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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


TITANIC / Clive Cussler
TITANIC / Clive Cussler

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

T I T A N I C  

 

 

                   Abril de 1912

     O homem que ocupava o camarote 33 no convés A agitou-se e voltou-se no seu estreito beliche. Tinha o rosto suado e a mente atormentada por um pesadelo. Era um homem baixo, talvez menos que um metro e sessenta, cabelos brancos e ralos e feições suaves, em que apenas realçavam as espessas e escuras sobrancelhas. Cruzara as mãos sobre o peito e torcia os dedos num ritmo nervoso. Aparentava cinqüenta e tantos anos. A pele tinha a cor e o aspecto de uma calçada de cimento e rugas profundas sobressaiam — lhe por baixo dos olhos. Contudo, completaria apenas trinta e quatro anos daí a dez dias. O desgaste físico e a tormenta psicológica em que vivera nos últimos cinco meses tinham — no levado a um estado tal que quase tocava as raias da loucura.

     Durante as horas em que permanecia acordado, a sua mente divagava por caminhos desconhecidos, perdendo a noção do tempo e da realidade. Precisava fazer um esforço constante para se lembrar onde se encontrava e que dia era. Estava ficando louco. E o mais trágico de tudo é que ele tinha consciência disso. Abriu os olhos em sobressalto e fixou a ventoinha silenciosa que pendia do teto do camarote. Passou as mãos pela face e sentiu a barba já de duas semanas. Não precisou examinar as suas roupas, pois bem sabia que elas deviam estar sujas, amarrotadas e manchadas pela transpiração conseqüente do seu estado de nervos. Deveria ter tomado um banho e ter mudado de vestuário assim que embarcara, mas em vez disso havia se atirado para cima do beliche e, embora com interrupções, dormido um sono povoado de fantasmas que durara quase três dias.

     Estava-se num domingo, a noite ia adiantada e o navio não devia atracar ao cais de Nova Iorque antes de quarta-feira pela manhã, daí portanto há pouco mais de cinqüenta horas. O homem procurou convencer-se de que estava agora fora de perigo, porém a sua mente recusava-se a aceitar tal coisa, embora aquilo que tinha custado tantas vidas estivesse absolutamente seguro. Pela centésima vez, apalpou a chave no bolso do seu colete. Satisfeito por ela ainda ali se encontrar, esfregou com a mão a testa brilhante e fechou os olhos uma vez mais. Não poderia precisar o tempo que se passou enquanto cochilava.

     Porém, alguma coisa o acordou com uma sacudidela. Não se tratava de um ruído forte nem fora um movimento violento; antes consistira num tremor do seu colchão seguido de um ruído estranho, como se alguma coisa tivesse sido triturada algures por baixo do seu camarote de estibordo. Ergueu-se de repente e ficou sentado, imóvel, na beira do beliche. Poucos minutos se passaram e uma calma invulgar se apoderou do navio, não se ouvindo mais qualquer vibração.

     Foi então que a sua mente toldada percebeu a razão daquilo. As máquinas haviam parado. Ali permaneceu sentado, à escuta, mas os únicos sons que lhe chegavam eram os breves gracejos dos criados de bordo, no corredor, ou a conversa abafada nos camarotes anexos. Foi então possuído por uma terrível sensação de desconforto. Qualquer outro passageiro teria ignorado aquela pausa e continuado a dormir, mas, achando-se ele a um passo de um esgotamento nervoso, a mais leve impressão chegava-lhe imensamente avolumada devido aos seus superexcitados sentidos.

     Os três dias que passara fechado no seu camarote, sem comer nem beber, revivendo os horrores dos últimos cinco meses apenas tinham servido para agravar os indícios da insanidade que rapidamente se ia apoderando da sua mente. Abriu então a porta e caminhou pelo corredor com passo inseguro até atingir a escadaria. As pessoas riam e tagarelavam ao dirigirem-se para os seus camarotes, vindas do salão de convívio. Olhou para o ornamental relógio de bronze ladeado por duas figuras em baixo-relevo que se encontrava no patamar entre dois lances da escadaria. Os ponteiros dourados marcavam 11:51 hs.

     Um criado de bordo que se encontrava junto de um pomposo candelabro, na base da escadaria, olhou-o desdenhosamente. Fazia-o sem dúvida por ver como um passageiro tão mal vestido passeava pelas dependências destinadas à primeira classe, cujos ocupantes, vestindo elegantes trajos de noite, pisavam ricos tapetes orientais.

       — As máquinas... pararam — disse ele pesadamente.

     — Provavelmente para alguma afinação de pouca importância — respondeu o criado. — Num navio novo e fazendo a sua primeira viagem... é natural que surjam alguns pequenos contratempos. Mas não é o caso para preocupações. Como todos nós sabemos, este navio não pode ir ao fundo.

     — Uma vez que é feito de aço, pode afundar-se — disse o homem esfregando os olhos avermelhados. — Penso que vou dar uma olhadela até ao convés.

     O criado meneou a cabeça.

     — Eu não o aconselharia, cavalheiro. Lá fora está terrivelmente frio.

     O passageiro de fato amarrotado encolheu os ombros. Estava habituado ao frio. Virando-se, subiu um lance de escadas e transpôs uma porta que dava para o convés principal. Quase retrocedeu, pois parecia que mil agulhas o estavam espetando. Após ter passado três dias no aconchego confortável do seu camarote, sentiu como que um choque ao receber no rosto o ar exterior a uma temperatura de meio grau abaixo de zero. Não se fazia sentir o menor vento; apenas uma camada de ar frio e cortante, vinda do céu sem nuvens, envolvia o navio.

     Levantando a gola do casaco, caminhou em direção à amurada. Debruçou-se, mas apenas distinguiu o mar negro e sereno como o lago de um jardim. Em seguida olhou para a ré. O convés principal, desde o passadiço situado depois dos camarotes dos oficiais até à abertura elevada do salão de fumo da primeira classe, encontrava-se totalmente deserto. Somente a fumaça que se elevava preguiçosamente das três primeiras e enormes chaminés pintadas de preto e amarelo, o navio possuía quatro, e as luzes brilhando nas janelas do salão de estar e de leitura denunciavam a presença de vida humana.

     A espuma branca ao longo do costado foi diminuindo, tornando-se negra à medida que o navio ia, vagarosamente, perdendo andamento e já mal deslizava silenciosamente sob aquele imenso manto de estrelas. O comissário de bordo saiu do aposento dos oficiais e olhou pela borda fora.

     — Porque paramos? — indagou o homem.

     — Devemos ter batido em qualquer coisa — disse o comissário sem se voltar.

     — Terá havido algum rombo?

     — Não é provável, cavalheiro. Mas se houver necessidade de algum vazamento, as bombas de esgoto se encarregarão desse assunto.

     De repente soou um trovejar ensurdecedor, como se cem locomotivas de Denver e do Rio Grande, ribombando ao mesmo tempo dentro de um túnel, irrompessem dos oito condutos de exaustão. Enquanto levava as mãos aos ouvidos, o passageiro reconheceu a causa daquilo. Lidara com máquinas por um período suficientemente longo para saber que o vapor estava a ser lançado para o exterior através das válvulas de segurança, devido ao excesso de pressão conseqüente da paragem das máquinas principais. O terrível estrondo tornou impossível a continuação da conversa com o comissário.

     Este voltou-se e observou os outros membros da tripulação, que apareciam agora no convés principal. Sentiu então um terrível nó no estômago quando viu que eles começavam a destapar os barcos salva-vidas e a desenrolar os cabos dos turcos. Ali permaneceu durante quase uma hora enquanto o ruído dos condutos de exaustão ia esmorecendo no meio da noite.

   Agarrado à amurada e indiferente ao frio, quase não notava os pequenos grupos de passageiros percorrendo o convés principal numa estranha e calma forma de confusão. Um dos jovens oficiais do navio passou por ele. Não teria mais que vinte e poucos anos e a sua face possuía aquela coloração branco-leitosa tão tipicamente inglesa, assim como também era tipicamente inglesa aquela sua expressão de contido cansaço. Aproximou-se do homem junto à amurada e bateu-lhe no ombro.

     — Perdão, cavalheiro, mas o senhor deve colocar o seu colete salva-vidas.

     O homem voltou-se vagarosamente e fixou-o.

     — Vamos então mesmo afundar-nos, não é assim? — perguntou com voz rouca.

     O oficial hesitou um momento, depois assentiu.

— A água está a entrar mais rapidamente do que a capacidade das bombas para a esgotar... — Quanto tempo ainda nos resta?

— É difícil dizer. Talvez mais uma hora, se as águas não atingirem as caldeiras.

— Mas que aconteceu? Não havia outro navio nas proximidades. Contra o que batemos?

— Um iceberg! Ele cortou o nosso casco. Uma falta de sorte danada!

     O homem segurou o braço do jovem oficial com tanta força que ele estremeceu.

       — Tenho de entrar no compartimento de carga.

     — Há poucas possibilidades de conseguir isso, cavalheiro. O compartimento das malas do correio no convés está a ficar alagado e a bagagem já está flutuando.

     — Preciso que me leve até lá.

     O oficial tentou desprender o braço, mas sentiu-o preso como num torno.

     — Impossível! As ordens que recebi são para cuidar dos barcos salva-vidas de estibordo.

     — Qualquer outro oficial poderá cuidar dos barcos — disse o passageiro em voz apagada. —Você vai mostrar-me o caminho para o compartimento de carga.

     Foi então que o jovem oficial percebeu duas coisas incômodas. Primeira: uma expressão de loucura na face do passageiro; segunda: a boca de um revólver fazendo pressão contra os seus órgãos genitais.

       — Faça o que lhe pedi — rosnou o homem — se quiser conhecer os seus netos.

     O oficial olhou silenciosamente para a arma e depois ergueu os olhos. Alguma coisa dentro dele se transtornou repentinamente. Discutir ou resistir estava fora de questão. Aqueles olhos avermelhados lembravam duas brasas alimentadas pelo fogo da insanidade mental.

       — Posso apenas tentar...

     — Pois então tente! — retorquiu o passageiro. — Mas nada de truques. Seguirei sempre atrás de si. Qualquer gesto idiota da sua parte e eu meter-lhe-ei uma bala na espinha!

     O homem colocou então discretamente o revólver no bolso do casaco, de forma que o cano da arma ficasse encostado às costas do oficial. Assim caminharam, sem dificuldade, apesar da multidão que se acotovelava, agora desordenadamente, no convés principal. O navio parecia outro. Já não havia risos, nem alegria, nem distinção de classes: ricos e pobres achavam-se agora irmanados pelos mesmos sentimentos de pavor.

     Os moços de bordo eram as únicas pessoas que ainda riam e diziam banalidades, enquanto iam distribuindo os salva-vidas. Os foguetes lançados para assinalar o perigo iminente em que se encontrava o barco pareciam pequenos e ridículos sob a escuridão sufocante. O seu rebentar, como lágrimas brancas, mal era notado pelas pessoas que se achavam a bordo do navio condenado. Tudo isso constituía, aliás, um fundo irreal para os dolorosos e angustiantes adeuses de partir o coração e para as amargas expressões de derradeira esperança que se liam nos olhos dos homens ao içarem para os barcos salva-vidas as mulheres e os filhos.

     Porém, o aspecto mais irreal e trágico desta cena deu-se quando a orquestra do navio, composta por oito figuras, se reuniu no convés principal com os seus instrumentos e as suas jaquetas claras. Começaram a executar a música de Ining Berlin: Alexander's Raptime Band.

     O oficial de bordo, empurrado pelo revólver, ao pretender descer a escada principal, teve de lutar com aquela onda de gente que vinha subindo em busca dos barcos salva-vidas. O pequeno ângulo de inclinação para a proa estava a tornar-se cada vez mais acentuado. Ao descerem os degraus; os seus movimentos perdiam o equilíbrio. No convés B tomaram um elevador que os levou ao convés D.

     O jovem oficial voltou-se e estudou o homem cujo estranho capricho o conduziria, inexoravelmente, a uma morte certa. Tinha os lábios cerrados sobre os dentes e os olhos como que vidrados, num olhar distante. O passageiro ergueu o olhar e viu a expressão do oficial que o encarava. Por um longo período de tempo ficaram olhando um para o outro.

     — Não se preocupe...

     — Bigalow, senhor.

     — Não se preocupe, Bigalow. Conseguirá safar-se antes que ele se afunde.

     — Que compartimento de carga deseja o senhor?

     — O cofre do compartimento número um, no convés G.

     — O convés G está de certeza já alagado.

     — Apenas podemos saber quando lá chegarmos, não acha?

     O passageiro esboçou um movimento com o revólver que tinha no bolso do casaco no momento em que a porta se abriu. Saíram ambos do elevador e abriram caminho através das pessoas que ali se encontravam. Com um puxão, Bigalow rasgou o seu cinto de salvação e correu pela escada que levava ao convés E.

     Chegado ali, parou e olhou para baixo: a água subia os degraus vagarosamente, mas de maneira persistente. Algumas luzes ainda estavam acesas sob a água fria e esverdeada, produzindo uma claridade fantasmagórica.

     — Não vai ser possível. Veja o senhor mesmo.

     — Existe algum outro caminho?

     — As portas estanques foram fechadas logo após o acidente. Talvez possamos lá chegar usando as portas de emergência.

     — Então vamos a elas.

     Seguiram rapidamente através de um labirinto sem fim de passagens tortuosas, escadinhas e túneis. Bigalow fez então uma paragem e levantou a tampa de uma escotilha redonda. Ao olhar pela pequena abertura verificou que a água, surpreendentemente, apenas havia subido pouco mais de meio metro.

     — Não há qualquer esperança — mentiu ele. — Está alagado.

     O passageiro empurrou o oficial para o lado e olhou ele próprio.

     — Está suficientemente seco para o que eu pretendo — disse ele lentamente. Depois, apontando o revólver para a escotilha: — Continue!

     As luzes do teto continuavam acesas no compartimento, enquanto os dois homens se dirigiam para a casa-forte do navio, através da água. Os tênues raios de luz faziam brilhar os cromados dum enorme Renault que estava preso ao convés. Os dois homens tropeçaram e caíram por diversas vezes na água gelada, ficando com os corpos dormentes devido ao frio. Cambaleando como se estivessem embriagados, atingiram finalmente o cofre. Este consistia num cubo, situado no meio do compartimento de carga, com dois metros e quarenta de aresta. As poderosas paredes, de trinta centímetros de espessura, eram feitas de aço de Belfast.

     O passageiro retirou então do bolso do colete uma chave que introduziu na fechadura. O sistema de abertura estava ainda um pouco perro por ser novo, mas por fim os ferrolhos cederam produzindo um clique. Ele empurrou a porta e entrou no cofre. Foi então que o homem se voltou e sorriu pela primeira vez.

     — Obrigado pela sua ajuda, Bigalow. Trate de subir rapidamente. Ainda há tempo para você.

       Bigalow olhou-o intrigado.

     — O senhor fica?

     — Sim. Fico. Assassinei oito homens bons e honestos. Não posso continuar a viver com semelhante peso — disse ele com simplicidade e num tom que não admitia réplica. — O assunto está completamente encerrado. É tudo.

     Bigalow ainda tentou falar, mas faltaram-lhe as palavras. O passageiro, fazendo sinal de que tinha compreendido, fechou a porta sobre si.

     — Agradeço a Deus por Southby — disse ainda.

     Bigalow sobreviveu. Venceu a corrida contra a água que subia e conseguiu atingir o convés principal e atirar-se pela borda, apenas alguns segundos antes do navio se afundar. No momento em que o grande transatlântico mergulhou, a sua flâmula vermelha com a estrela branca, que estivera pendurada no topo do mastro de ré na calma podre daquela noite, drapejou de repente ao tocar a água, como num cumprimento final aos mil e quinhentos homens, mulheres e crianças que morriam de frio ou se afogavam nas águas geladas do oceano.

     Um instinto cego levou Bigalow a estender o braço e agarrar a flâmula quando esta lhe passou ao alcance da mão. Antes, porém, que ele se desse conta, antes que pudesse avaliar o perigo do seu tresloucado ato, sentiu-se puxado para dentro de água. Mesmo assim continuou segurando a flâmula, recusando-se a largá-la.

     Encontrava-se já a quase seis metros abaixo da superfície, quando a alça da flâmula se desprendeu da adriça, proporcionando-lhe a salvação. Foi então que ele procurou voltar à tona de água no meio daquela escuridão que o envolvia. Depois do que lhe pareceu uma eternidade, tornou a poder respirar o ar da noite e sentiu-se feliz por a sucção resultante do afundamento do navio o não ter apanhado.

     Quase encontrou a morte naquela água gelada, cuja temperatura rondava os dois graus negativos. Mais dez minutos naquela temperatura de congelação e o número de vítimas daquela catástrofe ter-se-ia alterado ligeiramente. Um cabo o salvou: achava-se amarrado a um barco que se havia virado e, tendo deslizado ao alcance da mão, ele conseguiu finalmente agarrá-lo, quando as suas forças o estavam prestes a abandonar.

     Bigalow, num último esforço, içou o corpo para cima do barco e ali, com mais trinta companheiros, partilhou aquela dolorosa dormência dos seus corpos quase congelados, até que quatro horas mais tarde foram, por fim, salvos por outro navio.

     Os angustiantes gritos das centenas de pessoas que acabavam de se afogar permaneceriam para sempre nos ouvidos daqueles que sobreviveram. Mas, todo o tempo em que esteve agarrado àquele barco virado e quase submerso, Bigalow apenas se lembrava do estranho homem que para sempre ficara trancado no cofre do navio. Quem seria ele? E quem seriam os oito homens que ele afirmara ter assassinado? Que segredo conteria o cofre? Essas perguntas iriam perseguir Bigalow durante os próximos setenta e seis anos, até escassas horas antes do fim da sua vida.

 

         O PROJETO SICILIANO

 

     1.ª Tentativa — OCEANO ATLÂNTICO

 

     O barco de Koplin atracou aqui.

   Posto de segurança Kama Mar de Barents Belush Ya Guba

     Mez Duharskiyl 50 ? Mina oculta Estação de mísseis Kelva

     Montanha Bednaia Rússia Continental Mar de Kara NOVA ZEMBLA

     0 25 60 75 ? 25 50 Milhas 80 Quilômetros

 

                   Julho de 1987

     O Presidente gritou na cadeira e, cruzando as mãos atrás da cabeça olhou, sem ver, através da janela do seu gabinete, maldizendo a sua sorte. Começara a odiar a sua posição com uma intensidade que nunca julgara possível. Percebera-o certa manhã em que lhe fora extremamente desagradável levantar-se da cama. Sentira nesse momento como todo o entusiasmo o abandonara. Tinha sido esse o primeiro sinal: a aversão de iniciar o dia. . Tornou a pensar pela milésima vez nas razões que o tinham levado a lutar tão dura e longamente por essa ingrata posição, que lhe não trouxera, ao menos, nem o mais leve reconhecimento. O preço que pagara fora demasiado elevado. O seu caminho político fora marcado pelos cadáveres de alguns amigos, além de um casamento fracassado. Logo que prestou juramento, foi o seu Governo sacudido por um escândalo no Departamento do Tesouro, uma guerra na América do Sul, uma greve nacional da aviação comercial e um Congresso hostil, que tinha perdido a confiança em quem quer que viesse a ocupar a Casa Branca. Vociferou um palavrão contra o Congresso. Os seus membros haviam anulado os seus dois últimos vetos e as notícias que lhe chegavam não eram nada favoráveis.

     Dava graças a Deus por assim poder escapar à porcaria de uma nova eleição. Como conseguira vencer o pleito de dois períodos presidenciais era para ele ainda um mistério. Havia quebrado todos os tabus preestabelecidos para o sucesso de um candidato. Não só não freqüentava igrejas como era um homem divorciado. E, para cúmulo, fumava charutos em público e usava um grande bigode. Nas suas campanhas, ignorava simplesmente os adversários e atingia os eleitores com a veemência dos seus inflamados discursos. Mas foi um sucesso! E essa foi a sua oportunidade. O povo estava farto dos outros simpáticos candidatos, que outra coisa não faziam senão desfilar sorrindo diante das câmeras da televisão proferindo meros lugares-comuns que a imprensa não pudesse distorcer atribuindo-lhes segundos significados.

     Daí a dezoito meses estaria terminado o seu segundo mandato e esse era o único pensamento que o mantinha no posto. O seu antecessor tinha aceitado o lugar de reitor da Universidade da Califórnia. Eisenhower tinha se retirado para a sua fazenda em Gettysburg e Johnson refugiara-se no seu rancho do Texas. Um sorriso aflorou aos lábios do Presidente. Nada desse gênero de velho estadista posto de lado era com ele. Os seus planos incluíam um iate de doze metros deslizando pelas águas do Pacífico Sul. E enquanto lá se encontrasse bebericando o seu rum e tendo a seu lado as jovens nativas de nariz achatado e grandes seios, haveria de ignorar toda e qualquer crise que sacudisse o mundo. Fechou os olhos e quase que podia ver toda essa cena, quando um oficial do seu gabinete abriu discretamente a porta e pigarreou.

     — Perdão, senhor Presidente, mas o senhor Seagram e o senhor Donner aguardam-no.

     O Presidente fez girar de novo a cadeira e passou a mão sobre uma madeixa espessa de cabelos prateados.

     — Está bem, mande-os entrar.

     O seu rosto iluminou-se visivelmente. Gene Seagram e Mel Donner gozavam do privilégio de acesso imediato ao Presidente, a qualquer hora do dia ou da noite. Eles eram os chefes do planejamento da Seção Meta. Consistia esta num grupo de cientistas trabalhando num setor totalmente secreto, em que pesquisavam projetos desconhecidos até então, projetos esses que tinham em vista dar um salto de vinte ou trinta anos sobre os conhecimentos tecnológicos da época.

     A Seção Meta havia sido um departamento criado pelo próprio Presidente. Fora concebido durante o seu primeiro ano de governo tendo, para tal, disposto dos seus fundos secretos e ilimitados, além de que foi ele próprio a recrutar o pequeno grupo de homens notáveis e dedicados que constituíam o seu núcleo central. Sentia-se por isso muito orgulhoso com essa sua idéia. Nem a própria CIA nem a Agência de Segurança Nacional tinham conhecimento da sua existência. Sempre fora um sonho seu oferecer todo o seu apoio a uma equipe de homens que pudessem dedicar o seu saber e talento a novos projetos, projetos extraordinários, mesmo que as possibilidades de alcançarem êxito estivessem na proporção de um para um milhão. O fato de a Secção Meta ainda nada ter produzido ao cabo de cinco anos não lhe suscitava qualquer problema de consciência.

     Os apertos de mãos não eram habituais entre eles, mas apenas um "hello" cordial. Seagram abriu então uma maleta de couro já muito gasta e retirou de dentro uma pasta com fotografias aéreas. Dispô-las na secretária e apontou para várias áreas dessas fotografias, metidas em coberturas transparentes, sinalizadas com círculos.

     — Trata-se da região montanhosa da ilha do Norte da Nova Zembla, situada no arquipélago a norte da Rússia Continental. Todas as indicações do nosso satélite localizaram essa área como tendo uma leve possibilidade...

     — Raios! — murmurou o Presidente com suavidade. — De cada vez que descobrimos algo é certo e sabido que isso está localizado ou na União Soviética ou em qualquer outro sítio inacessível!

     Examinou as fotografias e depois voltou-se para Donner.

     — A terra é muito grande. Haverá, certamente, outras áreas promissoras, não?

     Donner meneou a cabeça.

     — Sinto muito, senhor Presidente, mas os geólogos têm tentado localizar o bizanio desde que Alexandre Beesley o descobriu, em 1902. E até agora, que se saiba, não foi ainda encontrado em quantidades com qualquer interesse.

     — A sua radioatividade é de tal ordem — disse Seagram — que há muito desapareceu da terra, restando dele apenas ínfimas quantidades. Os pedacinhos utilizados nos nossos ensaios resultaram da união de pequeníssimas partículas reunidas artificialmente.

     — E não poderiam, então, a partir desses métodos artificiais, fabricar a quantidade de que necessitam? — perguntou o Presidente.

     — Não, senhor — respondeu Seagram. — As partículas que produzimos utilizando um acelerador de grande potência não duraram mais que dois minutos.

     O Presidente recostou-se nas costas da cadeira e fixou Seagram.

     — Qual a quantidade de que precisariam para completar vosso projeto?

     Seagram olhou para Donner e de novo para o Presidente.

     — Certamente compreende, senhor Presidente, que ainda não passamos da fase de estudo...

     — Mas de que quantidade precisam? — repetiu o Presidente.

     — Talvez pouco mais de duzentos gramas.

     — Compreendo.

     — Essa seria a quantidade necessária apenas para provar a nossa teoria — acrescentou Donner. — Seriam necessários mais cinco ou seis quilos para instalar um sistema completo de segurança nos pontos estratégicos das nossas fronteiras.

     O Presidente enterrou-se ainda mais na poltrona.

     — Nesse caso, penso que o melhor é abandonar o nosso projeto e pensar em outra coisa.

     Seagram era um homem alto e magro, com voz calma e maneiras corteses e se não fosse o seu grande e achatado nariz poderia passar por um Lincoln sem barba. Donner era exatamente o oposto: baixo e gordo, parecia quase quadrado. Tinha cabelos cor de trigo, olhos melancólicos e parecia estar sempre suando no rosto. Começou então a falar, rápido como uma metralhadora.

     — O Projeto Siciliano alcançou uma importância demasiado significativa para que possa ser agora enterrado e esquecido. Pela minha parte, proponho firmemente que prossigamos. Continuaremos a trabalhar sob o máximo sigilo, dentro de um circuito fechado e se formos bem sucedidos... meu Deus, os resultados serão incomensuráveis!...

     — Estou de acordo com as vossas sugestões — disse o Presidente calmamente.

     Seagram respirou profundamente e começou:

     — Primeiramente, precisaríamos da vossa autorização para construir as instalações próprias; em segundo lugar, dos fundos necessários e, por fim, da colaboração da Agência Nacional Marítima e Submarina. O Presidente olhou interrogativamente para Seagram.

     — Compreendo os dois primeiros pontos abordados, mas já não percebo para que precisam do apoio da NUMA. Qual seria o seu papel?

     — Teremos de fazer entrar secretamente os geólogos na Nova Zembla. E uma vez que se trata de ilhas, uma expedição oceanográfica da NUMA seria a perfeita cobertura para a nossa missão.

     — Quanto tempo levará a experimentar, construir e instalar o dito sistema?

     Donner não hesitou:

     — Dezesseis meses e uma semana.

     — E antes de disporem do bizanio, até onde poderiam ir as vossas pesquisas?

      — Até o último estágio — respondeu Donner.

     O Presidente reclinou-se para trás e olhou para o relógio de bordo colocado sobre a pesada escrivaninha. Ficou silencioso durante um longo minuto. Por fim, disse:

     — Mas, segundo bem percebi, os senhores pretendem que eu financie um projeto de muitos milhões que ainda não foi ensaiado e ainda menos provado: um complexo sistema que poderá não ter viabilidade por nos faltar o material mais importante, material esse que ainda por cima temos de surripiar a uma nação inimiga.

     Seagram remexeu nervosamente nos seus papéis, enquanto Donner se limitou a confirmar com a cabeça.

     — Sugiro que me digam — continuou o Presidente — como poderia eu explicar a existência dessas sofisticadas instalações situadas ao longo do perímetro da nação a um qualquer impertinente congressista que se pusesse a investigar tal assunto.

     — O que torna o projeto altamente interessante é precisamente isso — disse Seagram. — As instalações são pequenas e compactas. Os computadores mostraram-nos que uma construção do tipo de uma pequena estação geradora será suficiente para os nossos fins. Nem os satélites russos que nos espiam nem qualquer fazendeiro vizinho notarão alguma coisa fora do normal.

     O Presidente coçou o queixo.

     — Mas por que razão querem vocês lançar-se de corpo e alma no Projeto Siciliano, ainda antes de estarem cem por cento preparados?

     — Na verdade é um risco — disse Donner. – Estamos nos arriscando a não conseguir encontrar um processo que possa produzir bizanio artificialmente e até talvez nem descubramos um local na Terra de onde seja possível extraí-lo.

     — Mas mesmo que isso demore dez anos... — interrompeu Seagram — as instalações ficam preparadas e à espera. A nossa única perda será de tempo.

     O Presidente levantou-se então.

     — Podem contar com a minha aprovação para esse projeto de ficção científica, mas com uma condição: poderão dispor, exatamente, de dezoito meses e dez dias. Findo esse tempo, um outro homem, seja ele quem for, assumirá o meu cargo. Se querem pois conservar aqui feliz o vosso patrono, tratem de lhe apresentar alguns resultados.

     Os dois homens à sua frente ficaram abatidos e silenciosos. Por fim, Seagram disse:

     — Obrigado, senhor Presidente. De qualquer modo, esta equipe há de obter o material necessário, qualquer que seja o caminho a percorrer. Disso pode estar certo!

     — Bom. Agora, se me permitem, terei de posar no Jardim das Rosas para um punhado de velhas gordas, "Filhas da Revolução Americana". Estendeu a mão. — Boa sorte e não se esqueçam: cuidado para não espantar a lebre. Não desejo uma missão de espionagem como aquela do gênero do U-2, no mandato de Eisenhower, estourando por aí com algum escândalo. Entendido?

     Antes que Seagram e Donner pudessem responder, virou-se e saiu em direção à outra sala.

     O Chevrolet de Donner transpôs os portões da Casa Branca, juntou-se à imensidão do tráfego e, atravessando o Potomac, dirigiu-se para a Virgínia. Evitava olhar pelo espelho retrovisor com receio de que o Presidente tivesse mudado de idéia e houvesse mandado um mensageiro segui-los. Baixou o vidro da janela e respirou o ar úmido do verão.

     — Tivemos sorte — disse Seagram. — Suponho que pensa da mesma forma...

     — Não me fale nisso! Se ele soubesse que mandamos um homem para o território russo há duas semanas, teria havido um pé-de-vento. . .

     — Ora, ainda pode haver — murmurou Seagram mais para si próprio. — Ainda pode haver, se a NUMA não conseguir trazer de volta o nosso homem.

 

     Sid Koplin convenceu-se de que ia morrer. Tinha os olhos fechados e o sangue que escorria do seu ferimento no dorso, estava manchando a neve branca. Perpassou-lhe pelo espírito uma nova claridade à medida que ia recuperando a consciência. Teve ao mesmo tempo um espasmo de náusea que lhe provocou um vômito violento. Tinha recebido um tiro, ou teriam sido dois? Não tinha certeza. Abriu os olhos e conseguiu soerguer-se um pouco, ficando de gatas. A cabeça latejava-lhe como se fosse rebentar. Tocou-lhe com a mão e percebeu que tinha outro ferimento na têmpora esquerda e que o sangue já coagulara. Além da dor de cabeça, nada mais sentia fisicamente e também aquela dor era amortecida pelo frio intenso. Nada porém fazia diminuir a terrível sensação de queimadura no seu flanco esquerdo, logo abaixo das costelas. Fora aí que a bala o atingira e ele podia sentir o sangue grosso como um xarope escorrer-lhe por baixo da roupa, ao longo da coxa e da perna.

     Uma rajada de tiros de armas automáticas ecoou pela montanha. Koplin olhou em volta, mas apenas avistou a neve branca sendo revolvida pelo desagradável vento do ártico. Nova rajada cortou o ar frio. Calculou que estavam a menos de cem metros. Alguma patrulha soviética devia estar a atirar à toa por entre a neve que caía, na esperança de o atingir. Foi então que perdeu toda a esperança de conseguir escapar. Estava liquidado. Sabia que não conseguiria alcançar a enseada onde deixara o barco amarrado. Nem ele tão pouco estava em condições de poder velejar num barco de oito metros e quarenta de comprimento, através de cinco milhas de mar aberto, até chegar ao local onde se encontrava o navio oceanográfico norte-americano.

     Resolveu deitar-se de novo sobre a neve. A perda de sangue não lhe permitia mais esforços. O importante era que os russos o não encontrassem. Isso fazia parte do contrato com a Secção Meta. Se tivesse de morrer, o seu corpo não deveria ser encontrado. Penosamente, começou a cobrir-se com a neve. Dentro em pouco transformar-se-ia numa ligeira protuberância branca numa desolada ribanceira da montanha Bednaia e ficaria para sempre sepultado sob a crescente camada de gelo. Parou um momento e escutou. Os únicos sons que conseguiu distinguir foram os próprios arquejos e o zunido do vento. Procurou escutar melhor e, colocando as mãos em concha sobre os ouvidos, ouviu então um abafado latido de cão através do vento.

     — Oh, Deus! — exclamou em silêncio.

     Sentiu-se derrotado. Enquanto o seu corpo se mantivesse morno, o olfato apurado do cão acusaria de certeza a sua trilha. Nada mais lhe restava senão continuar ali deitado e deixar que a vida se lhe extinguisse. Mas havia ainda uma centelha dentro de si que se recusava a apagar—se e a desaparecer. Deus de misericórdia! Ele não poderia permanecer simplesmente ali, à espera que os russos o apanhassem! Ele era um simples professor de Mineralogia e não um agente secreto devidamente treinado. O seu cérebro e o seu corpo de quarenta anos de idade não estavam preparados para agüentar um intenso interrogatório. Se ele sobrevivesse, todo o conteúdo da sua história ser-lhe-ia ''arrancado" em questão de horas. Sentindo que a angústia de fracasso dominava toda a dor física, fechou os olhos.

     Quando os reabriu, o seu campo de visão foi totalmente preenchido pela cabeça de um imenso cão. Koplin reconheceu nele um komondor. A menos de um metro do seu ombro, achava-se um possante animal coberto com uma espessa camada de pêlos brancos. O enorme cão rosnou selvagemente e ter-lhe-ia rasgado a garganta se não tivesse sido contido a distancia pela mão enluvada de um soldado soviético. O homem olhou-o com indiferença. Conservou-se ali de pé, mirando a sua presa, tendo na mão esquerda a correia do cão e na direita uma metralhadora portátil pronta a disparar. Parecia receoso no seu imenso casacão, que lhe descia até aos tornozelos. Os olhos, pálidos e sem expressão, não mostravam compaixão pelos ferimentos de Koplin. O soldado pendurou a arma no ombro e levantou Koplin do chão, pondo-o de pé. Depois, sem uma palavra, começou a arrastar o americano ferido para o posto de segurança da ilha. Koplin quase desmaiou de dor. Teve a impressão de ser arrastado pela neve durante alguns quilômetros, mas na verdade não tinha andado mais de cinqüenta metros quando uma vaga sombra apareceu no meio da nevasca.

     No estado de semiconsciência em que se encontrava, Koplin pôde ainda notar que o soldado estacou e ficou tenso. Ouviu-se um ruído breve, como um "plop", e o cão caiu, silencioso, na neve a seu lado. O russo deixou cair a correia sobre Koplin e nervosamente tentou levantar a arma, mas de novo se fez ouvir o mesmo ruído e um pequeno furo, que se avermelhou rapidamente, apareceu na testa do soldado. Os olhos perderam o brilho e ele caiu ao lado do cão.

     Algo estava errado. Aquilo não poderia estar acontecendo. Foi o que Koplin pensou; porém, a sua mente exausta não pôde tirar qualquer conclusão. Caiu de joelhos e apenas conseguiu observar que um homem alto, vestindo um casaco de pele cinzenta, surgiu da neve e ficou olhando para o cão estendido no chão.

     — Foi uma pena — disse ele depressa.

     A aparência daquele homem impunha-se. O seu rosto, queimado pelo sol, parecia deslocado ali no ártico. As suas feições eram duras, quase cruéis. Mas foram os olhos que impressionaram Koplin. Nunca tinha visto olhos como aqueles. Profundos e verdes, da cor do mar, irradiavam um calor humano que contrastava grandemente com as linhas duras do seu rosto. O homem virou-se para Koplin e sorriu.

     — Doutor Koplin, penso eu.

     O tom da sua voz era calmo e natural. O estranho meteu no bolso um revólver com silenciador e ajoelhou-se ao lado de Koplin, observando o sangue que se espalhava pelo casaco.

     — O melhor é eu transportá-lo para um lugar onde possa examinar esse ferimento.

     Levantou Koplin nos braços, tal como se pega numa criança e iniciou a descida da montanha em direção ao mar.

     — Quem é o senhor? — murmurou Koplin.

     — O meu nome é Pitt. Dirk Pitt.

     — Não estou a compreender... De onde veio então o senhor?

     Porém Koplin já não ouviu a resposta. Acabava de mergulhar nas agradáveis sombras da inconsciência.

 

     Seagram terminou o seu margarita num pequeno restaurante ao ar livre próximo da esquina da Rua do Capitólio, enquanto esperava por sua mulher para almoçarem. Ela estava atrasada. Em oito anos de casados nunca chegara a horas a qualquer encontro. Esperou que o criado olhasse e fez-lhe sinal para trazer um novo drinque. Dana Seagram chegou finalmente, ficando um momento parada, à procura do marido. Tendo-o avistado, esgueirou-se por entre as mesas ao seu encontro.

     Vestia um sweater cor de laranja e uma saia castanha que a tornava de tal maneira jovem que bem poderia passar por uma colegial. Tinha o cabelo loiro e trazia-o preso com uma fita; os seus olhos, castanho-escuros, eram estranhos, alegres e vivos.

     — Esperaste muito? — indagou ela sorrindo.

     — Dezoito minutos, para ser preciso — respondeu Seagram. — Cerca de dois minutos e dez segundos mais do que nos teus habituais atrasos.

     — Sinto muito — disse ela. — O almirante Sandecker teve uma reunião com os seus assessores que demorou mais tempo do que eu previra.

     — Que loucura o absorve agora?

     — Uma nova ala para o Museu Naval. Ele já conseguiu verba necessária e agora debate-se com a aquisição das peças.

     — Peças?

     — Objetos e pedaços que têm sido retirados de navios famosos.

O empregado aproximou-se com a bebida de Seagram e Dana pediu também uma para si.

     — Pois é, fica-se admirado com o pouco que se consegue um ou dois cintos de salvação do Lusitania, aqui um ventilador do Maine, acolá uma âncora do Bonnty... Porém, nada disto fica bem dentro de uma sala!

     — Bem, julgava que havia melhores maneiras de esbanjar dinheiro dos contribuintes!

     Ela ficou vermelha.

     — Que queres dizer com isso?

     — Colecionar velharias — disse ele timidamente — conservar numa redoma de vidro pedaços enferrujados e corroídos de objetos irreconhecíveis, unicamente com o fim de serem espanados e vistos por visitantes com ar de tolos... Francamente, é um desperdício!

     A batalha estava iniciada.

     — A preservação de navios e de outras embarcações fornece um elemento de ligação com o passado histórico. — Os olhos castanhos de Dana brilharam. — Contribuir para esse conhecimento é um objetivo ao qual uma pessoa estúpida como tu não liga a mínima importância.

     — Falaste como uma verdadeira arqueóloga marítima — disse ele.

     Ela forçou um sorriso amarelo.

     — Tu ainda te sentes atingido nos colhões pelo fato da tua mulher ter se realizado, não é?

     — A única coisa que me causa pena é a tua linguagem de taberna, minha querida. Por que será que toda a mulher independente pensa que é bonito dizer palavrões?

     — Não creio que tenhas capacidade para me dar lições de savoir-faire — disse ela. — Depois de cinco anos a viver numa grande cidade, tu ainda te vestes como um verdadeiro vendedor de ferragens de Omaha. Por que não cortas o cabelo como os outros homens? Esse corte que usas já não está na moda há muitos anos. Sinto-me envergonhada quando saio contigo.

     — A minha posição no Governo não permite que eu ande por aí como um hippie dos anos sessenta.

     — Deus! Oh, Deus! — Ela abanou a cabeça como se estivesse exausta. — Por que não me casei com um bombeiro ou um lenhador de árvores? Por que me fui eu apaixonar por um físico dos subúrbios?

     — É bom pensar que já me amaste um dia.

     — Eu ainda te amo, Gene — disse ela suavizando a voz. — Este estado de coisas entre nós apenas começou há dois anos. Não podemos ter sequer um almoço a sós sem que nos comecemos a agredir. Por que não mandamos tudo para o inferno e não passamos o resto da tarde a amar-nos, num motel? Tenho a certeza de que hoje me acharias deliciosamente sexy.

     — E achas que isso no fundo mudaria alguma coisa?

     — Não sei, mas era uma tentativa.

     — Não posso.

     — Sempre esse raio de amor ao trabalho! — disse ela virando-se para o outro lado. — Será que não tens olhos? Não vês que as nossas ocupações nos estão a separar? Mas ainda podemos salvar a situação, Gene! Podemos pedir ambos a demissão e voltar a ensinar. Com o teu doutoramento em Física e o meu em Arqueologia, para além da nossa experiência e das nossas credenciais, podíamos nos candidatar a qualquer universidade do país. Freqüentávamos a mesma faculdade quando nos conhecemos, lembras-te? Aqueles foram os nossos melhores anos.

     — Por favor, Dana, não posso afastar-me. Pelo menos por agora.

     — Por quê?

     — Estou a trabalhar num projeto importante.

     — Todos os projetos têm sido para ti importantes nestes últimos cinco anos! Por favor, Gene, apenas te estou a pedir que salves o nosso casamento! Só tu poderás tomar a primeira decisão. Farei tudo o que decidires, desde que possas sair de Washington. Esta cidade há de impedir qualquer possibilidade de salvar a nossa vida conjugal se esperarmos muito mais tempo!

     — Preciso de mais um ano!

     — Até mesmo um mês poderá já ser demasiado.

     — Assumi um compromisso que me é impossível abandonar.

     — Mas será que nunca mais acabam esses ridículos projetos secretos? Tu não passas de um instrumento da Casa Branca.

     — Esses chavões de cortar o coração já não me impressionam mesmo nada, sabes?

     — Gene, pelo amor de Deus, deixa isso!

      — Não é pelo amor de Deus, Dana. É pelo amor ao meu país. Lamento muito que não possas entender!...

     — Larga isso — repetiu ela quase a chorar. — Ninguém é completamente indispensável! Deixa Mel Donner tomar o teu lugar.

     Ele sacudiu a cabeça.

     —Não! — disse com firmeza. — Esse projeto foi criado por mim a partir do zero. A minha massa cinzenta foi o esperma. Tenho de levá-lo até o fim.

     O criado aproximou-se de novo e perguntou se eles desejavam almoçar. Dana abanou a cabeça.

    — Não tenho fome! — Levantou-se e perguntou, já de pé: — Vais jantar em casa?

     — Terei de trabalhar até tarde no escritório.

     Ela não pôde conter por mais tempo as lágrimas.

     — Espero que, seja o que for que andes fazendo, valha o sacrifício — murmurou ela — porque vai custar-te um preço muito elevado! Depois voltou-se e saiu apressada.

     Nada de acordo com o tipo do oficial do Serviço Secreto russo geralmente exibido nos filmes, o comandante André Prevlov não possuía ombros taurinos nem cabeça rapada. Era um homem bem proporcionado e bonitão, cabelos bem acamados e um moderno bigode bem aparado. O seu aspecto, para além do seu belo carro de desporto dum tom alaranjado e do seu apartamento impecavelmente mobiliado sobre o rio Moscou, não condizia lá muito bem com a aparência dos seus superiores do Departamento Secreto da Armada Soviética. Entretanto, e apesar dessas suas irritantes inclinações, havia poucas probabilidades de ser afastado da sua alta posição no departamento. A reputação de que se tinha rodeado de ser o mais competente especialista do Serviço Secreto da Armada e o fato de seu pai ser o membro número doze do Partido faziam do comandante Prevlov um intocável.

     Com muita elegância, acendeu um Winston e serviu-se de uma dose de gim de Bombaim. Só então se sentou e recostou na cadeira, começando a ler a pilha de papéis que o seu assessor o tenente Pavel Marganin, havia colocado sobre a sua escrivaninha.

     — Constitui para mim um mistério, senhor, como pôde se adaptar tão facilmente a essas baboseiras ocidentais — disse Marganin, com suavidade.

     Prevlov ergueu os olhos e fixou-os desdenhosamente em Marganin.

     —Tal como os nossos outros camaradas, você desconhece o mundo exterior. Eu penso como um americano, bebo como um inglês, dirijo um carro como um italiano e vivo como um francês. E sabe por quê?

     Marganin sentiu-se encabulado e murmurou nervosamente:

     — Não, senhor.

     — Para conhecer o inimigo, Marganin. O que importa é você conhecer o inimigo melhor do que ele o conhece, melhor do que ele se conhece a si próprio. Nessa altura ataque-o antes que ele o ataque.

     — Não é isso uma citação do camarada Nerv Tshetsky?

     Prevlov, irritado, encolheu os ombros.

     — Não, idiota. Estou plagiando a Bíblia cristã. — Aspirou e soprou o fumo pelo nariz, depois tomou um gole de gim. — Estude os métodos ocidentais, meu amigo. Se não aprendermos com eles, a nossa causa estará perdida. — Depois virou-se de novo para a papelada. — Esta agora! Porque mandaram estes papéis para o nosso departamento?

— Por nenhuma razão especial, salvo o fato do incidente ter ocorrido próximo do litoral. — E o que sabemos nós a esse respeito?

Prevlov já havia aberto a pasta seguinte.

     — Muito pouco. Na ilha da Nova Zembla desapareceu um soldado da patrulha de vigilância e o seu cão.

     —Dificilmente isso pode ser considerado um motivo de preocupação para a segurança. A Nova Zembla não tem qualquer interesse. Tem apenas uma estação de mísseis já ultrapassada, um posto de vigilância, alguns pescadores... e não há qualquer instalação importante num raio de centenas de quilômetros. Uma perda de tempo injustificável. Nem se percebe porque se manda para lá um homem e um cão patrulhar...

     — O Ocidente deveria ter pensado o mesmo antes de enviar para lá um agente.

     Prevlov tamborilou com os dedos na mesa ao mesmo tempo em que olhava para o teto. Por fim, disse:

     — Um agente? Mas se lá não existe nada... nenhum interesse militar... No entanto... —interrompeu-se e ligou um interruptor no seu aparelho de comunicação interna. —Traga-me as posições dos navios da Agência Nacional Marítima e Submarina, nos últimos dois dias.

    Marganin ergueu as sobrancelhas.

     — Eles não ousariam enviar uma expedição oceanográfica até tão próximo da Nova Zembla. Isso significa penetrar demasiadamente em águas soviéticas.

     —O mar de Barents não nos pertence — disse Prevlov pacientemente. — São águas internacionais.

     Uma atraente secretária loira, trajando um elegante vestido castanho, entrou na sala e entregou a Prevlov um dossiê. Em seguida saiu, fechando a porta suavemente atrás de si. Prevlov remexeu nos papéis até que encontrou aquilo que procurava.

     — Aqui está. Um dos nossos pesqueiros avistou o navio First Attempt, da NUMA, a trezentas e vinte milhas náuticas a sudoeste da Terra de Francisco José.

     — Nesse caso estaria próximo da Nova Zembla — disse Marganin.

     — Estranho... — murmurou Prevlov. — De acordo com o programa de operações dos navios oceanográficos dos Estados Unidos, o First Attempt deveria estar a realizar estudos relacionados com o plâncton por alturas da Carolina do Norte na data em que foi avistado aqui. — Engoliu o resto do gim, esmagou a ponta do cigarro e acendeu outro. — Trata-se, na verdade, de uma ocorrência muito estranha.

     — E o que prova isso? — perguntou Marganin.

     —De fato, não prova nada, mas sugere que o guarda da Nova Zembla foi assassinado e que o agente responsável se escapou. Muito provavelmente para ir ao encontro do First Attempt Ora isto pressupõe que os Estados Unidos devem estar a planejar qualquer coisa... Quando o navio da NUMA se desvia do programa preestabelecido sem qualquer razão aparente...

     — Mas que pretenderão eles encontrar?

     — Não faço a menor idéia. — Prevlov recostou-se para trás na cadeira e alisou o bigode. — Mande ampliar as fotos do satélite, das áreas mais próximas, no momento da informação.

     As sombras da noite já escureciam as ruas lá fora quando o tenente Marganin espalhou as fotografias ampliadas sobre a escrivaninha de Prevlov e lhe entregou uma lupa.

     — O senhor acertou em cheio. Temos aqui algo de muito interessante.

     Prevlov observou atentamente as fotografias.

     — Não vejo nada de anormal a respeito do navio: equipamento de pesquisa típico, nenhum equipamento de investigação militar em evidência...

     Marganin apontou para uma das fotografias em ângulo aberto que revelava vagamente um navio com uma pequena marca branca na emulsão.

     — Repare, por favor, na pequena figura que se vê a cerca de dois mil metros do First Attempt, em cima, no canto direito.

     Prevlov observou através da lupa durante quase meio minuto.

     — Um helicóptero!

     — Exatamente! Foi por isso que eu me atrasei com as ampliações. Tomei a liberdade de as enviar à Seção R para as examinarem.

     — Suponho que se trata duma das patrulhas de segurança do nosso exército, não?

     — Não, senhor.

       Prevlov levantou as sobrancelhas.

     — Está a querer sugerir que ele pertence ao navio americano?

     — Ora, é precisamente isso que eles supõem, senhor. — Marganin colocou mais duas fotografias diante de Prevlov. — Examinaram fotos anteriores de um outro satélite de reconhecimento. Como pode observar ao compará-las, o helicóptero está a voar na direção da Nova Zembla, para o First Attempt. Avaliaram ainda a sua altitude em três metros e a sua velocidade em menos de quinze nós.

     — Obviamente para evitar o nosso radar de segurança — disse Prevlov.

     — Devemos então alertar os nossos agentes situados nos Estados Unidos?

     — Não, ainda não! Não desejo afugentá-los antes de saber o que procuravam eles. —Arrumou com cuidado as fotografias e colocou-as numa pasta; depois olhou para o seu relógio mega.

     — Tenho já muito pouco tempo para uma breve ceia antes do ballet. Mais alguma coisa, tenente?

     — Apenas o processo sobre a Expedição de Estudo da Corrente Lorelei. O submarino norte-americano de grande profundidade encontra-se, segundo as últimas informações, a quatro mil e quinhentos metros de profundidade ao largo da costa de Dacar.

       Prevlov levantou-se, segurando as pastas debaixo do braço.

     — Irei estudar o assunto quando tiver oportunidade. Provavelmente nada disso diz respeito à segurança naval. Será contudo interessante lê-lo. Deixemos aos americanos a tarefa de apresentarem estranhos e maravilhosos projetos!...

 

     — Droga, droga, duas vezes droga! — disse Dana entre dentes. — Olha para os pés-de-galinha que começam a aparecer em volta dos meus olhos! — Sentou-se diante do toucador e olhou aborrecida para o seu rosto refletido no espelho. — Quem foi que disse que a velhice é uma forma de lepra?

     Seagram surgiu por detrás dela, afastou-lhe os cabelos e beijou-lhe o pescoço macio que ficara a descoberto.

     — Com apenas trinta e um anos e já a disputar o lugar da mulher do mês!

     Ela olhou-o no espelho, divertida com aquela tão rara demonstração de afeto.

     — Tu és mais feliz. Os homens não sentem este problema.

     — Os homens também sofrem com os males da idade e também têm pés-de-galinha. O que fará as mulheres pensarem que nós, os homens, não ganhamos rugas?

     — A diferença está em que vocês não ligam.

     — Somos mais inclinados a aceitar o inevitável — disse ele sorrindo. — E por falar em inevitável, quando é que me darás um filho?

     — Tu és um chato! Nunca desistes, não é assim? — Atirou com a escova do cabelo para cima do toucador, derrubando uma porção de frasquinhos com produtos de beleza que ali se achavam arrumados. — Já discutimos isso mais de mil vezes. Não vou sujeitar-me aos inconvenientes de uma gravidez. Nem tão pouco estou disposta a andar todo o dia a lavar fraldas de bebê. Deixa que outros povoem a terra. Cabe a algumas amebas a tarefa de se dividirem.

     — Essas razões não convencem. Nem mesmo tu acreditas nelas...

     Ela voltou-se para o espelho e não respondeu.

     — Um filho poderia salvar a nossa situação, Dana — disse ele gentilmente.

     Ela escondeu o rosto nas mãos.

     — Não abandonarei a minha carreira enquanto tu não desistires desse teu precioso projeto.

     Ele afagou-lhe os cabelos e olhou-a pelo espelho.

     — O teu pai era um alcoólatra que abandonou a família quando tinhas apenas dez anos de idade. A tua mãe trabalhou atrás de um balcão e levava homens para casa a fim de obter algum dinheiro extra para beber. Tu e teu irmão foram tratados como dois animais até serem suficientemente crescidos para fugir daquela "lata de lixo", como vocês chamavam ao lar. O rapaz descarrilou e começou a assaltar depósitos de bebidas e postos de gasolina; uma linda atividade que lhe custou uma sentença de prisão perpétua por homicídio, em San Quentin. Só Deus sabe quanto me orgulho de ti, pois trabalhavas dezoito horas por dia para saíres daquela sarjeta e conseguires estudar e formar-te! Sim, tiveste uma infância terrível, Dana, e... tens medo de ter um filho por causa dessas recordações. Mas precisas de te convencer: o pesadelo acabou. Não podes negar a um filho ou filha o direito à vida!

     A barreira que se estabelecera entre eles continuou inabalável. Dana afastou para longe as mãos dele e começou a arrancar as sobrancelhas. A discussão estava terminada, tão terminada como se ela o tivesse feito desaparecer do quarto.

     Quando Seagram saiu do chuveiro, Dana estava de pé diante do espelho, que ocupava toda a altura da porta do armário. Ela examinava-se de forma crítica, como um figurinista que estudasse pela primeira vez a sua criação. Tinha um vestido branco bastante simples, que ajustava em cima e caía livremente até à altura dos tornozelos. Um decote muito arrojado permitia uma visão bastante ampla dos seios.

     — É melhor te apressares — disse ela, casualmente, como se nada tivesse havido antes. — Não vamos permitir que o Presidente espere por nós.

     — Mas vão lá estar mais de duzentas pessoas. Não iremos para a lista negra por chegarmos atrasados.

     — Não importa — ripostou ela zangada. — Não é todos os dias que se recebe um convite para uma reunião na Casa Branca. Quero pelo menos causar boa impressão por chegar a horas.

     Seagram suspirou e dedicou-se ao delicado trabalho de fazer o nó da gravata e de colocar os botões, desajeitadamente, com uma só mão. Vestir-se para reuniões formais era uma coisa de que ele não gostava. Porque é que as reuniões sociais em Washington não tinham em conta o conforto das pessoas? Poderia ser um excitante acontecimento para Dana, mas para ele não passava de um grande sacrifício. Acabou de lustrar os sapatos, penteou os cabelos e caminhou para a sala.

     Dana estava sentada no sofá, a examinar alguns papéis que se encontravam numa pasta aberta sobre a mesa do café. Tão entretida estava que não deu pela entrada dele.

     — Estou pronto.

     — Estarei também pronta dentro de um minuto — murmurou ela. — Podes dar-me a minha estola?

   — Mas estamos no meio do verão! Por que é que queres transpirar dentro de uma capa de pele?

     Ela tirou os óculos de aros de tartaruga e observou:

     — Não achas que pelo menos um de nós se deve apresentar com uma certa classe?

     Ele foi até ao vestíbulo, pegou no telefone e marcou um número. Mel Donner atendeu imediatamente.

     — Donner. Alguma novidade? — perguntou Seagram.

     — O First Attempt...

     —Não é esse o navio da NUMA que deveria apanhar Koplin?

     — Sim. Ele passou ao largo de Oslo faz hoje cinco dias.

     — Oh, Deus, mas por quê? Koplin deveria ter desembarcado lá e apanhado um avião comercial que o trouxesse de volta.

     — Não temos maneira de saber. O navio suspendeu todas as comunicações por sua ordem.

     — Isto não me está a agradar mesmo nada...

     — Sim, certamente que não estava no programa.

     — Devo estar na reunião que o Presidente oferece até cerca das onze horas. Se souber de qualquer coisa, avise-me.

     — Pode ficar descansado. Divirta-se.

     Seagram acabava de desligar quando Dana saía da sala. Ela reparou na sua expressão preocupada.

     — Más notícias?

     —Ainda não tenho certeza.

     Ela beijou-o na face.

     — É uma pena que não possamos viver como qualquer casal normal e que tu não me possas confiar os teus problemas.

     Ele apertou-lhe a mão.

     — Se eu ao menos pudesse...

     — Segredos governamentais! Que grande maçada! — Ela sorriu discretamente. — Bem!

     — Bem, o quê?

     — Tu não queres te portar como um cavalheiro!

     — Sinto muito, mas já ia me esquecendo! — Retirou a estola do armário e colocou-a sobre os ombros dela. — Um mau costume que eu tenho, o de me esquecer de minha mulher!

     Os lábios de Dana entreabriram-se num sorriso brincalhão. "Cristo", pensou ele amargurado, "um pelotão de fuzilamento não está muito longe da realidade, se Koplin se tiver afundado lá nas neves da Nova Zembla."

     Os Seagram colocaram-se na última fila da multidão reunida à entrada do Salão Este, aguardando a sua vez de serem recebidos. Dana, apesar de já ter estado uma vez na Casa Branca, ainda hoje se sentia impressionada com aquela mansão. O Presidente, elegante e ainda diabolicamente bonito, encontrava-se de pé. Com os seus cinqüenta e poucos anos, era ainda um homem bastante sexy. Um sinal evidente disso era a presença a seu lado de Ashley Fleming, a divorciada mais elegante e sofisticada de Washington, que cumprimentava cada convidado como se visse em cada um deles um parente rico.

     — Ora merda!

     Dana quase perdeu a compostura. Seagram olhou-a irritado.

     — E agora, qual é o problema?

     — A senhora... ao lado do Presidente...

     — Ah! Trata-se de Ashley Fleming.

     — Eu sei isso muito bem — segredou Dana, procurando ocultar-se atrás do corpo de Seagram. — Repara no vestido dela!

     Seagram não compreendeu a princípio, mas teve mesmo de se controlar para não desatar a rir.

     — Mas, Deus do Céu! Vocês ambas estão vestidas igual!

     — Não acho graça nenhuma — disse ela furiosa.

     — Onde foi que tu arranjaste o teu?

     — Pedi-o emprestado à Annette Johns.

     — Aquela lésbica que é modelo e que mora do outro lado da rua?

     — Foi um presente que lhe ofereceu o figurinista Claud d'Orsini.

     Seagram agarrou-lhe a mão.

     — Isso apenas prova que a minha mulher tem muito bom gosto.

     E antes que ela pudesse responder, a fila moveu-se e se encontraram de repente diante do Presidente.

     — Gene, que bom vê-lo aqui! — sorriu o Presidente polidamente.

     — Obrigado por nos ter convidado, senhor Presidente. Conhece Dana, a minha mulher?

     O Presidente observou-a, demorando o olhar no angulo do decote.

       — Claro que conheço. Encantadora, absolutamente encantadora!

     Curvou-se em seguida e segredou-lhe qualquer coisa ao ouvido. Dana arregalou os olhos e enrubesceu. O Presidente endireitou-se e disse:

     — Permitam-me que lhes apresente a senhora Ashley Fleming, que muito amavelmente me auxilia esta noite. Ashley, o senhor e a senhora Gene Seagram.

     — É um prazer cumprimentá-la finalmente, senhora Fleming — murmurou Seagram.

     Ashley nem pôde escutar o que ele lhe disse, pois os seus olhos pareciam querer engolir o vestido de Dana.

     — Parece, senhora Seagram — disse ela com doçura — que uma de nós terá de procurar depressa um novo costureiro...

    — Eu não poderei mudar — respondeu Dana, inocentemente. — Desde criança que compro os meus vestidos no Jacques Pinneigh.

     As bem desenhadas sobrancelhas de Ashley Fleming ergueram-se interrogativamente.

     — Jacques Pinneigh? Nunca ouvi falar dele.

     — Ele é mais conhecido por J. C. Penney. — Dana sorriu suavemente. — A sua loja, na parte baixa da cidade, irá liquidar para o mês que vem. Seria interessante irmos lá juntas, para evitar que aparecêssemos de novo com vestidos iguais.

     Ashley apresentou uma expressão irada, enquanto o Presidente teve um ataque de tosse. Seagram tomou o braço de Dana e ambos se misturaram com os demais convidados.

     —Precisavas fazer aquilo?

     — Não pude resistir! Aquela criatura não passa de uma prostituta famosa.

     Logo a seguir, Dana fixou-o com um olhar maroto:

     — Ele fez-me um convite — disse ela, como se ainda não pudesse acreditar. — Imagina só! O Presidente dos Estados Unidos a fazer-me um convite!

     — Warren G. Harding e John F. Kennedy eram mulherengos, segundo consta. O atual não é diferente. Ele não passa dum ser humano.

     — Um presidente libertino! É uma lástima!

     — Vais aceitar o convite? — perguntou Seagram, sarcástico.

     — Não sejas ridículo! — ripostou ela vivamente.

     — Posso tomar parte na batalha?

     Quem perguntou isto foi um homenzinho de cabelos encarniçados e corretamente vestido com um dinner jacket azul. Tinha uma barba bem aparada, que combinava perfeitamente com os seus olhos castanhos e intensamente penetrantes. A voz pareceu um tanto familiar a Seagram, mas não deu a entender.

     — Depende do lado em que você se colocar — disse Seagram.

     — Conhecendo as simpatias de sua mulher para com a Women's Lib — disse o estranho — prefiro ficar do lado do marido.

     — Conhece Dana?

     — Tenho obrigação de a conhecer, pois sou o seu chefe.

     Seagram olhou-o espantado.

     — Então o senhor deve ser...

     — O almirante James Sandecker — retorquiu Dana, sorridente. — Diretor da Agência Nacional Marítima e Submarina. Almirante, permita-me que lhe apresente o meu marido, Gene, que facilmente se deixa perturbar...

     — Muita honra, almirante. — Seagram estendeu-lhe a mão. — Sempre desejei ter oportunidade de lhe agradecer pessoalmente aquele pequeno favor...

     Dana olhou-os, admirada.

     — Mas já se conheciam?

     Sandecker aquiesceu com a cabeça.

     — Falamos pelo telefone; mas nunca nos encontramos cara a cara. Dana deu o braço aos dois homens.

     — As duas pessoas minhas favoritas a conspirarem nas minhas costas... Mas de que se trata?

     Os dois homens trocaram um olhar.

       — Uma ocasião telefonei para o almirante a pedir-lhe uma pequena informação. Foi apenas isto.

     — Ficaria imensamente grato se me conseguisse arranjar um scotch com água — disse Sandecker, dando uma pancadinha na mão de Dana.

     Ela hesitou um segundo, depois beijou levemente a face de Sandecker e, obedientemente, procurou abrir caminho por entre os grupos dos convidados, que formavam pequenos círculos em torno do bar. Seagram meneou a cabeça, incrédulo.

     — Você sempre tem um jeito para lidar com as mulheres... Se fosse eu a pedir-lhe uma bebida, com certeza que me mandaria passear.

     — Não se esqueça de que sou eu e não você quem lhe paga o ordenado...

       Dirigiram-se então para a varanda. Seagram acendeu um cigarro, enquanto Sandecker tentava acender um imenso charuto, tipo Churchill, soprando. Caminharam em silêncio até que se sentiram sós, junto a uma coluna, num ponto mais afastado.

     — Tem alguma notícia do First Attempt? — perguntou Seagram, calmamente.

     — Está desde as treze horas de hoje na doca da nossa base de submarinos em First of Clyde.

     — Mas porque não me informaram se são quase passadas oito horas?

     — As suas instruções eram muito claras — disse Sandecker, friamente. — Não queria nenhuma comunicação proveniente do meu navio até que o seu agente se encontrasse são e salvo em território norte-americano.

     — E então?

     — A informação que obtive chegou através de um velho amigo da Marinha. Telefonou-me louco de raiva, há apenas meia hora, procurando saber qual a razão por que o navio se havia afastado sem autorização.

     — Qualquer contratempo que surgiu... — disse Seagram simplesmente. — O seu navio já deveria ter entrado em Oslo para ali desembarcar o meu homem. Que diabo está ele a fazer na Escócia?

     Sandecker olhou duramente para Seagram.

     — Vamos deixar bem claro uma coisa, senhor Seagram: a NUMA não é um braço da CIA, do FBI, ou qualquer outra organização de espionagem e não me agrada mesmo nada arriscar a vida dos meus homens para que você se possa intrometer em território comunista e brincar de espiões. O nosso trabalho resume-se à pesquisa oceanográfica. Da próxima vez que você quiser brincar ao James Bond, sirva-se da Armada ou do Serviço da Guarda Costeira a fim de realizar o seu sujo jogo. Mas não tente induzir o Presidente a utilizar um dos meus navios! Está a entender-me, senhor Seagram?

     — Peço que me desculpe por lhe ter causado semelhante transtorno, almirante. A minha intenção não era ir contra os seus regulamentos. Pode calcular como devo estar preocupado com tudo isto.

     — Bem gostaria de calcular... — O rosto do almirante descontraiu-se um pouco. — Mas você tornaria as coisas bem mais simples se confiasse em mim e me dissesse o que tem em vista.

     Seagram desviou o olhar.

     — Sinto muito — disse.

     — Entendo — retorquiu Sandecker.

     — Por que acha que o First Attempt não aportou em Oslo? — perguntou Seagram.

     — Suponho que o seu homem deve ter achado muito perigoso tomar um avião comercial em Oslo e por isso decidiu-se antes por um vôo militar. A nossa sub-base nuclear em First of Clyde é o campo de aviação militar mais próximo. Deve ter pedido ao comandante do meu navio de pesquisas que passasse ao largo da Noruega e se dirigisse para lá.

     — Faço votos por que assim seja. Qualquer que tenha sido o motivo, temo que o afastamento do plano estabelecido possa significar algum transtorno.

     Sandecker avistou Dana à porta da varanda com um drinque na mão. Procurava-os. O almirante acenou-lhe com a mão até que ela os viu e se dirigiu para eles.

     — Você é um homem de sorte, Seagram. A sua mulher é uma jovem brilhante e agradável.

     De repente, surgiu Mel Donner. Tendo passado por Dana, conseguiu chegar junto deles ainda antes dela. Pediu desculpa a Sandecker.

     — Um navio de transporte da Marinha, trazendo Sid Koplin a bordo, atracou há precisamente vinte minutos — disse Donner baixinho. — Ele foi levado para o Walter Reed.

     — Por quê Walter Reed?

     — Koplin levou um tiro e está muito mal.

     — Deus do Céu! — rosnou Seagram.

     — Tenho um carro à espera. Podemos estar lá dentro de quinze minutos.

     — Está certo. Espere um momento.

     Depois, falou calmamente a Sandecker e pediu-lhe que acompanhasse Dana a casa e que apresentasse ao Presidente as suas desculpas. Em seguida, acompanhou Donner até ao carro.

 

     — Sinto muito, mas ele está sob o efeito dos sedativos e não posso permitir que o vejam agora.

     Isto foi dito pelo médico de uma forma cortês e calma, naquela típica e aristocrática toada da Virgínia, embora ele não conseguisse esconder o ódio que lhe encobria os olhos cinzentos.

     — Mas pode falar? — quis Donner saber.

     — Para um homem que recobrou a consciência há apenas alguns minutos, as suas faculdades mentais estão excelentes. — A expressão dos seus olhos não mudara. — Mas não se enganem. Ele não poderá jogar tênis por algum tempo.

     — Mas qual é exatamente a gravidade do seu estado? — perguntou Seagram.

     — Ora aí está. O caso é grave. O médico que o operou a bordo do navio da NUMA fez um bom trabalho. O ferimento provocado pela bala no seu lado esquerdo vai cicatrizar sem complicações. Porém, o outro ferimento produziu uma pequenina fratura no crânio. O vosso amigo Koplin irá sofrer de dores de cabeça durante algum tempo.

     — Bem, mas nós precisamos de o ver agora — disse Seagram com firmeza.

     — Como já lhe disse, sinto muito, mas ele não pode receber visitas.

     Seagram deu um passo em frente e olhou fixamente o médico.

     — Convença-se do seguinte, doutor: eu e o meu amigo vamos entrar naquele quarto, quer o senhor goste ou não. No caso de nos tentar impedir pessoalmente, nós o colocaremos sobre uma das suas próprias mesas operatórias. E se gritar por socorro, atiraremos sobre quem aparecer. Se chamar a polícia, eles respeitarão as nossas credenciais e farão aquilo que nós dissermos. Agora, doutor, a escolha é sua.

     Koplin estava deitado sobre o leito, completamente esticado, o rosto tão branco como o travesseiro onde apoiava a cabeça. Porém, os seus olhos brilhavam de uma forma surpreendente.

     — Antes que o perguntem — disse baixo— sinto-me na verdade mal. E não me digam que estou com boa aparência, porque isso é uma grande mentira.

     Seagram puxou uma cadeira para junto do leito e sorriu.

     — Não dispomos de muito tempo, Sid. Se você se sente com disposição, vamos diretos ao assunto.

     Koplin acenou para os tubos ligados ao seu braço.

     — Estas drogas estão procurando adormecer-me, mas vou resistir o mais que puder.

     Donner inclinou a cabeça.

     — Vimos... buscar a resposta à pergunta de um bilhão de dólares.

     — Encontrei vestígios de bizanio, se é a isso que se quer referir.

     — Encontrou-o efetivamente? Tem certeza?

     — Os testes de campo que realizei não poderiam, de forma alguma, ser tão exatos como se tivessem sido feitos num laboratório... mas estou noventa por cento certo de que se trata de bizanio.

     — Graças a Deus! — suspirou Seagram. — Você trouxe os resultados numéricos da análise?

     — Sim.

     — Quantos... quantos quilos de bizanio acredita você que possam ser extraídos da montanha Bednaia?

     — Se tivermos sorte, talvez uma colher de chá...

     De início, Seagram não compreendeu logo, mas isso apenas durou um instante. Donner manteve-se sentado, rígido e impassível, com as mãos pousadas nos braços da cadeira.

     — Uma colher de chá! — balbuciou Seagram, tristemente. Tem certeza?

     — Você pergunta-me a todo o instante se eu tenho certeza. — Koplin ficou vermelho de indignação. — Se não acredita em mim, mande qualquer outro para aquele fim de mundo.

     — Um momento! — Donner colocou a mão no ombro de Koplin.— É que a Nova Zembla era a nossa única esperança. Você sofreu mais do que aquilo a que tínhamos direito de esperar. Estamos-lhe agradecidos, Sid, profundamente agradecidos.

     — Mas nem todas as esperanças estão ainda perdidas — murmurou Koplin.

     As suas pálpebras iam se cerrando. Seagram não reparou. Curvou-se sobre o leito.

       — Que disse você, Sid?

     — Você ainda não perdeu... O bizanio estava lá.

     Donner aproximou-se.

     — O que quer dizer com isso: o bizanio estava lá?

     — Foi retirado... minerado...

     — Isso não faz sentido!

     — Eu encontrei rastos dele no flanco da montanha — Koplin hesitou por um instante. — Fiz algumas escavações...

     — Você está a pretender dizer que alguém já havia minerado o bizanio da montanha Bednaia? — perguntou Seagram, incrédulo.

     — Sim.

     — Meu Deus! — murmurou Donner. — Os russos estão então na mesma pista!

     — Não... não... — balbuciou Koplin. Seagram aproximou o ouvido dos lábios de Koplin. Os russos não...

     Seagram e Donner trocaram olhares espantados. Koplin segurou, exausto, a mão de Seagram.

     — Os homens... do Colorado...

     Nesse momento os olhos fecharam-se e ele perdeu a consciência. Seagram e Donner caminharam pelo parque de estacionamento enquanto uma sirena soava à distância.

     — Que acha que ele queria dizer? — perguntou Donner.

     — Não faz sentido. Não faz sentido nenhum!

 

     — O que há de tão importante para me vir despertar no meu dia de folga? — resmungou Prevlov.

     Sem esperar a resposta, abriu a porta e levou Marganin para o interior do apartamento. Prevlov vestia um roupão de seda japonesa e tinha uma expressão de abatimento e cansaço. Enquanto seguia Prevlov pela sala de estar até à cozinha, os olhos de Marganin percorriam profissionalmente a mobília e analisavam cada peça. Para quem habitava um pequeno quarto de quartel com um metro e oitenta por dois metros e quarenta, a decoração e o tamanho daquele apartamento pareciam uma ala do Palácio de Verão de Pedro, o Grande. Havia ali de tudo: lustres de cristal, tapeçarias a cobrir as paredes de alto a baixo, e ainda aquela mobília francesa. Notou também, sobre a lareira, dois copos e uma garrafa de Chartreuse pelo meio; e no chão, por baixo do sofá, estava caído um par de sapatos femininos. Caros e ocidentais, segundo parecia. Apanhou um fio de cabelo e achou-se a fixar a porta fechada do quarto de dormir. Ela devia ser muito atraente, porque Prevlov era muito exigente nesse domínio. Prevlov retirou do frigorífico um jarro com sumo de tomate.

     — Quer um pouco? — Marganin abanou a cabeça.

     — Misture isso com os ingredientes adequados — murmurou Prevlov — como fazem os americanos e terá um excelente remédio para uma ressaca. — Tomou um gole e fez uma careta. — E agora, o que quer você?

     — A KGB recebeu a noite passada um comunicado de um dos seus agentes em Washington. Não fazem idéia do que se trata; esperam que talvez nós lhes possamos lançar alguma luz sobre este assunto.

     O rosto de Marganin ficou vermelho. O roupão de Prevlov abriu-se e ele pôde observar que ele não trazia roupa alguma por baixo.

     — Muito bem — suspirou Prevlov. — Continue.

     — O comunicado dizia: "Americanos interessados de repente em minérios. Operação ultra-secreta sob o nome de Projeto Siciliano."

     Prevlov fixou nele o olhar, por cima do seu Bloody Mary.

     — Que baboseira vem a ser essa? — Terminou o drinque num gole e atirou com o copo para o lava-louça. — Será que a nossa ilustre irmã do Serviço Secreto, a KGB, se tornou um hospício?

     Falava sem paixão; era novamente a voz do comandante Prevlov, eficiente, fria, sem qualquer outra inflexão que não fosse a que demonstrava a irritação causada pelo aborrecimento.

     — E você, tenente, porque me veio incomodar com esse mistério infantil? Não poderia este assunto ter esperado até amanha de manhã, quando eu estivesse de volta ao escritório.

     — Eu... eu pensei que talvez fosse importante — gaguejou Marganin.

     — Naturalmente — Prevlov sorriu com firmeza. — Todo o mundo se agita ao menor sinal da KGB; porém, eu não me interesso por ameaças veladas. Fatos, meu caro tenente, o que interessa são os fatos. E que vê você de tão importante nesse Projeto Siciliano?

     — Pareceu-me que a referência aos minérios pudesse estar relacionada com as informações sobre a Nova Zembla.

     Passaram-se talvez uns vinte segundos antes que Prevlov falasse.

     — É possível, sim, é possível. Mas, mesmo assim, não podemos estar certos de que haja qualquer ligação.

     — Eu... eu pensei apenas...

     — Por favor, deixe os pensamentos para mim. — Ajustou o roupão ao corpo. — E agora, se já não vê fantasmas, eu gostaria de voltar para a cama.

     — Mas... e se os americanos estão tentando obter alguma coisa...

     — Sim, mas o quê? — perguntou Prevlov secamente. — Que coisa será assim tão preciosa para eles que os faça vir à sua procura em território inimigo?

     Marganin encolheu os ombros.

     — Se conseguir responder a essa pergunta, obterá a resposta para tudo! — O tom de voz de Prevlov endureceu imperceptivelmente. — Até que isso aconteça, o que quero são soluções. Qualquer camponês analfabeto pode fazer perguntas estúpidas.

     O rosto de Marganin enrubesceu novamente.

     — Por vezes, as palavras de código americanas têm certos significados ocultos.

     — Sim — disse Prevlov com solene sarcasmo. — Eles têm muita queda para a propaganda.

     Marganin continuou:

     — Fiz uma pesquisa das expressões americanas relacionadas com a Sicília, mas a única constante que apurei é a obsessão da ligação de sicilianos com gangsters e rufiões.

     —Se você procurasse mais... — Prevlov bocejou — teria descoberto que o nome disso é Máfia.

     — Existe também um conjunto musical cujo nome é "Estiletes Sicilianos"...

     —Prevlov lançou-lhe um olhar glacial.

     — ... e ainda uma fábrica de alimentos em Wisconsin que produz um azeite para salada chamado Siciliano.

     — Basta! — Prevlov ergueu a mão em sinal de protesto.—Era só o que faltava, azeite para salada! Não posso agüentar tanta estupidez a esta hora da manhã. — Apontou para a porta em frente. — Espero que terá outros assuntos mais importantes no escritório do que o referente à mineração.

       Já na sala, Prevlov parou diante de uma mesa sobre a qual achava um conjunto de peças de xadrez esculpidas em marfim. Pegando numa delas, disse:

     — Diga-me, tenente, joga xadrez?

       Marganin meneou a cabeça.

     — Já há muito tempo que não jogo. Costumava jogar um pouco quando era aspirante na Escola Naval.

     — O nome de Isaak Boleslavski significa alguma coisa para si ?

     — Não, senhor.

     — Isaak Boleslavski foi um dos nossos grandes mestres do xadrez — disse Prevlov, como quem ensina um colegial. — Ele concebeu inúmeras variações nesse jogo. Uma delas foi a Defesa Siciliana. — Com naturalidade, atirou o rei preto para Marganin, que o apanhou com destreza. — Jogo fascinante, o xadrez. Você devia voltar a jogar.

     Prevlov caminhou então para a porta do quarto de dormir e entreabriu-a. Virou-se e sorriu para Marganin.

       — Agora, se me permite... você conhece a saída. Bom dia tenente!

     Uma vez lá fora, Marganin contornou o edifício de apartamentos. A porta da garagem estava fechada. Depois de ter olhado para um e outro lado, quebrou um vidro da janela. Cuidadosamente, retirou alguns cacos e introduziu a mão fim de abri-0la por dentro. Mais alguns olhares cautelosos . tendo empurrado a janela, pulou sobre o peitoril e entrou na garagem. Um Ford Sedan americano, de cor preta, estava estacionado ao lado do Lancia cor de laranja de Prevlov. Marganin revistou rapidamente os dois carros e decorou o número da matrícula do Ford do Corpo Diplomático. A fim de dar a impressão de que se tratava de um simples gatuno, retirou o limpa-vidros do pára-brisas, furto muito vulgar na União Soviética. Depois, abrindo a porta da garagem por dentro, saiu.

     Voltou depressa para a parte da frente do edifício e apenas teve de esperar uns três minutos pelo elétrico. Pagou ao condutor, arranjou um lugar e olhou pela janela. Começou a rir. Tinha sido uma manhã muito proveitosa. O Projeto Siciliano estava esquecido.

 

         OS HOMENS DO COLORADO

 

                     Agosto de 1987

     Antes de instalar o gravador, Mel Donner verificou, mais por uma questão de rotina, se havia no quarto algum equipamento eletrônico de escuta.

     — Vamos fazer um teste para regular a altura da voz. — Falou então para o microfone num tom de voz sem inflexão. — Um, dois, três.

     Ajustou em seguida os controles para o tom e volume e só então fez sinal a Seagram.

     — Estamos prontos, Sid — disse Seagram, gentilmente. — Quando se sentir cansado, é só dizer e nós interromperemos até amanhã.

     O leito do hospital tinha sido ajustado de maneira a Sid ficar sentado quase na vertical. O mineralogista havia melhorado consideravelmente depois do último encontro. Tinham-lhe voltado as cores e os olhos achavam-se de novo brilhantes. Apenas o curativo em torno da sua cabeça calva mostrava a existência do ferimento.

       — Sou capaz de agüentar até à meia-noite — disse ele. — É uma maneira de me ajudar a passar o tempo. Detesto hospitais. As enfermeiras têm todas as mãos geladas e as cores, no raio da televisão, estão sempre a mudar.

     Seagram sorriu e pendurou o microfone ao pescoço de Koplin.

     — Por que não começa você pela sua partida da Noruega?

     — Tudo muito tranqüilo — disse Koplin. — O pesqueiro norueguês Godhawn rebocou o meu barco até um local a duzentas milhas da Nova Zembla, conforme o planejado. Nessa altura, o capitão forneceu ao homem condenado uma suculenta refeição de rangifer assado com molho de leite de cabra, presenteou-o com seis litros de aquavit, retirou depois o cabo do reboque e mandou este seu forçado criado a caminho do mar de Barents.

     — Algum problema atmosférico?

     — Nenhum... As suas previsões meteorológicas foram perfeitamente confirmadas. Estava mais frio que o testículo esquerdo de um urso polar, mas eu apanhei bons ventos o tempo todo. — Koplin fez uma pausa para coçar o nariz. — Era um ótimo barco aquele que os seus amigos da Noruega me arranjaram. Teriam conseguido recuperá-lo?

     Seagram abanou a cabeça.

     —Terei ainda de o saber, mas estou certo de que o tiveram de destruir. Não tinham maneira de o colocar a bordo do navio de pesquisas da NUMA, e deixá-lo à deriva, na rota de algum navio soviético, não era conveniente. Você compreende...

       Koplin concordou com tristeza.

     — Que pena! Fiquei-lhe com apego.

     — Por favor, continue — disse Seagram.

     — Avistei a Ilha do Norte da Nova Zembla no fim da tarde do segundo dia. Estivera ao leme durante mais de quarenta horas seguidas, dormindo e acordando, até que comecei a sentir ser impossível manter os olhos abertos por mais tempo. Dei graças a Deus por ter ali a aquavit. Após alguns goles, o meu estômago ardia como uma floresta incendiada e de súbito fiquei completamente desperto.

     — Não avistou outros barcos?

     — Nenhum se mostrou jamais no horizonte — respondeu Koplin, continuando. —Verifiquei que a costa era, aparentemente, formada por uma longa série de despenhadeiros rochosos. Não pude de maneira nenhuma desembarcar e estava a começar a escurecer. Deste modo, afastei-me da Costa. Atravessei o barco e consegui finalmente dormir algumas horas Pela manha, costeei os penhascos até que encontrei uma pequena e protegida enseada onde pude entrar com o auxílio do motor.

       — Você usou o barco como base?

      — Sim, durante os doze primeiros dias. Dava duas ou três voltas por dia, de esqui, explorando aqueles campos, mas voltava sempre à base para fazer uma refeição quente e dar-me um descanso durante a noite no beliche aquecido.

     — Nunca avistou ninguém até àquele momento?

     — Mantive-me sempre bem afastado da estação de mísseis Kelva e do posto de segurança em Kama. Nunca vi sinal de russos até ao último dia da missão.

     — Como é que o descobriram?

     — Deve ter sido um soldado russo em serviço de patrulha; o cão dele deve ter cruzado o meu caminho e sentido o meu cheiro. Não devia ser difícil... não tomava banho há três semanas!

     Seagram disfarçou um sorriso. Donner reiniciou o interrogatório, mas fazia-o agora mais fria e agressivamente.

     — Vamos voltar então às suas excursões pelo terreno. Que foi que encontrou?

     — Não pude percorrer toda a ilha de esqui, pelo que me concentrei nas áreas promissoras

indicadas pelo computador do satélite. — Olhou para o teto. — A Ilha do Norte e a comunicação, pelo oceano, das cadeias dos montes Urales e Yugorski, as quais estão sob uma permanente camada de gelo. Havia ventos violentos durante todo o tempo e a rapidez de resfriamento é terrível. Não avistei outra vegetação senão algum musgo de rocha. Se havia algum animal de sangue quente, manteve-se longe de mim.

     — Vamos antes concentrar-nos na exploração e deixemos o relato da viagem para outra ocasião. Uma simples descrição do terreno...

     — Koplin lançou a Donner um olhar de desaprovação e o seu tom era glacial.

     — Se eu puder continuar sem interrupção...

     — Com certeza — disse Seagram, colocando a sua cadeira estrategicamente entre o leito e Donner. — O jogo é seu, Sid, e nós seguiremos as suas regras!

       — Obrigado! — Koplin mudou de posição. — Geograficamente a ilha tem muito interesse. A descrição das irregularidades e elevações das rochas, que outrora foram sedimentos formados sob um antigo mar, poderiam encher livros e livros. Sob o ponto de vista mineralógico, a paragênese magmática está excluída.

     — Pode trocar isso por miúdos?

     Koplin sorriu.

       — A origem e a ocorrência geológica de um mineral é chamada paragênese. A magma, por outro lado, é a fonte de toda a matéria: é rocha líquida, aquecida sob pressão, que se solidifica dando lugar às rochas ígneas, mais conhecidas por basalto ou granito.

     — Fascinante! — disse Donner secamente. — Quer então você dizer que na Nova Zembla não há minerais...

     — Como percebe logo tudo, senhor Donner!... — sorriu Koplin.

     — Mas então como encontrou você vestígios de bizanio? — perguntou Seagram.

     — Quando eu, no décimo terceiro dia, estava a investigar em redor da subida que conduz à montanha Bednaia, pelo lado norte, encontrei um montão de restos.

     — Um montão de restos?

     — Mais precisamente, uma pilha de rochas que haviam sido removidas durante a escavação de um túnel de uma mina. Ora acontece que esse montão apresentava vestígios tenuíssimos de bizanio.

     Os rostos dos seus dois interlocutores tornaram-se tensos, de repente.

       — A entrada do túnel estava habilmente disfarçada — continuou Koplin. — Passei quase toda a tarde para descobrir em que escarpa se encontrava ela.

     — Um momento, Sid — Seagram tocou no braço de Koplin. — Quer então dizer que a entrada do túnel foi propositadamente disfarçada?

     — Trata-se de um antigo truque espanhol. Cobrir a abertura da entrada até a facear com o declive da montanha.

     — O montão de restos não deveria estar na direção do túnel? — perguntou Donner.

     — Geralmente é isso que acontece. Mas, no caso presente, achava-se afastado cerca de cem metros dessa linha, devido ao fato do caminho dos carros formar um arco que contorna a escarpa em direção a oeste.

     —Mas você encontrou a entrada? — continuou Donner.

     — Os trilhos e desvios para os vagões de minério haviam sido removidos e as suas marcas apagadas; no entanto, consegui descobri-las afastando-me cerca de mil e quinhentos metros e estudando o local com o auxílio dum binóculo. Assim, de longe o caminho tornava-se perfeitamente visível. Pude então terminar a localização exata da mina.

     — Mas quem se daria a todo esse trabalho para esconder uma mina abandonada no Ártico? — perguntou Seagram dirigindo-se aos outros dois homens. — Não há lógica em tudo isso!

     — O seu raciocínio está em parte certo, Gene — disse Koplin — Na verdade, eu também não vejo onde está a lógica, mas, com efeito, quanto ao método, a execução foi brilhante por parte dos homens do Colorado. Perfeitos profissionais. — Koplin falava vagarosamente, de forma quase reverente.—Foram eles que escavaram a mina da montanha Bednaia: os removedores do material inútil, os dinamitadores, os peneiradores, os broqueadores, os homens da Cornualha, os irlandeses, os alemães e os suecos. Russos, não, mas os homens que emigraram para os Estados Unidos e se tornaram nos lendários mineiros das rochas duras dos rochedos do Colorado. De que forma vieram eles a encontrar-se nas fraldas geladas da montanha Bednaia, isso fica em aberto... mas o que é certo é que foram eles os homens que vieram e mineraram o bizanio para depois desaparecerem.

     No rosto de Seagram podia se notar a mais completa incompreensão. Voltou-se para Donner, mas no rosto deste também não se percebia qualquer vestígio de entendimento.

     — É uma coisa louca, absolutamente louca!

     — Louca? — repetiu Koplin. — Louca poderá ser, mas absolutamente verdadeira.

     —Você parece estar muito seguro — murmurou Donner.

     — Com certeza. Perdi a prova concreta durante a perseguição que me moveu o guarda de segurança. Vocês apenas têm a minha palavra, mas por que duvidam dela? Na minha qualidade de cientista, eu apenas menciono fatos e não tenho qualquer motivo malicioso para mentir. De modo que, no vosso lugar, cavalheiros, aceitaria a minha palavra como verdadeira.

     — Como já disse, o jogo é seu — Seagram sorriu ligeiramente. — Você mencionou uma prova concreta.

     Donner mostrava-se calmo e friamente eficiente.

     — Depois de ter penetrado no túnel da mina... os pedaços de rocha soltos podiam ser retirados facilmente com as mãos, por isso somente precisei escavar um túnel de noventa centímetros de comprido... A primeira coisa em que esbarrei foi com uma fileira de vagões de minério. ao acender o meu quarto fósforo, descobri um par de velhos lampiões a óleo. Ambos tinham ainda combustível e acenderam à terceira tentativa. — Os seus olhos azuis meio desmaiados pareciam fixar-se em qualquer coisa para lá das paredes do quarto do hospital. — Era uma cena fantástica a que se vislumbrava à luz dos lampiões: ferramentas cuidadosamente arrumadas em prateleiras, vagões de minério, vazios, sobre os trilhos enferrujados; equipamentos de brocamento prontos para atacar a rocha... enfim, como se tudo estivesse aguardando a próxima equipe encarregada de separar o minério e levar os restos para o montão lá fora.

     — E, já agora, diga-me: ficou com a impressão de que o pessoal tivesse saído à pressa?

     — De modo nenhum. Tudo se encontrava nos seus lugares. Os beliches, numa câmara ao lado, achavam-se arrumados, a cozinha limpa e os utensílios nos seus respectivos lugares. Até as mulas utilizadas para puxar os vagões de minério tinham sido levadas para o local do trabalho e ali abatidas eficientemente a tiro. Os seus crânios mostravam um furo bem redondo ao centro. Eu diria até que a partida deles havia sido muito metódica.

     — Mas ainda não explicou como chegou à conclusão de que se tratava dos homens do Colorado — disse Donner, com simplicidade.

     — Já lá estou a chegar. — Koplin ajeitou o travesseiro e virou-se para o lado com cautela. — Todas as indicações estavam lá, naturalmente. O equipamento mais pesado ainda ostentava as marcas dos seus fabricantes. Os vagões de minério foram construídos pela Fundição Guthrie e Filhos, de Pueblo, Colorado; as ferramentas de perfuração vieram da Forja e Obras de Ferro Thor, em Denver; e as outras ferramentas mais simples traziam os nomes de diversos ferreiros, na maioria da Central City e de Idaho Springs, ambas cidades mineiras do Colorado.

     Seagram recostou-se na sua cadeira.

     — Os russos poderiam ter comprado os equipamentos no Colorado e despachado depois tudo para lá!

     — É possível — disse Koplin. — Mas há ainda outros detalhes que nos conduzem até ao Colorado...

     — Tais como?...

     — Um corpo num dos beliches, entre outras coisas exemplo!

     Seagram crispou o rosto.

     — Um corpo?

     — Com barbas e cabelos ruivos — disse Koplin, com naturalidade. — E muito bem conservado, face à temperatura que se situava na ordem dos vinte graus negativos. O que mais me intrigou foi uma inscrição gravada na madeira por cima do beliche. Estava escrita,devo acrescentar, em inglês: "Aqui jaz Jake Hobart, nascido em 1874. Um ótimo homem, que morreu congelado durante uma tempestade. 10 de Fevereiro de 1912."

       Seagram levantou-se e deu umas passadas pelo quarto.

     — Um nome. Bem, isso ao menos já é um ponto de partida. — Parou e olhou para Koplin — Havia lá algum objeto pessoal?

     — Todas as roupas foram levadas. E, estranhamente, os rótulos das latas da comida eram franceses. Havia ainda cerca de cinqüenta invólucros de tabaco de mascar Mile-Hi, espalhados pelo chão. A última peça do quebra-cabeças, a peça que definitivamente faz a ligação com os homens do Colorado, era um exemplar amarelado e apagado do Rocky Mountain News, datado de 17 de Novembro de 1911. Foi essa a prova que perdi.

     Seagram pegou num maço de cigarros e retirou um. Donner acendeu o isqueiro e aproximou-o do cigarro. Seagram agradeceu.

     — Há então uma possibilidade dos russos não se terem apoderado do bizanio — disse ele.

     — Há ainda outra coisa — disse Koplin. — A terceira página do jornal tinha a parte de cima, à direita, cortada com cuidado. Isto pode não significar nada, mas, por outro lado, uma busca nos velhos arquivos do editor talvez possa fornecer uma pista.

     — E pode mesmo — Seagram olhou para Koplin pensativamente. — De qualquer modo, é graças a si que vamos agora dar início a essas investigações.

     Donner aprovou.

     — Vou reservar uma passagem para o próximo vôo para Denver. Se tiver sorte, trarei algumas informações.

     — A sua primeira tarefa deve ser o jornal. Veja depois se consegue encontrar o rasto de Jake Hobart. Pelo meu lado, vou consultar os arquivos militares. Procure também um especialista local da história da mineração no oeste e percorra os fabricantes cujos nomes Sid nos forneceu. Embora não seja provável, pode ser que algum ainda se encontre estabelecido. — Seagram levantou-se e fixou Koplin. — Jamais lhe poderemos pagar tudo o que você fez — disse ele suavemente.

     — Penso que aqueles antigos mineiros retiraram cerca de meia tonelada de bizanio de alta qualidade das entranhas daquela medonha montanha — disse Koplin afagando a sua barba de um mês. — Aquele minério deve estar escondido algures no mundo. Ou pode ter ficado perdido para sempre, visto que nunca mais se falou dele desde 1912. Mas se vocês o encontrarem, ou por outra, quando vocês o encontrarem, terão então uma forma de me agradecer, oferecendo-me uma pequena amostra para a minha coleção.

       — Pode estar certo de que o faremos.

     — Já agora, vejam se conseguem obter o endereço daquele tipo que me salvou a vida, para que eu lhe possa enviar uma caixa de vinho de primeira qualidade. O seu nome é Dirk Pitt.

     — Está a referir-se ao médico de bordo do navio oceanográfico que o operou?

     — Não. Refiro-me ao homem que matou o guarda da patrulha soviética, bem como o cão, e carregou comigo para fora da ilha.

     Donner e Seagram entreolharam-se como que siderados. Donner foi o primeiro a voltar a si.

     — Matou um soldado duma patrulha soviética?! — Era mais uma afirmação do que uma pergunta. — Oh, Deus, mas isso só vem baralhar tudo!

     — Mas não é possível! — irrompeu Seagram, finalmente. — Você estava sozinho quando o NUMA o avistou.

     — Quem disse isso?

     — Bem, ninguém... mas foi o que supusemos...

     — Não sou nenhum super-homem — disse sarcasticamente Koplin. — O soldado da patrulha descobriu o meu rasto, aproximou-se a menos de duzentos metros e baleou-me por duas vezes. É evidente que não fiquei em condições de concorrer com um cachorro e de conduzir um barco à vela através de mais de cinqüenta milhas em mar aberto.

     — Mas de onde surgiu esse Dirk Pitt?

     — Não faço a mínima idéia. O soldado arrastava-me para o comando do seu posto de segurança quando Pitt apareceu no meio da nevasca como um verdadeiro deus escandinavo e, calmamente, como se estivesse acostumado a fazer aquilo todos os dias antes do café da manha, matou o cão e depois o guarda, sem pronunciar uma única palavra.

     — Os russos vão fazer um barulho dos diabos por causa disso — rosnou Donner.

     — Qual o quê! — retorquiu Koplin. — Não houve testemunhas e a estas horas tanto o guarda como o cão devem estar enterrados a mais de metro e meio de profundidade, sob a neve. Talvez até nunca mais sejam encontrados. Mas, se tal acontecer, quem poderá provar alguma coisa? Não estejam vendo fantasmas...

     — Esse tal Pitt correu um grande risco — disse Seagram.

     —Ainda bem que o fez — murmurou Koplin — do contrário, em vez de estar aqui deitado neste hospital, em segurança, estaria numa prisão russa dizendo tudo o que sabia e não sabia a respeito da Seção Meta e do bizanio.

     — Isso é verdade — admitiu Donner.

     — Peço-lhe que o descreva — disse Seagram. — Rosto, corpo, roupa, enfim, tudo de que se possa lembrar.

     Koplin descreveu-o. A descrição era sumária em alguns pontos, mas admiravelmente completa e outros.

     — Conversou com ele durante o trajeto até ao navio da NUMA?

     — De maneira nenhuma! Perdi a consciência logo que ele me levantou nos braços e não voltei a mim senão quando já me encontrava aqui no hospital, em Washington.

     Donner fez sinal a Seagram.

     — Precisamos encontrar esse sujeito.

     Seagram assentiu.

     — Começarei pelo almirante Sandecker. Pitt deve estar ligado ao navio de pesquisas. Talvez alguém na NUMA possa identificá-lo.

     — Estou só a pensar o que ele não saberá! — disse Donner, olhando para o chão.

     Seagram não respondeu. Pela sua mente passou uma sombria figura numa ilha coberta de neve, no Ártico. Dirk Pitt. Repetiu o nome mentalmente. De algum modo, pareceu-lhe familiar.  

 

     O telefone tocou. Passavam dez minutos da meia-noite. Sandecker abriu um olho e olhou raivosamente durante algum tempo para o aparelho. Finalmente, acabou por retirar o auscultador do gancho, após o oitavo toque.

     — Estou, que se passa?

     — Fala Gene Seagram. Terei interrompido o seu sono, almirante?

     — Oh, não. —Sandecker bocejou. — Nunca me deito antes de escrever cinco páginas da minha autobiografia, assaltar dois depósitos de bebidas e violentar a mulher de um membro do meu gabinete. Vamos lá, o que quer Seagram?

     — Surgiu uma novidade.

    — Esqueça isso. Não vou arriscar mais nenhum dos meus homens ou navios para safar nenhum dos seus agentes enviados para território inimigo. Empregou a palavra "inimigo" como se o país estivesse em guerra.

     — Não se trata nada disso.

     — De que se trata então?

     — Necessito colher informações sobre uma pessoa.

     — E para isso precisa de se dirigir a mim no meio da noite?

     — Penso que o conhecerá.

     — Qual o seu nome?

     — Pitt. Dirk. O sobrenome é Pitt, provavelmente P-i-t-t.

     — E já agora, e para satisfazer a curiosidade de um velho homem, o que o leva a pensar que eu o conheça?

     — Não tenho provas, mas estou convencido de que ele tem ligação com a NUMA.

     — Tenho mais de duas mil pessoas trabalhando sob as minhas ordens; não posso ter na memória o nome de todas elas.

     — Não seria possível verificar? Tenho a máxima urgência em falar com ele.

     — Seagram, você passa das marcas. Não lhe ocorreu a idéia de procurar o meu diretor de pessoal durante as horas normais de serviço?

     — Mil perdões — disse Seagram. — Estive a trabalhar até tarde e...

     — Está bem — cortou Sandecker. — Se descobrir a pessoa em questão, pô-la-ei em contato consigo.

     — Ficarei muito grato. — O tom de voz de Seagram tornou-se impessoal. — E, já agora, o homem que o seu pessoal salvou lá em cima, no mar de Barents, está passando muito bem. O cirurgião do First Attempt fez um magnífico serviço ao extrair a bala..

     — O seu nome é Koplin, não é verdade?

     — Sim, e deverá poder começar a andar dentro de dias. — Escapamos por uma unha negra. Se os russos nos tivessem surpreendido, estaríamos agora às voltas com um desagradável incidente.

     — Não sei o que dizer...— disse Seagram desajeitadamente,

     — Pode dizer "boa noite" e deixar que eu volte a dormir — resmungou Sandecker.—Mas, antes, diga-me só como é que esse tipo apareceu em cena.

     — Koplin estava na iminência de ser capturado por um guarda de segurança russo, quando esse fulano surgiu no meio da nevasca e matou o guarda, tendo transportado depois Koplin através de cinqüenta milhas de mar tempestuoso, além de ter estancado o sangue dos seus ferimentos. Em seguida entregou-o a bordo do seu navio de pesquisas, para ser operado.

     — Que pretende fazer quando o encontrar?

     — Isso é entre mim e Pitt.

     — Compreendo — resmungou Sandecker. — Bem, boa noite, senhor Seagram.

     — Muito obrigado, almirante. Boa noite.

     Sandecker desligou. Continuou, porém, sentado por alguns momentos com ar preocupado.

     — Matou um guarda de segurança russo e resgatou um agente americano. Dirk Pitt... seu filho da puta!

 

     O avião da United que partiu de madrugada pousou no aeroporto Stapleton, de Denver, às oito horas da manhã. Mel Donner passou rapidamente pela seção das bagagens e sentou-se ao volante de um Avis Plymouth, levando quinze minutos até à Avenida West Colfax, 400, onde era a sede do Rocky Montain News. Enquanto seguia o tráfego que se dirigia para oeste, o seu olhar alternava entre o pára-brisas e um mapa da cidade aberto no assento ao lado. Nunca havia estado em Denver. Sentiu-se, por isso, um tanto surpreendido ao verificar aquela camada de névoa e fumaça suspensa no ar. Uma atmosfera assim esperaria ele encontrar em cidades como Los Angeles e Nova Iorque, mas não numa cidade como Denver, que ele sempre imaginara purificada por um ar limpo e cristalino e aninhada sob a sombra protetora das Purple Mountain Majesties.

     Mesmo essa montanha foi um desapontamento: Denver encontrava-se nos limites dos grandes planaltos, a pelo menos quarenta quilômetros dos montes mais próximos. Donner estacionou o carro e dirigiu-se para os arquivos do jornal. A jovem que se encontrava por detrás do balcão mirou-o através de uns modernos óculos e sorriu-lhe, mostrando uns dentes desiguais.

     — Posso ser-lhe útil?

     — Têm por acaso o número da edição do dia 17 de novembro de 1911?

     — Oh, mas isso é um número bastante antigo! — A jovem fez uma careta. — Posso fornecer-lhe uma fotocópia, mas os originais estão na Sociedade Histórica do Estado.

     — Apenas precisava da página três.

     — Se quiser esperar, vai talvez demorar uns quinze minutos até eu encontrar a película do dia 17 de novembro de 1911, para então poder tirar uma cópia da página que deseja.

     — Obrigado. E, já agora, tem o catálogo comercial do Colorado, seção profissional?

     — Certamente que temos.

     Agarrou o catálogo e colocou-o sobre o tampo manchado do balcão, de fórmica. Donner

Sentou-se a fim de poder consultar o catálogo, enquanto a jovem desaparecia à procura do que ele lhe pedira. Em Pueblo não encontrou nada que dissesse respeito à Fundição Guthrie e Filhos. Passou portanto à letra T. Também não encontrou as Forjas e Obras de Ferro Thor de Denver. Na verdade, que essas firmas ainda existissem passadas quase oito décadas, seria esperar de mais, pensou ele. Há muito que os quinze minutos se haviam esgotado e a jovem ainda não voltara. Para passar o tempo, continuou a folhear o catálogo. Com exceção da Kodak, da Martin Marietta e das Borrachas Gates, poucas empresas havia que lhe fossem de algum modo familiares. Porém, de repente, ele endireitou-se. Na letra J, encontrou Jensen Thor, Fabricantes de Metais, em Denver. Arrancou a folha, meteu-a no bolso e colocou o catálogo de novo sobre o balcão.

     —Eis aqui o que o senhor pediu — disse a jovem. — São cinqüenta cêntimos.

       Donner pagou e deu rapidamente uma olhadela para o título no canto de cima do lado direito do jornal. A reportagem fazia a cobertura dum acidente numa mina.

     — Era o que o senhor procurava? — perguntou a jovem.

     — Deve servir — respondeu ele, já à porta.

     Jensen Thor, Fabricantes de Metais, estavam estabelecidos entre o pátio de manobras da

Burlington-Northern e o rio South Platte: uma perfeita monstruosidade que teria estragado qualquer paisagem, salvo aquela que a circundava. No interior do edifício da fábrica, as pontes rolantes deslocavam enormes quantidades de tubos enferrujados de um ponto para outro, enquanto as máquinas de estampar, com os seus ruídos insuportáveis, faziam os tímpanos de Donner tremerem sob o impacto. Os escritórios principais, separados por paredes de cimento com isolamento acústico e altas janelas abobadadas, situavam-se do lado de fora. Uma atraente recepcionista, de grandes seios, acompanhou-o através de paredes revestidas a madeira. Carl Jensen Jr. Afastou-se da escrivaninha e veio cumprimentar Donner. Era jovem, não mais de vinte e oito anos, e usava cabelos compridos. Tinha um bigode bem aparado e o seu fato de xadrez era de boa qualidade. Toda a gente o julgaria um ex-aluno da UCLA; para Donner, não poderia ser outra coisa.

     — Obrigado por ter arranjado tempo para me receber, senhor Jensen.

     Jensen sorriu na defensiva.

     — Pareceu-me tratar-se de coisa importante. Para mais, tratando-se duma pessoa da sua posição e pertencente à área de Washington... Como poderia eu recusar?

     — Conforme já disse pelo telefone, ando à procura de uns documentos antigos.

     O sorriso de Jensen quase desapareceu.

     — Espero que não seja do Imposto sobre Rendimentos...

     Donner meneou a cabeça.

     — Nada disso. O interesse do Governo é puramente histórico. Caso o senhor ainda as conserve, gostaria de examinar as suas notas fiscais de julho a novembro de 1911.

     — Bem, desta vez apanhou-me — disse Jensen rindo.

     — Posso assegurar-lhe que se trata de uma pergunta sem segundo sentido.

     Jensen olhou admirado.

     — E tem a certeza de que é esta a firma?

     — Tenho — disse Donner com firmeza — se esta é a herdeira da Forjas e Obras de Ferro Thor.

     — A empresa de meu bisavô — admitiu Jensen. — Meu pai comprou o alvará e mudou o nome em 1942.

     — E não terá ainda alguns papéis antigos?

     Jensen encolheu os ombros.

     — Deitamos fora todos os papéis velhos, decorrido algum tempo. Se tivéssemos guardado todos os documentos de venda desde o tempo do meu bisavô, em 1897, precisaríamos, só para os guardar, de um armazém do tamanho do Estádio Bronco.

     Donner puxou um lenço e enxugou as gotas de suor que lhe escorriam pelo rosto. Depois, deixou-se afundar numa poltrona.

     — Porém — continuou Jensen — e isso graças à visão de Carl Jensen pai, temos todos os velhos registros microfilmados.

     — Em microfilme?

     — É a única maneira. Ao fim de cada período de cinco anos, filmamos tudo. Como vê, somos a própria eficiência!

     Donner nem queria acreditar em tanta sorte.

     — Então o senhor sempre me pode fornecer os dados referentes às vendas dos últimos seis meses de 1911 ?

     Jensen não respondeu. Curvou-se sobre a secretária e falou pelo telefone interno, depois do que se recostou na sua cadeira de diretor.

     — Enquanto esperamos, posso oferecer-lhe uma chávena de café, senhor Donner?

     — Preferia alguma coisa mais estimulante.

     — Fala como um homem de uma grande cidade — Jensen levantou-se e caminhou para um bar espelhado, do qual retirou uma garrafa de Chivas Regall. — O senhor vai achar Denver muito provinciana. Um bar num escritório é ainda olhado com desconfiança... A maneira local de receber um homem ainda solteiro é oferecer-lhe uma Coca-Cola de tamanho familiar e um almoço extravagante no Wienerschnitzel. Felizmente que, para os nossos clientes de fora da cidade, fiz a minha aprendizagem na Avenida Madison.

     Donner pegou o copo que lhe foi oferecido e bebeu-o dum trago. Jensen olhou para ele apreciativamente e tornou a encher o copo.

     — Diga-me, senhor Donner, o que espera encontrar?

     — Nada de importância — disse Donner.

     — Homessa! O Governo não mandaria um homem atravessar metade do país para verificar as vendas de setenta e seis anos atrás apenas por divertimento.

     — O Governo trata muitas vezes dos seus segredos de uma maneira deveras original!

     — Um segredo referente ao ano de 1911... — Jensen meneou a cabeça, admirado.—Verdadeiramente espantoso, na verdade!

     — Suponhamos apenas, que estamos procurando descobrir um crime antigo, cujo autor teve contratos de serviço com o seu bisavô.

   Jensen sorriu e admitiu a mentira com cortesia. Uma jovem de cabelos negros, de botas e saia comprida, contornou a sala, lançou a Jensen um olhar sedutor e colocou um xerox sobre a sua mesa, retirando-se. Jensen pegou o papel e examinou-o.

     — De junho a novembro deve ter sido um período bastante fraco para o meu antepassado. As vendas nesses meses foram diminutas. Interessa-lhe algum assunto em especial, senhor Donner?

     — Equipamento de mineração.

     — Deve ser isto aqui. ... ferramentas para perfuração. Pedido datado de 10 de agosto e entregue em 1 de novembro. — Os lábios de Jensen abriram-se num largo sorriso. — Até parece piada. . .

     — Qual é a graça?

     — O comprador, ou, como o senhor me informou, o criminoso... — Jensen fez uma pausa para aumentar o efeito — foi o Governo!

 

     A Seção Meta tinha o seu quartel-general em Washington, num velho edifício cinzento junto ao Arsenal da Marinha. Um grande letreiro, cujas letras estavam a desaparecer por causa do ataque combinado do calor e da umidade do verão, anunciava ser ali a Companhia Smith de Transportes e Armazenamento. As plataformas de carregamento pareciam perfeitamente normais: grades e caixas estavam empilhadas em posições estratégicas e, para o tráfego que passava na Estrada Suitland, os caminhões estacionados por detrás de uma cerca gradeada de quatro metros e meio de altura pareciam perfeitamente naturais. Somente um exame feito mais de perto revelaria velhas carcaças de automóveis despojadas dos seus motores e empoeiradas por dentro por falta de uso. Era uma cena que decerto agradaria a um realizador de cinema. Gene Seagram passou os olhos pelos relatórios referentes à compra de terrenos para as instalações do Projeto Siciliano: ao todo eram quarenta e seis.

      A fronteira ao norte com o Canadá era a que maior número dessas instalações possuía, seguida de perto pela costa do Atlântico; a costa do Pacífico tinha oito áreas previstas, enquanto para as fronteiras com o Golfo do México e o México apenas estavam designadas quatro. As transações decorreram sem sobressaltos, aparecendo sempre o comprador como pertencendo ao Departamento de Estudos de Energia. Não havia razão para suspeitas. No que se refere ao aspecto exterior, as instalações eram planejadas de modo a parecerem pequenas estações transformadoras de energia elétrica. E, para satisfazer os mais prudentes, nada havia de suspeito à superfície. Estava a examinar as estimativas das construções, quando o seu telefone privativo tocou. Levado pela força do hábito, colocou primeiro com todo o cuidado os papéis nas suas pastas, guardando-as na escrivaninha e só então tirou o auscultador do gancho.

     —Estou! — Sim, senhor Seagram. Quem está a falar!

     — O major McPatrick, dos Arquivos do Exército. Não foi o senhor que pediu para lhe telefonar para esse número caso fosse encontrado qualquer coisa a respeito de um mineiro chamado Jake Hobart?

     —Sim, com certeza. Desculpe-me, mas estava com pensamento num outro assunto.

     Seagram quase podia ver o homem na outra extremidade da linha... Formado em West Point, menos de trinta anos... Os seus cálculos baseavam-se na maneira de pronunciar resumidamente os verbos e no tom da voz. Atingiria, provavelmente, o generalato aos quarenta e cinco anos, caso estabelecesse os contatos necessários quando se sentasse a uma escrivaninha no Pentágono.

     — O que obteve, major?

     — Encontrei o seu homem. O nome completo é: Jason Cleveland Hobart, nascido em 23 de janeiro de 1874, em Vinton, Iowa.

     — Pelo menos o ano confere.

     —A profissão também: era mineiro.

     — E que mais?

     —Alistou-se no Exército em maio de 1898 e serviu no Primeiro Regimento de Voluntários do Colorado, nas Filipinas.

     — O senhor disse Colorado?

     — Certo.

     McPatrick fez uma pausa e Seagram podia escutar o manuseio dos papéis através da linha.

     —Hobart possuía uma excelente folha de serviços. Foi promovido durante a guerra ao posto de sargento. Sofreu vários ferimentos ao combater os revolucionários filipinos e foi condecorado duas vezes por atos de bravura em combate.

     — Quando é que foi licenciado?

     — Naquele tempo chamavam a isso "revista de saída" — disse McPatrick, mostrando conhecimentos. — Hobart deixou o Exército em outubro de 1901.

     — São essas as últimas notícias sobre ele?

     — Não, a viúva continua a receber a pensão.

     — Um momento — interrompeu Seagram. — A viúva de Hobart ainda está viva?

     — Ela continua a descontar o seu cheque de cinqüenta dólares e quarenta cêntimos todos os meses, sem uma falha.

     — Mas ela deve ter mais de noventa anos! Não é um pouco fora do normal o pagamento de uma pensão à viúva de um veterano da guerra hispano-americana? Não seria de supor que todas elas já estivessem agora enterradas?

     — Mas olhe que não. Temos ainda quase uma centena de viúvas da Guerra Civil nas nossas folhas de pagamento de pensões. Nenhuma delas era ainda nascida quando Grant tomou Richmond. Casamentos em maio e dezembro entre lindas rapariguinhas e velhos veteranos desdentados do Grande Exército da República era prática comum naqueles dias.

     — Supunha que uma viúva só tinha direito à pensão quando o marido morria em combate.

     — Não necessariamente — disse McPatrick. — O Governo pagará uma pensão à viúva em dois casos: o primeiro é quando a morte se dá em conseqüência de serviço. Este inclui, naturalmente, a morte em combate, ou resultante de ferimento ou doença adquiridos durante o tempo em que serviu dentro de determinadas datas estabelecidas pelo Congresso. O segundo, refere-se ao caso de morte fora do serviço. Tome por exemplo o seu caso. O senhor serviu na Armada durante a guerra no Vietnam entre as datas estabelecidas para aquele conflito. Por essa razão a sua futura mulher terá direito a uma pequena pensão, se o senhor morrer, agora, atropelado por um caminhão.

     — Vou anotar isso para quando fizer o meu testamento — disse Seagram, agastado por verificar que a sua ficha se encontrava à disposição de qualquer um no Pentágono. — Voltando a Hobart...

     — Chegamos agora a uma esquisita omissão nos nossos arquivos.

     — Omissão?

     — Na ficha de Hobart não consta que ele tenha voltado a alistar-se novamente. No entanto, há um registro da sua "morte em serviço". Não se mencionou a causa, apenas a data: 17 de novembro de 1911.

     Seagram endireitou-se na cadeira.

     — Mas sei de fonte segura que Jake Hobart morreu como civil a 10 de fevereiro de 1912.

     — Conforme já disse, não se menciona a causa da morte. Mas posso assegurar-lhe que Hobart morreu como um soldado, e não como um civil, a 17 de novembro. Tenho uma carta no arquivo, com a data de 25 de julho de 1912, assinada por Henry L. Stimson, secretário da Guerra do Presidente Taft, ordenando que fosse dada à viúva do sargento Jason Hobart a pensão integral enquanto fosse viva. De que forma Hobart despertou o interesse do secretário da Guerra é um mistério, mas não deixa dúvidas quanto à classe do homem. Somente um soldado de grande categoria teria recebido essa espécie de tratamento preferencial e, certamente, nunca um mineiro de carvão.

     — Ele não fazia a mineração do carvão — disse, rápido, Seagram.

     —Bem, qualquer que fosse...

     — O senhor tem o endereço da senhora Hobart?

     — Devo ter aqui em qualquer sítio — McPatrick hesitou um momento. — Senhora Adeline Hobart : 261-B Calle Aragon, Laguna Hills, Califórnia. Fica naquele grande conjunto que se desenvolveu logo abaixo da costa de Los Angeles, habitado por pessoas idosas.

     — Isso é o suficiente — disse Seagram. — Agradeço a sua ajuda neste caso, major.

     — Sinto dizer, senhor Seagram, mas creio tratar-se de dois

     — Acredito que o senhor tenha razão — disse Seagram. — Parece-me que estou realmente no caminho errado.

     — Se houver mais alguma coisa em que eu possa ser-lhe útil, não hesite em chamar-me.

     — Certamente que o farei. Mais uma vez obrigado.

     Após ter desligado, mergulhou a cabeça nas mãos e afundou-se na cadeira. Ficou assim durante uns bons dois minutos. Depois, colocou as mãos sobre a mesa e teve um largo sorriso de compreensão. Poderia ter havido dois homens nascidos no mesmo dia e que tivessem o mesmo nome, vivessem no mesmo Estado e tivessem a mesma ocupação. Tudo isso poderia ter sido uma pura coincidência: porém uma coisa havia, cuja probabilidade era de um para trezentos e sessenta e cinco, que fazia realmente crer que se tratava de uma só e mesma pessoa: a data da morte de Hobart que constava nos arquivos do Exército, era a mesma do jornal encontrado por Sid Koplin na mina cavada na montanha Bednaia-17 de novembro de 1911. Pegou no auscultador do aparelho de comunicação interna e ligou para a sua secretária.

     —Bárbara, faça-me uma ligação para Mel Donner, Brown Palace Hotel, Denver.

     — Deixo algum recado para o caso dele não estar?

     — Sim. Para ele me telefonar, logo que chegue, para a minha linha particular.

     — Vou tratar do assunto.

     — Mais uma coisa: reserve-me uma passagem na United, para Los Angeles, para amanhã cedo.

     — Sim, senhor.

     Seagram desligou o aparelho e recostou-se pensativamente na cadeira. Adeline Hobart, com mais de noventa anos de idade... Pediu a Deus que ela não se encontrasse senil.

 

     Donner não costumava hospedar-se num hotel do centro comercial. Preferia sempre a discrição dum motel numa área ajardinada dos subúrbios, mas Seagram convencera-o dizendo que um investigador obtém uma maior e mais facilitada cooperação local quando dá a conhecer que se instalou na zona mais antiga e famosa da cidade. A palavra "investigador" causava-lhe náuseas. Se algum dos seus colegas professores da Universidade do Sul da Califórnia lhe houvesse dito que o seu doutoramento em Física o levaria a executar essa tarefa clandestina, ele teria estourado de riso. Porém, Donner não ria agora. O Projeto Siciliano era demasiado importante para os interesses do país para que ele se arriscasse a procurar a ajuda de alguém. Ele e Seagram delinearam e criaram o projeto e ambos concordaram em conduzi-lo sozinhos, pelo menos enquanto pudessem.

     Deixou o seu Plymouth alugado ao cuidado do guarda do estacionamento, atravessou Tremont Place, passou pelas portas giratórias de modelo antigo do hotel e chegou ao vestíbulo, agradavelmente decorado, onde um jovem de bigode, assistente do gerente, lhe entregou uma mensagem sem ao menos lhe ter dirigido um sorriso. Donner recebeu-a sem um "obrigado" e, encaminhando-se para os elevadores, avançou para o quarto. Bateu a porta, atirou a chave e a mensagem para cima da mesa e ligou o aparelho de televisão. Tivera um dia longo e cansativo e as suas resistências ainda estavam reguladas pela hora de Washington, D.C. Pelo telefone, chamou a copa e pediu o jantar. Atirou os sapatos para longe, desapertou a gravata e deitou-se sobre a cama.

     Pela décima vez ou quase, dedicou-se a examinar a fotocópia do velho jornal. Uma leitura que seria muito interessante se Donner estivesse procurando afinadores de pianos, cintas elétricas para hérnias e remédios desconhecidos, além de editoriais relativos a determinações do Conselho da Cidade de Denver para limpar tais e tais ruas de pecaminosas casas de diversão, ou notas maliciosas capazes de escandalizar as leitoras dos primeiros anos do século.

     Donner sorriu ao ler um curioso trecho, mas a sua atenção foi atraída para o canto superior da página, parte que, segundo Koplin, faltava no jornal que ele encontrara na Nova Zembla.

     "DESASTRE NA MINA A tragédia abateu-se, como um fantasma vingativo, esta manhã cedo, quando uma explosão de dinamite tapou a entrada da Mina do Anjinho, perto de Central City, aprisionando nove homens do primeiro turno, entre eles o muito conhecido e respeitado engenheiro de minas Joshua Hays Brewster. As equipes de socorro, exaustas e desanimadas, declararam haver poucas esperanças de encontrar os homens vivos.

     Bill Mahoney, o intrépido capataz da Mina Satan, não logrou, apesar de todos os seus hercúleos esforços, alcançar os mineiros soterrados, pois teve de desistir em face de uma parede de água que havia inundado o túnel da mina. Mahoney , declarou ao repórter no próprio local do desastre: “Aqueles pobres diabos estão certamente perdidos. A água subiu muito acima do ponto em que eles estavam a trabalhar. Devem ter se afogado como ratos antes que pudessem perceber o que se estava a passar.” A multidão que se aglomerara à entrada da mina, calma e silenciosa, lamentava tristemente a sorte dos sitiados e a quase impossibilidade de os seus corpos serem retirados a fim de serem convenientemente enterrados. O plano do Sr. Brewster de abrir a Mina do Anjinho, que se encontrava fechada desde 1881, era por demais conhecido. Amigos e associados do Sr. Brewster dizem que, na sua opinião, a perfuração que tinha sido feita anteriormente não conseguira encontrar o veio de maior teor, e que ele, se tivesse sorte e perseverança, havia de encontrá-lo.

     Quando o Sr. Ernst Blõeser, antigo dono da Mina do Anjinho e presentemente aposentado, foi procurado para dar a sua opinião, havia declarado em frente da sua casa, em Golden, que “aquela mina mostrara ter caveira de burro desde o dia em que eu a abri. Tudo o que produziu foi um minério de baixo teor que nunca deu lucro”. Depois , prosseguiu: “Acho que Brewster estava redondamente enganado. Nunca houve qualquer indicação da existência de um veio principal. Espantou-me que um homem com a sua reputação pudesse pensar dessa maneira.”

     A última notícia divulgada em Central City diz que a situação está agora nas mãos do Todo Poderoso. A mina terá a sua entrada selada como um túmulo e os homens que lá se encontram jamais voltarão a ver a luz do sol. A macabra lista dos homens que morreram nesse horrível desastre é a seguinte:

Joshua Hays Brewster, Denver Alvin Coulter, Fairplay Thomas Prince, Leadville Charles P. Widney, Cripple Creek Vernon S. Hall, Denver John Caldwell, Central City Walter Schmidt, Aspen Warner E. O'Deming, Denver Jasson C. Hobart, Boulder.

     Possa Deus proteger estes bravos trabalhadores das montanhas.

    

       Não importa saber quantas vezes os olhos de Donner percorreram essa antiga reportagem. Eles fixavam-se sempre no último nome da lista dos mineiros desaparecidos. Vagarosamente, como em transe, pegou no telefone e pediu uma chamada para longe.

 

     — Um "Monte Cristo"! — exclamou Harry Young. — Recomendo sinceramente o "Monte Cristo". O quefort que o acompanha é também excelente. Mas prefiro um Martini bem seco.

     — Sim, senhor. Um sanduíche “Monte Cristo” e Roque, na sua salada — repetiu a criadinha, curvando-se de tal modo sobre a mesa que a minissaia lhe subiu ao ponto de deixar ver as calcinhas brancas.

     — E o senhor?

       — Quero o mesmo — concordou Donner. — Mas, para começar, traga-me um Manhattan com muito gelo.

     Young olhou por cima dos óculos, enquanto a criada se dirigia apressadamente para a cozinha.

     — Se alguém me quisesse dar aquilo como presente de Natal... — disse ele a sorrir.

     Young era um homenzinho magro. Algumas décadas atrás poder-se-ia dizer que ele se vestia com rebuscada elegância: um pequeno janota... Agora era um bon vivant de setenta e oito anos, rosto vivo e franco, e que ainda sabia apreciar uma bela jovem. Vestia um sweater de gola alta e um casaco de desporto e achava-se sentado diante de Donner.

     — Senhor Donner — disse ele alegremente — mas isto é um grande prazer! O Broker é o meu restaurante preferido. — Fez um gesto com a mão, mostrando as divisões e as paredes forradas de madeira — Sabe, isto aqui era a casa-forte de um banco!

     — Notei isso quando tive de me abaixar para passar naquela porta de cinco toneladas.

     — O senhor devia vir aqui jantar. Como aperitivo, servem uma enorme bandeja com camarões! — E ele vibrava ao simples pensamento daquilo.

     — Lembrarei disso quando da minha próxima visita.

     — Bem! — Young olhou-o com firmeza. — O que tem em mente?

     — Gostava de lhe fazer algumas perguntas.

     Young ergueu as sobrancelhas.

     — Oh, o senhor está a despertar a minha curiosidade! Será que é do FBI? Pelo telefone, disse apenas que trabalhava para o Governo Federal.

     — Não, não faço parte do FBI, nem pertenço ao Imposto de Rendimento. O meu departamento trata do bem-estar social. Procuro simplesmente investigar a autenticidade dos pedidos de pensão.

     —Como posso então ajudá-lo?

     — De momento estou a investigar um acidente que ocorreu numa antiga mina, há setenta e seis anos e na qual perderam a vida nove homens.

     Um descendente de uma das vítimas está a candidatar-se a uma pensão. Pretendo, pois, verificar a validade da pretensão. O seu nome, senhor Young, foi-me recomendado pela Sociedade Histórica do Estado, que veementemente o descreveu como sendo uma "enciclopédia viva" sobre a história da mineração do oeste.

     — Há um bocado de exagero nisso... —disse Young. — Mas, de qualquer maneira, sinto-me envaidecido.

     Trouxeram os drinques e eles bebericaram durante uns momentos. Donner aproveitou esse tempo para estudar as fotografias que estavam penduradas nas paredes e que representavam os "reis da prata" do Colorado na mudança do século Todos eles mostravam o mesmo olhar glacial e penetrante, como se pretendessem derreter as objetivas das câmaras fotográficas, tal era a arrogância que a riqueza lhes dera.

     — Diga-me, senhor Donner, como é possível alguém pretender obter uma pensão relativa a um acidente ocorrido setenta e seis anos antes?

     — Parece que a viúva não teria recebido tudo aquilo a que tinha direito — disse Donner,

Arriscando-se em terreno inseguro. — Segundo parece, a filha deseja receber os atrasados.

     — Compreendo — disse Young.

     Olhou pensativamente por alguns segundos e depois começou a tamborilar no prato com a colher.

     — Qual dos homens que perderam a vida no desastre da Anjinho lhe interessa?

     — Os meus parabéns — disse Donner, desviando o olhar e desdobrando o guardanapo com cuidado. — O senhor não perde uma vaza!

     — O que não significa muito, na verdade. Acidente numa mina, ocorrido há setenta e seis anos, nove homens perdidos: só poderia tratar-se do desastre da Anjinho.

       — O nome do homem era Brewster.

     Young fixou-o um instante mais e então, cessando de tamborilar no prato, bateu com força na mesa com a colher.

     — Joshua Hays Brewster — ecoou o nome. — Nascido em 4 de abril... ou talvez em 5 de abril de 1878, filho de William Buck Brewster e de Hettie Masters, em Sidney, Nebrasca.

     Donner arregalou os olhos.

     — Como é possível o senhor lembrar-se de tudo isso?

     — Oh, sei isso e muito mais... — Young riu. — Engenheiros de minas, ou a Brigada dos Sapatos de Cordões, como eram conhecidos, constituíam um verdadeiro clã. Uma das poucas profissões em que os filhos seguiam os pais e se casavam com as irmãs ou as filhas dos colegas de profissão.

     — Não me diga que também era parente de Joshua Hays Brewster!

     — Era meu tio — Young sorriu. Donner ficou sem fala. — O senhor parece necessitar de outro drinque... — Young fez sinal à empregadinha para repetir as doses. — é escusado dizer que não existe nenhuma filha tentando obter qualquer pensão. O irmão de minha mãe morreu solteirão.

     — Mais depressa se apanha um mentiroso... — disse Donner com um leve sorriso. —Sinto tê-lo embaraçado ao apanhar-me como tolo!

     — Poderia esclarecer-me, então?

     — Preferia não o fazer.

     — Está então ao serviço do Governo? — perguntou Young.

     Donner mostrou os documentos.

     — Posso ao menos perguntar por que está fazendo averiguações sobre o meu tio, morto há tanto tempo?

     — Preferiria, como já disse, não falar nisso, pelo menos neste momento.

     — O que pretende, na verdade, saber?

     — Tudo o que me possa contar acerca de Joshua Hays Brewster e do acidente da Anjinho.

     Os drinques vieram juntamente com a salada. Donner concordou que o acompanhamento era excelente. Quando Young terminou e limpou o seu bigodinho branco ao guardanapo, inspirou profundamente e recostou-se.

     — Meu tio era o tipo do pioneiro que explorava as minas no início do século. Branco, entusiasta, classe média: afora a sua pequena estatura (media somente um metro e cinqüenta e sete), poderia ter passado por aquilo que os modernos novelistas descrevem como cavalheiresco, bons punhos, "estou-me nas tintas", aventureiro, mas competente engenheiro de minas, botas brilhantes, calções de montar e chapelão de rancheiro.

     — Pela descrição lembra antigos heróis dos filmes das matinées de sábado.

     — A figura de um herói de ficção jamais poderia comparar-se a ele — disse Young. — A sua ação hoje está muito restrita, mas um engenheiro de minas da velha escola tinha de ser mais duro que as rochas com que trabalhava e tinha de ser versátil: mecânico, eletricista, supervisor, metalúrgico, geólogo, advogado, árbitro entre uma administração sovina e rudes trabalhadores. Joshua Hays Brewster era o tipo de homem para dirigir uma mina.

     Donner manteve-se silencioso, fazendo girar vagarosamente a bebida no seu copo.

     — Após a sua formatura na Escola de Minas — continuou Young — exerceu a profissão em Klondike, Austrália e Rússia, antes de regressar às Montanhas Rochosas, em 1908, a fim de dirigir os trabalhos de Sour Rock e Buffalo, um par de minas em Leadville, pertencentes a um grupo francês de Paris que nunca pôs os pés no Colorado.

     — O grupo possuía licença para explorar minas nos Estados Unidos?

     — Sim, o seu capital baseava-se nos pesados carregamentos vindos do oeste... ouro, prata, gado vacum, carneiros... além de terras: possuíam um pouco de tudo.

     — O que levou então Brewster a reabrir a Anjinho?

     — Isso foi uma decisão estranha — disse Young. — A mina não prestava. A Alabama Burrow, a menos de trezentos metros de distância, produziu dois milhões de dólares em prata antes que a água penetrasse mais depressa do que as bombas a podiam esgotar. Aquele foi o túnel que encontrou o veio de mais alto teor. A Anjinho não se lhe comparava.

     Young fez uma pausa para tomar um golo do seu drinque e ficou olhando-o como se avistasse alguma coisa por entre os cubos de gelo.

     — Quando o meu tio anunciou, para quem o quisesse ouvir, a sua intenção de reabrir a mina, as pessoas que o conheciam bem ficaram espantadas. Sim, senhor Donner, espantadas. Joshua Hays Brewster era um homem cauteloso, um homem exaustivamente minucioso. Cada passo que dava era cuidadosamente calculado em termos de êxito. Ele nunca se arriscava quando as probabilidades não eram a seu favor. Não se podia pensar que ele fosse anunciar publicamente um projeto tão leviano. O simples fato foi considerado por toda a gente como uma loucura.

     — Quem sabe se ele não teria encontrado qualquer indício que tivesse passado despercebido aos outros?

     — Há mais de sessenta anos que eu sou geólogo e muito bom, diga-se de passagem. Reabri e examinei a Anjinho até ao nível a que subiram as águas e analisei cada centímetro acessível da Alabama Burrow e posso afirmar de forma positiva e sem equívocos: não existem, agora, lá em baixo veios de prata, como não existiam em 1911.

     Os sanduíches "Monte Cristo" vieram e os pratos da salada foram retirados.

     — Mas o senhor estará a sugerir que o seu tio estava realmente louco?

     — De fato, ocorreu-me essa possibilidade. Tumores no cérebro não podiam, geralmente, ser diagnosticados naquela época.

     — O mesmo se dava com os esgotamentos nervosos.

     Young devorou a primeira quarta parte do seu sanduíche e acabou o seu segundo Martini.

     — Como acha o seu "Monte Cristo", senhor Donner?

     Donner forçou-se a comer alguns pedaços.

     — Excelente, e que tal o seu?

     — Fabuloso. Quer conhecer a minha teoria particular? Não se preocupe em ser cortês. Ria quando lhe apetecer. Todos o fazem quando me ouvem.

     — Prometo que não vou rir — disse Donner, com a maior seriedade.

     — Não deixe de mergulhar o seu "Monte Cristo" na geléia de uva, senhor Donner. Aumenta o prazer. Bem, como disse, meu tio era um homem que não descurava os mínimos detalhes; um hábil avaliador do seu trabalho, das áreas vizinhas e suas realizações. Guardei a maior parte dos seus diários e livros de anotações: ocupam grande parte das estantes do meu gabinete. As suas observações, por exemplo, referentes às minas Sour Rock e Buffalo enchem quinhentas e vinte e sete páginas com perfeitos croquis e manuscritos facilmente legíveis. Porém, as páginas do livro de notas com o título "Mina do Anjinho" estão totalmente em branco.

     — E não teria deixado, talvez, uma pasta referente à Anjinho?

     Young encolheu os ombros e meneou a cabeça.

     — Tem-se a impressão de que nada havia para registrar, como se Joshua Hays Brewster e a sua equipe de oito homens houvessem entrado por aquela terra adentro sem a intenção de regressarem.

     — O que está o senhor a sugerir?

     — Por mais ridículo que possa parecer — admitiu Young — o pensamento de um suicídio em massa já uma vez passou pela minha cabeça. Após amplas pesquisas a que procedi, cheguei à conclusão de que todos os homens envolvidos eram viúvos ou solteirões. A maior parte deles eram itinerantes e mudavam-se de mina para mina, procurando sempre um pretexto para se transferir quando se cansavam dum lugar ou quando se desentendiam com o capataz ou a direção da mina. Tinham pouco que os prendesse à vida e estavam a ficar velhos para o trabalho que executavam.

     — Mas Jason Hobart tinha mulher! — disse Donner.

     — O quê? Que foi que disse? — Young arregalou os olhos. — Não encontrei referência a nenhuma mulher relacionada com algum deles.

     — Quanto a esse ponto, peço-lhe, aceite a minha palavra.

     — Deus do Céu! Se o meu tio tivesse sabido disso, jamais teria contratado Hobart.

     — Que quer dizer com isso?

     — O senhor não pode compreender: ele precisava de homens em quem, implicitamente, pudesse confiar; homens que não possuíssem amigos íntimos nem parentes, que poderiam fazer perguntas caso eles viessem a desaparecer.

     — O que está a dizer não faz qualquer sentido — disse, simplesmente, Donner.

     — Por outras palavras: a reabertura da Mina do Anjinho e a tragédia que se seguiu não passaram duma simulação, um pretexto, um logro. Estou convencido de que o meu tio estava louco. Como foi possível tal acontecer, ou o que foi que fez com que acontecesse, nunca mais ninguém o saberá. O seu caráter sofreu uma alteração profunda; passou a ser um outro homem.

     — Uma personalidade esquizofrênica?

     — Exatamente. Os seus valores morais mudaram; o seu interesse e amizade pelos amigos desapareceram. Quando eu era ainda novo, costumava conversar com pessoas que se lembravam dele. Todos eram concordes num ponto: o Joshua Hays Brewster que eles tinham conhecido morrera poucos meses antes do acidente da Mina do Anjinho.

     — E o que faz deduzir que fosse uma simulação?

     — Pondo de lado a loucura, meu tio era principalmente um engenheiro de minas. Por vezes, em poucos minutos, ele podia prever se determinada mina iria ou não dar lucro. Ora, a Anjinho era um fracasso e ele sabia. Nunca foi sua intenção procurar um veio rico no seu interior. Não faço a mais pequena idéia de qual teria sido o seu jogo, senhor Donner. Mas estou certo de uma coisa: quando se bombear a água do fundo da mina, não se irá encontrar nenhum esqueleto...

     Donner terminou o seu Manhattan e olhou, intrigado, para Young.

     — Quer então dizer que pensa que os nove homens escaparam?

     — Na verdade, ninguém os viu entrar — disse Young sorrindo. — Admitiu-se e com razão que eles morreram lá no fundo porque nunca mais foram vistos...

     — Isso não é prova suficiente — disse Donner.

     — Oh, mas tenho mais, muitas mais... — disse Young, entusiasmado.

     — Estou pronto para as ouvir.

     — Item um: A seção de trabalho mais baixa da Anjinho ficava bem uns trinta metros acima do nível médio das águas. Na pior das hipóteses, as paredes teriam vazado moderadamente devido à acumulação na superfície. Os tabuleiros do túnel inferior já se encontravam alagados, porque a água foi gradualmente subindo durante os anos em que a mina esteve fechada. Portanto, não havia possibilidade de que uma explosão de dinamite tivesse desencadeado uma onda de água sobre o meu tio e o seu grupo. Item dois: O equipamento supostamente encontrado na mina após o acidente era velho e pouco funcional. Ora, aqueles homens eram profissionais, senhor Donner. Jamais teriam descido à mina com ferramentas de segunda ordem. Item três: Embora tivesse tornado público que iria reabrir a mina, o meu tio nunca consultou ou discutiu o assunto com Ernest Blõeser, seu antigo proprietário. Resumindo: o meu tio agiu sem a sua autorização. Uma coisa inadmissível num homem com a sua reputação moral. Item quatro: A primeira notícia que se teve do acidente chegou sob a forma de uma nota encontrada pelo capataz da Mina Satan, na tarde do dia seguinte, por baixo da porta da sua cabina. A nota era dirigida a Bill Mahoney e dizia: “Socorro! Mina do Anjinho. Venha depressa!” Um modo muito estranho de dar o alarme, não lhe parece? Naturalmente, a nota não estava assinada. Item cinco: O delegado de Central City declarou que o meu tio lhe dera uma relação com os nomes dos homens do seu grupo e lhe pedira que entregasse a lista aos jornais, caso sucedesse algum acidente. Um palpite muito estranho, será o mínimo que se pode dizer. Tudo leva a crer que o tio Joshua queria ter a certeza de que não haveria erro quanto à identificação das vítimas.

     Donner empurrou o seu prato e bebeu um copo de água.

     — Considero a sua teoria muito curiosa mas não inteiramente convincente.

     — Ah, sim? Então agora ouça o mais importante e que de propósito deixei para o fim. Item seis: Alguns meses após o acidente, minha mãe e meu pai, que se encontravam numa viagem de turismo pela Europa, viram meu tio no cais de uma estação ferroviária em Southampton, Inglaterra. Minha mãe contava sempre como se tinha dirigido a ele e o que lhe tinha dito. “'Deus do Céu, Joshua, mas és mesmo tu?” O rosto que se voltara para ela achava-se barbudo e mortalmente branco, os olhos vidrados. “Esquece-me”, disse ele baixinho. Virou-se e desatou a correr. Meu pai ainda tentou alcançá-lo, correndo atrás dele, mas depressa o perdeu de vista no meio da multidão.

     — A resposta lógica será de que se tratou de um simples caso de erro de identificação.

     — Uma irmã não reconhecer o seu próprio irmão? — perguntou Young, sarcasticamente. — Não me venha com isso, senhor Donner. Certamente que o senhor reconheceria o seu irmão no meio de uma multidão, não lhe parece?

     — Acredito que não. Sou filho único.

      —É pena, o senhor perdeu um dos maiores prazeres da vida.

     — Pelo menos não tive de dividir os meus brinquedos.

     A nota com a despesa foi trazida e Donner colocou um cartão de crédito sobre a mesa.

     — Então, o senhor pretende afirmar que o acidente da Anjinho não foi senão uma forma de engolir qualquer coisa?

       — É essa a minha opinião. — Young limpou a boca no guardanapo. — Não é possível prová-la, claro, mas sempre tive a sensação de que a Société des Mines de Lorraine se encontrava por detrás disso.

     — Quem eram eles? — Eles eram e continuam a ser o que a Krupp é na Alemanha o que a Mitsubishi é para o Japão e o que a Anaconda é para os Estados Unidos.

     — Onde é que a Société... ou lá como se chama... entrou no negócio?

     — Eles eram os financiadores franceses que contrataram serviços de Joshua Hays Brewster como engenheiro e chefe da exploração. Eram os únicos com capital suficiente para poder pagar a nove homens para desaparecerem da face da terra.

     — Mas por que e qual o motivo?

     Young fez um gesto de desânimo.

     — Não sei. — Inclinou-se para a frente e os seus olhos brilhavam. — Mas sei que, qualquer que tenha sido o preço, qualquer que tenha sido essa influência, foi suficiente para levar meu tio e o seu grupo de oito homens para algum inferno que não conheço, fora do país.

     — Até que os corpos sejam encontrados, ninguém poderá dizer que o senhor está errado.

     Young olhou fixamente para ele.

     — O senhor é um homem cortês. Fico-lhe agradecido.

     — Por quê? Um simples almoço por conta do governo?

     — Não, pelo fato de não ter rido de mim — disse Young suavemente.

     Donner assentiu, mas não disse nada. O homem ali na sua frente acabava de fornecer o último elo da cadeia para se chegar ao fim do mistério do cadáver de barbas ruivas encontrado na mina da montanha Bednaia. Não havia razão nenhuma para rir, absolutamente nenhuma.

 

     Seagram correspondeu ao sorriso de despedida da hospedeira de bordo, desceu do jato da United e percorreu os quatrocentos metros que mediavam até à entrada da rua no Aeroporto Internacional de Los Angeles. Finalmente alcançou o vestíbulo e, ao contrário de Donner, que havia alugado o seu carro no stand 2, Seagram preferiu o 1, onde escolheu um Lincoln da Hertz.

     Virou para cima, para a Avenida Century, e, depois de percorridos alguns quarteirões, entrou num viaduto pelo sul e tomou a estrada de San Diego. O céu estava sem nuvens e o ar surpreendentemente pouco poluído, o que permitia avistar as montanhas da Sierra Madre. Dirigia sem pressa, tomando a pista da direita da estrada, a menos de cem quilômetros à hora, enquanto a corrente principal do tráfego passava pelo Lincoln a cento e vinte e cento e trinta, na mais completa indiferença pelas placas que indicavam a velocidade máxima de noventa quilômetros à hora. Depressa deixou para trás as refinarias químicas de Torrance e as torres de petróleo em torno de Long Beach, para entrar na vastidão de Orange County, onde o terreno, de repente, se apresentava plano e onde tem início um imenso oceano de residências.

     Demorou pouco mais de uma hora até alcançar a saída para o Mundo do Lazer. Era um cenário perfeito: campos de golfe, piscinas, estábulos, relvados cuidadosamente aparados e áreas de estacionamento, pessoas idosas, de pele dourada pelo sol, passeando de bicicleta. Parou diante do portão principal e um guarda idoso, em uniforme, depois de ter verificado a sua identidade, orientou-o para o 261-B da Rua Aragon. Era uma encantadora residência, pequenina, bem encaixada na encosta de um morro com um parque de aspecto imaculado.

     Seagram estacionou o Lincoln junto do passeio, caminhou pelo pátio enfeitado com roseira e tocou a campainha da porta. Aberta esta, os seus temores desvaneceram-se: Adeline Hobart não dava mostra alguma de senilidade.

     — Senhor Seagram? — A voz era agradável e leve.

     — Sim, senhora Hobart.

     — Por favor, entre.

     —Ela estendeu-lhe a mão. O aperto firme como o de um homem. — Meu Deus! Há mais de sete anos que ninguém me chama por esse nome. Quando recebi o s telefonema de tão longe referindo-se a Jake, fiquei tão surpreendida que quase esqueci de tomar o meu Geratol.

       Adeline era forte, mas carregava os seus quilinhos a mais com facilidade. Os seus olhos azuis pareciam rir a cada frase e o rosto tinha um ar gentil e animado. Com os seus cabelos brancos como a neve, era o que se chama uma velhinha doce.

   — A senhora não me parece ser do tipo dos que tomam Geratol.

     Ela deu uma pancadinha no braço dele.

     — Se isso é uma amabilidade, muito obrigada. — E conduziu-o até junto de uma cadeira na sala de estar, decorada com gosto. — Venha e sente-se. O senhor fica para almoçar, não fica?

     — Será uma honra, se isso lhe não causar muito trabalho.

     — Certamente que não. Bert está lá fora, dando voltas pelo campo de golfe e eu gosto de companhia.

     Seagram olhou para ela.

     — Bert?

     — Sim. O meu marido.

     — Mas, eu julgava...

     — ... que eu ainda era a viúva de Jake Hobart — completou-lhe a frase, sorrindo inocentemente. — A verdade é que eu tornei a senhora Bertram Austin há já sessenta e dois anos.

     — E o Exército sabe disso?

     — Oh, Céus! Claro que sabe. Enviei cartas para o Departamento da Guerra, notificando-os do meu casamento, mas eles apenas responderam polidamente e continuaram remetendo os cheques.

     — Mesmo depois de saberem que a senhora se tinha casado novamente?

     Adeline encolheu os ombros.

     — Eu sou apenas um ser humano, senhor Seagram. Para quê discutir com o Governo? Se eles insistem em enviar o dinheiro quem e que lhes vai dizer que eles estão loucos?

     — Um arranjinho lucrativo!

     — Não o nego — assentiu ela. — Particularmente se incluirmos os dez mil dólares que recebi por ocasião da morte de Jake.

     Seagram inclinou-se para a frente, franzindo a testa.

     — O Exército pagou uma indenização de dez mil dólares? Mas isso era uma exorbitância em 1912!

     — O senhor não está mais surpreso do que eu própria me surpreendi na ocasião —continuou ela .— Sim, aquela importância constituía uma fortuna na época.

     — Houve alguma explicação?

     — Nenhuma — respondeu ela. — Após tantos anos, ainda tenho presente o cheque. Tudo o que estava escrito era: "Pagamento de Viúva" e era dirigido nominalmente a mim. Foi tudo o que houve a esse respeito.

     — Talvez possamos começar pelo princípio.

     — Quando encontrei Jake?

     Seagram acenou afirmativamente. Os olhos dela olharam para lá de Seagram por alguns momentos.

     — Conheci Jake no terrível inverno de 1910. Foi em Leadville, no Colorado, e eu acabara de completar os dezesseis anos. Meu pai andava em viagem de negócios pelos campos de minas, com o fim de investigar a possibilidade de investimentos em diversas áreas requisitadas. Como o Natal estava próximo e eu tinha alguns dias de férias na escola, meu pai condescendeu e levou-me e à minha mãe com ele. Mas, mal o comboio acabava de chegar a Leadville, começou a cair o mais forte nevão dos últimos anos, o qual também atingiu o norte do Colorado. Durou cerca de duas semanas. E pode crer que não foi nenhum divertimento, principalmente se considerarmos que a altitude de Leadville é de mais de três mil metros.

     — Deve ter constituído uma aventura inesquecível para uma adolescente de dezesseis anos!

     — Sim, foi mesmo. Enquanto o meu pai caminhava de um lado para o outro no vestíbulo do hotel, mais parecendo um touro encurralado, a minha mãe passava os dias sentada e muito preocupada. Mas eu achava aquilo tudo maravilhoso!

     — E Jake?

     — Certo dia, eu e a minha mãe esforçávamos-nos por conseguir atravessar a rua para o lado do armazém... o que constituía um verdadeiro sacrifício, dado que se era chicoteado por um vento de oitenta quilômetros à hora e que a temperatura descera a menos de vinte e nove graus centígrados negativos... quando surgiu, não se sabe de onde, um brutamontes que, da maneira menos ortodoxa possível, agarrou por baixo dos braços cada uma de nós e nos colocou, sob aquela tempestade de neve, à porta do armazém.

     — Era Jake?

       — Sim — disse ela, distraída. — Era Jake.

     — Como era ele?

       — Era um homem grandalhão, mais de um metro e oitenta, peito largo. Havia trabalhado numa mina do País de Gales, quando ainda garoto. Mesmo a um quilômetro de distancia, era fácil distinguir Jake no meio duma multidão: tinha cabelos e barba ruivos e estava sempre sorridente.

     — Cabelos e barba ruivos?

     — Sim, e ele orgulhava-se disso pelo fato de se distinguir dos demais. — Toda a gente simpatiza com uma pessoa risonha! — Ela riu gostosamente. — No entanto, posso lhe dizer que da minha parte não foi um amor à primeira vista. Aos meus olhos, Jake parecia um grande urso desajeitado. Era o tipo de homem que dificilmente poderia despertar interesse a uma rapariguinha.

     — Mas a senhora casou-se com ele...

     Ela assentiu com a cabeça.

     — Ele desdobrou—-e em atenções comigo durante todo o tempo em que durou a nevasca e quando o sol reapareceu, através das nuvens, ao fim de catorze dias, aceitei a sua proposta de casamento. Meu pai e minha mãe ficaram quase loucos, como se pode calcular, mas Jake conseguiu por fim também convencê-los.

     — Mas a senhora não esteve casada muito tempo, pois não?

     — Vi-o pela última vez um ano depois.

     — No dia em que ele e outros ficaram soterrados na Mina do Anjinho...— Era mais uma afirmação que uma pergunta.

       — Sim — disse ela, com ansiedade, procurando evitar o olhar dele e voltando a sua atenção para a cozinha. — Deus meu, tenho de preparar o almoço! Deve estar faminto, senhor Seagram.

     Entretanto, a típica expressão de homem de negócios de Seagram desapareceu e os seus olhos iluminaram-se numa súbita excitação.

     — Teve notícias de Jake depois do acidente da Anjinho, não foi, senhora Austin?

       Ela pareceu refugiar-se nas almofadas da sua cadeira. A apreensão espalhou-se pelo seu agradável rosto.

     — Não sei a que se refere, senhor.

     — Pois eu penso que a senhora o compreendeu — observou ele suavemente.

     — Não... não, o senhor está enganado.

     — Por que está à senhora receosa?

     — Já lhe disse tudo o que podia. — As suas mãos estavam agora trêmulas.

     — Há mais, muito mais, senhora Austin. —Ele adiantou-se e pegou-lhe as mãos. — Por que está a senhora com medo?

     — Prometi guardar segredo — murmurou ela.

     — Pode explicar como foi?

     Ela disse, hesitante:

     — O senhor... senhor Seagram, pertence ao Governo e sabe o que significa guardar um segredo...

     — Quem foi? Foi Jake? Foi ele que lhe pediu para não falar? — Ela meneou a cabeça. —Então quem foi?

     — Por favor, acredite-me — implorou ela. — Não lhe posso dizer... nada lhe posso dizer.

     Seagram ergueu-se e curvou-se perante ela. Parecia ter envelhecido: as rugas pareciam mais profundamente marcadas na sua pele gasta. Recolhera-se a si mesma. Seria necessário aplicar, embora com gentileza, um tratamento de choque para a fazer abrir-se.

     — Posso servir-me do seu telefone. senhora Austin?

     — Certamente. O senhor encontrará a extensão mais próxima na cozinha.

     Só passados uns sete minutos a voz familiar lhe chegou aos ouvidos. Rapidamente, Seagram explicou a situação e fez o seu pedido. Em seguida voltou à sala.

     — Senhora Austin, poderia chegar aqui, por um momento?

     Timidamente, ela aproximou-se. Ele entregou-lhe o auscultador.

     — Está ao telefone uma pessoa que lhe deseja falar.

     Com precaução, ela tomou o auscultador das mãos dele.

     — Estou — murmurou ela — aqui fala Adeline Austin.

     Por um breve instante, os seus olhos mostraram uma impressão de confusão, que a seguir se foi transformando até adquirir finalmente um ar de verdadeiro espanto. Ela meneou diversas vezes a cabeça, sem dizer nada, como se pudesse ver do outro lado da linha. Finalmente, no fim daquela conversação unilateral, conseguiu pronunciar meia dúzia de palavras:

     — Sim, senhor... eu o farei. Adeus.

     Colocou, vagarosamente, o auscultador no gancho e permaneceu uns instantes numa espécie de transe de perplexidade

     — Era... era realmente o Presidente dos Estados Unidos?

     — Sim, era ele. Se assim o desejar, pode verificar. Disque para longa distância e chame a Casa Branca. Quando atenderem, fale com Gregg Collins. O principal assessor do Presidente. Foi ele quem me pôs agora em contato com o Presidente.

     — Imaginem lá, o Presidente pedindo-me para o ajudar! — Ela sacudiu a cabeça meio atordoada. — Custa-me a acreditar que isso tenha realmente acontecido!

     — Pois aconteceu, senhora Austin. Acredite-me, qualquer informação que nos possa dar referente ao seu primeiro marido e às estranhas circunstancias que envolveram a sua morte, podem ser altamente importantes para a nação. Reconheço que lhe custa recordar essa fase já passada da sua vida, mas. . .

     — Quem pensaria em contrariar o Presidente?

     De novo o seu sorriso doce tinha voltado. As mãos de Adeline tinham parado de tremer e ela estava outra vez tranqüila, pelo menos aparentemente. Seagram agarrou-lhe no braço e, gentilmente, conduziu-a a sua cadeira, na sala de estar.

     — Então, agora, fale-me das relações de Jake Hobart com Joshua Hays Brewster.

     — Jake era um especialista em explosivos, um dinamitador, um dos melhores da região. Ele conhecia a dinamite tão bem como um ferreiro conhece a sua forja e tal como o senhor Brewster fazia questão de ter junto de si os melhores de entre os dos seus grupos. Também era freqüente Brewster contratar Jake para trabalhar com ele.

     — Brewster sabia que Jake era casado?

       — É estranha essa sua pergunta! Tínhamos uma casinha em Boulder, longe dos campos de minas, porque Jake não queria que se soubesse que tinha mulher. Dizia ele que nenhum capataz contrataria um dinamitador que fosse casado.

     — Portanto, Brewster, desconhecendo o fato de que Jake era casado, contratou-o para o serviço de dinamitador na Mina do Anjinho.

     — Sei muito bem o que os jornais publicaram, senhor Seagram, mas Jake nunca entrou na Mina do Anjinho, nem tão pouco os seus companheiros.

     Seagram aproximou-se mais, de tal forma que os seus joelhos quase se tocavam.

     — Quer então dizer que o desastre foi uma simulação? — perguntou ele, em voz rouca.

     Ela levantou os olhos.

     — O senhor sabe... o senhor também sabe disso?

     — Nós suspeitávamos, mas não temos provas.

     — Se o que precisa é de uma prova, senhor Seagram, vou buscá-la num instante.

     Levantou-se, desprezando as tentativas de auxílio de Seagram e dirigiu-se a outro compartimento. Voltou, trazendo uma velha caixa de sapatos, que começou a abrir reverentemente.

     — No dia que antecedeu a sua entrada para a Anjinho, Jake levou-me a Denver para uma orgia de compras. Comprou-me roupas extravagantes, jóias, e fomos ao melhor restaurante da cidade, onde tivemos um jantar regado a champanhe. Passamos a nossa última noite juntos, na suíte para noivos em lua-de-mel, no Brown Palace Hotel. Conhece-o?

     — Tenho precisamente um amigo lá hospedado agora.

     — Pela manhã ele disse-me para não acreditar no que ouvisse ou lesse nos jornais a respeito dum acidente na mina e no qual ele teria perdido a vida. Ele teria de se afastar por alguns meses a fim de realizar um trabalho num determinado lugar da Rússia, Voltaria rico, como nunca o teríamos podido imaginar. Então mencionou uma coisa que eu nunca entendi.

     — E que foi essa coisa?

     — Disse que os franceses estavam a cuidar de tudo e que quando terminasse o trabalho, iríamos viver para Paris. — O rosto mostrava uma expressão sonhadora. — Pela manhã ele já tinha partido e sobre o travesseiro achava-se um bilhete que dizia simplesmente: "Amo-te, Adeus", e um sobrescrito contendo cinco mil dólares.

     — E tem alguma idéia de onde pudesse ter vindo dinheiro?

     — Nenhuma. Apenas possuíamos, nessa altura, trezentos dólares no banco.

     — E foi essa a última notícia que teve dele?

       — Não.

     A velha senhora entregou a Seagram um bilhete postal já meio esbatido com uma fotografia colorida da Torre Eiffel num lado.

     — Isso chegou pelo correio cerca de um mês depois.

     “Querida Ad, o tempo aqui está chuvoso e a cerveja é horrível, Estou bem, assim como os outros. Não te aflijas. Como estás a ver, estou absolutamente nada morto. Tu sabes quem eu sou.”

     A letra era caracteristicamente a de um homem que tinha a mão pesada. O carimbo do correio indicava que o cartão fora expedido de Paris no dia 1 de dezembro de 1911.

     — Uma semana depois, recebi outra carta — disse Adeline, estendendo-a a Seagram. A vista era do Sacré Coeur, mas havia sido mandada do Havre.

     “Querida Ad, vamos a caminho do ártico. Esta será a minha última carta durante algum tempo. Sê forte. Os franceses tratam-nos bem. A alimentação é boa e o navio também. Tu sabes quem eu sou.”

    — A senhora está certa de que a letra é a de Jake?

     — Tenho certeza absoluta. Possuo outros papéis e cartas de Jake. Pode compará-las se desejar.

     — Não será necessário, Ad. — Ela sorriu ao ouvir este nome. — Houve mais alguma comunicação?

     Ela acenou afirmativamente.

     — A terceira e última. Jake deve ter comprado uma porção de postais em Paris. Este aqui mostra a Sainte-Chapelle, mas foi deitado em Aberdeen, Escócia, a 4 de abril de 1912.

     “Querida Ad, isto é um lugar terrível. O frio é de meter medo. Não sabemos se conseguiremos sobreviver. Se eu sempre conseguir enviar-te este postal, fica sabendo que te deixarei protegida. Deus te abençoe. Jake. Ao lado alguém havia acrescentado: “Cara senhora Hobart. Perdemos Jake numa tempestade. Rezamos por ele uma oração cristã. Sentimos muito.V. H.”

       Seagram tirou a lista que continha os nomes dos homens que faziam parte do grupo e que Donner lhe lera pelo telefone.

     — V.H. deve ter sido Vernon Hall — disse ele.

     — Sim, Vern e Jake eram bons amigos.

     — E o que aconteceu depois disso? Quem a fez jurar segredo?

     — Dois meses mais tarde, penso que foi no princípio de junho, um tal coronel Patman ou Patmore... não me posso lembrar ao certo... veio a nossa casa em Boulder e disse-me que era imperativo que eu nunca revelasse ter havido qualquer contato com Jake depois do acidente da Anjinho.

     — E apresentou qualquer razão?

     Ela meneou a cabeça.

     — Não. Disse simplesmente que era do interesse do Governo que eu me mantivesse calada. Então, entregou-me o cheque dos dez mil dólares e partiu.

     Seagram afundou-se na cadeira, como se lhe tivessem tirado um grande peso de cima dos ombros. Não parecia possível que aquela velhinha de noventa e três anos possuísse a chave de um segredo de um bilhão de dólares em minério; mas ela possuía. Seagram olhou para ela e sorriu.

     — Aquele oferecimento do almoço está-me a parecer agora uma ótima idéia.

     Ela retribuiu o sorriso e ele pôde notar-lhe nos olhos um ar brincalhão.

     — Como diria Jake, o almoço que vá para o inferno. Vamos tomar antes uma cerveja.

 

     Ainda se vislumbravam os raios avermelhados do pôr do sol no horizonte ocidental quando o primeiro ronco de uma trovoada ainda distante assinalou a aproximação de uma tempestade. O ar estava morno e a leve brisa terral roçou agradavelmente pelas faces de Seagram, que estava bebericando o seu conhaque, apos o jantar, sentado no terraço do Balboa Bay Club. Eram oito horas, momento em que os elegantes moradores de Newport Beach dão início às atividades sociais. Seagram estivera na piscina do clube e depois jantara cedo. Ali permanecendo, escutando os ruídos da tempestade que se aproximava. O ar tornou-se espesso e carregado de eletricidade, mas não se viam vestígios de chuva ou de vento.

     Sob os clarões dos relâmpagos, ele podia avistar os barcos de recreio atravessando a baía, com as suas luzes de navegação verde e vermelha, pintura branca emprestava a aparência de silenciosos zantes fantasmas. Um relâmpago, qual garfo irregular rasgou o céu nublado, atravessou outra vez o ar da noite. Seagram observou que o raio caíra em qualquer ponto por de trás dos telhados da ilha Balboa. Quase no mesmo instante um estrondo se fez ouvir como o troar de muitos canhões. Todos os que ali se achavam se dirigiram para o salão de jantar e Seagram verificou que o terraço ficara vazio. No entanto continuou sentado, apreciando a natureza na sua exibição naquele fogo de artifício.

     Terminado o seu conhaque, recostou-se na cadeira, disposto a observar o próximo relâmpago. Logo este se seguiu e o seu clarão mostrou que havia uma pessoa junto à sua mesa. Foi o tempo suficiente para poder verificar que se tratava dum homem alto, cabelos pretos, feições irregulares que o olhava com olhos frios e penetrantes. Assim que o ruído cessou e quando a escuridão envolvia de novo o estranho, uma voz, que parecia não vir de ninguém perguntou:

     — O senhor é Gene Seagram?

     Seagram hesitou, dando tempo a que os seus olhos se adaptassem à escuridão que se havia seguido à claridade.

       — Sim, sou eu.

     — Creio que andou à minha procura.

     — Se me disser com quem estou a falar...

     — Com mil perdões. Chamo-me Dirk Pitt.

     O céu iluminou-se novamente e Seagram sentiu-se aliviado ao ver o rosto sorridente na sua frente.

     — Pareceria, senhor Pitt, que as entradas dramáticas são muito do seu gosto. Teria o senhor também providenciado para esta tempestade elétrica?

     A risada que Pitt deu em resposta foi acompanhada pelo ruído do trovão.

     — Essa proeza ainda não consegui executar, mas tenho feito progressos na divisão do Mar Vermelho.

     Seagram apontou-lhe uma cadeira.

     — Não quer sentar-se?

     — Obrigado.

     — Gostaria de lhe oferecer uma bebida, mas, pelo que julgo, o criado tem medo da trovoada.

     — O pior já está passado — disse Pitt, olhando para o céu. A sua voz era calma e controlada.

     — Como foi que me encontrou?

     — Através de diversas fontes — respondeu Pitt .— Telefonei para sua mulher, em Washington e ela disse-me que o senhor tinha vindo para o Mundo do Lazer. Como distam apenas alguns quilômetros daqui até lá, dirigi-me ao guarda do portão, que me disse ter deixado entrar um Gene Seagram por ordem da senhora Bertram Austin. Por sua vez, esta informou-me que lhe havia recomendado o Balboa Club, quando o senhor lhe dissera que pretendia pernoitar aqui. Depois, tudo foi fácil.

     — Eu até me deveria sentir importantíssimo com tanta persistência da sua parte.

     Pitt anuiu.

     — Foi tudo muito simples.

     — Foi uma sorte termos nos encontrado ao mesmo tempo nestas paragens — disse Seagram.

     — Nesta altura do ano, costumo praticar ski. Os meus pais têm uma casa do outro lado da baía. Poderia ter entrado em contato consigo mais cedo, mas o almirante Sandecker disse que não havia pressa.

     — Conhece o almirante?

     — Trabalho para ele.

     — Então o senhor está na NUMA?

     — Sim, sou o diretor de Projetos Especiais.

     — Com efeito, o seu nome é vagamente familiar. Minha mulher já o tem mencionado.

     —Trata-se de Dana?

     — Sim, o senhor tem trabalhado com ela?

     — Apenas uma vez. Levei mantimentos num avião para a ilha Pitcairn, no verão passado, quando ela e o seu grupo de arqueologia da NUMA se entregavam as pesquisas submarinas em busca de objetos do Bouney.

     — Quer então dizer que o almirante Sandecker Lhe disse que não havia pressa em me procurar?

     — Pelo que percebi, o senhor atacou mal o assunto, com um telefonema a meio da noite.

       As nuvens negras afastavam-se na direção do mar e a trovoada pairava agora sobre Catalina, do outro lado do canal.

     — E agora que estou aqui, em que posso servi-lo? — indagou Pitt.

     — O senhor poderia começar por falar sobre a Nova Zembla.

     — Não há muito para dizer — disse Pitt, com simplicidade. — Eu estava encarregado da expedição que tinha a missão de apanhar o seu homem. Como ele não tivesse aparecido na data convencionada, tomei um helicóptero do navio e fiz um vôo de reconhecimento sobre aquela ilha russa.

     — O senhor arriscou-se. O radar soviético poderia tê-lo apanhado dentro do seu campo.

     — Considerei essa possibilidade. Por isso, mantive-me a três metros acima da água e não excedi a velocidade de quinze nós. Mesmo que eu tivesse sido localizado, o ruído do meu motor seria confundido com o de um pequeno barco de pesca.

       — O que aconteceu depois que alcançou a ilha?

     — Percorri a costa até encontrar o barco de Koplin amarrado numa enseada. Pousei na praia perto dele e comecei a procurar Koplin. Nessa altura, ouvi tiros através de uma parede de neve que se movimentava sob a ação de uma rajada de vento.

     — Como foi possível encontrar Koplin e o guarda da patrulha russa? Conseguir localizá-los é o mesmo que achar uma agulha num monte de feno.

     — Mas uma agulha não emite latidos — respondeu Pitt. Bastou-me seguir o som e logo os encontrei.

     — Na verdade, assassinou o guarda... — disse Seagram.

     Pitt fez um gesto largo.

     — Contudo, naquele momento, fiz o que me pareceu ser o que deveria fazer.

     — E suponha que o guarda também fosse um dos meus agentes...

     — Não se arrastam, puxando pelo pescoço e de uma forma tão sádica, através da neve, companheiros de armas, especialmente quando o que é arrastado se encontra seriamente ferido.

     — E o cão, também tinha de o matar?

     — Ocorreu-me que, se o deixasse, ele poderia conduzir uma patrulha à procura do corpo do seu dono. Da maneira como procedi, é provável que nenhum dos dois jamais seja encontrado.

     — O senhor costuma trazer sempre o revólver com silenciador?

     — Não foi essa a primeira vez que o almirante Sandecker me convocou para um trabalho sujo e fora das minhas obrigações habituais — disse Pitt.

       — Antes de levar Koplin para o navio, suponho que terá destruído o barco dele — disse Seagram.

     —Fi-lo de uma forma muito inteligente — respondeu Pitt. Não havia na sua voz qualquer sinal de presunção. — Fiz um rombo no casco, icei a vela e deixei que se afastasse. Tenho a impressão de que se afundou a três milhas da costa.

     —O senhor confia demais em si próprio — disse Seagram de mau humor. — Teve a audácia de se meter num assunto que não lhe dizia respeito. Furou a vigilância russa ao correr um grave risco sem autorização. Para além disso, matou a sangue-frio um homem e o seu animal. Se todos fôssemos como o senhor, esta seria, na verdade, uma nação infeliz.

     Pitt levantou-se e curvou-se sobre a mesa até que os seus olhos ficassem ao mesmo nível dos de Seagram.

     — O senhor está a ser injusto comigo — observou. Os seus olhos estavam mais frios que uma geleira. — O senhor esquece-se do principal. Fui eu quem forneceu ao seu amigo Koplin mais de um litro de sangue durante a operação. Fui eu quem ordenou ao navio que passasse ao largo de Oslo e se dirigisse para o campo de aviação militar dos Estados Unidos mais próximo e fui eu ainda quem convenceu o comandante da base a ceder o seu próprio avião para o transporte de Koplin de volta aos Estados Unidos. Em conclusão: Pitt, o sedento de sangue, o cão raivoso, reconhece a sua culpa... a culpa de ter salvado os destroços da sua pequenina e rastejante missão de espionagem no Ártico. Eu não estava à espera duma parada com uma chuva de papelinhos pela Broadway abaixo, nem tão pouco de uma medalha de ouro; um simples "obrigado" teria sido o suficiente. Em vez disso, o que saiu da sua boca foi uma descarga fecal de grosserias e sarcasmos, Não sei qual é o seu problema, Seagram, mas uma coisa é evidente: você é uma cavalgadura completa. Enfim, o mínimo que lhe posso dizer é que você se foda. Em seguida, Pitt virou-se e perdeu-se na escuridão.

 

     O professor Peter Barshov passou a sua mão grosseira pelos cabelos grisalhos e apontou a haste do seu cachimbo por cima da mesa, na direção de Prevlov.

       — Não, não, permita-me assegurar-lhe, comandante, que o homem que mandei para a Nova Zembla não é sujeito a alterações.

     — Mas um túnel de mina... — murmurou Prevlov com incredulidade — Um túnel de mina desconhecido e sem registro no solo russo? Não me ocorreria que isso fosse possível!

     — E, não obstante, trata-se de um fato — respondeu. As primeiras indicações aparecem nas fotografias aéreas. De acordo com o meu geólogo, que conseguiu entrar nele, o túnel é antigo, entre setenta e oitenta anos.

     — Por que teriam aberto essa mina?

    — Não sei porquê, comandante. O que importa é saber quem teria escavado a mina e com que fim.

       — O senhor disse que o Instituto de Geologia Leongc não possui registro dela? —perguntou Prevlov.

     Barshov meneou a cabeça.

     — Nem uma palavra. No entanto o senhor poderá ter qualquer coisa nos arquivos antigos de Okhrana.

     — Okhrana... oh, sim, a polícia secreta dos czares. — Prevlov fez uma pausa. — Não, não é provável. Naquela época. a única preocupação era a revolução. Não teriam dado importância a uma operação clandestina de mineração.

     — Clandestina? Mas o senhor não pode ter certeza disso.

     Prevlov virou-se e olhou fixamente pela janela.

     —Desculpe-me, professor, mas, devido ao trabalho que executo, estou sempre a ver razões maquiavélicas em tudo.

     Barshov retirou o cachimbo de entre os seus dentes manchados e bateu com ele.

     — Tenho já lido por diversas vezes artigos referentes a minas fantasmas no Hemisfério Ocidental; mas essa é a primeira de que ouço falar situada na União Soviética. Parece até que esse raro fenômeno foi um presente dos americanos...

     — Por que diz isso? — Prevlov voltou-se e encarou novamente Barshov. — Que têm eles a ver com isso?

     — Talvez nada e talvez tudo! O equipamento encontrado dentro do túnel foi fabricado nos Estados Unidos.

     — Isso não representa qualquer prova — disse Prevlov com ceticismo. — O equipamento poderia ter sido simplesmente comprado nos Estados Unidos e utilizado por outra gente.

     Barshov sorriu.

     —Seria uma hipótese válida, salvo o fato de ter sido lá encontrado o corpo de um homem e de uma autoridade no assunto e de toda a confiança ter afirmado que o seu epitáfio estava escrito em língua americana vernácula.

     — Isso não deixa de ser interessante... — replicou Prevlov.

     — Peço desculpa por não poder fornecer-lhe dados mais precisos — disse Barshov. —As minhas observações são apenas em segunda mão; o senhor compreende... Vai ter sobre a sua mesa, amanhã de manhã, um relatório pormenorizado relativo às nossas descobertas na Nova Zembla e o meu pessoal estará à sua disposição para futuras investigações.

     — A Marinha agradece a sua colaboração, professor.

     — O Instituto Leongorod está sempre ao serviço da nossa pátria. — Barshov levantou-se e fez um rígido cumprimento. — Se é tudo por ora, comandante, voltarei ao meu escritório.

     — Há ainda uma coisa, professor.

     — Sim?

     — O senhor não mencionou se os seus geólogos encontraram sinais de algum mineral importante.

     — Nada de importante.

     — Absolutamente nada?

     — Apenas vestígios de níquel e de zinco e ainda mais leves indicações radioativas de urânio, tório e bizanio.

     — Esses dois últimos não me são familiares...

     — O tório pode ser convertido em combustível nuclear quando bombardeado por nêutrons — explicou Barshov. — É também usado no fabrico de diferentes ligas de magnésio.

     — E o bizanio?

     — Pouco se sabe a seu respeito. Nunca foi descoberta uma quantidade suficientemente grande para permitir fazer necessárias experiências. — Barshov bateu com o cachimbo no cinzeiro — Os franceses são os únicos que têm mostrado interesse nele.

     Prevlov ergueu os olhos.

     — Os Franceses?

     — Eles têm gasto milhões enviando expedições de geólogos por todo o mundo, à procura dele. E, ao que consta, nenhuma delas foi bem sucedida.

     — O que parece significar que eles sabem de alguma coisa que os nossos cientistas desconhecem.

     Barshov encolheu os ombros.

     — Não lideramos o mundo em todos os campos da ciência, comandante. Se assim fosse, nós e não os americanos, estaríamos agora a passear de automóvel sobre a superfície da lua

     — Mais uma vez obrigado, professor. Aguardo o seu relatório final.

 

     Distante quatro blocos do edifício do Departamento da Marinha, o tenente Pavel Marganin, mergulhado na leitura dum livro de poesias, achava-se comodamente instalado num banco de jardim. Era meio-dia e as áreas relvadas estavam pejadas de funcionários de escritório almoçando debaixo das árvores , bem espaçadas. De vez em quando, levantava o olhar e observava alguma bonita rapariga que estivesse a passar. Ao meio-dia e meia, um homem gordo, trajando uma farda de trabalho bastante amarrotada, sentou-se na outra extremidade do banco e começou a desembrulhar um pequeno pedaço de pão escuro e um copo com sopa de batata. Virou-se para Marganin e dirigiu-lhe um rasgado sorriso.

     — Quer partilhar deste pedaço de pão? — inquiriu o estranho, jovialmente. Em seguida bateu na barriga — Tenho mais que o suficiente para os dois. A minha mulher faz questão de me alimentar de mais e de me conservar gordo para que as raparigas não corram atrás de mim.

     Marganin fez que não com a cabeça e continuou a ler. O homem encolheu os ombros e fingiu que mordia um pouco de pão, Começou a mastigar vagarosamente, mas só na aparência: a sua boca conservava-se vazia.

     — Que tem você para mim? — murmurou, enquanto parecia comer.

     Marganin continuou a olhar fixamente para o livro, que havia levantado ligeiramente a fim de encobrir os lábios.

     — Prevlov tem um caso com uma mulher de cabelos pretos e curtos; roupas caras, sapatos de salto baixo, tamanho trinta e seis, e que aprecia o licor Chartreuse. Dirige um carro da Embaixada americana, com a matrícula USA-146.

     — Tem certeza disso?

     — Não me costumo dedicar à ficção — retorquiu Marganin, enquanto, despreocupadamente, virava uma folha do livro.

     —Sugiro, portanto, uma imediata ação em relação a estas informações. Pode estar aí a chave daquilo que procuramos.

     —Saberei a identidade dela ainda antes do pôr do sol. — O estranho começou então a comer a sua sopa ruidosamente. — Mais alguma coisa?

     — Necessito de informações relativas ao Projeto Siciliano.

     — Nunca ouvi falar dele.

     Marganin baixou o livro e esfregou os olhos, mantendo, porém, uma das mãos em frente dos lábios.

       — Trata-se de um projeto de defesa ligado, de alguma forma com a Agência Nacional Marítima e Submarina.

     — É possível que eles se tornem excessivamente aborrecidos, vendo transpirar segredos referentes a projetos de defesa.

     — Diga-lhes para não se preocuparem. A manobra será feita discretamente.

     — Seis dias a contar de hoje. O lavabo dos homens no Restaurante Borodino. Seis e quarenta da tarde.

     Marganin fechou o livro e aprumou-se. O estranho engoliu ruidosamente mais uma colher de sopa, em sinal de assentimento, e ignorou totalmente Marganin, que se havia levantado e caminhava na direção do edifício do Soviete Naval.

     O secretário do Presidente sorriu cortesmente e levantou-se por detrás da sua secretária. Era alto e jovem e tinha um rosto agradável e atencioso.

     — Senhora Seagram, certamente. Por favor, siga-me aqui.

     Conduziu Dana até ao elevador da Casa Branca e colocou-se ao lado para que ela passasse. Dana fingia uma completa indiferença e olhava com naturalidade para a frente. Se ele soubesse ou suspeitasse sequer de alguma coisa, certamente que a estaria despindo totalmente. Lançou um olhar ao secretário e notou que o seu rosto se mantinha impenetrável ao fixar o clarão da luz no andar. As portas abriram-se e ela seguiu-o através do vestíbulo até um dos quartos de dormir do terceiro andar.

       —Ei-lo ali, sobre a lareira — disse o secretário. — Nós o encontramos na cave, dentro de uma caixa fechada e sem qualquer letreiro. Um bonito trabalho. O Presidente insistiu para que fosse trazido para aqui, onde pudesse ser admirado.

     Os olhos de Dana franziram-se quando ela se viu em frente a um modelo de barco à vela que repousava dentro de uma caixa de vidro sobre a lareira.

     — Ele espera que a senhora possa lançar alguma luz sobre a história deste barco — continuou o secretário. — Como pode observar, não há qualquer indicação do nome no casco ou na caixa.

     Ela caminhou, desajeitadamente, para junto da lareira, a fim de o observar mais de perto.

Estava confusa: não era isso o que esperava. Naquela manha o secretário dissera-lhe simplesmente, pelo telefone:

     — O Presidente deseja saber se seria possível a senhora dar um pulo à Casa Branca, pelas duas horas, aproximadamente!

     Uma estranha sensação percorreu-lhe o corpo. Não podia dizer se se tratava de uma sensação de desapontamento, se de alívio.

     — Segundo parece, deve tratar-se de um "mercante" do início do século dezoito — disse ela. — Terei de fazer alguns croquis e compará-los com os velhos desenhos que possuímos nos arquivos da Marinha.

     — O almirante Sandecker disse que, se alguém fosse capaz de o identificar, esse alguém seria a senhora.

     — O almirante Sandecker?

     — Sim, foi ele quem a recomendou ao Presidente.

     — O secretário dirigiu-se para a porta. — Há um bloco de papel e um lápis na mesa de cabeceira, ao lado da cama. Tenho de voltar ao trabalho. Por favor, sinta-se à vontade e demore o tempo que quiser.

     — Mas o Presidente não...

     — Ele está a jogar golfe esta tarde. A senhora não será perturbada. Quando terminar, terá apenas de tomar o elevador e descer até ao piso principal.

     E, antes que Dana pudesse responder, o secretário virou-se e saiu. Dana deixou-se cair pesadamente na cama e suspirou. Ela correra para casa depois do telefonema. Tomara um banho perfumado, vestira-se com todo o esmero: um vestido que a remoçava, de um branco virginal, sobre lingerie preta... E tudo para nada! O Presidente não queria sexo... apenas queria que ela identificasse um raio de modelo de um velho navio... Completamente arrasada, dirigiu-se para o quarto de banho a fim de se ver ao espelho. Quando voltou, a porta do quarto achava-se fechada e o Presidente, com o seu aspecto jovem, queimado pelo sol e trajando uma camisa de pólo e slacks, encontrava-se de pé junto à lareira.

     Dana arregalou os olhos. Por um momento, não lhe ocorreu nada para dizer. Por fim, disse uma banalidade:

     — Pensei que estivesse a jogar golfe.

     — Isso era o que constava na minha agenda.

     — Quer então dizer que essa história do navio...

    — O brigue Roanoke da Virgínia — disse ele, referindo-se ao modelo. — O lançamento foi em 1728 e ele encalhou sobre os rochedos da Nova Escócia, em 1743. Meu pai construiu, há cerca de quarenta anos, o modelo a partir de quase nada.

     — E o senhor deu-se a todo este trabalho apenas para que ficássemos a sós? — perguntou ela, confusa.

     — Isso é óbvio, não lhe parece?

     Olhou-o fixamente. Ele enfrentou o seu olhar e ela enrubesceu.

     — Ora — continuou ele — eu desejava ter uma conversa informal a sós consigo, sem interferências nem interrupções, o que não seria o caso se se passasse no meu gabinete.

     O quarto parecia girar à volta dela.

     — O senhor... quer apenas falar?

     Ele olhou-a um momento com curiosidade e depois começou a sorrir.

     — A senhora lisonjeia-me. Nunca tive a intenção de a seduzir. Temo que a minha reputação como homem dado a mulheres esteja um tanto exagerada.

     — Mas na reunião...

     — Estou a compreender. — Tomou-a pela mão e conduziu-a para uma cadeira. —Quando lhe segredei "Preciso vê-la a sós", a senhora tomou isso como proposta de velho devasso. Peço que me desculpe, mas não era essa a minha intenção.

     Dana suspirou.

     — Eu tentava descortinar o que poderia ter atraído um homem que pode possuir qualquer uma de entre cem milhões de mulheres, bastando para isso dar um estalo com os dedos, ter preferido uma simples arqueóloga naval, de trinta e um anos, casada e sem atrativos especiais.

     — A senhora está a diminuir-se a si própria — disse ele repentinamente sério. — Acho-a realmente muito atraente.

     De novo, ela se sentiu enrubescer.

     — Nenhum homem se pôs em cima de mim durante anos.

     — Talvez porque os homens sérios se não ponham em cima de mulheres casadas.    

           — Gostaria de pensar que era essa a razão.

     Ele puxou uma cadeira e colocou-se na sua frente. Dana estava corretamente sentada; os joelhos unidos, as mãos sobre as coxas. A pergunta, quando foi feita, apanhou-a de surpresa.

     — Diga-me, senhora Seagram, ainda o ama?

     Ela olhou-o com um ar de incompreensão estampado no rosto.              

           — Quem?

     — O seu marido, claro.

     — Gene?

     — Sim, Gene. — Ele sorriu. — A não ser que tenha outro marido escondido por aí...

     — Por que faz essa pergunta?

     — Gene está a ponto de estourar.

     Dana pareceu intrigada.

     — Ele trabalha muito, mas não creio que esteja na iminência de um esgotamento nervoso.

     — Não no sentido estritamente clínico da palavra, não. A expressão do Presidente era risonha. — No entanto, ele anda sobre uma enorme pressão. Se, além do volume de trabalho, tiver de enfrentar problemas conjugais, é possível que não resista. Ora, eu não posso permitir que tal aconteça enquanto ele não terminar um projeto altamente secreto e que é vital para a nação.

     — Pois é precisamente esse raio de projeto o que está a separar Gene de mim! — explodiu Dana, com raiva.

     — Isso e algumas outras coisas mais... como a sua recusa de ter filhos.

     Ela olhou-o aturdida.

     — Mas como pode o senhor saber isso?

     — Pelos métodos usuais. Quais eles são, não importa. O que interessa é que permaneça ao lado de Gene pelo menos durante os próximos dezesseis meses, tratando-o com o maior carinho de que for capaz.

     Ela cruzava e descruzava as mãos, nervosamente.

     — É assim tão importante? — perguntou, com voz sumida.

     — Sim, muito importante — disse ele. — A senhora vai ajudar-me?

     Ela assentiu, silenciosamente.

     — Bem. — Deu uma pancadinha nas mãos dela. — Juntos, talvez possamos manter Gene em forma.

     — Vou tentar, senhor Presidente. Se isso significa assim tanto, eu tentarei. Não posso prometer mais que isso.

     — Confio inteiramente na senhora.

     — Mas deixemos de fora a idéia de ter um filho.

     Ele sorriu com aquele famoso sorriso que os fotógrafos captavam com tanta freqüência.

     — Posso declarar uma guerra, posso ordenar que os homens morram, mas nem mesmo o Presidente dos Estados Unidos tem força suficiente para ordenar que uma mulher fique grávida.

     Pela primeira vez ela sorriu. Parecia-lhe muito estranho encontrar-se ali a falar com intimidade a um homem que dispunha de um tão imenso poder. O poder era, na verdade, um afrodisíaco e ela começou a sofrer o amargo desapontamento de não ter sido levada para a cama.

     O Presidente levantou-se e tomou-lhe o braço.

     — Tenho de ir andando. Vou me encontrar com os meus assessores econômicos dentro de poucos minutos.

     Conduziu-a para junto da porta. Então, ele parou, puxou o rosto dela para junto do seu e ela sentiu a firmeza dos seus lábios. Quando ele a soltou, olhou-a bem nos olhos e disse-lhe:

     — uma mulher muito apetecível, senhora Seagram. Não se esqueça disso.

     Depois acompanhou-a até ao elevador.

      

     Dana achava-se no meio da multidão, esperando, quando Seagram desceu do avião.

     — O que aconteceu? — disse ele, olhando-a interrogativamente. — Há anos que não te encontras comigo no aeroporto.

     — Trata-se de um incontrolável impulso de afeição. — sorriu.

     Seagram retirou a bagagem e caminharam juntos para parque de estacionamento. Ela dera-lhe o braço e apertava o braço dele. A tarde parecia-lhe agora um sonho distante. Não se podia esquecer, no entanto, que um outro homem a julgara desejável e que a havia, de fato, beijado. Pegou no volante e dirigiu o carro para a estrada principal. A hora do tráfego mais intenso já havia passado, de modo que percorreram sem dificuldades a zona rural da Virgínia.

     — Conheces Dirk Pitt? — perguntou ele, quebrando o silêncio.

     — Sim, é o diretor de Projetos Especiais do almirante Sandecker. Por quê?

     — Vou arruinar aquela cavalgadura!

     Ela olhou-o, espantada.

     — Mas que ligação tens com ele?

     — Prejudicou parte importante do projeto.

     As mãos dela apertaram-se contra o volante.

     — Então vais verificar que ele é uma cavalgadura difícil de vergar.

     — Por que dizes isso?

     — Ele é considerado uma legenda na NUMA. A lista das suas façanhas desde que se incorporou na nossa organização somente é batida pela sua brilhante folha de serviços durante o período de guerra.

     — E daí?

     — Daí o fato dele ser o predileto do almirante Sandecker.

     — Esqueces de que eu tenho mais peso junto do Presidente do que o almirante Sandecker.

     — Mais peso do que o senador George Pitt, da Califórnia? — perguntou ela incisiva.

     Ele voltou-se.

     — São parentes?

   — Pai e filho. — inclinou-se e beijou-o.

     — Para que é isso?

     — Um suborno.

     — Quanto me vai custar? — rosnou ele.

     — Acabo de ter uma ótima idéia — anunciou ela. — Vamos assistir àquele novo filme de Marlon Brando, depois vamos comer uma deliciosa lagosta na Estalagem do Velho Potomac, depois vamos para casa, apagamos as luzes e...

     — Leva-me até ao escritório — cortou ele. — Tenho de trabalhar.

     — Por favor, Gene, não dês cabo de ti — implorou ela. — Amanhã terás tempo para isso.

     — Não, agora! — disse ele.

     O abismo entre eles era intransponível e, daí por diante, as coisas nunca mais seriam as mesmas outra vez.

 

     Seagram baixou os olhos para a maleta de metal que se encontrava sobre a sua mesa e depois levantou-a em direção ao coronel e ao capitão que estavam de pé na sua frente.

     — Não há engano nisso?

     O coronel abanou a cabeça.

     — Foi pesquisado e verificado pelo diretor dos arquivos da Defesa, senhor.

     — Trabalharam rápido.

     — Obrigado.

     O coronel não fez qualquer movimento para se ir embora.

     — Sinto, senhor, mas tenho de esperar e levar novamente o arquivo comigo, para o Departamento de Defesa.

       — Trata-se de uma ordem de quem?

     — Do secretário da Guerra — respondeu o coronel. — O regulamento do Departamento de Defesa estabelece que o material classificado como Código Cinco Confidencial deve ser mantido todo o tempo sob controle.

     — Entendido — disse Seagram. — Posso ficar só, a fim de estudar o arquivo?

     — Sim. senhor. O meu ajudante e eu próprio estaremos do lado de fora. No entanto, desejava-lhe pedir, se me permite, que não fizesse entrar ninguém no seu escritório enquanto o arquivo estiver em seu poder.

       Seagram acenou com a cabeça.

     — Certo, senhores, estejam perfeitamente à vontade. O meu secretário estará à vossa disposição e providenciará para que lhes sejam servidos café e refrescos.

     —Obrigado pela gentileza, senhor Seagram.

     — E, mais uma coisa — disse ainda Seagram, com um sorriso. — Tenho os meus lavabos privativos. Por isso, não admirem se eu me ausentar por uns instantes.

     Seagram continuou imóvel ainda um curto espaço de tempo; depois a porta fechou-se. Estaria afinal ali, à sua frente, a justificação de cinco anos de trabalho, ou não? Talvez os documentos que ali se encontravam dentro da maleta apenas conduzissem a um outro mistério, ou então, o que seria bem pior, a um beco sem saída. Meteu a chave e abriu a maleta. No interior achavam-se quatro pastas e um pequeno livro de notas. As etiquetas das pastas diziam o seguinte:

CD5C 7665 1915 Relatório sobre o valor científico e monetário do elemento raro bizanio. CD5C 7687 1911 Correspondência entre o secretário da Guerra e Joshua Hays Brewster, examinando a possível aquisição do bizanio.

CD5C 7720 1911 Memorando do secretário da Guerra ao Presidente referente a fundos para o Plano Secreto do Exército 371—990—R85.

CD5C 8039 1912 Relatório da investigação fechada sobre as circunstâncias que envolveram o desaparecimento de Joshua Hays Brewster.

     A capa do pequeno livro de notas dizia simplesmente: "Diário de Joshua Hays Brewster."

        A lógica mandava que Seagram estudasse primeiro as pastas, mas a lógica foi posta de lado quando ele se recostou na sua cadeira e abriu o diário. Passadas quatro horas, colocou o livro no centro das pastas e carregou num botão do seu aparelho de comunicação interna. Quase imediatamente, um painel recuado, que se achava instalado numa parede lateral, abriu-se e um homem com um guarda-pó branco, indicativo da sua função de técnico, apareceu.

     — Preciso disto tudo copiado rapidamente. De quanto tempo necessitarás?

     O técnico folheou o livro e deu uma olhada às pastas.

    — Uns quarenta e cinco minutos.

     Seagram concordou.

     — Muito bem. Então começa já. Está alguém no exterior do meu escritório à espera dos originais.

     Logo que o painel se fechou, Seagram levantou-se, fatigado, e arrastou-se até aos lavabos. Fechou a porta e encostou-se a ela com a face contorcida num esgar.

     — Oh, Deus, não! — lamentou-se ele. — Não é justo! Não é justo!

     Em seguida debruçou-se sobre a pia e vomitou.

 

     O Presidente cumprimentou Seagram e Donner com um aperto de mão, à porta do seu gabinete, em Camp David.

     — Sinto muito tê-los feito vir aqui às sete horas da manhã mas foi essa a única hora em que me foi possível arranjar um furo para os receber.

     — Não há problema, senhor Presidente — disse Donner. — Normalmente, já costumo estar em movimento a esta hora.

     O Presidente olhou com um sorriso para o rosto redondo de Donner.

     — Quem sabe se eu o não terei salvado duma trombose? — Riu da expressão infeliz de Donner e conduziu-os para dentro do gabinete. — Venham, venham. Sentem-se e estejam como se estivessem em vossas casas. Já pedi o café da manha.

     O grupo distribuiu-se por um sofá e uma cadeira em frente de uma grande janela com uma linda vista sobre as colinas de Maryland. O café chegou acompanhado de uma bandeja com pães doces, que o Presidente passou em volta.

     — Bem, espero que as novidades sejam boas, para variar. O Projeto Siciliano é a nossa única esperança para conter essa corrida aos armamentos em que estão empenhados os russos e os chineses. — O Presidente esfregou os olhos, fatigado. — Seria a maior demonstração de estupidez desde a aurora do homem, particularmente quando considerarmos o fato, trágico e absurdo, de cada um poder reduzir a cinzas o território do outro pelo menos cinco vezes. — Fez um gesto de desânimo. — Bem, deixemos de lado os fatos tristes da vida. Vejamos a quantas andamos.

     Segurando as cópias dos documentos, Seagram, sentado à mesa onde estava o café, parecia olhar sem ver.

     — O senhor Presidente certamente que tem estado a par dos nossos progressos até agora.

     — Sim, tenho estudado os relatórios que me têm enviado sobre as investigações.

     Seagram entregou ao Presidente uma cópia do diário de Brewster.

     — Trata-se de um relato das tramóias e do sofrimento humano passado no início deste século vinte e penso que irá achar a sua leitura verdadeiramente absorvente. Os primeiros apontamentos datam de 8 de julho de 1910 e começam com a partida de Joshua Hays Brewster das montanhas Taimyr, situadas próximo da costa norte da Sibéria. Ele passou lá nove meses abrindo uma mina de chumbo para o czar da Rússia, sob contrato com o seu patrão, a Sociedade das Minas de Lorraine. Narra ainda como foi que o vapor em que viajava, um pequeno costeiro que se dirigia para Archangel, se perdeu dentro de um nevoeiro e encalhou na ilha logo acima da Nova Zembla. Felizmente que o navio se agüentou firme e os sobreviventes puderam resistir, mantendo-se à temperatura de congelamento dentro do seu casco de aço até que foram socorridos por uma fragata russa, quase um mês depois. Foi durante esse período que Brewster passou o seu tempo explorando a ilha. No décimo oitavo dia, ele esbarrou no extremo de um veio de uma estranha rocha, nas faldas da montanha Bednaia. Como nunca tivesse visto aquele tipo de rochas, colheu diversas amostras e trouxe-as com ele para os Estados Unidos e chegou, finalmente, sessenta e dois dias depois de ter deixado a mina de Taimyr.

     — Quer então dizer que agora sabemos como foi descoberto o bizanio — disse o Presidente.

     Seagram confirmou e prosseguiu:

     — Brewster entregou ao patrão todas as amostras menos a que conservou em seu poder apenas como lembrança. Alguns meses mais tarde, como não houvesse recebido mais notícias sobre as amostras do minério que trouxera da montanha Bednaia, procurou informar-se junto do diretor americano da Sociedade das Minas de Lorraine. Foi-lhe então dito que as amostras, depois de examinadas, não tinham qualquer valor e por isso foram deitadas fora. Suspeitoso, Brewster levou a sua própria amostra para o Departamento de Minas de Washington, a fim de ser analisada. Ficou altamente surpreendido quando soube tratar-se de bizanio, um elemento até então virtualmente desconhecido, e só muito raramente encontrado através de microscópios de grande potência.

     — Teria Brewster informado a sociedade da localização do bizanio? — perguntou o Presidente.

     — Não, ele foi esperto e apenas forneceu vagas indicações do local. Na verdade, chegou mesmo a sugerir que o veio se encontrava na ilha de Nova Zembla, muitos quilômetros mais ao sul.

     — Por que o subterfúgio?

     — Trata-se de uma táctica comum entre os exploradores — respondeu Donner. —Mantendo secreto o local exato de uma descoberta promissora, o explorador pode obter maiores percentagens sobre os lucros quando a mina começar a produzir.

     — Isso é lógico — murmurou o Presidente. — Mas o que teria levado os franceses a guardarem segredo naquela época, em 1910? Que sabiam eles, afinal, a respeito do bizanio, que ninguém mais soube nos setenta e seis anos seguintes?

     — A sua semelhança com o rádio poderia ter sido uma das razões — disse Seagram. — A Sociedade das Minas enviou as amostras de Brewster para o Instituto de Rádio, em Paris, onde os seus cientistas descobriram que certas propriedades do rádio e do bizanio eram idênticas.

     — E, uma vez que o custo do processamento de um grama de rádio é de cinqüenta mil dólares — acrescentou Donner — o Governo francês viu de repente a possibilidade de apossar-se da única reserva mundialmente conhecida de um elemento fantasticamente caro. Assim, em pouco tempo, eles poderiam obter centenas de milhões de dólares por alguns dez quilos de bizanio.

     O Presidente meneou a cabeça como se não pudesse acreditar.

     — Meu Deus, mas, se bem me lembro, uma onça equivale a vinte e oito gramas.

     — Exato, senhor Presidente. Uma onça de bizanio valia um milhão e quatrocentos mil dólares. E esse preço era em 1910!

     O Presidente levantou-se vagarosamente e olhou pela janela

     — O que fez Brewster em seguida?

     — Ele entregou as informações ao Departamento de Guerra — Seagram retirou da pasta o dossiê relativo aos fundos para Plano Secreto do Exército 371-990-R85 e abriu-o.

     — Se soubessem de toda a história, certamente que os rapazes da CIA se sentiriam muito orgulhosos da sua antiga organização. Logo que os generais do antigo Departamento do Serviço Secreto do Exército perceberam aquilo em que Brewster estava interessado, vislumbraram a possibilidade de realizar a maior traição do século. Brewster recebeu então ordem de informar a Sociedade, das Minas de que ele identificara as amostras do minério, recorrendo a um blefe, que os levasse a pensar que ele iria formar um sindicato de mineração com o fim de explorar o bizanio por sua conta. Ele tinha os franceses na mão, e eles sabiam isso. Naquela altura eles já haviam calculado que as indicações que possuíam sobre a localização do veio não tinham qualquer valor. Sem Brewster, não haveria bizanio. Nada havia de mais simples. Não tiveram, por isso, alternativa senão contratá-lo como engenheiro-chefe além da participação nos lucros.

     — E por que não financiou o nosso Governo a operação da mineração? — perguntou o Presidente. — Porque proporcionaram aos franceses o imiscuírem-se no assunto?

     — Por duas razões — respondeu Seagram. — Primeiro, porque a mina se encontrava em território estrangeiro e teria de ser explorada em segredo. Se os mineiros fossem apanhados pelos russos, as culpas recairiam sobre o Governo francês e não sobre o americano. Segundo, porque naquela época o Congresso era muito sovina para com o Exército. E não havia, simplesmente, fundos suficientes que permitissem uma tal aventura no Ártico, independentemente dos lucros que daí pudessem resultar.

     — Parecia que os franceses estavam jogando com um baralho preparado.

     — Era uma faca de dois gumes, senhor Presidente. Brewster estava certo de que, uma vez em funcionamento a mina da montanha Bednaia, ele e os seus homens seriam mortos por assassinos pagos pela Sociedade das Minas de Lorraine. Isso era óbvio, em virtude da fanática insistência da Sociedade em considerar assunto secreto. E há ainda outra coisa: foram os franceses e não Brewster quem planejou a suposta tragédia da Mina do Anjinho.

     — Tem de se reconhecer que eles trabalharam com inteligência — disse Donner. — A simulação na Anjinho foi uma obra-prima para a eventualidade deles resolverem matar, posteriormente, Brewster e os seus homens. Como poderiam, afinal, ser acusados de matar nove homens no Ártico, se era do conhecimento público que eles haviam morrido seis meses antes num acidente de mina no Colorado?

     Seagram continuou:

     — Estamos razoavelmente certos de que a Sociedade das Minas transportou secretamente os nossos heróis para Nova Iorque num vagão particular da Ferrovia. Dali, teriam provavelmente embarcado, sob nome falso, num navio francês.

     — Há um ponto que eu desejaria que vocês esclarecessem melhor — disse o Presidente. — ao ler o seu relatório, vi que Donner declara que o equipamento de mineração encontrado na Nova Zembla havia sido encomendado através do Governo americano. Ora isso não faz sentido!

       — Também aqui se trata duma simulação dos franceses — respondeu Seagram. — Os arquivos de Jensen Thor provaram que o equipamento para a mineração foi pago com um cheque contra um banco de Washington, D. C. A conta, como se verificou, pertencia ao embaixador da França. Fora, simplesmente, mais um ardil para encobrir a verdadeira operação.

     — Eles não deixaram escapar um pormenor, não é assim?

     Seagram confirmou.

     — Na verdade, eles planejaram bem, só que nunca desconfiaram que estavam fazendo o jogo dos outros.

     — Depois de Paris, o que foi que aconteceu? — indagou o Presidente.

     — Os homens do Colorado passaram duas semanas nos escritórios da sociedade, a fim de se inteirarem de tudo, ao mesmo tempo que faziam os últimos preparativos para a expedição. Quando, finalmente, tudo ficou pronto, embarcaram no Havre num transporte naval francês e deslizaram pelo canal da Mancha. O navio levou doze dias para chegar à Nova Zembla por causa dos ziguezagues que teve de fazer para se livrar dos blocos de gelo que flutuavam no mar de Barents. Depois de desembarcados, homens e equipamento, Brewster deu inicio ao Plano Secreto do Exército e ordenou ao comandante do navio que não retornasse senão na primeira semana de junho, quase sete meses depois, a fim de ir buscar o minério.

     — O plano dele seria então que os homens do Colorado e o bizanio já deveriam estar longe quando o navio da Sociedade das Minas voltasse.

     —Exato. Eles terminariam o trabalho com dois meses de antecedência. Apenas foram necessários cinco meses para que o grupo retirasse o precioso elemento das entranhas daquele inferno de gelo. Foi um trabalho de matar, ora furando e dinamitando, ora cavando no granito enquanto eram fustigados por uma temperatura de quarenta e cinco graus abaixo de zero. Nunca, durante os longos meses de inverno passados lá nos cumes das montanhas Rochosas, eles haviam experimentado qualquer coisa parecida com os ventos gelados que uivavam através do mar, vindos da grande calota polar, no norte; ventos que faziam uma pausa apenas suficiente para reabastecer a camada permanente de gelo que cobre a montanha Bednaia, antes de se dirigirem impetuosamente para as costas da Rússia, para lá do horizonte, ao sul. Jake Hobart morreu de frio quando se perdeu numa tempestade de neve e todos os outros sofreram terrivelmente com o cansaço e com o congelamento do nariz e das orelhas. Empregando as próprias palavras de Brewster, "era um purgatório congelado, que não prestava nem para se cuspir nele".

     — É até um milagre que todos eles não tenham morrido — disse o Presidente.

     — Só uma tempera de ferro os levou a arrostar com tudo aquilo — continuou Seagram. — Mas saíram vencedores! Arrancaram o mineral mais raro do mundo das entranhas de terras imprestáveis e executaram a obra intrepidamente. Foi uma operação clássica de clandestinidade e de habilidade.

     — Quer então dizer que eles conseguiram escapar da ilha com o minério?

     — Sim, senhor Presidente. — assentiu Seagram.

     — Brewfster e os seus homens cobriram a pilha dos resíduos, disfarçaram os carreiros dos carros do minério e taparam a entrada da mina. Depois arrastaram o bizanio para a praia e carregaram-no num pequeno vapor que lhes havia sido enviado pelo departamento de Guerra sob o disfarce de uma expedição polar. O navio era comandado pelo tenente Pratt, da Armada dos Estados Unidos.

     — E qual a quantidade de minério que eles retiraram?

     — De acordo com as estimativas de Sid Koplin, cerca de meia tonelada com um teor extremamente elevado.

     — E depois de processado?...

     — Numa estimativa grosseira, talvez cerca de quinze quilos.

     — Mais do que suficiente para realizarmos o Projeto Siciliano — disse o Presidente.

     — Mais do que suficiente... — reconheceu Donner.

     — E conseguiram trazê-lo até cá?

     — Não, senhor. De alguma forma, os franceses suspeitaram da jogada e estavam esperando, pacientemente, que os americanos fizessem a perigosa batota, para então entrarem em cena e arrebatarem o prêmio. Umas poucas milhas ao largo da costa sul da Noruega e antes que o tenente pudesse tomar o rumo oeste, a caminho de Nova Iorque, eles foram atacados por um misterioso navio que não trazia qualquer bandeira.

     — Sem identificação. . . nenhum escândalo internacional. . . — disse o Presidente. — Os Franceses previram realmente tudo!

     Seagram sorriu.

     — Menos dessa vez... Se me perdoa o trocadilho, eles perderam a viagem. Como muitos europeus, os franceses subestimaram a boa e velha habilidade americana: o nosso Departamento da Guerra também previu todas as contingências. Antes que os franceses disparassem o seu terceiro tiro contra o nosso navio, já os nossos marinheiros haviam desmontado uma falsa cabina, no convés, que apenas servia para camuflar um canhão de cento e vinte e sete milímetros, começando a responder ao fogo.

     — Bom, bom — disse o Presidente. — ótimo para nós, como teria dito Teddy Roosevelt.

     — Já estava quase escuro quando terminou a batalha — continuou Seagram. — Foi quando Pratt acertou em cheio na caldeira e o barco inimigo explodiu em chamas. Mas também os americanos tinham sido atingidos. Os porões estavam a meter água e Pratt tinha um homem morto e quatro com ferimentos graves. Depois de conferenciarem, Brewster e Pratt decidiram aportar ao mais próximo porto amigo, desembarcar os feridos e despachar para os Estados Unidos o minério, por um outro navio. Arrastando-se, chegaram pela madrugada a Aberdeen, na Escócia.

     — Porque não decidiram eles transportar o minério, muito simplesmente, num navio de guerra americano? Certamente que teria sido mais seguro que fazê-lo transportar pelos meios comerciais.

     — Embora não tenha certeza — respondeu Seagram — Brewster deve ter tido receio de que os franceses reclamassem o minério através dos canais diplomáticos, forçando assim os americanos a admitir o roubo e a abandonar o bizanio. Enquanto ele o mantivesse em seu poder, o nosso Governo poderia sempre declarar-se desconhecedor de todo o assunto.

     O Presidente meneou a cabeça.

     — Brewster deve ter sido um homem de pulso!

     — Isso, além de ter sido um homem fabuloso, um grande patriota, ao sacrificar-se daquele modo sem que tivesse em mente qualquer proveito. Não se pode deixar de orar por ele pela sua intenção de trazer o minério até aqui.

     — O que é triste é que a sua odisséia não tenha terminado ali. — As mãos de Seagram começaram a tremer. — O Consulado francês deu o alarme na cidade. Uma noite, antes que eles pudessem descarregar o bizanio para o caminhão, agentes franceses saíram das sombras do cais e atacaram. Não houve tiros, mas somente armas brancas. Os homens do Colorado, acostumados ao trabalho nas duras rochas das lendárias cidades de Cripple Creek, Leadville e Fairplay, estavam acostumados à violência e deram mais do que apanharam. Os corpos de seis assaltantes foram atirados às negras águas do porto antes que aqueles animais desaparecessem nas sombras. Mas isto foi apenas o começo. Em cada encruzilhada, de aldeia em aldeia, nas ruas das cidades e atrás de cada árvore ou portal, os ataques continuaram, de modo que a fuga através da Inglaterra ensangüentou as paisagens com mortos e feridos. Os encontros adquiriram o aspecto de guerra de desgaste; os homens do Colorado enfrentavam uma organização numerosa, capaz de colocar cinco tipos em substituição de dois que fossem eliminados pelos nossos. Os resultados começaram a fazer-se sentir: John Caldwell, Alvin Coulter e Thomas Price morreram nos arredores de Glasgow. Charles Widney caiu em Newcastle, Walter Schmidt perto de Stafford e Warner O'Deming em Birmingham. Um a um, aqueles valentes mineiros foram sendo eliminados e o seu sangue manchou as pedras das ruas. Vernon e Joshua Hays Brewster conseguiram viver até depositar o minério no Ocean Leck, em Southampton.

     O Presidente apertou os lábios e fechou as mãos.

     — E os franceses arrebataram-no, finalmente!

     — Não! — Seagram pegou no diário de Brewster e procurou a última página. — Vou ler o último apontamento. Está datado de 10 de abril de 1912:

       “Isto agora é apenas um elogio, uma vez que não estou certo de quando ser morto. Graças a Deus, o precioso minério que nos esforçamos desesperadamente por extrair das entranhas daquela montanha encontra-se em segurança no cofre do navio. Somente Vernon ficará para contar a história. Eu estou de partida, dentro de uma hora, rumo a Nova Iorque, no grande vapor da White Star. Sei que o minério está em segurança. Deixo este diário aos cuidados de James Rodgers, cônsul assistente dos Estados Unidos em Southampton, que providenciará para que ele chegue às mãos das autoridades competentes, no caso de eu também ser liquidado. Deus abençoe os homens que se foram antes de mim. Como estou ansioso por voltar a Southby!”

       Um silêncio de morte desceu sobre o gabinete. O Presidente saiu da janela e sentou-se outra vez. Permaneceu assim um momento, sem dizer nada. Depois exclamou:

     — Poderá isso então significar que o bizanio se encontra nos Estados Unidos? Será possível que Brewster...?

     — Receio bem que não, senhor — murmurou Seagram. O seu rosto havia se coberto de suor.

     — Explique-se então! — ordenou o Presidente.

     Seagram respirou profundamente.

     — É que, senhor Presidente, o único navio da White Star que partiu de Southampton em 10 de abril de 1912 foi o R. M. S. Titanic.

     — O Titanic!

     O Presidente parecia ter levado um tiro. De repente compreendeu a verdade.

     — Isso explica — disse com voz apagada — que o bizanio nunca tenha aparecido durante todos estes anos.

     — O destino foi cruel para os homens do Colorado — murmurou Donner. — Eles lutaram e morreram para enviar o minério num navio que estava destinado a naufragar no meio do oceano...

     Seguiu-se um outro silêncio, mais profundo que o anterior. O Presidente não movia um músculo da face.

     — E o que vamos agora fazer, senhores?

     Houve uma pausa de uns dez segundos e, então, Seagram levantou-se meio titubeante em direção ao Presidente. A tensão dos últimos dias, aliada à agonia da derrota, pesava sobre ele. Não havia outra saída: não tinham outra escolha senão levar o projeto até ao fim. Pigarreou e depois disse:

     — Recuperem o Titanic!

     O Presidente e Donner ergueram os olhos.

     — Sim, por Deus! — disse Seagram, com uma voz que de repente se tornara dura e determinada — Recuperem o Titanic.

 

           O ABISMO NEGRO

 

                     Setembro de 1987

     A beleza inexprimível do negrume puro e absoluto, no painel de observação exterior, eliminou todo o contacto com a realidade. Pareceu a Albert Giordino que a ausência total de luz leva em poucos minutos a mente humana a um estado de completa desordem. Teve a impressão de cair duma grande altura, com os olhos fechados, numa noite sem lua, através de um imenso vazio negro onde se não sentia absolutamente nada. Por fim uma gota de suor escorreu da sua sobrancelha e caiu no olho esquerdo, fazendo-o arder. Então, estremecendo, libertou-se daquela sensação de encantamento. Limpou o rosto com a manga e, delicadamente, passou a mão pelo painel de controles, mesmo à sua frente, tocando os ressaltos familiares até os seus dedos encontrarem o que procuravam. Depois, virou o interruptor para cima. As luzes fixadas no casco do submarino acenderam-se e lançaram um facho brilhante através da noite eterna. Embora a cor passasse a azul-escuro logo junto ao facho, os pequeninos organismos suspensos na água refletiam a luz a uma certa distância em torno da área do painel de observação.

     Virando a cabeça a fim de não embaciar o grosso plexiglas, Giordino expeliu um pesado suspiro, após o que se recostou contra a almofada macia da sua cadeira de piloto. Quase um minuto se passou antes que ele se inclinasse sobre a mesa de controles e começasse a trazer aquele silencioso engenho de volta à vida.

     Estudou as filas dos mostradores até que os ponteiros em movimento chegassem às marcações que ele desejava. Depois, antes de engrenar o sistema elétrico do Sappho 1, passou os olhos pelas luzes indicadoras a fim de se certificar se todas emitiam o sinal verde: indicativo de que tudo estava em ordem. Ele rodou na cadeira e ficou a observar, calmamente, todo o comprimento da passagem central até à popa.

     Para a Agência Nacional Marítima e Submarina, aquele podia ser o mais moderno e o maior submarino de pesquisa do mundo mas a Al Giordino pareceu-lhe, logo da primeira vez que o viu um, gigantesco charuto sobre patins de gelo. O Sappho 1 não fora construído para competir com submarinos de guerra. Ele era essencialmente funcional. A inspeção científica do fundo do mar era o seu objetivo e os seus menores espaços foram utilizados de modo a acomodar uma guarnição de sete homens e duas toneladas de instrumentos e equipamentos de pesquisas oceanográficas.

     O Sappho 1 nunca haveria de disparar um míssil, mas nenhum outro submarino jamais ousou ir 7200 metros abaixo da superfície do oceano. Não obstante, Giordino nunca se sentira totalmente à vontade. Verificou o indicador de profundidade e estremeceu ao ler 3750 metros. A pressão da água aumentava aproximadamente de um quilo por centímetro quadrado por cada nove metros mais de profundidade. De novo estremeceu quando a sua ginástica mental lhe forneceu um resultado de quilos por centímetro quadrado. Era essa a pressão que naquele momento se fazia sentir sobre a pintura vermelha da grossa pele de titânio do Sappho 1.

     — Que tal uma xícara de sedimento fresco?

     Giordino olhou para a expressão séria de Omar Woodson, o fotógrafo da missão. Woodson trazia na mão uma caneca de café fumegante.

     — A válvula principal, bem como o botão de comando, deveriam ter sido lubrificados há exatamente cinco minutos — disse Giordino.

     — Sinto. Algum idiota apagou as luzes. — Woodson entregou-lhe a caneca. — Está tudo a correr bem?

     — Tudo bem sobre o painel — resmungou Giordino. — Dei descanso à bateria da ré. Vamos utilizar a seção central durante as próximas dezoito horas.

     — Tivemos sorte de não termos batido na ponta de algum rochedo quando fizemos aquela paragem.

     — Você deve estar a brincar! — Giordino deixou-se escorregar no assento, semicerrou os olhos e bocejou de um modo delicado. — Nas últimas seis horas, o sonar não apanhou nada maior do que uma rocha do tamanho de uma bola de basebol. O fundo aqui é tão chato como o estômago da minha pequena.

     — Você quer antes dizer o peito!... — disse Woodson. — Vi a fotografia dela.

    Woodson estava a rir, o que nele era raro.

     — Ninguém é perfeito — concordou Giordino. — Entretanto, considerando que o pai dela é um rico distribuidor de bebidas, eu posso ignorar os seus pontos fracos...

     Interrompeu-se quando Rudi Gunn, o comandante da missão, se debruçou para o compartimento do piloto. Era magro e baixo e os seus grandes olhos, aumentados pelos óculos de aros de chifre, espiavam atentamente por cima de um grande nariz romano, o que emprestava ao seu rosto um ar de coruja mal alimentada e em vias de atacar. Mas as aparências enganam! Rudi Gunn era agradável e bondoso. Todos os que já haviam servido sob as suas ordens o respeitavam imensamente.

     — Lá estão vocês, novamente, com essa história!

     Gunn sorriu tolerantemente. Woodson mostrou-se solene.

     — Sempre o mesmo velho problema! Ele está a ficar excitado só por pensar outra vez na namorada.

     — Depois de cinqüenta e um dias fechado aqui dentro, até mesmo a sua avó lhe perdoaria o brilho dos olhos.

     Gunn debruçou-se sobre Giordino e olhou pelo painel de observação. Durante alguns segundos, apenas pôde ver um azul apagado; depois, gradualmente e logo abaixo do Sappho 1, conseguiu reconhecer a lama avermelhada da camada superior do sedimento do fundo. Por uns instantes, apareceu dentro do facho um camarão vermelho, de uns dois ou três centímetros de comprimento, quando muito, para logo desaparecer na imensa escuridão.

     — É uma vergonha que não possamos sair e passear em volta — disse Gunn, quando se afastou. — Quantas coisas não encontraríamos nós lá fora!

     — As mesmas coisas que encontraria no meio do deserto Mojave — rosnou Giordino. —Absolutamente nada. — Levantou-se e bateu levemente num instrumento. — A temperatura baixou, entretanto. Marca um grau e meio centígrado.

     — Um lugar deveras interessante para ser visitado! —Você não gostaria de lá passar os seus melhores anos!

     — O sonar indica alguma coisa? — perguntou Gunn.

     Giordino inclinou-se sobre um mostrador verde no meio do painel. A imagem do terreno refletida era plana.

     — Nada pela frente nem dos lados. O aspecto mantinha-se inalterável há várias horas.

     Gunn, aborrecido, tirou os óculos e esfregou os olhos.

     — Bem, meus senhores, a nossa missão afinal está terminada. Vamos ainda aguardar umas dez horas e depois subiremos.

     — Graças a Deus que o fim está próximo — disse Giordino. Mais uma semana aqui enclausurado neste salsichão e eu estaria a conversar com as plantas...

     Woodson olhou para ele.

     — Como, se não temos plantas a bordo?

     — Você entendeu. — Gunn sorriu.

     — Todos merecem um bom descanso. Vocês, rapazes trabalharam bem. Os dados que colhemos vão manter ocupado muito tempo o pessoal do laboratório.

     Giordino virou-se para Gunn e, olhando-o demoradamente, disse devagar:

     — Esta missão foi um bocado misteriosa, Rudi.

     — Não percebo o que quer dizer...

     — Tudo isto não passou duma encenação. — Ben Drummer, um sulista magricela,com a voz arrastada da gente de Alabama; Rick Spencer, um loiro baixote da Califórnia, que vivia a assoviar entre dentes; Sam Merker, tão cosmopolita e habituado à vida da cidade como um corretor de valores da Wall Street e Henry Munk, calmo, inteligente e de olhar tristonho, que preferiria encontrar-se em qualquer lugar menos no Sappho 1. Aqueles pobres diabos ali à ré, você, Woodson e eu próprio, não passamos todos de maquinistas, de simples mecânicos... Não há no grupo um doutor em Filosofia!

     — Os primeiros homens a pisarem na lua também não eram intelectuais — disse Gunn. — Os mecânicos são necessários para aperfeiçoar os equipamentos. Vocês experimentaram o Sappho 1 e demonstraram quais as suas probabilidades. Deixemos a próxima viagem para os oceanógrafos. Quanto a nós, esta missão vai ficar nos livros como um grande feito científico.

     — Não sou o tipo talhado para ser herói — declarou Giordino com ênfase.

      — Nem eu, companheiro — acrescentou Woodson — mas temos de admitir que isto é muito mais excitante que angariar apólices de seguro.

     — Ele parece não apreciar estas coisas — disse Gunn. — Mas pense só nas histórias que poderá contar às raparigas. Pense nos olhares encantados que aparecerão nos seus lindos rostinhos quando lhes disser com que habilidade você pilotou a maior maravilha submarina do século!

     — Habilidade? — disse Giordino. — Diga-me, então, por que será que estamos a navegar em círculos, nesta maravilha da ciência, a quinhentas milhas da rota programada?

     Gunn encolheu os ombros.

     — Ordens!

     Giordino fixou-o.

     — Deveríamos estar sob o mar do Lavrador. E, em vez disso, no último minuto o almirante Sandecker muda o nosso rumo e faz-nos seguir para os Grandes Bancos da Terra Nova e navegar sobre estas planícies abismais. Isto não faz sentido!

Gunn sorriu de forma enigmática. Durante algum tempo nenhum dos homens falou, porém Gunn não precisava possuir uma dose concentrada de ESP* para saber as dúvidas que eles tinham na mente. Estavam a pensar aquilo mesmo que imaginava. Estavam, como ele, três meses atrasados em relação ao tempo e a duas mil milhas de distância do escritório central da Agência Nacional Marítima e Submarina, em Washington, D. C., onde o almirante James Sandecker, diretor-superintendente da organização, estava a dirigir a mais incrível operação submarina da década.

     — Raios! — trovejou o almirante Sandecker. — Eu daria um ano de vencimentos para poder acompanhá-los.

"Pura retórica", pensou Giordino. Perto de Sandecker, Ebenezer Scrooge gastava dinheiro como um marinheiro embriagado. Giordino refestelou-se num fofo sofá de couro e passou a prestar atenção às instruções do almirante, ao mesmo tempo em que, preguiçosamente, ia lançando anéis de fumo de um imenso charuto retirado de uma caixa que se encontrava na enorme escrivaninha de Sandecker, quando a atenção de todos estava voltada para um mapa do oceano Atlântico, suspenso na parede.

     — Ela, — Sandecker bateu pela segunda vez com a ponta da vara sobre o mapa — a Corrente Lorelei, nasce ao largo do extremo ocidental da África, segue para norte pelo meio do Atlântico e depois vira para oeste, entre a ilha o Baffin e a Groenlândia, para vir morrer no mar do Lavrador.

*ESP- do inglês extrasensory perception, que significa "percepção além do alcance normal dos sentidos".

      

     Giordino disse:

     — Não possuo qualquer curso de oceanografia, almirante, mas parece-me que a Lorelei converge com a Gulf Stream.

     — Não. A Gulf Stream corre à superfície, ao passo que a Lorelei a mais, bem aqui está, a mais fria e a mais pesada corrente do mundo, corre a cerca de quatro mil e duzentos metros de profundidade.

     — Então a Lorelei passa por debaixo da Gulf Stream — disse Spencer, calmamente. Era a primeira vez que ele falava durante a reunião.

       — Logicamente. — Sandecker fez uma pausa. Depois, sorrindo benevolamente, continuou. — O oceano é basicamente constituído por duas camadas... a da superfície, ou a de cima, aquecida pelo sol e batida pelos ventos, e uma camada muito densa e fria, formada pelas águas intermediárias, pelas águas profundas e pelas do fundo. As duas camadas nunca se misturaram.

     — Parece estúpido e de mau gosto — disse Munk. — O simples fato de que alguém, com um mórbido senso de humor, tivesse batizado a corrente com o nome de uma ninfa do Reno, cujo fim era atrair os marinheiros para depois os lançar contra os rochedos, faz dela a última coisa que eu desejaria conhecer.

     Um sorriso furioso espalhou-se lentamente pelo rosto glacial de Sandecker.

     — Procurem habituar-se ao nome, senhores, porque vai ser lá no fundo, lá bem nas entranhas da Lorelei, que iremos passar cinqüenta dias!...

     — Fazendo o quê ? — perguntou Woodson, desafiadoramente.

     — A Expedição da Corrente Lorelei consiste no seguinte: vocês irão descer num submarino de grande profundidade, num ponto a quinhentas milhas a noroeste de Dacar, e a partir daí iniciarão um cruzeiro submarino, levados pela corrente. O principal objetivo da missão será conduzir e testar o submarino e o seu equipamento. Se não surgir qualquer complicação que obrigue a interromper a missão, vocês deverão estar de volta à superfície, aproximadamente no centro do mar do Lavrador, em meados de setembro.

     Merker pigarreou discretamente. — Mas nunca nenhum submarino permaneceu tanto tempo a tal profundidade!

       — Você quer desistir?

     — Bem... não.

       — Esta e uma expedição de voluntários. Ninguém lhe está a pegar no braço para o obrigar a ir.

     — E por que logo nós, almirante? — Ben Drummer desenroscou o seu magro corpo do chão, onde se havia estirado. — Eu não passo de um maquinista naval; Spencer, aqui, é um mecânico de equipamentos e Merker um simples técnico de sistemas. Não posso compreender o que pretende de nós!

     — Dentro das vossas especialidades, vocês todos são bons profissionais e Woodson é também um bom fotógrafo. O Sappho 1, está equipado com diversos sistemas fotográficos. Munk é o homem que melhor conhece as peças e equipamentos da nossa organização. E vocês ficarão sob o comando de Rudi Gunn, que já comandou todos os navios de pesquisa da NUMA.

     — Isso deixa-me de fora — disse Giordino.

     Sandecker fixou bem o charuto que se projetava da boca de Giordino e reconheceu-o como pertencendo à sua marca particular; depois lançou-lhe um olhar fulminante, que foi completamente ignorado.

     — Como assistente do diretor de projetos da organização, será o superintendente da missão. Poderá tornar-se também útil como piloto de engenho.

     Giordino riu maliciosamente e fixou Sandecker.

       — A minha carta de piloto autoriza-me a conduzir aviões e não submarinos.

     O almirante empertigou-se ligeiramente.

     — Terão de confiar no meu julgamento, não é assim? — disse Sandecker com frieza. —Além disso, vocês constituem a melhor guarnição de que eu posso dispor de momento, aquilo que é o mais importante. Já todos trabalharam juntos na expedição do mar Beuafort. Sois homens de grande experiência, habilidade e engenhosidade. Sois capazes de, com todos os instrumentos e com cada uma das peças do equipamento oceanográfico jamais inventado, deixarem aos cientistas a análise dos dados que vocês trouxerem... e já mencionei, vocês são todos voluntários, evidentemente.

     — Evidentemente — repetiu Giordino com má cara.

     Sandecker voltou para trás da sua escrivaninha.

     — Vocês reunir-se-ão e iniciarão o treino na base do West, depois de amanhã. A Pelholme Aircraft Company já realizou longas provas de mergulho com o submarino, vocês apenas precisam se familiarizar com o equipamento e com as instruções relativas às experiências que irão fazer durante a expedição.

     Spencer assobiou por entre os dentes.

     — Uma companhia de aviação? Deus do Céu! Que sabe sobre projetos de um submarino a grande profundidade?!

     — Para sua paz de espírito, a Pelholme voltou a sua tecnologia aeronáutica para o mar faz precisamente agora dez anos! Já construíram quatro laboratórios dedicados ao mar e dois submarinos para a Armada, que obtiveram grande êxito.

     — Espero bem que eles tenham caprichado neste — disse Merker. — Ficaria deveras desapontado se viesse a verificar que ele metia água a quatro mil e duzentos metros...

     — Você quer antes dizer que se cagaria de medo — murmuro Giordino.

     Munk esfregou os olhos, depois olhou fixamente o chão como se estivesse avistando o fundo do mar sobre o tapete. Quando falou, as suas palavras saíram vagarosamente.

     — Esta viagem é realmente necessária, almirante?

     Sandecker assentiu solenemente.

     — Sim. Os oceanógrafos necessitam de informações sobre a norma de deslocamento da Lorelei para melhorar os seus conhecimentos sobre a circulação das águas a grande profundidade. Acreditem-me: esta missão é tão importante como a do primeiro engenho pilotado que foi colocado em órbita em volta da terra. Para além de testar o mais aperfeiçoado submarino do mundo, vocês estarão visualmente descrevendo e desenhando uma área nunca antes observada por qualquer homem. Esqueçam as preocupações! O Sappho 1, possui todos os meios de segurança que a ciência conhece. Vocês têm a minha garantia pessoal de uma viagem segura e confortável.

     "Isso é muito fácil de dizer", pensou Giordino. "Não é ele que estará lá dentro!"

 

     Henry Munk, deitado no seu colchão de vinil, mudou de posição, abafou um bocejo e continuou a olhar fixamente pelo painel de observação na popa do Sappho 1. O sedimento interminável e plano era tão interessante como um livro cujas folhas não tivessem sido impressas; mas Munk deleitava-se ao pensar que cada montículo, cada pedra e cada ser vivo das profundezas que passavam sob o espesso plexiglás nunca antes tinham sido vistos pelo homem. Era uma pequena recompensa, porém satisfatória, pelas longas horas de tédio por ele despendidas, examinando cuidadosamente uma bateria de instrumentos de investigação montados de ambos os lados, acima do colchão.

     Relutantemente, Munk afastou os olhos do painel de observação e focalizou-os sobre os instrumentos: o sensor S-T-SV-D estivera a operar constantemente durante toda a missão, medindo a salinidade, a temperatura, a velocidade do som e a pressão, e tudo ficou registrado numa fita magnética; o traçador do perfil, no fundo do submarino, através do processo acústico, determinava a profundidade dos sedimentos superiores e fornecia indicação sobre a subestrutura do fundo do mar; o gravímetro registrava as informações sobre a gravidade a cada intervalo de quatrocentos e cinqüenta metros; o sensor de corrente mantinha-se atento à velocidade e à direção da Corrente Lorelei e o magnetômetro, um sensor que se destinava a medir e registrar o campo magnético do fundo do mar e, inclusive quaisquer desvios causados por depósitos localizados no fundo.

     O movimento da agulha do gráfico foi tão leve, um dente de um milímetro no máximo que ele o teria deixado escapar completamente se os seus olhos não estivessem pousados sobre o instrumento naquele preciso instante. Rapidamente, voltou o rosto para o painel de observação e mirou o fundo do mar. Então, de repente, voltou-se e gritou para Giordino, que se encontrava sentado no lugar do piloto a apenas três metros de distância.

     —Pare tudo!

     Giordino virou-se rapidamente para a popa. Tudo o que podia ver eram as pernas de Munk, pois todo o resto do seu corpo estava mergulhado sobre os instrumentos.

     — O que descobriu?

     — Acabamos de passar sobre qualquer coisa metálica. Marcha à ré para podermos ver melhor.

     — Estou a engrenar a marcha-à-ré — disse Giordino alto, para que Munk pudesse ouvir.

     Ligou os dois motores montados a meio do barco, um a estibordo e outro a bombordo, e aumentou a marcha a meia força. Durante dois segundos, o Sappho 1, apenas conseguiu equilibrar a velocidade dos dois motores com a corrente, sem poder recuar em relação ao fundo do mar. Só depois começou a recuar de fato, vagarosamente, vencendo a corrente. Gunn e os outros agruparam-se em volta de Munk.

     — Está a conseguir alguma coisa? — perguntou Gunn.

     — Não tenho certeza — respondeu Munk. — Há qualquer coisa a projetar-se para fora do sedimento, a cerca de vinte metros à ré. Apenas se consegue vislumbrar uma forma sob as luzes da popa. Todos ficaram na expectativa. Pareceu uma eternidade antes que Munk voltasse a falar.

     — Bom, apanhei-o...

     Gunn virou-se para Woodson.

     — Ligue as duas câmeras estéreas do fundo e os estroboscópios. Precisamos filmar isto.

     Woodson assentiu e encaminhou-se para os seus equipamentos.

     — Pode descrevê-lo? — perguntou Spencer.

     — Parece um funil espetado no lodo.

     A voz de Munk chegou modificada de dentro do túnel dos instrumentos, mas, mesmo assim, notava-se a excitação que a acompanhava. A expressão de Gunn era de ceticismo.

     — Um funil?

     Drummer debruçou-se por cima do ombro de Gunn.

     — Que espécie de funil?

     — Um funil com um cone oco, que vai estreitando e que serve para fazer passar um líquido, seu ignorante — respondeu Munk irritado. — Está agora a passar por debaixo do casco, a estibordo. Diga a Giordino para manter o barco parado no instante em que ele aparecer no painel da proa.

     Gunn dirigiu-se a Giordino.

     — Pode manter fixa a nossa posição?

     —Vou tentar; mas, se a corrente começar a oscilar-nos de um lado para o outro, dificilmente poderei controlá-lo, e assim perderemos o contacto visual com o que quer que se encontre lá fora.

     Gunn caminhou para a proa e deitou-se sobre o piso forrado de borracha. Olhou fixamente para um dos quatro painéis de observação, juntamente com Merker e Spencer. Todos avistaram o objeto quase ao mesmo tempo. Era como o havia descrito: lembrava um simples funil com o formato de um sino invertido, com uns treze centímetros de diâmetro e cuja ponta sobressaía do sedimento do fundo.

     Surpreendentemente, achava-se em boas condições. A superfície exterior do metal estava sem brilho, evidentemente, mas o aspecto geral era bom, sem indicações de crostas ou pesadas camadas de ferrugem.

     — Estou a conseguir mantê-lo parado — disse Giordino — mas não posso garantir até quando.

     Sem se afastar do painel, Gunn fez sinal a Woodson, que se achava dobrado sobre um par de câmeras, a orientar as lentes para o objeto lá no fundo do mar.

     — Omar?

     — Focalizada e funcionando.

     Gunn permaneceu silencioso, o nariz quase encostado ao painel. Parecia mergulhado nos seus pensamentos. Os olhos de Merker franziram-se de maneira interrogativa.

     — O que acha disto tudo, Rudi? Quero dizer, conseguir apanhar o objeto? Gunn, finalmente, tomou consciência do que dizia.

     — Sim, sim, certamente — murmurou vagamente.

     Merker desenganchou uma caixa de metal que se encontrava presa à antepara da vante por um cabo de metro e meio, comprido e colocou-se no centro do painel de observação. A caixa continha uma série de interruptores em torno de um bot circular. Trata-se da unidade que controlava o manipulador, um braço mecânico de cento e oitenta quilos, que se achava pendurado, duma forma grotesca, na parte inferior da proa do Sappho 1. Merker empurrou um interruptor, que acionou o braço. Então, com extrema habilidade, mexeu nos diversos controles, o mecanismo, com um zumbido, estendeu o braço a todo o seu alcance de dois metros e dez centímetros. Porém, ficou ainda a vinte centímetros do funil.

     — É preciso aproximar mais trinta centímetros! — disse Merker.

     — Esteja pronto — respondeu Giordino. — O movimento para frente pode afastá-lo demais.

     O funil parecia passar com um vagar irritante sob a garra aço inoxidável do manipulador.

Merker, delicadamente procurava com as pinças envolver a ponta do funil. De repente apertou outro interruptor e elas fecharam-se, mas ele calculara mal o momento. A corrente fez o submarino dar um balanço transversal. A garra errou por menos de três centímetros; as pinças fecharam-se no vazio.

     — Estamos a tombar para bombordo — gritou Giordino. — Não o posso agüentar.

     Rapidamente os dedos de Merker dançaram sobre os controles. Teria de tentar uma segunda vez, mesmo em movimento Se errasse outra vez, seria quase impossível tornar a colocar o funil dentro do limitado campo de visibilidade. Gotas de suor começaram a aparecer-lhe na testa, enquanto as mãos iam ficando tensas. Dobrou o braço até o máximo e virou a garra seis graus para estibordo, de forma a compensar o balanço do barco em sentido contrário. Tocou no interruptor novamente e, no mesmo instante, as pinças fecharam-se. A ponta do funil estava no meio delas! Merker havia-o apanhado. Agora, movimentava gradualmente o braço para cima, desenterrando o funil do sedimento. O suor escorria-lhe por entre os olhos, mas mantinha-os bem abertos. Não podia hesitar: um erro que cometesse e o objeto ficaria para sempre perdido no fundo do mar. Então, a camada de lodo cedeu e o funil soltou-se e subiu até aos painéis de observação.

     — Meu Deus! — sussurrou Woodson. — Mas aquilo não é um funil!

     — Parece antes uma trompa! — disse Merker.

     Gunn abanou a cabeça.

     — Uma corneta.

     — Como pode ter a certeza?

   Giordino tinha deixado o assento do piloto e olhava por cima do ombro de Gunn, através do painel.

     — Eu fazia parte da banda do colégio e tocava uma.

     Também os outros reconheciam agora o objeto. Logo localizaram a extremidade recurvada da saída dos sons e os tubos enrolados que se ligavam às válvulas e à peça onde se situava o bocal.

     — A julgar pelas aparências — disse Merker — eu diria que é de latão.

     — Essa foi talvez a razão pela qual o magnetômetro de Munk só de leve a acusou no gráfico — acrescentou Giordino. — A peça que compõe o bocal e os pistões das válvulas são as únicas partes que contêm ferro.

     —Há quanto tempo estará ali a corneta? — perguntou Drummer sem se dirigir a ninguém em particular.

     — Seria mais interessante saber de onde veio ela — disse Merker.

     — Obviamente que foi tirada pela borda fora de algum navio que passava — disse Giordino, distraidamente.— Provavelmente algum garoto que detestava lições de música...

     — Talvez que o dono também esteja por aí perto... — Merker falou sem olhar para cima.

     Spencer estremeceu.

     — Eis um pensamento de causar calafrios.

     Um silêncio caiu dentro do Sappho 1.

 

     O antigo avião trimotor Ford, que ficou na história da aviação como o "Ganso de Lata", inclinava-se nas curvas com tanta graça e majestade como um albatroz, quando fazia a aproximação final junto à pista do Aeroporto Nacional, e isto apesar de parecer pouco indicado para voar. Pitt fez recuar as três alavancas e o velho pássaro tocou o solo com a delicadeza de uma folha de outono beijando a relva. Dirigiu-se para um dos hangares da NUMA a norte do aeroporto, onde a equipe de conservação calçou as rodas, tendo um dos elementos feito o sinal de rotina de ligação.

     Ao desligar os interruptores de ignição, Pitt ficou ainda a observar as pás prateadas das hélices diminuírem gradualmente de velocidade até pararem, brilhando aos últimos raios de sol da tarde. Então retirou os auscultadores dos ouvidos, colocou-os na coluna de controle, deslocou o fecho da sua janela lateral e abriu-a. Pitt enrugou a testa, e uma expressão de perplexidade se espalhou aos poucos pelo seu rosto crestado. Em baixo, sobre o asfalto, achava-se um homem acenando para ele nervosamente.

     — Posso subir a bordo? — gritou Seagram.

     — Vou descer — gritou Pitt como resposta.

     — Não, por favor, fique onde está.

     Pitt encolheu os ombros e recostou-se na cadeira.

     Seagram apenas precisou de poucos segundos para subir a bordo do trimotor e abrir a porta da cabine. Trazia um fato elegante, com colete, mas o corte, bem feito, era prejudicado pela enorme quantidade de rugas do rosto, que indicavam não ter ele ido à cama pelo menos há vinte e quatro horas.

     — Onde descobriu esta velha máquina tão resplandecente?

     — Encontrei-a em Keflavik, na Islândia — respondeu Pitt. — Comprei-a por um bom preço e mandei despachá-la para os Estados Unidos.

   — Uma beleza!

     Pitt indicou a Seagram o banco do co-piloto.

     — Está certo de que deseja conversar aqui? Em poucos minutos, o sol fará esta cabine parecer um braseiro.

     — O que tenho para dizer não vai demorar muito.

     Seagram acomodou-se no banco e deixou escapar um longo suspiro. Pitt estudava-o. Parecia um homem indeciso e sem saída... um homem orgulhoso que se achava colocado numa posição de inflexibilidade. Seagram, enquanto falava, não olhou para Pitt: demonstrando nervosismo, manteve-se virado para o pára-brisas.

     — Suponho que estará calculando porque estou aqui — disse ele.

     — Na verdade, esse pensamento passou pela minha cabeça.

     — Preciso da sua ajuda.

       Somente isto. Nenhuma referência às palavras desagradáveis do passado. Sem rodeios; apenas um pedido direto. Pitt semicerrou os olhos.

     — Por alguma estranha razão, eu supunha que a minha companhia lhe fosse tão desagradável como uma dose de sífilis.

     — Os seus sentimentos, os meus sentimentos, nada disso interessa. O que importa é que o Governo necessita desesperadamente da sua habilidade.

     — Habilidade... necessidade desesperada... — Pitt não escondia a sua surpresa. — Está a exagerar, Seagram.

     — Pode acreditar-me. Gostaria que estivesse, mas o almirante Sandecker assegura que você é o único homem com possibilidades para realizar um trabalho muito difícil.

     — De que se trata então?

     — Do içamento do Titanic!

     — Tinha de ser! Nada como uma operação de salvamento para quebrar a monotonia da...

     Pitt parou no meio da frase. Os seus olhos verdes e profundos arregalaram-se e o sangue subiu-lhe ao rosto.

     — Que disse você?

     A sua voz não passava agora dum murmúrio rouco. Seagram olhou-o com uma expressão divertida.

     — O Titanic! Certamente que ouviu falar nele!...

     Talvez se tivessem passado uns dez segundos, num absoluto silêncio, antes que Pitt, sentado e atordoado, pudesse falar.

     — Mas sabe o que está a propor?

     — Perfeitamente.

     — Mas isso é impossível! — A expressão de Pitt era de incredulidade; a sua voz mantinha ainda o mesmo murmúrio rouco. — Mesmo que fosse tecnicamente possível, e não é esse o caso, isso iria custar centenas de milhões de dólares... além das inevitáveis complicações com os primitivos proprietários, companhias de seguros e ainda com os direitos de salvamento.

     — Há, de momento, mais de duzentos engenheiros e cientistas a trabalhar para resolverem os problemas técnicos e quanto ao financiamento será obtido através de fundos secretos governamentais. Quanto aos direitos legais, esqueça-se disso. Segundo o Direito Internacional, quando um navio se perde sem esperança de ser recuperado, torna-se presa qualquer um que esteja disposto a gastar dinheiro e trabalho numa operação de salvamento. —Virou-se e voltou a olhar pelo pára-brisas. —Você não pode imaginar como esse empreendimento é importante, Pitt. O Titanic representa muito mais do que um tesouro ou valor histórico. Existe alguma coisa no fundo, no seu compartimento de carga, que é vital para segurança da nação.

     — Perdoar-me-á se eu lhe disser que tudo isso não passa de mero devaneio?

     — Talvez, mas, por uma questão de patriotismo, devem considerá-lo como sendo verdade.

     Pitt meneou a cabeça.

     — Está a dissertar sobre uma pura fantasia. O Titanic repousa bem no fundo, a cerca de quatro mil e quinhentos metros de profundidade. A pressão, a essa profundidade, é de várias centenas de quilos por centímetro quadrado, senhor Seagram; não se trata de decímetros quadrados ou metros quadrados, mas de centímetros quadrados... As dificuldades e as barreiras para lá chegar são espantosas. Ninguém até agora se lembrou de içar o Andrea Doria ou o Lusitania do fundo do mar... e eles acham-se apenas a cem metros de profundidade!

     — Se podemos levar homens à lua, também poderemos trazer à superfície o Titanic —respondeu Seagram.

     — Não há comparação possível! Levamos uma década para colocar uma cápsula de quatro toneladas no solo lunar. Ora, içar quarenta e cinco mil toneladas de aço é um bocado diferente... Poderemos levar meses até o encontrar. Só para isso.

     — Já o estamos a procurar.

     — Ainda não ouvi nada sobre isso...

     — Acerca dos esforços dessa procura? — disse Seagram. — Não seria provável que ouvisse. Enquanto for possível, em termos de segurança, manter essa operação controlável, ela permanecerá secreta.

     — Mesmo o seu diretor assistente para Projetos Especiais, Albert Giordano...

     — Giordino.

     — Sim, Giordino, obrigado.

     — Neste momento está ele a pilotar um submarino de pesquisa através do fundo do Atlântico, ignorando totalmente a sua verdadeira missão.

     — Mas a Expedição da Corrente Lorelei... o Sappho 1, o que tinha por missão era o estudo daquela corrente oceânica...

     — Uma coincidência no tempo. O almirante Sandecker apenas pôde ordenar ao submarino que se dirigisse para o ponto correspondente às últimas coordenadas fornecidas pelo Titanic, algumas horas antes da subida do submarino à superfície, conforme o programado.

     Pitt virou-se e fixou um jato comercial que estava a levantar vôo da pista principal do aeroporto.

     — E por que eu? Que fiz para merecer um tal convite, para aquilo que será o mais estonteante projeto do século?

     — O senhor não será apenas um convidado, meu caro Pitt. Deverá comandar toda a operação de salvamento.

     Pitt olhou para Seagram com ar feroz.

     — A pergunta continua de pé: por que eu?

     — Não foi uma escolha que me agradasse, posso assegurar-lhe — disse Seagram. — Mas, uma vez que a Agência Nacional Marítima e Submarina é, reconhecidamente, a maior autoridade em ciência oceanográfica, e uma vez que os dois mais famosos especialistas de salvamento a grande profundidade são membros seus, e uma vez que o senhor é o diretor de Projetos Especiais dessa organização, foi evidentemente o escolhido.

     — O nevoeiro começa a dissipar-se. Trata-se, simplesmente, do fato de eu ocupar a posição errada no momento errado. . .

     — Interprete como quiser — disse Seagram, cansado. — Devo admitir que achei impressionante a sua folha de serviços, da qual consta que diversos projetos de incrível dificuldade foram concluídos com êxito. — Puxou de um lenço e passou-o pelo rosto. — Devo acrescentar que um outro fator que pesou muito a seu favor é o fato de você ser considerado um especialista sobre o Titanic.

     — Colecionar e estudar as memórias sobre o Titanic é para mim um hobby; nada mais. Não creio que isso seja o suficiente para que eu supervisione o seu salvamento.

     — Não obstante, o almirante Sandecker disse-me, para empregar as suas próprias palavras, que o senhor é um gênio não só a lidar com os homens como para coordenar toda a logística. — Depois olhou para Pitt, demonstrando uma certa incerteza. — Vai aceitar a missão?

     — Você, Seagram, não acredita que eu possa obter sucesso, não é assim?

     — Francamente, não. Mas quando se está suspenso de um rochedo por um fio, pouco se tem a dizer de quem vem salvá-lo

     Um ligeiro sorriso aflorou aos lábios de Pitt.

     — A sua confiança em mim é tocante.

     — E então?

     Pitt permaneceu imerso nos seus pensamentos. Finalmente assentiu de forma quase imperceptível e olhou, bem de frente para os olhos de Seagram.

     — Está certo, meu amigo, serei eu o seu homem. Mas não cante vitória antes que aquele velho casco enferrujado esteja amarrado ao cais de Nova Iorque. Não há um único apostador em

Las Vegas que queira perder um segundo calculando as possibilidades dessa aventura maluca. Quando encontrarmos o Titanic, se o encontrarmos, claro, o casco estará demasiadamente destruído para que o possamos içar. Por outro lado, nada é totalmente impossível, e, embora eu não consiga atinar que coisa possa ser tão valiosa para o Governo que mereça esse esforço, irei tentar, Seagram. Porém, não prometo nada!

     Pitt deu uma boa risada e deixou a cadeira do piloto.

     — Fim do discurso. Tratemos agora de sair desta caixa quente e procurar um local mais confortável, com ar condicionado, onde você possa pagar-me um copo. É o mínimo que pode fazer depois de me ter convencido a cair no maior logro do ano.

       Seagram encolheu os ombros, sentindo-se demasiado cansado para fazer qualquer outra coisa.

 

     De início, John Vogel encarou a corneta como uma simples obra de restauro. Pelo aspecto, nada fazia crer tratar-se de alguma raridade. Nada havia de excepcional, quanto à sua construção que pudesse excitar a curiosidade de qualquer colecionador; não entusiasmaria ninguém. As válvulas estavam corroídas e não se conseguia abri-las; o latão achava-se descolorido devido a uma sujidade esquisita; e um cheiro fétido, como o de peixe podre, emanava da lama que entupia o interior dos tubos.

     Vogel decidiu que a corneta não merecia os seus cuidados pessoais e assim passá-la-ia para um dos seus assistentes para que ele a restaurasse. Os modelos exóticos eram os instrumentos que Vogel gostava de restaurar, fazendo-os voltar ao seu estado original de novos. Antigas trombetas chinesas e romanas, de tubos longos e retos e sons capazes de furar os ouvidos; velhos e machucados cornetins de antigos astros do jazz ou instrumentos ligados a qualquer acontecimento histórico, esses eram os que Vogel gostava de reparar com a paciência de um relojoeiro, trabalhando com a exatidão de um artífice até que a peça brilhasse como nova e emitisse sons claros e perfeitos. Embrulhou a corneta num pano velho e colocou-a à distância, de encontro a uma parede do seu escritório. O aparelho de comunicação interna, colocado sobre a mesa, emitiu uma chamada.

     — Sim, Mary, o que deseja?

     — O almirante Sandecker, da Agência Nacional Marítima e Submarina, está ao telefone. — A voz da secretária arranhava através do aparelho como as unhas num quadro negro. — Diz que é urgente.

     — Está bem, ponha-o na linha. — Vogel levantou o auscultador. — Aqui fala John Vogel.

     — Senhor Vogel, aqui é James Sandecker.

     O fato de ter sido o próprio Sandecker a fazer a ligação e não ter empregado o seu título impressionou Vogel.

     — Sim, almirante, em que lhe posso ser útil?

     — O senhor recebeu-o?

     — Recebi o quê?

     — Um velho clarim.

     — Ah, a corneta! — disse Vogel. — Encontrei-a hoje de manhã sobre a minha mesa sem qualquer explicação. Supunha que se tratava de uma doação ao museu.

     — Desculpe-me, senhor Vogel. Eu devia tê-lo avisado, mas estive ocupado.

     Uma desculpa correta.

     — Mas, em que posso servi-lo, almirante?

     — Gostaria que o senhor estudasse esse instrumento e me pudesse informar de tudo o que souber a seu respeito: data de fabricação, etc.

     — Sinto-me envaidecido, senhor. Mas por que eu?

     — Como restaurador do Museu do Conservatório de Música de Washington, o senhor parece ser a pessoa indicada. Também um amigo mútuo me disse que o mundo havia perdido um segundo Harry James quando o senhor se tornou um erudito.

     "Meu Deus'', pensou Vogel, "o Presidente." Um ponto a favor de Sandecker. Ele conhecia as pessoas para as ocasiões importantes!

     — Isso é discutível — disse Vogel. — Para quando deseja senhor o relatório?

     — O mais cedo possível.

     Vogel sorriu para si próprio. Um pedido polido merecia esforço extra.

     — O que leva tempo é o banho, a fim de remover a corrosão. Se tiver sorte, talvez amanhã já lhe possa dizer qualquer coisa.

     — Obrigado, Vogel — disse Sandecker rapidamente. — Fico-lhe desde já grato.

     — Existe alguma informação a respeito de como e onde foi encontrada a corneta? Isso poderia ajudar-me.

     — Prefiro não esclarecer esse ponto. Os meus funcionários devem ter a sua própria opinião, livre de qualquer orientação da minha parte.

     — Deseja então comparar as minhas conclusões com as suas, não é assim?

     A voz de Sandecker tomou uma tonalidade cortante ao responder:

     — Queremos confirmar as nossas esperanças e expectativas, senhor Vogel, nada mais.

     — Farei o melhor que puder, almirante. Adeus.

     — Boa sorte.

     Vogel, com as mãos ainda sobre o telefone, permaneceu ali sentado alguns minutos olhando o embrulho ao canto da mesa. Depois, ligou o aparelho de comunicação interna.

     — Mary, encarregue-se de todas as chamadas durante o resto do dia e mande buscar uma metade de pizza com bacon canadiano e dois litros de vinho Borgonha, Gallo.

       — Vai enfiar-se novamente naquela oficina bolorenta? — A voz de Mary continuava a arranhar.

     — Sim. — Vogel suspirou. — Vai ser um longo dia!

    

     Primeiramente, Vogel tirou várias fotografias da corneta em ângulos diferentes. Depois, anotou as dimensões, as condições gerais das partes visíveis e a intensidade das manchas e das matérias estranhas que cobriam a superfície, ficando todas estas observações registradas num grande livro de apontamentos. Passou então a olhar para a corneta com grande atenção e interesse profissional.

     Tratava-se dum instrumento de categoria: o latão era de boa qualidade e as pequenas aberturas do sino e das válvulas indicavam que o fabrico fora anterior a 1930. Descobriu que aquilo que supunha ser corrosão não era senão uma crosta de lama dura que se despegava facilmente com uma pequena pressão de uma colher de borracha.

     Em seguida, mergulhou o instrumento numa solução de um emoliente e água. Agitou levemente o líquido e substitui-o por diversas vezes à medida que ele ia ficando sujo. Por volta da

Meia-noite já havia desmontado toda a corneta. Iniciou então o fastidioso trabalho de umedecer a superfície do metal com uma fraca solução de ácido crômico, a fim de fazer brilhar novamente o latão. Após diversas aplicações, vagarosamente, uma intrincada marca em forma de rolo de papel e diversas letras ornamentadas começaram a aparecer no sino.

     — Quem diria! — disse Vogel em voz alta. — Um modelo para presente.

     Agarrou numa lente e estudou a inscrição. Quando tornou a colocar a lente sobre a mesa e se dirigiu ao telefone, as mãos tremiam-lhe.

     Eram precisamente oito horas quando Vogel foi introduzido no gabinete de Sandecker, situado no último pavimento de um prédio de dez andares, todo recoberto com vidros contra o sol e que servia de sede da NUMA. Os seus olhos estavam vermelhos e ele não fez qualquer esforço para disfarçar um bocejo. Sandecker deu volta à escrivaninha e veio apertar a mão de Vogel.

     O almirante, muito baixo, precisava se curvar para trás para falar com o seu visitante. Vogel tinha um metro e noventa e seis e um rosto bondoso com tufos de cabelos brancos caindo livremente dos lados da sua cabeça calva. Possuía olhos castanhos, à Pai Natal, e o seu sorriso era cheio de simpatia. O casaco achava-se passado, mas as suas calças amarrotadas apresentavam inúmeras manchas abaixo dos joelhos. Cheirava a vinho que nem um bêbado.

     — Bem — cumprimentou Sandecker — é um prazer conhecê-lo pessoalmente.

     — O prazer é meu, almirante. — Vogel colocou uma caixa preta com a corneta sobre o tapete. — Sinto apresentar-me tão desalinhado.

     — Eu já lhe ia dizer — respondeu Sandecker — que o senhor deve ter tido uma noite difícil.

     — Quando se tem interesse por um trabalho, o tempo e os inconvenientes têm pouco significado.

     — Isso é verdade. — Sandecker virou-se e acenou para um homem que mais parecia um pequeno gnomo e que se encontrava de pé a um canto do escritório. — Senhor Vogel, permita-me que lhe apresente o comandante Gunn.

     — Certamente, comandante Gunn — disse Vogel, sorrindo. — Fui um dos muitos milhões que acompanharam todos os dias, pelos jornais, a sua expedição da Corrente Lorelei. O senhor merece parabéns, comandante. Foi uma grande façanha.

     — Obrigado — disse Gunn.

     Sandecker fez sinal a um outro homem que estava sentado num sofá.

     — O meu diretor de Projetos Especiais, Dirk Pitt.

      Vogel voltou-se para um homem de face queimada, que se abriu num sorriso.

     — Senhor Pitt.

     Pitt levantou-se e retribuiu o cumprimento.

     — Senhor Vogel.

     Vogel sentou-se e puxou um velho e gasto cachimbo.

     — Incomodo se fumar?

     — De forma alguma. — Sandecker retirou um dos seus charutos tipo Churchill de dentro de uma caixa e mostrou-o. — Vou acompanhá-lo.

     Vogel acendeu o cachimbo, recostou-se e disse:

       — Diga-me, almirante, a corneta foi descoberta no fundo do Atlântico Norte?

     — Sim logo a sul dos Grandes Bancos, ao largo da Terra nova. — Fixou Vogel com curiosidade. — Como chegou a conclusão?

     — É apenas uma dedução elementar.

     — Que tem para nos dizer a esse respeito?

     — Efetivamente, muita coisa. Para começar, trata-se de um instrumento de alta qualidade, fabricado para um músico profissional.

     — Então o seu possuidor não seria provavelmente um músico amador? — inquiriu Gunn, lembrando-se das palavras de Giordino no Sappho 1.

     — Não — disse Vogel simplesmente. — Não é provável.

     — E o senhor poderia determinar a época e o local onde foi fabricado? — perguntou Pitt.

     — Outubro ou novembro de 1911. E foi construído por uma firma inglesa muito antiga e de grande reputação, chamada Boosey-Hawkes.

     Notava-se um respeito estampado nos olhos de Sandecker.

     — Fez um trabalho notável, senhor Vogel. Para lhe ser franco, duvidávamos que pudesse descobrir o país de origem e muito menos o nome do fabricante.

     — Não houve qualquer descoberta brilhante da minha parte, posso assegurar-lhe — disse Vogel. — Compreenda, a corneta era um modelo para presente.

     — Um modelo para presente?

     — Sim, qualquer objeto de metal que necessite de um alto grau de habilidade para a sua confecção e cuja posse seja altamente apreciada é geralmente gravado para comemorar um acontecimento especial ou um trabalho excelente.

     — Uma prática comum entre os fabricantes de armas de fogo — comentou Pitt.

     — E também entre os fabricantes de bons instrumentos musicais. Neste caso foi um presente da companhia a um seu empregado, em reconhecimento dos seus serviços. A data do presente, o nome do fabricante, o do empregado e o da companhia estão lindamente gravados na parte da corneta em forma de sino.

     — O senhor pode efetivamente dizer quem era o dono? — perguntou Gunn. — Pode ler a gravação?

     — Com certeza.

     — Vogel curvou-se e abriu a caixa.

     — O senhor mesmo pode ler aqui.

     Ele colocou a corneta sobre a escrivaninha de Sandecker. Os três homens permaneceram em silêncio durante um longo espaço de tempo, olhando aquele instrumento brilhante cuja superfície dourada refletia os raios do sol da manha que entravam pela janela. A corneta parecia nova em folha. Cada centímetro do instrumento apresentava um brilho intenso e a intrincada gravação de ondas do mar que envolvia o tubo e o sino era tão nítida como no dia em que fora feita. Sandecker olhou para Vogel por cima da corneta e as suas sobrancelhas erguidas denotavam dúvida.

     — Senhor Vogel, acho que ainda não compreendeu como o assunto é sério... Eu não aprecio piadas.

     — Reconheço — saltou Vogel, em resposta — que não atino com a seriedade da situação. O que estou presenciando é um momento de tremenda excitação. E acredite-me, almirante, não se trata de nenhuma piada. Passei a maior parte das últimas vinte e quatro horas procurando restaurar a sua descoberta. — Atirou com uma volumosa pasta para cima da escrivaninha. — Aí está o meu relatório completo com fotografias e com as minhas observações a cada estágio do processo de restauro. Há também sobrescritos contendo os diferentes tipos de resíduos e de lama removidos e também as partes que substituí. Nada foi esquecido.

       — Peço desculpa — disse Sandecker. — Porém, parece inconcebível que o instrumento que lhe enviei ontem e aquele que se encontra sobre a minha escrivaninha sejam o mesmo. —Sandecker fez uma pausa e trocou olhares com Pitt. — O senhor entende, nós...

     — ...pensávamos que a corneta havia permanecido no fundo do mar durante muito tempo... — Vogel terminou a frase. — Sei perfeitamente o que o senhor tem em mira, almirante. E confesso que também eu não sei explicar porque se encontra o instrumento em tão boas condições. Tenho trabalhado com instrumentos que tiveram imersos em água salgada apenas pelo espaço de três ou cinco anos e que se encontram em muito pior estado que este. Como não sou um oceanógrafo, a solução do enigma escapa-me. No entanto, posso dizer-lhe, com a aproximação de um dia, quanto tempo esteve esta corneta debaixo de água e porque se encontrava lá.

     Vogel inclinou-se, estendeu a mão a agarrou no instrumento. Em seguida colocou uns óculos sem aros e começou a ler alto:

     "Presenteado a Graham Farley como sincero apreço pela notável execução no entretenimento dos nossos passageiros, pelos diretores da White Star Line."

     Vogel tirou os óculos e sorriu gentilmente a Sandecker.

     — Quando descobri as palavras White Star Line, fiz saltar da cama hoje, logo de manhã cedo, um amigo, a fim de ele fazer uma pesquisa nos Arquivos Navais. Ele telefonou-me meia hora antes de eu ter vindo para aqui. — Vogel fez uma pausa, retirou um lenço do bolso e assoou-se. — Ora parece que Graham Farley era um sujeito muito popular na White Star Line. Ele tinha sido cornetista solista durante três anos num dos seus barcos... penso que o Oceanic. Quando o mais novo e luxuoso transatlântico da companhia estava em vias de iniciar a sua viagem inaugural, a direção escolheu os melhores músicos dos outros navios de passageiros e formou uma orquestra que foi considerada, na ocasião, o melhor conjunto que havia sobre os mares. Graham foi, por certo, um dos primeiros músicos a serem escolhidos. Ora, meus senhores, esta corneta esteve no fundo do mar por um longo período... porque Graham Farley a tocava na manhã de 15 de abril de 1912, quando as ondas se abateram sobre ele e o Titanic!

     As reações perante a repentina revelação foram variáveis... Sandecker apresentava uma expressão sombria, meio incrédula; Gunn ficou sério e imóvel; quanto a Pitt, este manteve uma expressão de casual interesse. O silêncio que se fez na sala era total; Vogel aproveitou para meter os óculos novamente no bolso interior do casaco.

     — Titanic!

     Sandecker repetiu vagarosamente a palavra como um homem que estivesse saboreando o nome de uma mulher bonita. Depois olhou de forma penetrante para Vogel; nos seus olhos refletia-se a admiração misturada com a dúvida.

     — Inacreditável!

     — Mas, não obstante, é um fato — disse Vogel, calmamente.

     — Suponho, comandante Gunn, que a corneta terá sido encontrada pelo Sappho 1?

       — Sim, já próximo do fim da viagem.

     — O que o faz supor que a expedição submarina encontrou um prêmio! Uma pena que não tenha encontrado o próprio navio! . .

     — Sim foi na verdade uma pena — disse Gunn, evitando encarar Vogel.

     — Continuo a não perceber as condições em que o instrumento se encontra — disse Sandecker. — Dificilmente eu conceberia que uma relíquia mergulhada no mar durante setenta e cinco anos pudesse apresentar-se tão bem conservada.

     — A ausência de corrosão dá lugar a uma pergunta interessante — respondeu Vogel. —O latão certamente resiste bem, mas, estranhamente, as partes contendo metais ferrosos permaneceram espantosamente em estado de novas. Como o senhor pode verificar, está quase perfeito.

     Gunn olhava para a corneta como se fosse um cálice sagrado.

     — E ainda toca?

     — Sim — disse Vogel. — E lindamente, acrescentaria eu.

     — O senhor experimentou-a?

     — Não... não a experimentei. — Vogel correu os dedos reverentemente sobre as válvulas da corneta. — Até hoje, sempre experimentei cada um dos instrumentos de latão que os meus assistentes e eu restauramos, a fim de verificar a pureza do som. Porém, desta vez, não posso.

     — Não compreendo — disse Sandecker.

     — Este instrumento é a lembrança de um pequeno mas corajoso ato executado durante a maior tragédia marítima da história da humanidade — replicou Vogel. — Não será necessária muita imaginação para podermos ver Graham Farley e os seus companheiros de orquestra tocando a fim de acalmarem os amedrontados passageiros do navio, não pensando um só instante na sua própria segurança, enquanto o Titanic mergulhava na água gelada. A última melodia desta corneta saiu dos lábios de um bravo homem. Sinto que seria quase um sacrilégio alguém voltar a tocá-la.

     Sandecker observou, atentamente, as feições do velho homem, como se o estivesse vendo pela primeira vez.

     — Outono! — Vogel murmurava como se falasse para si mesmo. — Outono, um hino antigo. Foi essa a última melodia que Graham Farley tocou nesta corneta.

     — Mas não foi Mais perto de Ti, Meu Deus? — perguntou Gunn, vagarosamente.

     — Isso não passa de um mito — disse Pitt. — Outono foi a última melodia tocada pela banda do Titanic, pouco antes do fim.

     — O senhor parece ter feito um estudo sobre o Titanic — disse Vogel.

     — O navio e o seu trágico destino são como uma doença contagiosa — respondeu Pitt. — Uma vez que a gente se interesse, dificilmente consegue dominar a febre.

     — O navio em si não me atrai grandemente. Mas, na qualidade de cronista de músicos e dos seus instrumentos, a saga da banda do Titanic sempre me prendeu a atenção. — Vogel tornou a colocar a corneta na caixa, fechou-a e passou-a a Sandecker por cima da mesa. — A menos que o senhor tenha mais alguma pergunta a fazer, almirante, eu gostaria agora de ir tomar um bom pequeno-almoço e depois atirar-me para cima da cama. Foi uma noite trabalhosa.

     Sandecker ficou de pé.

     — Somos seus devedores, senhor Vogel.

     — Tinha a esperança de que o senhor me dissesse isso. — Os olhos de Pai Natal piscaram astutamente. — Há uma maneira pela qual o senhor me poderá agradecer.

     — Qual é?

     — Fazendo a doação da corneta ao Museu de Washington. Seria um troféu a ser exibido no nosso Salão de Música.

     — Logo que o nosso laboratório tenha completado o estudo do instrumento e do seu relatório, imediatamente o devolverei ao senhor.

     — Agradeço em nome dos diretores do Museu. — Mas não como uma doação, entretanto.

     Vogel fitou, indeciso, o almirante.

     — Não estou a entender.

     Sandecker sorriu.

     — Vamos antes chamar a isso um empréstimo permanente. Dessa forma, não haverá complicações no caso de a termos de pedir de volta, por qualquer razão, embora temporariamente.

     — Entendido.

     — Mais uma coisa — disse ainda Sandecker. — Nada foi dito à imprensa a respeito da descoberta. Apreciaria que o senhor mantivesse igual reserva, por enquanto.

     — Desconheço os motivos, mas naturalmente que assim farei.

     O altíssimo restaurador fez as suas despedidas.

     — Raios! — explodiu Gunn, um segundo depois da porta se ter fechado. — E pensar que provavelmente passamos à distância de uma cuspidela do Titanic!

     — Vocês estiveram certamente no local — concordou Pitt. — O radar do Sappho 1 explora num raio de duzentos metros. O Titanic devia achar-se a pouco mais que isso à passagem do Sappho 1.

     — Se ao menos tivéssemos tido mais tempo! Se soubéssemos que diabo estávamos procurando!

     — Você esquece — disse Sandecker — que testar o Sappho 1 e conduzir as experiências na Corrente Lorelei eram os principais objetivos e que quanto a eles, você e os seus homens fizeram um trabalho fabuloso. Os oceanógrafos estarão a esquadrinhar os dados por vós fornecidos durante, pelo menos os dois próximos anos. O meu único pesar foi não ter podido participar o que tínhamos em mira, mas Gene Seagram e o seu pessoal de segurança insistiram para que guardássemos o maior segredo a respeito de todas as informações que obtivéssemos sobre o Titanic até que as operações de salvamento estivessem já num estado muito adiantado.

       — Não poderemos manter o segredo por muito mais tempo. — disse Pitt. — Todos os meios de comunicação do mundo vislumbrarão o mais importante achado histórico desde a abertura do túmulo de Tutancâmon.

     Sandecker levantou-se da sua cadeira junto à escrivaninha e dirigiu-se para a janela. Quando falou, as suas palavras eram suaves, como se tivessem sido trazidas pelo vento, de uma grande distância.

     — A corneta de Graham Farley!

     — Senhor?

     — A corneta de Graham Farley — repetiu Sandker ansiosamente. — Se aquela velha trompa representa ai indicação, o Titanic deve então estar pousado naquele abismo negro, tão bonito e bem conservado como no dia que se afundou!...

 

     Para um observador casual que estivesse em terra ou quando um que, em passeio recreativo, subisse o rio Rappahar visse aqueles três homens, esparramados num velho e mal construído barco a remos, diria que pareceriam um trio de pescadores de fim-de-semana. Estavam vestidos com camisas desbotadas e blue jeans, usavam chapéus engrinaldados, com as variedades usuais de anzóis e iscas. Uma cena, aliás típica, a que nem faltavam as garrafas de cerveja dentro de uma rede de pescador pendurada fora da borda.

     O mais baixo dos três, um homem de cabelos arruivados e cara enrugada, encontrava-se deitado na popa, parecendo dormitar; as mãos seguravam molemente uma cana de pesca cuja linha estava ligada a uma rolha vermelha e branca que boiava a uns sessenta centímetros da borda do barco. O segundo homem achava-se debruçado sobre uma revista aberta, enquanto o terceiro pescador, sentado ereto, fazia os movimentos de lançamento de uma isca prateada. Era um homem corpulento, com o estômago protuberante, que a camisa aberta deixava à mostra. Possuía um rosto redondo e jovial e a expressão dos seus olhos azuis era calma: a imagem perfeita de um velho e bondoso avô.

     O almirante Joseph Kemper podia dar-se ao luxo de parecer bondoso. Quando alguém concentra em suas mãos tanta autoridade como ele, já não precisa fazer olhares hipnóticos ou de lançar chamas como um dragão. Ele olhava benevolente para baixo, para o homem que parecia dormitar.

     — Admira-me, Jim, que você não esteja a prestar muita atenção à pescaria.

     — Este parece ser o mais inútil empreendimento jamais sonhado por alguém — disse Sandecker.

     — E o senhor — disse ele, dirigindo-se a Seagram — ainda não lançou um único anzol depois que fundeamos.

     Seagram olhou para Kemper por cima da revista.

     — Um peixe que consegue sobreviver à poluição existente aqui, almirante, deve parecer-se com uma figura tirada de um filme de horror barato e o seu gosto deve ser duas vezes pior.

     — Uma vez que foram os senhores que me convidaram para vir — disse Kemper — começo a suspeitar que algo de diabólico existe neste convite.

     Sandecker não disse que sim nem que não.

       — Relaxe e aprecie a paisagem, Joe. Pelo menos por algumas horas, esqueça que é o chefe do Estado Maior da Armada.

     — Isso é fácil quando você está perto. Você é o único que eu conheço que fala comigo de cima.

     Sandecker riu.

     — Você não pode passar a vida com toda a gente a fazer-lhe rapapés. Considere-me uma boa terapia.

       Kemper respirou.

     — Eu acalentei a esperança de me ver livre de você, de uma vez para sempre, no dia em que passou à reserva. Agora parece que voltou para me atazanar como um daqueles maneirosos e chatíssimos comerciantes.

     — Imagino como eles pularam de contentes pelos corredores do Pentágono, logo após eu ter saído...

     — Bem, digamos apenas que não derramaram muitas lágrimas nessa altura.

     Kemper deixou deslizar a linha vagarosamente.

     — Está certo, Jim. Conheço-o há demasiados anos para não perceber que vou ser espremido. Que têm em mente, você e o senhor Seagram?

     — Vamos atrás do Titanic — disse Sandecker com simplicidade.

     Kemper continuou a operação que estava a fazer.

       — Verdade?

     — Verdade.

     Kemper lançou novamente o anzol.

     — Para quê? Para fazer algumas fotos publicitárias?

     — Não. Pretendemos trazê-lo à superfície.

     Kemper parou de enrolar a linha. Virou-se e olhou Sandecker fixamente.

     — Você disse o Titanic?

     — Sim, disse.

     — Jim, meu rapaz, perdeu realmente as amarras desta vez. pensa que eu acredito...

     — Não se trata de nenhum conto de fadas — interrompeu Seagram. — A autorização para a operação de salvamento veio diretamente da Casa Branca.

     Kemper estudou o rosto de Seagram.

     — Devo então entender que o senhor representa o Presidente

     — Sim, senhor. É isso precisamente.

     Kemper disse então:

       — Devo dizer-lhe, senhor Seagram, que tem uma maneira estranha de tratar os negócios. Se quisesse ter a gentileza de explicar. . .

     — Pois não estamos aqui para outra coisa, almirante.

     Kemper voltou-se para Sandecker.

     —Também entra neste jogo?

     Sandecker assentiu.

     — Digamos então que Seagram fala mansinho porque tem as costas muito quentes.

     — Está bem, Seagram, tem a palavra. Por que o subterfúgio e por que a urgência de içar aquele ferro-velho?

     — Comecemos pelo princípio, almirante. Para já, sou o chefe de um departamento do Governo, altamente secreto, denominado Seção Meta.

     — Nunca ouvi falar disso.

     — Não constamos de nenhuma relação dos escritórios federais. Nem a própria CIA, o FBI ou a NASA possuem qualquer registro das nossas operações.

     — Em resumo, um compartimento estanque do pensamento — interrompeu Sandecker.

     — Um pouco mais que um simples compartimento estanque — esclareceu Seagram. — O nosso pessoal prevê o aparecimento de futuros conceitos e, então, tenta empregá-los na construção de sistemas cujo funcionamento seja um êxito.

     — Mas isso irá custar milhões de dólares — redargüiu Kemper.

     — A modéstia proíbe-me de mencionar a quantia exata a que monta o nosso orçamento, mas sou compelido a admitir que disponho de um pouco mais de dez algarismos para o empreendimento.

     — Deus meu! — murmurou Kemper. — Mais de um bilhão de dólares para gastar, diz o senhor! E ainda por cima, tratando-se duma organização de cientistas cuja existência ninguém conhece. O senhor está a despertar o meu interesse.

     — E o meu também — disse Sandecker, com acidez. — Até agora, Seagram procurou a assistência da NUMA através dos canais da Casa Branca, apresentando-se como auxiliar do Presidente. Por que essa rotina maquiavélica?

     — Porque o Presidente ordenou a mais rigorosa segurança, almirante, de modo a evitar que qualquer coisa transpirasse para o Capitólio. A última coisa de que a sua administração necessita é de uma investigação pública às finanças da Seção Meta.

       Kemper e Sandecker trocaram olhares e menearam a cabeça. Olharam, então, para Seagram, aguardando o resto da explicação.

       — Ora, acontece que agora — continuou Seagram — a Seção Meta desenvolve um projeto de defesa cujo nome, em código, é: Projeto Siciliano...

     — Projeto Siciliano?

       — Demos-lhe esse nome porque, no jogo de xadrez, existe uma estratégia chamada a "defesa siciliana". O projeto parte de uma variante do princípio de maser. Por exemplo: se fizermos passar uma onda de uma determinada freqüência através de um meio que contenha átomos excitados, podemos estimular o som até um estado de emissão extremamente alto.

     — Semelhante ao raio laser — comentou Kemper.

     — Até certo ponto — respondeu Seagram. — O laser emite um raio estreito e de baixa energia, ao passo que o nosso aparelho emite um vasto campo, em leque, de ondas sonoras.

     — Para lá de dar cabo de uma porção de tímpanos — disse Sandecker. — Qual o objetivo disso?

       — Conforme se deve recordar, almirante, dos seus estudos elementares do tempo da escola, o som propaga-se em ondas circulares, como acontece quando se atira uma pedra para dentro de água. No caso do Projeto Siciliano, poderemos multiplicar as ondas sonoras um milhão de vezes. Então, quando essa tremenda energia for libertada, ela propagar-se-á pela atmosfera, empurrando as partículas de ar à sua frente, comprimindo-as até que elas formem uma parede sólida e impenetrável de centenas de quilômetros quadrados de diâmetro. — Seagram fez uma pausa para coçar o nariz. — Não vou aborrecê-los com equações e pormenores técnicos referentes aos instrumentos que terão de ser usados. São coisas muito complicadas para serem aqui analisadas, mas os senhores poderão facilmente imaginar o potencial. Qualquer míssil inimigo lançado contra a América, ao entrar em contato com essa barreira protetora invisível, se despedaçaria totalmente, muito antes de ter alcançado o seu alvo!

     — Mas isso... . isso é uma coisa a valer? — perguntou Kemper, hesitante.

     — Sim, almirante. Posso assegurar-lhe o resultado. Estão já a ser construídas as instalações necessárias para eliminar os efeitos de um ataque geral.

     — Jesus! — explodiu Sandecker. — A arma final!

     — O Projeto Siciliano não é uma arma. Trata-se simplesmente de um método científico de proteger o nosso país.

     — É difícil de visualizar — disse Kemper.

     — Basta imaginar o trovejar de um avião a jato, amplificado dez milhões de vezes.

     Kemper parecia atordoado.

     — E o som. . . não iria ele destruir tudo o que encontrasse?

     — Não. A energia é lançada no espaço e cresce durante o seu trajeto. Para quem estiver ao nível do mar, o impacto será o mesmo que o de um trovão à distância.

     — E o que tem tudo isso a ver com o Titanic?

     — O elemento necessário para estimular a emissão do som até ao mais alto nível que se requer é o bizanio, e aí é que a porca torce o rabo, meus senhores. É que a única quantidade de minério de bizanio que se conhece no mundo foi embarcada para os Estados Unidos em 1912, no Titanic!

     — Compreendo — disse Kemper. — Então, o trazer à tona da água o navio é a última tentativa para poder operar com o sistema de defesa?

     — A estrutura atômica do bizanio é a única que servirá. Ao programar as suas propriedades nos nossos computadores; eles confirmaram que temos trinta mil possibilidades de êxito contra uma de fracasso.

     — Mas por que içar o navio inteiro? — perguntou Kemper. — Por que não rasgar simplesmente as suas anteparas e retirar o bizanio?

     — Teríamos de abrir caminho com explosivos. O perigo de destruir o bizanio para sempre é demasiado grande. O Presidente e eu concordamos que o aumento da despesa com o içamento do casco é largamente compensado pelo afastamento do risco de se perder o minério.

     Kemper lançou outra vez a isca à água.

     — Você é um pensador seguro, Seagram. Isso está fora de questão. Mas que é que o faz supor que o Titanic esteja em condições de ser içado inteiro? Depois de setenta e cinco anos no fundo do mar, ele não deve ser mais que uma imensa pilha de ferro enferrujado!

     — O meu pessoal possui a sua teoria a esse respeito — disse Sandecker.

     Pôs a cana de pesca ao lado, abriu a caixa dos apetrechos e retirou de dentro um sobrescrito.

     — Olhe isto.

     Depois passou a Kemper diversas fotografias de dez por treze.

     — Parecem bagulhos tirados do fundo do mar — comentou Kemper.

     — Exatamente — respondeu Sandecker. — Frequentemente as câmeras dos nossos submarinos topam com coisas velhas ou inúteis que são jogadas pela borda fora dos navios que passam. — Apontou para a foto de cima. — Isto aqui é uma estufa de uma galé encontrada a mil e duzentos metros de profundidade ao largo das Bermudas. A seguinte mostra o bloco de um motor de automóvel fotografado a mil novecentos e cinqüenta metros ao largo das Aleutas. Impossível é dizer a quanto tempo se encontram essas coisas debaixo de água. Agora, aqui nesta, está um Grummam F4F da Segunda Guerra Mundial: este avião foi encontrado a três mil metros, próximo da Islândia. Conseguimos descobrir uma informação a seu respeito. O avião teria sido obrigado a pousar na água por falta de combustível. O piloto, um tal tenente Strauss, relatou que o aparelho nada sofrera. Isto passou-se em março de 1946.

     Kemper segurou a foto seguinte com o braço estendido.

     — Que diabo é isto?

     — Esta foi tirada pelo Sappho 1 no momento da descoberta, durante a Expedição da Corrente Lorelei. Aquilo que a princípio parecia ser um funil de cozinha era de fato uma trompa.

     Depois mostrou a Kemper uma foto do instrumento, tirada já depois de este ter sido restaurado por Vogel.

     — Mas isto é uma corneta! — corrigiu Kemper. — E diz você que o Sappho 1 trouxe isto para cima?

     — Sim, de três mil e seiscentos metros de profundidade. Esteve pousada no fundo desde 1912.

     — Não me diga que isto pertenceu ao Titanic!

   — Posso mostrar-lhe provas documentadas.

     Kemper suspirou e devolveu as fotos a Sandecker. Os ombros vergaram-se-lhe, num gesto característico de um homem já gasto e cansado, que há muito deixara de ser jovem e que vinha suportando uma grande responsabilidade por um tempo já demasiado longo. Retirou uma cerveja da rede e abriu-a.

     — E que prova tudo isso?

     Sandecker riu ligeiramente.

       — Esteve diante do nosso nariz durante dois anos... essa é a idade da descoberta... mas nós desprezamos o que se poderia deduzir dela. Na verdade, houve comentários a respeito das excelentes condições em que o avião foi encontrado, embora nenhum dos meus oceanógrafos tivesse realmente compreendido o significado. Só agora que o Sappho 1 trouxe a corneta para cima é que surgiram as verdadeiras conclusões.

     — Não estou a perceber lá muito bem — disse Kemper com voz apagada.

     — Primeiramente — continuou Sandecker — noventa por cento daquele F4F é feito de alumínio e, como você sabe, a água do mar é danada para destruir o alumínio. Entretanto, o aparelho, depois de permanecer mais de quarenta anos no fundo do mar, encontra-se como no dia em que saiu da fábrica. A mesma coisa se passou com a corneta. Também ela esteve debaixo de água quase oitenta anos, e no entanto brilha como a pele duma criança recém-nascida.

     — Tem alguma explicação para isso? — perguntou Kemper.

     — Dois dos mais experientes oceanógrafos da NUMA estão agora a trabalhar com os nossos computadores. A teoria, de momento, é a de que há uma porção de fatores atuantes: a inexistência de uma vida submarina prejudicial a grandes profundidades; a baixa salinidade no fundo; a baixa temperatura dessas águas; o baixo teor de oxigênio, que torna menos rápido o processo de oxidação do metal. Pode ter sido um, ou podem ter sido todos estes fatores, a causa do atraso da deterioração dos destroços no fundo do mar. Saberemos isso melhor se e quando pudermos dar uma olhadela ao Titanic.

     Kemper pensou por um momento.

     — Que deseja então de mim?

       — Proteção — respondeu Seagram. — Se os soviéticos desconfiarem das nossas intenções, tentarão tudo, até quase a guerra, para nos impedir e arrancar o bizanio para eles próprios.

     — Fiquem descansados a esse respeito — disse Kemper, numa voz que endureceu de repente. — Os russos pensarão duas vezes antes de praticar qualquer ato hostil na nossa costa do Atlântico. A operação de recuperação do Titanic será protegida, senhor Seagram. Dou-lhe absoluta garantia a esse respeito.

     Um leve sorriso passou pela face de Sandecker.

     — Para aproveitar a sua maré de generosidade, Joe, quais as possibilidades de se tomar de empréstimo o Modoc?

     — O Modoc — repetiu Kemper — é o mais belo barco de salvamento em águas profundas que a Armada possui.

     — Poderíamos, além disso, fazer também uso da sua guarnição — forçou ainda Sandecker.

     Kemper fez rolar a lata fria da cerveja sobre a testa.

     — Está bem, podem contar com o Modoc e a sua guarnição, e mais os homens e os equipamentos de que precisarem.

     Seagram suspirou.

       — Obrigado, almirante. Fico-lhe muito grato.

     — O senhor está desenvolvendo um conceito interessante — disse Kemper — mas que envolve inúmeros problemas.

     — Nada se consegue facilmente — respondeu Seagram.

     — Qual será o passo seguinte?

     A essa pergunta, Sandecker respondeu:

     — Vamos fazer descer as câmeras de televisão a fim de localizar o casco e inspecionar os estragos.

     — Só Deus sabe o que você irá encontrar... — Kemper interrompeu-se de repente e apontou para a bóia de Sandecker, que se movimentava. — Por Deus, Jim, creio que apanhou um peixe!

     Sandecker inclinou-se preguiçosamente sobre a borda do barco.

     — Está-me a parecer! — Sorriu. — Esperemos que o Titanic se comporte da mesma maneira.

     — Temo que essa esperança venha a ser considerada um estímulo demasiado dispendioso — disse Kemper.

     Nos seus lábios não havia um vislumbre de sorriso.

 

     Pitt fechou o diário de Joshua Hays Brewster e olhou, por cima da mesa de conferências, para Mel Donner.

     — Então é isso.

     — Toda a verdade e nada mais que a verdade — disse Donner.

     — Mas não terá o bizanio, ou como quer que isso se chame, perdido as suas propriedades depois de estar imerso no fundo do mar durante todos estes anos?

     Donner meneou a cabeça.

     — Quem o poderá dizer? Nunca ninguém possuiu uma quantidade suficiente de bizanio para saber com precisão como ele reagiria sob diversas condições.

     — Por isso, ele pode muito bem ter perdido as suas propriedades.

     — Não, se estiver efetivamente fechado no cofre do Titanic. A nossa pesquisa indica que o compartimento é à prova de água.

       Pitt recostou-se e fitou o diário.

     — É um jogo danado.

     — Sabemos disso.

     — É como pedir a um grupo de garotos que içem um tanque Patton do lago Erie, usando alguns cabos e uma balsa.

     — Sabemos disso — repetiu Donner.

     — Só o custo para içar o Titanic deverá ser uma coisa fabulosa — continuou Pitt.

     —Faça uma estimativa.

     — Em mil novecentos e setenta e quatro, a CIA pagou mais de trezentos milhões de dólares para içar apenas a proa de um submarino russo. Não tenho onde me basear para calcular o custo do salvamento dum transatlântico de quarenta e seis mil toneladas a uma profundidade de três mil e seiscentos metros.

    — Mas dê, então, um palpite.

       — Quem financia a operação?

     — A Seção Meta cuidará da parte financeira — disse Donner. — Faça de conta que eu sou o seu amigo banqueiro das vizinhanças. Dê-me a saber quanto supõe que custará a operação de salvamento, a fim de que eu possa providenciar a transferência secreta de fundos para o orçamento anual de operações da NUMA.

       — Duzentos e cinqüenta milhões devem ser suficientes para começarmos a trabalhar.

     — Isso é um pouco menos do que calculamos — disse Donner, indiferentemente. —Sugiro que você não estabeleça um limite. Por uma questão de segurança, arranjei para que você receba mais cinco de reforço.

     — Cinco milhões?

     — Não. — Donner sorriu. — Quinhentos milhões!

     Depois do guarda o ter deixado passar pelo portão, Pitt parou na berma da estrada e olhou para trás através da cerca de correntes da Companhia Smith de Transporte e Armazenamento. "Não acredito nisto", dizia ele para ninguém. "Não acredito em nada disto."

     Então, vagarosamente, com muita dificuldade, como se estivesse a obedecer às ordens de um hipnotizador, Pitt colocou a alavanca de mudanças em drive e tomou o caminho de regresso à cidade.

 

     Tinha sido um dia particularmente desagradável para o Presidente. Havia tido encontros que pareciam nunca mais acabar com congressistas membros do partido da oposição; encontros em que ele havia lutado a fim de os persuadir a apoiá-lo nas modificações que pretendia introduzir no regulamento do Imposto de Renda, embora sem resultado na maioria dos casos.

     Depois, seguiu-se um discurso na convenção dos governadores de estado, que lhe eram quase hostis, e ainda, da parte da tarde, uma sessão agitada com o seu impetuoso secretário de Estado. Agora, pouco depois das dez horas, com mais um assunto desagradável para resolver, ele ali se encontrava sentado numa imensa poltrona, segurando uma bebida na mão direita enquanto com a mão esquerda coçava as longas orelhas do seu cão basset de olhos tristes.

   Warren Nicholson, o diretor da CIA e Marshall Collins, seu conselheiro-chefe sobre assuntos do Kremlin, encontravam-se sentados à sua frente num grande sofá dividido em seções. O Presidente bebeu um gole e depois olhou com cara aborrecida para os dois homens.

     — Algum de vocês terá a mais leve idéia do que me estão a pedir?

     Collins encolheu os ombros nervosamente.

     — Para ser franco, senhor, não. Mas este é precisamente um caso em que os fins justificam os meios. Pessoalmente, penso que Nicholson tem um plano fabuloso. As informações secretas que conseguirmos obter vão ser de estarrecer.

     — Mas custarão um preço muito elevado! — disse o Presidente.

     Nicholson inclinou-se para a frente.

       — Mas acredite-me, senhor: elas valem esse preço.

     — Para vocês isso é fácil de dizer — disse o Presidente. Nenhum de vós faz a mínima idéia do que significa o Projeto Siciliano.

     Collins assentiu.

     — Não há a menor dúvida sobre isso, senhor Presidente, o segredo está bem guardado. Essa foi a razão pela qual ficamos surpreendidos quando soubemos da sua existência através do KGB, em vez das nossas próprias forças de segurança.

     — Segundo o que os senhores supõem, o que sabem os russos a esse respeito?

     — Não podemos ter uma certeza absoluta quanto a isso — respondeu Nicholson — mas, pelos fatos que temos em mãos, tudo nos indica que a KGB apenas conhece o nome de código.

     — Raios! — murmurou, com raiva, o Presidente. — Como pôde isso ter transpirado?

      — Aventuro-me a arriscar a opinião de que se trata apenas de um acidente — disse Collins. — O meu pessoal em Moscou teria detectado qualquer coisa se os analistas do Serviço Secreto russo julgassem que estavam na pista de algum projeto ultra-secreto de defesa americano.

       O Presidente olhou para Collins.

       — O que o faz achar-se tão seguro de que se trata dum plano de defesa?

     — Se a segurança em torno do Projeto Siciliano é assim tão rigorosa como o senhor sugere, é óbvio tratar-se duma nova arma militar. Não tenho a menor dúvida de que os russos chegarão à mesma conclusão.

     — Concordo com a maneira de pensar de Collins — acrescentou Nicholson. — Isso tudo virá parar diretamente às nossas mãos.

       — Continue.

     — Forneceremos aos Soviéticos do Serviço Secreto Naval pequenas informações relativas ao Projeto Siciliano. Caso eles mordam a isca... — as mãos de Nicholson fizeram o gesto de uma armadilha que se fecha — ...então teremos descoberto uma das mais importantes redes da sua organização de espionagem.

     Aborrecido com a conversa, o cão basset do Presidente esticou-se e, calmamente, começou a dormitar. O Presidente, pesando os prós e os contras, olhou pensativamente por momentos para o animal. Era uma decisão penosa. Parecia-lhe que estava apunhalando pelas costas todos os seus amigos da Seção Meta.

     — Mandarei o homem que está à frente do projeto fazer um relato inicial — disse ele por fim. — Você, Nicholson, dirá onde e como quer que ele seja divulgado, de modo que os russos não suspeitem do logro. Tudo o que se refere ao Projeto Siciliano deverá ser tratado diretamente comigo, apenas comigo. Compreendido?

       Nicholson assentiu.

     — Eu próprio providenciarei sobre os canais.

     O Presidente pareceu abater-se e sucumbir dentro da sua poltrona.

     — Não preciso acrescentar, senhores — esclareceu ele, amargurado — que, se a nossa manobra for descoberta, seremos rotulados de traidores.

 

     Sandecker, com um pequeno ponteiro na mão, achava-se debruçado sobre um mapa representando o fundo do Atlântico Norte. Depois, olhou para Gunn e Pitt, que se encontravam do outro lado.

     — Não posso entender isto — disse, após um momento de silêncio. — Se aquela corneta pode servir de indicação, então o Titanic não se encontra onde era suposto estar.

     Gunn pegou uma caneta com ponta de feltro e fez uma pequenina marca sobre a carta.

     — A última posição enviada por ele, pouco antes de afundar, foi esta aqui: 41? 46 ' N-50? 14 ' W.

     — E onde foi que você a encontrou?

     Gunn fez uma outra marca.          

       — A posição exata do navio, tênder do Sappho 1 à superfície, no momento em que descobrimos a corneta de Farley, insere-se aqui neste ponto: cerca de seis milhas para sueste. —Uma diferença, portanto, de seis milhas. Como é possível?

     — Houve um conflito de testemunhos no que se refere à posição do Titanic no momento em que afundou. O comandante de um dos navios de salvamento, o Mont Temple, indicou uma posição muito mais para este. O seu navio havia retificado a sua posição, poucas horas antes, ao tomar a altura meridiana muito mais merecedora de crédito que o ponto estimado pelo quarto-oficial do Titanic, logo após aquele ter batido no iceberg.

     — Mas o navio que apanhou os sobreviventes, se não me engano — interrompeu Sandecker — orientou-se pela posição dada pelo rádio do Titanic e, quatro horas depois,encontrava os barcos salva-vidas.

     — Há umas certas dúvidas sobre o fato de o Carpathia navegar tão longe como calculou o seu comandante — respondeu Pitt. — Assim, é possível que ele tenha avistado os restos do naufrágio e os salva-vidas diversas milhas a sueste da posição indicada pelo rádio do Titanic.

     Sandecker bateu negligentemente com as margens do mapa.

     — Isto coloca-nos num dilema, senhores. Devemos começar as nossas buscas no ponto dado pelas coordenadas 41? 46 ' N- 50? 14' W, ou devemos antes nos guiar pelo ponto onde foi encontrada a corneta de Graham Farley, seis milhas a sueste? Se errarmos, só Deus sabe quantos acres do fundo do Atlântico não terão as nossas câmeras de televisão de varrer até esbarrarem no velho casco. O que diz a isto, Rudi?

     Gunn não hesitou.

     —Uma vez que o Sappho 1 falhou nos nossos propósitos de procura no local e em torno do local indicado como sendo o do afundamento, sugiro que façamos descer as nossas câmeras de TV no sítio onde foi encontrada a corneta de Farley.

     — E você, Dirk?

     Pitt manteve-se silencioso por alguns instantes. Depois, disse:

     — O meu voto seria para um adiamento de quarenta e oito horas.

     Sandecker fitou-o por cima do mapa com ar pensativo.

     — Não podemos perder uma hora sequer, quanto mais quarenta e oito horas!

     Pitt encarou-o por sua vez.

     — Eu proporia que passássemos por cima das câmeras de TV e considerássemos o estágio seguinte.

     — Qual é?

     — O de fazer descer um submarino pilotado.

     Sandecker meneou a cabeça.

       — Acho que não convém. Uma câmera de TV sobre um trenó rebocado por um barco de superfície pode cobrir uma área cinco vezes maior em metade do tempo que seria necessário a um submarino de movimento lento.

     — Não, se determinarmos o sítio com antecedência.

       A expressão de Sandecker fechou-se.

     — E como propõe você realizar esse pequeno milagre?

     — Juntarmos todos os fragmentos que possuímos referentes aos últimos momentos do Titanic... reunirmos todos os dados sobre a velocidade, as divergências de posição, as correntes marítimas, o ângulo de afundamento e, ainda, sobre a posição em que foi encontrada a corneta... enfim, tudo, e então programar segundo as indicações transmitidas pelos computadores NUMA. Se tivermos sorte, a informação que nos for fornecida pelo computador será a do ponto exato em que se encontra o Titanic.

     — Seria a aproximação lógica — admitiu Gunn. — E entretanto perderíamos dois dias.

       — Não perderemos coisa alguma, senhor. Nós até ganharemos — disse Pitt, animadamente. — O almirante Kemper emprestou-nos o Modoc. Neste momento, ele encontra-se em Norfolk, equipado e pronto a fazer-se ao mar.

     — É isso! — disse, rápido, Gunn. — O Sea Slug!

     — Precisamente — respondeu Pitt. — O Sea Slug é o último modelo de submarino da Armada. Foi projetado e construído para salvamentos a grandes profundidades e encontra-se neste momento à ré, no convés do Modoc. Dentro de dois dias, Rudi eu poderemos ter ambos os barcos na área do naufrágio, prontos para iniciarem a busca.

     Sandecker esfregou o ponteiro no queixo.

     — E então, se os computadores oferecerem a solução, enviarei a posição correta. Esse é o programa?

     — Sim, senhor, é esse o programa.

     Sandecker afastou-se do mapa e deixou-se cair numa cadeira Depois ergueu os olhos e fitou os rostos de Pitt e Gunn, cheios de determinação.

     — Está bem, senhores. Podem continuar com o vosso plano.

 

     Mel Donner apoiou o dedo na campainha da casa de Seagram, em Chevy Chase, e abafou um bocejo. Seagram abriu a porta e saiu para a varanda da frente. Os dois trocaram um silencioso e ligeiro cumprimento com a cabeça, sem as brincadeiras do costume, e caminharam para o carro de Donner, junto ao passeio. Seagram, com profundas olheiras, sentou-se e olhou desinteressado pela janela, a seu lado.

     — Você parece o monstro de Frankenstein antes de ganhar vida — disse Donner. — Até que horas esteve a trabalhar ontem?

     — Na verdade, vim cedo para casa. Foi um erro. Deveria ter ficado a trabalhar até tarde. Isso só serviu para termos mais tempo, eu e Dana, para brigarmos. Ela tem estado tão condescendente, ultimamente, que eu até trepei pelas paredes. Finalmente, a coisa transbordou e eu tranquei-me no estúdio. Acabei por dormir na cadeira da escrivaninha. Sinto dores em sítios que eu nem sabia que existiam.

     — Obrigado — disse Donner, sorrindo.

     — Obrigado por quê? — perguntou Seagram, voltando-se.

     — Por tornar mais firme a minha intenção de continuar solteiro.

     Continuaram silenciosos enquanto Donner seguia a corrente do tráfego na hora de maior movimento.

     — Gene — disse Donner por fim — sei que esse é um assunto delicado: ponha-me, se quiser, na sua lista negra, mas você parece gostar de se torturar a si mesmo.

     Não houve qualquer reação da parte de Seagram, de modo que Donner prosseguiu.

     — Por que não tira você uma ou duas semanas de férias e não leva Dana para um lugar tranqüilo, uma praia, por exemplo? Saia de Washington durante algum tempo. A construção das instalações de defesa prossegue sem qualquer complicação e não há nada que possamos fazer acerca do bizanio senão esperar e rezar para que a equipe de Sandecker da NUMA consiga recuperar o Titanic.

     — Eu sou agora mais necessário aqui do que nunca — disse Seagram com simplicidade.

     — Está a querer enganar a si próprio. De momento, tudo está fora do nosso alcance.

     Pelos lábios de Seagram perpassou um sorriso feroz.

     — Você está mais perto da verdade do que imagina.

     Donner virou-se para ele.

     — O que quer dizer?

     — Está fora do nosso alcance — repetiu Seagram, negligentemente. — O Presidente ordenou-me que deixasse transpirar, para os russos, o Projeto Siciliano.

     — Meu Deus! Mas para quê?

     — Warren Nicholson, da CIA, convenceu o Presidente de que, fornecendo pequenas porções de informações aos russos, a respeito do projeto, seria mais fácil para ele controlar uma das mais importantes redes do serviço secreto deles.

     — Não acredito nem uma palavra de tudo isso

     — Donner, no que você acredita não interessa — disse Seagram bruscamente.

     — Se aquilo que você diz é verdade, que adiantarão aos russos essas informações por conta-gotas? Sem as necessárias equações e cálculos, eles levarão pelo menos dois anos até chegarem a uma teoria razoável. E sem o bizanio nada poderão fazer.

     — Eles poderão pôr um sistema em funcionamento dentro de trinta meses se conseguirem deitar as mãos ao bizanio antes de nós.

     — Impossível! O almirante Kemper não o permitiria. Afugentaria os russos num instante se tentassem arrancar-nos o Titanic.

     — Suponhamos então — observou Seagram docemente — que Kemper receba ordem para se encolher e não fazer nada...

     Donner debruçou-se sobre o volante e coçou a testa demonstrando que não acreditava.

     — Você quer fazer-me acreditar que o Presidente dos Estados Unidos está a fazer o jogo dos comunistas?

     Seagram encolheu os ombros e disse, desanimado:

     — Como posso eu pedir-lhe que acredite em alguma coisa, se eu próprio não sei em que acreditar!?

 

     Pavel Marganin, alto e autoritário no seu uniforme branco da Armada, respirou fundo o ar da noite e entrou no elegante vestíbulo do Restaurante Borodino. Deu o seu nome seguiu até à mesa habitualmente ocupada por Prevlov. O comandante já se encontrava lá sentado, lendo um grosso maço de papéis envolvidos numa pasta de arquivo. Ergueu ligeiramente os olhos e correspondeu ao cumprimento de Marganin com um olhar onde estava estampado o tédio, antes de retornar à leitura

     — Posso sentar-me, comandante?

     — A menos que você queira colocar uma toalha no braço e retirar os pratos — disse Prevlov, sem levantar os olhos dos papéis. — Sente-se por favor.

     Marganin pediu vodca e esperou que Prevlov iniciasse a conversa. Passados uns três minutos, o comandante pôs de lado os papéis e acendeu um cigarro.

     — Diga-me, tenente, você seguiu a Expedição da Corrente Lorelei?

     — Detalhadamente não. Apenas passei uma vista de olhos pelos papéis antes de entregar.

     — Foi pena — disse Prevlov docemente. — Pense só nisto, tenente. Um submarino capaz de percorrer mil e quinhentas milhas pelo fundo do oceano sem vir à superfície uma única vez, em quase dois meses. Os cientistas soviéticos fariam bem se tivessem metade dessa imaginação.

     — Para ser franco, senhor, achei a leitura do relato muito insípida.

     — Homessa! Insípida! Se você o tivesse estudado num dos seus raros momentos de dedicação, teria certamente verificado um estranho desvio de rumo durante os últimos dias da expedição.

     — Não consigo ver qualquer significado misterioso num simples desvio de rumo.

     — Um bom especialista do Serviço Secreto procura um significado misterioso em todas as coisas, Marganin.

     Após aquela repreensão, Marganin consultou nervosamente o relógio e ficou olhando com atenção para os lavabos dos homens.

     — Penso que devemos investigar o que existe de tão importante ao largo dos Grandes Bancos da Terra Nova — continuou Prevlov. — Depois daquele negócio da Nova Zembla, pretendo investigar de perto todas as operações da Agência Nacional Marítima e Submarina, a partir de há seis meses atrás. Estou convencido de que os americanos estão tramando alguma coisa que representa perigo para a Mãe Rússia. — Prevlov acenou a um criado que passava e apontou para o copo vazio. Depois, recostou-se e suspirou. — As coisas são sempre diferentes daquilo que aparentam, não é verdade? Estamos metidos num caso estranho e confuso, em que cada vírgula, cada período num pedaço de papel podem representar um plano relativo a um extraordinário segredo. As soluções estão onde menos se espera.

     O criado aproximou-se com o conhaque de Prevlov. Este esvaziou o copo num só trago, fazendo a bebida passar por toda a boca antes de a engolir.

     — Dá-me licença, por um momento?

     Prevlov ergueu os olhos e Marganin acenou na direção dos lavabos.

     — Certamente.

     Marganin entrou nos lavabos forrados a azulejos e de tetos altos e preparou-se para urinar. Reparou então que não estava num dos compartimentos reservados; podiam-se ver os pés a um homem cujas calças estavam caídas sobre os tornozelos. Passado algum tempo, ouviu-se a descarga do autoclismo. Depois, dirigiu-se para o lavatório e começou a lavar as mãos enquanto ia observando pelo espelho, até que o mesmo homem gordo do banco do parque se aproximasse dele, apertando o cinto.

     — Desculpe-me, marinheiro — disse o homem gordo. Você deixou cair isto.

     Depois estendeu a Marganin um pequeno sobrescrito. Marganin, sem hesitar, pegou o sobrescrito e meteu-o no bolso.

     — Oh! Como sou descuidado! Obrigado.

     O homem gordo inclinou-se sobre o lavatório enquanto Marganin se virava para alcançar uma toalha.

     — Nesse sobrescrito encontrará informações explosivas — disse o homem gordo suavemente. — Tome cuidado com ele.

     — Pode ficar descansado.

 

     A carta havia sido colocada cuidadosamente ao centro da escrivaninha de Seagram, no estúdio. Ele ligou a lâmpada, acomodou—se na cadeira e começou a ler.

     Querido Gene Amo-te. Isto pode parecer-te uma maneira banal de começar uma carta, mas é a verdade. Eu ainda te amo com todo o meu coração. Tenho tentado desesperadamente entender-te e confortar-te durante estes meses de forte tensão. Como tenho sofrido, esperando que tu aceitasses o meu amor e a minha atenção, não desejando mais nada em troca não sendo um pequeno sinal da tua afeição! Sou forte em muitas coisas, Gene, mas não tenho forças nem paciência para combater a indiferença e o desprezo. Aliás, nenhuma mulher tem. Sinto saudades do nosso tempo passado, dos dias felizes em que o nosso interesse um pelo outro se sobrepunha às exigências das nossas vidas profissionais. Era tudo mais simples naquela época. Dávamos as nossas aulas na Universidade e fazíamos amor como se de cada vez fosse a última oportunidade.

     Talvez que eu tenha contribuído para o nosso afastamento pelo fato de não querer ter filhos. É possível que um filho ou uma filha nos tivesse ligado mais um ao outro. Não sei. Apenas me arrependo das coisas que não fiz. A única coisa que sei é que será melhor para ambos nos separarmos durante algum tempo, pois, de momento, as nossas vidas sob o mesmo teto parecem conhecer uma mesquinhez e um egoísmo que nenhum de nós suspeitava, sequer, poder sentir.

     Transferi-me para casa de Marie Sheldon, uma geóloga naval que trabalha na NUMA. Ela teve a bondade de me emprestar um quarto desocupado na sua casa de Georgetown até que eu ponha em ordem a minha cabeça. Por favor, não tentes entrar em contacto comigo. Só redundaria em novas discussões. Dá-me tempo para pensar, Gene. Imploro-te. É costume dizer-se que o tempo tudo cicatriza. Vamos fazer para que assim seja. Não é minha intenção abandonar-te, Gene, numa altura em que tu sentes que mais necessitas de mim.Acredito que esta resolução te irá aliviar de uma boa carga, que só serviria para aumentar as pesadas pressões das tuas funções. Perdoa a minha fraqueza feminina, mas, vistas as coisas pelo outro lado da moeda, é como se tu me mandasses embora. Vamos esperar que o futuro permita que o nosso amor perdure. Mais uma vez, amo-te. Dana

     Seagram releu a carta quatro vezes. Os olhos recusavam-se a afastar-se daquelas páginas corretamente escritas. Por fim, desligou as luzes a ali ficou, às escuras.

     Dana estava diante do seu armário, seguindo o ritual feminino de decidir o que vestir, quando uma pancada soou na porta do quarto.

     — Dana, estás pronta?

     — Anda cá, Marie.

       Marie Sheldon abriu a porta e espreitou para dentro do quarto

     — Meu Deus, nem sequer estás ainda vestida!

     A voz de Marie veio do fundo da garganta. Era pequena magra. Era uma mulherzinha cheia de vida, com os seus alegres olhos azuis, um atrevido narizinho movediço e um montão de cabelos louros esbranquiçados arrumados de forma que pareciam eriçados. Ela podia ser muito provocante se não fosse o seu queixo quadrado.

     — Todas as manhãs é a mesma coisa — disse Dana, irritada. — Se eu ao menos fosse organizada e preparasse tudo na véspera... mas não, deixo tudo para a última hora.

     Marie aproximou-se de Dana.

     — Que tal a saia azul?

     Dana retirou a saia do cabide e depois atirou-a para cima do tapete.

     — Raios! Mandei para a lavanderia a blusa com que ela ficava bem.

     — Se não tomas cuidado, vais começar a espumar pela boca

     — Não posso evitar — disse Dana. — Ultimamente, nada corre bem.

     — Depois que te separaste do teu marido, queres tu dizer.

     — A última coisa que me faria agora falta era um sermão...

     — Acalma-te, doçura. Se quiseres descarregar a tua raiva contra alguém, vai para a frente do espelho.

     Dana permaneceu de pé, tensa como uma boneca cuja mola tivesse sido apertada até ao fim. Marie percebeu que se aproximava uma crise de choro e, estrategicamente, bateu em retirada.

     — Relaxa! Vá, acalma-te. Vou descer para aquecer o carro.

     Dana esperou até deixar de ouvir os passos de Marie, depois dirigiu-se para a casa de banho e tomou duas cápsulas de Librium. Logo que o tranqüilizante começou a surtir efeito, ela vestiu, calmamente, uma saia de linho azul-turquesa, ajeitou o cabelo, calçou um par de sapatos de salto baixo e desceu.

     No caminho para os escritórios centrais da NUMA, Dana mostrou-se alegre e brilhante, enquanto acompanhava a musica do rádio batendo com a ponta do pé.

     — Uma ou duas pílulas? — perguntou Marie, com naturalidade.

     — Hum!?

     — Perguntei se foi uma ou duas pílulas. Quando te transformas de uma cadela numa garota boazinha, é sinal de que tomaste pílulas.

     — O que disse a respeito do sermão foi a sério.

     — Está bem, minha querida, mas aqui fica um aviso: se alguma noite eu te encontrar estendida no chão por causa de uma dose mais forte, saio calmamente para a rua. Não suporto cenas de morte traumática.

     — Tu exageras!

     Marie olhou para ela.

     — Achas que sim? Tu andas a engolir aquelas coisas como quem toma vitaminas.

     — Sinto-me bem — respondeu Dana, como um desafio.

     — Uma fava é que te sentes! Esse é o caso típico da mulher frustrada e emocionalmente deprimida. O pior caso, devo acrescentar.

     — A gente não consegue se recuperar tão rapidamente.

     — Quer antes dizer: vencer o remorso.

     — Não penso que tivesse agido da melhor maneira ao abandonar Gene; mas fiz o que me pareceu mais acertado.

     — E achas que ele não necessita de ti?

     — Eu tinha esperanças de que ele se aproximasse de mim, muito embora, de cada vez que estávamos juntos, nós brigássemos como o cão e o gato. Ele parecia nem dar por mim, Marie. É sempre a mesma história. Quando um homem como Gene se torna um escravo do trabalho, derruba as paredes que não pode atravessar. E o mais estúpido, o mais incrivelmente estúpido, é ele imaginar que, fazendo-me compartilhar dos seus problemas, me coloca também na linha de fogo. O homem aceita o ingrato peso da responsabilidade. Nós, mulheres, não. Para nós, a vida é um jogo que praticamos todos os dias. Nunca fazemos planos a longo prazo como os homens. — O seu rosto tornou-se triste e abatido. — Só posso voltar para casa quando Gene cair ferido na sua batalha particular. Então, e só então, estarei segura de que ele apreciará de novo a minha companhia.

     — Então poderá ser já muito tarde — disse Marie. — Pela descrição que fazes dele, Gene parece ser o perfeito candidato um esgotamento nervoso ou a um distúrbio das coronárias. Se tivesses um pouco de fibra, enfrentarias as dificuldades.

     Dana meneou a cabeça.

     — Não posso agüentar a rejeição. Enquanto não pudermos viver em paz um com o outro, procurarei viver a minha vida.

     — Isso inclui outros homens?

     — Apenas amor platônico — Dana forçou um sorriso. — Não estou inclinada a passar por mulher independente e a saltar em cima de cada pênis que apareça no meu caminho.

     Marie sorriu dissimuladamente.

     — Uma coisa é tornar-se acessível e fazer grandes promessas; outra, muito diferente, é a prática afetiva. Não te esqueças que isto aqui é Washington D. C., onde há oito mulheres para cada homem. Eles são os felizardos: podem-se dar ao luxo de escolher

     — Se tiver de acontecer, pois que aconteça. Não vou sair à procura de uma aventura. Além do mais, estou sem prática Esqueci-me como se namora.

     — Seduzir um homem é como andar de bicicleta: uma vez aprendido, nunca mais se esquece — disse Marie, rindo.

     Estacionou o carro no grande espaço aberto onde a NUMA possuía os escritórios centrais. Subiram os degraus até ao vestíbulo, onde se juntaram a um grupo de outros funcionários que se dirigiam apressados para os elevadores a fim de irem para as suas seções.

     — Que tal se nos encontrarmos à hora do almoço? — perguntou Marie.

     — Acho ótimo.

     — Vou trazer uns rapazes amigos para pôr à prova a tua capacidade latente de sedução.

     E antes que Dana pudesse protestar, já Marie se havia perdido no meio da multidão. Enquanto subia no elevador, Dana notou, com uma curiosa sensação de prazer, que o seu coração batia mais forte.

 

     Sandecker conduziu o seu carro para o parque de estacionamento do Colégio Alexandria de Oceanografia. Desceu e caminhou para junto de um homem que se encontrava de pé, ao lado de um pequeno carro elétrico.

     — Almirante Sandecker?

     — Sim.

     —Doutor Murray Silverstein. — O homenzinho, careca e roliço, estendeu a mão. — Fico satisfeito por ter vindo, almirante. Penso que conseguimos alguma coisa que lhe poderá ser de utilidade.

     Sandecker acomodou-se no pequeno carro.

     — Ficaremos gratos com qualquer indicação útil que nos possa fornecer.

     Silverstein tomou a alavanca da direção e avançou pela alameda asfaltada.

     — Desde ontem à noite que realizamos uma série de testes. Peço que compreenda que não posso prometer nada de precisamente matemático, mas os resultados são interessantes: isso é o mínimo que se pode dizer.

     — Algum problema?

     — Diversos. A única coisa que nos afasta de uma solução precisa é a falta de dados sólidos. Por exemplo: a direção da proa do Titanic no momento do afundamento, nunca foi estabelecida. Só essa indicação poderia aumentar a área de busca em quatro milhas quadradas.

     — Não compreendo. Então um navio de aço, de quarenta e cinco mil toneladas, não deveria afundar na vertical?

     — Não necessariamente. O Titanic, ao mergulhar, fez um movimento de saca-rolhas com um ângulo de inclinação de cerca de setenta e cinco graus e a água que enchia os compartimentos de vante imprimiu-lhe uma velocidade da ordem de quatro a cinco nós. Depois, temos também de ter em conta o momento, em vista da sua imensa massa, e ainda o fato de ter de descer quatro mil metros até alcançar o fundo. Não; creio antes que ele deve ter pousado a uma boa distância da vertical do ponto do afundamento.

     Sandecker fitou o oceanógrafo.

     — Em que se baseia para saber o ângulo de inclinação com que mergulhou o Titanic? As descrições feitas pelos sobreviventes não merecem confiança.

     Silverstein apontou para uma enorme torre de cimento à sua direita.

     — As respostas estão ali, almirante. — Parou o carrinho à entrada da porta do edifício. — Queira acompanhar-me e eu farei uma demonstração prática daquilo de que estou a falar.

     Sandecker seguiu-o através de um pequeno corredor até uma sala com uma janela de acrílico numa das paredes. Silverstein fez sinal ao almirante para que se aproximasse. Um mergulhador, vestindo um equipamento próprio, acenou do outro lado da janela. Sandecker correspondeu ao aceno.

     — Um tanque de águas profundas — disse Silverstein, com naturalidade. — As paredes interiores são de aço e têm sessenta metros de altura, com um diâmetro de dez metros. Há uma câmara de pressão para entrada e saída no fundo e cinco painéis de observação dispostos a intervalos iguais, no sentido da altura, a fim de se observar o objeto a diferentes profundidades.

     — Compreendo — disse Sandecker vagarosamente. — Trata-se de uma simulação do afundamento do Titanic até ao fundo do mar, não é verdade?

     — Sim. Agora deixe-me demonstrar-lhe. — Silverstein levantou um telefone de uma prateleira existente sob a janela de observação. — Owen, faça uma queda dentro de trinta segundos.

     — O senhor possui um modelo do Titanic?

     — Não é exatamente um modelo com a perfeição necessária para ser exibido num museu marítimo — explicou Silverstein. — Mas para um modelo em tamanho reduzido do aspecto geral do navio, peso e deslocamento é uma peça quase perfeita. O oleiro fez um ótimo trabalho.

     — O oleiro?

       — O ceramista — disse Silverstein, fazendo um gesto vago com a mão. — Podemos modelar e experimentar vinte modelos no mesmo tempo que seria necessário para fabricar um só de metal. — Colocou a mão sobre o braço de Sandecker e puxou-o para junto da janela. — Ele vem aí.

     Sandecker levantou os olhos e avistou uma forma oblonga com um metro e pouco de comprimento caindo vagarosamente dentro da água, precedida daquilo que parecia ser uma série de bolas de berlinde. Podia notar que não tinha havido qualquer preocupação em copiar exatamente os pormenores. O modelo parecia um pedaço de barro não polido, arredondado numa das extremidades e afilado na outra.

     — Não é nada, realmente. Isto me dá apenas o ensejo de poder demonstrar uma certa habilidade.

     Voltou-se e fez um sinal através da janela, fechando a mão com o polegar estendido para cima. O mergulhador amarrou o modelo a uma linha que se movia para o topo do tanque.

     — Vou repetir o teste e explicar como chegamos às nossas deduções.

     — O senhor podia começar por explicar as bolas de berlinde.

     — Elas fazem o papel das caldeiras — disse Silverstein.

     — As caldeiras?

     — Trata-se também de uma perfeita simulação. Veja, então. Quando a popa do Titanic apontou para o céu, as caldeiras desprenderam-se dos seus lugares e saíram, esbarrando e rebentando as anteparas até à proa. Eram peças pesadíssimas... vinte e nove no total; algumas medindo quase cinco metros de diâmetro e seis de comprimento.

     — Mas as bolinhas caíram de fora do modelo.

     — É que os nossos cálculos indicam que, pelo menos, dezenove caldeiras rebentaram tudo através da proa e caíram no fundo separadas do casco.

     — Como pode ter certeza?

     — Por que, se tivessem sido contidas na queda, a tremenda mudança de posição do lastro, quando elas passaram do meio do navio para a proa, teria provocado no Titanic um ângulo de inclinação de noventa graus. Entretanto, os relatos dos sobreviventes que dos barcos salva-vidas observaram o afundamento são quase unânimes nesse ponto... são concordes em que, logo após ter passado o ensurdecedor barulho das caldeiras batendo contra os obstáculos que encontravam pelo caminho, o navio se inclinou ligeiramente para a popa, antes de mergulhar definitivamente. Tal fato indica, sem dúvida alguma, que o Titanic vomitou as caldeiras e, uma vez livre delas, se endireitou um pouco, de modo a mergulhar com uma inclinação de cerca de setenta e cinco graus, como já mencionei.

     — E as bolinhas sustentam essa teoria?

     — Precisamente. — Silverstein agarrou novamente o telefone. — Quando você puder, estamos prontos, Owen. — Tornou a colocar o auscultador no gancho. — Lá em cima, encontra-se o meu assistente, Owen Dugan. Ele deve estar agora a colocar o modelo na água, diretamente sobre aquela linha de prumo que o senhor pode ver dentro de água, próximo da borda do tanque. À medida que a água começar a entrar através dos furos colocados estrategicamente na altura da proa do modelo, ele vai se inclinando. Num determinado ângulo, as bolinhas rolarão para a proa e uma porta provida de uma mola vai permitir que elas pulem para fora do modelo. Como obedecendo a um sinal, as bolinhas começaram a cair no fundo do tanque, seguidas de perto pelo modelo. Ele bateu no fundo a cerca de três metros da linha de prumo. O mergulhador fez uma pequena marca no fundo do tanque e com o dedo indicador e o polegar mostrou-lhes uma diferença de dois a três centímetros.

     — Aí tem, senhor almirante; em cento e dez experiências nunca houve um afastamento de mais de dez centímetros.

     Sandecker ficou olhando para o tanque durante algum tempo, depois virou-se para Silverstein.

     — Então, em que ponto iremos fazer as nossas buscas?

     — Após algumas brilhantes computações realizadas pelo nosso Departamento de Física — disse Silverstein — o ponto mais provável fica a mil e duzentos metros a sueste do local que o Sappho 1 encontrou a corneta. Mas isto não é senão uma estimativa.

     — E como pode o senhor ter certeza?

     Silverstein fingiu um olhar magoado.

     —O senhor subestima o meu gênio de perfeccionista, almirante. As nossas avaliações aqui perderiam o valor se não incluíssem uma perfeita observação do percurso da corneta até ao fundo do mar. Nos meus documentos sobre gastos, o senhor encontrará um recibo da loja de penhores de Moe referente à compra de duas cornetas. Depois de uma série de provas no tanque e a uma distância de duzentas milhas ao largo do cabo Hatteras, fizemo-las mergulhar a uma profundidade de três mil e seiscentos metros. Posso mostrar-lhe o gráfico traçado pelo sonar. Ambas pousaram no fundo a menos de cinqüenta metros da prumada do ponto em que foram lançadas.

     — Não querendo ofender — disse Sandecker no mesmo tom — tenho uma sensação de mergulho, se me permite o uso dessa expressão, que me fará perder uma caixa de Robert Mondavi Chardonnay 1984 por duvidar dos seus resultados.

     — 1981 — disse Silverstein, sorrindo. — Se existe alguma coisa que eu não posso suportar, é um tolo com bom gosto.

     — Imagine como este mundo seria monótono sem nós!

     Sandecker não respondeu. Dirigiu-se para a janela e olhou o modelo do Titanic dentro do tanque. Silverstein colocou-se por detrás dele.

     — Não há dúvida de que é um objeto fascinante.

     — Uma coisa estranha a respeito do Titanic — disse Sandecker suavemente. — Uma vez sob o efeito da atração exercida por ele, não se consegue pensar em mais nada.

     — Mas por que será? Que se passa com ele, que prende a nossa atenção e não nos larga mais?

     — Porque ele representa um destroço que faz com que todos os demais percam a importância — disse Sandecker. — Ele é o mais lendário, embora ilusório, tesouro da história moderna. Uma simples fotografia dele é o suficiente para fazer bombear adrenalina. O desejo de conhecer a sua história, a sua tripulação, as pessoas que percorreram os seus conveses nos poucos dias que teve de vida, é o que desperta a nossa imaginação, Silverstein. O Titanic ficou como um vasto arquivo de uma era que não mais veremos. Só Deus sabe se nos tocará a proeza de trazer o grande senhor de volta à luz do dia. Mas garanto que haveremos de tentar!

 

     O submarino Sea Slug parecia aerodinamicamente limpo por dentro e pelo lado de fora, mas quando Pitt, com os seus 188 centímetros de altura, teve de se encolher todo na cadeira do piloto, o interior, cheio de tubos e circuitos elétricos, mais lembrava um pesadelo de um claustrófobo. O engenho, de forma cilíndrica, media seis metros de comprimento. As suas extremidades arredondadas lembravam as do ser letárgico que lhe dera o nome. Estava pintado de amarelo brilhante e dispunha de quatro grandes painéis de observação dispostos aos pares, na proa; e montadas na parte superior, como pequenas abóbadas de radar, achavam-se duas poderosas luzes de grande intensidade. Pitt completou a lista de verificação e voltou-se para Giordino, sentado a estibordo.

     — Vamos mergulhar?

     Giordino mostrou todos os seus dentes num sorriso.

     — Sim, vamos.

     — Que diz a isto, Rudi?

     Gunn, que se encontrava deitado por detrás dos painéis de observação inferiores, levantou os olhos e concordou.

     — Estarei pronto quando vocês estiverem.

     Pitt falou a um microfone e observou o pequeno televisor sobre o painel de controle que mostrava o guindaste do Modoc levantando o Sea Slug da sua base no convés, fazendo-o passar, cuidadosamente, por sobre a borda para, por fim, o colocar na água. Assim que um mergulhador retirou a volta do cabo do guindaste, Pitt abriu rapidamente a válvula do lastro e o submarino começou a imergir vagarosamente, sacudido pelas ondas.

     — O marcador do tempo de sustentação da vida encontra-se ligado — anunciou Giordino. — Uma hora para descer, dez horas para buscas, duas para chegar à superfície, havendo ainda uma reserva de cinco horas para o que der e vier.

     — Empregaremos também o tempo de reserva para buscas — disse Pitt.

     Giordino tinha pleno conhecimento da situação. Se o inesperado acontecesse,um acidente a 3600 metros de profundidade, não haveria qualquer esperança de salvação. Uma morte rápida seria o melhor que se poderia desejar, para não sofrer a aterradora e lenta morte por sufocação. Ele sentiu-se divertido ao verificar que estava desejoso de se encontrar de novo a bordo do Sappho 1, gozando do conforto de se poder movimentar num espaço amplo e com a segurança das oito semanas de sustentação da vida. Recostou-se e observou a água, que ia escurecendo à medida que o Sea Slug mergulhava o seu casco nas profundezas. Os seus pensamentos convergiam para o homem enigmático que pilotava o engenho.

     Giordino começou a recordar-se de Pitt dos seus tempos do colégio, quando reconstruíram um carro velho e danificaram o motor para andarem às corridas pelas estradas desertas, por detrás de Nevport Beach, na Califórnia. Aliás, conhecia Pitt melhor que qualquer homem vivo ou qualquer mulher. Num sentido, Pitt possuía duas identidades, independentes uma da outra. Havia o colega Dirk Pitt, o que raramente se desviava do meio da estrada, alegre, despretensioso, irradiando uma camaradagem fácil com qualquer um que encontrasse. E havia o outro Dirk Pitt, a máquina friamente eficiente, que raramente cometia um erro e que, às vezes, se fechava sobre si mesmo, afastado e desligado. Se existisse uma chave que pudesse abrir uma porta entre os dois, Giordino ainda teria que a descobrir.

     Giordino voltou agora a sua atenção para o indicador de profundidade. A agulha marcava 360 metros. Depressa eles passaram a marca dos 600 metros e entraram num mundo de noite perpétua. A partir daí, e no que diz respeito à visão humana, somente havia pura escuridão. Giordino ligou um interruptor, e luzes exteriores acenderam-se, abrindo um caminho seguro naquele espaço escuro como breu.

     — Que pensa você acerca das nossas probabilidades de o encontrar à primeira busca? —perguntou.

     — Se as informações do computador que o almirante Sandecker nos enviou se mostrarem verdadeiras, o Titanic deve encontrar-se em algum ponto dentro de um arco de cento e dez graus, ou seja, mil e duzentos metros a sueste do local onde você encontrou a corneta.

     — Oh, ótimo! — murmurou Giordino, sarcasticamente — Isso simplifica trabalho. Em lugar de procurarmos uma unha do dedo do pé nas areias de Conney Island, vamos ter de descobrir um casulo de escaravelho albino numa plantação de algodão .

   — Lá começa ele outra vez! — disse Gunn — a oferecer o pensamento negativo do dia.

     — Quem sabe se ele não se irá embora se o ignorarmos? — comentou Pitt, com um sorriso.

       Giordino fez uma careta e apontou para o painel de elevação.

     — Oh, certo. Deixe-me na próxima esquina.

     — Nós acabaremos por encontrar o velho senhor — disse Rudi resolutamente. Apontou para o relógio iluminado no painel de controles. — Vejamos: são agora zero-seis-quarenta. Calculo que possamos estar sobre o convés do Titanic antes do almoço; digamos, portanto, cerca das onze-quarenta.

     Giordino olhou Pitt de soslaio.

     — Falou o grande adivinho!...

     — Um pouco de otimismo não faz mal a ninguém — disse Gunn.

     Ajustou a caixa da câmera exterior e fez disparar o troboscópio. O facho de luz foi ofuscante e rápido como um relâmpago, fazendo aparecer um milhão de criaturas planctônicas suspensas na água. Quarenta minutos mais tarde, a 3000 metros, Pitt entrou em comunicação com o Modoc a fim de dar a profundidade e temperatura da água: um grau e meio centígrado. Os homens observaram fascinados quando um pequeno angler horrível, com a sua aparência de coto, passou vagarosamente diante do painel de observação. O pequenino bulbo luminoso saliente no topo da cabeça, brilhava como um farol solitário.

     Quando a profundidade atingiu os 3774 metros, o fundo do mar apareceu, subindo de encontro ao Sea Slug como se estivesse parado. Pitt ligou os motores de propulsão e ajustou leme de profundidade, de modo a que a descida terminasse suavemente, colocando o engenho num rumo horizontal sobre a desolada superfície de barro vermelho que atapetava o fundo do oceano. Gradualmente, o pesado silêncio foi sendo quebrado pelo zunido ritmado produzido pelos motores elétricos do Sea Slug.

     A princípio, Pitt teve dificuldade em reconhecer as pequenas elevações ou depressões do fundo; nada havia à escala tridimensional. Os seus olhos apenas avistavam uma planície que se estendia para além do alcance dos faróis. Não se vislumbravam seres vivos. No entanto, havia provas da sua existência. Rastos dispersos dos habitantes das profundezas cruzavam-se e ziguezagueavam em todas as direções através do sedimento. Poder-se-ia imaginar que tais rastos tivessem sido feitos recentemente, mas o mar é muito enganador. Os sinais das aranhas do mar que habitam o fundo, dos pepinos do mar e das estrelas do mar, tanto poderiam ter sido deixados há apenas alguns minutos como há centenas de anos, pois os restos microscópicos de plantas e animais, que constituem o lodo do fundo dos oceanos são filtrados de cima para baixo à razão de um a dois centímetros em cada milênio.

     — Eis uma linda criatura — disse Giordino, apontando.

     Os olhos de Pitt seguiram a indicação de Giordino. Um estranho animal azul e preto, lembrando um cruzamento entre uma lula e um polvo, com os seus oito tentáculos ligados entre si como o pé de um pato, fitava o Sea Slug através de dois grandes olhos globulares, que constituíam quase uma terça parte do seu corpo.

     — Uma lula vampira — informou Gunn.

     — Pergunta-lhe se ela tem parentes na Transilvânia — comentou Giordino com um sorriso.

     — Sabe — disse Pitt —aquela coisa ali faz me lembrar a sua namorada.

     Gunn entrou na conversa.

     — Você refere-se àquela que parece uma tábua?

     — Também a viu?

     — Desabafem, seus invejosos — rosnou Giordino. — Ela está louca por mim e o pai mantém-me flutuando em bebidas finas.

     — Faço idéia do que sejam essas bebidas — bufou Pitt. — Bourbon do Poço Velho, gim de Átila, o Huno, vodca Tijuana. Quem ouviu já falar dessas bebidas?

     Durante as horas que se seguiram, o espírito e o sarcasmo ricocheteavam nas anteparas do Sea Slug. Todo aquilo soava artificial. Não passava dum mecanismo de defesa contra a monotonia. ao contrário da ficção romanceada, a busca de destroços nas profundezas era uma tarefa insuportável e tediosa. A somar a isto, havia ainda o desconforto agravado pela falta de acomodações, a elevada umidade e a baixa temperatura. Ter-se-ão, então, os ingredientes capazes de provocar um acidente por erro humano; erro esse que pode ser dispendioso e fatal.

       As mãos de Pitt mantinham-se firmes como uma rocha nos comandos dos controles ao conduzir o Sea Slug a pouco mais de um metro acima do fundo. Giordino tinha agora a sua atenção toda voltada para o sistema de sustentação da vida, enquanto Gunn mantinha os olhos bem abertos e fixos no sonar e no magnetômetro. As longas horas passadas no planejamento eram já coisas do passado. Agora, era tudo uma questão de paciência e persistência, acrescidas daquela peculiar mistura de eterno otimismo e amor do desconhecido, compartilhada por aqueles que andam em busca de tesouros.

     — Ali em cima, à frente, parece uma pilha de rochas — disse Pitt.

     Giordino olhou para cima através dos painéis de observação.

     — Encontram-se ali simplesmente pousadas sobre o lodo. Só não imagino de onde terão elas vindo!

     — Talvez seja lastro atirado pela borda fora de algum veleiro

     — Ou então, mais provavelmente, trazidas por algum iceberg — disse Gunn. — Muitas rochas e fragmentos são trazidas por eles e caem para o fundo quando se derretem...— Gunn interrompeu-se no meio da sua explicação. — Atenção... o sonar está a acusar nitidamente a presença de um corpo. E também o magnetômetro.

     — Em que direção? — perguntou Pitt.

     — No rumo de um-três-sete.

     — Um-três-sete — repetiu Pitt.

     Fez passar o Sea Slug por um bem formado banco, como se fosse um avião e tomou o rumo do objeto. Giordino espiava, sobre o ombro de Gunn, os círculos de luz verde do sonar. Um pequeno foco de brilho intermitente indicava um objeto sólido a pouco menos de trezentos metros do seu campo visual.

     — Não estejam muito esperançosos — disse Gunn calmamente. — Trata-se de um objeto muito pequeno para que possa ser um navio.

     — O que lhe parece então que seja?

       — É difícil dizê-lo. Não tem mais de seis a oito metros de comprimento e uma altura de dois pavimentos. Pode ser qualquer coisa...

     — Também pode ser uma das caldeiras do Titanic — cortou Pitt. — O fundo do mar deve estar cheio delas.

     — Você vai passar a chefe de classe — comentou Gunn e a excitação da sua voz ia crescendo. — Tenho uma leitura idêntica a um-um-cinco. E aqui vem uma outra: um-seis-zero. A última indica um comprimento de cerca de vinte metros.

     — Pode ser uma das chaminés — respondeu Pitt.

     — Deus! — murmurou Gunn roucamente. — Isto aqui parece um armazém de ferro-velho.

     De repente, um objeto arredondado começou a surgir da escuridão e a tornar-se visível, aureolado por aquela luz fantasmagórica, como se fosse uma imensa sepultura. Logo, os três pares de olhos dentro do submarino puderam distinguir as grades da fornalha da grande caldeira, bem como as filas de rebites ao longo das costuras das chapas de ferro e os retorcidos e irregulares tentáculos daquilo que tinha sido o feixe tubular.

     — Que tal ter sido fogueiro naqueles dias e alimentar aquelas criancinhas? — murmurou Giordino.

     — Apanhei outra! — exclamou Gunn .— Não, espere um minuto... a pulsação está a tornar-se mais forte. Vejamos o compartimento. Trinta metros... sessenta...

     — Continua a aparecer, querida... — rezou Pitt.

     — Cento e cinqüenta... duzentos e dez... duzentos e quarenta metros. Nós encontramos! Nós encontramos!

     —Que direção? — A boca de Pitt estava seca como a areia.

     — Zero-nove-sete — respondeu Gunn, num sussurro.

     Não disseram mais nada durante os poucos minutos que se seguiram enquanto o Sea Slug fazia diminuir a distância. Os seus rostos estavam pálidos e tensos com a expectativa. O coração de Pitt batia dolorosamente no peito e o estômago pesava-lhe como se tivesse um grande pedaço de ferro sobre ele e uma enorme mão a apertá-lo. Reconheceu que estavam a aproximar-se demasiado do lodo. Puxou para trás a alavanca de controle do submarino e manteve os olhos fixos no painel de observação. O que iriam eles encontrar? Um velho casco todo enferrujado e sem esperança de poder vir a ser recuperado? Ou um casco estragado e partido enterrado no lodo até acima? Então, os seus olhos cansados perceberam uma imensa sombra aparecendo de forma terrível na penumbra.

     — Deus poderoso! — exclamou Giordino, temeroso. — Nós estamos a vê-lo pela proa!

     Quando a distância diminuiu para quinze metros, Pitt reduziu a marcha dos motores e colocou o Sea Slug em posição paralela à do infeliz barco, na altura da linha de água. O simples tamanho do destroço visto ao longo do seu costado de aço era qualquer coisa de causar vertigens.

     Mesmo depois de oitenta anos, aquele navio afundado estava surpreendentemente livre de ferrugem. A cinta dourada que circundava todo o casco do barco, de 269 metros, ainda brilhou sob os intensos fachos de luz. Pitt fez subir o submarino, que passou ao lado da âncora de oito toneladas, até que eles pudessem ler claramente as letras douradas de noventa centímetros de altura que ainda proclamavam orgulhosas ser ele o Titanic. Fascinado, Pitt agarrou o microfone e apertou o botão de transmissão.

     — Modoc, Modoc. Aqui é o Sea Slug... está-me a ouvir?

     O radioperador do Modoc respondeu quase imediatamente.

       —Aqui é o Modoc, Sea Slug. Pode falar. Escuto.

     Pitt ajustou o volume de modo a diminuir os ruídos

     — Modoc, notifique os escritórios centrais da NUMA de que encontramos o grande Titanic. Repito, encontramos o grande Titanic. Profundidade: três mil, setecentos e setenta metros. Hora: onze-quatro-dois.

     — Onze e quarenta e dois? — repetiu Giordino. — Seu filho da mãe! Você só errou por dois minutos...

     O Titanic repousa coberto pela inquietante imobilidade daquela negra profundidade, tendo ainda as pavorosas marcas da tragédia. O rombo resultante da sua colisão com o iceberg prolonga-se na roda de proa, a estibordo, até à localização da caldeira número cinco, numa extensão de noventa metros, ao passo que os furos nos flancos, logo abaixo da linha de água, indicam o impacto despedaçante produzido pelas caldeiras quando estas se desprenderam das suas bases e saíram, abrindo caminho, antepara após antepara, até romperem o casco e se lançarem, livres, para dentro da água. Ele achava-se assente no lodo, pesadamente, com uma ligeira inclinação para bombordo: o castelo de proa apontado para sul, como se ainda lutasse, pateticamente, para alcançar e tocar as águas de um porto que nunca conheceu.

     As luzes do submarino dançaram sobre uma superestrutura fantasmagórica, espalhando sombras especiais através do seu longo convés de teca. As vigias, algumas abertas, outras fechadas, formavam filas organizadas sobre a imensa superfície dos seus bordos. Agora que as suas chaminés haviam caído, ele apresentava uma aparência aerodinâmica, quase moderna: as três da vante haviam desaparecido, duas delas provavelmente arrancadas durante o percurso até ao fundo, enquanto a número quatro estava caída na parte da ré do convés. E, com exceção de alguns pedaços enferrujados dos estais das chaminés que permaneciam caídos sobre a amurada, o convés principal apresentava somente alguns desajeitados ventiladores, como que mantendo uma silenciosa guarda sobre os turcos Welin vazios, que um dia haviam suportado os barcos salva-vidas do grande transatlântico.

     Havia uma beleza mórbida à sua volta. Com um pouco de imaginação, os homens do submarino quase podiam ver os seus salões de refeições e os seus camarotes outrora iluminados e cheios de passageiros sorridentes e de coração leve. Podiam visualizar as suas bibliotecas cheias de livros, os salões de fumo cheios da fumaça azul dos charutos dos cavalheiros e ouvir a sua orquestra executando ragtimes da passagem do século. Passageiros passeando pelo convés principal; homens ricos ou famosos nos seus trajes de noite impecáveis; senhoras de longos vestidos, governantas e crianças agarradas aos brinquedos favoritos; os Astors, os Guggenheims; tudo gente da primeira classe. Na segunda, encontrava-se classe média: professores, religiosos, e estudantes. Os imigrantes, os fazendeiros irlandeses com as suas famílias, carpinteiros, padeiros, costureiros e mineiros de remotas vilas da Suécia, Rússia e Grécia, ocupavam a terceira classe. Havia ainda os quase novecentos homens da tripulação desde os oficiais até os empregados, criados, mandaretes, maquinistas. Uma grande opulência permanecia ali na escuridão, por trás das portas e das vigias.

     Que aspecto teriam a piscina, as quadras de squash e os banhos turcos? Haveria ainda alguma remanescente das ricas tapeçarias penduradas no salão de recepção! E o relógio de bronze da escadaria principal, os candelabros de cristal do elegante Café Parisiense e os do teto do salão de jantar da primeira classe, delicadamente decorados? Permaneceriam algures, em algum lugar da ponte de comando, os ossos do comandante Edward J. Smith? Que mistérios não se irão descobrir um dia dentro do que foi um colossal palácio flutuante, se e quando tornar a ver a luz do sol?

     A luz do estroboscópio das câmeras do submarino não pára de lançar o seu facho interminavelmente, enquanto ele, qual pequeno intruso, circundava o imenso casco. Um grande peixe duns sessenta centímetros, de enormes olhos, deslizou sobre o convés inclinado, inteiramente indiferente aos explosivos focos de luz. Depois de um período que pareceu durar horas, o submarino com os seus tripulantes colados aos painéis de observação, passou sobre o que deveria ser a sala de jantar da primeira classe. Ficou um momento parado, depois depositou uma cápsula de sistema eletrônico. Os seus impulsos de baixa freqüência guiariam futuros mergulhos em busca do destroço. O submarino então, fazendo uma curva, e apagados os holofotes, deslizou para cima, mergulhando de novo na escuridão de onde tinha vindo.

     Com exceção de uns pequenos sinais de vida, que, de alguma forma, se adaptaram à escuridão e ao frio cortante do ambiente, o Titanic uma vez mais ficou só. Mas depressa outros submarinos virão e ele irá sentir de novo, na sua pele de aço, as ferramentas dos homens trabalhando, como há tantos anos atrás acontecera nos grandes estaleiros da firma Harland Wolff, construtores navais de Belfast. Então, e talvez só então, ele dará, finalmente, entrada num porto.

 

           Modoc - Capricorn Bomberger

           Mikhail Kurkov - Alhambra D

 

                       Maio de 1988

         De uma forma calculada e precisa, o secretário-geral soviético, Georgi Antonov, acendeu o cachimbo e passeou o olhar pelos outros homens sentados em torno da comprida mesa de mogno usada para as conferências. A sua direita sentava-se o almirante Boris Sloyuk, diretor do Serviço Secreto da Armada e o seu assessor, o comandante Prevlov. Do outro lado, encontravam-se Vladimir Polevoi, chefe da Direção dos Segredos Estrangeiros da KGB, e Vasily Tilevitch, marechal da União Soviética. Antonov foi direito ao assunto:

     — Ora, muito bem. Parece que os americanos estão dispostos a içar o Titanic até à superfície. — Antes de continuar, estudou uns papéis que se encontravam à sua frente. — Um grande esforço, ao que parece. Dois navios de suprimentos, três tênderes, quatro submarinos para grandes profundidades. — Olhou para o almirante Sloyuk e para Prevlov. — Temos algum observador na área?

     Prevlov assentiu.

     — O navio de pesquisas oceanográficas Mikhail Kurkov, sob o comando do capitão-de-mar-e-guerra Ivan Parotkin, encontra-se no perímetro da zona.

     — Conheço Parotkin pessoalmente — acrescentou Sloyuk. — é um bom marinheiro.

     — Se os americanos estão a despender centenas de milhões de dólares numa tentativa para recuperar um ferro-velho com setenta e seis anos — disse Antonov — deve haver um bom motivo.

     — E há um motivo — disse gravemente o almirante Sloyuk — Um motivo que ameaça a nossa segurança. — Fez sinal a Prevlov, que começou a passar em volta uma pasta vermelha denominada ''Projeto Siciliano". — Essa foi a razão pela qual solicitei esta reunião. O meu pessoal descobriu os esboços de um plano de um sistema secreto de defesa americano. Penso que os senhores acharão isso um tema chocante, talvez temível.

     Antonov e os demais abriram as pastas e começaram a lê-la Durante cerca de cinco minutos, o secretário-geral soviético lendo, ao mesmo tempo em que lançava olhares ocasionais na direção de Sloyuk. O rosto de Antonov passou por grandes mudanças de expressão: primeiro, interesse profissional, passando por franca confusão; depois assombro e, finalmente atordoamento.

     — Isto é inacreditável, almirante Sloyuk, absolutamente inacreditável!

     — Um tal sistema de defesa será possível? — perguntou o marechal Tilevitch.

     — Essa mesma pergunta já eu fiz a cinco dos nossos mais competentes cientistas. Todos eles concordam que teoricamente, um tal sistema é possível, uma vez que se disponha de uma fonte de energia suficientemente poderosa.

     — E o senhor acredita que essa fonte se encontra nos compartimentos de carga do Titanic? — perguntou Tilevitch

     — Estamos certos disso, camarada marechal. Conforme mencionei no meu relatório, o ingrediente vital para o acabamento do Projeto Siciliano é um elemento pouco conhecido chamado bizanio. Sabemos agora que os americanos roubaram do solo russo a única quantidade existente no mundo, à exatamente setenta e seis anos. Felizmente para nós, eles tiveram o azar de o transportar num navio que estava condenado a ir ao fundo.

     Antonov meneou a cabeça, denotando incompreensão.

     — Se o que você diz no seu relatório for verdade, então os americanos têm o potencial capaz de derrubar os nossos mísseis intercontinentais, como um cabreiro esmaga as moscas.

     Sloyuk assentiu solenemente.

     — Creio que essa é a temível verdade.

     Polevoi debruçou-se sobre a mesa, tendo no rosto uma máscara de consternação suspeitosa.

     — Você declara aqui que o seu contato é com um assessor de alto nível do Departamento da Defesa dos Estados Unidos.

     — Isso é correto. — Prevlov confirmou, respeitosamente. — Ele ficou desiludido com o Governo americano durante o escândalo Watergate e, desde então, tem enviado para mim todo o material que supõe ser importante.

     Antonov fitou o olhar de Prevlov.

     — E acredita que eles possam fazer isso, comandante Prevlov?

     — Içar o Titanic?

     Antonov assentiu. Prevlov sustentou o olhar.

     — Se o senhor se lembrar do bem-sucedido resgate levado a efeito pela Central Intelligence Agency de um submarino soviético a cinco mil e cem metros de profundidade, ao largo do Havaí, em 1974... creio que a CIA se referia a isso como o Projeto Jennifer... então, compreenderá que os americanos têm capacidade para colocar o Titanic no porto de Nova Iorque. Sim, camarada Antonov, acredito firmemente que eles o farão.

     — Não participo da sua opinião — disse Polevoi. — Um barco do tamanho do Titanic não pode ser comparado a um submarino.

     — Sou da opinião do comandante Prevlov — afirmou Sloyuk. — Os americanos têm o desagradável costume de conseguir executar aquilo que empreendem.

     — Quanto ao Projeto Siciliano — continuou Polevoi — a KGB não recebeu informações pormenorizadas com referência à sua existência, mas tão somente o seu nome em código. Como poderemos estar certos de que os americanos não criaram um objeto mirífico a fim de fazer bluff nas negociações para limitar os sistemas estratégicos de reação nuclear?

       Antonov tamborilou com os nós dos dedos sobre a mesa

     — Os americanos não costumam fazer bluff. O camarada Khrushchev verificou isso, há vinte e cinco anos, durante a crise cubana dos mísseis. Não podemos ignorar nenhuma possibilidade, embora remota, de que eles estejam na iminência de construir esse sistema de defesa logo que consigam recuperar o bizanio do casco do Titanic. — Fez uma pausa para fumar o seu cachimbo .— Sugiro, por isso, que consideremos quais as medidas que devemos tomar.

     — Obviamente, devemos fazer com que esse bizanio jamais chegue aos Estados Unidos — opinou o marechal Tilevitch.

     Polevoi bateu com as pontas dos dedos na pasta do Projeto Siciliano.

     — Sabotagem. Devemos sabotar a operação de salvamento, Não há outro caminho.

     — Não deve haver qualquer incidente com repercussão internacional — disse Antonov firmemente. — Não pode haver qualquer hipótese de interferência através de uma ação militar aberta. Não desejo que as relações entre os Estados Unidos e União Soviética sejam comprometidas, sobretudo durante outro ano de colheitas ruins. Que isto fique bem claro.

     — Nada podemos fazer se não penetrarmos na área de salvamento — persistiu Tilevitch.

     Polevoi fitou Sloyuk por cima da mesa.

     — Que medidas tomaram os americanos para proteger operação?

     — O cruzador nuclear Juneau, com mísseis dirigidos, está a patrulhar a área, dentro do alcance visual dos navios empregues no salvamento, durante vinte e quatro horas por dia.

     — Posso falar? — Prevlov fez a pergunta de forma quase condescendente. Porém, não esperou pela resposta. — Com a devida consideração, camaradas, a penetração já foi executada.

     Antonov ergueu os olhos.

      — Por favor explique-se, comandante.

     Prevlov dirigiu um olhar ao seu superior. O almirante Sloyuk fez um leve gesto de assentimento.

     — Temos dois agentes secretos trabalhando como membros da guarnição de salvamento da NUMA — elucidou Prevlov. — Uma dupla excepcionalmente boa. Eles têm nos enviado desde há dois anos importantes informações oceanográficas.

     — Bom, bom. O pessoal tem trabalhado bem, Sloyuk — disse Antonov, mas na sua voz não havia entusiasmo. Voltou-se depois para Prevlov. — Certamente que preparou um plano, comandante!

     — Sim, camarada.

     Marganin encontrava-se no escritório de Prevlov, casualmente sentado à escrivaninha do seu chefe, quando este voltou. Havia nele uma mudança. Não se parecia já com aquele assessor lambedor de botas que Prevlov havia deixado poucas horas antes. Parecia mais seguro de si. Notava-se isso nos olhos. Aqueles olhos inseguros refletiam agora o olhar confiante de um homem que sabe onde põe os pés.

     — Como correu a reunião, comandante? — perguntou Marganin sem se levantar.

     — Creio que poderei dizer, sem receio, que brevemente você passará a tratar-me por almirante.

     — Confesso — disse friamente Marganin — que a sua fértil imaginação só é suplantada pela sua vaidade.

     Prevlov foi apanhado desprevenido. O seu rosto, no qual se notava uma raiva controlada, empalideceu e, quando falou, não era necessária muita imaginação ou acuidade auditiva para notar a emoção na sua voz.

     — Você ousa insultar-me?

     — Por que não? Certamente que o senhor convenceu o camarada Antonov de que foi graças ao seu gênio que se chegou ao objetivo do Projeto Siciliano e à operação de salvamento do Titanic, quando, na realidade, foi a minha fonte de informações que forneceu a notícia E o senhor, provavelmente, também lhe falou do seu maravilhoso plano para arrancar o bizanio das mãos dos americanos. Isso também me foi subtraído. Resumindo, Prevlov: você não passa de um gatuno destituído de talento.

     — Basta ! — interrompeu Prevlov num tom glacial, apontando um dedo para Marganin.

     De repente aprumou-se e recuperou totalmente o controle, tornando-se objetivo, urbano, o perfeito profissional.

     — Pagará cara a sua insubordinação, Marganin — disse ele agradavelmente. — Cuidarei disso com cuidado, antes que termine o mês.

      Marganin nada disse. Mostrou apenas um sorriso gelado como um túmulo.

 

     — Olhe, leia esta notícia a respeito do sigilo — disse Seagram, deixando cair o jornal em cima da mesa de Sandecker. — Este é o jornal que saiu hoje de manhã. Comprei-o ainda não há quinze minutos.

     Sandecker virou o jornal e olhou para a primeira página. Não foi preciso olhar muito, tudo ali estava.

     "A NUMA prepara-se para içar o Titanic" — leu ele alto. — Bem, ao menos agora já não precisamos andar cheios de cuidado. "Isso representará um esforço de muitos milhões de dólares para recuperar o infeliz transatlântico”. Tem de se admitir que a leitura é fascinante! "Fontes bem informadas disseram hoje que a Agência Nacional Marítima e Submarina está empreendendo todos os esforços a fim de içar o RMS Titanic, que dia 15 de abril de 1912 bateu num iceberg e se afundou a meio do Atlântico, tendo nessa altura perdido a vida cerca de mil e quinhentas pessoas. Esta façanha vem abrir uma nova era nos salvamentos a grandes profundidades, sem paralelo na história da caça a tesouros, jamais realizada pelos homens." — Uma caça a um tesouro de muitos milhões de dólares — Seagram franziu o rosto, sombriamente. — O Presidente vai adorar isto...

     — Até publicaram o meu retrato — disse Sandecker. — Nem está lá muito parecido. Deve ser alguma foto de há uns cinco o seis anos e que foi retirada de algum arquivo.

     — Não poderia ter vindo numa ocasião pior — disse Seagram. — Mais três semanas... Pitt disse que tentariam fazer o içamento num espaço de três semanas.

     — Não fique alarmado. Pitt e os seus homens já estão metidos nisto há nove meses. Nove terríveis meses a lutar contra todas as tempestades de inverno que o Atlântico tem lançado contra eles e enfrentando cada recuo e cada adversidade técnica que se lhes têm apresentado. É um milagre que eles tenham feito tanto em tão pouco tempo. Entretanto, mil e uma coisas ainda podem acontecer. Pode ser que haja avarias escondidas na estrutura capazes de o separarem em dois, quando ele for arrancado do fundo; ou ainda a enorme aderência da quilha ao fundo pode resistir aos esforços para o retirar. Se eu fosse você, não me animaria senão quando o visse passar a reboque diante da Estátua da Liberdade.

     Seagram parecia arrasado. O almirante sorriu à sua expressão de desânimo e ofereceu-lhe um charuto, o que ele recusou.

     — No entanto — disse Sandecker, para o confortar — pode ser que ele venha à superfície tão lindamente como se pretende.

     — Isso é o que eu aprecio no senhor, almirante, o seu condicionado otimismo.

     — Gosto de me preparar para os desapontamentos. Ajuda a suportá-los.

     Seagram não respondeu. Permaneceu silencioso por um minuto e depois disse:

       — Portanto, vamos deixar para a altura própria as nossas preocupações com o Titanic. Agora temos de considerar o problema da imprensa. Como vamos enfrentá-lo?

     — Simples — divagou Sandecker, aereamente. — Façamos como esses políticos vigorosos, quando o seu passado obscuro é posto a descoberto pelos jornalistas, sempre ávidos de escândalos...

     — O que quer dizer com isso? — perguntou Seagram, cautelosamente.

     — Daremos uma entrevista conjunta à imprensa.

     — Mas isso é uma loucura! No momento em que o povo e o Congresso tomarem conhecimento de que três quartos de um bilhão vão ser gastos na nossa aventura, eles cairão sobre nós como um furacão no Kansas.

     — Então, jogaremos um pôquer de mentirosos e dividiremos por dois o custo do salvamento, para efeitos de publicação. Quem vai saber? Não há maneira de se descobrir o seu custo real.

     — Também não me agrada lá muito — disse Seagram. — Esses repórteres de Washington são verdadeiros mestres cirurgiões quando se trata de dissecar um orador numa entrevista coletiva. Eles conseguem arrancar tudo, como a um peru no dia de Ação de Graças.

     — Não estava a pensar em mim — disse Sandecker devagar.

     — Em quem, então?! Em mim, decerto que não. Sou o homenzinho que não está aqui, lembra-se? — Pensava em outra pessoa. Alguém que não está a par das nossas manobras por trás dos bastidores. Alguém que é uma autoridade em navios afundados e a quem a imprensa iria tratar com a máxima deferência e cortesia.

     — E onde vai você descobrir esse modelo de virtude?

     — Fico muito satisfeito por vê-lo empregar a palavra "virtude" — disse Sandecker astutamente. — Sabe, eu estava a pensar na sua mulher...

 

     Dana Seagram permanecia confiante na sua cátedra e habilidosamente, respondia às perguntas que lhe eram dirigidas por uns oitenta repórteres, sentados no auditório dos escritórios centrais da NUMA. Manteve todo o tempo o sorriso e o olhar feliz de uma mulher que se está divertindo e que sabe que está a agradar. Vestia uma saia-envelope cor de terracota e um sweater com um profundo decote em V, acentuado por um pequeno colar cor de mogno. Era alta, insinuante e elegante: uma imagem que imediatamente pôs os seus inquisidores em desvantagem.

   Uma senhora de cabelos brancos, na ala esquerda da sala, levantou-se e acenou com a mão.

     — Doutora Seagram!

     Dana atendeu-a graciosamente.

     — Doutora Seagram! Os leitores do meu jornal, o Chicago Daily, gostariam de saber por que está o Governo gastando milhões de dólares a fim de salvar um velho navio enferrujado. Por que não empregar esse dinheiro em outra coisa, como, por exemplo, no bem-estar da população e em reformas urbanas, muito necessárias?

     — Terei prazer em esclarecê-la — disse Dana. — Para começar, o içamento do Titanic não constitui uma perda de dinheiro Foi feito um orçamento de duzentos e noventa milhões de dólares e, por enquanto, os nossos gastos estão muito aquém disso. Devo também acrescentar que os trabalhos estão bastante adiantados em relação ao que foi programado.

     — Mas não acha que isso é um bocado de dinheiro?

     — Não, se considerarmos o dinheiro que vamos reaver. Como é sabido, o Titanic é um verdadeiro repositório de tesouros. As estimativas rondam para cima de trezentos milhões de dólares Há muitas jóias e valores a bordo. Só num camarote existe um quarto de milhão de dólares. Há, ainda, os objetos de decoração do navio, bem como o mobiliário e peças de adorno, algumas das quais podem ainda encontrar-se em perfeito estado. Qualquer colecionador pagaria de bom grado qualquer coisa como quinhentos ou mil dólares por uma peça de louça ou uma taça de cristal do salão de jantar da primeira classe. Não, senhores e senhoras, esta é uma ocasião em que um projeto federal não é, se me perdoam a expressão, um esbulho ao contribuinte. Vamos   apresentar um lucro em artefatos históricos de uma época que passou, sem mencionar a tremenda riqueza de informações para a oceanografia e para a tecnologia.

     — Doutora Seagram — a interpelação partiu de um homem alto, de cara espremida, no fundo da sala. — Não tivemos tempo de ler o relatório que foi enviado para a imprensa há pouco, por isso pergunto se a senhora nos não poderia esclarecer sobre o aspecto mecânico do salvamento.

     — Fico satisfeita por me fazerem essa pergunta. — Dana deu uma risada. — Seriamente, peço desculpa pelo velho chavão, mas a sua pergunta, cavalheiro, dá-me a oportunidade de apresentar alguns slides que ajudarão a explicar muitos dos mistérios que cercam o projeto. —Depois virou-se para um dos lados. — Luzes por favor.

     A iluminação foi reduzida e o primeiro slide projetou-se numa grande tela por cima e atrás da cátedra.

     — Vamos começar com uma série de mais de oitenta fotos dispostas de modo a mostrar o Titanic tal e qual ele se encontra pousado no fundo do mar. Por felicidade, o navio está na sua posição normal, apenas com uma leve inclinação para bombordo. Encontra-se, por isso, numa posição acessível para o rasgão de noventa metros causado pelo choque com o iceberg poder ser remendado.

     — Como é possível remendar um rasgão desse tamanho a uma tal profundidade?

     O slide seguinte, mostrando um homem a segurar um grande globo com plástico no estado líquido, segundo parecia, foi projetado.

     — Respondendo à sua pergunta — disse Dana — o homem que aparece na foto é o doutor Amos Stannford a exibir uma substância por ele desenvolvida chamada wetsteel. Como o nome sugere, o wetsteel, embora flexível ao ar, torna-se duro e rígido como o aço depois de noventa segundos em contato com a água, e liga-se a um objeto de metal como se tivesse sido soldado a ele.

     A última declaração fez passar pela sala uma onda de murmúrios.

     — Tanques de alumínio esféricos, com três metros de diâmetro, foram colocados em pontos estratégicos em torno do barco — continuou Dana. — Esses tanques foram projetados de forma a que um submarino se possa adaptar a eles, de modo parecido com aquele usado no acoplamento de um foguete a um laboratório espacial e assim possam ser dirigidos ao ponto avariado, onde mecânicos aplicarão o wetsteel através de borrifadores especialmente concebidos para esse fim.

     — Como se bombeia o wetsteel do tanque?

     — Passo a ilustrar com outra comparação: a grande pressão existente àquela profundidade comprimirá o tanque de alumínio como se ele fosse um tubo de pasta de dentes e fará passar o material de solda através do borrifado para o ponto da sua aplicação. — Ela fez sinal para que mudassem o slide. — Temos, aí, agora, o desenho de um corte no local, mostrando os tênderes à superfície e os submarinos agrupados em volta dos destroços, no fundo do mar. Há quatro veículos submarinos pilotados envolvidos na operação de salvamento. O Sappho 1, que, como todos devem estar lembrados, foi o engenho usado na Expedição da Corrente Lorelei, está a ser usado no serviço de desamassar os rombos causados pelo iceberg a estibordo e também aqueles produzidos no bojo do barco pelas caldeiras, quando da sua violenta queda. O Sappho 2, seu irmão mais novo e mais aperfeiçoado, está a vedar as aberturas menores, tais como os ventiladores e as vigias. Um submarino da Armada, o Sea Slug, tem como função cortar os escombros desnecessários, como os mastros, o massame e a chaminé da ré, que caiu para cima do convés. E finalmente o Deep Fathom, um submarino pertencente à Uranus Oil Corporation, ocupa-se da instalação das válvulas de escape no casco e na superestrutura do Titanic.

     — Poderia explicar a função dessas válvulas, doutora Seagram?

     — Certamente — respondeu Dana. — Quando o casco começar a subir, o ar que foi comprimido para dentro dele começará a expandir-se em virtude da diminuição da pressão exterior. A menos que a pressão não fosse também graviticamente reduzida, o Titanic poderia estourar. As válvulas mencionadas visam, portanto, evitar tal ocorrência.

     —Quer então dizer que a NUMA pretende empregar ar comprimido para içar o barco?

     — Sim. O tênder Capricorn tem dois compressores capazes de insuflar para dentro do casco uma quantidade de ar suficiente para expulsar a água e içar o Titanic.

     — Doutora Seagram — ouviu-se de novo uma voz. — Represento a Science Today e tenho conhecimento de que a pressão da água no local em que se acha o Titanic é superior a quatrocentos quilos por centímetro quadrado. Sei, também, que o maior compressor que se fabrica não pode elevar a pressão do ar a mais de trezentos quilos por centímetro quadrado. Como se fará para vencer essa diferença?

     — A unidade principal a bordo do Capricorn comprimirá o ar da superfície, através de uma tubulação reforçada, para uma unidade secundária que será instalada no fundo, junto do destroço. Aparentemente, essa unidade secundária lembra um motor radial de avião, com uma série de pistões em torno de um núcleo central. Aqui, será mais uma vez utilizada a grande pressão do fundo do mar para consolidar o trabalho da unidade, ajudada pela força elétrica e pela pressão do ar vinda de cima. Sinto não poder dar mais informações, mas acontece que eu sou arqueóloga naval e não engenheira naval. Entretanto, o almirante Sandecker estará hoje, mais tarde, disponível para responder às vossas perguntas técnicas mais pormenorizadamente.

      — E quanto à sucção? — persistiu a voz da Science Today. — Depois de permanecer todos estes anos assente e enterrado no lodo, não estará o Titanic um tanto colado ao fundo?

     — Estará, na verdade.

     Dana fez um gesto pedindo para ligarem as luzes. A claridade fé-la piscar por alguns momentos os olhos até que pôde distinguir o seu interlocutor. Era um homem de meia-idade, de longos cabelos castanhos e grandes óculos de aros de metal.

     — Quando se calcular que o navio tem a quantidade de ar suficiente para içá-lo até à superfície, a tubulação de ar será desligada dele e será utilizada para injetar um eletrólito preparado pela Myers-Lentz Company, no sedimento em torno da quilha do Titanic. Devido à reação resultante, as moléculas do sedimento partir-se-ão e formar-se-á um colchão de bolhas que fará diminuir o atrito e permitirá que o grande casco se liberte da sucção.

     Um outro homem levantou a mão.

     — Se a operação for bem sucedida e o Titanic começar a subir para a superfície, não haverá uma grande possibilidade de ele emborcar? Três mil e oitocentos metros são um trajeto demasiado longo para que um objeto não balanceado de quarenta e cinco mil toneladas possa permanecer em posição correta.

     — Tem toda a razão. Existe, de fato, essa possibilidade, mas   nós planejamos manter uma certa quantidade de água nos porões para servir de lastro e, assim, resolver esse problema.

     Uma jovem de aspecto masculino levantou-se e fez um aceno com a mão.

     — Doutora Seagram! Eu sou Connie Sanchez, da Femals Eminence Weekly, e as minhas leitoras estariam interessadas em saber que meios de defesa a senhora desenvolveu pessoalmente para poder competir diariamente numa profissão dominada pelos teimosos machos egoístas.

     A audiência de repórteres acolheu a pergunta com um silêncio difícil. "Deus", pensou Dana, "isto tinha de vir mais cedo ou mais tarde." Caminhou ao longo da cátedra e debruçou-se sobre a mesa numa atitude negligente, quase sexy.

     — A minha resposta, senhorita, fica estritamente entre nós e não deve ser publicada.

     — Então a senhora está a fazer o jogo deles.

     Connie Sanchez disse isto com um sorriso superior. Dana ignorou a alfinetada.

     — Primeiramente, acho que dificilmente seria necessário um mecanismo de defesa. Os meus colegas homens respeitam a minha inteligência o suficiente para aceitarem a minha opinião. Não sou obrigada a andar sem soutien ou a abrir as pernas para conseguir a atenção deles. Segundo: prefiro permanecer no meu próprio campo e competir com membros do meu próprio sexo, e não há nada de estranho nessa atitude, uma vez que, dos quinhentos e quarenta cientistas da NUMA, cento e catorze são mulheres. E, terceiro, senhorita Sanchez, as únicas cabeças duras que eu tive a infelicidade de encontrar em toda minha vida não eram homens, mas sim fêmeas da espécie.

     Durante alguns momentos, um silêncio chocante tomou conta da sala. Então, de repente, uma voz rompeu da audiência quebrando aquela situação embaraçosa.

     — Bravo, doutora! — gritou a pequenina senhora de cabelos brancos do Chicago Daily. — Essa já não pia mais...

     Uma onda de aplausos, varrendo o auditório, estalou uma tempestade de aprovação. Os endurecidos correspondentes de Washington, de pé, saudaram-na e aplaudiram-na. Connie Sanchez continuou sentada, tendo o ódio no rosto. Dana pôde ver os lábios de Connie formarem uma expressão de desprezo.

 

     Desde manhã cedo que o vento soprava forte do nordeste. ao fim da tarde, transformara-se numa verdadeira ventania de mais de sessenta quilômetros por hora, levantando montanhas de

água, que faziam os navios serem atirados de um lado para outro como se fossem taças de papel numa máquina de lavar louça. A tempestade trouxera consigo um frio entorpecedor, vindo das desoladas extensões acima do círculo polar. Os homens não se aventuravam a subir ao convés gelado. Não era segredo que o maior obstáculo para conservar o calor era o vento. Um homem pode sentir muito mais frio e desconforto com uma temperatura de dez graus acima de zero, mas com um vento de sessenta e cinco quilômetros por hora, do que a uma temperatura de dez graus abaixo de zero, sem vento algum. O vento rouba o calor ao corpo tão rapidamente quanto ele o possa produzir, redundando numa sensação bastante desagradável.

     Joel Farquar, o meteorologista do Capricorn, cedido pela Administração Federal dos Serviços Meteorológicos, parecia não estar nada preocupado com a tempestade que desabava fora da sala de operações, enquanto estudava as indicações dos instrumentos ligados aos Satélites Atmosféricos Nacionais, que diariamente, forneciam quatro fotos do Atlântico Norte.

     — Que prognósticos tem você para nos dar quanto ao futuro? — perguntou Pitt, firmando-se contra o balanço.

     — Daqui a uma hora vai começar a melhorar — respondeu Farquar. — Amanhã, ao clarear do dia, o vento terá diminuído para menos de vinte quilômetros por hora.

     Farquar não levantou os olhos enquanto falava. Era um homenzinho de rosto vermelho, tipo estudioso, mas sem qualquer senso de humor ou calor humano. No entanto, nesta operação de salvamento, era respeitado não só pela sua dedicação ao trabalho como pelas suas previsões misteriosamente exatas.

     "Os planos estavam bem estabelecidos...'' murmurou Pitt para si mesmo. “Mais um dia perdido”. É a quarta vez numa semana que temos de desligar e recolher a linha de ar..."

     — Somente Deus é capaz de produzir uma tempestade — disse Farquar indiferentemente.

     Acenou com a cabeça na direção das duas filas de monitores de televisão que cobriam a antepara de vante da sala de operações do Capricorn.

     — Pelo menos eles não são perturbados por tudo isto.

     Pitt olhou para as telas, que mostravam os submarinos trabalhando calmamente nos destroços a três mil e oitocentos metros abaixo do mar agitado. A independência deles em relação à superfície era a salvação da operação. Excetuando o Sea Slug, cujo período máximo debaixo de água era de dezoito horas, e que se encontrava bem amarrado no convés do Modoc, os outros três podiam ser escalados para permanecer embaixo, junto ao Titanic, durante cinco dias seguidos, antes de voltarem à superfície para renderem a tripulação. Voltou-se então para Al Giordino, que se achava debruçado sobre uma grande mesa com mapas.

     — Qual a disposição dos navios de superfície?

     Giordino apontou para os pequeninos modelos de cinco centímetros distribuídos pelo mapa.

     — O Capricorn continua mantendo a sua posição no centro, o Modoc encontra-se mais à frente e o Bomberger segue três milhas à ré. Pitt ficou olhando para o modelo do Bomberger. Era um navio novo, especialmente construído para operar em águas profundas.

     — Transmita ao comandante do Bomberger que se aproxime a menos de uma milha.

     Giordino acenou com a cabeça para o radioperador careca, que se achava bem seguro sobre o piso inclinado, em frente do seu equipamento.

— Você ouviu, Curly? Diga ao Bomberger para se aproximar até uma milha à nossa popa. — E quanto aos navios de suprimento? — perguntou Pitt.

     — Nenhum problema. Este tempo é canja para aqueles monstros de dez mil toneladas. O Alhambra está em posição a bombordo e o Monterey Park encontra-se exatamente onde deve, a estibordo.

     Pitt apontou para um pequeno modelo vermelho.

     — Vejo que os nossos amigos russos ainda estão conosco.

     — O Mikhail Kurkov? — perguntou Giordino.

     Apanhou uma réplica azul do navio de guerra e colocou-a próximo do modelo vermelho.

     — Sim, mas não pode estar a apreciar o jogo. O Juneau, cruzador de mísseis dirigidos, tem estado sempre colado a ele.

     — E a bóia de sinalização do destroço?

     — Está serenamente enviando sinais a 24 metros abaixo do tumulto — anunciou Giordino — e apenas à distancia de mil e cem metros, sem erro apreciável, marcação zero-cinco-nove, isto é, para sudoeste.

     — Graças a Deus não fomos afastados dos nossos domínios! — suspirou Pitt.

     — Relaxe — Giordino sorriu de modo confortador. — Você está a parecer uma mãe cuja filha foi encontrar com o namorado e já passa da meia-noite: a qualquer rumor, ela agita-se.

     — O complexo da galinha-mãe torna-se cada vez mais forte à medida que a hora se aproxima — admitiu Pitt. — Mais dez dias, Al. Se tivermos mais dez dias de calma, poderemos trazê-lo para cima!

     —Isso dependerá do nosso oráculo meteorológico. — Giordino virou-se para Farquar. — O que diz a isto, ó grande vidente da Sabedoria Meteorológica?

     — A previsão para as próximas doze horas é o máximo que poderão obter de mim —murmurou Farquar sem levantar os olhos. — Isto aqui é o Atlântico Norte, o mais imprevisível de todos os oceanos. Raramente os dias são iguais. Se o seu precioso Titanic se tivesse afundado no oceano Índico, então eu poderia fornecer previsões para dez dias, com oitenta por cento de precisão.

     — Desculpas, desculpas — respondeu Giordino. — Aposto que, quando você faz amor com uma garota, lhe diz, de início, que ela terá quarenta por cento de probabilidade de gozar.

     — Quarenta por cento é melhor que nada — disse simplesmente Farquar.

     Pitt percebeu um gesto do operador do sonar e aproximou-se.

     — O que há aí?

     — Um arranhado estranho no amplificador — respondeu o homem do sonar. Era um homem pálido, com o tamanho e o aspecto de um gorila. — Tem aparecido e desaparecido por diversas vezes nos dois últimos meses. É um som estranho, parece que alguém está a enviar mensagens.

     — E não faz idéia do que possa ser?

     — Não, senhor. Pedi a Curly que escutasse, mas ele disse que eram sons ininteligíveis.

     — Trata-se, provavelmente, de qualquer coisa solta nos destroços e que a corrente faz trepidar.

     — Ou pode ser um fantasma — disse o homem do sonar.

     — Você não acredita, mas... tem medo deles, não é assim?

     — Não se esqueça que mil e quinhentas almas se afundaram com o Titanic — respondeu o homem do sonar. — Não é portanto para admirar que alguma delas tenha voltado para tornar o navio mal-assombrado.

     — Os únicos espíritos que me interessam são aqueles que se podem beber... — disse Giordino da sua mesa.

     — A câmera da cabina interior do Sappho 2 acaba de se apagar.

     A voz veio do homem de cabelos cor de areia sentado diante dos monitores da TV. Imediatamente Pitt se colocou atrás dele, fixando o monitor apagado.

     — Será defeito do terminal daqui?

     — Não, senhor. Todos os circuitos, tanto aqui como no painel do relais da bóia, estão em boas condições. O problema deve ser no Sappho 2. Parece que alguém pendurou roupa sobre a lente da câmera.

     Pitt voltou-se para o radioperador.

     — Curly, entre em contato com o Sappho 2 e peça para verificarem a cabina da TV.

     Giordino pegou numa tabuleta e verificou os horários das diversas guarnições.

     — Omar Woodson está no comando do Sappho 2 neste turno.

     Curly apertou o interruptor de transmissão.

     — Sappho 2, alô Sappho 2, aqui é Capricorn. Responda por favor. — Então, debruçou-se para a frente, apertando os auscultadores contra os ouvidos. — O contato é fraco, tenho muitas interferências. As palavras saem muito truncadas. não consigo entendê-las.

     — Ligue o alto falante — ordenou Pitt.

     Uma voz ressoou na sala de operações, abafada por detrás de uma onda de estática.

     — Alguma coisa está a interferir na transmissão — disse.

     Logo que Curly ligou o alto falante, uma explosão de estalos capaz de estourar os ouvidos fez pular toda a gente.

       —... corn, nós..   cê ...     aro ...   bio.

     Pitt agarrou o microfone.

     — Omar, aqui é Pitt. A sua câmera da cabina de TV não está a funcionar. Pode repará-la? Esperamos a sua resposta. Câmbio.

     Todos os olhares na sala de operações estavam virados para o alto-falante, como se ele estivesse em ação. Cinco intermináveis minutos se arrastaram enquanto eles, pacientemente, aguardavam o relato de Woodson. Então a voz fragmentada de Woodson martelou de novo no alto-falante.

     — Hen... Munk... mos per...   ao...   su...

     Giordino fez uma careta, intrigado.

     — Trata-se de alguma coisa a respeito de Henry Munk. O restante está tão truncado que não se entende.

     — Estão em volta do monitor.

     Nem todos os olhares estavam dirigidos para o alto-falante. O jovem encarregado dos monitores de TV nunca havia tirado o seu da tela do Sappho 2.

     — A guarnição parece achar-se agrupada em torno de alguém que está deitado no chão. Como espectadores numa partida de tênis, todas as cabeças se voltaram ao mesmo tempo para o monitor de TV. Viam-se figuras movendo-se de um lado para o outro em frente da câmera, enquanto, no fundo, podiam ser observados três homens curvados sobre um corpo estirado de forma grotesca no estreito piso da cabina do submarino.

     — Omar, escute — disse Pitt ao microfone. — Você voltou ao monitor de TV. Repito, você está de novo no monitor de TV. Escreva a sua mensagem e coloque-a em frente da câmera. Câmbio.

     Observaram que uma das figuras se destacou do resto e se inclinou sobre uma mesa por alguns momentos. Então se aproximou da câmera de TV. Ergueu um pedaço de papel onde havia escrito: "Henry Munk está morto. Peço permissão para emergir."

     — Bom Deus! — a expressão de Giordino era de puro assombro. — Henry Munk morto? Não pode ser verdade!

     — Omar Woodson não é homem para brincadeiras — disse Pitt zangado.

     Começou a transmitir de novo.

     — Negativo, Omar. Você não poderá emergir. Sopra um vento de sessenta e cinco quilômetros por hora. O mar está turbulento. Repito, você não pode emergir.

     Woodson acenou com a cabeça como sinal de que tinha entendido. Entretanto, escreveu mais alguma coisa, olhando furtivamente por cima do ombro. A nota dizia: "Suspeito Munk assassinado. " Mesmo Farquar, cujo rosto era usualmente imperscrutável, ficou pálido.

     — Você terá de permitir que eles subam — murmurou baixinho.

     — Farei aquilo que devo fazer. — Pitt meneou a cabeça com decisão. — Os meus sentimentos não vêm agora para o caso. Há ainda cinco homens vivos e que respiram a bordo do Sappho 2. Não vou arriscar-me a trazê-los à superfície para perdê-los a todos sob uma onda de dez metros de altura. Não, senhores, teremos de esperar até ao nascer do sol para ver o que se passa dentro do Sappho 2.

     Pitt trouxe o Capricorn para cima da bóia com o relais de sinalização logo que o vento caiu para trinta e cinco quilômetros. Mais uma vez, a linha de ar comprimido do compressor do navio foi ligada ao Titanic e então ficaram esperando que o Sappho 2 voltasse do fundo do mar. O céu começou a clarear a este quando os preparativos finais para receber o submarino foram dados por terminados. Os mergulhadores prepararam-se para descer e passar os cabos de segurança em torno do Sappho 2, evitando assim que ele emborcasse no mar revolto.

     Os guinchos e os cabos estavam prontos para o içarem do mar e o colocarem na popa aberta do Capricorn; em baixo, na cozinha, o cozinheiro preparava uma cafeteira de café e uma apetitosa refeição para saudar a guarnição do submarino. Quando tudo estava em ordem, cientistas e maquinistas ficaram calmamente a esperar, sob o frio da madrugada, tentando adivinhar a causa da morte de Munk. Eram 06:10 quando o submarino aflorou à superfície ondulada, a pouco menos de cem metros da ré do Capricorn. Vinte minutos depois, era o Sappho 2 içado para a rampa do tênder. Logo que foi alcançado e amarrado à rampa, a escotilha foi aberta e Woodson pulou para fora, seguido pelos quatro membros sobreviventes da tripulação. Woodson subiu para o convés principal, onde Pitt o esperava. Os seus olhos estavam vermelhos devido à vigília e o seu rosto apresentava-se cinzento e de barba crescida, mas mesmo assim ainda sorriu para Pitt quando este lhe estendeu um jarro com café a ferver.

     — Não sei o que me faz sentir mais feliz, se vê-lo ou ao café — disse ele.

     — A sua mensagem mencionava um assassínio — cortou Pitt, ignorando qualquer palavra de saudação.

     Woodson bebeu um pouco de café e olhou por um momento para trás, para o sítio onde os homens estavam a içar, através da escotilha, com cuidado, o corpo de Munk.

     — Não aqui — disse ele calmamente.

     Pitt conduziu-o para o seu camarote. Uma vez fechada a porta, não perdeu tempo.

     — Bem, vamos então aos fatos.

     Woodson sentou-se pesadamente no beliche de Pitt e esfregou os olhos.

     — Não há muito para dizer. Encontrávamos-nos a cerca de dezoito metros do fundo, vedando as portas de estibordo do convés C, quando recebi a sua mensagem a respeito da câmera de TV. Dirigi-me para a popa a fim de me certificar e encontrei Munk caído, com uma das têmporas, a esquerda, amassada.

     — Havia alguma indicação do que teria causado o golpe?

     — Mais evidente do que o nariz no rosto de Pinóquio — respondeu Woodson. —Fragmentos de pele, sangue e cabelos achavam-se na aresta da caixa de cobertura do alternador.

     — Não estou muito familiarizado com o equipamento do Sappho 2. Onde está isso montado?

     — A estibordo, a cerca de três metros da popa. A tampa fica a quinze centímetros do piso, de modo que a conservação do alternador se torna fácil.

     — Então pode ter sido um acidente. Munk pode muito bem ter tropeçado, caído e batido com a cabeça na quina.

     — Pois podia, só que os seus pés se achavam em posição contrária àquela em que deveriam estar.

     — Que têm os pés a ver com isso?

     — Eles estavam voltados para a popa.

     — E daí?

     — Então não percebe? — Woodson estava impaciente. — Munk deveria estar a caminho da popa no momento em que caiu.

     A imagem encoberta começou a clarear na mente de Pitt. ele pôde ver a peça que não encaixava no quebra-cabeça.

     — A caixa do alternador está, portanto, a estibordo, de modo que deveria ter sido o lado direito da cabeça a receber o ferimento e não o esquerdo.

     — Agora você percebeu.

     — Qual teria sido a causa do mau funcionamento da câmera de TV?

     — Não houve qualquer defeito. Alguém pendurou uma toalha sobre a lente.

     — E a tripulação? Onde se encontrava cada um dos membros da tripulação?

     — Eu encontrava-me a trabalhar com o borrifador, enquanto Merker pilotava. Munk havia se afastado do painel de instrumentos para ir ao lavabo localizado na popa. Estávamos a fazer o segundo quarto. O primeiro incluía Jack Donovan...

     — Um rapaz loiro e engenheiro da Tecnologia Oceanic.

     — Exato. E ainda o tenente Leon Lucas, o técnico cedido pela Armada, e Ben Drummer. Todos os outros estavam a dormir nos seus beliches.

     — Não se segue que um deles seja, necessariamente o assassino de Munk — disse Pitt. — Qual seria a razão? Você não assassinaria ninguém, sem qualquer possibilidade de fuga e a três mil e seiscentos metros de profundidade, se não tivesse um imenso motivo.

     Woodson encolheu os ombros.

     — Você terá de chamar Sherlock Holmes. Apenas sei aquilo que vi.

     Pitt continuou a indagar.

     — Munk pode ter se virado no momento em que caiu?

     — Não, a menos que ele possuísse um pescoço de borracha e que o pudesse fazer girar cento e oitenta graus para trás.

       — Vamos então tentar por outro lado. Como procederia você para matar um homem com noventa quilos e fazê-lo bater com a cabeça no chão? Agarrando-o pelos tornozelos e fazendo-o girar como se fosse um malho?

     Woodson ergueu os braços num gesto de desânimo.

     — Está bem. Pode ser que eu tenha ficado meio zuca e começado a ver maníacos homicidas à volta. Só Deus sabe como aquele destroço lá em baixo começa a dar conta dos nervos da gente, passado algum tempo. É um mistério. Há ocasiões em que eu poderia jurar ter visto pessoas a passear no convés, fitando-nos, debruçadas na amurada.

     Ele bocejou e era evidente que lutava para manter os olhos abertos. Pitt encaminhou-se para a porta e depois virou-se.

     — É melhor você ir dormir um pouco. Mais tarde voltaremos ao assunto.

    Woodson não precisou que insistisse. Já dormia tranquilamente antes que Pitt tivesse chegado a meio caminho da enfermaria. O Dr. Cornelius Bailey era um homem do tamanho de um elefante: ombros largos e um rosto onde um queixo quadrado apontava agressivamente. Os cabelos cor de areia desciam-lhe até o pescoço e a barba, no imenso queixo, achava-se aparada no

elegante estilo de Van Dyke. Popular entre os membros das tripulações de salvamento, era capaz de beber mais que cinco deles juntos, quando se sentia disposto a demonstrá-lo. Os seus braços, lembrando verdadeiros presuntos, viraram o corpo de Henry Munk sobre uma marquesa empregando tão pouco esforço como se tratasse de um boneco de borracha, o que não era o caso, visto o adiantado estágio de rigor mortis.

     — Pobre Henry! — disse o médico. — Graças a Deus que ele não era pai de família! Um espécime saudável. Tudo o que pude fazer por ele, quando do seu último exame, foi retirar um pouco de cera do ouvido.

     — O que me pode dizer quanto à causa da morte? — perguntou Pitt.

     — Isto é óbvio — disse Bailey. — Primeiramente, ela foi devida ao forte estrago no lóbulo do osso temporal. .

     — Que quer dizer com primeiramente?

     — Simplesmente isso mesmo, meu caro Pitt. Pode-se considerar que este homem foi morto por duas vezes. Olhe para isto. — Puxou para trás a camisa de Munk de maneira a descobrir-lhe a nuca. Na base do crânio, havia uma grande contusão avermelhada. — O feixe nervoso, logo abaixo da medula oblonga, foi amassado. Muito provavelmente por algum instrumento rombudo.

     — Então, Woodson tinha razão: Munk foi assassinado...

     — Assassinado, diz você? Sim, claro, não há a menor dúvida a esse respeito. — Bailey falou calmamente, como se um homicídio fosse uma ocorrência comum a bordo. — Tudo leva a crer que o assassino golpeou Munk pelas costas e depois, bateu com a cabeça dele contra a caixa do alternador para que parecesse um acidente.

     — Essa é uma hipótese aceitável. — Pitt colocou uma das mãos sobre o ombro de Bailey. — Agradeceria que você pudesse manter a sua descoberta em segredo por mais algum tempo.

     — Não falarei sobre isso, os meus lábios manter-se-ão cerrados. Não pense mais nisso. Terá o meu relatório e o meu testemunho quando precisar.

     Pitt sorriu para o médico e retirou-se da enfermaria. Caminhou para a ré, onde se encontrava o Sappho 2 na rampa da popa, pingando água salgada. Subiu pela escada da escotilha e mergulhou no interior do submarino. Um técnico de instrumentos estava a fazer um exame na câmera de TV.

     — Que tal lhe parece? — perguntou Pitt.

     — Não há nada errado nesta beleza — respondeu o técnico. — Assim que o pessoal da estrutura tiver examinado o casco pode mandá-lo para baixo.

     — Quanto mais cedo melhor — disse Pitt.

     Passou pelo técnico, em direção à popa do submarino. O sangue dos ferimentos de Munk já havia desaparecido, pois tanto o chão como a aresta da caixa do alternador já tinham sido lavados. Pitt dava voltas à cabeça. Porém, pela sua mente, um pensamento perpassou claro e decidido. Não propriamente um pensamento, antes uma certeza absurda de que qualquer coisa apontaria um dedo acusador para o assassino de Munk. Calculou que iria levar uma hora ou mais; contudo a sorte foi-lhe favorável. Ele encontrou o que esperava logo nos primeiros minutos.

 

     — Deixe-me ver se o compreendo — disse Sandecker com olhar feroz, por cima da sua escrivaninha. — Um dos membros da minha guarnição de salvamento foi brutalmente assassinado e você pede-me que continue aqui sentado calmamente e que não faça nada, enquanto o assassino fica por aí à solta?

     Warren Nicholson mexeu-se desajeitadamente na cadeira e evitou o olhar brilhante de Sandecker.

     — Reconheço que é uma coisa difícil de aceitar.

     — Essa é uma maneira suave de colocar a questão — rosnou Sandecker. — Suponha agora que ele resolve matar outra vez!

     — Esse risco foi calculado e considerado por nós.

     — Considerado por nós? — ecoou Sandecker. — Para vocês, lá sentados nos escritórios da CIA, é fácil dizerem isso. Não é você, Nicholson, que está lá trancado num submarino, no fundo do mar, a muitos milhares de metros de profundidade, tentando adivinhar se o homem que está a seu lado lhe não irá fazer saltar os miolos...

       — Estou certo de que tal coisa não vai voltar a acontecer — disse impassível, Nicholson.

     — O que o faz sentir-se tão seguro?

     — Porque os agentes profissionais russos não cometem homicídios a não ser que sejam absolutamente necessários.

     — Agentes russos!... — Sandecker fitou Nicholson com espanto e total ceticismo. —Mas, em nome de Deus, de que está você a falar?

     — Precisamente isso. Henry Munk foi assassinado por um agente secreto que trabalha para o Departamento do Serviço Secreto Naval soviético.

     — Mas você não pode ter certeza. Não há provas...

     — Cem por cento, não. Pode ter sido qualquer outro homem que tivesse algum ressentimento contra Munk. Porém, os fatos apontam para um agente soviético.

     — Mas por que Munk? — perguntou Sandecker. — Ele era um especialista em instrumentos. Que ameaça poderia ele constituir para um espião?

     — Penso que Munk teria visto alguma coisa que não devia e por isso precisava ser silenciado — disse Nicholson. — E isto é, por assim dizer, apenas uma parte do problema. Compreenda, almirante. Acontece que não há um, mas dois agentes russos infiltrados entre os homens das guarnições de salvamento.

     — Oh, não!

     — Estamos no serviço de espionagem, almirante, e descobrimos essas coisas.

     — E quem são eles? — perguntou Sandecker.

       Nicholson encolheu os ombros.

     — Sinto, mas isto é tudo aquilo de que o posso informar. As nossas fontes esclarecem que eles trabalham sob nomes de código de Prata e Ouro. Quanto às suas verdadeiras identidades, ainda não sabemos.

     Os olhos de Sandecker demonstravam ódio.

     — E se o meu pessoal descobrir quem eles são?

     — Espero que o senhor colabore, ao menos neste ponto ordene aos seus homens que se mantenham silenciosos e não tomem quaisquer medidas.

     — Contudo, esses dois agentes podem sabotar toda a operação de salvamento.

     — Estamos a assumir o grave risco de supor que as ordens que eles recebem não incluem a destruição.

     — Loucura, pura loucura — murmurou Sandecker. — Faz alguma idéia daquilo que me está a pedir?

     — O Presidente fez-me a mesma pergunta há já há alguns dias e a minha resposta é sempre a mesma. Não, não faço. Está ciente do fato de que os seus esforços vão para além do simples salvamento, mas o Presidente não achou conveniente dar-me conhecimento da verdadeira razão que está por dentro do empreendimento.

     Sandecker mantinha os dentes cerrados.

     — E no caso de eu fazer o seu jogo, o que acontecerá?

     — Mantê-lo-ei a par de tudo o que se for passando e quando chegar a ocasião, darei luz verde para que possa prender os agentes soviéticos.

     O almirante continuou sentado, silencioso por momentos e, quando voltou de novo a falar, Nicholson pode constatar a imensa seriedade da sua voz.

     — Está bem, Nicholson, vou fazer como você diz. Mas Deus o ajude se houver algum trágico acidente ou outro assassinato As conseqüências serão mais terríveis do que você imagina!

 

     Mel Donner, com o fato molhado por uma chuva primaveril, atravessou a porta de entrada da casa de Marie Sheldon.

     — Acredito que isto agora me vai ensinar a trazer um guarda-chuva dentro do carro —disse ele, tirando um lenço e procurando enxugar um pouco os sítios mais molhados.

     Marie fechou a porta da frente e fitou-o com curiosidade.

     — Qualquer porto serve em caso de tempestade, não é assim, simpatia?

     — Perdão!

     — Pelo que se está vendo — disse Marie, na sua voz suave e modulada — você precisa de um teto até que a chuva passe e a sorte, bondosamente, trouxe-o para debaixo do meu...

     Os olhos de Donner cerraram-se por um momento, mas apenas por um momento. Depois sorriu.

     — Sinto. O meu nome é Mel Donner. Sou um velho amigo de Dana. Ela está em casa?

     — Eu já calculava que um estranho implorando proteção à minha porta... era bom de mais para ser verdade. — Ela sorriu. — Sou Marie Sheldon. Sente-se e fique à vontade, enquanto vou chamar Dana e lhe trago uma chávena de café.

       — Obrigado. Um café agora viria mesmo a calhar.

     Donner fez uma apreciação do corpo de Marie quando esta se virou de costas e se dirigia para a cozinha. Vestia uma saia de tênis curta, uma blusa de malha sem mangas e estava descalça. O firme bamboleio dos quadris fazia movimentar a saia de um lado para o outro de um modo atrevido e sedutor.

     — Dana, nos fins-de-semana, é uma preguiçosa. Raramente se levanta antes das dez horas. Vou subir e apressar as coisas.

     Enquanto esperava, Donner ia observando os livros que se achavam na estante ao lado da

lareira. Era um jogo que ele sempre praticava Os títulos dos livros eram o melhor guia para o conhecimento da personalidade e das preferências dos seus donos. A escolha situava-se na escala habitual de uma rapariga solteira: alguns livros de poesia; O Profeta; O Livro de Receitas do New York Times, alguns de capa e espada e os best-sellers. A arrumação dos livros foi, no entanto, o que mais interessou a Donner. Misturados com a Física das Correntes Intercontinentais de Laval e a Geologia dos Vales Submarinos, ele encontrou as Explanações das Fantasias Sexuais da Mulher Ia justamente pegar no último quando ouviu sons de passos que desciam a escada. Voltou-se quando Dana entrou na sala. Ela caminhou para ele e abraçou-o.

     — Que prazer em vê-lo!

     — Você está ótima! — disse ele.

     Aqueles meses de depressão e angústia haviam passado. Parecia mais à vontade e sorria com naturalidade.

     — Como vai o volúvel solteirão? — perguntou ela. — Que método está você a empregar esta semana nas pobres rapariguinhas inocentes: o do cirurgião do cérebro ou o do astronauta?

     Ele bateu na barriga.

       — Suspendi a conversa do astronauta até que consiga perder alguns quilos. Efetivamente, a par da publicidade que vocês estão obtendo com o Titanic; obtendo sucesso quando digo àquelas coisinhas lindas que a gente encontra nos bares de solteiros de Washington que sou um mergulhador a grandes profundidades.

     — Por que não diz simplesmente a verdade? Afinal de contas sendo um dos melhores nomes da física no país, você não tem nada que se envergonhar.

     — Sei isso, mas de algum modo perde a graça quando sou eu mesmo. Além disso, as mulheres gostam do que é falso.

     Ela concordou sem erguer os olhos.

    — Aceita outro café?

     — Não, obrigado. — Ele sorriu, mas a sua expressão tornou-se séria depois. — Sabe por que estou aqui?

     — Imagino.

     — Estou preocupado com Gene.

     — Também eu.

     — Você poderia voltar para ele...

     Os seus olhares encontraram-se.

     — Mel, não pode compreender... Quando estamos juntos as coisas pioram sempre.

     — Sem você, ele sente-se desamparado.

     Ela meneou a cabeça.

     — A amante dele é o trabalho. Eu sou apenas um ombro onde ele se encosta para derramar as suas mágoas. Você não compreende, Mel, que eu tive de me afastar de Gene antes que nos destruíssemos um ao outro? — Dana virou-se e escondeu o rosto nas mãos, mas logo se recompôs. — Se ao menos ele pudesse pedir a demissão e voltar ao ensino, as coisas seriam diferentes.

     — Eu não lhe deveria estar a dizer isto — disse Donner. — Mas o projeto estará terminado dentro de um mês, se tudo correr como foi planejado. Então Gene já nada terá que o prenda a Washington. Ficará livre para voltar para a Universidade.

     — Mas... e os contratos com o Governo?

     — Estarão também terminados. Fomos convocados para um projeto especifico e quando ele terminar acaba também a nossa participação. Então cada um de nós estará livre para regressar

ao campus de onde viemos.

     — Pode acontecer que ele não me queira mais...

     — Conheço Gene — disse Donner. — Ele é o tipo de homem de uma só mulher. Ficará esperando... a menos, claro, que você esteja envolvida com outro homem.

     Ela olhou-o surpreendida.

     — Por que diz isso?

     — Eu estava no restaurante do Webster na última quarta-feira.

     “Deus!”, pensou Dana. Porque teria de ser agora ali lembrado um dos poucos programas desde que deixara Gene? Tinha sido uma noite bem passada e agradável, aquela, num grupo de quatro: ela, Marie e dois biologistas do Laboratório de Ciências Marítimas da NUMA. Foi tudo, nada mais. Ela levantou-se e baixou os olhos para Donner.

     — Você, Marie, e também o Presidente, todos esperam que eu volte rastejando para Gene, como um cobertor velho, sem o qual ele não pode dormir. Mas nem um só de vocês se deu ao incômodo de perguntar como eu me sinto. Que emoções e frustrações tenho tido de enfrentar. Pois bem, que vocês todos vão para o inferno! Sou dona de mim mesma, para fazer o que muito bem me der na gana... Só voltarei para Gene se e quando eu sentir vontade de o fazer. E se tiver vontade de sair com outros homens e de ir para a cama com eles, pois que assim seja!

     Dana voltou-se e deixou Donner, meio atordoado e embaraçado. Subiu as escadas a correr, dirigiu se para o quarto e atirou-se para cima da cama. Aquilo que dissera foi só da boca para fora. Nunca haveria outro homem na sua vida! Só um, Gene. Em breve, ela estava certa de voltar para ele. Porém lágrimas saltavam-lhe agora dos olhos até não ter mais para chorar.

 

     Embutido numa parede espelhada, sob a direção do disc-jockey, um disco ribombava através de quatro imensos alto-falantes quadrangulares. A minúscula pista de dança estava atulhada, e uma densa cortina de fumo dos cigarros filtrava as fortes luzes coloridas que emanavam do teto da discoteca. Donner achava-se sentado sozinho a uma mesa, apreciando, negligentemente, os pares rodopiando ao som da música atordoadora. Uma loirinha caminhou na sua direção e, de repente, parou.

     — O manda-chuva!

     Donner levantou os olhos, sorriu e levantou-se.

     — Senhorita Sheldon?

     — Marie — disse ela, amavelmente.

     — Você está sozinha?

       — Não, estou acompanhada de um casal.

     Donner acompanhou o seu gesto com o olhar, mas não foi possível ver a quem ela se referia através de todos aqueles corpos na pista de dança. Puxou uma cadeira para ela.

     — Considere-se convidada.

     Uma empregadinha apareceu perto e Donner gritou-lhe um pedido por entre o barulho. Voltou-se e notou que Marie o observava com aprovação.

     — Sabe, senhor Donner, para físico acho-o bastante apresentável...

     — Oh, diabo! E eu que pretendia ser esta noite um agente da CIA!

     Ela sorriu.

     — Dana contou-me algumas das suas aventuras... Que vergonha! Desviar pobres raparigas do bom caminho...

     — Não acredite em tudo quanto lhe dizem. Na verdade, sou um homem tímido e introvertido na presença das mulheres.

     — Na verdade?

     — Palavra de escoteiro. — Ele acendeu o cigarro dela. — Onde se encontra Dana esta noite?

     — Que dissimulação! Está querendo fazer-me meter o pé na argola?

     — Jamais! Eu apenas...

     — Não é de sua conta, evidentemente, mas Dana encontra-se agora num navio no Atlântico Norte.

     — Umas férias vão lhe fazer bem...

     — Você tem um jeitinho especial para arrancar informações de uma pobre rapariga —disse Marie. — Apenas para o seu conhecimento e para que você possa passar ao seu amigo Gene Seagram: Dana não se encontra em férias, mas servindo de "mamma" a um regimento de repórteres que pediram para presenciar o içamento do Titanic, na próxima semana.

     — Bom, eu bem merecia isso!

     — Ótimo! Fico sempre bem impressionada com os homens que admitem a tolice dos seus métodos... — Inclinou a cabeça e olhou para ele de modo divertido. — Agora que esse assunto está resolvido, por que não me faz uma proposta de casamento

     Donner franziu a testa.

     — Não é a rapariga recatada quem diz: "Mas, cavalheiro, eu mal o conheço!"

     Ela segurou-lhe na mão e levantou-se.

     — Então, venha.

     — Posso saber para onde?

     — Para sua casa... — disse ela com um sorriso malicioso.

     — Para minha casa? — As coisas estavam a correr depressa demais para Donner.

     — Claro! Temos de ir para a cama, não é? De que melhor modo podem duas pessoas que estão comprometidas para se casar conhecerem-se uma à outra?

 

     Pitt refestelou-se no seu assento no comboio e, preguiçosamente, ia vendo as paisagens rurais do Devon desfilarem diante da sua janela. O caminho fazia uma curva ao longo da linha da costa por alturas de Dawlish. No canal, ele pôde ver uma frota de traineiras navegando para o alto mar, na sua faina matutina. Porém, uma chuva miudinha começou a escorrer pela vidraça e apagou a visibilidade, pelo que ele se virou e começou a folhear, sem mesmo olhar, a revista que tinha nos joelhos.    

     Se lhe tivessem dito, dois dias antes, que iria ter uma licença temporária durante a operação de salvamento, ele os julgaria estúpidos. E se lhe tivessem sugerido que viajasse para Teignmouth, Devonshire, uma pequena e bonita cidade na costa sueste da Inglaterra, com 12 260 habitantes, a fim de entrevistar um moribundo, ele os julgaria decididamente loucos.

     Teria de ficar agradecido ao almirante James Sandecker por esta peregrinação: foi esse o termo que o almirante Sandecker empregou quando chamou Pitt aos escritórios centrais da NUMA, em Washington. Uma peregrinação até junto do último sobrevivente da tripulação do Titanic!

       — Não vamos perder mais tempo discutindo o assunto — disse Sandecker de maneira inequívoca. — Você vai a Teigr Mouth.

     — Nada disso faz sentido. — Pitt passeava nervosamente — E a operação de salvamento? — insistiu Pitt. — Os computadores indicam que o casco do Titanic pode soltar-se do fundo em qualquer momento depois das próximas setenta e duas horas.

     — Não se aflija, Dirk. Você deverá estar de volta ao convés do Capricorn amanhã à noite. Com tempo de sobra para comandar os acontecimentos.

     — Enquanto isso, Rudi Gunn cuidará para não assassinarem os homens das minhas guarnições, sob a proteção pessoal da CIA; e, sem mais aquelas, ordena-me calmamente para ir a Inglaterra receber o depoimento de um velho marujo inglês, à beira do seu leito de morte!...

     — Mas acontece que esse "velho marujo inglês" é o único membro da tripulação do Titanic que ainda não foi enterrado. qualquer problema que possa surgir...

     — O senhor não me oferece muita escolha — disse Pitt, com um gesto de derrota.

     Sandecker sorriu com benevolência.

     — Sei o que está a pensar... que é indispensável... Bem, tenho novidades para si. Aquela é a melhor guarnição de salvamento do mundo. Tenho confiança em que, de alguma forma, eles poderão lutar as próximas trinta e seis horas sem você.        

     — Oh, sim —Pitt sorriu, mas parecia não achar qualquer graça ao caso. — Quando devo embarcar?

         — Há um jato Lear esperando no hangar da NUMA, em Dulles. Ele levá-lo-á a Exeter. De lá, você seguirá de comboio até Teignmouth.

         — E, depois, devo entregar o meu relatório aqui em Washington?

     — Não, aguardarei o seu relatório a bordo do Capricorn.

     Pitt levantou os olhos.

     — No Capricorn?

         — Certamente. Só porque você está a passear pelo interior da Inglaterra, não vai pensar que eu vou perder o espetáculo de ver o Titanic ressuscitar, no caso de ele se decidir a vir à superfície antes do prazo, não acha?

     Sandecker sorriu cinicamente. Achou melhor assim do que soltar uma gargalhada, como lhe apetecia, diante da expressão de tristeza e abatimento de Pitt.

     Pitt tomou um táxi na estação de caminho-de-ferro e seguiu por uma estrada estreita, ao lado do estuário do rio, até uma casinha com vista para o mar. Pagou o táxi, passou por um portão coberto de trepadeiras e subiu um caminho ladeado de roseiras. Atendeu-o, à porta, uma rapariga de soberbos olhos violeta, cabelos bem escovados e uma voz suave com um leve sotaque escocês.

     — Bom dia, senhor.

     — Bom dia — disse ele com um leve movimento de cabeça. — O meu nome é Dirk Pitt, e...        

     — Oh, sim, o almirante Sandecker enviou um radio avisando-nos da sua vinda. Por favor, entre. O comodoro está à sua espera  

     Ela vestia uma blusa branca bem passada e um sweater de lã verde, que combinava com a saia. Acompanhou-o até à sala de estar. Esta era aconchegada e confortável. O fogo na lareira brilhava vivamente e se Pitt não soubesse antes que o dono da casa era um marinheiro aposentado poderia deduzi-lo da decoração. Em cada prateleira disponível havia o modelo de um navio, enquanto quadros de navios famosos ornamentavam as paredes. Um grande telescópio de latão estava montado em frente de uma das janelas que dava para o canal e uma roda de leme, estava ao seu lado.

     — Vim falar consigo — disse Pitt ao homem que estava à sua frente — sobre o Titanic.

     — Tanta tolice! Fui torpedeado duas vezes e largado à deriva em ambas as guerras mundiais e tudo o que me perguntam é sobre o Titanic! — Apontou para uma cadeira. — Não fique para aí de pé como um menino imberbe na sua primeira viagem por mar. Sente-se, sente-se! — Pitt sentou-se. — Agora fale-me do navio. Como está ele depois de tantos anos? Eu era jovem quando servi nele, mas ainda me lembro bem.

     Pitt meteu a mão no bolso do casaco e retirou um sobrescrito com fotografias, que passou a Bigalow.

     — Talvez isso lhe possa dar uma idéia das condições atuais. Foram tiradas de um dos nossos submarinos há apenas algumas semanas.

     O comodoro Bigalow colocou os óculos e estudou as fotos. Vários minutos se escoaram de um relógio de bordo, ao lado da cama, enquanto o velho marinheiro mergulhava nas memórias de uma outra época.

     — Ele possuía uma classe fora de série! Eu sei. Andei embarcado em todos eles: o Olympic... o Aquitania... o Queen Mary. Todos eles eram sofisticados e modernos para a sua época, mas não chegavam aos calcanhares do Titanic no que se refere ao cuidado e à habilidade no fabrico das peças de decoração: os painéis maravilhosos e os luxuosos camarotes. Sim, ele ainda possui o seu encanto, não há dúvida!

     — O seu fascínio cresce com os anos — concordou Pitt.

     — Aqui, aqui!— disse Bigalow apontando excitadamente para uma das fotografias — junto ao ventilador de bombordo, por cima dos alojamentos dos oficiais. Era aqui que eu me encontrava, quando ele mergulhou debaixo dos meus pés e eu fui varrido para dentro do mar. —As longas décadas pareciam haver desaparecido das suas faces. — Oh, como o mar estava frio naquela noite! Dois graus abaixo de zero.

     Nos dez minutos seguintes, ele falou de como nadou na água gelada; de como encontrou milagrosamente um cabo passado a um barco salva-vidas que virara; da terrível massa de pessoas que lutavam; dos angustiosos gritos que atravessavam o ar da noite e lentamente morriam à distância; das longas horas que permaneceu agarrado à quilha do barco, amontoado com mais trinta homens, para se proteger do frio; da excitação quando o Carpathia, da empresa de navegação Cunard, surgiu à vista e procedeu ao salvamento. Finalmente, suspirou e olhou para Pitt por sobre os óculos.

     — Estou a aborrecê-lo, senhor Pitt?

     — Nem um pouco — respondeu Pitt. — Ouvir alguém que efetivamente viveu aqueles acontecimentos faz-me pensar que eu próprio os estou vivendo.

     — Então vou contar-lhe uma outra história, muito mais espantosa e difícil de acreditar —disse Bigalow. — Até agora jamais contei a alguém os meus últimos minutos antes do navio se afundar. Nunca mencionei uma só palavra nos interrogatórios acerca do afundamento; nada durante o inquérito do Senado dos Estados Unidos ou da Corte Britânica. Também jamais pronunciei uma sílaba a esse respeito aos repórteres dos jornais ou aos escritores que viviam fazendo pesquisas sobre a tragédia. O senhor vai ser a primeira e a última pessoa a ouvir isto dos meus lábios.

     Três horas mais tarde, Pitt achava-se de novo no comboio de volta a Exeter, nem cansado nem enfastiado. Sentia uma espécie de excitação. O Titanic e o seu estranho enigma fechado dentro do cofre do compartimento de bagagens número 1 do convés G atraía-o agora mais do que nunca. "Southby?", perguntava ele a si próprio. "Que tem Southby a ver com isto tudo?" Pela qüinquagésima vez ele baixou os olhos para o embrulho que o comodoro Bigalow lhe dera. Já não sentia qualquer arrependimento de ter vindo a Teignmouth.

 

     O Dr. Ryan Prescott, chefe do Centro de Ciclones da NUMA, em Tampa, Flórida, tinha toda a intenção de chegar, ao menos um dia, a horas a casa e passar uma noite calma com sua mulher jogando cribbage. Mas à meia-noite menos dez ainda se encontrava diante da sua escrivaninha, cansado, examinando umas fotos espalhadas diante dele, que haviam sido tiradas por um satélite.

     — Justamente quando se pensa que se aprendeu tudo sobre tempestades — disse ele queixoso — vem uma, não se sabe de onde, e estraga as previsões.

     — Tlm rirlinr rm, meados de maio — disse a sua assistente entre dois bocejos — Esse tem de constar do livro de registros especiais, não há dúvida.

     — Mas qual teria sido a causa? A estação dos ciclones estende-se, normalmente, de julho a setembro. Quais teriam sido as causas deste, agora, com dois meses de antecedência?

     — Não faço idéia — respondeu a jovem. — Para que lado julga que ele se dirige?

     — Muito cedo para se fazer uma previsão segura — disse Prescott. — A sua formação seguiu os métodos usuais, é certo: uma grande área com baixa pressão invadida por uma camada de ar úmido, girando no sentido contrário ao dos ponteiros do relógio, em virtude do movimento de rotação da terra. Porém, a semelhança termina aí. Em geral, leva dias, às vezes mesmo semanas, para se formar uma tempestade de setecentos quilômetros de largura. Esta agora completou a tarefa em menos de dezoito horas.

     Prescott, suspirando, levantou-se e dirigiu-se para um grande mapa suspenso da parede. Consultou um bloco cheio de rabiscos, indicando a posição conhecida, as condições atmosféricas e a velocidade. Então, começou a traçar uma linha para oeste, de um ponto a 280 quilômetros a nordeste das Bermudas, uma linha que gradualmente se ia curvando para o norte na direção da Terra Nova.

     — Até que ele nos dê uma indicação do seu futuro rumo, isto é o melhor que posso fazer. — Fez uma pausa, esperando uma confirmação. Não ouvindo nada, perguntou: — É assim que você vê a coisa?

     Como não recebesse resposta, virou-se para repetir a pergunta, mas desistiu. A sua assistente havia adormecido, a cabeça enfiada nos braços em cima da mesa. Com gentileza sacudiu-lhe o ombro até que os seus olhos se abriram.

     — Não há mais nada a fazer aqui — disse ele com suavidade. — Vamos para casa procurar dormir um pouco. — Lançou um olhar cauteloso para trás, na direção do mapa. — As possibilidades de ele se desmanchar antes de clarear o dia e terminar como uma pequena borrasca localizada são de mil para uma — disse com uma certa autoridade; mas não havia convicção na sua voz.

     O que ele não reparou foi que a linha que traçara, representando a sua previsão para a rota a ser seguida pelo ciclone, passava bem por cima do ponto das coordenadas 41? 46' N- 50? 14' O.1

 

     O comandante Rudi Gunn permaneceu na ponte do Capricorn, vendo materializar-se no céu, claro como um diamante, um pontinho azul, vindo de longe, de oeste. Por alguns instantes, pareceu ficar suspenso, sem mudar de aparência nem se aproximar. Aquele ponto azul-escuro, no horizonte, cresceu, porém, de repente, e tomou a forma de um helicóptero.

     Dirigiu-se para a plataforma de aterragem, à ré, e ficou aguardando enquanto o aparelho se aproximava pairando por sobre o navio. Trinta segundos depois, os skids beijavam a plataforma acolchoada; o ruído da turbina extinguiu-se e a hélice foi diminuindo, vagarosamente, de velocidade, até parar. Gunn aproximou-se quando a porta da direita se abriu e Pitt desceu.

     — Fez boa viagem? — perguntou Gunn.

     — Interessante — respondeu Pitt.

     Pôde então notar a tensão no rosto de Gunn. Fundas olheiras rodeavam os olhos do homenzinho e o seu rosto apresentava um ar carrancudo.

     — Parece um garoto a quem roubaram os presentes de Natal, Rudi. Algum problema?

     — O submarino da Uranus Oil, o Deep Fathom, ficou preso nos destroços.

    Pitt manteve-se em silêncio por um momento. Depois, perguntou simplesmente:

     — O almirante Sandecker?

     — Encontrava-se no Bomberger. Uma vez que esse era o tênder do Deep Fathom, ele julgou que seria melhor conduzir a operação de lá, até que você regressasse.

     — Você diz que era, como se o submarino estivesse dado como perdido.

     — A situação não parece lá muito boa. Vamos subir para eu lhe fornecer os pormenores.

     Havia uma atmosfera de tensão e desespero na sala de operações do Capricorn. Giordino,

habitualmente tão comunicativo, acenou simplesmente a Pitt e não dirigiu uma só palavra de boas-vindas. Ben Drummer estava ao microfone falando com a tripulação do Deep Fathom e encorajava-os com um show de animação e otimismo, o que estava em contradição com a expressão de receio dos seus olhos. Rick Spencer, o engenheiro de equipamentos das operações de salvamento, tinha os olhos fitos nos monitores de TV, numa muda concentração. Os demais homens, de semblantes tristes, mantinham-se nos seus postos, calmamente. Gunn começou a explicar a situação.

     — Duas horas antes do momento em que deveria subir, a fim de render a guarnição, o Deep Fathom, tripulado naquela altura pelos mecânicos Joe Kiel, Tom Chavez e Sam Merker...

     — Merker esteve consigo na Expedição da Corrente Lorelei — interrompeu Pitt.

     — Munk também lá estava — lembrou Gunn solenemente. — Até parece que a nossa guarnição foi amaldiçoada.

     — Continue.

     — Eles estavam a instalar uma válvula de escape na antepara, a estibordo do castelo de proa do Titanic, quando a popa raspou num guindaste de carga da vante. Algumas partes corroídas pela ferrugem partiram-se e o braço do guindaste caiu sobre os tanques de flutuação do submarino, rebentando-os. Mais de duas toneladas de água penetraram pelas aberturas e o casco ficou agarrado aos destroços.

     — Há quanto tempo aconteceu isso? — perguntou Pitt.

     — Há cerca de três horas e meia.

     — E por que todo esse desanimo? Sois homens de pouca fé! Não se esqueça que o Deep Fathom tem oxigênio suficiente para manter uma guarnição de três homens durante mais de uma semana. Tempo de sobra, portanto, para que o Sappho 1 e o Sappho 2 vedem os tanques de ar e a água possa ser esgotada.

     — Não é assim tão simples — disse Gunn. — Apenas nos restam seis horas.

     — E por que apenas essa margem de seis horas?

     — Deixei para o fim a parte pior. — Gunn olhou para Pitt de modo sombrio. — O impacto produzido pela queda do guindaste afetou uma costura do casco do Deep Fathom Trata-se de um furo mínimo, mas devido à tremenda pressão àquela profundidade, a água está a entrar na cabina à razão de quinze litros por minuto. É um milagre a costura não ter ainda rebentado, fazendo achatar o casco e amassando completamente aqueles homens. — Inclinou a cabeça para o relógio sobre o painel do computador. — Seis horas é tudo o que eles têm antes que a água encha a cabina e eles se afoguem... e nada há que possamos fazer.

     — Porque não se soldam os rombos pelo lado de fora com wetsteel?

     — É mais fácil de dizer do que fazer. Não podemos chegar junto dos furos. O lado do casco onde está a costura afetada encontra-se encostado à antepara do castelo do Titanic. O almirante havia ordenado aos outros três submarinos que descessem, na esperança de que as suas forças combinadas pudessem mover o Deep Fathom, ao menos o suficiente para que fosse possível chegar à avaria e repará-la. Mas não deu resultado.

     Pitt sentou-se numa cadeira, pegou um lápis e começou a fazer umas anotações num bloco de papel.

     — O Sea Slug está equipado com ferramentas de corte. Se ele conseguisse atacar o braço do guindaste...

     — Nada feito. — Gunn meneou a cabeça, frustrado — Durante a operação para afastar o Deep Fathom da sua posição, o Sea Slug partiu o braço de manipulação. Já se encontra de novo no convés do Modoc, mas o pessoal da Armada diz que é impossível reparar o braço a tempo. —Gunn bateu com o punho na mesa onde se encontravam os mapas. — A nossa última esperança é o gancho do Bomberger. Se se conseguir passar um cabo ao braço do guindaste, poderemos ainda afastá-lo.

     — É o fim do nosso trabalho! — disse Pitt. — O Sea Slug é o único submarino que possuímos equipado com um braço de manipulação para serviço pesado e sem ele não haverá meios de se passar uma volta com o cabo.

     Gunn esfregou os olhos, cansado.

     — Depois de milhares de homens-horas gastos no planejamento, construção e aperfeiçoamento de cada sistema sobressalente de segurança que se possa conceber e de todos os

cálculos de processos concisos de emergência para cada contingência previsível, surge agora um imprevisto destes, cuja probabilidade de acontecer era da ordem de um para um milhão, atingindo-nos como um golpe baixo, com que os computadores não contavam.

     — Os computadores têm apenas os valores dos dados que lhes fornecemos — disse Pitt.

     Caminhou para o aparelho de rádio e tirou o microfone das mãos de Drummer.

     — Deep Fathom, aqui fala Pitt. Câmbio.

     — É ótimo ouvir de novo a sua voz animada! — Merker fez-se ouvir no alto-falante com tanta calma como se estivesse falando de casa, estirado na cama. — Por que não desce você até aqui e não vem jogar uma partida de bridge?

     — Não é o meu jogo preferido — disse Pitt, com naturalidade. — De quanto tempo dispõem ainda vocês até que a água chegue às baterias?

      — Da maneira como está a subir, uns quinze a vinte minutos.

     Pitt virou-se para Gunn e repetiu o que já todos sabiam.

     — Quando as baterias se forem, não haverá mais comunicações com eles.

     Gunn fez sinal de concordância.

     — O Sappho 2 está perto, para lhes fazer companhia. É tudo o que podemos fazer.

     Pitt apertou de novo o botão do microfone.

     — Merker, como está o seu sistema de sustentação da vida?

     — Que sistema de sustentação da vida? Aquilo parou de funcionar a meia hora. Estamos a respirar ar viciado.

     — Vou providenciar para que desça uma caixa de Certs.

     — Então será bom apressar-se. Chavez tem um caso maligno de halitose. — Notou-se uma certa reticência no tom de voz de Merker. — Se acontecer o pior e se não nos virmos mais... ao menos estamos cercados de boa companhia aqui em baixo.

     A abrupta referência feita por Merker aos mortos do Titanic fez empalidecer cada um dos que se encontravam na sala de operações; cada um, com exceção de Pitt, diga-se. Ele apertou de novo o botão.

     — Não se esqueçam de deixar o submarino limpo. Podemos querer usá-lo outra vez —disse Pitt.

     As palavras aparentemente cruéis de Pitt causaram uma reação interessante. Giordino, Gunn, Spencer e os outros apenas olharam para ele. Somente Drummer mostrou uma expressão de ódio. Pitt tocou no ombro de Curly, o radioperador.

     — Ligue-me ao almirante, no Bomberger, mas empregue uma freqüência diferente.

     Curly ergueu os olhos.

     — Você não quer que o pessoal do Deep Fathom ouça?

     — O que eles não souberem não os preocupará — disse Pitt, friamente. — Agora, apresse-se com isso.

 

     Momentos depois, ouviu-se no alto-falante.

     — Capricorn, aqui é o almirante Sandecker. Câmbio.

     — Aqui Pitt, almirante.

     — Você está a par do que sucedeu? — perguntou Sandecker, sem perder tempo com saudações.

     — Gunn informou-me de tudo — respondeu Pitt.

     — Então você está ciente de que esgotamos todos os meios. Seja como for que você encare isso, o tempo é o nosso inimigo. Se pudéssemos prolongar o inevitável por mais umas dez horas... teríamos uma possibilidade de os salvar.

     — Há um outro caminho — disse Pitt. — Não é fácil, mas é matematicamente possível.

     — Estou aberto a sugestões.

     Pitt hesitou.

     — Para já, vamos esquecer o Deep Fathom e dirigir as nossas energias em outra direção.

     Drummer chegou-se para perto dele.

     — Que quer dizer, Pitt? Que se está a passar? Esquecer o Deep Fathom — gritou ele de lábios torcidos. — Você está louco?

     Pitt sorriu-lhe de maneira a desarmá-lo.

     — É o último lance desesperado dos dados, Drummer. Vocês falharam e falharam de forma miserável. Vocês podem representar uma dádiva de Deus para o mundo dos salvamentos marítimos, mas como força de recuperação, mais parecem um bando de amadores. A má sorte e

os vossos erros conjugaram-se; agora vocês ficam aí a lamentar-se, dizendo que tudo está perdido... Bem, senhores, nem tudo está ainda perdido. Vamos mudar as regras do plano e trazer o Deep Fathom à superfície antes que as seis horas terminem; as quais, pelo meu relógio, diminuíram para cinco horas e quarenta e três minutos.

     Giordino olhou para Pitt.

     — E você acredita, realmente, que isso possa ser feito?

     — Penso, realmente, que isso pode ser feito.

     A voz de Sandecker explodia no alto-falante...

 

     Engenheiros de estruturas e cientistas da Marinha agruparam-se em pequenos círculos, murmurando entre si enquanto faziam correr, freneticamente, as réguas de calcular dum lado para

o outro. A todo o instante, um deles afastava-se e dirigia-se para o computador para verificar as informações. O almirante Sandecker, que acabava de chegar do Bomberger, achava-se sentado à sua escrivaninha, segurando uma cafeteira de café e meneando a cabeça.

     — Isto jamais constou dos textos dos livros sobre salvamentos — murmurou ele. — Isto de fazer saltar um barco afundado com o emprego de explosivos... Deus, é uma loucura...

     — Que outra escolha temos então nós? — perguntou Pitt. — Se pudermos arrancar o Titanic do lodo, o Deep Fathom será também puxado para cima com ele.

     — Trata-se de uma idéia maluca — murmurou Gunn. — O choque apenas fará expandir a costura avariada no casco do submarino e causará uma imediata implosão, que o impulsionará.

     — Pode ser, pode ser — disse Pitt. — Mas, mesmo que isso venha a acontecer, será provavelmente melhor que Merker, Kiel e Chavez morram instantaneamente esmagados pelo mar do que sofram uma agonia prolongada e lenta por sufocação.

     — E quanto ao Titanic? — persistiu Gunn. — É possível que destruamos tudo aquilo por que trabalhamos todos estes meses.

     — Considere isso como um risco calculado— disse Pitt. — A estrutura do Titanic é mais resistente que a da maioria dos navios que flutuam hoje em dia. As suas vigas, longarinas, anteparas e conveses encontram-se tão fortes como na noite em que afundou. O velho senhor pode ainda hoje suportar aquilo que dele exigimos. Não tenha dúvidas a esse respeito.

     — E você pensa, seriamente, que isso dará resultado? — perguntou Sandecker.

     — Penso.

      — Como sabe, eu poderia ordenar-lhe que não fizesse isso...

     — Eu sei — respondeu Pitt. — Confio, porém, em que me conservará no jogo até o fim.

     Sandecker esfregou os olhos com as mãos e depois, sacudiu a cabeça vagarosamente, como que a clarear as idéias. Por fim, disse:

     — Está bem, Dirk, cuide de tudo.

     Pitt concordou e retirou-se. Faltavam exatamente cinco horas e dez minutos.

 

     Os três homens do Deep Fathom, três quilômetros mais abaixo, observavam, naquele ambiente frio e solitário, as águas a subirem nas anteparas, centímetro a centímetro até alagar o circuito principal, ocasionando a neutralização dos instrumentos e lançando assim a cabina numa completa escuridão. Em seguida começaram a sentir o frio cortante da água a um grau centígrado, à medida que ela lhes subia pelas pernas. Tiritando de frio e sob o tormento da previsão de uma morte certa, eles ali permaneciam, ainda apegados a uma longínqua esperança de sobrevivência.

     — Assim que chegarmos à superfície — murmurou Kiel — vou tirar um dia de licença e estou-me nas tintas para o que acontecer...

       — Homessa! — disse Chavez no escuro. — Se quiserem podem despedir-me, mas amanhã vou passar o dia a dormir...

     Chavez tateou no escuro e encontrou o braço de Kiel, que agarrou com força.

     — O que está para aí a dizer?

     — Parem lá com isso — disse Merker. — Com o sistema de sustentação da vida esgotado, o óxido de carbono que se formou está já a afetar-vos. Eu próprio já me sinto estonteado.

     — E, além do mais, o ar está irrespirável — rosnou Chavez. — Se a gente se não afoga, vamos ficar amassados quando o casco rebentar e se isso não acontecer, sufocamos com o ar que respiramos. O nosso futuro não parece lá muito promissor...

     — Você esqueceu-se do frio — acrescentou Merker, cáustico. — Se não nos mantivermos acima da água gelada, nem sequer daremos oportunidade a que essas coisas aconteçam.

     Kiel não disse nada quando Chavez o empurrou para cima do beliche mais alto. Este subiu a seguir e sentou-se na beira, as pernas penduradas logo acima da água. Merker forçou o caminho através da água, que já lhe chegava aos quadris, até ao painel de observação, na vante, e olhou para fora. Pôde ver o Sappho 2 dentro de uma auréola de luz causada pelos raios ofuscantes

dos seus fachos luminosos. Embora aquele engenho se encontrasse a apenas três metros de distância, ele nada poderia fazer pelo Deep Fathom, porque ambos estavam cercados pela implacável pressão daquela hostil profundidade.

     "Enquanto ele ali estiver, é sinal de que ainda não nos consideram perdidos", pensou Merker. Não foi pequeno o consolo que sentiu pelo fato de não estarem sós. Não seria um grande apoio, mas era tudo com que eles podiam contar.

 

     A bordo do navio de suprimentos Alhambra, operadores de câmeras das três maiores redes de televisão agitavam-se de um lado para o outro, numa crescente expectativa, lutando febrilmente, a fim de colocarem os seus equipamentos em ação. Ao longo da amurada, no convés, a estibordo, os repórteres de rádio ocupavam toda a extensão, de binóculos assestados, numa hipnótica concentração, sobre o Capricorn, que se encontrava a duas milhas de distância, enquanto os fotógrafos dirigiam as suas lentes telescópicas para a superfície das águas, entre os navios.

     Encurralada a um canto da sala arranjada para a imprensa, Dana Seagram ajeitou o agasalho sobre os ombros e, esportivamente, enfrentou aquela dúzia de jornalistas armados de gravadores e de microfones apontados para o seu rosto.

     — Verdade, senhora Seagram, que a tentativa de içar o Titanic com um avanço de três dias se acha de algum modo relacionada com os últimos esforços para salvar a vida de três homens que ficaram presos lá em baixo?

     — Essa é apenas uma das várias soluções — respondeu Dana.

     — Devemos entender com isso que todas as outras falharam?

     — Houve, de certo modo, complicações... — admitiu.

   Dana, nervosamente, torcia um lenço dentro do bolso do seu agasalho até que os seus dedos ficaram magoados. Começava a ressentir-se dos longos meses daquele jogo com os homens da imprensa.

     — Depois da interrupção das comunicações com o Depp Fathom, como é possível saber-se se os homens da guarnição ainda estão vivos?

     — Os dados do computador asseguram-nos que ainda restam quatro horas e quarenta minutos antes que a situação se torne crítica.

     — Como pretende a NUMA içar o Titanic, se o eletrólito ainda não foi totalmente injetado no lodo junto à quilha?

     — Não possuo dados para responder a essa pergunta — disse Dana. — A última mensagem enviada pelo senhor Pitt, de bordo do Capricorn, dizia apenas que eles iriam içar o destroço dentro das próximas horas. Não fornecia pormenores quanto ao método que iria ser usado.

     — E se já for tarde? Se Kiel, Chavez e Merker já estiverem mortos?

     Dana respondeu com uma expressão severa.

     — Eles não estão mortos — disse. Os olhos chispavam faíscas. — E o primeiro de vós que levantar essa hipótese cruel e desumana antes que o fato seja comprovado será lançado pela borda fora deste navio e... as credenciais e as graduações que vão para o diabo. Entenderam?

     Os repórteres ficaram por momentos mudos de espanto diante da repentina demonstração de ódio de Dana e vagarosa e silenciosamente, começaram a retirar os seus microfones e esgueiraram-se lá para fora, para o convés.

 

     Rick Spencer desenrolou uma grande folha de papel sobre o tampo da mesa e fixou-a com diversas chávenas de café. Era uma planta representando o Titanic pousado no fundo do mar. Começou por apontar um lápis para diversos pontos à volta do casco, marcados com pequeninas cruzes.

     — Este é o aspecto geral — explicou. — De acordo com os dados do computador, colocamos oitenta cargas, contendo 15 quilos de explosivos, nestes pontos-chave do cedimento, em torno do Titanic.

     Sandecker debruçou-se sobre a planta; os olhos percorreram as cruzinhas.

     — Pelo que vejo, você distribuiu-as em três filas, de cada lado.

     — Isso mesmo, senhor — respondeu Spencer. — As filas de fora estão colocadas a sessenta metros, as do meio a quarenta, as de dentro a vinte metros do costado. Detonaremos as de estibordo em primeiro lugar. Depois, oito segundos mais tarde, a fila de bombordo. Mais oito segundos e repetiremos o processo com as filas do meio e assim por diante.

     — Até lembra aquela maneira de sacudir um carro de frente para trás, quando ele fica enterrado na lama... — comentou Giordino.

     Spencer concordou.

     — Pode se dizer que essa é uma boa comparação.

     — Porque não tentar arrancá-lo com uma só explosão?

     — Podia ser que só um solavanco fosse o suficiente, mas os geólogos são a favor das ondas sucessivas de choque. O que eles estão a procurar obter é vibração.

     — Temos o explosivo? — perguntou Pitt.

     — O Bomberger carrega perto de uma tonelada para as pesquisas sísmicas — respondeu Spencer. — O Modoc possui duzentos quilos em estoque para explosões submarinas de salvamento.

     — E acha que se vai conseguir?

     — Estamos mais ou menos no limite — admitiu Spencer. — Mais cento e cinqüenta quilos e isso nos daria uma margem de êxito mais segura.

     — O explosivo podia ser enviado de terra, em jatos e lançado de pára-quedas — sugeriu Sandecker.

     Pitt meneou a cabeça.

       — Quando o explosivo chegasse e fosse colocado num submarino e instalado no fundo do mar, já se teriam passado duas horas sobre o tempo limite.

     — Bem, então é melhor que avancemos com isso para a frente — disse Sandecker, bruscamente. — temos um tempo limite muito apertado. — Depois voltou-se para Gunn. —Quanto tempo demorará até o explosivo ser colocado na posição?

     — Quatro horas — disse Gunn, sem hesitar.

     Os olhos de Sandecker estreitaram-se.

     — Esse é quase todo o tempo de que dispomos. Só nos restarão catorze minutos...

     — Iremos consegui-lo — disse Gunn. — Há, entretanto, uma condição.

     — Qual? — cortou rápido Sandecker.

     — Vamos precisar de todos os submarinos de que dispomos.

     — Isso significa retirar o Sappho 2 da sua posição junto do Deep Fathom — disse Pitt. —Aqueles pobres diabos, lá em baixo, vão pensar que nós os abandonamos.

     — Não há outra maneira — disse Gunn, desanimado. — Simplesmente não há outra maneira.

 

     Merker havia perdido toda a noção do tempo. Olhou para o mostrador luminoso do seu relógio, mas os seus olhos não conseguiram distinguir os números. Há quanto tempo, imaginava ele, teria o braço do guindaste caído sobre os tanques de flutuação? Cinco... dez horas... ou teria sido ontem? A sua mente achava-se preguiçosa e confusa. Ele apenas podia ali permanecer, sentado, sem mover um músculo, respirando pouco profundamente e devagar; cada movimento dos pulmões parecia ter a duração de uma vida. Gradualmente, notou um movimento na escuridão. Estendeu a mão e tocou em Kiel e Chavez, mas eles não emitiram qualquer som, nenhuma resposta; estavam mergulhados num torpor letárgico. Então, ele voltou de novo a notar qualquer coisa que se não encontrava agora onde devia. A sua mente trabalhava com lentidão, como se estivesse mergulhada num xarope. Por fim, conseguiu. Com exceção da água que ia subindo, nada se havia alterado, nenhum sinal de movimento dentro da cabina alagada; a claridade produzida pelos luminosos faróis do Sappho 2 é que havia diminuído. Deixou-se escorregar do beliche para dentro de água que lhe chegava agora ao peito, lutou até chegar à proa, onde espiou para as profundezas, De repente, os seus sentidos adormecidos foram tomados por um medo como nunca antes sentira. Os seus olhos arregalaram-se e ficaram vidrados; as mãos crisparam-se num desespero inútil.

     — Oh, Deus! — gritou alto. — Eles estão-nos a abandonar! Eles abandonaram-nos!...

 

     Sandecker torceu o grande charuto que acabara de acender e continuou a passear pelo convés. O radioperador ergueu a mão e o almirante dirigiu-se para ele.

     — O Sappho 1 comunica-nos, senhor — disse Curly — que terminou a colocação das cargas.

     — Diga-lhes para subirem tão depressa quanto o permita seus tanques de flutuação. Quanto mais alto eles estiverem, menor será o impacto sobre o casco quando os explosivos detonarem.

     O almirante fez meia-volta e encarou Pitt, que observava com atenção os quatro monitores, cujas câmeras luminosas haviam sido montadas em pontos estratégicos em torno da super estrutura do Titanic.

     — Que lhe parece?

     — Até aqui tudo bem — respondeu Pitt.

     Sandecker fitou as imagens coloridas e a sua testa enrugou-se quando percebeu que grandes correntes gasosas se desprendiam do casco do transatlântico.

     — Ele está a perder muito ar.

     — É o excesso de pressão saindo pelas válvulas de escape — disse Pitt calmamente.—Nós passamos das bombas de eletrólito para os compressores, de modo a encher com quanto ar pudermos os compartimentos superiores. — Fez uma pausa para ajustar melhor uma imagem e depois, continuou. — Os compressores do Capricorn fornecem duzentos e oitenta e quatro metros cúbicos de ar por hora. Assim, a pressão dentro do casco é rapidamente aumentada em três quartos de quilo por centímetro quadrado, o suficiente para fazer disparar as válvulas de escape.

     Drummer largou os computadores e verificou uma série de anotações numa tabuleta.

     — Tanto quanto podemos calcular, noventa por cento dos compartimentos do navio estão esgotados — disse ele. — O principal problema, a meu ver, é que temos um empuxo de baixo para cima maior que o julgado necessário pelos computadores. Se e quando o lodo o largar, ele subirá como uma pipa.

       — O Sea Slug acaba de colocar a sua última carga — informou Curly.

     — Peça-lhe que faça um giro em volta do Deep Fathom antes de subir à superfície — disse Pitt — e que veja se pode fazer algum contacto visual com Merker e os seus homens.

     — Faltam onze minutos — anunciou Giordino.

     — Por que diabo está atrasado o Sappho 2? — perguntou Sandecker sem se dirigir a ninguém em particular.

     Pitt olhou para Spencer através da sala.

     — As cargas estão prontas para detonar?

     Spencer disse sim com a cabeça.

     — Cada fileira está sintonizada para uma freqüência diferente do transmissor. Apenas teremos que girar um botão e elas detonarão na seqüência estabelecida.

     — Em qual aposta você que aparecerá primeiro: a proa ou a popa?

     — Não há dúvida possível. A proa está enterrada no lodo seis metros mais profundamente que o cadaste. Estou contando que a popa se desprenda e então a sua flutuabilidade, segundo o princípio da alavanca, fará desprender o resto da quilha. O navio deverá

subir segundo o mesmo ângulo com que mergulhou. . . se, afinal, nos quiser dar o prazer de subir.

     — Encontra-se colocada a última carga — anunciou Curly. — O Sappho 2 está de regresso.

     — O Sea Slug enviou alguma informação?

     — Ele informou que não há contato visual com a guarnição do Deep Fathom.

     — Está bem, diga-lhe para subir imediatamente — disse Pitt. — Faremos a primeira explosão dentro de nove minutos.

     — Eles estão mortos! — gritou Drummer de repente, com voz trêmula. — Estamos muito atrasados, eles estão todos mortos!

     Pitt deu dois passos e agarrou Drummer pelos ombros.

     — Pare com o histerismo! A última coisa de que preciso é de uma oração antecipada.

     Drummer deixou cair os ombros, o rosto cinzento e endurecido pela angústia. Depois, concordou silenciosamente e dirigiu-se, inseguro, de volta ao computador.

     — A água deve estar neste momento apenas a uns sessenta centímetros abaixo do teto da cabina — disse Giordino.

     A voz saiu-lhe cerca de meia oitava mais alta que o seu tom normal.

     — Se o pessimismo se vendesse aos quilos, vocês, rapazes ficariam milionários — disse Pitt secamente.

     — O Sappho 1 já chegou à zona de segurança, a mil e oitocentos metros. — A informação veio do operador do sonar.

     — Um está safo, faltam agora dois — murmurou Sandecker.

     Nada mais havia senão esperar que os outros submarinos atingissem a zona de segurança, acima do nível em que as cargas da explosão pudessem oferecer perigo. Oito minutos se passaram, oito intermináveis minutos, durante os quais o suor começou a molhar duas dúzias de testas

     — O Sappho 2 e o Sea Slug aproximam-se agora da zona de segurança.

     — O mar e o tempo? — perguntou Pitt.

     — Mar calmo, céu limpo, vento fresco de nordeste — respondeu Farquar, o meteorologista. — Você não poderia desejar melhores condições.

     Por alguns momentos ninguém falou. Depois, Pitt disse:

     — Bem, meus senhores, chegou o momento. — A sua voz tinha a entoação normal e era calma, sem qualquer vestígio de apreensão. — Está bem, Spencer, inicie a contagem.

     Spencer iniciou a contagem.

     — Trinta segundos... quinze segundos... cinco segundos...atenção ao sinal... pronto!

     Depois, sem hesitar, começou a seguinte contagem:

     — Oito segundos... quatro segundos... atenção ao sinal... pronto!

     Todos se juntaram em redor dos monitores de TV e do operador do sonar, agora os únicos contatos com o fundo. A primeira explosão mal causou um tremor no convés do Capricorn e o som que lhes chegou aos ouvidos lembrava o de um longínquo trovão. A atmosfera de ansiedade que se notava podia ser cortada à faca. Todos os olhares se achavam presos aos monitores em frente e às trêmulas linhas que distorciam as imagens quando as cargas detonavam.

     Aqueles homens, temendo o pior mas esperando o melhor; tensos, fatigados e expectantes, ali se mantinham imóveis, enquanto Spencer, monotonamente, fazia as contagens. Os estremecimentos do convés foram se tornando mais pronunciados à medida que as ondas de choque se sucediam e quebravam à superfície do mar. Então, abruptamente, todos os monitores se agitaram num caleidoscópio de luzes que se desfaziam, apagando-se.

     — Raios! — murmurou Sandecker. — Foi-se a imagem! — O impacto deve ter causado o desligamento do relais — conjeturou Gunn.

     s suas atenções voltaram-se agora, rapidamente, para o aparelho sonar, embora poucos pudessem avistá-lo: o operador achava-se de tal maneira colado a ele, que a sua cabeça obscurecia o vidro. Finalmente, Spencer aprumou-se. Suspirando profundamente, puxou um lenço do bolso das calças e passou-o pelo rosto e pelo pescoço.

     — Terminaram as suas indicações. Continua estacionário — disse. — O grande Titanic ainda está parado.

     — Vamos lá, meu velho! — implorou Giordino. —Levanta lá esse traseiro...

    — Oh, Deus! Oh, Deus! — resmungou Drummer. — A sucção continua a prendê-lo ao

fundo.

     — Anda, desgraçado! — Sandecker uniu-se aos apelos.

     — Arriba... Arriba... O operador do sonar pediu.

     Se fosse possível através do poder da mente fazer com que 46 328 toneladas de aço se desprendessem da cova onde estavam assentes há setenta e seis longos anos e viessem à luz do sol, aqueles homens ali reunidos em torno do sonar tê-lo-iam conseguido. Mas o dia não estava para fenômenos parapsicológicos. O Titanic continuava teimosamente agarrado ao fundo do mar.

     — Que falta de sorte danada! — disse Farquar

     Drummer cobriu o rosto com as mãos, virou-se e saiu da.sala, desesperado.

     — Woodson, do Sappho 2 , pede permissão para descer para dar uma olhadela — disse Curly.

     Pitt encolheu os ombros.

     — Permissão concedida.

     O almirante Sandecker, visivelmente fatigado, atirou-se para uma cadeira.

     — Que fracasso dispendioso!

     O sabor amargo da derrota encheu a sala, agravado pela acabrunhante sensação do grande malogro.

     — E agora? — perguntou Giordino, olhando desinteressado para o convés.

     — Continuaremos aquilo que nos propusemos — disse Pitt em tom cansado — a operação de salvamento. Amanhã recomeçaremos a...

     — Ele moveu-se!... — Ninguém reagiu de momento. — Ele moveu-se! — repetiu o operador do sonar.

     A sua voz tornara-se trêmula.

     — Tem certeza? — murmurou Sandecker.

     — Aposto a minha cabeça!

       Spencer estava atordoado de mais para que pudesse falar. Apenas fitava o mostrador do sonar com uma incredulidade obstinada. Então os seus lábios começaram a mover-se.

     — Foram os choques consecutivos! — disse ele. — Foram os choques consecutivos que causaram uma reação retardada.

     — Está a subir! — gritou o operador do sonar, batendo com o punho nos braços da cadeira. — O grande senhor largou o fundo!

     Está a vir para cima! De início, ninguém foi capaz de se mover. Aquele momento, pelo qual tinham lutado durante oito longos meses, eis que lhes chegava de uma forma tortuosa e, de certo modo, eles não podiam acreditar que isso estivesse realmente a acontecer.

     — Vá, meu amor, vá! — gritou Sandecker, alegre como um colegial.

     — Anda, preguiçoso! — gritou Giordino. — Anda, vamos!

     — Sobe, continua, velho palácio flutuante, grande, bonito e enferrujado — murmurou Spencer.

     De repente, Pitt correu para o pátio e tocou com força no ombro de Curly.

      — Depressa, entre em contacto com Woodson, no Sappho 2! Diga-lhe que o Titanic está a subir e que ele fuja rápido da sua frente antes que seja apanhado.

       — Continua rumando para a superfície — disse o operador do sonar. — A velocidade de ascensão está a aumentar.

     — Ainda não vencemos a tempestade — disse Pitt. — Muita coisa pode ainda acontecer

antes que ele chegue à superfície. Se ao menos...

     — Isso mesmo! — cortou Giordino — se ao menos o wetsteel mantiver a sua colagem, se ao menos as válvulas de escape corresponderem às rápidas variações da pressão da água, ou se o casco, não percebendo que tem de andar depressa... se parte e estoura. Se... se... se...

     — Continua a subir e depressa — disse o operador do sonar, com os olhos no mostrador. — Duzentos metros no último minuto.

     Pitt voltou-se para Giordino.

     — Al, procure o doutor Bailey e o piloto do helicóptero e desande rapidamente como se estivesse um touro correndo atrás de si. Logo que o Titanic parar, desça ao castelo de proa. Não me importa o modo como faça isso... escada de corda, guincho ou cadeirinha... Se necessário, atire-se com o aparelho sobre o barco, mas desça imediatamente com o médico, abra a escotilha do Deep Fathom e retire os homens daquele buraco infernal.

     — Já nos pode considerar a caminho:!

     Giordino sorriu. Já havia atravessado a porta quando Pitt deu uma nova ordem, esta agora a Spencer.

     — Rick, esteja a postos para içar as bombas diesel portáteis para bordo do destroço. E quanto mais cedo pudermos proceder a qualquer vazamento, tanto melhor.

     — Precisaremos de maçaricos de corte para entrar nele — disse Spencer, de olhos arregalados pela excitação.

     — Então trate disso. — Pitt voltou-se para o painel do sonar. — A velocidade de ascensão?

     — Duzentos e cinqüenta e cinco metros por minuto — respondeu o operador do sonar.

     — Depressa demais — disse Pitt.

     — Isso era o que nós menos desejávamos — murmurou Sandecker, sem retirar o charuto. — Os compartimentos estão a transbordar de ar e ele está a subir sem qualquer controle.

     — E se tivermos calculado mal a quantidade de água deixada como lastro nos compartimentos inferiores, é possível que ele salte fora de água dois terços do seu comprimento e se vire — acrescentou Pitt.

     Sandecker fitou-o bem nos olhos.

     — Mas isso seria o fim da guarnição do Depp Fathom!

       Então, sem mais palavras, o almirante deu início ao êxodo da sala de operações para o convés, onde todos fixaram os olhares na incansável ondulação da superfície do mar, de corações oprimidos pela expectativa. Apenas Pitt se deixou ficar.

     — A que profundidade se encontra ele? — perguntou ao operador do sonar.

     — Está a passar a marca dos dois mil e quatrocentos metros.

     — Woodson está informado— disse Curly. — Ele diz que o grande Titanic acaba de passar pelo Sappho 2 como um porco gordo.

     — Acuse a recepção e diga-lhe que suba à superfície. Faça comunicações semelhantes ao Sea Slug e ao Sappho 1.

     Como nada mais houvesse lá para fazer, saiu e subiu a escada para a ponte de bombordo, onde se juntou a Gunn e a Sandecker. Gunn agarrou no telefone da ponte.

     — Sonar, aqui fala da ponte.

     — Sonar.

     — Poderia fornecer a posição aproximada em que ele aparecem?

     — Ele sairá da água a cerca de quinhentos e cinqüenta metros pela alheta de bombordo.

     Houve uma pausa.

     — Hora? — repetiu Gunn.

     — Agora será cedo de mais para o senhor, comandante?

       Nesse preciso instante, uma imensa onda de bolhas se espalhou pelo mar e a popa do Titanic rompeu a superfície ao sol da tarde, como uma baleia gigante. Por uns momentos, parecia que ele não parava mais de subir... a popa continuando a apontar para o céu, até que a superfície da água alcançou a altura das caldeiras, ou seja, o sítio onde antes se encontrava a chaminé número dois.

     Era uma visão alarmante: o ar vindo do interior, passando através das válvulas de escape, lançava grandes torrentes de água em forma de chuveiro, envolvendo o grande navio em ondas luminosas de nuvens de vapor. Ficou suspenso em equilíbrio por algum tempo, como se tentasse agarrar-se ao azul-cristal do céu e então, vagarosamente a princípio, começou a ajeitar-se até que a quilha bateu na água com tal violência que ondas de três metros de altura foram lançadas contra os navios que ali se encontravam à volta. Depois, inclinou-se, parecendo não querer equilibrar-se.

     Mil espectadores prenderam a respiração quando ele ainda se virou mais para estibordo: trinta, quarenta, quarenta e cinco, cinqüenta graus, assim ficando por um tempo que pareceu uma eternidade. Todos estavam mais ou menos convencidos de que ele acabaria por se voltar completamente. Então, com uma lentidão de agonizante, o Titanic começou a lutar para se endireitar. Gradualmente, metro a metro, o casco acabou por atingir a inclinação de doze graus para estibordo... e assim permaneceu.

     Ninguém conseguia falar. Todos ali se achavam parados, meio atordoados, como que hipnotizados pelo que tinham visto, incapazes de qualquer ação para além de respirar. A face curtida de Sandecker estava pálida como fantasma, mesmo ali, debaixo daquele sol brilhante. Pitt foi o primeiro a recuperar a voz.

     — Ele está em cima — disse num murmúrio que mal se distinguia.

     — Ele está em cima — reconheceu Gunn suavemente.

     Todo aquele encanto foi então quebrado pelo ruído da hélice do helicóptero do Capricorn, no momento em que ele subiu e rumou direito ao castelo de proa, carregado de escombros do navio ressuscitado. O piloto manteve o engenho em posição horizontal, a poucos metros do convés e quase imediatamente podiam ser vistos dois pontinhos descendo junto a uma porta lateral. Giordino subiu pela escada de acesso e assim chegou ao pé da tampa da escotilha do. Felizmente o casco havia resistido. Com precaução ajeitou o corpo sobre o exterior escorregadio e experimentou o volante. As malaguetas estavam frias como o gelo, mas, mesmo assim, ele agarrou-as com firmeza e fez força para virar a roda. Porém, não conseguiu.

     — Deixe-se de preguiça e abra depressa essa geringonça! — trovejou o Dr. Bailey atrás dele. — Cada segundo é precioso!

     Giordino inspirou profundamente e tornou a fazer força com todos os músculos do seu corpo taurino. Apenas conseguiu mover alguns centímetros. Tentou de novo e, dessa vez, conseguiu meia volta; depois moveu-se com facilidade. Entretanto, o ar de dentro do submarino começou a sair com ruído e a pressão contra a gaxeta reduziu-se. Quando a roda deu a volta completa, Giordino abriu a escotilha e espreitou lá para baixo, para a escuridão. Um cheiro a coisa velha, a ranço, atingiu as narinas de Giordino. Ficou desanimado, ao notar, logo que os seus olhos se acostumaram àquela obscuridade,que a água se encontrava apenas a vinte centímetros da antepara superior.

     O Dr. Bailey afastou-o e fez passar o seu corpo imenso pela escotilha e pela escada abaixo. A água gelada foi um choque para a sua pele. Empurrou os degraus da escadinha e, afastando a água com as mãos, caminhou para a popa do submarino até que a sua mão encontrou uma coisa macia na semiescuridão. Era uma perna. Começou a apalpar acima do joelho até alcançar o busto. Retirou a mão pela água e, já fora dela, à altura do ombro, encontrou um rosto. Bailey aproximou-se, a dois ou três centímetros da face, na escuridão. Tentou tomar o pulso do homem, mas os seus dedos estavam amortecidos pelo contato da água gelada e nada percebeu que indicasse vida ou morte. Então, de repente, os lábios tremeram e uma voz segredou:

     — Vá embora... já disse... Hoje não vou trabalhar...

    

     A voz de Curly arranhou no alto-falante.

     — Sim, é da ponte — respondeu Gunn.

     — Pronto para entrar em contato com o helicóptero.

     — Sim, faça-o.

     Houve uma pausa, e então uma voz fez-se ouvir na ponte.

     — Capricorn, aqui é o tenente Sturgis.

     — Aqui é o comandante Gunn, tenente. Ouço-o muito claramente. Câmbio.

     — O doutor Bailey entrou no Deep Fathom. É favor aguardar.

     A breve espera deu a todos mais uma oportunidade de observarem o Titanic. Parecia em perfeitas condições de navegabilidade e completamente despido, sem os mastros e as chaminés. As chapas do costado achavam-se descoloridas e manchadas de ferrugem; mas a pintura branca e preta das obras mortas ainda brilhava. Ele apresentava-se em desordem, como uma feia e velha prostituta que vive sonhando com os dias melhores já passados e com a beleza há muito perdida. As vigias e outras aberturas estavam cobertas com a massa acinzentada do wetsteel, e os conveses de mogno, que um dia haviam apresentado um aspecto imaculado, estavam agora apodrecidos e em desordem, com quilômetros de cabos estragados. Os turcos, vazios dos barcos salva-vidas, pareciam, assim caídos, esperar ansiosamente o regresso dos seus pertences perdidos há longos anos.

     O efeito geral que a presença do transatlântico causava, era o de uma visão sobrenatural num quadro surrealista. Por outro lado, havia nele uma inexplicável serenidade que não podia ser descrita.

     — Capricorn, aqui fala Sturgis. Câmbio.

     — Aqui Gunn. Prossiga.

     — O senhor Giordino acaba de me fazer sinal: três dedos e depois o polegar voltado para cima. Estão vivos: Merker, Kiel e Chavez.

     Uma estranha calmaria se seguiu. Então Pitt caminhou para o painel de emergência e apertou o botão da sirena. Aquele som ensurdecedor espalhou-se pelo mar. Em seguida, soou o apito do Modoc e Pitt pôde ver o normalmente reservado Sandecker às gargalhadas e a atirar o boné ao ar. O Monterey Park juntou-se a eles, depois o Alhambra e por fim o Bomberger, até que o mar em torno do Titanic se transformou numa imensa cacofonia de sirenas e apitos. Para não se sentir à parte, também o Juneau se mexeu e se aliou ao ruído ensurdecedor com uma saudação ribombante do seu canhão de duzentos e três milímetros.

     Foi um momento como nenhum dos presentes jamais tornou a viver. E, pela primeira vez, desde quanto se podia lembrar Pitt sentiu as lágrimas aflorarem-lhe aos olhos.

 

     O sol do fim da tarde começava já a tocar os cimos das árvores, quando Gene Seagram se esparramou num banco do Parque do Este do Potomac e observou o revólver Colt "Número de série 204.783", pensou ele. "Estás na iminência de cumprir aquilo para que foste fabricado." Com ternura, correu os dedos pelo tambor, pelo cilindro pelo cabo. Suicídio era a solução ideal para pôr fim àquele estado de completa depressão. Admirou-se de não ter pensado nisso antes. Assim, não haveria mais crises de choro incontrolável durante a noite. Não mais aquela impressão de inutilidade ou aquela permanente sensação nas entranhas de que a sua vida tinha sido uma simulação completa.

     Os últimos meses da sua vida vieram-lhe à mente como que refletidos no espelho rachado e distorcido do seu desespero As duas coisas que ele mais queria no mundo eram a sua mulher e o Projeto Siciliano. Dana fora-se embora e o seu casamento terminara. Quanto ao Presidente dos Estados Unidos, havia tomado um risco que, quanto a Seagram, era desnecessário: o de fazer transpirar o seu precioso Projeto para os declarados inimigos da democracia.

     Sandecker havia lhe revelado a presença de dois agentes soviéticos a bordo da frota de salvamento do Titanic. E o fato da CIA haver recomendado ao almirante que não interferisse nas atividades dos agentes foi considerado por Seagram como mais um prego para o caixão do Projeto Siciliano. Um mecânico da NUMA já havia sido assassinado e, ainda naquela manhã, o relatório diário dos assessores de Sandecker para a Seção Meta relatavam o que se passava a respeito do submarino preso no fundo e na aparente impossibilidade de salvar a guarnição.

     Devia ser sabotagem. Sobre isso não tinha dúvidas. Peças que se não ajustavam a esse quebra-cabeça eram colocados nos lugares errados pela mente confusa de Seagram. O Projeto Siciliano estava morto e agora ele tomara a resolução de morrer com ele. Estava quase a decidi-lo quando uma sombra desceu sobre ele e uma voz se ouviu em tom amigável:

     — O dia está bonito de mais para se acabar com a vida, não acha?

     O policial Peter Jones fazia a sua ronda pela passagem junto à Estrada de Ohio, quando avistou o homem no banco do parque. A primeira vista, Jones pensou que Seagram fosse simplesmente um pobre diabo qualquer. Pensou em levá-lo para a esquadra, mas logo abandonou essa idéia como inútil: ele estaria de novo a andar pelas ruas, em liberdade, dentro de vinte e quatro horas. Jones achou então que não valia a pena o esforço de preencher um interminável formulário. Mas alguma coisa parecia indicar não se tratar, afinal, dum simples pobre diabo. Jones caminhou com naturalidade, de forma despercebida, circundando o frondoso álamo e retrocedeu ligeiramente, de modo a ficar por trás do banco. Assim, de perto, confirmou a sua suspeita.

     Embora se pudesse perceber, pela inclinação dos ombros, pelos olhos avermelhados, que nada vislumbravam, e pelo ar descuidado os sinais dum alcoólico, algo havia em contrário. Os sapatos estavam bem polidos, a roupa cara, achava-se bem passada, além de que aquele homem se apresentava bem barbeado e de unhas tratadas. Mas havia também um revólver...

       Seagram, vagarosamente, levantou os olhos e viu o rosto negro do policial. Mas em lugar de encontrar um olhar frio e ao mesmo tempo na defensiva, encontrou-se a observar uma fisionomia de real compaixão.

     — Você não estará a tirar conclusões precipitadas? — perguntou Seagram.

     — Homem, se alguma vez vi um caso de depressão suicida, esse é o seu. — Jones fez um gesto de quem se vai sentar. — Posso partilhar o banco consigo?

     — É público — respondeu Seagram, indiferente.

     Jones sentou-se cuidadosamente, à distância de um braço de Seagram e, languidamente, estendeu as pernas e recostou-se, mantendo as mãos à vista e longe do revólver de serviço.

     — Eu, por mim, teria antes escolhido novembro — disse suavemente. — Abril é quando as flores se abrem e as árvores vicejam, ao passo que, em novembro, o tempo é horrível. O vento faz-nos gelar até aos ossos e o céu está sempre nebuloso e triste. Não há dúvida, esse seria o mês que eu escolheria para acabar com a vida.

     Seagram segurou firme o Colt, olhando para Jones com apreensão, com receio de que ele fizesse algum gesto.

     — Pelo que vejo, você considera-se um especialista em suicídios, não?

     — Realmente, não sou — disse Jones. — Na verdade, você é o primeiro indivíduo que eu encontro no ato de praticá-lo. A maior parte das vezes só chego ao local muito tempo depois.

Casos de afogamento são os piores: corpos inchados e enegrecidos, olhos murchos dentro das órbitas, meio comidos pelos peixes... Há também os que se atiram. Vi um dia um sujeito atirar-se de cima de um prédio de trinta andares. Caiu de pé. As canelas saíram-lhe pelos ombros...

     — Não preciso disso — rosnou Seagram. — Não preciso de um agente da polícia que me encha de histórias de horror.

     Por momentos, o ódio apareceu nos olhos de Jones, mas rapidamente desapareceu.

     — Deu por paus e por pedras... — disse ele. Puxou de um lenço e negligentemente enxugou o suor da parte de dentro do boné. — Diga-me, senhor...

     — Seagram. Você pode saber... Isso não fará diferença depois.

     — Diga-me, senhor Seagram, de que modo vai fazer a coisa? Uma bala na têmpora? Na testa ou dentro da boca?

     — Que importa isso se o resultado é o mesmo?

     — Não necessariamente — disse Jones, em tom de conversa. — Não recomendo a têmpora ou a testa, pelo menos com um revólver de pequeno calibre. Deixa-me ver o que tem o senhor aí? Sim, parece um trinta e oito. Fará um grande estrago, é certo, mas duvido que ele o liquide de vez. Conheci um homem que se baleou na têmpora com um quarenta e cinco. Rebentou o cérebro e fez saltar um olho, mas não morreu. Viveu durante anos como se fosse um nabo. Você pode imaginá-lo deitado, sujando-se todo, continuamente, sobre os lençóis, e implorando que acabassem com o seu sofrimento? Claro, se eu fosse a si, meteria o cano na boca e arrancava a parte posterior do crânio. É o mais seguro.

     — Se você não se cala — disse Seagram, apontando o Colt para Jones — eu também o matarei.

     — Matar-me? — Jones sorriu. — Você não tem colhões para isso. Não é um assassino, Seagram. Vê-se no seu rosto.

     — Todo o homem é capaz de cometer um assassínio.

     — Concordo. Realmente, o assassínio não é uma coisa do outro mundo. Qualquer um pode cometê-lo. Mas só um psicopata ignora as conseqüências.

     —Agora, até se está a parecer com um filósofo...

     — Nós, policiais negros e tolos, gostamos às vezes de zombar dos brancos com os nossos hábitos impertinentes.

     — Peço desculpa por ter dito aquelas palavras.

     Jones encolheu os ombros.

     — Pensa que só o senhor tem problemas, senhor Seagram? Como eu adoraria, ter os seus problemas! Olhe para si mesmo: o senhor é branco, obviamente um homem de meios, provavelmente tem uma família e uma boa posição na vida. Que tal trocar de lugar comigo, mudar de pele, ser um policial negro, com seis crianças e uma casa de madeira construída há noventa anos e hipotecada durante trinta? Que diz a isto, Seagram? E agora, diga-me: por que é a vida difícil para si?

     — Você nunca poderia entender...

       — O que há para entender? Nada debaixo do sol é razão suficiente para a gente se matar. Claro que a sua mulher vai chorar um pouco, a princípio, mas, depois, ela dará as suas roupas para o Exército de Salvação e seis meses mais tarde já ela estará na cama com outro homem, ao passo que você nada mais será do que uma fotografia num álbum de recordações. Olhe à sua volta. Que lindo dia de primavera! Diabos, o que você está a perder. Não viu o Presidente na TV?

     — O Presidente?

     — Ele apareceu às quatro horas e falou a respeito das coisas extraordinárias que estão a acontecer. Dentro de três anos teremos vôos pilotados para Marte; tem havido um grande avanço no controle do cancro e também mostrou as fotografias de um velho navio que o Governo conseguiu içar do fundo do mar, a quase quatro mil metros de profundidade.

     — Que foi que você disse? Um navio que salvaram? Mas qual navio?

     — Não me lembro.

       —O Titanic? — perguntou Seagram, num murmúrio. — Teria sido o Titanic?

     — Sim, era esse o nome. Ele rebentou de encontro a um iceberg há muitos anos e afundou-se. Por falar nisso, lembro-me de ter visto um filme, na televisão, acerca do Titanic, com Bárbara Stanwyck e Clifton Webb...

     Jones interrompeu-se ao ver o olhar de incredulidade, depois de choque, e depois, ainda, de viva confusão no rosto de Seagram. Seagram entregou o revólver ao espantado Jones e recostou-se no banco. Trinta dias! Trinta dias era tudo do que precisaria depois que dispusesse do bizanio, para testar o sistema do Projeto Siciliano e dispô-lo em condições de funcionamento.

Se aquele policial no seu giro não houvesse se intrometido naquele preciso instante, nunca mais Seagram haveria de testar nada neste mundo!

 

     — Suponho que você pesou as terríveis conseqüências das suas acusações, não é verdade?

     Marganin olhou o pequeno homem de fala doce e frios olhos azuis. O almirante Boris Sloyuk lembrava mais o padeiro da esquina do que o hábil chefe da segunda maior rede do Serviço Secreto da União Soviética.

     — Compreendo perfeitamente, camarada Almirante, que estou a pôr em jogo a minha carreira e a arriscar-me a uma sentença de prisão, mas eu coloco o meu dever para com a pátria acima das minhas ambições pessoais.

   — Isso é muito nobre da sua parte, tenente — disse Sloyuk de maneira expressiva. — As acusações levantadas por você são extremamente graves; isto, para dizer o mínimo. Entretanto você não apresentou provas concretas de que Prevlov seja um traidor para com o nosso país, e sem isso não posso condenar um homem apenas baseado na palavra de um seu subordinado.

     Marganin assentiu. Ele havia planejado cuidadosamente o seu encontro com o almirante. Tinha sido muito arriscado, na verdade, passar por cima de Prevlov e de outros escalões, para chegar a Sloyuk, mas a armadilha havia sido preparada com exatidão e o tempo era escasso.

     Calmamente, meteu a mão no bolso e retirou um sobrescrito, que passou a Sloyuk por cima da escrivaninha.

       — Aqui estão os registros das transações da conta número 246 AZF sete-seis-zero-nove do Banco de Lausana, na Suíça. Como poderá verificar, houve grandes depósitos de forma regular de um certo V. Volper, um mal elaborado anagrama do nome Prevlov.

     Sloyuk estudou os registros do banco e depois lançou a Marganin um olhar cético.

     — Deve perdoar a minha natureza desconfiada, tenente Marganin, mas tudo isto tem um sabor a coisa preparada.

     Marganin passou-lhe um outro sobrescrito.

     — Este contém uma comunicação secreta do embaixador americano, aqui em Moscou, para o Departamento da Defesa em Washington. Diz ele que o comandante André Prevlov tem sido uma fonte vital dos segredos navais soviéticos. O embaixador também incluiu os planos para o desdobramento da nossa frota no caso de um primeiro ataque nuclear contra os Estados Unidos.

     Marganin sentiu a satisfação crescer dentro dele quando a face normalmente impassível do almirante se enrugou, demonstrando incerteza.

     — Penso que o quadro está claro; aqui nada foi forjado. Um oficial subalterno na minha posição não poderia obter essas ordens tão importantes. O comandante Prevlov, por outro lado, goza da confiança do Comitê de Estratégia Naval Soviética.

     As barreiras haviam sido transpostas e a estrada estava aberta. Sloyuk não podia deixar de concordar. Meneou a cabeça, perplexo.

     — O filho de um grande líder do Partido que trai a sua pátria por dinheiro!... Acho tal coisa difícil de aceitar.

     — Se se considerar extravagante o estilo de vida do comandante Prevlov, não é difícil de compreender como ele deve ter grande necessidade de dinheiro.

     — Conheço bem os gostos do comandante Prevlov.

     — Sabe também, por acaso, que ele tem um caso com uma mulher que, segundo consta, é casada com o principal assessor do embaixador americano?

     Sloyuk pareceu aborrecido.

     — Que sabe a respeito disso? — perguntou com cuidado. — Prevlov deu-me a entender que ele a usava para obter segredos do marido, na embaixada.

     — Não é nada disso — disse Marganin. — Na realidade, ela é divorciada e uma agente da Agência Central de Informações. — Marganin fez uma pausa, mas logo voltou ao assunto. — Os únicos segredos que passam pelas mãos dela são aqueles fornecidos pelo comandante Prevlov. Ele é a sua fonte de informação.

     Sloyuk manteve-se em silêncio por um curto espaço de tempo. Então, imobilizou Marganin com o seu olhar penetrante.

     — Como chegaram às suas mãos todas essas informações?

     — Prefiro não divulgar a identidade do meu informador, camarada almirante. Não é por

falta de respeito, mas criei e desenvolvi a sua confiança durante quase dois anos e fiz-lhe um juramento solene de que o seu nome e a sua posição junto do Governo americano só seriam do meu conhecimento.

     Sloyuk meneou a cabeça e aceitou o motivo.

     — Como você deve compreender, isso coloca-nos numa grave situação.

     — O bizanio?

     — Exatamente — disse Sloyuk conscientemente. —Se Prevlov divulgou os nossos planos aos americanos, isso pode ser desastroso. Uma vez o bizanio nas mãos deles e o Projeto Siciliano em funcionamento, a superioridade das forças estará do seu lado, pelo menos durante os próximos dez anos.

       — Talvez o comandante Prevlov não tenha ainda entregue o nosso plano — disse Marganin. — Talvez ele esteja à espera do içamento do Titanic!

     — Ele já foi içado — disse Sloyuk. — Não há ainda três horas que o comandante Parotkin, do Mikhail Kurkov, comunicou que o Titanic se encontra à superfície e pronto para ser rebocado.

     Marganin olhou-o surpreendido.

     — Mas os nossos agentes Prata e Ouro asseguraram-nos que o içamento não seria tentado antes das próximas setenta e duas horas.

     Sloyuk encolheu os ombros.

     — Os americanos estão sempre com pressa.

     — Então devemos cancelar o plano do comandante Prevlov a fim de nos apossarmos do bizanio., O plano Prevlov...

     Marganin teve de conter um sorriso quando disse a expressão. A imensa vaidade do comandante seria a sua perdição. De agora em diante, pensou Marganin, o drama teria de ser conduzido muito mais cautelosamente:

     — É tarde de mais para mudarmos a nossa estratégia — disse Sloyuk vagarosamente. —Homens e navios estão já em posição. Vamos seguir para diante.

     — E a respeito do comandante Prevlov? O senhor, certamente, vai mandá-lo prender.

     Sloyuk olhou friamente para Marganin.

     — Não, tenente, ele continuará no seu posto.

     — Mas não se pode confiar nele — disse Marganin, desesperado — O senhor viu as provas...

     — Nada vi que não pudesse ter sido forjado — disse, bruscamente, Sloyuk. — A sua encomenda vem muito bem embrulhadinha, com um laço muito bem feito, para que possa ser aceita sem mais aquelas. O que eu pude observar foi um jovem ambicioso que se prepara para apunhalar o seu superior pelas costas, para mais rapidamente subir de posto nas próximas promoções. Os expurgos já se fizeram antes de você nascer... Fez um jogo muito perigoso... e perdeu.

     — Eu asseguro-lhe. . .

     — Basta! — O tom de Sloyuk era duro como o granito. — Estou tranqüilo com o conhecimento que tenho de que o bizanio estará em segurança a bordo do navio soviético o mais tardar dentro de três dias. Um acontecimento que virá provar a lealdade do comandante Prevlov e a sua culpa.

 

     O Titanic permanecia imóvel e morto contra a interminável arremetida das ondas enquanto estas envolviam a sua imensa massa e se uniam depois, outra vez, para se dirigirem a terras distantes e ainda desconhecidas. Ele ali estava, deixando-se arrastar pela corrente; o convés encharcado secando ao sol da tarde. Era um navio morto que tinha regressado ao mundo dos vivos. Morto, mas não vazio. A torre da agulha sobre o salão da primeira classe havia sido rapidamente retirada para ali receber o helicóptero e logo começaram a chegar homens e equipamentos para a árdua tarefa de corrigir a sua inclinação e prepará-lo para a grande viagem de reboque até ao porto de Nova Iorque.

     Logo que os homens da guarnição do Deep Fathom foram levados, semimortos, pelo ar, para o Capricorn, Giordino ficou com o Titanic completamente por sua conta. O fato dele ser o primeiro homem a pisar o convés do navio passados setenta e seis anos nunca lhe passara pela cabeça e, embora fosse dia claro, evitou fazer explorações. De todas as vezes que ele olhava os 269 metros de comprimento do navio, tinha a impressão de estar a olhar para uma úmida e viscosa sepultura. Nervosamente, acendeu um cigarro, sentou-se sobre um cabrestante molhado e aguardou a invasão que não devia tardar.

     Pitt não experimentou essas sensações de desconforto quando chegou a bordo, mas antes, um sentimento de reverência. Dirigiu-se para a ponte e ali ficou só, absorvido com a lembrança dos últimos momentos do navio, por ocasião do seu afundamento. Só Deus sabia, havia ele pensado mais de cem vezes, como teria sido aquela noite de domingo, há quase oito décadas, quando o comandante Edward J. Smith se encontrava ali mesmo onde ele se achava agora, e verificava que o seu grande comando ia, vagarosamente, irreversivelmente, mergulhando debaixo dos seus pés. Que teria ele pensado, ao considerar que os barcos salva-vidas apenas podiam suportar 1180 pessoas, sabendo que o navio conduzia, na sua viagem inaugural, cerca de 2200 passageiros, além da guarnição? Depois, ideou também o que teria pensado o velho e venerável capitão se pudesse imaginar que os conveses do seu navio seriam percorridos, um dia, no futuro, por homens que ainda não tinham nascido no seu tempo.

     Depois de um intervalo que lhe pareceu ter durado horas, mas que na realidade não havia passado de um ou dois minutos, Pitt interrompeu os seus sonhos e caminhou pelo convés de manobra, onde outrora se encontravam os barcos salva-vidas. Passou pela porta selada da cabina de rádio, de onde o primeiro-operador John G. Phillips enviou o primeiro SOS da história; pelos turcos vazios do barco salva-vidas número 6, no qual a senhora J. J. Brown, de Denver, se tornou famosa como a "Insubmersível Molly Brown"; pela entrada para a grande escadaria, onde Graham Farley e a banda do navio tocaram até ao último momento; pelo sítio onde o milionário Benjamin Guggenheim e o seu secretário permaneceram calmamente esperando a morte, vestidos com as suas melhores roupas de gala, de modo a afundarem-se como perfeitos cavalheiros.

     Levou quase um quarto de hora para chegar à cabina do elevador no fim do convés de manobra. Passou por cima da amurada e desceu para o tombadilho, embaixo. Aqui encontrou o mastro da ré projetando-se do tabuado, rebentando como se fosse um tronco abandonado e em cujo topo, a dois metros e meio de altura, se podiam ainda ver as marcas deixadas pelo maçarico submarino do Sea Slug ao cortá-lo.

     Pitt levou a mão a um bolso interior e dele retirou o embrulho que lhe fora dado pelo comodoro Bigalow e cuidadosamente desatou-o. Havia se esquecido de trazer uma guia, mas mesmo assim conseguiu o que queria, usando o barbante do embrulho. ao terminar, afastou-se do mastro, que outrora fora alto, e observou o seu trabalho. Ela ali estava, velha e desbotada, a flâmula vermelha da White Star Line, que Bigalow um dia salvou do esquecimento, flutuando de novo, orgulhosa, sobre o insubmersível Titanic.

 

     O sol da manhã começava a despontar no horizonte, quando Sandecker saltou do helicóptero e passou por baixo da hélice segurando o boné com a mão. Luzes portáteis brilhavam ainda na superestrutura do destroço e caixas com maquinismos encontravam-se espalhadas sobre o convés, em grupos. Pitt e os seus homens haviam trabalhado toda a noite, lutando como loucos, a fim de organizar todo o processamento das etapas seguintes. Rudi Gunn saudou-o debaixo de um ventilador semidestruído pela ferrugem.

     — Seja bem-vindo a bordo do Titanic, almirante — disse Gunn, sorrindo.

     Parecia que todos estavam sorridentes naquela manhã, na frota de salvamento.

     — Qual a situação?

     — De momento, sem alteração. Logo que as bombas estejam em condições de funcionar, procuraremos corrigir a inclinação.

     — Onde está Pitt?

     — No ginásio.

     Sandecker, que já dera alguns passos, voltou-se e fitou Gunn.

     — No ginásio?

     Gunn confirmou e apontou para uma abertura numa antepara, que pela sua irregularidade logo se podia depreender ter sido feita com um maçarico.

     — Por aqui.

     O salão media quatro metros e meio de largura por doze de comprimento e estava ocupado com uma dúzia de homens absorvidos nas suas tarefas especificas, parecendo desinteressados da estranha variedade de mecanismos antigos e enferrujados sobre o piso, que já fora de um linóleo colorido: engraçadas bicicletas fixas ligadas a um grande relógio circular preso na parede; máquinas de remar enfeitadas; diversos cavalos com as suas selas de couro estragadas; e o que Sandecker podia jurar tratar-se dum camelo mecânico e que era exatamente um camelo, como descobriu depois.

     A equipe de salvamento já havia instalado no salão um aparelho transmissor e um receptor de rádio; três geradores elétricos portáteis, a gás; uma pequena floresta de luzes em tripés; uma pequena cozinha compacta tipo Rube Goldberg, um amontoado de mesas e escrivaninhas articuláveis feitas de tubos de alumínio e tampos de vime e ainda diversas camas desmontáveis.

     Pitt, Drummer e Spencer encontravam-se juntos quando Sandecker caminhou para eles. Estudavam um grande desenho dum corte do navio. Pitt levantou os olhos e acenou com a mão.

     — Seja bem-vindo ao grande Titanic, almirante — disse ele — Como vão Merker, Kiel e Chavez?

     — Encontram-se em segurança, repousando nos seus leitos na enfermaria do Capricorn—respondeu Sandecker. — Estão noventa por cento recuperados e implorando ao Dr. Bailey que os deixe voltar ao trabalho. Um pedido que, devo acrescentar, caiu em ouvidos moucos. Bailey insiste em que eles fiquem em observação pelo menos por um período de vinte e quatro horas, Não adianta insistir com um homem daquela estatura e com tanta determinação. — O almirante fez uma pausa para cheirar o ar e então torceu o nariz. — Meu Deus, que cheiro é este?

     — Podridão — respondeu Drummer. — Enche cada canto, cada buraco. Não se pode escapar dele. E, dentro de pouco tempo. os seres marinhos que foram trazidos lá de baixo e que estarão mortos, aumentarão o mau cheiro. Sandecker fez um gesto abrangendo todo o salão.

     — Um local confortável, aquele que você arranjou aqui... — disse ele. — Mas por que motivo estabelecer as operações aqui em vez de o fazer na ponte?

     — A quebra da tradição foi apenas por motivos de ordem prática — respondeu Pitt. — A ponte não desempenha uma função útil num navio inanimado. O ginásio, por outro lado, está

situado no meio do navio e oferece igual acesso tanto à proa como à popa. Fica, também, ao lado do nosso improvisado campo de aterragem do helicóptero, sobre a cobertura da sala de estar da primeira classe. Quanto mais próximos estivermos dos nossos suprimentos tanto mais eficazmente poderemos agir.

     — Era escusada esta pergunta — disse Sandecker pesadamente. — Eu já devia saber que você não escolheria este museu de monstruosidades mecânicas com o fim de lançar um programa de cultura física. Qualquer coisa numa pilha de destroços molhados junto á parede da vante do ginásio chamou a atenção do almirante, que para lá se dirigiu. Parou e olhou com certa repulsa para os restos mortais de um passageiro ou membro da tripulação do Titanic.

     — Fico a imaginar quem pode ter sido este pobre diabo.

     — Nunca o saberemos, provavelmente — disse Pitt. — Qualquer registro dentário de 1912 já foi, sem dúvida, destruído há muito tempo.

     Sandecker inclinou-se e examinou a seção pélvica dos ossos.

     — Meu Deus, era uma mulher!

     Uma das passageiras da primeira classe que teria preferido permanecer a bordo ou alguma das mulheres da terceira classe que chegou ao convés de manobras depois que o último barco salva-vidas foi arriado.

     — Encontrou mais algum corpo?

     — Temos estado demasiadamente ocupados para que pudéssemos ter feito uma exploração mais completa — disse Pitt. — Mas um dos homens de Spencer informou ter visto outro esqueleto apertado contra a lareira da sala de estar.

     Sandecker apontou para uma porta aberta.

     — O que há por ali?

     — Oh! Vai dar a uma grande escadaria.

     — Vamos dar uma espreitadela...

     Caminharam para o patamar acima do vestíbulo do convés A e olharam para baixo. Diversas cadeiras e sofás apodrecidos estavam espalhados de qualquer maneira pelos degraus para onde deviam ter rolado quando o navio mergulhou inclinado para a proa. O corrimão, nas suas linhas graciosas, encontrava-se ainda em bom estado e lá estava o relógio de bronze, cujos ponteiros endurecidos indicavam 2:21 horas. Desceram as escadas cobertas de lodo e penetraram numa das passagens que conduziam aos camarotes. Sem o auxílio da luz exterior, a cena era fantástica. Cada camarote achava-se atulhado com o revestimento de madeira caído das anteparas de mistura com o mobiliário, tudo virado e podre. Estava demasiado escuro para poderem observar os pormenores. ao fim de uns dez minutos encontraram o caminho bloqueado por um monte de escombros pelo que tiveram de voltar para trás, para o ginásio. Ao passar pela porta, o homem curvado sobre o rádio voltou-se para eles, Era Al Giordino.

     — Eu estava a pensar onde é que tinham ido. O pessoal da Uranus Oil quer saber notícias do submarino deles.

     — Diga-lhes que poderão reaver o Depp Fathom, que se encontra no castelo de proa do Titanic, logo que o tenhamos em doca seca, em Nova Iorque — disse Pitt.

     Giordino fez que sim e voltou-se para o rádio.

     — Só mesmo esses comerciantes nos viriam importunar, por causa da sua preciosa propriedade, num momento tão empolgante — disse Sandecker, de olhos brilhantes. — E, por falar em momentos empolgantes, gostaria algum dos cavalheiros presentes de celebrar este com uma gota de álcool?

     — O senhor disse álcool? — perguntou Giordino na expectativa.

     Sandecker retirou de dentro do casaco duas garrafas.

     — Que nunca se diga que James Sandecker deixou algum dia de cuidar dos interesses da sua guarnição...

     — Cuidado com presentes trazidos por almirantes... — murmurou Giordino.

     Sandecker lançou-lhe um olhar cansado.

     — Que pena que tenham acabado com a chibata!

     — E com a passagem por debaixo da quilha... — acrescentou Drummer.

     — Prometo que me não meterei mais com o nosso líder, desde que ele, me mantenha, naturalmente, bem bebido — disse Giordino.

     — É um preço baixo — suspirou Sandecker.— Escolham o veneno, cavalheiros. Têm aqui uma garrafa do escocês Stutt Sark, para os sofisticados moradores das cidades e outra de Jack Daniel's, para os rapazes das fazendas. Passem os copos e sejam meus convidados.

     Giordino levou bem uns dez segundos para encontrar os copos de plástico na cozinha elétrica, digna de Mickey Mouse. Quando a bebida foi servida, Sandecker ergueu o seu copo.

     — Cavalheiros, bebamos ao Titanic. Possa ele nunca mais permanecer em paz.

     — Ao Titanic!

     —Viva! Viva!

     Sandecker deixou-se cair numa cadeira desmontável, bebericou o seu scotch e, preguiçosamente, começou a matutar qual daqueles homens, naquela úmida sala, constaria das folhas de pagamento do Governo soviético.

 

     O secretário-geral soviético Georgi Antonov chupou o seu cachimbo com movimentos curtos e violentos e fitou Prevlov com olhar pensativo.

     — Devo-lhe dizer, comandante, que tenho as minhas dúvidas sobre esse empreendimento.

     — Consideramos cuidadosamente todas as possibilidades e esta foi a única que nos foi deixada em aberto — disse Prevlov.

     — Muito perigoso. Receio bem que os americanos se não iram conformar com o roubo do seu precioso bizanio.

     — Uma vez que ele se encontre em nossas mãos, camarada secretário, nenhuma diferença fará que eles gritem mais ou menos alto. Nessa altura, já nós lhes teremos fechado a porta na cara.

     Antonov abria e fechava as mãos. Um grande retrato de Lenine estava pendurado na parede por detrás dele.

     — Não deverá haver qualquer repercussão internacional. Preciso dar ao mundo a ilusão de que estamos dentro dos nossos direitos.

     — E desta vez o Presidente americano não poderá recorrer. O Direito Internacional estará do nosso lado.

     — Significará o fim daquilo a que chamavam distensão — disse Antonov, de modo carregado.

     — Significará, também, o início do fim dos Estados Unidos como superpotência.

     — Uma conjuntura agradável, comandante. Gosto disso. — O cachimbo havia se apagado e ele tornou a acendê-lo, enchendo a sala de um ar doce e aromático. — Entretanto, se você falhar, os americanos ficarão em posição de dizerem a mesma coisa de nós.

     — Não falharemos.

     — Palavras — disse Antonov. — Um bom advogado prevê a acusação do promotor tão bem como a sua defesa. Que medidas tomou para o caso de um desastre?

     — O bizanio será destruído — disse Prevlov. — Se nós não o pudermos possuir, também os americanos o não terão

     — Isso, inclui, igualmente, o Titanic?

     — É necessário. Ao destruir o Titanic, estaremos também destruindo o bizanio. E a tarefa será executada de tal forma que outro içamento estará fora de causa.

     Prevlov ficou silencioso, mas Antonov estava satisfeito, dera já a sua aprovação para a missão. Estudou Prevlov atentamente. O capitão parecia um homem que não estava habituado ao fracasso. Cada gesto seu, cada movimento, parecia moderadamente planejado com antecedência; mesmo as suas frases davam a impressão de terem sido previamente estudadas. Sim, Antonov sentia-se satisfeito.

     — Quando partirá para o Atlântico Norte? — perguntou o secretário-geral.

     — Com a sua permissão, camarada secretário, partirá imediatamente um bombardeiro de reconhecimento, com grande raio de ação, que já aguarda no Aeroporto Gorki. É imperativo que eu esteja na ponte do Mikhail Kurkov dentro de doze horas. A sorte enviou-nos um ciclone e eu pretendo aproveitar toda a sua força como uma diversão para o que parecerá ser a nossa, perfeitamente legal, apreensão do Titanic.

     — Então não vou prendê-lo por mais tempo. — Antonov ficou de pé e estreitou Prevlov com um abraço à urso. — As esperanças da União Soviética vão consigo, comandante Prevlov. Espero que nos não desaponte.

 

     O dia começou mal para Pitt, logo que ele se afastou da atividade de salvamento e caminhou para baixo, para o compartimento de carga número 1, no convés G. O que avistou no compartimento sem iluminação foi uma completa devastação. O cofre contendo o bizanio estava enterrado por baixo da antepara da vante, que havia sido rebentada. Ficou por ali durante bastante tempo, observando a avalancha de aço quebrado e retorcido, que impossibilitava qualquer tentativa fácil de chegar ao precioso elemento. Foi então que ele sentiu que havia alguém atrás de si.

     — Parece que nos deram péssimas cartas — disse Sandecker.

     Pitt assentiu.

     — Pelo menos por agora.

     — Levaríamos semanas até que o nosso equipamento portátil pudesse abrir caminho através desta floresta de aço.

     — Não haverá outro jeito?

     — Um guindaste gigante Dopplemann poderia retirar os escombros em poucas horas.

     — Quer então dizer que não temos outra escolha senão aguardar, pacientemente, que tenhamos as facilidades de uma doca seca em Nova Iorque?

     Pitt olhou na meia-luz e Sandecker pôde ver a expressão de frustração que marcava as suas rudes feições. Não havia necessidade de uma resposta.

     — A remoção do bizanio para o Capricorn ter-nos-ia sido muito favorável — disse Pitt. —Ter-nos-ia poupado a muita preocupação.

     — Talvez pudéssemos fingir uma transferência.

     — Os nossos amigos que trabalham para os soviéticos haveriam de perceber tudo antes que a primeira caixa passasse pela borda.

     — Partindo da hipótese de que eles se encontram a bordo do Titanic.

     — Eu o saberei amanhã a esta hora.

       — osso então deduzir que você tem uma noção de quem eles são?

     — m deles já eu descortinei: o que assassinou Henry Munk. O outro é puramente uma suspeita com bases.

     — u estaria interessado em saber quem é que você já identificou — disse Sandecker.

     — A minha prova jamais convenceria um promotor federal e muito menos um júri. Dê-me mais algumas horas, almirante e eu lhos entregarei nas mãos, a ambos: Prata e Ouro, ou que outros estúpidos nomes de código eles possam ter.

     Sandecker fitou-o e então disse:

     — Você está assim tão seguro?

     — Estou.

     Sandecker passou a mão cansada pelo rosto e apertou os lábios. Olhou para as toneladas de aço que cobriam o cofre.

         — Deixo isso a seu cargo, Dirk. Estarei com você até ao fim. Realmente não tenho muita escolha.

     Pitt tinha outras preocupações também. Os dois rebocadores da Armada que o almirante Kemper prometera enviar ainda demorariam algumas horas; e, pela manhã, sem qualquer razão aparente, o Titanic resolvera adornar, ainda mais, para estibordo, aumentando assim o ângulo para dezessete graus. O navio estava demasiado carregado de água; a crista das ondas varria as vigias ao longo do convés, apenas três metros abaixo dos embornais. E embora Spencer e o seu pessoal das bombas tivessem conseguido descer mangueiras de sucção através das escotilhas de carga até diversos compartimentos, eles não puderam abrir caminho pelo meio dos destroços que bloqueavam as escadas entre os diversos conveses, para alcançar a sala das máquinas e a casa das caldeiras, onde ainda se encontrava, remoto e inacessível, o maior volume de água.

     Drummer estava sentado no ginásio, imundo e exausto, depois de ter trabalhado ininterruptamente. Bebia uma caneca de chocolate.

     — Após oitenta anos de submersão e apodrecimento — disse ele — a madeira do revestimento, nas escadas, caiu e atravancou mais do que um pátio de material de sucata da Geórgia.

     Pitt continuava sentado no mesmo lugar onde tinha passado a tarde, inclinado sobre a mesa de desenho, próxima do transmissor de rádio. Olhava com olhos cansados para um corte transversal da superestrutura do Titanic.

     — Não nos poderíamos esgueirar pela escada principal ou pelo poço do elevador?

     — A escada está cheia de toneladas de destroços logo abaixo do convés — declarou Spencer.

     — E não há forma de se poder penetrar no poço do elevador — acrescentou Gunn. —Está entulhado com uma miscelânea de cabos corroídos e maquinismos quebrados. E como se isso tudo não fosse ainda bastante, todas as partes estanques dos compartimentos inferiores estão emperradas e fechadas.

     — Elas foram fechadas automaticamente pelo primeiro - oficial do navio, imediatamente após o choque com o iceberg — disse Pitt.

     Nesse momento, um homem de aspecto taurino, coberto de pó e sujidade dos pés à cabeça, entrou aos tropeções no ginásio. Pitt levantou os olhos e sorriu ligeiramente.

     — É você, Al?

     Giordino caminhou para um dos leitos e atirou-se para cima dele como um saco de cimento molhado.

     — Peço que ninguém acenda um fósforo perto de mim — murmurou ele. — Sou jovem demais para morrer numa chama de

glória.

     — Conseguiu alguma coisa? — perguntou Sandecker.

     — Cheguei até o campo de squash no convés F. Meu Deus! Como lá está escuro!... Caí de uma escada. Estava tudo inundado de óleo, que se infiltrou na casa das máquinas. Estaquei ali. Não havia forma de descer mais.

     — Uma cobra poderia passar para a casa das máquinas — disse Drummer — mas um homem de forma alguma. A menos que abra caminho à dinamite, durante uma semana, acompanhado de um grupo de trabalho para retirar os escombros.

     — Tem de haver uma maneira — disse Sandecker. — Em qualquer sítio, lá em baixo, a água continua a entrar. Se até amanhã a esta hora não tivermos conseguido instalar um sistema de esgotamento adequado, o navio emborcará e afundar-se-á de novo. A idéia de perderem o Titanic depois de o terem posto a flutuar perfeitamente sobre um mar plano, nunca lhes havia passado pela cabeça antes, mas agora todos os que estavam dentro do ginásio começavam a sentir uma ansiedade que se refletia lá bem no fundo do estômago. O navio teria ainda de ser rebocado, e Nova Iorque ficava a mil e duzentas milhas de distância.

     Pitt continuou sentado, examinando os desenhos do navio. Eram terrivelmente inadequados. Não havia qualquer conjunto de desenhos técnicos pormenorizados do Titanic ou do seu irmão gêmeo, o Olympic. Tinham sido destruídos, juntamente com os arquivos cheios de fotografias e dados relativos à sua construção, quando os estaleiros da Harland Wolff, em Belfast, foram arrasados pelos bombardeiros alemães durante a Segunda Guerra Mundial.

     — Se ao menos ele não fosse tão grande!... — murmurou Drummer. — A casa das caldeiras fica a quase trinta metros abaixo do convés de manobra.

     — Podia igualmente ficar a trinta quilômetros — disse Spencer.

     Levantou os olhos quando Woodson emergiu da entrada da grande escadaria.

     — Ah, o grande cara-de-pau está conosco? O que tem andado a fazer o fotógrafo oficial?

     Woodson pegou a máquina fotográfica que trazia pendurada em volta do pescoço e colocou-a sobre a mesa.

     — Tenho andado por aí a tirar umas fotos para a posteridade — disse ele, com a sua habitual cara inexpressiva. — Nunca se sabe: pode ser que eu venha a escrever um dia algum livro e, já agora, quero que fiquem sabendo que as fotos com que o irei ilustrar são minhas.

     — Naturalmente — disse Spencer. — Não encontrou por acaso alguma escada desobstruída para se descer até à casa das caldeiras?

     Ele meneou a cabeça.

     — Tirei umas fotografias da sala de estar da primeira classe. É espantoso como está bem conservada. Com exceção dos naturais estragos causados pelas águas nos tapetes e nas mobílias, poderia passar por uma sala de visitas do Palácio de Versalhes. — Começou a mudar os filmes. — Haveria possibilidade de se tomar de empréstimo o helicóptero? É que eu gostaria de dar uma vista de olhos, do ar, ao nosso troféu, antes que os rebocadores cheguem.

     Giordino apoiou-se sobre um cotovelo. — É melhor tratar de gastar os filmes enquanto

puder. O nosso troféu pode já estar de novo no fundo amanhã de manhã.

     Woodson franziu os sobrolhos.

     — Por que, ele está a afundar-se?

     — Bem, penso que não.

     Todos os olhares se voltaram para o homem que havia pronunciado estas palavras. Pitt apresentava-se sorridente. Sorria com a confiança de um homem que acabasse de ser eleito presidente da General Motors.

     — "Nós não estamos perdidos, decididamente não estamos", como costumava dizer Kit Carson, quando estava cercado por mais um numeroso grupo de índios — continuou Pitt.— Dentro de dez horas, a casa das máquinas e a casa das caldeiras estarão completamente secas. —Rapidamente remexeu nos desenhos, até que encontrou o que procurava. — Quem disse foi Woodson: uma vista de olhos, do ar. É isso. Deveríamos estar a olhar de fora e não de dentro.

     — Ora essa — disse Giordino. — A coisa é assim tão interessante vista do ar?

     — Nenhum de vocês percebe?

     Drummer parecia intrigado.

     — Estou completamente a zero.

     — Spencer?

     Spencer meneou a cabeça. Pitt sorriu e disse:

     — Junte os seus homens em cima e diga-lhes que tragam o equipamento de corte.

     — e você ordena... — disse Spencer, mas não fez qualquer movimento em direção à porta.

     — O senhor Spencer deve estar convencido de que eu preciso de uma camisa-de-força — disse Pitt. — Ele não pode compreender por que motivo devemos abrir furos lá em cima, para penetrar trinta metros através de oito conveses cheios de destroços. Mas não se trata disso, realmente. Nós dispomos de um poço já construído, livre de destroços, que nos pode levar diretamente à casa das caldeiras. Na verdade, até possuímos quatro desses poços. A cobertura da casa das caldeiras, onde se apoiavam as quatro chaminés, senhores... Retirem com os maçaricos o wetsteel das coberturas e vocês terão uma passagem livre e direta ao porão. Estão a perceber?

     Spencer entendeu muito bem. E, do mesmo modo, todos os demais. Simultaneamente, todos se dirigiram para a porta, sem sequer responderem à pergunta de Pitt. Duas horas mais tarde, as bombas diesel trepidavam em coro. Sete mil e quinhentos litros de água por minuto estavam a ser lançados pela borda, sobre as ondas que vinham à frente do ciclone que se aproximava. Este ciclone havia sido batizado Amanda e, naquela mesma tarde, o caminho do grande vapor, cruzando-se com a rota que lhe fora prevista, achava-se livre da maioria dos outros navios.

     Todos os cargueiros, tanques e navios de passageiros que se fizeram ao mar entre Savannah, Geórgia e Portland, no Maine, receberam ordem para voltar ao porto, depois que o Centro de Ciclones da NUMA, em Tampa, havia feito as primeiras advertências. Perto de cem barcos ao largo da costa oriental adiaram as suas partidas, enquanto todos os barcos que vinham da Europa e que já se encontravam muito afastados dos portos pararam, esperando que o ciclone passasse.

     Em Tampa, o Dr. Prescott e os seus meteorologistas agrupavam-se em torno do mapa suspenso da parede, colocando novos dados no computador, ao mesmo tempo em que iam indicando na carta todo e qualquer desvio da rota do ciclone Amanda. A rota original prevista por Prescott estava a ser confirmada, apenas com um desvio máximo de cento e setenta e cinco milhas. Um meteorologista entrou e entregou-lhe uma folha de papel.

     — Aqui está a informação de um avião de reconhecimento da Guarda Costeira que penetrou no olho do ciclone.

     Prescott tomou o papel e leu em voz alta:

     — "Olho com aproximadamente vinte e duas milhas de diâmetro. A velocidade do avanço aumentou para quarenta nós. Velocidade do vento: cento e oitenta e tantas..."

     A sua voz apagou-se. A assistente olhou-o de olhos arregalados.

       — Ventos de cento e oitenta milhas por hora?

     — E mais — murmurou Prescott. — Pobre do navio que for apanhado por ele!

     De repente, um brilho passou pelos olhos do meteorologista e ele voltou-se para estudar o mapa na parede. Então o seu rosto tornou-se cinzento.

     — Jesus!... O Titanic!

     Prescott olhou para ele.

       — O quê?

     — O Titanic e a sua frota de salvamento. Eles encontram-se precisamente na rota prevista do ciclone.

     — Raios do inferno! — gritou Prescott.

     O meteorologista aproximou-se do mapa e hesitou por alguns momentos. Finalmente, ergueu a mão e colocou um X logo abaixo dos Grandes Bancos da Terra Nova. Essa era a posição em que ele fora içado do fundo.

      — Onde obteve essa informação?

     — Ela vem publicada em todos os jornais e a televisão também a deu ontem. Se o senhor não acredita, envie uma mensagem, através do teletipo, para os escritórios da NUMA, em Washington.

     — Para o diabo com o teletipo — rosnou Prescott. Atravessou a sala, pegou o telefone e gritou para o bocal. — Ponha-se em contato diretamente com os nossos escritórios centrais em Washington. Quero falar com alguém relacionado com o Projeto Titanic.

     Enquanto esperava a ligação, olhou por cima dos óculos para o X no mapa.

     — Esperemos que aquela gente tenha ao menos a bordo um meteorologista que possua um sexto sentido — murmurou mais para si próprio — ou amanhã a esta hora já eles terão aprendido o que significa a fúria do mar.

    

     Havia uma expressão vaga no rosto de Farquar quando ele examinava as cartas meteorológicas, ali na sua frente, sobre a mesa. O seu cérebro achava-se adormecido e desordenado pelo fato de ter dormido pouco, a ponto de até ter dificuldade em reconhecer os sinais que acabara de fazer alguns minutos antes. Indicações de temperatura, velocidade do vento, pressão barométrica e a frente ciclônica que se aproximava, tudo isso se baralhava numa mancha indistinta. Esfregou então os olhos numa inútil tentativa de os manter bem abertos. Sacudiu a cabeça, com o fim de aclarar as idéias, e procurou lembrar-se das conclusões que lhe cabia tirar.

     O ciclone! Sim, era isso. Farquar, vagarosamente, compreendeu que havia cometido um sério erro de cálculo. O ciclone não se dirigia para o cabo Hatteras como havia previsto. Em vez disso e devido a uma área de alta pressão, ao longo da costa oriental, ele mantinha-se sobre o oceano, rumo ao norte. E o que era pior, começara a mover-se mais depressa depois da mudança de rumo. Agora estava a vir rapidamente em direção ao Titanic, com uma velocidade de aproximadamente quarenta e cinco nós.

     Ele observara o nascimento do ciclone nas fotografias enviadas pelo satélite e estudara cuidadosamente as recomendações da estação da NUMA, em Tampa. Em todos aqueles anos de previsão nada, porém, o havia preparado para a violência e velocidade que aquele monstro adquirira em tão curto intervalo. Um ciclone em maio? Impossível! Então, voltaram-lhe à mente as palavras que Pitt dissera. Mas o que foi precisamente que ele disse? "Só Deus pode fabricar um ciclone.”

     Farquar sentiu-se de repente doente, com o rosto coberto de suor, abrindo e fechando as mãos. "Que Deus ajude o Titanic desta vez" murmurou ele quase em surdina. "Só Ele o pode salvar agora!"

 

     Os rebocadores de salvamento da Armada Thomas J. Morse e Samuel R. Wallace, chegaram pouco antes das 15 horas e a todo o vapor começaram a contornar o Titanic. O tamanho do navio e a estranha impressão de morte que pairava sobre o destroço percorreu as guarnições dos rebocadores com o mesmo respeito que os homens da NUMA haviam experimentado no dia anterior.

     Depois de uma inspeção de meia hora, os rebocadores colocaram-se paralelamente ao grande casco enferrujado, ao sabor das ondas, e de máquinas paradas. Simultaneamente, os botes foram arriados e os seus comandantes, depois de se terem metido neles, aproximaram-se e começaram a subir as escadas de cabos que lhes foram lançadas do Titanic. O tenente George Uphill, do Morse, baixo, gordo e vermelhusco, usava um imenso bigode tipo Bismark, ao passo que o capitão-tenente Scotty Butera, do Wallace, quase tocava o teto com os seus dois metros de altura. O seu queixo quase desaparecia dentro de uma magnífica barba negra. A respeito de uniformes engomados, isso não era com eles. Todo o seu aspecto era o de homens endurecidos no serviço de salvamentos.

     — Não podem imaginar como nos sentimos felizes em avistá-los, cavalheiros — disse Gunn, apertando-lhes as mãos. — O almirante Sandecker e o senhor Pitt, nosso diretor de Projetos Especiais, aguardam-nos, se me perdoam a expressão, na nossa sala de operações.

     Os comandantes dos rebocadores seguiram Gunn através das escadas e pelo convés de manobra, observando admirados os restos do que fora um bonito navio, até que chegaram ao ginásio, onde Gunn fez as apresentações.

     — É quase inacreditável! — murmurou Uphill. — Eu nunca poderia imaginar que algum dia estivesse a passear pelo convés do Titanic!

     — Exatamente o que eu penso — acrescentou Butera.

     — Gostaria de oferecer-lhes um passeio por todo o navio — disse Pitt — mas cada minuto que passa aumenta o perigo de o perdermos de novo.

     O almirante Sandecker conduziu-os até junto de uma comprida mesa coberta de cartas meteorológicas, diagramas e outros mapas. Todos eles se sentaram, tendo à frente canecas com café bem quente.

     — De momento, a nossa principal preocupação é o tempo — disse ele. — O meteorologista do Capricorn começou de repente a fazer as suas profecias...

     Pitt desenrolou uma grande carta meteorológica e estendeu-a sobre a mesa.

     — Não temos ilusões. O tempo está a piorar rapidamente. O barômetro caiu treze milímetros nas últimas vinte e quatro horas. Temos um vento de força quatro, soprando de nor-nordeste e crescendo sempre. A menos que ocorra um milagre e o ciclone Amanda resolva guinar para oeste, seremos apanhados por ele amanhã a estas horas.

     — O ciclone Amanda. — Butera repetiu o nome. — De que raça é ele?

     — Joel Farquar, o nosso meteorologista, assegura que não existe outro pior que ele —respondeu Pitt. — Já tem registrado vento quinze, pela escala de Beaufort.

     — Força quinze? — repetiu Gunn, espantado. — Meu Deus, força doze é já considerado um ciclone de intensidade máxima!

     — Penso ser esse — disse Sandecker — o eterno pesadelo das equipes de salvamento... içar um destroço imenso para depois o ver arrancado das suas mãos pelos caprichos do tempo. — Em seguida, olhou carrancudo para Uphill e Butera. — Vocês dois acabaram por fazer uma viagem para nada. O melhor será voltarem para os vossos barcos e safarem-se daqui para fora.

     — Fugir daqui? Uma ova! — estourou Uphill. — Acabamos mesmo de chegar.

     — Eu não me poderia ter exprimido melhor — disse Butera levantando os olhos para Sandecker e sorrindo. — O Morse e o Wallace podem rebocar, se for necessário, um porta-aviões através de um pântano sob a fúria de um tornado. Eles foram projetados para enfrentar tudo o que a natureza possa oferecer. Se conseguirmos passar um cabo para bordo do Titanic e iniciar o reboque, pode até acontecer que vençamos a tempestade.

     — Puxar um navio de quarenta e cinco mil toneladas debaixo de um ciclone — murmurou Sandecker — é excesso de otimismo.

     — Não se trata disso. — Butera falava agora com maior seriedade. — Se passarmos um cabo da popa do Morse para a proa do Wallace, as nossas forças combinadas poderão rebocar o Titanic, da mesma forma que duas locomotivas em série podem puxar um comboio inteiro de mercadorias.

     — E podemos fazer isso com ondas de nove metros de altura e a uma velocidade de cinco a seis nós — acrescentou Uphill.

     Sandecker olhou para os dois comandantes e deixou-os continuar. Butera foi em frente.

     — Aqueles ali não são rebocadores comuns, almirante. São rebocadores de alto mar, de socorro no oceano; medem setenta e cinco metros de comprimento e possuem motores diesel com um total de cinco mil cavalos. Cada um deles pode rebocar vinte mil toneladas a dez nós, durante duas mil milhas, sem que o combustível acabe. Se existem dois rebocadores no mundo capazes de puxar o Titanic através dum ciclone, são aqueles ali.

     — Aprecio o seu entusiasmo — disse Sandecker — mas não me responsabilizo pelas vossas vidas nem pelas das tripulações naquilo que parece ser um jogo impossível. O Titanic terá de se safar sozinho. Ordeno-lhes, por isso, que se afastem para uma área segura.

     Uphill olhou para Butera.

     — Diga-me, comandante, quando foi que você desafiou uma ordem direta de um almirante?

     Butera fingiu que mergulhava em recordações.

     — Agora que penso nisso... não o faço desde o pequeno-almoço.

     — Falando em meu nome e no da guarnição de salvamento — disse Pitt — apreciaremos a vossa companhia.

     — Eis aí tudo, senhor — disse Butera, sorrindo. — Além disso, as ordens que recebi do almirante Kemper foram trazer o Titanic para o porto, ou então para preparar a minha passagem à reserva. Prefiro o Titanic!

     — Mas isto é um motim! — disse Sandecker simplesmente; contudo não conseguia esconder os sinais de satisfação na sua voz.

     Não era preciso ser psicólogo para se compreender como ele próprio planejara aquela conversa. Olhou para todos, de uma maneira maliciosa e disse:

     — Está bem, cavalheiros, ou será o funeral de vocês todos. Agora, que tudo está determinado, sugiro que se mexam e tratem de salvar o Titanic.

 

     O comandante Ivan Parotkin encontrava-se na ponte do Mikhail Kurkov, a bombordo, observando o céu com o binóculo. Era um homem esbelto, de altura média, rosto distinto, raramente rindo. Tinha cinqüenta e muitos anos, mas os seus cabelos escassos não estavam ainda grisalhos. Um grosso camisolão até ao pescoço protegia-lhe o tronco e da cintura para baixo achava-se resguardado por umas pesadas calças de lã e por botas até o joelho. O seu imediato tocou-lhe o braço e apontou para o céu, acima da grande cúpula do radar. Um bombardeiro de patrulha de quatro motores apareceu a nordeste e foi crescendo de tamanho, até que Parotkin pôde reconhecer tratar-se de um avião russo. Ao passar por cima do navio parecia ter reduzido ao mínimo a sua velocidade.

     Então, de repente, um pequenino vulto desprendeu-se do seu ventre e, segundos depois, um pára-quedas abriu-se e começou a ser levado por cima do mastro da vante, até cair finalmente na água, cerca de duzentos metros a estibordo. Quando o pequeno bote do Mikhail Kurkov foi arriado sobre as ondas alterosas, Parotkin virou-se para o seu imediato.

     — Logo que o comandante Prevlov esteja são e salvo a bordo, conduza-o à câmara.

     Em seguida, colocou o binóculo na mesa da ponte e desceu a escada. Vinte minutos mais tarde, o primeiro - imediato bateu a uma porta de mogno ultra polida, abriu-a e colocou-se ao lado,

a fim de dar passagem a um homem. Este estava completamente encharcado, largando poças de água salgada pelo convés.

     — Comandante Parotkin.

     — Comandante Prevlov.

     Ambos profissionais de grande tirocínio, ficaram imóveis por alguns instantes, medindo-se mutuamente. Prevlov tinha a vantagem de ter estudado a folha de serviços de Parotkin com toda a atenção. Parotkin, por outro lado, tinha apenas a reputação e a primeira impressão para fazer um juízo. Não pareceu gostar daquilo que viu. Prevlov pareceu-lhe demasiadamente bonitão; demasiado convencido para infundir confiança.

     — Dispomos de pouco tempo — disse Prevlov. — Se pudéssemos ir diretamente ao objetivo da minha visita...

     Parotkin levantou uma das mãos.

     — Primeiramente, o mais importante: uma xícara de chá quente e uma muda de roupa. O doutor Rogovski, o nosso cientista-chefe, tem aproximadamente a sua estatura e o seu peso.

     O imediato meneou afirmativamente a cabeça e fechou a porta.

     — Agora — disse Parotkin — estou certo de que um homem com o seu posto e importância se não arriscaria a saltar de pára-quedas sobre um mar como este apenas para observar o fenômeno atmosférico dum ciclone.

     — Sim, dificilmente. O perigo pessoal não me agrada nem mesmo um pouco. E, por falar em chá, não haverá a bordo qualquer coisa mais forte?

     Parotkin fez que não com a cabeça.

     — Sinto, comandante. É meu costume não possuir bebidas alcoólicas no navio. Isso não agrada, especialmente à guarnição, admito, mas evita muitos aborrecimentos.

     — O almirante Sloyuk disse-me que éreis um modelo de eficiência.

     — Não gosto de tentar a sorte.

     Prevlov abriu o zíper e deixou a sua roupa molhada cair sobre o piso.

     — Creio que está na iminência de abrir uma exceção a essa regra, comandante. Nós dois, o senhor e eu, vamos tentar a sorte.

 

     Pitt não conseguia afastar a impressão de que estava a ser largado numa ilha deserta, quando, de pé, no castelo de proa, via a frota de salvamento pôr-se a caminho para um local mais seguro, rumo a oeste. O Alhambra foi o último a passar por ele, tendo-lhe o seu comandante enviado uma mensagem de “boa sorte” por meio de sinais luminosos, enquanto o pessoal das comunicações, calma e solenemente, ia filmando registros visuais do Titanic. Pitt procurou   Dana Seagram por entre a multidão que se comprimia na amurada, mas os seus olhos não se puderam encontrar. Ficou a observar os navios até que eles se transformaram em pequeninas manchas sobre um mar de chumbo.

     Apenas o cruzador lança-mísseis Juneau e o Capricorn ficaram para trás, mas o tênder de salvamento partiria de seguida no encalço dos demais, logo que os comandantes dos rebocadores

dessem o sinal de que levavam o Titanic a reboque.

     — Senhor Pitt?

     Este virou-se e viu um homem com um rosto de lutador experimentado e com um corpo que lembrava um barril.

     — Sou o chefe Bascom, senhor, do Wallace. Trouxe para bordo uma guarnição de dois homens, para passar o cabo de reboque mais depressa.

     Pitt sorriu-lhe amigavelmente.

     — Aposto que é a você que chamam Bascom, o Mau.

     — Só pelas minhas costas. É um nome que me persegue desde que eu escavaquei um bar em San Diego. — Bascom encolheu os ombros. Depois, franziu os olhos. — Como foi que adivinhou?

     — O comandante Butera descreveu o senhor em termos elogiosos... pelas suas costas, devo acrescentar.

     — Um bom homem, o comandante.

     — Quanto tempo demorará a passar o cabo?

     — Se tivermos sorte e com a ajuda do seu helicóptero, cerca de uma hora.

     — Não haverá qualquer problema em relação à cedência do helicóptero. De qualquer forma, ele pertence à Armada

     Pitt virou-se e ficou a ver o Wallace, enquanto Butera, muito cuidadosamente, recuava o rebocador para perto da proa do Titanic, que subia e descia, até se colocar a menos de dois metros de distância.

     — Imagino que o helicóptero é para içar o cabo para bordo.

     — Sim, senhor — respondeu Bascom. — O cabo tem vinte e cinco centímetros de diâmetro e pesa uma tonelada por cada vinte e um metros. Como compreende, não se trata de nenhum peso-pluma... Na maioria dos reboques, passamos um cabo mais fino pela proa do navio, que sucessivamente se vai ligando a outros de maior calibre, até alcançar o cabo principal; mas para isso é necessário um guincho. Ora, como não dispomos aqui de nenhum e os músculos humanos não são suficientes para esse trabalho, vamos usar um método mais fácil. Não seria de aconselhar ocupar toda a enfermaria com um punhado de pacientes sofrendo de hérnias...

     Mesmo com a ajuda do helicóptero, tudo o que Bascom e os seus homens puderam fazer

foi agüentar o cabo em posição. Sturgis trabalhou como um profissional experimentado. Ao manejar, habilmente, os controles do helicóptero, ele pôde colocar o chicote do cabo de reboque do Wallace por cima do castelo de proa do Titanic com tanta perfeição que parecia ter anos de prática.

     Foram somente necessários cinqüenta minutos, desde o momento em que Sturgis largou o cabo e voou de volta ao Capricorn, até o chefe Bascom, de cima da proa, acenar com os braços para os rebocadores a fim de indicar que o cabo estava passado. Do Wallace, Butera reconheceu o sinal e com o apito ordenou à casa das máquinas "avante devagar", o mesmo fazendo Uphill no Morse.

     Lentamente, os dois rebocadores foram avançando: o Wallace acompanhando o Morse, que lhe havia passado um cabo de aço, a 270 metros de distância. O Wallace deixou então correr

o cabo até que o Titanic ficou perto de um quarto de milha para a ré. Butera levantou a mão e os homens na popa começaram a usar com cuidado o freio do imenso guincho de reboque, enquanto o cabo começava a dar sinais de esforço.

     Do alto do Titanic, os rebocadores lembravam pequenos barcos de brinquedo, ora subindo nas cristas das ondas ora desaparecendo na cava seguinte. Parecia impossível que tão pequenos engenhos pudessem mover mais de quarenta e cinco mil toneladas de peso morto e no entanto, lentamente, quase imperceptivelmente a princípio, aquelas forças combinadas de dez mil cavalos fizeram-se sentir. Logo, um insignificante bigode de espuma podia ser observado à proa do Titanic. Ele pouco deslizava. Nova Iorque ficava ainda a 1200 milhas para oeste, mas havia, por fim, retomado a tarefa que largara naquela noite fria de 1912: de novo demandava um porto!

     As ameaçadoras nuvens negras apareceram e espalharam-se pelo horizonte, ao sul. Eram os extremos do ciclone. Enquanto Pitt o observava, a sua força parecia crescer e aumentar. O mar tornava-se cada vez mais sombrio e cinzento. Estranhamente, a força do vento diminuiu, mudando de direção a todo o instante. As gaivotas que antes enxameavam em torno da frota de salvamento não se encontravam já à vista.

     Somente a visão de Juneau, que navegava a 450 metros do Titanic, oferecia uma sensação de segurança. Pitt deu uma olhadela ao seu relógio e lançou mais um golpe de vista pela amurada de bombordo, após o que, vagarosamente, quase casualmente, se aproximou da entrada do ginásio.

     — Estão todos aqui?

     — Está toda a gente a ficar impaciente — disse Giordino.

     Ele achava-se encolhido contra o ventilador, procurando assim defender-se do vento gelado. — Se não fosse a presença do almirante, já teria havido uma revolta.

     — Estão todos presentes?

     — Não falta ninguém.

     — Tem certeza?

     — Palavra do guarda Giordino. Nenhum dos homens deixou a sala, nem para fazer xixi.

     — Suponho, então, que devo fazer a minha entrada agora.

     — Alguma queixa dos nossos hóspedes? — perguntou Giordino.

     — As de rotina. Nunca estão satisfeitos com as suas acomodações, nunca há calor bastante ou o ar condicionado está forte de mais; sabe como é...

     — Sim, eu sei.

       — É melhor você ir à ré a ver se eles precisam de alguma coisa.

     — Mas o quê, pelo amor de Deus?

     — Conte-lhes piadas.

     Giordino olhou aborrecido para Pitt. Resmungou qualquer coisa para si mesmo, virou-se e saiu para a semi-obscuridade da noite. Pitt olhou de novo para o relógio e entrou no ginásio. Já haviam decorrido mais de três horas desde que o reboque fora passado e agora esta parte final do

salvamento passou a constituir rotina. Sandecker e Gunn estavam junto do rádio chateando Farquar no Capricorn, a cinqüenta milhas a oeste, procurando saber as últimas notícias sobre o ciclone Amanda, enquanto o resto da guarnição estava agrupado num semicírculo apertado em torno dum pequeno e mal amanhado fogão a óleo.

     Quando Pitt entrou, todos olharam interrogativamente. Quando, por fim, falou, a sua voz era suave, mas pouco natural; como também era pouco natural o silêncio, apenas quebrado pelo zunido dos geradores portáteis.

     — Peço perdão, cavalheiros, por tê-los feito esperar, mas pensei que um pequeno intervalo para o café haveria de reconstituir as vossas forças esgotadas.

    — Chega de conversa — cortou Spencer, cuja voz demonstrava irritação. — Você convoca-nos para aqui e depois faz-nos esperar meia hora, numa ocasião em que há trabalho para fazer. O que está a acontecer?

     — É simples — disse Pitt, com naturalidade — dentro de poucos minutos, o tenente Sturgis trará o helicóptero para bordo pela última vez antes que caia a tempestade. Com exceção de mim e de Giordino, eu gostaria que todos vós, incluindo o almirante, voltassem para bordo do Capricorn com ele.

     — Você está a regular bem, Pitt? — perguntou Sandecker sem grande convicção.

     — Talvez não muito, senhor, mas penso que estou a fazer o que está certo.

     — Explique-se então.

     Sandecker ardia como uma piranha em vias de atacar um peixinho dourado. Representava o seu papel até ao fim. Era um trabalho difícil de autocaracterização.

     — Tenho boas razões para pensar que o Titanic não tem condições para enfrentar um ciclone.

     — Esta velha banheira já sofreu mais punições do que qualquer outro objeto fabricado pelo homem desde as pirâmides — disse Spencer. — E agora o grande vidente Dirk Pitt prevê que o velho senhor se vai deixar destruir e afundar aos primeiros golpes de uma tempestadezeca.

     — Nada nos garante que ele não possa ir ou que não irá a pique sob um mar muito encapelado — atalhou Pitt. — Em qualquer circunstância, seria um risco desnecessário colocar em jogo mais vidas do que o mínimo necessário.

     — Deixe-me ver se eu compreendo isso bem. — Drummer inclinou-se para a frente; as suas feições de tubarão expressavam dureza e raiva. — Quer dizer, com exceção de você e de Giordino, todos nós devíamos bater em retirada e abandonar tudo o que, durante nove meses, nos rebentamos para conseguir, escondendo-nos no Capricorn até que a tempestade passasse? É isso?

     — Você vai ser o primeiro da classe, Drummer.

     — Homem, você não está certo da bola!

     — Impossível! — disse Spencer. — Só para cuidar das bombas são necessários quatro homens.

     — E o casco abaixo da linha de flutuação tem de ser examinado constantemente, para ver se apareceu alguma entrada de água — acrescentou Gunn.

     — Vós, os heróis, são todos iguais — disse calmamente Drummer. — Sempre a fazer novos sacrifícios para salvar os outros. Vamos falar claro: não é possível a dois homens conduzirem este navio. Sou da opinião de que devemos ficar.

     Spencer voltou-se e olhou para os rostos dos seis homens da sua equipe. Todos eles, de olhos vermelhos pelo sono atrasado, assentiram em coro. Então, Spencer voltou-se outra vez para Pitt.

       — Sinto, grande líder, mas Spencer e o seu alegre grupo de bombeadores decidiram permanecer aqui.

     — Estou com vocês — disse Woodson, solenemente.

     — Contem comigo — disse Gunn.

     O chefe Bascom tocou no braço de Pitt.

       — Com sua licença, senhor, eu e os meus rapazes preferimos permanecer aqui a bordo. O cabo lá fora tem de ser examinado de hora a hora, durante a tempestade, a fim de detectar qualquer sinal de desgaste por fricção e para aplicação de graxa pesada no macarrão.

     — Sinto muito, Pitt, meu filho — disse Sandecker, com visível satisfação. — Você perdeu.

     O ruído do helicóptero pilotado por Sturgis, preparando-se para pousar, foi ouvido. Pitt encolheu os ombros resignadamente e disse:

       — Então, isso está assente. Afundar-nos-emos todos juntos. — Depois acrescentou com um sorriso: — Seria conveniente que vocês comessem qualquer coisa e dormissem um pouco. Podem não ter outra oportunidade. Dentro de poucas horas, estaremos plenamente envolvidos pelos quadrantes frontais do ciclone. E creio que não será necessário descrever o que nos espera.

     Voltou-se e caminhou para a porta e, daí, para o local de pouso do helicóptero. Não se saíra nada mal, pensou para si. Mesmo nada. Jamais seria indicado para um Prêmio da Academia, mas que diabo, conseguiu cativar a audiência, e isso era o que importava.

     Jack Sturgis era um homem baixo e magro, de olhos tristes: o tipo de homem que faz as mulheres pensar em cama. Trazia uma longa boquilha entre os dentes, e o queixo, assim inclinado para a frente, fazia lembrar Franklin Roosevelt. Tinha acabado de descer do helicóptero e parecia procurar qualquer coisa no trem de pouso, quando Pitt surgiu na plataforma. Sturgis levantou os olhos.

     — Algum passageiro? — perguntou.

     — Nesta viagem não.

     Sturgis, negligentemente, fez cair um pouco de cinza que ficara na boquilha.

     — Eu sabia que podia ter ficado encolhido na cabina acolhedora e morna do Capricorn — suspirou. — Voar à frente de ciclones ainda vai acabar comigo.

       — É melhor você ir andando — disse Pitt. — O vento cairá a qualquer momento.

     — Não faz diferença. — E Sturgis encolheu os ombros com indiferença. — Não vou para parte nenhuma.

     Pitt olhou para ele.

     — Que quer dizer com isso?

     — Fui apanhado. É isso o que eu quero dizer. — Apontou para cima, para as pás da hélice. A extremidade de uma delas estava pendurada. — Há alguém por aqui que não gosta de pássaros giratórios...

     — Você bateu em qualquer coisa ao pousar?

     Sturgis pareceu melindrado.

     — Não tenho o hábito de bater nas coisas quando pouso. — Encontrou o que procurava e aprumou-se. — Olhe aqui, veja você mesmo: algum filho da puta atirou um martelo por entre as pás da hélice.

     Pitt apanhou o martelo e examinou-o. O cabo, protegido de borracha, apresentava uma mossa profunda no ponto em que a pá o atingira.

     — Depois de tudo o que fiz por vocês — lamentou Sturgis — é assim que agradecem!

     — Sinto, Sturgis, mas aconselho-o a não se tornar jamais um detetive de televisão. Infelizmente, falta-lhe uma mente analítica e é propenso a tirar conclusões falsas.

     — Deixe-se disso, Pitt. Os martelos não voam pelo ar sem que haja um meio de propulsão. Um dos seus homens deve ter atirado o martelo no momento em que eu pousava.

     — Está enganado. Sei perfeitamente onde estava cada homem dentro deste navio e ninguém se encontrava perto do helicóptero nos últimos dez minutos. Quem quer que seja o seu amigo destruidor, acho que você o trouxe consigo.

     — Pensa que sou um débil mental? Não acha que eu daria por isso se transportasse algum passageiro Além disso, está a insinuar uma hipótese de suicídio. Se o martelo tivesse sido lançado um minuto mais cedo, quando estávamos a trinta metros de altura, você e os seus homens teriam de fazer agora uma limpeza não muito agradável.

     — A nomenclatura está errada — disse Pitt. — Não se trata de um passageiro qualquer, mas de um clandestino. E ele também não é um débil mental. Esperou que as rodas beijassem a plataforma para depois agir e escapou pela escotilha de carga. Só Deus sabe onde está escondido agora. E uma busca completa através de oitenta quilômetros de corredores e compartimentos escuros é impossível.

     O rosto de Sturgis empalideceu de repente.

     — Cristo, o intruso ainda se encontra no helicóptero!

     — Não seja ridículo. Ele safou-se no mesmo instante em que você pousou.

     — Não, não. É possível lançar um martelo para cima, para as pás da hélice, através da janela de uma cabine; mas escapar é uma coisa diferente.

     — Explique-se — pediu Pitt calmamente.

     — O compartimento de carga é operado eletronicamente e a corrente só pode ser alimentada por um interruptor na cabine de controle.

     — Há qualquer outra saída?

     — Apenas uma porta que dá para a cabine de controle.

     Pitt estudou durante algum tempo a escotilha de carga, que estava fechada. Voltou-se para Sturgis. O seu olhar era frio.

   — Isso é lá maneira de se tratar um hóspede inesperado? Penso que o melhor é convidá-lo para sair para o ar fresco.

     Sturgis ficou pregado no chão, quando reparou no Colt quarenta e cinco, automático, com silenciador, que de repente surgiu na mão direita de Pitt.

     — Claro... claro... — gaguejou ele. — Se você acha.

     Sturgis subiu a escada que conduzia à cabine de controle; inclinou-se para dentro e empurrou o interruptor. Os motores elétricos produziram um zumbido e a tampa da escotilha, de dois metros e dez por dois metros e dez, ergueu-se sobre a fuselagem do helicóptero. Ainda antes que se ouvissem os ferrolhos do travamento a engatar, já Sturgis se encontrava em baixo, prudentemente escondido por detrás dos largos ombros de Pitt. Meio minuto após se ter aberto a porta, ainda Pitt permanecia imóvel. Ficou ali parado por um período de tempo que a Sturgis pareceu uma eternidade, sem mover um único músculo. respirando regular e vagarosamente e escutando.

     Os únicos ruídos que se ouviam eram os das ondas no costado, o zunido do vento sobre a superestrutura do Titanic e o murmúrio de vozes que vinham do ginásio, através da porta; não os sons que os seus ouvidos aguardavam. Quando verificou que não havia nenhum arrastamento de pés de roçar de roupas ou outros ruídos que indicassem uma ameaça ou um movimento estranho, ele subiu ao helicóptero. O céu negro lá fora tornava difícil a visão no interior do compartimento e Pitt sabia que a sua silhueta estava recortada na penumbra. A primeira vista, parecia não haver nada, mas Pitt sentiu tocarem-lhe no ombro e viu que Sturgis lhe apontava uma lona que parecia cobrir uma figura humana.

     — Não há ainda uma hora que eu dobrei e arrumei com cuidado aquela lona —segredou-lhe Sturgis.

     Rapidamente, Pitt abaixou-se e puxou a lona com a mão esquerda, ao passo que, com a direita, apontava o Colt com firmeza de uma estátua de parque. Um corpo envolto num casaco próprio para o mau tempo estava deitado e encolhido num estado de inconsciência, facilmente explicável pelo feio e sangrento ferimento que se notava logo acima da linha dos cabelos. Sturgis permaneceu imóvel na sombra, em estado de choque: Os olhos, arregalados e piscando rapidamente, procuravam ajustar-se à pouca luz do local. Coçou o queixo e abanou a cabeça como se não pudesse acreditar.

     — Oh, Deus! — murmurou apavorado. — Você sabe quem é?

     — Sei — disse Pitt, pausadamente. — O nome dela é Dana Seagram.

 

     Com rapidez impressionante, o céu tornou-se escuro como breu sobre o Mikhail Kurkov... Grandes nuvens negras cobriram-no, ocultando as estrelas e o vento voltou a soprar e a aumentar

até se transformar numa ventania de quarenta nós, fazendo quebrar as ondas e carregando a espuma em linhas bem definidas para o nordeste. No interior da grande casa do leme do navio soviético o ar estava morno e havia um conforto agradável. Prevlov encontrava-se ao lado de Parotkin, que observava a posição do Titanic pelo radar.

     — Quando assumi o comando deste navio — disse Parotkin, como se estivesse a ensinar um colegial — pensava que as minhas ordens se destinavam a pesquisas e vigilância. Nada me foi dito relativamente à condução de uma verdadeira operação militar.

     Prevlov ergueu uma das mãos em sinal de protesto.

     — Por favor, comandante. O senhor esquece que as palavras militar e operação não devem ser mencionadas. A pequena aventura em que vamos participar é uma atividade civil perfeitamente legal, conhecida nos países ocidentais como uma troca de gerência.

     — Uma pirataria ruidosa, seria a expressão mais próxima da verdade — disse Parotkin. — E que nome dá o senhor àqueles dez fuzileiros que tão bondosamente acrescentou à minha guarnição quando zarpamos? Acionistas?

     — Outra vez: não são fuzileiros, mas guarnição civil.

     — Naturalmente — disse Parotkin. — E todos armados até aos dentes...

     — Não existem leis internacionais, que eu saiba, que proíbam as guarnições dos navios de usarem armas.

     — Mas, se existisse alguma, o senhor decerto que descobriria uma escapatória.

     — Vamos, vamos, meu caro comandante Parotkin. — Prevlov bateu-lhe amigavelmente nas costas. — Quando, logo à noite, se jogar a partida final, ambos seremos heróis da União Soviética.

     — Ou mortos — disse Parotkin, carrancudo.

     — Afaste os seus receios. O plano não apresenta falhas e como a tempestade fez debandar a frota de salvamento, tudo se tornou mais simples.

     — Não estará esquecendo o Juneau? O seu comandante não irá ficar de braços cruzados quando nos vir aproximar do Titanic, abordando-o e içando a foice e o martelo no seu mastro!

     Prevlov consultou o seu relógio de pulso.

     — Exatamente daqui a duas horas e vinte minutos, um dos nossos submarinos nucleares de ataque virá à superfície cem milhas a norte e começará a transmitir angustiosos sinais sob o nome de Laguna Star, um cargueiro irregular, de registro duvidoso.

     — E o senhor supõe que o Juneau engolirá a isca e correrá em socorro?

     — Os americanos nunca deixam de atender um pedido de socorro — disse Prevlov confiante. — Todos eles sofrem do complexo do bom samaritano. Sim, o Juneau irá acudir ao chamamento. Ele terá de o fazer. Com exceção dos rebocadores, que não podem abandonar o Titanic, ele é o único navio disponível a menos de trezentas milhas.

       —Mas se, entretanto, o nosso submarino submergir, ele não irá nunca aparecer na tela do radar do Juneau.

       — Naturalmente os seus oficiais imaginarão que o Laguna Star afundou e então redobrarão esforços para chegar a tempo ao local, a fim de salvar as vidas de uma guarnição inexistente.

     — Inclino-me perante a sua imaginação — Parotkin sorriu. — Mas haverá ainda alguns problemas, como os dois rebocadores da Armada, a abordagem do Titanic no meio do pior ciclone dos últimos anos e ainda o reboque do destroço para a Rússia, de forma a tudo isto não criar um alvoroço internacional.

     — A minha resposta às suas declarações, comandante, tem quatro itens. — Prevlov fez uma pausa para acender um cigarro. — Número um: os rebocadores serão neutralizados por dois agentes soviéticos que, neste momento, trabalham como membros da guarnição americana de salvamento. Número dois: abordarei o Titanic e assumirei o seu comando, quando nos encontrarmos no olho do ciclone. Uma vez que a velocidade do vento nessa área dificilmente ultrapassará os quinze nós, os meus homens e eu pouca dificuldade teremos em chegar até ele e entrar por uma porta que será convenientemente aberta no casco por um dos nossos agentes. Número três: o meu grupo de abordagem apoderar-se-á da guarnição de salvamento, rápida e eficientemente. Por fim, o número quatro: faremos parecer ao mundo que os americanos abandonaram o navio por causa do ciclone e que se perderam no mar. Ora isso, está claro, faz do Titanic um navio derrelicto. E o primeiro comandante que lhe passar um cabo de reboque terá os direitos de salvamento. Ora, esse feliz comandante deverá ser o senhor, camarada Parotkin. Segundo as leis marítimas internacionais, o senhor terá todos os direitos legais de passar um cabo de reboque ao Titanic.

     — O senhor não conseguirá isso — disse Parotkin. — O que sugere é um perfeito assassínio em massa. — Havia uma expressão vazia e cheia de repugnância nos seus olhos. — Considerou as conseqüências de um fracasso com a mesma dedicação com que estudou os pormenores?

     Prevlov olhou para ele, acentuando o seu sorriso permanente.

     — A possibilidade de fracasso foi também estudada, camarada. Mas esperemos com fervor que a nossa última alternativa não seja necessária. — Apontou para o grande sinal na tela do radar. — Seria uma pena ter de afundar o navio mais lendário do mundo, uma segunda vez e para sempre.

 

     No fundo dos porões do antigo transatlântico, Spencer e a sua equipe lutavam para manter em funcionamento as bombas diesel. Trabalhando, algumas vezes sozinhos, naquelas frias e negras cavernas de aço sem outro conforto que não fosse o de uma ou outra luzinha, eles prosseguiam sem queixas o trabalho de manter o navio a flutuar. Para eles foi uma surpresa verificar que, em alguns compartimentos, as bombas não conseguiam vencer a entrada de água. Por volta das sete horas, o tempo havia piorado tanto que não era possível voltar atrás. O barômetro desceu para 752 milímetros e continuava a cair rapidamente. O Titanic começou a caturrar e a balouçar transversalmente, recebendo massas imensas de água que se espalhavam pela proa e por cima das amuradas do convés de carga. Devido à escuridão da noite e à forte chuvarada, a visibilidade era quase nula.

     Nos rebocadores, os homens apenas avistavam o grande navio quando algum relâmpago ocasional fazia desenhar a sua silhueta. As suas principais preocupações iam para o cabo que desaparecia dentro das águas revoltas. O esforço constante a que estava sujeito era enorme. De cada vez que o Titanic sofria uma arremetida provocada por uma onda de grandes proporções, eles viam, numa agourenta expectativa, o cabo saltar fora de água, tenso e gemendo como num agonizante protesto. Butera nunca se afastou um momento da ponte, mantendo-se em permanente contacto com os homens da casa do cabo, à ré. De repente, uma voz estalou no alto-falante, acima do zunido do vento.

     — Comandante?

     — Aqui é o comandante — respondeu ele através de um telefone manual.

     — O suboficial Kelly na casa do cabo, senhor. Está a acontecer qualquer coisa muito esquisita por aqui.

     — Queira explicar-se melhor, suboficial.

     — Bem, senhor, o cabo parece ter ficado furioso. Primeiro virou-se para bombordo, agora correu para estibordo e colocou-se num ângulo perigoso.

     — Está bem, mantenha-me informado.

     Butera desligou e passou para outro canal.

     — Uphill, você está a escutar? Aqui é Butera.

     No Morse, Uphill respondeu quase imediatamente.

     — Pode falar.

     — Penso que o Titanic virou para estibordo.

     — Conhece a sua posição?

     — Negativo. A única indicação é o ângulo do cabo.

   Seguiu-se um silêncio durante alguns momentos, enquanto Uphill estudava o problema. Então, a sua voz fez-se ouvir novamente:

     — Navegamos a menos de quatro nós. Não temos outra alternativa senão a de seguir em frente. Se pararmos para ver o que se passa, é possível que o navio venha a emborcar, em conseqüência de algum forte balanço transversal.

     — Você pode apanhá-lo no radar?

     — Impossível. Uma onda levou a antena há vinte minutos. Que tal a sua?

     — Ainda temos a antena, mas a mesma onda que levou a sua cortou os meus circuitos.

     — É o caso de um cego guiando outro cego. . .

     Butera recolocou o auscultador no gancho e, cuidadosamente, entreabriu a porta de comunicações com a plataforma a estibordo da ponte. Protegendo os olhos com o braço, avançou para fora e forçou os olhos a penetrarem na escuridão da noite. Os holofotes mostraram-se inúteis: os seus fachos apenas refletiam a chuva que caía e nada mais revelavam. Um relâmpago iluminou a popa; o trovão foi abafado pelo vento e o coração de Butera quase parou. O rápido clarão não chegou para revelar o perfil do Titanic. Era como se ele nunca tivesse existido. Respirando com dificuldade e com a água escorrendo pelo impermeável, Butera atravessou de novo a porta, no preciso momento em que o suboficial Kelly fazia ouvir a sua voz no alto-falante.

     — Comandante?

     Butera limpou os olhos e apanhou o auscultador.

     — O que há, Kelly?

     — O cabo folgou!

     — Teria se partido?

     — Não, senhor, ainda está ativo, mas mergulhou sensivelmente na água. Nunca vi isso antes. Dá a impressão de que o Titanic resolveu passar por nós...

     Foi a expressão "passar por nós" que fez soar o alarme na cabeça de Butera... Nunca mais pôde esquecer o choque que lhe causou tal descoberta. Foi como se um choque mental tivesse aberto uma comporta no seu cérebro, por onde irrompesse um pesadelo de imagens numa certa ordem: imagens de um pêndulo maluco, cuja amplitude aumentava sempre até dar uma volta completa. Os sinais lá estavam: o cabo correndo para estibordo até formar um ângulo perigoso; a repentina folga no cabo. Pôde então visualizar toda a cena: o Titanic avançando um pouco e paralelamente ao Wallace, a estibordo, e agora o puxão no cabo, fazendo recuar o navio como a brincadeira das crianças, na escola, de simular o estalo do chicote. Então qualquer coisa fez cessar o pesadelo no cérebro de Butera, livrando-o do entorpecimento que o escravizava. Pegou no auscultador do rádio e chamou a casa das máquinas, tudo com um só movimento.

     — Avante a toda a força! Está a ouvir, casa das máquinas? Avante a toda a força! —Depois chamou o Morse. — Estou a avançar para vocês a toda a força! — gritou. — Está a ouvir,

Uphill?

     — Repita por favor — pediu Uphill.

     — Ordene para a frente a toda a força, raios, ou meto-os a pique!

       Butera deixou cair o auscultador e procurou abrir caminho, outra vez, até à plataforma exterior da ponte. O ciclone fustigava o mar de uma forma tão selvagem e com tal fúria, erguendo montanhas de espuma, que era quase impossível distinguir o ar da água. Tudo o que ele conseguiu foi agarrar-se à amurada. Então avistou de repente a imensa proa do Titanic, aparecendo através daquele dilúvio avassalador a menos de trinta metros, pela alheta de estibordo. Nada mais havia a fazer senão observar, petrificado, aquela massa ameaçadora, que se

aproximava inexoravelmente do Wallace.

     — Não! — rugiu ele mais alto que o vento. — Velho e imundo defunto, deixa o meu navio sossegado!

     Era, porém, muito tarde. Parecia impossível que o Titanic pudesse passar pela popa do Wallace sem fazer lenha. Mas o impossível aconteceu! A grande proa de dezoito metros de altura subiu numa onda montanhosa e permaneceu no alto apenas o tempo necessário para que as hélices do rebocador o livrassem do perigo. Em seguida, o Titanic desceu na cava, passando a menos de um metro da popa do Wallace, formando uma onda que envolveu por inteiro o pequeno navio e arrastou consigo ambos os barcos salva-vidas e um ventilador. A onda arrancou Butera da amurada e atirou-o por cima da ponte de encontro à antepara da casa do leme. Ali ficou, inteiramente submerso pela onda, sufocado, os pulmões ansiando por ar e o cérebro voltando lentamente à consciência sob o impacto das fortes vibrações das máquinas que sacudiam o convés.

     Quando finalmente as águas escorreram, ele lutou para ficar de pé, não sem ter vomitado tudo aquilo que trazia no estômago. Arrastou-se novamente para a segurança da casa do leme. Butera, com os sentidos atordoados pelo milagre do salvamento do Wallace, via o imenso vulto que era o Titanic escapar-se pela popa até desaparecer outra vez sob o manto do temporal.

 

     — Isto só acontece com Dirk Pitt — disse Sandecker. — Apanhar uma mulher no meio do oceano e durante um ciclone! Qual é o seu segredo?

     — A sina de Pitt — respondeu este, enquanto, delicadamente, fazia o curativo ao ferimento da cabeça de Dana. — As mulheres são sempre atraídas por mim em circunstâncias impossíveis e quando não estou com disposição para corresponder.

     Dana começou a gemer suavemente.

     — Está a voltar a si — disse Gunn.

     Ele achava-se de joelhos próximo de uma cama de campanha, que haviam encaixado no meio dos antigos equipamentos do ginásio, a fim de firmá-la contra os balanços transversais e as caturradas do navio. Pitt cobriu-a com um cobertor.

     — Ela sofreu uma pancada forte, mas os seus fartos cabelos salvaram-na de qualquer coisa mais grave que uma concussão.

     — Mas como se encontrava ela no helicóptero de Sturgis? — perguntou Woodson. — Eu supunha-a junto do pessoal das telecomunicações, a bordo do Alhambra.

     — Estava — disse o almirante Sandecker. — Mas vários correspondentes das redes de televisão haviam pedido para fazer a cobertura do reboque do Titanic para Nova Iorque a bordo do Capricorn. Autorizei com a condição de que Dana os acompanhasse.

     — Fui eu que os transportei — disse Sturgis. — E vi a senhora Seagram desembarcar quando pousei no Capricorn. Como pôde ela tornar a entrar no helicóptero, sem ser notada, é para mim um mistério.

     — Sim, um verdadeiro mistério... — repetiu Woodson, mordaz. — Você não se dá ao incômodo de verificar o compartimento de carga entre os vôos?

     — Eu não faço vôos comerciais — retorquiu Sturgis irritado.

     Parecia que ia esbofetear Woodson. Olhou para Pitt e recebeu um olhar de reprovação. Então, com visível esforço, dominou as suas emoções e disse vagarosa e firmemente:

     — Tinha feito aquele pássaro voar sem descanso há vinte e quatro horas. Estava cansado e convenci-me de que não havia necessidade de me incomodar com o compartimento de carga, porque eu tinha certeza de que estava vazio. Como poderia saber que Dana se esgueirara para bordo?

     Gunn abanou a cabeça.

     — Por que fez ela aquilo? Por que motivo o teria feito?

     — Não sei por quê... como o poderia eu saber? — disse Sturgis. — Porque não me explica você qual a razão que a terá levado a atirar um martelo para as pás, a enrolar-se numa lona e depois a bater com a cabeça?

     — Só que a ordem dos fatos pode ser outra.

     — E por que não lhe pergunta você isso mesmo? — disse Pitt, acenando com a cabeça para a cama.

     Dana fixava os homens, mas os seus olhos não demonstravam entendimento. Parecia que acabava de sair de um sono profundo.

     — Desculpem-me... fazer uma pergunta tola — murmurou ela — mas onde estou?

     — Minha querida menina — elucidou Sandecker, ajoelhando-se a seu lado — você está no Titanic.

     Dana olhou para o almirante ainda confusa. No seu rosto podia-se ler que ela não acreditava.

     — Não é possível!

     — Asseguro-lhe que é verdade — disse Sandecker. — Pitt, ainda sobrou algum uísque? Dê-me um copo.

     Pitt, obedientemente, fez o que lhe fora pedido e entregou um copo a Sandecker. Dana tomou um gole do Cutty Sark, engasgou-se e tossiu, ao mesmo tempo em que amparava a cabeça, como que para diminuir a dor que de repente se fez sentir.

     — Vamos, vamos, minha querida. — Era fácil de ver que Sandecker não tinha jeito nenhum para lidar com uma mulher que sofria. — Descanse mais um pouco. Você levou uma boa pancada na cabeça...

     Dana sentiu uma ligadura em volta dos seus cabelos e depois agarrou a mão do almirante, deixando cair o copo no chão. Pitt estremeceu ao ver o uísque derramar-se. "As mulheres não apreciam a boa bebida", pensou ele.

     — Não, não, estou bem. — Conseguiu sentar-se e admirou-se do aparato destinado a evitar que a cama se movesse. — O Titanic! — Pronunciou o seu nome quase reverentemente. —Estou mesmo a bordo do Titanic?

     — Sim — disse Pitt com uma voz um tanto cortante. — E agora gostaríamos de saber como veio parar aqui.

     Ela olhou-o, meio incerta, meio confusa, e depois disse:

     — Não sei. Honestamente não sei. A última coisa de que me lembro é que estava no Capricorn.

     — Nós a encontramos no helicóptero — retorquiu Pitt.

     — O helicóptero... e perdi o meu estojo de pintura... deve ter caído durante o vôo do Alhambra para... — Ela forçou um sorriso. — Sim, foi isso. Voltei ao helicóptero para procurar o meu estojo de pintura. Encontrei-o entre os assentos estofados. Tentei retirá-lo quando... bem, suponho que desmaiei e bati com a cabeça quando caí.

     — Desmaiou? Você tem a certeza de que... — Pitt interrompeu-se e fez outra pergunta: — Qual foi exatamente a última coisa que se lembra de ter avistado?

     Ela pensou um momento, com uma expressão de quem está tentando lembrar-se. Aqueles olhos castanhos, da cor do café, pareciam desmedidamente grandes no seu rosto pálido e cansado. Sandecker bateu-lhe paternalmente na mão.

     — Pense com calma.

   Por fim, os seus lábios formaram uma palavra:

     — Botas.

     — Repita — ordenou Pitt.

     — Um par de botas — respondeu ela, como se as estivesse a ver. — Sim, lembro-me agora, um par de botas de cowboy, pontiagudas.

     — Botas de cowboy? — perguntou Gunn, com uma expressão inalterável.

     Dana fez que sim.

     — Eu estava de cócoras a procurar retirar o meu estojo de pintura e então... não sei como... elas apareceram lá... — fez uma pausa.

     — De que cor eram? — atalhou Pitt.

     — Uma espécie de amarelo ou talvez creme.

     — Viu o rosto do homem?

     Ela ia menear a cabeça, mas lembrou-se a tempo, ao iniciar o movimento.

     — Não, tudo escureceu, então... foi tudo... — a voz apagou-se-lhe.

     Pitt percebeu que não havia mais nada a ganhar com a continuação do interrogatório. Baixou os olhos para Dana e sorriu-lhe. Ela levantou os olhos e retribuiu o sorriso, parecendo ansiosa por agradar.  

     — Nós, uns velhos chatos, o melhor que temos a fazer é deixá-la sozinha a fim de descansar um pouco — disse ele. — Se precisar de qualquer coisa, um de nós estará sempre por perto.

     Sandecker seguiu Pitt até ao patamar da grande escadaria.

     — Que conclusões tira você disto tudo? — perguntou Sandecker. — Por que desejaria alguém fazer mal a Dana?

     — Pela mesma razão que mataram Henry Munk.

     — Julga que ela teria descoberto alguma coisa relacionada com os agentes soviéticos?

     — No caso dela, penso que teria sido antes uma conseqüência do fato de se encontrar no lugar errado no momento errado.

     — A última coisa que nos faltava agora era termos uma mulher ferida no meio de nós. —Sandecker suspirou. — Vai ser o diabo quando Gene Seagram receber o meu rádio contando-lhe o que sucedeu à mulher.

     — Com o devido respeito, senhor, eu disse a Gunn para não enviar a mensagem. Não nos podemos arriscar a uma mudança de planos no último minuto. Os homens tomam medidas prudentes quando há mulheres envolvidas. Não hesitamos em arriscar as vidas de doze pessoas do nosso sexo, mas ficamos sempre indecisos quando se trata de pôr em perigo uma só do sexo feminino. Aquilo que Seagram, o Presidente, o almirante Kemper e outros lá em Washington não souberem, isso não os afligirá, pelo menos durante as próximas doze horas.

     — Parece que a minha autoridade anda muito por baixo, pelo menos por aqui — disse Sandecker com acidez. — Há mais alguma coisa que você se tenha esquecido de me dizer, Pitt? Como, por exemplo, a quem pertencem aquelas botas de cowboy?

     — As botas pertencem a Ben Drummer.

     — Nunca o vi com tais botas. Como poderia... como pôde você descobrir isso?

     — Eu descobri-as quando passei uma busca ao seu alojamento no Capricorn.

     — Ah! Com que então você agora tem mais um talento a acrescentar aos outros... o de arrombador... — ironizou Sandecker.

     — Não foi apenas a Drummer. Giordino e eu passamos uma busca a todos os homens da guarnição de salvamento durante o mês passado.

     — E encontraram alguma coisa interessante?

     — Nada que pudesse incriminar alguém.

     — Quem julga você que pudesse ter atacado Dana?

     — Drummer não foi. Isso é certo. Ele tem pelo menos doze testemunhas, inclusive o senhor e eu, que poderão garantir ter ele estado a bordo do Titanic desde ontem. Ter-lhe-ia sido impossível atacar Dana Seagram num navio que estava a cinqüenta milhas de distância.

     Nesse momento Woodson apareceu e tomou o braço de Pitt.

     — Desculpe interromper, chefe, mas acabamos de receber uma mensagem do Juneau. Temo que as notícias sejam ruins.

     — Vamos a elas — disse Sandecker fatigado. — As previsões não podem ser mais negras do que os fatos presentes.

     — Oh, podem, sim — disse Woodson. — A mensagem vem do comandante do cruzador e diz: "Recebi um pedido de socorro do cargueiro Laguna Star, que viaja para este e se encontra a cento e dez milhas na marcação de cinco graus da sua posição. Devo atender. Repito, devo atender. Sinto deixá-los. Boa sorte para o Titanic!"

     — "Boa sorte para o Titanic!" — repetiu Sandecker como um eco. A sua voz baixou de tonalidade, quase se apagou. — Nós bem poderíamos colocar um letreiro luminoso no costado dizendo assim: "Bem-vindos ladrões e piratas. Venham, venham todos! "

       ''Então agora é que vai começar", pensou Pitt. Porém, a única sensação que perpassou pelo seu corpo foi uma súbita e invencível necessidade de ir aos lavabos.

 

     O ar que se respirava no gabinete do almirante Kemper, no Pentágono, estava impregnado do cheiro do fumo dos cigarros e dos sanduíches deixados a meio, além de que parecia estalar sob uma invisível nuvem de tensão. Kemper e Gene Seagram estavam muito próximos, sentados a mesa do almirante, conversando baixo, enquanto Mel Donner e Warren Nicholson, o diretor da CIA, se encontravam sentados no sofá, os pés sobre a mesinha do café, dormitando. Porém, logo se aprumaram e ficaram completamente despertos quando o zumbido específico ritmado do telefone vermelho de Kemper quebrou o silêncio. Kemper resmungou qualquer coisa e voltou a colocar o auscultador no gancho.

     — Era da segurança. O Presidente vem para cá.

     Donner e Nicholson entreolharam-se e pularam do sofá. Mal tinham acabado de sacudir as migalhas da mesinha do café, endireitado as gravatas e vestido os casacos, a porta abriu-se e o Presidente entrou acompanhado de Marshall Collins, seu conselheiro para os assuntos do Kremlin. Kemper deu a volta à sua escrivaninha e foi apertar a mão do Presidente.

     — Prazer em vê-lo, senhor Presidente. Por favor, esteja à vontade. Posso servir-lhe alguma coisa?

     O Presidente deu uma olhadela ao seu relógio e sorriu.

     — Ainda faltam três horas para que os bares fechem. Que tal um Bloody Mary?

     Kemper retribuiu o sorriso e fez sinal ao seu assistente.

     — Comandante Keith, quer fazer as honras?

     Keith concordou.

     — Vai ser servido um Bloody Mary, senhor.

     — Espero, cavalheiros, que os não incomode ficar também aqui de vigília — disse o Presidente — é que também tenho muitas coisas em jogo neste assunto.

     — De modo algum, senhor — respondeu Nicholson. — É um prazer para nós.

     — Qual é a situação neste momento?

     O almirante fez um rápido relatório ao Presidente, descrevendo a inesperada violência do ciclone e mostrando as posições dos diversos navios num mapa projetado na parede, ao mesmo tempo em que ia explicando a operação de reboque do Titanic.

     — Foi realmente necessário que o Juneau tivesse abandonado a sua posição? — perguntou o Presidente.

     — Um pedido de socorro é sempre um pedido de socorro — respondeu Kemper solenemente — e deve ser atendido por todos os navios que se encontrem na área, independentemente das circunstâncias.

     — Durante o primeiro tempo teremos de jogar de acordo com as regras do parceiro — disse Nicholson. — Depois disso, o jogo será nosso.

     — O senhor pensa, almirante Kemper, que o Titanic possa suportar a luta contra o ciclone?

     — Enquanto os rebocadores puderem manter a sua proa contra o mar e o vento, é possível que ele saia vitorioso.

     — Mas se, por qualquer razão, os rebocadores não conseguirem evitar que as ondas o atinjam de través?

     Kemper evitou o olhar do Presidente e encolheu os ombros.

     — Nesse caso, estará nas mãos de Deus.

     — Mas não se poderia fazer nada?

     — Não, senhor. Não há qualquer maneira de se proteger um barco apanhado por um ciclone. Passa a ser um caso específico de cada navio.

     — Compreendo.

     Ouviu-se uma pancada na porta e um oficial entrou, estendendo duas tiras de papel sobre a mesa de Kemper e retirando-se de seguida. Kemper leu as notas e ergueu os olhos; o seu rosto manifestava pavor.

     — Uma mensagem do Capricorn — disse ele. — Sua mulher, senhor Seagram... sua mulher desapareceu, segundo informam. Foi passada uma busca a bordo, mas não conseguiram localizá-la. Temem que tenha sido lançada pela borda fora. Sinto muito.

     Seagram deixou-se cair nos braços de Collins, de olhos arregalados, horrorizado.

     — Oh, meu Deus! — gritou ele. — Não pode ser verdade. Oh, Deus! O que é que eu posso fazer? Dana... Dana...

     Donner correu para junto dele.

     — Coragem, Gene. Coragem.

     Ele e Collins conduziram Seagram para o sofá e, cuidadosamente, deitaram-no sobre as almofadas. Kemper pediu a atenção do Presidente.

     — Há uma outra mensagem, senhor. Do Samuel R. Wallace, um dos rebocadores do Titanic. O cabo de reboque partiu-se — disse Kemper. — O Titanic está à deriva no meio do ciclone.

    

     O cabo estava pendurado como se fosse uma cobra morta na popa do Wallace; o chicote partido balançava em baixo, naquela profundeza negra, a quatrocentos metros. Butera permanecia petrificado ao lado do grande guincho elétrico, não podendo acreditar no que via.

     — Mas como? — gritou ele ao ouvido do suboficial Kelly. — Como pôde ter partido? Ele foi construído para resistir a esforços muito maiores que este.

       — Não posso calcular — respondeu Kelly, gritando mais alto que a tormenta. — O esforço não era muito no momento em que ele se partiu.

     — Recolha o cabo, vamos examiná-lo.

     O suboficial obedeceu e deu as suas ordens. Folgaram o freio e o guincho começou a virar, colhendo o cabo de dentro de água. Uma vaga de espuma estalou contra a casa do cabo. O peso do cabo agia como uma âncora, arrastando para baixo a popa do Wallace, e a cada vez que se aproximava uma coluna de água ele levantava-se acima da casa do leme e caia em peso sobre ela, fazendo tremer todo o rebocador. Por fim, apareceu o chicote do cabo sobre a popa e correu até ao guincho. Logo que o freio foi aplicado, Butera e Kelly aproximaram-se e começaram a examinar os cordões rebentados. Butera não conseguia desviar os olhos; o seu rosto denotava total incompreensão. Tocou as extremidades chamuscadas dos cordões e olhou aparvalhado para o suboficial. Este não participou da mudez de Butera.

     — Jesus do Céu! — gritou ele roucamente. — O cabo foi todo cortado com um maçarico!

       Pitt estava de gatinhas sobre o piso do compartimento de carga do helicóptero, fazendo deslizar o facho da sua lanterna por baixo dos assentos estofados dos passageiros, quando o cabo de reboque caiu na água. Lá fora o vento soprava com uma força dos diabos. Pitt não podia adivinhar. Mas sem a influência estabilizadora dos rebocadores, a proa do Titanic começou a ser empurrada para sotavento pelo mar em fúria, expondo o bordo inteiro às ondas desenfreadas. O navio começava a ficar atravessado.

     Foram-lhe apenas necessários dois minutos para ele encontrar o estojo de pintura de Dana. Havia ficado firmemente preso atrás de um dos assentos

estofados fronteiros, imediatamente atrás da antepara da cabine de controle. Pôde logo perceber porque tinha ela tido tanta dificuldade em desencravar a caixa de nylon da sua prisão. Muito poucas mulheres possuíam inclinações mecânicas e Dana não era positivamente uma delas. Não lhe ocorrera desenganchar, simplesmente, as correias de fixação e dobrar o assento. Pitt fez isso e o estojo veio lhe parar às mãos. Não se incomodou a abri-lo; não estava interessado. O que lhe

interessava era o compartimento embutido na antepara da vante, onde ficava acomodada uma jangada de vinte homens, quer dizer, onde devia ficar. A cobertura amarela revestida de borracha

estava de fato lá, mas a jangada havia desaparecido. Pitt não teve sequer tempo para apreciar o significado da sua descoberta. No preciso momento em que ele procurava puxar a cobertura vazia de dentro do seu compartimento, uma onda monstruosa quebrou-se contra o costado do desprotegido Titanic, fazendo-o adernar para estibordo, parecendo não querer parar mais.

     Pitt tentou desesperadamente agarrar-se a um dos suportes dos assentos, mas, não o conseguindo, foi atirado como um saco de batatas pelo piso inclinado abaixo, indo bater contra a porta meio aberta do compartimento com tal força que fez um lanho de dez centímetros na cabeça. Por felicidade, Pitt perdeu a consciência durante as horas que se seguiram. Tinha uma vaga idéia de uma ventania gelada passando pela fuselagem, e quase mais nada. A sua mente estava mergulhada numa massa de lã cinzenta e ele sentia-se como que afastado e distante das coisas que o envolviam. Não pôde, por isso, saber, ou mesmo sentir, que o helicóptero partira as suas amarras triplas e fora arremessado pela extremidade da plataforma de pouso, por cima da sala de estar da primeira classe, para o convés de manobra, torcendo a cauda e perdendo as pás da hélice, antes de passar por sobre uma amurada e cair no mar encapelado.

    Os russos abordaram o Titanic durante o período em que a tempestade amainou. Lá no fundo, na saladas máquinas e na casa das caldeiras, Spencer e o seu grupo não tiveram a menor oportunidade de resistir. A sua total surpresa serviu para demonstrar toda a eficiência e todo o empenho de Prevlov no planejamento exato e na execução pormenorizada do golpe. A luta que se desenrolou em cima, ou mais propriamente, o massacre, terminou quase antes de haver começado.

     Cinco fuzileiros russos, a metade da força de abordagem, de rostos praticamente escondidos pelos gorros de marinheiro, bastante enterrados na cabeça e um pano passado abaixo dos olhos entraram no ginásio com metralhadoras ligeiras, apontadas antes que qualquer um pudesse compreender o que se estava a passar.

     Woodson foi o primeiro a reagir. Desprendeu-se do rádio, de olhos arregalados pela percepção do que estava acontecendo e com uma expressão de ódio estampada no rosto normalmente calmo.

     — Canalha! — exclamou e arremessou-se contra o que estava mais próximo.

     Uma faca, porém, apareceu na mão do homem, que habilmente a cravou no peito de Woodson, atingindo-lhe o coração. Woodson ainda conseguiu agarrar o seu assassino, mas logo, vagarosamente, foi escorregando até seus pés, o choque estampado nos olhos; em seguida uma expressão de quem não acredita; depois a dor e, finalmente, o vazio da morte.

     Dana sentou-se na cama e gritou repetidas vezes. Foi o estímulo de que necessitavam os outros membros da guarnição de salvamento para entrar em ação. Drummer atingiu o assassino de Woodson no queixo com um punho, mas como conseqüência recebeu uma coronhada de metralhadora no rosto. Sturgis precipitou-se sobre um deles, tentando agarrá-lo, mas calculou mal. Uma coronhada alcançou-o na têmpora no momento em que ele esbarrava com o homem que tentava atingir. Ambos rolaram pelo chão, mas o homem rapidamente se pôs de pé, enquanto Sturgis permanecia caído como se estivesse morto. Giordino estava na iminência de atirar uma ferramenta à cabeça de outro russo, quando se ouviu um ruído de estourar os tímpanos: uma bala havia lhe atravessado a mão e feito rolar a ferramenta. O tiro fez cessar todos os movimentos.

     Sandecker, Gunn e o chefe Bascom com os seus homens pararam no meio da ação, ao verificarem abruptamente que era inútil qualquer tentativa de defesa de homens desarmados contra armas de homens altamente bem treinados. Nesse preciso momento um homem entrou na sala; os seus olhos, de um cinzento vivo, repararam em cada pormenor da cena. Não precisou de mais de três segundos, três segundos nada mais. Era tudo do que André Prevlov precisava para ter uma visão geral de qualquer situação que se apresentasse. Baixou os olhos para Dana, que ainda gritava e sorriu-lhe gentilmente.

     — Isto a incomoda, minha cara senhora? — perguntou ele num inglês idiomático e fluente. — Penso que o pânico feminino produz um esforço desnecessário nas cordas vocais.

     Os olhos redondos de Dana exprimiam aflição. Fechou a boca e sentou-se na cama, toda encolhida, fitando a poça de sangue que se espalhava por baixo de Omar Woodson e então começou a tremer de uma forma incontrolável

       — Agora sim. Assim é muito melhor.

     Prevlov dirigiu o olhar para Woodson, depois para Drummer, que se achava sentado e tentava cuspir um dente e em seguida para Giordino, que enfrentou o seu olhar, segurando a mão que sangrava.

     — Foi uma tolice tentarem resistir — disse Prevlov. — Um morto, três feridos e nenhuma vantagem.

     — Quem é você — perguntou Sandecker. — Com que direito assalta o meu navio e assassina a minha guarnição?

     —Ah! É uma pena que nos tenhamos encontrado em circunstâncias tão desagradáveis — desculpou-se Prevlov. — O senhor é o almirante Sandecker, não é verdade?

     — As minhas perguntas ainda permanecem — lançou Sandecker com raiva.

     — O meu nome não importa — respondeu Prevlov. — A resposta à sua outra pergunta é óbvia. Estou tomando posse deste navio em nome das Repúblicas Socialistas da União Soviética.

       — O meu Governo jamais permanecerá de braços cruzados e permitirá que as coisas fiquem assim.

     — Puro engano — murmurou Prevlov. — O seu Governo permanecerá de braços cruzados.

     — Você está a subestimar-nos.

     Prevlov meneou a cabeça.

     — Eu não, almirante. Tenho pleno conhecimento do que são capazes os seus patrícios. Mas sei também que eles não vão iniciar uma guerra em virtude da abordagem legítima de um navio derrelicto.

     — Abordagem legítima? — repetiu Sandecker.

      — As leis do Serviço Civil de Salvamento definem um barco derrelicto como aquele que foi

abandonado no mar pela sua tripulação, sem intenção de voltar a ele ou de tentar recuperá-lo.

     — Uma vez que a guarnição está a bordo, a sua presença aqui constitui um clamoroso procedimento de pirataria em alto mar.

     — Queira dispensar-me a sua interpretação das leis marítimas. — Prevlov ergueu a mão em protesto. — O senhor tem absoluta razão, neste momento.

     A implicação estava clara.

     — O senhor não se atreveria a lançar-nos à deriva no meio de um ciclone.

     — Nada tão mundano, almirante. Além de que estou perfeitamente a par do fato de que o Titanic está a meter água. Preciso do seu maquinista. Spencer, creio ser esse o seu nome, e dos seus homens para manter as bombas em ação, até que a tempestade se acalme. Depois disso o senhor e os seus homens receberão uma jangada. A vossa partida garantir-nos-á, então, o direito de salvamento.

     — Não será permitido que vivamos para testemunhar isso — disse Sandecker. — O seu Governo nunca o haveria de permitir. O senhor bem o sabe e eu também.

     Prevlov olhou para ele calmamente, sem afetação, depois virou-se, descuidadamente, quase de modo insensível, abandonando Sandecker. Falou em russo com um dos fuzileiros. O homem fez que sim, inclinou-se para o rádio e, usando a coronha da sua metralhadora, reduziu-o a pedaços de vidro, a fios e a peças de metal.

     — Não haverá mais necessidade da sua sala de operações. — Prevlov caminhou em volta da sala. — Instalei os meus aparelhos de comunicação no salão de jantar principal, no convés D. Se o senhor e os outros quiserem ter a bondade de me acompanhar, cuidarei do vosso conforto até que o tempo melhore.

     — Mais uma pergunta — disse Sandecker, sem se mover. — Tenho o direito de saber isso.

     — Certamente, almirante, certamente.

     — Onde está Dirk Pitt?

     — Sinto ter que informar — disse Prevlov com uma simpatia irônica — que o senhor Pitt estava no seu helicóptero quando ele rolou para dentro de água por cima da amurada. A sua morte deve ter sido rápida...

 

     O almirante Kemper estava sentado em frente de um tristonho Presidente e, distraidamente, pôs quatro colheres de açúcar na sua xícara de café.

       — O porta-aviões Beechers Island está se aproximando da área de procura. Os seus aviões iniciarão a busca ao raiar do dia. Não se preocupe, senhor Presidente. — Kemper forçou um sorriso amarelo. — Teremos o Titanic novamente a reboque por volta do meio-dia. Tem a minha palavra!

     O Presidente levantou os olhos.

     — Um navio desprotegido, à deriva e perdido no meio do pior ciclone dos últimos cinqüenta anos? Um navio meio enferrujado e que esteve no fundo do mar durante setenta e seis anos? Um navio para se apoderar do qual o Governo soviético procura apenas um pretexto? E você diz para eu não me preocupar! Ou é um homem de convicções inabaláveis, almirante, ou é um super otimista.

     — O ciclone Amanda. — Kemper suspirou ao pronunciar o nome. — Tomamos em consideração todas as contingências possíveis, porém nada nos levaria a supor que uma tempestade de tão tremenda magnitude fosse desabar em meados de maio. E desabou tão fortemente e tão de repente que nem nos deu tempo para reorganizar as prioridades e os horários.

     — Suponhamos que aos russos se lhes meteu na cabeça poderem entrar em cena e neste minuto se encontram no Titanic!

       Kemper meneou a cabeça.

     — Abordar um navio sob um vento de mais de cem milhas por hora e ondas de vinte metros? Todos os meus anos passados no mar indicam que isso é impossível.

     — Há uma semana, também o ciclone Amanda no mês de maio teria sido considerado impossível.

     O Presidente olhou, desinteressado, para Warren Nicholson, que se sentara no sofá em frente.

     — Alguma novidade?

     — Do Titanic nada — disse Nicholson. — Não enviaram mais notícias desde que entraram no olho do ciclone.

     — E os rebocadores da Armada?

     — Eles ainda não avistaram o Titanic... o que não é para surpreender. Com o radar fora de ação, eles têm de se contentar com o processo visual de busca. O que é quase impossível com uma visibilidade próxima de zero.

     Por muito tempo reinou um silêncio opressor, até que foi quebrado por Gene Seagram.

     — Não podemos perder... agora que estávamos tão perto — disse ele, procurando pôr-se de pé. — O preço terrível que pagamos... que eu paguei... o bizanio, oh, não podemos deixar que nos seja tirado outra vez.

     Os seus ombros descaíram e ele pareceu encolher-se enquanto Donner e Collins o levavam de novo para o sofá. Kemper disse num sussurro.

     — Se o pior acontecer, senhor Presidente, como procederemos então?

     — Riscaremos os nomes de Sandecker, Pitt e os outros.

     — E o Projeto Siciliano?

     —O Projeto Siciliano? — murmurou o Presidente.— Sim, o riscaremos também.

 

     Toda aquela névoa cinzenta em que Pitt se achava envolvido começou a desvanecer-se e ele pôde então tomar conhecimento de que estava de pernas para o ar e apoiado em qualquer coisa molhada. Permaneceu assim por longos minutos; a sua mente num meio termo entre a consciência e a inconsciência, até que, gradualmente, ele pôde abrir os olhos, ou pelo menos um olho; o outro estava grudado pelo sangue coagulado. Como um homem que tivesse saído depois de uma terrível luta, de um túnel escuro para a luz do dia, ele esfregou o olho bom e olhou da direita para a esquerda e de cima para baixo. Continuava dentro do helicóptero, as pernas encolhidas para o alto e as costas e ombros apoiados contra a antepara da ré. Daí, a sensação de dureza. Quanto à de se sentir molhado, o que acontecia era realmente muito mais que isso. Uma boa quantidade da água que se encontrava dentro do helicóptero ia dum lado para o outro em volta do seu corpo. Imaginou, vagamente, como é que ele tinha podido torcer-se daquela maneira e ficar naquela posição esquisita. A sensação que tinha era de que pequeninos anões lhe tivessem penetrado na cabeça em grandes correrias e se entretivessem a dar-lhe ferroadas no cérebro.

     Passou um pouco de água no rosto, sem se importar com o ardor provocado pelo sal, até que o sangue se dissolveu e desapareceu, permitindo-lhe abrir a outra pálpebra. Agora que a sua visão se normalizara, virou o corpo de modo a ficar sentado na antepara, olhando de frente para o piso. Era como se estivesse numa "casa maluca" num parque de diversões. Não podia pensar em sair pela porta da carga; ela ficara presa na posição de fechada, em virtude das sucessivas pancadas que a fuselagem sofrera no seu passeio pelo convés do Titanic. Não havendo outra escolha que não fosse sair pela escotilha da cabine de controle, Pitt começou a "subir" pelo piso, agarrando-se aos ganchos ali existentes para a fixação da carga. Segurando-se nos ganchos, ele foi subindo em direção à antepara da vante, agora transformada em teto. A cabeça doía-lhe e ele tinha de parar, de vez em quando, a fim de clarear as idéias.

     Por fim, conseguiu chegar até acima e alcançar a escotilha. Tentou abri-la mas não foi capaz. Puxou o colt e bateu no manípulo. A força do golpe fez saltar da sua mão molhada a pistola, que caiu na antepara da ré. A escotilha permanecia teimosamente fechada. Pitt respirava agora com dificuldade. Estava prestes a desmaiar devido ao cansaço. Voltou-se e olhou para baixo. A antepara da ré parecia estar muito distante. Agarrou-se a um dos grampos com ambas as mãos, balançou-se numa série de arcos cada vez mais largos e então atirou os dois pés, usando de todos os seus músculos, pois sabia que era essa talvez a sua última oportunidade. O manípulo cedeu e a tampa saltou para cima até um angulo de trinta graus. Porém, a gravidade fé-la cair de novo. Mas a pequena abertura foi tudo do que Pitt precisou para enfiar uma das mãos sobre a braçola, usando os dedos para empurrar a tampa para cima. Doeu-lhe terrivelmente quando a tampa lhe caiu sobre os nós dos dedos.

     Ali ficou pendurado, tentando sufocar a dor e procurando juntar forças para transpor o último obstáculo. Respirou profundamente e ergueu o corpo através da abertura, como faria alguém que quisesse subir a um sótão, por meio de um alçapão no teto, sem a ajuda de uma escada. Descansou outra vez, esperando que aquela tontura que sentia passasse e que o coração voltasse a bater quase normalmente. Enrolou os dedos que sangravam num lenço molhado e inspecionou a cabine de controle. Não oferecia qualquer dificuldade para escapar dela. A tampa da escotilha tinha saído das suas dobradiças e o vidro do pára-brisas fora arrancado do caixilho. Agora que a sua saída estava assegurada, começou a imaginar quanto tempo teria estado meio inconsciente. Dez minutos? Uma hora? Metade da noite? Não havia maneira de saber, pois o seu relógio havia desaparecido; provavelmente fora arrancado do pulso.

     O que teria acontecido? Procurou analisar todas as possibilidades. Teria o helicóptero sido lançado ao mar pelo vento? Não era provável. A ser assim, ele ter-se-ia tornado o seu túmulo, lá em baixo, no abismo. Mas de onde teria vindo a água que se encontrava no compartimento de carga? Talvez o aparelho se houvesse soltado das amarras e rodado de encontro a uma das anteparas do convés de manobra do Titanic. Mas isso também não poderia ter sido. Isso não explicaria o motivo porque o helicóptero se encontrava numa posição perfeitamente perpendicular. Ele tinha certeza de que cada segundo que passasse ali, sentado no meio dum ciclone, brincando de perguntas e respostas, era mais um segundo que o aproximava de ferimentos mais sérios ou mesmo da morte.

     As respostas aguardavam-no lá fora. De modo que se arrastou por cima do assento do piloto e, através das janelas quebradas do compartimento, olhou para a escuridão. Pitt olhava para a parte superior do costado do Titanic. Aquelas gigantescas chapas enferrujadas do casco estendiam-se, à pálida luz, para a vante e para a ré. Uma rápida olhadela para baixo revelou um mar encapelado. As ondas volteavam em massas confusas, colidindo umas com as outras, produzindo ruídos como os de uma barragem de artilharia. A visibilidade estava agora melhor; não caía chuva forte e o vento diminuía para, no máximo, dez ou quinze nós.

     A princípio, Pitt supôs que tivesse dormido durante todo o ciclone; porém verificou que o mar estava saltando para o céu, sem qualquer sentido ou direção. O Titanic encontrava-se à deriva no olho da espiral e, dentro de poucos minutos, toda a fúria das fases posteriores do ciclone desabaria sobre o navio, que chafurdava nas águas.

     Pitt suspendeu-se cuidadosamente sobre uma das janelas quebradas do focinho do helicóptero e então deixou-se cair sobre o convés do Titanic. Nenhum encontro com a mulher mais bonita do mundo, por mais sensual e erótico que fosse, se poderia comparar à sensação que ele sentiu ao pisar outra vez o convés molhado do velho transatlântico. Mas que convés era aquele? Pitt debruçou-se sobre a amurada, torceu o busto e olhou para cima. Lá, no convés superior, encontrava-se o peitoril destruído e agarrando ainda um pedaço do helicóptero. Isso significava que ele se encontrava sobre o convés B, o do passeio. Olhou para baixo e viu a razão da paradoxal posição do aparelho. Na sua caminhada em direção ao mar revolto, o helicóptero fora freado abruptamente pelo seu trem de aterragem, que havia sido apanhado e prendeu-se numa das aberturas para observação do convés, ficando pendurado em posição vertical como um percevejo enorme numa parede. As gigantescas ondas começaram então a atirar-se contra a sua fuselagem, colando-o ainda mais ao navio.

     Pitt não teve tempo para apreciar o milagre da sua salvação. Enquanto ali se mantinha, sentiu aumentar a pressão do vento, à medida que a cauda do ciclone se aproximava. Teve dificuldade em caminhar e compreendeu que o Titanic voltara a adornar para estibordo, agora com uma inclinação ainda maior.

     Foi então que notou as luzes de navegação de outro navio, muito próximo dele. A distância entre os dois não excederia os duzentos metros. Quanto ao seu tamanho, nada se podia saber; o mar e o céu começavam a confundir-se devido à agressividade do temporal que açoitava o seu rosto como se fosse uma lixa.

     “Será um dos rebocadores?” pensou ele. “Talvez o Juneau tenha regressado.” Mas de repente Pitt compreendeu... Aquelas luzes não eram de nenhum desses barcos. O clarão de um relâmpago mostrou-lhe a inconfundível torre que só poderia ser a proteção da antena de radar do Mikhail Kurkov. Ao subir uma escada e ao caminhar sobre a plataforma de pouso do helicóptero, no convés de manobra, ele ainda estava molhado até aos ossos e arquejante com o esforço que fizera. Fez uma pausa antes de se ajoelhar para apanhar um dos cabos de amarração e estudar os chicotes rebentados dos cordões de nylon. Então, levantou-se e, inclinando o corpo, caminhou contra o vento que uivava e desapareceu dentro daquela cortina de água que envolvia o navio.

 

     O enorme salão de jantar da primeira classe, com o seu teto todo ornamentado, estendia as suas sombras escuras para lá da parte iluminada e as outras janelas de vidro espelhado ainda existentes refletiam estranhas distorções das pessoas derrotadas e exaustas que ainda lá se encontravam sob a mira das armas dos implacáveis russos. Spencer fora forçado a juntar-se ao grupo. Os seus olhos refletiam o choque da incompreensão. Olhava para Sandecker com incredulidade.

     — Pitt e Woodson mortos? Não, isso não pode ser verdade!

     — Pois é a pura verdade — rosnou Drummer através da sua boca inchada. — Um desses sádicos bandidos meteu-lhes uma faca na barriga.

     — Foi um erro de cálculo por parte do seu amigo — disse Prevlov, encolhendo os ombros.

     Olhou de forma especulativa para a intimidada mulher e para os nove homens de pé diante dela, de faces abatidas e ensangüentadas. Parecia gozar com os esforços que eles faziam para se equilibrarem de cada vez que o Titanic era sacudido por alguma onda de través.

     — E por falar de erro de cálculo, senhor Spencer, parece que os seus homens perderam o entusiasmo para manobrar as bombas. Não preciso recordar-lhe que, a menos que a água que está entrando seja lançada ao mar novamente, este antigo monumento da extravagância capitalista.

Afundar-se-á.

     — Pode deixá-lo afundar-se — disse Spencer com naturalidade — ao menos você e a sua escória comunista também irão para o fundo com ele.

     — Não é muito provável que isso aconteça, principalmente se você considerar que o Mikhail Kurkov permanece aqui perto justamente para uma emergência dessas. — Prevlov tirou um cigarro da sua cigarreira de ouro e bateu com ele levemente, com ar pensativo. — Portanto, como deve compreender, um homem de bom senso terá de aceitar o inevitável e proceder de acordo com isso.

     — Ainda vai haver muito barulho antes que vocês ponham as vossas mãos criminosas nele. — Você não conseguirá que qualquer um de nós execute o vosso sujo trabalho — disse Sandecker.

     Pelo tom da sua voz, o assunto estava encerrado.

     — Olhe que talvez não. — Prevlov não aparentava irritação. — Penso até que bem depressa obterei a colaboração de que necessito.

     Dirigiu-se então a um dos guardas e falou baixo em russo. O guarda obedeceu, caminhou devagar através do salão de jantar e agarrou Dana pelo braço, puxando-a rudemente para baixo de uma lâmpada portátil. Num só movimento, a guarnição de salvamento avançou, mas foi contida por quatro inflexíveis metralhadoras ligeiras, apontadas ao nível das barrigas. Tiveram de parar, com o ódio e o desejo de lutar fervendo dentro deles.

     —Se lhe fizer algum mal — murmurou Sandecker na sua voz trêmula pela raiva controlada — pagará isso.

     — Oh, deixe-se disso, almirante!—disse Prevlov. — A violência é coisa para doentes. Somente um cretino tentaria fazer chantagem com o senhor e a sua guarnição com tal passatempo. Os homens americanos ainda colocam as suas mulheres sobre um pedestal de mármore. Todos vocês prefeririam morrer numa tentativa inútil de proteger a sua virtude. E isso que me adiantaria? Não, a crueldade e a tortura são métodos imperfeitos de persuasão. A humilhação... — Fez uma pausa para saborear a palavra. — Sim, a humilhação é um incentivo magnífico para induzir os seus homens a voltarem aos seus trabalhos e a manterem o navio a flutuar.

     Prevlov voltou-se para Dana. Ela olhou para ele, patética e desamparada.

     — Então agora, senhora Seagram, se quiser ter a bondade de retirar a sua roupa... toda ela.

     — Que espécie de truque barato é esse? — perguntou Sandecker.

     — Não se trata de nenhum truque. A senhora Seagram será despida, peça após peça, até que o senhor mande Spencer e os seus homens cooperarem.

     — Não! — pediu Gunn. — Não faça isso, Dana!

     — Por favor, nada de apelos — disse Prevlov com voz cansada. —Se for necessário mandarei um dos meus homens despi-la à força.

     Vagarosamente, apenas de forma perceptível, um estranho brilho de beligerância passou pelos olhos de Dana. Então, sem a mais leve hesitação, retirou o casaco, a saia e a roupa de baixo. Em menos de um minuto ela ali estava completamente nua, o seu corpo flexível e cheio de vida sob a luz direta da lâmpada. Sandecker virou-se de costas e, um a um, todos os outros homens da guarnição de salvamento o acompanharam, virando-se e olhando para o escuro.

     — Vocês vão olhar para ela — disse Prevlov friamente. — O vosso galante gesto é tocante mas completamente inútil. Virem-se, cavalheiros, a nossa representação está apenas no começo...

     — Eu penso que esta bosta estúpida e chauvinista já foi longe de mais.

     Todas as cabeças se voltaram ao mesmo tempo ao som da voz de Dana. Ela ali estava, as pernas afastadas e as mãos nas ancas;os seios apontando para a frente e os olhos brilhando com zombaria, plenamente consciente do que fazia. Apesar do penso na cabeça, ela estava magnífica.

       — A entrada é franca, rapazes, olhem quanto quiserem. O corpo de uma mulher não é nenhum grande segredo. Todos vocês já viram e certamente tocaram em algum antes. Por que esses olhares envergonhados?

     Pareceu então refletir; os seus lábios abriram-se e ela começou a rir. Decisivamente, havia roubado a cena a Prevlov. Este fitou-a e apertou os lábios vagarosamente.

     — Uma impressionante representação, senhora Seagram; uma impressionante representação, na verdade. Porém, trata-se de uma amostra típica da decadência ocidental, que dificilmente me diverte.

     — Mostre-me um comunista e eu lhe mostrarei uma nádega suja, de cada vez —escarneceu Dana. — Se vocês, seus cabeças de merda, pudessem saber como todo o mundo ri por trás das vossas costas de cada vez que vocês vêm com essas ridículas expressões marxistas como "decadência ocidental", ''imperialistas provocadores de guerra" ou "manipulação burguesa", bem poderiam pensar melhor e mostrarem um pouco de classe. Do modo como as coisas estão, vocês não são senão a maior força diabólica já representada como espécie humana, desde que descemos das árvores. E se você tivesse colhões, haveria de encarar o fato.

     Prevlov ficou branco.

     — Isto já foi longe demais — cortou ele.

     Estava na iminência de perder o controle que tão bem evidenciara e sentiu-se frustrado. Dana estendeu o seu opulento corpo.

     — Que tal, Ivan? Cansado de se exercitar carregando mulheres russas? Não pode habituar-se à idéia de uma rapariga emancipada da Terra da Liberdade e da Pátria dos Bravos rindo-se das suas tristes idéias? Vá se foder — disse Dana e sorriu docemente.

     Prevlov não perdia nada. Notou o olhar vacilante trocado entre Giordino e Spencer, os movimentos dos punhos de Sturgis e a leve inclinação da cabeça de Drummer. Compreendia agora perfeitamente que os movimentos de Dana, indolentes mas contínuos, afastando-se dos americanos em direção à retaguarda dos soldados russos, não eram inconscientes, mas bem planejados. A sua representação fora quase perfeita. Os fuzileiros russos torciam os pescoços para espiarem, completamente embasbacados: e as metralhadoras começavam a ficar flácidas em suas mãos quando Prevlov gritou uma ordem em russo. Os guardas, sacudidos do seu relaxamento, voltaram-se e encararam os homens da guarnição de salvamento, as armas novamente apontadas e firmes.

     — Os meus cumprimentos, cara senhora — Prevlov inclinou-se. — A sua pequena representação quase funcionou. Um despistamento muito inteligente.

     Havia uma curiosa satisfação cínica na expressão de Prevlov; uma frieza funcional, como se a sua habilidade houvesse sido solicitada e ele, facilmente, tivesse resolvido o caso. Ele observou Dana, avaliando a sua ligeiríssima amostra de derrota. O sorriso permanecia-lhe no rosto como se tivesse sido pintado. Os seus ombros aproximaram-se com um ligeiro tremor, mas ela logo se aprumou, orgulhosa e confiante.

     — Não sei de que está a falar.

     — Oh, certamente que não.

     Prevlov suspirou. Fitou-a por um momento e então voltou-se e disse qualquer coisa a um dos guardas. O homem puxou de uma faca e avançou vagarosamente para Dana. Dana ficou rígida e empalideceu, ficando da cor da cal.

     — O que vai fazer?

     — Ordenei que ele cortasse o seu seio esquerdo — disse Prevlov, em tom de conversa.

     Spencer olhou boquiaberto para Sandecker, os olhos implorando para que o almirante voltasse atrás.

     — Deus do Céu! — exclamou Sandecker desesperado. — Não pode permitir isso... Você prometeu: nem crueldade nem tortura...

     — Sou o primeiro a admitir que não há sutileza na selvageria — disse Prevlov. — Mas vocês não me deram outra escolha. É a única saída contra a vossa obstinação.

     Sandecker deu um passo para o lado, desviando-se do guarda mais próximo.

     — Terá de me matar primeiro.

     O guarda empurrou Sandecker com o cano da sua metralhadora por alturas do fígado, o que o fez cair de joelhos, a face contorcida pela dor, respirando alto e com dificuldade. Dana apertou os punhos de tal maneira que eles perderam totalmente a cor. Ela executara toda aquela cena e agora parecia desamparada. Os seus lindos olhos castanhos, cor de café, estavam doentes de ódio, quando ela viu os olhos do guarda de repente refletirem confusão, ao mesmo tempo em que

uma mão de aço caiu sobre o seu ombro e a empurrou para o lado.

     Pitt caminhou vagarosamente para dentro do espaço iluminado. Pitt ficou imóvel, como uma indescritível aparição que houvesse surgido das profundezas de um inferno alagado. Estava ensopado dos pés à cabeça, os cabelos negros colados à testa ensangüentada, os lábios torcidos num sorriso satânico.

     Sob a luz das lâmpadas, as gotas de água que escorriam das suas roupas molhadas cintilavam quando caíam sobre o chão. O rosto de Prevlov era uma máscara de cera. Com toda a calma, retirou um cigarro da cigarreira de ouro, acendeu-o e exalou a fumaça com um longo suspiro.

     — O seu nome? Posso supor que o seu nome é Dirk Pitt?

     — Isso é o que consta da minha certidão de nascimento.

     — Parece que é um homem de duração fora do comum, senhor Pitt. Segundo eu havia entendido, o senhor estava morto.

     — Isso apenas prova que se não deve acreditar em historietas de bordo.

     Pitt retirou o casaco molhado e, gentilmente, colocou-o sobre os ombros de Dana.

     — Desculpe, querida, é o melhor que posso fazer de momento. — Depois voltou-se para Prevlov. — Alguma objeção?

     Prevlov meneou a cabeça. As maneiras naturais de Pitt intrigavam-no. Examinou Pitt minuciosamente, como um lapidador de diamantes examina a pedra que vai cortar, mas nada descortinou por detrás daqueles olhos verde-mar. Prevlov fez um gesto a um dos seus homens, que se dirigiu para Pitt.

     — Trata-se duma simples revista de precaução, senhor Pitt. Alguma objeção?

     Pitt encolheu os ombros num gesto cordial e levantou os braços. O guarda, rápida e eficientemente, correu as mãos pelas roupas de Pitt de alto a baixo. Dando um passo para trás, abanou a cabeça.

     — Desarmado — disse Prevlov. — O que só demonstra sabedoria. Aliás, eu não poderia esperar outra coisa de um homem com a sua reputação. Li com considerável interesse um dossiê que descreve as suas façanhas. Teria gostado muito de tê-lo conhecido em circunstâncias diferentes.

     — Sinto não poder retribuir o cumprimento — disse Pitt agradavelmente. — Mas você não é exatamente o tipo de verme que gostaria de ter como amigo.

     Prevlov deu dois passos em frente e golpeou Pitt com toda a força, usando as costas da mão. Pitt recuou um passo e parou, de sorriso nos lábios. Um fio de sangue escorria do canto da boca.

     — Bem, bem — disse ele calmamente. — O ilustre André Prevlov perdeu finalmente o seu domínio.

     Prevlov inclinou-se para a frente como quem avalia, de olhos semicerrados.

     — O meu nome! — A voz era pouco mais do que um murmúrio. — Você sabe o meu nome?

     — Cortesia é cortesia — respondeu Pitt. — Eu sei tanto a seu respeito quanto você sabe sobre mim.

     — Você é até mais inteligente do que aquilo que eu fui levado a acreditar — disse Prevlov. — Descobriu a minha identidade... o que demonstra muita habilidade. Isso recomenda-o. Mas não é necessário fazer bluff com conhecimentos que não possua. Além do meu nome, você não sabe mais nada.

     — Tenho as minhas dúvidas. Talvez eu possa esclarecer sobre esse ponto, contando-lhe alguns assuntos locais.

     — Não tenho paciência para ouvir contos de fadas — disse Prevlov. Depois fez sinal ao guarda que segurava a faca. — Agora, vamos prosseguir com o nosso objetivo de persuadir   o almirante Sandecker a convencer a guarnição das bombas a empregar maiores esforços. Ficaria muito grato.

     O guarda, um homem alto, cujo rosto se encontrava ainda escondido pelo pano, começou a avançar de novo para Dana. Apontou a faca. A lâmina brilhou sob a luz a menos de oito centímetros do seio esquerdo de Dana. Ela ajustou melhor o casaco de Pitt sobre os ombros e fitou a faca, paralisada de medo.

     — É uma pena que você não seja tão bom em contos de fadas — disse Pitt em tom de conversa. — Este você havia de apreciar. É tudo acerca duns sujeitos abelhudos chamados Ouro e Prata.

     Prevlov lançou-lhe um olhar, hesitou e depois fez sinal ao guarda para que se afastasse.

     — Estou a escutar, senhor Pitt. Dou-lhe cinco minutos para esclarecer esse ponto.

     — Não vai demorar — disse Pitt. — Fez uma pausa para esfregar o olho, no qual o sangue se havia coagulado, fechando-o. — Vejamos então: era uma vez dois mecânicos canadenses que descobriram que espionar poderia ser um bom negócio. Assim, abafaram todas as suas dúvidas de consciência e tornaram-se agentes profissionais de espionagem no sentido exato da palavra, concentrando os seus talentos em obter dados classificados acerca dos programas oceanográficos americanos e enviando-os para Moscou através de canais corretos. Prata e Ouro mereceram o dinheiro que ganharam, não tenha dúvidas. Durante estes dois últimos anos não houve um só projeto da NUMA que os russos não conhecessem até aos mais ínfimos pormenores. Então, quando surgiu o salvamento do Titanic, o Departamento da Armada Soviética do Serviço Secreto Exterior, o seu departamento, Prevlov, quis tirar proveito. Sem necessidade de qualquer trapaça, você viu-se, não com um, mas com dois homens ao seu serviço em perfeitas condições de obter e fornecer as mais avançadas técnicas americanas em salvamentos a grandes profundidades. Havia uma outra consideração vital, mas essa você não estava a par dela nessa ocasião.

     — Prata e Ouro — continuou Pitt — davam informações regulares, referentes ao içamento do navio naufragado, por um método muito engenhoso. Empregavam um aparelho alimentado por bateria capaz de transmitir ondas sonoras semelhantes ao sonar. Eu devia ter compreendido isso quando o homem do sonar do Capricorn apanhou as transmissões, mas em vez disso admiti tratar-se de fragmentos soltos que as correntes de água profunda arrancavam do Titanic. O fato de que alguém estivesse enviando mensagens cifradas nunca nos passou pela cabeça. Ninguém se incomodou a dar atenção aos ruídos ocasionais. Ninguém, isto é, exceto o homem equipado com os hidrofones sentado a bordo do Mikhail Kurkov.

     Pitt fez uma pausa e passeou o olhar pelo salão de jantar. Todos tinham os olhos postos nele.

     — Nós só começamos a desconfiar quando Henry sentiu uma necessidade fisiológica numa hora imprópria. Ao regressar à popa do Sappho 2 ele ouviu o aparelho a trabalhar e investigou; foi então que apanhou um dos seus agentes em flagrante. O seu homem tentou provavelmente alguma mentira, mas Henry Munk era um especialista em instrumentos. Reconheceu o aparelho quando avistou um deles e rapidamente compreendeu o jogo. Foi a história da curiosidade que matou um gato. Logo, Munk tinha de ser silenciado e foi, com um golpe na base do crânio desferido por um dos tripés de câmera de Woodson. Isto veio criar uma situação difícil ao assassino e por isso bateu com a cabeça de Munk contra a caixa de proteção do alternador de modo a que parecesse um acidente. Entretanto, o peixe não mordeu a isca. Woodson suspeitou, eu suspeitei e acima de tudo, o doutor Bailey encontrou o ferimento no pescoço de Munk. Mas como não havia maneira de provar quem era o assassino, decidi deixar seguir a história do acidente até conseguir alguma prova para poder acusar. Mais tarde, voltei e passei uma busca ao submarino e descobri um tripé de câmera ainda com pouco uso e muito vergado, juntamente com o aparelho de som que o nosso amigável espião havia ironicamente escondido no próprio armário de Munk. Certo de que redundaria em pura perda de tempo enviá-los para terra a fim de se averiguar se haveria impressões digitais (pois não era necessário dizerem-me que eu estava lidando com um profissional), deixei o tripé e o aparelho de som exatamente no mesmo sítio em que os encontrara. Tive um palpite de que seria apenas uma questão de tempo até que o seu agente se tornasse descuidado e começasse de novo a fazer contactos com o Mikhail Kurkov. Por isso esperei...

     — Uma história fascinante, na verdade — disse Prevlov. — Mas apenas circunstancial... Prova absoluta teria sido impossível encontrar.

     Pitt sorriu enigmaticamente, e continuou:

     — A prova veio através de um processo de exclusão de partes. Eu estava relativamente seguro de que o assassino tinha de estar entre os três homens de bordo do submarino que, segundo se supunha, estaria a dormir durante o seu período de repouso. Fiz, então, alterações periódicas nas escalas de serviço do Sappho 2, de modo que dois deles tivessem serviço à superfície enquanto o terceiro estivesse ocupado embaixo, sobre o destroço. Quando o nosso operador do sonar captou a próxima transmissão do tal aparelho, eu soube quem era o assassino de Munk.

     — Quem é ele, Pitt — perguntou Sandecker, cheio de raiva. — Estamos aqui dez. Foi algum de nós?

     Pitt cruzou os olhos com Prevlov durante uns instantes e então, virando-se de repente, acenou para um daqueles homens que, exaustos, se amontoavam por baixo das lâmpadas. —Sinto que a apresentação seja feita com as batidas das ondas contra o casco, mas una-se a mim e faça uma vênia, Drummer. Pode bem ser o seu último escore antes de você assar numa cadeira elétrica.

     — Ben Drummer! — arquejou Gunn. — Não posso acreditar! Não posso, com ele ali sentado, todo esmurrado e ensangüentado depois de ter atacado o assassino de Woodson!

     — Não passou de cor local — disse Pitt. — Era cedo demais para que a cortina fosse levantada sobre a sua identidade, pelo menos até que nós tivéssemos feito o passeio da prancha. Até então, Prevlov necessitava de um informador para soprar o apito quando imaginássemos alguma solução para retomar o navio.

     — Ele enganou-me — disse Giordino. — Trabalhou por dois no serviço para manter o Titanic a flutuar.

     — Sim? — tornou Pitt. — Claro, ele parecia atarefado; até conseguiu aparecer sujo e suado, mas que o viu você, efetivamente, fazer desde que viemos para bordo?

     Gunn meneou a cabeça.

     — Mas ele está... ou antes, eu pensei que ele estivesse a trabalhar noite e dia, inspecionando o navio...

     — Inspecionando o navio, uma ova! Drummer tem estado por aí correndo, com um maçarico de acetileno, a abrir furos no fundo.

     — Essa não pega — disse Spencer. — Por que abrir buracos no navio, se os seus companheiros russos também lhe querem deitar a mão?

     — Um jogo desesperado para atrasar o reboque — respondeu Pitt. — A contagem do tempo era fundamental. A única possibilidade que os russos tinham de abordar o Titanic com êxito era em pleno olho do ciclone. Foi uma forma inteligente de pensar. Essa possibilidade nunca nos ocorreu. Se os rebocadores tivessem podido puxar o Titanic sem qualquer complicação, nós deveríamos ter passado pelo olho do ciclone por uma diferença de trinta milhas. Mas, devido a Drummer, a instabilidade do casco adernado transformou a operação de reboque numa faina viva. Antes do cabo se partir, ele desviava-se em todas as direções, forçando os rebocadores a reduzir a velocidade para o mínimo possível. E, como podem ver, a simples presença de Prevlov e do seu bando de degoladores bem demonstra o êxito dos esforços de Drummer.

     A verdade começou a vir à tona. Ninguém da guarnição de salvamento tinha, efetivamente, visto Drummer esforçar-se sobre uma bomba ou oferecer-se para fazer a sua parte no trabalho. Só agora se começava a pensar que de fato ele sempre havia estado afastado por sua conta, só aparecendo para proclamar que se sentia frustrado por não poder vencer os obstáculos que supostamente impediam a sua inspeção ao navio.

     Os homens voltaram-se para Drummer como se ele fosse um estranho de outro mundo, na esperança de que ele negasse aquelas suspeitas com palavras de indignação. Mas não haveria qualquer negação, nenhuma alegação de indignada inocência, apenas uma momentânea expressão de aborrecimento, que logo desapareceu mal tinha aparecido. A transformação de Drummer era espantosa. O seu olhar triste e amortecido havia se desvanecido; de repente os olhos ganharam uma grande vivacidade. Também havia desaparecido a curvatura nos cantos da boca e o seu corpo perdera todo o aspecto de cansado e curvado. Acabara-se aquela sua atitude indolente, para, em seu lugar, aparecer um homem de aspecto aristocrático e de ombros direitos.

     — Permita-me que lhe diga, Pitt — disse Drummer, em tom preciso — que os seus poderes de observação fariam o orgulho de um agente de primeira classe. Porém, você não descobriu nada que, realmente, mude a situação.

     — Quem diria? — disse Pitt. — O nosso antigo colega perdeu de repente o seu sotaque afetado.

       — Executei essa parte com muita habilidade, não acha?

     — Mas não foi só isso, Drummer. Em algum lugar da sua fluorescente carreira, você aprendeu a conseguir segredos e a assassinar amigos.

     — Contingências do trabalho... — disse Drummer.

     Fora se afastando da guarnição de salvamento até ficar de pé junto de Prevlov.

     — Diga-me qual é você: Ouro ou Prata?

     — Embora isso já não tenha qualquer importância — Drummer encolheu os ombros — eu sou o Ouro.

     — Então o seu irmão é o Prata.

     O rosto já recomposto de Drummer endureceu.

     — Como soube você isso? — disse devagar.

     — Depois de tê-lo descoberto, juntei as minhas provas, embora insuficientes, e entreguei-as ao FBI. Tenho de reconhecer o bom trabalho de Prevlov e dos seus camaradas do Serviço Secreto da Armada Soviética. Eles inventaram uma história a respeito de vocês que era tão americana como uma torta de maçã, ou antes, como uma torta de pêssego da Geórgia e, aparentemente, como a bandeira dos Confederados. Mas o FBI descobriu finalmente os falsos documentos, certificando a sua impecável folha e investigou a sua vida desde o seu velho lar em Halifax, na Nova Escócia, onde você e o seu irmão nasceram... com dez minutos de diferença um do outro, posso acrescentar.

     — Meu Deus! — murmurou Spencer — Eram então gêmeos!

     — Sim, mas não idênticos. Eles nem parecem irmãos.

     — De modo que se tornou um caso simples: o de um irmão conduzindo o outro — disse Spencer.

     — Nada simples — respondeu Pitt. — Drummer e o irmão são muito espertos. Não se pode negar isso. Foi o pior dos meus erros procurar estabelecer um paralelo entre os dois homens: deveriam ter os mesmos gostos, as mesmas aversões, compartilhar entre si os mesmos alojamentos e ter tendência a andarem juntos. Mas Prata e Ouro representavam papéis diferentes. Drummer vivia só, mas acamaradava igualmente com todos. Eu estava num beco sem saída. O FBI procurava investigar a vida do irmão de Drummer, ao mesmo tempo em que revia o currículo de cada membro da guarnição de salvamento, mas não conseguia descobrir qual forma de descobrir qualquer ligação. Essa ajuda surgiu enfim em cena, na forma de quase uma tragédia, denunciando o homem.

     — O acidente do Deep Fathom—disse Gunn, fixando Drummer sem pestanejar, de olhos frios. — Mas Drummer não tinha qualquer relação com o submarino. Ele pertencia à guarnição do Sappho 2.

     — Porém, tinha uma relação muito afetiva. Compreenda: o irmão dele achava-se no Deep Fathom.

     — E como compreendeu você isso? — perguntou Drummer.

     — Os gêmeos têm uma ligação muito curiosa. Pensam e sentem as coisas como se fossem uma só pessoa. Vocês conseguiram disfarçar-se como duas pessoas totalmente desligadas, Drummer. Mas eram demasiadamente unidos para que um se não denunciasse ao encontrar o outro às portas da morte. Ora, você sentiu a agonia do seu irmão como se fosse você mesmo que tivesse sido apanhado lá em baixo com ele.

     — Na verdade — disse Gunn — todos nós estávamos muito tensos na ocasião, mas Drummer estava quase histérico.

     — Novamente tive de empregar o método da exclusão de partes entre os três homens; desta vez Chavez, Kiel e Merker.Chavez é obviamente de descendência mexicana e uma pessoa não pode disfarçar uma coisa dessas. Kiel é oito anos mais novo; isso também não se pode esconder. Só ficava, então, Sam Merker.

     — Raios! — explodiu Spencer. — Como pudemos ser iludidos durante tanto tempo?

     — Não é difícil de imaginar, se considerarmos que eles eram a melhor equipe que os russos puderam colocar. — Um sorriso surgiu nos lábios de Pitt. — E agora aproveito. Spencer, você declarou a pouco que havia aqui dez de nós. Só que você contou mal: há onze. Esqueceu-se de incluir Jack, o Estripador, ali. — Voltou-se para o guarda que permanecia em frente de Dana, ainda com a faca na mão, como se dela fizesse parte. — Porque não deixa você cair o seu estúpido disfarce, Merker, e se não une ao grupo?

     O guarda retirou vagarosamente o gorro e afastou o pano que cobria a parte de baixo do rosto.

     — Ele é o patife imundo que esfaqueou Woodson — atalhou Giordino.

     — Quanto a isso, sinto muito — disse Merker, calmamente. — O primeiro erro de Woodson foi ter me reconhecido. Ele   poderia estar ainda vivo se tivesse deixado passar. O seu segundo erro, aliás fatal, foi atacar-me.

     — Mas Woodson era seu amigo...

     — O serviço de espionagem não faz concessões aos amigos.

     — Merker — disse Sandecker. — Merker e Drummer. Prata e ouro. Confiei em vocês dois e, apesar disso, vocês traíram a NUMA. Durante dois anos vocês traíram-nos. E por quê? Por uns miseráveis dólares?

     — Eu não diria miseráveis, almirante. — Merker enfiou a faca na bainha.— Mais que o suficiente para eu e meu irmão levarmos uma vida de estadão durante muito tempo.

     — Oh! E de onde veio você? — perguntou Gunn.

     — Merker deveria estar na enfermaria do doutor Bailey, a bordo do Capricorn. Ele escondeu-se no helicóptero de Sturgis — disse Pitt, limpando a cabeça que ainda sangrava, em um lenço molhado.

     — Não pode ser! — gritou Sturgis. — Você estava lá, Pitt, quando eu abri a escotilha do compartimento de carga. A não ser a senhora Seagram, o helicóptero achava-se vazio.

     — Merker estava lá, não há dúvida. Depois de ter escapulido do doutor Bailey, ele manteve-se longe do seu camarote e foi para o de seu irmão Drummer, onde tomou emprestada a roupa limpa e um par de botas de cowboy. Então, esgueirou-se para dentro do helicóptero, deitou fora a jangada de emergência e escondeu-se debaixo da tampa dela. Infelizmente para Dana, ela apareceu à procura do seu estojo de pintura. Quando se ajoelhou para apanhá-lo, os seus olhos fixaram-se sobre as botas de Merker, que apareciam por baixo da tampa da jangada. Para não ser descoberto, ele deu-lhe uma pancada na cabeça com um martelo que encontrara perto, depois envolveu-a na lona e voltou para o seu esconderijo.

     — O que quer dizer que ele ainda se encontrava no compartimento de carga quando encontramos a senhora Seagram...

       —Não. Nessa altura já ele havia ido embora. Se ainda se lembra, depois que a escotilha do compartimento de carga foi aberta, esperamos alguns minutos, procurando notar qualquer movimento no seu interior. Não houve nenhum, porque Merker já havia passado à cabine de controle, protegido pelo ruído do motor da porta. Então enquanto eu e você brincávamos aos Keystone Kops e entrávamos no compartimento de carga, descia ele pela escada da cabine e caminhava em paz pela noite dentro.

     — Mas qual a finalidade de atirar o martelo contra as pás do motor? — persistiu Sturgis.

       — Sim, para quê?

     — Uma vez que você trouxe o helicóptero vazio do Capricorn — disse Merker — e não havia nada para descarregar, eu não podia arriscar-me a que você voasse de novo sem abrir a porta do compartimento de carga. Você tinha-me preso lá atrás e não sabia disso.

     — Depois disso, você tornou-se então um pequeno e ativo castor — disse Pitt para Merker — percorrendo o navio, orientado, sem dúvida, por algum diagrama fornecido por Drummer. Primeiramente, apanhou o equipamento de corte portátil de seu irmão e queimou o cabo de reboque, enquanto o chefe Bascom e os seus homens estavam repousando no ginásio, no intervalo das inspeções. Em seguida, cortou as amarras do helicóptero, congratulando-se, estou certo, com a perspectiva de que ele seria lançado pela borda fora, comigo lá dentro.

     — Seriam dois coelhos de uma só cajadada — admitiu Merker — Por que negá-lo?...

     Merker foi interrompido pelo ruído de uma rajada de metralhadora que ecoou de algum lugar nos conveses de baixo. Prevlov encolheu os ombros e olhou para Sandecker.

     — Receio que os seus homens lá em baixo se estejam a mostrar difíceis. — Removeu o cigarro da boquilha e pisou-o. — Penso que esta discussão já durou bastante. O ciclone terá passado dentro de poucas horas e será então o Mikhail Kurkov que passará a fazer o reboque. Almirante Sandecker: providencie para que os seus homens cooperem no trabalho das bombas. Drummer mostrará os sítios onde ele furou o casco abaixo da linha de água, a fim de que a sua guarnição possa fazer frente aos vazamentos.

     — Quer então dizer que vamos voltar ao jogo das torturas — disse Sandecker desdenhosamente.

   — Já estou farto de jogos, almirante. — Prevlov mostrou um olhar decidido. Falou a um dos guardas, um homem baixo de aspecto duro e grosseiro — Este é Buski, homem de poucas palavras e além disso o melhor atirador do seu regimento. Ele entende também alguma coisa de inglês, pelo menos o suficiente para traduzir uma contagem numérica. — Voltou-se para o guarda. — Buski, vou começar a contar. Quando chegar a cinco, você atira no braço direito da senhora Seagram. A dez, no esquerdo; a quinze, no joelho direito; e assim por diante até que o almirante Sandecker corrija a sua maneira de cooperar.

     — Um processo prático — acrescentou Pitt. — E você fuzilará os que sobrarem depois de terem servido os seus propósitos; colocará pesos nos seus corpos e lançá-los-á ao mar de modo a que nunca possam ser encontrados. Então, alegará que abandonamos o navio de helicóptero, o qual teria caído no mar, claro. Apresentará até duas testemunhas, Drummer e Merker, que irão relatar depois o seu milagroso salvamento e como os benevolentes russos os arrancaram do mar justamente quando estavam a afundar pela terceira vez.

     — Não vejo necessidade de prolongar a agonia por mais tempo — disse Prevlov com voz cansada. — Buski.

     Buski levantou a metralhadora ligeira e apontou-a para o braço de Dana.

     — Você intriga-me, Prevlov — disse Pitt. — Mostrou pouco interesse em saber como descobri eu o nome de código de Drummer e Merker e porque não os apanhei logo que pude identificá-los.

     — Curioso, sim, mas isso não faz diferença. Nada já pode modificar a situação. Nada nem ninguém poderá vir em seu auxílio e dos seus amigos, Pitt. Agora, não. Nem a CIA nem toda a Armada dos Estados Unidos. Uma decisão foi tomada. Não haverá mais jogos de palavras.

     Prevlov acenou para Buski.

     — Um.

     — Quando o comandante Prevlov chegar a quatro, você morrerá.

     Buski lançou um olhar de não convencimento e não deu resposta.

     — Dois.

     — Nós sabíamos dos seus planos para tomar o Titanic. O almirante Sandecker e eu tivemos conhecimento disso durante as últimas quarenta e oito horas.

     — Você gastou o seu último bluff — disse Prevlov. — Três.

     Pitt encolheu os ombros.

     — Então, todo o sangue cairá em suas mãos, Prevlov.

     — Quatro.

     Um estrondo de estourar os ouvidos percorreu o salão, quando a bala apanhou Buski abaixo da linha dos cabelos, entre os olhos, arrancando-lhe uma quarta parte do crânio numa mancha carmesim, em câmara lenta, atirando para cima a sua cabeça e fazendo-o cair no chão de forma violenta aos pés de Prevlov.

     Dana gritou de dor e surpresa ao ser atirada ao piso. Não houve pedido de desculpa por parte de Pitt por tê-la atirado para ali e a fazer depois perder a respiração ao achatá-la com os seus oitenta e seis quilos, para a proteger. Giordino mergulhou na direção de Sandecker e atirou-o ao chão com toda a força de um guarda-redes ao lançar-se à bola num lance desesperado. Os demais da guarnição de salvamento não perderam mais de um décimo de segundo para demonstrar o seu amor à vida. Separaram-se e caíram como folhas de árvores no meio de uma ventania, seguidos de perto por Drummer e Merker, que caíram como se tivessem sido amarrados juntos.

     Ainda se ouviam as rajadas nos cantos distantes do salão quando os guardas recuperaram o sangue-frio e começaram a disparar as suas metralhadoras para o meio da escuridão, à entrada do salão de jantar. A reação não demorou. O primeiro foi abatido quase instantaneamente e caiu para a frente, sobre o rosto. O segundo jogou a arma para o ar e tentou conter o rio de sangue que jorrava do pescoço, enquanto o terceiro mergulhava sobre os joelhos, fitando emudecido os dois furinhos que, de repente, apareceram no seu casaco.

     Prevlov encontrava-se agora sozinho. Olhou para todos os que estavam caídos no chão e depois para Pitt. A sua atitude era de aceitação, aceitação da derrota e da morte. Fez um aceno a

Pitt e então, calmamente, tirou a pistola do coldre e começou a disparar para a escuridão. Descarregou o pente e ali ficou esperando pelo clarão das armas, o corpo sob tensão, aguardando a dor que certamente viria. Porém, o fogo não veio.

O salão ficou em silêncio. Todo o movimento pareceu diminuir, e só então ele compreendeu. Não era intenção deles matá-lo. Tinha sido uma cilada e ele caíra nela como um ingênuo como uma criancinha na caverna de um tigre. No seu íntimo começou a surgir um nome zombando dele, repetindo-se continuamente. Marganin... Marganin... Marganin...

 

     Define-se vulgarmente uma foca' como sendo um mamífero carnívoro aquático com barbas membranosas e de pele macia; mas os fantasmas que, de repente, se encontram em volta de Prevlov e dos guardas abatidos dificilmente poderiam ser definidos de tal modo.

     A SEAL, uma sigla formada pelas palavras sea, air e lant, da Armada dos Estados Unidos, era uma organização onde um extraordinário escol de combatentes recebia um intensivo treino em todos os tipos de combate, desde a demolição submarina até à guerra nas selvas. Cinco destes homens achavam-se vestidos com impermeáveis de borracha preta, capuzes e botas justas. Não era possível distinguir-se o rosto pintado de negro, o que tornava difícil saber-se onde terminava a roupa e começava a pele. Quatro traziam rifles automáticos de coronha dobrável, ao passo que o quinto segurava uma arma Stoner, uma coisa de aspecto esquisito, de dois canos. Um dos "seals" adiantou-se dos demais e ajudou Pitt e Dana a porem-se de pé.

     — Oh, Deus — gemeu Dana. — Durante um mês vou ficar cheia de nódoas negras.

     Durante cerca de cinco segundos, ainda meio tonta, ela fez massagens no seu corpo dolorido, esquecida de que o casaco de Pitt tinha se aberto. Quando de novo a compreensão de tudo lhe chegou; quando ela avistou os guardas mortos por ali caídos em atitudes grotescas, a voz quase se lhe sumiu.

     — Oh, merda... Oh, merda...

     — Penso que já se poderá afirmar que a dama sobreviveu — disse Pitt com um leve sorriso.

     Apertou a mão do "seal" e apresentou-o ao almirante Sandecker, ainda meio atordoado, apoiado no ombro de Giordino.

     — Almirante Sandecker, permita-me que lhe apresente o nosso libertador, o tenente Fergus, da SEAL, da Armada dos Estados Unidos.

     Sandecker respondeu ao elegante cumprimento de Fergus com um aceno feliz, abandonou o apoio de Giordino e ficou em posição correta.

     — O navio. Tenente, quem comanda o navio?

     — Se não... Se não estou enganado, almirante, é o senhor...

     As palavras de Fergus foram cortadas por outra rajada de metralhadora, que ecoou de qualquer ponto do fundo do navio.

     — A última teimosa defesa — Fergus sorriu.

     Era óbvio. Os seus dentes brancos cintilaram como uma luz de néon à meia-noite.

     — O navio está retomado, senhor. Posso garanti-lo.

     — E a guarnição da bomba?

     — Em perfeita ordem e de volta ao trabalho.

     — Quantos homens sob o seu comando?

     — Duas unidades de combate, almirante. Ao todo dez homens, incluindo eu.

     — Dez homens somente, disse você?

     — Ordinariamente, para um assalto desta natureza, empregaríamos apenas uma unidade de combate, mas o almirante Kemper pensou que seria melhor duplicar a nossa força por uma questão de segurança.

     — A Armada progrediu um bocado depois que eu passei à reserva — disse Sandecker, saudoso.

     — Alguma baixa? — perguntou Pitt.

     — Até a cinco minutos, havia um desaparecido e dois dos meus homens feridos, sem gravidade.

     — De onde vieram vocês? — Foi Merker quem fez a pergunta. Ele mirava a cena com olhar desagradável, por cima do ombro, exausto — Não havia qualquer navio na área, nenhum avião à vista. Como?...

     Fergus olhou para Pitt interrogativamente. Pitt assentiu.

     — Tem a minha permissão para informar o nosso colega dos fatos, tenente. Ele poderá meditar sobre as suas respostas enquanto estiver à espera no corredor da morte.

     — Viemos para bordo por um processo difícil — explicou Fergus. — A quinze metros de profundidade, saímos pelos tubos lança-torpedos de um submarino nuclear. Foi por isso que perdi um dos meus homens: o mar era um verdadeiro inferno. Uma onda deve ter rebentado com ele de encontro ao casco do Titanic enquanto nós aguardávamos, um a um, a nossa vez de subir pela escadinha que o senhor Pitt nos lançara pela borda.

     — É estranho que mais ninguém os tenha visto subir para bordo — murmurou Spencer.

     — Não há nada de estranho nisso — disse Pitt. — Enquanto eu estava ajudando o tenente Fergus e a sua equipe a passar por cima da amurada do convés de carga à ré, vocês todos estavam reunidos no ginásio, aguardando a minha comovente palestra a respeito do sacrifício pessoal.

     Spencer meneou a cabeça.

     — Como se costuma dizer, esteve a enganar toda a gente durante algum tempo.

     — Devo reconhecer — disse Gunn — que você conseguiu iludir a todos.

     — Enquanto isso, os russos quase iam ganhando a partida. Não esperávamos que eles entrassem em cena senão quando a tempestade amainasse. Aproveitar o auge da fúria do ciclone para fazer a abordagem foi um golpe de mestre. E quase que ia dando certo. Sem Giordino, o almirante ou eu para avisar o tenente... nós éramos os únicos que sabíamos da presença da SEAL... Fergus não teria possibilidade de saber quando deveria iniciar o ataque contra os russos.

     — Tenho de admitir — disse Sandecker — que durante alguns instantes pensei que tudo fosse por água abaixo. Giordino e eu prisioneiros de Prevlov e Pitt, segundo se pensava, morto...

     — Sabe Deus — disse Pitt — se o helicóptero não se tivesse enganchado no convés de passeio, se eu não estaria agora a dormir no fundo do mar.

     — De fato, o senhor Pitt parecia um fantasma — disse Fergus — quando apareceu no camarote do comissário de bordo. Um valentão, na verdade. Ainda meio afogado, a cabeça rachada, mesmo assim insistiu em orientar os meus homens através deste museu até que localizamos os visitantes soviéticos.

     Dana olhava para Pitt de uma maneira esquisita.

     — Quanto tempo esteve você escondido nas sombras antes de fazer aquela entrada espetacular?

     Pitt sorriu discretamente.

     — Desde um minuto antes do seu strip-tease.

     — Seu patife! Então ficou ali enquanto eu fazia aquele papel de tola — zangou-se ela. —Deixou que me usassem como se eu fosse um pedaço de carne na vitrine de um açougue!

     — Foi também por ser necessário, minha querida. Depois que vi o corpo de Woodson e o rádio destruído dentro do ginásio, não precisava ser adivinho para compreender que os rapazes da Ucrânia tinham feito a abordagem. Então conduzi Fergus e os seus homens para a casa das caldeiras, lá embaixo, pois calculei que os russos já estivessem controlando a guarnição das bombas. Tratava-se de uma questão de prioridade. Sem ela ninguém controlava o navio. Quando vi que seria mais obstáculo que ajuda para dominar os guardas russos, pedi que me cedessem um "seal" e vim procurar-vos. Depois de termos percorrido metade do navio ouvimos, finalmente, o ruído de vozes que partiam do salão de jantar. Então, ordenei ao "seal" que corresse lá embaixo em busca de reforços.

     — Tudo isto foi então uma táctica para ganhar tempo — disse Dana.

     — Exatamente. Eu necessitava de cada segundo que pudesse conseguir implorar ou roubar até que Fergus aparecesse e equilibrasse melhor as forças. Eis porque esperei até o último segundo para entrar em cena.

     — Foi um jogo muito perigoso — disse Sandecker.— Você arriscou demasiado no segundo ato.

     — Eu podia contar com duas coisas — explicou Pitt. — Uma era a compaixão. Conheço o senhor, almirante. Apesar do seu aspecto duro, costuma ajudar as senhoras velhinhas a atravessar as ruas e alimentar animais extraviados. O senhor poderia esperar até o último momento para ceder, mas acabaria por ceder. — Então Pitt passou o braço em volta de Dana e apareceu com uma arma de aspecto desagradável que retirara de um bolso do seu casaco que cobria os ombros dela. — A outra era a minha apólice de seguro. Fergus emprestou-me isto antes que a dança começasse. Chamam-lhe a arma Stoner. Ela atira uma nuvem de partículas semelhantes a agulhas. Eu poderia ter desfeito Prevlov e os seus homens com um único disparo.

     — Pensei que você se tinha portado como um cavalheiro — disse Dana, simulando um tom de voz azedo. — Afinal apenas colocou o seu casaco nos meus ombros para que eles não encontrassem a arma quando o revistassem.

     — Tem de admitir que a sua... espetacular... exposição constituiu uma distração ideal.

     — Desculpe-me, senhor — disse o chefe Bascom. — Mas qual o interesse dos russos neste balde enferrujado?

     — É exatamente o que eu estava a pensar — acrescentou Spencer. — Como se explica isso?

     — Suponho que já deixou de ser segredo. — Pitt encolheu os ombros. —O que os russos pretendem não é o navio. É um elemento raro chamado bizanio, que afundou com o Titanic em 1912. Tratado de forma adequada e instalado num sistema de defesa, segundo me disseram, fará com que os mísseis intercontinentais se tornem tão ultrapassados como os dinossauros voadores. O chefe Bascom deixou escapar um longo assovio.

     — E o senhor quer dizer que essa coisa ainda se encontra lá embaixo?

     — Sim, ainda lá está, enterrada debaixo de toneladas de escombros.

     — Vocês nunca viverão o suficiente para ver isso, Pitt. Nenhum de vocês... nenhum de nós viverá. Pela manha, o Titanic será totalmente destruído. — Não havia ódio na face de Prevlov, mas qualquer coisa que se aproximava de uma satisfação complacente. — Os senhores pensaram realmente que não foram consideradas todas as contingências? Que não havia nenhum plano alternativo para cada hipótese de fracasso? Se nós não pudermos conseguir o bizanio, também vocês o não conseguirão!

     Pitt olhou para ele um tanto estupefato.

     — Esqueça-se de qualquer esperança que ainda possa alimentar de ser resgatado pela cavalaria, no seu caso pelos cossacos a galope, Prevlov. Você fez uma tentativa brilhante, mas jogou no nosso campo, contra um baralho marcado. Você preparou-se para tudo, menos para um esquema de traição. Não sei como o esquema foi conduzido. Deve ter sido uma armadilha de engenho criativo, e você caiu como um patinho. Mas, como se diz: ao vencedor, as batatas.

     — O bizanio pertence ao povo russo — disse Prevlov gravemente. — Ele foi roubado do nosso solo pelo seu Governo. Não fomos nós os ladrões, Pitt, foram vocês.

     — Isso é um ponto a discutir. Se se tratasse de um objeto de arte histórico, de um tesouro nacional, o meu Departamento de Estado certamente providenciaria para que ele fosse embarcado de volta no próximo navio, para o Murmansk. Mas, tratando-se de um elemento de primeira importância para uma arma estratégica... Se invertêssemos as nossas posições, Prevlov, você não iria largá-lo da mão... tal como nós.

     — Então ele deve ser destruído.

     — Você está enganado. Uma arma que não visa destruir vidas, mas pelo contrário, protegê-las, nunca deve ser destruída.

     — Essa espécie de filosofia hipócrita vem confirmar aquilo que os nossos líderes sempre souberam. Vocês não podem vencer-nos. Algum dia, num futuro não muito distante, a vossa preciosa experiência de democracia vai seguir o caminho do Senado Grego: um assunto de uma época para os nossos estudantes do comunismo estudarem, nada mais.

     — Não prenda a respiração, camarada. Os seus líderes terão de mostrar muito mais habilidade antes de poderem governar o mundo.

     — Procure ler a história — disse Prevlov, com um sorriso agourento. — Através dos séculos, os povos considerados bárbaros pelas nações sofisticadas acabaram sempre por sair vencedores.

     Pitt retribuiu o sorriso com cortesia quando os "seals" conduziram Prevlov, Merker e Drummer para cima, através da grande escadaria, para um camarote onde ficaram presos com uma guarda reforçada. Mas o sorriso de Pitt não era convincente. Prevlov tinha razão. Os bárbaros sempre acabaram por vencer.

 

                     Junho de 1988

     O ciclone Amanda estava a morrer, vagarosa mas inevitavelmente. Aquilo que seria lembrado como o Grande Vendaval de 1988 fez a sua exibição devastadora, durante cerca de três dias e meio, antes do seu catastrófico golpe final. Como a última exploração de uma supernave antes de se desintegrar no espaço, ele guinou repentinamente para este e caiu sobre a península Avalon, na Terra Nova, chicoteando toda a costa desde o cabo Race até Pouch Cove. Em questão de minutos, cidade após cidade, tudo foi alagado por enormes massas de água. Diversas pequenas aldeias da costa foram varridas para o mar pelas águas que desciam das montanhas. Barcos de pescadores foram lançados sobre a costa e completamente rebentados contra as rochas. Os telhados dos edifícios da parte baixa de St. John foram arrancados e as suas ruas transformadas em rios. A água e a energia elétrica estiveram cortadas durante dias e, até que os navios de socorro chegassem, os alimentos foram disputados e tiveram de ser racionados. Não havia memória de outro ciclone que houvesse manifestado uma tal fúria e cujos ventos fossem até tão longe, tão depressa e com tamanha velocidade. As estimativas dos prejuízos rondavam os 250 milhões de dólares, dos quais 155 milhões diziam respeito às frotas pesqueiras da Terra Nova, quase totalmente destruídas.

     Nove navios haviam se perdido no mar, seis dos quais não tiveram sobreviventes. As mortes causadas pelo ciclone oscilavam Nas primeiras horas da manhã de sexta-feira, o Dr. Ryan Prescott achava-se sentado sozinho no escritório principal do Centro de Ciclones da NUMA. O ciclone Amanda tinha, finalmente, completado o seu curso e estava agora a dissipar-se sobre o golfo de São Lourenço, depois de ter causado enormes destruições e roubado algumas vidas. A batalha estava terminada. Os meteorologistas do Centro nada mais tinham a fazer.

     Após setenta e duas horas consecutivas de uma constante e tensa vigília seguindo a sua rota, todos se haviam retirado para as suas casas, a fim de descansarem. Prescott, de olhos vermelhos e cansados, olhava para as mesas cobertas de mapas, tabelas e chávenas de café pelo meio; para o chão atapetado de folhas de papel cheias de anotações e símbolos esquisitos, só conhecidos dos meteorologistas. Fitou o mapa gigante na parede e, silenciosamente, amaldiçoou a tempestade. A súbita guinada para este apanhou a todos de surpresa. Um acontecimento fora do normal, sem paralelo na história dos ciclones. Não havia registro de tal procedimento. Se, ao menos, ele tivesse fornecido qualquer indício da sua iminente alteração de rumo, eles poderiam ter avisado aquela gente da Terra Nova, precavendo-a do furioso ataque. Pelo menos metade, ou seja, cento e cinqüenta vidas teriam sido poupadas. Cento e cinqüenta homens, mulheres e crianças poderiam ainda estar vivos se as mais perfeitas fontes científicas de que dispunha para a previsão do tempo não houvessem sido postas de lado como desprovidas de significado. O insucesso fora apenas atribuído aos caprichos da natureza.

     Prescott levantou-se e deu uma última olhadela pelo mapa suspenso da parede, antes que o pessoal da limpeza viesse e fizesse desaparecer o ciclone Amanda do escritório, apagando o seu

maldito percurso, de modo a preparar tudo para os seus descendentes ainda por nascer. Uma pequena anotação saltou-lhe à vista. Era uma pequena cruz junto à qual estava escrita a palavra Titanic. A última informação que recebera dos escritórios centrais da NUMA, em Washington, era de que o navio derrelicto estava sendo puxado por dois rebocadores da Armada que lutavam desesperadamente para o afastarem do caminho do ciclone. Nada mais se havia sabido dele nas vinte e quatro horas que se seguiram. Prescott, erguendo uma chávena de café frio, fez um brinde:

     — Ao Titanic! — disse ele alto, naquela sala vazia. — Que tenhas podido agüentar cada murro desferido pelo Amanda e lhe tenhas cuspido num olho!...

     Fez uma careta ao engolir o café já velho. Então virou-se e caminhou para fora da sala, ao encontro daquela manha úmida.

    

     Ao raiar do dia ainda o Titanic flutuava. Não se percebia como ainda continuava flutuando. Ainda chafurdava na água, sem direção, apanhando o mar e o vento de través, no meio daquela agitação causada pelo ciclone. Como um lutador atordoado, recebendo um terrível castigo enquanto se agarra às cordas do ringue, ele subia como um bêbado na crista das ondas de dez metros, enfrentando cada uma e recebendo camadas de espuma até no convés de manobra, para ressurgir, livre e cambaleante, a tempo para o golpe seguinte.

     Para o comandante Parotkin, o Titanic parecia um navio condenado, visto através do seu binóculo O seu velho casco enferrujado fora submetido a um esforço bem superior àquele que, em sua opinião, poderia suportar. Podiam ser vistos os rebites protuberantes e as costuras abertas. Calculou, então, que o navio estava a meter água em mais de cem pontos das suas obras vivas!. O que ele não podia ver eram os homens exaustos da guarnição de salvamento, os "seals" e os homens dos rebocadores da Armada trabalhando ombro a ombro, lá no fundo abaixo da linha de água, num esforço desesperado para manter o navio a flutuar.

     Do ponto de vista de Parotkin, protegido da fúria dos elementos no interior da casa do leme do Mikhail Kurkov parecia um milagre o Titanic não ter desaparecido durante a noite. Apesar disso, ele continuava agarrado à vida, embora estivesse com a proa afocinhada uns seis metros e com uma inclinação de quase trinta graus para estibordo.

     — Alguma mensagem do comandante Prevlov? — perguntou sem levantar os olhos do binóculo.

     — Nada, senhor — respondeu o imediato.

     — Receio que tenha acontecido o pior — disse Parotkin. — Não vejo qualquer sinal de que Prevlov esteja no comando do navio.

     — Ali, senhor — disse o imediato apontando — no topo do que sobrou do mastro da ré, parece ser uma flâmula russa.

    Parotkin estudou o pequenino pedaço de pano esgarçado, através do binóculo.

     — Infelizmente, a estrela que se avista na flâmula é branca e não vermelha, como a da insígnia soviética — suspirou. — Devo presumir que a operação de abordagem falhou.

     — Talvez o camarada Prevlov não tivesse ainda tido tempo para comunicar a situação.

     — Não haverá mais tempo. Os aviões de busca americanos estarão aqui dentro de uma hora. — Parotkin bateu com o punho sobre a mesa, sentindo-se frustrado. — Para o inferno com Prevlov — murmurou cheio de raiva. — “Esperemos fervorosamente que a nossa opção final não seja necessária...”, foram as suas palavras exatas. Ele ainda será um afortunado. Pode ser que já esteja morto, ao passo que eu sou quem terá de assumir a responsabilidade pelo afundamento do Titanic e dos que perderem a vida a bordo.

     O imediato empalideceu; o seu corpo ficou rígido.

       — Não há alternativa, senhor?

     Parotkin meneou a cabeça.

     — As ordens foram claras. Devemos destruir o navio de preferência a deixá-lo cair nas mãos dos americanos. — Parotkin tirou do bolso um lenço de linho e passou-o pelos olhos. —Faça a guarnição preparar a carreta do míssil nuclear e siga um rumo que nos leve para dez milhas a norte do Titanic, à nossa posição de abertura de fogo.

     O imediato fitou Parotkin por um longo momento, de rosto inexpressivo; depois, vagarosamente, dirigiu-se para o timoneiro e ordenou o novo rumo. Trinta minutos depois, tudo estava a postos. O Mikhail Kurkov mergulhava a proa nas ondas, na posição escolhida para o lançamento do míssil, enquanto Parotkin permanecia por trás do operador do radar.

     — Alguma coisa importante? — perguntou.

     — Oito aviões a jato, duzentos quilômetros a oeste, estão a aproximar-se rapidamente.

     — E navios de superfície?

     — Dois a sudoeste. Devem ser os rebocadores que estão a voltar — disse o imediato.

     Parotkin assentiu.

     — Os aviões é que me preocupam. Estarão em cima de nós dentro de dez minutos. As ogivas nucleares estão armadas?

     — Sim, senhor.

     — Então comece a contagem decrescente

     O imediato deu a ordem pelo telefone e então eles passaram a observar o exterior, da extremidade da ponte de estibordo, enquanto a escotilha do compartimento de carga da vante girou suavemente para fora e um míssil Stoski de oito metros e sessenta centímetros, tipo superfície-superfície, se levantou vagarosamente do seu tubo escamoteado e ficou em contato com o tempestuoso ar da madrugada.

     — Um minuto para abrir fogo. —A voz do técnico de mísseis fez-se ouvir no alto-falante da ponte.

     Parotkin assestou o binóculo sobre o Titanic, ao longe. Apenas conseguia avistar as suas linhas contra as nuvens cinzentas que se encontravam lá longe, no horizonte. Um tremor levemente perceptível percorreu-lhe o corpo. Os seus olhos refletiam um olhar distante e triste. Sabia que seria para sempre amaldiçoado entre os marinheiros, como o comandante que mandara de novo para o seu túmulo, debaixo de água, o desamparado transatlântico que havia sido içado para a superfície. Permanecia sob tensão, esperando o ronco do propulsor do foguete e depois a grande explosão que iria pulverizar o Titanic, quando ouviu os passos de alguém que vinha correndo da casa do leme. Era o operador do rádio, que irrompeu na ponte, a estibordo.

     — Comandante! — disse ele,rápido. — Uma mensagem urgente de um submarino americano!

     — Trinta segundos para abrir fogo. — A voz zumbiu no alto-falante.

     A expressão do operador do rádio mostrava um indisfarçável pânico ao empurrar a mensagem para as mãos do comandante. Dizia:

 

           USA, DRAGONFISH PARA USSR MIKHAIL KURKOV

           NAVIO DERRELICTO RMS TITANIC SOB

           PROTEÇÃO DA ARMADA AMERICANA.

           QUALQUER AÇÃO ABERTA DE

           AGRESSÃO DE SUA PARTE

           RESULTARÁ EM IMEDIATO

           REPITO IMEDIATO ATAQUE RETALIATIVO

           ASSINADO COMANDANTE SUBMARINO USA

     — Dez segundos e segue a contagem — ouviu-se o técnico de mísseis no alto-falante. —Sete... seis...

     Parotkin levantou os olhos com a expressão feliz e despreocupada de um homem que tivesse acabado de receber pelo correio um milhão de rublos... —... cinco... quatro... três...

     — Pare a contagem! — ordenou em tom preciso, de modo a não provocar confusão, por mau entendimento ou má interpretação.

     — Pare a contagem — repetiu o imediato no telefone da ponte, o rosto coberto de suor. — E proteja o míssil.

     — Bom — disse Parotkin, circunspeto. Um sorriso iluminou-lhe o rosto. — Não foi exatamente o que me mandaram fazer, mas penso que as autoridades do Soviete Naval compreenderão a minha atitude. Afinal de contas, o Mikhail Kurkov, na sua classe, é o melhor navio do mundo. Não desejaríamos deitá-lo fora devido a uma ordem tola e sem sentido dada por um homem que, certamente, está já morto. Ou seria que o desejaríamos?

     — Estou completamente de acordo.— O imediato retribuiu o sorriso.

     — Os nossos superiores também ficarão interessados em saber que, apesar de toda a nossa sofisticada aparelhagem de detecção, não conseguimos descobrir a presença de um submarino estrangeiro praticamente à nossa porta. Os métodos americanos de penetração submarina devem ser, na verdade, muito aperfeiçoados. Estou certo de que os americanos ficaram muito interessados em saber que os nossos navios de pesquisa oceanográficos carregam mísseis escondidos.

     — Quais são as novas ordens, senhor?

     Parotkin observou o míssil Stoski enquanto este voltava de novo para o seu invólucro.

       — Estabeleça um rumo de volta para casa.

     Virou-se e espiou por sobre o mar na direção do Titanic. Que teria acontecido a Prevlov e aos seus homens? Estariam mortos ou vivos? Viria ele a conhecer a verdade dos fatos? Lá em cima, as nuvens começaram a mudar do cinza para o branco, enquanto o vento ia diminuindo, tornando-se apenas fresco. Uma gaivota solitária surgiu e começou a descrever círculos sobre o navio soviético. Então, como se desejasse atender a um chamamento mais urgente ao sul, bateu as asas e voou para o Titanic.

 

     — Estamos perdidos — disse Spencer num tom de voz tão baixo que Pitt não estava certo de tê-lo escutado.

     — Diga lá outra vez.

     — Estamos perdidos — repetiu ele. A sua cara estava lambuzada de óleo e de um lodo que parecia ferrugem. — Já não temos esperança. Já tapamos a maioria dos furos que Drummer abriu com o maçarico, mas o mar rebentou muito o casco e o velho senhor está a meter mais água que uma peneira.

     — Temos de mantê-lo à superfície até que os rebocadores regressem — disse Pitt. — Se eles poderem acrescentar as bombas deles às nossas, conseguiremos retirar mais água do que aquela que entra enquanto reparamos os danos.

     — É um verdadeiro milagre que ele ainda não se tenha afundado há algumas horas já.

     — Quanto tempo me pode dar? — perguntou Pitt.

     Spencer fitou, cansado, as águas lamacentas em torno dos seus tornozelos.

     — Os motores das bombas estão sendo agora alimentados com os gases do combustível. Assim que os tanques de combustível secarem, as bombas pararão. É um fato duro e triste. —Ergueu os olhos para Pitt. — Uma hora, uma hora e meia. Não posso prometer mais do que isso quando as bombas pararem.

     — E se você dispusesse de combustível suficiente para fazer as bombas trabalharem?

     — Provavelmente, poderia mantê-lo à superfície, sem assistência, até por volta do meio-dia — respondeu Spencer.

     — Que quantidade de combustível seria necessária?

     — Setecentos e cinqüenta litros chegariam perfeitamente.

     Ambos levantaram os olhos quando Giordino começou a descer a escada e a chafurdar na água que inundava a casa das caldeiras número quatro.

     — Por falar em frustração — lamentou-se ele — há oito aviões a sobrevoar-nos. Seis de combate, da Armada, e dois de reconhecimento providos de radar. Tentei tudo, menos ficar de pernas para o ar e a única coisa que eles fazem é acenar de cada vez que passam por cima de nós.

     Pitt meneou a cabeça com uma tristeza sarcástica.

     — Peçam a Deus que eu nunca apresente charadas ao vosso grupo.

     — Estou aberto a sugestões — exclamou Giordino. — Gostaria que você me explicasse a maneira de informar uns sujeitos que estão a voar lá por cima, a setecentos quilômetros à hora, de que nós necessitamos de ajuda, de muita ajuda.

     Pitt coçou o queixo.

     — Tem de haver uma solução prática.

     — Claro — disse Giordino, com sarcasmo. — Basta chamar o Automóvel Clube para consertar.

     Pitt e Spencer entreolharam-se de olhos arregalados. O mesmo pensamento havia ocorrido simultaneamente aos dois.

     — Brilhantismo, puro brilhantismo! — disse Spencer.

     — Se não podemos ir a um posto de serviço — disse Pitt, sorrindo — então o posto de serviço terá de vir até nós.

     Giordino estava fora de si.

     — A fadiga perturbou a vossa cabeça — redargüiu ele. — Onde vão encontrar um telefone público? Que usarão em lugar do rádio? Os russos acabaram com o nosso, o do helicóptero está mergulhado na água e o de Prevlov recebeu duas balas durante o barulho. —Depois meneou a cabeça. — Esqueçam aqueles pássaros lá em cima. Sem uma trincha e um balde de tinta não há processo de fazer chegar uma mensagem às suas pequenas mentes ansiosas.

     — Esse problema é seu — disse Spencer, pomposamente.

     — Você tem andado sempre a olhar para cima quando deveria estar olhando para baixo. — Pitt inclinou-se e apanhou um malho que jazia no meio de uma pilha de ferramentas. — Isto vai servir — disse batendo com o malho contra a chapa do casco e fazendo o som ecoar por toda a casa das caldeiras.

     Spencer, cansado, sentou-se sobre a grade de uma caldeira.

     — Eles não vão acreditar nisso.

     — Oh, não sei — disse Pitt entre as batidas — o telégrafo das selvas. No Congo, costumava funcionar sempre.

     — Giordino tinha decerto razão. O cansaço perturbou o nosso raciocínio.

     Pitt ignorou Spencer e continuou a malhar. Passados uns cincos minutos, fez uma pausa para segurar o malho de outra maneira.

     — Vamos esperar e rezar para que um dos nativos tenha o ouvido colado ao chão — disse ele arfando.

     E assim, continuou malhando. Dos dois operadores do sonar que estavam de quarto a bordo do submarino Dragonfish, o que estava no serviço de escuta inclinara-se para o painel em frente, a cabeça de lado, tentando analisar as estranhas pancadas que lhe chegavam através dos auscultadores. Depois fez um leve movimento de cabeça e passou os auscultadores para o oficial que estava de pé junto dele.

     — De início supus tratar-se de um tubarão cabeça-de-martelo — disse o homem do sonar. — Eles costumam fazer um ruído engraçado. Mas este é, decididamente, um ruído metálico.

     —Parece um S. O. S.

     — Foi o que me pareceu, senhor. Alguém está a pedir socorro por meio de batidas no casco do seu barco.

     — De onde vem o ruído?

     O operador do sonar virou um pequenino volante que fazia ativar os sensores na proa do

submarino e olhou para o painel em frente.

     —O contato vem por três-zero-sete graus; distância, mil e oitocentos metros. Tem de ser o Titanic, senhor! Com a partida do Mikhail Korkov, ele é o único navio de superfície nesta área.

     O oficial entregou os auscultadores, voltou-se e caminhou, por uma larga escada em curva, para a torre do comando em cima; o centro nervoso do Dragonfish. Aproximou-se de um homem de meia altura, rosto redondo e bigodes grisalhos, em cujo colarinho se viam as folhas de carvalho indicativas do seu posto de comandante.

     — Sem dúvida do Titanic, senhor, está a martelar o sinal de S.O.S.

     — Tem certeza?

     — Sim, senhor. O contato é firme. — Fez uma pausa e depois perguntou: — Vamos atender?

     O comandante pareceu ficar pensativo durante um momento.

     — As ordens eram para desembarcar os "seals" e repelir o Mikhail Kurkov. E também para que ficássemos vigilantes, no caso dos russos tentarem um golpe final com os seus próprios submarinos. Se emergíssemos e nos afastássemos do nosso posto ficaríamos expostos.

     — Na última inspeção que efetuamos verificamos que o Titanic se encontrava em péssimas condições. Quem sabe se não se estará a afundar?

     — Se fosse esse o caso, eles estariam a gritar por socorro em todas as freqüências do seu rádio...

     O comandante hesitou e franziu os olhos. Deu uns passos para a cabina do rádio e inclinou-se.

     — Quando foi que recebemos a última mensagem do Titanic?

     Um dos radioperadores procurou no diário.

     — Poucos minutos antes das dezoito horas de ontem, comandante. Eles pediam as últimas informações sobre a velocidade e a direção do ciclone.

     O comandante assentiu e voltou-se para o oficial.

     — Eles não transmitem há mais de doze horas. Pode ser que o rádio deles esteja avariado.

     — Sim, é muito possível.

     — Melhor dar uma olhadela — disse o comandante. — Subir o periscópio.

     O tubo do periscópio, zumbindo, subiu vagarosamente para a posição superior. O comandante pegou no aparelho e olhou pelo ocular.

     — Parece bem tranqüilo — disse ele. — Está bastante adernado para estibordo e a proa está submersa, mas não tanto que se possa considerar em perigo. Nenhum sinal de pedido de socorro. Não se avista ninguém sobre os conveses... espere um momento, eu disse mal. Há um homem sobre a ponte. — O comandante regulou melhor o aparelho. — Bom Deus! —murmurou — É: uma mulher!

     O oficial fitou-o com incredulidade.

     — O senhor disse uma mulher?

     — Olhe você mesmo.

     O oficial assim fez. Na verdade, havia uma mulher loira sobre a ponte do Titanic. Parecia estar a acenar com um soutien. Dez minutos depois, já o Dragonfish se encontrava à superfície, à sombra do Titanic. Passados trinta minutos, o combustível de reserva do diesel auxiliar do submarino corria através das tubagens que se curvavam por sobre as ondas ainda revoltas e passava por um furo aberto, apressadamente, no casco do Titanic.

     — Esta veio do Dragonfish — disse o almirante Kemper, lendo a última de uma lista de mensagens. — O seu comandante mandou para bordo do Titanic uma equipe com o fim de ajudar Pitt e a sua guarnição de salvamento. Diz que o navio poderá flutuar, apesar dos numerosos vazamentos, durante a operação de reboque... desde que, claro está, não seja apanhado por outro ciclone...

     — Graças a Deus! — desabafou Marshall Collins, entre dois bocejos. — Informa também que a senhora Seagram se encontra a bordo do Titanic em excelente forma artística, seja o que for que isso queira significar.

     Mel Donner saiu da casa de banho, com uma toalha ainda molhada no braço.

     — Pode repetir isso, almirante?

       — O comandante do Dragonfish diz que a senhora Seagram está viva e passando bem.

     Donner correu e sacudiu Seagram, que estava deitado no divã, ferrado no sono.

     — Gene! Levante-se! Encontraram Dana! Ela está bem!

     Os olhos de Seagram abriram-se, ele piscou-os várias vezes e por algum tempo ficou olhando para Donner com a surpresa estampada na sua fisionomia.

     — Dana... Dana está viva?

     — Sim, ela deve ter estado a bordo do Titanic durante o ciclone.

     — Mas como diabo foi ela lá parar?

     — Ainda não conhecemos todos os pormenores. Só nos resta esperar. Mas o importante é que Dana está viva e bem, e o Titanic flutua.

     Seagram mergulhou a cabeça nas mãos e assim ficou sentado, todo encolhido. Começou a soluçar calmamente. O almirante estava feliz com aquela pausa, quando um comandante Keith muito cansado entrou e lhe entregou uma outra mensagem. Warren Nicholson e Marshall Collins afastaram-se de Seagram e agruparam-se por detrás da mesa de Kemper.

     — É de Sandecker:

     "Parentes visitantes foram recebidos e alojados no dormitório dos hóspedes. Caiu-me qualquer coisa num olho durante a reunião de ontem à noite, mas diverti-me chicoteando os heróis da canção: A Prata Introduz-se no Ouro. Dê uma apitadela ao primo Warren e informe que tenho um presente para ele. Faz um tempo maravilhoso. Desejaríamos que todos vocês estivessem aqui. Assinado Sandecker."

     — Parece que o almirante tem uma maneira estranha de compor uma mensagem — disse o Presidente. — Afinal, o que está ele a tentar dizer?

     Kemper fitou-o quase desajeitadamente.

     — Aparentemente, os russos abordaram o navio durante o intervalo correspondente ao auge do ciclone.

     — Aparentemente — retrucou o Presidente com acidez.

     — A prata introduz-se no ouro... — disse Nicholson excitadamente. — Prata e Ouro! Eles apanharam os dois espiões!

     — E o seu presente, primo Warren — disse Collins, sorrindo com todos os dentes — não deve ser senão o comandante Prevlov.

     — É da máxima importância que eu vá para bordo do navio o mais depressa possível —disse Nicholson a Kemper. — Quando me poderá arranjar transporte, almirante?

     A mão de Kemper já se estendia para o telefone.

     — Dentro de trinta minutos, posso arranjar-lhe um jato da Armada que o deixará na ilha das Faias. Daí poderá tomar um helicóptero para o Titanic.

     O Presidente caminhou para uma grande janela e olhou lá para fora, para o sol nascente, que começava a aparecer sobre o horizonte, a oriente, e cujos raios se espraiavam pelas águas preguiçosas do Potomac. Então, fez um longo e descontraído bocejo.      

 

     Dana achava-se debruçada sobre a amurada de vante, na ponte do Titanic, de olhos fechados. O vento do oceano batia no seu cabelo cor de mel e fazia latejar a pele do rosto voltado para cima. Ela sentiu-se leve, livre e completamente relaxada. Era como se estivesse voando. Sabia agora que não poderia voltar a enfiar aquela pele de boneca pintada que havia sido a Dana Seagram de dois dias atrás. Havia tomado uma resolução: iria divorciar-se de Gene. Nada mais interessava entre eles, pelo menos para ela. A rapariguinha que ele amara estava morta. E ela sentia prazer em saber isso. Estava nascendo de novo. Iria começar outra vez, livremente, sem impedimentos.

     —Um dólar pelos seus pensamentos.

     Ela abriu os olhos e foi saudada pela face de Dirk Pitt, agora recém barbeada e sorridente.

     — Um dólar? Supus que fosse costume dizer antes um penny.

     — A inflação atinge tudo, mais cedo ou mais tarde...

     Assim ficaram durante algum tempo sem nada dizerem, observando o Wallace e o Morse, ocupados com o cabo que os ligava à proa do Titanic. O chefe Bascom e os seus homens examinavam o cabo de reboque e passavam graxa nos pontos de atrito. O chefe olhou para cima e acenou-lhes.

     — Gostaria que esta viagem nunca mais terminasse — murmurou Dana depois de ambos terem acenado. — É tão estranha e, não obstante, tão maravilhosa. — Ela virou-se de repente e colocou a mão sobre a dele. — Prometa-me que nunca veremos Nova Iorque. Prometa-me que continuaremos a navegar para sempre, como um holandês voador.

     — Nós continuaremos a navegar para sempre.

     Ela passou os braços em torno do pescoço dele e comprimiu o corpo contra o seu.

     — Dirk, Dirk! — segredou ansiosa. — Nada mais faz sentido agora. Quero você. Quero-o agora e realmente não sei por quê.

     — Porque se encontra aqui — disse Pitt calmamente.

     Ele tomou-a pela mão e conduziu-a para baixo, pela grande escadaria até um dos apartamentos completos do convés B.

     — Eis aí, madame. O melhor apartamento de todo o navio. O preço de uma viagem é superior a quatro mil dólares. Isto eram os preços de 1912. Entretanto, em honra da luz que avisto no seu olhar, vou fazer um desconto camarada.

     Carregou-a então para a cama. Esta havia sido limpa do lodo e da podridão e estava forrada com diversos cobertores. Dana olhou para a cama com olhos de entendida.

     — Foi você que preparou isto?

     — Digamos que, como a velha formiguinha que removeu a seringueira, também eu tive ajuda bastante.

     — Sabe o que você é?

     — Um patife, um libidinoso, um sátiro... eu poderia encontrar uma dúzia de palavras adequadas para me descrever.

     Ela olhou para ele com um sorriso discreto, feminino.

     — Não, você não é nada disso. Até mesmo um sátiro não teria sido tão previdente.

     Ele puxou-a para si e beijou-a nos lábios com tal sofreguidão que ela gemeu. O comportamento dela na cama surpreendeu-o. Esperava encontrar um corpo que meramente vibrasse com os seus carinhos. Em vez disso, viu-se envolvido por ondas de carnes que o trituravam, por gritinhos agudos que ele tinha de abafar com a mão, unhas que mergulhavam nas suas costas, cortavam e traçavam riscas de onde o sangue gotejava e, finalmente, suaves e mornos soluços colados ao seu pescoço. Não pôde deixar de pensar que todas as mulheres casadas se entregariam, com a mesma volúpia, à primeira vez que fossem para a cama com outro homem que não o próprio marido. Aquela loucura durou quase uma hora e o odor úmido do suor dos corpos começou a misturar-se ao ar do aposento meio apodrecido e mal-assombrado. Finalmente, ela empurrou-o e sentou-se na cama. Levantou os joelhos e debruçou-se sobre eles, os pés cruzados.

     — Que tal me portei?

     — Como um tigre tomado de convulsões — disse Pitt.

     — Eu não sabia que podia ser assim.

     — Queria ter em escudos o número de raparigas que dizem o mesmo de cada vez que se entregam.

     — Você não pode imaginar o que é a gente sentir todo o corpo vibrar de agonia e prazer ao mesmo tempo.

     — Acredito que não. A mulher goza interiormente. Com o homem, tudo se relaciona com o exterior. Sob qualquer ângulo por que se analise, o sexo é essencialmente feminino.

     — O que sabe você do Presidente? — perguntou ela de repente, num tom suave e nostálgico.

   Pitt olhou-a com divertida surpresa.

     — O que a faz pensar nele num momento como este?

     — Posso dizer que ele é um bocado homem.

     — Não a posso informar. Nunca dormi com ele.

     Ela não ligou à piada.

     — Se tivéssemos uma mulher na Presidência e ela quisesse ir para a cama com você, qual seria a sua reação?

     — Isso dependeria... — disse Pitt. — Mas que conversa vem a ser essa?

     — Responda apenas à minha pergunta. Você iria mesmo para a cama com ela?

     — Repito. Isso dependeria.

     — Dependeria de quê?

     — Presidente ou não, eu não poderia apresentar armas se ela tivesse setenta anos, fosse gorda e tivesse a pele como uma passa.

     — Essa é a razão pela qual os homens nunca poderiam ser como as prostitutas.

     Dana sorriu vagarosamente e fechou os olhos.

     — Vamos mais uma vez.

     — Para quê? Para você dar mais largas à sua imaginação e sentir-se como se estivesse na cama com o nosso comandante-chefe?

     — E isso faz-lhe alguma diferença?

     — Está bem, farei de conta que você é Ashley Fleming.

 

     Prevlov levantou os olhos da sua posição encolhida no piso do camarote C-95, quando o "seal" que montava guarda no corredor fez girar a fechadura recentemente lubrificada e abriu a porta. O "seal", com a sua M-24 em posição, levantou um olhar de verificação e, em seguida, afastou-se para que outro homem entrasse. O homem trazia uma pasta e usava um fato de trabalho bastante necessitado de ser passado a ferro. Um leve sorriso aflorou-lhe aos lábios ao notar que Prevlov o estudava avaliando-o, surpreendido por tê-lo reconhecido.

     — Comandante Prevlov, sou Warren Nicholson.

     — Eu sei — disse Prevlov ao pôr-se de pé, com uma correta inclinação. — Eu não estava preparado para uma conversa com o Diretor da Agência Central do Serviço Secreto. Pelo menos

nestas desastrosas condições. Sinto-me envaidecido.

     — Nós é que o estamos, comandante Prevlov. O senhor é considerado caça grossa, na verdade.

     — Quer então dizer que haverá um processo completo, conhecido internacionalmente, com graves acusações contra o meu Governo por tentativa de pirataria no alto mar?.

     Nicholson tornou a sorrir.

     — Não. Exceto para poucos membros dos altos escalões do meu Governo e do seu, suponho que a sua deserção permanecerá como um segredo bem guardado.

     Prevlov olhou para o lado.

     — Deserção?

     Não era isso, evidentemente, o que ele esperava. Nicholson confirmou com a cabeça.

       — Não conseguirão fazer-me declarar, voluntariamente, que houve da minha parte uma deserção — disse Prevlov cheio de raiva. — Negarei isso em qualquer oportunidade.

     — Trata-se de um gesto nobre. — Nicholson encolheu os ombros. — Mas, uma vez que não haverá processo ou interrogatório, a única coisa que lhe restará será um pedido de asilo político.

     — O senhor diz que não haverá interrogatório? Devo acusá-lo de mentiroso, senhor Nickolson. Nenhum serviço secreto eficiente perderia a oportunidade de arrancar a um homem da minha posição tudo aquilo que ele sabe.

     — Sabe o quê? — disse Nicholson. — O senhor nada poderá dizer que nós ainda não saibamos.

     Prevlov ficou desconcertado. Precisava pôr em ordem os seus pensamentos. Só havia um meio pelo qual os americanos podiam chegar ao conhecimento da quantidade de segredos do Serviço Secreto soviético que se encontravam encerrados nos seus arquivos em Moscou. O quebra-cabeça teria de ser completado, mas em alguns pontos era bem claro. Encarou Nicholson e, depois, calmamente, disse:

     — O tenente Marganin é um dos seus homens.

     Era mais uma afirmação que uma pergunta.

     — Sim — confirmou Nicholson. — O seu nome é Harry Koskoski e nasceu em Newark, Nova Jersey.

     — Impossível! —disse Prevlov. — Eu próprio segui todas as fases da vida de Marganin. Ele nasceu e cresceu em Komsomolsk-na-Amure. É de uma família de alfaiates.

     — Certo. O verdadeiro Marganin nasceu na Rússia.

     — Então o seu homem é um duplo, um impostor?

     — Fizemos esse arranjo há quatro anos, quando um dos vossos contratorpedeiros equipados com mísseis da classe Kashin, explodiu e afundou no Oceano Índico. Marganin foi um dos poucos que sobreviveram. Foi descoberto sobre as águas por um petroleiro da Exxon, mas morreu pouco antes de o navio chegar a Honolulu. Era uma oportunidade rara; por isso tivemos de trabalhar depressa. De todos os nossos agentes secretos que falavam o russo, Koskoski era o que mais se assemelhava fisicamente a Marganin. Teve de se sujeitar a uma operação no rosto, de modo a parecer que havia ficado desfigurado na explosão. Depois foi levado de avião, para uma pequena ilha afastada das rotas normais, a duzentas e cinqüenta milhas do local do afundamento do navio. Quando o nosso falso marinheiro russo foi finalmente descoberto por pescadores locais e levado de novo para a Rússia, ele delirava e sofria de um ataque de amnésia.

     — Conheço o resto — disse Prevlov solenemente. — Não só reconstituímos o seu rosto por meio de cirurgia plástica, de maneira a que tivesse outra vez as feições de Marganin, como ainda o reeducamos para que voltasse a conhecer todo o seu passado.

     — Foi isso exatamente !

     — Um golpe brilhante, senhor Nicholson.

     — Vindo de um dos mais respeitados homens do Serviço Secreto soviético, considero esse, na verdade, um raro cumprimento.

     — Quer então dizer que todo esse esquema para me arrastar até ao Titanic foi planejado pela CIA e levado a cabo por Marganin?

     — Koskoski, aliás Marganin, estava certo de que você aceitaria o plano; como de fato aceitou.

     Prevlov pousou os olhos no chão. Ele deveria ter sabido; ele poderia ter calculado tudo se desde o início tivesse suspeitado de que Marganin o estava conduzindo, passo e passo, para a perdição. Ele nunca deveria ter caído nessa, nunca! Mas a sua vaidade levou-o a perder-se. Agora,

Curvava-se perante os fatos.

     — E aonde nos leva tudo isto? — perguntou Prevlov friamente.

     — A esta hora, já Marganin apresentou as provas da sua... se me perdoa a expressão... atividade como traidor e também, apoiado em indícios fabricados, de que a missão do Titanic foi, desde o princípio, planejada para o fracasso. Como vê comandante, o caminho que conduzia à sua traição foi cuidadosamente preparado há quase dois anos. O seu gosto por refinamentos dispendiosos foi para nós uma grande ajuda. Os seus superiores chegarão a uma conclusão: vendeu-se por muito dinheiro.

     — E se eu negar isso?

     — Quem o levaria a sério? Acredito até que o seu nome já conste de uma lista soviética dos que devem ser abatidos.

     — Então o que se passará comigo agora?

     — Tem duas alternativas: podemos libertá-lo após um período adequado...

     — Eu não duraria uma semana. Estou bem a par dos métodos utilizados pela KGB.

     — A outra alternativa seria colaborar conosco. — Nicholson fez uma pausa, hesitou e, depois, olhou friamente para Prevlov. — Considero-o um homem brilhante, o melhor na sua especialidade. Não gostamos de deitar fora as boas cabeças. Não será necessário que eu lhe descreva quanto vale para o serviço secreto da comunidade ocidental. Daí a minha intenção de o encarregar de uma nova força-tarefa. Uma linha de trabalho de acordo com as suas habilidades.

     — Supõe que me deveria sentir agradecido com isso... — disse, secamente, Prevlov.

     — A sua aparência facial será alterada, claro. Receberá ensinamentos condensados dos idiomas inglês e americano, ao mesmo tempo em que tomará conhecimentos da nossa história, dos nossos desportos, música e diversões. Para finalizar, não subsistirá em si o menor traço das suas antigas características, pelo que a KGB não o poderá identificar.

     O interesse começou a aparecer no olhar de Prevlov.

       — O seu salário será de quarenta mil dólares por ano, mais despesas e um carro.

     — Quarenta mil dólares? — perguntou Prevlov, tentando parecer natural.

     — Isso dará para uma quantidade de gim de Bombaim. — Nicholson sorriu como um lobo que se sentasse para comer com um coelho atento. — Penso que, se sinceramente tentar, acabará por apreciar os prazeres do nosso decadente estilo ocidental... Não concorda?

     Prevlov nada disse por alguns momentos. Mas a escolha era óbvia: ou um receio constante, ou uma longa vida de prazeres.

     — Você ganhou, Nicholson.

     Apertaram as mãos e Nicholson ficou agradavelmente impressionado ao ver as lágrimas aparecerem nos olhos de Prevlov.

 

     As horas finais da longa operação de reboque foram acompanhadas de céu limpo e ensolarado e de um vento fresco que, gentilmente, orientava as ondas do oceano em direção a terra, alisando-lhes o seu dorso curvo e esverdeado. Ainda antes do nascer do sol, já quatro navios da Guarda Costeira controlavam afanosamente a grande frota de barcos de recreio que se aproximavam e se afastavam, desafiando-se uns aos outros, a fim de obterem uma vista de olhos mais de perto dos conveses e superestruturas. Lá no alto, por cima das águas apinhadas, enxames de pequenos aviões e helicópteros pululavam como vespas, enquanto os pilotos iam manobrando de maneira a proporcionar aos fotógrafos e aos técnicos de cinema os melhores ângulos para obterem imagens do Titanic.

     Visto de uma altura de mil e quinhentos metros o navio, ainda adernado, fazia lembrar uma macabra carcaça que estivesse sendo atacada de todos os lados por legiões de mosquitos e de formigas brancas. O Thomas J. Morse apanhou o cabo de reboque da proa do Samuel R. Wallace e aproximou-se da popa do Titanic, passando-lhe uma espia; depois colocou-se junto à ré, a fim de ajudar o pesado navio a atravessar o estreito de Verrazano e subir o rio Este até ao velho estaleiro da Armada, em Brooklin. Diversos rebocadores do porto apareceram e colocaram-se a postos para o caso de ser necessário o seu auxílio, quando o comandante Butera deu ordens para reduzir o comprimento do cabo de reboque para 180 metros. O barco do prático chegou a poucos centímetros da amurada do Wallace e o homem saltou para bordo. Então, o Wallace aproximou-se do costado do Titanic, cujas chapas enferrujadas foram protegidas por pneus velhos pendurados na borda do rebocador.

     Em menos de um minuto já o piloto-mor do porto de Nova Iorque se havia agarrado à escada de cabos e subia para o convés de carga. Pitt e Sandecker cumprimentaram-no e, em seguida, conduziram-no para a ponte a bombordo, onde o piloto-mor colocou as mãos na amurada, como se fizesse parte dela e, solenemente, fez sinal ao rebocador para que prosseguisse a manobra.

     Butera deu um sinal de apito em resposta. Depois, o comandante do rebocador ordenou "avante devagar" e aproou o Wallace para o canal principal, que se estende desde Long Island até Staten Island, passando sob a Ponte Verrazano. Quando o estranho comboio entrou na baía superior de Nova Iorque, Butera começou a andar na ponte do rebocador, de um bordo para o outro, estudando o velho casco, o vento, a corrente e o cabo de reboque com a minúcia de um cirurgião em vias de realizar uma delicada operação. Desde a noite anterior que milhares de pessoas se aglomeravam junto à água. Em Manhattan, todas as atividades pararam praticamente:

as ruas ficaram desertas e os escritórios emudeceram quando, de repente, os seus empregados, num silencioso respeito, vieram para as janelas ver passar o velho barco, arrastando-se para o cais.

     Em Staten Island, na praia, Peter Hull, um repórter do New York Times, começou a escrever a sua história:

     "Os fantasmas existem, eu sei; avistei um ao nascer do dia, hoje de manhã. Como um grotesco espectro que tivesse sido rejeitado no inferno, ele passou diante dos meus olhos incrédulos. Envolvido numa mortalha invisível de passadas tragédias, cercado pelas almas dos seus mortos, era verdadeiramente uma respeitável relíquia de uma era passada. Não se podia olhá-lo sem se sentir, ao mesmo tempo, orgulho e tristeza..."

       Um comentarista da CBS exprimiu-se numa linguagem mais jornalística:

     “O Titanic completou hoje a sua viagem inaugural, setenta e seis anos após a sua partida de Southampton, Inglaterra...”

     Ao meio-dia, o Titanic passava diante da Estátua da Liberdade e de uma multidão de espectadores, na Battery. Ninguém falava senão em segredo e a cidade tornou-se estranhamente silenciosa; apenas um ocasional toque de buzina de algum táxi dava idéia da atividade normal. Era como se toda a cidade de Nova Iorque tivesse sido apanhada e colocada dentro de uma catedral.

     Muitos observadores choravam sem rebuço. Entre eles, três havia que eram sobreviventes daquela trágica noite, agora tão distante. O ar parecia pesado e difícil de respirar. A maior parte das pessoas, ao descreverem mais tarde o que sentiram, ficaram surpreendidas por não se terem lembrado de nada, a não ser de uma sensação esquisita de entorpecimento, como se estivessem ficado temporariamente paralisadas e mudas; exceto um rude bombeiro chamado Arthur Mooney.

     Mooney era o comandante de um dos barcos de combate ao fogo do porto de Nova Iorque. Um irlandês grande, nascido na cidade, com cara de desordeiro e dezenove anos de ofício. Ele deu um murro na bitácula e sacudiu o encanto. Depois gritou para a sua guarnição:

     — Levantem-se, rapazes. Vocês não são nenhuns bonecos de vitrine. — A sua voz fazia-se ouvir em todos os cantos do barco. Mooney raramente necessitava de alto-falante. — Aquilo ali não é mesmo um navio que está a chegar da sua viagem inaugural? Então, saudemo-lo à velha moda.

     — Mas, capitão — protestou um membro da guarnição —ele não é um Elizabeth II ou um Normandie entrando no canal pela primeira vez! Aquilo não é mais do que um casco velho, um navio morto.

     — Casco velho, uma gaita! Aquele navio que você vê ali é o mais famoso transatlântico de todos os tempos. Está a chegar um tanto castigado e um tanto atrasado. Quem se importa com isso? Liguem as mangueiras e apitem a sirene.

     Foi uma reencenação do lançamento do Titanic, mas a uma escala muito maior. No momento em que a água rebentou em grandes catapultas sobre o barco de combate a incêndios de Mooney e o apito da sirene ecoou pela cidade, outro barco seguiu-lhe o exemplo, e outro, e outro mais. Então, os cargueiros atracados começaram também a apitar. Depois, as buzinas dos carros juntaram-se-lhes ao longo das costas de Nova Jersey, Manhattan e Brooklin, seguidas dos vivas e do alarido de milhões de gargantas.

     Aquilo que havia começado com um insignificante som agudo de um apito, foi crescendo até se tornar num trovejar confuso de sons que sacudiam a terra e faziam vibrar as janelas da cidade. Foi um momento que ecoou por todos os oceanos do mundo. O Titanic havia alcançado o porto!

     Milhares de curiosos comprimiam-se no cais onde o Titanic se encontrava amarrado. Essa multidão, que se assemelhava a um formigueiro, era constituída por repórteres, autoridades, cordões de polícias e por milhares de pessoas não convidadas que procuravam saltar para pontos mais altos, a fim de verem melhor. Qualquer tentativa para impedi-las era inútil. Uma legião de repórteres e cameramen irrompeu pela prancha e cercou o almirante Sandecker, que lembrava um César vitorioso nos degraus da escadaria que conduzia ao salão de recepções do convés D.

     Este foi o grande momento de Sandecker, e um grupo de cavalos selvagens não seria suficiente para o arrastar do Titanic naquele dia. Ele não perdia uma única oportunidade para fazer propaganda da Agência Marítima e Submarina, oportunidade que ele aproveitou para inundar com o assunto a imprensa e a televisão. Ele estava encantando os repórteres

com as descrições das façanhas da guarnição de salvamento, às quais acrescentava um colorido especial, ao mesmo tempo em que ia fitando as câmeras de filmagens e sorria, sorria, sorria, sorria... Em suma, sentia-se no paraíso.

     Pitt não dava a menor importância a tudo aquilo; a sua idéia de paraíso naquele momento era a de um chuveiro e uma cama limpa e macia. Então caminhou pela prancha abaixo e mergulhou na multidão. Pensava já estar livre, quando um comentarista da televisão avançou para ele e empurrou um microfone para debaixo do seu nariz.

     — Olá, companheiro, você é um membro da guarnição de salvamento?

     — Não, eu trabalho no estaleiro — disse Pitt, gesticulando para a câmera como um labrego intimidado.

     O comentarista ficou desolado.

     — Corta isso, Joe — gritou para o cameramen. — Topamos com um vagabundo.

     Então virou-se e abriu caminho até ao navio, gritando para que a multidão não pisasse o cabo do microfone. Passada meia hora e depois de ter percorrido seis quarteirões, Pitt conseguiu finalmente um táxi, cujo motorista estava mais interessado numa corrida do que em olhar para o navio.

     — Para onde? — perguntou o motorista.

     Pitt hesitou e mirou-se nas suas horríveis roupas: a camisa e as calças manchadas de suor sob um casaco velho com o mesmo aspecto pavoroso. Não precisou de um espelho para ver os seus olhos congestionados e as suas acentuadas rugas. Podia facilmente imaginar-se o protótipo do bêbado da Bowery. Mas então pensou: "Que diabo, acabo de sair daquilo que um dia foi o mais famoso transatlântico do mundo!"

     — Qual é o hotel mais caro e luxuoso da cidade?

     — O Pierre, na Quinta Avenida, esquina com a Rua Sessenta e Um. Não é barato.

     — Então siga para o Pierre.

     O motorista olhou por cima do ombro, estudou Pitt e torceu o nariz. Depois, encolheu os ombros e meteu-se no tráfego. Não demorou meia hora até chegar em frente do Pierre, no Central Park. Pitt pagou o táxi e, passando as portas giratórias, subiu uns degraus e dirigiu-se ao balcão. O recepcionista teve para ele o clássico olhar de displicência.

     — Sinto muito, senhor, mas não temos vaga.

     Pitt sabia que era apenas uma questão de minutos antes que um enxame de repórteres descobrisse o seu paradeiro se ele desse o seu verdadeiro nome. Ainda não estava preparado para o papel de celebridade! Tudo o que desejava era um sono reparador.

     — Não sou aquilo que pareço — disse Pitt, procurando parecer indignado. — Sou o professor R. Malcolm Smythe, escritor, autor e arqueólogo. Acabo de chegar de avião após quatro meses de escavações no Amazonas e ainda não tive tempo de mudar de roupa. O meu criado deve chegar dentro de poucos instantes com a minha bagagem.

     O recepcionista transformou-se como que por encanto. Todo ele era agora sorrisos.

     — Oh, sinto muito, professor Smythe, não o reconheci. Entretanto, estamos efetivamente superlotados. A cidade está cheia de gente que veio assistir à chegada do Titanic. Estou certo de que compreenderá.

     Tinha sido um perfeito ator. Não havia acreditado em Pitt nem na conversa dele.

     — Eu respondo pelo professor — disse uma voz por trás de Pitt. — Dê-lhe o melhor apartamento e mande receber neste endereço.

     Um cartão foi atirado para o balcão. O recepcionista leu o cartão e o seu rosto iluminou-se. Então, com uma vênia, colocou uma ficha de registro em frente de Pitt e, como um prestidigitador, fez aparecer uma chave na sua mão. Pitt voltou-se vagarosamente e encontrou um rosto tão cansado e abatido como o seu. Os seus lábios abriram-se num sorriso enviesado de entendimento, mas os olhos pareciam estúpidos, vazios e perdidos como os de um fantasma. Era Gene Seagram.

     — Como conseguiu encontrar-me tão rapidamente? — perguntou Pitt.

     Estava deitado numa banheira, bebericando uma vodca com muito gelo.

     Seagram estava sentado do outro lado, na tampa da sanita.

     — Não foi preciso uma grande intuição — disse ele. — Vi-o sair do estaleiro e segui-o.

     — Supunha que você estivesse a dançar a esta hora a bordo do Titanic.

     — O navio nada representa para mim. O que me interessa é o bizanio que se encontra no seu cofre e, segundo ouvi, teremos ainda de esperar mais quarenta e oito horas até que o navio se encontre a seco e os destroços possam ser afastados do compartimento de carga.

     — Por que não se descontrai durante dois dias e não se diverte um pouco? Dentro de poucas semanas os seus problemas estarão terminados. O Projeto Siciliano sairá das pranchetas e tornar-se-á uma realidade e em condições de funcionar.

     Os olhos de Seagram fecharam-se por momentos.

     — Quero falar consigo — disse calmamente. — Quero falar-lhe de Dana.

     ''Oh, meu Deus", pensou Pitt, "é agora. Como poderei manter uma cara de pau, depois de

ter ido para a cama com a mulher dele?" Até então, tudo o que ele pudera fazer fora manter uma conversa informal.

     — Como... Como está ela depois dos momentos difíceis que teve de atravessar?

     — Muito bem, suponho. — Seagram encolheu os ombros.

     — Você disse que supõe? — Não a viu desde que ela chegou? Mas ela veio para aqui a dois dias a bordo de um helicóptero que a trouxe do navio.

     — Dana recusa-se a ver-me. Diz que entre nós está tudo acabado.

     Pitt olhou para o seu copo de vodca.

     — Portanto, toca a aproveitar. Afinal, quem precisa dela? Se eu fosse você, Seagram, iria procurar a piranha mais cara da cidade, lançava-a na conta das despesas do Governo e esquecia Dana.

     — Você não compreendeu. Eu amo-a.

       — Meu Deus, você fala como nas novelas! — Pitt debruçou-se sobre a garrafa que estava ao lado da banheira, no chão, e despejou um pouco no copo. — Olhe, Seagram, você é um tipo muito decente sob essa fachada de borra. E até talvez passe à história como um grande e humano cientista que salvou a espécie humana de uma catástrofe nuclear. Ainda tem uma aparência bastante boa para atrair uma mulher e eu quero crer que, quando limpar a escrivaninha em Washington e disser adeus ao serviço do Governo, você será um homem rico. Portanto, não espere que eu vá derramar lágrimas sobre esse amor perdido. Caminhe em frente.

     — Mas para que me serve isso sem a mulher que eu amo?

     — Vejo que não consigo convencê-lo. — Pitt já havia consumido um terço da garrafa e uma viva animação começou a percorrer-lhe o corpo. — Não se deixe ir abaixo por causa de uma sujeitinha que, de repente, pensa ter encontrado a fonte da juventude. Se ela se foi, foi-se. Os homens voltam de rastos, as mulheres não. Elas perseveram. Não existe um homem vivo que uma mulher não possa seguir até à cova. Esqueça Dana, Seagram. Há milhões de outros peixes na corrente. Se você tem necessidade de um par de tetas que faça a sua cama e prepare a ceia, contrate uma empregada; tudo considerado, elas são mais baratas e dão menos aborrecimentos.

     — Quer dizer, você agora supõe-se Sigmund Freud — disse Seagram, levantando-se. —As mulheres nada significam para você. Uma bonita relação é para si como um caso de amor com uma garrafa. Você anda fora deste mundo.

     — Ando? — Pitt ficou de pé na banheira e abriu a porta do armário dos remédios, de tal modo que Seagram ficou diante do espelho. — Olhe bem. Eis aí o rosto de um homem que, esse sim, anda desligado do mundo. Por detrás desses olhos existe um homem conduzido por mil demônios, criados pela sua própria mente. Você está doente, Seagram. Mentalmente doente em virtude de problemas que o seu próprio cérebro faz crescer desmedidamente. A partida de Dana é apenas uma contribuição para aumentar a sua terrível depressão. Você não a ama tanto como pensa. Ela é apenas um símbolo, um suporte para você se apoiar. Veja o seu olhar vidrado; olhe a pele frouxa em volta da boca. Procure um psiquiatra, mas faça-o depressa. Pense ao menos uma vez, em Gene Seagram. Esqueça-se da salvação do mundo. É tempo de salvar a si mesmo.

     O rosto de Seagram coloriu-se violentamente. Fechou os punhos e estremeceu. Então, o espelho diante dos seus olhos começou a ficar embaciado, não por fora, mas por dentro, e outra face emergiu lentamente. Uma face estranha mas com os mesmos olhos obcecados. Pitt ficou imóvel, observando a expressão de Seagram passar da raiva ao terror total.

    — Meu Deus, não... é ele!

     — Ele?

     — Ele! — gritou. — Joshua Hays Brewster!

     Então Seagram esmurrou o espelho com os dois punhos, quebrando o vidro, e fugiu do quarto de banho.

 

     Pensativa e sonhadora Dana estava de pé diante de um espelho de corpo inteiro e examinava-se detidamente. O ferimento da cabeça estava bem tapado por um novo estilo de penteado e, à parte algumas marcas azuis e pretas já meio desvanecidas, o seu corpo parecia flexível e perfeito como sempre. Sem a menor dúvida, estava aprovado no exame. Então, fitou os olhos que a olhavam. Já não havia pés-de-galinha nem novas intumescências em torno deles. O mítico olhar endurecido da mulher que perdeu a virtude não estava lá

     Em vez disso, havia neles um brilho de vibrante expectativa que não existia antes. O seu renascimento como uma mulher liberta de grilhões foi um completo êxito.

     — Queres tomar o pequeno-almoço?

     A voz de Marie Sheldon vinha lá de baixo. Dana vestiu um macio roupão de rendas.

     — Só café, obrigada — disse ela. — Que horas são?

     — Passa um pouco das nove.

     Um minuto depois, servia Marie o café, quando Dana entrou na cozinha.

     — Qual é o teu programa para hoje? — perguntou Marie.

     — Alguma coisa de tipicamente feminino... Penso que vou fazer compras. Vou almoçar sozinha em uma acolhedora casa de chá; depois passar pelo clube da NUMA e ver se arranjo um parceiro para jogar uma hora de tênis, mais ou menos.

     — Magnífico! — disse Marie secamente. — Eu sugeria antes que deixasses de fingir ser a cadelinha rica que não és e passasses a agir como uma mulher responsável, que é o que tu és.

     —Que sentido tem isso?

     Marie levantou os braços desalentada.

     — Que sentido tem isso? Entre outras coisas, querida, tu és a mulher do momento. Caso não tenhas notado, o telefone não tem parado de tocar nestes últimos três dias. Cada revista feminina deseja a tua história em exclusivo e eu recebi pelo menos oito pedidos para que apareças em entrevistas televisionadas para todo o país. Quer queiras quer não, és a grande novidade. Não achas que é tempo de voltar a terra e enfrentar o assalto?

     — O que é que eu tenho para dizer? Que era apenas a única mulher a bordo do velho navio à deriva com vinte homens. Que grande coisa!

     — Tu quase que ias morrendo lá no oceano e tratas todo esse episódio como se fosse um simples cruzeiro descendo o Nilo na barca de Cleópatra! Ter todos aqueles homens ansiosos por satisfazer todas as tuas extravagâncias deve ter-te subido à cabeça.

     Se ao menos Marie soubesse toda a verdade... Mas tanto Dana como todos a bordo tiveram de jurar a Warren Nicholson que manteriam segredo. A tentativa de assalto realizada pelos russos deveria ser enterrada e esquecida para sempre. Porém ela guardou uma espécie de satisfação perversa por saber que a sua atuação no Titanic, naquela noite fria e tempestuosa, ficaria gravada nas mentes daqueles homens para o resto das suas vidas.

     — Aconteceu lá tanta coisa! — suspirou Dana. — Nunca mais serei a mesma pessoa.

     —O que quer isso dizer?

     — Para começar, vou tratar dos papéis e divorciar-me de Gene.

     — Chegou a esse ponto?

     — Sim, chegou a esse ponto — repetiu Dana com firmeza. — Vou também tirar uma licença na NUMA e gozar a vida durante algum tempo. Enquanto o meu prestígio de "fêmea do ano" durar, vou aproveitar-me disso. As histórias pessoais, os aparecimentos na TV... vão habilitar-me a fazer o que toda a rapariga anseia fazer a vida inteira.

     — E o que é?

     — Gastar dinheiro e gozar a vida.

     Marie meneou a cabeça tristemente.

     — Começo a sentir que ajudei a criar um monstro. — Dana pegou-lhe a mão com gentileza.

     — Tu não, querida amiga. Foi preciso ver quase a morte para eu compreender que havia uma existência que não leva a parte alguma. Começou, suponho eu, com a minha infância... —   voz de Dana apagou-se quando lhe vieram à memória aquelas terríveis recordações. — A minha infância foi um pesadelo e as suas conseqüências acompanharam toda a minha vida adulta. Cheguei mesmo a contaminar o meu casamento com essa doença. Gene reconheceu os sintomas e casou comigo mais por piedade do que por amor. Inconscientemente, ele tratava-me mais como um pai do que como um amante. Não posso forçar-me a voltar para ele agora. As respostas emocionais que são necessárias para fazer crescer e manter uma relação duradoura não estão simplesmente em mim. Sou uma solitária, Marie. Sei isso agora. Sou demasiado egoísta nas minhas afeições com os outros. Daqui por diante prosseguirei sozinha. Dessa forma não vou ferir mais ninguém.

     Marie ergueu os olhos marejados de lágrimas.

     — Bem, então creio que vamos trocar de lugar. Enquanto tu encerras o teu casamento e voltas à vida de solteira, eu estou a despedir-me das minhas manias de mulher esquisita para me juntar à grande fileira das donas de casa maternais.

     Os lábios de Dana abriram-se num largo sorriso.

     — Tu e Mel? — Quando?

     — Terá de ser já, senão terei de encomendar o meu enxoval na Loja da Maternidade, Acontecimento Abençoado.

     —Estás grávida?

     — Não, é a Betty Crocker que está a crescer nas minhas entranhas!...

   Dana deu a volta à mesa e foi abraçar Marie.

     — Vais ter um bebê! Não posso acreditar!

     — Melhor acreditares. Eles tentaram o processo boca a boca e doses maciças de adrenalina, mas nada adiantou. Mesmo assim o bicho morreu.

     — Quer dizer, a coelha?

     — Por onde tens andado? Eles já abandonaram as coelhas há muito tempo!

     — Oh, Marie, estou tão feliz por ti! Nós duas vamos iniciar uma vida completamente nova! Não te sentes excitada?

     — Claro — disse Marie num tom seco. — Nada como começar de novo e de forma espetacular.

     — Não há outra saída?

     — Escolhi o caminho mais fácil, querida — Marie beijou Dana, levemente, na face. — O que me preocupa és tu. Peço-te, não caminhes tão depressa, não vás cair num precipício.

     — É no precipício que está o melhor da festa.

     — Ouve o que eu digo: aprende a nadar em águas rasas.

     — Muito insípido. — Os olhos de Dana tornaram-se pensativos. — Vou começar pela crista das ondas.

     — E como vais começar essa festinha?

     Dana encarou Marie com naturalidade.

     — Basta um telefonema.

 

     O Presidente deu a volta em torno da sua escrivaninha e veio cumprimentar efusivamente John Burdick, líder da maioria do Senado.

     — John, que prazer em vê-lo! Como vão Josie e as crianças?

     Burdick, um homem alto e magro, com uma juba de cabelos pretos que raramente viam o pente, encolheu os ombros, bem-humorado.

     — Josie está ótima. Filhos, você sabe como é. No tocante a eles, o velho pai não passa de uma máquina de fazer dinheiro.

     Depois que se sentaram a conversa terminou e então passaram às opiniões, embora divergentes, relativas aos programas orçamentais. Conquanto fossem líderes de partidos opostos e se atacassem mutuamente em público, eram bons e delicados amigos quando se encontravam na intimidade.

     — O Congresso começa a pensar que o senhor enlouqueceu, Presidente. Durante os últimos seis meses, o senhor vetou todos os projetos enviados pelo Senado à Casa Branca, desde que representassem despesas.

     — E vou continuar a vetar até ao dia em que eu atravessar aquela porta pela ultima vez — O Presidente fez uma pausa para acender um charuto fino. — Vamos encarar a verdade nua e crua John. O Governo dos Estados Unidos está falido e assim tem estado desde o fim da Segunda Guerra Mundial... Mas ninguém quer admitir isso. Seguimos alegremente o nosso caminho, conduzindo um déficit nacional que desafia a compreensão. O pobre desgraçado que nos derrotar nas próximas eleições terá de alguma forma de pagar os débitos das dispendiosas folias dos últimos cinqüenta anos.

     — Que espera que o Congresso faça? Declarar a bancarrota

     — Mais tarde ou mais cedo terá de fazê-lo.

     — As conseqüências são imprevisíveis. Metade da dívida nacional é suportada pelas companhias de seguros, poupanças e empréstimos, e pelos bancos do país. Eles desapareceriam da noite para o dia.

     — E qual é a alternativa, então?

     Burdick meneou a cabeça.

     — Recuso-me a aceitar isso.

     — Ora bolas, John, você não pode esconder a coisa debaixo do tapete. Você compreende que cada contribuinte de menos de cinqüenta anos jamais verá um cheque do Seguro Social. Dentro de mais doze anos, será completamente impossível pagar a um terço sequer das pessoas com direito a benefícios. Essa é outra razão pela qual eu dou ênfase ao alarme. Uma pequena voz

a pregar no deserto, tenho de admitir com pesar. Apesar de tudo, nos poucos meses que me restam do meu mandato, vou fazer um escarcéu dos diabos sempre que tiver oportunidade.

     — O povo americano não gosta de ouvir coisas tristes. Você não se vai tornar muito popular.

     — Isso pouco me importa. Não me interessa o que possam pensar. A luta pela popularidade é própria dos egoístas. Mais alguns meses, e eu estarei no meu próprio barco, velejando num qualquer lugar a sul de Viji e o Governo que vá para o inferno.

     — Sinto ouvir isso, Presidente. O senhor é um bom homem. Mesmo os seus piores inimigos estão de acordo nesse ponto.

     Mas o Presidente não se continha.

     — Tivemos uma grande república durante algum tempo, John, mas você, eu e todos os demais representantes demos em pantanas com ela. O Governo é uma grande empresa que não deveria ser administrada por advogados. Os homens de negócios e os contabilistas é que deveriam ser congressistas e presidentes.

     — Mas são necessários advogados para legislar.

     O Presidente encolheu os ombros, cansado.

     — E que adianta? Qualquer que seja o rumo que eu siga, a coisa não mudará. — Então aprumou-se na cadeira e sorriu. — Peço desculpa, John. Você não veio aqui para me ouvir discursar. O que deseja?

     — As despesas médicas das crianças pobres .— E Burdick olhou fixamente para o Presidente. — Também irá vetar isso?

     O Presidente recostou-se e examinou o seu charuto.

     — Sim — disse simplesmente.

     — Esse projeto é meu — disse Brudick calmamente. — Tenho-o acompanhado através da Câmara e do Senado.

     — Eu sei.

     — Como pode você vetar um projeto que beneficia as crianças cujas famílias não têm condições para lhes proporcionar cuidados médicos adequados?

     — Pelas mesmas razões por que vetei novos benefícios concernentes a cidadãos com mais de oitenta anos, programas escolares federais para as minorias e uma dúzia de outros projetos de bem-estar social. Alguém tem de pagar por eles. E as classes trabalhadoras, que sustentam este país, foram encostadas à parede com aumentos de impostos da ordem dos quinhentos por cento nos últimos dez anos.

     — Pelo amor da humanidade, senhor Presidente!

     — Pelo amor de um orçamento equilibrado, senador. De onde espera que venham os fundos para atender o seu programa?

     — O senhor poderia começar por cortar o orçamento da Seção Meta.

     Então era isso. A bisbilhotice do Congresso atravessara finalmente as paredes da Seção Meta. Tinha de acontecer, mais tarde ou mais cedo. Pelo menos foi mais tarde. Decidiu fazer o jogo sem se comprometer.

     — Seção Meta?

     — Um compartimento estanque, que você tem mantido super secreto há vários anos. Certamente que não será necessário descrever-lhe a sua operação.

     — Não — disse o Presidente com naturalidade. — Não é necessário.

     Seguiu-se um silêncio desconfortável. Finalmente, Burdick prosseguiu:

       — Os meus investigadores levaram meses a verificar... você cobriu com inteligência todos os rastos... mas eles conseguiram finalmente descobrir a fonte dos fundos empregados para o içamento do Titanic: uma organização ultra-secreta que opera sob o nome de Seção Meta e assim, chegamos à Casa Branca. Meu Deus, Presidente, o senhor autorizou quase três quartos de um bilhão de dólares para reaver aquele destroço velho e inútil, e, ainda por cima, mentiu dizendo que custou menos de metade daquela importância! E eu estou aqui a pedir apenas cinqüenta milhões para conseguir serviço médico para crianças pobres... Se me permite dizer, senhor, o seu esquisito senso de prioridade é um crime monstruoso.

     — Que pretende fazer, John? Usar de chantagem contra mim para assinar o seu projeto?

     — Para falar a verdade, sim.

     — Compreendo.

     Antes que a conversa pudesse continuar, o secretário do Presidente entrou na sala.

     — Desculpe interromper, senhor Presidente, mas o senhor tinha me pedido para verificar a sua agenda desta tarde. O Presidente fez um gesto pedindo desculpa a Burdick.

     — Perdão, John, só um momento.

     O Presidente examinou a agenda. O seu olhar parou ao encontrar um nome marcado a lápis para as 16:15. Levantou os olhos para o secretário, erguendo as sobrancelhas.

     — A senhora Seagram?

     — Sim, senhor. Ela telefonou e disse que havia conseguido a história daquele navio cujo modelo está no dormitório. Pensei que talvez o senhor estivesse interessado em saber o que ela descobriu, de modo que a encaixei aí por alguns minutos.

     O Presidente passou a mão pelo rosto e fechou os olhos.

     — Telefone à senhora Seagram e cancele a audiência das quatro e quinze. Diga-lhe que a convido para jantar comigo, às sete e trinta, a bordo do iate presidencial.

     O secretário anotou e deixou a sala. O Presidente voltou-se para Burdick.

    — Agora, John, se ainda me recusar a assinar o seu projeto, o que acontecerá?

     Burdick levantou as mãos.

     — Então não terei outra alternativa senão fazer constar, para quem queira ouvir, a maneira clandestina como você tem usado os fundos do Governo. Caso isso aconteça, você poderá contar com um escândalo ao pé do qual o caso Watergate parecerá uma ninharia.

     — Você faria isso?

     — Sim.

     Uma estranha sensação de frio pareceu envolver o Presidente.

     — Antes que você desapareça por aquela porta e gaste mais dólares dos contribuintes numa comissão parlamentar de inquérito para apurar as minhas manobras fiscais, sugiro que ouça, da minha própria boca, o que é a Seção Meta e o que ela faz na defesa da nação que mantém a ambos empregados.

     — Estou a ouvir, senhor Presidente.

     — Bom.

     Uma hora mais tarde, o senador John Burdick, completamente convencido, sentou-se no seu escritório e, cuidadosamente, despejou o seu arquivo relativamente à Seção Meta dentro de uma máquina trituradora.

 

     Era uma visão estonteante a do Titanic, todo escorado e já em posição, dentro da imensa doca esvaziada. O barulho já havia começado. Os soldadores atacavam os corredores a fim de os desimpedir. Os cravadores martelavam o casco remendado, reforçando as reparações provisórias, feitas no alto mar, nos rombos irregulares abaixo da linha de água. Em cima, dois imensos guindastes mergulhavam as suas mandíbulas nos compartimentos de carga, lá no fundo, para reaparecerem minutos após, trazendo pedaços e peças estropiadas nos seus dentes de aço.

     Pitt passou outra vez um olhar, que ele sabia ser o último, pelo ginásio e pelo convés de manobra. Era como se dissesse um adeus de véspera de Ano Novo a um período da sua vida que findava. Ali ficou mergulhado nas suas recordações. O esforço empregado no salvamento, o sangue e o sacrifício da sua guarnição e a fragilidade das esperanças que afinal os levaram à vitória. Tudo ficaria para trás. Finalmente, pôs de lado o sonho, desceu a escada principal e, como por acaso, encontrou o caminho para o compartimento de carga, no convés G.

     Por motivos diversos, todos estavam presentes, parecendo singularmente estranhos e pouco familiares sob os seus capacetes prateados. Gene Seagram, magro e trêmulo, passeava de um lado para o outro. Mel Donner, limpando o suor que lhe escorria do pescoço e do queixo, olhava preocupado para Seagram. Herb Lusky, o mineralogista da Seção Meta, estava atento com o seu equipamento. Os almirantes Sandecker e Kemper encontravam-se num canto daquele compartimento escuro, conversando baixo.

     Pitt caminhou em torno dos suportes torcidos da antepara e sobre o convés ondulado de aço vergado até se colocar por trás de um operário do estaleiro que, com toda a atenção, dirigia o maçarico de cortar para uma pesada dobradiça da porta do cofre.

     "O cofre", pensou Pitt sombriamente. Tratava-se apenas de uma questão de minutos até que o segredo escondido nas suas entranhas fosse posto a descoberto. De repente, começou a sentir um frio na espinha, parecia que tudo à sua volta esfriava e ele começou a temer a abertura do cofre. Como se partilhassem da sua apreensão, os outros homens que se encontravam naquele compartimento úmido ficaram silenciosos e vieram agrupar-se em torno de Pitt, inquietos e perturbados. Por fim, o operário voltou a chama azul do seu maçarico para o lado e levantou o rosto protegido.

     —Que tal lhe parece?

     — Na verdade, eles fabricavam bem as peças naqueles tempos — respondeu o operário .— Consegui afastar a fechadura e as dobradiças, mas a porta ainda está solidamente colada.

     — E o que vai fazer agora?

     — Vamos passar um cabo do guindaste lá de cima na porta do cofre e aguardar o melhor.

     Foi necessária quase uma hora para que uma equipe de homens passasse um cabo de cinco centímetros de espessura para dentro do compartimento e o fixasse na porta do cofre. Então,quando tudo estava pronto, foi enviado um sinal ao operário do guindaste, através de um transmissor de rádio portátil e o cabo começou vagarosamente a retesar. Não foi preciso dizer aos circunstantes para se afastarem. Eles sabiam que, se o cabo se partisse, a chicotada seria mais que suficiente para dividir uma pessoa ao meio. Ao longe eles podiam ouvir o motor do guindaste gemer. Durante longos segundos, nada aconteceu; o cabo distendia-se e tremia, os seus cordões gemendo sob aquela tremenda carga.

     Pitt pôs de parte a precaução e aproximou-se um pouco. Porém, tudo continuava na mesma. Dir-se-ia que a teimosa determinação do cofre parecia tão firme quanto o aço das suas paredes. O cabo abrandou quando o operador do guindaste diminuiu o esforço a fim de mudar a marcha do motor. Depois acelerou o motor e engrenou mais uma vez; o cabo ficou teso e vibrando de repente. Para aqueles homens ansiosos que observavam em silêncio, parecia inacreditável que o velho e enferrujado cofre pudesse resistir a tão poderoso assalto. No entanto, o inconcebível estava a acontecer. Mas, então, uma fenda mínima apareceu na aresta superior da porta do cofre, logo seguida de duas fendas verticais nas arestas laterais e, finalmente, duma quarta em baixo. Abruptamente, com um agudo grito de protesto, a porta afrouxou relutantemente o aperto e soltou-se então do grande cubo de aço. Nenhuma água jorrou da escuridão interior. O cofre havia permanecido estanque durante a sua permanência no abismo profundo.

     Ninguém fez qualquer movimento. Pareciam colados ao chão, duros, magnetizados por aquela abertura negra, pouco convidativa. Um cheiro desagradável, vindo do interior, começou a fazer-se sentir. Lusky foi o primeiro a recuperar a voz.

     — Meu Deus, o que é aquilo? Que diabo de cheiro é este?

     — Arranje-me uma luz — ordenou Pitt a um dos operários.

     Alguém conseguiu uma luz fluorescente manual. Pitt ligou-a e o interior do cofre iluminou-se com um branco azulado. Puderam então ver dez caixas de madeira firmemente fechadas com fortes tiras de couro. Puderam também ver uma outra coisa que a todos fez empalidecer: os restos mumificados de um homem.

     Achava-se deitado num canto do cofre, de olhos fechados e afundados, a pele tão enegrecida que lembrava um velho papel alcatroado no telhado de um armazém. Os tecidos musculares estavam contraídos sobre o esqueleto e vermes cobriam-no desde os pés à cabeça. Parecia um bocado de pão cheio de bolor. Apenas os cabelos brancos da cabeça e da barba estavam perfeitamente conservados. Uma poça de um líquido viscoso estendia-se em volta daquilo e umedecia a atmosfera, como se um balde de água tivesse sido atirado de encontro às paredes do cofre.

     — Quem quer que ele seja, ainda está molhado — murmurou Kemper com o horror estampado no rosto. — Como pôde durar tanto tempo?

     — A água representa mais de metade do peso do corpo — respondeu Pitt calmamente. — Simplesmente não havia dentro do cofre ar em quantidade para evaporar todo o líquido.

       Donner virou-se de costas, enojado com aquela cena macabra.

     — Quem será ele? — perguntou, procurando não vomitar.

       Pitt observava a múmia impassivelmente.

     — Penso que iremos verificar que o seu nome era Joshua Hays Brewster.

     — Brewster? —murmurou Seagram apavorado.

     — Por que não? Quem mais conhecia o conteúdo do cofre?

     O almirante Kemper meneou a cabeça assombrado.

     — Já imaginou — disse reverentemente — o que deve ter sido a morte neste buraco escuro enquanto o navio mergulhava nas profundezas do oceano?

     — Não desejo falar muito sobre o caso — disse Donner. — Provavelmente vou ter pesadelos todas as noites durante um mês.

     — É positivamente horrível — disse Sandecker com dificuldade.

     Ele estudou a expressão de tristeza e de conhecimento no rosto de Pitt.

     — Você sabia disto?

     Pitt assentiu.

       — Fui informado pelo comodoro Bigalow.

     Sandecker fixou-o com olhar interrogativo, mas ele deixou morrer o assunto e virou-se para um dos operários do estaleiro.

     — Telefone para o escritório do médico legista e diga-lhe que venha e remova aquilo dali. Depois limpe a área e mantenha-a assim até que eu lhe dê ordem em contrário.

     Os homens do estaleiro não precisaram que os apressassem. Como num passe de mágica, desapareceram do compartimento. Seagram segurou o braço de Lusky com tal força que fez o mineralogista assustar-se.

     — Está bem, Herb, o cenário agora é seu.

     Hesitante, Lusky entrou na cavidade, passando por cima da múmia e abriu uma das caixas do minério. Depois, arrumou o seu equipamento e começou a analisar o conteúdo. Após o que pareceu àqueles homens que passeavam no convés uma eternidade, ele levantou os olhos, que refletiam confusão e incredulidade.

     — Este material não tem qualquer valor.

     Seagram aproximou-se.

     — Repita isso.

     — Não tem valor. Não existe o mais leve vestígio de bizanio.

     — Experimente outra caixa — disse Seagram angustiado.

     Lusky obedeceu e voltou ao trabalho. Tudo se repetiu com a caixa seguinte e com outra e mais outra, até que o conteúdo das dez caixas se achou espalhado por todos os lados. Lusky parecia estar sofrendo um ataque.

     — Lixo... puro lixo... — gaguejou. — Nada a não ser cascalho comum, como o que se encontra sob o leito de qualquer estrada.

     O tom de voz final de Lusky, demonstrando espanto, apagou-se e um silêncio pesado e profundo instalou-se no compartimento de carga do Titanic. Pitt olhava para o chão. Todos os olhares se achavam fixos nos escombros e nas caixas quebradas, enquanto as suas mentes procuravam apreender aquela espantosa realidade. A verdade horrível e inegável de que tudo... desde o salvamento ao trabalho exaustivo, aos rios de dinheiro, às mortes de Munk e de Woodson... tudo fora em vão. O bizanio não se encontrava a bordo do Titanic nem nunca tinha estado. Eles haviam sido vitimas duma brincadeira monstruosa e cruel preparada setenta e seis anos antes.

     Seagram foi quem quebrou o silêncio. Num lampejo final de loucura, ele sorriu para si mesmo naquela luz acinzentada, e o sorriso cresceu numa risada fantasmagórica que ecoou por todo o compartimento. Atirou-se pela porta do cofre, apanhou uma pedra e arremessou-a contra a cabeça de Lusky, fazendo o sangue espirrar para cima das caixas do minério. Ele ainda ria, tomado pela angústia da forte histeria, quando caiu sobre os putrefatos restos de Joshua Hays Brewster e começou a bater com a cabeça mumificada contra a parede do cofre até que ela se desprendeu do corpo e ficou em suas mãos. Enquanto ele segurava aquela coisa horrível e repugnante, a mente de Seagram, em conflito com a realidade, viu os lábios enegrecidos e pergaminhosos abrirem-se num sorriso hediondo. Então o seu esgotamento chegou ao auge. A insanidade de Joshua Hays Brewster, caminhando através dos tempos, transmitiu a Seagram uma herança fantasma que lançou o famoso físico nas garras de uma loucura da qual nunca mais se libertaria.

 

     Seis dias depois, Donner entrava no salão de jantar do hotel onde o almirante Sandecker tomava o seu pequeno-almoço e deixou-se cair numa cadeira em frente dele.

     — O senhor já ouviu a última?

     — Se se trata de notícias ruins, prefiro que as guarde para si.

     — Eles apanharam-me hoje de manhã, quando saía do meu apartamento. — Atirou um papel dobrado para cima da mesa. — Uma intimação para comparecer diante de uma comissão de investigação do Congresso.

     Sandecker preparou uma nova garfada da omelete sem olhar para o papel.

     — Parabéns!

     — O mesmo o espera, almirante. Esbanjamento de dinheiros. Há, neste instante, um alto funcionário à sua espera na ante-sala, para lhe meter nas mãos um papel igual.

     — Quem está por trás disto?

     — Um bisonho recém eleito senador pelo Wyoming, que deseja criar nome antes dos quarenta anos. — Donner passou um lenço amarrotado pela testa suada. — A cavalgadura insiste em que Gene deponha.

     — Terei de ver isso. — Sandecker empurrou o prato para o lado e recostou-se na cadeira. — Como está a passar Seagram?

     — Psicose maníaco-depressiva é o nome que dão ao mal.

     — E Lusky como está?

     — Vinte pontos e uma feia concussão. Dentro de uma semana deverá deixar o hospital.

     Sandecker meneou a cabeça.

     — Tenho esperança de nunca mais ter de viver uma tal experiência. — Tomou um pouco de café. — Como vamos enfrentar a situação?

     — O Presidente telefonou-me ontem, pessoalmente, da Casa Branca. Disse para contar a verdade. A última coisa que ele deseja é ver-me envolvido numa teia de mentiras conflituosas.

     — E quanto ao Projeto Siciliano?

     — Teve morte rápida quando abrimos o cofre do Titanic — disse Donner. — Não temos outra alternativa senão cuspir toda a história até o seu triste fim.

     — Por que terá de ser lavada toda a roupa suja em público? Qual a vantagem disso?

     — A desgraça da democracia — disse Donner resignadamente. — Tudo tem de ser feito às claras e de forma insuspeita, mesmo que isso signifique abrir mão de segredos para governos de nações inimigas.

     Sandecker levou as mãos ao rosto e suspirou.

     — Bem, penso que vou tratar de procurar um novo emprego.

     — Não necessariamente. O Presidente prometeu publicar um depoimento declarando que todo o fracasso do projeto foi da sua exclusiva responsabilidade.

     Sandecker meneou a cabeça.

     — Não adianta. Tenho vários inimigos no Congresso. Eles estão-me já gozando com antecipação, por poderem formular a minha demissão da NUMA.

     — Pode não chegar a tanto.

     — Nos últimos quinze anos, desde que atingi o posto de almirante, tenho tido de driblar os políticos. Acredite-me, é um negócio sujo. Antes que tudo isto acabe, todos aqueles que estiveram ligados ao Projeto Siciliano e ao içamento do Titanic sentir-se-ão felizes se puderem ajudar a remover o mar de lama.

     — Sinto muitíssimo que isso tenha de terminar dessa forma, almirante.

     — Pode acreditar que eu também sinto. — Sandecker terminou o café e passou um guardanapo pela boca. — Diga-me, Donner, qual vai ser a ordem da jogada? Quem foi a primeira testemunha que o ilustre senador pelo Wyoming indicou para depor?

     — Pelo que percebi, ele pretende tratar primeiro da operação de salvamento do Titanic, depois virar-se para a Seção Meta e finalmente envolver o Presidente. — Donner apanhou a intimação e meteu-a no bolso do casaco. — A primeira testemunha que eles chamarão será provavelmente Dirk Pitt.

     Sandecker olhou para ele.

     — Você disse Pitt?

     — Sim.

     — Interessante — disse Sandecker suavemente. — Interessantíssimo... — Penso que ficarei de fora.

     Sandecker dobrou cuidadosamente o guardanapo e colocou-o sobre a mesa.

     — O que você não sabe, Donner, o que você não poderia saber, é que, imediatamente depois de Seagram ter sido levado para fora do Titanic pelos homens do uniforme branco, Pitt evaporou-se completamente.

     Donner franziu a testa.

     — Certamente o senhor sabe onde é que ele se encontra. Ou os amigos dele. Giordino, por exemplo.

     — Não lhe parece que todos nós tentamos encontrá-lo? — rosnou Sandecker. — Ele sumiu. Desapareceu. Como se a terra o tivesse engolido.

     — Mas deve ter deixado alguma pista.

     — Ele disse qualquer coisa, mas não fazia nenhum sentido.

     — O que foi?

     — Ele disse que ia procurar Southby.

     — Quem é esse Southby?

     — Macacos me mordam se sei — disse Sandecker. — Macacos me mordam...

 

     Pitt encaminhou o Sedan Rover para a estrada estreita e escorregadia que seguia para baixo. As altas faias, de ambos os lados da estrada, pareciam fechar-se e atacar os carros quando estes roçavam com as suas capotas metálicas nos galhos mais baixos. Pitt estava cansado, muitíssimo cansado. Havia iniciado a sua odisséia sem certeza alguma do que ia encontrar, se é que encontraria alguma coisa. Começou como o haviam feito Joshua Hays Brewster e os seus companheiros desde o cais de Aberdeen, na Escócia, seguindo o mesmo caminho semeado de mortes que eles haviam percorrido através da Inglaterra até quase ao cais de Southampton, de onde o Titanic havia zarpado na sua viagem inaugural.

     Desviou os olhos do limpa pára-brisas, com as suas batidas regulares, e deu uma olhadela pelo livro de apontamentos, de capa azul, que se achava no banco ao lado. Estava repleto de datas, lugares e diversos apontamentos de artigos de jornais que havia conseguido ao longo do trajeto. Porém, aqueles bolorentos arquivos do passado pouco o tinham esclarecido.

     "DOIS AMERICANOS ENCONTRADOS MORTOS" Tratava-se de uma edição dum jornal de Glasgow de 7 de abril de 1912, página 15. Aquelas áridas histórias estavam enterradas tão fundo quanto os corpos de John Caldwell e Tomas Price no cemitério local. Os seus túmulos, descobertos por Pitt num pequeno cemitério, pouco informavam além dos seus nomes e da data da morte. O mesmo se passou com Charles Widney, Walter Schmidt e Warner O'Deming. De Alvin Coulter nenhum vestígio encontrou. Havia ainda Vernon Hall. Pitt também não havia encontrado o seu túmulo. Onde teria sido ele abatido? Teria o seu sangue sido derramado nas calmas paisagens de Hampshire Downs ou nas escuras ruas de Southampton?

     Pelo canto do olho, leu numa placa a distância até ao grande porto de Southampton: vinte quilômetros. Pitt seguiu mecanicamente. A estrada fazia uma curva e continuava paralela ao borbulhante Itchen, famoso em todo o sul da Inglaterra pelas suas trutas. Porém ele nem deu atenção. Mais acima, em frente, além das fazendas verde-esmeralda que se avistavam naquela planície costeira, uma pequena cidade surgiu. Então, decidiu parar para tomar o pequeno-almoço. Um alarme, porém, soou na mente de Pitt.

     Travou a fundo, com tanta violência que o Rover derrapou, girando trezentos e sessenta graus, de modo a manter-se na mesma direção sul em que vinha, mas afundando até os eixos no estrume acumulado à beira da estrada. O carro ainda não havia estacado completamente e já Pitt abria a porta e saltava para fora. Os sapatos mergulhavam no esterco até desaparecerem e ficarem grudados, mas ele livrou-se deles e correu pela estrada, em meias. Parou junto duma pequena placa ao lado da estrada. Uma parte das letras ficava tapada por uma pequena árvore que havia crescido perto. Vagarosamente, como se tivesse receio de que as suas esperanças pudessem ser destruídas por mais um desapontamento, ele afastou os galhos e então tudo ficou claro. A chave do enigma de Joshua Hays Brewster e do bizanio estava ali, diante dele. Por algum tempo ficou parado, deixando-se ensopar pela chuva que caia e então reconheceu que valera a pena todo o esforço que despendera.

 

     Marganin sentou-se num banco da Praça Sverdlov, em frente do Teatro Bolshoi e começou a ler um jornal. Sentiu um ligeiro tremor e mesmo sem olhar soube que alguém havia ocupado o lugar vago a seu lado. O homem gordo, com o fato amarrotado, inclinou-se no encosto e, casualmente, mordeu a maçã.

     — Parabéns pela sua promoção, comandante! — resmungou entre duas dentadas.

       — Se considerarmos como os acontecimentos se desenrolaram — disse Marganin sem baixar o jornal — isso era o mínimo que o almirante Sloyuk podia fazer.

     — E a sua situação agora... . Com Prevlov afastado do caminho?

     — Com a defecção do bom comandante Prevlov, eu teria de ser a escolha lógica para o substituir como chefe da Divisão de Análise do Serviço Secreto Exterior. Era uma conclusão óbvia.

     — Foi bom que os nossos anos de trabalho tenham obtido tão bons dividendos.

     Marganin virou a página.

     — Apenas abrimos a porta. Os dividendos ainda estão para vir.

     — Agora você terá de ser mais cuidadoso que nunca com as suas ações.

     — O que pretendo — disse Marganin. — O caso Prevlov estragou completamente o prestígio da Armada soviética no Kremlin. Todo o pessoal do Departamento do Serviço Secreto Naval está a ver os seus antecedentes analisados com maior rigor. Ainda vai levar algum tempo antes que depositem em mim a confiança que depositavam em Prevlov.

     — Vamos ver se conseguimos tornar as coisas mais rápidas. — O homem gordo fingiu engolir um grande pedaço de maçã. — Quando se afastar daqui, misture-se com a multidão à entrada do metrô, do outro lado da rua. Um dos nossos homens, especializado em subtrair carteiras aos incautos, vai inverter o processo e colocar, discretamente, um sobrescrito no seu bolso. Ele contém a minuta do último encontro do chefe do Estado Maior da Armada dos Estados Unidos com os comandantes das frotas.

     — Mas isso é uma coisa de suma importância:!

     — As minutas foram alteradas. Poderão parecer importantes mas, na realidade, foram cuidadosamente modificadas de forma a orientar mal os seus superiores.

     — O fornecimento de documentos falsos não vai melhorar a minha situação.

     — Pode ficar descansado — disse o homem gordo. — Amanhã, por esta hora, um agente da KGB vai obter o mesmo material. A KGB vai portanto declarar que a informação é autêntica. Como a sua informação terá chegado com vinte e quatro horas de avanço, você vai subir muito de cotação aos olhos do almirante Sloyuk.

     — Muito bem jogado — disse Marganin, de olhos ainda no jornal. — Mais alguma coisa?

     — Isto é uma despedida — murmurou o gordo.

     — Uma despedida?

     — Sim, tenho sido o seu contato há longo tempo. Demasiado longo. Chegamos longe demais, você e eu, para que afrouxemos agora a segurança.

     — Quem é o novo contato?

     — Você continuará a residir no quartel da Marinha? — respondeu o gordo com uma nova pergunta.

     — Sim, continuarei a morar no quartel. Não quero chamar a atenção como gastador morando num apartamento luxuoso como Prevlov. Continuarei a levar uma vida espartana com os meus vencimentos da Marinha.

     — Bom. O meu substituto já está nomeado. Será a ordenança que cuida da limpeza dos alojamentos dos oficiais do seu quartel.

     — Sentirei a sua falta, velho amigo — disse Marganin, vagarosamente.

     — Também eu a sua.

     Houve um longo silêncio. Então, o gordo disse em voz baixa:

     — Que Deus o abençoe, Harry!

       Quando Marganin dobrou o jornal e o colocou ao lado, já o gordo se tinha ido embora.

 

     — Lá está o local da chegada, à direita — disse o piloto do helicóptero. — Vou pousar naquele pasto, do outro lado da estrada do cemitério.

     Sandecker olhava pela janela. Estava uma manhã cinzenta e enevoada. Camadas de neblina pairavam sobre a pequena aldeia. Uma ruazinha calma serpenteava pelo meio daquelas engraçadas casas e era limitada de ambos os lados por pitorescas paredes de pedras. Ele encolheu-se quando o piloto fez uma subida precipitada em torno da torre da igreja. Olhou para Donner, sentado a seu lado. Este olhava firme em frente. No banco dianteiro, ao lado do piloto, sentava-se Sid Koplin.

     O mineralogista havia sido chamado para este último compromisso com a Seção Meta, porque Herb Lusky ainda não estava em condições de fazer a viagem. Sandecker sentiu o ligeiro salto quando os patins tocaram o chão. Pouco depois o piloto cortava a ignição e as pás das hélices estacaram. No silêncio repentino que se havia estabelecido depois que começou o vôo a partir de Londres, a voz do piloto pareceu muito alta.

     — Cá estamos, senhor.

     Sandecker fez sinal com a cabeça e saiu pela porta lateral. Pitt esperava e caminhou para ele de mão estendida.

     — Bem-vindo a Southby, almirante — disse sorrindo.

     Sandecker sorriu ao apertar a mão de Pitt, mas não parecia alegre.

     — A próxima vez que você desaparecer sem explicar o motivo, será despedido.

     Pitt fingiu uma expressão magoada e, depois, voltou-se e cumprimentou Donner.

     — Mel, é um prazer tornar a vê-lo.

     — Igualmente — disse Donner efusivamente. — Creio que você já encontrou Sid Koplin.

     — Num encontro casual — sorriu Pitt. — Nunca fomos apresentados formalmente.

     Koplin tomou, com as ambas as mãos, a mão que Pitt lhe estendeu. Não parecia o mesmo homem que Pitt encontrara quase a morrer nas neves da Nova Zembla. O aperto de mão de Koplin era firme e os seus olhos estavam cheios de vivacidade.

     — Era meu ardente desejo — disse ele com voz emocionada — poder algum dia ter oportunidade de lhe agradecer pessoalmente o ter me salvo a vida.

     — Fico satisfeito por encontrá-lo de boa saúde.

     Foi tudo o que Pitt conseguiu dizer. Nervosamente, baixou os olhos. "Por Deus", pensou Sandecker consigo, "o homem está efetivamente embaraçado."Nunca pensou ver algum dia Pitt denotar modéstia. O almirante salvou Pitt daquele constrangimento, tomando-o pelo braço e puxando-o em direção à igreja.

     — Espero que você saiba o que está a fazer — disse Sandecker. — Os ingleses não vêem com bons olhos os habitantes das suas antigas colônias andarem por ai abrindo as covas dos seus mortos.

     — Foi necessário um telefonema direto do Presidente ao primeiro-ministro para que fosse evitada toda a burocracia exigida para uma exumação — acrescentou Donner.

     — Penso que você irá verificar que todos esses inconvenientes valeram a pena — disse Pitt.

     Alcançaram a estrada e atravessaram-na. Então, passaram por um velho portão de ferro e caminharam pelo interior do cemitério, em torno da igreja. Foram andando em silêncio durante alguns momentos, lendo as inscrições das pedras tumulares gastas pelo tempo. Sandecker apontou para pequena aldeia.

     — É tão afastada dos caminhos regulares. O que o fez dirigir-se para ela?

     — Pura sorte — respondeu Pitt. — Quando comecei a reconstituir o caminho percorrido pelos homens do Colorado a partir de Aberdeen, eu não fazia a menor idéia de onde poderia encaixar Southby naquele quebra-cabeça. A última frase do diário de Brewster, não sei se o senhor se lembra, dizia assim: "Como estou ansioso por voltar a Southby." E, de acordo com o que disse o comodoro Bigalow, as suas últimas palavras antes de se fechar no cofre do Titanic foram: "Graças a Deus por Southby." Tive a intuição, embora muito remota, de que Southby tinha um sabor a inglês. Por isso, comecei a esmiuçar todo o caminho andado pelos mineiros até Southampton. . .

     — Seguindo as inscrições nos seus túmulos — concluiu Donner.

     — Eram verdadeiras placas de sinalização — admitiu Pitt. — Isso e o fato de Brewster registrar no seu diário as datas e os locais das suas mortes, exceto as de Alvin Coulter e de Vernon Hall. Onde se encontram os restos mortais de Alvin Coulter permanece um mistério, mas Hall repousa aqui, no cemitério da aldeia de Southby.

     — Então você encontrou-a num mapa?

     — Não, a aldeia é tão pequena que não merece qualquer referência, nem mesmo um simples ponto, no Guia Michelin de Turismo. O que aconteceu foi que descobri uma velha tabuleta pintada à mão, que algum fazendeiro se terá esquecido de retirar, propondo a venda de uma vaca leiteira. As direções indicadas davam a fazenda como estando localizada três quilômetros a este, no desvio para Southby.

     As últimas peças do quebra-cabeça começavam a ocupar as suas posições. Continuaram a caminhar em silêncio e dirigiram-se para um ponto onde se encontravam três homens de pé. Dois deles vestiam as roupas vulgares do trabalho nas fazendas; o terceiro usava o uniforme da polícia do condado. Pitt fez as apresentações, embora sumárias e Donner entregou solenemente a ordem da exumação. Todos se voltaram então para o túmulo. A pedra com o epitáfio achava-se numa das extremidades da laje que cobria a sepultura. Nela estava simplesmente escrito: VERNON HATT - Falecido em 18 de abril de 1912 - Paz à sua alma. Cuidadosamente esculpida no centro da laje, via-se a figura de um veleiro de três mastros.

     — “...o precioso minério que nos esforçamos tão desesperadamente para extrair das entranhas daquela maldita montanha encontra-se em segurança no cofre do navio. Somente Vernon ficará para contar a história, porque eu estou de partida, dentro de uma hora, para Nova Iorque, no grande vapor ..." — disse Pitt recitando as palavras do diário de Joshua Hays Brewster.

     — A urna de Vernon Hall — disse Donner, como num sonho. — Era então isso que ele queria dizer; não o cofre do Titanic.

     — Nem parece verdade... — murmurou Sandecker. — Será possível que o bizanio se encontre aqui?

     — Saberemos isso dentro de poucos minutos — comentou Pitt.

     Fez um sinal aos dois trabalhadores, que começaram a remover a laje com a ajuda de uma alavanca. Uma vez aquela afastada, começaram a cavar.

     — Mas por que teria ele enterrado o bizanio aqui? — perguntou Sandecker.—Por que não prosseguiu Brewster até Southampton e não o fez carregar a bordo do Titanic?

     — Por uma miríade de razões — disse Pitt, com a voz desnecessariamente alta no silêncio do cemitério. — Perseguido como um cão, exausto além de toda a resistência humana, vendo os amigos serem brutalmente assassinados, Brewster foi levado à loucura, tal como Gene Seagram o foi, quando verificou que o destino lhe havia arrancado toda a sua esperança exatamente na altura em que estava prestes a alcançá-la. Some ainda a tudo isso o fato de Brewster se encontrar numa terra estranha, só, sem amigos. A morte perseguia-o constantemente, sem descanso e a única possibilidade de escapar para os Estados Unidos com o bizanio estava amarrada ao cais de Southampton, a vários quilômetros de distância. Diz-se que a insanidade cria o gênio. Talvez tenha sido isso o que aconteceu no caso de Brewster, ou talvez tenha sido simplesmente mal orientado pelos seus delírios. Ele deve ter percebido, erradamente, como se verificou depois, que jamais conseguiria aproximar-se do navio com segurança, levando o bizanio consigo. Por isso, enterrou o minério na sepultura de Vernon Hall e substituiu-o nas caixas por material inútil. Depois disso, deixou o diário nas mãos do vigário, com instruções para entregar ao cônsul americano em Southampton. Penso que a sua linguagem cifrada surgiu da loucura, que o levou ao ponto de não confiar em ninguém... nem mesmo num velho vigário do campo. Calculou, provavelmente, que algum espírito perceptivo do Exército acabaria por decifrar o verdadeiro sentido do seu estilo torcido para o caso de ser assassinado.

     — Mas ele conseguiu chegar incólume ao Titanic — disse Donner — Os franceses não conseguiram impedi-lo.

     — O meu palpite foi que as coisas estavam a se tornar difíceis para os agentes franceses. A polícia inglesa deve ter seguido a pista dos corpos, tal como eu fiz, e andava atrás dos calcanhares dos seguidores.

     — Quer então dizer que os franceses, temendo um escândalo internacional de proporções gigantescas, desistiram no último momento — disse Koplin, intrometendo-se.

     — Essa é uma teoria — respondeu Pitt.

     Sandecker parecia pensativo.

     — Depois o Titanic... o Titanic afundou e atrapalhou tudo.

     — Correto — respondeu Pitt automaticamente. — E agora começa a surgir uma porção de ses. Se o comandante Smith houvesse prestado atenção aos avisos de perigo por causa dos icebergs e tivesse reduzido a velocidade... se os blocos de gelo não se encontrassem flutuando tão ao sul naquele ano... se o Titanic não houvesse batido no iceberg e tivesse atracado ao porto de Nova Iorque como fora programado... e se Brewster tivesse sobrevivido para contar a história ao Exército, o bizanio teria sido simplesmente desenterrado e, posteriormente, tratado. Por outro lado, mesmo que Brewster tivesse sido assassinado antes de embarcar no navio, o Exército teria, sem dúvida, entendido o duplo significado do fim do seu diário e agido de acordo. Porém, a roda do destino pregou uma partida: o Titanic afundou-se, levando Brewster com ele, e as palavras disfarçadas do diário levaram toda a gente, inclusive nós, a fazer uma suposição errada durante setenta e seis anos.

     — Mas, então, porque se teria Brewster trancado no cofre do Titanic — perguntava Donner intrigado. — Sabendo que o navio estava perdido, sabendo que o seu gesto suicida seria um gesto sem sentido, porque não procurou salvar-se?

     — O sentimento de culpa é um poderoso motivo para o suicídio — disse Pitt. —Brewster estava mentalmente doente. Isso sabemos nós. Quando compreendeu que o seu plano para se apossar do bizanio já havia causado tantas mortes, oito delas referentes a amigos seus, ele considerou-se o culpado. Muitos homens e também mulheres já se mataram por muito menos...

     — Esperem um momento! — cortou Koplin, que estava ajoelhado sobre uma caixa aberta de equipamentos para análise de minérios. — O material sobre o caixão apresenta alguma radioatividade.

     Os homens que cavavam saíram de dentro da cova. Os outros rodearam Koplin e ficaram a ver, cheios de curiosidade. Sandecker puxou dum charuto do bolso e levou-o à boca, sem entretanto o acender. O ar estava frio, mas a camisa de Donner estava molhada de transpiração a tal ponto que repassou para o casaco. Ninguém falava. A respiração produzia pequenas nuvens de vapor, que logo se dissipava àquela meia luz cinzenta. Koplin estudava a terra rochosa. Não se parecia com a terra úmida em volta do cemitério. Finalmente, levantou-se meio trôpego. Trazia diversas pequenas pedras nas mãos.

     — Bizanio!

     — É... é isso ai? — perguntou Donner, num murmúrio. — Está tudo realmente aqui?

     — Teor muito elevado — anunciou Koplin. O seu rosto iluminou-se num largo sorriso. — Mais do que o necessário para completar o Projeto Siciliano!

     — Graças a Deus! — conseguiu Donner dizer.

     Saiu cambaleando e atirou-se sem cerimônia para cima de um dos túmulos em volta, pouco se importando com os olhares estarrecidos dos homens do campo. Koplin voltou a olhar para dentro da sepultura.

     — A insanidade cria os gênios — murmurou. — Brewster encheu a cova de minério. Qualquer um, exceto um mineralogista profissional, iria cavar através dela e, só encontrando ossos, ir-se-ia embora e deixá-lo-ia ficar.

     — Um lugar ideal para o esconder — concordou Donner. — Praticamente à vista de todos.

     Sandecker deu uns passos e apertou a mão de Pitt.

     — Obrigado — disse simplesmente.

     Pitt apenas pôde acenar com a cabeça, em resposta. Sentia-se cansado e entorpecido. Gostaria de encontrar um lugar onde pudesse estar afastado do mundo e o pudesse esquecer por algum tempo. Gostaria que o Titanic nunca houvesse existido, que nunca tivesse escorregado pela carreira do estaleiro em Belfast para aquele mar inclemente que havia transformado tão belo navio num casco grotesco e enferrujado. Sandecker pareceu ler a expressão do rosto de Pitt.

     — Você parece necessitar de um repouso — disse o almirante. — Não quero ver essa carranca perto do meu escritório pelo menos nas próximas duas semanas.

     — Era isso que eu desejava ouvir. — Pitt sorriu cansado.

     — Você importa-se de me dizer onde se pretende esconder? — perguntou Sandecker astutamente. — Isto é apenas para o caso de surgir uma emergência lá na NUMA, está claro, e de eu ter necessidade de entrar em contato consigo.

     — Naturalmente — respondeu Pitt, secamente. — Há uma comissária de vôo que mora com o avô em Teignmouth. Pode tentar lá.

     Sandecker concordou com mudo entendimento. Koplin aproximou-se e segurou Pitt pelos ombros.

     — Tenho esperança de que ainda nos havemos de encontrar outra vez.

     — Esse é também o meu desejo.

     Donner olhou para ele sem se levantar e, emocionado, disse numa voz rouca:

     — Finalmente acabou.

     — Sim — murmurou Pitt. — Tudo acabado e feito. Tudo!

     Sentiu de repente um arrepio; uma sensação de fria familiaridade, como se a voz viesse das sombras do passado. Voltou-se e caminhou para fora do cemitério. Todos os outros permaneceram ali, observando-o. À medida que se ia afastando, o seu vulto ia diminuindo, até que, tendo sido envolvido pela neblina, desapareceu.

     — Ele apareceu no meio da neblina e desapareceu no meio da neblina — disse Koplin, cujos pensamentos se voltavam agora para o seu primeiro encontro com Pitt nas faldas da montanha Bednaia.

     — O que é que está a dizer?

     — Estava apenas a pensar alto. — Koplin encolheu os ombros. — Foi apenas isso.

 

                       Agosto de 1988

     — Parem as máquinas!

     A ordem foi transmitida pelo telégrafo de bordo e, pela mesma forma, a casa das máquinas acusou a recepção. As vibrações das máquinas cessaram a bordo do cruzador H. M. S. Troy. O bigode na proa, desapareceu nas águas sombrias e o navio, lentamente, foi perdendo andamento: o silêncio apenas era cortado pelo zumbido dos geradores. A noite estava morna no Atlântico Norte. O mar lembrava um espelho e as estrelas brilhavam e refletiam-se sobre esse tapete que se estendia de horizonte a horizonte.

     O pavilhão britânico achava-se pendurado mole e sem vida na sua adriça, sem receber o menor sopro de vento. A guarnição, de duzentos homens, estava formada no castelo da proa, enquanto um corpo sem vida, envolvido na tradicional lona de uma época passada e coberto com a bandeira nacional, era carregado e apoiado sobre a amurada. Então o comandante, na sua voz sonora e despida de emoção, leu a oração fúnebre de um marinheiro. Logo que acabou de pronunciar as palavras finais, fez um gesto. A prancha foi inclinada e o corpo escorregou para o seio do mar eterno.

     Os sons da corneta eram claros e puros ao vibrarem naquela noite calma. Então, os homens debandaram silenciosamente. Poucos minutos depois, quando o Troy se pôs novamente em marcha, o comandante sentou-se e fez o seguinte lançamento no diário de bordo: H.M.S. Troy. Hora. 0: 22. Dia. 10 de agosto de 1988. Posição: Lat. 41? 46 ' N. Long. 50? 14 ' W. A mesma hora da madrugada em que o vapor da White Star, R. M. S. Titanic afundou, e de acordo com o seu último desejo de passar a eternidade na companhia dos seus antigos companheiros de bordo, foram lançados ao mar os restos mortais do comodoro Sir John L. Bigalow, K. B. E. R. D. R. N. R. (reformado). A mão do comandante tremeu ao escrever o nome. Estava terminado o último capítulo de um trágico drama que havia abalado o mundo... um mundo como nunca mais tornaria a haver outro.

     Quase ao mesmo tempo, do outro lado da terra, num sítio desolado do Oceano Pacífico, um imenso submarino com o feitio de um charuto desceu vagarosamente até muito abaixo das langorosas ondas. Peixes espantados espalhavam-se pelas profundezas à aproximação do monstro, ao passo que, da parte de dentro da sua pele negra e lisa, alguns homens se preparavam para disparar uma bateria de quatro mísseis balísticos, numa série de alvos diferentes, a seis mil milhas para este.

     Eram precisamente quinze horas quando o primeiro dos grandes mísseis foi ligado à ignição do seu foguete e, rompendo através das ondas como uma erupção vulcânica de água branca, subiu com um ronco de trovão para o céu azul do Pacífico. Trinta segundos depois seguiu-se o segundo, depois o terceiro e finalmente o quarto. Então, deixando um longo rasto de chamas alaranjadas, o quarteto de potencial destruição em massa curvou-se no espaço e desapareceu. Trinta e dois minutos mais tarde, quando se dirigiam para a sua própria terra, os mísseis, abruptamente, explodiram um por um, desintegrando-se em gigantescas bolas de fogo a uma distância de cerca de noventa milhas dos seus alvos. Foi a primeira vez, na história dos lançamentos de foguetes balísticos americanos, que os técnicos, os engenheiros e os oficiais que tinham a seu cargo os programas de defesa nacional deram vivas à repentina e, aparentemente, desastrosa conclusão de um lançamento perfeito.

     O Projeto Siciliano, logo no seu primeiro teste, fora um êxito completo.

 

                                                                                Clive Cussler  

 

                      

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