, e esse tal Daniel Talbot foi ao escritório ontem à tarde, para vê-lo. Quer dizer, se é que são a mesma pessoa.
– E daí, o que aconteceu?
Ela olhou para o marido, que disse:
– Se você sabe de alguma coisa, diga a eles.
– Mas, na verdade, não houve nada – retrucou ela. – No começo, pensei que estivessem brigando, mas, quando saíram juntos, estavam rindo e conversando. E, antes de sair, o sr. Bliss tocou a campainha para me chamar e mandar Trapper, o guarda-livros, preencher um cheque para o sr. Talbot.
– E você fez isso?
– Claro que sim. Um cheque de sete mil e quinhentos e poucos dólares.
– Qual a finalidade?
Ela balançou a cabeça:
– Eu não sei.
– Como secretária do sr. Bliss – insistiu Dundy –, devia ter alguma idéia do tipo de negócio que ele tinha com o sr. Talbot.
– Mas eu não tinha – disse ela. – Nunca tinha ouvido falar dele.
Dundy encarou Spade, cujo rosto estava inexpressivo. Dundy fuzilou-o com os olhos e depois fez uma pergunta ao homem na cama:
– Como era a gravata que o seu irmão estava usando quando o senhor o viu pela última vez?
Bliss hesitou, depois fixou o olhar em algum ponto além de Dundy e fechou os olhos. Quando finalmente os abriu, disse:
– Era verde com... eu a reconheceria se a visse. Por quê?
A sra. Bliss respondeu por ele:
– Uma gravata com listras diagonais estreitas de várias tonalidades de verde. Era a que ele usava no escritório, hoje de manhã.
– Onde ele guarda as gravatas? – Dundy perguntou à governanta.
Ela se levantou, dizendo:
– Num armário no quarto. Eu mostro para o senhor.
Dundy e os Bliss recém-casados a seguiram.
Spade pôs o chapéu em cima da mesa e perguntou a Miriam Bliss:
– A que horas você saiu? – Ele se sentou aos pés da sua cama.
– Hoje? Era perto de uma hora. Eu tinha combinado almoçar com uma pessoa e me atrasei um pouco. Depois, fui fazer compras, e depois... – Ela se deteve, estremecendo.
– E a que horas você voltou para casa? – A voz de Spade soava bastante amistosa.
– Por volta das quatro, acho.
– E o que aconteceu depois disso?
– Eu... e-encontrei papai caído ali e telefonei... não sei se foi lá para baixo ou para a polícia. Depois, não sei mais o que eu fiz. Desmaiei, fiquei histérica, algo assim... A primeira coisa de que me lembro foi que acordei e encontrei aqueles homens aqui... e a sra. Hooper. – Ela olhava bem nos olhos dele, agora.
– Você não telefonou para um médico?
Ela abaixou os olhos novamente.
– Não, acho que não.
– Claro que você não faria isso, sabendo que ele estava morto... – disse ele, de modo casual.
Ela ficou calada.
– Você sabia que ele estava morto? – perguntou Spade.
Ela levantou os olhos para ele, mesmo sem vê-lo:
– Mas ele estava morto!
Ele sorriu.
– Sim, estava. Mas o que eu quero saber é se você tentou se certificar, antes de telefonar?
Ela levou a mão à garganta.
– Não me lembro do que eu fiz... – disse sinceramente. – Acho que apenas sabia que ele estava morto.
Ele acenou com a cabeça, compreensivo.
– E se você ligou para a polícia é porque sabia que ele tinha sido assassinado.
Ela juntou as mãos, olhando para ele, e disse:
– Acho que sim. Foi horrível. Não sei mais o que eu estava pensando, nem o que eu fiz.
Spade inclinou-se para a frente com uma voz baixa e persuasiva.
– Eu não sou um policial, Miriam. Fui contratado por seu pai... alguns minutos tarde demais para salvá-lo. Então, de certo modo, estou trabalhando para você agora. Assim, se houver qualquer coisa que eu possa fazer... talvez alguma coisa que a polícia não deva... – Ele se interrompeu quando Dundy, seguido pelos Bliss e a governanta, voltaram para o quarto. – Tiveram sorte?
Dundy disse:
– A gravata verde não está lá. – Um olhar desconfiado logo foi lançado para Spade e a seguir para a moça. – A senhora Hooper diz que a gravata azul que encontramos faz parte de uma remessa de meia dúzia delas, que ele acabara de receber da Inglaterra.
Bliss perguntou:
– Por que essa gravata é tão importante?
Dundy franziu o cenho para ele.
– Ele estava parcialmente despido. Mas a gravata nunca tinha sido usada.
– E se ele estivesse trocando de roupa, quando quem o matou chegou aqui? Ele pode ter sido morto antes de ter acabado de se vestir.
O mau humor de Dundy acentuou-se:
– Certo, mas então o que ele fez com a gravata verde? Comeu?
Spade disse:
– Ele não estava trocando de roupa. Se você observar o colarinho da camisa, vai ver que ele já devia estar usando uma gravata quando foi estrangulado.
Tom apareceu na porta.
– Checaram tudo – disse para Dundy. – O juiz e um escrivão chamado Kittredge disseram que eles estiveram lá, de quinze para as quatro até quase quatro horas. Falei com o Kittredge para vir até aqui dar uma olhada neles, só para ter certeza de que são as mesmas pessoas.
– Perfeito – disse Dundy sem virar o rosto, e apanhou do bolso a carta ameaçadora escrita a lápis e assinada com o T dentro de uma estrela. Ele a dobrou de forma que apenas a assinatura ficasse visível e então perguntou:
– Alguém sabe o que é isto?
Miriam Bliss deixou a cama e foi juntar-se aos outros para examinar o papel. Então, ficaram olhando uns para os outros perplexos.
– Alguém já viu alguma coisa parecida?
Todos responderam que não.
Dundy disse:
– Tudo bem. Aguardem aqui. Talvez ainda tenha mais alguma coisa para perguntar a vocês daqui a pouco.
Spade disse:
– Só um momento... Bliss, há quanto tempo conhece a sra. Bliss?
Bliss encarou Spade com curiosidade.
– Desde que saí da prisão – replicou ele, algo cauteloso. – Por quê?
– Quer dizer, somente desde o mês passado. – Spade disse como se falasse consigo mesmo. – E foi seu irmão quem os apresentou.
– Isso mesmo, lá no escritório dele. Por quê?
– E na Prefeitura, esta tarde, vocês estiveram juntos o tempo todo?
– Sim, claro que sim. – Bliss respondeu prontamente. – Onde o senhor quer chegar?
Spade sorriu para ele, um sorriso amigável:
– O meu trabalho é fazer perguntas.
Bliss sorriu também.
– Tudo bem. – Seu sorriso tornou-se mais franco. – Na verdade, estou mentindo. Não estivemos juntos o tempo todo. Eu saí para o corredor para fumar um cigarro. Mas posso garantir que o tempo todo fiquei de olho nela, através da vidraça da porta da sala do tribunal, e ela ficou sentada bem onde eu a deixei.
O sorriso de Spade era tão brilhante quanto o de Bliss. Mesmo assim, ele perguntou:
– E quando você não estava olhando através da vidraça, não perdia a porta de vista? Ela não podia ter deixado a sala do tribunal sem que o senhor a visse?
O sorriso de Bliss desapareceu.
– É claro que não – afirmou. – Não fiquei do lado de fora nem cinco minutos.
Spade sorriu de novo e disse:
– Muito obrigado. – E seguiu Dundy para dentro de sala de estar, fechando a porta atrás dele.
Dundy olhou de soslaio para Spade.
– Alguma idéia?
Spade deu de ombros.
O corpo de Max Bliss tinha sido removido. Além do homem na escrivaninha e o homem de cabeça grisalha, dois garotos filipinos de uniforme de cor roxo-escura estavam na sala. Eles se sentaram juntos um do outro no sofá.
Dundy disse:
– Mack, quero encontrar uma gravata verde. Quero essa casa desmontada e toda a vizinhança virada pelo avesso, até vocês acharem. Arranje quantos homens sejam necessários.
O homem na escrivaninha levantou-se e falou:
– Certo. – Depois, puxou o chapéu para baixo, deixando-o logo acima dos olhos, e saiu.
Fazendo cara feia, Dundy perguntou aos filipinos:
– Quem de vocês viu o homem de roupa marrom?
O menor levantou-se:
– Eu, senhor.
Dundy abriu a porta do quarto e chamou:
– Bliss!
Bliss chegou até a porta. O rosto do ascensorista filipino pareceu se iluminar.
– Foi ele mesmo, senhor.
Dundy fechou a porta na cara de Bliss e grunhiu:
– Sente-se.
O garoto sentou-se o mais depressa que pôde.
Dundy encarou os ascensoristas com ar contrariado, a ponto de deixá-los inquietos. Então, retomou o interrogatório:
– Quem mais vocês trouxeram aqui para este apartamento, esta tarde?
Eles balançaram a cabeça, sincronizadamente, de um lado para o outro.
– Mais ninguém, senhor – o menor deles respondeu. Um sorriso arreganhou seu rosto, na tentativa desesperada de ganhar as boas graças do detetive.
Dundy avançou um passo em direção a eles, ameaçando-os:
– Idiotas! – rosnou ele. – Vocês trouxeram aqui a filha do morto, Miriam Bliss.
A cabeça do garoto maior meneou para cima e para baixo:
– Sim, senhor. Sim, senhor. Eu trouxe eles também. Pensei que estivesse falando de pessoas de fora.
Ele também tentou um sorriso.
Dundy enfureceu-se com ele:
– Não importa o que você pensou que eu quis dizer. Responda apenas o que eu perguntar. Agora... o que quis dizer com “eles”?
O olhar de Dundy acabou com o sorriso do garoto. Ele agora fitava o chão entre os seus pés. Gaguejando, disse:
– A menina Bliss e o moço que subiu com ela.
– Que moço? Esse senhor que está lá dentro? – E virou a cabeça na direção da porta que acabara de fechar na cara de Bliss.
– Não, senhor, era outro. Não era americano. – Ele tinha erguido a cabeça novamente e um brilho voltou a iluminar o seu rosto. – Acho que ele era um armênio.
– Por quê?
– Porque ele não era como nós, americanos, não falava como a gente.
Spade sorriu e perguntou:
– Já viu um armênio?
– Não, senhor. Foi só o que eu achei.
Ele fechou a boca com um ruído, enquanto Dundy soltava outro rosnado do fundo de sua garganta.
– Como ele era? – perguntou Dundy.
O garoto levantou os ombros, separando bastante as mãos.
– Era alto, igual a esse senhor aí – disse, apontando para Spade. – Cabelo preto, bigode preto. Muito... – ele franziu o cenho, compenetrado – ... roupas muito bonitas. Um homem de muito boa aparência. Bengala, luvas, até polainas e...
– Jovem? – Dundy perguntou.
A cabeça foi para cima e para baixo novamente.
– Jovem, sim, senhor.
– Quando ele foi embora?
– Cinco minutos depois – o garoto replicou de imediato.
Dundy fez um movimento de mastigar com as mandíbulas, então perguntou:
– A que horas eles entraram?
O garoto separou as mãos, levantando os ombros novamente:
– Eram quatro horas... talvez uns dez minutos mais.
– Você trouxe mais alguém aqui para cima antes de chegarmos?
Os filipinos balançaram a cabeça em dueto, uma vez mais.
Dundy falou pelo canto da boca para Spade:
– Pegue-a agora!
Spade abriu a porta do quarto, curvou-se ligeiramente para dentro e chamou:
– Quer vir aqui fora um momento, Miriam?
– Por quê? – perguntou ela entediada.
– Só por um momento – disse, segurando a porta aberta. Então, subitamente, acrescentou: – E seria melhor que viesse também, Bliss.
Miriam Bliss entrou vagarosamente na sala de estar, seguida por seu tio, e Spade fechou a porta atrás deles. O lábio inferior da moça tremeu ligeiramente, quando deu com os ascensoristas. Ela olhou de modo apreensivo para Dundy.
Ele perguntou:
– Por que tentou esconder que um homem subiu com você até aqui?
Seu lábio inferior tremeu mais uma vez.
– O quê? – Ela tentou encenar uma face aturdida.
Theodore Bliss mais do que depressa cruzou a sala, ficou um instante em pé na frente dela, como se quisesse dizer alguma coisa e, depois, aparentemente mudando de intenção, colocou-se atrás dela, os braços cruzados sobre as costas da cadeira.
– O homem que entrou com você – perguntou Dundy áspera e rapidamente: – Quem é ele? Onde ele está? Por que ele foi embora? Por que você nada disse sobre ele?
A moça levou as mãos ao rosto e começou a chorar.
– Ele não teve nada a ver com isso – disse, entre soluços, através das mãos. – Ele não fez nada, e essa confusão só iria trazer problemas para ele.
– Bom rapaz – disse Dundy. – Assim, para manter o seu nome longe dos jornais, ele foge e deixa você sozinha com o seu pai assassinado.
Ela afastou as mãos do rosto.
– Foi, sim, mas ele precisou fazer isso. A mulher dele é muito ciumenta. Se ela soubesse que ele esteve comigo novamente, na certa ia querer se divorciar dele, e ele não tem um centavo, o dinheiro é todo dela.
Dundy olhou para Spade, que olhou para os filipinos de olhos arregalados e apontou o polegar para a porta de saída.
– Sumam! – disse.
Eles saíram apressados.
– E quem é essa preciosidade? – perguntou Dundy.
– Mas ele não teve nada a ver...
– Quem é ele?
Os ombros dela penderam um pouco. Ela abaixou os olhos e murmurou, irritada:
– O nome dele é Boris Smekalov.
– Soletre.
Ela soletrou.
– Onde ele mora?
– No Hotel St. Mark.
– Faz alguma coisa na vida além de viver do golpe do baú?
A raiva brotou no rosto da moça, no instante em que ela o erguia, mas logo desapareceu.
– Ele não faz nada – disse.
Dundy girou sobre os pés e se dirigiu ao homem de cabeça grisalha:
– Traga-o.
O homem de cabeça grisalha grunhiu e saiu.
Dundy enfrentou a moça novamente.
– Você e esse Smekalov estão tendo um caso?
A fisionomia dela mostrou-se desdenhosa. Miriam o olhou com desprezo, sem responder.
Ele disse:
– Agora que o seu pai está morto, você vai ter dinheiro bastante para que ele se case com você, se a mulher aceitar o divórcio, certo?
Ela cobriu o rosto com as mãos.
Dundy insistiu:
– Agora que o seu pai está morto, você vai...?
Inclinando-se bastante à frente, Spade amparou-a enquanto a moça caía. Ele a ergueu com facilidade e levou-a para o quarto. Quando voltou, fechou a porta atrás de si e apoiou-se contra ela.
– Não sei ainda sobre o resto, mas o desmaio foi fingido!
– Tudo o que ela fez aqui foi uma farsa – resmungou Dundy.
Spade sorriu troçando:
– Devia haver uma lei para obrigar os criminosos a confessarem de uma vez.
Bliss sorriu e sentou-se na escrivaninha do seu irmão, próximo à janela.
A voz de Dundy soou desagradável:
– Você não tem que se preocupar com nada – disse ele para Spade. – Até porque o seu cliente está morto e não pode reclamar. Mas se eu não aparecer com algum resultado, vou ter de aturar o capitão, o chefe de polícia, os jornais e sabe Deus o que mais.
– Tenha paciência! – Spade acalmou-o. – Você vai acabar apanhando um criminoso, mais cedo ou mais tarde. – A face do investigador ficou séria, exceto pelas faíscas dos seus olhos cinzentos amarelados. – Eu não quero complicar este trabalho muito além do que já fomos obrigados a fazer, mas não acha que devemos checar aquele funeral a que a governanta disse que foi? Há alguma coisa estranha naquela mulher.
Após olhar com desconfiança para Spade durante um instante, Dundy assentiu com a cabeça e disse:
– Tom fará isso.
Spade voltou-se para Tom, agitando o dedo, e disse:
– Aposto dez contra um que não houve funeral nenhum. Cheque isso... não se deixe enganar.
Então, ele abriu a porta do quarto e chamou a sra. Hooper:
– O sargento Polhaus deseja uma informação da senhora – disse Spade para ela.
Enquanto Tom anotava os nomes e endereços que a mulher lhe passava, Spade sentou-se no sofá, enrolou e fumou um cigarro. Dundy passeava pela sala vagarosamente, franzindo o cenho para o tapete. Com a aprovação de Spade, Theodore Bliss levantou-se e foi se juntar à sua esposa no quarto de dormir.
Logo, Tom guardava a caderneta de notas no bolso e agradecia à governanta.
– Até mais tarde – disse, despedindo-se de Spade e Dundy, e deixou o apartamento.
A governanta permaneceu onde ele a deixara, feia, forte, serena, paciente.
Spade se torceu no sofá, até poder encarar seus olhos profundos e imóveis:
– Não se preocupe com isso – disse, fazendo um gesto na direção da porta por onde Tom tinha saído. – É só rotina. – Depois, comprimiu os lábios e perguntou: – Honestamente, o que pensa de tudo isso, senhora Hooper?
Ela replicou calmamente na sua voz forte e algo áspera:
– Eu penso que quem julga é Deus.
Dundy interrompeu seus passos de um lado para o outro.
Spade exclamou:
– O quê?
Havia certeza e nenhuma excitação na voz dela:
– O preço do pecado é a morte.
Dundy avançou na direção dela, como se pretendesse aplicar-lhe um golpe de luta-livre. Spade deteve-o com um aceno de mão que o sofá escondeu da mulher. O seu rosto e sua voz mostraram interesse, mas estavam agora tão compostos quanto os da mulher:
– Que pecado? – indagou.
E ela retrucou:
– Quem quer que fira quaisquer desses pequeninos que crêem em mim, melhor seria se uma mó de pedra fosse pendurada em seu pescoço e que ele fosse arremessado no mar.
A governanta pronunciou as palavras não como se estivesse fazendo uma citação, mas dando-lhe a entonação de quem realmente acreditava no que dizia.
Dundy dirigiu-lhe a pergunta com a voz irritada, soando mais como um latido:
– Que pequeninos são esses?
Ela desviou os olhos cinzentos circunspectos para ele, depois olhou além dele, em direção ao quarto:
– Ela – disse a governanta. – Miriam.
Dundy franziu as sobrancelhas para ela:
– A filha dele?
A mulher respondeu:
– Sim, sua própria filha... adotada.
O rosto quadrado de Dundy foi tomado por uma irritação que o deixou da cor do sangue:
– Mas de que diabo você está falando agora? – Ele sacudiu a cabeça como para livrar-se de alguma coisa tilintando dentro dela. – Ela não é filha dele de verdade?
A serenidade da mulher não foi de modo algum perturbada por sua ira.
– Não. A mulher dele passou quase a vida inteira inválida. Eles não tiveram filhos.
Por um instante, Dundy remexeu as mandíbulas como se estivesse mastigando. Quando falou novamente, sua voz estava mais fria.
– O que ele fez a ela?
– Eu não sei – replicou a governanta. – Mas acredito que, quando a verdade for descoberta, o senhor verá que o dinheiro do pai dela... digo, do verdadeiro pai... o dinheiro que ele deixou para ela tem sido...
Spade interrompeu-a, esforçando-se para falar com toda clareza, movendo uma mão em pequenos círculos acompanhando as palavras.
– Você quer dizer que não sabe realmente se Bliss trapaceou a moça... É apenas uma suspeita?
Ela levou uma das mãos ao coração:
– Eu sei disto aqui – retrucou ela com serenidade.
Dundy voltou-se para Spade, Spade para Dundy, e os olhos de Spade estavam brilhantes, mas não de contentamento. Dundy pigarreou, limpando a garganta, e dirigiu-se novamente à mulher:
– E a senhora acha que isso... – indicou com a mão para o local do chão onde o homem morto estivera caído – foi um ato da justiça de Deus, não é?
– É o que eu penso.
O olhar do investigador agora havia conseguido se despir de qualquer ar de sarcasmo:
– Então, quem quer que tenha feito isso, estava apenas sendo guiado pelas mãos de Deus?
– Não cabe a mim dizer – replicou ela.
O sangue ameaçou novamente tomar a face do investigador:
– Está bem, por enquanto – disse, com a voz engasgada. Mas, no momento em que ela alcançou a porta do quarto, seus olhos entraram em alerta novamente e ele a chamou.
– Apenas um minuto... Por acaso a senhora é rosa-cruz?
– Não desejo ser nada mais do que uma cristã.
Ele rosnou:
– Tudo bem, tudo bem... – E voltou-lhe as costas.
Ela foi para o quarto e fechou a porta. Dundy enxugou a testa com a palma da mão direita e queixou-se de cansaço:
– Meu Deus! Que família.
Spade deu de ombros.
– Experimente investigar a si mesmo, de vez em quando.
A face de Dundy empalideceu. Seus lábios, quase sem cor, voltaram a apertar os dentes. Ele fechou os punhos e lançou-os na direção de Spade.
– O que você...?
O olhar de agradável surpresa na fisionomia de Spade o deteve. Ele evitou os olhos dele, umedeceu os lábios com a ponta da língua, voltou-se para Spade por um instante, depois para o outro lado, ensaiou um sorriso embaraçado e resmungou:
– Você quer dizer qualquer família... Hum-hum! Pode ser.
Uma campainha soou atrás dele, e Dundy voltou-se bruscamente para a porta do corredor. A divertida contração no rosto de Spade acentuou ainda mais sua semelhança com um demônio louro.
Uma voz amistosa e arrastada vinda do corredor penetrou pela porta:
– Sou Jim Kittredge. Corte Superior. Fui chamado para comparecer aqui.
A voz de Dundy respondeu:
– Isso mesmo. Entre.
Kittredge parecia um bolinho recheado, corado no forno e com cobertura, com suas roupas exageradamente apertadas e brilhosas, de tão gastas. Ele acenou para Spade e disse:
– Lembro-me de você, sr. Spade, do caso Burke contra Harris.
Spade retrucou:
– Mas é claro! – E ficou em pé para um aperto de mãos.
Dundy tinha ido à porta do quarto chamar Theodore Bliss e sua esposa. Kittredge olhou para eles, sorriu amavelmente e disse:
– Como vocês estão? – E, virando-se para Dundy: – São eles, com certeza. – Em seguida, olhou em volta como se procurasse um lugar para cuspir, não achou nenhum e disse: – Faltavam mais ou menos dez para as quatro quando esse senhor ali entrou na sala de justiça e me perguntou quanto tempo sua excelência ainda ia demorar. Respondi que cerca de uns dez minutos, e eles ficaram esperando. Logo depois da suspensão das audiências, às quatro horas, nós os casamos.
– Obrigado – disse Dundy. E mandou Kittredge embora, despachando também os Bliss de volta ao quarto. Depois, franziu o cenho mal-humorado para Spade, indagando: – E daí?
Spade, novamente sentado, replicou:
– Daí que você não conseguiria ir daqui até a Prefeitura em menos de quinze minutos. Não poderíamos supor isso, nem que ele tivesse dado um jeito de entrar aqui de volta, enquanto aguardava o juiz. E também não poderia ter corrido até aqui e matado o irmão, depois do casamento, antes de Miriam chegar.
A insatisfação no rosto de Dundy cresceu. Ele abriu a boca, mas fechou-a em silêncio quando o homem de cara cinzenta entrou acompanhado de um jovem alto, esbelto e pálido, que se ajustava à descrição do companheiro de Miriam Bliss feita pelo ascensorista filipino.
O homem de cara cinzenta disse:
– Tenente Dundy, sr. Spade, este é o sr. Boris... hum... Smekalov.
Dundy assentiu lacônico.
Smekalov começou a falar imediatamente. O seu sotaque não era forte a ponto de impedir os ouvintes de entendê-lo, apesar de seus erres soarem mais como dáblius:
– Tenente, devo lhe pedir que considere esta conversa como assunto confidencial. Se algo transpirar para fora daqui, vai me arruinar. Isso mesmo, tenente, serei arruinado, e muito injustamente. Sou completamente inocente, senhor, lhe asseguro. De coração, alma e atos. Não apenas inocente, mas de forma alguma ligado a qualquer aspecto dessa história. Não há...
– Espere um instante. – Dundy enfiou o dedo rudemente no peito de Smekalov. – Ninguém aqui está acusando você de nada. Só queremos que fique por aqui um pouco.
O jovem abriu os braços, as palmas à frente, num gesto expansivo.
– Mas, o que é que eu posso fazer? Eu tenho uma esposa que... – Ele balançou a cabeça com violência. – É impossível. Não posso fazer isso.
O homem de cara cinzenta murmurou para Spade:
– Esses russos são uns palhaços.
Dundy contorceu os olhos para Smekalov num tom de voz judicial, advertindo-o:
– Ou fica ou provavelmente vai se envolver numa confusão bastante séria.
Smekalov parecia a ponto de cair no choro.
– Mas, por favor, simplesmente se coloque no meu lugar – implorou. – Bastará isso para o senhor...
– Eu não gostaria de estar no seu lugar. – Na sua franqueza rude, Dundy parecia sensibilizado com a situação do rapaz. – Não se brinca com assassinato neste país.
– Assassinato! Mas eu lhe garanto, tenente, que fui envolvido nesta situação apenas pela mais pura falta de sorte. Eu não sou...
– Você quer dizer que entrou aqui com a Miriam Bliss apenas por acaso?
Pareceu que o jovem gostaria de responder que sim. Mas disse não, pronunciando a palavra vagarosamente. E logo em seguida, prosseguiu, com um assomo de rapidez:
– Mas não aconteceu nada, senhor, absolutamente nada. Saímos para almoçar. Eu a acompanhei, na volta para casa, e ela disse: “Você aceitaria uma bebida?” Eu aceitei. Isso foi tudo. Dou a minha palavra de honra. – Ele estendeu as mãos, palmas para cima. – Isso não poderia ter acontecido também ao senhor? – E moveu as mãos na direção de Spade. – Ou ao senhor?
Spade disse:
– Uma porção de coisas costumam acontecer comigo. Bliss sabia que o senhor estava saindo com a filha dele?
– Ele sabia que éramos amigos, sim.
– Ele sabia que o senhor era casado?
Smekalov respondeu cautelosamente desta vez:
– Acho que não.
– Mas o senhor sabia que ele ignorava isso – afirmou Dundy.
Smekalov umedeceu os lábios e não contradisse o tenente.
Dundy perguntou:
– O que o senhor acha que ele teria feito, caso descobrisse?
– Eu não sei, senhor.
Dundy aproximou-se alguns passos do jovem e falou entre os dentes, numa voz deliberadamente áspera:
– O que ele fez quando descobriu?
O jovem recuou um passo, o rosto branco e assustado.
A porta do quarto se abriu e Miriam Bliss entrou na sala.
– Deixe ele em paz – disse, indignada. – Eu já falei que ele não sabe nada sobre o que aconteceu aqui. – Ela estava ao lado de Smekalov, agora, e tinha uma das mãos nas dele. – O senhor está apenas criando problemas para ele, e não vai descobrir nada importante com isso. Sinto muito mesmo, Boris, bem que tentei impedir que eles o perturbassem.
O jovem murmurou algo ininteligível.
– Sim, você tentou, sem dúvida alguma – Dundy concordou, para a seguir se dirigir a Spade. – E se tiver acontecido assim, Sam? Bliss descobriu que ele era casado, ficou sabendo que eles iam almoçar juntos, chegou cedo em casa para encontrá-los, quando entrassem aqui, e aí ameaçou contar tudo à esposa do russo. Daí, foi estrangulado. – Dundy olhou de soslaio para a moça. – Se desejar fingir outro desmaio, agora pode ser uma boa ocasião.
O jovem gritou e arremessou-se sobre Dundy, ambas as mãos em garra. Dundy grunhiu:
– Ahhh! – e esmurrou-o com força no rosto.
O jovem cambaleou para trás, através da sala, até bater numa cadeira. Ele e a cadeira foram ao chão. Dundy disse para o homem de cara cinzenta:
– Leve-o para a chefatura! Testemunha material.
O homem de cara cinzenta respondeu:
– Ok. – Então, apanhou o chapéu de Smekalov e foi ajudá-lo a se levantar.
Theodore Bliss, sua esposa e a governanta vieram até a porta que Miriam Bliss tinha deixado aberta. Miriam Bliss estava chorando, batendo com os pés no chão e ameaçando Dundy:
– Vou dar queixa contra você, seu covarde. Não tinha nenhum direito de... – E assim por diante.
Ninguém prestou muita atenção nela. Todos observavam o homem de cara cinzenta ajudar Smekalov a se pôr de pé e levá-lo embora. O nariz e a boca de Smekalov estavam lambuzados de sangue.
Então, Dundy ordenou à moça:
– Cale a boca!
E a seguir, sem maior consideração, tirou um pedaço de papel do bolso.
– Estou aqui com uma lista dos telefonemas feitos deste apartamento hoje. Diga se reconhecer algum número.
Ele leu um número de telefone.
A senhora Hooper disse:
– É o do açougueiro. Telefonei para ele antes de sair de casa esta manhã. – E informou que o número seguinte na lista de Dundy era o da mercearia.
Ele leu outro.
– Esse é do St. Mark – disse Miriam Bliss. – Eu telefonei para Boris. – Ela identificou dois outros números, que eram de amigos a quem havia telefonado.
O sexto número, Bliss informou, era o do escritório do seu irmão.
– Provavelmente, fui eu telefonando para combinar com Elise o nosso encontro na Prefeitura.
Spade exclamou:
– Esse é o meu! – Era o sétimo número, e Dundy informou que o último era o telefone de emergência da polícia. A seguir, pôs o papel de volta no bolso.
Spade comentou, debochado:
– Bem, isso rendeu um bocado de pistas, não foi?
A campainha da porta tocou.
Dundy foi atender. Ele e um outro homem podiam ser ouvidos falando em vozes demasiado baixas para que as suas palavras fossem entendidas na sala de estar.
O telefone tocou. Spade atendeu:
– Olá... Não, é Spade. Espere um minuto... Muito bem. – Ele escutou com atenção. – Certo, direi a ele... Não, eu não sei. Eu peço para ele ligar para você... Certo.
Quando voltou do telefone, Dundy estava de pé, as mãos nas costas, no umbral do vestíbulo. Spade disse:
– O’Gar disse que o tal russo ficou completamente maluco a caminho da chefatura. Eles foram obrigados a colocá-lo numa camisa-de-força.
– Ele já devia estar vestindo uma faz tempo! – Dundy resmungou. – Venha até aqui.
Spade seguiu Dundy até o vestíbulo. Um policial uniformizado estava em pé no umbral externo da porta.
Dundy trouxe as mãos detrás das costas. Numa, trazia uma gravata com listras diagonais estreitas, em vários tons de verde. Na outra, um alfinete de gravata de platina com um conjunto de pequenos diamantes no formato de um crescente.
Spade inclinou-se para examinar três manchas pequenas e irregulares na gravata:
– Sangue?
– Ou sujeira – arriscou Dundy. – O policial encontrou isso embrulhado num jornal, tudo jogado numa lata de lixo, na esquina.
– Isso mesmo, senhor – confirmou o policial uniformizado, com orgulho. – Encontrei lá mesmo, um bolo amarrotado que... – Ele se calou, já que ninguém estava lhe prestando atenção.
– Sangue seria melhor – estava dizendo Spade. – É uma razão para dar sumiço na gravata. Vamos entrar e falar com o pessoal.
Dundy enfiou a gravata num bolso e a mão segurando o alfinete em outro:
– Certo... Então, vamos chamar de sangue.
Retornaram à sala de estar. Dundy olhava de Bliss para a mulher de Bliss, para a sobrinha de Bliss, para a governanta, como se nenhum deles lhe agradasse. Retirou a mão do bolso, impeliu-a bem à sua frente e abriu-a para mostrar o alfinete de gravata com o crescente, em sua mão:
– O que é isso? – perguntou.
Miriam Bliss foi a primeira a falar.
– Ora, é o alfinete de gravata do papai – disse ela.
– Ah, é? – replicou Dundy contrariado. – E ele estava usando isso hoje?
– Ele sempre o usa. – Ela se virou para os outros pedindo confirmação.
A sra. Bliss disse “Sim”, enquanto os outros assentiam com um aceno de cabeça.
– Onde o senhor o encontrou? – perguntou a moça.
Dundy os estava examinando um por um, novamente, como se gostasse deles menos do que nunca. Sua face estava vermelha.
– Então, ele usava isto sempre... – disse, zangado. – E não houve um só de vocês que pudesse dizer: “O pai usava sempre um alfinete de gravata. Onde está?”. Não, tivemos que esperar até o alfinete aparecer para escutar alguma coisa a respeito.
Bliss disse:
– Não seja injusto. Como íamos saber...?
– Deixe para lá o que vocês tinham de saber. – Dundy vociferou: – Está na hora de eu dizer tudo o que já sei. – Ele retirou a gravata verde do bolso. – Esta é a gravata dele?
A sra. Hooper respondeu:
– É, sim, senhor.
Dundy disse:
– Ora, vejam só... Está manchada de sangue, e não é sangue dele, porque não encontramos nenhum arranhão nele. – Ele fixou um olhar apertado de um para outro. – Agora, suponha que você estivesse tentando estrangular um homem que usasse um alfinete de gravata e ele estivesse tentando lutar para se defender e...
Dundy interrompeu-se e olhou para Spade.
Spade atravessara a sala, até onde a sra. Hooper estava de pé. Suas enormes mãos estavam crispadas à frente dela. Ele virou a mão direita da governanta para cima, tirou o lenço que ela ocultava na palma da mão, embolado, e lá estava um arranhão fresco de seis centímetros, bastante profundo.
Ela permitira passivamente que ele examinasse a sua mão. Sua fisionomia nada perdeu da tranqüilidade habitual. Ela não pronunciou sequer uma palavra.
– Então? – perguntou ele.
– Eu me arranhei com o alfinete da srta. Bliss, ao colocá-la na cama, quando ela desmaiou – explicou a governanta calmamente.
A risada de Dundy foi curta e amarga:
– Pode até ser, mas mesmo assim vai levar a senhora à forca.
A fisionomia da mulher não se alterou:
– A vontade de Deus será feita – replicou ela.
Spade deixou escapar um ruído peculiar da garganta, quando soltou a mão dela.
– Bem, vamos ver em que ponto estamos. – Ele sorriu para Dundy. – Você não gosta daquela estrela com o T, não é?
Dundy respondeu:
– Tem toda razão.
– Também não gosto – disse Spade. – A ameaça de Talbot, provavelmente, era real. Mas parece que a dívida foi paga. Então... Espere um instante!
Ele foi ao telefone e ligou para seu escritório.
– O negócio da gravata pareceu um bocado estranho, também, até há pouco – foi dizendo, enquanto aguardava –, mas creio que o sangue se encarregou disso.
Ele falou ao telefone:
– Alô, Effie. Escute... No espaço mais ou menos de meia hora antes do telefonema de Bliss me chamando você recebeu alguma ligação fora do comum? Alguma coisa que pudesse ter sido um pretexto para... Sim, pode ser... Pense.
Ele cobriu o fone com a mão e disse para Dundy:
– Tem muita coisa ruim no mundo.
Voltou novamente ao telefone:
– Sim?... Sim... Kruger?... Sim. Homem ou mulher?... Obrigado... Não, vou terminar dentro de meia hora. Espere por mim e eu levo você para jantar. Até logo!
Deu as costas para o telefone e disse:
– Cerca de meia hora antes do telefonema de Bliss, um homem ligou para o escritório e perguntou por um tal de Kruger.
Dundy franziu as sobrancelhas.
– E daí?
– Kruger não estava lá.
Dundy franziu mais ainda as feições.
– Quem é Kruger?
– Não sei – respondeu Spade, afavelmente. – Não conheço nenhum Kruger. – Retirou fumo e papel do bolso. – Tudo bem, Bliss, onde está o seu arranhão?
– Como? – Theodore Bliss exclamou, enquanto os outros fitavam Spade sem entender.
– O seu arranhão – Spade repetiu, num tom calculadamente paciente. Sua atenção estava voltada para o cigarro que enrolava. – O lugar onde o alfinete do seu irmão feriu você, quando o estava estrangulando.
– Você está maluco? – Bliss vociferou. – Eu estava...
– Já sei... você estava se casando quando ele foi assassinado. Mas não é verdade! – Spade umedeceu a borda do seu papel de cigarro e o amaciou com os dedos indicadores.
Foi a vez de a senhora Bliss falar, gaguejando levemente:
– Mas ele... mas Max Bliss telefonou...
– Quem disse que Max Bliss me telefonou? – inquiriu Spade. – Não posso garantir. Eu não seria capaz de reconhecer a voz dele. Sei apenas que um homem perguntou por mim e disse que o seu nome era Max Bliss. Qualquer pessoa podia fazer isso.
– Mas o registro telefônico mostra que a chamada partiu daqui – protestou ela.
Spade balançou a cabeça e sorriu.
– Eles mostram que recebi uma chamada daqui. E é verdade. Mas não foi aquela chamada. Já disse que alguém me ligou meia hora, mais ou menos, antes da suposta chamada de Max Bliss e perguntou por um tal de Kruger. – O detetive apontou Theodore Bliss. – Ele é esperto o bastante para telefonar deste apartamento para o meu escritório, o que deixaria a ligação registrada. E isso antes de sair para se encontrar com a senhora.
Ela olhou fixamente para Spade, com seus estarrecidos olhos azuis, e depois se voltou para o marido, que lhe disse, com tranqüilidade:
– É tolice, minha querida. Você sabe...
Spade não deixou que ele terminasse a frase.
– Você sabe que ele saiu para fumar um cigarro no corredor, enquanto esperava pelo juiz. E ele sabia que havia uma cabine telefônica no corredor. Um minuto era tudo de que ele precisava.
Spade acendeu o cigarro e tornou a guardar o isqueiro no bolso.
Bliss protestou:
– Quanta idiotice! Por que eu ia matar o Max? – Ele sorriu confiante para os olhos aterrorizados da esposa. – Não deixe que isso a perturbe, querida. Os métodos da polícia às vezes são...
– Muito bem – Spade desafiou –, então nos deixe procurar arranhões em você.
Bliss virou-se para encará-lo mais diretamente.
– Você que se dane! – Ele escondeu uma das mãos atrás das costas.
Spade, com fisionomia dura e olhos sonhadores, avançou.
Spade e Effie Perine estavam sentados a uma mesinha no Juliu’s Castle on Telegraph Hill. Através da janela além deles, barcas podiam ser vistas portando luzes, indo e vindo, misturando-se e saindo das luzes da cidade, no outro lado da baía.
– ... disse que não tinha ido lá para matá-lo. Talvez não... – dizia Spade. – Queria apenas pressionar um pouco, conseguir mais dinheiro. Mas, quando a luta começou, e quando as mãos dele se fecharam na garganta do irmão, acho que o ressentimento dele cresceu tanto que acabou apertando até Max morrer. Entenda, estou apenas colocando em ordem o que as provas indicam e o que conseguimos tirar da mulher dele, mais o pouco que arrancamos dele próprio.
Effie assentiu com a cabeça.
– Ela é uma esposa boa e leal.
Spade tomou café, encolheu os ombros.
– E daí? Ela agora sabe que Bliss a queria apenas porque era a secretária de Max. Ela sabe que, quando ele tirou a licença de casamento, duas semanas atrás, foi apenas para deixá-la mais ligada ainda a ele, de maneira a convencê-la a tirar as fotocópias que poderiam incriminar Max na trapaça da Graystone Loan. Ela sabe... Ora, ela sabe que não estava apenas ajudando um inocente injustiçado a limpar o seu nome.
Spade tomou mais um gole de café.
– Foi por isso que ele passou na casa do irmão, esta tarde, para ameaçá-lo com San Quentin, outra vez, e extorquir dinheiro. Então aconteceu a briga e ele o matou. Mas saiu com um arranhão no pulso... que não estava programado. Daí, ele tira a gravata do cadáver e troca por outra, porque a ausência de uma gravata iria dar à polícia o que pensar. Mas teve azar justamente aí... As gravatas novas de Max estão guardadas no cabide da frente. Então, ele agarrou a primeira que encontrou... Muito bem. Agora, ele tem que colocá-la no pescoço do homem morto... Mas, espere um pouco... ele tem uma idéia melhor... Que tal despir algumas peças de roupa do cadáver para confundir a polícia? A gravata fora do lugar vai se tornar tão imperceptível quanto a camisa jogada no chão. Ao despi-lo, ele tem mais uma idéia. Vai dar à polícia algo mais com que se preocupar. Assim, desenha um signo místico que deve ter visto em algum lugar no peito do homem morto.
Spade esvaziou a xícara, colocou-a sobre a mesa e continuou:
– Até aí, ele se revela um mestre na arte de confundir a polícia. Uma carta ameaçadora assinada com o signo desenhado no peito de Max. O correio da tarde está sobre a escrivaninha. Qualquer envelope serve, desde que seja datilografado e sem remetente. Mas o da França traz um toque da coisa estrangeira. Então, ele joga fora a carta original e mete no envelope a ameaça. Ele está exagerando agora, você vê? Está colocando tantas coisas fora do lugar que quase somos obrigados a suspeitar justamente do que parece em ordem... as chamadas telefônicas, por exemplo.
Spade dá uma piscada para Effie, que se mantém imóvel e atenta:
– Bem... ele está pronto para as chamadas telefônicas, agora... o seu álibi. Ele escolhe o meu nome, entre os detetives particulares do catálogo, e aplica o truque do sr. Kruger. Mas isso depois de telefonar para a loura Elise e dizer a ela que conseguira remover os obstáculos para o casamento deles. E também que surgira uma oportunidade de negócios em Nova York e que ele precisaria partir imediatamente. Assim, pergunta se ela pode se encontrar com ele dentro de quinze minutos para se casarem. Isso não é apenas um álibi. Theodore precisa que ela esteja absolutamente certa de que ele não matou Max, porque ela sabe que ele não gosta de Max e ele não quer que ela perceba que a estava apenas usando para conseguir provas contra o irmão. Somente Elise poderia, nessa altura, somar dois mais dois e chegar à resposta.
“Com isso providenciado, ele está pronto para partir. E sai do prédio, sem temer ser visto. Apenas uma coisa o preocupa...”
– A gravata verdadeira e o alfinete... – adivinhou Effie.
– Correto! – Spade disse. – A gravata e o alfinete no seu bolso. Ele leva o alfinete porque não está seguro de que a polícia não possa encontrar vestígios de sangue em volta do arranjo de pedras, apesar de tê-lo limpado com todo cuidado. No caminho, ele consegue um jornal... compra um do jornaleiro que encontra na rua... Daí, embrulha a gravata e o alfinete e joga numa lata de lixo da esquina. Parece tudo perfeito. Nenhuma razão para a polícia procurar a gravata. Nenhuma razão para o lixeiro que esvazia a lata abrir um jornal amassado. Mesmo que alguma coisa dê errado... Que diabo!... O assassino jogou aquilo fora, e ele, Theodore, não pode ser o assassino. Isso porque ele vai ter um álibi.
“Então, ele entra no seu carro correndo e dirige até a Prefeitura. Ele sabe que há uma porção de telefones ali, e pode sempre dizer que precisa lavar as mãos... Mas nem vai precisar de uma desculpa dessas. Enquanto esperavam que o juiz terminasse um julgamento, ele sai para fumar um cigarro e pronto... ‘sr. Spade, aqui é Max Bliss e eu estou sendo ameaçado...’.”
Effie Perine assentiu com a cabeça, e então perguntou:
– Por que você acha que ele escolheu um detetive particular, em vez da polícia?
– Questão de segurança. Se o corpo tivesse sido encontrado, nesse meio-tempo, a polícia podia ter sido notificada e iriam rastrear a chamada. Um detetive particular não poderia receber a notícia até que saísse nos jornais.
Ela riu, depois disse:
– E esta foi a sua sorte.
– Sorte? Será? – Ele olhou desanimado para as costas da sua mão esquerda. – Machuquei minha mão para detê-lo e o trabalho apenas durou uma tarde. O mais provável é que, seja lá quem for que vá cuidar da herança, faça um escândalo se eu enviar uma conta, cobrando um dinheiro decente.
Ele levantou a mão para atrair a atenção do garçom.
– Bem, quem sabe tenho sorte de verdade na próxima vez? Quer pegar um filme, ou você tem outra coisa para fazer?
FORAM TANTOS A VIVER
A estampa da gravata do homem tanto podia ser uma laranja como um pôr do sol. Era um sujeito grande, alto e corpulento, sem flacidez. O cabelo preto partido ao meio, achatado de encontro ao couro cabeludo, as bochechas firmes e cheias, as roupas que se ajustavam ao seu corpo com caimento impecável, até mesmo as orelhas rosadas achatadas na lateral da cabeça... cada elemento parecia nada mais do que uma parte colorida de uma mesma superfície lisa. Ele poderia ter de 35 a 45 anos.
Sentou-se ao lado da escrivaninha de Samuel Spade, inclinando-se para a frente sobre a sua bengala de ratã, e disse:
– Não, eu quero que você descubra o que aconteceu a ele. Mas espero que nunca o encontre.
Seus olhos verdes protuberantes fixaram-se solenemente em Spade.
Spade balançou-se para trás na cadeira. O rosto – que ganhara uma moldagem satânica não de todo desagradável graças aos enrugamentos da estrutura óssea do queixo, boca, narinas e sobrancelhas espessas – mostrava um interesse do tipo que se demonstra por educação, tanto quanto sua voz:
– Por quê?
O homem de olhos verdes falou tranqüilamente, com segurança.
– Posso dizer isso para você, Spade. Você possui a reputação que eu preciso num detetive particular. É por isso que estou aqui.
O assentimento de cabeça de Spade em nada o comprometia.
O homem de olhos verdes disse:
– E qualquer preço é justo para mim.
Spade assentiu mais uma vez.
– E para mim também – disse. – Mas preciso saber o que você está querendo comprar. Você quer descobrir o que aconteceu a esse... Eli Haven... Mas não está de fato interessado no paradeiro dele?
O homem de olhos verdes baixou a voz, mas não houve qualquer outra mudança em sua fisionomia.
– De certa maneira, é isso. Por exemplo, se você o encontrar e arranjar as coisas de um jeito que ele permaneça longe para sempre, isso pode valer ainda mais dinheiro para você.
– Quer dizer, se ele não quiser permanecer afastado?
O homem de olhos verdes disse:
– Especialmente nessa circunstância.
Spade sorriu e sacudiu a cabeça:
– Provavelmente, esse dinheiro a mais nunca seria o suficiente... Não, se estou entendendo o que você quer dizer.
Spade levantou as suas mãos compridas, de dedos grossos, dos braços da cadeira e virou-as de palmas para cima:
– Ora, que conversa toda é essa, Colyer?
O rosto de Colyer avermelhou-se um pouco, mas os olhos mantiveram a fixidez fria, sem pestanejar.
– Esse homem tem uma esposa. Eu gosto dela. Eles tiveram uma briga na semana passada e ele explodiu. Se eu puder convencê-la de que ele foi embora para sempre, há uma chance de ela se divorciar dele.
– Vou querer conversar com ela – alertou Spade. – Quem é esse Eli Haven?
– Um ovo podre. Um desocupado. Escreve poemas e coisas assim.
– Mas não pode me dizer nada sobre ele que possa me ajudar?
– Nada que Júlia, a mulher dele, não possa dizer a você. E já que vai falar com ela... – Colyer levantou-se. – Tenho alguns conhecimentos. Talvez eu possa conseguir alguma coisa que sirva para você por meio deles, mais tarde.
Uma mulher de ossatura pequena, nos seus 25 ou 26 anos, abriu a porta do apartamento. Seu vestido azul-claro tinha um belo acabamento de botões prateados. Ela possuía seios fartos, mas era esbelta, com ombros retos, quadris estreitos, e sua postura demonstrava um orgulho que seria tomado por petulância numa pessoa menos graciosa.
Spade perguntou:
– Sra. Haven?
Ela hesitou antes de responder:
– Sim.
– Gene Colyer me mandou procurá-la. Meu nome é Spade. Sou detetive particular. Ele quer que eu encontre o seu marido.
– E o senhor o encontrou?
– Disse a Coyler que precisava conversar com a senhora primeiro.
O sorriso dela desapareceu. Ela estudou a fisionomia do detetive gravemente, traço por traço, depois respondeu:
– Sem dúvida... – E deu um passo atrás, arrastando a porta com ela.
Quando eles se sentaram em cadeiras frente a frente, numa sala pobremente mobiliada que dava para um playground onde as crianças barulhentas brincavam, ela perguntou:
– Gene lhe disse por que quer encontrar Eli?
– Ele disse que se a senhora tivesse certeza de que ele havia ido embora para sempre, talvez escutasse o bom senso.
Ela não replicou.
– Ele já sumiu assim antes?
– Muitas vezes.
– Como ele é?
– Um ótimo homem – disse, sem demonstrar emoção –, quando está sóbrio. E quando bebe se comporta bem, exceto com mulheres e dinheiro.
– Isso deixa a ele uma porção de oportunidades de se mostrar um bom sujeito. Como ele ganha vida?
– Ele é poeta – replicou ela. – Mas ninguém ganha dinheiro com poesia.
– E, então?
– Ora, ele às vezes arranja algum dinheiro. Pôquer, corridas de cavalos... é o que diz. Eu não sei ao certo.
– Há quanto tempo está casada?
– Quatro anos, quase. – Ela riu irônica.
– Sempre morando em San Francisco?
– Não, moramos em Seattle no primeiro ano, depois é que nos mudamos para cá.
– Ele é de Seattle?
Ela sacudiu a cabeça:
– De algum lugar em Delaware.
– Que lugar?
– Não sei.
Spade juntou um pouco as suas espessas sobrancelhas.
– E a senhora, de onde é?
Ela respondeu com meiguice:
– Não é a mim que o senhor está procurando.
– A senhora age como se fosse – resmungou ele. – Bem, conhece os amigos dele?
– Não me pergunte sobre isso.
Spade fez, impaciente, uma careta:
– A senhora deve conhecer alguns deles – insistiu ele.
– Certamente. Há um que se chama Minera, outro com o nome de Louis James e alguém que ele chama de Conny.
– Quem são eles?
– Homens – replicou ela, afavelmente. – Não sei nada sobre eles. Telefonam, às vezes, passam aqui para apanhá-lo, ou eles se encontram pela cidade. Isso é tudo o que eu sei.
– O que eles fazem para ganhar a vida? Todos escrevem poesia?
Ela riu.
– Bem, podem sempre tentar. Um deles, Louis James, é um... trabalha para Gene, eu acho. Mas, honestamente, não sei nada mais sobre eles do que já lhe disse.
– Acha que eles sabem onde o seu marido se encontra?
Ela deu de ombros:
– Se sabem, estão mentindo para mim. Ainda telefonam vez por outra para saber se ele já apareceu.
– E essas mulheres que mencionou?
– Não conheço nenhuma delas.
Spade, olhando mal-humorado para o chão, perguntou:
– O que é que ele fazia para ganhar a vida antes de começar a escrever poesia?
– Um pouco de tudo... vendeu aspiradores de pó, fez biscates, alguma coisa na praia, jogava vinte-e-um, já trabalhou em ferrovias, em fábricas de conservas, serrarias, parque de diversões... trabalhou num jornal, também... fazia de tudo.
– Tinha dinheiro quando partiu?
– Três dólares que me pediu emprestado.
– Disse alguma coisa?
Ela riu.
– Que se eu usasse qualquer que fosse a influência que tivesse com Deus enquanto ele estivesse fora, ele estaria de volta na hora do jantar com uma surpresa para mim.
Spade levantou as sobrancelhas.
– Vocês estavam se dando bem, ultimamente?
– Ah, sim. Tínhamos feito as pazes de nossa última briga dois dias antes.
– Quando ele partiu?
– Quinta-feira à tarde. Às três horas, acho.
– Tem algum retrato dele?
– Tenho. – Ela foi até uma mesa perto de uma das janelas, abriu uma gaveta e virou-se para Spade com um retrato na mão.
Spade olhou para o retrato e viu um rosto magro, com olhos profundos, uma boca sensual e uma testa de linhas duras que terminava numa total desordem de cabelos louros.
Ele pôs o retrato de Haven no bolso e apanhou o chapéu. Dirigiu-se para a porta, mas parou de repente:
– Que tal ele, como poeta? É muito bom?
Ela encolheu os ombros.
– Isso depende da pessoa a quem você perguntar.
– Tem algum livro dele, por aí?
– Não. – Ela riu. – Acha que ele possa estar escondido entre as páginas?
– Nunca se pode adivinhar aonde uma pista pode nos levar. Volto qualquer dia. Pense um pouco e veja se não pode lembrar qualquer coisa. Até mais.
Ele caminhou descendo a Post Street em direção à livraria Mulford, onde pediu um volume das poesias de Haven.
– Sinto muito – disse a moça. – Vendi o último exemplar na semana passada – ela sorriu – ao próprio senhor Haven. Posso encomendar um para o senhor.
– Você o conhece?
– Somente de vender livros para ele.
Spade apertou os lábios e perguntou:
– Quando foi isso? – Ele deu a ela um dos seus cartões de trabalho. – Por favor. É importante.
Ela se dirigiu a uma escrivaninha, virou as páginas de um livro de registro de vendas, de encadernação vermelha, e voltou para onde ele estava, com o livro aberto em sua mão.
– Foi na última quarta-feira – informou ela. – E o entregamos a um senhor chamado Roger Ferris, Pacific Avenue, 1981.
– Muito obrigado – disse Spade.
Lá fora, ele acenou para um táxi e deu ao motorista o endereço de Roger Ferris.
A casa na Pacific Avenue era um conjunto cinzento de quatro pavimentos, por trás de uma faixa estreita de gramado. A sala na qual uma criada de rosto rechonchudo introduziu Spade era ampla e de teto alto.
Spade sentou-se, mas quando a criada se retirou ele se levantou e começou a andar em volta pela sala. Parou diante de uma mesa sobre a qual estavam três livros. Um deles tinha uma sobrecapa cor de salmão, na qual estava impresso em vermelho um esboço de um desenho representando um relâmpago, atingindo o chão entre um homem e uma mulher, e em preto as palavras Luzes Coloridas – Eli Haven.
Spade apanhou o livro e voltou para a cadeira.
Havia uma dedicatória na folha de rosto – caracteres pesados, irregulares, escritos com tinta azul:
Ao bom e velho amigo Buck, que descobriu suas luzes coloridas, em memória daqueles dias. Eli.
Spade folheou as páginas ao acaso e sem maiores cuidados leu um poema:
DECLARAÇÃO
Foram tantos a viver
Como nós vivemos
Para as nossas vidas serem
A prova do nosso viver.
Muitos têm morrido
Como nós morremos
Para as suas mortes serem
A prova da nossa morte.
Ele levantou os olhos do livro quando um homem em trajes de jantar entrou na sala. Não era um homem alto, mas o seu porte ereto o fazia parecer alto, até mesmo diante da altura de Spade, quase um metro e noventa. Tinha olhos azuis brilhantes, um tanto embaçados por seus cinqüenta e tantos anos, uma face queimada pelo sol, nenhuma flacidez muscular, uma testa larga, lisa e cabeleira espessa, curta e quase branca. Havia dignidade em sua compostura e amabilidade.
Ele inclinou a cabeça para o livro que Spade ainda mantinha:
– Gostou?
Spade sorriu e disse:
– Acho que não entendo nada de poesia. – E baixou o livro. – Mas esse foi o motivo que me trouxe aqui, senhor Ferris. Conhece Eli Haven?
– Sim, é claro. Sente-se, senhor Spade. – Ele se sentou numa cadeira perto da de Spade. – Eu o conheço desde garoto. Ele não está em nenhuma encrenca, está?
Spade respondeu:
– Não sei ainda. Estou tentando achá-lo.
– Posso saber por quê? – falou Ferris, com certa hesitação.
– O senhor conhece Gene Colyer?
– Sim. – Ferris hesitou novamente, e então disse: – Bem, isso fica entre nós, confidencialmente. Tenho uma cadeia de cinemas por todo o nordeste da Califórnia, o senhor sabe, e dois anos atrás, quando tive um problema trabalhista, fui aconselhado a procurar Colyer. Disseram que era o homem capaz de resolver o assunto. Foi assim que o conheci.
– Entendo – falou Spade secamente. – Muita gente conhece Colyer pelo mesmo motivo.
– Mas o que ele tem a ver com Eli?
– Quer encontrá-lo. Há quanto tempo não o vê?
– Quinta-feira passada ele esteve aqui.
– A que horas saiu?
– Meia-noite... um pouco mais tarde. Ele chegou mais ou menos às três e meia. Não nos víamos há anos. Eu o persuadi a ficar para jantar. Parecia um bocado deprimido. Eu lhe emprestei algum dinheiro.
– Quanto?
– Cento e cinqüenta. Era tudo que eu tinha em casa.
– Disse para onde estava indo, quando saiu?
Ferris balançou a cabeça negativamente.
– Disse que me telefonaria no dia seguinte.
– E telefonou?
– Não.
– O senhor disse que o conhece desde pequeno?
– Não exatamente. Mas ele trabalhou para mim há quinze ou dezesseis anos, quando eu era dono de um parque de diversões. Tive um sócio no negócio por certo tempo, depois fiquei com tudo sozinho. Eu sempre gostei do garoto.
– Fazia quanto tempo, antes da quinta-feira, que você não o via?
– Só Deus sabe – replicou Ferris. – Eu havia perdido contato fazia anos. Então, quarta-feira, caindo do céu, aquele livro chegou, sem remetente nem nenhuma indicação, apenas aquela dedicatória. Então, no dia seguinte, ele me telefonou. Eu estava morrendo de curiosidade para saber se ele ainda estava vivo e o que andava fazendo da vida. Foi quando ele apareceu naquela tarde e ficamos nove horas falando dos velhos tempos.
– Pode me contar mais sobre o que ele esteve fazendo, durante esse tempo?
– Esteve apenas tentando se arranjar por aí, pegando biscates, aproveitando oportunidades. Ele não se queixou muito. Eu é que tive de obrigá-lo a receber os cento e cinqüenta dólares.
Spade levantou-se:
– Muito obrigado, sr. Ferris. Eu...
Ferris interrompeu-o:
– De nada, e se houver qualquer coisa que eu possa fazer, me telefone.
Spade olhou para o relógio.
– Posso telefonar para o meu escritório?
– Claro que sim. Tem um telefone na próxima sala, à direita.
Spade agradeceu e saiu. Quando retornou, estava enrolando um cigarro. Sua fisionomia estava fechada.
– Alguma notícia? – perguntou Ferris.
– Sim. Colyer telefonou para o escritório suspendendo o trabalho. Disse que o corpo de Haven foi encontrado no meio de um matagal, no outro lado de San Jose, com três ferimentos a bala.– Spade sorriu, acrescentando brandamente: – Bem que ele me disse que podia descobrir alguma coisa por intermédio de seus conhecimentos.
A luz da manhã atravessava as cortinas das janelas do escritório de Spade, projetando dois retângulos gordos e amarelos no chão, emprestando a tudo na sala um reflexo amarelado.
Ele se sentou à sua escrivaninha, olhando meditativamente para um jornal. Não levantou os olhos quando Effie Perine entrou.
– A senhora Haven está aqui – anunciou ela.
Só então o detetive levantou a cabeça. Ele disse:
– Melhor assim. Mande-a entrar.
A sra. Haven entrou apressada. Seu rosto estava pálido e ela tremia, a despeito do casaco de pele. Foi direto a Spade e perguntou:
– Foi Gene quem o matou?
Spade respondeu:
– Eu não sei.
– Eu preciso saber – ela começou a chorar.
Spade tomou as suas mãos.
– Aqui, sente-se. – Ele a conduziu a uma cadeira, e então perguntou: – Colyer não contou a você que me telefonou para suspender o trabalho?
Ela fixou o olhar nele, espantada:
– Ele fez o quê?
– Deixou um recado na noite passada dizendo que o seu marido tinha sido encontrado e que não mais precisava de mim.
Ela baixou a cabeça e suas palavras foram quase inaudíveis:
– Então, foi ele.
Spade deu de ombros.
– E pode ser que somente um homem inocente tivesse a coragem de suspender a investigação numa circunstância como essa. Ou talvez ele seja culpado, mas tenha cérebro e nervos bastantes para...
Ela não estava escutando. Inclinou-se para mais perto dele e apelou, com firmeza:
– Mas, senhor Spade, o senhor vai desistir do caso desse jeito? O senhor não vai deixar as coisas sem explicação, vai?
O toque do telefone cortou a voz dela. Spade pediu licença e apanhou o receptor:
– Sim?... Hum-hum!... E daí? – Ele apertou os lábios. – Eu entro em contato com você. – A seguir, empurrou o telefone para o lado, lentamente, e encarou a senhora Haven. – Colyer está aí fora.
– Ele sabe que eu estou aqui? – perguntou ela aflita.
– Não sei. – Ele se levantou, fingindo que não a estava observando com atenção. – Faz diferença para você?
Ela prendeu o lábio inferior entre os dentes e disse, hesitante:
– Não.
– Ótimo. Vou mandá-lo entrar.
Ela levantou a mão como se fosse protestar, depois deixou-a cair, e seu rosto pálido já recuperara então a compostura.
– Se é isso que o senhor quer fazer... – disse ela.
Spade abriu a porta:
– Olá, Colyer. Vá entrando. Estávamos justamente falando de você.
Colyer assentiu com a cabeça, e entrou no escritório segurando sua bengala de ratã em uma das mãos e o chapéu na outra.
– Que prazer ver você aqui, Júlia. Devia ter telefonado para mim. Eu a teria trazido de volta para a cidade.
– Eu... eu não sabia o que estava fazendo.
Colyer observou-a durante um instante mais longo, depois transferiu o foco dos seus olhos verdes sem expressão para Spade.
– Bem, já conseguiu convencê-la de que não fui eu que fiz isso?
– Ainda não – retrucou Spade. – Eu estava justamente tentando descobrir que motivos haveria para suspeitar de você. Sente-se.
Colyer sentou-se algo precavido. Então, perguntou:
– E aí?
– E aí você chegou.
Colyer balançou a cabeça gravemente:
– Muito bem, Spade – disse ele –, você está contratado novamente para provar à sra. Haven que eu não tive nada a ver com isso.
– Gene – exclamou ela com a voz engasgada, e estendeu as mãos para ele apelando. – Não acho que você seja culpado... não quero pensar que tenha feito isso... mas, receio... – Então, levou as mãos ao rosto e começou a chorar.
Colyer aproximou-se da mulher:
– Calma – disse ele. – Vamos enfrentar essa crise juntos.
Spade saiu do escritório, fechando a porta atrás de si.
Effie Perine parou de datilografar uma carta.
Ele sorriu para ela e disse:
– Algum dia, alguém deve escrever um livro sobre as pessoas. Elas são intrigantes. – A seguir, dirigiu-se à geladeira. – Consiga o número de Wally Kellogg. Telefone para ele e pergunte onde posso encontrar Tom Minera.
Depois, voltou ao escritório.
A sra. Haven tinha parado de chorar.
– Sinto muito – disse ela.
Spade respondeu:
– Tudo bem. – E olhou de soslaio para Colyer. – Eu ainda estou empregado?
– Está. – Colyer pigarreou, limpando a garganta. – Mas se não tem nada de especial para mim agora, é melhor eu levar a senhora Haven para casa.
– Sem problema. Mas há ainda uma coisa... Segundo o Chronicle, você o identificou. Como aconteceu de estar lá?
– Fui até lá quando soube que haviam encontrado um corpo – Colyer replicou, medindo as palavras. – Disse para você que tinha certos amigos bem colocados...
– Certo – assentiu Spade. – Estaremos em contato. – E abriu a porta para eles.
Quando a porta do corredor se fechou atrás deles, Effie Perine anunciou:
– Minera está no Buxton, na Army Street.
– Obrigado – disse Spade, e entrou no escritório para apanhar o chapéu. Ao sair, avisou: – Se eu não estiver de volta dentro de dois meses, diga a alguém para procurar meu corpo por lá.
Spade desceu um corredor malconservado, dirigindo-se a uma porta verde danificada com o número 411. O murmúrio de vozes atravessava a porta, mas ele não conseguiu distinguir nenhuma palavra. O detetive parou escutando e bateu.
Uma voz de homem, obviamente disfarçada, perguntou:
– O que é?
– Quero falar com o Tom. Aqui é Sam Spade.
Uma pausa, e então:
– Tom não está aqui.
Spade agarrou a maçaneta e sacudiu a frágil porta:
– Vamos logo! Abra a porta – grunhiu ele.
Logo a porta foi aberta por um homem magro, de pele escura, com idade em torno dos 25 anos, que tentou fazer os seus olhos maliciosos e escuros parecerem ingênuos, ao dizer:
– Desculpe, não tinha reconhecido sua voz.
A lentidão da sua boca fazia o seu queixo parecer menor do que era. A camisa de listras verdes, aberta no pescoço, não estava limpa. As calças cinzentas estavam bem passadas a ferro.
– A gente precisa mesmo tomar cuidado hoje em dia – falou Spade, com certa solenidade, e atravessou o umbral da porta para uma sala onde dois homens tentavam manter-se alheios à sua chegada.
Um deles apoiou-se no peitoril da janela lixando as unhas. O outro estava inclinado para trás numa cadeira, com os pés na borda de uma mesa e um jornal aberto nas mãos. Eles olharam para Spade ao mesmo tempo e continuaram o que estavam fazendo.
Spade disse alegremente:
– É sempre um prazer conhecer amigos de Tom Minera.
Minera fechou de vez a porta e apresentou-os, constrangido:
– Ah... sim... senhor Spade, estes são o sr. Conrad e o sr. James.
Conrad, o homem na janela, fez um gesto vago de polidez com a lixa de unha na mão. Ele era alguns anos mais velho do que Minera, de altura média, físico robusto, feições grosseiras e olhos lerdos.
James baixou o jornal por um instante para lançar um olhar frio para Spade, avaliando-o. Ele disse:
– Como vai, irmão?
Em seguida, voltou à leitura. Ele era tão robusto quanto Conrad, porém mais alto, e sua face tinha uma sagacidade que faltava aos outros.
– Ah... – disse Spade – ... e ainda por cima amigos do falecido Eli Haven.
O homem na janela feriu um dedo com a lima, soltando um palavrão. Minera umedeceu os lábios, e então falou rapidamente, com uma nota de lamento na voz:
– Mas honestamente, Spade, já não o víamos, nenhum de nós, há uma semana.
Spade pareceu se divertir um pouco com o jeito de falar do homem escuro.
– Por que você acha que o mataram?
– Tudo que sei é o que o jornal diz. Ele estava com os bolsos virados pelo avesso, e não tinha nada além de uma caixa de fósforos com ele. – Entortou as extremidades da boca. – Mas, pelo que estou sabendo, ele não estava levando dinheiro. Pelo menos, não tinha nada com ele, na terça-feira à noite.
Falando sempre com suavidade, Spade disse:
– Soube que ele conseguiu algum na noite de sexta-feira.
Todos ouviram Minera, por trás de Spade, prender a respiração. James disse:
– Bem, se você está dizendo... Não sei nada sobre isso!
– Mas ele trabalha com vocês, não é, rapazes?
Lentamente, James pôs o jornal de lado e retirou os pés de cima da mesa. Pareceu muito interessado na pergunta de Spade, embora de um modo impessoal.
– O que você está querendo dizer com isso?
Spade fingiu surpresa:
– Ora, só estou dizendo que vocês devem trabalhar em alguma coisa, certo?
Minera aproximou-se de Spade pelo lado:
– Ei, escute aqui, Spade – disse ele –, esse cara, o Haven, era apenas um cara que a gente conhecia. Não tivemos nada a ver com a morte dele. Não sabemos nada sobre isso. Você sabe que nós...
Três batidas ritmadas soaram na porta.
Minera e Conrad olharam para James, que assentiu com a cabeça, mas, então, Spade, movendo-se ligeiro, já alcançara a porta e a abriu.
Era Roger Ferris.
Spade e Ferris se encararam por alguns instantes, e então Ferris estendeu a mão e disse:
– Estou muito contente em vê-lo aqui, Spade.
– Vamos, entre – convidou Spade.
– Veja isto, senhor Spade. – A mão de Ferris tremia, ao retirar do bolso um envelope ligeiramente sujo.
O nome de Ferris e o endereço estavam datilografados no envelope. Não havia selo postal nele. Spade tirou de dentro uma tira estreita de papel branco e barato e desdobrou-a. Nela, estava datilografado:
Aconselho a você a vir à sala 411, no Hotel Buxton, na Army Street, às cinco da tarde, para tratar do que aconteceu na noite de quinta-feira.
Não havia assinatura.
Spade disse:
– Falta muito tempo para cinco horas.
– Certo – concordou Ferris enfático. – Vim para cá assim que recebi isso. Foi na quinta à noite que o Eli esteve na minha casa.
Minera estava acotovelando Spade, e perguntou:
– Que negócio é esse?
Spade segurou a tira de papel diante do homem de pele escura, para que ele a lesse. Ele a leu e berrou:
– Honestamente, Spade, não sei nada sobre esse bilhete.
– Alguém sabe? – perguntou Spade.
Conrad respondeu apressadamente:
– Não.
E James perguntou:
– Que bilhete?
Spade observou Ferris alguns instantes com olhar vago, depois disse, como se falasse para si mesmo:
– É claro que Haven estava tentando extorquir dinheiro de você.
O rosto de Ferris ficou vermelho:
– O quê?
– Extorsão. – Spade repetiu com toda paciência: – Dinheiro, chantagem.
– Olhe aqui, Spade – disse Ferris gravemente –, você acha isso mesmo? O que ele usaria para me chantagear?
– Ao bom e velho amigo Buck – citou Spade a dedicatória do poeta morto –, que descobriu suas luzes coloridas, em memória daqueles dias. – Ele encarou Ferris sombriamente, por debaixo das sobrancelhas um pouco levantadas. – Que luzes coloridas? E qual é a gíria do pessoal dos parques de diversões e do circo para chutar um sujeito para fora de um trem em movimento? Luz vermelha. Isso mesmo, luz vermelha. Para quem você deu luz vermelha, Ferris? Alguém que o Haven conhecia?
Minera foi até uma cadeira e sentou-se. Pôs os cotovelos nos joelhos, a cabeça entre as mãos, e começou a fitar o chão, perplexo. Conrad estava ofegante, como se tivesse corrido.
Spade dirigiu-se para Ferris:
– E então?
Ferris enxugou o rosto com um lenço, depois o colocou no bolso e disse, apenas:
– Foi uma extorsão.
– E você o matou.
Os olhos azuis de Ferris cravaram-se nos olhos amarelo-acinzentados de Spade. Eram transparentes e firmes, assim como sua voz:
– Não fui eu – disse ele. – Juro que não fui eu. Deixe-me contar o que aconteceu. Ele me enviou o livro, como lhe disse, e eu soube imediatamente o que aquela dedicatória significava. Assim, no dia seguinte, quando me telefonou dizendo que estava vindo para falar sobre o passado e tentar tomar emprestado algum dinheiro por conta dos velhos tempos, adivinhei o que ele queria dizer novamente. Desci para ir ao banco e saquei dez mil dólares. Você pode checar isso. O banco é o Seaman’s National.
– Vou fazer isso – confirmou Spade.
– No final das contas, não precisei de tanto dinheiro assim. Ele estava numa maré ruim, e acabei convencendo-o a levar apenas cinco mil. Tornei a depositar os outros cinco no banco no dia seguinte. Pode checar.
– Vou fazer isso – repetiu Spade.
– Eu o avisei que não ia aceitar outra tentativa de me tomar dinheiro. Aqueles cinco mil seriam os primeiros e os últimos. Eu o fiz assinar um papel confessando que tinha auxiliado a... nessa coisa que eu fiz... Ele assinou e foi embora por volta da meia-noite. Essa foi a última vez que eu o vi.
Spade deu uns tapinhas no envelope que Ferris lhe dera.
– E quanto a este bilhete?
– Um mensageiro o trouxe ao meio-dia, e eu vim imediatamente. Elis havia me assegurado que não tinha dito nada a ninguém. Mas como eu podia ter certeza? Devia enfrentar isso, fosse o que fosse.
Spade virou-se para os outros, o rosto indecifrável.
– Então?
Minera e Conrad voltaram-se para James, que fez uma impaciente careta e disse:
– Ah, certo, nós mandamos o bilhete. Por que não? A gente era amigo do Eli. Daí, não conseguimos encontrar ele, desde que ele foi dar uma prensa nesse cara. Então, Eli apareceu morto. Ora, a gente resolveu chamar o Ferris para dar umas explicações.
– Vocês sabiam sobre a chantagem?
– Claro. Estávamos juntos quando ele teve a idéia.
– Mas como ele teve essa idéia? – insistiu Spade.
James esticou os dedos da mão esquerda:
– Ora, a gente estava conversando... você sabe, quando um bando de marmanjos se junta fala sobre tudo que cada um viu e fez... Daí, ele veio com essa história doida de ter visto certa vez um cara chutar outro para fora de um trem, quando passavam na beira de um cânion. E ele até disse o nome do sujeito, Buck Ferris. Daí, alguém perguntou: “E como é esse Ferris?”. Eli, então, descreveu o cara e contou que não o via há quinze anos. Bem, então, alguém dá um assovio e diz: “Puxa... aposto que é o Ferris, dono de quase a metade dos cinemas do estado. Aposto que ele pagaria bem para manter essa história em segredo!”.
James respirou fundo, depois continuou:
– Bem, a idéia... como posso dizer... pegou o Eli. Só você vendo. Ele pensou um pouco e então como que deu uma luz nele. Perguntou o primeiro nome desse Ferris do cinema, e quando o outro cara disse: “Roger”, ele se fingiu de desapontado e disse: “Não, não é ele. O primeiro nome dele era Martin.” Bem, a gente riu na cara dele, com a besteira que ele disse, e daí o Eli finalmente admitiu que ia visitar o sujeito. Quando ele me telefonou na quinta-feira, aí pelo meio-dia, e disse que ia dar uma festa no Pogey Heecker’s naquela noite, não foi difícil imaginar o que ele estava comemorando.
– Qual era o nome do sujeito que recebeu a luz vermelha?
– Ele não quis dizer. Fechou-se. Dá para entender por quê.
– Daí... mais nada. Ele não apareceu no Pogey. Tentamos entrar em contato com ele às duas da manhã, mas a mulher dele disse que ele não tinha aparecido em casa. Assim, ficamos por lá, vigiando tudo, até as quatro ou cinco da manhã. Então, decidimos tomar uma rodada e pedir ao Pogey para colocar na conta dele, depois íamos cair fora. Nunca mais o vimos, nem vivo nem morto.
Depois de um instante, Spade disse calmamente:
– Talvez não. Tem certeza de que não encontrou o Eli mais tarde, naquela manhã, nem saiu com ele para dar uma volta, e aproveitou para meter umas balas no cara, tirar os cinco mil dólares, depois jogar o corpo no...?
Duas batidas altas soaram na porta.
A fisionomia de Spade iluminou-se. Ele foi até a porta e abriu-a.
Um jovem entrou. Ele era muito elegante e bem-proporcionado. Usava um sobretudo leve, as mãos metidas nos bolsos. Assim que entrou, deu alguns passos desviando-se para a direita da porta e ficou de pé com as costas viradas para a parede.
Neste instante, outro jovem entrava também. Ele foi para o lado esquerdo. Embora não se parecessem em nada, a elegância comum em ambos, o físico em boa forma e a postura praticamente idêntica – costas para a parede, mãos nos bolsos, olhos frios e brilhantes, estudando os ocupantes da sala – davam a impressão de serem gêmeos.
Então, Gene Colyer entrou. Ele cumprimentou Spade com uma inclinação de cabeça, mas não deu atenção aos demais na sala, apesar de James ter exclamado:
– Olá, Gene.
– Alguma novidade? – Colyer perguntou a Spade.
Spade assentiu com a cabeça:
– Parece que este senhor... – indicou Ferris com o polegar – estava...
– Algum lugar onde podemos conversar?
– Tem uma cozinha aqui atrás.
Por cima do ombro, Colyer disparou:
– Segurem aqui qualquer um que queira pensar em sair – disse, e acompanhou Spade à cozinha.
Ele se sentou na única cadeira da cozinha e fixou sem pestanejar os olhos verdes em Spade, que lhe contava o que havia descoberto.
Quando o detetive particular terminou, o homem de olhos verdes perguntou:
– E o que você acha de tudo isso?
Spade olhou para o outro, pensativo.
– Você é que sabe de mais alguma coisa. Gostaria de saber o que é.
Colyer respondeu:
– Encontraram a arma num riacho a uns quatrocentos metros de onde estava o corpo. É do James... Tem uma marca, de quando a arrancaram da mão dele, certa vez, em Vallejo.
– Interessante – disse Spade.
– Escute, ainda. Um garoto chamado Thurston disse que James o procurou na última quarta-feira e o mandou seguir Haven. Thurston começou na quinta-feira à tarde e seguiu Haven até a casa do Ferris. Dali, telefonou para o James. James disse a ele para dar uma boa olhada no lugar e depois se comunicar para dizer para onde Haven iria, quando saísse. Só que uma dessas mulheres histéricas estranhou o garoto perambulando pela vizinhança e acabou que os tiras ficaram caçando Thurston até mais ou menos às dez horas.
Spade apertou os lábios e fitou, de modo pensativo, o teto.
Os olhos de Colyer estavam sem expressão, o suor tornou o seu rosto redondo brilhante, e a sua voz soou rouca:
– Spade – disse ele. – Eu vou entregar o James.
Spade desviou a atenção do teto para aqueles olhos verdes protuberantes.
– Nunca entreguei ninguém que trabalhasse para mim, antes – disse Colyer. – Mas vou fazer isso agora. Júlia tem de acreditar que não tive nada a ver com isso, se eu entregar o sujeito, mesmo sendo um empregado meu, não acha?
Spade assentiu lentamente com a cabeça:
– Acho que sim.
Colyer de repente desviou os seus olhos e pigarreou. Quando tornou a falar, disse, lacônico:
– Bem, azar o dele.
Minera, James e Conrad estavam sentados quando Spade e Colyer voltaram da cozinha. Ferris andava pela sala. Os dois jovens elegantes não haviam saído do lugar.
Colyer dirigiu-se a James:
– Onde está a sua arma, Louis? – perguntou ele.
James moveu a mão direita algumas polegadas para o lado esquerdo do peito, parou-a e disse:
– Ora, não trouxe.
Com a sua mão enluvada, aberta, Colyer bateu na face esquerda de James, derrubando-o da cadeira.
Recompondo-se, James balbuciou:
– Eu sei que não devia ter feito isso, chefe... – Ele passou a mão no lado da sua face. – Sei que fiz besteira. Mas, quando ele telefonou e disse que não estava gostando nada de ir até o Ferris desarmado, e que ele não tinha uma arma, eu disse: “Tudo bem!”, e mandei a minha para ele.
Colyer disse:
– E mandou o tal Thurston atrás dele também.
– Ora, tudo o que a gente queria era saber se ele ia se sair bem da coisa – continuou James, balbuciando.
– E não podia ter ido lá você mesmo, ou mandado outra pessoa?
– Depois do Thurston ter assustado a vizinhança toda?
Colyer voltou-se para Spade.
– Quer ajuda para entregá-los, ou prefere chamar o carro de polícia?
– Vamos fazer do jeito certo! – replicou Spade e dirigiu-se para o telefone na parede. Quando se voltou, sua fisionomia estava trancada, seu olhar tornou-se vago. Fez um cigarro, acendeu-o e disse para Colyer: – Talvez eu seja idiota o bastante para acreditar que esse seu empregado, o James, disse alguma verdade nessa história toda que contou.
James baixou as suas mãos do rosto machucado e olhou fixamente para Spade com olhos espantados.
Colyer engasgou:
– O que há com você?
– Nada – disse Spade, tranqüilo –, só que acho que você está um pouco ansioso demais para botar a culpa nele. – Spade soprou fumaça do cigarro. – Vejamos, por exemplo, será que ele ia deixar cair o revólver ali, quando a arma tem uma marca que todo mundo conhece?
Colyer protestou:
– Você acha que ele tem cabeça para pensar nisso?
– Se esses rapazes o mataram, se sabiam que estava morto, por que esperar até o corpo ser encontrado e as coisas se agitarem, antes de ir atrás do tal Ferris novamente? Por que eles reviraram os bolsos dele pelo avesso, se foram eles que o seqüestraram? É fazer confusão demais. Isso é coisa de quem matou por alguma razão e quer fazer passar como roubo. – O detetive sacudiu a cabeça. – Você estava ansioso demais para jogar a culpa nele. Por que eles...
– Essa não é a questão agora – disse Colyer. – A questão é... por que você continua dizendo que estou ansioso demais para jogar a culpa nele?
Spade deu de ombros.
– Talvez para se inocentar logo diante da Júlia. Talvez mesmo para se inocentar para a polícia. E depois você tinha um cliente esperando.
Colyer disse:
– O quê?
Spade fez um gesto descuidado com o seu cigarro.
– Ferris – disse ele sem hesitar. – Ele o matou, sem dúvida.
As pálpebras de Colyer estremeceram. Mas ele não chegou a piscar.
Spade disse:
– Primeiro, ele foi, pelo que sabemos, a última pessoa que viu Eli vivo, e isso é sempre uma ótima pista. Segundo, ele é a única pessoa com quem falei antes de o corpo do Eli aparecer que se preocupou em saber o que eu já havia descoberto sobre o caso. O resto de vocês julgava apenas que eu estava atrás de um sujeito desaparecido. Só ele sabia que eu procurava um homem que ele tinha matado, e então precisava se proteger. Ele estava até mesmo com medo de jogar fora aquele livro, porque tinha sido enviado pela livraria e podia ser rastreado, ou algum dos empregados de lá poderia ter lido a dedicatória. Terceiro, ele era o único que fazia de Eli um rapaz simples, meigo, honesto... um garoto sensacional. E tudo pelo mesmo motivo. Quarto, aquela história sobre um chantagista chegando às três da tarde, botando a mão com facilidade em cinco mil dólares e depois batendo papo até a meia-noite... é tão estúpida! Nem que a bebida oferecida pelo Ferris fosse a melhor do mundo! Quinto, a história sobre o papel que Eli assinou é ainda pior, mesmo sendo fácil falsificar um papel desses. Sexto, ele tinha o melhor motivo, entre todas as pessoas envolvidas, para matar Ferris.
Colyer assentiu vagamente:
– Ainda assim...
– Ainda assim, nada – Spade interrompeu-o. – Ele pode até ter feito a jogada de tirar dez mil do banco e devolver cinco, mas essa é fácil. Depois disso, ele conseguiu que o chantagista débil mental fosse à sua casa, segurou-o lá até o criado se recolher, tomou o revólver emprestado dele, obrigou-o a descer as escadas e entrar no carro e o levou para um passeio... Pode já tê-lo levado morto ou pode ter atirado nele no meio daquele matagal. Deve ter tirado tudo dele, para dificultar a identificação, e também para forjar um assalto. Depois, jogou a arma na água e voltou para casa...
Spade interrompeu-se para escutar uma sirene descendo a rua. Então, pela primeira vez desde que começara a falar, olhou para Ferris.
As feições de Ferris estavam lívidas, cadavéricas, mas ele mantinha os olhos firmes.
Spade disse:
– Sabe, Ferris, tenho o palpite de que também vamos descobrir tudo a respeito daquela luz vermelha. Lembra de ter me contado que teve um sócio no seu parque de diversões, por algum tempo, quando Eli ainda trabalhava para você? E disse também que depois ficou com o negócio só para você, lembra? Acho que não vamos ter muito trabalho para encontrar o paradeiro do seu sócio – e saber se ele desapareceu, ou morreu de causa natural, ou se ainda está vivo.
Ferris perdera parte da sua postura ereta. Ele umedeceu os lábios e disse:
– Quero ver o meu advogado. Não quero falar nada antes de conversar com ele.
Spade replicou:
– Por mim, tudo bem. O problema é seu, agora, mas eu não gosto mesmo de chantagistas. Acho que Eli escreveu um bom epitáfio para eles naquele seu livro: “Foram tantos a viver...”
SÓ PODEM ENFORCÁ-LO UMA VEZ
– Meu nome é Ronald Ames – disse Samuel Spade. – Quero falar com o sr. Binnett, o sr. Timothy Binnett.
– Agora o sr. Binnett está descansando, senhor – respondeu o mordomo, hesitando.
– Sabe quando poderei vê-lo? É importante. – Spade pigarreou. – Eu... é... acabo de voltar da Austrália, é sobre algumas das propriedades dele naquele país.
O mordomo girou nos calcanhares enquanto dizia:
– Verei, senhor. – E já estava subindo a escada da frente antes de terminar de falar.
Spade enrolou um cigarro e acendeu.
O mordomo desceu de novo.
– Sinto muito; ele não pode ser perturbado agora, mas o sr. Wallace Binnett, sobrinho do sr. Timothy, irá recebê-lo.
Wallace Binnett era um homem magro e bem-apessoado, mais ou menos da idade de Spade – com 38 anos –, que se levantou sorrindo de uma poltrona forrada de brocado e disse:
– Como vai, sr. Ames? – apontou para outra poltrona e se sentou de novo. – O senhor está vindo da Austrália?
– Cheguei hoje de manhã.
– O senhor tem negócios com o tio Tim?
Spade sorriu e balançou a cabeça.
– Não, mas tenho algumas informações que acho que ele deveria conhecer. Rapidamente.
Wallace Binnett olhou pensativo para o chão, depois para Spade.
– Farei o máximo para persuadi-lo a recebê-lo, sr. Ames, mas, francamente, não sei.
Spade pareceu um pouco surpreso.
– Por quê?
Binnett encolheu os ombros.
– Algumas vezes ele é curioso. Entenda, sua mente parece perfeitamente bem, mas ele tem a impaciência e a excentricidade de um velho com saúde precária e... bom... às vezes ele pode ser difícil.
Spade perguntou lentamente:
– Ele já se recusou a me ver?
– Sim.
Spade se levantou da poltrona. Seu rosto de satã louro estava inexpressivo.
Binnett ergueu rapidamente uma das mãos.
– Espere, espere. Farei o possível para que ele mude de idéia. Talvez se... – Seus olhos escuros ficaram subitamente cautelosos. – O senhor não está tentando vender alguma coisa, está?
– Não.
O brilho cauteloso desapareceu dos olhos de Binnett.
– Bom, então eu acho que posso...
Uma jovem entrou gritando furiosa:
– Wally, aquele velho idiota... – Ela se interrompeu com uma das mãos no peito quando viu Spade.
Spade e Binnett tinham se levantado juntos. Binnett falou suavemente:
– Joyce, este é o sr. Ames. Minha cunhada, Joyce Court.
Spade cumprimentou-a com a cabeça.
Joyce Court emitiu um riso curto, embaraçado, e disse:
– Por favor, desculpe minha entrada intempestiva.
Era uma mulher alta, com olhos azuis e morena, de 24 ou 25 anos, com ombros bem-feitos e corpo forte e esguio. Usava um pijama de cetim azul com pernas folgadas.
Binnett sorriu bem-humorado para ela e perguntou:
– Bom, por que a agitação?
A raiva sombreou de novo seus olhos e ela começou a falar. Depois olhou para Spade e disse:
– Mas nós não deveríamos entediar o sr. Ames com questões domésticas estúpidas. Se... – ela hesitou.
Spade baixou a cabeça de novo.
– Claro – disse ele –, certamente.
– Não vai demorar nem um minuto – prometeu Binnett, e saiu da sala com a jovem.
Spade foi até a porta aberta pela qual os dois haviam desaparecido e, parado junto a ela, prestou atenção. Os passos ficaram inaudíveis. Nada mais podia ser ouvido. Estava imóvel – os olhos amarelo-acinzentados sonhadores – quando ouviu o grito. Era um grito de mulher, agudo e estridente de terror. Spade estava atravessando a porta quando ouviu o tiro. Era um tiro de revólver, amplificado, reverberado pelas paredes e pelos tetos.
A pouco mais de três metros da porta encontrou uma escada e subiu de três em três degraus. Virou para a esquerda. A meio caminho do corredor havia uma mulher caída de costas no chão.
Wallace Binnett estava ajoelhado junto dela, acariciando desesperadamente uma das suas mãos, chamando numa voz baixa, suplicante:
– Querida, Molly, querida!
Joyce Court estava de pé atrás dele, torcendo as mãos enquanto lágrimas desciam pelo rosto.
A mulher no chão se parecia com Joyce Court porém era mais velha, e seu rosto tinha uma dureza que a outra não possuía.
– Ela está morta, ela foi assassinada – disse Wallace Binnett incrédulo, levantando o rosto pálido para Spade. Quando Binnett moveu a cabeça, Spade pôde ver o buraco redondo no vestido castanho da mulher, acima do coração, e a mancha escura que se espalhava rapidamente.
Spade tocou o braço de Joyce Court.
– A polícia, o pronto-socorro, telefone – falou. Enquanto ela corria para a escada, ele se dirigiu a Wallace Binnett: – Quem fez...
Uma voz gemeu frágil atrás de Spade.
Ele se virou rapidamente. Por uma porta aberta pôde ver um velho de pijama branco esparramado numa cama desarrumada. A cabeça, um ombro e um braço pendiam da beira da cama. A outra mão segurava a garganta com força. Ele gemeu de novo e suas pálpebras estremeceram, mas não se abriram.
Spade levantou a cabeça e os ombros do velho, e os colocou sobre os travesseiros. O velho gemeu de novo e tirou a mão da garganta. Estava vermelha com meia dúzia de marcas de estrangulamento. Era um homem magro, com rosto enrugado que provavelmente exagerava sua idade.
Havia um copo d’água numa mesinha ao lado da cama. Spade passou água no rosto do velho e, quando os olhos dele estremeceram de novo, se curvou e rosnou em voz baixa:
– Quem fez isso?
As pálpebras trêmulas subiram o bastante para revelar uma tira fina de olhos cinzentos injetados de sangue. O velho falou dolorosamente, levando de novo uma das mãos à garganta.
– Um homem... ele... – O velho tossiu.
Spade fez uma careta impaciente. Seus lábios quase tocavam a orelha do velho.
– Para onde ele foi? – Sua voz revelava urgência.
A mão magra se mexeu sem força para indicar a parte dos fundos da casa e voltou a cair na cama.
O mordomo e duas empregadas amedrontadas tinham se juntado a Wallace Binnett ao lado da mulher morta no corredor.
– Quem fez isso? – perguntou Spade.
Eles o encararam inexpressivos.
– Alguém cuide do velho – rosnou ele, e seguiu pelo corredor.
No final do corredor havia uma escada dos fundos. Spade desceu dois lances e passou por uma copa, indo até a cozinha. Não viu ninguém. A porta da cozinha estava fechada mas, quando experimentou, viu que não estava trancada. Atravessou um estreito quintal dos fundos até um portão fechado, não trancado. Abriu o portão. Não havia ninguém no beco estreito logo atrás.
Suspirou, fechou o portão e voltou à casa.
Spade estava confortavelmente largado numa funda poltrona de couro numa sala que ocupava a frente do segundo andar da casa de Wallace Binnett. Havia estantes de livros e as luzes estavam acesas. A janela mostrava a escuridão externa fracamente diluída por uma distante lâmpada da rua. Diante de Spade, o sargento-detetive Polhaus – um homem grande, mal barbeado e rubicundo, usando um terno escuro que precisava ser passado – esparramava-se em outra poltrona de couro; o tenente Dundy – mais baixo, compacto, de rosto quadrado – estava de pé no centro da sala, com as pernas afastadas e a cabeça um pouco projetada para a frente. Spade estava dizendo:
– ... e o médico só deixou que eu falasse com o velho durante dois minutos. Nós podemos tentar de novo quando ele tiver descansado um pouco, mas não parece que sabe muita coisa. Ele estava cochilando e acordou com as mãos de alguém na garganta, arrastando-o pela cama. O melhor que conseguiu foi dar uma espiada, com um olho só, no sujeito que o estava sufocando. Diz que é um sujeito grande, com chapéu mole puxado sobre os olhos, moreno, precisando fazer a barba. Parece o Tom. – Spade balançou a cabeça na direção de Polhaus.
O sargento-detetive deu um risinho, mas Dundy o interrompeu:
– Continue.
Spade riu e foi em frente:
– Ele estava praticamente morto quando ouviu a sra. Binnett gritar junto à porta. As mãos se afastaram de sua garganta e ele ouviu o tiro, e logo antes de apagar viu de relance o sujeito grandalhão indo para os fundos da casa e a sra. Binnett caindo no chão do corredor. Disse que nunca tinha visto o sujeito grande.
– De que calibre era a arma? – perguntou Dundy.
– Trinta e oito. Bom, ninguém na casa pode ajudar muito mais. Wallace e a cunhada dele, Joyce, estavam no quarto dela, pelo que dizem, e não viram nada além da morta quando saíram correndo, apesar de acharem ter ouvido alguma coisa que poderia ser alguém correndo escada abaixo; a escada dos fundos.
“O mordomo, o nome dele é Jarboe, estava aqui quando ouviu o grito e o tiro, pelo que diz. Irene Kelly, a empregada, estava no andar de baixo, pelo que diz. A cozinheira, Margaret Finn, estava no quarto dela, terceiro andar nos fundos, e não ouviu nada, pelo que diz. Ela é surda que nem um poste, pelo que todo mundo diz. A porta e o portão dos fundos estavam destrancados, mas deveriam ser mantidos trancados, pelo que todo mundo diz. Ninguém diz que estava na cozinha, ou perto dela, ou no quintal naquela hora. – Spade abriu as mãos num gesto final. – É só isso.”
Dundy balançou a cabeça.
– Não exatamente. Por que você está aqui?
O rosto de Spade se animou.
– Talvez meu cliente a tenha matado. Ele é primo de Wallace, Ira Binnett. Conhece?
Dundy balançou a cabeça. Seus olhos azuis estavam duros e cheios de suspeita.
– É um advogado de San Francisco, respeitável e coisa e tal. Há dois dias me veio com uma história sobre seu tio Timothy, um velho miserável e pão-duro, cheio de dinheiro e bastante estragado pela vida desregrada. Era a ovelha negra da família. Nenhum deles tinha ouvido falar a seu respeito durante anos. Mas há seis ou oito meses ele apareceu em péssimo estado em todos os sentidos, menos financeiramente (parece ter trazido um monte de dinheiro da Austrália), querendo passar os últimos dias com seus únicos parentes vivos, os sobrinhos Wallace e Ira.
“Para os dois, tudo bem. ‘Únicos parentes vivos’ significava ‘únicos herdeiros’ na língua deles. Pouco a pouco os sobrinhos acharam melhor ser um herdeiro só do que dois herdeiros; na verdade era duas vezes melhor. E começaram a lutar pela primazia junto ao velho. Pelo menos foi o que Ira me contou sobre Wallace, mas eu não me surpreenderia se Wallace dissesse o mesmo sobre Ira, ainda que Wallace me pareça o que tem necessidades mais prementes. De qualquer modo, os sobrinhos se desentenderam, e então o tio Tim, que antes estava na casa de Ira, veio para cá. Isso foi há dois meses, e desde então Ira não vê o tio Tim e não pode entrar em contato com ele por telefone ou correio.
“Era para isso que ele queria um detetive particular. Ele não achava que o tio Tim correria algum perigo aqui, ah, não, Ira se esforçou muito para deixar isso claro. Mas achava que talvez o velho estivesse sendo muito pressionado, ou que de algum modo estava sendo enganado, ou pelo menos ouvindo mentiras sobre seu amoroso sobrinho Ira. Ele queria saber o que era. Eu esperei até hoje, quando um navio da Austrália chegou ao porto, e me apresentei como o sr. Ames, com uma informação importante para o tio Tim, sobre suas propriedades por lá. Só queria quinze minutos sozinho com ele. – Spade franziu a testa, pensativo. – Bom, não consegui. Wallace me disse que o velho tinha se recusado a me receber. Não sei.”
A suspeita havia se aprofundado nos olhos frios e azuis.
– E onde está esse tal de Ira Binnett, agora?
Os olhos amarelo-acinzentados de Spade pareceram tão sinceros quanto sua voz.
– Gostaria de saber. Eu telefonei para a casa dele e deixei um recado para que viesse logo, mas temo que...
Alguém bateu duas vezes, vigorosamente, do outro lado da porta da sala. Os três homens se viraram.
– Entre – gritou Dundy.
A porta foi aberta por um policial louro e bronzeado cuja mão esquerda segurava o punho direito de um homem gorducho de quarenta ou 45 anos, vestido com roupas cinza bem cortadas. O policial empurrou o gorducho para a sala.
– Encontrei esse sujeito tentando abrir a porta da cozinha – disse ele.
Spade ergueu os olhos e disse:
– Ah! – Seu tom exprimia satisfação. – Sr. Ira Binnett, tenente Dundy, sargento Polhaus.
Ira Binnett falou rapidamente:
– Sr. Spade, poderia dizer a este homem que...
Dundy se dirigiu ao policial:
– Tudo bem. Bom trabalho. Pode deixá-lo.
O policial moveu a mão vagamente para o quepe e saiu.
Dundy lançou um olhar irritado para Ira Binnet e perguntou incisivo:
– E então?
Binnett olhou para Dundy e em seguida para Spade.
– Alguma coisa acon...?
– É melhor dizer a ele por que estava na porta dos fundos, e não na da frente – disse Spade.
Subitamente Ira Binnett ficou ruborizado. Depois pigarreou, sem jeito.
– Eu... é... eu deveria explicar. Não foi culpa minha, claro, mas quando Jarboe, o mordomo, me telefonou dizendo que o tio Tim queria me ver, disse que deixaria a porta da cozinha destrancada, de modo que Wallace não saberia que eu...
– Para que ele queria vê-lo? – perguntou Dundy.
– Não sei. Jarboe não disse. Disse que era muito importante.
– O senhor não recebeu meu recado? – perguntou Spade.
Os olhos de Ira Binnett se arregalaram.
– Não. O que era? Alguma coisa aconteceu? O que é...
Spade estava indo para a porta.
– Continue – disse a Dundy. – Eu já volto.
Ele fechou a porta cuidadosamente e foi para o terceiro andar.
O mordomo Jarboe estava ajoelhado junto à porta de Timothy Binnett, com um olho no buraco da fechadura. No chão ao lado havia uma bandeja com um ovo quente sobre um suporte, torradas, um bule de café, xícara, talheres e um guardanapo.
– Seu ovo vai esfriar – disse Spade.
Jarboe levantou-se atabalhoadamente, quase virando o bule, com o rosto vermelho e sem graça, e gaguejou:
– Eu... bem... perdão, senhor. Eu queria me certificar de que o sr. Timothy estava acordado antes de levar isto para dentro. – Ele pegou a bandeja. – Não queria perturbar o descanso dele se...
Spade, que tinha chegado à porta, disse:
– Claro, claro – e se curvou para encostar o olho no buraco da fechadura. Quando se levantou, disse num tom quase de reclamação: – Não dá para ver a cama, só uma cadeira e parte da janela.
– Sim, senhor, eu descobri isso – disse rapidamente o mordomo.
Spade gargalhou.
O mordomo tossiu, parecia em vias de dizer alguma coisa, mas não o fez. Hesitou, depois bateu de leve na porta.
– Entre – disse uma voz cansada.
Spade perguntou rapidamente, em voz baixa:
– Onde está a srta. Court?
– No quarto dela, eu acho, senhor, a segunda porta à esquerda.
A voz cansada dentro do quarto disse petulante:
– Ora, entre!
O mordomo abriu a porta e entrou. Pela porta, antes que ele a fechasse, Spade captou um vislumbre de Timothy Binnett apoiado nos travesseiros sobre a cama.
Spade foi até a segunda porta da esquerda e bateu. Ela foi aberta quase imediatamente por Joyce Court, que ficou parada sem sorrir, sem falar.
– Srta. Court – disse ele –, quando entrou na sala onde eu estava com o seu cunhado, a senhorita disse: “Wally, aquele velho idiota...” Estava falando de Timothy?
Ela encarou Spade por um momento, e depois:
– Sim.
– Poderia dizer qual teria sido o resto da frase?
Ela falou lentamente:
– Não sei quem o senhor é ou por que está perguntando, mas não me importo em dizer. Teria sido “mandou chamar Ira”. Jarboe tinha acabado de me contar.
– Obrigado.
Ela fechou a porta antes de ele se virar.
Spade voltou à porta de Timothy Binnett e bateu.
– Quem é agora? – perguntou a voz do velho.
Spade abriu a porta. O velho estava sentado na cama.
– Jarboe estava espiando o senhor pelo buraco da fechadura há alguns minutos. – E voltou à biblioteca.
Ira Binnett, sentado na poltrona que Spade havia ocupado, estava dizendo a Dundy e Polhaus:
– E Wallace foi apanhado na quebra da bolsa, como a maioria de nós, mas parece ter feito malabarismos com a contabilidade para tentar se salvar. Foi expulso da bolsa de valores.
Dundy balançou uma das mãos indicando a sala e a mobília.
– Ambiente cheio de classe para um homem falido.
– A mulher tem algum dinheiro – disse Ira Binnett – e ele sempre viveu acima de suas posses.
Dundy fez uma cara de desprezo para Binnett.
– E o senhor realmente acha que ele e a mulher não vinham se dando bem?
– Eu não acho – respondeu Binnet, taxativo. – Eu sei. Dundy assentiu.
– E o senhor sabe que ele tem uma queda pela cunhada, a tal de Court?
– Eu não sei disso. Mas ouvi uma quantidade de boatos a respeito.
Dandy fez um som gutural, depois perguntou incisivamente:
– O que diz o testamento do velho?
– Não sei. Não sei se ele fez um testamento. – Binnett dirigiu- se a Spade, agora mais sério: – Eu disse tudo que sei, absolutamente tudo.
– Não basta – disse Dundy. Em seguida apontou um polegar para a porta. – Mostre onde ele deve esperar, Tom, e vamos conversar de novo com o viúvo.
O grandalhão Polhaus falou:
– Certo – depois saiu com Ira Binnett e voltou com Wallace Binnett, cujo rosto estava duro e pálido.
– O seu tio fez um testamento? – perguntou Dundy.
– Não sei.
Spade fez a pergunta seguinte, em voz baixa:
– E sua esposa?
A boca de Binnett ficou tensa com um sorriso sem humor. Ele falou deliberadamente:
– Vou dizer algumas coisas que preferia não ter de falar. Minha mulher, propriamente, não tinha dinheiro. Quando eu tive problemas financeiros há algum tempo passei algumas propriedades para ela, para salvá-las. Ela as transformou em dinheiro sem que eu soubesse até algum tempo depois. Ela pagou nossas contas, nossas despesas normais, com esse dinheiro, mas se recusou a me devolvê-lo e garantiu que de modo algum, quer ela vivesse ou morresse, quer ficássemos juntos ou nos divorciássemos, eu jamais colocaria a mão em um centavo. Eu acreditei nela, e ainda acredito.
– O senhor queria o divórcio? – perguntou Dundy.
– Sim.
– Por quê?
– Não era um casamento feliz.
– Joyce Court?
O rosto de Binnett ficou vermelho. Ele falou tenso:
– Eu admiro Joyce Court tremendamente, mas pediria o divórcio de qualquer modo.
– E o senhor tem certeza – disse Spade –, certeza absoluta, de que não conhece ninguém que se ajuste à descrição, feita pelo seu tio, do homem que tentou sufocá-lo?
– Certeza absoluta.
O som da campainha da porta chegou até a sala. Dundy falou num tom azedo:
– Já basta.
Binnett saiu.
– Esse sujeito é completamente errado – disse Polhaus. – E...
De baixo veio o estrondo de uma pistola disparada dentro da casa.
As luzes se apagaram.
Na escuridão os três detetives colidiram entre si, tentando atravessar a porta para o corredor escuro. Spade chegou primeiro à escada. Houve um barulho de passos abaixo, mas nada pôde ser visto até que ele chegasse a uma curva na escada. Então veio luz suficiente da rua, passando pela porta da frente, para mostrar a figura escura de um homem parado, de costas para a porta aberta.
Uma lanterna se acendeu na mão de Dundy – ele estava nos calcanhares de Spade – e lançou um facho de luz branca no rosto do homem. Era Ira Binnett. Ele piscou sob a luz e apontou para alguma coisa no chão à sua frente.
Dundy virou o facho da lanterna para o chão. Jarboe estava caído de rosto para baixo, sangrando por um buraco de bala na nuca.
Spade grunhiu baixinho.
Tom Polhaus vinha descendo a escada atabalhoadamente, com Wallace Binnet logo atrás. A voz apavorada de Joyce Court veio mais de cima:
– Ah, o que aconteceu? Wally, o que aconteceu?
– Onde ficam os fusíveis? – gritou Dundy.
– No porão, perto da porta, embaixo daquela escada – disse Wallace Binnett. – O que foi?
Polhaus passou por Binnett em direção à porta do porão.
Spade soltou um som inarticulado na garganta e, empurrando Wallace Binnett para o lado, subiu a escada correndo. Esbarrou em Joyce Court e seguiu, sem se incomodar com o grito espantado dela. Estava na metade da escada para o terceiro andar quando a pistola disparou lá em cima.
Correu para a porta de Timothy Binnett. Estava aberta. Entrou.
Alguma coisa dura e angulosa o acertou acima da orelha direita, vinda do outro lado do quarto, fazendo com que ele caísse sobre um dos joelhos. Alguma coisa fez barulho ao cair no chão do lado de fora da porta.
As luzes se acenderam.
No chão, no centro do quarto, Timothy Binnett estava caído de costas, sangrando por um ferimento de bala no braço esquerdo. O paletó de seu pijama estava rasgado. Os olhos estavam fechados.
Spade se levantou e pôs a mão na cabeça. Lançou um olhar de desprezo para o velho no chão, para o quarto e para a pistola automática preta caída no corredor. Falou:
– Ande, seu velho bandido. Levante-se e se sente numa poltrona, verei se posso parar com esse sangramento até o médico chegar.
O homem no chão não se mexeu.
Ouviram-se passos no corredor e Dundy entrou, seguido pelos dois primos. O rosto de Dundy estava sombrio e furioso.
– A porta da cozinha estava escancarada – disse ele sem fôlego. – Eles entraram e saíram como...
– Esqueça – disse Spade. – O tio Tim é o nosso homem. – Não prestou atenção ao som perplexo de Wallace Binnett, aos olhares incrédulos nos rostos de Dundy e Ira Binnett. – Ande, levante-se – disse ao velho no chão –, e diga o que foi que o mordomo viu quando espiou pelo buraco da fechadura.
O velho não se mexeu.
– Ele matou o mordomo porque eu lhe disse que o sujeito tinha espiado pelo buraco da fechadura – explicou Spade a Dundy. – Eu espiei também, mas não vi nada, a não ser aquela poltrona e a janela, acho que nós já tínhamos feito barulho suficiente para assustá-lo e fazer com que ele voltasse para a cama. O que vocês acham de revistar aquela poltrona enquanto eu olho a janela? – Ele foi até a janela e começou a examiná-la cuidadosamente. Balançou a cabeça, pôs uma das mãos atrás do corpo e disse: – Dê-me a lanterna.
Dundy colocou a lanterna na sua mão.
Spade levantou a janela e se inclinou para fora, apontando a luz para a parte externa da casa. Em seguida grunhiu e botou a outra mão para fora, cutucando um tijolo um pouco abaixo do parapeito. O tijolo se soltou. Ele o colocou em cima do parapeito e enfiou a mão no buraco. Dali, um de cada vez, retirou um coldre preto de pistola, uma caixa de balas pela metade e um envelope de papel pardo, aberto.
Segurando essas coisas, virou-se para olhar os outros. Joyce Court entrou com uma bacia de água e um rolo de gaze, e se ajoelhou ao lado de Timothy Binnett. Spade pôs o coldre e as balas sobre a mesa e abriu o envelope pardo. Dentro havia duas folhas de papel, cobertas em ambos os lados por uma escrita a lápis. Leu um parágrafo para si mesmo, de repente riu e começou de novo, em voz alta:
– “Eu, Timothy Kieran Binnett, em plena posse de minhas faculdades mentais e físicas, declaro que este é meu último desejo e testamento. Para os meus queridos sobrinhos, Ira Binnett e Wallace Bourke Binnett, como reconhecimento da gentileza amorosa com que me receberam em suas casas e cuidaram de meus anos de declínio, dou e outorgo, igualmente, todas as minhas posses terrenas de quaisquer tipo, quais sejam: minha carcaça e as roupas que visto.
“Outorgo a eles, ainda mais, os gastos de meu enterro e as seguintes lembranças: primeiro, a lembrança da credulidade deles em acreditar que os quinze anos que passei em Sing Sing foram passados na Austrália; segundo, a lembrança de seu otimismo ao supor que aqueles quinze anos me trouxeram grande riqueza, e que se eu vivi à custa deles, se peguei emprestado com eles, se jamais gastei qualquer dinheiro meu, era porque eu era um miserável cuja fortuna eles herdariam; e não porque não tinha dinheiro a não ser o que arranquei dos dois; terceiro, pela esperança deles em achar que eu lhes deixaria qualquer coisa caso tivesse; e por fim, porque sua dolorosa falta de qualquer senso de humor irá impedi-los de ver como tudo isso foi engraçado. Assinado e selado...”
Spade ergueu os olhos para dizer:
– Não há data, mas está assinado Timothy Kieran Binnett, com floreios.
Ira Binnett estava roxo de fúria, o rosto de Wallace parecia fantasmagórico em sua palidez, e todo o seu corpo tremia. Joyce Court tinha parado de cuidar do braço de Timothy Binnett.
O velho se sentou e abriu os olhos. Olhou para os sobrinhos e começou a rir. Em seu riso não havia histeria nem loucura: era um riso sadio, vindo de dentro, e foi diminuindo lentamente.
– Certo – disse Spade –, agora você já se divertiu. Vamos falar sobre as mortes.
– Sobre a primeira eu não sei nada, como já lhe falei – disse o velho –, e esta aqui não é uma morte, uma vez que eu só estou...
Ainda tremendo com violência, Wallace Binnett disse entredentes, com voz dolorosa:
– É mentira. Você matou Molly. Joyce e eu saímos do quarto dela quando ouvimos Molly gritar, ouvimos o tiro e vimos quando ela caiu saindo do seu quarto, e ninguém veio depois.
O velho falou calmamente:
– Bom, vou dizer: foi um acidente. Tinham me dito que havia um sujeito da Austrália que veio me ver para falar de algumas propriedades lá. Sabia que tinha alguma coisa esquisita aí – ele riu –, eu nunca estive lá. Não sabia se os meus caros sobrinhos estavam ficando com suspeitas e jogando verde para cima de mim ou o que, mas sabia que, se Wally não estivesse envolvido, ele certamente tentaria descobrir a meu respeito com o homem da Austrália, e talvez eu perdesse uma das minhas hospedarias gratuitas. – Ele deu um risinho.
“Por isso pensei em fazer contato com Ira para voltar à casa dele se as coisas ficassem ruins aqui, e tentaria me livrar desse australiano. Wally sempre achou que eu sou meio maluco. – O velho deu um riso de desprezo para o sobrinho. – E tinha medo de que me levassem para um hospício antes que eu pudesse fazer um testamento a favor dele, ou que anulassem o testamento se eu fizesse. Vejam bem, ele tem uma reputação muito ruim, com aquele problema da bolsa de valores e coisa e tal, e sabe que nenhum tribunal iria designá-lo para cuidar dos meus negócios se eu ficasse maluco, não enquanto eu tivesse outro sobrinho – Timothy voltou seu riso de desprezo para Ira –, que é um advogado respeitável. Então sabia que, em vez de me colocar numa situação que poderia me levar para um hospício, ele iria enfrentar esse visitante, e eu armei uma representação para Molly, que por acaso era quem estava mais perto. Mas ela levou a sério.
“Eu tinha uma arma e comecei a falar que estava sendo espionado por meus inimigos da Austrália, e que ia descer e atirar naquele sujeito. Mas ela ficou muito agitada e tentou arrancar a arma, e quando dei por mim o negócio disparou, e eu tive de fazer essas marcas no pescoço e inventar a história sobre o homem grande e moreno. – Ele olhou cheio de desprezo para Wallace. – Eu não sabia que ele estava me encobrindo. Por menos que eu o considerasse, nunca pensei que se rebaixaria a ponto de encobrir o assassinato da própria mulher, mesmo não gostando dela, apenas pelo dinheiro.”
– Isso não importa – disse Spade. – E quanto ao mordomo?
– Eu não sei nada sobre o mordomo – respondeu o velho, encarando Spade com os olhos firmes.
– O senhor tinha de matá-lo rapidamente – disse Spade –, antes que ele tivesse tempo de dizer ou fazer qualquer coisa. Por isso desceu pela escada dos fundos, abriu a porta da cozinha para enganar as pessoas, foi até a porta da frente, tocou a campainha, fechou a porta e se escondeu na sombra da porta do porão, embaixo da escada. Quando Jarboe atendeu à porta, o senhor o matou. O buraco estava na nuca. Virou a chave das luzes junto à porta do porão e subiu pela escada dos fundos no escuro e deu um tiro cuidadosamente no próprio braço. Eu cheguei ao andar de cima muito rápido para o senhor; por isso me bateu com a arma, jogou-a pela porta e se esparramou no chão enquanto eu estava me recuperando.
O velho fungou de novo.
– Você só está...
– Pare com isso – disse Spade com paciência. – Não vamos discutir. A primeira morte foi um acidente, tudo bem. A segunda não pode ter sido. E deve ser fácil mostrar que as duas balas, e a que está no seu braço, foram disparadas da mesma arma. Que diferença faz qual dos dois assassinatos pode ser considerado em primeiro grau? Eles só podem enforcá-lo uma vez. – O detetive deu um sorriso agradável. – E vão fazer isso.
UM HOMEM CHAMADO THIN
Papai estava num humor abominável, ainda que eu possa ser considerado um filho indigno por dizer isso. Seu queixo se projetava na minha direção por cima da mesa, de um modo que quase justificava o epíteto de brutal que um dia fora aplicado a ele por um jornalista pouco amigável; e seu bigode parecia cheio de uma cólera própria, ainda que essa fosse apenas a impressão que eu recebia. Seria absurdo presumir uma mudança verdadeira no bigode que, independentemente do humor de papai, sempre se destacava de um modo um tanto irregular.
– Então você continua brincando com essa porcaria absurda?
Sobre a mesa de papai, embaixo de uma de suas mãos, estava uma carta que, pelo que me informou sua forma e cor estranhas, era do editor da The Jongleur, para quem, alguns dias antes, eu tinha mandado um soneto.
– Se está falando das coisas que escrevo – respondi respeitosamente, mas mesmo assim com firmeza; uma vez que meu trigésimo aniversário tinha acontecido há alguns meses, eu me considerava no direito de ter alguma liberdade de objetivo, ainda que esse objetivo fosse desagradável para meu pai. – Se está falando das coisas que escrevo, papai, garanto que não estou brincando, faço isso completamente a sério.
– “Mas por que diab...” – se de vez em quando deturpo as observações de papai ao relatá-las, peço que acredite que não é por que ele seja viciado em incoerências, mas simplesmente porque com freqüencia achava adequado sacrificar as amenidades do discurso ao que ele considerava um vigor de expressão. – “Você precisa escolher logo poesia? Não há uma quantidade de outras coisas para escrever? Ora, Robin, você poderia escrever alguns artigos sérios sobre nosso trabalho, artigos que diriam ao público a verdade a respeito dele, e ao mesmo tempo nos serviria como publicidade.”
– Nós escrevemos aquilo que nos sentimos impelidos a escrever – comecei, pouco esperançoso, uma vez que de modo algum esta era a primeira vez que eu começava assim. – O impulso criativo não deve ser coagido...
– Florence!
Não gosto de dizer que papai berrou, mas os sinônimos mais agradáveis não são totalmente adequados para explicar o volume de som que ele pôs no primeiro nome de nossa estenógrafa, pelo qual insistia em chamá-la.
A srta. Queenan apareceu junto à porta – uma srta. Queenan pouco familiar, que não avançou até a mesa de papai com aquela mistura turbulenta de petulância e segurança que a imprensa, com sua propensão para exagerar, persuadiu nossa geração a esperar; em vez disso, ficou ali parada esperando a atenção de papai.
– Depois disso, Florence, certifique-se de que minha mesa não fique atulhada com a correspondência relativa aos versos do meu filho, dignos da Mamãe Gansa!
– Sim, sr. Thin – respondeu ela numa voz surpreendentemente branda para alguém acostumada a falar com papai como se fizesse parte da família.
– Meu querido pai – tentei protestar quando a srta. Queenan havia se retirado –, eu realmente penso...
– Não venha com querido papai para cima de mim! E não pense! Ninguém que pense pode ser tão...
De nada adiantaria repetir em detalhes as palavras dele.
Na maior parte eram muito pouco razoáveis, e nem mesmo o sentimento profundo de adequação filial poderia impedir que meu rosto mostrasse parte do ressentimento que eu sentia; mas eu o ouvi em silêncio, e quando ele havia sublinhado sua última frase jogando a carta da The Jongleur para mim, recolhi-me para a minha sala.
A carta, que tinha chegado à mesa de papai devido a um descuido do editor em omitir o Jr. do meu nome, referia-se ao soneto que já mencionei – um soneto intitulado “Lágrimas fictícias”. A opinião do editor era que o dístico final, que ele citou na carta, não estava, como disse educadamente, no meu nível de sempre, e pedia que eu o reescrevesse, ajustando-o mais exatamente ao tom das linhas anteriores, uma vez que era, segundo ele, um pouco sério demais.
E brilham ali, com a mesma incongruência
De bolas de Natal numa planta venenosa.
Lembrei a mim mesmo, enquanto pegava o dicionário de rimas atrás do Kriminal Psychologie, de Gross, onde, no interesse da paz, costumava escondê-lo, que eu não havia ficado especialmente satisfeito com aqueles dois versos; mas, depois de tentativas repetidas, não conseguira encontrar outros mais adequados. Agora, enquanto ouvia as sirenes do meio-dia, peguei a cópia a carbono do soneto e decidi dedicar o silêncio da hora do almoço à criação de outra alegoria que expressasse a incongruência num tom mais leve.
Dediquei-me a essa tarefa, submergindo a consciência a tal ponto que, quando ouvi a voz de papai gritando “Robin!” com uma força que praticamente sacudiu as três divisórias intermediárias, levantei-me como se de um sonho, com a suspeita de que o primeiro chamado que tinha ouvido não era o primeiro que papai havia emitido. Essa suspeita foi confirmada quando, pondo de lado o papel e os livros, corri até a presença dele.
– Ocupado demais prestando atenção ao canto dos passarinhos para me ouvir? – Mas esse era um mau humor meramente perfunctório; seus olhos estavam bastante joviais, de modo que até certo ponto eu fiquei preparado para suas palavras seguintes. – A Barnable foi assaltada. Vá até lá.
A loja da Companhia de Jóias Barnable ficava a seis quarteirões de nossos escritórios, e um conveniente bonde me levou até lá antes que a breve ordem de papai tivesse cinco minutos de idade. A loja, pequena, ocupava uma parte do térreo do Edifício Bulwer, no lado norte da O’Farrel Street, entre a Powell e a Stockton Street. Os vizinhos da loja no térreo do mesmo prédio eram, indo para o leste na direção da Stockton Street, um armarinho (em cuja vitrine, a propósito, percebi um intrigante roupão cor de lavanda), uma barbearia e uma tabacaria; e indo para oeste, na direção da Powell Street, da entrada principal e do saguão do Edifício Bulwer, uma farmácia de manipulação, uma chapelaria e um restaurante.
Na porta da joalheria um policial uniformizado tentava impedir que uma multidão curiosa, a maioria presumivelmente na hora do almoço, bloqueasse a calçada ou entrasse na loja. Passando por essa turba, cumprimentei o policial, não que eu o conhecesse pessoalmente, mas porque a experiência tinha me ensinado que um movimento de cabeça amigável costuma afastar as perguntas, e entrei na loja.
O sargento-detetive Hooley e o detetive Strong do Departamento de Polícia estavam na loja. Numa das mãos o primeiro segurava um boné cinza-escuro e uma pequena pistola automática que não parecia pertencer a qualquer das pessoas com quem os detetives estavam falando: o sr. Barnable, o assistente do sr. Barnable e dois homens e uma mulher que eu não conhecia.
– Bom-dia, cavalheiros – falei com os detetives. – Posso participar da conversa?
– Ah, sr. Thin!
O sargento Hooley era um homem grande cuja boca grande nada fazia para moldar suas palavras além de se abrir ligeiramente para emiti-las, de modo que brotavam de forma um tanto desleixada de uma abertura sem forma no rosto espalhafatoso. Agora seu rosto mostrava, como quando eu havia conversado antes com ele, uma expressão enganadoramente zombeteira – como se, com a intenção de perturbar, ele fingisse encontrar em mim, em cada palavra ou ato, alguma coisa divertida. O mesmo impulso discernível no “senhor” enfatizado com que ele invariavelmente precedia meu nome, apesar de chamar papai de Bob, uma familiaridade da qual eu estava bastante disposto a ser poupado.
– Como eu estava dizendo aos rapazes, é exatamente de participação que precisamos. – O sargento Hooley exercitou seu humor bastante pesado. – Algum ladrão desonesto andou roubando a loja. Nós estamos no meio das averiguações, mas o senhor parece um sujeito capaz de guardar segredo, de modo que não me importo em deixá-lo pisar na sujeira, como costumávamos dizer na velha e querida Harvard.
Não sei qual é a peculiaridade na mente do sargento Hooley que torna a freqüência a essa universidade em particular, para ele, uma situação engraçada; tampouco posso perceber por que ele encontra tamanho prazer ao mencionar aquele famoso local de ensino para mim que, como muitas vezes me dei ao trabalho de lhe explicar, estudei numa universidade totalmente diferente.
– O que parece ter acontecido – prosseguiu ele – é que algum malandro entrou sozinho, pôs o sr. Barnable e o ajudante sob a mira da arma, tirou o que havia no cofre e deu no pé, derrubando algumas pessoas que encontrou pelo caminho. Em seguida correu até a Powell Street, saltou num carro, e o que mais o senhor quer saber?
– A que horas isso aconteceu?
– Logo depois das duas horas, sr. Thin; não mais do que dois minutos após, se é que tantos – disse o sr. Barnable, que tinha rodeado os outros para chegar ao meu lado. Seus olhos castanhos estavam redondos de agitação no rosto redondo e castanho, mas não especialmente melancólicos, uma vez que ele possuía seguro contra roubos na companhia em cujo nome eu estava agindo.
– Ele mandou Julius e eu nos deitarmos no chão atrás do balcão, enquanto roubava o cofre, e depois recuou. Eu disse ao Julius para se levantar e ver se ele tinha ido embora, mas nesse momento ele atirou em mim. – O sr. Barnable apontou um dedo largo na direção de um buraco pequeno na parede dos fundos, perto do teto. – Então eu não deixei Julius se levantar até ter certeza de que ele havia ido embora. Depois telefonei para a polícia e para o seu escritório.
– Havia mais alguém na loja, qualquer pessoa além do senhor e de Julius, quando o ladrão entrou?
– Não. Nós não recebíamos ninguém fazia uns quinze minutos.
– O senhor poderia identificar o assaltante se o visse de novo, sr. Barnable?
– Se eu poderia? Sr. Thin, será que Carpentier conheceria Dempsey?
Presumi que esta contrapergunta, que parecia totalmente irrelevante, pretendia ser uma afirmativa.
– Faça a gentileza de descrevê-lo para mim, sr. Barnable.
– Tinha uns quarenta anos e parecia um desordeiro, um sujeito mais ou menos do seu tamanho e com a sua compleição. – Em altura e peso, eu sou mediano, e minha compleição pode ser descrita como média, de modo que nada havia de peculiar no fato de eu ter esses pontos de semelhança com o assaltante; mesmo assim achei que o joalheiro demonstrara pouco tato em apontá-los. – A boca do sujeito parecia virada para dentro, sem muito lábio, e o nariz era comprido e meio chato, e ele tinha uma cicatriz no lado do rosto. O homem tinha realmente uma aparência de desordeiro!
– Poderia descrever a cicatriz com mais detalhes, sr. Barnable?
– Ficava na parte de trás da bochecha, perto da orelha, e descia do boné até o maxilar.
– Que bochecha, sr. Barnable?
– A esquerda – disse ele hesitante, olhando para Julius, seu jovem assistente de feições afiladas. Quando Julius confirmou com a cabeça, o joalheiro repetiu, com certeza: – A esquerda.
– Como ele estava vestido, sr. Barnable?
– Um terno azul e aquele boné que está com um sargento. Não percebi nada mais.
– Os olhos e o cabelo, sr. Barnable?
– Não notei.
– Exatamente o que ele levou, sr. Barnable?
– Ainda não tive tempo de verificar, mas pegou todas as pedras soltas que estavam no cofre; principalmente diamantes. Deve ter apanhado material no valor de no mínimo cinqüenta mil dólares!
Permiti que um leve sorriso aparecesse nos meus lábios enquanto olhava friamente para o joalheiro.
– No caso de não conseguirmos recuperar as pedras, sr. Barnable, o senhor tem consciência de que a companhia de seguros exigirá prova da compra de cada item desaparecido.
Ele ficou inquieto, franzindo sério o rosto redondo.
– Bom, de qualquer modo, ele levou coisa no valor de 25 mil dólares, ainda que esta seja a última coisa que eu diga neste mundo, sr. Thin, é minha palavra de honra como cavalheiro.
– Ele levou alguma coisa além das pedras soltas, sr. Barnable?
– As pedras e algum dinheiro que estava no cofre, cerca de duzentos dólares.
– Será que o senhor poderia fazer uma lista imediatamente, sr. Barnable, com a descrição mais exata possível de cada item desaparecido? Agora, que evidências temos, sargento Hooley, das ações subseqüentes do assaltante?
– Bom, em primeiro lugar, subseqüentemente ele esbarrou na sra. Dolan enquanto estava fugindo. Parece que ela...
– A sra. Dolan tem uma conta aqui – gritou o joalheiro dos fundos da loja, onde ele e Julius tinham ido para fazer o que eu havia pedido.
O sargento Hooley apontou o polegar para a mulher que estava à minha esquerda.
Era uma mulher de pouco mais de quarenta anos, com olhos castanhos bem-humorados num rosto saudavelmente róseo. As roupas, ainda que bem-arrumadas, não eram novas nem elegantes, e toda a sua aparência fazia o adjetivo “capaz” vir à mente, um adjetivo ainda mais justificado pelo frescor da alface e do aipo que se projetavam da sacola de compras em seus braços.
– A sra. Dolan é zeladora de um prédio de apartamentos na Ellis Street – o joalheiro concluiu sua apresentação, enquanto a mulher e eu trocávamos sorrindo um cumprimento de cabeça.
– Obrigado, sr. Barnable. Prossiga, sargento Hooley.
– Obrigado ao senhor, sr. Thin. Parece que ela estava entrando para pagar uma prestação do relógio, e assim que pôs um dos pés dentro da loja, esse assaltante recuou e esbarrou nela, e os dois caíram. O sr. Knight, aqui, viu a confusão, entrou correndo, arrancou o boné e a arma do bandido e o perseguiu até a rua.
Um dos homens presentes deu um riso depreciativo erguendo a mão bronzeada que segurava um par de luvas. Era um homem queimado de sol, de estrutura atlética, alto e com ombros largos, vestido num terno largo de tweed.
– Minha participação não foi tão heróica quanto parece – protestou. – Eu estava saindo do meu carro, pretendia ir até o Orpheum para comprar ingressos, quando vi esta senhora e o homem colidirem. Ao atravessar a calçada para ajudá-la a se levantar, nada estava mais distante da minha mente do que a hipótese de o homem ser um bandido. Quando finalmente vi a arma, ele estava a ponto de atirar em mim. Tive de bater nele, e por sorte consegui fazer isso no momento em que ele puxou o gatilho. Quando me recuperei da surpresa vi que ele havia largado a arma e corrido para a rua, por isso fui atrás. Mas era muito tarde. Ele havia sumido.
– Obrigado, sr. Knight. Agora, sargento Hooley, o senhor disse que o bandido escapou num carro?
– Obrigado, sr. Thin, disse – falou ele com um ar idiota. – O sr. Glenn aqui o viu.
– Eu estava na esquina – disse o sr. Glenn, um homem gorducho com o que poderia ser chamado de um ar de vendedor bem-sucedido.
– Desculpe, sr. Glenn, que esquina?
– Na esquina da Powell com a O’Farrel – disse ele, como se eu devesse saber sem que me falassem. – A esquina nordeste, se quer saber exatamente, perto do edifício. O tal bandido veio subindo a rua e pegou um cupê que estava subindo a Powell Street. Eu não prestei muita atenção a ele. Se ouvi o tiro, achei que era barulho de automóvel. Não teria percebido o homem se ele não estivesse com a cabeça descoberta, mas era o homem que o sr. Barnable descreveu: cicatriz, boca fina, e coisa e tal.
– O senhor sabe qual é a marca ou o número da placa do carro em que ele entrou, sr. Glenn?
– Não, não sei. Era um cupê preto, só sei isso. Acho que veio da direção da Market Street. Um homem estava dirigindo, acho, mas não percebi se era novo ou velho, ou qualquer outra coisa.
– O bandido parecia agitado, sr. Glenn? Ele olhou para trás?
– Não, estava absolutamente frio, nem mesmo parecia ter pressa. Só veio pela rua e entrou no cupê, sem olhar para a direita ou a esquerda.
– Obrigado, sr. Glenn. Agora alguém pode ampliar ou corrigir a descrição que o sr. Barnable fez sobre o bandido?
– O cabelo dele era grisalho – disse o sr. Glenn –, cor de ferro.
A sra. Dolan e o sr. Knight concordaram com isso, e ela acrescentou:
– Acho que ele era mais velho do que o sr. Barnable disse, mais perto dos cinqüenta do que dos quarenta. E os dentes eram marrons e podres na frente.
– Eram mesmo, agora que a senhora falou eu lembro – concordou o sr. Knight.
– Há mais alguma coisa a acrescentar, sr. Hooley?
– Nem uma piscadela. Nossos carros foram atrás do cupê, e eu sei que quando os jornais saírem vamos ter notícia de pessoas que viram coisas, mas o senhor sabe como elas são.
Sabia mesmo. Uma das características mais lamentáveis da investigação criminal é a quantidade de tempo e energia desperdiçados em investigar informações dadas por pessoas que, por pura perversidade, estupidez ou imaginação excessiva insistem em conectar tudo que viram por acaso com qualquer crime que esteja mais proeminente no noticiário do dia.
O sargento Hooley, apesar dos defeitos de seu humor, era um ator excelente: seu rosto era ameno e sincero, e a voz não se afastou um mínimo do casual quando disse:
– A não ser que o sr. Thin tenha mais alguma pergunta, vocês estão dispensados. Eu tenho os seus endereços e posso contatá-los se for preciso.
Eu hesitei, mas o princípio fundamental que meu pai havia instilado em mim durante os dez anos em que trabalhei com ele – a necessidade de nunca considerar nada como garantido – me impeliu a dizer:
– Só um momento. – E a levar o sargento Hooley para longe do alcance da audição dos outros.
– O senhor fez algum outro arranjo, sargento Hooley?
– Que arranjo?
Sorri, percebendo que os detetives de polícia estavam tentando esconder de mim o que sabiam. Minha tentação imediata era, naturalmente, ser recíproco; mas quaisquer que sejam as vantagens de trabalhar independentemente em qualquer operação, a longo prazo um detetive particular faz melhor em colaborar com a polícia do que em competir com ela.
– Realmente – falei – o senhor deve ter uma opinião má a respeito de minha capacidade, se acha que também não percebi o fato de que, se Glenn estava parado onde disse que estava, e se, como diz, o bandido não virou a cabeça, ele não poderia ter visto a cicatriz na bochecha direita do sujeito.
Apesar de seu evidente desapontamento, o sargento Hooley reconheceu a derrota sem se ressentir.
– Eu deveria saber que o senhor veria isso – admitiu ele, esfregando o queixo com um polegar reflexivo. – Bom, eu reconheço que poderemos levá-lo tanto agora quanto mais tarde, a não ser que o senhor tenha alguma outra idéia na cabeça.
Consultando meu relógio, vi que era apenas meio-dia e vinte: até agora, graças aos detetives de polícia terem reunido todas as testemunhas, minha investigação consumira apenas dez ou doze minutos.
– Se Glenn estava parado na Powell Street para nos enganar – sugeri –, não é provável que o bandido não tenha escapado naquela direção? Ocorre-me que há uma barbearia a duas portas daqui, na direção oposta, a direção da Stockton Street. Essa barbearia, que presumo tenha uma porta dando para o edifício Bulwer, como invariavelmente acontece com barbearias em locais semelhantes, pode ter servido como passagem pela qual o bandido poderia ter saído rapidamente para a rua. De qualquer modo, considero essa uma possibilidade que devemos investigar.
– A barbearia! – disse o sargento Hooley ao seu colega. – Espere aqui com essas pessoas até nós voltarmos, Strong. Não vamos demorar.
– Certo – respondeu o detetive Strong.
Na rua encontramos menos curiosos do que antes.
– Você pode entrar, Tim – disse o sargento Hooley ao policial que estava na frente, quando passamos por ele a caminho da barbearia.
A barbearia era aproximadamente do mesmo tamanho da joalheria. Cinco das seis cadeiras estavam ocupadas quando entramos, e a vazia era a mais próxima da vitrina da frente. Atrás dela estava um homem baixo e trigueiro que sorriu para nós e disse: “O próximo”, como é costume entre os barbeiros.
Aproximando-me, entreguei-lhe um dos meus cartões, e depois de examiná-lo o homem me olhou com grande interesse que desbotou imediatamente num desapontamento quase infantil. Esse fenômeno não me era estranho: há um número surpreendente de pessoas que, ao saber que meu nome é Thin2, ficam desapontadas ao não encontrar um esqueleto emaciado ou, o que sem dúvida seria ainda mais agradável, uma figura absolutamente gorda.
– Presumo que o senhor saiba que a loja de Barnable foi roubada, não é?
– Claro! Está ficando terrível o modo como esses garotos assaltam em plena luz do dia!
– Por acaso o senhor ouviu o tiro do revólver?
– Claro! Eu estava barbeando um amigo, o sr. Thorne, um corretor imobiliário. Ele sempre espera por mim, não importa quantos outros barbeiros estejam livres. Ele diz... De qualquer modo, eu ouvi o tiro e fui ali à porta, mas não podia manter o sr. Thorne esperando, por isso não fui até lá.
– O senhor viu alguém que poderia ser o bandido?
– Não. Esses sujeitos são rápidos, e na hora do almoço, quando a rua está cheia de gente, acho que ele não teria muito problema em se perder. É engraçado o modo...
Em vista da necessidade de economizar tempo, arrisquei-me a ser considerado descortês interrompendo os comentários não muito pertinentes do barbeiro.
– Algum homem passou por aqui, entrando da rua para o Edifício Bulwer, imediatamente após o senhor ter ouvido o tiro?
– Não que eu lembre, ainda que muitos homens usem essa barbearia como uma espécie de atalho indo dos escritórios para a rua.
– Mas o senhor não se lembra de ninguém ter passado logo depois de o senhor ouvir o tiro?
– Entrando, não. Saindo, talvez, porque estava praticamente na hora do almoço.
Observei os homens em quem os barbeiros estavam trabalhando nas cinco cadeiras ocupadas. Apenas dois usavam calças azuis. Dos dois, um tinha um bigode escuro entre um nariz e um queixo extremamente destacados; o rosto do outro, rosado por ter acabado de fazer a barba, não era claramente magro nem perceptivelmente gordo, e seu perfil não era notável pela beleza ou pela feiúra. Era um homem de cerca de 35 anos, de cabelos louros e, como vi quando ele riu de algo que o barbeiro tinha dito, com dentes muito atraentes em sua brancura uniforme.
– Quando o homem da terceira cadeira – o que acabei de descrever – entrou?
– Se não estou enganado, logo antes do assalto. Ele estava tirando o colarinho quando ouvi o tiro. Tenho bastante certeza.
– Obrigado – falei, virando-me.
– Uma gafe ousada – murmurou o sargento Hooley no meu ouvido.
Olhei-o incisivamente.
– O senhor se esqueceu, ou melhor, o senhor acha que eu me esqueci, das luvas de Knight.
O sargento Hooley deu um riso curto.
– Na verdade eu esqueci. Devo estar ficando distraído.
– Não vejo o que pode ser ganho com a dissimulação, sargento Hooley. O barbeiro está terminando com o nosso homem. – De fato, o homem se levantou da cadeira enquanto eu falava. – Sugiro que simplesmente peçamos que ele nos acompanhe até a joalheria.
– É justo – concordou o sargento.
Esperamos até que nosso homem tivesse posto o colarinho e a gravata, o paletó azul, o sobretudo cinza e o chapéu cinza. Depois, exibindo seu distintivo, o sargento Hooley se apresentou a ele.
– Sou o sargento Hooley. Quero que o senhor venha até a rua comigo.
– O quê?
A surpresa do homem foi aparentemente real, como deveria ser.
Palavra por palavra, o sargento repetiu a declaração.
– Por que motivo?
Respondi à pergunta do homem com o mínimo de palavras possível.
– O senhor está preso por assaltar a joalheria Barnable.
O homem protestou de modo um tanto truculento, dizendo que seu nome era Brennan, que era bem conhecido em Oakland, que alguém pagaria por esse insulto, e assim por diante. Por um minuto parecia necessário o uso de força para levar nosso prisioneiro até a loja de Barnable, e o sargento Hooley já havia agarrado o pulso do sujeito quando Brennan finalmente se submeteu, concordando em nos acompanhar em silêncio.
O rosto de Glenn ficou branco e um tremor pronunciado perturbou suas pernas quando trouxemos Brennan para a joalheria, onde a sra. Dolan e os senhores Barnable, Julius, Knight e Strong vieram ansiosos agrupar-se ao nosso redor. O policial uniformizado que o sargento chamara de Tim permaneceu junto à porta da rua.
– Acho que o senhor pode fazer o discurso – disse o sargento Hooley, me oferecendo o centro do palco.
– Este é o seu bandido, sr. Barnable? – comecei.
Os olhos castanhos do joalheiro alcançaram uma abertura extraordinária.
– Não, sr. Thin!
Virei-me para o prisioneiro.
– Retire o seu chapéu e o sobretudo, por favor. Sargento Hooley, o senhor está com o boné que o bandido deixou cair? Obrigado, sargento Hooley. – E para o prisioneiro. – Faça o favor de colocar este boné.
– De jeito nenhum! – rugiu ele para mim.
O sargento Hooley estendeu uma das mãos na minha direção.
– Entregue-me. Aqui, Strong, segure esse neném enquanto eu ponho o boné nele.
Brennan cedeu.
– Certo! Certo! Eu ponho!
O boné era claramente grande demais para ele, mas, experimentando, descobri que podia ser ajustado de modo que essa frouxidão não fosse perceptível demais, ao passo que o tamanho servia para alterar os contornos da cabeça.
– Agora, por favor – falei, recuando para olhá-lo –, poderia tirar a dentadura?
Esse pedido precipitou um tumulto extraordinário. O tal de Knight lançou-se sobre o detetive Strong, enquanto Glenn corria para a porta da frente, e Brennan golpeava o sargento Hooley com o punho. Correndo até a porta da frente para ocupar o posto do policial que o tinha deixado para lutar com Glenn, vi que a sra. Dolan havia se refugiado no canto, enquanto Barnable e Julius só evitavam ser apanhados pelo conflito exercendo considerável agilidade.
Finalmente a ordem foi restaurada, com o detetive Strong e o policial algemando Knight e Glenn juntos, enquanto o sargento Hooley, montado em cima de Brennan, erguia a dentadura falsa que havia tirado de sua boca.
Chamando o policial para retomar o posto junto à porta, juntei- me ao sargento Hooley e ajudamos Brennan a se levantar, recolocando o boné em sua cabeça. Sua aparência tornou-se vilanesca: a boca, sem estar preenchida pelos dentes, afundou, afinando e envelhecendo o rosto, fazendo com que o nariz se estendesse frouxo e chato.
– Este é o seu garoto? – perguntou o sargento Hooley, sacudindo o homem para o joalheiro.
– É ele! É ele! É o mesmo sujeito! – O triunfo se misturava à perplexidade no rosto do joalheiro. – Só que não tem cicatriz – acrescentou devagar.
– Acho que vamos encontrar a cicatriz no bolso dele.
Encontramos – sob a forma de um lenço manchado de marrom, ainda úmido e cheirando a álcool. Além do lenço, havia em seus bolsos um chaveiro, dois charutos, alguns fósforos, um canivete, 36 dólares e uma caneta-tinteiro.
O homem se submeteu à nossa busca, com o rosto inexpressivo, até que o sr. Barnable exclamou:
– Mas as pedras? Onde estão as minhas pedras?
Brenan zombou malignamente:
– Espero que você prenda o fôlego até encontrá-las.
– Sr. Strong, poderia fazer a gentileza de revistar os dois homens que o senhor algemou juntos? – pedi.
Ele fez isso, sem encontrar qualquer coisa importante, como eu esperava.
– Obrigado, sr. Strong – falei, indo até o canto em que a sra. Dolan estava parada. – Poderia permitir que eu examinasse sua sacola de compras?
Os olhos castanhos e bem-humorados da sra. Dolan ficaram vazios.
– Poderia por favor permitir que eu examinasse sua sacola de compras? – repeti, estendendo a mão.
Ela deu um risinho abafado na garganta e me entregou a sacola, que levei até um mostruário com tampa de vidro do outro lado da loja. O conteúdo da sacola eram o aipo e a alface que já mencionei, um pacote de bacon fatiado, uma caixa de sabão em flocos e um saco de papel com espinafre, entre cujas folhas verdes brilhavam, quando coloquei sobre o mostruário, as duras facetas de cristal de diamantes soltos. Menos evidentes entre as folhas, havia algumas notas de dinheiro.
Como eu disse, a sra. Dolan era uma mulher que me impressionou como sendo capaz, e agora esse adjetivo parecia especialmente adequado; ela se comportou, devo dizer, como alguém capaz de qualquer coisa. Felizmente o detetive Strong a havia acompanhado até o outro lado da loja; agora estava em condições de pegar seus braços por trás e assim incapacitá-la, a não ser vocalmente – um resto de liberdade que ela aproveitou ao máximo, soltando uma torrente de vitupérios que de modo algum preciso repetir.
Passavam alguns minutos das duas horas quando voltei aos nossos escritórios.
– Bem, e então? – Papai interrompeu o ditado com a srta. Queenan para me desafiar. – Estive esperando que você telefonasse!
– Não foi necessário – foi, não sem alguma satisfação. – A operação foi concluída com sucesso.
– Foi resolvida?
– Sim, senhor. Os ladrões, três homens e uma mulher, estão na cadeia municipal, e os bens roubados foram totalmente recuperados. Na divisão de detetives pudemos identificar dois dos homens: Keely “Leitor”, que parece ter sido o chefe, e um tal de Harry McMeehan, que parece ser bem conhecido da polícia no leste. O outro homem e a mulher, que deram seus nomes como George Glenn e sra. Mary Dolan, sem dúvida serão identificados mais tarde.
Papai mordeu a ponta de um charuto e cuspiu-a para o outro lado da sala.
– O que você acha do nosso pequeno sabujo, Florence? – Ele praticamente se iluminou para ela, como se eu fosse uma criança de três anos que tivesse feito algo precoce.
– Supimpa! – respondeu a srta. Queenan. – Acho que ainda faremos alguma coisa com esse garoto.
– Sente-se, Robin, e conte tudo – pediu meu pai. – A correspondência pode esperar.
– A mulher conseguiu um emprego como zeladora de um pequeno prédio de apartamentos na Ellis Street – expliquei, sem me sentar. – Ela usou isso como referência para abrir uma conta com Barnable, comprando um relógio pelo qual pagava pequenas prestações semanais. Keely, cujos dentes sem dúvida foram arrancados quando cumpriu sua última pena em Walla Walla, retirou os dentes falsos, pintou uma cicatriz no rosto, pôs um boné largo e, ameaçando Barnable e o assistente com um revólver, pegou as pedras e o dinheiro que estavam no cofre.
“Quando saía da loja, colidiu com a sra. Dolan, deixando cair o roubo num saco de espinafre que, com outras compras, estava na sacola da mulher. McMeehan, fingindo vir em auxílio dela, entregou a Keely um chapéu e um sobretudo, e talvez os dentes falsos e um lenço com o qual limpar a cicatriz, e pegou o revólver de Keely.
“Keely, agora sem cicatriz e com a aparência alterada pelo chapéu e os dentes, correu até uma barbearia logo adiante, enquanto McMeehan, depois de dar um tiro dentro da loja para desencorajar a curiosidade de Barnable, largou o revólver junto do boné e fingiu caçar o bandido na direção da Powell Street. Na Powell Street outro cúmplice estava parado para fingir que tinha visto o bandido se afastar de automóvel. Esses três comparsas tentaram nos enganar ainda mais acrescentando detalhes fictícios à descrição do assaltante, feita por Barnable.”
– Perfeito! – Não preciso dizer que a apreciação de papai foi puramente acadêmica; um interesse profissional pela esperteza dos ladrões e não, de modo algum, uma aprovação de seu plano desonesto no todo. – Como você descobriu?
– Aquele homem na esquina não poderia ter visto a cicatriz, a não ser que o bandido tivesse virado a cabeça, coisa que o homem negou. McMeehan usava luvas para evitar deixar impressões no revólver, quando o disparou, e suas mãos são bastante bronzeadas, como se normalmente não usasse luvas. Os dois homens e a mulher contaram histórias que se encaixavam em cada detalhe, coisa que, como o senhor sabe, seria praticamente um milagre no caso de testemunhas honestas. Mas como eu soube que Glenn, o homem da esquina, havia mentido, era óbvio que, se as outras histórias combinavam com a dele, também elas estavam se desviando da verdade.
Achei melhor não mencionar a papai que logo antes de ir à loja de Barnable, e talvez subconscientemente durante a investigação, minha mente estivera ocupada em encontrar outro dístico para substituir o que não havia agradado ao diretor da The Jongleur; como a incongruência, portanto, era o interesse principal de meu cérebro, a sacola de compras da sra. Dolan parecera um esconderijo bastante plausível para os diamantes e o dinheiro.
– Bom tiro! – disse papai. – Descobriu tudo sozinho?
– Eu cooperei com os detetives Hooley e Strong. Tenho certeza de que o subterfúgio foi tão óbvio para eles quanto para mim.
Mas, ao mesmo tempo em que eu falava, a dúvida surgiu em minha mente. Parecia haver uma possibilidade, ainda que pequena, de que os detetives de polícia não tivessem visto a solução com tanta clareza quanto eu. Na hora eu havia presumido que o sargento Hooley estivesse tentando esconder seu conhecimento, mas agora, vendo a situação em retrospecto, suspeitei de que o que o sargento estava escondendo era sua falta de conhecimento.
Mas isso não era importante. O importante era que, com a imagem dos diamantes entre as verduras, eu tinha encontrado uma imagem de incongruência para o meu soneto.
Pedindo licença, fui para a minha sala onde, com o dicionário de rimas, o de sinônimos e a cópia a carbono de novo sobre a mesa, perdi-me no trabalho de vestir minha nova alegoria com palavras adequadas, grato porque o soneto estava sendo escrito mais na forma shakespeariana do que na italiana, de modo que uma mudança na rima dos últimos dois versos não exigiria alterações semelhantes nos outros.
O tempo passou, e logo eu estava recostado na minha cadeira, experimentando aquela satisfação única que papai sentia quando tinha prendido algum criminoso especialmente esquivo. Não pude deixar de sorrir quando li o novo dístico final.
E luzindo ali, brilhavam não menos ineptos
Que diamantes semeados num canteiro de espinafre.
Isso, imaginei, satisfaria ao editor da The Jongleur.
2 Thin: magro (N.E.)
O PRIMEIRO “HOMEM MAGRO”
Hammett escreveu estes dez capítulos em 1930, cerca de três anos antes de escrever e publicar The Thin Man (O homem magro). Ainda que o enredo dos capítulos tenha claras semelhanças com o do romance, este último resultou numa obra totalmente reescrita. O estilo neste primeiro quinto do romance é muito mais próximo do trabalho incisivo que Hammett publicou na revista Black Mask. E Nick e Nora Charles não aparecem aqui.
I
O trem foi para o norte através das montanhas. O homem moreno atravessou os trilhos até a bilheteria e disse:
– Poderia dizer como posso chegar à casa do sr. Wynant? A casa do sr. Walter Irving Wynant.
O homem lá dentro parou de escrever num formulário impresso. Seus olhos ficaram brilhantes e inquisitivos por trás dos óculos sem aro. Sua voz era ansiosa.
– O senhor é jornalista?
– Por quê? – Os olhos do homem moreno eram azuis. Espiaram preguiçosamente o outro. – Faz diferença?
– Então não é – disse o bilheteiro. Estava desapontado. Olhou para um relógio na parede. – Diabo, eu deveria saber. O senhor não teria tempo de chegar até aqui. – Ele pegou o lápis que havia largado.
– Sabe onde fica a casa dele?
– Claro. Lá em cima no morro. – O bilheteiro acenou o lápis vagamente para o oeste. – Todos os motoristas de táxi conhecem, mas se é Wynant que o senhor quer ver, está sem sorte.
– Por quê?
A expressão do bilheteiro se animou. Ele pôs os antebraços no balcão, encolhendo os ombros, e disse:
– Porque o fato é que ele assassinou todo mundo lá e pulou no rio há menos de uma hora.
– Não! – exclamou o homem em voz baixa.
O bilheteiro estalou os lábios.
– Ahã, matou todos os três, a turma toda, partiu em pedaços com um machado e depois amarrou um peso no próprio pescoço e pulou no rio.
O homem moreno perguntou em tom solene:
– Por que ele fez isso?
Uma campainha de telefone começou a tocar atrás do bilheteiro.
– O senhor não o conhece, caso contrário não perguntaria – respondeu enquanto estendia a mão para o telefone. – Mais louco, impossível, e sempre foi. Só é de espantar que não tenha feito isso há muito tempo. Alô – disse ao telefone.
O homem moreno passou pela sala de espera e desceu a escada até a rua. Os automóveis estacionados perto da estação eram aparentemente particulares. Um grande letreiro vermelho e branco no quarteirão seguinte dizia “táxi”. O homem moreno passou por baixo do letreiro e entrou num escritório pequeno e sujo onde um homem gordo e careca estava lendo um jornal.
– Posso conseguir um táxi? – perguntou o homem moreno.
– Estão todos fora, irmão, mas estou esperando que um volte a qualquer minuto. Está com pressa?
– Um pouco.
O careca pousou a cadeira nas quatro pernas e baixou o jornal.
– Aonde quer ir?
– À casa de Wynant.
O careca largou o jornal e se levantou, dizendo animado:
– Bom, eu mesmo estou indo para lá. – E cobriu a careca com um chapéu marrom manchado de suor.
Saíram do escritório e, depois de o homem parar num escritório imobiliário ao lado para gritar “Atenda ao meu telefone, se tocar, Toby”, entraram num sedã escuro, viraram à esquerda no primeiro cruzamento e subiram o morro na direção oeste.
Quando tinham seguido por cerca de trezentos metros, o gordo disse num tom cuja casualidade era negada pelo brilho dos olhos:
– Deve estar uma tremenda bagunça lá em cima, sem brincadeira.
O homem moreno estava acendendo um cigarro.
– O que aconteceu? – perguntou.
O gordo olhou-o de lado, incisivamente.
– Não ouviu dizer?
– Só o que o bilheteiro me contou. – O homem moreno se inclinou para a frente para recolocar o acendedor no buraco do painel. – Que Wynant matou três pessoas com um machado e depois se afogou.
O gordo deu um riso de escárnio.
– Meu Deus, é impossível vencer Lew. Se você torcer o tornozelo ele pode acabar conseguindo uma espinha partida. Wynant matou apenas dois, a sra. Hopkins se livrou, porque foi ela quem telefonou. E ele estrangulou cada um dos dois e depois atirou em si mesmo. Aposto que se o senhor voltar lá agora Lew vai dizer que meia dúzia de pessoas foram mortas, provavelmente com dinamite.
O homem moreno tirou o cigarro da boca.
– Então ele não estava certo sobre a loucura de Wynant?
– Sim – disse o gordo com relutância –, mas ninguém poderia errar com relação a isso.
– Não?
– Não. Santo inferno! Ele não costumava descer para a cidade de pijama no verão passado? E quando as pessoas não gostaram disso e pediram para Ray dizer alguma coisa a ele, ele não ficou furioso e parou de vir totalmente? Não fazia tanta confusão sobre as pessoas passarem por sua propriedade como se tivesse uma mina de ouro lá? Eu não o vi com meus próprios olhos jogar uma pedra num carro que tinha passado por ele levantando poeira uma vez?
O homem moreno deu um sorriso afável.
– Não sei nenhuma das respostas. Eu não o conhecia.
Ao lado de um letreiro contra invasores deixaram a estrada de cascalho em troca de um caminho estreito e irregular, de terra escura, que subia mais íngreme o morro à direita. Mato crescido roçava as laterais do sedã e de vez em quando um galho de árvore esbarrava no teto. A velocidade tornava a viagem mais difícil do que precisaria.
– É aqui – disse o gordo. Ele estava sentado rigidamente atrás do volante, lutando com a irregularidade do caminho. Seus olhos estavam brilhando, cheios de expectativa.
A casa onde chegaram era uma estrutura desconexa, de pedra cinzenta nativa e madeira que precisava de tinta cinza, sob teto baixo em estilo holandês. Havia cinco carros na clareira diante da construção. O homem sentado ao volante de um deles e os dois homens ao seu lado pararam de falar e olharam a aproximação do sedã.
– Aqui estamos – disse o gordo, e saiu. Seus modos haviam se tornado subitamente solenes. Foi solene o cumprimento de cabeça que dirigiu aos três homens.
O homem moreno, deixando o outro lado do sedã, foi em direção à casa. O gordo correu para acompanhá-lo.
Um homem saiu da casa antes que eles a alcançassem. Era um gigante de meia-idade com roupas largas e gastas. Seu cabelo era grisalho, os olhos pequenos, e mascava chiclete. Falou:
– Como vai, Fern – para o gordo e, olhando direto para o moreno, ficou parado no caminho, confrontando-os diretamente.
– Olá, Nick. – Disse Fern, falando ao moreno depois: – Este é o xerife Petersen. – Em seguida estreitou um dos olhos marotamente e se dirigiu de novo ao xerife: – Ele veio para ver Wynant.
O xerife Nick Petersen parou de mascar.
– Qual é seu nome?
– John Guild – disse o moreno.
– Certo. Agora, por que queria ver Wynant?
O homem que tinha dito que seu nome era John Guild sorriu.
– Faz alguma diferença agora que ele está morto?
– O quê? – perguntou o xerife com força considerável.
– Agora que ele está morto – repetiu Guild pacientemente. Em seguida pôs um novo cigarro entre os lábios.
– Como o senhor sabe que ele está morto? – O xerife enfatizou o “o senhor”.
Guild espiou o xerife com olhos azuis curiosos.
– Disseram no povoado – falou descuidadamente. E moveu o cigarro alguns centímetros para indicar o gordo. – Ele disse.
O xerife franziu a testa com ceticismo, mas quando falou foi para emitir um vago “Ah”. Mascou seu chiclete.
– Bom, por que o senhor queria vê-lo?
– Olhe – perguntou Guild –, ele está morto ou não?
– Não que eu saiba.
– Ótimo – disse Guild, com os olhos se animando. – Onde ele está?
– Eu gostaria de saber – disse o xerife, carrancudo. – Agora, o que o senhor quer com ele?
– Eu sou do banco onde ele tem conta. Quero vê-lo para falar de negócios. – Os olhos de Guild ficaram entorpecidos. – São negócios confidenciais.
– E? – A testa franzida do xerife Petersen parecia guardar mais desconforto do que chateação. – Bom, agora nenhum dos negócios dele é confidencial para mim. Eu tenho direito de saber tudo que qualquer pessoa saiba sobre Wynant.
Os olhos de Guild se estreitaram um pouco. Ele soprou fumaça.
– Eu tenho – insistiu o xerife num tom de reclamação. – Ouça, Guild, você não tem o direito de esconder de mim qualquer negócio dele. Ele é um assassino e eu sou responsável pela lei e pela ordem neste condado.
Guild franziu os lábios.
– Quem ele matou?
– Columbia Forrest – disse Petersen, apontando um polegar para a casa. – Ele atirou nela e deu no pé, Deus sabe para onde.
– Ele matou mais alguém?
– Meu Deus – perguntou o xerife irritado –, isso não basta?
– Para mim basta, mas lá embaixo no povoado captaram tudo muito no plural. – Guild olhou pensativo para o xerife. – Ele escapou ileso?
– Até agora – rosnou Petersen –, mas estamos telefonando e dando a descrição de Wynant e do carro. – Ele suspirou, mexeu desconfortavelmente os ombros grandes. – Bom, vamos lá. Qual é o seu negócio com ele? – Mas quando Guild ia responder, o gigante disse: – Espere um minuto. Nós poderíamos entrar, pegar Boyer e Ray e fazer isso de uma vez só.
Deixando o gordo, Guild e o xerife entraram numa sala agradavelmente mobiliada na frente da casa, onde outros dois homens logo se juntaram a eles. Um era quase tão alto quanto o xerife, um homem louro e ossudo com trinta e poucos anos, de queixo e boca enérgicos e olhos sombrios. O outro era mais jovem, mais baixo, com bochechas juvenis e rosadas, olhos escuros e ágeis, cabelo escuro puxado para trás. Quando o xerife os apresentou a Guild, disse que o mais alto era Ray Callaghan, subdelegado, e o outro era o promotor Bruce Boyer. Disse-lhes que John Guild era um sujeito que queria ver Wynant.
O jovial promotor, parado junto de Guild, deu um sorriso agradável e perguntou:
– Qual é o seu negócio, sr. Guild?
– Vim procurar Wynant para falar de sua conta bancária – respondeu devagar o homem moreno.
– Que banco?
– Seaman’s National de San Francisco.
– Sei. Mas sobre o que você queria falar com ele? Quero dizer, o que havia com relação à conta dele que o fez vir até aqui para vê-lo?
– Digamos que um saque a descoberto – disse Guild, deliberadamente evasivo.
Os olhos do promotor ficaram ansiosos.
Guild fez um pequeno gesto com a mão morena que segurava o cigarro.
– Olhe aqui, Boyer – disse ele –, se quer que eu vá até o final com você, você deveria ir até o final comigo.
Boyer olhou para Petersen. O xerife o encarou com olhos descomprometidos. Boyer se virou de novo para Guild.
– Nós não estamos escondendo nada – disse sério. – Não temos nada a esconder.
Guild assentiu.
– Tudo bem. O que aconteceu aqui?
– Wynant pegou a srta. Forrest se preparando para deixá-lo e atirou nela, entrou no carro e foi embora – disse rapidamente. – É só isso.
– Quem é a srta. Forrest?
– A secretária dele.
Guild apertou os lábios e perguntou:
– Só?
O ossudo subdelegado falou:
– Vamos parar com isso, agora! – numa voz tensa e áspera. Seus olhos claros estavam injetados e furiosos.
O xerife rosnou:
– Vá com calma, Ray – evitando os olhos do subdelegado.
O promotor olhou impaciente para o subdelegado. Guild o encarou com seriedade, atento.
O rosto do subdelegado ruborizou-se um pouco e ele se balançou num pé e no outro. Falou de novo com o homem moreno, na mesma voz crocitante:
– Ela está morta e o senhor poderia falar decentemente sobre ela.
Guild mexeu os ombros um pouco.
– Eu não a conhecia – disse friamente. – Estou tentando descobrir o que aconteceu. – Ele encarou por mais um momento o homem ossudo e em seguida desviou o olhar para Boyer. – Por que ela estava indo embora?
– Para se casar. Ela disse isso quando ele a surpreendeu fazendo as malas depois de voltar da cidade e... e os dois tiveram uma briga, e quando ela não quis mudar de idéia ele a matou.
Os olhos azuis de Guild se desviaram para focalizar o rosto ossudo do subdelegado.
– Ela estava morando com Wynant, não estava? – perguntou à queima-roupa.
– Seu filho-da-puta! – gritou rouco o subdelegado, e lançou o punho para o rosto de Guild.
Guild evitou o soco recuando sem pressa. Tinha começado a recuar antes que o punho partisse. Seus olhos observaram gravemente o punho passar.
O grande Petersen se lançou para o subdelegado, envolvendo-o com os braços.
– Pare com isso, Ray – grunhiu. – Por que não se comporta? Não é hora de perder a cabeça.
O subdelegado não lutou contra ele.
– Qual é o problema desse sujeito? – perguntou Guild ao promotor. Não havia ressentimentos em seus modos. – Está apaixonado por ela, ou algo do tipo?
Boyer assentiu furtivamente, depois franziu a testa e balançou a cabeça num gesto de alerta.
– Tudo bem – disse Guild. – Onde vocês conseguiram as informações sobre o que aconteceu?
– Com o casal Hopkins. Eles cuidam deste lugar para Wynant. Estavam na cozinha e ouviram toda a briga. Correram escada acima quando ouviram os tiros, e ele os afastou com a arma e disse que voltaria para matá-los se contassem a alguém antes que ele tivesse uma hora de dianteira, mas eles telefonaram para Ray assim que Wynant foi embora.
Guild jogou a guimba do cigarro na lareira e acendeu um novo. Em seguida pegou um cartão numa caixa marrom tirada do bolso e deu o cartão a Boyer.
JOHN GUILD
DETETIVES ASSOCIADOS, INC.
EDIFÍCIO FROST, SAN FRANCISCO
– Na semana passada Wynant depositou um cheque de dez mil dólares, de Nova York, em sua conta no Seaman’s National Bank – disse Guild. – Ontem o banco ficou sabendo que o cheque tinha sido alterado, de mil para dez mil. O banco perdeu seis mil no negócio.
– Mas no caso de um cheque alterado – disse Boyer – eu creio que...
– Eu sei – concordou Guild –, o banco não é responsável. Teoricamente. Mas em geral a coisa não é tão simples e... bem, nós estamos trabalhando para a companhia de seguros que cobre o Seaman’s, e é bom negócio ir atrás dele e recuperar o máximo possível.
– Fico feliz por ser assim que vocês pensam – disse o promotor com entusiasmo. – Fico enormemente satisfeito por você trabalhar conosco. – Ele estendeu a mão.
– Obrigado – disse Guild enquanto segurava sua mão. – Vamos olhar os Hopkins e o corpo.
II
Columbia Forrest tinha sido uma jovem de membros compridos, suavemente esguia. Seu corpo, mesmo morto e vestido num conjunto esportivo azul, parecia ágil. O cabelo curto era de um castanho levemente ruivo. As feições eram pequenas e regulares, atraentes em sua falta de força. Havia três buracos de bala na têmpora esquerda. Duas se tocavam. A terceira ficava abaixo do olho.
Guild pôs a ponta de seu indicador moreno levemente na borda do buraco mais baixo.
– Calibre 32 – falou. – Ele se certificou: qualquer um dos três teria feito o serviço. – Em seguida virou-se de costas para o cadáver. – Vejamos os Hopkins.
– Eles estão na sala de jantar, eu acho – disse o promotor. Em seguida hesitou, pigarreou. Seu rosto jovem estava preocupado. Tocou o cotovelo de Guild com as costas de uma das mãos e disse: – Vá com calma com o Ray, certo? Ele estava um pouco, ou muito, eu acho, apaixonado por ela, e isso está sendo difícil.
– O subdelegado?
– Sim, Ray Callaham.
– Estará tudo bem se ele não ficar no caminho – disse Guild, descuidadamente. – Que tipo de pessoa é esse xerife?
– Ah, Petersen é boa pessoa.
Guild pareceu considerar criticamente essa declaração. Depois falou:
– Mas não é o que você chamaria de um empedernido caçador de homens?
– Bem, não, não é. Você sabe, um xerife tem outras coisas a fazer na maior parte do tempo, mas se tivesse outra pessoa de bom grado para fazer o serviço, ele não interferiria. – Boyer umedeceu os lábios e se inclinou para perto do homem moreno. Seu rosto estava com uma luminosidade juvenil. – Eu gostaria de que fosse você. Fico feliz por você trabalhar comigo nisso, Guild – disse ele numa voz baixa, séria. – Eu... este é o meu primeiro assassinato, e eu gostaria de... bem... mostrar a eles – ele ruborizou – que não sou tão novo quanto alguns dizem.
– É justo. Vamos ver os Hopkins. Aqui.
O promotor examinou inquietamente o rosto moreno de Guild por um instante, começou a dizer alguma coisa, mudou de idéia e saiu do quarto.
Um homem e uma mulher vieram junto quando ele voltou. O homem tinha provavelmente cinqüenta anos, era de estatura mediana, com cabelos finos e grisalhos acima de um rosto redondo e fleumático. Usava calças marrons presas por suspensórios azuis novos e uma camisa azul desbotada aberta no colarinho. A mulher tinha mais ou menos a mesma idade, era baixa, gorducha e esmeradamente vestida de cinza. Usava óculos de aro de ouro. Seus olhos eram redondos, claros e brilhantes.
O promotor fechou a porta e disse:
– O sr. Guild está trabalhando comigo. Por favor dêem a ele toda a ajuda que puderem.
Os Hopkins assentiram em uníssono.
– Como foi que isso aconteceu? – perguntou Guild, e indicou a jovem morta, com um pequeno movimento da cabeça.
– Eu sempre soube que ele faria alguma coisa assim em algum momento – disse Hopkins, enquanto a mulher falava:
– Foi exatamente aqui neste quarto, e eles estavam falando tão alto que dava para ouvir na casa inteira.
Guild balançou o cigarro na direção deles.
– Um de cada vez. – E falou para o homem: – Como o senhor sabia que ele ia fazer isso?
A mulher respondeu rapidamente:
– Ah, ele era louco de ciúme dela o tempo todo, ela não podia se afastar da vista dele por um minuto, e quando ela voltou da cidade e disse que ia embora para se casar, ele...
De novo Guild usou o cigarro para interrompê-la.
– O que a senhora acha? Ele é realmente maluco?
– Na hora ele estava, senhor – disse ela. – Bom, quando nós entramos aqui correndo depois de ouvirmos o tiro e ele disse para nós ficarmos calados, ele estava, os olhos, o senhor nunca viu uma coisa assim na sua vida, nem a voz também, e ele estava tremendo e se sacudindo como se fosse se despedaçar.
– Não estou falando disso – explicou Guild. – Quero dizer, ele é maluco? – Antes que a mulher pudesse responder, ele fez outra pergunta: – Há quanto tempo vocês trabalham aqui?
– Uns dez meses, não é, Willie? – perguntou ela ao marido.
– É, desde o outono passado.
– Isso mesmo – disse ela a Guild. – Foi em novembro passado.
– Então vocês deviam saber se ele é louco. Ele é?
– Bom, eu vou contar – disse ela devagar, franzindo a testa. – Sem dúvida ele era a pessoa mais estranha de que o senhor já ouviu falar, mas eu acho que os gênios são assim, e eu não queria dizer que ele era totalmente maluco, a não ser por ela. – A mulher olhou para o marido.
Este disse, tolerante:
– Claro, todos os gênios são assim. É... é excêntrico.
– Então vocês acham que ele era um gênio – disse Guild. – Vocês leram as coisas que ele escrevia?
– Não, senhor – disse a sra. Hopkins, se retorcendo –, eu tentei algumas vezes, mas era muito... não consegui entender nada... muito... mas eu não sou uma mulher estudada, e...
– Com quem ela ia se casar? – perguntou Guild.
A sra. Hopkins balançou a cabeça vigorosamente.
– Não sei. Não pesquei o nome, se ela disse. Era ele que estava falando alto demais.
– Por que ela foi à cidade?
A sra. Hopkins balançou a cabeça de novo.
– Também não sei isso. Ela costumava ir a cada duas semanas, e ele sempre ficava louco com isso.
– Ela ia de carro?
– Na maior parte das vezes, sim, mas ontem não, mas ela voltou naquele carro azul novo que está lá fora.
Guild olhou interrogativamente para o promotor, que disse:
– Estamos tentando identificá-lo. Parece que é um carro novo, mas logo deveremos saber de quem é.
Guild assentiu e voltou a atenção para os Hopkins.
– Ontem ela foi a San Francisco de trem? E hoje voltou a que horas nesse carro novo?
– Sim, senhor. Mais ou menos às três horas, acho, e ela começou a fazer as bagagens. – A mulher apontou para as malas de viagem e roupas espalhadas pelo quarto. – E ele entrou e a confusão começou. Eu podia ouvir lá embaixo, e fui até a janela e chamei o Willie, isto é, o sr. Hopkis, e nós ficamos ao pé da escada, ali junto à sala de jantar, ouvindo.
Guild virou-se para esmagar o cigarro numa bandeja de bronze sobre uma mesa.
– Ela geralmente passava a noite lá, quando ia à cidade?
– Quase sempre.
– Vocês devem ter alguma idéia do motivo para ela ir à cidade – insistiu Guild.
– Não, não tenho – disse a mulher, com veemência. – Nós nunca sabíamos, não é, Willie? Ciumento como ele era, acho que se ela estava indo ver algum sujeito não diria a ninguém que pudesse contar a ele, apesar de Deus saber que eu sou capaz de manter a boca fechada como ninguém. Eu vi o...
Guild parou de acender um novo cigarro para perguntar:
– E quanto à correspondência dela? Vocês devem ter visto algumas vezes.
– Não, sr. Gould, nós nunca víamos, e isso é uma coisa engraçada, porque o tempo todo que estamos aqui nós nunca vimos nenhuma correspondência a não ser revistas e nunca soubemos se ela escrevia cartas.
Guild franziu a testa.
– Há quanto tempo ela estava aqui?
– Ela estava aqui quando nós chegamos. Não sei há quanto tempo ela já estava, mas deve ter sido muito tempo.
– Três anos – disse Boyer. – Ela chegou em março, há três anos.
– E quanto aos parentes dela, amigos?
Os Hopkins balançaram a cabeça. Boyer balançou a cabeça.
– Dele?
A sra. Hopkins balançou a cabeça de novo.
– Ele não tinha nenhum. É o que ele sempre dizia, que não tinha um parente nem um amigo no mundo.
– Quem é o advogado dele?
A sra. Hopkins ficou inexpressiva.
– Se ele tinha um, eu não sei, sr. Gould. Talvez o senhor possa descobrir isso nas cartas e nas coisas dele.
– Está bom – disse Guild abruptamente com o cigarro na boca, e abriu a porta para os Hopkins. Eles saíram do quarto.
Ele fechou a porta e, de costas para ela, olhou o cômodo em volta, a figura morta na cama sob um cobertor, as roupas espalhadas aqui e ali, as três malas, e finalmente o centro ensangüentado do tapete azul-claro.
Boyer o observava cheio de expectativa.
Olhando para a mancha de sangue, Guild perguntou:
– Vocês notificaram a polícia de San Francisco?
– Ah, sim, mandamos a descrição dele, e a descrição e o número da placa do carro dele a toda parte: de Los Angeles a Seattle e para o leste até Salt Lake.
– Qual é o número? – Guild pegou um lápis e um envelope no bolso.
Boyer disse, acrescentando:
– É um cupê Buick, do ano passado.
– Como é a aparência do sujeito?
– Eu nunca o vi, mas é muito alto, bem mais de um metro e oitenta, e magro. Não pesa mais de sessenta quilos, pelo que dizem. Você sabe, ele é tuberculoso: foi por isso que veio para cá. Tem uns 45 anos, é queimado de sol, mas macilento, com olhos castanhos, cabelos castanhos bem escuros e costeletas. Ele tem costeletas, talvez medindo uns doze a quinze centímetros, grossas e desgrenhadas. Há um bocado de fotos no quarto dele. Você pode vê-las. Estava usando um terno de tweed cinza, largo, chapéu cinza mole e sapatos marrons pesados. Os ombros são altos e retos, e ele caminha pisando nos calcanhares, com passos longos. Não fuma nem bebe e tem o hábito de falar sozinho.
Guild afastou o lápis e o envelope.
– O pessoal das impressões digitais já examinou aqui?
– Não, eu...
– Isso poderia ajudar, para o caso de ele ser apanhado em algum lugar e nós termos dúvidas. Acho que podemos conseguir amostras da letra dele. De qualquer modo, poderemos consegui-las no banco. Vamos tentar...
Alguém bateu na porta.
– Entre – disse Boyer.
A porta se abriu e surgiu a cabeça de um homem. Ele disse:
– Querem falar com o senhor no telefone.
O promotor seguiu o homem até o andar de baixo. Durante sua ausência, Guild fumou e olhou gravemente o quarto em volta.
O promotor voltou dizendo:
– O carro pertence a Charles Fremont, mora na Guerrero Street, em San Francisco.
– Que número? – Guild pegou o lápis e o envelope de novo. Boyer lhe disse o número e ele anotou. – Acho que vou voltar agora e vê-lo.
O promotor olhou para o relógio.
– Estou pensando se eu não conseguiria ir com você.
Guild franziu os lábios.
– Acho que não deveria. Um de nós precisa ficar aqui para examinar as coisas dele, juntar as pontas soltas. Eu não vi mais ninguém em quem pudéssemos confiar para isso.
Apesar de parecer desapontado, Boyer falou prontamente:
– Certo. Você vai manter contato comigo?
– Claro. Dê-me aquele cartão que eu lhe entreguei, vou colocar nele o endereço da minha casa e o número do telefone. – Os olhos de Guild ficaram modorrentos. – O que você acha de eu ir no carro de Fremont?
O promotor franziu a testa.
– Não sei – disse devagar. – Isso poderia... ah, claro, se você quiser. Telefone para mim logo que se encontrar com ele. Vai me manter a par?
– Hum-hum.
III
Uma jovem ruiva, vestida de branco, abriu a porta.
– Quero falar com o sr. Charles Fremont – disse Guild.
– Sim, senhor – disse a garota amavelmente, numa voz gutural e ressonante. – Entre.
Ela o levou a uma sala de estar, mobiliada com conforto, à direita da entrada.
– Sente-se. Vou chamar o meu irmão. – A jovem passou por outra porta e sua voz pôde ser ouvida cantarolando: – Charley, um cavalheiro quer vê-lo.
No andar de cima uma voz dura, masculina, respondeu:
– Já vou descer.
A jovem ruiva voltou à sala onde Guild estava.
– Ele vai descer num minuto – falou.
Guild agradeceu.
– Pode se sentar – disse ela, sentando na extremidade de um sofá. Suas pernas eram notavelmente bonitas.
Ele se sentou numa cadeira diante dela, do outro lado da sala, mas imediatamente se levantou de novo para oferecer um cigarro e estender o isqueiro para o dela.
– Eu queria ver o seu irmão para perguntar se ele conhece uma tal de srta. Columbia Forrest.
A jovem riu.
– Provavelmente conhece. Ela... eles vão se casar amanhã.
– Bom, isso... – Guild parou quando ouviu passos correndo pela escada, vindos do segundo andar.
Um homem entrou na sala. Tinha uns 35 anos, estatura um pouco acima da média, boa constituição, vestido um tanto alegremente de cinza com camisa lavanda, gravata e lenço se projetando do bolso. Seu rosto era magro e bem-apessoado, com um ar sagaz e lábios finos.
– Este é o meu irmão – disse a jovem.
Guild se levantou.
– Estou tentando obter algumas informações sobre a srta. Columbia Forrest – disse ele, e deu um de seus cartões a Charles Fremont.
A curiosidade que viera ao rosto de Fremont com as palavras de Guild se tornaram um espanto gélido quando leu o cartão de Guild.
– O quê...?
Guild estava dizendo:
– Houve um problema lá em Hell Bend.
Os olhos de Fremont se arregalaram no rosto que ia empalidecendo.
– Wynant...?
Guild assentiu.
– Ele atirou na srta. Forrest esta tarde.
Os Fremont se encararam com rostos vazios, horrorizados. Ela falou por entre os dedos de uma das mãos, tremendo enquanto gaguejava:
– Eu d-d-disse a você, Charley!
Charles Fremont virou-se violentamente para Guild.
– Como ela está! Diga!
– Ela está morta – disse o homem moreno.
Fremont soluçou e se sentou com o rosto apoiado nas mãos. Sua irmã se ajoelhou ao lado, envolvendo-o com os braços. Guild ficou parado, olhando.
Por fim Fremont levantou a cabeça.
– E Wynant? – perguntou.
– Desapareceu.
Fremont soltou o ar num gemido baixo. Sentou-se empertigado, dando um tapinha na mão da irmã, livrando-se dos braços dela.
– Vou para lá agora – falou, levantando-se.
Guild tinha terminado de acender um cigarro. Disse:
– Tudo bem, mas você ajudaria mais contando algumas coisas antes de ir.
– Tudo que eu puder – prometeu Fremont imediatamente.
– Vocês iam se casar amanhã?
– Sim. Ela veio aqui ontem à noite e ficou conosco, e eu a convenci. Íamos sair daqui amanhã cedo e iríamos de carro a Portland, onde não teríamos de esperar durante dias pela licença, e depois subiríamos a Banff. Eu acabei de telegrafar para o hotel de lá, fazendo as reservas. Então ela apanhou o carro, o novo no qual nós iríamos, para ir a Hell Bend e pegar suas coisas, mas... mas nós nunca pensamos que ele faria alguma coisa assim.
– Você o conhecia bem?
– Não, eu só o vi uma vez, há cerca de três semanas, quando ele veio me procurar.
– Por que ele veio procurá-lo?
– Para discutir comigo por causa dela, dizer para eu ficar longe dela.
Guild parecia em vias de sorrir.
– O que você disse?
Fremont apertou os lábios finos contra os dentes.
– Eu pareço ter dito alguma coisa além de vá para o inferno?
O homem moreno assentiu.
– Certo. O que você sabe sobre ele?
– Nada.
Guild franziu a testa.
– Você deve saber alguma coisa. Ela deve ter falado dele.
A raiva saiu do rosto magro de Fremont, deixando-o triste.
– Eu não gostava de que ela falasse, por isso ela não falava.
– Por quê?
– Meu Deus! Ela estava morando lá. Eu era louco por ela. Eu sabia que ele também era. Que diabo! – Fremont mordeu o lábio. – Você acha que eu gostava de falar disso?
Guild olhou pensativo para ele durante um momento e depois se dirigiu à jovem:
– O que ela contou a você?
– Nada. Ela não gostava de falar sobre ele, assim como Charley não gostava de que ela falasse.
Guild juntou as sobrancelhas.
– Então, por que ela ficava com ele?
– Ela ia partir – disse Fremont dolorosamente. – Foi por isso que ele a matou.
O homem moreno pôs as mãos nos bolsos, foi até a janela e voltou, apertando os olhos um pouco devido à fumaça que subia do cigarro.
– Você não sabe aonde ele poderia ter ido? Com quem ele pode ter alguma ligação? Como poderíamos encontrá-lo?
Fremont balançou a cabeça.
– Você não acha que eu diria, se soubesse? – perguntou amargamente.
Guild não respondeu. Perguntou:
– Onde está a família dela?
– Não sei. Acho que o pai dela ainda está vivo em algum lugar do Texas. Sei que é filha única e que a mãe morreu.
– Há quanto tempo você a conhece?
– Quatro... quase cinco meses.
– Onde a conheceu?
– Num bar da Powell Street, dois quarteirões depois da Fairmont. Ela estava numa festa com umas pessoas que eu conheço: Helen Robier – acho que ela mora na Cathedral – e um sujeito chamado MacWilliams.
Guild foi de novo até a janela e voltou.
– Eu não gosto disso – falou em voz alta, mas aparentemente não para os Fremont. – Não faz sentido. É... Olhe aqui. – Ele parou na frente dos outros e pegou umas fotografias no bolso. – Estas fotos dela são boas? – Ele as abriu em leque. – Eu só a vi morta.
Os Fremont se entreolharam e assentiram juntos.
– Especialmente a do meio – disse a jovem. – Você tem uma dessas, Charley.
Guild guardou as fotos da garota morta e mostrou duas de um homem barbudo.
– São boas fotos dele?
– Eu nunca o vi – disse a garota. Mas seu irmão assentiu e disse:
– Parecem com ele.
Guild pareceu insatisfeito com as respostas. Pôs as fotos de novo no bolso.
– Então não é isso – falou –, mas há alguma coisa esquisita em algum lugar. – Olhou para o chão e ergueu a cabeça rapidamente. – Vocês não estão armando algum tipo de jogo para cima de mim, estão?
– Não seja idiota – disse Charles Fremont.
– Certo, mas há alguma coisa errada em algum lugar.
– O quê? – perguntou a jovem. – Talvez se o senhor disser o que acha que está errado...
Guild balançou a cabeça.
– Se eu soubesse o que está errado, poderia descobrir sozinho o que tornou isso errado. Não importa, vou descobrir. Quero o nome e o endereço de todos os amigos dela, das pessoas que ela conhecia, pelo que vocês sabem.
– Eu lhe disse que Helen Robier mora, tenho quase certeza, na Cathedral – disse Fremont. – MacWilliams trabalha no Edifício Russ, numa corretora de ações, eu acho. É só isso que sei sobre ele, e não creio que Columbia o conheça... – engoliu em seco –, o conhecia muito bem. São os únicos de que eu sei.
– Não creio que sejam os únicos de que você saiba.
– Por favor, sr. Guild – disse a jovem, vindo para o seu lado –, não seja injusto com Charley. Ele está tentando ajudar, nós dois estamos, mas... – Ela bateu o pé e exclamou furiosa, lacrimosa: – O senhor não pode ter um pouco de consideração por ele?
– Ah, tudo bem – disse Guild, e pegou o chapéu. – Eu trouxe o seu carro. Está lá na frente agora.
– Obrigado, Guild.
Alguma coisa bateu numa das janelas da frente, derrubando no chão um triângulo de vidro do canto esquerdo inferior. Charles Fremont, virado para a janela, deu um grito inarticulado e se jogou no chão. Um revólver foi disparado pelo buraco no vidro. A bala passou sobre a cabeça de Fremont e fez um pequeno buraco na parede de reboco verde.
Guild estava indo em direção à porta da rua quando o buraco de bala apareceu na parede. Uma pistola preta surgiu em sua mão. Do lado de fora, aquele quarteirão da Guerrero Street estava deserto. Guild foi rapidamente, ainda que com muitos olhares para trás, até a esquina mais próxima. Dali começou a voltar lentamente, parando para observar os portais escuros e as entradas dos porões sobre as altas escadas na frente das casas.
Charles Fremont veio juntar-se a ele. Janelas estavam sendo levantadas ao longo da rua, e pessoas olhavam para fora.
– Entre – disse Guild sumariamente a Fremont. – É em você que ele estava atirando. Entre e telefone para a polícia.
– Elsa está fazendo isso agora. Ele raspou as costeletas, Guild.
– Esta seria a primeira coisa que ele faria. Volte para a casa.
– Não – disse Fremont, e foi com Guild enquanto ele dava uma busca no quarteirão.
Os dois ainda estavam fazendo isso quando a polícia chegou. Não encontraram Wynant. Depois de uma esquina, a dois quarteirões da casa dos Fremont, encontraram um cupê Buick de um ano, com o número da placa que Boyer tinha dado a Guild; o carro de Wynant.
IV
Depois do jantar, que comeu sozinho no Solari’s, na Maiden Lane, Guild foi para um apartamento na Hyde Street. Foi recebido por uma jovem cujo rosto pálido e cansado se iluminou enquanto dizia:
– Olá, John. Nós estávamos pensando o que tinha sido feito de você.
– Estive fora. Chris está em casa?
– Eu deixaria você entrar de qualquer modo – disse ela enquanto abria a porta ainda mais.
Os dois foram até um cômodo dos fundos, cheio de livros, onde um homem atarracado, de cabelos cor de areia e revoltos, estava meio enterrado numa enorme poltrona velha. Ele pousou o livro, pegou o alto copo de cerveja que estava ao lado e disse jovialmente:
– Que entre o sabujo! Pegue mais cerveja, Kay. Eu estava querendo vê-lo, John. O que acha de fazer algumas resenhas de histórias de detetives para a minha página, você sabe, “O Detetive Examina a Ficção de Detetives?”.
– Você já me pediu isso antes. Loucura.
– Mas é uma boa idéia – disse alegre o homem atarracado. – E eu tenho outra. Eu ia guardá-la até resolver escrever uma história de detetives, mas você poderia usá-la em seu trabalho em algum momento, por isso vou dá-la de graça.
Guild pegou o copo de cerveja que Kay lhe estendeu, e disse:
– Obrigado. – E em seguida para o homem: – Eu preciso ouvir?
– Sim. Veja bem, um sujeito é suspeito de um assassinato que exige um bocado de coragem. E todas as provas apontam direto para ele, esse tipo de coisa. Mas ele adora Sam Johnson, tem seus livros pela casa toda, de modo que você sabe que ele não fez isso, porque somente os homens tímidos – do tipo que dizem “Sim, senhor”, para as esposas e “Sim, madame”, para os policiais – adoram Johnson. Veja bem, ele só é amado pela rusticidade e pela ousadia de sua rudeza e seus maus modos, e esse é o tipo de coisa que atrai...
– Então eu procuro um sujeito chamado Sam Johnson, e ele é o culpado? – perguntou o homem moreno.
– Chris está numa daquelas noites – disse Kay.
– Zombe de mim e se dane – disse Chris –, mas essa é uma psicologia que pode servir um dia desses. Lembre-se. É uma lei. O amor ao doutor Johnson é a marca do patologicamente humilde.
Guild fez uma careta.
– Deus sabe que estou merecendo uma cerveja – disse, e bebeu. – Se você precisa falar, fale de Walter Irving Wynant. Isso talvez me sirva.
– Por quê? – perguntou Chris. – Como?
– Eu o estou caçando. Ele assassinou a secretária esta tarde e desapareceu, ninguém sabe para onde.
– Não brinca! – exclamou Kay.
– O diabo que ele fez isso! – disse Chris.
Guild assentiu e bebeu mais cerveja.
– Ele só parou por tempo suficiente para dar um tiro no sujeito com quem a secretária deveria se casar amanhã.
Chris e Kay se entreolharam deliciados.
Chris se recostou na cadeira.
– Dá para suplantar isso? Mas, você sabe, nem de longe eu estou surpreso como deveria estar. Na última vez em que o vi achei que havia alguma coisa errada, ainda que ele sempre fosse meio estranho. Lembra que eu lhe disse alguma coisa sobre isso, Kay? E está na cara que esse negócio da revista que ele vem fazendo ultimamente é meio confuso. Até mesmo partes do último livro dele... Não, eu estou me metendo a saber de tudo agora. Vou me fixar no que escrevi sobre o livro dele quando foi publicado: apesar de falhas ocasionais, sua “departamentalização” chega mais perto de dar uma resposta para a pergunta de Pôncio Pilatos do que qualquer coisa oferecida por outra pessoa.
– Que tipo de coisa ele escreve? – perguntou Guild.
– Esse tipo de coisa. – Chris se levantou gemendo, foi até uma das estantes, pegou um grosso volume preto intitulado, em letras grandes e douradas, Conhecimento e crença, abriu-o ao acaso e leu: – “A ciência se preocupa com objetos da percepção. Um objeto da percepção é uma diferença definida, isto é, limitada. Se olhar para um trecho contínuo de branco, você percebe branco porque sua percepção da cor é limitada ao seu campo visual: a área contrastante, extravisual, de não-branco ao redor, lhe dá a percepção do branco. Essas não são definições científicas. Não podem ser. A ciência não pode se definir, não pode se limitar. As definições da ciência devem ser definições filosóficas. A ciência não pode saber o que ela não pode saber. A ciência não pode saber que há alguma coisa que ela não sabe. A ciência lida com objetos da percepção, e não com não-objetos da percepção. Assim, a teoria da relatividade de Einstein – de que os fenômenos da natureza serão os mesmos, isto é, não diferentes, para dois observadores que se movem com qualquer velocidade uniforme independentemente da posição relativa entre ambos – é uma hipótese filosófica, não científica.
“‘– A filosofia, como a ciência, não pode se definir, não pode se limitar. As definições de filosofia devem ser feitas segundo um ponto de vista que terá de certo modo a mesma relação com a filosofia que o ponto de vista filosófico tem com a ciência. Essas definições podem ser...’”
– Já basta – disse Guild.
Chris fechou o livro com uma pancada.
– É esse tipo de coisa que ele escreve – disse animado, e voltou para a poltrona e a cerveja.
– O que você sabe sobre ele? – perguntou Guild. – Quero dizer, afora os textos. Não comece com isso de novo. Quero saber se ele estava apenas maluco de ciúme ou se enlouqueceu de vez, e como alcançá-lo de qualquer um dos modos.
– Eu não o vejo há seis ou sete meses, talvez mais – disse Chris. – Ele sempre foi meio abilolado e tremendamente anti-social. Talvez apenas esquisito, talvez pior do que isso.
– O que você sabe sobre ele?
– O que todo mundo sabe – disse Chris de modo depreciativo. – Nasceu em algum lugar em Devonshire. Freqüentou Oxford. Virou nativo na Índia e voltou com um livro sobre economia, um livro bastante bom, mas visionário. Casou-se com uma atriz chamada Hana Drix, ou algo do tipo, em Paris, foi para a África e mais tarde, acho, para a América do Sul. De qualquer modo, viajou muito e depois se estabeleceu em Berlim por tempo suficiente para escrever sua Antropologia especulativa e fazer algumas palestras. Não sei onde esteve durante a guerra. Apareceu aqui alguns anos depois com uma obra de metafísica em dois volumes chamada Consciência em desvio. Está na América desde então: os últimos cinco ou seis anos aqui nas montanhas escrevendo aquele Conhecimento e crença.
– E quanto a parentes, amigos?
Chris balançou a cabeça desgrenhada.
– Talvez os editores saibam: Dale and Dale.
– E como crítico você acha...
– Eu não sou crítico – disse Chris. – Sou resenhista.
– Bom, como o que quer que seja, você acha que as coisas dele são sadias?
Chris moveu os ombros grossos num gesto preguiçoso.
– Partes dos livros que eu conheço são tremendamente boas. Outras partes... talvez estejam acima da minha capacidade. Até isso é possível. Mas as coisas que ele anda fazendo ultimamente para revistas, desde Conhecimento e crença, eu sei que são porcarias ou coisa pior. O jornal mandou um garoto para lá, para entrevistá-lo há duas semanas, quando todo mundo estava falando sobre aquele antropólogo russo, e ele voltou com uma coisa medonha. Não teríamos publicado se não fosse pelo peso do nome de Wynant e o juramento do garoto, de que tinha escrito exatamente o que ele falou. Eu diria que é bastante provável que sua mente tenha se despedaçado.
– Obrigado – disse Guild, e estendeu a mão para o chapéu, mas os outros dois começaram a interrogá-lo, de modo que se sentou, conversou, fumou e bebeu cerveja até depois da meia-noite.
Em seu quarto de hotel, Guild tirou o paletó quando o telefone tocou.
– Alô... sim... sim... – Ele esperou. – Sim?... Sim, Boyer... Wynant apareceu na casa de Fremont e atirou nele... Não, não causou nenhum mal, mas conseguiu fugir... Sim, mas nós encontramos o carro... Onde?... Sim, sei... Amanhã? Que horas?... Ótimo. Você poderia me pegar aqui no meu hotel... Certo.
Ele desligou o telefone e começou a desabotoar o colete, parou, olhou para o relógio no pulso, pôs o paletó de novo, pegou o chapéu e saiu.
Na California Street pegou um bonde, subiu a colina e desceu até Chinatown, saltando do bonde na Grant Avenue. Uma chuva quase tão fina quanto névoa começava a soprar do norte. Guild virou a esquina para evitar um ruidoso grupo de bêbados que saía de um restaurante chinês, andou um quarteirão e parou em frente a outro restaurante. Era um prédio de tijolos vermelhos que tentava parecer oriental usando muito ouro e luzes coloridas, obviamente presas em cornijas que se projetavam e em suportes de três braços que marcavam os andares – alguns com postes em cima, na forma de meios pilares –, e um telhado de barro, em forma de barraca, encimado por um mastro com nove anéis aluminizados. Havia um enorme letreiro elétrico – MANCHU.
Ficou parado olhando aquele prédio espalhafatoso até acender um cigarro. Depois entrou. A garota na sala dos casacos não quis pegar seu chapéu.
– Nós fechamos à uma – disse ela.
Ele olhou para as pessoas que entravam num elevador, depois de novo para ela.
– Eles estão entrando.
– Vão lá para cima. O senhor tem um cartão?
Ele sorriu.
– Claro que tenho. Deixei no meu outro terno.
Ela pareceu severamente inexpressiva.
– Ah, certo, irmã – disse ele, em seguida lhe deu um dólar, pegou o recibo do chapéu e se espremeu no elevador apinhado.
No quarto andar saiu do elevador com os outros e entrou numa sala grande e comprida, de aparência desenxabida, onde, projetando-se de um pequeno palco, uma pista de dança comprida era uma península entre mesas servidas por chineses em trajes sociais. Havia quarenta ou cinqüenta pessoas. Algumas estavam dançando a música tocada por um piano, um violino e uma trompa.
Guild recebeu uma pequena mesa perto de uma janela fechada. Pediu um sanduíche e um café.
A dança terminou e uma mulher com rosto de harpia de meia-idade e um belo corpo coberto de cetim justo cantou uma versão modificada de Christopher Colombo. Depois houve outra dança. Então Elsa Fremont chegou ao centro da pista e cantou Holywood Papa. Seu vestido verde e decotado fazia destacar o ruivo dos cabelos e valorizava o verde de seus olhos estreitamente lanceolados. Guild fumou, bebericou o café e observou. Aplaudiu com os outros quando ela terminou.
Elsa Fremont veio direto à sua mesa, sorrindo, e disse:
– O que está fazendo aqui? – e sentou-se diante dele.
Ele se sentou de novo.
– Não sabia que você trabalhava aqui.
– Não? – Seu sorriso era alegre, os olhos céticos.
– Não, mas talvez devesse saber. Um homem chamado Lane, que mora perto de Wynant em Hell Bend, o viu entrando neste lugar, no início da noite.
– Deve ter sido lá embaixo. Nós só abrimos aqui à meia-noite.
– Lane não sabia do assassinato, até que chegou em casa hoje, mais tarde. Depois telefonou para o promotor e disse que tinha visto Wynant, e o promotor me telefonou. Eu pensei em vir, achando que talvez pudesse descobrir alguma coisa.
Franzindo a testa um pouco, ela perguntou:
– E então?
– Bom, encontrei você.
– Mas eu não estava lá embaixo mais cedo. A que horas foi?
– Meia hora antes de ele atirar no seu irmão.
–Veja bem – triunfante –, você sabe que eu estava em casa, falando com você.
– Disso eu sei.
V
Às dez da manhã seguinte, Guild foi para o Seaman’s National Bank, até uma mesa onde estava escrito: SR. COLER, TESOUREIRO-ASSISTENTE. O homem louro e bronzeado que estava sentado ali cumprimentou Guild, alegre.
Guild sentou-se e disse:
– Viu os jornais hoje de manhã, imagino.
– Sim. Graças a Deus pelo seguro.
– Nós devemos pegá-lo a tempo de conseguir uma parte de volta. Eu gostaria de dar uma olhada na conta dele e nos cheques cancelados que possam existir.
– Claro. – Coler se levantou da mesa e se afastou. Ao voltar estava trazendo um fino maço de cheques numa das mãos e uma folha datilografada na outra. Sentando-se, olhou para a folha e disse: – Foi isso que aconteceu: no dia 2 deste mês, Wynant depositou aquele cheque de dez mil dólares...
– Trouxe pessoalmente?
– Não. Ele sempre mandava os depósitos pelo correio. Era um cheque emitido pela Modern Publishing Company, da Madison Trust Company de Nova York. Ele tinha um saldo de U$ 1.100,55: O cheque fez aumentar para onze mil e poucos. No dia 5, um cheque – ele pegou um no maço fino – de nove mil dólares, nominal a Laura Porter, veio pela compensação. – Coler olhou o cheque. – Datado do dia 3, um dia depois do depósito. – Ele virou o cheque. – Foi depositado na Golden Gate Trust Company. – Em seguida passou-o por sobre a mesa para Guild. – Bom, isso o deixou com um saldo de U$ 2.162,55. Ontem recebemos um telegrama dizendo que o cheque de Nova York tinha sido aumentado de mil para dez mil.
– Vocês deixam os clientes sacarem a partir de cheques de fora da cidade assim, antes de ter tempo de compensar?
Coler ergueu as sobrancelhas.
– Contas antigas e com a importância da do sr. Wynant, sim.
– Agora a importância é ainda maior. O que são estes outros cheques?
Coler os examinou. Seus olhos se animaram. Disse:
– São mais dois para Laura Porter: U$ 1.750. O resto parecem ser simplesmente salários e gastos domésticos. – Ele os passou para Guild.
Guild examinou os cheques lentamente, um a um. Depois disse:
– Veja se consegue descobrir há quanto tempo isso vem acontecendo, e quanto foi o total.
Coler se levantou e saiu. Ficou longe durante uma hora. Quando voltou, disse:
– Pelo que posso saber, ela vem recebendo cheques pelo menos há vários meses e vem retirando praticamente tudo que ele deposita, não sobrando muito mais do que o bastante para cobrir as despesas comuns.
– Obrigado – disse Guild em voz baixa, através da fumaça de cigarro.
Do Seaman’s National Bank, Guild foi à Golden Gate Trust Company, na Montgomery Street. Uma garota parou de datilografar para levar seu cartão à sala do tesoureiro e depois guiou-o até lá. Ali Guild apertou a mão de um homem rotundo e de cabelos brancos que disse:
– É um prazer vê-lo, sr. Guild. Qual de nós, criminosos, o senhor está procurando agora?
– Não sei se estou procurando algum desta vez. O senhor tem uma cliente chamada Laura Porter. Gostaria de saber o endereço dela.
O sorriso do tesoureiro se congelou.
– Ora, ora, eu estou sempre disposto a fazer todo o possível para ajudá-lo, mas...
– Ela pode ter algo a ver com um desfalque de oito mil do Seaman’s National.
A curiosidade tirou um pouco da rigidez do sorriso do tesoureiro.
– Não sei se ela teve um dedo nisso – disse Guild –, mas estou aqui porque acho que ela pode ter. Só quero o endereço, agora, e não vou querer mais nada até ter certeza.
O tesoureiro apertou os lábios, franziu a testa, pigarreou, finalmente disse:
– Bom, eu lhe dou se você entender que é...
– Estritamente confidencial. Exatamente como a informação de que o Seaman’s foi roubado.
Cinco minutos depois estava saindo da Golden Gate Trust Company levando, num bolso, um pedaço de papel onde estava escrito Laura Porter, Leavenworth, 1.157.
Pegou um bonde e subiu a California Street. Quando o bonde passou pelo Condomínio Cathedral, levantou-se de súbito e saltou na esquina seguinte, voltando até o prédio.
Na portaria disse:
– Srta. Helen Robier.
O homem do outro lado do balcão balançou a cabeça.
– Não temos ninguém com esse nome, a não ser que ela esteja visitando alguém.
– Poderia dizer se ela já morou aqui, digamos... há uns cinco meses?
– Vou tentar. – Ele foi para trás e falou com outro homem. O outro veio até Guild e falou:
– Sim, a sra. Robier morou aqui, mas morreu.
– Morreu?
– Foi morta num acidente de automóvel no dia 4 de julho.
Guild apertou os lábios.
– Um tal de MacWilliams mora aqui?
– Não.
– Já morou?
– Não creio. Vou olhar. – Quando ele voltou, foi positivo: – Não.
Do lado de fora do Cathedral, Guild olhou o seu relógio. Eram quinze para o meio-dia. Foi até o seu hotel. Boyer se levantou de uma poltrona no saguão e veio encontrá-lo, dizendo:
– Bom dia. Como está? Alguma novidade?
Guild deu de ombros.
– Algumas coisas podem significar alguma coisa. Vamos conversar almoçando. – Ele se virou ao lado do promotor e o guiou até o restaurante do hotel.
Quando estavam sentados e tinham feito os pedidos, ele contou a Boyer sobre a conversa com os Fremont, o tiro que os interrompeu e a busca por Wynant, que resultou em encontrarem o carro dele; sobre a conversa com Chris – “Christopher Maxim”, disse ele, “crítico literário do Dispatch”; sobre a visita ao Manchu e o encontro com Elsa Fremont; e sobre suas visitas naquela manhã aos dois bancos e ao prédio de apartamentos. Falou rapidamente, desperdiçando poucas palavras, sem deixar de lado qualquer ponto importante.
– Você acha que Wynant foi àquele restaurante chinês, sabendo que a garota trabalhava lá, para descobrir onde ela e o irmão moravam? – perguntou Boyer quando Guild finalmente terminou.
– Não se ele esteve na casa de Fremont, causando o maior tumulto há duas semanas.
O rosto de Boyer ficou ruborizado.
– Isso mesmo. Bom, você...
– Diga o que andou acontecendo do seu lado – pediu Guild – e talvez nós possamos fazer as suposições juntos. Espere até esse garçom sair do caminho.
Quando a comida tinha sido posta diante deles e os dois ficaram de novo a sós, o promotor disse:
– Eu lhe contei que Lane viu Wynant indo ao tal restaurante chinês.
– Sim. E quanto às impressões digitais? – perguntou Guild, e pôs um pouco de comida na boca.
– Mandei examinar a casa toda e pegamos impressões de todas as pessoas que sabíamos que estiveram lá, mas as comparações não tinham sido feitas quando saí hoje de manhã.
– Você não esqueceu as da garota morta?
– Ah, não. E você esteve lá: pode nos mandar as suas.
– Certo, se bem que eu fiz questão de não tocar em nada. Algum informe resultante do alerta geral?
– Nenhum.
– De qualquer modo, nós sabemos que ele veio a San Francisco. E quanto às circulares?
– Estão sendo impressas agora: foto, descrição, amostras de escrita. Vamos fazer mais um lote quando tivermos as digitais; eu queria conseguir alguma coisa rapidamente.
– Ótimo. Eu pedi à polícia daqui para tirar algumas impressões do carro. Algum outro acontecimento?
– É só isso.
– Não conseguiu nada nos papéis dele?
– Nada. Afora o que pareciam ser anotações de trabalho, não havia muitos papéis. Você mesmo pode olhá-los quando for lá em cima.
Guild, comendo, assentiu como se estivesse totalmente satisfeito.
– A primeira coisa hoje à tarde é irmos dar uma olhada na srta. Porter – disse ele – e talvez alguma coisa resulte disso.
– Você acha que ela o estava chantageando?
– Pessoas chantageiam pessoas – admitiu Guild.
– Só estou falando aleatoriamente – disse o promotor um tanto sem graça –, deixando sair qualquer coisa que me venha à cabeça.
– Continue assim – disse Guild encorajando-o.
– Você acha que ela pode ser uma filha que ele teve com a tal esposa atriz em Paris?
– Podemos tentar descobrir o que aconteceu com ela e os filhos. Talvez Columbia Forrest fosse filha dele.
– Mas você sabe qual era a situação lá em cima – protestou Boyer. – Isso seria incesto.
– Já aconteceu antes. É por isso que temos um nome para isso.
Guild apertou o botão ao lado do nome de Laura Porter no vestíbulo de um pequeno prédio de apartamentos na Leavenworth Street, 1.157. Boyer estava ao seu lado, respirando pesadamente. Não houve resposta. Não houve resposta na segunda e na terceira vez em que apertou o botão, mas quando tocou no da zeladora a tranca da porta zumbiu.
Eles abriram a porta e entraram num saguão escuro. Uma porta logo à frente se abriu e uma mulher disse:
– Sim? O que é? – Ela era pequena e de feições afiladas, grisalha, com nariz adunco e olhos brilhantes.
Guild avançou até ela dizendo:
– Nós queríamos ver a srta. Laura Porter, do 310, mas ela não atende à campainha.
– Acho que ela não está – respondeu a mulher grisalha. – A srta. Porter não fica muito em casa. Quer deixar um recado?
– Quando ela deve estar de volta?
– Não sei, disso eu tenho certeza.
– Sabe quando ela saiu?
– Não, senhor. Algumas vezes eu vejo os moradores quando entram e saem, e algumas vezes não vejo, e a srta. Porter vejo menos do que qualquer outro.
– Ah, ela não fica aqui na maior parte do tempo?
– Não sei, moço. Desde que paguem o aluguel e não façam muito barulho, eu não incomodo eles.
– Eles? Ela mora com alguém?
– Não. Estou falando deles, todos os moradores daqui.
Guild se virou para o promotor.
– Aqui. Um dos seus cartões.
Boyer procurou os cartões, achou um e entregou a Guild, que deu à mulher.
– Queremos algumas informações sobre ela – disse o homem moreno em voz baixa, confidencial, enquanto forçava a vista para o cartão à luz fraca. – Pelo que sabemos, está tudo bem com ela, mas...
Os olhos da mulher, quando ela os ergueu, estavam arregalados e inquisitivos.
– O que é? – perguntou.
Guild se inclinou para ela, procurando causar impressão.
– Há quanto tempo ela mora aqui? – perguntou num sussurro teatral.
– Quase seis meses. São seis meses.
– Ela recebe muitas visitas?
– Não sei. Não lembro de ter visto alguma, mas não presto muita atenção, e quando vejo pessoas entrando aqui não sei para que apartamento estão indo.
Guild se empertigou, estendeu a mão esquerda e apertou um interruptor, iluminando o saguão. Pôs a mão no bolso interno do paletó e pegou fotos de Wynant e da secretária morta. Deu-as à mulher.
– Já viu alguma dessas pessoas?
Ela olhou a foto do homem e balançou a cabeça.
– Não – disse –, e esse não é um homem que eu esqueceria se tivesse visto. – Em seguida olhou a foto de Columbia Forrest. – Esta! – exclamou. – Esta é a srta. Porter!
VI
Boyer olhou para Guild, arregalado.
O homem moreno, depois de uma pequena pausa, falou com a mulher:
– Esta é Columbia Forrest, a garota que foi morta ontem em Hell Bend.
Os olhos da mulher ficaram tão arregalados quanto os do promotor.
– Bom! – exclamou ela, olhando de novo para a fotografia. – Eu nunca pensaria que ela era uma ladra. Bom, ela era uma coisinha tão agradável, de aparência suave...
– Uma ladra? – perguntou Boyer, incrédulo.
– Ora, sim. – A mulher ergueu os olhos da fotografia. – Pelo menos é o que o jornal está dizendo, que ela foi...
– Que jornal?
– O da tarde. – Seu rosto ficou animado, ansioso. – Os senhores não viram?
– Não. A senhora tem...
– Sim. Vou mostrar. – Ela se virou rapidamente e passou pela porta aberta.
Guid, franzindo os lábios um pouco e levantando as sobrancelhas, olhou para Boyer.
O promotor sussurrou alto:
– Ela não o estava chantageando? Ela estava roubando dele?
Guild balançou a cabeça.
– Ainda não sabemos nada.
A mulher voltou em seguida, trazendo um jornal. Virou-o e empurrou contra a mão de Guild, inclinando-se sobre o papel, batendo nele com o indicador.
– Aí está. – Sua voz estava metálica de excitação. – Aí está. Leia isso.
Boyer rodeou até o outro lado do homem moreno, onde ficou parado, quase pendurado em seu braço, esticando-se para ver melhor o jornal.
Os dois leram:
SECRETÁRIA ASSASSINADA
ERA CONHECIDA DA POLÍCIA DE NOVA YORK
NOVA YORK, 8 de setembro (A.P.) – Columbia Forrest, por cujo assassinato ontem em Hell Bend, Califórnia, a polícia está procurando Walter Irving Wynant, famoso cientista, filósofo e escritor, foi condenada por roubar em lojas na cidade de Nova York há três anos, segundo o ex-magistrado Erle Gardner.
O ex-magistrado Gardner declarou que a jovem admitiu ser culpada numa acusação feita contra ela por duas lojas de departamentos e recebeu dele uma sentença de seis meses, mas a sentença foi cancelada devido à intervenção de Walter Irving Wynant, que se ofereceu para reembolsar as lojas e dar a ela um emprego de secretária. A jovem tinha sido datilógrafa, empregada numa firma de corretores de Wall Street.
Boyer começou a falar, mas Guild o interrompeu dirigindo-se energicamente à mulher:
– Isso é interessante. Muito obrigado. Agora nós gostaríamos de olhar o quarto dela.
A mulher, falando com total animação, levou-os para cima e destrancou a porta do apartamento 310. Entrou na frente deles, mas o homem moreno, segurando a porta do corredor, foi incisivo:
– Falaremos com a senhora de novo antes de irmos embora.
Ela saiu com relutância e Guild fechou a porta.
– Agora estamos chegando a algum lugar – disse Boyer.
– Talvez estejamos.
Palavras saíram com rapidez da boca do promotor:
– Você acha que ela cuidava dos detalhes da movimentação bancária dele e forjou aqueles cheques para Laura Porter e alterou a contabilidade para encobri-los? As chances são de que ele não gastasse muito e achasse que tinha um saldo grande. Então, quando ela tinha praticamente limpado a conta dele, sacou o último cheque e ia fugir?
– Talvez, mas... – Guild olhou pensativo para os pés do promotor.
– Mas o quê?
Guild levantou os olhos.
– Por que ela não fugiu enquanto estava longe, em vez de voltar para lá no carro de outro homem para dizer a ele que ia se casar com o outro homem?
Boyer tinha uma resposta pronta:
– Os ladrões são estranhos, e as mulheres são estranhas, e quando você tem uma mulher ladra não dá para dizer o que fará ou por quê. Ela pode ter tido uma discussão com ele e talvez quisesse jogar em sua cara que estava indo embora. Pode ter esquecido alguma coisa lá. Pode ter tido a idéia de afastar as suspeitas da conta bancária fazendo malabarismos durante um tempo. Pode ter tido vários motivos, não precisam ser motivos sensatos. Pode...
Guild sorriu educadamente.
– Vejamos o que esse lugar nos diz.
Numa mesa da sala de estar encontraram uma chave de latão que abria a porta do corredor. Nada mais que encontraram em qualquer lugar, a não ser no banheiro, pareceu interessá-los. No banheiro, sobre uma mesa, acharam uma navalha obviamente nova, com a lâmina apresentando marcas recentes de ferrugem, um tubo aberto de creme de barbear, do qual muito pouco fora espremido, um pincel de barba novo que fora usado e não fora lavado e uma tesoura. Pendurado na borda da banheira ao lado da mesa havia uma toalha de rosto onde manchas de espuma tinham secado.
Guild soprou fumaça de cigarro sobre essas coisas e disse:
– Parece que o nosso homem magro veio aqui se livrar das costeletas.
Boyer, franzindo a testa em perplexidade, perguntou:
– Mas como ele saberia?
– Talvez tenha arrancado a informação dela antes de matá-la, e tenha entrado com a chave que estava sobre a mesa, a chave dela. – Guild apontou o cigarro para a tesoura. – A tesoura faz com que pareça que tenha sido ele e não... bem... Fremont, por exemplo. Ele precisaria da tesoura para as costeletas, e as coisas são novas, como se ele tivesse comprado no caminho para cá. – Guild se curvou para examinar a mesa, o interior da banheira, o chão. – Se bem que não estou vendo nenhum pêlo.
– O que significa, então? O fato de ele ter vindo aqui – perguntou ansioso o promotor.
O homem moreno sorriu um pouco.
– Alguma coisa, talvez. – E se levantou depois de ter examinado o chão. – Ele poderia ter sido cuidadoso para não deixar cair nenhum pêlo das costeletas quando as cortou, ainda que Deus saiba por que tentaria fazer isso. – Guild olhou pensativo para os instrumentos de barbear, sobre a mesa. – Nós deveríamos falar mais com o namorado dela.
No andar de baixo encontraram a zeladora esperando no saguão. Ela ficou na frente deles com um sorriso luminoso para instigar a conversa.
– Muito obrigado – disse Guild. – O aluguel dela está pago até quando?
– Até o dia 15 deste mês.
– Então não custará nada à senhora não deixar que ninguém entre lá até essa data. Não deixe, e se alguém entrar, não toque em nada. Alguns policiais virão aqui. Tem certeza de que não viu um homem lá em cima no início da noite passada?
– Sim, senhor, tenho certeza de que não vi ninguém entrar ou sair, mas Deus sabe que alguém poderia fazer isso sem mim, se tivesse uma chave...
– Quantas chaves ela possuía?
– Eu só dei uma, mas ela podia ter mandado fazer quantas quisesse, e provavelmente fez chaves suficientes se... O que ela fez, moço?
– Não sei. Ela recebia muita correspondência?
– Bom, não tantas, e a maioria parecia anúncios e coisas assim.
– Lembra-se de onde era alguma delas?
O rosto da mulher ficou vermelho.
– Isso não. Eu não olho a correspondência do meu pessoal assim. Eu sempre cuidei só da minha vida, desde que eles paguem o aluguel e não façam muito barulho que as outras pessoas...
– Tudo bem – disse Guild. – Muito obrigado. – Ele lhe entregou um dos seus cartões. – Eu provavelmente voltarei, mas se acontecer alguma coisa, qualquer coisa que pareça ter a ver com ela, poderia me telefonar? Se eu não estiver, deixe o recado.
– Sim, senhor, certamente farei isso. Há algu...?
– Muito obrigado – disse Guild mais uma vez, e saiu junto com o promotor.
Estavam sentados no automóvel do promotor quando Boyer perguntou:
– Por que você acha que Wynant deixou a chave lá, se era dela e ele a usou?
– Por que não? Ele só foi lá para se barbear, e talvez fazer uma busca. Ele não iria se arriscar a ir lá de novo, e deixá-la ali era mais fácil do que jogar fora.
Boyer assentiu dubiamente e pôs o automóvel em movimento. Guild o orientou para ir às vizinhanças da Golden Gate Trust Company, onde estacionaram o automóvel. Depois de alguns minutos de espera, foram levados à sala do tesoureiro de cabelos brancos.
Ele se levantou da mesa quando os dois entraram. Nem seu sorriso nem seu estrepitoso “O senhor está me seguindo como uma sombra!” escondia a curiosidade inquieta.
– Sr. Bliss, este é o sr. Boyer, promotor do condado de Whitfield – disse Guild.
Boyer e Bliss se apertaram as mãos. O tesoureiro fez um gesto para que os visitantes se sentassem.
– A nossa Laura Porter é a Columbia Forrest que foi assassinada ontem em Hell Bend.
O rosto de Bliss ficou vermelho. Havia algo próximo da indignação na voz com que ele disse:
– Isso é absurdo, Guild.
O sorriso do homem moreno estava apertado de malícia.
– Quer dizer que assim que alguém se torna seu correntista ele tem a garantia de uma vida longa e feliz?
O tesoureiro sorriu.
– Não, mas... – ele parou de sorrir. – Ela teve alguma participação no roubo do Seaman’s National?
– Sim – respondeu Guild, e acrescentou, ainda com malícia sorridente: –, a não ser que o senhor tenha certeza de que nenhum dos seus clientes possa tocar nos centavos de outra pessoa.
Sem prestar atenção à última parte da fala de Guild, o tesoureiro se retorceu na cadeira e olhou inquieto para a porta.
O homem moreno falou:
– Nós gostaríamos de ter uma transcrição da conta dela, e eu gostaria de mandar um grafotécnico para examinar os cheques, mas agora estamos com pressa. Gostaríamos de saber quando ela abriu a conta, que referências deu e qual é o saldo.
Bliss apertou um dos botões em sua mesa, mas, antes que alguém viesse à sala, ele se levantou com um murmúrio:
– Com licença. – E saiu.
Guild sorriu em seguida.
– Ele vai estar cinco quilos mais magro antes de saber se foi trapaceado ou não, e dez se descobrir que foi.
Quando voltou, o tesoureiro fechou a porta, encostou-se nela e falou como se tivesse ensaiado as palavras:
– A conta da srta. Porter está com saldo de 38 dólares e cinqüenta centavos. Ela retirou doze mil dólares em dinheiro vivo ontem de manhã.
– Ela própria?
– Sim.
Guild se dirigiu a Boyer:
– Na saída vamos mostrar a foto dela ao caixa, só para ter certeza. – Em seguida virou-se de novo para o tesoureiro: – E quanto à data da abertura e as referências que ela deu?
O homem de cabelos brancos consultou um cartão que estava segurando.
– Ela abriu a conta no dia 8 de novembro do ano passado. As referências que deu foram Francis X. Kearny, proprietário do restaurante Manchu, da Grant Avenue, e Walter Irving Wynant.
VII
– O Manchu fica a apenas seis quarteirões daqui – disse Guild a Boyer quando saíram da Golden Gate Trust Company. – Poderíamos dar uma passada e ver o que descobrimos com Francis Xavier Kearny.
– Você o conhece?
– Não, a não ser de reputação. Ele tem fortes ligações com a polícia e parece que é durão.
O promotor assentiu. Em seguida mordeu os lábios em silêncio, franzindo a testa, até chegarem ao automóvel. Depois disse:
– O que ficamos sabendo hoje parece juntar ele, ela, os Fremont e Wynant numa coisa só.
– Sim, parece.
– Ou você acha que ela pode ter dado o nome de Wynant porque sabia, sendo secretária dele, que poderia pegar a carta do banco pedindo informações e respondê-la sem que ele soubesse?
– Parece bastante razoável, mas há a visita de Wynant ao Manchu ontem.
A testa do promotor se franziu mais ainda.
– O que você acha que Wynant queria, se estava junto com eles?
– Não sei. Sei que alguém está com os doze mil que ela sacou ontem. Eu sei que quero seis desses doze para o Seaman’s National. Vire à esquerda na próxima esquina.
Entraram juntos no restaurante Manchu. Um sorridente garçom chinês disse que o sr. Kearny não estava, que só viria às nove da noite. Eles não puderam saber onde ele poderia ser achado antes das nove. Saíram do restaurante e entraram de novo no automóvel de Boyer.
– Guerrero Street – disse Guild –, mas vamos parar primeiro numa cabine telefônica, quero ligar para a polícia falando do apartamento na Leavenworth Street e para o escritório, para pegarem os cheques cancelados dos dois bancos, de modo a sabermos se algum é falsificado. – Ele pôs as mãos em concha em volta do cigarro que estava acendendo. – Aqui está bem. Pare.
O promotor parou o automóvel perto da Mark Hopkins.
Guild, saltou, falando:
– Vai ser rápido. – E entrou. Quando saiu dez minutos depois seu rosto estava pensativo. – A polícia não encontrou nenhuma impressão no carro de Wynant. Por que será?
– Ele poderia ter se dado ao trabalho de...
– É – concordou o homem moreno –, mas estou me perguntando por que fez isso. Bom, para a Guerrero Street. Se Fremont não tiver voltado de Hell Bend, veremos o que podemos descobrir com a garota. Ela deve saber onde Kearny fica durante o dia.
Uma empregada filipina abriu a porta dos Fremont.
– O sr. Charles Fremont está? – perguntou Guild.
– Não, senhor.
– A srta. Fremont?
– Vou ver se já levantou.
A empregada levou-os até a sala e subiu.
Guild apontou para o vidro quebrado na janela.
– Foi dali que o tiro foi disparado. – E apontou para o buraco na parede verde. – Foi ali que acertou. – Em seguida pegou no bolso do colete uma bala deflagrada e mostrou a Boyer. – Esta.
O rosto de Boyer havia se animado. Ele se aproximou de Guild e começou a falar numa voz baixa, empolgada.
– Você acha que poderiam estar todos no mesmo jogo e Wynant descobriu que a secretária o estava trapaceando além de se preparar para ir embora com...
Guild sacudiu o dedo para a porta do corredor.
– Sh-h-h.
Passos leves desceram a escada e Elsa Fremont entrou na sala, usando um roupão haori azul estampado sobre o pijama de seda verde-claro.
– Bom dia – falou, estendendo a mão para Guild. – Pelo menos para mim é. – E usou a outra mão para cobrir parcialmente um bocejo. – Nós só fechamos a boate quase às oito da manhã.
Guild apresentou o promotor e depois perguntou:
– Seu irmão foi a Hell Bend?
– Sim. Ele estava saindo quando eu cheguei em casa. – Ela se deixou cair no sofá com um pé debaixo do corpo. Estava sem meias, com sandálias azuis bordadas. – Sentem-se.
O promotor sentou-se numa poltrona diante dela. O homem moreno foi até o sofá e se acomodou ao lado.
– Acabamos de chegar do Manchu – disse ele.
Os olhos lanceolados da jovem se estreitaram um pouco.
– Almoçaram bem?
Guild sorriu e disse:
– Nós não fomos lá para isso.
– Ah. – Os olhos dela estavam limpos e despreocupados.
– Fomos procurar Frank Kearny – disse Guild.
– E vocês...?
– Se o vimos? Não.
– Não há muita chance de encontrá-lo lá durante o dia – disse ela, descuidada –, mas ele fica lá todas as noites.
– Foi o que disseram. – Guild pegou o maço de cigarros no bolso e estendeu para ela. – Onde você acha que nós poderíamos encontrá-lo agora?
A garota balançou a cabeça enquanto pegava um cigarro.
– Podem me revistar. Ele morava em Sea Cliff, mas não sei para onde se mudou. – Ela se inclinou para a frente enquanto Guild aproximava o isqueiro do cigarro. – Vocês não podem esperar até a noite? – perguntou quando o cigarro começou a se queimar.
Guild ofereceu cigarro ao promotor, que balançou a cabeça e murmurou:
– Não, obrigado.
O homem moreno pôs um entre os lábios e acendeu antes de responder à pergunta da jovem.
– Nós queríamos saber o que ele sabe sobre Columbia Forrest.
– Não creio que Frank a conhecesse – disse tranqüilamente Elsa Fremont.
– Sim, conhecia, pelo menos como Laura Porter.
A surpresa dela pareceu genuína. Elsa se inclinou para Guild.
– Repita isso.
– Columbia Forrest – disse Guild numa voz deliberadamente monótona – tinha um apartamento na Leavenworth Street, onde era conhecida como Laura Porter, e Frank Kearny a conhecia.
Franzindo a testa, a jovem disse, séria:
– Se você não parecesse saber o que está dizendo, eu não acreditaria.
– Mas acredita?
Ela hesitou, e finalmente disse:
– Bom, conhecendo Frank, eu diria que é possível.
– Você não sabia do apartamento na Leavenworth Street?
Ela balançou a cabeça, encontrando o olhar dele com olhos cândidos.
– Não.
– Sabia que ela usava o nome de Laura Porter?
– Não.
– Nunca ouviu falar de Laura Porter?
– Não.
Guild tragou fumaça e em seguida soltou.
– Acho que acredito – disse em tom casual. – Mas seu irmão devia saber.
Ela franziu a testa olhando para o cigarro em sua mão, para o pé sobre o qual não estava sentada, e depois para o rosto moreno de Guild.
– Você não precisa acreditar em mim – disse devagar –, mas honestamente não creio que ele soubesse.
Guild sorriu educado:
– Posso acreditar em você e achar que está errada.
– Eu gostaria de que pudesse acreditar, e achar que estou certa – disse ela ingenuamente.
Guild movimentou o cigarro num gesto vago.
– O que o seu irmão faz, srta. Fremont? Em que trabalha?
– Agora ele está empresariando dois lutadores, só que um deles não é grande coisa. O outro é Sammy Deep.
Guild assentiu.
– O chinês peso-galo.
– É. Charley acha que ele é um campeão.
– Ele é um bom garoto. Quem é o outro?
– Um trapalhão chamado Terry Moore. Se você freqüenta lutas, certamente já o viu ser nocauteado.
Boyer falou pela primeira vez desde que tinha recusado o cigarro:
– Srta. Fremont, onde a senhorita nasceu?
– Aqui mesmo em San Francisco, lá na Pacific Avenue.
Boyer pareceu desapontado. Perguntou:
– E o seu irmão?
– Aqui em San Francisco também.
O desapontamento se aprofundou no rosto jovem do promotor, e havia pouca esperança em sua voz quando perguntou:
– Sua mãe também era atriz, cantora?
A garota balançou a cabeça com ênfase.
– Era professora. Por quê?
A explicação de Boyer foi dada mais diretamente a Guild.
– Eu estava pensando no casamento de Wynant em Paris.
O homem moreno assentiu.
– Fremont é velho demais. Só é dez ou doze anos mais novo do que Wynant. – Em seguida deu um sorriso sincero. – Quer outra idéia para brincar? Fremont e a garota morta têm as mesmas iniciais: C. F.
Elsa Fremont gargalhou.
– Mais do que isso, eles faziam aniversário no mesmo dia, 27 de maio, apesar de Charley ser mais velho, claro.
Guild deu um sorriso descuidado diante dessa informação, enquanto os olhos do promotor ficavam perturbados.
O homem moreno olhou para o relógio.
– O seu irmão disse quanto tempo ia ficar em Hell Bend?
– Não.
Guild falou a Boyer:
– Por que não telefona para ver se ele está lá? Se estiver, peça que nos espere. Se tiver saído, esperamos por ele aqui.
O promotor se levantou da poltrona, mas antes que pudesse falar a garota estava perguntando ansiosa:
– Há algum motivo especial para vocês quererem ver Charley? Alguma coisa que eu possa contar?
– Você disse que não sabia – disse Guild. – É sobre Laura Porter que queremos descobrir.
– Ah! – Parte da ansiedade dela desapareceu.
– Seu irmão conhece Frank Kearny, não conhece? – perguntou Guild.
– Ah, sim. Foi assim que eu acabei trabalhando lá.
– Há um telefone que possamos usar?
– Certamente. – Ela se levantou e dizendo “Aqui atrás” abriu uma porta para uma sala adjacente. Quando o promotor havia passado ela fechou a porta e voltou ao lugar no sofá, junto de Guild. – Vocês ficaram sabendo de mais alguma coisa? Alguma coisa além de ela ser conhecida como Laura Porter e ter o apartamento?
– Algumas coisinhas, mas é cedo demais para dizer o que podem acrescentar. Eu não perguntei a você se Kearny e Wynant se conheciam, perguntei?
Ela balançou a cabeça de um lado para o outro.
– Se se conheciam, eu não sei. Não sei. Estou dizendo a verdade, sr. Guild.
– Certo, mas Wynant foi visto entrando no Manchu.
– Eu sei, mas... – Ela terminou a frase com uma sacudida dos ombros. Aproximou-se de Guild no sofá. – Você não acha que Charley fez alguma coisa que não devia ter feito, acha?
O rosto de Guild estava plácido.
– Eu não mentiria. Acho que todo mundo ligado ao caso fez coisas que não deveria ter feito.
Ela fez uma careta impaciente.
– Acho que você só está tentando confundir as coisas para facilitar o seu trabalho, de modo a parecer que está fazendo alguma coisa mesmo que não encontre Wynant. Por que não o encontra? – A voz dela estava subindo de volume. – É isso que deveria fazer. Por que não o encontra em vez de tentar criar confusão para todo mundo? Ele é o único que fez alguma coisa. Ele a matou e tentou matar Charley, e é ele que você quer; não Charley, não eu, não Frank. É Wynant que você quer.
Guild deu um riso indulgente.
– Você faz com que pareça tremendamente simples. Gostaria que estivesse certa.
A indignação da jovem desapareceu. Ela pôs uma das mãos sobre a dele. Seus olhos tinham um brilho amedrontado.
– Não há mais nada, há? Alguma coisa que nós não sabemos?
Guild deu um tapinha nas costas da mão dela.
– Há – garantiu em tom agradável. – Há muita coisa que nenhum de nós sabe, e o que sabemos não faz sentido.
– Então...
O promotor abriu a porta e parou na passagem. Estava pálido e suando.
– Fremont não está lá – disse em voz inexpressiva. – Ele não chegou lá em cima.
– Meu Deus – disse Elsa Fremont baixinho.
VIII
A noite ia baixando entre as montanhas quando Guild e Boyer chegaram a Hell Bend. O promotor levou o carro para o povoado, dizendo:
– Vamos até a casa do Ray. Podemos voltar para a de Wynant mais tarde, se você quiser.
– Certo, a não ser que Fremont possa estar lá.
– Não estará, se veio para ver o corpo. Ela está na funerária de Schumach.
– O inquérito judicial é amanhã?
– Sim, a não ser que haja algum motivo para adiar.
– Nenhum, que eu saiba. – Guild olhou de lado para Boyer. – Você pode garantir que o mínimo possível seja revelado no inquérito?
– Ah, sim!
Agora estavam em Hell Bend, passando entre chalés espaçados irregularmente, na direção de luzes que brilhavam ao longo da ferrovia, mas antes de chegarem lá viraram à esquerda e pararam diante de uma pequena casa quadrada onde havia luzes fracas atrás de venezianas amarelas.
Callaghan, o ossudo subdelegado, abriu a porta para eles.
– Olá, Bruce – disse ao promotor e assentiu educadamente, ainda que sem calor, para Guild.
Os dois entraram numa casa com mobília barata, onde três homens estavam sentados em volta de uma mesa jogando stud poker e um enorme pastor alemão permanecia atento num canto. Boyer falou com os três homens e apresentou Guild enquanto o subdelegado sentava-se à mesa e pegava suas cartas.
Um dos homens – magro, curvado, velho, de cabelos e bigode brancos – era pai de Callaghan. O outro – atarracado, de testa larga sobre olhos claros e separados, bronzeado e quase tão moreno quanto Guild – era Ross Lane. O terceiro – pequeno, pálido, dolorosamente arrumado – era Schumach, o agente funerário.
Depois das apresentações Boyer virou-se para Callaghan.
– Tem certeza de que Fremont não veio?
O delegado respondeu sem erguer os olhos das cartas:
– Ele não apareceu na casa de Wynant. King esteve lá o dia inteiro. E também não apareceu no Ben, para vê-la. Onde mais ele iria, se viesse aqui? – Callaghan empurrou uma ficha sobre a mesa. – Eu passo. – Estava com dois reis na mão.
Schumach pegou uma ficha e disse:
– Não, senhor, ele não apareceu para olhar o corpo de delito.
Lane pousou suas cartas viradas para baixo sobre a mesa. O pai de Callaghan colocou uma ficha e pegou o resto do baralho.
Seu filho disse:
– Três cartas. – E depois para Boyer: – Você pode telefonar para o King, se quiser. – Ele moveu a cabeça indicando o telefone junto da porta.
Boyer olhou interrogativamente para Guild, que disse:
– Seria bom.
Guild fez uma pergunta a Lane enquanto os outros três homens faziam suas apostas e Boyer estava usando o telefone.
– Foi você que viu Wynant entrando no Manchu?
– Sim. – A voz de Lane era grave e baixa.
– Havia alguém com ele?
– Não – disse Lane com certeza, depois hesitou, pensativa, e acrescentou: – A não ser que tenha entrado antes dele. Não creio, mas é possível. Ele estava entrando quando eu vi, e pode ter acontecido de ele parar para fechar a porta do carro ou pegar a chave, ou alguma outra coisa, e a pessoa que estaria com ele pode ter entrado antes.
– Você viu o bastante para ter certeza que era ele?
– Eu não poderia me enganar com isso, mesmo tendo visto só de costas. Como minha casa é perto da dele, acho que eu o vi muito mais do que a maioria das pessoas daqui, e afinal de contas, alto e magro, com aqueles ombros altos e aquele passo engraçado, não dá para a gente se enganar. Além disso, o carro dele estava ali.
– Ele tinha cortado as costeletas ou ainda estava com elas?
Lane arregalou os olhos e gargalhou:
– Santo Deus, não sei. Ouvi dizer que ele raspou, mas não pensei nisso. Agora você me pegou. Ele estava de costas para mim, e eu não veria as costeletas a não ser que estivessem aparecendo dos lados ou que eu me esticasse para olhar. Não lembro de ter visto, mas posso ter visto e não pensado a respeito. Se eu tivesse visto o rosto dele sem elas, certamente teria notado, mas... agora você me pegou, irmão.
– Você o conhece bastante bem?
Lane pegou as cartas que Callaghan lhe entregou e sorriu.
– Bom, não creio que alguém possa dizer que o conhece bem. – Ele espalhou as cartas e ficou olhando-as.
– Você conhecia bem Columbia Forrest?
O rosto do subdelegado começou a ficar vermelho. Ele falou um tanto rispidamente para o agente funerário:
– Vai jogar?
O agente funerário bateu na mesa com os nós dos dedos e disse que não.
Lane tinha um par de seis e um par de quatro. Falou:
– Eu jogo. – Empurrou uma ficha e respondeu à pergunta do homem moreno: – Não sei o que você quer dizer com isso. Eu a conhecia. Ela costumava aparecer às vezes e olhar enquanto eu trabalhava com os cachorros, quando eu os levava ao campo perto da casa deles.
Boyer tinha terminado de telefonar e vindo para perto de Guild. Explicou:
– Ross cria e treina cães para a polícia.
O pai de Callaghan disse:
– Espero que ela não tenha feito com que você começasse a falar sozinho, como fez com Ray. – Sua voz era um gemido nasal.
Seu filho bateu com as cartas na mesa. Estava com o rosto vermelho e inchado. Num tom alto e acusador, começou:
– Acho que é melhor eu ir atrás de...
– Ray! Ray! – Uma mulher magra, de cabelos brancos, vestida com roupas azuis desbotadas tinha vindo do cômodo ao lado. Sua voz tinha um tom de censura.
– Você não devia...
– Bom, então faça com que ele pare de falar dela – disse o subdelegado. – Ela era tão boa quanto qualquer pessoa, e muito melhor do que a maioria que eu conheço. – E olhou carrancudo para a mesa à sua frente.
No silêncio desconfortável que se seguiu, Boyer falou:
– Boa noite, sra. Callaghan. Como vai?
– Bem. Como está Lucy?
– Ela está sempre bem, obrigado. Este é o sr. Guild, sra. Callaghan.
Guild a cumprimentou com a cabeça, murmurando alguma coisa educada. A mulher inclinou a cabeça para ele e deu um passo atrás.
– Se vocês não conseguem jogar cartas sem brigar, eu gostaria que parassem – disse ao filho e ao marido enquanto se retirava.
Boyd se dirigiu a Guild.
– King, o subdelegado que está na casa de Wynant, disse que não viu Fremont o dia inteiro.
Guild olhou para o relógio.
– Ele teve onze horas para chegar – disse, e deu um sorriso agradável. – Ou onze horas de dianteira se foi em outra direção.
O agente funerário se inclinou sobre a mesa.
– Você acha...?
– Não sei – disse Guild. – Não sei de nada. Isso é que é o diabo. Nós não sabemos nada.
– Não há nada para saber – disse o subdelegado, em tom lamuriento. – Só que Wynant estava com ciúme, matou-a e fugiu, e vocês não puderam encontrá-lo.
Guild, olhando inexpressivo para Callaghan, nada disse.
Boyer pigarreou.
– Bom, Ray – começou. – O sr. Guild e eu descobrimos algumas evidências confusas no...
O pai de Callaghan cutucou o filho com o dedo nodoso.
– Você contou a eles sobre aquele garoto do Smoot?
– O que foi? – perguntou Boyer ansioso.
– Não é nada. Só que esse garoto, talvez você conheça, o filho de Pete Smoot, tinha um telegrama para Wynant e levou à casa dele. Chegou lá às duas e cinco. Ele anotou a hora porque ninguém atendeu e ele teve de enfiar o telegrama debaixo da porta.
– Isso foi ontem à tarde? – perguntou Guild.
– Sim – disse o subdelegado, carrancudo. – Bom, o garoto disse que o carro azul, o que você levou para a cidade, estava lá, e Wynant não estava.
– Ele conhecia o carro de Wynant?
Ostensivamente ignorando Guild, o subdelegado falou:
– Ele disse que não havia mais nenhum carro lá, no abrigo ou do lado de fora. Teria visto se houvesse. Por isso colocou o telegrama debaixo da porta, pegou a bicicleta e voltou para o escritório do telégrafo. Enquanto voltava pela estrada ele disse que viu os Hopkins atravessando o campo. Eles tinham ido ao Hooper’s, comprar um terno para Hopkins. O garoto disse que eles não o viram e que estavam longe demais da estrada para que ele gritasse falando do telegrama. – O rosto do subdelegado começou a ficar vermelho de novo. – Então, se isso está certo, e eu acho que está, eles devem ter voltado para a casa por volta das duas e vinte; não antes, de qualquer modo. – Ele pegou as cartas e começou a embaralhar, mesmo tendo distribuído a última mão. – Veja bem, isso... bem... não significou nada, nem ajudou em nada.
Guild tinha terminado de acender um cigarro. Perguntou a Callaghan, antes que Boyer pudesse falar:
– O que você imagina? Ela estava sozinha na casa e não atendeu às batidas do garoto porque estava correndo para fazer as malas antes que Wynant voltasse para casa? Ou porque já estava morta?
Boyer começou num tom de completo espanto:
– Mas os Hopkins disseram...
– Espere – disse Guild. – Deixe Callaghan responder.
Callaghan falou numa voz rouca de raiva:
– Deixe Callaghan responder se quiser, mas por acaso ele não quer, e o que você acha disso? – Ele encarou Guild, furioso. – Eu não tenho nada a ver com você. – E olhou irado para Boyer. – Vocês não têm nada a ver comigo. Eu sou subdelegado e Petersen é o meu chefe. Vão atrás dele. Estão entendendo?
O rosto moreno de Guild ficou impassível. Sua voz soou calma.
– Você não é o primeiro subdelegado que já tentou fazer nome retendo informações. – Ele começou a pôr um cigarro na boca, baixou-o e disse: – Você recebeu a ligação dos Hopkins. Foi o primeiro a chegar ao local do crime, não foi? O que descobriu lá e que não contou a ninguém?
Callaghan se levantou. Lane e o agente funerário se ergueram rapidamente de seus lugares à mesa. Boyer falou:
– Esperem, cavalheiros, não há sentido em nós discutirmos.
Sorrindo, Guild se dirigiu afavelmente ao subdelegado:
– Você não está numa situação boa, Callaghan. Você era caído pela garota. Tinha probabilidade de ter tanto ciúme quanto Wynant quando soube que ela ia embora com Fremont. Você tem um temperamento meio infantil. Onde você estava às duas horas da tarde de ontem?
Callaghan, rugindo com palavrões ininteligíveis, saltou para cima de Guild.
Lane e o agente funerário pularam entre os dois, lutando com o subdelegado. Lane virou a cabeça para dar um comando para aquietar o cão que estava rosnando no canto. O pai de Callaghan não se levantou, mas se inclinou sobre a mesa gemendo censuras para as costas do filho. A sra. Callaghan entrou e começou a ralhar com o filho.
Boyer falou nervosamente para Guild:
– Acho que é melhor nós irmos.
Guild deu de ombros.
– Tudo bem, mas eu gostaria de saber onde ele passou o início da tarde de ontem. – Em seguida olhou em volta com toda a calma e acompanhou Boyer até a porta da frente.
Do lado de fora, o promotor exclamou:
– Santo Deus! Você não acha que Ray a matou!
– Por que não? – Guild jogou o resto do cigarro no meio da estrada, num longo arco vermelho. – Não sei. Alguém fez isso, e eu vou contar um segredo: que eu me dane se acho que Wynant fez isso.
IX
Hopkins e um homem jovem e alto com bigode ruivo saíram da casa de Wynant quando Boyer parou o automóvel diante dela.
O promotor desceu, dizendo:
– Bom dia, senhores. – Indicando o homem de bigode ruivo, falou a Guild: – Este é o subdelegado King, sr. Guild. O sr. Guild está trabalhando comigo – explicou.
O subdelegado assentiu, olhando o homem moreno de cima a baixo.
– Sim, eu ouvi falar dele. Como vai, sr. Guild?
O cumprimento de Guild incluiu Hopkins e King.
– Nenhum sinal de Fremont ainda? – perguntou Boyer.
– Não.
– A sra. Hopkins ainda está acordada? – perguntou Guild.
– Sim, senhor – disse o marido dela –, está costurando.
Os quatro entraram.
A sra. Hopkins, sentada numa cadeira de balanço e fazendo bainha num lenço de linho cru, começou a se levantar, mas se deixou afundar na cadeira dizendo:
– Como vão?
E Boyer falou:
– Não se levante. Nós pegamos as cadeiras.
Guild não se sentou. Parado junto à porta, acendeu um cigarro enquanto os outros se sentavam. Depois se dirigiu ao casal Hopkins:
– Vocês disseram que foi por volta das três da tarde de ontem que Columbia Forrest voltou da cidade.
– Ah, não, senhor! – A mulher largou a costura sobre os joelhos. – Ou pelo menos nós não quisemos dizer isso. Quisemos dizer que foi por volta das três horas que nós ouvimos os dois, ele, discutindo. Pode perguntar ao sr. Callaghan que horas eram quando eu telefonei para ele e...
– Eu estou perguntando à senhora – disse Guild num tom agradável. – Ela estava aqui quando vocês voltaram do povoado às duas e vinte, depois de comprar o terno?
A mulher olhou nervosamente para ele, através dos óculos.
– Bom, sim, senhor, ela estava, se essa era a hora. Eu achava que era mais cedo, sr. Gould, mas se o senhor diz que a hora era essa, acho que o senhor sabe, mas ela havia acabado de chegar em casa.
– Como sabe disso?
– Ela disse. Ela gritou para o andar de baixo, para saber se éramos nós que estávamos chegando, e disse que tinha acabado de chegar naquele minuto.
– Havia um telegrama debaixo da porta quando vocês chegaram?
Os Hopkins se entreolharam surpresos e balançaram a cabeça.
– Não, não havia – disse o homem.
– Ele estava aqui?
– O sr. Wynant?
– Sim. Ele estava em casa quando vocês chegaram?
– Sim. Eu... eu acho que estava.
– A senhora sabe?
– Bom... – ela olhou para o marido com um apelo –, ele estava aqui quando ouvimos a briga pouco depois, de modo que devia estar...
– Ou será que chegou depois de vocês terem voltado?
– Não. Nós não o vimos entrar.
– Ouviram?
Ela balançou a cabeça com certeza.
– Não, senhor.
– O carro dele estava aí quando vocês voltaram?
A mulher começou a dizer que sim, parou no meio do caminho e olhou com expressão de dúvida para o marido. O rosto redondo dele estava desconfortavelmente confuso.
– Nós... nós não notamos – gaguejou ela.
– Vocês teriam ouvido se ele tivesse chegado de carro enquanto estavam aqui?
– Não sei, sr. Gould. Eu acho... não sei. Se eu estivesse na cozinha com a torneira aberta e Willie, isto é, o sr. Hopkins, não escuta muito bem. Talvez nós...
Guild virou as costas para ela e falou com o promotor:
– Não há sentido na história deles. Se eu fosse você jogaria os dois na cadeia e os acusaria de assassinato.
Boyer ficou boquiaberto. O rosto de Hopkins ficou amarelo. A mulher dele se curvou sobre a costura e começou a chorar. King olhou para o homem moreno como se para alguma curiosidade vista pela primeira vez.
O promotor foi o primeiro a falar.
– Mas... mas por quê?
– Você não acredita neles, não é? – perguntou Guild num tom divertido.
– Não sei. Eu...
– Se fosse eu, faria isso – disse Guild bem-humorado –, mas se você quiser esperar até nós localizarmos Wynant, tudo bem. Eu quero pegar mais amostras da letra de Wynant e da garota. – Ele se virou de novo para os Hopkins e perguntou casualmente: – Quem era Laura Porter?
O nome nada pareceu significar para eles. Hopkins balançou a cabeça atordoado. Sua mulher não parou de chorar.
– Eu não achava que vocês soubessem – disse Guild. – Vamos subir e pegar aquelas amostras, Boyer.
O rosto do promotor, enquanto ele subia a escada com Guild, era um teatro onde a ansiedade representava. Encarava o homem moreno com olhos perturbados, implorantes.
– Eu... eu gostaria de que você me dissesse por que acha que Wynant não fez isso – falou numa voz chorosa – e por que acha que Ray e os Hopkins estão metidos no caso. – Ele fez um gesto desesperado com as mãos. – O que você realmente pensa, Guild? Realmente suspeita dessas pessoas ou...? – Seu rosto se ruborizou sob o olhar firme, ilegível, do homem moreno, e ele baixou os olhos.
– Eu suspeito de todo mundo – disse Guild numa voz vazia de sentimento. – Onde vocês dois estavam entre duas e três horas da tarde de ontem?
Boyer estremeceu e um olhar de medo surgiu em seu rosto jovem. Em seguida deu um riso sem graça e disse:
– Bom, acho que você está certo. Quero que entenda, Guild, que fico perguntando coisas não porque acho que você esteja na pista errada, mas porque acho que sabe muito mais do que eu sobre esse tipo de coisa.
Às duas horas da manhã, Guild estava em San Francisco. Foi direto ao Manchu.
Elsa Fremont estava cantando quando ele saiu do elevador. Usava um vestido de tafetá – com o corpete justo, saia ampla –, onde havia grandes rosas vermelhas estampadas contra um fundo azul-claro, com dois broches de cristal prendendo uma faixa na cintura. A canção que ela cantava tinha um verso recorrente: “Bum, falsidade, falsidade!”
Quando terminou o segundo ato, foi na direção da mesa de Guild, mas dois homens e uma mulher numa outra mesa a interromperam, e passaram-se dez minutos ou mais antes que ela se juntasse a ele. Seus olhos estavam sombrios, o rosto e a voz nervosos.
– Você encontrou Charley?
Guild, de pé, falou:
– Não. Ele não subiu a Hell Bend.
Ela se sentou retorcendo o lenço amarrado no pulso, mordendo o lábio, franzindo a testa.
O homem moreno sentou-se, perguntando:
– Você achava que ele tinha ido para lá?
Ela levantou a cabeça bruscamente, indignada.
– Eu disse que sim. Você nunca acredita em nada que as pessoas falam?
– Algumas vezes acredito, e estou errado. – Guild bateu com um cigarro sobre a mesa. – Para onde quer que ele tenha ido, está com um carro novo e um dia de dianteira.
Ela pôs as mãos subitamente sobre a mesa, com as palmas para cima num gesto suplicante.
– Mas por que ele iria querer ir para outro lugar?
Guild estava olhando as mãos dela.
– Não sei, mas foi. – Ele curvou a cabeça mais ainda sobre as mãos de Elsa, como se estudasse as linhas. – Frank Kearny está aqui agora? Será que eu posso falar com ele?
Ela emitiu um breve riso gutural.
– Está. – Deixando as mãos paradas como estavam sobre a mesa, virou a cabeça e chamou a atenção de um garçom que passava. – Lee, peça ao Frank para vir aqui. – Ela olhou de novo para o homem moreno, um tanto curiosamente. – Eu falei com ele que você queria vê-lo. Tudo bem?
Ele ainda estava examinando suas palmas.
– Ah, sim, claro – disse bem-humorado. – Isso lhe daria tempo para pensar.
Ela riu de novo e tirou as mãos de cima da mesa.
Um homem se aproximou. Media bem mais de um metro e oitenta, mas a largura de seus ombros o fazia parecer ter menos do que isso. O rosto era largo e chato, os olhos pequenos, os lábios largos e grossos, e quando sorria revelava dentes tortos e separados. Sua idade poderia ser qualquer coisa entre 35 e 45 anos.
– Frank, este é o sr. Guild – disse Elsa Fremont.
Kearny estendeu a mão com cordialidade ensaiada.
– Prazer em conhecê-lo, Guild.
Os dois se cumprimentaram e Kearny sentou-se. A orquestra estava tocando “Love Is Like That” para os dançarinos.
– Você conhece Laura Porter? – perguntou Guild.
O proprietário balançou a cabeça feia.
– Nunca ouvi falar. Elsa me perguntou.
– Conhecia Columbia Forrest?
– Não. Só sei que é a garota que foi apagada lá no condado de Whitfield, e só sei disso pelos jornais e por Elsa.
– Conhecia Wynant?
– Não, e se alguém o viu entrando aqui, só posso dizer que, se um monte de gente que não conheço não viesse aqui, eu não poderia permanecer no negócio.
– Tudo bem – disse Guild em tom agradável –, mas veja bem: quando Columbia Forrest abriu uma conta num banco há sete meses, usando o nome de Laura Porter, você foi uma das referências que ela deu ao banco.
O riso de Kearny não se abalou.
– Pode ser, tudo bem, mas isso não significa que eu a conheço. – Ele estendeu o braço comprido e parou um garçom. – Diga a Sing para lhe dar aquela garrafa e traga mais ginger ale. – Em seguida voltou a atenção de novo para Guild. – Olhe, Guild. Eu cuido de um estabelecimento. Suponha que algum sujeito da prefeitura ou da câmara que possa me fazer algum mal, ou algum sujeito que gaste comigo, venha e diga que tem um amigo – ou uma mulher – que está procurando trabalho ou quer abrir algum tipo de conta ou receber um bônus, e pergunte se pode usar meu nome. Bom, que diabo! Isso acontece o tempo todo.
Guild assentiu.
– Claro. Bem, quem pediu a você para dar o ok a Laura Porter?
– Há sete meses? – zombou Kearny. – Há uma tremenda chance de eu lembrar! Talvez eu nem tenha ouvido o nome dela na ocasião.
– Talvez tenha. Tente lembrar.
– Não adianta – insistiu Kearny. – Eu tentei quando Elsa disse pela primeira vez que você queria me ver.
– O outro nome que ela deu foi o de Wynant – disse Guild. – Isso ajuda?
– Não. Eu não o conheço, não conheço ninguém que o conheça.
– Charles Fremont o conhece.
Kearny moveu descuidadamente os ombros largos.
– Eu não sabia disso.
O garçom veio, deu ao proprietário uma garrafa escura, colocou sobre a mesa copos com gelo picado e começou a abrir garrafas de ginger ale.
Elsa Fremont falou:
– Eu lhe disse que não achava que Frank soubesse alguma coisa sobre qualquer dessas pessoas.
– Disse – confirmou o homem moreno – e agora ele me disse. – Seu rosto ficou solenemente pensativo. – Fico satisfeito por ele não contradizê-la.
Elsa o encarou enquanto Kearny servia uísque e o garçom servia o ginger ale nos copos.
O proprietário, recolocando a tampa na garrafa, perguntou:
– Você acha que esse tal de Wynant ainda está em San Francisco?
Elsa falou numa voz baixa, rouca:
– Eu estou apavorada! Ele tentou atirar em Charley. Onde – ela pôs uma das mãos sobre o pulso do homem moreno –, onde está Charley?
Antes que Guild pudesse responder, Kearny estava dizendo-lhe:
– Poderia ajudar se você cantasse um pouco agora em troca de toda a grana que está ganhando. – Ele a observou andando para a pista de dança e disse a Guild: – A garota está preocupada. Você acha que aconteceu alguma coisa com Charley? Ou será que ele tinha motivos para dar no pé?
– Vocês me perguntam muitas coisas – disse Guild, e bebeu.
O proprietário pegou seu copo.
– As pessoas podem desperdiçar muito tempo – disse em tom reflexivo – quando imaginam que pessoas que não sabem de nada sabem alguma coisa. – Ele inclinou o copo abruptamente, esvaziando a maior parte do conteúdo na garganta, depois pousou o copo e enxugou a boca com as costas da mão. – Você encanou um amigo meu há dois meses: Deep Ying.
– Eu lembro – disse Guild. – Ele era o mais gordo dos três boo how doy que tentaram ampliar a guerra de tongs3 para incluir o roubo de um banco japonês.
– Havia provavelmente alguma ligação com um tong, armas guardadas lá, ou coisa do tipo.
– Talvez – disse o homem moreno, indiferente, e bebeu de novo.
– O irmão dele está aqui agora.
Parte da indiferença de Guild desapareceu.
– Ele estava no serviço também?
O proprietário gargalhou.
– Não, mas nunca se pode dizer até que ponto os irmãos são ligados, e eu achei que você gostaria de saber.
O homem moreno pareceu pesar cuidadosamente essa afirmação. Em seguida disse:
– Nesse caso talvez você devesse apontá-lo para mim.
– Claro. – Kearny se levantou rindo, ergueu uma das mãos e se sentou.
Elsa Fremont estava cantando Kitty From Kansas City.
Um chinês gorducho com rosto redondo, liso e alegre veio por entre as mesas até a deles. Tinha uns quarenta anos, estatura abaixo da média, e apesar de seu terno cinza ser de boa qualidade, não lhe caía bem. Ele parou junto de Kearny e disse:
– Como vai, Frank?
– Sr. Guild – disse o proprietário –, quero que conheça um amigo, Deep Kee.
– Eu sou seu amigo, pode apostar. – Dando um sorriso largo, o chinês balançou a cabeça vigorosamente para os dois homens.
– Kearny disse que você é irmão de Deep Ying – disse Guild.
– Pode apostar. – Os olhos de Deep Kee brilharam alegres. – Ouvi falar você, sr. Guild. Detetive número um. Você pega meu irmão. Arma algum truque para cima ele. Pode apostar.
Guild assentiu e disse solenemente:
– Não arma nenhum truque para cima ele, não pega ele, pode apostar.
O chinês deu um riso caloroso. Kearny falou:
– Sente-se e tome uma bebida.
Deep Kee sentou-se, rindo para Guild que estava acendendo um cigarro, enquanto o proprietário pegava sua garrafa debaixo da mesa.
Uma mulher na mesa ao lado, atrás de Guild, estava dizendo em tom oratório:
– Eu sempre posso dizer quando estou ficando de pileque porque a pele da minha testa fica tensa, mas isso não adianta nada porque nessa hora eu já estou de pileque demais para me importar se estou de pileque ou não.
Elsa Fremont estava terminando sua música.
Guild perguntou a Deep Kee:
– Você conhece Wynant?
– Por favor, não.
– Um homem magro, alto, tinha costeletas antes de cortar. Matou uma mulher lá em Hell Bend.
O chinês, sorrindo, balançou a cabeça de um lado para o outro.
– Já esteve em Hell Bend?
A cabeça sorridente do chinês continuou a se mover de um lado para o outro.
– Ele é um assassino de alta classe, Guild – disse Kearny. – Não pegaria um serviço no interior.
Deep Kee riu deliciado.
Elsa Fremont veio à mesa e se sentou. Parecia cansada e bebeu sedenta em seu copo.
O chinês se afastou sorrindo, baixando a cabeça repetidamente, deixando a bebida quase intocada. Olhando-o, Kearny falou para Guild:
– É um bom sujeito para ter a seu favor.
– Pistoleiro de algum tong?
– Não sei. Eu o conheço bastante bem, mas não sei disso. Você sabe como eles são.
– Não sei – disse Guild.
Uma discussão havia começado no outro lado da sala. Dois homens estavam de pé, xingando-se por cima da mesa. Kearny se espremeu em volta de sua cadeira para olhá-los por um momento. Depois, grunhindo:
– O que aqueles idiotas acham que são? – Levantou-se e foi até eles.
Elsa Fremont estava olhando pensativa para o copo. Guild observou Kearny indo até a mesa onde os dois homens discutiam, aquietando-os e sentando-se com eles.
A mulher que tinha falado sobre a pele da testa ficando tensa estava agora dizendo no mesmo tom:
– Atriz característica, é a velha desculpa. Ela é exatamente o mesmo tipo de atriz característica que eu era. Está fazendo pontas, quando consegue.
Elsa Fremont, ainda olhando para o copo, sussurrou:
– Eu estou apavorada.
– Com o quê? – perguntou Guild, como se estivesse apenas moderadamente interessado.
– Com Wynant, com o que ele poderia... – Ela ergueu os olhos, sombrios e preocupados. – Ele fez alguma coisa com Charley, sr. Guild?
– Não sei.
Ela pôs o punho apertado sobre a mesa e perguntou furiosa:
– Por que não faz alguma coisa? Por que não encontra Wynant? Por que não encontra Charley? Você não tem sangue, coração, entranhas? Não pode fazer nada além de sentar aqui como um... – Ela se interrompeu com um soluço. A raiva saiu de seu rosto e os dedos que tinham estado apertados se abriram num apelo. – Eu... eu sinto muito. Não queria... Mas, ah, sr. Guild, eu estou tão... – Ela baixou a cabeça e mordeu o lábio inferior.
– Está tudo bem – disse Guild, impassível.
Um homem se levantou bêbado de uma mesa próxima e surgiu atrás da cadeira de Elsa. Pôs a mão gorda sobre seu ombro e disse:
– Calma, calma, querida. – E falou para Guild: – Você não pode perturbar essa garota assim. Não pode. Devia ter vergonha, um homem do seu tamanho. – Ele se inclinou para a frente espiando o rosto de Guild. – Por Deus, acho que você é mulato. Acho mesmo.
Elsa, tentando se livrar da mão gorda do bêbado, soltou um “Me deixe em paz” para o homem. Guild ficou quieto. O gordo olhou inseguro de um para o outro, até que outro homem, não menos bêbado, murmurando desculpas ininteligíveis, veio e o levou para longe.
Elsa olhou humilde para o homem moreno.
– Vou dizer a Frank que estou indo – falou numa voz baixa e cansada. – Pode me levar em casa?
– Claro.
Os dois se levantaram e foram para a porta. Kearny estava parado junto ao elevador.
– Não estou com vontade de trabalhar esta noite, Frank – disse a jovem. – Vou dormir.
– Certo – concordou ele. – Tome uma bebida quente e uma aspirina. – E estendeu a mão para Guild. – Prazer em conhecê-lo. Apareça quando quiser. Qualquer coisa que eu possa fazer por você, é só dizer. Vai levar a garota em casa? Ótimo! Fique boa.
X
Elsa Fremont era uma figura escura ao lado de Guild num táxi que seguia para o oeste subindo o Nob Hill. Seus olhos brilharam no borrão de luz de um poste. Ela respirou fundo e perguntou:
– Você acha que Charley fugiu, não é?
– É provável, mas talvez esteja em casa quando nós chegarmos.
– Espero que sim – disse ela, séria. – Espero mesmo, mas... estou com medo.
Ele a encarou obliquamente.
– Você já disse isso antes. Quer dizer que está com medo de algo ter acontecido com ele ou de que algo aconteça com você?
Ela estremeceu.
– Não sei. Só estou com medo. – Em seguida pôs uma das mãos em cima da dele, perguntando como se implorasse: – Você não vai pegar Wynant?
– Sua mão está fria.
Ela puxou a mão. Sua voz não saiu alta: a intensidade a fez soar aguda.
– Você nem ao menos é humano? É sempre assim? Ou isso é uma pose? – Ela recuou para um canto do táxi. – Você é uma porcaria de um cadáver?
– Não sei – disse o homem moreno. Parecia ligeiramente perplexo. – Não sei o que você quer dizer.
Ela não falou de novo, ficou carrancuda no canto até chegarem à sua casa. Guild estava à vontade, fumando até o motorista parar. Depois saiu, dizendo:
– Vou ficar só o tempo de ver se ele está em casa.
A garota atravessou a calçada e destrancou a porta enquanto ele pagava ao chofer. Ela havia entrado deixando a porta aberta quando Guild subiu os degraus da frente. Ele entrou também. Elsa tinha acendido as luzes do andar térreo e estava chamando para o de cima:
– Charley!
Não houve resposta.
Ela emitiu uma exclamação impaciente e correu para cima. Quando desceu de novo, movia-se com desânimo.
– Ele não está. Ele não veio.
Guild assentiu com aparente desapontamento.
– Eu lhe telefono assim que acordar – falou, recuando para a porta da rua – ou se tiver alguma notícia dele.
– Não vá, por favor – disse ela rapidamente –, a não ser que precise. Eu não... Eu gostaria de que você ficasse um pouco.
– Claro – respondeu ele, e os dois foram para a sala de estar.
Depois de tirar o casaco ela o deixou durante alguns minutos, indo à cozinha e voltando com uísque escocês, gelo, limões, copos e um sifão de água. Sentaram-se no sofá segurando as bebidas.
Com o tempo, olhando-o inquisitivamente, ela disse:
– Eu realmente falei a sério no táxi. Você não é humano? Não há algum modo de a gente fazer contato com você, alcançar o seu interior verdadeiro? Eu acho que você é a pessoa – ela franziu a testa, escolhendo as palavras – mais intocável, mais irreal que já conheci. Tentar... tentar realmente fazer contato com você é como segurar fumaça.
Guild, que tinha ouvido com atenção, assentiu.
– Acho que sei o que você está tentando dizer. É uma vantagem quando estou trabalhando.
– Eu não perguntei isso – protestou ela, movendo o copo na mão com impaciência. – Perguntei se você é realmente assim ou se só finge.
Ele sorriu e balançou a cabeça sem se comprometer.
– Isso não é um sorriso – disse ela. – Está pintado na cara. – Em seguida se inclinou para ele rapidamente e deu-lhe um beijo, grudando a boca na dele durante um tempo considerável. Quando se afastou, seus olhos verdes examinaram cuidadosamente o rosto de Guild. Fez um muxoxo. – Você não é nem mesmo um cadáver, é um fantasma.
Guild falou em tom afável:
– Eu estou trabalhando. – E bebeu de seu copo.
O rosto dela ficou ruborizado.
– Você acha que estou dando em cima de você? – perguntou inflamada.
Ele riu.
– Eu gostaria de que estivesse, mas não achei isso.
– Você não gostaria. Ficaria apavorado.
– Uh-uh – replicou em tom ameno. – Eu estou trabalhando. Isso tornaria mais fácil para mim manipulá-la.
Nada no rosto dela reagiu à fanfarronice. Ela falou, com seriedade paciente:
– Se ao menos você me ouvisse e acreditasse quando digo que não sei mais sobre isso do que você, se é que sei tanto. Você só está perdendo tempo quando deveria estar encontrando Wynant. Eu não sei de nada. Charley não sabe. Nós dois diríamos se soubéssemos. Nós dois já dissemos o que sabemos. Por que não pode acreditar quando falo isso?
– Desculpe – disse ele, despreocupado. – Não faz sentido. – E olhou para o relógio. – Já passa das cinco. É melhor eu ir.
Ela estendeu a mão para detê-lo, mas em vez de falar olhou pensativamente para o lenço amarrado no pulso, que estava pendendo, e apertou os lábios.
Guild acendeu outro cigarro e esperou, sem aparentar impaciência.
Por fim ela encolheu os ombros nus e disse:
– Não faz diferença. – E virou a cabeça para olhar para trás, inquieta. – Mas será que você... será que podia fazer uma coisa para mim antes de ir? Ande pela casa e veja se está tudo bem. Eu... estou nervosa, perturbada.
– Claro – disse ele de pronto, e depois, sugestivamente: – Se tem alguma coisa a me contar, quanto antes melhor para nós dois.
– Não, não há nada. Eu contei tudo.
– Certo. Você tem uma lanterna?
Ela assentiu e trouxe uma, da sala ao lado.
Quando Guild voltou à sala de estar Elsa Fremont estava parada onde ele a havia deixado. Ela o encarou e a ansiedade desapareceu de seu rosto.
– Foi tolice minha – falou –, mas muito obrigada.
Ele pôs a lanterna sobre a mesa e procurou os cigarros.
– Por que pediu para eu olhar?
Ela sorriu embaraçada e murmurou:
– Foi uma idéia idiota.
– Por que me trouxe para casa?
Ela o encarou com olhos onde o medo ia despertando.
– O... o que você quer dizer? Há...?
Ele assentiu.
– O que é? – gritou ela. – O que você encontrou?
– Encontrei uma coisa errada lá embaixo no porão.
A mão dela foi até a boca.
– Seu irmão – disse ele.
Ela gritou:
– O quê?
– Morto.
A mão sobre a boca abafou a voz dela.
– M... morto?
Ele assentiu.
– Suicídio, pelas aparências. A arma poderia ser a mesma com que a moça foi morta. O... – Ele se interrompeu e segurou o braço dela, enquanto Elsa tentava passar por ele correndo em direção à porta. – Espere. Há muito tempo para olhar. Quero falar com você.
Ela ficou parada imóvel, encarando-o com olhos arregalados, vazios.
– E quero que você fale comigo.
Ela não demonstrou ter ouvido.
– Seu irmão matou Columbia Forrest, não foi?
Os olhos dela mantiveram a expressão vazia. Seus lábios mal se mexeram.
– Seu idiota, seu idiota – murmurou numa voz cansada, chapada.
Ele ainda estava segurando seu braço. Passou a ponta da língua sobre os lábios e perguntou num tom baixo, persuasivo:
– Como sabe que ele não matou?
Elsa começou a tremer.
– Ele não poderia – gritou ela. A vida tinha voltado à sua voz e ao rosto. – Ele não poderia.
– Por quê?
Ela puxou o braço, livrando-se da mão de Guild, e ergueu o rosto na direção dele.
– Ele não poderia, seu idiota. Ele não estava lá. Você pode descobrir facilmente onde ele estava. Você teria descoberto há muito tempo se tivesse algum cérebro. Ele estava numa reunião da Comissão de Boxe naquela tarde, tentando conseguir uma permissão para Sammy. Eles lhe diriam isso. Eles têm um registro.
O homem moreno não pareceu surpreso. Seus olhos azuis estavam meditativos sob as sobrancelhas ligeiramente apertadas.
– Ele não a matou, mas cometeu suicídio – disse devagar, e como se estivesse ouvindo a si mesmo. – Isso também não faz sentido.
3 Sociedade secreta sino-americana fundada na segunda metade do século XIX com o objetivo de dar apoio aos emigrantes chineses nos Estados Unidos. Acabou se degenerando para gangues envolvidas com o crime organizado. Boo how doy era como chamavam-se os capangas dos líderes das gangues, encarregados do trabalho sujo. (N.E.)
Dashiell Hammett
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