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Shaw trabalha para uma agência secreta de inteligência e sua vida se resume a viajar pelo mundo à caça de bandidos perigosos. Abandonado ainda bebê, sem laços afetivos e nem mesmo um nome próprio, ele nunca se importou com o fato de não saber se chegaria vivo ao fim do dia. Até agora. Envolvido com a alemã Anna Fischer, especialista em assuntos internacionais que trabalha para o Phoenix Group, em Londres, tudo o que Shaw quer é deixar essa vida para trás e se estabelecer tranquilamente ao lado da mulher que ama. Mas seus planos estão prestes a ser frustrados. Ao ver seus lucros diminuírem a cada mês, Nicholas Creel, dono da maior fornecedora de armamento militar do mundo, decide que é hora de provocar uma guerra. Para isso, contrata um especialista em manipular fatos e “criar a verdade”. Juntos, eles lançam uma campanha de difamação contra o governo russo, cujos efeitos são bombásticos. Quando todos os outros países já estão preocupados com a nova Ameaça Vermelha, um sangrento ataque ao prédio do Phoenix Group aumenta ainda mais a tensão mundial. Em meio a tudo isso, Katie James, uma jornalista premiada que caiu em desgraça por causa do alcoolismo, tem acesso ao único sobrevivente do Massacre de Londres que pode lhe dar o furo capaz de mudar sua vida. Enquanto as peças desse quebra-cabeça se juntam, Shaw parece ter pouco tempo para desarticular essa rede de intrigas e impedir que tenha início um conflito capaz de acabar com o mundo como o conhecemos.
......
A IMAGEM DO HOMEM TORTURADO surgiu no site mais popular do mundo à meia-noite do Tempo Universal, o fuso horário de referência mundial. As primeiras quatro palavras que ele disse seriam lembradas para sempre por todos os que as ouviram. – Estou morto. Fui assassinado. Ele falava russo, mas, na parte inferior da tela, sua trágica história era contada em praticamente qualquer idioma que se quisesse; bastava clicar em um botão. A polícia secreta da Federação Russa tinha arrancado dele e de sua família “confissões” de traição. O homem havia conseguido escapar e gravara aquele vídeo tosco. Quem quer que tenha segurado a câmera estava morrendo de medo, bêbado ou as duas coisas, porque o filme, de imagem granulada, tremia a cada segundo. O homem disse que, se o vídeo fosse exibido, era porque ele tinha sido recapturado pelos agentes do governo e já estava morto. Seu crime? Simplesmente querer a liberdade. – Há dezenas de milhares como eu – disse ele ao mundo. – Seus ossos jazem na tundra congelada da Sibéria e nas águas profundas do lago Balkhash, no Cazaquistão. Vocês logo verão evidências disso. Outros retomarão a luta agora que me fui. Ele alertou que, enquanto as pessoas passavam tanto tempo concentradas nos Osama bin Ladens do mundo, o mal antigo, com uma força destrutiva um milhão de vezes maior do que a de todos os renegados islâmicos juntos, havia claramente voltado, mais mortal do que nunca. – É hora de o mundo saber toda a verdade – gritou para a câmera e depois irrompeu em lágrimas. Após um momento, continuou: – Meu nome é Konstantin. Meu nome era Konstantin – corrigiu-se. – É tarde demais para mim e para minha família. Estamos todos mortos agora. Minha mulher e meus três filhos, todos se foram. Não se esqueçam de mim e do motivo para eu ter morrido. Não deixem minha família perecer em vão.
Enquanto a imagem e a voz do homem desapareciam gradualmente da tela, surgia uma nuvem em forma de cogumelo e, sobreposta à parte inferior dessa imagem apavorante, lia-se a nefasta frase: Primeiro o povo russo, depois o resto do mundo. Podemos nos dar ao luxo de esperar? Os créditos da produção eram rudimentares, os efeitos especiais, amadores, mas ninguém se importou com isso. Konstantin e sua pobre família haviam se sacrificado para que o resto do mundo tivesse uma chance de viver. O primeiro a ver o vídeo, um programador de computadores de Houston, ficou estupefato. Ele enviou o arquivo por e-mail para uma lista de vinte amigos. A próxima pessoa a vê-lo, segundos depois, morava na França e sofria de insônia. Chorando, ela o enviou para cinquenta amigos. O terceiro espectador era da África do Sul e ficou tão furioso com o que viu que telefonou para a BBC e depois encaminhou o vídeo para oitocentos de seus amigos “mais íntimos” na internet. Uma adolescente na Noruega assistiu ao filme horrorizada e depois o encaminhou para todos que conhecia. As próximas mil pessoas a vê-lo eram de 19 países diferentes e cada uma delas o compartilhou com trinta amigos, que por sua vez o compartilharam com dezenas de outros. O que havia começado como uma gota de chuva digital no oceano da internet rapidamente explodiu em um tsunami de pixels e bytes do tamanho de um continente. O vídeo se espalhou como uma pandemia, causando comoção em todo o mundo. A história foi passada adiante por meio de blogs, mensagens instantâneas e e-mails. A cada vez que era recontada, também era aumentada, até que aparentemente o planeta estivesse correndo o risco de ser devastado a qualquer momento por russos malucos e sedentos de sangue. Três dias após a triste declaração de Konstantin, o mundo ecoava seu nome. Logo metade da população mundial, inclusive aqueles que não tinham a menor ideia de quem era o presidente dos Estados Unidos ou o papa, sabia tudo sobre o russo morto. A história foi aproveitada por jornais menores, então o The New York Times, o The Wall Street Journal e outros veículos proeminentes foram tomados pelo frenesi, ainda que por nenhum outro motivo além do fato de que todos estavam falando sobre aquele assunto. A partir daí, a história chegou ao circuito televisivo com todas as emissoras – do Channel One, na Alemanha, à BBC,
ABC News, CNN e à TV controlada pelo governo chinês – anunciando um possível novo apocalipse. Com isso, a história ficou tão firmemente plantada na mente, alma e consciência coletiva do mundo que ninguém se importava com mais nada. O grito de ordem “Lembrem-se de Konstantin” foi ouvido dos lábios de pessoas em todos os continentes. O governo russo negou tudo veementemente. O presidente Gorshkov chegou a ir à TV internacional denunciar aquela história como uma farsa e apresentou o que chamou de evidência “sólida” de que Konstantin nunca havia existido. Mas poucos acreditaram nele. Gorshkov era ex-agente da KGB. De cima a baixo, o governo russo estava cheio de demônios fascistas. Jornalistas de todo o mundo transmitiam essas informações havia anos, só que até aquele momento ninguém tinha realmente se importado, porque isso não interferia na vida das pessoas. Agora elas tinham a morte de Konstantin e uma nuvem em forma de cogumelo na internet lhes dizendo que, de repente, aquele assunto era muito importante. Decerto havia muitos céticos com sérias dúvidas sobre quem e exatamente o que Konstantin e seu vídeo representavam. Essas mesmas pessoas começariam a investigar o homem supostamente morto e sua história. Contudo, muitas outras tinham ouvido e visto tudo de que precisavam para chegar a uma conclusão inequívoca. Mas a Rússia e o resto do mundo nunca descobririam que Konstantin na verdade era um ator iniciante da Letônia, suas “feridas” e seu “abatimento” resultaram de maquiagem benfeita e iluminação profissional. Após gravar o vídeo, ele se lavou, retirou todos os elementos de seu disfarce e comeu um belo almoço no (onde mais?) Russian Tea Room, em Nova York, gastando parte dos 50 mil dólares que recebera pela filmagem. Como ele também falava espanhol, tinha boa aparência e um belo e esculpido corpo moreno, sua maior ambição agora era ganhar um papel importante em uma novela latina. Entretanto, o mundo nunca mais seria o mesmo.
2 NICOLAS CREEL TERMINOU CALMAMENTE seu Bombay Sapphire com tônica e vestiu o paletó. Ia dar um passeio. Na verdade, passeio era para pessoas normais. Líderes corporativos bilionários estavam bem acima da ralé. Quando olhou pela janela do helicóptero no curto percurso sobre o Hudson para Jersey, os arranha-céus lá embaixo o lembraram de quão longe tinha chegado. Creel nascera no oeste do Texas, uma área com uma planície aparentemente interminável, tão grande e árida que se dizia que muitos dos habitantes dali não sabiam que era possível morar, ou mesmo chegar, em algum outro lugar. Creel havia passado exatamente um ano no Texas antes de se mudar para as Filipinas com seu pai, sargento do Exército. Dali eles foram sucessivamente transferidos para outros sete países até seu pai ser mandado para a Coreia e prontamente reduzido a cinzas no que o Exército mais tarde descreveu como um infeliz erro de logística. Sua mãe se casara de novo e, anos depois, Creel foi para a universidade e se formou em engenharia. Depois reuniu fundos suficientes para um MBA, mas desistiu após seis meses, preferindo aprender na prática. A lição mais valiosa que seu pai lhe ensinara era que o Pentágono comprava mais armas do que ninguém e pagava preços superfaturados por elas. E a melhor parte era que, quando você precisava de mais lucro, bastava pedir. Afinal de contas, o dinheiro não era deles. E nada era mais fácil do que dar dinheiro dos outros, especialmente porque os Estados Unidos eram donos do maior cofre do mundo. Aquele parecia ser um excelente negócio, porque, como Creel logo descobriu, podia-se realmente vender às Forças Armadas vasos sanitários de 12 mil dólares e martelos de 9 mil dólares e escapar impune sob uma montanha de artifícios legais e audiências estapafúrdias no Congresso. Creel havia passado as décadas seguintes construindo o que agora era o maior fornecedor militar do mundo, a Ares Corporation. Segundo a revista Forbes, ele era o 14o homem mais rico do planeta, com mais de 20 bilhões de dólares em seu nome. Sua falecida mãe era uma grega, linda e morena, com temperamento e ambição ardentes que ele havia herdado, assim como sua beleza. Depois que o marido foi vítima do erro logístico na Coreia, ela se casou com um homem de nível social mais alto que logo se livrou de Creel mandando-o para internatos, não muito bons, por sinal. Enquanto os filhos de outros homens ricos tinham tudo, Creel, um intruso naquele meio, suportava seus insultos e suava para ganhar cada centavo. Essas experiências tinham lhe fornecido uma couraça. Dar à sua empresa o nome do deus grego da guerra foi um tributo à mãe, a pessoa que ele mais amava. E Creel se orgulhava do que sua empresa produzia. O nome gravado em seu iate de 400 pés era Shiloh, uma das batalhas mais sangrentas da Guerra Civil americana. Embora tivesse nascido nos Estados Unidos, Creel nunca se considerou simplesmente americano. A sede da Ares Corp. ficava nos Estados Unidos, mas Creel era um cidadão do mundo e havia muito tempo renunciara à sua cidadania americana. Aquilo condizia com seu negócio, porque nenhum país tinha o monopólio da guerra. Contudo, Creel permanecia nos Estados Unidos quanto tempo quisesse, porque tinha um exército de advogados e contadores que descobriam todas as saídas no pântano linguístico que era o código tributário americano. Há muito Creel tinha aprendido que, para proteger seu negócio, tinha de espalhar a riqueza. Cada grande contrato de sistema de armas da Ares era dispersado por todos os cinquenta estados. Suas campanhas publicitárias brilhantes e caras apregoavam esse fato acima de todos os outros. “Mil fornecedores espalhados pelo país mantendo você seguro”, proclamava a voz em off, em tons profundamente ressonantes que faziam sua pele se arrepiar e seu coração disparar. Aquilo parecia muito patriótico. Na verdade, havia sido feito por um único motivo: agora, se algum burocrata tentasse cortar custos, 535 membros do Congresso se levantariam e o linchariam pela audácia de tentar tirar empregos de seu povo. Creel também havia conseguido implementar a mesma estratégia, com sucesso, em vários outros países. Os Estados Unidos não tinham o monopólio dos políticos interesseiros, assim como não detinham o da guerra. Os aviões de caça construídos pela Ares voavam sobre os grandes eventos esportivos mundiais, inclusive a World Series, o Super Bowl e a Copa do Mundo. Como você podia não se arrepiar quando uma rígida formação de caças de 150 milhões de dólares passava rugindo sobre sua cabeça com poder de fogo suficiente para matar de uma só vez todos os homens, mulheres e crianças no local? Aquilo era quase poético em sua assustadora majestade. O orçamento de lobby e marketing global da Ares era de 3 bilhões de dólares por ano. Com essa soma gigantesca nenhum grande país que tivesse dinheiro para gastar em defesa deixava de ouvir repetidamente a mensagem: “Nós somos fortes. Ficamos ao seu lado. Nós o mantemos seguro. Nós o mantemos livre. Somos a única coisa entre você e eles.” E as imagens eram igualmente irresistíveis: churrascos e paradas, bandeiras tremulando, crianças batendo continência ao passar de tanques, aviões voando acima das cabeças e soldados com rostos severos e pintados de preto avançando em território hostil. Creel tinha descoberto que nenhum país resistiria a esse tipo de mensagem que fazia corações dispararem. Bem, talvez a Alemanha, mas era só. Os comerciais davam a impressão de que a poderosa Ares Corporation estava doando as armas por fervor patriótico em vez de ter o orçamento eternamente estourado e descumprir prazos – ou de convencer os ministérios de Defesa a comprar brinquedos de guerra caros que nunca eram usados, ignorando itens mais baratos, como os coletes à prova de bala e óculos de visão noturna dos quais os soldados realmente dependiam para sobreviver. Aquilo tinha funcionado muito bem durante décadas. Contudo, as coisas estavam mudando. As pessoas pareciam cansadas de guerra. A frequência nas enormes convenções de comércio que a Ares realizava anualmente diminuíra por cinco anos consecutivos. O orçamento de marketing da Ares agora era maior do que seu lucro líquido. Isso revelava uma única verdade: as pessoas não estavam mais comprando o que Creel vendia. Era por isso que ele estava sentado naquele momento em uma bela sala de um prédio adquirido por sua empresa. O homem grande diante dele usava jeans e botas de combate e parecia um urso pardo sem pelo. Ou um exemplo extremo de todas as marcas de sarampo em um só rosto. Tinha ombros largos, mãos enormes e de algum modo ameaçadoras. Creel não apertou sua mão. – Começou – falou.
– Vi o camarada Konstantin. – O homem não conseguiu evitar um sorriso malicioso ao dizer isso. – Ele deveria ganhar o Oscar. – Sixty Minutes apresentará uma reportagem sobre isso no fim de semana. Junto com todos os outros jornais de notícias. O idiota do Gorshkov está facilitando as coisas para nós. – E quanto ao incidente? – Você é o incidente – disse Creel, apontando para o homem. – Isso funcionou antes sem tropas na linha de frente. – Não estou interessado em guerras que acabam em cem dias ou se transformam em brigas de rua no submundo do crime. Elas não pagam nem a conta de luz, Caesar. – Diga qual é o plano e eu o executarei, Sr. Creel, como sempre. – Apenas esteja pronto para partir. – O senhor é quem manda – disse Caesar. – Pode apostar que sim. Ao voltar de helicóptero para o prédio da Ares, Creel olhou para os templos de concreto, vidro e aço da cidade lá embaixo. Você não está mais no oeste do Texas, Nick. É claro que não se tratava apenas de dinheiro. Ou de salvar sua empresa. Creel tinha bastante dinheiro e, independentemente do que fizesse, a Ares Corp. sobreviveria. Não, tratava-se de pôr o mundo de volta em sua estrutura apropriada. As coisas estavam desalinhadas havia tempo demais. Creel havia se cansado de ver os fracos e selvagens darem ordens aos fortes e civilizados. Estava prestes a pôr as coisas em seus devidos lugares. Alguns poderiam dizer que ele estava brincando de Deus. Bem, de certo modo estava. Mas mesmo um deus benévolo usava violência e destruição para atingir seu objetivo. Creel pretendia seguir esse modelo ao pé da letra. Inicialmente haveria sofrimento. Haveria perda. Sempre houvera. Na verdade, seu pai fora vítima dessa necessidade de manter o poder do mundo em mãos firmes, por isso
Creel entendia muito claramente o nível de sacrifício exigido. Mas, no final, tudo valeria a pena. Ele se recostou em seu assento. O criador de Konstantin sabia um pouco. Caesar sabia um pouco. Somente Nicolas Creel sabia de tudo. Como os deuses sempre sabiam.
3 – O QUE SIGNIFICA O “A”? – perguntou o homem em um inglês fluente com sotaque holandês. Shaw olhou para o cavalheiro em pé diante dele no setor de imigração do aeroporto Schiphol, 15 quilômetros a sudoeste de Amsterdã. Um dos aeroportos mais movimentados do mundo, Schiphol fica quase 5 metros abaixo do nível do mar com trilhões de toneladas de água agitada ali por perto. Shaw sempre havia considerado isso o máximo da audácia da engenharia. Contudo, grande parte do país fica abaixo do nível do mar, por isso eles realmente não têm muitas opções de onde aterrissar os aviões. – Como? – perguntou Shaw, embora soubesse bem a que o outro se referia. O homem pôs o dedo sobre a foto no passaporte de Shaw. – Aqui. O nome fornecido é apenas a inicial “A”. O que significa? Shaw olhou fixamente para seu passaporte enquanto o holandês o observava. Como convinha à nação mais alta do mundo, o funcionário da imigração tinha 1,88m, apenas 2,5cm mais alto que a média dos holandeses, mas ainda assim 7,5 centímetros a menos do que a estatura imponente de Shaw. – Não significa nada – respondeu Shaw. – Minha mãe nunca me deu um nome. Sou apenas Shaw, porque esse é meu sobrenome, ou pelo menos era o da minha mãe. Como era preciso ter um nome, escolhi a letra A, porque é a primeira do alfabeto. – Seu pai não fez nenhuma objeção quanto ao filho não ter o nome dele? – Não se precisa de um pai para ter um bebê, só para fazer um. – E o hospital não lhe deu um nome? – Por acaso todos os bebês nascem em hospitais? – retrucou Shaw com um sorriso. O holandês se empertigou e depois seu tom se tornou menos agressivo:
– Shaw. Irlandês, como em George Bernard? Shaw descobriu que os holandeses eram maravilhosamente bem informados. Bem-educados e curiosos, adoravam debater. Ninguém nunca havia lhe perguntado sobre George Bernard Shaw. – Poderia ser, mas sou escocês, das Terras Altas. Pelo menos meus ancestrais vieram de lá – acrescentou ele rapidamente, já que portava um passaporte americano, um de uma dúzia de outros que possuía. – Nasci em Connecticut. Já esteve lá? – Não. Mas gostaria muito de viajar para os Estados Unidos – respondeu o homem com entusiasmo. Não era a primeira vez que Shaw via aquele olhar desejoso. – Bem, as ruas não são realmente pavimentadas com ouro e as mulheres não são todas estrelas de cinema, mas há muito a fazer e muitas oportunidades. – Talvez um dia – disse o funcionário da imigração pensativamente antes de reassumir suas funções. – Está aqui a negócios ou a passeio? – As duas coisas. Por que vir de tão longe e ter que escolher? O homem reprimiu o riso. – Tem algo a declarar? – Ik heb niets aan te geven – disse Shaw. – Fala holandês? – perguntou o outro em um tom surpreso. – Todos não falam? O homem riu e carimbou o passaporte de Shaw com um carimbo antigo, em vez dos equipamentos de alta tecnologia usados por alguns países. Shaw ouvira dizer que esses equipamentos implantavam um dispositivo de rastreamento digital no papel. Ele sempre preferira tinta a dispositivos de rastreamento. – Aproveite bem sua visita – disse o novo amigo holandês de Shaw ao lhe devolver o passaporte. – Pretendo aproveitar – respondeu ele, enquanto caminhava na direção da saída e do trem que o levaria à Centraal Station, em Amsterdã, em cerca de vinte minutos. A partir dali as coisas ficariam mais animadas. Mas primeiro ele tinha um papel a desempenhar.
Porque tinha um público. Na verdade, a plateia o observava naquele exato momento.
O TÁXI QUE SHAW PEGOU na estação de trem o deixou no Amstel Intercontinental. O hotel tinha 75 quartos lindos, muitos com uma vista invejável para o rio Amstel, embora Shaw não estivesse ali para apreciar a paisagem. Nos próximos três dias, Shaw iria representar seu papel de turista. Havia poucos lugares melhores para isso do que Amsterdã, uma cidade de 750 mil habitantes, apenas metade dos quais eram holandeses. Ele deu um passeio de barco e, entusiasmado, tirou fotos de uma cidade com mais canais do que Veneza e quase 13 mil pontes em um espaço de apenas 200 quilômetros quadrados, dos quais um quarto era água. Shaw se sentiu especialmente atraído pelas casas-barco, quase 3 mil, atracadas ao longo dos canais. Elas representavam raízes. Embora flutuassem na água, nunca saíam do lugar. Eram passadas de uma geração para outra ou vendidas. Ele se perguntou como deveria ser ter essa ligação com um lugar. Mais tarde, Shaw vestiu uma roupa esportiva, calçou seu tênis e foi correr pelos grandes espaços abertos do Oosterpark, perto de seu hotel. Em um sentido muito real, ele havia corrido a vida toda. Bem, se as coisas saíssem conforme o planejado, isso chegaria ao fim. Ou então ele acabaria morto. Correria de bom grado esse risco. De certo modo, já estava morto. Tomando um café num Bulldog, a cadeia de cafeterias mais famosa de Amsterdã, Shaw observou as pessoas cuidando de suas vidas. E também viu os homens que claramente o estavam observando. Era mesmo patético ser vigiado por pessoas que não tinham a menor ideia de como fazer aquilo direito. No dia seguinte almoçou em um de seus restaurantes favoritos na cidade, dirigido por um velho italiano. A mulher do proprietário ficava o dia inteiro sentada a uma mesa, lendo jornal, enquanto seu marido trabalhava como maître, garçom, chef, lavador de pratos e caixa. O lugar só tinha quatro banquetas altas no balcão e cinco mesas, sem contar o domínio da mulher. Os possíveis clientes tinham de ficar em pé à porta e ser inspecionados pelo marido. Se ele fizesse um sinal afirmativo com a cabeça, você podia entrar. Se lhe virasse as costas, teria que procurar outro lugar para comer.
Ele nunca virara as costas para Shaw. Talvez fosse por causa de seu físico imponente ou de seus olhos azuis magnéticos que pareciam prender a pessoa em seu abraço poderoso. Porém, o mais provável é que fosse porque ele e o italiano já tinham trabalhado juntos, e não havia sido no ramo da gastronomia. Naquela noite Shaw vestiu um terno e foi assistir à opera no Muziektheater. Quando a apresentação terminou, poderia ter voltado a pé para seu hotel, mas preferiu seguir na direção oposta. Aquela noite era o verdadeiro motivo para ter ido à Holanda. Ele não era mais um turista. Ao se aproximar do bairro da luz vermelha, Shaw percebeu alguma atividade em um beco escuro e particularmente estreito. Havia um garoto pequeno ali nas sombras. Perto dele, um homem de aparência rude estava com o zíper abaixado e a mão grande metida dentro das calças do garoto. Num instante Shaw mudou de direção. Entrou de mansinho no beco e deu uma pancada na parte de trás da cabeça do homem. Foi um golpe calculado para atordoar, não para matar, embora Shaw estivesse muito tentado a acabar com o predador. Quando o homem caiu inconsciente no chão, Shaw pôs 100 euros na mão do garoto e o mandou embora com um empurrão e uma séria advertência em holandês. Quando o som dos passos apressados do garoto reverberou ao longe, Shaw soube que, pelo menos naquela noite, ele não teria fome nem morreria. Ao retomar sua rota original, Shaw notou pela primeira vez que a velha bolsa de valores ficava bem em frente do bairro da luz vermelha. Isso lhe pareceu estranho, mas, pensando bem, dinheiro e prostituição sempre foram companheiros de quarto. Shaw se perguntou se, em vez de euros, alguma das mulheres aceitava ações de empresas como pagamento. Ainda mais irônico do que a proximidade da bolsa de valores com as prostitutas era o fato de o bairro da luz vermelha cercar a Oude Kerk, ou Igreja Velha, a maior e mais antiga casa de adoração da cidade. Construída em 1306 como uma simples capela de madeira, foi constantemente reformada e aumentada nos dois séculos seguintes. Certa vez, um piadista incrustara um par de seios de bronze no calçamento perto da porta da frente. Shaw havia entrado na igreja algumas vezes e ficara impressionado com a série de entalhes nos bancos do coro retratando homens esvaziando seus intestinos. Ele só podia presumir que antigamente as missas eram mesmo longas. Santos e pecadores, Deus e prostitutas, refletiu Shaw, enquanto chegava ao meio daquela faixa de iniquidade. Os holandeses chamavam a área de Walletjes, ou “Pequenos Muros”. Presumivelmente, o que acontecia por trás de Walletjes não saía dali. Naquela noite, ele estava contando com isso. O bairro da luz vermelha não era muito grande, talvez ocupasse a área entre dois canais, mas era bastante cheio nesse par de quarteirões. À noite, trabalhavam as prostitutas mais bonitas. Muitas eram mulheres estonteantes do Leste Europeu que haviam sido levadas para o país com falsas promessas e “caído numa armadilha”, como aquilo era delicadamente chamado. Por ironia, as prostitutas da noite eram, em especial, para ser exibidas. Afinal de contas, quem queria entrar por aqueles portais libidinosos com milhares de pessoas olhando? Durante as manhãs e tardes, o bairro ficava mais tranquilo e era quando os clientes sérios pagavam por suas visitas a mulheres muito menos bonitas mas eficientes, do segundo e do terceiro turno de oito horas de trabalho. Os quartos das prostitutas eram difíceis de ser ignorados, porque eram todos contornados por tubos de neon vermelho que quase ofuscavam a visão. Os quartos também tinham iluminação fluorescente para que as poucas roupas que as garotas usavam ficassem resplandecentes como um sol de verão. Shaw passou, uma a uma, pelas vitrines onde as mulheres ficavam, às vezes dançando, às vezes fazendo poses eróticas. Na verdade, a maioria das pessoas ia ali para olhar, e não em busca de sexo, embora as camas ainda rendessem aproximadamente meio bilhão de euros por ano. Shaw manteve a cabeça baixa, seus pés o levando para um destino particular. Ele estava quase lá.
A MULHER NA VITRINE ERA jovem e bonita, com cabelos pretos brilhantes caindo em ondas sobre seus ombros nus. Usava apenas uma tanga branca, sapatos de salto agulha e um colar barato que escorregava por entre os seios fartos, cujos mamilos estavam cobertos com adesivos de girassol. Uma escolha interessante, pensou Shaw. Ele manteve contato visual com ela enquanto abria caminho pela multidão. A mulher foi encontrá-lo na porta, onde Shaw confirmou seu interesse. Mesmo usando sapatos de salto alto, era 30 centímetros mais baixa do que ele. Na vitrine, parecia mais alta. As coisas expostas geralmente parecem maiores. E melhores. Quando você leva sua compra para casa, ela não parece tão especial. A mulher fechou a porta e depois as cortinas vermelhas, o único sinal de que ela e o quarto estavam ocupados. O espaço era pequeno, com uma pia, instalações sanitárias e, é claro, uma cama. Perto da pia havia um botão que as prostitutas apertavam em caso de emergência. Então a polícia aparecia de repente e levava embora o cliente que, em busca de satisfação, tinha ultrapassado os limites. Essa era uma das áreas mais bem patrulhadas da cidade – tudo para manter a receita tributária. Shaw viu uma segunda porta na parede dos fundos e depois desviou o olhar. No quarto ao lado, os sons de outro cliente feliz eram claramente audíveis. Os quartos das prostitutas ficavam um ao lado do outro, com uma parede fina de gesso ou às vezes apenas uma cortina no meio. Claramente, o negócio não exigia enfeites supérfluos ou muito espaço para funcionar. – Você é muito bonito – disse a mulher em holandês. – E grande – acrescentou, erguendo os olhos para ele. – É grande assim no corpo todo? Porque não sou muito grande lá embaixo – observou, olhando fixamente para o pênis dele. – Spreekt u Engels? – perguntou Shaw. A mulher fez um sinal afirmativo com a cabeça. – Sim, falo inglês. São 30 euros por vinte minutos. Mas farei o preço especial de 75 euros por uma hora. É só pra você – acrescentou sem rodeios. Ela lhe entregou uma lista em holandês, mas também repetida na parte de baixo da página em dez idiomas diferentes, inclusive inglês, francês, japonês, chinês e árabe. O título era “Coisas que farei e coisas que não farei”. Shaw lhe devolveu a lista. – Seu amigo está aqui? – perguntou. – Há muito tempo que espero encontrá-lo. – Ele olhou na direção da segunda porta. A mulher o avaliou de um modo diferente. – Sim, está aqui. Ela se virou e o conduziu para a porta na parede dos fundos. Suas nádegas expostas, embora firmes, balançaram um pouco enquanto ela dava passos exagerados de modelo à sua frente. Shaw não soube dizer se ela fez aquilo por hábito ou porque os sapatos eram muito instáveis. A mulher abriu a porta e fez um sinal para que Shaw entrasse. Ela o deixou ali, de frente para o velho sentado a uma pequena mesa onde havia sido posta uma refeição simples: um pedaço de queijo, outro de bacalhau, um naco de pão e uma garrafa de vinho. O rosto do homem era um poço de rugas e ele tinha barba branca irregular e uma pequena barriga arredondada e flácida. Os olhos espreitavam por sob tufos de cabelos desgrenhados, brancos como a neve, que precisavam urgentemente de um corte. Os olhos dele se fixaram nos de Shaw e o homem fez um gesto para que ele se aproximasse da mesa. – Está com fome? Com sede? Havia uma segunda cadeira, mas Shaw preferiu não usá-la. Na verdade, se tentasse se sentar, o homem teria atirado nele, porque tinha uma arma na mão esquerda apontada para Shaw e as instruções haviam sido claras. Você não deve se sentar. Não deve beber ou comer se quiser continuar vivo. Shaw já tinha varrido com os olhos o pequeno aposento. A única entrada era a porta pela qual viera. Ele havia se posicionado de modo que ficasse com um olho nela e outro no homem. E em sua arma. Shaw balançou a cabeça e respondeu: – Obrigado, mas já comi no De Groene Lanteerne.
Era um lugar barato que servia comida holandesa tradicional em uma sala com trezentos anos e que aparentava a idade que tinha. Ao ouvir o código secreto, o homem se levantou, tirou um pedaço de papel do bolso e o entregou a Shaw. Este passou os olhos pelo endereço e pelas outras informações escritas ali, rasgou o papel e o atirou no vaso sanitário junto a uma parede e deu descarga. Aparentemente aproveitando a deixa, o velho pôs um chapéu surrado e um casaco remendado e saiu. Shaw ainda não podia ir embora. Os encontros sexuais normalmente duravam um pouco mais de dois minutos, mesmo para os adolescentes iniciantes. E você nunca sabia quem estava observando. Bem, ele sabia. Havia vários deles. Shaw voltou para o quarto principal, onde a mulher estava estirada na cama, como uma gata. A cortina ainda estava abaixada; seu tempo ainda corria. – Quer transar comigo agora? – perguntou ela num tom levemente entediado, enquanto começava a deslizar a tanga para baixo. – Já está pago – acrescentou, como se ele precisasse de um incentivo. – Uma hora inteira. E farei coisas fora da lista por mais 30 euros. – Nee, dank u – respondeu Shaw, sorrindo educadamente. Quando se trata de sexo, se for rejeitar uma mulher é melhor fazêlo no idioma dela. – Por que não? Algum problema? – perguntou ela, obviamente ofendida. – Sou casado – respondeu ele simplesmente. – A maioria dos homens que me procura é. – Tenho certeza que sim. – Onde está sua aliança? – perguntou ela, desconfiada. – Nunca a uso no trabalho. – Tem certeza de que não me quer? – O tom descrente da mulher se refletia claramente na incredulidade em seu rosto. Shaw escondeu seu espanto. Ela devia ser realmente nova, pois sua vaidade ainda estava intacta. As prostitutas mais velhas certamente adorariam a chance de obter pagamento integral que não incluísse sexo.
– Certeza absoluta. Ela subiu a calcinha. – É uma pena. – Sim, uma pena – disse Shaw. Na verdade, se as coisas saíssem de acordo com o planejado, dali a dois dias ele estaria em Dublin com a única mulher que realmente amava. E que também era o motivo para que ele tivesse que sair. Imediatamente. Ainda assim, até mesmo Shaw tinha de reconhecer que aquele era um grande “se”. Em seu ramo de trabalho, amanhã era apenas outro dia para morrer.
SEMPRE HÁ UM MALDITO tunisiano, marroquino ou egípcio envolvido. Sempre, disse Shaw para si mesmo. Um descuido com esses caras e eles arrancam seus testículos e o obrigam a comê-los, dizendo que Alá mandou que fizessem isso, se é que teriam o trabalho de dar uma explicação. Vejo você no paraíso, infiel. Sirvame bem por toda a eternidade, porco imundo. Shaw sabia as falas de cor. Ele apertou a maleta pesada em sua mão direita e estendeu a esquerda para longe do corpo enquanto o tunisiano magro com olhos vermelhos, rosto sinistro e dentes arreganhados o revistava. Estava numa pequena sala no segundo andar com outros seis homens. Aquele era um típico apartamento duplex situado em um canal secundário. Era alto e estreito como uma toca de cobra; nas escadas, em vez de corrimãos, havia cordas cheias de nós, permitindo ao “escalador” realizar um ataque quase vertical. Era fácil ficar enrolado simplesmente indo do primeiro para o segundo andar de uma residência em um canal de Amsterdã. O motivo era histórico, conforme Shaw aprendera. Séculos atrás, todas essas residências tinham sido locais de trabalho de mercadores. E, quando foram construídas, os únicos carpinteiros disponíveis eram os que trabalhavam nos navios. Esses homens, logicamente, decidiram que o que era bom para um barco era bom para uma casa e construíram as escadas quase em linha reta, como era comum no pouco espaço dos navios. Também era por isso que a maioria das construções tinha um vergalhão de aço como a proa de um navio se projetando no último andar. Em tempos passados, servia para erguer produtos a serem vendidos e agora era usado para içar móveis, porque não havia como levar escada acima nem mesmo um sofá de tamanho modesto. Na noite anterior, Shaw tinha saído do bairro da luz vermelha, voltado para o hotel e feito o check-out. O funcionário de serviço sem dúvida trabalhava secretamente para pessoas que queriam vigiar seus movimentos e lhes passaria essa informação. Homens seriam despachados para segui-lo assim que deixasse o Intercontinental. Como Shaw não queria companhia, deixou sua sacola e suas roupas para trás e saiu do hotel pelo porão. Era por isso que tinha se hospedado no grande Intercontinental, com suas numerosas saídas: precisava ir embora sem ser visto. Usando as informações que obtivera com o velho no quarto da prostituta e que havia decorado, tinha viajado na carroceria de um antigo caminhão de fazenda para um destino fora da cidade onde a terra era extensa e verde e não havia nenhuma água por pelo menos uns bons 3 metros. Ele dera alguns telefonemas e, na noite seguinte, tomara posse da maleta que o tunisiano agora tentava febrilmente arrancar de sua mão. Shaw, muito maior, subitamente soltou a maleta, fazendo o homem menor cair de cabeça no chão. O tunisiano se levantou com sangue escorrendo do nariz e segurando firme uma faca. Shaw se virou para o líder do grupo, um iraniano que estava sentado em uma cadeira – sua miniatura de trono – e o olhava fixamente. – Quer que eu mostre a mercadoria? – perguntou Shaw. – Então mande a hiena parar. O persa esguio, usando calças de malha bem passadas e uma camisa larga de manga comprida, acenou com a mão e a faca do tunisiano desapareceu, mas seus dentes permaneceram arreganhados. – Você conseguiu despistar meus homens na noite passada – disse ele a Shaw, com um sotaque inglês. – Não gosto de companhia. Shaw pôs a maleta sobre a mesa, inseriu dois códigos digitais independentes, passou seu polegar por um scanner e as fechaduras de titânio se abriram. Ele observou atentamente a reação do homem de Teerã ao pequeno presente escondido ali dentro. A expressão do iraniano era clara: o Natal, ironicamente, havia chegado cedo para o adorador de Alá. Shaw anunciou: – Oficialmente, este é um DDR, um dispositivo de dispersão radioativa, também conhecido como mala com artefato nuclear ou “bomba suja”. – Ele disse tudo isso em parse, o que fez o iraniano erguer uma sobrancelha. Os homens se agruparam ao redor. O iraniano tocou cuidadosamente no dispositivo e em seus fios, sua carcaça de metal, seus tubos de aço inoxidável e suas múltiplas telas de LED.
– Quão suja? – perguntou o iraniano. – Núcleo de radiação gama com uma bela carga de dinamite. – Suficiente para matar quantas pessoas? Toda uma cidade? Shaw balançou a cabeça. – Não é uma arma de destruição em massa. É o que, em nosso ramo, chamamos de arma de perturbação em massa. Matará algumas pessoas perto do local da detonação. E a radiação atingirá mais algumas. Quanto mais longe do ponto zero, menor o dano. O iraniano pareceu insatisfeito. – Eu tinha a impressão de que esse dispositivo mataria milhares de pessoas, derrubaria prédios. – Essa não é uma bomba atômica que forma uma nuvem em cogumelo. Se quiser uma dessas, pode conseguir os projetos na internet. Mas não conseguirá os ingredientes necessários, como urânio altamente enriquecido. No entanto, o que essa belezinha vai fazer é apavorar todo o país, paralisar a economia e deixar as pessoas com medo de sair de casa. De certo modo, é tão eficaz quanto a bomba atômica, sem toda a confusão. E muito mais barata para você. Isso pareceu acalmar o iraniano. Ele se virou para Shaw, depois de dar uma última palmadinha afetuosa na bomba. – Qual é o preço? Shaw se empertigou, destacando-se acima de todos eles. – O que está na planilha de condições que enviamos. – Presumi que aquela era sua proposta inicial. Quero negociar. – Presumiu errado. O preço não está aberto a negociações. Se não quiser, há muitas outras pessoas que querem. O iraniano deu um passo à frente. Seus homens fizeram o mesmo. – Você vai negociar. Shaw bateu de leve no conteúdo da maleta. – Esta é uma bomba gama, não um conjunto de facas ou um diamante para mulheres. Não estou dando descontos especiais esta noite.
– E por que não podemos simplesmente tirá-la de você agora? Sem pagar nada? O tunisiano devia ser um leitor de mentes, porque já estava de novo com os olhos flamejantes e a faca em punho, sem dúvida pensando em enterrá-la no pescoço grosso de Shaw. – E matar você? – concluiu o tunisiano desnecessariamente, porque Shaw já tinha entendido a mensagem. Shaw fez um movimento na direção de uma fenda que parecia um drive de DVD na lateral da bomba suja. – Este é o drive de importação para o pacote de software que tem os códigos de detonação e geralmente faz esta coisa explodir. Tente usar isso sem o software e se dará mal. – E onde está esse pacote? – Bem longe daqui, pode ter certeza. O iraniano deu um tapa na maleta. – Então isto é inútil para mim! – Como a planilha de condições dizia claramente – começou Shaw, com uma voz entediada –, você recebe o hardware mediante o pagamento de 50 por cento e o software quando a outra metade for depositada na conta designada. – E tenho que confiar em você? – perguntou o iraniano, num tom de voz desagradável. – Assim como temos que confiar em você. Fazemos isso há muito tempo e nunca desapontamos um cliente. Sabe disso ou não estaria aqui. O iraniano hesitou. Vamos, seu verme. Pare de se fazer de idiota na frente de seus homens para conseguir o ovo de ouro. Você sabe que quer isto. Pense em quantos americanos poderá matar com esta coisa. – Primeiro tenho que dar um telefonema. – Achei que tinha autoridade para agir – disse Shaw, aborrecido. O iraniano olhou nervosamente para seus homens, o constrangimento era visível em seu rosto de traços marcantes. – Um telefonema – disse rapidamente. Ele pegou seu telefone.
Shaw ergueu uma das mãos. – Espere! A Interpol entrar de penetra em nossa festinha não está nos meus planos de férias. – Não será longo o bastante para ser rastreado. – Você anda vendo muitos filmes do Perseguidor implacável. Isso não é saudável em nosso ramo. – Do que está falando? – perguntou o iraniano. – Sei que vocês ainda vivem no século IX, mas têm que entrar no século XXI para ficar fora do corredor da morte. Eles não precisam que você fique falando durante dois dias para rastrear a ligação. Precisam de exatamente três segundos para que um satélite rastreie sua impressão digital, faça uma triangulação, isole as torres de celulares, localize o sinal com uma margem de erro de 3 metros e ponha a tropa de elite em ação. – A maior parte do que Shaw estava dizendo era besteira, mas parecia correto. – Por que acha que Bin Laden vive em uma caverna e anota suas ordens em um maldito papel higiênico? O iraniano olhou para o telefone como se o aparelho tivesse acabado de feri-lo. Shaw pôs a mão no bolso devagar, consciente do tunisiano sedento de sangue, pegou seu próprio telefone celular e o jogou para o líder terrorista. – Misturador de frequência de voz e difusor de sinais. Tem até dispositivo de codificação com fóton, portanto nem mesmo um computador quântico, se alguém tiver inventado um, pode abrir o pacote de bytes. Faça a ligação. É por minha conta. O homem deu o telefonema. Posicionou-se de frente para a parede, para que Shaw não pudesse ouvi-lo ou ler seus lábios. Shaw voltou sua atenção para o tunisiano. Em um idioma que estava quase certo de que nem ele nem nenhum dos outros homens falava, perguntou: – Você gosta de transar com garotinhos, não é? Confuso, o tunisiano simplesmente olhou para ele, incapaz de entender o dialeto de uma pequena província no sul da China. Shaw tinha passado um ano ali, quase morrera duas vezes e só conseguira sair com a ajuda de um camponês e seu velho e fumacento Ford. Com tudo aquilo, achou que aprender o dialeto poderia lhe ser útil, embora não se visse voltando ali, pelo menos não por vontade própria. O iraniano devolveu o telefone para Shaw, que o guardou no bolso. – Estamos de acordo – disse ele. – Fico feliz em saber – respondeu Shaw, enquanto seu punho atingia o nariz do tunisiano. No mesmo impulso, girou a maleta e atingiu outros dois homens nas têmporas. Eles caíram no chão, mortos ou quase. Um segundo depois, a porta se abriu com violência e meia dúzia de figuras com coletes à prova de bala e fuzis automáticos entrou, gritando para que os homens pusessem as mãos para o alto e largassem as armas, não necessariamente nessa ordem, se não quisessem um novo olho no meio de suas testas. Então o iraniano fez algo inesperado. Cobrindo o rosto com as mãos, se jogou pela janela e voou no espaço. Shaw correu para a janela, certo de que veria o homem morrer se esvaindo em sangue lá embaixo. – Droga! O impulso que o homem tomara tinha sido suficiente para fazê-lo cair no canal. Shaw olhou de relance para dois dos homens que invadiram o local e eles lhe retribuíram o olhar, estupefatos. – Alguém providencie um antibiótico. Tenho certeza de que vou pegar leptospirose. Ele atirou o telefone para um dos homens, pegou a faca do tunisiano e praguejou em voz baixa. Ficou em pé no peitoril da janela por um instante, pensou brevemente na insanidade que estava prestes a cometer e saltou para o nada, exceto o ar puro holandês.
SE HÁ UMA MASSA de água fora da antiga União Soviética, ou talvez de Veneza, em que alguém não desejaria mergulhar é um dos canais de Amsterdã. Eles são famosos, mas não por sua clareza, limpeza ou circulação saudável. Shaw caiu na água, exatamente no meio do canal. Ainda assim, o impacto da altura de quatro andares se fez sentir em todos os nervos e ossos de seu corpo. Ele se virou e voltou para cima, rompendo a superfície e olhando ao redor à procura do iraniano. Nada! Aparentemente era um nadador rápido para alguém procedente de um país desértico. Shaw também era um bom nadador e, quando enfim avistou sua presa, disparou pelo estreito canal com braçadas fortes, quase agarrando o pé do homem, que tentava sair da água. O iraniano o atingiu dolorosamente no queixo com o salto de sua bota. Aquilo não ajudou a melhorar o humor de Shaw. Os dois homens se colocaram em posição defensiva perto da base da Magere Brug, suas luzes alegres fornecendo um estranho pano de fundo para indivíduos enfurecidos que tentavam se matar. – Você me traiu! – gritou o iraniano. – Você vai superar isso. O iraniano assumiu uma posição de luta sofisticada. – Fui treinado como um mujahedin. Lutei contra os demônios no Iraque e no Afeganistão durante anos. Estou louco para matar você com minhas próprias mãos. Sirva-me bem na morte, imundo. Antes que ele pudesse atacar, Shaw puxou sua faca e a fez voar. Ela atingiu o homem no pé, atravessou a pele e o osso e finalmente se cravou no piso de madeira da ponte embaixo. O iraniano gritou de dor e disse obscenidades para Shaw enquanto tentava se soltar. Shaw aproveitou esse momento de distração e nocauteou o iraniano, que ainda tinha o pé espetado na madeira e ficou estatelado na ponte como uma borboleta em um quadro de cortiça. – Você fala demais – disse ele ao homem inconsciente.
Uma hora depois, Shaw estava sentado na parte de trás de um furgão branco com uma manta sobre seus ombros largos, bebendo uma xícara de café quente. Dois homens vestindo uniformes que chamavam a atenção por não ter nenhuma marca de identificação, junto com um terceiro usando um terno, estavam sentados de frente para ele. – Mergulhar de uma janela para o canal na sua idade? – disse o homem de terno enquanto coçava uma mancha vermelha na pele de sua careca em forma de ovo. – Você rastreou o telefonema? O homem assentiu com a cabeça. – Você pensou rápido ao lhe dar seu telefone. Prendemos Mazloomi e seu bando em Helsinque, há cerca de dez minutos. Gente asquerosa. Realmente violenta. – O homem fingiu estremecer e depois riu. Shaw, porém, não sorriu. – Gente boa raramente tenta explodir pessoas inocentes. É por isso que temos governos. – Você realmente acredita nisso? – Sim. E você também, Frank, se tivesse coragem de admitir. Frank olhou para os homens de uniformes idênticos e lhes indicou a porta com um gesto de cabeça. Eles rapidamente se levantaram e saíram. Frank se aproximou de Shaw. – Que história é essa sobre você querer parar? – Quanto tempo esperava que eu continuasse fazendo isso? – Não leu as letras pequenas? Até morrer. Como quase morreu esta noite. – Esta noite? Não cheguei nem perto de morrer. Isso foi tão perigoso quanto enfrentar uma freira com uma régua. – Bem, se você algum dia conseguir morrer, que não seja quando eu estiver de serviço. Não preciso desse aborrecimento. – Obrigado por se preocupar. – Para onde vai agora? – Dublin. – Por quê? – perguntou Frank, curioso.
– Férias. Talvez você não pense que mereço depois desta noite.
– Ah, pode ir, mas voltará – disse Frank, confiante. Shaw se levantou, deixou a manta escorregar de seus ombros e entregou sua xícara vazia para Frank. Sua pele coçava muito e parecia que seu cabelo estava caindo. – Assim que você me mandar uma foto sua nadando no canal. Nu, é claro. – Certo. Ainda está satisfeito por ter passado para o nosso lado? – Realmente não tive escolha, tive? – Divirta-se em Dublin, Shaw. – Você poderá ver isso por si mesmo, não é? Seu pessoal vai estar na minha cola. Frank acendeu um charuto holandês e deu um sorriso forçado para Shaw por entre uma cortina de fumaça. – Você acha que é importante o suficiente para o caçarmos pelo mundo afora? Meu Deus, que ego enorme! – Que você nunca fique velho, Frank.
“LEMBRE-SE DE KONSTANTIN” TINHA se tornado uma febre. Havia comícios contra os russos em cinquenta países e a ONU tinha pedido formalmente a um furioso presidente Gorshkov uma reação mais enérgica. Contudo, mentes mais calmas, ou pelo menos mais céticas, se opunham ao crescimento rápido e espontâneo do sentimento antirrusso. Muitos líderes políticos, jornalistas e formadores de opinião, cobrados excessivamente no passado por julgamentos apressados, recomendavam cautela e moderação diante do escândalo “Lembrem-se de Konstantin”. Mais questões foram levantadas sobre a autenticidade do homem e do vídeo, sobretudo diante das negativas detalhadas e do acesso sem precedentes a arquivos secretos que o governo russo concedeu à mídia. Logo depois dessa demonstração de cooperação por parte de Moscou, o sentimento mundial de que a Rússia encarnava o mal começou a diminuir um pouco. E líderes de todo o planeta voltaram a respirar um pouco melhor. Porém essa era apenas a calma antes da real erupção. Dois dias depois o mundo tomou outro choque coletivo quando surgiram sincronizadamente em servidores de todo o mundo nomes e fotos de milhares de russos supostamente assassinados por seu próprio governo. Incluíam homens, mulheres, crianças, jovens, velhos, grávidas e deficientes físicos. E, junto com os rostos e nomes, havia detalhes sobre suas vidas e mortes horríveis e trágicas. O pior é que todos esses documentos pareciam provenientes dos arquivos secretos do governo russo. O tema da mensagem era simples e devastador: “Lembrem-se de mais que Konstantin.” Muito rapidamente todos – de supostos especialistas a expatriados russos e pessoas de países do antigo bloco soviético – foram à TV, ao rádio e à internet atacar a Rússia por sua óbvia nova tentativa maníaca de dominar o mundo. Foi como se a imagem do pobre e torturado Konstantin, realçada pela marca indelével de milhares de “novos” mortos, finalmente tivesse dado às pessoas coragem para se manifestar. Em um registro bizarro, canecas de café e camisetas com a imagem atormentada de Konstantin – agora aparentemente o Che Guevara de sua geração – inundaram os mercados globais. E os anos 1960 subitamente voltaram com suas imagens de nuvens em forma de cogumelo vivas no inconsciente coletivo. Pessoas que afirmavam ser parentes ou amigas de Konstantin apareceram em noticiários de todo o mundo, contando e recontando as desventuras de um homem que nunca havia existido. Contudo, elas contavam suas mentiras com gosto, aparentemente tendo se convencido de que ele era real e de que o haviam conhecido. Konstantin era um mártir, famoso e adorado, e agora elas também eram famosas e adoradas. Seus relatos comoventes conquistavam a atenção e os corações de gente de todo o mundo. Os apresentadores de talk-shows e âncoras de jornais faziam a essas pessoas muitas perguntas investigativas como “Isso é muito perturbador, não é?” e “Se o pobre Konstantin estivesse vivo agora, que mensagem acha que ele gostaria de transmitir para nossos milhões de telespectadores?”. Um homem disse sabiamente em um canal da BBC: “Em um mundo de escassez de poder e de água, onde novos inimigos surgem todos os dias, os russos claramente não querem ficar atrás de países como a China e a Índia, ou até mesmo os Estados Unidos.” Ele acrescentou que os russos experimentaram a democracia, mas não se interessaram por ela. O Urso Russo estava prestes a se afirmar mais uma vez e era melhor o mundo prestar atenção nisso. O mundo tinha prestado atenção, porque quem pronunciou essas palavras foi ninguém menos que Sergei Petrov, o antigo número 2 do FSB, entidade de segurança nacional sucessora da KGB. Foi por pouco que ele conseguira escapar com vida de sua terra natal. Disse que esperava ser morto a qualquer momento por uma bala, bomba ou café envenenado, por causa de sua sinceridade. Também foi bem pago por seus comentários, por uma fonte que desconhecia totalmente. As pessoas ainda tentavam descobrir se tudo isso era verdade. Mas Petrov não lhes foi de nenhuma ajuda, porque ele não morria de amores por sua terra natal. Contudo, a verdadeira pergunta que todos se faziam era: quem estava por trás de tudo isso e qual seria sua motivação? Apesar de esta ser a era da informação, não era possível encontrar uma resposta definitiva, por um motivo muito simples que a maioria das pessoas não considerava: na era da informação, não havia milhões de lugares para se esconder, mas trilhões. As múltiplas crises no Oriente Médio foram esquecidas. O louco Kim Jong-il, da Coreia do Norte, ficou em segundo plano. A todos os candidatos à presidência dos Estados Unidos na próxima eleição era feita a mesma pergunta: “O que o senhor pretende fazer em relação a um país com quase tantas armas nucleares quanto os Estados Unidos e um passado cheio de líderes ansiosos por dominar o mundo?” O povo americano, em particular, estava furioso. Tanto tempo, tanto dinheiro e tantas vidas desperdiçados no Oriente Médio enquanto os russos tinham planos secretos de dominar o mundo livre? A Rússia possuía milhares de ogivas nucleares capazes de atingir qualquer lugar no planeta, o que fazia Bin Laden e a Al Qaeda parecerem insignificantes. Como tantas pessoas inteligentes tinham deixado aquilo passar? E, quando o povo americano ficava irritado, deixava as pessoas no poder saberem disso. O candidato à reeleição caiu da primeira para a quinta posição nas pesquisas de intenção de voto quando seus oponentes conseguiram pintá-lo como indulgente com os russos. Todas as grandes revistas mostravam a foto de Konstantin. Todos os programas sérios, blogs e cybercafés só falavam da ascensão da Rússia, da possibilidade de uma volta à Guerra Fria e até mesmo do ressurgimento de uma nova Cortina de Ferro que algumas almas insensíveis já estavam apelidando de Caixão de Titânio. Nos comícios, os políticos bradavam mais alto em seus palcos de um bilhão de watts que tinham avisado desse possível perigo o tempo todo, quando na verdade haviam se concentrado no Oriente Médio, como todo mundo. Ainda assim, bramiam coletivamente: “Eu falo pelo homem comum quando digo explodam os malditos vermelhos antes que eles nos explodam. Esse é o único caminho.” As grandes redes de televisão apresentaram seus vastos arquivos de imagens de explosões nucleares, granuladas e em preto e branco. Pelo menos duas gerações de americanos viram pela primeira vez crianças na década de 1960 de olhos arregalados amontoadas debaixo de suas escrivaninhas na escola como se um pedaço de madeira laminada ou vidro fino pudesse protegê-las de uma explosão termonuclear. Junto com isso eram exibidos filmes de comunistas desfilando seu poderio militar diante do Kremlin. E todos ficaram muito assustados. Como disse um editorial sincero, embora de certo mau gosto: “Se Moscou atingir Nova York com bombas nucleares, não cairão apenas dois prédios, mas todos eles.” As Forças Armadas americanas, o único adversário viável do Exército de Moscou – talvez com exceção da máquina chinesa, que tinha 3 milhões de homens –, estavam desgastadas, com sua moral e seus números baixos, seu equipamento destruído pela areia do Iraque e bombas improvisadas. Embora fosse verdade que a Força Aérea e a Marinha americanas eram mais do que páreo para qualquer coisa que os russos pudessem reunir, os Estados Unidos e o resto do mundo ainda estavam nervosos. Ninguém sabia o que aqueles russos loucos fariam em seguida. Mas de uma coisa o planeta parecia saber: O Império do Mal estava de volta. www Nicolas Creel pôs de lado seu jornal e seu café. Estava voando a 11 mil metros de altitude, a caminho de um evento muito importante. Tinha se inteirado dos últimos acontecimentos. As coisas estavam correndo bem. No linguajar da área de gestão da percepção, o mundo tinha entrado firmemente na fase de “controle”, em que a maioria das pessoas aceitava como verdadeiro tudo que lhes diziam. Isso era mais fácil de conseguir do que elas ousariam imaginar. Era fácil manipular as pessoas. Isso sempre tinha sido feito com resultados que levaram o mundo à beira da destruição. As imagens digitais que invadiam as redes globais naquele momento, os rostos de dezenas de milhares de russos supostamente assassinados olhando de modo suplicante para o resto da humanidade eram uma manobra tática que o especialista em gestão da percepção de Creel gostava de chamar de “Vesúvio”, o vulcão que entrou em erupção e destruiu as cidades romanas de Pompeia e Herculano. A gigantesca dimensão daquilo fazia as negativas do governo de Moscou parecerem absurdas, embora fossem verdadeiras. Tudo era parte de uma clássica “manobra de manipulação da mente”, algo que o administrador de Creel chamava de “Triplo M” e que funcionara perfeitamente nesse caso.
Os russos não pareciam só mentirosos, mas mentirosos incompetentes. Creel olhou pela janela de seu jumbo 747 de fuselagem larga. Projetado para transportar 250 passageiros comuns, era surpreendente como se podia transformar o comum em extraordinário, reconfigurando a aeronave para acomodar vinte pessoas privilegiadas em suítes individuais, tendo à sua disposição academia de ginástica, massagista em tempo integral, sala de jantar, sala de conferências e até mesmo um cinema. E prontas para servi-lo havia três aeromoças de pernas compridas, com blusas justas que traziam a palavra “Ares” bordada na parte de trás. Não que Creel prestasse atenção nisso. Bem, talvez um pouco. Ele era um homem casado. Na verdade, tinha se casado quatro vezes, a última com uma Miss Universo ou algo do gênero; ele não conseguia se lembrar do título. É claro que aquilo era absurdo e não ia durar. Mas ele havia se divertido um pouco e ela obteve o bastante do divórcio para viver confortavelmente. Suas primeiras duas esposas tinham sido elegantes, inteligentes e teimosas e o deixaram totalmente louco. Agora escolhia mulheres bonitas e as trocava por outras protegido pela segurança de um pacto antenupcial que limitava muito o que a mulher levaria na separação. Creel olhou pela janela. Lá embaixo estava a China, um país com mais potencial e mais problemas do que qualquer outro. Sim, um lugar complexo, talvez o mais complicado de todos. E que lugar soberbo para começar uma guerra, pensou Creel. Mas aquilo não era tão simples assim. Nicolas Creel nunca buscou o que era fácil. Sempre procurou o aparentemente impossível.
9 KATIE JAMES RESMUNGOU QUANDO a luz do sol inundou o quarto. Aparentemente as três chamadas para despertá-la não tinham surtido efeito, embora as tivesse pedido, acreditando ingenuamente que talvez uma delas rompesse o nevoeiro em seu cérebro. Estava exausta por causa da viagem, da mudança de fuso horário e da falta de sono. De todo modo, quem iria querer sair de uma cama confortável para ir a um funeral? Grogue, ela finalmente se sentou e puxou o lençol até o pescoço. Tossiu, pigarreou e olhou de relance para o relógio. Droga! Estou realmente atrasada. Segurem o corpo, estou indo. Katie pulou da cama, correu nua para o banheiro e, em dez confusos minutos, tomou banho, vestiu-se e saiu batendo a porta do quarto de hotel, com os cabelos ainda molhados. A vida de jornalista que viajava pelo mundo ao menos a havia preparado para ser rápida quando isso fosse absolutamente necessário. Certo, estava indo a um funeral. Mas o que realmente queria era um mojito. Na verdade, uns três, só para começar. Então viria o bourbon. Depois martínis, seguidos de gim-tônica. Ela não discriminava. Adorava todo tipo de bebida. Aquilo tinha começado passando tempo de mais no bar para tentar acompanhar os rapazes que cobririam a próxima grande reportagem no exterior. Contudo, foi quando ganhou seu segundo Pulitzer, quase morrendo durante a reportagem, que o hábito de beber ficou fora de controle. Katie tinha ótimos motivos para beber depois de sua experiência de quase morte, mas ela os guardava para si. O álcool só se tornou um problema profissional quando seu editor notou a fala arrastada, os olhos vermelhos à tarde e o ocasional esquecimento de lugares aonde ir, matérias a escrever e pessoas a paparicar. Ele, por sua vez, contou ao editor chefe e a assustadora verdade correu depressa até a linha de comando. Todos eles bebiam, tendo conseguido estender o almoço regado a cerveja até o século XXI, mas Katie recebeu críticas severas até finalmente ser designada para escrever sobre pessoas mortas. Em Hollywood, ir para a reabilitação lhe dava credibilidade instantânea nas ruas. No jornalismo, tornava você um mau caráter.
Aquilo foi tema de conversas nos círculos jornalísticos de Nova York durante algumas semanas e depois todos pararam de se importar. Todos, menos Katie. Então ali estava ela cobrindo o funeral público de um adorado líder escocês que vivera até os 104 anos ou alguma outra idade ridícula. Ver um homem com a cara enrugada de um sharpei, vestindo um kilt, deitado no fundo de um caixão gigantesco, como um boneco em miniatura numa grande caixa de brinquedo, fez com que ela tivesse vontade de rir, não de chorar. Katie havia tentado o AA, só porque seu editor impusera essa condição para manter seu emprego. Ele obviamente havia se esquecido dos dois Pulitzers que ela ganhara para o maldito jornal e da ferida em seu braço esquerdo que nunca cicatrizou totalmente. Também se esquecera de suas ótimas reportagens, cavadas ao longo dos anos em todos os cantos caóticos e extremamente perigosos da Terra. Tudo isso havia sido conquistado a um enorme custo pessoal, o que significava que ela não tinha nenhuma vida além de botar a caneta no papel. Katie havia ido a 84 países e tido exatamente um encontro às cegas, com um paquistanês que lhe dissera que ela lhe lembrava sua vaca favorita. Katie se perguntou se o nariz do paquistanês algum dia se recuperou do soco que ela lhe dera. Então, três anos antes de entrar na casa dos 40, Katie havia acordado em um quarto que não reconhecia, com um homem que nunca vira, em um país ao qual não sabia como tinha chegado, coberta com o que parecia seu próprio vômito. Aquilo a levara de volta à reunião do AA, na qual ela se levantara e dissera a uma sala cheia de estranhos que era uma pessoa confusa e emocionalmente instável e esperava melhorar. Tinha bebido pela última vez havia seis meses. Contudo, todas as manhãs, tardes e noites o monstro estava presente, instigando-a a quebrar sua promessa e tomar um pequeno gole. E lá estava ela na Escócia, lar do melhor uísque do mundo, ou pelo menos das melhores opções dele. A simples ideia fez seus lábios tremerem e sua garganta se apertar. Somente ao chegar ao funeral Katie percebeu que estava vestida inadequadamente, toda de branco, tendo apanhado às pressas a primeira roupa que conseguiu encontrar no armário. Parecia um lírio no mar negro de tristeza. Era alta e magra, com cabelos louros na altura dos ombros que ainda estavam molhados, mesmo depois de terem ficado para fora da janela do táxi que a trouxera. Mais de uma vez tinha sido confundida com Téa Leoni. Talvez em algum momento Téa Leoni tivesse sido confundida com ela, principalmente depois do segundo Pulitzer, quando sua foto foi exibida em todo o mundo por quase ter morrido para fazer a maldita reportagem. Um homem mais velho dissera que ela era idêntica a Shirley Eaton, a garota do filme 007 contra Goldfinger. Ele revelou que gostaria de vê-la coberta de ouro e nada mais, enquanto sua mão escorregava para as nádegas dela e as apertava fortemente. Katie também lhe deu um soco. Hollywood, é claro, quisera filmar a aventura assustadora que lhe rendeu o prêmio máximo do jornalismo e até havia sugerido Leoni para o papel dela. Contudo, Katie recusara todas essas propostas, não por vaidade ou privacidade, mas por vergonha. Ou culpa. Houvera mais alguém envolvido, alguém que perdera a vida enquanto ela ganhava seus quinze minutos de fama. Uma criança. Um garotinho. E, de certa forma, tinha sido culpa de Katie. Na verdade, a culpa fora quase toda dela. Ninguém além de Katie sabia dessa parte da história. Depois disso, o único alívio que conseguia obter na vida era olhar para um copo cheio de bebida e entorná-la garganta abaixo, acabando com o inferno dentro dela e deixando cicatrizes em sua alma a cada uísque com soda. O nome do garotinho afegão era Behnam. Ela ficara sabendo que o nome dele significava bondade e honra. E ele possuía as duas qualidades. Com cabelos pretos cacheados e um sorriso capaz de derreter o mais duro dos corações, era cheio de vida até o momento em que ela lhe foi violentamente tirada. Por culpa de Katie. Ele havia morrido. Ela estava viva. Mas não totalmente. Uma parte dela morrera com a criança. Quando recebeu o segundo Pulitzer, suas emoções foram tantas que nenhum escritor profissional, não importa quão talentoso fosse, seria capaz de expressá-las em palavras. Era a noite dela: todos lhe diziam quanto era corajosa, maravilhosa e talentosa. Seu braço ferido envolto em grossas ataduras e apoiado numa tipoia – enquanto o único dano interno sério causado pela bala permanecia quase completamente oculto em seu corpo emaciado e enfraquecido – só parecia enfatizar de um modo visualmente dramático seu inequívoco direito ao prêmio. Sim, se havia alguém que o merecia era ela. Katie tinha sorrido, abraçado todos eles com seu braço bom e exibido a aura de uma pessoa perfeitamente em paz consigo mesma e sua posição elevada na vida. Naquela noite ela fora sozinha para seu apartamento em Nova York e acordara na manhã seguinte somente de roupas íntimas, no chão da sala de estar, com uma garrafa vazia de Jack Daniels sobre a barriga e se odiando. Sim, perfeitamente em paz. Exceto por sua própria alma estar partida ao meio, ela estava bem.
NO FUNERAL, KATIE SE sentou e fez diversas anotações que, de algum modo, se encaixariam numa matéria que as pessoas leriam em um minuto e esqueceriam no seguinte. Afastando-se do túmulo depois do enterro, trocou algumas palavras gentis com pessoas que não conhecia. Sua reputação estava tão arruinada que ninguém a reconhecera, exceto um velho amalucado do Times que lhe deu um sorriso condescendente. Ele tinha 84 anos. Katie achou que o homem estava ali para cobrir o obituário; esse era um ótimo modo de ele se manter atualizado sobre seus contemporâneos. Mas também era verdade que ele estava ali porque queria. Katie não tinha outro lugar aonde ir. De volta ao hotel, ela digitou seu artigo. Havia muito tempo que a biografia oficial do escocês morto constava dos arquivos, assim como todas as biografias de pessoas que tivessem alguma celebridade, mesmo que remota. O texto de Katie era apenas para ambientar as informações, fornecer sua visão dos acontecimentos. Mas não há muitas maneiras de se descrever um funeral. As pessoas ficam tristes e choram. Depois voltam para casa a fim de retomar a vida. O defunto, por necessidade, fica para trás. Andrew MacDougal tivera uma longa carreira na política europeia, mas estava “aposentado” havia mais de trinta anos, portanto havia muito tempo perdera a visibilidade pública. A matéria inteira teria menos de quinhentas palavras e mesmo assim só porque o presidente do jornal para o qual Katie trabalhava era escocês. Se houvesse uma foto ilustrativa, sem dúvida seria a do homem morto em seus primeiros anos usando kilt. Katie balançou a cabeça ao pensar nisso. Um voo de quase sete horas até Londres e uma irritante conexão para Glasgow. E, para voltar, seria a mesma coisa. Tudo por causa de um homem que encerrou sua carreira política quando Katie ainda era criança. E ao mesmo tempo que a história do milênio se desenrolava bem diante dos seus olhos. É claro que ela havia acompanhado de perto a história de Konstantin e todo o resto. Chegara a enviar e-mails cuidadosamente redigidos para seu editor sugerindo que, como estava mesmo por aquelas bandas, talvez valesse a pena viajar até Moscou. Katie considerou um mau sinal ele nem ter se dado o trabalho de responder. Escrevo sobre pessoas mortas enquanto a história que poderia ressuscitar minha carreira se desenrola. Que sorte a minha! Após enviar por e-mail sua obra-prima do óbito, Katie tinha o resto do dia livre. Podia até prolongar sua estada. Não era como se tivesse algo para o que voltar. Podia se aventurar na antiga cidade de Edimburgo, que ficava bem perto, a leste. Glasgow era a maior cidade da Escócia, cheia de pubs e clubes atraentes, um lugar não muito adequado para uma alcoólatra em recuperação. Em comparação, a capital, Edimburgo, era um pouco mais tranquila. E quem sabe outro escocês centenário digno de aparecer na página do obituário não morreria enquanto ela estivesse ali? Poderia cobrir a morte de dois escoceses de uma só vez. Se tivesse sorte, talvez até ganhasse um bônus. Katie deu uma grande volta para se desviar do bar do hotel e chegou à rua. Nunca tinha passado muito tempo na Escócia. Era na Irlanda que estavam todas as notícias, pelo menos quando o IRA estava ativo. Bem no início da carreira, Katie ficara presa em um fogo cruzado em Belfast que durara metade de um dia. Ela havia passado a reportagem por telefone enquanto se mantinha agachada atrás de um Fiat enferrujado, desviando-se das balas. Quando aquilo terminou, Katie fez uma ronda pelos bares e depois tomou um banho no hotel. Só então encontrou a bala achatada presa entre seus cabelos. Devia ter ricocheteado em algum lugar. Katie a guardara por todos aqueles anos; era seu amuleto. Sim, ela a guardara. Na verdade a usava numa corrente ao redor do pescoço. No entanto aquilo, obviamente, tinha parado de funcionar havia muito, muito tempo. Katie parou em um café para comer. Quando o chá e os bolinhos de blueberry chegaram, mal tocou neles. Pagou a conta e foi embora, sua expressão desinteressada se prolongando como se o cansaço tivesse a capacidade de materializar a droga que era sua vida. Ela não gostava de ficar deprimida ou a um passo de destruir sua vida de novo, talvez para sempre. Sabia que tinha que dar alguns passos para progredir e isso incluía mais do que deixar a bebida de lado. O álcool sem dúvida seria capaz de arruiná-la.
Porém Katie sabia que os verdadeiros demônios estavam dentro dela, muitos deles surgidos da morte de um garotinho inocente. Aquela culpa secreta era devastadora. E a cada minuto Katie podia sentir aqueles demônios tentando dominá-la. Ela desceu a rua superlotada de Glasgow sentindo-se mais só do que nunca.
DUBLIN ERA UMA DAS cidades favoritas de Shaw. Com um pub e uma livraria em quase toda esquina, como ele poderia não gostar? Metade da população tinha menos de 30 anos e o segundo idioma mais falado era o mandarim. Os jovens e cultos frequentadores dos bares formavam um grupo heterogêneo e muitas vezes resolviam suas diferenças com uma língua solta ou punhos irlandeses rápidos, ou às vezes com os dois. Shaw havia se metido em duas brigas em pubs de Dublin e ganhara ambas com um único soco. Poderia ter se contido e feito com que os oponentes sofressem, mas para Shaw o combate sempre teve uma regra: quando tiver uma chance, desfira o golpe e deixe que outra pessoa se preocupe com o discurso fúnebre. Quando seus oponentes recuperaram a consciência, perguntaram ao vitorioso qual era seu nome. – Shaw. – Escocês? – Não. A verdade era que Shaw não conhecia suas origens. Para ele, um passado era tão bom quanto qualquer outro, quando precisava que fosse. – Droga, isso explica tudo – disse um deles, com um sotaque irlandês de vogais macias e consoantes duras, enquanto esfregava o queixo amassado. – É um maldito irlandês! Depois de jogar sua bagagem no quarto de hotel e trocar de roupa, Shaw correu pelos 709 hectares do Phoenix Park, um paraíso verde com mais que o dobro do tamanho do Central Park. Em sua corrida, passou pelas residências do embaixador dos Estados Unidos e do presidente irlandês e não conseguiu cumprimentar nenhum deles, embora tivesse trabalhado para ambos como freelancer em diversas ocasiões. Ele percorreu 8 quilômetros em meia hora. Não era sua melhor marca, mas era um bom ritmo. Shaw conseguia correr mais rápido e sabia que chegaria o momento em que precisaria fazer isso. Voltou ao hotel, tomou dois banhos e usou loção e desodorante extras. Mesmo assim, podia jurar que ainda exalava o cheiro do canal de Amsterdã por todos os poros. Shaw olhou para o relógio. Tinha algum tempo de sobra, por isso foi dar um passeio, finalmente chegando ao ponto do rio Liffey em que, em 1916, os ingleses tinham posicionado uma canhoneira e começado a bombardear Dublin para sufocar o “Levante”. Não é de espantar que os irlandeses ainda fossem um pouco ressabiados com seus vizinhos do leste, pensou Shaw. Guerras. Elas eram as coisas mais fáceis de começar e mais difíceis de terminar. Infelizmente Shaw sabia disso por experiência própria. Ele olhou de novo para o relógio. Era a hora de ver Anna. Anna Fischer. Nascida em Stuttgart, com formação universitária na Inglaterra e na França, agora morava em Londres, exceto quando tinha uma palestra a dar. Era por isso que estava em Dublin. E também era por isso que Shaw estava ali. Ele e Anna costumavam ter encontros amorosos pelo mundo, mas dessa vez era diferente. E Shaw, que em geral tinha sangue-frio, de repente sentiu seu coração bater mais rápido e sua respiração ficar ofegante. Realmente era a hora.
A CAMINHADA PARA O TRINITY College levou apenas cerca de 10 minutos, com os passos rápidos e a ansiedade contida de Shaw. A palestra de Anna estava quase terminando e ele a esperou em uma entrada lateral da universidade, perto da livraria de Maggie, uma das preferidas deles. Shaw passou alguns minutos conversando com a gerente. Numa prateleira, encontrou um exemplar do livro de Anna sobre as origens dos governos fascistas, intitulado Uma análise histórica dos Estados policiais. O amor da vida de Shaw também era emotiva, romântica e adorava se divertir, mas possuía um QI quase de gênio e as questões que dominavam sua vida profissional eram realmente sérias. Inteligência e beleza – haveria uma combinação mais poderosa para conquistar o coração de alguém? Quando Anna saiu, eles se abraçaram demoradamente. Ela pressionou seus dedos longos na base das costas dele e os deslizou espinha acima. Quase pôde sentir a dor de Shaw, e ele era um homem que escondia muito bem essas coisas. – Está tenso? – perguntou-lhe, praticamente sem nenhum sotaque alemão. Anna Fischer falava pelo menos 15 idiomas, todos eles com sotaque nativo. Após seis anos em Oxford escrevendo ensaios e livros brilhantes, tornara-se tradutora simultânea das Nações Unidas. Depois aceitara um cargo de especialista em Londres e trabalhara em políticas internacionais e assuntos globais de enorme complexidade sem nenhuma solução fácil à vista. Sem dúvida ela era mais inteligente do que Shaw, mas nunca o fez sentir isso. – Um pouco. – O voo da Holanda foi ruim? – Foi ótimo. É só uma lesão antiga de rúgbi. – Na verdade era o mergulho no canal imundo de Amsterdã, mas ela não precisava saber disso. – Os homens e seus esportes – disse Anna, num tom irônico. – Foi assim que conseguiu isso? – Ela apontou para a mancha roxa no rosto de Shaw, cortesia do iraniano que nunca mais veria a liberdade.
– A mala saiu do compartimento de bagagens mais rápido do que eu imaginava. Parece pior do que é. Quando eles finalmente se soltaram do abraço, Anna ergueu os olhos para Shaw, mas, com 1,80m e sapatos com saltos de 5 centímetros, não precisou esticar muito o pescoço. Ainda assim, Shaw nunca se sentiu mais grato por sua altura imponente. – Como foi a palestra? – perguntou. – Teve um público razoável. Mas, a bem da verdade, preciso admitir que a maior parte dele deve ter ido por causa da comida do melhor restaurante indiano da cidade e do open bar. Estou decepcionada por você não ter ido. Pelo menos, eu poderia tê-lo imaginado de cueca. – Por que imaginar uma coisa quando pode vê-la de verdade? Ela o beijou e entrelaçou seus dedos longos nos dele, grossos. Shaw entregou-lhe o livro que havia comprado. – Você pagou por ele? Eu poderia ter lhe dado um de graça. Eles me enviaram todos os exemplares não vendidos. E foram tantos que os usei como mobília no escritório. – Bem, você vai receber todos os direitos autorais deste. Escreve uma dedicatória para mim? Anna pegou sua caneta e escreveu algo no livro. Quando Shaw tentou ver o que era, ela disse: – Leia depois. Depois de Dublin. – Obrigado. – Você está interessado no Estado policial? – perguntou ela. – Minhas viagens me levam a pelo menos um por mês. Shaw havia literalmente esbarrado com ela num beco em Berlim, três anos antes. Anna estava sendo agredida por dois homens e ele havia acabado de cumprir uma missão individual não muito diferente da que tivera em Amsterdã e não estava de bom humor. Quando os assaltantes o viram, cometeram o grave erro de achar que roubariam duas pessoas ao mesmo tempo. A polícia chegou alguns minutos após Shaw tê-la chamado, depois que deixou os dois homens inconscientes. Havia batido em um deles com tanta força que quase quebrara a mão no crânio do sujeito.
Shaw havia levado Anna de volta ao hotel após ela ter se recusado a ir a um hospital. Aplicou gelo em seu rosto por uma hora e depois dormiu no chão do quarto, porque ela ainda estava muito assustada com o assalto. Shaw nunca tivera um relacionamento sério com uma mulher. O motivo podia ser seu relacionamento – ou a ausência de um – com a mãe. O abandono fazia isso com as pessoas. Porém, no momento em que viu Anna Fischer ferida e ensanguentada naquele beco escuro na capital alemã, soube que seu coração não pertencia mais a ele. Três anos se passaram e os sentimentos de Anna por ele se tornaram nitidamente mais fortes. Shaw sabia que ela o amava. Contudo, podia sentir a crescente perplexidade dela com a falta de compromisso entre ambos. Bem, isso estava prestes a terminar. Shaw ainda não estava livre de Frank, mas já não podia esperar. De algum modo, faria aquilo dar certo. – Você está pensativo – disse Anna durante o jantar. Aos 38 anos, ela ainda usava cabelos compridos, que caíam sedutoramente sobre seus ombros bem esculpidos. – Não, só estou com fome. A fome faz os homens parecerem pensativos. Acho que não servem coddle aqui. – Aquele era um prato da classe operária, feito com pedaços finos de carne, batata, cebola, salsicha e molho picante espesso. – Aqui não, mas podemos ir a outro lugar. – Está bem. A comida ficou melhor em Dublin com o passar dos anos. – Sim, embora eu ainda não consiga entender por que o ensopado irlandês não tem cenoura. – Ela abriu um sorriso travesso por cima de sua taça de vinho. – Até os ingleses põem cenoura no ensopado. – E é exatamente por isso que os irlandeses não põem. Mais tarde, quando eles finalmente terminaram de comer, Anna disse: – Então, o que você foi fazer em Amsterdã dessa vez?
– O mínimo possível. – Seu trabalho de consultoria está em ritmo menos acelerado? – Vamos, quero levar você a um lugar. Shaw pôde sentir a tensão em sua voz e notou que Anna também a percebera. – Você está bem? – perguntou ela. – Está agindo de um modo muito misterioso. Shaw passou a língua por seus lábios secos e tentou sorrir. – Pensei que essa fosse uma das coisas de que você gostava em mim. Mistério. Ele não acreditou em suas próprias palavras e estava claro que ela também não. Shaw se levantou. Suas pernas tremiam um pouco e ele as amaldiçoou em silêncio. Pulei do quarto andar de um prédio num maldito canal e tive que enfrentar quase sozinho um grupo de terroristas malucos. Era de se esperar que conseguisse lidar com isso sem agir como um adolescente apaixonado. Pouco depois eles entraram em um pequeno pub ao norte de Liffey, que era decididamente a parte mais pobre e menos glamourosa de Dublin. Ainda assim, Shaw gostava dali e Anna também. Certa vez ela dissera: – Como é possível não adorar cada molécula de uma cidade que produziu Swift, Stoker, G. B. Shaw, Yeats, Wilde, Beckett e Heaney? E o mestre Joyce? Só para ver a reação dela, ele respondera: – Prefiro Roddy Doyle. – E eu prefiro Maeve Binchy – dissera Anna. Shaw fez o pedido, o que era incomum. Quando chegou, Anna perguntou: – O que é? – Barm brack. Uma espécie de bolo de frutas.
– Bolo de frutas! Não usam isso para calçar portas e envenenar pessoas? Shaw cortou um pedaço para ela. – Experimente. Você é uma mulher corajosa. Anna espetou o bolo com seu garfo, que bateu em algo. Ela arregalou ainda mais os olhos quando examinou o bolo e seus dedos se fecharam ao redor dele. – Reza a lenda que, se você encontrar o anel no barm brack, está destinada a se casar – explicou Shaw. Ele sabia que agora não tinha mais volta. Os próximos minutos decidiriam toda a sua vida. Suor escorria por sua camisa. Respirou fundo. Saiu de sua cadeira e pôs um dos joelhos no velho chão de tábuas gasto por séculos de bêbados e pelo menos um homem fazendo um pedido de casamento. Segurando firme a mão trêmula de Anna, Shaw deslizou o anel no dedo dela e disse: – Anna, quer se casar comigo?
O BARULHO DA CHUVA o acordou. Enquanto tentava voltar a dormir, a vibração perto de sua cabeça o fez soltar um pequeno gemido. Shaw pegou o aparelho e leu a mensagem que acabara de receber. Frank. Anna estava ao lado dele na cama. Eles tinham consumado seu noivado e depois bebido uma garrafa de Dom Pérignon, as taças precariamente equilibradas em suas barrigas lisas. Ela dormia profundamente quando Shaw se levantou, entrou no quarto contíguo e discou um número, sabendo que seria atendido de imediato. – Está na velha Dublin? – perguntou Frank, animado. Shaw pôde imaginar o homem reclinado em um divã, provavelmente em algum lugar muito longe dali, com o sorriso forçado e presunçoso que os patrões reservam para as conversas com seus criados. – O que houve? Seus homens não estão lhe dando informações regularmente? Não que precise que eles o façam. – Enquanto falava, Shaw olhou para seu lado direito, onde estava a velha cicatriz. – E, a propósito, são três da manhã aqui. Isso ao menos passou pela sua cabeça dura? – Você é um agente 24 horas, Shaw. Conhece as regras. – Suas regras. Ele abriu as cortinas e olhou para o triste véu de chuva que alagava a área. – Precisamos de você, Shaw. – Não, não precisam. Droga, até mesmo pessoas como eu precisam de um pouco de descanso! – Pelo seu mau humor, você não está sozinho. É claro que Frank sabia exatamente onde Shaw estava e com quem. Ainda assim, o tom em sua voz fez o agente se afastar da janela e correr de volta para o quarto para ver Anna. Ela ainda dormia tranquilamente, sem ter a mínima ideia de que ele estava discutindo com um psicopata profissional. Uma das pernas longas e bem torneadas da mulher estava por cima do lençol. Aquilo fez Shaw ter vontade de acordá-la e fazer amor com ela de novo. Mas estava com Frank ao telefone. Ele voltou para o outro quarto e olhou pela janela, procurando em cada canto das ruas e dos becos os homens de Frank. Eles estavam lá. Sempre estavam. – Shaw, ainda está aí? – Eu lhe disse para onde vinha. Então por que me seguir? – A culpa é sua, por causa daquela conversa maluca sobre aposentadoria. – Não era uma conversa maluca. Para mim chega, Frank. A última vez foi mesmo a última. Shaw podia imaginar Frank balançando a cabeça que, na parte de trás, tinha a marca de quando fora atingido à queimaroupa por uma SIG Sauer 9 milímetros, modelo esportivo com punho personalizado. Shaw sabia desses detalhes porque fora ele quem tinha atirado em Frank. – Temos muito trabalho a fazer. O mundo é um lugar muito perigoso – disse Frank. – Sim, por causa de gente como você. – O que fazemos é nobre, Shaw. Uma questão de honra. – Guarde essa ladainha para os novatos. Shaw ouviu o ranger da cadeira quando Frank se empertigou. O.k., lá vem ele. A voz de Frank soou firme e dura como cimento: – E para onde exatamente você vai quando se aposentar, seu idiota? Uma prisão de segurança máxima? – O acordo foi cinco anos, Frank, e já faz quase seis. – Você quase me matou. – Você estava com uma arma apontada para mim. E não mostrou seu distintivo. Achei que era apenas mais uma pessoa contratada para atirar em mim pelas costas.
– Então está me dizendo que, se eu tivesse mostrado meu distintivo, não teria atirado na minha cabeça? – Eu levei você para o hospital mais próximo. Se não tivesse feito isso, você teria sangrado até morrer. – Hospital? – urrou Frank. – Você me deixou segurando metade do meu cérebro no estacionamento de um matadouro humano no meio de Istambul. – Realmente acha que era apenas metade? – Olhe... Mas Shaw o interrompeu: – Eu atirei em legítima defesa, mas quando seus homens apareceram na Grécia, um mês depois, obviamente não pensavam assim. Então fizemos um acordo e cumpri a minha parte. Não temos mais o que conversar. Shaw sabia que eles tinham um acordo. Em troca de não passar o resto da vida fazendo trabalhos forçados num buraco na Sibéria, o que Frank teria providenciado de bom grado assim que se recuperasse do buraco de grande calibre em sua cabeça, Shaw passara quase seis anos arriscando sua vida pelo mundo para que, como dizia Frank, outras pessoas pudessem viver em paz e segurança. Bem, Shaw queria um pouco de paz e segurança para sua vida, e queria agora. Com Anna. Contudo, fazer um acordo com homens como Frank era o mesmo que se pendurar numa ponte pelos dedos mindinhos enquanto ventos fortes sopravam. E Shaw não podia exatamente arranjar um advogado e lutar em um julgamento aberto ao público por sua liberdade contratual. Era por isso que havia concordado em passar mais um ano quase sendo baleado, apunhalado, envenenado e até mesmo explodido. Tinha sido sincero ao dizer que fora moleza enfrentar os terroristas islâmicos em Amsterdã. – Mas por suas “habilidades” especiais eu não teria lhe oferecido nada, exceto uma cela de prisão. Isso era novidade para Shaw. – Então foi você? Por quê? – Depois que meu cérebro voltou para a minha cabeça, percebi que a pessoa que quase conseguiu me matar era alguém que precisávamos ter do nosso lado.
– Então deveria entender que já cumpri com meu dever. – Não sei, tenho de falar com meu pessoal – disse Frank lentamente. – Talvez eu decida liberar você, mas acho que eles não vão ficar muito felizes com isso. Shaw nunca conseguira se esquivar ou dobrar Frank. O careca musculoso mantinha sua posição como um muro de pedra. Eu deveria ter atirado no meio dos olhos dele. – Não me interessa se vão ficar felizes. Apenas conte para eles o que eu disse. – Nesse meio-tempo preciso de você em Edimburgo e depois na Alemanha, em Heidelberg. Se não fizer isso, pode se esquecer da ideia de que falarei com alguém além de seu novo carcereiro. Shaw ficou em silêncio por alguns minutos, tentando controlar a raiva. – Esta é a última vez, Frank. E ponto final! Pode dizer ao seu pessoal o que bem entender. Fui claro? – Receberá instruções como de costume. Dois dias. Divirta-se em Dublin. Com sua amiga. – Você realmente não quer seguir por esse caminho. – Só estou fazendo uma observação. A linha ficou muda. – Eu odeio você, Frank – sussurrou Shaw para o vazio.
SHAW SE ESGUEIROU PARA o pequeno banheiro. Quase todos os banheiros da Europa eram pequenos. Aparentemente os europeus precisavam de menos espaço que o resto do mundo para fazer suas necessidades e tomar banho. Ele jogou água no rosto, ergueu os olhos e encarou seu reflexo no espelho. A maioria das pessoas descreveria seus traços como rudes. Até mesmo Anna dissera que ele tinha uma beleza rude. Os ossos e a pele estavam bem conservados. Mas os olhos sempre foram seu diferencial. Não só eram do mais claro azul que se poderia conseguir sem recursos artificiais como não tinham a ver com o resto de sua cor. Sua pele era morena, mais italiana ou grega do que irlandesa ou escocesa, e seus cabelos eram escuros e ondulados e, com frequência, tinham vontade própria. Encantadoramente despenteados, como Anna descrevera certa vez. Contudo, quando Shaw olhava para si mesmo, tudo o que via era um homem assombrado, com cicatrizes profundas demais para suportar. Como se tivesse percebido sua presença nos pensamentos de Shaw, Anna surgiu às costas dele, envolvendo seus ombros nus e musculosos com os braços longos. Anna usava a camiseta dele. Em Shaw, ficava justa, por causa da largura de seu peitoral. Mas em Anna, apesar de sua altura, era como um vestido. – Não consegue dormir? – perguntou ela. – A chuva. Não gosto de chuva à noite. – Achei que tinha ouvido você falar com alguém. Shaw olhou para o reflexo de Anna no espelho enquanto ela passava os dedos por uma pequena cicatriz perto da garganta dele. Aquele era um pequeno suvenir de uma visita à Ucrânia. Shaw lhe dissera que era de uma queda de bicicleta. Na verdade, era de uma faca lançada por um ex-agente da KGB cuja única qualificação para o serviço era ser um maníaco homicida. Ele havia errado a jugular de Shaw por 2 centímetros. Ainda assim, Shaw sangrara até quase morrer num lugar que faria o matadouro na Turquia onde deixara Frank parecer um hospital de ponta.
Ele tinha outra cicatriz no lado direito que nunca explicara para Anna, por um único motivo: queria esquecê-la, porque sempre que se lembrava dela sentia vergonha. Marcado. Como um cavalo. Não, como um escravo. Na verdade, esse era o outro motivo pelo qual estava em Dublin, para fazer algo a respeito daquele pequeno presente. Anna insistiu: – Você estava falando com alguém? Frank, as cicatrizes e o açougueiro da KGB passaram pela mente dele. O que Shaw realmente se perguntava era se Anna estava pensando duas vezes. Seu pedido de casamento fora seguido de um lacrimoso “sim”, que Shaw mal pôde ouvir. E então, com o entusiasmo e a excitação da noiva aumentando, ela aceitou sua proposta de casamento em nove outros idiomas, suas lágrimas molhando a pele de Shaw e finalmente o levando o mais perto que já tinha chegado de chorar. Mas agora algo no tom de Anna transmitia uma mensagem que não era de felicidade. Realmente era a hora, pensou ele. Shaw jogou água no rosto, lambeu um de seus dedos e se virou para ficar de frente para ela. – A verdade é que não sou um consultor de negócios especializado em fusões e aquisições internacionais – disse ele. – Sei disso. – O quê? – perguntou ele bruscamente. – Conheço muitos consultores. Eles raramente conseguem bater em dois homens armados. Nem têm cicatrizes de faca no corpo. E quase sempre querem ostentar sua riqueza. Nunca nem vi onde você mora. Você sempre fica em meu apartamento em Londres. – E só agora está me dizendo isso? – Agora é diferente. Acabei de aceitar casar com você. – E se mesmo assim eu não tivesse falado nada sobre o que faço? – Eu teria perguntado. Como estou perguntando agora. – Mas você já disse sim. – E também posso dizer não.
– Não sou nenhum criminoso. – Também sei disso. Dá para perceber. Do contrário, eu não estaria aqui. Agora me conte a verdade. Shaw se apoiou na pia e organizou seus pensamentos. – Trabalho para uma agência internacional de cumprimento da lei fundada por vários países do G8. Lidamos com coisas arriscadas ou globais demais para um só país. Como a Interpol com os esteroides. Não estou mais em campo. Agora tenho uma posição administrativa – mentiu Shaw razoavelmente bem, na opinião dele. – E que leis vocês fazem cumprir? – perguntou ela com firmeza. – Tentamos impedir que pessoas más façam coisas ruins. Como pudermos – acrescentou. – E o que faz agora não é perigoso, embora receba telefonemas à noite? – Viver é perigoso, Anna. Você pode atravessar a rua e ser atropelada por um ônibus. – Shaw, não me subestime. – Não é perigoso. – Ele podia sentir sua pele esquentando. Conseguia mentir facilmente para um louco persa, mas não para Anna. – Vai continuar indo e vindo como tem feito? – perguntou ela. – Na verdade, estou planejando me aposentar. Começar a fazer outra coisa. O rosto dela se iluminou. – Isso... isso é uma surpresa. Espero viver para consegui-lo. – O casamento deve significar duas pessoas juntas, não separadas. – Você faria isso por mim? – Faria qualquer coisa por você. Ela acariciou o rosto dele. – Por quê? – perguntou ele subitamente. – Por que o quê?
– Você poderia ter qualquer homem que quisesse. Por que eu?
– Porque você é um homem bom. Um homem humilde. E corajoso. Mas, apesar de sua competência, precisa de alguém que cuide de você, Shaw. Precisa de mim. E eu preciso de você. Ele a beijou e passou os dedos pelo rosto dela. – Você tem que partir agora? Ele negou com a cabeça. – Em dois dias. – Para onde vai? – Para a Escócia. Ele pegou Anna nos braços, deixando os cabelos louros dela tocarem em seu rosto e o cheiro dela se misturar ao seu, com o cheiro do canal e tudo. – Mas, antes, para a cama. Eles fizeram amor de novo. Depois que Anna dormiu, Shaw pôs uma das mãos atrás de sua cabeça e a outra protetoramente sobre o braço dela. Ele ouviu a chuva e visualizou Frank rindo por ter ferrado com ele de novo. Tocou no rosto de Anna. Sim, agora era diferente. A tempestade continuou em Dublin; cada gota de água era como um tiro disparado no cérebro de Shaw. Ele a pedira em casamento. Mas, depois de sua conversa com Frank, temia que aquele acabasse sendo o maior erro de sua vida.
– CIR? – PERGUNTOU ANNA, mostrando o jornal para Shaw, que servia o café, ainda usando apenas cuecas boxer. Ela afastou um pouco o carrinho do serviço de quarto e abriu o suplemento que escorregara de dentro do Herald Tribune. Shaw olhou por cima do ombro de Anna. O artigo era longo e cheio de factoides, mais um ataque violento contra o governo da Federação Russa. O título do artigo poderia ter sido “O império do mal, segundo ato”. Shaw leu em voz alta: – O Congresso Independente Russo, CIR, e sua divisão adjunta Grupo Rússia Livre pedem a todos os países livres que enfrentem o presidente Romuald Gorshkov e uma administração de terror e opressão antes que seja tarde demais. Anna deu uma olhada em outro caderno. – A administração Gorshkov lotou prisões secretas com opositores políticos e rivais assassinados, instituiu uma política de limpeza étnica nos mais altos níveis do poder e está secretamente fabricando e estocando armas de destruição em massa, em claro descumprimento dos muitos tratados de desarmamento. – Ela interrompeu a leitura e ergueu os olhos para Shaw. – Primeiro aquela história do Konstantin, depois todos aqueles russos supostamente mortos e agora isto? Você já ouviu falar nessa organização, o CIR? Ele negou com a cabeça. – Há um site na parte de baixo da página. Anna pegou seu laptop, ligou-o e em poucos minutos estava conectada à rede sem fio do hotel. Seus dedos rápidos deslizaram pelo teclado e uma página colorida surgiu na tela. – Veja isto. – Ela apontou para a tela. – Não estava disponível na internet ontem ou eu já teria ouvido falar nele. O celular de Anna tocou. Ela atendeu, escutou, fez perguntas e escutou mais um pouco. Desligou e olhou para Shaw. – Quem era? – perguntou ele.
– Era do meu escritório. Todos estão falando sobre esse novo artigo. Dizem que Gorshkov e seus ministros estão furiosos. Negam tudo e querem saber quem está por trás do que chamam de uma grande campanha de difamação. – Alguma ideia de quem seja? Ela balançou a cabeça. – Ainda não se sabe. Não há necessariamente um grande grupo por trás disso. Nem muito dinheiro. Embora a matéria nesse suplemento não tenha sido barata, alguns especialistas em computadores podem inundar o mundo de propaganda. Todos nós já vimos isso. – E todos entraram na onda. Anna voltou a atenção para o computador e navegou pelo site. – É o demônio russo isto e o demônio russo aquilo. Meu escritório fez vários estudos sobre a volta dos russos a um sistema de governo autocrático. Esse é um tema importante tanto do ponto de vista profissional quanto do pessoal. Neste momento, há muita tensão entre Moscou e o resto do mundo. E tudo isso não ajudou a melhorar as coisas. – Bem, um homem prevenido vale por dois – disse Shaw. Anna olhou para ele, pensativa. – Esse é o problema. Alguém prevenido tende a puxar o gatilho mais rápido do que deveria. – Como nos velhos tempos – disse ele. – Da Guerra Fria. Ela olhou para ele de modo estranho. – Talvez alguém queira a velha ordem mundial de volta. A chuva havia parado. Ele só tinha mais dois dias com Anna. Talvez os últimos. Shaw a tomou nos braços e disse: – Danem-se os russos. Ele a abraçou com tanta força que ela disse: – Shaw, não estou conseguindo respirar. Ele a soltou e deu um passo para trás, olhando para baixo.
Anna levantou o queixo dele. – Estamos noivos. Você deveria estar feliz. – Estou mais feliz do que nunca. – Não parece. – Temos que nos separar. – Mas não por muito tempo. Logo estaremos juntos de novo. Ele voltou a abraçá-la, embora não com tanta força. Não há nenhuma garantia. Nenhuma.
DOIS DIAS DEPOIS, SHAW deu um beijo de despedida em Anna, que chorava. – Temos de marcar a data do casamento – disse a ela. Anna olhou-o de um modo estranho. – Sim, é claro. Shaw foi embora num carro alugado, mas não se dirigiu ao aeroporto. Foi para o castelo Malahide. Em gaélico, Malahide significa “no rosto do mar”. O castelo se situa na península de Howth, ao norte da baía de Dublin. Construído em uma pequena elevação, tem uma vista dominante da água, porque, nos velhos tempos, os inimigos costumavam chegar de barco para saquear e matar. Agora Shaw passava por grandes campos na região do castelo, onde equipes locais jogavam rúgbi e críquete, sem nenhum saqueador à vista. Ele pagou e foi admitido no mais antigo castelo desabitado da Irlanda. Era o que se esperaria de um castelo medieval: construído com sólidos blocos de pedra, tinha alas de torres circulares imponentes e hera nas paredes fortes. Pertencera à família Talbot, de 1185 até a década de 1970. Ele esperou até que o tour em curso terminasse e depois foi ao encontro da mulher baixa e magra que acabara de contar a um grupo de turistas tudo sobre o castelo, a família Talbot e a batalha de Boyne, a virgem desaparecida e os quatro fantasmas do castelo, inclusive o travesso Puck. – Oi, Leona. Ela hesitou por um momento, mas depois se virou completamente para encará-lo. Leona Bartaroma estava na casa dos 60 anos e tinha cabelos compridos ainda escuros, um rosto quase sem rugas e lábios cheios pintados num tom de vermelho não muito vivo que combinava bem com seu colorido natural. Ela não disse nada, mas pegou Shaw pelo braço, conduziu-o rapidamente para uma pequena sala e fechou a porta. – Que diabos está fazendo aqui? – perguntou, irritada. – Acho que você não está feliz em me ver.
– Se Frank descobrir ... – Frank sempre sabe exatamente onde estou, graças a você. – Shaw apertou com um dedo seu lado direito. – É por isso que estou aqui. Ela se sentou atrás de uma pequena escrivaninha de madeira com querubins entalhados. – Não entendo você, Shaw. Nunca entendi. – Quero que tire isso. – Estou aposentada. Sou guia de turismo. Não faço cirurgias. Ele se aproximou da escrivaninha. – Você tem mais uma cirurgia a fazer. – Impossível. – Ela começou a remexer nos papéis sobre a escrivaninha. – Nada é impossível quando se quer muito. – Você é um idiota. – Também vou me aposentar em breve, Leona. E quero que isso suma. – Então procure outra pessoa. – Ela fez um sinal com a mão na direção da sala, como se outra pessoa com habilidades cirúrgicas estivesse escondida em algum lugar por ali. – Você, Leona. Sei que pôs isso em mim. Se for tirado de modo errado... O rosto moreno dela ficou visivelmente mais pálido. – Não tenho a menor ideia do que você está falando. – Dirk Lundrell, Leona, lembra-se dele? Ele tentou tirar isso. Ainda não encontraram todos os pedaços. – Lundrell também me procurou. E eu lhe disse a mesma coisa que estou dizendo a você. Não! – E se Frank aprovar? – Shaw empinou a cabeça. – Você acha que Frank concordaria com uma coisa dessas? – zombou ela. – Ouvi dizer que vocês ainda não se dão bem. – Ela sorriu. – E vai se aposentar? Ninguém se aposenta em seu ramo, Shaw. – Vou me casar. Mais dois trabalhos e pronto.
– Você, casado? – perguntou ela, incrédula. – Sim. Por quê? Acha que gente como eu não se casa? Passei seis anos de minha vida quase sendo morto. Estou cansado. Chega. – Sei o que você fez nestes últimos seis anos – disse ela mais calma. – Sei bem dos riscos que correu. – Ela parou para estudá-lo. – Qual é o nome da mulher? – O quê? – Sua noiva. Qual é o nome dela? – Anna. – Fui casada uma vez. – Leona olhou para suas mãos. – Você a ama muito? – Não me casaria com ela se não a amasse. Leona ficou em silêncio por um longo momento enquanto Shaw simplesmente olhava para ela. – Se Frank aprovar, tirarei isso de você. – E ainda estarei vivo quando terminar? – Toda cirurgia envolve riscos – começou ela. Mas então acrescentou: – Você viverá. Ele se levantou. – Isso era tudo que eu queria saber. Entrarei em contato. Ele se virou para ir embora. – De onde é Anna? – Da Alemanha. – As alemãs são boas esposas. Pelo menos foi o que ouvi dizer. Shaw fechou a porta devagar às suas costas. Agora tudo que precisava fazer era convencer Frank. E sobreviver por mais alguns dias. Três horas depois, estava em um catamarã cruzando em alta velocidade o mar da Irlanda, a caminho da Inglaterra. Normalmente voaria de Dublin para Edimburgo, mas as instruções tinham sido claras. Pegue o catamarã. E depois, em Holyhead, um trem expresso através de Gales até Londres. E, de lá, um trem noturno para a capital escocesa. Ele chegaria de madrugada, enquanto um voo direto de Dublin para Edimburgo demoraria menos de uma hora. No salão do catamarã, Shaw se sentou à terceira mesa do lado direito, perto de uma parede. Havia uma luz na mesa. Ele a apagou, acendeu e depois a apagou de novo, seguindo as instruções que recebera. Enquanto esperava, abriu o livro para ler a dedicatória de Anna. Estava escrita em francês, mas suas habilidades linguísticas eram suficientes para traduzi-la. Era curta e o atingiu como uma marreta. Amor sem confiança não é nada. Enquanto fechava o livro devagar, ergueu instintivamente os olhos. Avisado pelo sinal emitido por meio da lâmpada, o homem vinha em sua direção. Eles sempre vinham.
SHAW CHEGOU A EDIMBURGO e andou da estação de trem para o Balmoral Hotel, em uma extremidade da ponte Norte. A dedicatória de Anna não saía de sua cabeça. Amor sem confiança não é nada. Por volta das três da madrugada ele adormeceu, pensando numa possível vida em família com Anna. E talvez tivesse sido esse o motivo para aquilo ter começado. De novo. www – Mamã? Cadê você, mamã? – Cale a boca, imbecil. Você não tem mãe! O garotinho, que acabara de acordar de um pesadelo, gritou mais alto: – Mamã! Um dos garotos mais velhos o imitou: – Mamã? Cadê você, mamã? Mamã está morta. É por isso que você vive num orfanato, seu idiota. Outro garoto mais velho deu uma risadinha e disse: – Mamã morreu. Mamã morreu. Mamã está definitivamente morta. Então todos eles ouviram passos lentos e o dormitório ficou em silêncio, exceto pelos gritos sufocados do garotinho. – Mamã? Cadê você, mamã? A velha freira baixa e gorducha entrou no dormitório e foi silenciosamente até a cama. Sem dúvida conhecia bem seu destino, até mesmo no escuro. Ela pegou o garotinho nos braços, embalouo, acariciou sua cabeça e lhe deu um beijo no rosto. – Foi só um sonho ruim. Estou aqui, minha criança. Está tudo bem. Foi só um pesadelo. Sua presença sempre acalmava o menino e ele enfim se calou. Era grande para a sua idade, mas a freira, embora velha, era forte. Os anos não pareciam tê-la esgotado, embora ela tivesse muitos afazeres ali.
Ela o deitou de volta em seu pequeno catre, um dos 26 num dormitório que deveria ter metade desse número. A freira sabia que os catres ficavam tão perto uns dos outros que os garotos tinham que andar sobre eles para chegar aos dois banheiros que dividiam. Contudo, eles tinham uma cama, um telhado sobre suas cabeças e um pouco de comida. Para essas crianças, isso era tudo o que importava agora. Ou provavelmente importaria algum dia. A freira voltou para seu quarto e 52 ouvidos prestaram atenção aos seus passos ritmados. Quando ouviram o som de sua porta se fechando, o garoto mais velho disse: – E seu pai também morreu. Caindo de bêbado na sarjeta. Eu vi. – Mamã está morta – recomeçou a entoar outro garoto, com a voz mais baixa, porque, embora a freira fosse uma boa mulher, sua paciência tinha limites. Dessa vez o garotinho não gritou. Seu corpo não começou a tremer, como às vezes acontecia quando zombavam dele. Uma hora depois, a cantilena e os ataques verbais cessaram. Todos estavam dormindo. Todos, menos um. Ele desceu de seu catre para o chão e se arrastou de bruços como vira soldados fazerem na TV em preto e branco que ficava nos aposentos da freira. Ela o deixava ir lá às vezes, tomar um suco de laranja fresco e comer uma fatia de pão com uma camada generosa de manteiga e geleia. Ele alcançou a cama, se sentou ereto sobre os quadris, se encolheu formando uma bola e atacou. Suas mãos se fecharam em volta da garganta do outro garoto, que foi atingido no rosto por um soco. O sangue espirrou nas cobertas e ele o sentiu respingar em seu braço. Sentiu o cheiro de suor e medo. Aquela era a primeira das muitas vezes que sentiria outra pessoa emaná-lo. Ele deu outro soco, que atingiu carne mole. Então alguém o atingiu com força no olho direito. Aquilo doeu e seu rosto ficou imediatamente inchado. Um joelho ossudo se apoiou dolorosamente em sua barriga, tirando-lhe o ar. Ainda assim, ele continuou. Golpeou com as mãos, os pés e até mesmo com a cabeça, enfiandoa fundo na cavidade peitoral do garoto debaixo dele. Sentiu seu próprio sangue escorrer pelo rosto e o provou quando chegou aos lábios. Era salgado e grosso e o deixou enjoado. Ainda assim ele não desistiu. – Mamã! – ouviu-se gritando. Seus braços e suas pernas funcionavam como pistões; seu peito estava tão pesado com o esforço que era como se seus pulmões tivessem se solidificado. – Mamã... não... – disse, ofegante. Mãos o dilaceravam, unhas arranhavam suas costas como garras. Alguém gritava em seu ouvido, mas era como se estivesse do outro lado de uma cachoeira. Ele golpeava carne, ossos e cartilagem. O sangue escorria de sua boca. Com o gosto do oceano. – Mamã... não... está... Ele deu uma joelhada no saco do garoto, algo que já tinham feito com ele antes, mais de uma vez. O menino mais velho choramingou e imediatamente perdeu as forças debaixo dele. Ele encontrou fôlego para gritar: – Mamã... não... está... morta! Então as garras apertaram com mais força e ele parou. Como um prego curvado e enferrujado em uma cerca, finalmente se soltou e caiu no chão, ofegante e sangrando. Mas não chorando. Nunca havia chorado de novo. Nenhuma vez.
SHAW SE SENTOU NA cama. Sentiu o cheiro e o gosto de seu suor de adulto, que escorria para sua boca. Ele se levantou, abriu a janela do quarto de hotel e deixou o ar frio de Edimburgo dispersar o terror do garoto de 6 anos. Seu quarto no Balmoral dava vista para a Princess Street, uma grande rua repleta de lojas, pubs e restaurantes. Em um morro alto à sua direita, via-se a grande área do castelo de Edimburgo, que faria o Malahide parecer pequeno se os dois estivessem lado a lado. O palácio de Holyroodhouse, assentado na outra margem da cidade, era a residência de verão oficial da família real britânica. Deve ser bom, pensou Shaw, ter uma residência oficial. – Mamã – disse em voz baixa. Havia quase um ano que não experimentava o sofrimento daquele pesadelo. Pensara que nunca mais o teria. Como com muitas coisas importantes em sua vida, estava errado. Shaw tinha sido expulso do orfanato no dia seguinte, apesar das súplicas da freira para que permitissem que ele ficasse. O outro garoto, um menino corpulento de 12 anos, fora gravemente ferido pelo pequeno Shaw. Alguns quiseram chamar a polícia. Mas como responsabilizar criminalmente um garoto de 6 anos? Shaw se lembrava de termos como intenção maliciosa e agressão premeditada. Não sabia o que significavam. Mas sabia que queria matar o garoto. Matá-lo de forma que sofresse tanto quanto ele. No final ficou decidido que uma criança que nem sequer conseguia pronunciar corretamente a palavra “mamãe”, porque nunca tivera uma, não poderia ser acusada de um crime. Irmã Mary Agnes Maria, como era bonito aquele nome! Todos a chamavam de Irmã MAM, o que Shaw havia traduzido para MÃE. Ela foi a coisa mais parecida com uma mãe que ele teve na vida. Jamais tivera outra. Ele não chamava a si mesmo de A. Shaw porque essa era a primeira letra do alfabeto, mas por causa do orfanato. Pintada na parede sobre a cama do garoto que dormia do lado oposto ao dele, estava a letra “A”. Não estava ali por acaso. Um dia havia sido parte de uma palavra, mas as outras letras foram apagadas pelo tempo e a pobre e atarefada Irmã Mary Agnes Maria aparentemente nunca tivera tempo de pintar o M-É-M de volta no AMÉM. Shaw não ficou triste com isso. Ele olhava para a letra e imaginava as longas linhas verticais do “A” se suavizando para formar o rosto redondo de sua mãe. O traço horizontal que ligava as duas longas linhas se curvaria em um sorriso no rosto dela, porque estava muito feliz em vê-lo. Tinha voltado para ele. Iriam embora juntos. O “A” era seu amigo. Representava muitas possibilidades boas. E então o sol nasceria e triunfaria sobre todos eles. Desde então Shaw gostava muito mais da noite que do dia. Agora sempre seria um notívago. Os anos se passaram numa rápida sucessão de orfanatos, nenhum dos quais com a Irmã Mary Agnes Maria. Então vieram os lares adotivos e outras instalações para crianças que, embora não fossem tecnicamente criminosas, estavam tão perto disso que ninguém queria assumir aquele problema. Assim foram todos os dias de sua vida até que o garoto Shaw se tornou, aos 18 anos, o homem Shaw. Àquela altura ele podia dizer claramente “mamãe”, mas não tinha nenhum motivo para fazê-lo. Shaw fechou a janela e se sentou na cama. O homem no veloz catamarã de Dublin entrara em contato com ele. Tinham ido para as portas abertas do barco, na popa. Com o vento e os motores encobrindo a conversa, ele contara a Shaw a primeira parte do que precisava saber. Ao ir embora, o homem se virou para fitá-lo, sua expressão clara. Se sobreviver a isso, será um milagre. No trem expresso de Gales para Londres, Shaw olhou pela janela, admirando alternadamente a vista do mar e das montanhas Cambrian, evitando as conversas sem propósito dos passageiros ao seu redor. Não havia nada normal em seu mundo e Shaw achava quase impossível se relacionar com qualquer coisa que não pertencesse à sua realidade. Exceto Anna. Ela foi sua primeira e única conexão com o resto da humanidade. No trem noturno para a Escócia, ele foi visitado de novo, dessa vez em seu vagão-leito, por uma mulher. Ela era jovem, mas parecia velha. Era fisicamente atraente, mas parecia ter perdido sua vivacidade. Era apenas um instrumento. Pessoas como Frank tinham lhe arrancado a alma para substituí-la pelo que quisessem.
Em tom monótono, ela lhe contou a segunda parte do que precisava saber. Nada jamais era anotado, por isso ele memorizou todos os detalhes. Um passo em falso e estaria morto. Era simples assim. Shaw se levantou, se vestiu e olhou mais uma vez para o livro em que Anna escrevera a dedicatória. Amor sem confiança não é nada. Anna devia estar dormindo. Ele telefonou assim mesmo. Para sua surpresa, ela atendeu no segundo toque. – Esperava que fosse você – disse, sua voz totalmente desperta. – Como foi a viagem? – Eu li a dedicatória. Ela não disse nada. Shaw engoliu em seco. – Quero confiar em você. Realmente confio em você. Eu lhe contei o que fazia. Tem ideia de como foi difícil para mim? – Sim, mas obviamente há coisas que não pode me contar. – Há – admitiu Shaw. – Então, depois que nos casarmos, você irá embora e voltará sem me dizer uma só palavra? – Vou me aposentar. Já lhe disse. E tenho um cargo administrativo. – Não insulte minha inteligência com histórias de malas caindo do compartimento de bagagens de um avião. E pessoas com cargos administrativos não vão a castelos sem se preocupar em fazer um tour. Nem se dão o trabalho de viajar de ferry da Irlanda para a Escócia. Foi para encontrar alguém? As palavras de Anna o feriram. – Você me seguiu? – Claro que o segui. Pretendo me casar com você. E detesto a simples ideia de ter que segui-lo, quanto mais fazer isso. A voz de Anna tremeu e ele ouviu um pequeno soluço. Shaw teve vontade de passar pela linha de telefone e abraçá-la, dizer-lhe que tudo ficaria bem. Contudo, já mentira muito para ela. Ele se ouviu dizendo:
– Ainda está em tempo de desistir, Anna. Você disse sim e também pode dizer não. Eu entenderei. O tom dela se tornou áspero: – Não gosto de ouvir você dizer que entenderá. Não deveria entender. O mesmo vale para mim se você for embora. Eu não entenderei. – Eu te amo. Farei isso dar certo. Prometo. Ele pensou ter ouvido outro soluço escapar dos lábios dela e o sentimento de culpa aumentou. – E como fará tudo isso dar certo, pode me dizer? – perguntou Anna. – Não – admitiu ele. – Não posso. – Para onde você vai depois da Escócia? – Heildelberg. – Meus pais moram a cerca de uma hora de lá. Num vilarejo chamado Wisbach, perto da cidade de Karlsruhe. Eles têm uma livraria, a única em Wisbach. Vá vê-los. Seus nomes são Wolfgang e Natascha. São pessoas boas e gentis. Queria que os conhecesse há mais tempo, mas você sempre estava muito ocupado. Shaw sabia que nem sempre estivera muito ocupado. Estivera com medo. – Quer que eu vá vê-los sem você? – Sim. Peça minha mão em casamento ao meu pai. Se ele disser sim, nós nos casaremos. Se você ainda quiser. Esse pedido o surpreendeu. – Anna, eu... Ela continuou rapidamente: – Se achar que vale a pena, você irá. Eu lhes direi que vai. Se não for, terei minha resposta. A linha ficou muda. Shaw pôs lentamente o telefone no gancho e olhou para o mata-borrão na escrivaninha, onde havia escrito várias vezes o nome Anna Fischer, desenhando as letras com força na superfície fina. Ele rasgou o mata-borrão, saiu do Balmoral e desceu a Princess Street, passando por todas as lojas fechadas. Duas horas depois, ainda perambulava pela velha capital escocesa quando o sol começou a nascer, iluminando as pedras antigas das pontes e projetando sombras atrás das quais Shaw podia imaginar cada um de seus pesadelos. E ele tivera mais do que a maioria das pessoas. Shaw iria ver os pais de Anna na livraria em Wisbach. Pediria a mão dela em casamento. Sim, faria tudo isso. Se ainda estivesse vivo. – Onde está mamã? – sussurrou na semiescuridão enquanto voltava ao Balmoral a fim de se preparar para o que poderiam ser suas últimas horas de vida.
O PRÉDIO ALTO NO DISTRITO de alta tecnologia de Dulles estava em sua maior parte escuro. A empresa Pender & Associates era dona de todo o edifício, tendo pagado uma soma de oito dígitos para adquirir uma torre de escritórios no coração de uma das áreas mais caras do país. Embora se chamasse Pender & Associates, a empresa era dirigida por um único homem: seu fundador, Richard “Dick” Pender. Ele tinha um rosto com traços bem definidos, um sorriso forçado e cheio de dentes, cabelos perfeitamente arrumados, como os de um pastor que se apresenta na televisão. Tinha a lábia de um advogado de tribunal no auge da carreira. E continuaria a sorrir enquanto cravava uma faca repetidamente em sua espinha dorsal. Seu lema era simples: por que perder tempo descobrindo a verdade quando se pode facilmente criá-la? A linha de trabalho de Pender era chamada de gestão da percepção (GP). As empresas de GP, como são conhecidas, eram pagas para estabelecer o que era verdade ou não em todo o mundo. Algumas empresas de lobby tradicionais se consideravam empresas de GP, mas na verdade não eram. Só havia pouquíssimas empresas de GP de verdade e a Pender & Associates era uma das melhores do mundo. Dick Pender era capaz de esconder qualquer segredo, apesar das tentativas da imprensa para descobri-lo. Além disso, em algumas ocasiões havia começado ou intensificado guerras com base em certas verdades. E, quando as pessoas começaram a bisbilhotar, ele havia escondido os motivos sob tantas camadas confusas de fatos, números e mentiras que ninguém jamais conseguiu descobri-los. Contudo, na maioria das vezes era contratado para criar a verdade. Ele recebia altas somas para fazer isso, tanto dos governos quanto de fontes privadas de todo o mundo. Criar a verdade era fundamental para seus clientes, porque a verdadeira verdade era muito imprevisível. A verdade criada era controlável. Portanto, a diferença entre a verdadeira e a criada era a mesma que entre a eficácia de uma bomba e a de uma bomba atômica.
Pender aguardava uma visita especial naquela noite. O elevador particular levou seu convidado até o último andar. Uma porta se abriu e Nicolas Creel, usando um casaco preto com capuz, foi conduzido a uma sala com uma grande janela de vidro espelhado que permitia ao magnata dos armamentos militares examinar o centro de comando digitalizado e de alta tecnologia da Pender & Associates. Pender se sentou perto dele. – Espero que o voo tenha sido bom, Sr. Creel. – Não tenho a menor ideia. Dormi o tempo todo. – Alguém me disse que o senhor está entre as 15 pessoas mais ricas do mundo na lista da Forbes. – Sim – reconheceu Creel, num tom claramente desinteressado. – Dezoito bilhões de dólares? – estimou Pender. – Na verdade, 21. – Parabéns. – Pelo quê? Quando passei do primeiro bilhão, que diferença fez? Mais 20 bilhões de dólares não mudaram muito meu estilo de vida. Vamos ouvir o relatório. Pender apontou para o vidro espelhado por onde se viam dezenas de pessoas trabalhando intensamente. – Todo o nosso centro de comando está empenhado na tarefa. Trinta pessoas, centenas de computadores, bancos de dados gigantescos e um pacote de serviços completo da internet que rivaliza com tudo que o Google possui. – E está absolutamente certo de que isso não pode ser rastreado? – Nós tomamos as medidas de segurança mais extraordinárias, inclusive roubar a identidade eletrônica de centenas de sites e portais da internet. Então, se alguém tentar rastrear as origens, será levado diretamente para, digamos, o site oficial do Vaticano ou da Cruz Vermelha. Também incluímos nosso próprio site, assim como os de vários de nossos concorrentes. – Então, se alguém rastreá-lo, poderá alegar roubo de identidade?
– Por que tentar esconder a agulha no palheiro quando você pode simplesmente criar milhões de agulhas? – perguntou Pender em tom presunçoso. – E seu pessoal? – É extremamente bem pago e dedicado a mim. Não tem a mínima ideia de seu interesse neste assunto. Não que fosse se importar. Não usamos consciência aqui. Não nos preocupamos com as consequências de nosso trabalho. Isso compete ao cliente. – Uma boa atitude. E o impacto inicial foi tudo que esperamos que fosse. – Um pouco mais sofisticado do que histórias de invasores estrangeiros dilacerando crianças deixadas em incubadoras para fazer com que certos países entrassem em guerra – disse Pender em voz baixa, mas com um sorriso superior. – Mas naquela época a provocação foi boa, Sr. Creel. Tudo o que tivemos que fazer foi dar o pontapé inicial e todos caíram em cima. – O Urso é um alvo fácil. Como conseguiu os milhares de russos mortos? – Basicamente, Photoshop aplicado em vários níveis. Mas trabalhamos com algumas vítimas reais que obtivemos em velhos arquivos da KGB que compramos anos atrás. Se você tem cinco corpos autênticos, todos presumem que os outros 32 mil também o são. – Prudente da sua parte. – Esse é o meu negócio. Posso visualizar o aneurisma se formando lentamente no cérebro do presidente Gorshkov. Vejamos, tivemos a estratégia de “controle” e depois a tática “Vesúvio”. – Ele apontou para Creel. – Está providenciando o vazamento, certo? – Sim. Mas me encaminhe tudo que receber e parecer promissor. Eu levarei as coisas adiante a partir daí. – Não que eu tenha o mínimo interesse em seus motivos, mas li que a Ares errou suas projeções trimestrais quatro vezes seguidas. – Essa é a ponta do iceberg. Estamos perdendo muito dinheiro. Eu estava certo de que o Iraque seria o início do Armagedom no Oriente Médio e nos preparamos para isso. Mas, após alguns meses de choque e terror, seguiram-se anos de lutas irritantes, usando basicamente espingardas de ar comprimido. Não construí uma empresa de 150 bilhões de dólares para que meu pessoal atire salada de batata para jovens soldados em Anbar. Esse foi um erro monumental e a responsabilidade é minha. Mas vou nos tirar disso. Foi por isso que o contratei. Preciso cuidar do meu pessoal. – É claro que sim – concordou Pender modestamente. – E também temos a participação de celebridades. Elas usarão uma camiseta com a estampa “Lembrem-se de Konstantin” fornecidas por nós, farão propaganda em seus filmes e erguerão punhos para a “Rússia Livre”. Talvez cheguem até a ir a Washington e pressionem vários políticos. – Há áreas problemáticas? – Três. – Pender olhou para a tela de seu computador. – Haverá 148 reportagens sobre a Ameaça Vermelha em todo o mundo a partir da próxima semana. Todas seguem nosso roteiro palavra por palavra, exceto duas: uma na Espanha e outra em Nova York. O sujeito da Espanha é particularmente teimoso, mas também trabalha há dois anos em um escândalo envolvendo a família real. Amanhã ele receberá documentos que reacenderão seu interesse nessa história. – E o de Nova York? – Há algum tempo a esposa desconfia de que ele seja infiel. Amanhã ela também receberá um presente que lhe mostrará que sua intuição estava correta. Isso vai tirar seu marido do jogo definitivamente. Os divórcios podem causar grande confusão e consumir muito tempo. Infelizmente, falo por experiência própria. – Você tinha essas cartas na manga? – Tenho arquivos de praticamente todos os jornalistas que valem alguma coisa. Colecionamos segredos e meias verdades e os revelamos anonimamente quando isso é do interesse de nossos clientes. – Disse que havia três áreas problemáticas? – O senador americano que se acha especialista em assuntos russos. Dizem que ele planeja realizar uma audiência sobre a questão, demonstrando seu ponto de vista muito cético. – O que você vai fazer a esse respeito?
– Da próxima vez em que entrar num banheiro público masculino, vai acontecer com ele o que aconteceu com Larry Craig. – O que aconteceu com o senador Craig foi armação? – Quem sabe? Quem se importa? Mas isso vai tirar este senador do nosso caminho. – E que nome dará a essa tática? – “Estou fodido” – disse Pender, sorrindo. – Um nome apropriado. – Na verdade, prefiro uma abordagem mais sutil, em que o alvo nem perceba o que aconteceu. Lembra-se dos repórteres infiltrados em tropas no Iraque? – Para ver a guerra em primeira mão? – Não, para contar a história somente do ponto de vista do Pentágono. Isso foi ideia minha e todos os generais e representantes da administração envolvidos vieram pessoalmente aqui beijar meus pés. – Você conhece bem o seu ramo, Dick. – Aprendi com os melhores. – Onde? – Comecei no gabinete de imprensa da Casa Branca. Creel apontou para uma grande mesa de trabalho onde duas pessoas se debruçavam sobre materiais escritos. – Explique. – Aquela é a “Tábua das Tragédias”. Recentemente descobrimos que um de nossos concorrentes foi contratado para reunir algo parecido com isso durante a primeira Guerra do Golfo, para ajudar a convencer o Ocidente a defender o Kuwait. Funcionou perfeitamente. Então achamos que poderíamos usar o mesmo conceito. Mas, em vez de imprimir centenas de milhares de cópias brilhantes, optamos por algo rudimentar e feito à mão, que passaria a impressão de realidade para compensar o uso anterior de alta tecnologia. Só fizemos uma dúzia, mas as enviamos a alvos ótimos, para obter o máximo efeito. – Tropas na linha de frente – murmurou Creel, pensativo.
– Isso era para ficar por sua conta – salientou Pender. – Posso fazer qualquer um acreditar que uma mentira é verdade. Mas não há nenhum substituto para o sangue derramado. – A questão das tropas está bem encaminhada. Na verdade, verá evidência disso muito em breve. – E quanto à outra parte da equação? – Isso? – disse Creel rapidamente. – Você disse que nos avisaria quando chegasse a hora. – Eu já avisei? – Não. – Então ainda não chegou a hora! Um minuto depois Creel tinha ido embora. Pender o havia ajudado a ganhar uma fortuna durante a Guerra Fria e, quando ela terminou, eles criaram pequenos conflitos até que primeira Guerra do Iraque literalmente caiu no colo deles – e depois a segunda. Mas, como ele dissera recentemente a Pender, “os americanos estão totalmente esgotados. E a União Europeia está em um clima de paz, gastando seu dinheiro em educação, infraestrutura e saúde, e não em defesa. Os idiotas nunca pensam que seria muito difícil as crianças irem para a escola e vovó ir ao médico se não conseguissem evitar que seus países acabassem tendo de jurar lealdade a Alá. Mas, apesar de tudo isso contra mim, ainda vou vencer esta guerra”. E Dick Pender nunca apostaria contra ele.
SERGEI PETROV DESCEU A rua. Tinha o colarinho virado para cima para se proteger do frio que fazia em Nova York nos últimos dois dias. Ele havia acabado de gravar uma participação num programa de TV local falando sobre os horrores que testemunhara sob os regimes de Putin e Gorshkov como o segundo homem da FSB, antes de fugir do país. Petrov descobrira que os ocidentais compravam o que ele vendia e pagavam bem, o que era muito melhor do que bancar o cãozinho de estimação para ditadores disfarçados de presidentes. Ele não sabia onde havia se originado a campanha da Ameaça Vermelha e também não se importava com isso. Gorshkov era mau. A terra natal de Petrov seguia na direção errada. Também não se importava se todos os horrores recém-descobertos eram verdadeiros ou não. Alguns provavelmente eram. Isso bastava. Tateou o revólver no bolso do casaco. Petrov era um homem cuidadoso. Sabia que havia se tornado um alvo. Se Gorshkov tivesse uma lista de pessoas a serem eliminadas, ele estaria no topo dela. Sempre saía armado, nunca se afastava de locais públicos e seus olhos treinados estavam sempre vigilantes. Ele nunca comia ou bebia quando alguém estava presente. Não morreria como Litvinenko tinha morrido. Não haveria nenhuma xícara de chá envenenado para ele. Petrov foi até a esquina e chamou um táxi, que parou junto ao meio-fio. O motorista olhou para fora. – Grand Central Station – disse Petrov. O motorista assentiu com a cabeça e ele entrou. Ao fazer isso, a porta de trás do lado oposto se abriu e um homem saltou para dentro. No mesmo instante, outro homem corpulento empurrou Petrov por trás e deslizou para o lado dele. As portas se fecharam e o táxi partiu rapidamente. Petrov nem sequer teve tempo de olhar para seus sequestradores. Eles o imprensaram, deixando-o com as mãos apertadas contra o corpo e o revólver ainda no bolso. Uma faca deslizou por sua garganta enquanto ele sentia outra lâmina entrando profundamente em seu lado direito. E então foi esfaqueado mais uma vez, e outra.
Petrov caiu para a frente, sua vida se esvaindo. O táxi saiu da cidade e foi para Westchester. Parou perto de um pequeno parque escuro e os três homens saíram do veículo, entraram em uma picape que os esperava e foram embora, deixando o corpo de Petrov ainda no chão do táxi. Escrita em sua testa com hidrocor preta estava uma palavra em russo. Sua tradução fazia todo o sentido. Traidor. Na picape, Caesar tirou seu chapéu e sua máscara. Nicolas Creel estava apenas começando com as “tropas da linha de frente”. Caesar tinha mais uma tarefa a cumprir naquela noite. A picape rodou por um longo tempo até chegarem ao seu destino. Arranjos tinham sido feitos, o dinheiro fora pago e eles entraram sem nenhum problema. O veículo seguiu para os fundos do lugar, onde uma grande cratera havia sido aberta na terra. Os homens saíram, abriram a parte de trás da picape e puxaram para fora o saco com o corpo. Caesar abriu o zíper do saco e olhou para o rosto inexpressivo diante dele. Pobre Konstantin, sua carreira em novelas latinas nunca teve chance de decolar. Caesar fechou o saco, o pôs sobre o ombro e o carregou até a cratera, onde o jogou. Um caminhão de lixo imediatamente se aproximou da beira da cratera e toneladas de entulho foram despejadas sobre o “túmulo” de Konstantin. Depois uma escavadeira empurrou uma montanha de terra de volta para o buraco. Na manhã seguinte não haveria mais nenhum sinal da cratera. Caesar fez uma saudação informal para o homem. Adeus, Konstantin, nunca nos esqueceremos de você. Enquanto Caesar e seus homens se afastavam na picape, ele discou para um número privado e relatou o sucesso de sua missão. A milhares de quilômetros de distância, Nicolas Creel riscou outro item de sua lista de tarefas. Dick Pender era um homem esperto que sabia exatamente como tirar vantagem do mundo com seus jogos mentais. Mas às vezes um corpo morto “real” podia partir um milhão de corações. E ninguém era melhor naquele jogo do que Nicolas Creel. Se você podia conseguir tudo isso com um cadáver, pense no que poderia fazer com muitos corpos.
KATIE JAMES PROLONGOU SUA estada, sem querer voltar a Nova York e à próxima grande morte. Pegou um trem da First ScotRail de Glasgow para Edimburgo e, durante o trajeto de 50 minutos, apreciou a zona rural escocesa, ora desolada, ora exuberante, perto de onde o estuário do rio Forth cortava o país logo acima da capital. Ela fez o check-in no Balmoral Hotel e comeu uma refeição ligeira no restaurante. Ao sair, esbarrou em um homem alto de ombros largos. Ele se desculpou educadamente e se afastou depressa. Katie esfregou seu ombro machucado e ficou olhando para ele. Aquilo tinha sido como bater em uma parede. O homem devia ser jogador de rúgbi. Katie passou pelo porteiro, que vestia um kilt completo, incluindo a adaga cerimonial na meia. Depois de um dia agradável passeando pela cidade e de tomar chá perto do palácio de Holyroodhouse, ela evitou vários pubs que tentavam atraí-la como um ímã atrai um prego e fez a peregrinação colina acima até a joia da coroa da cidade, o castelo de Edimburgo. O rochedo escuro do castelo, apontando para o céu no extremo oeste da cidade, era o único motivo da existência de Edimburgo. A rocha vulcânica permanece firme como uma âncora entre a região central da Escócia e a Inglaterra, o país que muitos escoceses ainda chamavam de “Velho Inimigo”. Katie passou pelo portão de entrada, ladeado por estátuas de Robert Bruce e William Wallace, que se tornaram lendas lutando contra os ingleses. Ela havia perdido o tiro de um canhão de 25 libras da Segunda Guerra Mundial, que acontecera à uma da tarde, mas viu a Pedra do Destino. No século XIII, a pedra havia sido levada pelos ingleses, que a guardaram até o século XX. Por 700 anos, ela ficou debaixo do Trono da Coroação inglês, na Abadia de Westminster, onde todos os monarcas, de Eduardo II a Elizabeth II, sentaram suas nádegas reais. Um pouco mais tarde, Katie caminhou até o pico do rochedo do castelo, onde fica a Capela de Margaret, a construção mais antiga de Edimburgo. Foi ali, dentro da capela, que viu novamente o homem alto em quem esbarrara no hotel. Ele estava ajoelhado no terceiro banco. Ao se aproximar, Katie viu que havia outro homem perto, que parecia um turista típico. Katie teria se virado e saído se não tivesse subitamente vislumbrado alguma coisa. Ela rapidamente se ajoelhou no banco dos fundos, pegou sua câmera e usou o zoom para confirmar sua observação inicial. A tatuagem no antebraço direito do homem. Vira uma igual anos antes, quando cobria outra guerra no exterior. Agora, com os sentidos aguçados, ela tinha certeza de que eles não estavam rezando. Estavam cochichando. Katie não conseguiu ouvi-los com clareza suficiente para entender as palavras, por isso saiu da capela, mas permaneceu a alguns metros da porta da frente. Dez minutos depois, o homem tatuado saiu. Ela estava pensando se deveria segui-lo quando ele desapareceu de repente no meio de um grupo de turistas. O homem alto saiu um minuto depois e Katie se concentrou nele. Achou que, se ele estivesse hospedado no Balmoral, poderia estar indo para lá agora. Ela não tinha nenhum motivo para seguilo nem para se envolver em nada daquilo. No entanto, era uma repórter – e estava na pior, tentando desesperadamente escapar da página do obituário. Não tinha a mínima ideia se isso a levaria a alguma coisa, mas havia uma chance. E ela não tinha mais nada para fazer. O homem não voltou ao Balmoral. Em vez disso, caminhou para o norte do centro da cidade, para Leith, onde pagou para visitar o iate real Britannia, fora de uso e ancorado ali. Katie tirou os sapatos e esfregou seus pés doloridos. Sua presa andava muito rápido. Ela pagou suas libras e atravessou a prancha. Tentou o máximo possível se misturar com a multidão. E se o homem a reconhecesse do hotel? Da capela? Ele parecia forte o bastante para estrangular um touro. Katie mal ouviu o guia, que recitava para a multidão informações sobre o iate. Concentrou-se de verdade quando ele apontou para o quebra-vento de mogno no balcão do deque em frente à ponte. O quebra-vento havia sido instalado para evitar que brisas sorrateiras subitamente levantassem saias reais, revelando suas roupas íntimas. Katie segurou sua própria saia com firmeza mesmo enquanto observava o homem alto se afastando. Ela o seguiu. O homem olhou para a água. Outra pessoa se juntou a ele no parapeito. Katie se aproximou o máximo que teve coragem.
Conseguiu ouvir quatro palavras que resumiram tudo para ela. Esta noite e Gilmerton’s Cove. Katie saiu imediatamente do iate e pegou um táxi para voltar ao hotel. Não tinha muito tempo para se preparar. E precisava fazer algumas pesquisas antes. Ela não sabia com o que tinha topado. Contudo, sua experiência lhe ensinara que algumas das melhores histórias começavam com os encontros mais inesperados.
ESSE GRUPO FAZIA O iraniano e seus homens sedentos de sangue parecerem um bando de criancinhas, pensou Shaw. Ele estava sentado num carro, cercado por dois homens do Tadjiquistão; um parecia um bloco de granito, o outro, uma pequena montanha. Era um milagre que as rodas dianteiras do grande Mercedes não se levantassem com o peso no banco de trás. Mas talvez isso não acontecesse graças aos dois homens no banco da frente, também tadjiques, que, segundo os cálculos de Shaw, deviam pesar juntos pelo menos 300 quilos, poucos dos quais eram gordura. Shaw nunca havia encontrado um tadjique que não parecesse zangado. Talvez a vida em um país limitado por montanhas usado pelos soviéticos como depósito de lixo tóxico e com uma taxa de pobreza de 80 por cento desse aos seus habitantes um bom motivo para estarem sempre furiosos. Ele disse algo em russo e recebeu como resposta algo que só poderia ser descrito como um rosnado. Os tadjiques não se consideravam russos. Culturalmente, eram parte do grupo étnico iraniano, assim como os persas. Shaw nunca havia se dado o trabalho de aprender tadjique e esperava nunca se arrepender dessa decisão. Ele se recostou no banco. Os tadjiques vendiam drogas, especificamente heroína feita de ópio produzido no Afeganistão, o produto de exportação mais lucrativo do país. Isso era possível porque grande parte das forças da coalizão havia abandonado o Afeganistão para tornar o Iraque um exemplo de democracia. Os impérios do tráfico de drogas lhes agradeciam todas as noites por sua consideração, porque, sem o ópio, não era possível fazer heroína, uma das drogas “recreativas” mais populares de todos os tempos. A tragédia que essa maldita bomba-relógio química causara no mundo era incalculável. Shaw estava ali para comprar 1 tonelada da tragédia, com um valor de mercado de 15 milhões de dólares. As drogas seriam enviadas da Escócia para Nova York dentro de milhares de bolas de futebol. Os tadjiques haviam descoberto que a inspeção na alfândega era muito menos rigorosa com produtos importados da Escócia do que com, digamos, um grande pacote vindo do Irã ou da Coreia do Norte com as palavras “Morte à América” escritas em letras grandes do lado de fora. É claro que, se as coisas saíssem conforme o planejado, a carga que Shaw compraria essa noite seria confiscada no porto de Nova York. A apreensão seria elogiada pela imprensa como um imenso golpe nos traficantes internacionais e um testemunho da eficiência dos esforços globais para o cumprimento da lei. Isso se Shaw fosse bem-sucedido em sua missão e conseguisse escapar com todos os seus órgãos intactos. Embora ele duvidasse de que Frank considerasse sua sobrevivência um indicativo obrigatório de triunfo. Porém fazer os fiscais da alfândega dos Estados Unidos parecerem bons não era o motivo para que Shaw estivesse ali. O motivo era evitar que os proventos do tráfico de drogas fluíssem para um sindicato internacional do crime parcialmente dominado por fundamentalistas islâmicos que estavam por todo o Tadjiquistão. Sua parte na receita desta noite poderia comprar algumas bombas sujas ou 10 mil bombas improvisadas, nenhuma das quais era uma coisa boa para o mundo civilizado. Eles não estavam muito longe de Edimburgo, mas a terra havia rapidamente se tornado vasta e desolada. Bem mais ao norte ficava o estuário do rio Forth. Quando um dos tadjiques abriu a janela para soprar a fumaça de seu cigarro, Shaw teve a impressão de que podia sentir o ar carregado de maresia. Trinta minutos depois eles entraram em uma estrada de cascalho e foram rapidamente engolidos pelas densas árvores que a ladeavam. O motorista do caminhão que esperava no fim da estrada acenou com a cabeça para seu colega no sedã que desacelerava até parar perto do outro veículo. Shaw e os quatro homens saíram do carro. – Bolas de futebol? – perguntou Shaw, apontando para a carga no caminhão. O homem à sua esquerda grunhiu, o que Shaw interpretou como um “sim” em tadjique. O único motivo de ele ainda estar vivo era que esses homens acreditavam que ele seria um cliente potencial do outro lado do oceano. Os cartéis sul-americanos dominavam o mercado de drogas ilícitas dos Estados Unidos, o maior do mundo, mas os tadjiques o cobiçavam havia muito tempo. Estavam mais do que dispostos a voar para a Colômbia e cortar as gargantas de milhares de latinos. Shaw cortou uma das bolas de futebol com uma faca que um dos tadjiques lhe entregara. Dentro da bola havia sacos plásticos cheios de um pó branco. Ele não abriu um saco e experimentou seu conteúdo como faziam na TV, porque não queria a droga em seu organismo. A única coisa pior do que a heroína era a metanfetamina. A impressão que se tinha era a de que, se você a cheirasse a 100 metros de distância, seria um candidato a desintoxicação. – Eu só tenho a sua palavra de que é heroína e de que todas as outras bolas estão cheias, totalizando 1 tonelada? Os quatro homens olharam para ele; nenhum parecia disposto a responder. A porta do carona do caminhão se abriu e um homem baixo e magro saltou suavemente para o chão macio. Seus cabelos eram louros e ralos, ele usava um terno caro e mantinha um sorriso constante que mostrava um novo conjunto de implantes. – Fazemos isso há muito tempo – disse o homem. Se tinha algum sotaque, era imperceptível. Ele estendeu a mão para Shaw. – Todos os novos clientes fazem a mesma pergunta. Mas nunca se decepcionam. – Ele apontou para a bola de futebol aberta. – Essa é a melhor heroína do mundo. Garantimos 70 por cento de pureza, mesmo com toda a porcaria que vocês vão pôr nela antes de chegar às ruas dos Estados Unidos. Na maioria das vezes a heroína não presta. Isso lhe custa dinheiro, meu amigo. Com nosso produto obterá o dobro do lucro. Shaw se imaginou em pé prestando atenção à demonstração de um produto. O homem continuou: – E pus 10 quilos a mais, sem nenhum custo extra. Só fazemos isso para os clientes novos, para demonstrar nossa boa-fé. E só uma vez – acrescentou com firmeza, mas ainda sorrindo. – Nós vendemos a heroína por 5 milhões de euros e você obtém de 12 a 15 milhões de dólares por ela em Nova York, Los Angeles e Miami. Nada mau. E podemos fazer isso a cada duas semanas. Dinheiro fácil.
– É muito arriscado levar drogas para os Estados Unidos – salientou Shaw. O homem deu uma risadinha. – Não foi o que ouvi dizer. É como tirar doce de criança, porque todos os americanos são viciados. Gordos, vorazes e maníacos por sexo. Agora que você viu nosso produto, eu gostaria de ver seu dinheiro. – Como levarei as bolas para o porto? – perguntou Shaw, ganhando tempo. E se Frank me ferrar? Os tadjiques vão fazer picadinho de mim. – Nós as embarcaremos para você. Ninguém vai perceber. Agora, onde está o dinheiro? – O homem olhou para dentro do Mercedes. – Não estou vendo nenhuma maleta. Cinco milhões de euros ocupam muito espaço, mesmo em notas altas. – Ele lançou para Shaw um olhar inquisidor. – Não aceitamos cheques nem cartões de crédito – falou, com um sorriso trêmulo, e depois sua boca se apertou. – Onde está a merda do dinheiro? – Meu pessoal o está trazendo – disse Shaw casualmente. – Seu pessoal? Que pessoal? O homem baixo olhou ao redor, para o vazio que os cercava. – Você tem o seu pessoal, eu tenho o meu. – Não nos falaram sobre isso. – Ora, vamos. Você achava que eu ia entrar num carro sozinho com quatro tiranossauros que não conheço e milhões de euros para gastar? Se fosse estúpido, não teria durado nem uma semana neste negócio. O homem fez um sinal para seus capangas e quatro submetralhadoras MP5 surgiram do porta-malas do Mercedes. Um som metálico vindo do caminhão indicou a Shaw que o motorista também estava armado. Onde está você, Frank?
KATIE JAMES AJUSTOU SEU pequeno binóculo e ao mesmo tempo levou uma das mãos ao peito, tentando impedir que seu coração batesse tão violentamente. Ela havia seguido o Mercedes desde o Balmoral Hotel. Tendo ouvido o destino mais cedo, no Britannia, pôde até ultrapassar o carro algumas vezes, para evitar suspeitas, antes de voltar a segui-lo. Quando o Mercedes entrou na estrada de cascalho, ela passou direto pela entrada e depois retornou, contando com a sorte para que ele não tivesse ido muito longe. Parou o carro atrás de uma curva na estrada e seguiu a pé, subiu uma colina, se esgueirou por entre algumas árvores e se instalou atrás de um monte de terra para observar. Estava perto o suficiente para ouvir fragmentos da conversa. Estava claro que o homem alto do Balmoral era um comprador de drogas. Isso a surpreendeu, por causa do sujeito que vira com ele na capela. Ele tinha uma tatuagem que, pelo que Katie sabia, só era usada por membros da Força Especial Delta. Contudo, até mesmo eles podiam se corromper, pensou. Os outros homens eram vendedores. As drogas estavam nas bolas de futebol e eles estavam discutindo sobre dinheiro quando as submetralhadoras apareceram. Katie havia pensado em usar seu telefone celular para chamar a polícia, mas agora decidira mudar de tática. Com o súbito aparecimento das armas, ia correr. Tinha começado a se virar quando um som a paralisou. À sua direita uma onda negra se movia na floresta. Ela se jogou no solo, tentando se enterrar nele. Quando as armas começaram a disparar, ela tentou se afundar ainda mais. Porém alguma coisa, talvez seu instinto jornalístico, a fez olhar pelo seu binóculo a tempo de ver dois dos traficantes serem baleados, seus corpos literalmente se abrindo em buracos inundados de sangue. Eles caíram mortos no chão sem emitir som algum. Enquanto Katie continuava a observar, o homem alto conseguiu tirar a submetralhadora de um dos gigantes e então, com uma agilidade que não condizia com seu tamanho, deu um chute no estômago e outro na cabeça do homem maior, derrubando-o. Ele se virou e levantou a arma, como que se rendendo, mas, ao ver as balas vindo de todos os lados, pareceu mudar de ideia.
Os outros traficantes tinham se escondido atrás do caminhão. Atiravam em tudo o que vinha em sua direção, enquanto a onda que passara por Katie criava uma parede de disparos intensos. O homem alto foi atingido bem no meio do corpo. – Ele vai morrer – sussurrou Katie para si mesma, apavorada. www Shaw se escondeu atrás do Mercedes, escapando por poucos centímetros de outra rajada de balas. Os tadjiques atiravam nele por trás e seus próprios homens faziam o mesmo pela frente. Será que Frank se esquecera de dizer ao grupo de ataque que eles deveriam deixar pelo menos um homem vivo? Ele. Shaw disparou uma rajada de submetralhadora na direção dos tadjiques e depois escorregou para o banco dianteiro do Mercedes. Ligou o motor. Outra rajada vinda de trás estilhaçou o vidro traseiro. Shaw afundou o pé no acelerador e o veículo saltou para a frente, os pneus jogando cascalho no caminhão. Segurando a MP5 para fora da janela, ele descarregou o pente no caminhão, atingindo um dos tadjiques no rosto e dando fim a sua carreira de traficante internacional de drogas. Tiros atingiam o carro de todos os lados, como granizo, fazendo água e óleo começarem a pingar do motor. Shaw voltou de ré na estrada de cascalho, virou o volante e deu um cavalo de pau com o Mercedes. Completou o ângulo de 180 graus, pisou fundo no acelerador e se lançou para a frente alcançando uma velocidade de 100 quilômetros por hora na parte reta do percurso até chegar a um ponto quase sem árvores em que o motor começou a cuspir fumaça negra e o carro morreu. Seu olhar varreu o interior do veículo antes de pousar na SIG Sauer de 9 milímetros parcialmente enfiada debaixo do tapete do banco de passageiros. Ele a pegou, abriu a porta com um chute e correu. Não foi o único. Shaw mudou de direção e fez a curva, suas pernas compridas arrancando pedaços do solo. Alcançou Katie justamente quando ela estava entrando em seu carro, um Mini Cooper preto. – Me larga! – gritou ela quando Shaw agarrou seu braço. – Me dê as chaves! – gritou ele de volta.
Shaw arrancou-as dos dedos de Katie e abriu a porta do carro, deslizando seu corpo grande para dentro daquele espaço pequeno. – Entre! – gritou, porque ela continuava em pé, parada. – Não! – Se eles a encontrarem aqui, vão matá-la. – Quer dizer, você vai me matar. – Katie olhou para a arma dele. – Se eu quisesse fazer isso, já teria feito. Não estaria lhe oferecendo uma carona. – Uma carona para uma refém, você quer dizer. – Esses caras não dão a mínima para reféns. Agora entre. Ambos ouviram algo não muito distante vindo em sua direção. – Sua última chance! – gritou ele, com um tom de voz que deixava isso muito claro. O caminhão saiu ruidosamente da linha das árvores a 15 metros de onde eles estavam. Era o caminhão de carga e quem dirigia era um dos grandes tadjiques. O homem baixo com o sorriso perverso que não aceitava cheques nem cartões de crédito estava sentado ao seu lado. Subitamente os avistou e seu sorriso se tornou mais largo enquanto abaixava a janela e mirava neles. – Cuidado! – exclamou Shaw. Seus olhos tinham visto o que os de Katie não viram. Ele agarrou o braço dela, puxou-a pela janela aberta para dentro do carro e pisou no acelerador, aparentemente tudo ao mesmo tempo. Segundos depois, o chão onde Katie estivera de pé era destruído por uma granada de míssil propelido. Shaw empurrou Katie para o chão do carro e acelerou. Trocou de marcha e acelerou acima da rotação limite indicada pelo fabricante. E isso poderia não ser suficiente. Os tiros de metralhadora vieram por trás como um enxame de abelhas com ferrões de calibre 50. Shaw voltou a empurrar Katie para o chão quando ela tentou se sentar. – Fique abaixada!
Ele olhou pelo retrovisor. Pensou em sair da estrada e arriscar dirigir pelos campos. O único problema era que o acostamento se resumia a sulcos profundos que o Mini Cooper nunca transporia. E, mesmo se transpusesse, o terreno era tão irregular que apenas um veículo com tração nas quatro rodas conseguiria atravessá-lo. O Cooper era muito mais ágil que o caminhão, mas em trechos retos Shaw não conseguiria sair do alcance de outra granada. Esperava que uma os atingisse a qualquer momento. Achou que podia ver os grandes dentes do pequeno tadjique sorrindo, sem dúvida pensando que era ele que ocupava o banco do motorista. Era verdade, mas isso estava prestes a mudar. – Segure-se! – gritou Shaw para Katie. Ele deu outro cavalo de pau e afundou o pé no acelerador. Agora eles seguiam a toda na direção do caminhão. Katie se sentou a tempo de ver isso. – Que diabos está fazendo? – gritou ela. O teste de coragem estava a cinco segundos do fim, enquanto o grande caminhão e o Mini Cooper iam ao encontro um do outro. Katie fechou os olhos e se segurou no painel do carro. Enquanto os faróis dianteiros se aproximavam, os tadjiques se entreolharam, aparentemente sem acreditar no que estava acontecendo. Se batessem poderiam danificar o caminhão. E, com os homens no bosque vindo atrás deles, precisariam do veículo. Era exatamente por isso que Shaw se dirigia para eles. O grande tadjique desviou bruscamente para a esquerda. Essa seria sua última manobra defensiva. A pistola de Shaw disparou e três buracos de bala surgiram no para-brisa, na frente do motorista. O sorriso do homem baixo desapareceu junto com a vida do outro homem. Shaw virou o carro para a direita e girou rapidamente em torno do caminhão, as rodas do Cooper criando um sulco de 3 centímetros na superfície do acostamento de terra antes que o carro recuperasse sua firme tração e disparasse para a frente. O caminhão sem motorista continuou a andar por mais 150 metros, saiu da estrada, atingiu o acostamento irregular, subiu em um monte de terra e grama e tombou de lado.
Só então Katie James abriu os olhos.
QUANDO ELES ESTAVAM A 16 quilômetros de distância do local onde quase haviam morrido, Shaw desacelerou o Mini Cooper, abriu sua janela e inspirou profundamente. Aquilo tinha sido assustador até para ele. Pela primeira vez, Katie notou a mancha vermelha perto do ombro de Shaw. – Você foi atingido! Ele olhou para a ferida com pouco interesse, sua mente ocupada com o que acabara de acontecer. – A bala pegou apenas de raspão. – Olha, se você me deixar ir, prometo que não direi nada. – Você anda assistindo a filmes de mais. – Quer dizer que realmente vai me deixar ir? – Garanto que não quero andar por aí com você. – Quem eram os homens vestidos de preto no tiroteio? – Eu lhe dei uma carona, não estou prestando depoimento. Ela o olhou com curiosidade. – Você não é um traficante de drogas, é? – Conheci muitos. E você? – Na verdade, sim. – Afinal de contas, o que estava fazendo lá? – Ao reconhecêla, o rosto de Shaw se tornou subitamente severo. – Esbarrei em você no Balmoral. E você estava no iate. Estava me seguindo! – Ele a segurou pelo ombro. – Por quê? Quem mandou você fazer isso? Katie agarrou a mão de Shaw. – Está me machucando. Por favor. Com um aperto final, Shaw a soltou. – O que você estava fazendo lá? – Foi por acaso. – Mentira é uma coisa que me deixa muito triste.
– Está bem, está bem, você estava agindo de modo suspeito e eu o segui. – Por quê? Você é policial? – Não. Sou... repórter. – Repórter? Investigando traficantes de drogas na Escócia? – Não, eu... – Diga-me a verdade ou posso mudar de ideia sobre deixar você ir. – Eu estava na Escócia fazendo uma matéria sobre a morte de Andrew MacDougal – disse ela apressadamente. – Para qual jornal? – O New York Tribune. Ele fez uma pausa e depois disse: – Você é Katie James? – Como sabe? – Li a matéria. Tinha seu nome nela. Mas MacDougal morreu em Glasgow. O que está fazendo em Edimburgo? – Estou de férias. Jornalistas tiram férias de vez em quando. – Bisbilhotar coisas que não são da sua conta é parte de sua programação de férias? – Gostaria que não tivesse sido. – Imagino que tenha aprontado alguma para lhe darem a página do obituário antes de você completar 70 anos. – Vá pro inferno. – Na verdade, já estive lá. Não é tão ruim quanto as pessoas pensam. Shaw falou isso tão naturalmente que até mesmo a experiente jornalista só conseguiu olhar para ele antes de balbuciar: – O que quer dizer com isso? – Se você precisa perguntar, não entenderia a resposta.
Na verdade, Katie sabia exatamente o que ele queria dizer, mas preferiu não mencionar isso. Eles seguiram em frente, em silêncio. Trinta minutos depois, o Cooper parou perto do Balmoral. Shaw se virou para Katie. – O.k. Agora saia da cidade o mais rápido que puder. – E você? Eles estavam atirando em você. – Posso cuidar de mim mesmo. Katie se inclinou e segurou a mão de Shaw quando ele começou a sair. – Qual é o seu nome? – Acompanhei seu trabalho durante anos, por isso sei que não é tão burra assim. – Pode pelo menos me dizer o que aconteceu lá? Ele hesitou. – Não vou escrever a matéria, se é o que está pensando. Seja como for, não sei o bastante para isso. – Se escrever, arruinará muito trabalho e ajudará pessoas más. – Eu nunca ajudaria pessoas más. Shaw fez uma pausa, estudando-a atentamente. – Era uma transação com drogas. Estávamos tentando manter o dinheiro fora das mãos de terroristas. Pronto, agora já sabe de tudo. – Pessoas boas não abrem fogo daquele jeito. – Eu sei – admitiu Shaw. – Não sei por que começaram a atirar. A sinceridade dele pareceu dissipar a maioria das dúvidas de Katie, que acrescentou em tom cauteloso: – Então por que seu pessoal atirou em você? – É exatamente o que vou tentar descobrir. – Ele a olhou firme. – E saia de Edimburgo. Você sobreviveu esta noite. Seria uma pena não aproveitar isso. Em alguns segundos, ele havia desaparecido.
Katie se recostou no banco de couro do Mini. Tinha visto muitas mortes em sua carreira, coisas de partir o coração, que ninguém jamais superaria. Mas acontecera algo aquela noite... E ela nunca tinha conhecido ninguém como aquele homem. Tudo que ele havia lhe contado era mentira? Como jornalista veterana, frequentemente descobria que esse era o caso. Mas ele a deixara ir. E salvara sua vida. Ela se sentiu um pouco culpada ao se dar conta de que não lhe agradecera. Se não fosse por ele, seus pedaços estariam espalhados pela Escócia. Katie alcançou sua bolsa no banco de trás e pegou dentro dela um bloco e uma caneta. Antes de se dedicar ao jornalismo, tinha feito uma especialização em arte. Abriu o bloco e fez rapidamente um desenho de Shaw. Também fez anotações. Falou consigo mesma enquanto escrevia. – Cabelos escuros, cerca de 1,90m e 42 anos. Ombros do tamanho do Nebraska. Olhos azuis maravilhosos. Ela pousou a caneta. Olhos azuis maravilhosos? De onde saíra isso? Não importava. As chances de voltar a vê-lo... Katie passou para o banco do motorista, dirigiu por um beco, deixou o carro e entrou rapidamente no Balmoral pela porta dos fundos.
SHAW NÃO SE DEU o trabalho de pegar suas roupas no hotel. Tinha guardado todos os seus objetos pessoais num armário na estação de trem. Telefonou para Frank assim que se sentiu seguro longe do hotel. O homem esperou o quarto toque para atender. – Que tipo de jogo é esse? – gritou Shaw pelo telefone. – Você deveria estar comemorando outra missão bemsucedida. Pegamos as drogas, os bandidos não ficaram com nenhum dinheiro e deixamos um homem vivo que está falando como uma matraca. Eu já estourei o champanhe. – Seus homens abriram fogo sem ser provocados. – Uau! É mesmo? – Sim, é mesmo. O que houve com o direito de permanecer em silêncio e manter o sangue correndo nas veias? – Matamos alguns tadjiques. E daí? Você sabe quanto esses caras comem? Meu orçamento está apertado. – E seus homens atiraram em mim. – Então talvez você deva prestar atenção. – Prestar atenção a quê? – Não gostamos de aposentados, Shaw. Você vai se aposentar quando dissermos que pode, se é que algum dia diremos. – Meu acordo... – Que se dane seu acordo. Isso sempre foi besteira, mas você nunca quis encarar a realidade. Bem, esta noite foi um aviso, meu amigo. O único. Da próxima vez talvez eles não errem o alvo. E considere-se um homem de sorte. A propósito, suas ordens para Heidelberg o aguardam no aeroporto. Jato fretado, decolando daqui a duas horas. Um homem o encontrará na entrada principal do aeroporto. Por enquanto, aproveite o resto de sua tarde na adorável Escócia. Frank desligou e Shaw ficou em pé na Princess Street, no meio da velha cidade de Edimburgo, com milhares de pessoas ao seu redor.
Nunca se sentira tão só.
Katie pegou um bloco de notas novo em sua bolsa, inseriu algo nele e entrou no saguão do Balmoral. O recepcionista de plantão era um homem jovem, alto e magro. Katie caminhou a passos largos para ele e lhe estendeu o caderno. – Um homem deixou isto cair no saguão. Não há nenhum nome escrito, mas ele pode estar hospedado no hotel. Pegou um táxi antes que eu pudesse detê-lo. – Ela descreveu Shaw em detalhes. – Sim, senhorita, ele está hospedado aqui – disse o jovem escocês. – O Sr. Shaw. Vou deixar isso no escaninho dele. Katie o viu colocar o caderno no escaninho do quarto 505. Quando ele se virou, ela já havia ido embora. Deus abençoe os escoceses, pensou Katie. Se tivesse tentado usar aquele truque em Nova York, teriam atirado o caderno na sua cara, a jogariam no chão e chamariam a polícia. Ela esperou duas horas no saguão, olhando de vez em quando para o balcão da recepção enquanto tomava uma Coca-Cola e roía as unhas até sangrarem. Estremeceu quando o jovem escocês cedeu seu lugar para uma mulher de meia-idade que Katie nunca tinha visto. Assim que ele sumiu de vista, Katie se aproximou da recepção. – Estou no quarto 505 com meu noivo – começou. – Ele não encontrou a sua chave, então deixei a minha com ele. Combinamos que ele a deixaria para mim dentro de um caderno, para que eu pudesse voltar para o quarto. A mulher olhou de relance para os escaninhos atrás dela. Pegou o caderno no espaço do quarto 505. – É este? – perguntou. Katie fez um sinal afirmativo com a cabeça e o pegou. Examinou o caderno e teve o cuidado de deixar o objeto que colocara ali cair no balcão. A mulher o pegou para ela. Era a carteira de motorista de Katie. Olhou para a foto e depois para Katie, que disse: – Procurei por isso em toda parte. Ele deve ter encontrado no quarto e posto no caderno para mim.
– E onde está seu noivo? – perguntou a mulher de modo amável, mas com o tom de quem tinha um trabalho a fazer e pretendia fazê-lo. – Glasgow. – Katie folheou as páginas. – Vai voltar amanhã, mas não deixou a chave. Como posso entrar no quarto? – Já tentou telefonar para ele? – Sim, mas ele não atende. Às vezes o sinal é um pouco irregular. – Eu que o diga – concordou a recepcionista prontamente. A mulher olhou de novo para a carteira de motorista. – Bem, não podemos deixar nossos hóspedes dormindo na calçada, não é? – Ela pegou uma chave sobressalente e a entregou a Katie junto com seu documento. Katie olhou para o crachá da mulher. – Sara, não sei como lhe agradecer. Mal posso acreditar que ele se esqueceu de deixar a chave. – Estou casada com Dennis há 26 anos e até hoje ele não consegue se lembrar de aniversários, aniversários de casamento e, às vezes, dos nomes de todos os nossos cinco filhos. Então, se seu noivo só se esquece de deixar chaves, case com ele e considere-se uma mulher de sorte. Katie se dirigiu para o elevador. Um minuto depois estava abrindo a porta do quarto 505. Tinha visto Shaw se afastar a pé do Balmoral, por isso estava quase certa de que ele não se encontrava no prédio. Ainda assim, disse para si mesma que só tinha 10 minutos para vasculhar o lugar. Nove minutos depois ela havia vasculhado cada centímetro do quarto e alguns pertences que Shaw deixara para trás, sem sucesso. Bem, não totalmente. No bolso de uma jaqueta encontrou um recibo de compra de um livro em Dublin. Mas aquilo não era muito útil. Katie deu uma volta pelo quarto e parou perto da escrivaninha, passando os olhos pelos objetos que estavam ali, todos fornecidos pelo hotel. Foi quando viu o mata-borrão. Ela se sentou e pegou-o, tirou um lápis do suporte e esfregou-o cuidadosamente sobre o papel. Um nome surgiu lentamente no papel branco. Shaw o escrevera com tanta força na página de cima que ficara marcado na de baixo. Um erro de amador. Katie não tinha como saber que ele o cometera quando estava aflito por causa de Anna. – Anna Fischer – disse Katie. O nome não era incomum, mas por algum motivo ela achou que o reconhecia. E então se lembrou de algo. Olhou para o recibo de compra que havia encontrado no bolso da jaqueta. – Uma análise histórica dos Estados policiais – leu. Mais uma vez, algo se infiltrava em sua mente. Katie saiu do quarto e telefonou para a livraria que emitira o recibo. Não esperava que alguém atendesse àquela hora, mas então ouviu uma voz feminina. Katie perguntou se eles tinham aquele livro. A mulher disse que sim, mas apenas um exemplar. – E qual é o nome do autor? – perguntou Katie. – Não consigo me lembrar. – Anna Fischer – respondeu a mulher.
ANNA FISCHER CAMINHAVA DEVAGAR pelas ruas de Westminster, em Londres. Muitos turistas costumavam se reunir naquela área da cidade, tentando ter um vislumbre da rainha ou de algum outro membro da família real no palácio de Buckingham, ou visitando os túmulos de monarcas na famosa abadia. Também era ali que ficavam os teatros do West End e Lord Nelson, com um ar pensativo, no alto de uma gigantesca coluna de granito na Trafalgar Square, mesmo que todo coberto de excrementos de pássaros. Ela entrou no St. James’s Park, passando por babás estrangeiras e mães inglesas que empurravam carrinhos aproveitando uma tarde de céu azul. Um tempo assim não era muito comum na pequena ilha, por isso os londrinos se apressavam a aproveitar o sol sempre que tinham uma oportunidade. Anna continuou a caminhar, passando por King Charles Steps, e então parou e olhou para Duck Island, no meio do lago do St. James’s Park. Resolveu se sentar ali, sua saia ao redor das pernas compridas. Tinha sido muito dura com Shaw? Parte dela dizia que sim, mas a outra parte repetia um sonoro não! O casamento, pelo menos para Anna, era um compromisso para toda a vida. Sim, deveria ter insistido nesse ponto antes, mas, agora que Shaw a pedira oficialmente em casamento, o assunto adquirira uma urgência maior. Ele tinha que entender isso e, se não entendesse... bem, talvez fosse melhor que não ficassem juntos. Anna havia tido outros pretendentes ao longo dos anos, homens educados e articulados, com posições importantes no mundo ou considerável riqueza. Ela pensava que nenhum deles havia lhe despertado as emoções novas e profundas que Shaw despertara. Será que ele ao menos tinha ido a Wisbach visitar os pais dela? Anna se levantou do chão e sentou-se num banco do parque. Ali perto havia um jornal descartado. Ela o pegou. O Guardian estava vendendo bem com a história da diabólica Rússia. Na verdade, a manchete dizia tudo: “A Ameaça Vermelha está de volta?”
E algo chamado “Tábua das Tragédias” acabara de ser recebido por grandes agências de notícias e líderes mundiais. A apresentação rudimentar e as fotos granuladas de russos supostamente assassinados, suas histórias trágicas escritas em linguagem simples tinham um impacto que um milhão de cópias brilhantes jamais teria. Anna franziu a testa ao ler a matéria. Repetia muito do que já se sabia e depois desenvolvia o assunto. Era como uma brincadeira de telefone sem fio. Contudo, o assassinato de Sergei Petrov, com a palavra “traidor” escrita em russo em sua testa, era uma prova muito mais conclusiva da culpa de Gorshkov, pelo menos no pensamento da imprensa ocidental. O presidente da Rússia pusera sua força militar em alerta total, porque manifestações em massa estavam ocorrendo em todo o país. Parecia que o lugar estava implodindo. Anna chegara a ouvir de seus antigos colegas nas Nações Unidas que, se a Ameaça Vermelha não fosse logo explicada de um modo favorável a Gorshkov, a cadeira da Rússia no Conselho de Segurança poderia estar em risco. Seja lá o que tivesse acontecido com Konstantin e sua família, o homem certamente estava tendo sua vingança agora. Mas será que alguém tinha se dado o trabalho de conferir aquilo? Ao contrário de outras pessoas que poderiam se fazer essas mesmas perguntas, Anna tinha como tentar obter respostas. Decidiu fazer algo a esse respeito, talvez para tirar da cabeça seus problemas pessoais. Caminhou até seu escritório, um prédio geminado de 175 anos situado numa tranquila rua sem saída, perto de Buckingham Gate. Os dois prédios vizinhos ao dela estavam vazios, mas havia planos para serem restaurados dentro de cerca de seis meses. Ela desfrutava sua paz e solidão enquanto não eram destruídas por britadeiras e serras. Seu prédio havia passado apenas por uma pequena reforma, que incluíra a pintura de todas as janelas e portas. Ela abriu a pesada porta da frente, na qual uma placa dourada anunciava o nome da empresa: The Phoenix Group Limited. Quando havia começado a trabalhar ali, disseram-lhe que a empresa era financiada por um homem muito rico e reservado, nascido nos Estados Unidos, mais especificamente no Arizona. Ele era tão reservado que ninguém que trabalhava no Phoenix Group sequer sabia o nome de seu benfeitor. E ele nunca os visitara. Porém, de vez em quando, recebiam comunicados dele e palavras de incentivo sobre seu importante trabalho. Representantes dele tinham ido conhecê-los e responder a algumas perguntas. O dono fora descrito como um intelectual interessado nas grandes questões que continuavam a intrigar a humanidade. E ele pagava pessoas como Anna para decifrá-las. Fosse quem fosse, dava a Anna e aos outros pesquisadores carta branca para seguir suas paixões. Não havia muitos empregos com tanta liberdade. Aquele era o trabalho mais estimulante que Anna já fizera. Agora só faltava pôr nos eixos sua vida pessoal. Ela trancou a porta e subiu as escadas. Seu escritório bagunçado ficava no andar de cima, no fim do corredor. Ela passou por outras salas, todas vazias, exceto uma perto da sua, onde um colega, Avery Chisholm, um velho e rabugento professor universitário, trabalhava duro em um projeto, seu círculo de cabelos brancos mal tampando as pilhas de livros à sua frente. Ele ergueu uma das mãos em resposta ao cumprimento de Anna e ela seguiu em frente, apressada. Anna se instalou atrás de sua grande escrivaninha abarrotada de livros e pilhas de papéis. Seu trabalho era tentar entender o mundo, um fator complexo de cada vez. Ela e seus colegas escreviam ensaio após ensaio, publicavam livro após livro, davam palestra após palestra, apresentando análises precisas e detalhadas que deveriam ser valiosas para governos e líderes empresariais de vários países – dos Estados Unidos ao Japão. Contudo, ela estava dolorosamente consciente de que quase ninguém no poder se dava o trabalho de lê-las. Ela acessou a internet e entrou em algumas salas de batepapo. Sempre que levantava questões sobre a culpabilidade dos russos ou sobre as “reais” origens da Ameaça Vermelha, era atacada por todos os lados por pessoas que questionavam sua fé religiosa e seu patriotismo, embora não soubessem se ela ao menos tinha uma religião ou de que país era. Também foi chamada de puxa-saco de Gorshkov, traidora da humanidade e vadia. Anna se retirou desse mundo e expandiu sua busca até se concentrar em um blogueiro desconhecido, numa galáxia distante do mundo cibernético. Ele estava levantando algumas das mesmas questões e dúvidas de Anna. Ela lhe enviou um e-mail detalhado e esperou receber uma resposta em breve. Receberia, mas não como havia imaginado.
ANNA FISCHER ERA UMA mulher bastante inteligente, com muitos diplomas de universidades reconhecidas internacionalmente. Contudo, acabara de cometer um erro grave. Em sua defesa, é preciso reconhecer que ela não teria como saber que estaria cometendo um erro. Exatamente o tipo de erro que costuma voltar para nos assombrar. O blogueiro para quem tinha enviado o e-mail com suas dúvidas não era quem parecia. Nem sequer era uma pessoa. Era basicamente um truque digital. Dick Pender e seu pessoal monitoravam o que acontecia em milhares de salas de bate-papo espalhadas pelo mundo. O fogo rápido das respostas prontas disparadas através de suas grandes telas de computador rivalizava com tudo que as colunas de conselhos dos jornais ingleses do final do século XIX já haviam inspirado. É claro que a Ameaça Vermelha era o assunto na mente de todos e Pender sorria enquanto contava as pessoas convencidas de que os russos estavam por trás daquilo, comparadas com as que não tinham certeza. Os cálculos eram de quase 90 por cento a seu favor. Ele notou com alegria que, sempre que alguém dizia algo contra a “verdade” que havia criado, era eletronicamente “atacado” por um exército virtual. Pender postara, em milhares de grupos de discussão, respostas prontas apresentando fato após fato, nenhum deles com embasamento real, e sorria quando hordas de internautas o saudavam como um herói, uma pessoa de suprema sabedoria. Meu Deus, pensou Pender, era muito fácil manter uma posição popular, ainda que totalmente errada. Aquilo não exigia nem um pingo de coragem. Um minuto depois, seu sorriso se tornou ainda mais largo. Havia acabado de checar o que chamava de suas armadilhas online. Uma delas era o blog para o qual Anna enviara suas dúvidas. O pessoal de Pender havia armado aquele truque, junto com vários outros, para avaliar a importância de qualquer um que acreditasse que a campanha da Ameaça Vermelha era um blefe. Era fundamental saber se havia uma onda de dúvida sobre os horrores perpetrados pelos russos.
Quando Pender detectava um desses movimentos, tinha diversas estratégias que podia usar para refutar essa crença. Uma de suas favoritas era produzir um evento escandaloso que atrairia a atenção de todos para uma área problemática. Durante anos, ele havia sido contratado para fazer isso por governos em Washington, Londres, Paris, Pequim e Tóquio. Geralmente essas coisas eram necessárias em períodos de eleições, escândalos, guerras e disputas por orçamentos. Poucas pessoas tinham enviado e-mails para os sites plantados. Aparentemente a grande maioria delas acreditava que tudo que estava sendo dito sobre os russos era verdade. Elas não se importavam em agir como cordeirinhos durante toda a vida, o que era bom para o negócio de Pender. É claro que algumas queriam saber tudo sobre o CIR e faziam muitas pesquisas. Por isso, Pender lhes fornecia pedaços de informações para aplacar seu apetite. Na verdade, não era muito difícil se antecipar a elas. A mídia tinha muitas matérias e frentes a cobrir, enquanto Pender só tinha um assunto com que se preocupar: o de Nicolas Creel. Ele se referia a essa técnica como “regular o fluxo”: abrir e fechar a torneira de informações nos melhores momentos. Tinha a mídia exatamente como a queria – em estado puramente reativo. O número limitado de pessoas que acessara os sites plantados já havia sido verificado pelos homens de Pender e considerado sem importância. Ao contrário das salas de bate-papo básicas, era preciso pesquisar de verdade para encontrar essas armadilhas on-line. Isso exigia um esforço maior do que a maioria dos internautas comuns empreenderia. Pender não tinha a menor ideia de quem era Anna Fischer, mas o nome da empresa na extensão de seu endereço eletrônico o intrigou. – Phoenix Group – disse para si mesmo enquanto se sentava à sua escrivaninha na sala do centro de comando. Já havia rastreado a mensagem: vinha de Londres. Pender rapidamente consultou um arquivo em sua escrivaninha. O Phoenix era um grupo de pesquisadores sediado em Westminster, perto do palácio de Buckingham. Ninguém sabia exatamente a quem pertencia. Pender tinha muitas coisas em sua mente. Em breve o Wall Street Journal publicaria uma matéria que lançaria alguma dúvida sobre as dezenas de milhares de russos mortos. Pender conhecia o jornalista que a escrevera. Apesar de ser um bom repórter, era um pouco preguiçoso e tinha a reputação de não dar continuidade a uma investigação se as coisas ficassem difíceis ou se seu ponto de vista se tornasse impopular. Pender instruiu seu pessoal a espalhar na internet quatro histórias que indicavam que, embora as informações sobre o passado de alguns dos milhares de russos mortos pudessem estar incorretas, a causa disso eram falhas nos registros do governo e isso não deveria, de modo algum, diminuir a importância dessa indiscutível execução em massa. Diminuí-la era manchar a memória das pessoas assassinadas. Pender também tomaria providências para que vários “especialistas” aparecessem em rede nacional para provar, da forma mais impactante possível, esse ponto de vista. Pender estava certo de que o repórter do Journal, sem querer ser chamado de cínico e puxa-saco de um ditador, nunca mais chegaria perto daquele assunto. Também ficara sabendo que a BBC faria uma reportagem, mas a produtora responsável ainda não sabia ao certo que posição adotar. Pender lhe enviara um bilhete anônimo e três artigos “publicados”, escritos por seus ghost-writers, dando à produtora atormentada uma ideia inspirada, que servia aos objetivos de Pender e Creel, de como fazer seu programa. Ele estava ansioso por assistir a ele. Contudo, Pender intuía que esse Phoenix Group poderia ser exatamente o tipo de coisa a que Creel o instruíra a prestar atenção. Por isso encaminhou por e-mail todas essas informações para seu cliente. Depois voltou a fazer o que fazia melhor: vender a verdade para um mundo crédulo. Nunca ninguém tinha inventado um jogo mais divertido do que aquele.
NICOLAS CREEL ESTAVA SENTADO no luxuoso home theather de sua propriedade na Riviera Francesa, assistindo ao fim de O resgate do soldado Ryan. Adorava esse filme, não por causa dos atores de primeira linha e da excelente direção ou da mensagem moral dessa clássica história de guerra. Não, ele gostava era de ver o mundo em guerra, porque isso tornava a morte muito nobre. Creel tinha conquistado sua fortuna fabricando e vendendo máquinas capazes de matar milhares e até mesmo milhões de pessoas. Ainda assim, era um homem pacífico. Nunca tinha agredido ninguém por raiva; jamais havia sequer disparado uma arma. Detestava violência. Ganhava mais dinheiro quando o mundo estava em paz – um tipo muito específico de paz. Na verdade, era apenas uma sensação de paz entremeada pelo medo de que, a qualquer momento, pudesse estourar uma guerra. Para Creel, a paz baseada em um terror oculto era a melhor de todas. Ele adorava O resgate do soldado Ryan por outro motivo. A Segunda Guerra Mundial era o conflito clássico do bem contra o mal, uma guerra nobre que permitira a uma merecedora geração de americanos cumprir seu destino e se tornar a “mais notável” das gerações. Independentemente de o mundo estar ou não consciente disso, um conflito assim estava acontecendo naquele momento. E Creel posicionava jogadores globais, que não suspeitavam de nada, de modo que, quando chegasse a ocasião, estivessem prontos para vencer o mal e tornar o mundo mais seguro do que era havia décadas. É claro que a curto prazo aquilo seria um pouco turbulento, mas sempre havia vítimas. A longo prazo, tudo valeria a pena. Ele se levantou, foi para seu quarto e deu um beijinho na bochecha de Hottie, que estava na cama, dormindo, depois de lhe prestar seu serviço usual. Ao olhar para ela, Creel soube que aquilo estava chegando ao fim. Hottie gostava de sua recém-descoberta riqueza, seu status social e também de exagerar um pouco na bebida. Costumava gritar com os empregados, aparecia quando não tinha que estar presente e conseguia aterrorizar os filhos já crescidos de Creel, frutos de seus casamentos anteriores, sempre que eles iam visitar o pai. Isso não era necessariamente ruim, porque Creel não morria de amores por nenhum de seus filhos. Ainda assim, os ataques de raiva podiam ser inadequados. Na verdade, sua querida mulher era um exemplo perfeito de insegurança. Por trás do corpo de supermodelo, escondia-se uma educação falha; ela mal completara o ensino médio. Porém, quando ele a vira desfilando naquela passarela em Nova York, soube que tinha que tê-la, porque todo mundo a desejava desesperadamente. Creel sempre quis ser o primeiro. Como costumava fazer à noite, foi trabalhar em seu escritório. O espaço provavelmente não era tão grande quanto se esperaria que um homem tão rico tivesse, mas era eficiente. Ele se sentou à escrivaninha, ligou o computador e viu o e-mail de Pender com os arquivos anexados. Creel os leu atentamente, e ficou bastante interessado. Phoenix Group? Aquilo não lhe lembrava nada. Ele deu um telefonema e fez um pedido: – Descubra quem exatamente está por trás do Phoenix Group, um grupo de pesquisadores sediado em Londres. Faça isso o mais rápido possível. Os instintos de Creel lhe diziam que essa poderia ser a peça que faltava para ele completar seu grande quebra-cabeça. Talvez precisasse de um pouco de sorte, mas até mesmo os mercadores da morte bilionários às vezes tinham direito a ela. Várias horas depois seu desejo se tornou realidade. Seu pessoal era muito bom. Eles haviam derrubado várias fachadas que encobriam o verdadeiro dono do Phoenix Group. E, quando alguém se dava todo aquele trabalho para se esconder, geralmente tinha um bom motivo para isso. Creel mal podia acreditar em sua sorte. O dono do Phoenix Group não tinha laços com o Arizona. Supostamente a fênix tinha origem egípcia. Mas também provinha de outra parte do mundo. Naquela terra antiga simbolizava poder enviado dos céus. Também significava lealdade e honestidade. Não podia ser mais perfeito. Ao telefone, Creel disse: – Mantenha o prédio do Phoenix Group sob vigilância 24 horas por dia. E quero arquivos completos sobre todos que trabalham lá. E as plantas de cada parte do prédio. Nenhum detalhe é insignificante. Então telefonou para Caesar. Estava chegando a hora de suas tropas da linha de frente entrarem em ação.
SHAW ESTAVA NO CASTELO de Heidelberg, de pé em frente ao maior barril de vinho do mundo. Tinha voado de Edimburgo para Frankfurt na noite anterior e dirigido até Heidelberg naquela manhã. Dessa vez sua missão era relativamente fácil: entregar alguns papéis a um homem que os passaria adiante. Depois de completar a tarefa, visitaria a livraria dos pais de Anna no vilarejo de Wisbach. Ainda deveria ir? Frank tinha deixado claro que a escravidão de Shaw não terminaria tão cedo. Na verdade, poderia só terminar com a morte dele. Então qual era o sentido de ir a Wisbach? Não poderia se casar com Anna e continuar a trabalhar para Frank. Nunca deveria ter feito o pedido. Agora que o fizera, tinha que sair da vida dela e deixar que outra pessoa lhe desse o que ele não podia lhe oferecer. Essa seria uma atitude nobre e altruísta, mas, definitivamente, Shaw não se sentia assim. Não queria perder Anna. Não podia perdê-la. Dirigiria até Wisbach. Quem sabe, no caminho, não encontrasse miraculosamente um modo de sair desse pesadelo? Meia hora depois, os papéis foram perfeitamente entregues a um jovem que parecia um universitário americano, com um boné do Red Sox, jeans surrados e tênis Nike. Shaw continuou a representar seu papel de turista tirando fotos do lugar e aprendendo sobre a história de um dos castelos mais famosos da Alemanha e suas muralhas de 7 metros de espessura. Quando sentiu que era seguro ir embora, desceu quase correndo a colina até seu carro alugado e dirigiu para Wisbach. www Shaw margeou Karlsruhe a caminho de Wisbach. Como Anna tinha dito, era fácil achar a livraria, que ficava na rua principal do vilarejo. Natascha Fischer foi encontrá-lo na porta. A mãe tinha a mesma altura e beleza de Anna. Contudo, enquanto a filha era falante e sociável, Natascha era reservada e não olhou nos olhos de Shaw quando ele se apresentou. A livraria era pequena. As estantes eram boas, de pinho envelhecido e nogueira escura. Havia uma escada corrediça encostada em uma coberta por livros antigos e, em outra, ficava uma grande escrivaninha repleta de papéis. Um homem ainda maior do que Shaw estava sentado ali. Wolfgang Fischer se levantou e estendeu a mão. Anna lhes avisara que ele apareceria. Natascha pôs uma placa de “Fechado” na porta e a trancou. Então seguiu seu marido e Shaw por uma porta que levava ao apartamento contíguo, onde os Fischer moravam. Assim como a livraria, o apartamento era limpo e bem decorado, com muitas fotos de Anna, da infância à idade adulta. Enquanto Natascha preparava café, Wolfgang pegou uma pequena garrafa de conhaque dentro de um armário. – Uma ocasião como esta exige algo mais forte do que café, não acha? – perguntou Wolfgang em inglês, mas com forte sotaque alemão, que fez Shaw ter um pouco de dificuldade para entendê-lo. Wolfgang serviu as bebidas, se sentou e olhou com ansiedade para Shaw, que se apoiou nervosamente no console de madeira rústico da lareira. – Anna nos falou muito sobre você – começou Wolfgang em tom encorajador. Natascha voltou trazendo uma bandeja com café e bolo. Ao ver o copo de conhaque na mão do marido, lançou-lhe um olhar reprovador. – Ainda não são quatro horas – disse, em tom de censura. Wolfgang deu um meio sorriso. – Shaw ia dizer alguma coisa. Natascha sentou-se e serviu o café, mas lançou olhares ansiosos para o visitante. Shaw sentiu o suor manchando suas axilas. Quase nunca suava de nervoso, nem mesmo quando atiravam nele. Sentiu-se como um colegial em seu primeiro encontro. Estava com a boca seca e suas pernas pareciam incapazes de sustentar seu peso. – Vim aqui pedir algo a vocês – disse por fim, sentando-se de frente para os pais de Anna. Eu também poderia simplesmente informar. Olhou diretamente para Wolfgang. – Teria algo contra eu me casar com sua filha?
O homem olhou de relance para a esposa, seus lábios se curvando em um sorriso. Natascha enxugou os olhos com um guardanapo. Wolfgang se levantou de repente, puxou Shaw para si e lhe deu um abraço tão apertado que fez as costelas dele doerem. Rindo, disse em voz alta: – Isso responde à sua pergunta? Natascha se levantou com agilidade, segurou com firmeza a mão de Shaw na dela, deu-lhe um beijo no rosto e disse em tom calmo: – Você fez Anna muito feliz. Ela nunca falou de ninguém como fala de você. Nunca. Não é, Wolfie? Ele assentiu com a cabeça. – E ela também faz você feliz, não é? – Mais feliz do que nunca fui. – Quando vai ser o casamento? – perguntou Natascha. – Será aqui, é claro, onde a família dela está. Wolfgang a olhou atravessado. – E quanto à família de Shaw? Talvez eles não queiram vir a um lugar tão pequeno como este. – Ele deu um tapinha no braço de Shaw, infelizmente no ponto em que este havia sido ferido pela bala na Escócia. Tudo que Shaw pôde fazer foi não gritar de dor. – Pode ser aqui – disse ele. – Eu... não tenho família. Os Fischer lhe lançaram um olhar curioso. – Sou órfão – explicou Shaw. O lábio superior de Natascha tremeu. – Anna não nos contou isso. Sinto muito. – Mas agora você tem uma família – disse Wolfgang. – E uma bem grande. Só em Wisbach há dez Fischer. Se incluir Karlsruhe e Stuttgart, há muitos mais. Na Alemanha, milhares, não é, Tasha? – Mas nem todos virão para o casamento – apressou-se a dizer Natascha. – Netos – disse Wolfgang, olhando para Shaw com um sorriso largo no rosto. – Finalmente terei netos. Você e Anna terão uma família grande, é claro.
– Wolfgang – repreendeu-o Natascha, severa. – Isso não é da nossa conta. Anna não é mais uma criança. Ela tem uma carreira muito importante. E isso está nas mãos de Deus. Queríamos muitos filhos, mas só tivemos Anna. – Bem, então não uma família enorme – emendou Wolfgang. – Não mais que quatro ou cinco filhos. – Faremos o melhor que pudermos – respondeu Shaw, sentindo-se desconfortável. – Anna disse que você é consultor – continuou Wolfgang. – Presta consultoria em que área? Shaw se perguntou se Anna havia sugerido essa linha de questionamento para forçá-lo a contar a seus pais o que já havia lhe contado. – Relações internacionais – respondeu ele. – Há muito trabalho nessa área? – perguntou Wolfgang. – Mais do que se pode imaginar. – Então Shaw acrescentou: – Bem, na verdade é um pouco mais do que isso. – Enquanto eles o olhavam ansiosamente, Shaw se apoiou na parede. A madeira resistente pareceu aumentar sua determinação. – Trabalho para uma agência que ajuda a tornar o mundo mais seguro. Os pais de Anna trocaram olhares. Wolfgang disse: – Você é uma espécie de policial? Um policial do mundo? – Algo assim. Mas pretendo me aposentar quando me casar com Anna. Felizmente, eles só fizeram mais algumas perguntas sobre o trabalho de Shaw, talvez percebendo que poderia envolver informações sigilosas. Se eles soubessem. Shaw ficou com os Fischer por mais de uma hora. Assim que sumiu de vista, um homem bateu à porta deles. Quando Natascha a abriu, ele disse: – Sra. Fischer, precisamos conversar sobre o homem com quem acabou de se encontrar. Ele passou por ela sem ser convidado. Quando Wolfgang se juntou à esposa, o homem sugeriu:
– Acho que vocês dois deveriam se sentar.
MAIS UMA VEZ, PARA grande satisfação de Nicolas Creel, a Rússia fez algo totalmente previsível. Isolada e pressionada ao extremo, resolveu aliviar a tensão atirando de um avião Tu-160 a mais temida de todas as bombas não nucleares. Sua explosão termobárica equivalia a 55 toneladas de TNT, ou cinco vezes mais que a potência de uma bomba similar que os Estados Unidos haviam jogado anteriormente, abrindo uma cratera com um raio de aproximadamente 500 metros e pintando o céu com uma nuvem em cogumelo apavorante, mas não radioativa. A detonação foi chamada pelo presidente Gorshkov de parte de um treinamento de prontidão e logo depois ele colocou as Forças Armadas russas em alerta máximo. Também declarou, da maneira mais impactante, que, quando a Rússia descobrisse quem estava por trás daquela campanha de difamação, isso seria considerado um ato de guerra. – Tenho pena do país ou da organização por trás disso, seja quem for, independentemente de quanto poder tenha – acrescentou Gorshkov de modo ameaçador. Aquilo era o equivalente verbal de um sinal obsceno para os Estados Unidos, que haviam negado veementemente qualquer conexão com a campanha antirrussa. No entanto, nos círculos diplomáticos essa negativa era considerada quase uma admissão de culpa, afinal quem, além dos americanos, tinha motivo ou dinheiro suficiente para fazer uma coisa daquelas? www Nicolas Creel riu ao ler essa última notícia. Estava na sala de conferências de seu Boeing, sobrevoando o Atlântico a 39 mil pés de altitude. Caesar encontrava-se sentado de frente para ele. Creel virou o jornal para que Caesar pudesse ler a manchete sobre a bomba que a Rússia havia lançado e as ameaças de Gorshkov. – Um ato de guerra? – zombou Creel. – Para entrar em uma guerra você precisa de um exército e os russos não têm um. Estão sentados sobre uma montanha de dinheiro de petróleo, mas por causa de um decreto presidencial de uma idiotice inacreditável não podem gastar mais de 3,5 por cento de seu produto nacional bruto com as Forças Armadas. Isso representa 22 bilhões de dólares por ano, dois quais apenas 8 bilhões são destinados à compra de armamentos. Não se pode criar sistemas de armas com esse tipo de restrição estúpida. Veja os americanos. Incluindo orçamentos suplementares, eles gastam mais de 700 bilhões de dólares por ano em defesa, mais de 20 por cento do orçamento federal. Os Estados Unidos gastam mais em armas do que todos os outros países do mundo juntos. E é assim que tem de ser. O status de superpotência não é barato, mas com certeza vale a pena, porque, quando você quer provocar alguém, pode fazer isso, meu caro. Creel apontou para um gráfico estatístico no jornal que detalhava o poderio militar russo. – Os russos podem ter cinco divisões do Exército prontas para o combate. Cinco, se tiverem sorte. Antes, construíam um terço dos navios de guerra do mundo. Agora não podem sequer construir um porta-aviões, porque os idiotas não têm um único estaleiro no país grande o suficiente para fazer esse trabalho. Isso exige um pouco de planejamento, meu amigo. E, como o próprio governo não usa seu dinheiro para comprar nada, os fabricantes de armas russos precisam exportar para a Índia, a China e outros imbecis que queiram pagar barato e não sejam muito exigentes. Os americanos, ingleses, alemães e franceses não considerariam gastar nenhum centavo com o lixo russo. E em 15 anos os comunistas reformados não acrescentaram nenhuma aeronave a suas forças de defesa. Eles tinham mais de 3 mil aviões, mas agora estão perto do padrão do Ocidente e metade de suas bases militares não dispõe sequer de combustível. Nem mesmo conseguiram verba para seu avião de caça de última geração. Ainda têm armas nucleares, mas não podem usá-las. Se dispararem uma, os Estados Unidos retaliarão com dez. Diante dessa ideia, Creel fez uma pausa. Em seguida prosseguiu: – A louvada Marinha deles consiste em vinte navios decrépitos, inclusive um porta-aviões de décadas atrás, sem contar os submarinos que regularmente vão parar no fundo do oceano e ficam por lá. Os americanos têm trezentos navios, inclusive três porta-aviões da classe Nimitz com armas nucleares. Sem falar nos cerca de doze submarinos balísticos da classe Ohio. Cada um deles pode destruir um país inteiro. Sei disso porque foram construídos por uma de minhas subsidiárias. Os Estados Unidos poderiam acabar com a Ameaça Vermelha em uma semana sem fazer nenhum esforço. – Creel riu de novo. – Mas ainda assim estou feliz.
Caesar terminou de ler o artigo. – Por quê? – perguntou. – Obviamente os russos não vão comprar o que você vende. Creel parou um segundo para acender um charuto. – No ano passado, o presidente Gorshkov, em um raro momento de lucidez, implementou um novo programa de armamento com duração de oito anos, no valor de quase 5 trilhões de rublos, ou 186 bilhões de dólares. Isso é muito mais do que o orçamento de defesa atual. – O.k., entendo o seu interesse. – Foi o que pensei quando mandei meu pessoal de lá pôr o plano em prática. Mas isso não me empolgou. Foi apenas o começo. – Desculpe, mas não compreendo, Sr. Creel. O bilionário sorriu. – Você e o resto da civilização. Deixe que eu explique. A maioria desses dólares vai para empresas russas. Mas, se os russos gastarem o mesmo percentual do produto nacional bruto que os Estados Unidos gastam em defesa, isso representaria 70 bilhões de dólares por ano a mais do que estão gastando agora, fora o novo programa de armamento. A máquina de guerra russa não vai dar conta de todo esse trabalho. E o desenvolvimento de que eles precisam demoraria uns dez anos. Isso significa que terão de recorrer ao Ocidente. Para ser mais exato, a mim. Corrigindo pela inflação, o total é de quase 1 trilhão de dólares. Digamos que a Ares faça 70 por cento desse trabalho. Serão 700 bilhões de dólares. Isso me empolga. – Mas eles gastariam o mesmo que os Estados Unidos? – Sim, se achassem preciso. – Konstantin? Essa campanha publicitária que você preparou? Acha que os forçará a se tornarem como a velha União Soviética e encher seus cofres? – Não é tão simples assim. É certo que a campanha da Ameaça Vermelha os isolou do resto do mundo. Neste momento você poderia dizer que Gorshkov come bebês no café da manhã e metade da população mundial acreditaria. Mas, para meu plano funcionar, tenho que aumentar as apostas. Os russos não são bobos. Precisam de um bom motivo para pagar pelo melhor.
– Então como vai fazer isso? – É aí que você entra. Preciso de uma dúzia de homens russos ou que pelo menos pareçam russos. – Sem problemas. O desemprego está alto por lá. Há russos de sobra dispostos a matar com revólveres, facas ou usando as próprias mãos. Isso não faz diferença para eles. – Não pensei que fizesse. Também preciso que alguns sejam gênios da informática. – Mais uma vez, sem problemas. A Rússia tem os melhores hackers do mundo. Creel se inclinou para a frente e pegou um arquivo. – Ótimo. Aqui estão as tropas da linha de frente.
ANNA FISCHER ESTAVA PRESTES a abrir a porta de seu apartamento em Londres quando o homem subiu as escadas atrás dela. Percebendo a presença de alguém e sempre atenta após o assalto em Berlim, ela se virou, os dedos apertando o spray de pimenta preso ao seu chaveiro. O homem já tinha levantado seu distintivo, mostrando-o a ela. – Srta. Fischer? Sou Frank Wells. Gostaria de conversar sobre Shaw. Anna olhou para o distintivo e depois para ele. – Não conheço essa agência – disse ela. – A maioria das pessoas não conhece. Podemos entrar? – Não recebo estranhos em meu apartamento. Você disse que conhece Shaw, mas pode estar mentindo. – Você saberia. Uma mulher com todos os seus diplomas não é nenhuma boba. – Todos os meus diplomas? Como sabe disso? – Tenho um arquivo de 5 centímetros sobre Anastasia Brigitte Sabena Fischer. Seus pais, Wolfgang e Natascha, vivem em Wisbach, Alemanha, onde dirigem uma livraria. Você é filha única. Campeã de natação. Possui um diploma de Cambridge, entre outros. Teve um cargo nas Nações Unidas e agora trabalha no Phoenix Group, aqui em Londres. – Frank olhou para o anel no dedo dela. – E está noiva de Shaw. – Ele desviou o olhar do rosto atônito de Anna e olhou de relance para a porta da frente. – Agora podemos ir ao seu apartamento? É importante. Eles se sentaram na pequena saleta com vista para a rua. Frank olhou ao redor. – Um belo lugar. – Por que veio aqui? – Como eu disse, para conversar sobre Shaw. O mesmo que meus homens fizeram com seus pais.
– Meus pais! Não, você está enganado. Eles teriam telefonado... – Eu pedi que não fizessem isso, para que eu pudesse me encontrar com a senhorita primeiro. – Frank lançou-lhe um olhar penetrante. – Ele a pediu em casamento em Dublin, não foi? – Não vejo por que isso seja da sua conta. Frank a ignorou. – E disse que pretendia se aposentar. Anna se viu assentindo involuntariamente com a cabeça. – Deixe-me lhe dizer a verdade. Gostaria disso? Os olhos de Anna se encheram de lágrimas. Ela as limpou com a mão e se recompôs. – Se tem algo a me dizer, diga. Mas decidirei por mim mesma se é verdade. Frank riu e fez um sinal afirmativo com a cabeça. – É justo. – Ele se inclinou para a frente e virou a cabeça, para que Anna pudesse ver o buraco em seu couro cabeludo. – Está vendo esta pequena marca? Foi cortesia de Shaw, um tiro que ele deu em meu cérebro quando eu estava tentando prendê-lo. Anna o olhou friamente. – Prendê-lo? Por quê? – Isso é confidencial. Mas posso garantir que não foi por não pagar o estacionamento. Depois que me recuperei e o reencontrei, ele começou a trabalhar para nós. – Trabalhar para vocês? Depois de quase tê-lo matado? Você disse que queria prendê-lo. Se ele é um criminoso e atirou em você, por que não está preso? Frank pegou um charuto. – Se importa se eu fumar? – Sim. Ele deixou o charuto de lado. – Meu mundo não envolve exatamente bem e mal, certo e errado. Shaw não está preso por um único motivo. – Qual? – perguntou ela impetuosamente.
– Seu noivo possui algumas habilidades incríveis. Ninguém com quem já trabalhei nesta área consegue tocar nele. Shaw é capaz de entrar em uma sala cheia de terroristas preparados para matar, arrancar os turbantes deles, derrubá-los e sair vivo. Um tipo de coisa muito difícil. Nesses casos, costumamos abrir uma exceção. – Ele passou a mão na marca em sua cabeça. – Mesmo que a exceção quase tenha me matado. – Então Shaw trabalha para vocês. Ele me disse que trabalhava para uma agência encarregada do cumprimento da lei. – Disse, foi? Ele também contou que anda pelo mundo sem nunca saber se vai voltar vivo? – Frank a estudou atentamente. Anna entrelaçou nervosamente os dedos. – Ele disse... que agora tem um cargo administrativo. – Administrativo? – Frank deu um sorriso largo. – E também falou que estava se aposentando. – Ele se inclinou para tão perto de Anna que ela pôde sentir seu hálito de tabaco. – Vou lhe dizer uma coisa: pessoas como Shaw não se aposentam. Ele vai trabalhar até morrer ou até não precisarmos mais dele. Se tentar ir embora antes disso, vai para a pior prisão que eu puder encontrar. – Frank se recostou. – Por que veio aqui me dizer isso? – Porque achei que a senhorita precisava saber toda a verdade. – O homem que você me descreveu não é o mesmo que eu conheço. Ele salvou minha vida na Alemanha. É o homem mais gentil e maravilhoso que já encontrei. – Ele mata pessoas, Srta. Fischer. Está certo que são pessoas más, mas ainda assim ele as mata. Eu também mato. Ou matava. Veja bem, eu tenho um cargo administrativo. Reconheço que seu noivo é corajoso. Nunca vi tanto sangue-frio. Mas também o vi cortar um homem, daqui até aqui. – Ele passou um dedo da cintura ao pescoço. – O sujeito mereceu, mas Shaw não brinca em serviço. Quando sai à caça é um macho Alfa com A maiúsculo! Entende o que quero dizer? Ele parou e a estudou de novo, um sorriso surgindo em seu rosto.
– Sabe de uma coisa? Tenho que confessar que estou impressionado. Achei que a senhorita ia começar a chorar cinco minutos atrás. – Já amou alguém, Sr. Wells? – perguntou Anna subitamente. Os olhos de Frank se estreitaram e seu ar irônico desapareceu. – O quê? – Você parece achar graça nisso tudo. Gosta de ver os outros sofrerem? É isso que sua agência procura em seus funcionários? Insensibilidade? Falta de compaixão? – Veja bem, vim até aqui lhe dizer a verdade. Anna foi até a porta e a abriu. Frank ficou absolutamente imóvel por um momento e depois deu de ombros. – O.k., não pode dizer que não a avisei. Quando Frank passou por ela, Anna disse: – Por que o odeia tanto? – Ele me deu um tiro na cabeça! – Não acho que esse seja o verdadeiro motivo. – O que está fazendo, bancando a psicanalista? – Nunca teve ninguém em sua vida, não é? Alguém com quem realmente se importasse. Ou que se importasse com você. – Isso não tem a ver comigo! – Acho que você é o único que pode responder a isso com sinceridade. Boa noite, Sr. Wells. Quando fechou a porta atrás dele, Anna pôs as mãos no rosto, reprimindo um soluço. Seu telefone tocou. Ela por pouco não o atendeu. – Anna Fischer, por favor – disse a voz do outro lado da linha. – Sou eu – respondeu Anna, um pouco hesitante. – Quem fala? – Conhece alguém chamado Shaw?
Anna enrijeceu. – Por que quer saber? – É um homem alto, de cabelos escuros e olhos azuis? Um nó se formou na garganta de Anna. Por favor, meu Deus, não permita que... Isso é demais. – Sim, eu o conheço – conseguiu dizer. – Então acho que precisamos nos encontrar. – Ele está bem? – perguntou Anna com a voz entrecortada. – Estava quando o deixei. Mas isso não significa que ficará bem. – O que quer dizer? Quem é você? – Meu nome é Katie James. E acho que Shaw está com um problema sério.
AS DUAS MULHERES ESTAVAM sentadas frente a frente em um café na Victoria Street. Era uma tarde fria e úmida de chuva intermitente; o tipo de dia que os londrinos conhecem muito bem. Katie James mexeu seu café com a colher enquanto Anna Fischer olhava pela janela para uma procissão de guarda-chuvas. Uma lágrima escorreu pelo seu rosto. Katie fingiu não notar. – Você me contou o que aconteceu com Shaw em Edimburgo, mas não me explicou como me encontrou – disse Anna. – Achei um recibo de compra de um livro seu entre os pertences dele. Lembrei que, vários anos atrás, você havia discutido esse livro numa palestra em Haia cujo tema era o equilíbrio entre a preservação das liberdades civis e a luta contra o terrorismo. Fiz a cobertura do evento para o jornal em que trabalho. Na época eu estava encarregada de uma matéria no Oriente Médio e o assunto era relevante para aquela parte do mundo. Foi uma discussão brilhante. – Sim, pena que ninguém prestou atenção. – Estou certa de que muitas pessoas prestaram, Srta. Fischer. Anna ergueu os olhos das sobras do almoço em que mal tocara. – Por favor, me chame de Anna. Deveríamos nos chamar pelo primeiro nome depois de tudo o que você me contou sobre meu noivo – acrescentou ela, em tom resignado. – E você não tinha a menor ideia? – É claro que eu tinha alguma ideia. E minhas suspeitas. – Mas nunca perguntou a Shaw sobre isso? – Perguntei. Depois que ele me pediu em casamento – acrescentou Anna, com a voz embargada. Quando ela começou a fungar, vários clientes se viraram para olhá-la. – Gostaria de ir para um lugar mais reservado? – sugeriu Katie em voz baixa. Anna enxugou os olhos e se levantou.
– Meu escritório. Fica perto daqui. Alguns minutos depois as duas estavam sentadas no escritório repleto de estantes no Phoenix Group. Uma secretária lhes trouxe chá quente e depois se retirou. Katie olhou para a sala com interesse. – O que vocês fazem aqui? – perguntou, obviamente tentando quebrar um pouco o gelo. – Pensamos – respondeu Anna. – Pensamos sobre temas globais de suma importância que a maioria das pessoas deixa de lado porque não tem tempo, experiência nem vontade de lidar com eles. Depois escrevemos relatórios técnicos, publicamos nossos livros em pequenas tiragens, damos palestras em salas parcialmente cheias e o resto do mundo fica feliz nos ignorando totalmente. – É tão ruim assim? – É. – Anna tomou um gole de chá. – Você disse que Shaw foi ferido? – Seu rosto se contraiu, embora ela tentasse parecer despreocupada. – Ele nem pareceu se importar com isso. Disse que a bala não entrou ou algo assim. Mas estavam atirando nele. Seu próprio pessoal, os mocinhos. – Ou Shaw disse que eram os mocinhos – observou Anna, sarcástica. Por um momento Katie ficou confusa. – Bem, quanto a isso só tenho a palavra dele. Não tive a oportunidade de pedir a carteira de identidade de ninguém. Anna se levantou e começou a andar pela sala, descrevendo ângulos precisos de 90 graus. – Shaw bem que poderia não ser quem eu pensei que era. – Ele salvou minha vida, Anna. E me deixou ir. Como se houvesse despendido toda a sua energia, Anna desabou na cadeira, pôs uma das mãos no rosto e soluçou baixinho. Katie se levantou e a tocou no ombro de um modo confortador. – Há algo mais?
Anna respirou profundamente e limpou o rosto com um lenço de papel. – Shaw foi visitar meus pais, na Alemanha – falou. – Eu lhe pedi que fosse. Para pedir minha mão ao meu pai. – Ela ergueu os olhos para Katie. – Sei que isso é uma bobagem. Mas eu só queria... – Ver se ele faria isso? Anna fez um sinal afirmativo com a cabeça. – E o que aconteceu? – perguntou Katie. – Meu pai deu seu consentimento, muito alegre. – Então qual é o problema? – Depois que ele foi embora, um homem chegou. Disse coisas sobre Shaw aos meus pais. Coisas muito perturbadoras. Então, na noite em que você me telefonou, um homem veio me ver. Era de uma agência internacional da qual nunca ouvi falar. Disse que Shaw trabalhava para eles. – Então ele é um homem bom! – exclamou Katie. Mas Anna balançou a cabeça. – Ele disse que Shaw era forçado a trabalhar para eles. – Forçado? Como? – Para não ser preso por crimes graves. Esse homem me disse que Shaw lhe deu um tiro na cabeça e quase o matou. – Se Shaw fez isso, por que simplesmente não o prenderam? Por que fizeram um acordo com ele? – Eu fiz a mesma pergunta. E esse homem, que se apresentou como Frank Wells, disse que Shaw era muito bom em fazer coisas que eles precisavam que fossem feitas. Que era corajoso e tinha sangue-frio. Que era capaz de entrar em situações perigosas e sair vivo como ninguém mais. – Pelo que vi, acredito nisso. Então ele está trabalhando para os mocinhos. – Wells disse que Shaw mata pessoas. – Quando elas tentam matá-lo. – Por que você o defende tanto? – perguntou Anna, com um tom subitamente irritado. – Mal o conhece. Você mesma disse que só o viu uma vez.
– É verdade, mas valeu por muitas. Você aprende muito sobre alguém numa situação dessas. Não há a mínima chance de fingir. Shaw salvou minha vida e me deixou ir, Anna. Então acho que devo isso a ele. Mas o que eu acho não importa. O que importa é no que você acredita. – Eu achei que conhecia Shaw. – Anna fez uma pausa. – Meu pai retirou seu consentimento. – Você é adulta, não precisa da permissão de seu pai para se casar. – Você se casaria com um homem nessas condições? – Eu falaria com ele sobre isso antes de tomar qualquer decisão. – Eu... eu tenho medo – admitiu Anna. – Anna, se Shaw quisesse machucar você, já teria feito isso. – Não tenho medo de que ele me machuque fisicamente. Mas e se ele de fato cometeu os crimes dos quais aquele homem falou? E se admitir isso para mim? Não posso conviver com isso. Não quero saber. – Mas então ele não poderá lhe contar a sua versão da história. Isso não é justo. – E ele me disse que tem um cargo administrativo. Pelo que você me contou, isso não é verdade. Então ele mentiu para mim. E disse que estava se aposentando. Segundo Frank Wells, isso não é uma opção. Se ele deixar o trabalho, será preso. – Anna, eu não tenho todas as respostas, mas tenho uma sugestão. Converse com Shaw. Ele precisa de você agora. Seu próprio pessoal tentou matá-lo. Talvez esteja tentando sair dessa e tenham lhe dado um aviso mortal. Mas você tem que conversar com ele. Anna se recompôs. – Quero lhe agradecer por ter vindo aqui me dizer tudo isso. – Não há de quê – disse Katie, um pouco aborrecida. – Mas você não vai conversar com ele, vai? – Por favor, isso não é assunto seu. A porta se abriu e um homem entrou.
– Anna, Bill quer falar com você um minutinho. – Já volto – disse ela, virando-se para Katie. – Não há muito mais a dizer, não é? Anna saiu apressadamente enquanto Katie vestia sua capa de chuva. Seus olhos pousaram em alguns papéis na escrivaninha de Anna. Sempre curiosa, ela chegou mais perto. – A Ameaça Vermelha – leu no alto de uma página impressa. A escrivaninha de Anna estava cheia de pesquisas relacionadas com a história número um do mundo, junto com anotações feitas à mão. O olhar de Katie percorreu a escrivaninha, tentando ver o máximo possível: nomes, datas, lugares, sites. Tinha ótima memória de curto prazo. Quando saísse, anotaria tudo aquilo. Não sabia por quê, mas anotaria. Ela era assim. Então seus olhos viram algo mais. Katie pegou a foto sobre a escrivaninha. Shaw e Anna estavam abraçados, parecendo muito apaixonados, com o Arco do Triunfo ao fundo. – Bem, se duas pessoas não conseguem se apaixonar em Paris, não estão destinadas a ficar juntas – disse para si mesma em voz baixa. Katie ergueu os olhos quando Anna voltou apressada para a sala. – Está analisando a Ameaça Vermelha? – perguntou, apontando para a escrivaninha. – Só estou curiosa, como todo mundo – respondeu Anna. No momento seguinte viu o que Katie estava segurando. – Por favor, largue isso. Ao passar por Anna, Katie pôs a foto nas mãos dela e disse: – Não espere que um amor assim apareça de novo. A maioria das pessoas não o tem nem uma vez na vida. E falo por experiência própria. – Ela entregou a Anna um cartão de visita com um endereço no verso. – É onde estou hospedada em Londres, se quiser conversar um pouco mais. Katie saiu deixando Anna apertando a foto nas mãos e desceu as escadas.
SHAW ESTAVA NA SALA de espera da British Airways no aeroporto de Frankfurt. Junto com os outros passageiros, assistia ao noticiário em várias TVs espalhadas pela sala. Na tela, membros indignados do Senado dos Estados Unidos estavam no andar térreo do Capitólio se revezando em críticas aos russos e à sua derrocada para um estado autocrático comparável à máquina impiedosa montada por Stalin. Em outra tela, a BBC mostrava o Parlamento inglês dando o mesmo tratamento à antiga União Soviética. Num terceiro aparelho, a chanceler alemã expressava sua opinião. Embora ela pedisse calma e que não fossem feitos julgamentos apressados, deixou claro que os russos tinham muito do que se envergonhar. O presidente francês seguiu a mesma linha, ainda que fosse mais cauteloso do que outros líderes. Shaw não estava focado na grande questão política internacional. Havia tomado uma decisão. Voaria para Londres e diria a Anna toda a verdade sobre seu trabalho. Se ela ainda quisesse se casar com ele – algo de que duvidava –, encontraria um jeito de fazer as coisas darem certo. Estava realmente surpreso por não ter recebido notícias de Anna depois do encontro com os pais dela. Shaw havia telefonado e deixara uma mensagem dizendo que iria a Londres. Anna não retornara sua ligação, o que também não era comum. Ele pensava nisso quando os homens se aproximaram. Não precisaram mostrar suas credenciais; Shaw os reconheceu. Eram os homens de Frank. Alguns minutos depois, Shaw entrou em uma saleta nas profundezas do aeroporto. Frank e um outro homem que ele não reconheceu estavam sentados a uma mesa, cada um numa extremidade. Havia mais quatro homens ali, todos fortes e, Shaw presumiu, bem armados. – Fiz o trabalho em Heidelberg. Frank assentiu com a cabeça. – Eu sei. Um trabalho fácil, como o da Escócia. A propósito, como foi a viagem a Wisbach? Deu tudo certo para você? Aquilo não surpreendeu Shaw. Ele sabia que Frank seguia todos os seus passos.
– Na verdade, sim. Frank olhou de relance para os homens encostados na parede e lhes fez um sinal com a cabeça. Todos eles se aproximaram um pouco, formando uma barreira de corpos e armas entre Frank e Shaw. – Os Fischer são pessoas boas, não são? – disse Frank. – O homem que mandei lá realmente apreciou a conversa que teve com eles. E gostei muito de conhecer Anna quando a visitei em Londres. Fiquei surpreso com o pouco que ela sabia sobre você. Mas não se preocupe, porque agora ela já sabe de tudo. Seguiu-se um minuto de absoluto silêncio enquanto Shaw olhava para Frank, que sorria. Shaw avaliou rapidamente a situação. Eles o matariam muito antes de conseguir chegar até Frank. Mas, se os últimos seis anos tinham lhe ensinado algo, era a ter paciência. Ele se virou para o homem baixo, de pescoço grosso e cabelos cacheados, mais ou menos da sua idade, sentado à mesa. – Quem é ele, Frank? Seu chefe ou outro capacho? Se Frank ficou desapontado por Shaw não ter tentado atacálo, não o demonstrou. Apenas continuou a sorrir e fez um gesto com a mão para o outro homem. – Nem uma coisa nem outra – falou o desconhecido. – Meu nome é Edward Royce, do MI5. – Ele estendeu seu cartão para Shaw. – E o que é tão importante a ponto de me afastar de uma cadeira confortável e uma garrafa de Guinness, Sr. MI5? Royce olhou para Frank com as sobrancelhas levemente erguidas. – Sinto muito por incomodá-lo. – Não sente nada. E vá direto ao assunto. Preciso pegar um avião. – Shaw olhou diretamente para Frank ao dizer isso. Esse comentário fez Royce arquear novamente as sobrancelhas. – Bem, Sr. Shaw, para ser sincero, se tivesse escolha não estaria aqui. O MI5 está investigando esse fenômeno da Ameaça Vermelha com a Interpol. Acho que somos perfeitamente capazes de lidar com a situação, mas essa decisão não é minha. E meus superiores pediram ajuda ao pessoal do Sr. Wells. Foi ele quem recomendou que eu me encontrasse com o senhor. – O que quer que eu faça? – perguntou Shaw rispidamente. – Disseram-me que o senhor tem ótimos contatos em Moscou, fala russo fluentemente e consegue lidar com situações perigosas. Isso o torna único. – O tempo que passei na Rússia foi contra a minha vontade. Então talvez queira encontrar outra pessoa única para o serviço. – Não quer descobrir quem está por trás da Ameaça Vermelha? – Por quê? – perguntou Shaw incisivamente. – O que estão dizendo sobre a Rússia não é verdade? – Vai saber! – exclamou Royce. – Bem, um pouco é verdade, sim, sem dúvida. Mas a verdade não vem ao caso. De fato, é a última coisa de que precisamos. Como deve saber, o MI5 protege o Reino Unido de terroristas, espiões, extremistas e coisas desse tipo. O negócio da Ameaça Vermelha abriu a caixa de Pandora. Neste momento o mundo está em uma situação delicada. Muitos países são barris de pólvora prestes a explodir. – É mesmo? Acho que não vi os sinais de aviso – disse Shaw. Essa resposta provocou em Frank um riso de deboche. Royce se apressou a continuar: – De todo modo, essa campanha está levando os russos em uma direção que não interessa nem a nós, nem ao resto da União Europeia. Um Urso Russo ressentido e acossado é perigoso para todos, Sr. Shaw. Temos de acalmar a situação. Para isso, precisamos descobrir quem realmente está por trás de toda essa campanha. – Por que não se alia aos americanos? Eles podem arrancar as garras do urso. – Como sempre, os americanos estão seguindo seu próprio caminho nessa questão. Mas Wells concordou em deixá-lo trabalhar conosco. Disse que você chegou até a conhecer Sergei Petrov, que acabou de ser assassinado. Shaw olhou para Frank, que o encarou de volta, impassível.
– Foi muita generosidade de Frank oferecer meus serviços. Mas declino respeitosamente a oferta. – Está bem. Você é quem sabe – disse Royce, furioso. Frank se levantou. – Olhe, Shaw, se fizer isso, talvez possamos conversar sobre aqueles outros assuntos. – É mesmo? – Foi tudo o que Shaw pôde dizer para não saltar por cima da mesa e esganá-lo. – É mesmo. Estou sendo sincero com você, Shaw. Sempre sou. – Vou ter que responder depois. – O quê? Por quê?! – exclamou Frank. – Agora tenho algo mais importante a fazer. – Mais importante do que a ameaça de o mundo todo virar um inferno? – perguntou Royce. – Sim. – O que poderia ser? – perguntou o agente do MI5. – Preciso ver uma mulher – respondeu Shaw, encarando Frank antes de sair da sala. – Não era exatamente isso que eu esperava, Wells – vociferou Royce. Frank ficou sério vendo Shaw ir embora. – Também fiquei surpreso, mas por um motivo diferente. – Qual? O que você esperava? – Que ele tentasse me matar. – Deus do céu! E o homem trabalha para você! Vocês dois são loucos. – Na verdade, ele não trabalha para ninguém, Royce. – Mas você disse... – Sim... bem, Shaw é um caso especial. – Você tem outra pessoa capaz de fazer o ele faz? – Nem de longe.
ANNA QUASE GRITOU QUANDO acordou e viu o homem avultando sobre ela, deitada em sua cama, em seu apartamento em Londres. Ela se sentou e puxou os lençóis para cima, escondendo seu corpo. – O que você está fazendo aqui? – perguntou. Shaw se sentou na beira da cama. – Acho que você sabe – respondeu ele calmamente. – Como entrou? Ele mostrou uma chave. – Você me deu, lembra? – Lembro – disse Anna, sonolenta. – Fui ver seus pais, mas você já sabe disso. – E você sabe sobre o homem que os visitou depois? E o homem que veio me ver? – O que ele lhe disse? – Quer adivinhar? Não é muito difícil. O que eu preciso saber é: aquilo era verdade? – Anna, sinto muito. Nunca quis que isso acontecesse. – Você deveria saber que mentiras sempre ferem as pessoas. – Sei que você está chateada. E neste momento deve me odiar. Tem todo o direito, mas vim aqui lhe contar a verdade. – E eu simplesmente devo acreditar que desta vez é a verdade? Shaw olhou ao redor do quarto. Muitas horas felizes foram passadas ali. Ele conhecia cada centímetro do apartamento de Anna melhor do que qualquer outro lugar que já havia chamado de lar. – Tudo que posso fazer é tentar. – Deixe eu me vestir. Pode esperar na saleta. – Até parece que não vi você nua milhares de vezes. – Não vai me ver nua esta noite. Saia!
Shaw saiu e ela foi ao seu encontro alguns minutos depois, usando um roupão comprido. Continuava descalça. Eles se sentaram à pequena mesa em que ela e Frank haviam se sentado, diante da mesma vista para a rua. – Então explique – disse Anna laconicamente. – Frank Wells é meu superior na organização sobre a qual lhe falei. – Sim. Naquela em que você tem um cargo administrativo? A propósito, como isso funciona? Um trabalho interessante surge em sua bela e segura mesa? Shaw olhou para o chão. – Meu trabalho é muito perigoso. Quase nunca entro em uma missão certo de que sairei vivo. Essa é a verdade. Anna deixou escapar um gemido alto, mas depois se conteve. – E você faz isso porque tem um bom coração? – Sete anos atrás atirei na cabeça de Frank Wells, em Istambul. Ele tinha uma arma apontada para mim. Achei que fosse me matar. Quando percebi quem era, eu o levei para um hospital. Se não tivesse feito isso, ele estaria morto. Provavelmente Frank se esqueceu de mencionar essa parte. – Ele disse que estava tentando prender você por uma atividade criminosa. – Essa é a versão dele, mas isso não quer dizer que seja verdadeira. Anna se recostou e apertou o roupão em volta do corpo. – E qual é a sua versão? O que estava fazendo quando atirou nele? – Não posso contar. Só posso dizer que não sou o que Frank pensou que eu era. Mas realmente não posso provar. Anna olhou para ele sem poder acreditar. – Então devo aceitar sua palavra? Você não tem um bom histórico de sinceridade. Shaw refletiu por alguns minutos sobre aquilo. – O.k., mas isso não pode continuar, Anna. Estou falando sério. Chega. – Anna assentiu rapidamente com a cabeça, seu rosto tenso. – Naquele dia eu estava em Istambul para descobrir quem tentava me incriminar falsamente de trabalhar para um violento cartel de drogas que operava fora do Tadjiquistão. Naquela época eu era freelancer. Trabalhava, entre outros, para americanos, franceses e israelenses. Nenhuma dessas atividades era criminosa. – Quem tentaria incriminar você? – perguntou Anna, em tom um pouco mais conciliador. – Há muitos suspeitos. Meu trabalho tinha reduzido muitas atividades dos bandidos. E acho que a organização de Frank se envolveu, se convenceu de que eu tinha passado para o lado errado e ia me interrogar. Achei que Frank fosse uma das pessoas que estava tentando me incriminar, que tivessem preparado uma armadilha na Turquia e ele estivesse ali para terminar o serviço. Por isso, atirei nele antes que atirasse em mim. – Por que concordou em trabalhar para Frank se não estava errado? – Digamos que, se eu fosse a julgamento, nunca mais voltaria a ver a luz do dia. Eu não tinha nenhuma prova e o trabalho de incriminação era bastante convincente. Trabalhar com Frank não é exatamente fácil, mas pareceu a melhor alternativa. Acho que ele e seu pessoal suspeitavam de que aquilo fosse uma armação, mas, bonzinhos como são, em vez de investigar mais para provar minha inocência, usaram isso como desculpa para me obrigar a trabalhar para eles. – Então por que seu próprio pessoal atirou em você na Escócia? – Quem lhe contou isso? – perguntou ele bruscamente. – Talvez tenha sido Frank. – Não minta para mim, Anna. – Quem é você para me dizer isso? – Eu nunca menti. Só não lhe contei tudo. – Uma distinção mais do que absurda – retrucou ela. Por um momento Shaw pareceu zangado, mas depois sua expressão se abrandou. – Você está certa. De todo modo, concordamos em que eu trabalharia para eles por cinco anos e, se sobrevivesse, seria um homem livre. Continuei por quase seis anos, só por garantia.
– Por que continuou trabalhando para essas pessoas horríveis por mais um ano? Isso não faz sentido. – Queria ter certeza de que me deixariam ir. Tinha que ter certeza... por um motivo muito importante. Eu trabalhava para eles havia quase três anos quando tomei essa decisão. – E quando exatamente decidiu trabalhar para eles por mais um ano? – Há três anos. À meia-noite. Em Berlim. Eles se olharam fixamente enquanto Anna sentia a respiração presa na garganta. Aquele tinha sido o exato momento em que ele a salvara dos assaltantes. Eles sabiam disso porque um relógio de rua havia soado. – Mas Frank me disse que você não está livre. Que ainda trabalha para ele. Que as pessoas não se aposentam desse emprego. Nunca. – Acabei de descobrir isso por mim mesmo. Shaw pareceu tão arrasado que Anna apertou a mão dele. – Você não pode simplesmente parar e ir embora? – perguntou, com lágrimas surgindo em seus olhos. – Posso, mas estarei morto ou preso em menos de 24 horas. – Mas essas pessoas são a lei! Como podem fazer isso? – São a lei, mas uma lei voltada para si mesma. Elas matam quando os fins justificam os meios. Este é um mundo perigoso e as regras do jogo mudaram. – Isso é muito confortador. – Você quer estar segura? – A qualquer preço? Não! – Isso a torna parte de uma minoria. – Então o que exatamente vamos fazer? – Eu a pedi em casamento. Você aceitou. Pediu que eu obtivesse a permissão de seu pai. Eu obtive. Mas não lhe contei a verdade. E não posso parar de trabalhar para Frank. Mas também não posso esperar que você queira se casar comigo nessas condições. Não é justo. E não está certo. Eu a amo demais para fazer isso com você. E agora vou fazer a coisa mais difícil que já fiz.
– O que é? – perguntou ela num sussurro abafado. – Sair da sua vida. Shaw começou a se levantar. – Espere! – exclamou Anna. Ele voltou a sentar. Ela enxugou os olhos com a manga do roupão. – Ainda quer casar comigo? – Anna, essa não é mais a questão. Quando eu sair, nunca saberá se voltarei vivo. – O que você acha que as mulheres de soldados e policiais sentem todos os dias? – Anna, isso é fácil de dizer, mas... Ela se sentou no colo de Shaw e pôs a mão grande e musculosa dele sobre seu anel de noivado. – Você só tem que se fazer uma pergunta, Shaw. Só uma. Ainda me ama? Se a resposta for não, seu problema acaba. Ele encostou suavemente sua cabeça na dela. – Então eu tenho um grande problema.
NICOLAS CREEL NUNCA FORA um homem muito religioso, mas sua boa sorte certamente tinha origem em alguma luz divina. Compensar a venda de armas mortais com boas obras claramente lhe trazia recompensas, a julgar pela última oportunidade que surgira. Ele tinha visto as fitas de vigilância do prédio do Phoenix Group e observado, atônito, uma mulher identificada como Anna Fischer e ninguém menos que a lendária jornalista Katie James entrarem no lugar, praticamente de braços dados! Agora Creel tinha a peça que faltava em sua tática de jogo. Possuía dossiês sobre uma dúzia de candidatos promissores, mas nunca havia pensado em Katie James porque ela saíra do foco. Uma hora depois de vê-la no vídeo, Creel tinha um arquivo inteiro sobre Katie. E gostou do que descobriu. A derrocada de Katie havia sido rápida. Alegações de alcoolismo, matérias malfeitas ou nunca escritas. Relegada à página do obituário bem antes dos 40 anos. Seus dois Pulitzers não a haviam salvado desse destino. No filme, ela parecia ávida. Bem, Creel realizaria seu sonho. Ele lhe daria a história que a lançaria de volta para o topo. Creel telefonou para Caesar e lhe disse que estivesse pronto para partir em dois dias. Ao desligar o telefone, recostou-se em sua cadeira enquanto a porta de seu gabinete se abria e a pequena Hottie entrava, completamente nua, segurando uma garrafa de champanhe. – Adoro seu escritório – disse ela. – Dá para sentir você nele. Às vezes venho aqui só para ter essa sensação. – Ela se sentou no colo de Creel e bebeu direto da garrafa. – Esta é uma bela surpresa – disse ele, passando a mão na coxa nua de Hottie. – Não estava no programa, querida. – Obrigada pelo lindo anel que você me deu, querido – disse ela com a voz arrastada. Estava bêbada e, pela aparência de suas pupilas, também havia usado drogas. Mas Creel havia descoberto que Hottie se saía melhor na cama quando estava assim.
– É realmente impressionante o que vinte quilates podem fazer hoje em dia – suspirou ele, enquanto Hottie deslizava para cima de sua escrivaninha. www O som de uma vibração acordou Shaw. Ele se sentou instintivamente e examinou o quarto até perceber onde estava. Perto dele, Anna ainda dormia. Shaw esfregou o rosto e olhou para o telefone. Era Frank. Ele pegou o aparelho e foi para o cômodo ao lado, de onde olhou pela janela para a noite londrina sem luar. A chuva tinha passado, mas ainda havia uma névoa fria na rua que obscurecia tudo em que tocava. – O que você quer? – perguntou Shaw. – Está passando a noite aí? Ela realmente deve amá-lo. – Se chegar perto dela de novo, mato você. – Não faça promessas que não pode cumprir, meu caro. – O que você quer? – disparou Shaw. – Bem, como você não pareceu muito interessado na missão do MI5, é meu dever fazer com que volte ao trabalho. Espero que tire da cabeça essa ideia de liberdade. Ou a mulherzinha terá que ir visitá-lo na prisão mais suja e horrível que eu puder encontrar. A reconciliação de Shaw com Anna tinha sido tão entusiasmada que ele se viu imune até mesmo ao sarcasmo de Frank. – Onde? – perguntou ele sucintamente. – Paris. Você vai atravessar o Eurotúnel esta tarde. Receberá as primeiras instruções em St. Pancras. O resto em Paris. – Vou lhe dar um conselho, Frank: sempre tome cuidado com as pessoas ao seu redor. Mas a linha já havia ficado muda. Shaw sorriu e desligou. Ele tinha Anna. Isso era tudo o que importava. O enorme peso tirado de suas costas quase o fez achar que seria capaz de voar. Tomou o café da manhã com sua noiva, se despediu dela com um beijo e estava prestes a sair do apartamento enquanto Anna tomava banho quando se lembrou de que havia deixado sua jaqueta no escritório bagunçado dela. Quando foi buscá-la, viu o cartão na escrivaninha e o pegou. – Katie James, The New York Tribune – leu devagar, sua raiva aumentando. Shaw virou o cartão e viu o endereço em Londres escrito a lápis. Foi assim que Anna soube sobre a Escócia. Ele olhou para o relógio. Tinha tempo. Enfiou o cartão em seu bolso.
SHAW PÔDE SENTIR O olhar dela fuzilando-o pelo olho mágico. Seria capaz de apostar que não o deixaria entrar. Teria perdido. Katie foi direto ao assunto: – Olhe, sei que você está chateado, mas se encontrou com Anna? – Sua voz era ansiosa e ela tinha uma expressão preocupada. Katie sentou-se no pequeno sofá, sobre suas pernas cruzadas. Usava um roupão de hotel e chinelos. Seus cabelos estavam molhados e lisos. Shaw podia sentir o vapor vindo do banheiro. O cheiro do xampu dela chegou às suas narinas, mas ele mal o notou. Estava tão zangado que não conseguia parar de tremer. – Posso lhe fazer uma pergunta? – disse ele. – Vá em frente. – Que diabo você acha que está fazendo se metendo na minha vida? – explodiu Shaw. – Eu só estava tentando ajudar. – Não preciso da sua ajuda. Katie se recostou e cruzou os braços. – Não? Está se esquecendo de que há uma mulher maravilhosa completamente apaixonada por você, mas que ainda não entendeu se você é um príncipe encantado ou um psicopata? – O tom dela estava muito mais agressivo agora. – Isso não é da sua conta e você não tem o direito de se meter nesse assunto. – Eu disse a Anna para conversar com você antes de se decidir. Falei que achava que você era um bom sujeito. Você é ou não? – Neste momento acho difícil responder. – Por quê? – Porque parte de mim quer estrangular você. – O.k. Dá para entender. Em vez disso, gostaria de um café?
Pela primeira vez Shaw notou a mesa do serviço de quarto com o café da manhã dela. – Não. – Bem, tenho certeza de que não se importará se eu comer. Ela se serviu de uma xícara de café e deu uma mordida em um bagel. – E então? – perguntou Katie. – E então o quê? – Você conversou com Anna? – Sim. – E? – E isso não é da sua conta. – Então foi só para isso que veio aqui? Para me repreender? Shaw se moveu tão rápido que os olhos de Katie mal puderam acompanhá-lo. A mesa do serviço de quarto foi atirada ruidosamente contra uma parede. Katie terminou tranquilamente seu café e depois pôs a xícara de lado. – Acabou o drama? – Fique fora da minha vida. Shaw se virou para ir embora. – Na verdade, quero lhe fazer uma pergunta. E não tem nada a ver com Anna – acrescentou Katie depressa. Shaw parou na porta e a olhou com ar ameaçador. – O que você quis dizer quando falou que esteve no inferno e que ele não é tão ruim quanto as pessoas pensam? – Como já lhe disse, você não entenderia. Katie abaixou um pouco o roupão, expondo uma cicatriz vermelha na parte superior de seu braço direito. – Tente me explicar. Shaw olhou para a antiga ferida no ombro dela. – Tiro?
– Imaginei que você era o tipo de homem que reconheceria. Disparado por um sírio nervoso. Felizmente ele era um péssimo atirador. Mais tarde disse que estava mirando na minha cabeça. Katie pegou a xícara que não tinha se quebrado e o bule que, por um milagre, não havia se aberto e serviu café para Shaw. Ao entregar a bebida a ele, disse: – Sempre que Clint Eastwood levava um tiro no braço em um filme, derramavam um pouco de uísque na ferida, colocavam seu braço numa tipoia e ele saía cavalgando em seu fiel cavalo. Nunca se deram o trabalho de explicar o que acontece quando a bala penetra profundamente, rompendo uma artéria aqui, um músculo ou tendão ali, ou atingindo o ventrículo esquerdo em sua trajetória desabalada. Fiquei na reabilitação por três meses depois que finalmente me tiraram o respirador artificial. Tiveram que fazer um belo corte nas minhas costas para tirar a bala. Ela ficou chata como uma panqueca. Shaw se sentou. A visão da ferida pareceu ter abrandado sua raiva. – Ponta mole. Projetada para passar pelo corpo destruindo tudo no caminho. E costuma ficar no corpo, o que significa que um cirurgião tem que abrir você em outro lugar, quando está à beira da morte, para retirar a bala. Katie o olhou por cima da borda de sua xícara. – Quantas marcas de bala você tem? Pode me mostrar. Não vou falar para ninguém. – Um bom cirurgião plástico pode cuidar dessa cicatriz. – Eu sei. Queriam fazer isso quando voltei para os Estados Unidos. – Por que não fizeram? – Eu não quis. – Por quê? – Porque queria ficar com a cicatriz. Essa explicação é suficiente para você? – O rosto de Katie se suavizou e ela acrescentou, em tom mais calmo: – Olhe, você tem todo o direito de estar chateado comigo. Se estivesse se metendo na minha vida... não que eu tenha uma, mas, se tivesse, provavelmente não gostaria que alguém se intrometesse. Se isso serve para alguma coisa, eu estava tentando ajudar. Você escolheu uma ótima mulher e é fácil ver quanto ela o ama. Shaw tomou um gole de sua xícara, sem dizer nada. – Não vou mais me meter, eu juro – continuou Katie. – Espero que as coisas deem certo para vocês dois. Ele terminou o café e se levantou, parecendo muito desconfortável. – Anna e eu estamos bem. Eu contei a ela... coisas que deveria ter contado há muito tempo. – Shaw deu alguns passos na direção da porta antes de olhar para trás. – Estou feliz por você ter saído bem de Edimburgo. – Sei que estou terrivelmente atrasada, mas quero lhe agradecer por ter salvado minha vida lá. De verdade. – Como descobriu sobre Anna? – Eu sou uma repórter investigativa premiada. Seu quarto de hotel. Você deixou o nome dela gravado no mata-borrão. E encontrei o recibo da compra de um livro no bolso da sua jaqueta. Assisti a uma palestra de Anna Fischer alguns anos atrás e fiquei muito impressionada. Achei que valia a pena dar alguns telefonemas para descobrir se era a mesma pessoa. Pelo que vi de você, uma mulher teria de ser excepcional para mantê-lo interessado. Shaw pareceu um pouco surpreso com esse elogio, mas não disse nada. Ele olhou casualmente para a escrivaninha de Katie, perto da porta do quarto do hotel. Pilhas de jornais, clippings de notícias e anotações estavam espalhados ali em cima. Na tela do laptop, uma manchete detalhava os últimos acontecimentos relacionados com a Rússia. – Seu próximo Pulitzer? – perguntou Shaw. – Uma mulher tem que continuar tentando. E fazer isso muito melhor do que os homens para ter o mesmo status que eles. – Você parece a Anna falando. Shaw hesitou, depois tirou lentamente algo de seu bolso e o entregou a Katie. Era um cartão sem nome, apenas um número de telefone.
– Não dou isso para muitas pessoas. – Estou certa de que não. – Mas, se você foi ver Anna, há uma chance de que o homem para quem trabalho apareça por aqui. Se ele aparecer mesmo... – Você será a primeira pessoa para quem telefonarei. – Cuide-se. Duvido que voltemos a nos ver. – Pensei isso da última vez e olhe só onde estamos. Tomando uma bela xícara de café juntos. Um segundo depois, ele tinha ido embora.
DEPOIS QUE SHAW FOI para Paris, os russos anunciaram publicamente que, se eles eram tão terríveis, é claro que o mundo não se rebaixaria a usar seu petróleo sujo, por isso cortaram suas exportações pela metade. Como segundo maior país exportador de óleo cru, atrás apenas da Arábia Saudita, e comprovadamente o possuidor das maiores reservas de gás natural do planeta, esse não foi um gesto sem importância. A Rússia exportava mais petróleo do que todos os próximos três países juntos – Noruega, Irã e Emirados Árabes Unidos. A exportação global mal atendia à demanda quando as exportações iam de vento em popa. Sem a totalidade do ouro negro russo disponível, não havia como evitar a escassez. Os mercados mundiais não ficaram nem um pouco satisfeitos. O preço do barril de óleo cru chegou a 130 dólares horas após o anúncio e bolsas de valores de todo o mundo sofreram perdas enormes e sem precedentes, mesmo com a suspensão automática dos pregões. O preço da gasolina e das passagens aéreas foi às alturas. E, como muitas coisas que as pessoas usam diariamente são feitas com derivados de petróleo, o custo de tudo, de brinquedos a caminhões, também disparou. A OPEP, que estava havia tanto tempo nos bastidores do palco econômico, tentou compensar um pouco da diferença, mas não conseguiu chegar nem perto disso. E, em vez de tornar o mundo árabe muito mais rico com o alto preço do petróleo, aquilo realmente lhe custava bilhões, porque, ao contrário da Rússia, os países do deserto importavam quase tudo de que precisavam. Por isso, enquanto o preço do óleo cru havia subido 40 por cento, o custo dos produtos derivados dobrara. Acreditava-se que a Rússia poderia manter essa posição por bastante tempo, por causa do aumento de preço, de suas reservas de dinheiro, de investimentos estrangeiros e de seu nível proporcionalmente baixo de importações e consumo per capita. Como se isso já não fosse o bastante para o mundo absorver em uma semana, os russos tinham mais cartas na manga. Seu ministro de Assuntos Estrangeiros anunciou que uma região do Afeganistão ocupada pelo Talibã tinha sido pega em flagrante usando o Uzbequistão e o Cazaquistão para contrabandear drogas para a Rússia, o que promovia a atividade criminosa e corrompia a inocente juventude russa. É claro que todos sabiam que aquilo era verdade, mas os russos nunca tinham feito nada a respeito. O ministro afirmou que eles não seguiriam os canais diplomáticos ao lidar com esse grave problema. Havia anos que o Afeganistão permitia essa atividade e Moscou estava farta disso. E, quando tomavam uma decisão, os russos agiam. Um dia depois, cinco grandes mísseis cruzadores disparados de um submarino da Rússia atingiram um complexo de treinamento talibã que o ministro russo mais tarde afirmou ser fundamental para o tráfico de drogas. Em segundos, mil combatentes talibãs foram mortos e seus esconderijos de armas e equipamentos foram destruídos. Os países árabes do Oriente Médio foram avisados de que, se houvesse alguma retaliação contra os interesses da Rússia, poderiam esperar o mesmo tratamento multiplicado por cem. O presidente afegão fez uma declaração oficial denunciando essa “injustificável invasão das fronteiras de uma nação soberana”. Mas em círculos diplomáticos isso foi considerado apenas pro forma, porque o Talibã estava fazendo tudo o que podia para derrubar o governo afegão e tinha tentado assassinar o atual presidente duas vezes. Por isso, o líder afegão provavelmente dava pulos de alegria no corredor do palácio presidencial enquanto criticava Moscou. Teerã reagiu com fúria, expressando sua consternação com o que chamava de comportamento bárbaro dos russos. Depois se apressou a pedir ajuda às Nações Unidas. Os Estados Unidos também protestaram imediatamente contra a Rússia nas Nações Unidas e começaram a retirar suas tropas do Iraque e do Afeganistão. O Pentágono anunciou que isso não tinha a ver com os ataques ao Talibã, mas com manter a política administrativa previamente estabelecida. As pessoas com acesso a informações sigilosas, assim como provavelmente a maioria dos americanos, sabiam que esse remanejamento das tropas tinha tudo a ver com a crescente ameaça russa. O Oriente Médio não era mais tão importante. Generais de todos os países membros da OTAN passaram a rever seus antigos planos de ataque e defesa contra a ameaça soviética.
Um grande jornal afirmou de forma sucinta, se não melodramática, em uma manchete de dez centímetros: “A GUERRA FRIA ESTÁ DE VOLTA”. Secretamente, oficiais militares e membros da administração dos Estados Unidos estavam exultantes porque com um só golpe os russos tinham acabado com grande parte do potencial terrorista do Talibã. Um general de quatro estrelas, reclamando para seu auxiliar, disse: – Se ao menos nós pudéssemos fazer isso e sair impunes! Quando se iniciou a retirada maciça das tropas americanas do Iraque, xiitas, sunitas e milicianos começaram a se atacar em uma preparação para o que muitos acreditavam ser a longa e temida guerra civil. Essa história foi relegada às páginas internas da maioria dos grandes jornais e deixou de ser o tema principal dos noticiários dos grandes canais de TV. A questão do Iraque era agora assunto de interesse secundário. Em pesquisas recentes, o terrorismo islâmico tinha sido relacionado como o 11º tema mais importante para cidadãos de todo o mundo, logo atrás do excesso de sexo e violência na TV. A Rússia era o assunto número um em relevância e o motivo disso era muito claro: os terroristas tinham bombas pequenas; os russos possuíam toneladas de armas nucleares e aparentemente haviam perdido o juízo. A busca pelas forças por trás de Konstantin e todo o resto tornou-se muito mais urgente. O mundo provavelmente achava que, se os russos tivessem um alvo específico para atacar, talvez deixassem as outras nações em paz. “Mas e se a força por trás da Ameaça Vermelha fosse os Estados Unidos?”, perguntavam-se muitas pessoas, apavoradas. Os russos tinham dito que isso seria considerado um ato de guerra. Aquilo seria mesmo o início do fim? Os americanos poderiam ter cometido tamanho erro de cálculo? Pessoas de todas as nações da Terra se preparavam para a próxima crise. Não teriam que esperar muito.
OS ÚLTIMOS DETALHES DA missão na França haviam demorado um tempo extraordinariamente longo para serem acertados. Shaw costumava chegar a uma cidade um ou dois dias antes do grande evento, receber suas ordens e cumpri-las. Se viveria ou morreria, era realmente a única questão sem resposta. Dessa vez tinha sido diferente. Frank havia até mesmo voado para lá com uma equipe para rever tudo meticulosamente. No último encontro antes do dia D, ele enfatizou repetidas vezes para Shaw os pontos principais enquanto eles se sentavam em um pequeno chalé a 32 quilômetros de Paris. – Esses caras são realmente bons, Shaw – avisou Frank. – Não confiam em ninguém e matam as pessoas em quem não confiam. – Obrigado pela conversa animadora, Frank, fico grato de verdade. – Shaw estava sentado de frente para ele, esfregando as mãos uma na outra lentamente e sem olhar nos olhos do homem. Frank percebeu isso e de repente deu um murro na mesa. – Você está muito nervoso! – Que diabo você acha? – disse Shaw erguendo os olhos para ele. – Acho que preciso do velho Shaw, do homem que nunca sua. Se esses caras sentirem o cheiro do seu suor, vão meter uma bala bem aqui antes mesmo que você possa dizer “Merda!” – esbravejou Frank, apontando para o meio da testa de Shaw. – E depois picarão seu corpo em pedaços enquanto conversam sobre o tempo e mulheres. – Eu vou ficar bem, Frank. – É a mulher, não é? Agora que você vai se casar, finalmente tem algo a perder. – Frank se recostou e balançou a cabeça com ar condescendente. – Bem, pombinho, se você se ferrar amanhã, não haverá casamento, apenas quatro funerais. Um para cada parte sua depois que os miseráveis o esquartejarem. – Há quanto tempo faço isso? E sempre me dei bem. – Há uma primeira e última vez para todos. Só não deixe que esta seja a última. Ainda não acabei com você.
Shaw se inclinou para a frente e segurou o braço do homem. – Por que você realmente foi ver Anna? – Eu já disse. Estava sendo justo. E você é quem devia ter contado a ela, não eu. Anna tinha o direito de saber no que estava se metendo. – Ela não é nenhuma criança, Frank. – Você disse a ela que não ia se aposentar? Que pode ser morto a qualquer segundo? – Por que diabo você se importa com isso? Frank pareceu desconfortável e deu de ombros. – Anna parece uma boa mulher. Já pensou no que sua morte poderia fazer com ela? Ou se um dos malucos com que lidamos todos os dias souber da existência dela? – Eu nunca deixaria que alguma coisa acontecesse a Anna. – Mas não pode controlar isso, pode? Você não é um contador, Shaw. Em nossa linha de trabalho, se cometer um erro morrerá realmente rápido. E talvez ela morra também. – Ele fez uma pausa. – Diante de tudo isso, não acha que ela tinha o direito de saber? Shaw não disse nada, porque uma grande parte dele estava chegando à conclusão de que Frank, que ele tanto odiava, podia estar certo. Frank se levantou, pegou seu sobretudo e se dirigiu para a porta. – Boa sorte, Shaw. E se eu não o vir de novo... bem, terei que encontrar outra pessoa, não é? – Você nunca encontrará alguém tão bom quanto eu. Frank refletiu sobre aquilo enquanto punha seu chapéu surrado. – Provavelmente você está certo. Mas me contentarei com alguém quase tão bom. E, se eles realmente o matarem, antes de a bala entrar em seu cérebro pergunte a si mesmo: ela realmente vale isso? Frank bateu a porta atrás dele, deixando Shaw sozinho com seus pensamentos.
– Sim – disse Shaw para a sala vazia. – Vale.
SHAW ESTAVA A CAMINHO. O armazém ficava em uma área de Paris em que as pessoas que queriam evitar violência nunca se aventuravam. Esse pequeno pedaço de terra da França não era controlado pela polícia; pertencia a outros, que o chamavam de lar. E não gostavam de visitas. Quatro skinheads saíram da escuridão e caminharam na direção de Shaw, que estava em uma extremidade do armazém, iluminado apenas por algumas lâmpadas fracas. Os jovens o cercaram; nem sequer se deram o trabalho de esconder as armas. Provavelmente tomavam seus cafés da manhã, almoçavam e jantavam segurando-as mais perto de seus corpos do que já haviam segurado qualquer mulher com quem dormiram. Três deles usavam camisetas regata, embora fizesse frio. Todos eram brancos, mas isso era algo difícil de afirmar, já que seus corpos eram cobertos por tatuagens. Todos os desenhos em sua pele eram diferentes, exceto um, que ficava no tríceps direito de cada um deles: uma suástica. Um dos homens, que parecia ter cerca de 20 anos, tinha um dragão ao redor da parte superior do corpo, nas cores preta, verde e salmão, com as presas se estendendo para a parte inferior de seu rosto. Em uma das mãos ele carregava uma escopeta de bombeamento manual calibre 12. Tinha um ar de “não dou a mínima” em seus olhos castanhos, que encaravam Shaw com uma mistura convincente de ódio e desdém. Ele deu uma cusparada que caiu a um centímetro dos pés de Shaw. Sua mãe deve estar tão orgulhosa! Shaw se virou para outro homem que caminhava em sua direção. Ele usava uma jaqueta, calça jeans justa e mocassins com franja, e não a calça preta camuflada, a camiseta regata e as botas de combate capazes de quebrar cabeças iguais às de seus homens. Mas sua atitude refletia a deles. Tinha um andar arrogante que fazia você ter vontade de pegar uma arma ou lhe dar um soco e acabar com ele para o bem da humanidade. O homem não poderia ter mais de 30 anos, mas seu rosto com cicatrizes e sua expressão indicavam muito mais experiência do que três décadas normalmente eram capazes de trazer.
Ele apertou a mão de Shaw e fez um gesto na direção de uma pequena mesa a um canto. Somente depois que o homem se sentou Shaw fez o mesmo. Os skinheads cercaram a mesa. Eram animais de carga, observou Shaw, sempre à espera da ordem de matar. – Je suis Adolph, monsieur. E devo chamá-lo de...? – Nada – respondeu Shaw. – Tenho tudo de que precisa. – O preço nunca foi mencionado – disse Adolph. – Estranho, não é? Shaw se inclinou ligeiramente para a frente. – Há coisas mais importantes do que o dinheiro. – A maioria das coisas é mais importante do que o dinheiro, mas é preciso dinheiro para comprá-las. – O homem sorriu e acendeu um cigarro. – Se Sartre ainda estivesse vivo, nos forneceria uma análise filosófica precisa ou talvez simplesmente dissesse: “C’est la vie.” – O senhor quer matar o presidente Benisti – começou Shaw. – Isso levará a França à beira da anarquia. Adolph balançou a cabeça. – O senhor subestima o amor dos franceses pela política. Diz que eu quero matar Benisti? Isso é só a sua opinião. Mas, mesmo que eu quisesse, seria apenas um presidente morto. Simplesmente elegeriam outro idiota. – Este é o país da revolução política – retorquiu Shaw. – Au contraire. Este era o país da revolução política – respondeu Adolph. – Fomos realmente americanizados. Tudo que importa para meus concidadãos agora é se têm o iPhone de última geração. Mas nós somos os verdadeiros revolucionários, mon ami. – E do que trata a sua revolução? – O que acha? – rosnou ele subitamente, agarrando o braço de um dos homens e aproximando a suástica do rosto de Shaw. – Ao contrário dos impostores de Hitler, que só usavam isto em seus uniformes, nós a temos pintada em nossa pele. É nossa identidade permanente. E eu adotei o nome do mestre. – Então os judeus são a origem de todos os males? – Judeus, muçulmanos e cristãos são igualmente culpados. A mãe de Benisti era judia, embora ele tente esconder isso. O senhor disse que tem informações e credenciais para nos levar ao hotel em que ele estará? – Tenho. Nem todas estão aqui. Mas eu trouxe uma amostra para provar que estou falando sério. – Shaw enfiou a mão em seu bolso e puxou uma credencial da imprensa que parecia oficial e uma entrada para o próximo discurso do presidente em um hotel de Paris. Adolph olhou para elas, impressionado. – C´est bon. Bien fait! – Tenho mais cinco destas – acrescentou Shaw. – Além disso, o senhor será incluído na lista VIP. – E as armas? – perguntou Adolph. – Os franceses não são tão paranoicos quanto os americanos. Os VIPs não passam pelos detectores. – Ele olhou para os irritados skinheads. – Mas os senhores têm que parecer e agir como VIPs. Adolph riu. – Estes são meus guarda-costas pessoais. Crescemos juntos nas ruas de Paris. Cada um deles daria de bom grado sua vida por mim. Eu sou o escolhido. Todos compreendem isso. Shaw olhou para o skinhead com o dragão. Sim, ele parece estúpido o bastante para morrer por este idiota megalomaníaco. – Então o senhor tem outras pessoas para fazer o serviço e representar o papel? Adolph fez um sinal afirmativo com a cabeça. – Quando poderemos ter o resto da documentação? – Assim que meu preço for aceito. – Ah, agora chegamos ao ponto. – Adolph se recostou, cruzou as pernas e soprou um círculo de fumaça para o teto do armazém, 30 metros acima deles. – Vou lhe falar sinceramente, monsieur: não temos muito dinheiro. – Achei que tivesse deixado claro que não estou interessado em dinheiro. – Todos dizem que não estão interessados em dinheiro até pedirem por ele. Não somos traficantes de drogas ou terroristas do deserto cheios de dinheiro do petróleo. Não tenho bilhões de euros em uma conta na Suíça. Sou um homem pobre com ideias ricas. – Meu pai morreu em uma prisão francesa no ano passado. Adolph se empertigou e olhou para Shaw, agora com algum interesse. – Que prisão? – Santé. O homem fez um sinal afirmativo com a cabeça e apagou seu cigarro com o salto do sapato no chão frio de concreto. – É uma das piores. Mas as prisões francesas são todas umas porcarias. Vários de nossos homens estão em Santé agora e seu único crime foi tirar o lixo das ruas. Acredita que estejam trancafiados como animais por causa disso? O mundo está louco. Atrás de Shaw, o skinhead com o dragão deixou escapar um grunhido. Shaw se virou a fim de olhar para ele e viu outra cusparada quase atingir seu sapato. – O irmão de Victor também ficou preso lá – disse Adolph. – Ele se suicidou em Santé no ano passado. Você era muito ligado ao seu irmão, não era, Victor? Victor deu outro grunhido e engatilhou sua escopeta. – Estou certo de que eles eram muito unidos – disse Shaw, em tom seco. – Então seu pai morreu na prisão. Por qual crime? – Meu pai era um americano que veio para cá para começar um negócio que acabou competindo com vários outros empreendimentos dirigidos por amigos de Benisti. Na verdade, era competitivo demais. Então, quando Benisti era promotor público, acusou meu pai de vários crimes que ele nunca cometeu, apenas para arruiná-lo. Era tudo mentira e Benisti sabia disso. Meu pai passou vinte anos naquele buraco infernal e na véspera de ser solto morreu de ataque cardíaco. Um coração partido. Foi como se Benisti tivesse enfiado uma faca no peito dele. – Se checarmos sua história, descobriremos que é verdadeira?
– Estou falando a verdade – disse Shaw enfaticamente, seu olhar sustentando o do outro homem. – Caso contrário não teria entrado aqui. – Então quer vingança. Isso é tudo? – Não é o suficiente? Eu lhe dou as informações e o senhor mata Benisti. – Ele fez uma pausa. – E mais uma pessoa – acrescentou devagar. – Quem? – perguntou Adolph bruscamente. – O pai de Benisti. Ele me tirou meu pai, agora levarei o dele. Adolph se recostou e refletiu. – Imagino que ele também esteja sob proteção. – Já pensei em tudo. Passei anos planejando isso. – Shaw olhou ao redor para os skinheads. – Esses homens podem fazer isso. Só exige um pouco de coragem e mão firme. – E como conseguiu essas informações? Isso me interessa muito. – Por quê? – Porque há boatos de que Benisti costuma preparar armadilhas. Adolph fez um gesto para seus homens. Eles agarraram Shaw, tiraram a jaqueta dele e o puseram de pé. Victor pegou uma faca e abriu a camisa de Shaw, procurando um aparelho de escuta. Em seguida, tiraram a calça dele para procurar. Depois de um exame que teria feito um proctologista corar, Shaw teve permissão para se vestir. – Estou surpreso por ter esperado até agora para me revistar – disse Shaw, abotoando a camisa. – Que importância teria se o senhor fosse um poseur e estivesse usando um aparelho de escuta? Estaria morto mesmo. E eu teria ido embora muito antes de os idiotas aparecerem aqui. – Eles poderiam ter cercado este armazém – observou Shaw. Adolph sorriu de um jeito arrogante. – Não, monsieur, não poderiam chegar a dez quarteirões daqui sem que eu soubesse. Os gendarmes controlam as partes de Paris aonde os turistas vão, mas não aqui, monsieur, não aqui.
Shaw voltou a se sentar. – Estou próximo de Benisti. Ele confia em mim. – Por quê, depois do que fez com seu pai? – Ele não sabe que o homem era meu pai – disse Shaw simplesmente. – Saí da França, assumi uma nova identidade e depois voltei. Faço o trabalho sujo dele nos bastidores. Ah, ele confia em mim como em um filho. Penso nessa ironia todos os dias. – Seu ódio é inspirador. – Temos um acordo? – Vive la revolution, monsieur.
ANNA FISCHER ESTAVA EM seu escritório no prédio do Phoenix Group examinando cuidadosamente os documentos espalhados em sua escrivaninha. Na verdade, ela agora tinha mais perguntas do que respostas sobre a Ameaça Vermelha. E todos os dias uma nova revelação irrompia na superfície como um tsunami depois de um terremoto. O que mais incomodava Anna era que não havia nenhum rosto, nenhum nome por trás do CIR. Os releases eram divulgados exclusivamente pela internet. Ninguém tinha se apresentado e dito: eu sou do CIR. E, com o assassinato de Petrov e o ataque ao Afeganistão, Anna podia entender por quê. Gorshkov deixara bastante claro que quem estivesse por trás daquilo seria punido e poucas nações na Terra eram tão boas em punir quanto a Rússia. Será que de algum modo o tiro havia saído pela culatra? Estariam as pessoas que perpetraram isso correndo apavoradas, sem saber o que fazer? Anna não sabia responder a nenhuma dessas perguntas. Tudo o que sabia era que o esforço tinha sido extraordinariamente bem planejado. Contudo, era por bons ou maus motivos? Ela podia entender o argumento bom; afinal, a Rússia não tinha um histórico exemplar de respeito aos direitos humanos e havia muitas pessoas e organizações que adorariam colocá-la em seu lugar. O lado mau Anna tinha um pouco mais de dificuldade de analisar. O que alguém poderia ganhar transformando a Rússia em um país ainda mais isolado e paranoico? Era como dar armas nuclearas de graça para a Coreia do Norte e lhe pedir que as usasse. Ela esfregou as têmporas. Não podia gastar todo o seu tempo nisso. Porém tinha certeza de que muitas outras pessoas no mundo estavam fazendo o mesmo naquele momento. Alguém tinha que descobrir a verdade. Anna olhou para seu relógio. Eram quase três horas. Haveria uma reunião da empresa naquele dia e todos os funcionários deveriam comparecer. Ela não estava com disposição para participar do que geralmente se transformava numa discussão entediante. Pelo menos ainda lhe restava meia hora para trabalhar em algo relevante. E depois, naquela tarde, tinha algo ainda mais importante a fazer.
Anna ia comprar seu vestido de noiva. Sorriu diante da ideia de se ver num vestido desses e sua pele chegou a formigar. A única coisa melhor seria ver Shaw de smoking. Não tinha nenhuma dúvida de que lhe cairia maravilhosamente bem. Com o mundo em crise, parecia absurdo ficar pensando em vestidos e casamento. Por outro lado, se o mundo fosse explodir mais cedo do que se pensava, ela não queria esperar para oficializar sua união com o homem que amava. Alguns minutos depois, Anna estava tão absorta em seu trabalho que não ouviu o que estava acontecendo no andar de baixo. Nesse exato momento as portas da frente e dos fundos do prédio foram abertas com violência e 12 homens o invadiram. Debaixo dos sobretudos que usavam, eles sacaram armas com silenciadores, miraram e começaram a atirar. Quando invadiram o prédio, a recepcionista acabara de pegar o telefone para fazer uma chamada, mas a linha estava muda. Um momento depois ela também estava, morta com uma bala na testa. Seu corpo deslizou para fora da cadeira e caiu ao lado da escrivaninha, o sangue do ferimento em sua cabeça manchando-lhe a frente do vestido. Infelizmente, um analista de meia-idade escolheu aquele momento para ir à recepção. Um segundo depois estava morto, caído perto da recepcionista. Uns homens armados se dirigiram para o subsolo. Outros foram para o primeiro andar, de sala em sala, abrindo portas com chutes e matando quem estivesse dentro. Alguns ainda correram para os andares de cima. Havia 28 pessoas no local. Nenhuma delas voltaria para casa naquela noite. Quando Anna escutou os gritos, achou que alguém tinha se machucado. Levantou-se de um pulo e correu para a porta. Ao ouvir um som abafado, não percebeu imediatamente o que era. Porém, ao ouvi-lo de novo, deu-se conta da verdade. Era um tiro! Depois ouviu muitos outros disparos. Anna bateu e trancou a porta, correu de volta para sua escrivaninha e tentou telefonar. A linha estava muda. Pegou sua bolsa e sacou dela seu celular. O som de passos estava mais próximo. Ela ouviu mais tiros, mais gritos e mais baques que pareciam ser corpos caindo no chão. Tentou se manter calma, mas suas mãos tremiam tanto que ela mal podia segurar o maldito telefone.
Discou o número de emergência da polícia e observou, incrédula, que o telefone tentava se conectar mas não se ouvia nenhum som de chamada. Ela tinha feito muitas ligações de seu celular daquele prédio. O que estava acontecendo? Anna olhou para a pequena tela. Não havia sinal. Tentou novamente, sem sucesso. Por fim, atirou o telefone no chão e correu para a janela. Estava no terceiro andar, mas não tinha outra escolha. Ouviu o som de passos subindo as escadas. Seu escritório era o último do corredor. Ainda assim, provavelmente tinha no máximo um minuto. Anna tentou o quanto pôde levantar a janela. O exterior fora pintado havia pouco tempo e ela subitamente percebeu que os idiotas tinham feito o serviço com a janela fechada. Cravou suas unhas na armação de madeira, usando toda a força que tinha, mas o painel não se movia. Os passos se aproximavam pelo corredor. Anna ouviu uma porta sendo aberta com um chute e depois um grito. Seguiu-se um som como o de um livro caindo enquanto outro corpo ia ao chão. Em meio ao terror, ocorreu-lhe uma ideia. Pegando um livro em sua escrivaninha, usou-o para quebrar o vidro da janela e retirar os cacos. Debruçou-se para fora e gritou: – Socorro! Socorro! Chamem a polícia. Infelizmente, aquela era uma rua tranquila, com prédios desocupados e não havia ninguém ali para ouvi-la. Anna viu uma grande caminhonete parada no meio-fio. Gritou de novo, mas aparentemente não havia ninguém no veículo. Estava prestes a atirar algo nele quando notou em seu teto algo que parecia uma pequena antena parabólica. Estava apontada diretamente para o prédio. Com sua mente em pânico ainda funcionando incrivelmente rápido, deu-se conta do que estava acontecendo. Era por isso que seu celular não funcionava. Seja lá o que viesse da caminhonete estava bloqueando o sinal. Anna olhou para os dois lados da rua sem saída e notou as barreiras temporárias erguidas em uma das extremidades, bloqueando o acesso. Ela tirou seus escarpins, subiu no parapeito da janela e olhou para baixo. Havia um toldo sobre a janela do primeiro andar. Se eu conseguir chegar até ele, rolarei para a rua. Anna não tinha a menor ideia se havia alguém na caminhonete. Só sabia que, se continuasse ali, morreria. Muniu-se de coragem para pular. Lágrimas escorreram pelo seu rosto ao ouvir outra porta se abrir com estrondo no escritório ao lado. Um grito, um som surdo e um baque. Era o pobre Avery sendo assassinado. Deus, se ao menos Shaw estivesse aqui. Anna rezou, olhou para o alvo e flexionou as pernas para saltar. Assim que estivesse lá fora, em segurança, correria como nunca havia corrido para obter ajuda. Embora duvidasse que ainda restasse alguém vivo para ser salvo. Exceto ela. As duas balas disparadas através da porta atingiram Anna diretamente nas costas e saíram de seu peito para o ar fresco da tarde londrina. Ela ficou de cócoras ali, no parapeito da janela, aparentemente sem se dar conta de que acabara de ser atingida, com o sangue esguichando no chão e pela janela. E por cima dela toda. Quando sua visão começou a desaparecer, o céu azul se tornou marrom e o pequeno pedaço de grama verde do outro lado da rua ficou amarelo. Anna não podia mais ouvir os pássaros no céu nem os carros passando no outro quarteirão. Ela agarrou a madeira da janela com toda a força que tinha, mas em alguns segundos, perdendo sangue muito depressa, não lhe restava mais nenhuma. Quando Anna Fischer caiu, não foi para a frente e para fora da janela, mas para trás, para a sala. Ficou estirada ali, olhando o teto de seu escritório. A porta se abriu com um chute e dois homens entraram e a olharam de cima. Um deles tirou sua máscara e balançou a cabeça. – Que sorte! – disse ele. – Eu só estava tentando arrebentar a porta. O outro homem tirou a máscara e olhou para Anna. – Como pode? – começou Caesar. – Levou dois tiros no peito e ainda está respirando? – Espere um minuto. Ela já vai morrer – atalhou o outro homem. – Eu não tenho um minuto. Olhe para a janela. Ela estava tentando fugir. O homem seguiu seu olhar até o vidro estilhaçado. Caesar mirou cuidadosamente, mesmo com o peito de Anna subindo e descendo de modo irregular, agonizante.
O tiro a atingiu na testa. Quando Anna deixou escapar seu último suspiro, ele se pareceu muito com um nome: Shaw. Caesar usou sua bota para empurrar rudemente o ombro da mulher, mas estava claro que ela nunca testemunharia contra eles sobre o que havia acontecido ali. O segundo homem falou em um walkie-talkie. Ouviu por um momento e depois fez um sinal afirmativo com a cabeça. – Todos mortos – disse ele. – Todos mortos – repetiu Caesar. – E o esquadrão de hackers? – Está quase terminando. – Diga a eles que têm dois minutos. Mande um homem ir à rua para descobrir se alguém viu a mulher na janela. Nesse caso, sabe o que fazer. O avião está esperando. Se não estiverem nele, não partirão. Deixe isso claro. Ele e o outro homem abriram suas mochilas e pegaram notebooks, resmas de papel, diagramas, gráficos e outros documentos. Depois pressionaram as pontas dos dedos de Anna contra muitos deles. Quando começaram a espalhar o material pela escrivaninha, Caesar exclamou, olhando para os papéis que já estavam lá: – Droga! – O que foi? – perguntou seu comparsa. Caesar apontou para um dos papéis que Anna havia imprimido e que demonstrava seu interesse pela Ameaça Vermelha. – Obviamente ela já estava curiosa. Mas vou dar um jeito nisso. Pegou uma câmera e começou a tirar fotos do interior do escritório. Eles receberam o aviso de que ninguém tinha visto Anna na janela, embora um pouco do seu sangue tivesse escorrido até o pequeno jardim do lado esquerdo da entrada do prédio. Os lírios cor de laranja haviam adquirido um tom mais escuro.
Logo um terceiro homem se juntou a eles. Sentou-se ao computador de Anna e inseriu um CD no drive. Digitou tão rápido que seus dedos enluvados se tornaram indistintos e o teclado sacolejou como um vagão de trem em trilhos ruins. Sessenta segundos depois, retirou o CD. – A instalação foi concluída. – O homem se levantou e saiu correndo. Trinta segundos depois, não havia nenhum ser vivo dentro do prédio do Phoenix Group.
ENQUANTO O PRESIDENTE BENISTI deixava o Ritz, em Paris, após fazer um discurso, seis homens estavam presos por tentar assassiná-lo. Os noticiários disseram que havia sido um trabalho fenomenal da polícia, porque os criminosos, que tiveram acesso ao evento com documentos falsos, foram presos antes de conseguirem chegar perto do líder francês. Um artigo também informou que houvera uma tentativa de ataque ao pai do presidente, mas os bandidos foram pegos antes de entrar no apartamento do Sr. Benisti, dois deles sendo baleados e mortos pelas autoridades. Os homens pareciam ser membros de um conhecido grupo neonazista que atuava nos arredores de Paris. Outras prisões eram esperadas. As autoridades disseram que aquele provavelmente era um golpe fatal na organização ultraviolenta. Shaw estava em seu quarto de hotel, arrumando as malas, quando ouviu essa notícia na TV. Seu telefone vibrou e ele o pegou. – Parabéns – disse Frank. – Você não ferrou com tudo. – Você sempre soube usar as palavras. – Está pronto para outro trabalho? – Não, vou viajar. – Deixe-me adivinhar: para Londres? – Não consigo esconder nada de você, não é? – Dois dias. Depois preciso que volte. – Três. E considere-se um homem de sorte. Shaw desligou, pegou a mala e se dirigiu para a porta. Ela se abriu antes que ele tocasse na maçaneta. A pistola estava exatamente na altura do peito de Shaw, que recuou, ainda segurando sua mala. Victor deu uma cusparada que atingiu Shaw no rosto. Entrando logo atrás do capanga, Adolph passou o ferrolho. Ele carregava uma pequena mochila. No bolso de Shaw seu telefone começou a vibrar. Provavelmente era Frank, para alertá-lo. Tarde demais.
Adolph abriu um sorriso largo e forçado. – Não, não, mon ami, ainda não deve deixar Paris. O show não terminou. Shaw deu outro passo para trás até encostar na parede. Olhou da arma para Adolph enquanto o cuspe de Victor escorria pelo seu rosto. Adolph pegou uma serra para metal e uma machadinha em sua mochila enquanto Victor acoplava o silenciador à pistola. – Vocês dois devem ser os únicos que restaram – disse Shaw. – Sempre posso conseguir mais homens – rebateu Adolph. – Posso conseguir cinco para substituir cada um que perco. – Os franceses realmente precisam fazer algo em relação ao desemprego – zombou Victor. Adolph ergueu a machadinha. – Você é judeu? Shaw olhou para a ferramenta. – Por quê? Me cortaria à moda kosher? – Quero saber por que preparou uma armadilha para mim. Quero que me diga isso antes de morrer. Será bom para purificar sua alma. Confesse. Confesse para Papa Adolph. – Vou lhe dizer uma coisa. Eu lhe darei uma chance de sair daqui. Só uma. Depois a sorte estará lançada. Adolph olhou para Victor e riu. – Nós temos armas e você não tem nada. Isso deve significar que tem merda na cabeça. – Ele brandiu a serra e riu maliciosamente. – Se tem, certamente vou descobrir. Shaw apertou um botão perto da fechadura de sua mala. Um segundo depois eles ouviram o som ensurdecedor de uma sirene. Surpresos, Adolph e Victor olharam para a janela, sem dúvida achando que a polícia estivesse chegando. No instante seguinte, Shaw investiu diretamente contra eles, com a mala estendida à sua frente. Victor disparou contra ela, achando que as balas romperiam facilmente o tecido e atingiriam Shaw na cabeça. Estava errado.
As balas realmente atingiram a mala, mas quicaram no revestimento super-resistente e se cravaram no teto. O impacto dos tiros atordoou Shaw, mas ele conseguiu manter o impulso para a frente. Atingiu Victor tão violentamente que arrancou a arma da mão dele, assim como o dedo que estava no gatilho. Victor gritou de dor enquanto apertava o coto ensanguentado. Parou de gritar quando a mala de Shaw arremessada em sua cabeça o fez voar sobre um pequeno sofá. Antes que Shaw pudesse se virar para encarar Adolph, o homem fez um corte profundo em seu braço esquerdo com a serra. Quando ele cambaleou para trás, Adolph ergueu a machadinha, mas Shaw conseguiu dar-lhe uma rasteira. Adolph caiu com força no chão, soltando a ferramenta. Esticou-se na direção dela, conseguiu pegá-la e a atirou em Shaw. Por sorte, foi o cabo, e não a lâmina, que atingiu sua coxa, mas ainda assim doeu bastante. Shaw não sentiu seu telefone vibrar de novo no bolso porque Adolph vinha em sua direção com a serra e Victor, com metade do rosto coberta de sangue, havia se levantado, cambaleante, e procurava sua arma. Shaw se jogou contra Adolph e acertou o estômago dele com o ombro. Os dois voaram para a cama e, de lá, caíram com força no chão, com Shaw por cima. Adolph agarrou o rosto de Shaw, tentando arrancar-lhe os olhos. Parcialmente cego, sufocando e com a perna e o braço feridos latejando, Shaw ainda conseguiu levantar o braço até a traqueia de Adolph. Mas, quando tentou apertá-la para acabar com ele, sua força simplesmente o abandonou. Ele olhou para seu braço, que jorrava sangue. Droga! A lâmina devia ter atingido uma artéria. Shaw sentiu seus dedos ficarem dormentes. Ele se afastou de Adolph e se pôs de pé, mas suas pernas, infelizmente, começavam a fraquejar. Ao se virar procurando uma saída, ficou paralisado. Victor estava apontando a arma para a sua cabeça, com o dedo médio no gatilho. O sorriso malévolo do skinhead aparentemente seria a última coisa que Shaw veria. Que modo terrível de morrer.
A porta se abriu com um estrondo. Frank e seis de seus homens entraram. Frank imediatamente avaliou a situação e disparou dois tiros. Ambos atingiram a cabeça de Victor, que caiu no chão. Com um grito, Adolph saltou sobre Shaw, apertando-lhe o pescoço. – Droga! Peguem-no! – gritou Frank. Quatro de seus homens correram para Adolph e o tiraram de cima de Shaw, que estava muito ferido. – Tirem esse desgraçado daqui – ordenou Frank e Adolph foi empurrado para fora do quarto. Quando Frank se virou para Shaw, o rosto dele estava branco como giz e, um segundo depois, ele tombou. – Shaw! – Frank correu através do quarto e se ajoelhou perto dele. – Chamem a emergência agora! – gritou Frank. Ele segurou a cabeça do homem caído. – Shaw? Pode me ouvir? Shaw! A cabeça rolou para trás e para a frente em sua mão. Frank olhou para o corte profundo no braço de Shaw, tirou sua gravata e improvisou um torniquete acima do ferimento. – Aguenta firme, Shaw. A ambulância já está chegando. Virando-se para seus homens, esbravejou: – Como diabo esses canalhas o encontraram? Ele devia ter cobertura! – Frank? – disse uma voz fraca. Ele baixou os olhos para Shaw, que agora o encarava. – Shaw, vai ficar tudo bem. Estou ouvindo a equipe de resgate subindo as escadas. – Ligue para Anna – pediu Shaw, sua respiração se tornando muito superficial. – Faça isso para mim. Os socorristas irromperam no quarto e cercaram Shaw e Frank. Quando Frank tentou se afastar de Shaw, o homem ferido o segurou com a pouca força que lhe restava. – Ligue para Anna. Por favor.
– Está certo. Vou fazer isso agora mesmo – disse Frank rapidamente. Shaw desmaiou e seu braço pendeu para o lado. Alguns minutos depois, estava sendo transportado em uma maca. Victor, o skinhead com a tatuagem de dragão, fez sua saída final dentro de um saco. Pela janela, Frank viu a ambulância partir rapidamente. O quarto seria esterilizado, eles lidariam com a polícia local e aquilo nunca apareceria nos noticiários franceses. Frank repassou mentalmente os passos a seguir. – Quem é Anna? – perguntou um dos homens de Frank vindo em sua direção. Frank sacou o BlackBerry do bolso e leu na tela pela quarta vez: “Alerta urgente: ataque ao Phoenix Group, em Londres. Não há sobreviventes.” Era por isso que tinha tentado falar com Shaw no hotel. Estava indo lhe contar pessoalmente quando recebeu o sinal de perigo de Shaw. Frank olhou para o quarto destruído e deu um grande suspiro. – Uma mulher de quem ele era muito íntimo.
KATIE JAMES ESTAVA SENTADA em seu pequeno apartamento no Upper West Side, Nova York, olhando para uma garrafa de gim que havia posto cuidadosamente sobre o balcão da cozinha. Havia um copo vazio ao lado. Ela colocou cinco cubos de gelo no copo e depois dois dedos de água tônica. Recostou-se e pensou no que fizera até então. Mexeu a água tônica com uma colher, fazendo o gelo bater tentadoramente no interior do copo. Katie olhou para a garrafa de gim. Um drinque, só um. E ela não o merecia? Para começar, quase fora assassinada. E depois tinha voado para sua casa, em Nova York, para descobrir que fora dispensada de seu trabalho na página do obituário por causa de um corte de custos. Eles a haviam substituído por um freelancer de quase 80 anos. Também haviam lhe desejado um vigoroso “Boa sorte, Katie!” enquanto ela era escoltada pelo segurança para fora do prédio. Katie quis voltar correndo lá para dentro, pegar os Pulitzers que ganhara e enfiá-los pelas goelas gordas deles. Em vez disso, voltou para casa e estava olhando para o gim. Tomaria só um drinque. Sabia que conseguiria se controlar. Sentia que tinha força de vontade para se limitar a um. Desenroscou a tampa da garrafa e cheirou a deliciosa bebida. Pôs uma dose de suco de limão no copo, girando o medidor enquanto se preparava para o último passo: acrescentar o Bombay Sapphire. Seria um brinde à sua nova carreira... que ela ainda não sabia qual era. Mas essa não era toda a história. O fato é que, quando estava sóbria, Katie via Behnam em seus sonhos. O garotinho afegão que morrera para que ela pudesse ganhar seu segundo Pulitzer sempre aparecia quando Katie dormia. Ele parecia muito vivo, com seus cabelos cacheados balançando ao vento sufocante do deserto. O sorriso em seu rosto era capaz de derreter até o mais duro dos corações e iluminar a mais escura das noites. Mas o sonho sempre terminava com Behnam morto nos braços de Katie. Ele sempre morria. Katie só não o via quando estava bêbada. Só assim ele ficava longe. E isso significava que ela o vira quase todas as noites nos últimos seis meses. Ele havia morrido centenas de vezes após ser ressuscitado em seus sonhos, três ou quatro vezes por noite. Ela estava cansada desse espetáculo. Queria um drinque. Não, queria ficar bêbada. Não queria ver Behnam vivo e depois morto. Sentada, com as coxas nuas e usando apenas uma velha blusa de moletom, Katie olhou pela janela. Havia um grande comício no Central Park. Era um protesto contra o governo russo. Dezenas de milhares de pessoas marchavam e acenavam bandeiras onde se lia “Lembrem-se de Konstantin”. Katie não tinha como saber que as bandeiras haviam sido secretamente entregues para os organizadores do comício por uma empresa fantasma ligada à Pender & Associates. Vinte milhões de bandeiras foram fabricadas e distribuídas em todo o mundo para eventos como aquele. Katie tinha decidido não participar do protesto. Tinha outras coisas em mente. Ela desviou o olhar da janela e por acaso viu a TV através do vidro azul da garrafa de gim. Notícias de última hora. Certo. Sempre havia notícias de última hora. A próxima grande reportagem. Em um passado recente, Katie já estaria num avião, voando a 800 quilômetros por hora direto para o epicentro da tempestade. E adorando cada segundo até que aquilo terminasse e surgisse a próxima grande reportagem. E depois a seguinte, em uma corrida alucinada e cheia de adrenalina sem linha de chegada. Londres de novo. Bem, Londres tinha sua cota de notícias de última hora, embora nada de ruim houvesse acontecido enquanto Katie estivera lá. Ela deu um suspiro profundo e olhou preguiçosamente para o prédio cercado pelas faixas amarelas da polícia. Aquilo lhe pareceu familiar. Ela se empertigou e esqueceu o gim. O que a mulher estava dizendo? Westminster? Que grupo? Katie se levantou de um pulo, correu para a sala de estar e aumentou o volume da TV. A repórter estava na chuva, enquanto policiais e pessoas de uniformes brancos corriam de um lado para outro. Uma multidão de curiosos era contida por barreiras portáteis. Equipes de TV estavam posicionadas em toda a rua, suas antenas via satélite transmitindo a reportagem eletronicamente para todo o mundo.
– O Phoenix Group seria o último lugar do mundo em que a maioria das pessoas esperaria que acontecesse algo desse tipo – dizia a repórter. – Situado em uma rua tranquila de Londres, foi descrito como um centro de pesquisas que conduzia investigações sobre políticas globais, cobrindo uma infinidade de temas sociais e científicos. Praticamente todas as pessoas que trabalhavam aqui eram pesquisadores e cientistas, muitos dos quais ex-professores universitários que não se esperaria que fossem alvos de um assassinato brutal. A lista oficial dos mortos só será divulgada depois que as famílias forem avisadas. Embora ainda não se saiba detalhes, parece que o massacre... Massacre? A mulher disse massacre? Katie desabou no tapete, seu coração batendo acelerado no peito. Suas pernas pareciam paralisadas. – Até agora, as autoridades dizem apenas que há quase trinta vítimas dentro do prédio – continuou a repórter. – Não há sinal de sobreviventes. Não há sinal de sobreviventes? Katie olhou de relance para seu relógio e fez um rápido cálculo de fuso horário enquanto sua mente de repórter entrava em ação, apesar de seu pânico crescente. Entardecia em Londres. Algumas horas para os corpos serem descobertos, a polícia ser chamada e os repórteres e as pessoas chegarem lá. Aquilo podia ter acontecido às três ou quatro horas da tarde. Então o pânico voltou. Não há sobreviventes. Ela se levantou rapidamente, correu para o telefone, pegou o cartão de visita que Anna lhe dera e telefonou. A ligação caiu imediatamente na caixa postal. Katie sufocou um soluço quando a voz de Anna surgiu na linha pedindo que deixasse uma mensagem. Ela desligou sem dizer nada. Seu próximo pensamento a atingiu como um raio. – Shaw! – exclamou. Katie telefonou para o número que ele lhe dera. O telefone tocou quatro vezes e ela achou que a ligação também cairia na caixa postal, então alguém atendeu. – Allo? – disse uma voz feminina em francês. – Hum... posso falar com Shaw? – pediu Katie após um momento de confusão.
A mulher do outro lado da linha voltou a falar em francês. Katie pensou rápido, tentando se lembrar de seu francês de colégio e do pouco que havia aprendido no exterior. Perguntou à mulher se ela falava inglês e ela respondeu que um pouco. Katie lhe perguntou onde Shaw estava. A mulher não conhecia aquele nome. – Você está com o telefone dele. De repente a mulher pareceu confusa, mas lhe perguntou se ela era da família. Aquilo não parecia muito bom, pensou Katie. Por um momento surreal, ela se perguntou se Shaw estaria com Anna no Phoenix Group e também teria sido morto. Mas por que uma francesa estaria com o telefone dele se o massacre ocorrera em Londres? – Sim – respondeu Katie. – Sou da família. Sou irmã dele. Quem é você? A mulher disse que era enfermeira e se chamava Marguerite. – Enfermeira? Não entendo. – Esse homem, Shaw, está no hospital – disse Marguerite. – O que houve com ele? – Foi ferido. Está sendo operado. – Onde? – Em Paris. – Em que hospital? A mulher lhe disse. – Ele vai ficar bem? A mulher disse que não sabia responder a essa pergunta. Katie correu para fazer as malas. Usando as milhas acumuladas, reservou uma passagem num voo da Air France que saía do JFK naquela noite. Ela tentou dormir durante o voo, mas não conseguiu. Enquanto outros passageiros cochilavam, os olhos dela estavam grudados no canal de notícias em seu monitor individual. Havia mais algumas informações sobre o massacre no Phoenix Group, como a mídia o estava chamando, mas nada realmente esclarecedor. Katie tinha tentado telefonar para Anna antes de entrar no avião, mas a ligação caíra novamente na caixa postal. Enquanto o jato zunia sobre o oceano, Katie se perguntou por que estava fazendo aquilo. Mal conhecia Anna e Shaw. E como Shaw tinha deixado muito claro, e com razão, ela não tinha nenhum direito de se meter na vida deles. Então por que você está fazendo isso, Katie? Por quê? Talvez a resposta fosse simplesmente que ela não tinha mais nada para fazer na vida. E, embora não fosse íntima de Anna e Shaw, o modo dramático como os encontrara fazia com que lhe parecessem mais do que meros conhecidos. E agora? Agora ela se sentia como se uma amiga querida tivesse morrido. O avião aterrissou às sete da manhã no horário local. Katie passou pela alfândega e pegou um táxi para o hospital, que ficava perto do centro de Paris. Pagou o taxista e entrou correndo pela porta da frente do hospital. Usando seu pouco francês, encontrou rapidamente alguém que falava inglês e perguntou onde era o quarto de Shaw. Foi informada de que não havia ninguém ali com aquele nome. Droga! Ela se recriminou mentalmente por não ter perguntado à enfermeira com quem conversara com que nome Shaw havia sido internado. – Ele estava muito ferido. Foi operado ontem. É um homem alto, tem cerca de 1,90m, cabelos escuros e olhos muito azuis. A mulher a olhou inexpressivamente. – Este hospital é enorme, madame. – Falei com uma enfermeira daqui sobre ele. O nome dela era Marguerite. – Ah, Marguerite, bon, isso ajuda – disse a mulher. Ela deu um telefonema, falou por um minuto e depois fez um sinal afirmativo com a cabeça para Katie. – Monsieur Ramsey está no quarto 805. Quando Katie correu para o elevador, puxando sua mala com rodinhas, a mulher começou a falar novamente pelo telefone, seguindo-a com um olhar preocupado.
UMA HORA DEPOIS DE Anna Fischer ser morta, o BlackBerry de Nicolas Creel vibrou. Ele rolou na cama, o pegou, pressionou uma tecla e cinco palavras apareceram na tela: “Tudo bem quando termina bem.” Era uma mensagem de Caesar. Quem diria que um homem desses era fã do Bardo? Creel olhou para seu relógio. Tarde em Londres, conforme o previsto. Ele rolou para o outro lado e voltou a dormir. Mais tarde naquela noite, Creel alisou o paletó de seu smoking e se levantou da cadeira sob aplausos ensurdecedores. Dirigiu-se ao púlpito e cumprimentou o governador. Foi ovacionado por uma multidão de membros da elite que haviam pago 5 mil dólares cada para ter o privilégio de ver Nicolas Creel ser homenageado como o homem do ano por sua filantropia. Seu último grande ato tinha sido uma doação de 80 milhões de dólares para a moderna unidade de tratamento de câncer infantil de um grande hospital. Creel já tinha prédios suficientes com seu nome, por isso batizara a unidade em honra de sua falecida mãe. O governador da Califórnia tinha sido efusivo em seus comentários introdutórios, dizendo que o bilionário fabricante de armas sempre seria lembrado por sua visão inigualável e sua compaixão ilimitada pelos outros. Se a mãe de Creel fosse viva, sem dúvida teria derramado muitas lágrimas com essa apresentação. Os olhos de Creel não ficaram úmidos em momento algum. Esse simplesmente não era seu estilo. Como tudo o mais em sua vida, cada ação sua tinha múltiplas motivações. O evento dessa noite não era uma exceção. Na verdade, aquele tinha sido um dinheiro bem gasto. Creel não tinha nenhum problema em ajudar crianças doentes. Quase perdera seu filho mais velho por causa de uma leucemia, o que despertara seu interesse por pesquisas e tratamentos de câncer. Ele poderia ser mais ganancioso do que a maioria das pessoas, só que também era muito mais bem-sucedido. Na verdade, Creel tinha um coração generoso. E, o que era ainda melhor, tinha muito dinheiro. Durante décadas, havia doado bilhões para obras de caridade, bem mais do que seus colegas super-ricos. Propagar a riqueza faz com que você e outras pessoas se sintam bem. Esse era um ótimo jeito de honrar sua mãe, dar-lhe a imortalidade que ela merecia. Mas realizar boas obras também lhe garantia amigos nos lugares certos quando precisasse deles. Creel tinha a sensação de que o governador da Califórnia e o estado em geral seriam seus amigos para sempre. Aquilo era um ganho mútuo, o tipo da coisa fácil de fazer. E, por 80 milhões de dólares, era realmente barato. Creel tirou seu discurso do bolso e olhou para a multidão afetuosa, subitamente se perguntando se existia uma substituta para Hottie ali. Havia um bom motivo para ter deixado sua mulher em casa. Definitivamente estava na hora de fazer uma mudança. Hottie estava entediada com ele e a única qualidade dela que lhe interessava havia muito perdera o encanto. Dessa vez Creel optaria por mais cérebro, desde que a mulher tivesse uma aparência física excepcional. Ele adorava ter coisas bonitas ao seu redor. Creel começou seu discurso com uma referência ao que a mídia agora chamava duramente de “O Massacre de Londres”. Depois pediu um minuto de silêncio em respeito às vítimas. Achou que essa seria uma bela atitude. Baixou a cabeça e chegou mesmo a pensar nos mortos e em suas famílias. De fato, seus olhos ficaram marejados. Aquilo era realmente terrível. Lamentava ter sido obrigado a fazê-lo. Se tivesse havido uma alternativa! Que tragédia! O mundo ficara muito complicado e as linhas do bem e do mal se tornavam difíceis de distinguir, quase inexistentes. Creel levantou a cabeça e viu um mar de olhos brilhantes fitando-o. Aquele era realmente um momento mágico. Naquele precioso minuto, ele e o público tinham se conectado. Estavam naquilo juntos. O mundo se uniu um pouco mais com essa calamidade, assim como quando outros desastres aconteceram. Da adversidade e da catástrofe advinham coisas surpreendentes. Não era por coincidência que os melhores presidentes americanos tinham servido durante a guerra. O conflito armado fazia isso com você. Ou para você. Fazia com que se elevasse ou explodisse. Não havia meio-termo, não havia onde se esconder. Aquele era o critério de avaliação mais perfeito de toda a história. Creel acreditava que somente com a perda as pessoas se davam conta de todo o potencial da vida. Cerca de dez minutos depois, ao terminar seu discurso e voltar à sua cadeira, agradecendo humildemente ao público que o aplaudia de pé, Creel refletiu por um momento sobre a mensagem de Caesar.
Aquela havia sido realmente uma noite extraordinária, até mesmo para ele! Caesar e Pender sem dúvida achavam que se tratava apenas de dinheiro, de ressuscitar a Ares. Esse certamente era um dos motivos, mas não o principal. Somente ele, Nicolas Creel, sabia por que estava fazendo aquilo. E, se as pessoas conhecessem seus motivos, muitas o aplaudiriam, tinha certeza. Às vezes os fins realmente justificavam os meios. Nesse velho clichê, tão desacreditado ao longo dos anos, existia uma pérola de sabedoria que Creel achava que os outros finalmente começavam a entender. Os fins realmente justificavam os meios, mas apenas se os fins realmente fossem cruciais. Mas poucos eram. Para cada esforço empreendido pela humanidade era feita uma avaliação. Tanto fazia se o esforço era para oferecer tratamento médico caro para pessoas de 90 anos que tinham pouco tempo de vida; impedir que campos de petróleo fossem explorados para uma determinada coruja sobreviver; ou gastar trilhões de dólares e sacrificar centenas de milhares de vidas para estabelecer uma democracia em terras muçulmanas, na esperança de que a liberdade se espalhasse. Essas decisões eram tomadas todos os dias. E, qualquer que fosse a decisão, alguém saía ferido, muitos morriam e tantos outros tinham suas vidas destruídas. Ainda assim, era preciso tomá-la. E fora exatamente isso que Creel fizera. Na verdade, ele tomara sua decisão com muito mais planejamento e reflexão do que a maioria dos governos tiveram ao contemplar algo tão monumental. Acima de tudo, Creel tinha uma saída estratégica, quer seu plano desse certo, quer não. Na recepção após a cerimônia de premiação, Creel conheceu várias mulheres que poderiam servir como futuras companheiras, não esposas. Ele já havia se decidido a esse respeito. Elas sempre estavam nesses tipos de eventos, mesmo as com cérebros e diplomas de universidades renomadas. Ele era rico e bem relacionado demais para ser ignorado. Mais tarde, quando a mulher alta e elegante que convidou para acompanhá-lo em um drinque entrou em sua limusine, Creel teve a sensação de que nunca mais nada daria errado em sua vida. Momentos assim eram muito fortalecedores e raros – até mesmo para homens como ele.
Creel pretendia saborear o máximo possível esse momento, porque estava ciente de que amanhã tudo poderia mudar. Um homem esperto sabia que a vitória não era inevitável. Um homem ainda mais esperto sabia que a derrota nunca era total se você descobrisse como lidar com ela com habilidade e no momento certo. E os mais espertos de todos venciam até mesmo quando perdiam. Nicolas Creel sempre tinha se considerado um desses homens.
QUANDO KATIE SAIU DO elevador, no oitavo andar, logo sentiu a mão grande de alguém apertando seu ombro. Sua reação imediata foi se desvencilhar, mas, quando olhou nos olhos do homem de ombros largos e expressão séria, capitulou. – Venha comigo – disse ele com um sotaque inglês truncado. – Por quê? A mão do homem se fechou mais em seu ombro. Ao mesmo tempo, outro homem de terno, que parecia ainda maior e mais forte que o primeiro, se juntou a eles. Mostrou um distintivo tão rapidamente que Katie não conseguiu ver o que dizia. – Temos algumas perguntas para você – disse ele. – Ótimo, porque também tenho algumas perguntas para vocês. Eles se postaram de cada lado de Katie enquanto os três seguiam pelo corredor. Uma porta se abriu e ela foi levada para uma saleta, onde lhe disseram que se sentasse. Katie continuou de pé, com os braços cruzados e uma expressão desafiadora. Um dos homens suspirou. – Voltaremos em um minuto. Exatamente 60 segundos depois, eles voltaram com outro homem, mais velho, careca e usando um terno amarrotado que precisava de uma boa lavagem. Ele se sentou e fez um gesto para que Katie também se acomodasse. – Quer beber alguma coisa? – Não – respondeu Katie enquanto se sentava diante dele. – Quero ver Shaw. Frank se recostou e a estudou. – Importa-se se eu lhe perguntar como o conheceu? – Sim, me importo. Frank fez um sinal com a cabeça para um dos homens, que tirou a bolsa da mão de Katie. Ela ainda tentou agarrá-la, mas o outro homem a conteve. Sua carteira e seu passaporte foram tirados da bolsa e entregues a Frank. Ele examinou os documentos por um instante. – Katie James... este nome me lembra algo. Você é repórter, não é? Está fazendo algum tipo de matéria sobre Shaw? – Não, ele é um amigo. – Isso é estranho, porque conheço todos os amigos de Shaw e você não está entre eles. – Sou uma amiga recente. Posso ver seu distintivo ou suas credenciais? Quero me certificar dos fatos para a denúncia que farei contra você se não me deixar sair daqui! – Quão recente? – perguntou Frank, calmo. Katie hesitou antes de dizer: – Edimburgo. – Ele nunca mencionou isso. – Frank estudou o passaporte dela com mais atenção. – Então voou de Nova York para cá apenas para ver seu amigo recente? Por quê? – Quem é você? – Por que está aqui? – insistiu Frank. – Ele está vivo ou morto? – Vivo, escapou por pouco. Agora responda à minha pergunta. – Telefonei para Shaw ontem. Uma mulher atendeu e disse que ele estava no hospital, sendo operado. Então eu vim para cá. – Entendo. E por que telefonou para ele? – Você vai responder a alguma das minhas perguntas? – Por que telefonou para ele? Katie olhou, nervosa, ao redor da saleta. Os outros dois homens a encaravam, impassíveis. – Porque fiquei sabendo sobre o Phoenix Group. Frank não pareceu nem um pouco satisfeito com isso. – O que ficou sabendo?
– Ora, vamos! – explodiu Katie. – Duvido que não tenha ouvido falar do massacre em Londres. – Qual é a ligação com Shaw? – Anna Fischer. E posso ver pela sua expressão que já sabe tudo sobre isso, portanto não tente me enganar. Não gosto disso. – Como conheceu a Srta. Fischer? – Ela está morta? – Como a conheceu, Srta. James? Katie ficou em dúvida quanto a contar toda a verdade ou não. Decidiu contar uma história totalmente inventada, mas plausível. – Eu estava fazendo uma matéria sobre o Phoenix Group. Foi assim que conheci Anna. E através dela conheci Shaw. Nós nos tornamos amigos. – Você disse que conheceu Shaw em Edimburgo. Como sabia que ele estaria lá? – Anna me disse. – Não, não disse. Posso perceber tão bem quanto você quando estão tentando me enganar. Agora, tem duas opções. Contar toda a verdade ou ter decretada sua prisão preventiva em uma cadeia francesa. Os tribunais franceses são famosos por sua lentidão. Pode ficar lá alguns anos até alguém se lembrar de levá-la a julgamento. E os franceses não são conhecidos pela higiene de suas prisões. – Sei disso. Há cinco anos fiz uma matéria sobre as lixeiras que os franceses chamam de prisões e ganhei um importante prêmio de jornalismo por isso. A propósito, qual seria a acusação contra mim? Porque até mesmo os franceses precisam de uma para jogar alguém na prisão. – Que tal estupidez e falta de cooperação? – E que tal me levar à embaixada americana? Sei o endereço de cor. – Parece que chegamos a um impasse. – Frank bateu com os dedos na mesa. – Vai me contar a verdade se eu lhe deixar ver Shaw?
Katie se recostou, não parecendo tão desafiadora nem confiante. Dessa vez optou pela verdade. – O.k. Eu estava de férias em Edimburgo. Vi Shaw e outro homem na capela do castelo. Algo me pareceu suspeito. – Ela explicou o que tinha acontecido perto de Gilmerton’s Cove, como Shaw salvara sua vida e como ela seguira a pista que ele deixara no hotel. Depois contou sobre seu encontro com Anna. – Estou surpreso por ele não ter me contado nada disso. – Ele escapou por um triz naquela noite. E só ficou sabendo que eu tinha entrado em contato com Anna há pouco tempo. Não ficou muito feliz com isso. Na verdade, ficou bem zangado. – Tenho certeza de que sim. – Agora sabe de tudo. – Katie hesitou, com poucos motivos para ainda ter esperança. – Anna foi morta? – Sim. Junto com todas as outras pessoas no local. Katie olhou para as próprias mãos. – Por quê? O Phoenix Group era apenas um centro de pesquisas. Anna disse que ninguém prestava atenção ao trabalho deles. – Parece que alguém prestou. – Shaw já sabe sobre Anna? – perguntou Katie, erguendo os olhos para Frank. – Não – disse Frank em voz baixa, sem encará-la. – Ele vai ficar bem? – Ele perdeu muito sangue, mas os médicos dizem que a cirurgia correu bem e ele está fora de perigo. É um cara durão. Katie deixou escapar um longo suspiro. – Graças a Deus – disse ela. – Mas quando Shaw descobrir sobre Anna... – Alguém tem que contar a ele. – Não tenho certeza de que isso vá acontecer tão cedo – disse Frank sinceramente. – Mas e se ele descobrir pela TV, pelos jornais ou pelo telefone?
Frank balançou a cabeça. – Nós já cuidamos disso. – Ele não vai se perguntar por que Anna não está com ele no hospital? – Vou dizer a ele que nós a mantivemos longe. – Mas Shaw vai querer falar com ela, pelo menos ao telefone. – Katie fez uma pausa. – Não sei o seu nome. – Frank – disse ele, após um instante de hesitação. – Esse é o nome ou sobrenome? – Apenas Frank. – O.k., Apenas Frank, eles estão noivos. Shaw não vai engolir nem por um segundo essa história de não poder vê-la nem falar com ela. – Eu não disse que esse era um plano perfeito, disse? – explodiu Frank subitamente. – Shaw me pediu que telefonasse para Anna quando achou que estava morrendo. Eu disse que telefonaria, mesmo já sabendo que ela estava morta. Frank se levantou de um pulo e começou a andar pela sala, com as mãos enfiadas nos bolsos e olhando para seus sapatos. – Posso ver Shaw? Disse que eu poderia, se lhe contasse a verdade. Frank parou de andar. Sem olhar para Katie, fez um ligeiro sinal com a cabeça para seus homens. Enquanto eles a escoltavam para fora, Frank disse: – Conte para ele. Katie se virou. – O quê? – Você tem razão. Ele precisa saber sobre Anna. – Eu? Eu... não posso. Eu... – protestou Katie, aturdida. – Disse que ele salvou sua vida, que é amiga dele. Então comece a agir como tal. Apavorada, Katie começou a dizer mais alguma coisa, porém Frank bateu a porta na cara dela. Um minuto depois, estava andando na direção do quarto de Shaw.
E aquilo foi como se estivesse andando o último quilômetro solitário a caminho de sua própria execução.
NICOLAS CREEL DEIXARA LOS Angeles em direção à Itália num voo noturno em seu avião particular. Agora bancava o capitão de seu iate, o Shiloh. A gigantesca embarcação era muito mais longa do que um campo de futebol, com mais de 200 metros de comprimento e nove andares. Só a suíte master de Creel tinha mais de 460 metros quadrados, sendo muito maior do que uma casa comum. O iate podia receber até 30 convidados com extremo luxo, porque também possuía piscina interna, cinema, discoteca, academia de ginástica, adega, quadra de basquete, todos as atrações aquáticas imagináveis, dois helipontos, vários ofurôs e até mesmo um submarino particular, com capacidade para quarenta passageiros. O submarino saía pelo casco do iate, para que Creel pudesse ir e vir com privacidade. Além disso, o Shiloh contava com uma tripulação de dezenas de profissionais muito bem treinados, cujo único objetivo era servir com prazer. O Shiloh também era um iate muito protegido, com equipamentos de segurança de ponta, sensores de movimento e até mesmo um sistema especial de detecção de mísseis. E, enquanto estava ancorado em águas italianas, o governo local, sempre atento ao prestígio e às conexões humanitárias e políticas de Creel com seu país, fornecia alguns barcos da polícia para ficar de guarda. Apesar do seu tamanho gigantesco, bem maior do que o de muitos navios de guerra, o Shiloh ainda era capaz de atingir uma velocidade máxima de 25 nós, o que lhe permitia escapar facilmente de qualquer tempestade. De modo geral, Creel o havia considerado uma pechincha, meros 300 milhões de dólares. De todas as suas residências no mundo, o Shiloh era a de que mais gostava. Quando jovem, tinha uma paixão secreta pelo mar e um desejo, nunca satisfeito, de entrar para a marinha mercante e viajar de navio pelo mundo. Combinando com o ambiente náutico, Creel estava usando uma jaqueta azul-marinho com duas fileiras de botões, calças creme e um quepe branco de marinheiro. Observou o helicóptero se dirigindo para o iate, sobrevoando as águas calmas abaixo dele a uma velocidade apenas um pouco maior que 100 nós. A aeronave diminuiu o ritmo, flutuou no ar, atingiu a marca da área de pouso e o movimento das hélices se tornou mais lento. Dick Pender saltou, usando um chapéu de aba larga, óculos de sol e um longo casaco de couro. Carregava uma pasta de documentos fina que o vento fazia bater em sua perna. Creel foi ao encontro de Pender no deque de popa e desceu com ele por uma larga escada de teca polida até uma grande sala a meia-nau revestida com painéis de nogueira. Do lado de fora das grandes vigias, para além das águas lisas, escuras e misteriosas do Mediterrâneo, era possível ver a costa da Itália. – Sua mulher está com você? – perguntou Pender, enquanto tirava o chapéu e o casaco e os atirava sobre uma cadeira. – Não. A tripulação gosta demais do hábito dela de tomar banho de sol nua. Está na Suíça, em algum spa, se recuperando. Nunca sei exatamente do quê. Pender olhou de relance para a parede, onde uma TV de tela plana exibia cenas do Massacre de Londres. – Houve uma confusão e tanto por lá – disse Pender. – Você tem andado muito ocupado. Creel sabia muita coisa sobre Pender, por isso nunca se preocupou com a possibilidade de o homem se voltar contra ele. E ninguém sabia que Pender estava ali. Ele chegara em segredo e partiria em segredo. Era assim que Creel trabalhava. Quando você tinha sua própria companhia de aviação, não havia nada mais fácil de fazer. – Vamos direto ao assunto – exigiu Creel. Ao ouvir isso, Pender tirou o conteúdo de sua pasta. – Presumo que os materiais apropriados tenham sido deixados no Phoenix Group – disse Pender. – Sim. – Alguma indicação de se a polícia os encontrou? – Ainda é cedo, mas eles estão fáceis de encontrar. É só uma questão de tempo. – Você tem alguém lá dentro? Creel simplesmente fez um gesto afirmativo com a cabeça. – Sabe, quando você me telefonou e contou o que tinha descoberto sobre o Phoenix Group, aquilo pareceu perfeito demais – disse Pender.
– Pensei a mesma coisa – admitiu Creel. – Mas foi tudo conferido, ou eu não o teria feito. Então me diga o que planejou para tornar pública nossa próxima “verdade”. Pender pegou um pedaço de papel. – Para máxima exploração e disseminação, recomendamos ir primeiro para a internet e deixar os meios de comunicação predominantes correrem atrás da história. As grandes cadeias de emissoras não gostam de assumir isso, mas vivem vasculhando blogs em busca das últimas histórias e tendências. Isso fará com que pareça ter uma origem mais popular e local. Dará mais credibilidade e afastará suspeitas. Creel assentiu com a cabeça. – Assim revelamos a identidade do dono do Phoenix Group e a isso se seguirá naturalmente o inevitável vazamento da história descoberta em Londres. – É isso que acho que vai acontecer. Teremos a revelação da propriedade e depois a notícia realmente chocante do que estavam fazendo lá. Isso será contestado, é claro – acrescentou ele. – É claro que será, o que só aumentará a credibilidade da informação. Se você contesta, perde. – Suas tropas da linha de frente trabalharam com perfeição. – Bem, elas ainda não terminaram – respondeu Creel enigmaticamente. – Quando haverá o vazamento? – Ela está pronta e a postos. Puxarei o gatilho quando achar que é o momento certo. – E ela é confiável? – Não é uma questão de confiança. – E depois que ela liberar a história? – Então decidirei o que fazer, Dick. – De acordo com minha experiência... – começou Pender, antes de Creel interrompê-lo acendendo um charuto, se afastando dele e pegando uma garrafa. – Aceita um cálice de vinho do Porto? Sempre acho o vinho do Porto um bom apoio para a criação de um grande esquema.
– Sei que seu vinho do Porto é melhor do que qualquer outro – disse Pender, sorrindo. O apito de um navio soou. Pender olhou para fora da vigia a estibordo a tempo de ver uma lancha de 26 pés se aproximando, cheia de crianças alegres com roupas surradas. Ele virou-se para Creel com uma expressão divertida. – Está fazendo excursões no Shilloh, Sr. Creel? Ganhando um dinheiro extra com a ralé do Mediterrâneo? Creel não retribuiu o sorriso. Ele se levantou da cadeira, alisou sua jaqueta de marinheiro e ajeitou o quepe. Era por isso que estava usando o uniforme, para as crianças. – São crianças de um orfanato local. Nunca fazem nada. Então, sempre que estamos ancorados aqui, eu as recebo. Ofereço a elas uma boa refeição, roupas novas, brinquedos e um pouco de diversão. São apenas crianças; deveriam ter um pouco de diversão, Dick. – Muito generoso da sua parte. – Foi por isso que não trouxe minha mulher. Ela não consegue ficar vestida quando está neste barco, mesmo com crianças pequenas correndo por aí. Quero dizer, se os membros da tripulação quiserem ficar olhando para ela, eles são adultos. Mas as crianças? Essa é uma faceta horrível da personalidade dela. Se eu tivesse sabido antes do casamento... Bem, agora não dá para mudar isso. – Uma pequena mossa em sua aura de onisciência – disse Pender, sem se dar o trabalho de esconder um sorriso. – Dick, percebo que de vez em quando você toma liberdades comigo que não tem o direito de tomar. Pender pareceu assustado. – Me desculpe, Sr. Creel. Não tive a intenção... Creel pôs um cálice de vinho do Porto na frente dele e disse: – A propósito, é mesmo o melhor. Ao erguer nervosamente seu cálice para Creel, Pender estava pálido.
– A um mundo melhor – disse Creel. – A um mundo melhor – murmurou Pender, nervoso. – Não fique tão chateado, Dick, eu não estava falando totalmente a sério. Esse comentário não pareceu fazer Pender se sentir nem um pouco melhor. – Voltarei em alguns minutos, após fazer as crianças se sentarem para comer. Depois vou levá-las para um passeio de submarino. – Você tem um submarino!? – Eu tenho tudo, Dick. Achei que você soubesse disso. – Sim, mas órfãos italianos em um submarino? – Quando alguém tem tudo, precisa partilhar – acrescentou Creel em tom firme. Enquanto ele se dirigia ao deque superior para receber seus jovens convidados, Pender se sentou para trabalhar. Contudo, parte de sua mente contemplava a estranheza da humanidade em geral e a peculiaridade de um homem imensamente rico em particular. Também fez uma anotação mental para nunca mais se colocar em condição de igualdade com o bilionário. Ele sabia que isso poderia ser fatal. A verdade era que pouquíssimas pessoas podiam fazer o que Dick Pender fazia. Mas também era verdade que só havia um Nicolas Creel.
SHAW ABRIU OS OLHOS lentamente. A primeira imagem que viu foi a parede distante onde havia um pequeno armário. Ao deslocar seu olhar para a direita, o par de pernas longas e bem torneadas perto da porta entrou em seu campo de visão. Ele sorriu, embora o efeito dos analgésicos estivesse começando a passar e seu braço esquerdo parecesse ter sido amputado. – Anna? – disse, tentando esticar o braço bom para alcançála. As pernas se aproximaram, entrando em foco. – Não. Sou eu, Katie James. Lembra-se de mim? – perguntou ela sem jeito, com a voz trêmula. Meu Deus, ele me confundiu com Anna! Katie parou perto da cama. Shaw ergueu a cabeça bem devagar para vê-la. Sob efeito dos medicamentos, ele perguntou com a voz arrastada: – O que você está fazendo aqui? Katie ficou paralisada por um momento. Não havia pensado nisso. Qual era o motivo de estar ali, além de Anna? Sua mente começou a funcionar de repente. – Liguei para o seu celular e uma enfermeira atendeu. Ela disse que você tinha sido ferido, por isso vim... hum... dar uma olhada em você. Ver se estava bem. – Você veio a Paris? – Bem, eu estava em Londres – mentiu. – Em uma viagem rápida. Katie pôs sua bolsa na mesa de cabeceira, puxou uma cadeira e sentou-se perto de Shaw. Passou os dedos pelas grades laterais da cama e apertou a mão grande de Shaw na dela. Viu a enorme atadura manchada de sangue cobrindo o braço esquerdo dele. Viu também os hematomas e cortes em seu rosto e pescoço.
– Nossa, parece que você foi atropelado por um trem, mas dizem que vai ficar bom. – Onde está Anna? – perguntou ele, grogue. Katie começou a falar, mas não conseguiu contar a verdade. Não conseguiria. A notícia poderia matá-lo. – Não sei. Entraram em contato com ela? Shaw assentiu com a cabeça, distraído. – Eu falei com Frank. Ele cuidou disso – disse vagamente. De repente Shaw estremeceu e apertou o braço ferido, obviamente tomado pela dor. Katie olhou ao redor, aflita, viu o botão de comunicação com a enfermagem e o apertou. Uma voz respondeu ao chamado. Katie falou com a enfermeira, que, um minuto depois, entrou no quarto. Ela aplicou uma medicação intravenosa em Shaw, através do soro, e ele pouco a pouco voltou a dormir. Katie continuou a segurar a mão dele, tirou os sapatos e se apoiou na grade, observando o peito de Shaw subir e descer. Ficou sentada ali sem perceber o tempo passar. Exausta por causa de suas viagens e da falta de sono, seus olhos finalmente se fecharam. Um bom tempo se passou enquanto Katie e Shaw dormiam pesadamente. Quando enfim abriu os olhos, Katie viu Shaw olhando para ela. Soltou a mão dele lentamente e se aprumou. – Como está se sentindo? – perguntou ela. – Por que você veio aqui? – O tom dele era áspero e ela percebeu imediatamente. A confusão causada pelos medicamentos havia passado. – Eu já disse. Soube que você tinha sido ferido. E, bem, você salvou minha vida. Uma mão lava a outra – acrescentou rápido, desejando imediatamente não ter dito aquelas palavras estúpidas. Shaw parecia enxergar através de sua pele, esquadrinhando sua alma, um lugar ao qual nem mesmo ela se aventurava com muita frequência. Aquilo era assustador. – Está com fome ou com sede? – perguntou Katie rapidamente, esperando se proteger do olhar contundente dele com assuntos triviais.
– Onde está Frank? Você teve que passar por ele para entrar aqui.
– Ele está por aí em algum lugar. Shaw tentou se levantar da cama, mas Katie gentilmente o forçou a permanecer deitado. – Você está cheio de tubos – avisou-lhe. – Fique deitado ou pode se machucar. – Quero ver Frank – disse ele em tom firme. – Quero saber onde está Anna! – Vou ver se consigo encontrá-lo. – Faça isso! Katie sentiu sua boca ficar seca enquanto Shaw lhe lançava um olhar acusador, como se ela tivesse cometido um crime. E, na verdade, ela se sentiu como se o tivesse cometido. Havia mentido para Shaw e ele sabia disso. Ela saiu do quarto quase correndo. www – Então você não contou para ele? – perguntou Frank, com o mesmo tom acusador que Shaw havia acabado de usar. Eles estavam de volta à saleta. – Shaw já está bastante machucado, vulnerável e deprimido – disparou Katie. – Não convém contar para ele agora. Frank não pareceu convencido, mas também não discutiu. – Ele quer ver você – disse Katie. – Sei que quer, mas não posso lhe dizer o que ele quer ouvir. – Então o que vamos fazer? – Vamos manter Shaw drogado até que se recupere um pouco mais. – Como ele foi ferido? Frank olhou para ela, incrédulo. – Quer que eu lhe faça um relatório? – Se ele continuar a trabalhar para você, vai acabar sendo morto. Sabe disso, não sabe?
– Esta é uma profissão arriscada. Tentamos ser o mais cuidadosos que podemos. – Isso inclui fazer seus próprios homens atirarem nele? Porque isso parece um pouco demais até mesmo para a sua “profissão”. Frank se virou e olhou para ela. Estava prestes a dizer alguma coisa quando ouviu um tumulto. Katie e Frank correram na direção do quarto de Shaw. Gritos cortavam o ar e houve um barulho como o de uma mesa sendo derrubada. Uma porta se abriu com violência. Diversos pares de pés corriam pelo piso de ladrilho. Um grito pareceu se erguer acima de todos os outros. – É Shaw! – exclamou Frank. – Que diabo está acontecendo? Katie subitamente olhou para suas mãos. – Ah, meu Deus! – O que foi? – perguntou Frank. – Minha bolsa. Deixei minha bolsa no quarto. Meu telefone celular estava dentro dela. Tem acesso à internet. – O rosto de Katie adquiriu uma palidez mortal. – Sua vaca! – gritou Frank, correndo. Eles fizeram uma curva e pararam. Shaw estava de pé do outro lado do corredor, sua camisola hospitalar quase rasgada, o sangue escorrendo de seu braço e os tubos pendendo de seu corpo. Katie viu o telefone na mão ensanguentada dele. Ela olhou para o rosto de Shaw e descobriu que não podia desviar os olhos dele. Sua expressão era de uma angústia e de um sofrimento que ela nunca tinha visto. – Shaw! – gritou e correu para ele. Quando o alcançou, ele já estava caído de joelhos. Katie o abraçou, com lágrimas escorrendo pelo rosto. – Anna! – gritou Shaw. – Anna! Ele parecia nem perceber que Katie estava ali. – Sinto muito, sinto muito – disse ela ao seu ouvido. – Ah, Deus, sinto tanto!
Mãos a puxaram. Pessoas gritavam com ela em francês, mas Katie não largaria Shaw. Não podia largá-lo. Então uma voz gritou em inglês: – Ele está se esvaindo em sangue! Se não soltá-lo, ele vai morrer! Katie imediatamente o largou e recuou, mas continuou olhando para Shaw enquanto a equipe de enfermeiros o colocava em uma maca e o levava embora. Frank olhou ferozmente para Katie, se abaixou, pegou o telefone onde Shaw o deixara cair e o jogou de volta para ela. – Obrigado por sua ajuda, Srta. James! – disse ele, amargo. – Da próxima vez, por que não traz um revólver e dá um tiro na cabeça dele? É mais rápido assim. Ele se afastou a passos largos. Katie observou Frank ir embora, depois olhou para a tela do celular. Nela estava a manchete “Massacre de Londres”. Ela atirou o aparelho longe e desabou no chão, com lágrimas escorrendo novamente pelo seu rosto.
SHAW VESTIU SUA CAMISA larga devagar, tomando o cuidado de evitar a grossa atadura em seu braço esquerdo. A ferida era tão grande e profunda que o médico precisou prender a pele com grampos cirúrgicos. Uma cirurgiã plástica também havia sido chamada e fizera o melhor possível. Ela dissera que Shaw não ficaria com cicatrizes. Ele não poderia ter se importado menos. – Podemos fazer outra cirurgia mais tarde, depois que os grampos forem retirados, para melhorar isso – sugerira ela. – Não – respondera Shaw sem hesitar. Ainda podia disparar uma arma e isso era tudo que importava. Por sorte, a lâmina da serra não havia atingido seus tendões e também não houvera nenhuma lesão nos nervos. – Se aquela lâmina tivesse entrado um centímetro mais para a direita ou para a esquerda, talvez não estivéssemos tendo esta conversa agora – dissera o médico. Shaw demoraria um pouco para se recuperar totalmente, mas os médicos lhe garantiram que isso aconteceria. – Quero ir para Londres hoje – anunciou Shaw para Frank enquanto terminava de arrumar sua maleta no quarto do hospital. Frank estava sentado, de mau humor. – Deixe-me adivinhar por quê. – Em quanto tempo posso chegar lá? – Hoje em dia o trem do Eurotúnel é mais rápido que os aviões. Você pode chegar a Londres no mesmo tempo que leva para atravessar o aeroporto Charles de Gaulle. – Jato particular? – Lamento, não tenho nenhum disponível agora. – Então faça uma reserva no trem para mim. Para o início desta tarde. – Tem certeza de que quer fazer isso? – Faça a reserva, Frank.
– O.k. E depois? – Onde está Katie James? – Por quê? – perguntou Frank, surpreso. – Quero agradecer a ela. – Está maluco? Depois do que ela fez? – O que ela fez foi voar meio mundo para ver se eu estava bem. Onde ela está? – Não tenho a mínima ideia. Não sou guardião dela. Estava muito ocupado com você. – Me diga onde ela está – insistiu Shaw. – O que houve com o esquema de eu dar as ordens e você seguir? – disse Frank maliciosamente. – Acabou quando Anna morreu, porque não dou mais a mínima. Onde está Katie? – Eu já disse... Shaw o interrompeu: – Você não deixa ninguém simplesmente ir embora. Vamos, onde ela está? – gritou ele. Frank olhou pela janela. – No apartamento de um amigo na Rue de Rivoli, perto do Hôtel de Ville, enquanto ele está fora do país. – Preciso do endereço. Pode me conseguir um carro? – Você pode dirigir com esse braço ruim? – Se for um carro com câmbio automático, sim. Depois de Frank ajudá-lo a vestir a jaqueta, Shaw pegou a maleta com seu braço bom. – Sinto muito por Anna, Shaw – disse Frank. – De verdade. E, acredite ou não, eu ia deixar você parar quando se casasse. Pode tirar quanto tempo de folga precisar. A expressão de Shaw se tornou sombria. – Por que diabo está me dizendo isso agora? Por que está afrouxando minhas rédeas? Frank se aproximou da janela e então se virou.
– Estou procurando uns skinheads – disse, sorrindo. – Por quê, Frank? Você me odeia. Eu odeio você. Não temos um ótimo relacionamento profissional, mas pelo menos as regras básicas são entendidas. Frank se sentou de novo em sua cadeira, olhando para a parede. – Como acha que vim trabalhar para esta ótima organização? – Por que não me conta? Ele olhou para Shaw. – Tive a mesma escolha que você. E ainda estou aqui. Shaw ficou boquiaberto. – Você também foi coagido! E então fez o mesmo comigo? – Sim! E daí? E, só para constar, ainda odeio você. – Obrigado, Frank. E eu que estava aqui achando que minha vida não poderia melhorar. Frank olhou para suas mãos fortes. – Ela realmente devia amar você. Nunca tive ninguém assim. – Bem, eu também não tive. – Shaw parou à porta. – O corpo de Anna ainda está no necrotério em Londres? Frank assentiu com a cabeça, devagar. – Ainda não liberaram ninguém. – Depois, embora fosse desnecessário, acrescentou: – Estão investigando. – Anna gostaria de ser enterrada na Alemanha. Os pais dela certamente estão providenciando tudo. Uma parte da mente de Shaw não podia aceitar, muito menos compreender, que ele falasse de forma tão calma e racional sobre o funeral de Anna. De repente ele sentiu como se sua pele fosse pegar fogo caso não saísse para o ar livre. Frank o seguiu quando ele atravessou a porta do quarto. – Vai ver Katie agora? – Sim. – Quer que eu o acompanhe? – Não.
Shaw parou de repente e segurou seu braço ferido, evidentemente com dor. Frank pôs um braço no ombro dele, em sinal de apoio. – Lamento a confusão com os malditos nazistas – disse de um modo que pareceu sincero. – A imperícia. Não vai acontecer de novo. – Sim. Frank deu um telefonema enquanto eles saíam do hospital e se dirigiam ao carro que esperava Shaw. Escreveu algo em um pedaço de papel e lhe entregou. – O endereço de Katie. – Obrigado. Shaw deslizou para o banco do motorista e depois pôs a cabeça para fora da janela. – Entre em contato comigo para passar as informações sobre o trem. Frank assentiu com a cabeça. – Você só vai ver o corpo de Anna, não é? Não vai chegar nem perto do local do massacre. Certo? – Vejo você depois. – Droga, Shaw. Não chegue nem perto do Phoenix Group. Está me ouvindo? – Vou fazer um acordo com você, Frank. Um acordo tão bom que não poderá recusar. Quer ouvir? Frank olhou para ele, desconfiado. – Não é o que estou pensando, é? – Você me deixa investigar o caso do Phoenix Group. – Shaw... – começou Frank, mas foi interrompido. – Você me deixa fazer isso e trabalharei para o Royce do MI5 no caso da Rússia. – Não acho que... – E vou melhorar a oferta – atalhou Shaw. – Se aceitar, trabalharei para você até morrer.
Frank ficou em silêncio por um longo momento, depois disse, devagar: – E quanto à aposentadoria? Shaw lhe lançou um olhar ao mesmo tempo impotente e ameaçador. – Para que vou me aposentar, Frank? Estamos de acordo? – Sim, claro – disse Frank, depois de hesitar por um instante. Ele começou a dizer mais alguma coisa, mas o carro cantou pneus e Shaw se foi. Frank se virou e caminhou pela rua procurando um bar onde tomar uma bebida.
UM RAIO DE SOL nascente entrou pela veneziana, se arrastou pelo chão e pousou brevemente sobre a panturrilha que saía de baixo das cobertas. Mais tarde, passou pela cama, deslizou para o chão e cintilou na garrafa azul de gim, projetando reflexos no teto, como um caleidoscópio. Os demônios finalmente tinham dominado Katie James. Ela havia passado os últimos dias em uma bebedeira de proporções tão gigantescas que a única coisa de que se lembrou depois foi do profundo sentimento de vergonha. E da pior ressaca que já tivera. Debatendo-se em meio a um pesadelo, Katie havia chutado o lençol e estava deitada, com uma camiseta de mangas compridas e shorts de ginástica largos, suando por todos os poros e umedecendo suas roupas. Sua respiração se normalizou e ela enfim se acalmou. O leve movimento de seu peito e sua pele rosada eram os únicos sinais de que ainda estava viva. Katie não ouviu a campainha, a batida que se seguiu nem seu nome sendo chamado. Não ouviu a porta da frente se abrir, os passos atravessarem a pequena sala de estar nem o ranger da porta do quarto. Não sentiu a presença no cômodo nem mesmo quando o intruso ergueu o lençol do chão e a cobriu com ele. Quando o visitante se sentou, o leve ruído do estrado de molas não a acordou. Nem mesmo seu nome sendo chamado em voz baixa. O sacudir suave de seus ombros também não obteve resposta. Entretanto, o copo d’água jogado em seu rosto, isso de fato a despertou. Katie se sentou tossindo, esfregando os olhos e o nariz. – O que... – começou, zangada, até seus olhos focarem Shaw sentado ali, segurando a garrafa vazia e olhando para ela. Katie tossiu de novo ao engolir a água. – Como você entrou? – Toquei a campainha, bati na porta, chamei você. Você não deu um pio. Achei que não havia ninguém aqui até que, bem, vi você deitada aí. Ela esfregou as têmporas, que latejavam.
– Eu... tenho sono pesado. Shaw mostrou-lhe a garrafa de gim vazia. – Você realmente tem algo pesado – disse, catando a segunda garrafa vazia, depois a terceira e a quarta. – Você mistura gim, bourbon e uísque? – Você sabe como são as coisas na Escócia. – Nós estamos na França – disse ele, franzindo as sobrancelhas. Katie passou a mão em seus cabelos louros embaraçados e bocejou. – Ah, certo, Paris – disse distraidamente. Então algo pareceu atravessar o estupor alcoólico. – Ah, meu Deus, certo. – Ela se aprumou rapidamente. – Shaw, sinto muito. Por tudo. Pelo estúpido telefone celular, por mentir para você. – Ela fez uma pausa. – E por Anna. Shaw ganhou tempo alinhando as garrafas vazias na escrivaninha encostada a uma parede. – Na verdade, queria lhe agradecer por ter vindo me ver. Katie pareceu surpresa. – Não precisava. Ainda mais depois do que aconteceu ontem no hospital. Foi ontem, não foi? – Na verdade, foi há cinco dias. Ela pareceu estupefata. – Cinco dias! Está brincando? Shaw olhou para as garrafas alinhadas. – Parece que eu estou brincando? Katie olhou para ele, depois para as garrafas e se recostou na cama. – Fazia mais de seis meses que eu não bebia uma gota. Dá para acreditar? Shaw olhou para a escrivaninha. – Não, não dá. Katie deixou escapar um gemido profundo.
– Bem... é verdade. Eu... não posso acreditar que fiz isso. Não posso acreditar que bebi de novo. Shaw voltou a olhar para as garrafas. – Você não bebeu, tomou um porre. Vou esperá-la na sala ao lado. Tome banho e se vista. Depois vou levar você para tomar o café da manhã. – Ele se dirigiu à porta. – Espere um minuto, o que está fazendo fora do hospital? – Chega de hospital. – Tem certeza? – perguntou ela, incerta, olhando para o volume sob a manga esquerda da jaqueta dele. – Vou para Londres hoje à tarde, no Eurostar. Mas antes queria conversar com você sobre Anna. – O que quer saber? – Por que alguém desejaria matá-la. Katie o olhou inexpressivamente. – Não sei nada sobre isso. – Pode achar que não sabe. Mas talvez tenha visto ou ouvido algo que possa me ajudar quando a visitou. – Shaw, realmente acha que está bem o suficiente para levar isso adiante? Ele se virou e a encarou. Seus olhos eram tão azuis e poderosos que Katie se viu prendendo a respiração e cravando nervosamente as unhas nas palmas das mãos, como uma colegial com um problema sério. – Minha vida acabou, Katie – disse ele em voz baixa. – E quem quer que tenha feito isso com Anna vai morrer. E logo. Todos os pelos na nuca de Katie se eriçaram e a pele dela se arrepiou pela primeira vez em anos. Sua cabeça latejava e ela sentiu um espasmo inquietante no estômago. – Agora se vista. Por favor. Assim que Shaw saiu do quarto, Katie correu para o banheiro e vomitou cinco dias de bebedeira.
ELES ESTAVAM COMENDO DO lado de fora de uma pequena brasserie no Quai de Gesvres, com vista parcial do Sena. Se Katie esticasse um pouco o pescoço poderia vislumbrar as agulhas da torre da catedral de Notre Dame no meio do famoso rio. O Louvre ficava a menos de um quilômetro a oeste e a Bastilha um pouco além disso, a leste. O café estava forte, as torradas quentes e os ovos deliciosos e simples, como só os franceses parecem capazes de fazer. – Você se encontrou com Anna em Londres – disse Shaw. – No escritório ou no apartamento dela? – Primeiro nos encontramos em um café e depois fomos para o escritório. – Notou algo fora do comum quando esteve lá? Katie deu de ombros, servindo-se de uma pequena garfada de ovos enquanto seu estômago continuava revirando. – Aquilo pareceu comum e ao mesmo tempo extraordinário. Um velho prédio numa rua tranquila no coração de Londres cheia de estudiosos que escrevem coisas que ninguém lê. Pelo menos foi o que Anna disse. – Katie olhou para ele. – Você já esteve lá? Shaw fez que sim com a cabeça. – E há cerca de um ano chequei os registros imobiliários para ver o valor daquele prédio. Quer adivinhar? Katie balançou a cabeça e mordeu um pedaço de torrada enquanto o olhava com curiosidade. – Dezesseis milhões de libras – disse ele. A torrada quase caiu da boca de Katie. – São mais de 30 milhões de dólares. – Exatamente. E esse foi o preço de compra 10 anos atrás. Obviamente vale muito mais agora. – Há quanto tempo Anna trabalhava lá? – Cinco anos. Ela era analista sênior, uma das melhores que eles tinham.
– Estou certa de que sim. Anna me explicou o básico do trabalho desenvolvido no Phoenix Group. Mas quem é o dono? – Certa vez ela me disse que era um americano rico e recluso que vive no Arizona, daí o nome. Embora também tivesse me dito que achava que o nome vinha da ave mítica, a fênix. – A que nunca morre – disse Katie, corando ao ver Shaw olhando para ela. – Não foi um nome muito adequado, não é? – observou Shaw. – Mas deve haver mais sobre o Phoenix Group do que as pessoas sabem – apressou-se a dizer Katie. – Então precisamos realmente descobrir de quem ou o que é. – Não. Eu preciso descobrir. – Pensei que estivéssemos juntos nisso. – Pensou errado. – Também quero descobrir o que aconteceu com Anna. Shaw apenas balançou a cabeça. – O que mais pode me contar? – Por que eu deveria lhe contar mais alguma coisa? – Porque estou pedindo educadamente. O olhar de Shaw se fixou nela de novo e Katie estremeceu. – Bem, quando eu estava quase indo embora, notei que Anna tinha toda aquela pesquisa na escrivaninha. – Sempre tinha. Era o trabalho dela. – Era sobre a chamada Ameaça Vermelha. Shaw se inclinou para a frente. – Você perguntou a Anna sobre isso? Ela estava pesquisando para o Phoenix Group? Katie balançou a cabeça. – Disse que estava apenas curiosa. Que aquilo era algo em que estava trabalhando nas horas vagas, acho. – Quando estávamos em Dublin, ela estava muito interessada nessa organização, o CIR. Tentou descobrir alguma coisa na internet, mas não encontrou quase nada.
– Bem, parece que ainda estava bastante curiosa. – Por um momento Katie pareceu pensativa. – Você acha que o patrão dela teve alguma coisa a ver com isso? Quero dizer, com tentar descobrir quem estava por trás da Ameaça Vermelha? E que, se tivessem descoberto, isso explicaria a matança? Shaw tirou um cartão de visita do bolso e ficou olhando para ele. Edward Royce, MI5. O homem com quem Frank queria que ele trabalhasse na investigação da Ameaça Vermelha. Royce trabalhava em Londres. Shaw não acreditava que o Phoenix Group estivesse investigando a Ameaça Vermelha e que esse tenha sido o motivo do massacre. Mas Royce provavelmente teria conexões para, pelo menos, deixar Shaw entrar no prédio, se concordasse em ajudá-lo naquele caso. – Anna teria me dito se estivesse trabalhando nisso para eles. Katie passou a língua pelos lábios e disse, nervosa: – Não leve a mal o que vou dizer. – O quê? – perguntou Shaw, erguendo os olhos do cartão. – Anna poderia estar escondendo coisas de você? Quero dizer, sobre o que realmente fazia? – acrescentou rapidamente, enquanto a expressão de Shaw se tornava severa. – Você não foi exatamente sincero com ela. É só uma ideia. – É uma ideia. Vou me lembrar disso. Obrigado. – Então, quando vai partir? – Logo. O BlackBerry de Shaw vibrou. Ele teve um pouco de dificuldade em tirá-lo do bolso de sua jaqueta e Katie o ajudou. – Quer que eu acesse suas mensagens? Ela fez essa oferta quando viu que ele estava enrolado para mexer no aparelho com uma só mão. – Posso fazer isso – disse Shaw, talvez suspeitando que de essa fosse uma artimanha de Katie para bisbilhotar. Shaw olhou para a tela. Tinha um bilhete de primeira classe do Eurostar, no trem que partiria da Gare Du Nord para St. Pancras, em Londres. Ficaria hospedado no recém-reinaugurado Savoy. Pelo menos Frank não estava economizando. Aquilo era, em parte, uma compensação por um trabalho que, a cada minuto, envolvia o risco de morrer de forma violenta. – Pelo menos vai me telefonar para contar o que descobriu? Ele se levantou, depois de deixar alguns euros na mesa para pagar a conta. – Desculpe, não posso fazer isso. – Por quê? – Porque não quero. Essa explicação é suficiente para você? Katie demorou um pouco para perceber que ele só estava lhe devolvendo suas próprias palavras, quando lhe perguntara por que não fizera uma cirurgia plástica na cicatriz em seu braço. – Não, mas acho que tenho de me contentar com ela. – Obrigado por sua ajuda. Agora volte para casa e siga com sua vida. – Ah, sim, claro – exclamou ela, se divertindo com sua própria ironia. – Ouvi dizer que o New York Times está precisando de uma nova editora chefe. Ou talvez eu possa substituir Christiane Amanpour na CNN. Sempre quis trabalhar na TV. Ganharei milhões. Não sei por que não fiz isso anos atrás. – Cuide-se, Katie. E fique longe da bebida. Ele a deixou ali, com a cabeça latejando. Cinco minutos se passaram e Katie ainda não tinha se mexido, continuava sentada olhando para o nada, porque aparentemente era só isto que lhe restara: nada. O toque de seu telefone a sobressaltou. Era um número dos Estados Unidos que ela não conhecia. – Alô? – Katie James? – Sim. – Aqui é Kevin Gallagher, editor do Scribe. Somos um jornal diário relativamente novo sediado nos Estados Unidos. – Li algo sobre vocês. Têm bons repórteres. – Esse é um elogio e tanto vindo de uma ganhadora do Pulitzer. Olhe, tenho certeza de que está ocupada, mas peguei seu número com um colega do Trib. Suponho que não esteja mais lá.
– Não estou – confirmou Katie e depois acrescentou rapidamente: – Diferenças irreconciliáveis. Qual é o motivo da ligação? – Ei, não é preciso ser um gênio para saber que uma repórter do seu nível não está disponível todos os dias. Gostaria de contratála para cobrir a história para o jornal. – A história? Gallagher deu uma risadinha. – A única em que as pessoas estão interessadas agora. – A Ameaça Vermelha? – Não – disse ele. – Já temos uma equipe trabalhando nisso. Estou me referindo ao Massacre de Londres. O coração de Katie disparou. – Katie, ainda está na linha? – Sim, sim. Como faríamos isso? – Não podemos lhe pagar o que você ganhava no Trib. Mas lhe pagaremos por matéria o valor de mercado para alguém com a sua experiência, além de uma ajuda de custo razoável. Você traz algo importante e eu peço mais. Fica livre para obter a matéria como quiser. O que acha? – Acho que é exatamente o que eu estava procurando. Por acaso estou na Europa agora. – Eu diria que isso é uma feliz coincidência. Eu não. – Posso mandar o contrato e outros detalhes por e-mail. Eles falaram por mais alguns minutos e depois Katie desligou. Não podia acreditar nessa incrível mudança no rumo dos acontecimentos. Ela olhou para o relógio. Só tinha tempo para pegar o Eurostar das 13 horas para Londres.
O TREM EUROSTAR AMARELO E azul partiu na hora marcada e, depois de passar pelos subúrbios de Paris, acelerou rapidamente para mais de 200 quilômetros por hora. Os trilhos haviam sido planejados para alta velocidade e o movimento do trem era suave, com balanço apenas suficiente para fazer cochilar quem estivesse com sono. Shaw estava na primeira classe e tinha a seu dispor uma poltrona confortável, além de uma refeição completa com três pratos e vinho, oferecida de maneira profissional por um camareiro de uniforme impecável, que falava inglês e francês. Contudo, Shaw não comeu nem bebeu nada. Só ficou olhando melancolicamente pela janela. Era raro ele pensar no passado. Mas, enquanto o trem seguia em frente, fazia isso por nenhum outro motivo além de não ter mais um futuro em que pensar. Sua vida tinha voltado ao ponto de partida. Abandonado em um orfanato por sua mãe biológica, de quem não conseguia mais se lembrar, e depois atirado no monte de lixo de famílias adotivas que lhe causaram muito mal, ele havia construído sua vida adulta como um solitário. Antes de ter se juntado involuntariamente ao grupo de Frank, passara anos indo de um país para outro cumprindo ordens. Ele não se importava com o risco pessoal ou com as implicações morais de seus atos. Havia machucado pessoas e sido machucado por elas. Um pouco do que tinha feito tornara o mundo um lugar mais seguro; um pouco resultara em maior perigo para os outros 6 bilhões de habitantes do planeta. Contudo, tudo o que fizera fora com autorização de governos ou de organizações que agiam em nome desses governos. E nisso se resumia sua existência. Até Anna entrar em sua vida. Antes de conhecê-la, Shaw acreditava que sua vida terminaria quando uma das missões de Frank desse errado. E aceitava isso muito bem. Você vive e morre. Antes de Anna, ele não tinha nenhum motivo para prolongar sua vida além do instinto de autopreservação inato. Porém, quando se vive apenas pela metade, até esse instinto se desgasta, se enfraquece ao longo dos anos. Com Anna, ele subitamente teve um motivo real para sobreviver. A cada trabalho, ele se preparava mais e melhor, porque queria voltar. Para ela. Então planejou fugir de Frank. E viver com Anna. Parecia perto de realizar seu plano. Mesmo Frank sendo quem era, isso ainda era possível, desde que conseguisse permanecer vivo. Nunca tinha lhe ocorrido que Anna, e não ele, morresse de modo violento. Nunca. Shaw olhou pela janela e viu a paisagem em movimento, de uma beleza de tirar o fôlego. Mas aquilo não significava nada para ele e nunca significaria. A única beleza que já lhe interessara estava dentro de uma gaveta num necrotério de Londres. A beleza dela agora só existia na mente de Shaw, em suas lembranças. Isso deveria ser um consolo para ele, mas não era. Com os olhos abertos ou fechados, tudo que via era a única pessoa que se permitira amar. Essa imagem estaria com ele para sempre, como seu castigo por ter pensado que algum dia poderia merecer ser normal. Ou feliz. Agora ele só tinha um objetivo. Matar. Depois terminaria sua vida como a havia começado. Só. www Katie estava no vagão vizinho ao de Shaw, embora não soubesse disso. Enquanto a pitoresca paisagem rural francesa passava rapidamente, ela pensava, apesar de sua nova tarefa, no sofrimento de Shaw e no que poderia acontecer quando ele chegasse a Londres. É claro que iria para o prédio do Phoenix Group e, com suas conexões, provavelmente daria um jeito de entrar. Também iria ao apartamento de Anna. Ele teria que ir lá, disse ela a si mesma. Não poderia evitá-lo. Katie estava tão absorta em seus pensamentos que não notou o trem passando por Calais e depois entrando no túnel, construído por baixo da rocha do canal da Mancha. Com bilhões de toneladas de água em cima, ela olhou para o túnel bem iluminado, sem temer que vazamentos ou paredes de água pudessem esmagar o trem. Vinte e cinco minutos depois, o trem voltou à superfície, sob a luz brilhante do sol. Chegara à Inglaterra. Toda a viagem duraria cerca de 140 agradáveis minutos e Katie tinha bateria para seu laptop e a conveniência de seu celular, embora não tivesse ninguém para quem telefonar. Na verdade, depois do que acontecera no hospital, ela não tinha nenhuma vontade de voltar a usar aquele aparelho. Ana pensava muito nas palavras de Shaw: Minha vida acabou. E quem quer que tenha feito isso com Anna vai morrer. Não havia dúvida de que ele estava falando sério e tentaria matar os responsáveis com suas próprias mãos, feridas ou não. Mas e depois? O que ele faria? E se morresse tentando se vingar? Quem quer que tenha sido capaz de orquestrar o massacre de quase trinta pessoas não era alguém que se pudesse matar facilmente. E ela tinha matérias para escrever agora. O que Shaw pensaria se descobrisse que estava cobrindo os assassinatos de Londres, ganhando a vida com a morte de Anna? Mas era isso que ela fazia. Era jornalista. Ainda assim, ele ficaria muito zangado. Enquanto pensava nisso, Katie notou a pequena garrafa de vinho tinto na bandeja em que havia sido servido o almoço. Ela a guardara quando o camareiro havia limpado a bandeja. Katie continuou a olhar para a garrafa enquanto o trem seguia em frente. Vinte minutos depois, quando o Eurostar chegou aos limites de Londres e as velhas residências com suas chaminés únicas puderam ser avistadas, ela ainda olhava para o vinho. Desenroscou a tampa, o cheirou, deu um rápido gole e sentiu uma gratificação imediata, seguida de uma profunda e dolorosa culpa. Ainda assim, tomou outro gole. E a culpa foi multiplicada por mil. Ela tampou a garrafa e a pôs de volta na bandeja, murmurando: – Droga. O homem ao seu lado ouviu isso, olhou para ela e depois para o vinho. – Safra ruim? – perguntou com um sorriso. Ela o fuzilou com o olhar. – Vida ruim! Ele voltou rapidamente ao seu jornal. Katie sabia que não poderia trabalhar assim. Não ajudaria a si mesma se ficasse bêbada. Não poderia chafurdar na autopiedade, não importava quanto isso parecesse tentador. Quando um camareiro passou, ela o chamou e lhe pediu que levasse a garrafa.
Alguns minutos depois o trem entrou na estação de St. Pancras. Katie saltou e foi rapidamente para o ponto de táxi. Assim como Shaw, ela ficaria na Strand, no West End, mas não em um hotel tão bonito quanto o Savoy. Londres não era barata em nenhuma época, mas era possível encontrar pechinchas e Katie tinha viajado o suficiente para conhecer todas elas. Se sua estada em Londres fosse longa, ela esperava poder fazer o mesmo que fizera em Paris: instalar-se na casa de algum amigo repórter que passava a maior parte do tempo viajando. Katie fez o check-in em seu hotel econômico, deixou sua mala no quarto e pegou um táxi para o prédio do Phoenix Group. Em algum momento provavelmente daria de cara com Shaw. Se isso acontecesse, estava bastante confiante em seu plano de ação. Correrei feito louca.
A CAMINHO DO ANTIGO ESCRITÓRIO de Anna, Shaw pegou o cartão de visita que trazia no bolso e telefonou para o agente do MI5, Edward Royce. O homem atendeu no segundo toque e Shaw explicou que estava em Londres, que tinha pensado melhor e decidira ajudá-lo na investigação da Ameaça Vermelha. Quando Royce perguntou por que Shaw mudara de ideia, ele respondeu: – É uma longa história que não vale a pena contar, mas quero lhe pedir um favor. Já falei sobre isso com Frank. – Ele me ligou. – É mesmo? E o que disse? – Pediu que eu ajudasse você em tudo o que fosse possível. Falou de sua... ligação pessoal com os assassinatos em Londres. – Pode me dar acesso ao prédio? – Bem, na verdade poderíamos matar dois coelhos com uma cajadada só. O que acha disso? – Do que você está falando? – perguntou Shaw, curioso. – Verá quando chegar aqui. – Aqui? Onde? – No prédio do Phoenix Group. Shaw ficou boquiaberto. – O que você está fazendo aí? – Verá quando chegar – foi tudo o que Royce disse. Shaw pôs o telefone de lado e se recostou, esfregando seu braço machucado. Que diabo está acontecendo? Os dois dias que passara no hospital depois de saber da morte de Anna foram piores do que qualquer missão, piores do que qualquer pesadelo que seu subconsciente já houvesse criado. Ele se lembrava de ter sido sedado repetidamente após destruir o quarto e atirar alguém contra uma parede. Isso não havia ajudado a diminuir sua aflição e sua fúria. Elas só aumentaram, até que sua mente e seu corpo não suportaram mais e ele sofrera um colapso. Na verdade, chegara a pensar que tinha morrido. E uma grande parte dele desejava que isso fosse verdade. Durante 24 horas Shaw não se mexeu nem falou. Ficou apenas olhando para a parede branca do hospital, como havia feito quando era um garotinho no orfanato, tentando criar uma realidade diferente da desgraça que era sua vida. Mas, quando enfim saiu de sua cama, Anna ainda estava morta. Sempre estaria. Agora a única coisa que o fazia seguir em frente era a ideia de encontrar e matar quem havia feito aquilo. Esse era o único objetivo que poderia impedi-lo de simplesmente se desintegrar. Ele não tinha sido melodramático quando disse a Katie que sua vida estava acabada. Ela estava mesmo. Tudo o que tinha que fazer agora era terminá-la direito, vingando Anna. Shaw pegou um táxi e se dirigiu ao lugar onde ela morrera. Mas o que realmente queria era correr na direção contrária.
ROYCE FOI ENCONTRAR SHAW na porta do prédio, onde as faixas de isolamento ainda estavam estendidas. Dentro do prédio a atividade era intensa, com a polícia e equipes de perícia examinando cada centímetro do lugar. Enquanto dava passos cuidadosos para não atrapalhar o trabalho deles, Shaw viu as manchas de sangue seco e os contornos feitos com fita branca que marcavam claramente o local em que um corpo havia caído. Royce olhou para o braço machucado de Shaw. – O que aconteceu com você? – Meu cachorro me mordeu. Que história era aquela de matar dois coelhos com uma cajadada só? E por que está aqui no meio de uma investigação de homicídio? – Queria que você visse uma coisa antes. Ele levou Shaw para uma sala no primeiro andar onde fora montado um escritório para investigação da cena do crime. Havia um computador sobre uma mesa. Royce se sentou diante dele e começou a digitar. – Temos um vídeo de uma câmera de vigilância colocada na rua para registrar placas de veículos para cobrança de pedágio. Veja o que a câmera filmou no dia do crime. Por cima do ombro de Royce, Shaw olhou para a tela que ganhava vida. A câmera fora posicionada no alto de um poste, o que permitia uma visão completa do exterior do prédio. Uma caminhonete com uma antena de satélite no teto parou em frente ao edifício e dois homens saíram. – O uniforme dos funcionários que fazem reparos nas ruas de Londres – explicou Royce. Os homens tiraram vários cones de tráfego da caminhonete e os usaram para isolar o acesso à rua sem saída. Enquanto faziam isso, a antena em cima da caminhonete começou a se mover. – Eles estão interferindo na recepção do sinal de celular – deduziu Shaw. Royce fez um sinal afirmativo com a cabeça e disse: – Depois de cortarem as linhas de telefonia fixa.
Shaw se empertigou quando o próximo frame na tela mostrou meia dúzia de homens saindo da caminhonete e correndo para dentro do prédio. Tudo aconteceu tão rápido que foi quase impossível ver claramente seus movimentos. Mesmo alguém que olhasse por uma janela ou passasse na rua poderia não ter notado nada fora do comum. – Ponha em câmera lenta – instruiu Shaw. Um minuto depois, a cena foi repassada com metade da velocidade e a imagem aumentada. Todos os homens eram altos e pareciam em boa forma. Usavam máscaras de rostos humanos e suas armas sem dúvida estavam escondidas debaixo de seus sobretudos compridos. Shaw examinou cada figura, procurando algo que a distinguisse, qualquer pedaço de pele exposto, com uma marca memorável, mas ficou desapontado. Royce, que o estivera observando, fez um sinal afirmativo com a cabeça, demonstrando solidariedade. – Eu sei. Nós repassamos isso diversas vezes e também não encontramos nada. Obviamente eram profissionais. Sabiam que a câmera estava ali e agiram de acordo com isso. – As imagens não são vistas em tempo real? – Infelizmente não. Caso contrário, teriam produzido uma reação enérgica da polícia metropolitana. Eles também deviam saber disso. – Eu nem devia ter me dado o trabalho de perguntar. – A placa de licenciamento e o veículo não nos dizem nada. A caminhonete foi roubada de um ferro-velho em Surrey, cerca de uma semana atrás, e as placas, de uma oficina aqui em Londres. A porta dos fundos do prédio foi chutada, portanto está claro que uma equipe de assalto também entrou por lá. – Acho que você acertou em cheio: uma equipe de assalto. Pela frente, pelos fundos, chegando a cada andar. Eles provavelmente tinham uma lista de todas as pessoas que trabalhavam aqui e a planta do prédio. – Shaw disse isso mais para si mesmo do que para Royce. – O.k. Passe o restante do vídeo. Shaw se empertigou de novo quando o vidro quebrado caiu na rua. Viu uma cabeça surgir e uma pessoa começar a gritar. Não pôde ouvi-la, porque não havia áudio. Mas isso não era necessário.
– É Anna! – Achei que pudesse ser – disse Royce. Shaw olhou fixamente para ele. – O que Frank lhe disse sobre nós dois? – Não muito, mas o bastante. E estive no escritório da Srta. Fischer. Vi as fotos de vocês. Sinto muito. Estavam juntos havia muito tempo? – Não o suficiente. – Mais uma vez, sinto muito. Posso imaginar o que está sentindo. – Nem tente imaginar – retrucou Shaw. Royce pigarreou e se virou para a tela. – Ela precisou quebrar o vidro porque as janelas foram acidentalmente pintadas fechadas. – Acidentalmente? Tem certeza? – Nós checamos a empresa que fez o serviço, que é legalizada e pinta prédios aqui há décadas. Todos os operários são confiáveis. Parece que isso não é incomum, quero dizer, um trabalho malfeito. Pintei meu apartamento há três anos e ainda não consigo abrir as malditas janelas. Shaw não estava mais prestando atenção. Observava a imagem de Anna gritando pela janela, obviamente pedindo ajuda, uma ajuda que nunca chegaria. Um instante depois ele a viu subindo no parapeito. – Ela ia pular? – perguntou ele de imediato. – Acreditamos que a intenção dela era atingir aquele toldo. – Mas ela não chegou a fazer isso – disse Shaw, de um jeito estúpido. – Por quê? – Preciso alertá-lo de que as próximas cenas são... bem, não são fáceis de se ver. – Royce se virou para encará-lo. – Tem certeza de que quer continuar? – Preciso ver isso. O vídeo foi mostrado depressa. Anna estava no parapeito, de meias, agarrando os dois lados da janela.
Mentalmente, Shaw lhe dizia para pular antes que fosse tarde demais, embora soubesse que já era. Aquele foi um momento de agonia para ele e pôde imaginar quanto tinha sido aterrorizante para Anna. Porém a cena seguinte levou sua agonia a um nível totalmente inesperado. Ele viu a primeira bala atravessar o peito de Anna e sangue e tecido serem impelidos para fora do corpo dela. Uma fração de segundo depois outro pedaço de Anna foi atirado para o ar fresco de Londres. Quando ela caiu para dentro do escritório, Shaw finalmente desviou os olhos. – Podemos continuar depois – sugeriu Royce. – Vamos em frente, estou bem. Vários minutos depois os homens saíram pela porta da frente. Em segundos a caminhonete se fora. – E ninguém ouviu nem viu nada? – perguntou Shaw. – Nem mesmo uma mulher gritando pela janela? Tiros sendo disparados, o sangue dela jorrando para a rua? – Os dois prédios vizinhos a este serão reformados, por isso estão vazios. Os do outro lado da rua estão ocupados, mas os inquilinos foram notificados de que naquele dia seria feito um trabalho perigoso na rede de gás da região e, se não evacuassem os prédios antes do meio-dia, teriam que pagar uma multa pesada. – E ninguém se deu o trabalho de telefonar e confirmar se isso era verdade? – Havia um número de telefone na notificação. Várias pessoas realmente telefonaram e receberam a confirmação. – Só que o número era falso. – Exatamente. Os cones bloquearam o fluxo normal de automóveis e pedestres. Mas, de todo modo, é uma rua sem saída. Nunca há muitos veículos por aqui. – Deixaram o Phoenix Group totalmente isolado. Isso foi muito bem planejado – admitiu Shaw, contrariado. – Agora eu gostaria de ver o escritório de Anna. – Primeiro quero apresentar você a um dos donos do Phoenix Group. – Eles estão aqui? – perguntou Shaw bruscamente.
– Um deles voou para cá assim que soube do ocorrido. – De onde? – O que sabe sobre o símbolo da fênix? – A ave que nunca morre. Ressurge das cinzas. Origem egípcia. – Sua descrição está correta, até certo ponto. Na verdade a fênix é um símbolo com várias origens. Egípcia, como disse. Mas também árabe, japonesa e pelo menos uma outra. – Qual? – perguntou Shaw com impaciência. Um homem baixo surgiu à porta. Vestia um terno preto e sua expressão combinava com a cor de sua roupa. Royce se levantou para cumprimentá-lo. – Deixe-me apresentar-lhe o Sr. Feng Hai, da China.
ENQUANTO SHAW SE ACHAVA dentro do prédio, Katie estava ocupada do lado de fora. Na verdade, tinha chegado lá antes dele e se escondido em uma esquina quando o viu sair do táxi. Ela mostrou ao policial na entrada seu distintivo da imprensa que já não era válido e disparou uma série de perguntas, mas ele não respondeu a nenhuma delas. – Dê o fora – disse o policial, seu rosto gordo mostrando considerável irritação. – O senhor não é a favor de uma imprensa livre e independente? – perguntou ela. – Sou a favor de vocês nos deixarem fazer nosso maldito trabalho sem meter o nariz onde não são chamados. – Seu nome não vai aparecer. Garanto o sigilo da fonte. – Com certeza meu nome não vai aparecer. Agora dê o fora! Katie andou um pouco pela rua, olhando para as janelas do prédio. Shaw estava lá dentro ouvindo toda a história enquanto ela estava ali sem nada. Se eu ao menos conseguisse... voltar ao topo. Ganhar outro Pulitzer. Katie estava tão absorta em seus pensamentos que quase pulou quando alguém tocou em seu braço. Ela se virou e o viu, tinha um boné de feltro macio na mão e seus olhos grandes e nervosos estavam cravados nela. – Posso ajudá-lo? – perguntou Katie, desconfiada. – Você é jornalista, não é? – A voz dele era aguda e não exatamente cheia de confiança. Katie não teve dificuldade para perceber que o inglês não era seu idioma nativo. Ele era baixo e muito magro. Tinha dentes tortos e amarelados. Suas roupas eram quase farrapos. – Quem deseja saber? – Ela espiou por cima do ombro do homem como se esperasse ver mais alguém atrás dele. Ele olhou para o prédio do Phoenix Group. – Venho aqui todos os dias ver isto. Quero dizer, este lugar. – Ele estremeceu involuntariamente.
– Isso é perturbador – disse ela, ainda desconfiada. Ele pareceu perceber seu desconforto. – Meu nome é Aron Lesnik. Sou da Cracóvia. Fica na Polônia – acrescentou. – Sei onde fica Cracóvia – disse Katie. – Estive lá. O que quer comigo? – Vi você falando com aquele policial. Ouvi você dizer que é jornalista. Isso é verdade? Você é jornalista? – Sim. E daí? Lesnik olhou mais uma vez para o prédio. Quando se virou de novo para ela, seus olhos estavam cheios de lágrimas. – Sinto muito por aquela gente. Eram boas pessoas e agora estão mortas. – Ele enxugou os olhos com a parte de trás de sua manga e lançou para Katie um olhar sofrido. – Foi realmente uma tragédia. Agora, se me dá licença... Katie se perguntou por que sempre parecia atrair malucos. Mas o que o homem disse em seguida a fez mudar de ideia. – Eu estava lá. Naquele dia – falou ele com voz rouca. – O quê? – Katie não podia ter ouvido direito. – Lá onde? Lesnik apontou para o prédio do Phoenix Group. – Lá – repetiu, com um traço de angústia na voz. – Onde aconteceram os assassinatos? Lesnik assentiu com a cabeça, parecendo uma criança fazendo uma confissão. – O que fazia lá? – Procurava trabalho. Um emprego. Meu inglês não é muito bom, mas sou bom com computadores. Fui lá porque ouvi dizer que eles precisavam de pessoas boas com computadores. Tinha uma entrevista. Naquele dia. Naquele... dia ruim. – Deixe-me ver se entendi direito – disse Katie, tentando inutilmente esconder sua excitação. – Estava naquele prédio para uma entrevista quando as pessoas foram assassinadas? Enquanto elas estavam sendo assassinadas?
Lesnik fez um sinal afirmativo com a cabeça e seus olhos voltaram a se encher de lágrimas. – Então como não foi morto? – perguntou Katie, desconfiada. – Ouvi os tiros. Conheço o som de tiros. Era um garoto na Cracóvia quando os soviéticos chegaram com as armas. Então me escondi. Um pouco da desconfiança de Katie desapareceu. Ela já precisara se esconder de homens armados durante reportagens no exterior. – Onde se escondeu? Quero detalhes. – No segundo andar há uma copiadora em uma pequena sala. Ela tem portas atrás. Um espaço pequeno para guardar coisas. Estava vazio. Eu não sou grande. Então me arrastei para dentro. Fiquei lá até os tiros pararem. Depois saí. Achei que também iam atirar em mim quando me encontrassem. Mas não me encontraram. Tive sorte. Katie estava quase levitando de excitação. – Olhe, acho que não é uma boa ideia falarmos sobre isso aqui. Por que não vamos a outro lugar? Lesnik imediatamente deu um passo para trás. – Não, já falei o suficiente. Venho aqui todos os dias. Não consigo ficar longe. Aquelas pessoas, todas mortas. Todas, menos eu. Devia estar morto também. – Não diga isso. Obviamente não era sua hora. Como você disse, teve sorte. Além disso, será bom desabafar – insistiu ela. – Não. Não! Só vim falar com você porque ouvi dizer que é jornalista. Na Polônia tínhamos jornalistas que eram heróis. Enfrentavam os soviéticos. Meu pai era um deles. Foi assassinado, mas ainda é um herói – acrescentou com orgulho. – Estou certa de que é. Mas você não pode simplesmente não contar a ninguém. Deve procurar a polícia. Lesnik deu outro passo atrás. – Não, a polícia não. Não gosto da polícia. Katie o olhou cautelosamente. – Está metido em algum tipo de encrenca?
Ele não respondeu. Simplesmente desviou o olhar. – Não, a polícia não. Tenho que ir agora. Katie segurou o braço dele. – Espere um minuto. – Ela pensou rápido. – Olhe, se eu prometer não revelar minha fonte, pode pelo menos me contar o que viu? Eu prometo, juro sobre a Bíblia, que nunca direi quem me contou. Afinal de contas, você me procurou. Deve querer que eu ajude de algum modo. Lesnik pareceu inseguro. – Não sei por que vim falar com você. – Ele se interrompeu. – Você... você pode fazer isso? Não contar? – É claro. Katie olhou para o rosto angustiado do homem, seu rosto pequeno e infantil e suas roupas surradas. Podia facilmente imaginá-lo se escondendo dentro de uma copiadora, apavorado, enquanto tiros eram disparados por todos os lados. – O que você acha de eu lhe comprar algo para comer e conversarmos? Apenas conversarmos. Se continuar se sentindo desconfortável, poderá ir embora. – Ela estendeu a mão. – Fechado? Ele não apertou a mão de Katie. – Tenho certeza de que seu pai gostaria de que a verdade aparecesse. E de que os assassinos fossem punidos. Pouco a pouco, ele deslizou seus dedos em volta dos dela. – Tudo bem. Vou com você. Enquanto eles se afastavam, Katie fez a única pergunta que estava louca para fazer: – Você viu quem fez aquilo? Ela prendeu a respiração esperando pela resposta. O homem fez um sinal afirmativo com a cabeça. – E também ouvi o que disseram. Conheço muito bem a língua que eles falam. – Língua? São estrangeiros? Lesnik parou de andar e olhou fixamente para ela. – Eram russos.
– Tem certeza disso? Absoluta? Pela primeira vez o rosto dele assumiu uma expressão confiante. – Sou polonês. Da Cracóvia. Reconheço russo quando o escuto.
– BATIZAMOS A EMPRESA EM homenagem à fênix chinesa, Feng Huang – disse Feng Hai enquanto eles estavam sentados no escritório perto da recepção principal. – Na mitologia chinesa, a fênix representa virtude, poder e prosperidade. Também dizem que representava o poder enviado dos céus para a imperatriz. Talvez você saiba que Feng significa fênix macho. – E também é seu sobrenome – comentou Shaw. Ao contrário dos ocidentais, os chineses põem o sobrenome na frente de seus nomes. Portanto, o primeiro nome do homem era Hai. Feng assentiu com a cabeça. – Certo, isso também me deu essa ideia. – Qual é a conexão do Phoenix Group com a China? – perguntou Royce. – É apenas uma empresa chinesa fazendo negócios em Londres, como muitas outras. – Seus funcionários achavam que o dono era um americano rico do Arizona – observou Shaw. Feng deu de ombros. – Um boato, obviamente. – Acho que era mais do que isso – disse Shaw. – Acredito que era um disfarce intencional. Enquanto Feng encarava Shaw, Royce se inclinou para a frente e falou: – Então o Phoenix Group era basicamente um centro de pesquisas que estudava questões globais fundado por você e seus sócios? Era esse o modelo de negócio? Feng fez que sim com a cabeça. – E por que o fundaram? – perguntou Royce. – Queríamos encontrar respostas para perguntas complicadas – disse Feng. – Os chineses também têm interesse nesse tipo de problemas e soluções. Não somos poluidores insensíveis e pessoas que põem chumbo em brinquedos, senhores – disse ele, tentando esboçar um sorriso. – O Phoenix Group é lucrativo? – perguntou Shaw. – Não fazemos isso por dinheiro. Shaw olhou ao redor do escritório bem decorado. – Quanto deve valer este prédio, uns 30 milhões de dólares? – Foi um bom investimento. Mas, como eu disse, dinheiro não é nossa principal preocupação. Nós, meus sócios e eu, somos bons homens de negócios. Ganhamos muito dinheiro com outras coisas. O Phoenix Group era nosso modo de fazer algum bem. Retribuir. Acho que podemos dizer assim. – E não tem nenhuma ideia de por que alguém desejaria atacar este lugar e matar todo mundo? – perguntou Royce, o ceticismo claro em sua voz. – Nenhuma. Fiquei muito abalado quando soube. Muito. Eu... eu não conseguia acreditar que uma coisa dessas pudesse acontecer. As pessoas aqui eram estudiosas, intelectuais. Trabalhavam em questões de direitos de uso de água, globalização das economias mundiais, aquecimento atmosférico causado pela eliminação de gás carbônico dos combustíveis, consumo de energia, ajuda financeira internacional para países subdesenvolvidos, dinâmica política. Questões intelectuais benéficas, senhores. – Anna Fischer escreveu um livro sobre Estados policiais – salientou Shaw. – Isso dificilmente se qualifica como uma questão intelectual benéfica. – A Srta. Fischer era ótima em seu trabalho. – O senhor a conhecia? – Ouvi falar nela. – Alguém aqui o conhecia? – perguntou Shaw rapidamente. – Nós, meus sócios e eu, preferimos ser discretos. Mas recebíamos relatórios regularmente. Estou certo de que sim, pensou Shaw. – Vocês encontraram alguma evidência que leve às pessoas que fizeram isso? – perguntou Feng, ansioso. Royce negou com a cabeça.
– Nenhuma digital, nenhum cartucho, nenhum rastro. Ele não mencionou o vídeo da câmera na rua. – Isso é desanimador. – Mas descobrimos uma coisa interessante, Sr. Feng – disse Royce. – Gostaria de ver? É realmente surpreendente.
ARON LESNIK DEVOROU SEU sanduíche e bebeu seu café em grandes goles. Parte de Katie sentiu repulsa pelo modo como ele comia e parte se sentiu solidária. Ela achou que Lesnik devia estar apavorado. Apavorado, sem dinheiro e faminto. Lesnik enxugou a boca e deixou escapar um pequeno suspiro. Viu Katie olhando para ele e pareceu constrangido. – Obrigado pela comida. – Não há de quê. Importa-se se eu usar isto? – Ela pegou um minigravador. – Sim. Vou contar para você, mas não quero que as pessoas me escutem. – Ele olhou ao redor, nervoso. – Tenho medo. Katie deixou o gravador de lado. – O.k. Então só vou anotar. Ele relaxou e se recostou. – Agora me conte tudo o que viu e ouviu – pediu Katie. A história de Lesnik só demorou alguns minutos. Ele tinha feito uma entrevista no segundo andar com um homem mais velho chamado Bill Harris. – Por que você não foi morto junto com ele? – perguntou Katie. – Saí do escritório dele e fui ao banheiro no fim do corredor – explicou Lesnik. Quando ele estava voltando, ouviu tiros e gritos. Correu para uma sala vazia, viu a copiadora e se escondeu dentro dela. Ouviu mais gritos e tiros. Ouviu pessoas andando por perto. Pensou que iam encontrá-lo. Disse a Katie que tinha certeza de que ia morrer. Ele teve que interromper a história várias vezes para beber um pouco de água e se acalmar. A caneta de Katie corria pela página anotando tudo o que ele dizia. – O que aconteceu depois? – Achei que todos tinham ido embora. Os homens com as armas, quero dizer. Mas ouvi uma coisa. – O que você ouviu?
– Ouvi dois homens falando. Eles entraram na sala onde eu estava escondido! Falavam russo. Eu sei russo. – O que eles disseram? – Disseram que tinham uma lista de nomes e todos estavam mortos. – Então sabiam quem trabalhava no prédio? – Acho que sim. – O que mais? – Falaram sobre outra pessoa ter entrado no prédio. Mas não sabiam o nome dela. E achavam que não estava morta. Katie entendeu imediatamente. – Estavam falando de você! Lesnik assentiu com a cabeça. – Também acho isso. Pensei que iam vasculhar o prédio de novo e dessa vez me encontrariam. Eu estava encrencado. Sabia que ia morrer. – Lágrimas rolaram pelo rosto dele. Katie lhe serviu mais um pouco de café. – Por que não o encontraram? – Um deles disse que tinham que ir embora. Uma janela havia sido quebrada no escritório. Uma mulher tinha gritado. Eles precisavam ir porque a polícia podia aparecer. – Então eles foram embora? – Sim, mas enquanto saíam continuaram a falar. Um deles disse que Gorshkov ia ficar satisfeito quando soubesse que a missão havia sido cumprida. Katie quase fez um buraco no papel com sua caneta. – Gorshkov? O presidente russo? Lesnik fez um sinal afirmativo com a cabeça. – Fico muito assustado quando ouço o nome dele. Todos sabem que, como Putin, Gorshkov é um ex-membro da KGB. Ele cospe na democracia. Todos na Polônia sabem disso. – Por que ele atacaria um centro de pesquisas em Londres? – perguntou Katie, confusa. – Não sei.
– Como você fugiu? – Esperei os homens irem embora. Ouvi a porta se fechar e esperei mais um pouco, para ter certeza. Então saí pela porta dos fundos, por onde entrei. – Por que não pela porta da frente? – O homem com quem falei, o Sr. Harris, disse para eu entrar pela porta dos fundos. Disse que seria mais fácil para mim quando falei de onde chegaria. – O rosto dele se anuviou. – E não saí pela porta da frente porque... porque havia dois corpos lá. Um velho e uma mulher jovem que foram baleados no rosto. – Ele apontou para seu olho direito. – Bem aqui. Eu não podia passar por eles. Saí pela porta dos fundos. E depois corri até onde estou hospedado. – E não contou a ninguém mais sobre isso? Lesnik balançou negativamente a cabeça. – Se eu contar, as pessoas vão vir me matar. E só fui lá por causa do trabalho. Não quero morrer. – O.k. – disse Katie, pondo uma das mãos no ombro dele, para acalmá-lo. – Esse foi um grande passo. – Vai escrever a história agora? Não vai citar meu nome? – perguntou ele, nervoso. – Eu prometi que não citaria. Mas onde posso encontrá-lo se tiver mais perguntas? – Estou em um albergue perto do rio. – Ele anotou o endereço para Katie num guardanapo. – É o que posso pagar. Katie olhou de novo para as roupas surradas e o corpo magro dele. Ela tirou algumas libras do bolso e lhe entregou. – Não é muito, mas vou tentar conseguir um pouco mais. – Dziekuje. Isso é “obrigado” em polonês. – Não há de quê. Lesnik se levantou da mesa. – Você tem um telefone para onde eu possa ligar? Ele deu um sorriso desanimado. – Não tenho nenhum telefone. Estou num albergue. Powodzenia!
– Isso é “boa sorte” em polonês, não é? Por um momento o rosto dele se iluminou. – Como sabe? – Foi só um palpite. Quando ele se afastou, Katie afundou de novo em sua cadeira. O que farei agora?, perguntou-se. Parte dela não acreditava em nada daquilo. Um polonês falando um inglês passável se aproxima dela na rua. Logo dela! E começa a lhe contar a história que todas as pessoas do mundo estão loucas para ouvir. Uma história em que ela havia começado a trabalhar. Ninguém tinha tanta sorte assim. Pelo menos, não ela. Contudo, levando em conta os fatos que ela conhecia... a história dele era plausível. Conhecia detalhes do interior do prédio, detalhes que Katie teria que conferir. Lesnik parecia realmente assustado e, se estivesse dizendo a verdade, era mesmo para estar. E por que mentiria para ela? Porque era um maluco atrás de 15 minutos de fama? Mas ele não queria que seu nome fosse usado. Não queria fama. E se estivesse dizendo a verdade? Katie se levantou de um pulo e correu de volta para o prédio do Phoenix Group. Havia um homem que poderia ajudá-la a conferir a história de Lesnik. Shaw. Katie não estava ansiosa por esse encontro, mas todos os seus instintos jornalísticos estavam aguçados, impelindo-a para a frente, para a mais difícil das buscas: a da verdade.
OS OBJETOS ESTAVAM ORDENADAMENTE dispostos sobre a mesa. Perto deles havia um computador. Royce tinha acabado de mostrar algumas coisas na tela para Shaw e Feng. O chinês estava sentado em uma cadeira com um ar surpreso, enquanto Shaw lia com atenção alguns dos materiais. – Está dizendo que não sabia de nada disso? – perguntou Royce, a incredulidade em sua voz ricocheteando na sala como uma bala perdida. Feng meneou a cabeça. – Eu não sabia de nada – reiterou Feng, de modo firme. – Sr. Feng, vamos deixar as coisas claras. Há documentos em todo este prédio que mostram claramente que o Phoenix Group tomou parte da campanha antirrussa. As impressões digitais de seus funcionários estão em todos esses documentos. Os discos rígidos do computador também têm milhares de arquivos, desde a criação da chamada “Tábua das Tragédias” a detalhes sobre Konstantin e anúncios que circularam com a campanha. Há mais de 30 mil nomes de russos em seus discos rígidos, os mesmos nomes e históricos espalhados pela internet junto com afirmações de que todos eles eram vítimas da Ameaça Vermelha. – Não tenho nenhuma ideia de como essas coisas vieram parar aqui – balbuciou Feng. – Nenhuma! – Vocês não supervisionavam o trabalho feito aqui? – Deixamos nosso pessoal explorar o que quisesse – retrucou Feng, irritado. – Nosso envolvimento é mínimo. Nunca estive neste prédio. – Bem, parece que a exploração de seus funcionários ficou um pouco fora de controle. Entende a magnitude da situação que temos aqui, senhor? Feng lançou para Royce um olhar questionador. – Não entendo o que quer dizer. – Vocês têm laços com o governo chinês? – Não sei o que isso tem a ver... Shaw o interrompeu:
– Gorshkov disse que quem estivesse por trás da campanha de difamação havia cometido um ato de guerra contra seu país. Se vocês têm laços com o governo chinês, podem ter começado uma guerra entre a República Popular da China e a Federação Russa. Feng se levantou de um pulo. – Isso é absurdo! – Dificilmente parecerá absurdo para o resto do mundo, senhor! – exclamou Royce. Shaw acrescentou num tom mais calmo: – Vocês têm laços com o governo chinês? É melhor sabermos disso agora do que mais tarde. Feng subitamente pareceu inseguro e voltou a se sentar. – Isso poderia ser aventado. Quer dizer, algumas pessoas poderiam... Shaw se inclinou na direção de Feng, que tinha uma expressão preocupada. – Estou certo de que entende que sua única opção é nos dizer a verdade. Feng passou a língua pelos lábios e ficou mexendo em um anel em seu dedo. – Parte de nossos recursos financeiros vem do governo – começou ele, falando depressa. – Meus sócios e eu temos realizado muitos trabalhos para o Partido Comunista relacionados com o desenvolvimento econômico, tanto na China quanto em outros países. Fundamos o Phoenix Group com o único objetivo de tentar entender melhor as questões globais que ajudarão a China a se adaptar a um papel mais importante no cenário mundial. Não há dúvida de que nossa economia em algum momento se tornará a maior do mundo. Isso traz uma responsabilidade que levamos muito a sério. Por isso tentamos nos instruir sobre questões cruciais em todo o mundo. Criar um centro de pesquisas e enchê-lo de algumas das mentes mais brilhantes pareceu razoável. – Entretanto, vocês esconderam deliberadamente seus laços com o governo chinês por trás dessa fachada do milionário do Arizona! – disparou Shaw. – Somos mal interpretados em muitas partes do mundo. – Ele olhou de relance para o agente do MI5. – Inclusive em seu país, Sr. Royce. Não queríamos que dúvidas ou ideias erradas comprometessem o importante trabalho que o Phoenix Group estava fazendo. – Alguma das pessoas que trabalhavam aqui tinha ideia desses laços? – perguntou Royce. Shaw já sabia a resposta para essa pergunta. Anna lhe dissera. – Não – respondeu Feng. – Nós não achávamos que isso fosse relevante para o trabalho delas. O que importava para quem estavam trabalhando se os objetivos eram bons? – O senhor é membro do Partido Comunista? – perguntou Royce. – Não vejo por que... – Por favor, responda à pergunta. – O senhor tem que entender... – É ou não é?! – gritou Royce. – Sim, sou, como muitos dos cidadãos chineses – disse Feng, na defensiva. O agente do MI5 levantou as mãos em sinal de desânimo: – Isto é um total e completo desastre! – Não, senhores, isso é ridículo – disse Feng, pálido. – O Phoenix Group não estava envolvido nessa campanha da Ameaça Vermelha. É um absurdo até mesmo sugerir isso. – Como o senhor disse que nunca esteve aqui, não tinha como saber, não é? – retrucou Royce. – Por que eles fariam uma coisa dessas? – perguntou Feng quase com um gemido. – Quantos sócios o senhor tem? – Quatro. – Acho que alguém deveria perguntar a eles – disse Royce. Ele olhou para Shaw. – Por enquanto, isto fica entre nós. Se essa história vazar, nem posso imaginar as consequências para seu país, Sr. Feng. – O senhor não acha que a Rússia nos atacaria.
– Gorshkov garantiu que faria exatamente isso. Se não acredita em mim, pergunte ao Afeganistão. – Quem mais sabe? – perguntou Shaw a Royce. – Pouquíssimas pessoas que trabalham na cena do crime. Ninguém esperava nada disso quando deram início à investigação. Quando souberam o que estavam enfrentando, impediram o acesso de todos os demais e me chamaram. – Estou surpreso por ter me deixado vir aqui – disse Shaw francamente. – Wells me disse que você é o melhor que ele tem. Então achei que poderia confiar em sua discrição. E preciso desesperadamente da sua ajuda. – Pode contar com ambas – respondeu Shaw. Royce se virou de novo para Feng: – Eu gostaria de ver seu passaporte. A expressão de Feng se tornou sombria. – Não pode estar falando sério. – O passaporte – exigiu Royce, estendendo a mão. – Não cometi nenhum crime. – Só o tempo dirá, não é? – Quer criar um incidente internacional? – Mais um? – retorquiu Royce. – Quero ir para a embaixada chinesa. Imediatamente. – Primeiro, me entregue seu passaporte e depois verei se posso lhe dar uma carona – disse Royce de forma bastante agradável, até mesmo esboçando um sorriso ao final de sua oferta. Feng lhe entregou o passaporte muito lentamente. – Isto é ultrajante. – Totalmente – concordou Royce. – Tudo o que descobrimos até agora é. Enquanto Feng e Royce se dirigiam para fora, Shaw disse: – Vou ao escritório de Anna.
– Shaw, nós só tiramos o corpo. O resto do local está intocado. Não é muito... – Sei que não.
SHAW SUBIU OS DEGRAUS de dois em dois e caminhou até o fim do corredor acarpetado. A porta à esquerda estava aberta. Ele fechou os olhos e se forçou a se concentrar em sua tarefa – encontrar algo que o levasse aos assassinos de Anna. Entrou no escritório e subitamente sentiu-se muito calmo. Olhou ao redor da sala, para os livros, a velha escrivaninha e a cadeira em que havia se sentado quando a visitara ali. Seus olhos viram o pequeno tapete oriental no meio do cômodo, as plantas e o suéter de Anna ainda pendurado no encosto da cadeira. Tocou na peça de roupa e sua fachada de profissionalismo começou a ruir quando sentiu o perfume dela impregnado no tecido, apesar do ainda presente cheiro de pólvora e do rastro de spray antisséptico da equipe de perícia. Sua atitude profissional ruiu um pouco mais quando ele viu a prateleira de livros atrás da escrivaninha de Anna, onde havia várias fotos deles dois. Seus sorrisos largos pareceram pesar sobre ele, como se fossem esmagá-lo. Quando Shaw olhou para o chão e viu a madeira manchada com o sangue de Anna, precisou se sentar. Naquelas manchas escuras viu seu passado, seu presente e até mesmo seu triste e solitário futuro. Quando você entrega seu coração a alguém, nunca mais fica livre. E é melhor estar preparado para algo desse tipo. Só que isso não é possível. Embora a janela quebrada tivesse sido tapada, ele se levantou e a estudou, dizendo a si mesmo que fraquejar agora não o ajudaria a vingar Anna. Shaw viu os arranhões que os dedos desesperados dela tinham feito na armação da janela. Anna devia ter estado prestes a pular. Ele olhou de relance para a porta e os dois buracos de bala que havia ali. Seu olho experiente traçou a trajetória dos projéteis. Ela realmente teria sido atingida na altura do peito, exatamente como o vídeo mostrara. Contudo, com a porta fechada, o atirador não poderia saber que Anna estava tentando pular pela janela. Um tiro de sorte, concluiu ele, com sofrimento. Ela havia caído para trás, para dentro da sala. Shaw se ajoelhou, olhou para as manchas de sangue e o contorno do corpo.
Podia ouvir os sons da cidade grande lá fora. Ali dentro, porém, só havia o silêncio da morte. No entanto, às vezes os mortos falam mais alto que todo o mundo. Fale comigo, Anna. Conte-me o que aconteceu. Shaw olhou mais de perto e pensou ter visto no sangue o leve traço de uma pegada. Não era grande o bastante para ajudar na investigação e provavelmente fora por isso que Royce não a mencionara. Ele se dirigiu à escrivaninha e se sentou na cadeira de Anna. O computador havia sido levado para perícia, mas a escrivaninha ainda estava coberta com as coisas em que Anna estivera trabalhando. A única diferença era que cada item tinha sido selado como prova. Shaw pegou um saco. Através do plástico viu a letra de Anna nas margens das páginas digitadas. Mais de uma vez ele tinha brincado com ela dizendo que era uma anotadora inveterada, que não conseguia ver um pedaço de papel sem anotar nenhum comentário nele. Shaw pegou outro saco. Os documentos ali aparentemente mostravam que Anna andara reunindo elementos sobre a Ameaça Vermelha. Embora suas impressões digitais estivessem em todos os documentos, Shaw sabia que a ideia de que Anna tivesse ajudado a divulgar aquela campanha era ridícula. E, mesmo que ele tivesse alguma dúvida sobre o envolvimento de Anna, ela cairia por terra diante do fato de que aquelas páginas não tinham nenhuma marca da caneta dela. Qualquer um que a conhecesse bem teria notado essa falha. Porém Shaw tinha consciência de que isso dificilmente seria uma prova conclusiva para o resto do mundo. Eles devem ter pressionado os dedos de todos nos papéis, depois que foram mortos. Atiraram na cabeça de Anna, embora os ferimentos no peito fossem fatais. Terei grande prazer em matar cada um desses canalhas sem coração. Shaw também suspeitava de que haveria arquivos incriminadores em todos os computadores do lugar. Um exame cuidadoso poderia mostrar que eles foram postos ali no dia do crime, mas, se alguém realmente soubesse o que estava fazendo, talvez isso nunca pudesse ser provado. Shaw não falaria a Royce sobre suas dúvidas, porque não estava certo de como tudo aquilo iria acabar. Embora estivesse cumprindo sua parte ao trabalhar com Royce, sabia que em algum momento os interesses dele e do agente do MI5 iriam divergir. Royce só queria prender as pessoas que tinham feito isso. Shaw só queria matá-las. Feng admitira os laços do Phoenix Group com o governo chinês. Então alguém queria dar a entender que os chineses estavam por trás da Ameaça Vermelha? Mas quem faria isso e por quê? Rússia contra China? Que maníaco desejaria esse cenário global? E Anna havia sido apanhada bem no meio dessa história. Por que tinham escolhido o Phoenix Group entre todos os outros lugares? Era apenas uma coincidência ter laços com o governo chinês? Não, não poderia ser. Obviamente os assassinos tinham descoberto essa conexão, o que devia ter exigido um pouco de trabalho de campo. Ainda assim, dezenas de milhares de entidades em todo o mundo têm laços com a China. Por que aqui? Por que Anna? Shaw se dirigiu à prateleira e pegou uma foto. Fora tirada na noite em que a pedira em casamento. Anna havia pedido a um garçom que tirasse a foto deles juntos, com foco especial no novo anel de noivado em seu dedo. Seu sorriso, que indicava um futuro brilhante, o fez esquecer a dor no braço, porque a dor em seu coração era forte demais. De repente Shaw percebeu que não poderia ficar ali mais nem um segundo sequer. Desceu pesadamente as escadas e escancarou a porta da frente. Estava sem ar e sentia seus pulmões duros como pedra. A imagem de Anna caindo morta naquela sala e a ideia de seu assassino em pé perto dela, enquanto ele estava longe e impotente, ardia em seu cérebro. Shaw passou correndo pelo policial de serviço e se precipitou para a rua. Uma fração de segundo depois, esbarrou em uma pessoa, fazendo-a cair no chão. Ele se abaixou para ajudar, com um pedido de desculpas pronto nos lábios, um pedido que não chegou a proferir. Apenas ficou boquiaberto. Katie se levantou devagar. – Precisamos conversar. Agora.
NICOLAS CREEL TIVERA UM dia cheio, até mesmo para um homem como ele. Voara em seu jato particular da Itália para Nova York e de lá para Houston, onde sua equipe executiva de vendas embarcara para encontrá-lo. Eles passaram boa parte do voo revendo os últimos detalhes da apresentação de vendas de alto nível que fariam em Pequim. Creel estava agora em sua cabine particular olhando para a foto de um homem que acabara de receber, junto com outros detalhes. O nome dele era Shaw e estava investigando o massacre no Phoenix Group. Era ligado a uma agência internacional de cumprimento da lei altamente secreta, embora Creel tivesse sido informado de que a agência frequentemente agia às margens da lei para obter seus resultados. Shaw era um de seus melhores homens e aparentemente tinha uma motivação pessoal para solucionar o crime. Isso era preocupante. Mais irritante ainda era o e-mail que acabara de receber de Caesar. Ele tinha homens vigiando o prédio do Phoenix Group, é claro. E esses homens viram Shaw e Katie James saindo juntos. Creel havia instruído Caesar a mandar seguilos. Não queria que Shaw interferisse no papel involuntário de Katie em seu plano. Creel voltou para a sala de conferências do avião, onde seus executivos davam os retoques finais na apresentação com a qual esperavam conquistar o maior contrato de defesa que a China já havia assinado com uma empresa estrangeira. Na verdade, Creel sabia que esse era apenas o começo. Quando os acontecimentos em Londres fossem totalmente explicados para o mundo, os chineses entenderiam muito claramente sua posição delicada. O Dragão Asiático se tornaria o alvo do Urso Russo. E todos os comunistas triplicariam suas encomendas de armas nem que fosse apenas para se precaverem contra o louco Gorshkov. Com um pouco de sorte, estariam do lado da Ares Corp. pelas próximas duas décadas, no mínimo. Isso teria sido suficiente para a maioria dos homens de negócios. Mas não para Nicolas Creel. A parte de Pequim era apenas metade da equação. Depois de ir para a China, Creel voaria para Moscou. Esperava muita resistência dos antigos soviéticos, que ainda não viam muita necessidade de possuir os melhores e mais modernos armamentos. Como o resto do mundo, eles haviam cedido essa posição para os americanos, que gastavam mais do que ninguém com poderio militar. Contudo, Creel era um dos poucos visionários, talvez o único, que percebia que essa situação não duraria para sempre. Países se tornavam potências mundiais e também perdiam esse status. Os americanos estavam no topo havia muito tempo, pelo menos segundo os padrões históricos recentes. Eles acabariam sendo superados. Se pelos russos, pelos chineses ou por ambos, Creel realmente não se importava. Só queria fornecer as armas para a próxima superpotência. Ele não enfatizaria, nem sequer mencionaria, para seus respectivos ministros da Defesa os problemas entre a Rússia e a China e as crescentes tensões entre os dois países. Em vez disso, sua linha de ação seria mais positiva. Agora é a sua vez, diria aos dois representantes. Este é o seu século. Vocês devem aproveitar isso ou alguém mais o aproveitará. Ele deixaria suas respectivas imaginações determinarem a identidade desse alguém. Seus subordinados poderiam cuidar dos números e detalhes. Ele trataria de deixar claro para os dois países o que estava em jogo. E trilhões de dólares estavam em jogo para a Ares, porque, quando a Rússia e a China iniciassem um rearmamento considerável, todos os outros países com dólares para gastar e egos para defender fariam o mesmo. Isso incluiria os Estados Unidos, que certamente veriam sua liderança mundial ser usurpada. Afinal de contas, qual era o problema em dever mais alguns trilhões? Não que os americanos pudessem pagar o que já deviam. Creel passou rapidamente os números em sua cabeça. A dívida nacional era de cerca de 10 trilhões de dólares, sem contar a incógnita da previdência social. Só os juros desse montante eram de mais de 300 bilhões de dólares por ano, junto com 700 bilhões de gastos em defesa, o que totalizava 1 trilhão de dólares por ano, ou cerca de um terço do orçamento total. Os custos com previdência social, Medicare e Medicaid somavam bem mais de 1 trilhão de dólares. Os gastos com assistência social e seguro-desemprego eram de cerca de 400 bilhões. Isso deixava umas poucas centenas de bilhões de dólares para todo o resto. No quadro geral, era uma miséria. E todos os dias os Estados Unidos passavam o chapéu pela China, a Arábia Saudita e pelo Japão, basicamente implorando para que financiassem seu consumo. Creel já imaginara o fim dessa história havia muito tempo. Tivera que fazer isso por causa dos interesses de seus negócios. Apesar da bem merecida reputação dos americanos de serem engenhosos e maleáveis, o empresário veterano sabia que os dólares nunca mentiam. Se o país não sofrer uma reviravolta completa, em 30 anos ou menos os americanos estarão acabados. É por isso que estou comprando euros, ienes, iuanes e rupias e procurando expandir minha clientela para além da “terra da liberdade, o lar dos bravos”, como diz o hino. Ninguém com tantas dívidas é livre e o lar está totalmente hipotecado. Ainda assim, eles podem aproveitar enquanto isso durar, fazer o que quiserem com seus cartões de crédito por mais algumas décadas. As gerações futuras terão de arcar com as consequências e será um inferno na hora de pagar a conta. É claro que vários outros grandes fornecedores de armas obteriam uma fatia desse mercado, mas a empresa de Creel estava perfeitamente posicionada para pegar a maior delas. Isso coroaria toda a sua vida. Sua empresa seria salva e seu legado, garantido. E, o que era ainda mais importante, o equilíbrio natural do mundo seria restabelecido. Isso era tudo que ele podia esperar. E estava quase chegando lá. Entretanto, continuava analisando a foto que Caesar lhe enviara. Seu olhar se fixava nos olhos do homem alto. Não gostava daqueles olhos. Tinha feito fortuna lendo corretamente expressões e rostos frios de oponentes. Definitivamente, aquele homem não lhe agradava. Na verdade, os olhos que via na foto lhe pareciam muito familiares. Ao olhar de relance para um espelho pendurado na parede oposta, Creel subitamente percebeu de quem o faziam lembrar. De mim mesmo. Creel se recostou e ouviu sua equipe de vendas falar monotonamente, enquanto voavam a mais de 800 quilômetros por hora para vender paz e segurança no canhão de um tanque para outro cliente satisfeito. Contudo, sua mente continuava presa àqueles olhos. E àquele homem. Certamente era apenas um homem. Mas às vezes isso bastava para pôr tudo a perder.
Creel nunca deixaria isso acontecer. Não tinha medo de muitas coisas, mas a incerteza o apavorava. Por isso havia contratado Pender, que fez o mundo acreditar no que Creel queria que acreditasse. Normalmente, a vitória era conseguida pelo cansaço. Você criava a verdade e depois enterrava a coisa real debaixo de tanto lixo que as pessoas se cansavam de cavar e aceitavam o que você oferecia. Era a saída fácil e os seres humanos eram programados para sempre usá-la. Afinal, com tantas contas a pagar, compras a fazer, filhos a criar e esportes a assistir, quem tinha tempo para mais alguma coisa? Sim, você cobre todas as bases, mas às vezes algo ou alguém penetra nelas e estraga tudo. Mas não desta vez. Não, não desta vez.
– LEVE-ME ATÉ ESSE HOMEM – disse Shaw para Katie enquanto estavam sentados no quarto dele no Savoy. Ela havia acabado de lhe contar sobre seu encontro com o polonês. – Não posso fazer isso – respondeu Katie. – Prometi a ele. – Não me importo com o que você prometeu. Ele é uma testemunha fundamental em uma investigação de assassinato. Katie olhou pela janela, para onde o Big Ben, o palácio de Westminster e o London Eye olhavam de volta para ela, com o estreito Tâmisa em primeiro plano. – Acha que eu não sei disso? – Então me diga o nome dele. – Sim, Claro. Que tal se eu aproveitar e lhe mostrar a foto dele e lhe der seu endereço? – Isso não é brincadeira! Pessoas morreram. Katie se virou para ele. – Não venha com essa pra cima de mim. Sou jornalista, o.k.? Já ouviu falar em “sigilo da fonte”? Os jornalistas o invocam todos os dias. Alguns até vão para a prisão para defendê-lo, o que, de fato, eu já fiz. Portanto, guarde esse joguinho de culpa para outra pessoa. Shaw baixou os olhos e Katie percebeu que tinha ido longe demais. Sentada diante dele, disse em voz baixa: – Olhe, não há ninguém no mundo que queira encontrar o assassino de Anna mais do que você. Eu também quero. Mas tenho um trabalho a fazer. Fui contratada para escrever essa história e tenho que agir com profissionalismo. – Você me conta o que o sujeito lhe disse e espera que eu pare por aí? Por que me contou se não vai me levar até ele? Katie se recostou, com as mãos espalmadas sob as coxas. – Gostaria de ter uma ótima resposta para isso, mas não tenho. Só queria que você soubesse. Acho que só queria que me dissesse que ele estava falando a verdade. – Você acredita nele?
– Os detalhes que lhe contei, a copiadora, os corpos perto da porta da frente e o homem chamado Bill Harris. Você pode confirmar isso, já que esteve lá? – A copiadora no segundo andar e os corpos perto da porta da frente conferem. Checarei se o espaço na copiadora era grande o suficiente para escondê-lo. Não tenho uma lista completa dos mortos, portanto não posso garantir que Bill Harris estivesse entre eles, mas será fácil descobrir. Você disse que ele entrou e saiu pelos fundos? – Katie fez um sinal afirmativo com a cabeça. – Então foi por isso que não o vimos no vídeo. A câmera só filma a entrada da rua. – Então ele parece estar dizendo a verdade – disse ela, esperançosa. – Ele também saberia de todas essas coisas se fosse um dos assassinos. – Também pensei nisso, mas ele não pareceu desse tipo. É só um jovem polonês baixo, magro e apavorado. – Que simplesmente foi ao seu encontro na rua diante da cena do crime? É uma coincidência e tanto, não acha? – Pode ser. Mas ele me ouviu falando com um policial. Foi atrás de mim porque sou jornalista. E não é incomum um sobrevivente voltar para onde as coisas aconteceram. Por culpa e tudo o mais. – Parece que você está fazendo um grande esforço para se convencer. – Confie em mim, vou checar esse cara de todos os modos possíveis. – Então o que quer de mim? Katie deixou escapar um suspiro. – Você quase me confirmou que ele esteve lá dentro. Acho que... bem, vou continuar a trabalhar na matéria. Shaw se levantou e olhou para ela. – De que diabo está falando? Que matéria? Katie olhou de volta para ele com igual incredulidade. – Uma testemunha ocular do Massacre de Londres? Não acha que isso merece ser publicado?
– Katie, ele disse que os assassinos estavam falando russo. – Sim, e daí? Shaw parecia muito preocupado enquanto ela o olhava desconfiadamente. – Há algo que não me contou? – perguntou ela. – Só lhe direi se você prometer não escrever a matéria. – Não posso fazer isso, Shaw. Não posso! Isso é notícia. – Mesmo se pudesse dar início a uma guerra mundial? – Que guerra mundial?! – exclamou ela. – Se eu lhe disser, você nunca poderá repetir isso para ninguém, em lugar algum, nem mesmo publicar a história. Esses são os meus termos. É pegar ou largar. Katie hesitou por um instante e depois assentiu com a cabeça. – Feito. – Dentro do prédio foram encontradas evidências que indicam que o Phoenix Group estava por trás da campanha da Ameaça Vermelha. Katie levantou-se de sua cadeira num pulo. – O quê? Tem certeza? – Certeza de que a evidência estava lá? Sim. O que isso realmente significa, ainda não sei. – E minha testemunha também ouviu os assassinos dizerem que estavam cumprindo ordens de Gorshkov. – Droga! Por que você não me contou isso? – Quem é você para reclamar de eu estar escondendo informações? Como você, prefiro mantê-las sem segredo. Mas, se o Phoenix Group estava envolvido na campanha da Ameaça Vermelha, isso explicaria por que os russos atacaram o prédio a mando de Gorshkov. – Mas isso não é verdade. As pistas da Ameaça Vermelha foram plantadas.
– Como pode ter certeza? Eu vi os papéis no escritório de Anna. Talvez ela não estivesse pesquisando o assunto, e sim o criando. – E simplesmente deixou o material ali para você ver enquanto o resto do mundo tentava descobrir quem estava por trás disso? – disse ele, incrédulo. – Acho que isso não faz sentido – falou Katie, parecendo insegura –, mas onde entra essa história de guerra mundial? Não entendi. – Gorshkov jurou que quem estivesse por trás da campanha de difamação estaria sujeito a ataque. – O atacado foi o Phoenix Group, não um país. Shaw respirou fundo e disse: – O Phoenix Group é dirigido pelos chineses ou pelo menos tem laços estreitos com eles. – Os chineses? – exclamou Katie. – Tem certeza? – Sim, conheci um dos donos. Ele confirmou isso. – Mas você acredita mesmo que a Rússia atacaria a China? – Quem sabe? Mas a última coisa que precisamos descobrir é que a resposta para essa pergunta é sim. – Mas, se o governo russo enviou seus assassinos como retaliação contra o Phoenix Group e sabe da conexão chinesa, isso parece um ato de guerra. Estou realmente surpresa por Gorshkov não ter assumido o atentado diante de todo o mundo. – Ele não pode. Quase todos os mortos eram ingleses. Explodir um grupo de talibãs nas montanhas do Afeganistão é uma coisa. Mas você não entra em Londres, assassina quase trinta de seus cidadãos e fica se gabando disso. Não importa se você é a Rússia. Os ingleses também têm armas nucleares. E seu maior aliado são os Estados Unidos. Nem mesmo Gorshkov quer esse problemão. Além disso, não temos certeza de que os russos sabem da conexão com a China. – Nada do que você disse é motivo para eu não escrever a matéria. Uma testemunha afirma que alguns russos cometeram o crime a mando de Gorshkov. Não direi nada sobre a Ameaça Vermelha ou a China porque lhe prometi. Mas a informação de que os russos atacaram aquele prédio foi fornecida por minha fonte e é uma história que o mundo precisa saber. – Ora, por favor! Qualquer um pode ler as entrelinhas! E se os chineses achassem que os russos atacaram um de seus escritórios? Eles fariam uma retaliação contra Moscou. – Mas você mesmo disse que a coisa da Ameaça Vermelha era falsa. Plantada. Que os chineses não estavam por trás disso. Shaw agitou suas mãos, exasperado. – Exatamente, Katie. Você não entende? Os russos não teriam plantado isso, especialmente se soubessem da relação do Phoenix Group com a China. Qual seria o objetivo? Eles não tentariam arranjar uma briga com a China se incriminando. Os dois países estão bem equilibrados militarmente. Se fossem usar um truque desses, teriam escolhido um país muito mais fácil de varrer do mapa. Há tantas opções. Comece pela letra A: Albânia. Essa guerra terminaria em 24 horas. Mas a China? Para cada soldado russo há três chineses. Além de o país possuir armas nucleares. – Então o que exatamente você está dizendo? – Katie parecia confusa. – Que os russos não fizeram isso. Que nem o Phoenix Group nem a China estavam por trás da Ameaça Vermelha. – Então quem está por trás disso tudo? – perguntou ela. – Há uma terceira parte envolvida. E ela está jogando um jogo que não entendo totalmente, mas que por alguma razão sei que tem por objetivo colocar a Rússia e a China uma contra a outra. – Então está sugerindo que minha fonte mentiu sobre o envolvimento russo? – Se ele disse que ouviu pessoas falando em russo que trabalhavam para Gorshkov, sim, acho que está mentindo, porque não acredito que os assassinos estivessem a mando da Rússia. Ou então, e isso é realmente uma suposição, os assassinos de algum modo sabiam que ele estava no prédio e o deixaram vivo para que pudesse contar o que tinha ouvido ou o que queriam que ouvisse. Katie estalou os dedos. – Ele disse que os russos ou, de acordo com sua teoria, os falsos russos falaram sobre outra pessoa estar no prédio. Se estivessem vigiando os fundos o teriam visto entrar. Mas não procuraram de novo porque uma janela foi quebrada, uma mulher gritou para fora do escritório e estavam com medo de que a polícia aparecesse. A expressão de Shaw se anuviou. – Isso realmente aconteceu? – perguntou Katie. Ele confirmou com a cabeça, devagar. – A mulher era Anna. Ela quebrou a janela de seu escritório e tentou sair por ela, mas foi morta antes de conseguir. – Como sabe disso? – A câmera da rua filmou. – Meu Deus, você viu isso acontecer? – Ela pôs a mão sobre a dele. – Shaw, não sei o que dizer. – Diga que não escreverá a matéria. – Não posso. O mundo merece saber disso. – Merece? Mesmo se for tudo mentira? Ou talvez Katie James acredite que merece voltar ao topo a qualquer custo? Mesmo que isso signifique o fim do mundo como o conhecemos? O rosto de Katie ficou corado e ela se afastou de Shaw. – Esse não é o motivo para eu estar fazendo isso! – Então me diga qual é. – Sou jornalista. Tenho uma história. A história da década! Não posso simplesmente deixar de escrevê-la porque você tem algumas teorias ou porque diz que o mundo poderia acabar. – E se eu estiver certo? Está preparada para lidar com isso? – Sim – disse ela, mas com a voz um pouco trêmula. – Então não temos mais nada a conversar. – Ele se levantou e abriu a porta. – Shaw, por favor, não faça isso. – Não temos mais nada a conversar – repetiu ele, com mais firmeza. Katie passou por Shaw devagar e ele bateu a porta quando ela saiu.
AS VIAGENS DE NICOLAS Creel para a China e a Rússia tinham sido bem-sucedidas. Nenhum negócio havia sido fechado, mas ele lançara as bases para que o fossem, em breve. Quando a “verdade” sobre o Phoenix Group viesse à tona – e Creel esperava que Katie James a publicasse a qualquer momento –, a dinâmica entre a China e a Rússia rapidamente mudaria de concorrentes regionais para a de totais inimigas. E os trilhões de dólares começariam a fluir em sua direção. Contudo, mesmo com esse triunfo se aproximando, ainda tinha um problema. Creel se sentou mais uma vez no deque superior do magnífico Shiloh, um dos maiores iates do mundo, enquanto sua tola mulher estirava-se nua em uma suntuosa espreguiçadeira no deque de proa. Creel tinha se enchido e exigido que ela vestisse alguma coisa. Ela simplesmente recusara, alegando que até mesmo um biquíni fio dental arruinaria seu bronzeado. – Meu corpo é perfeito – dissera ela, com a voz chorosa. – Sem marcas brancas. Sem marcas, Nicky! Você não pode me obrigar. Como alguém poderia responder a essa lógica simples, a essas afirmações narcisistas? Creel quase rira, como se estivesse diante de uma criança que houvesse feito algo tolo. Não, esse casamento não iria durar muito. O telefone do barco tocou. Era o capitão. A Sra. Creel finalmente havia adormecido. – Então ponha uma maldita manta sobre ela, do pescoço aos dedos dos pés – instruiu Creel e desligou. A mulher que conhecera em Los Angeles na noite da premiação era uma curadora de arte do Metropolitan, de Nova York. Com vários diplomas de Yale, tinha uma inteligência impressionante, era viajada, atraente e dona de um belo corpo. Creel duvidava seriamente que ela fosse se importar com marcas brancas em sua bunda. Eles tiveram uma noite fascinante que não envolvera nenhum contato físico. Quando voltasse para casa, mandaria seu advogado preparar os papéis do divórcio. Mas essa iminente reviravolta doméstica também não era o que o preocupava.
Creel olhou para a foto do homem com Katie James. Fora informado de que ela havia deixado o quarto de hotel de Shaw chorando. Será que aquele homem ia estragar tudo? Ele queria vingança. Era altamente qualificado. Sim, um problema potencial. Os dias de Shaw provavelmente estavam contados. Mas então o que era um a mais? Creel observou a calma do Mediterrâneo, onde o sol quente descia lentamente, projetando uma luz trêmula no mar preguiçoso. Apesar de vender o melhor armamento militar do mundo, ele era um homem pacífico. Era verdade que tinha ordenado a morte de muitas pessoas, mas não fizera isso por maldade. Contudo, desde a primeira clava empunhada por raiva até uma bomba atômica que varria da Terra milhões de pessoas em questão de segundos, o conflito físico era parte essencial da humanidade. Creel sabia disso, assim como sabia que a guerra tinha muitas características positivas. A mais importante é que fazia as pessoas se esquecerem das frivolidades e se unirem em prol do bem maior. Ele certamente sentia culpa pelo que fizera. Na verdade, já doara 10 milhões de dólares a um fundo criado para as famílias das vítimas do Massacre de Londres. Era o mínimo que podia fazer. Enquanto do outro lado da Europa, na Inglaterra, as pessoas tentavam entender algo que parecia sem sentido, ele havia se ajoelhado em seu avião de 175 milhões de dólares e pedido perdão ao seu deus, que certamente não podia estar muito acima dele próprio. E após Creel ter se levantado do chão acarpetado de lã, voltado para sua luxuosa cama e apagado sua luminária de 10 mil dólares, assinada por um designer, tinha quase certeza de que seu deus o tinha ajudado. Enquanto Pender estava ocupado fabricando algo e o vendendo para todos como a verdade, Creel sabia claramente o que era “verdadeiro”. O mundo é um lugar muito mais seguro quando os poderosos realmente usam seu poder. Os Estados Unidos poderiam resolver o problema do Oriente Médio em dias. É claro que inocentes morreriam. Mas qual era a diferença entre milhões de mortos em 10 minutos ou 10 anos? Haveria mortos do mesmo jeito, mas se poderia evitar uma década de sofrimento e incerteza. Creel forneceria de bom grado cada arma necessária para extinguir os selvagens. De fato, era uma questão de “nós contra eles”. Somente os fortes sobreviviam. – E os fracos perecem – disse ele para o sol poente que dourava a água e a costa italiana. Os fracos sempre morrem. É a ordem natural das coisas. Se Creel obtivesse sucesso, os grandes voltariam a deter o controle. Destruição mútua assegurada era um termo da Guerra Fria que produzia muito medo, porém totalmente inadequado. Na verdade, era a maior força estabilizadora da história, embora causasse horror a muitas pessoas que não sabiam como o mundo realmente funcionava. A destruição mútua assegurada fornecia certeza, previsibilidade e talvez aniquilação de certos elementos da humanidade em prol do bem maior. Ele caminhou até a grade do deque e olhou para baixo, para onde sua mulher dormia. Era uma idiota, como a maioria das pessoas. Elas eram cegas a tudo que não fosse elas mesmas. Sem visão. Simplórias, fracas e preguiçosas. Creel olhou mais uma vez para a foto de Shaw. Ele não parecia simplório, fraco nem preguiçoso. Porque não era. Seria uma pena matá-lo. Mas Creel o faria, se necessário. Ele pegou o telefone do barco. O capitão do Shiloh, um homem com 30 anos de experiência em mar aberto servindo a vários patrões ricos, atendeu com um tom enérgico e positivo. – Tome providências para trazer todas as crianças amanhã – ordenou Creel. – Use a lancha de 26 pés para buscá-las. E traga a madre superiora. Quero dar um cheque para ela. – Perfeitamente, Sr. Creel. O senhor vai lançar o submarino de novo? As crianças adoraram da última vez. – Ótima ideia. Deixe-o preparado. E apronte o helicóptero para levar a Sra. Creel para o jatinho. Ela vai para o sul da França pela manhã. Peça que a criada dela separe algumas roupas adequadas. Quanto mais, melhor. – Certo, senhor. Creel desligou. O bom capitão poderia não ter sido tão agradável se soubesse o que Creel tinha feito. O capitão era inglês, nascido e criado em Londres.
Mas as crianças viriam amanhã. A vida de Creel havia se tornado uma série de compensações. Uma má ação era compensada por uma boa. Sim, ele ansiava pela chegada das crianças. E por construir um lugar totalmente novo para os órfãos viverem.
A GAVETA DE AÇO ROLOU com um tinido que fez Shaw estremecer. O lugar cheirava a substâncias químicas, urina e outras coisas em que ele não queria pensar. Frank estava de pé ao seu lado. – Shaw, você não precisa fazer isto. Na verdade, acho que não deveria. Por que se lembrar dela assim? Neste lugar? – Ele moveu sua mão ao redor do espaço desinfetado. – Você está certo – disse Shaw. – Mas ainda assim tenho que fazer. Frank suspirou e fez um sinal afirmativo com a cabeça para o assistente. Por um instante, quando os dedos do homem levantaram o lençol, Shaw desejou fugir, correr para a luz do dia antes que fosse tarde demais. Em vez disso, simplesmente ficou ali, olhando para Anna. Ou para o que havia restado dela. Shaw tentou não olhar para o ferimento no meio da testa de Anna nem para as marcas da sutura onde o médico-legista a havia aberto, ou para os dois buracos de bala em seu peito. Contudo, descobriu que isso era tudo para o que podia olhar, a total destruição da mulher mais bonita que já vira. Não teve sequer o conforto dos olhos verdes dela, que estavam fechados para sempre. Shaw fez um sinal com a cabeça para o assistente e se afastou. A gaveta rolou de volta, a porta se fechou com um som metálico e, com a ajuda de Frank, Shaw deixou a sala mortuária com as pernas trêmulas. – Vamos tomar uma bebida – disse Frank. Shaw negou com a cabeça. – Tenho que ir ao apartamento de Anna. – O quê? Você é algum tipo de masoquista? Primeiro vem ver o corpo dela e agora quer partir ainda mais seu coração. Qual é o objetivo, Shaw? Ela não vai voltar. – Eu tenho que ir. Não estou pedindo que você me acompanhe.
– Certo. Mas eu vou assim mesmo – retrucou Frank, chamando um táxi. Eles entraram no carro e Shaw disse o endereço para o motorista. Em seguida pôs a cabeça para fora da janela, tentando espantar as ondas de náusea que ainda sentia. Não deveria ter ido ao necrotério. Não para vê-la daquele jeito. Não Anna. Não deveria ter ido, mas precisara. Alguns minutos depois Shaw abriu a porta do apartamento dela, entrou e se sentou no chão enquanto Frank o olhava atentamente de perto. Enquanto os olhos de Shaw percorriam aquele ambiente familiar, ele foi se acalmando pouco a pouco. Era a Anna viva e respirando que estava ali, não o objeto retalhado que acabara de deixar deitado no implacável aço inoxidável. Ali Anna não estava morta, não tinha sido assassinada. Shaw se levantou e pegou uma foto no console da lareira: ele e Anna na Suíça, no ano anterior. Ela era uma boa esquiadora, ele não. Mas tinham se divertido muito. Havia outra foto deles, na Austrália. E uma terceira, com os dois em cima de um elefante que ela apelidara de Balzac porque adorava café, que bebia direto da xícara com a tromba. Por toda parte havia os pertences, os amores e as paixões dela. Ela. Ele se sentou de novo. Em alguns segundos teve um milhão de pensamentos óbvios que passam pela mente das pessoas em momentos como esse. A dor causada pelo corte da serra de Adolph não era nada comparada à que sentia agora. Um ferimento ensanguentado versus toda a sua mente, seu corpo e sua alma sendo lentamente esmagados. Não havia analgésicos que pudessem combater aquilo. Frank pareceu notar a mudança em sua expressão. – Vamos, Shaw. Vamos beber alguma coisa agora. Shaw finalmente percebeu que também não podia mais ficar ali. De certo modo a Anna viva era mais terrível para ele do que o cadáver na gaveta de inox. Lembrava-o muito claramente do que havia perdido, do que eles dois haviam perdido.
Shaw se levantou, mas antes que Frank tocasse na maçaneta ela girou e a porta se abriu. No momento seguinte Shaw e Frank estavam cara a cara com os pais de Anna. O rosto de Wolfgang ficou vermelho. Ele estendeu a mão para agarrar Shaw, que deu um passo para trás, ficando fora do seu alcance. – Não, Wolfgang, não! – gritou sua mulher. – Esse monstro, esse monstro. Ele estava tão furioso que cuspiu essas poucas palavras com a voz embargada, seus olhos fuzilando Shaw, que continuava um pouco atrás, sem saber o que fazer. – Controle-se – disse Frank. – Ele está sofrendo muito. – O que você está fazendo aqui? – perguntou Natascha, segurando o braço do marido para tentar detê-lo. – Não fale com esse canalha – gritou Wolfgang. – Ele matou nossa filha. Ele matou Anna. Nesse momento Shaw deu um passo à frente, seus olhos brilhando como ácido azul. – O que você está dizendo? Não tive nada a ver com a morte de Anna. – Shaw, deixe que eu cuido disso – disse Frank. Wolfgang apontou um dedo gordo diretamente para o rosto de Shaw. – Anna não estaria morta se não fosse por você. Você a matou. – Espere um pouco. Isso é um absurdo! – gritou Frank. Shaw começou a passar por ele, mas Wolfgang subitamente se lançou para a frente, agarrou-o pela garganta e, com o impulso, seu corpo pesado fez os dois caírem com força contra a parede. Natascha gritou e tentou afastar seu marido. – Não, Wolfgang, não! Frank tentou fazer com que o homem soltasse Shaw, mas ele era muito pesado.
O ombro de Wolfgang bateu no braço ferido de Shaw, que gemeu de dor. Ele conseguiu se livrar do alemão dando-lhe uma joelhada no estômago. Quando Wolfgang partiu para cima dele de novo, Shaw se desviou do homem, que era muito mais lento, estava ofegante e com o rosto vermelho. Shaw achou que o pai de Anna pudesse estar tendo um ataque cardíaco. Wolfgang bateu na parede. Antes de se virar de novo e atacar, Shaw usou sua mão para pressionar um nervo bem perto do pescoço grosso do homem. Wolfgang caiu no chão, gritando de dor. No minuto seguinte, a bolsa pesada de Natascha atingiu Shaw no rosto, cortando sua bochecha. Ele sentiu o sangue escorrer. Frank arrancou a bolsa da mão da mulher e a atirou do outro lado da sala. Natascha se ajoelhou perto do marido, abraçando-o de modo protetor. Ofegante e com o sangue correndo para a boca, Shaw olhou para baixo na direção deles. – Ele está bem? – perguntou. – Vá embora. Vá embora agora – gritou Natascha. – Deixenos em paz. Já fez o suficiente. O suficiente! – Eu não fiz nada... – Shaw parou. De que adiantaria argumentar? Frank o empurrou para a porta. – Vamos sair daqui antes que alguém se machuque de verdade. Shaw limpou o sangue, se virou e foi embora, fechando a porta atrás dele. Enquanto desciam a escada, Frank disse: – Ninguém falou a eles que você era algum tipo de monstro, Shaw. Nós só... Então Shaw parou de súbito, se sentou nos degraus e deixou escapar um soluço tão alto que pareceu ecoar nas paredes como o som de artilharia. O resto de sangue em seu rosto foi lavado pelas lágrimas que saíam aos borbotões. Durante 10 minutos ele chorou descontroladamente, seu corpo se sacudindo. Frank ficou apenas em pé ali, olhando para baixo, com os punhos firmemente cerrados e os olhos úmidos.
E então Shaw parou de chorar tão subitamente quanto havia começado. Ele se levantou e secou o rosto. – Shaw? – chamou Frank, olhando para ele cuidadosamente. – Você está bem? – Estou ótimo – respondeu Shaw, em tom mecânico. Depois desceu correndo as escadas, deixando Frank para trás, boquiaberto. Quando Shaw chegou à rua, começou a correr. Tinha um objetivo. Já chegava de luto. De que adiantava tentar lidar com isso passando pelo processeo normal do luto? Ele nunca superaria a morte de Anna. Então agora tinha que se concentrar no que realmente importava: vingança. Nunca mais perderia isso de vista. Não pararia enquanto não a conseguisse. E Shaw sabia por onde começar. Katie James. Dessa vez ele não aceitaria um não como resposta.
– CHEQUEI SUA HISTÓRIA SOBRE a Cracóvia e seu pai – disse Katie. Ela e Aron Lesnik estavam sentados no pequeno quarto no albergue perto do Tâmisa, em uma parte muito menos chique de Londres do que aquela onde ficava o Phoenix Group. Katie havia lhe levado café e comida, que ele devorava enquanto ela falava. – Checou? – perguntou ele entre pedaços de sanduíche de presunto e salgadinhos. – É claro que sim. Jornalistas sempre presumem que todos estão mentindo. – Não menti pra você! – exclamou Lesnik e depois tomou um gole de café. Katie olhou para suas anotações. – Seu pai era Elisaz Lesnik, editor de um jornal diário na Cracóvia. Foi morto em 1989. – Pelos soviéticos. Naquele tempo a Polônia estava lutando pela liberdade. Tivemos Lech Walesa, o libertador, lutando por nós. Mas meu pai escreveu a verdade e os soviéticos não gostaram disso. Eles vieram uma noite quando eu era um garotinho e mataram meu pai. – Isso nunca foi provado – salientou Katie. – Não preciso de prova! Eu sei! – Lesnik bateu com o punho na parede. – Então você tem raiva dos russos? Lesnik parou de boca aberta, a meio caminho de dar outra mordida no sanduíche. – Não acredita em mim? Acha que inventei isso porque odeio os russos? Vi pessoas mortas. Sangue por toda parte. Você me fez perguntas e eu falei a verdade. – Ele a olhou, desafiador, e deu uma mordida feroz em seu sanduíche. – Então por que tem medo de ir à polícia? – Se eu for, vão achar que tenho alguma coisa a ver com isso. Para eles, os poloneses são como os russos. Depois vão contar para as pessoas e os assassinos vão vir atrás de mim. Vi o que fizeram com meu pai. Não quero morrer daquele jeito. – Você disse que é bom com computadores. Se importa se eu lhe fizer algumas perguntas? – Pode fazer. Katie fez algumas perguntas técnicas que ela mesma não entendia, mas um amigo lhe dera as respostas. Lesnik respondeu a todas corretamente. – Se ainda não está convencida, posso consertar um computador para você – disse ele, de mau humor. – Você não pode culpar uma garota por checar – disse Katie docemente. – E quanto a esse tal de Harris? Fale-me sobre ele. – Ela havia obtido uma descrição de Harris e queria saber se batia com a de Lesnik. – Ele é um bom sujeito. Velho. Tem cabelos brancos e cheira a charuto. Falamos de trabalho. Acho que ele gostou de mim. Disse que o Phoenix Group era um bom lugar para se trabalhar. Eu bebi um pouco de água e depois fui ao banheiro no fim do corredor. Quando voltei, ouvi tiros no andar de baixo e me escondi. Como já falei pra você. Katie estava anotando tudo. – Está bem, agora me fale sobre ... Ela foi interrompida pela porta, que se abriu com um chute, mostrando-o de pé ali. – Shaw! Como sabia...? – Katie o olhou fixamente. – Você me seguiu! Shaw não se deu o trabalho de responder. Só tinha olhos para Lesnik, que se encolheu em um canto, seu sanduíche de presunto esquecido e seu café derramado no chão. Ele marchou na direção do homem baixo, que recuou até que a parede o impediu de ir mais longe. – Não deixe ele me machucar. Não deixe. Por favor! – gritou Lesnik. – Shaw, você o está assustando. Shaw pegou Lesnik pela camisa.
– Ele deve mesmo estar assustado. – Você disse que ninguém mais ia saber! – gritou Lesnik, lançando para Katie um olhar suplicante. – Shaw, largue-o. – Você vai me dizer tudo o que viu e ouviu naquele dia. E é melhor não omitir nenhuma vírgula! Acabei de ouvir a parte sobre você ir ao banheiro e se esconder. Continue a partir daí. Lesnik estava com os joelhos dobrados e parecia prestes a desmaiar. – Shaw! Katie segurou o ombro dele tentando puxá-lo, mas parecia um inseto tentando fustigar um elefante. – Não se meta nisso, Katie – disse Shaw olhando-a ameaçadoramente. Aproveitando esse momento de distração, Lesnik criou coragem e deu um soco no braço enfaixado de Shaw. – Droga! – gritou ele, dobrando-se de dor. O polonês pulou por cima dele, empurrou Katie para o chão e saiu correndo pela porta. Shaw se recuperou e, segurando o braço, correu atrás dele, com Katie em seus calcanhares. Eles desceram ruidosamente a escada, Shaw se movendo o mais rápido que podia com o braço machucado. Mas Lesnik era muito menor e parecia um avião a jato. Ele chegou à porta da rua e saiu por ela enquanto Shaw e Katie ainda desciam o último lance de escada. Shaw abriu violentamente a porta com seu corpo e parou do lado de fora para examinar a rua. Katie deu um encontrão nele e agarrou sua jaqueta. – Você perdeu a porra do juízo! – gritou. De repente Shaw viu Lesnik do outro lado da rua, à margem do Tâmisa. Disparou para lá, com os carros buzinando e se desviando dele. Katie o seguia e gritava para que ele parasse antes de se matar. Shaw gritou para Lesnik, que corria pela calçada. O polonês se virou por um instante, com o rosto cheio de medo. O tiro o atingiu bem no meio dos olhos. Ele ficou ali por um momento, aparentemente inconsciente de que sua vida tinha acabado. Então caiu para trás, por cima da grade. Alguns segundos depois seu corpo atingiu a superfície lisa do rio e em seguida desapareceu no turvo Tâmisa, a água adquirindo brevemente um tom vermelhoescuro. Ao ouvir o som do tiro, Shaw se abaixou imediatamente. Quando Katie passou por ele correndo e gritando por Lesnik, estendeu seu braço bom, agarrou a perna dela e a puxou para baixo. Depois a empurrou para trás de um carro estacionado. – Fique abaixada! – ordenou-lhe. – O tiro foi dado por um rifle de longo alcance. – Shaw olhou por cima do para-lama do carro, espiando à sua volta em busca do atirador de tocaia, mas não o viu. Ele olhou de novo para Katie e sua expressão se suavizou. Ela estava tremendo. – Está tudo bem agora. – Shaw pôs um braço em volta dela. – Não, não está – disparou Katie, afastando o braço de Shaw. – Você tinha que vir aqui. Tinha que se meter. E agora um homem inocente está morto! Por sua causa! – Não sabemos até que ponto ele era mesmo inocente – disse Shaw, com calma. – Mas agora precisamos sair daqui. A polícia... – Você pode fugir. Eu quero falar com a polícia. Isso será um bom pano de fundo para a matéria. – Ainda vai escrevê-la? – perguntou ele, incrédulo. – Pode apostar. E quer saber de algo engraçado? Até você se meter nessa coisa toda eu tinha decidido adiá-la. Mas agora? – Ela olhou na direção em que Lesnik caíra morto. – Agora mudei de ideia. – Katie, me escute... – Não, escute você, Shaw – interrompeu ela. – Sei que a mulher que você amava foi morta. Sei que está sofrendo. Sei que agora sua vida está pior do que a minha, mas você passou dos limites. Nunca mais vou confiar em você. Eles ouviram o som de uma sirene. Shaw olhou na direção do som e depois de volta para Katie. – É melhor você ir. A polícia não será sua melhor amiga neste momento. – Katie, acho que você não sabe no que está se metendo.
– É na verdade que estou me metendo, seu babaca. Agora saia daqui. Os olhos de Shaw faiscaram por um instante, mas pareciam ter perdido o efeito sobre ela. – Agora! – gritou Katie para ele. Quando Shaw se levantou para ir embora, ela acrescentou: – Não se preocupe. Não vou mencionar você na matéria. Considere isso um presente de despedida.
KATIE TELEFONOU PARA KEVIN Gallagher e informou-lhe o que acontecera. Quando ele finalmente parou de ofegar, fez uma única pergunta: – Quando pode entregar a matéria? – Já está pronta. Posso mandá-la por e-mail agora. Você pode checar os fatos, editar o texto e depois publicá-lo. – Seu contato está morto? – Sim. A polícia está investigando. – Os tiras falaram com você? – Eu só lhes disse o essencial. Não revelei nada que Lesnik havia me contado. Isto é primeira página, não é, Kevin? – Primeira página! Primeira página! Manchete de 10 centímetros, Katie. Como quando há uma declaração de guerra. Envie a matéria agora e eu lhe telefonarei assim que terminar de lêla. Katie desligou o telefone, hesitou por um momento, clicou no botão de enviar e o e-mail seguiu para o editor. Como quando há uma declaração de guerra. Ela pensou nas palavras de Shaw. E se houvesse uma guerra mundial? Sentiu um arrepio percorrendo sua espinha. Gallagher retornou a ligação 20 minutos depois. Katie pôde sentir a ansiedade dele do outro lado do oceano. – Vamos publicar isto na edição da manhã – prometeu ele. – Ainda dá tempo. – E depois acrescentou com preocupação: – Não há nenhuma chance de alguém se antecipar ao nosso furo de reportagem? – Lesnik não vai falar com mais ninguém, se é o que quer dizer. Mas veja bem, Kevin, não posso provar que meu contato realmente esteve no prédio naquele dia. Tudo isso é circunstancial. Não tenho nenhuma fonte que corrobore. Não é assim que costumo fazer as coisas. – Ele não tinha como saber desses detalhes se não estivesse lá, Katie. A polícia de Londres não liberou nenhuma dessas informações e, acredite em mim, tentamos obtê-las. Além do mais, ele foi morto. Acho que isso é prova suficiente. Já publiquei matérias com menos, como todos os outros jornais. Quero dizer, olhe para os fiascos da equipe de Duke Lacrosse e Richard Jewel. – A palavra-chave aí é fiasco, Kevin. – De repente, Katie não se sentia mais tão segura. – Não se preocupe. Este será seu terceiro Pulitzer, Katie. Tome uma bebida por mim. – Na verdade tenho um probleminha com isso – disse ela. – Achei que você tivesse ouvido falar. – Ouvi, mas e daí? Tome um porre. Uma história como esta merece isso. Uma luz se acendeu no cérebro de Katie, talvez por causa desse comentário indelicado, talvez por causa de alguma coisa cravada bem no fundo de sua alma. – Espere um minuto, Kevin! – O que foi? – Você ainda não pode publicar a matéria. – Está brincando? – Espere até eu ligar de volta e lhe dar o sinal verde. Tenho que checar algo primeiro. – Katie! Meus instintos estão me dizendo... – Cale a boca e ouça – gritou ela ao telefone. – Você não tem instintos. Era eu que corria pelo mundo sendo alvejada, enquanto pessoas como você ficavam sentadas atrás de suas belas e seguras escrivaninhas, certo? Você não liga para nada além de vender jornais. Vai segurar essa matéria até eu lhe dizer que pode publicála. E, se me ferrar, vou pessoalmente à sua casa quebrar sua cara. Agora vou desligar e tomar aquela bebida que você sugeriu tão delicadamente, seu babaca! Ela desligou o telefone enojada, respirou fundo e tentou parar de tremer. Alguns minutos depois estava no bar do hotel, tomando um uísque com soda para criar coragem de fazer o que estava prestes a fazer. Depois tomou uma segunda dose. Teria tomado uma terceira, mas, de algum modo, conseguiu sair do banco do bar, depois de observar um homem perto dela beber até cair.
Katie foi para a rua, passando pela casa de Charles Dickens. Era uma das muitas residências que o autor tinha ocupado em Londres, mas a única transformada em museu. Ela se perguntou se a imaginação prodigiosa de Dickens poderia ter aventado o absoluto pesadelo em que ela se via. Provavelmente ela teria que recorrer a Kafka para lhe fazer justiça. Katie chegou a um pequeno parque, sentou-se num banco, pegou seu celular e telefonou para ele. Ele atendeu no segundo toque. – Alô? – Podemos conversar? – Achei que você já tivesse tomado uma decisão muito clara. – Quero me encontrar com você. – Por quê? – Por favor, Shaw, é importante. O café era perto da estação de King’s Cross. Katie se sentou do lado de fora e esperou Shaw, observando os ônibus articulados. Tinham substituído os ônibus de dois andares e eram basicamente dois veículos unidos por um encaixe flexível. Os londrinos não gostavam muito deles porque frequentemente bloqueavam os cruzamentos estreitos da cidade ao fazerem uma curva. Esta é a minha vida, pensou Katie. Tenho uma dúzia de ônibus articulados bloqueando todos os caminhos que eu poderia seguir. Foi ela que o avistou primeiro. Mesmo com o braço ferido, Shaw se movia com agilidade, parecendo deslizar pela calçada como uma garça sobre a água, só esperando para atacar. Katie se levantou e acenou para ele. Ela pediu algo para comer; ele só quis café e um biscoito. – Você falou com a polícia? – perguntou Shaw. – Brevemente. Só disse a eles o que vi. Não mencionei que eu o estava entrevistando. Não queria mexer nesse vespeiro. Até onde eles sabem, eu era apenas uma transeunte. – Saberão que você mentiu quando a matéria for publicada. A propósito, quando será? Estou certo de que já a escreveu.
– Escrevi. Foi por isso que quis falar com você. Ele se recostou e pareceu esperançoso. – Então fale. – Não quero começar a Terceira Guerra Mundial. Shaw tomou um gole de café enquanto Katie beliscava sua salada. Nenhum dos dois disse nada por cerca de um minuto. – O que você quer que eu diga? – perguntou ele. – Que não deveria publicar a matéria? Já falei isso. – Realmente acha que o fato de a verdade vir à tona fará mais mal do que bem? – Sim, acho. Mas vamos dar um passo atrás. Não sabemos se o que sua matéria diz é verdade. – Como você sabe? Você nem a leu – retrucou Katie, um pouco irritada. – Você não me deixou ler – rebateu ele. Então seu tom se suavizou: – Olhe, Katie, sinto muito pelo que aconteceu com Lesnik. Não tenho a menor ideia se ele estava envolvido ou não com os criminosos. – Alguém ter atirado nele na rua provavelmente mostra que não estava. Lesnik sabia a verdade, por isso foram atrás dele e o mataram. – Essa teoria tem alguns pontos falhos. Como foram atrás dele? Por que o mataram? Porque ele poderia falar sobre os russos? Mas parecia que queriam mesmo que ele falasse. – Parece que estamos repetindo a discussão que tivemos na última vez. – Sim, estamos. – Shaw se recostou e olhou para toda parte, menos para ela. – Por que você entrou explodindo naquele albergue? – Digamos que eu estava tendo um dia ruim. Katie o olhou com curiosidade e Shaw a encarou. – Fui ver o corpo de Anna no necrotério. – Por que você fez isso? – perguntou Katie, incrédula.
– Não sei. Senti que tinha que ir. Depois fui ao apartamento dela e as coisas não foram melhores lá. – Todas as lembranças. – E dei de cara com meus sogros. E o pai dela me atacou. – Meu Deus! – Mas o pior foi ele me culpar pelo que aconteceu com Anna. Katie se recostou, parecendo estupefata. – Por que ele fez isso? – Do ponto de vista dele, faz algum sentido. Ele descobriu que vivo viajando pelo mundo e estou envolvido com homens que têm armas. Ainda por cima alguém diz para ele que sou basicamente um criminoso. Então Anna é baleada. A culpa é minha. Outros segundos de silêncio se passaram. – Olhe, vou segurar a matéria. Por enquanto. Até saber mais. – Acho que é uma atitude muito prudente, Katie. – Ele fez uma pausa. – E eu a admiro. – O que você vai fazer agora? – Meu plano não mudou. Vou encontrar o assassino de Anna.
NICHOLAS CREEL ESTAVA FICANDO impaciente. Achara que àquela altura o Scribe já teria publicado a matéria. Lesnik estava morto. Mas antes havia contado tudo a Katie, que tinha a história do século. Era exatamente aquilo de que ela precisava para voltar ao topo. Então, qual o problema? Ele tinha mandado seu pessoal dar alguns telefonemas estratégicos para várias fontes, inclusive o Scribe. Na verdade, Creel era um investidor passivo no jornal e, dos bastidores, havia orquestrado a contratação de Katie. Tinha ficado sabendo que houvera alguma tensão no jornal. Ela enviara a matéria, mas eles a estavam segurando por algum motivo. Bem, ele poria um ponto final nisso. Telefonou para Pender e explicou a situação para seu “gerente da verdade”, como gostava de chamá-lo. – Não quero que pareça que estou tentando influenciar o jornal, por isso dê um jeito de eles publicarem a matéria. – Fique tranquilo, Sr. Creel. Sei o modo perfeito de fazer isso. Pender desligou o telefone. Havia um modo infalível de fazer um jornal soltar uma matéria que estivesse segurando: fazê-lo pensar que alguém se anteciparia ao seu furo de reportagem. Na era da internet, isso era a coisa mais fácil do mundo. No fim daquele dia, Pender já havia plantado em vários lugares altamente visíveis da internet entradas sugerindo que uma reviravolta a respeito do Massacre de Londres estava prestes a ser revelada. “Novas e surpreendentes revelações”, proclamava um post em um blog falso. “Relato de pessoa com acesso a informações será divulgado.” Outra dizia que “as consequências globais dependem dos assassinatos na Inglaterra e do que realmente aconteceu ali e por quê” e que isso estava ligado a outro assassinato recente em Londres. E que a história seria totalmente revelada a qualquer minuto e a verdade seria surpreendente.
Pender plantou essas afirmações em sites que sabia que a maioria dos jornais, inclusive o Scribe, visitava de hora em hora para obter material. Ele se recostou e esperou que eles puxassem o gatilho. Não demorou muito. www Kevin Gallagher ficou sabendo das afirmações na internet menos de meia hora depois de elas serem postadas. Como em todos os outros jornais, membros de sua equipe eram encarregados de pesquisar temas de interesse. Bem, o que eles estavam deixando em sua escrivaninha não era apenas tema de interesse, mas corroía lentamente seu estômago. Quando seus superiores descobriram que estavam prestes a perder a melhor história de que podiam se lembrar, disseram a Gallagher em termos muito claros que, se alguém se antecipasse ao furo de reportagem do Scribe, ele estaria no olho da rua. E, se Katie James não concordasse em soltar a matéria, era melhor Gallagher encontrar um modo de fazer isso. Pensando em sua carreira e na perda de um Pulitzer, Gallagher fez o que tinha de fazer. Depois telefonou para Katie. – Temos que publicar a matéria, Katie – disse. – Estão prestes a se antecipar a nós. – Isso é impossível. Ninguém sabe. – Estou olhando para quatro fontes na internet que dizem o contrário. – Kevin, não vamos publicar. – Por que não? – Porque não é certo. – E dei minha palavra a Shaw. – Sinto muito, Katie. – O que quer dizer com isso? – perguntou ela abruptamente, seu coração começando a bater mais rápido. – Não telefonei para pedir sua permissão. – Kevin! – Sairá na edição da manhã. – Vou matar você! – gritou ela pelo telefone.
– Eles iam me demitir. Fico com a opção da morte. Sinto muito, Katie, mas tenho certeza de que tudo dará certo. Ele desligou e Katie ficou sentada, olhando para a parede de seu apartamento de Londres. Deus, realmente precisava de um drinque. Então parou de pensar em bebida. Shaw! Telefonou para ele, parte dela torcendo para não encontrá-lo, mas Shaw atendeu. – Tenho más notícias – começou ela, hesitante. Quando terminou, Shaw não disse nada. – Shaw? Ainda está aí? Então a linha ficou muda. Katie achou que isso não era um bom sinal. www No dia seguinte o mundo ficou sabendo que, segundo uma fonte interna, os assassinos por trás do Massacre de Londres eram russos, supostamente trabalhando para o presidente Gorshkov. O motivo ainda era desconhecido. Dizer que isso atingiu a Terra como um tsunami de lava teria sido um grande eufemismo. Dezenas de processos contra o governo russo foram imediatamente abertos nos tribunais ingleses pelas famílias das vítimas, embora isso não fosse da alçada desses tribunais. Uma pequena bomba explodiu dentro da embaixada russa em Londres. A segurança foi aumentada quando manifestantes marcharam em frente ao prédio enquanto o embaixador, com o rosto sombrio, se escondia lá dentro, congestionando as linhas telefônicas para Gorshkov. Nas ruas de Londres milhares de manifestantes carregavam bandeiras onde se lia: “Gorshkov é um assassino”. As bandeiras haviam sido discretamente fornecidas por pessoas que trabalhavam para Pender. As famílias das vítimas apareceram na BBC e em todas as grandes emissoras dos Estados Unidos e de vários outros países. Todas denunciaram a atrocidade da Rússia e seus rostos chorosos e corações partidos fizeram o mundo, atônito, chegar a um nível de fúria apoplética poucas vezes visto na história. Atiçando ainda mais o fogo do inferno, surgiu a revelação de que a fonte, Aron Lesnik, tinha sido alvejada em plena luz do dia, em Londres. Na verdade, ele havia morrido bem na frente de Katie James, que acabara de voltar ao topo do mundo jornalístico. Os russos mais uma vez negaram tudo com veemência. E essas negativas não mudaram nem um pouco a opinião do mundo. Diziam que Gorshkov estava tão louco que caminhava pelo Kremlin portando uma arma e ameaçando explodir seu cérebro e o de todas as outras pessoas a qualquer momento. Todos queriam encontrar Katie James. Inclusive a polícia de Londres, quando percebeu que tinha sido enganada pela intrépida jornalista. Mas Katie tinha desaparecido. Havia boatos de que Gorshkov mandara matá-la. Será que ela já está morta?, perguntavam-se alguns bilhões de pessoas. Logo após Shaw ter desligado o telefone, Katie fizera a mala e fugira. Tinha encontrado um quarto em uma pensão decrépita que aceitava pagamento em dinheiro e não fizera nenhuma pergunta pessoal. Ela se instalou – não, se entocou era um termo mais apropriado. Jurou que, se sobrevivesse a tudo aquilo, a primeira coisa que faria seria voar para os Estados Unidos e bater com um taco de beisebol nos joelhos de Kevin Gallagher.
A PROPRIEDADE DE MIL ACRES em Albemarle County, Virgínia, ficava a pouco tempo de carro da amada universidade de Thomas Jefferson e pertencia a uma empresa de fachada de Nicolas Creel. Era uma fazenda de criação de cavalos de corrida e reprodutores. Havia também um pouco de gado, algumas plantações e uma mansão tão grande que acomodaria confortavelmente vários Monticellos. Creel voara para ali naquele mesmo dia e seu helicóptero trouxera Dick Pender para discutir e implementar o próximo passo do plano. Os homens estavam sentados a uma pequena mesa de conferências numa sala totalmente à prova de som – e escuta clandestina. – Sua esposa voltou do exterior com o senhor? – perguntou Pender. – Não. Nosso casamento acabou. Hottie ainda estava no sul da França e deveria receber os papéis do divórcio a qualquer momento, calculou Creel, em silêncio. Havia grandes chances de que ela estivesse completamente nua quando isso acontecesse. Por um momento, ele se perguntou como ela conseguiria administrar a “pensão” de 5 milhões de dólares por ano que o pacto pré-nupcial lhe garantia por uma década. Pelo menos sua predileção pela nudez a faria economizar com roupas. Então Hottie desapareceu de sua mente por completo. – Entendo – disse Pender, observando os projetos de arquitetura sobre a mesa. – Está construindo outro grande palácio em algum lugar? – Não, um orfanato na Itália. – Sempre me surpreendo com a amplitude de seus interesses, Sr. Creel. – Fico feliz em ouvir isso – disse o bilionário com frieza. – A matéria de Katie James superou tudo o que já fizemos – acrescentou Pender. – Nunca tinha visto tanta atividade da mídia. Nunca. – Espere até terminarmos de dar a história para ela.
– Deixe-me ver, isso inclui os donos chineses do Phoenix Group – disse Pender, olhando de relance para seus papéis. – Arquivos que mostram que o Phoenix estava por trás da campanha da Ameaça Vermelha foram encontrados no prédio, mas a polícia omitiu esse fato para evitar uma crise internacional. – Ele citou esses itens como se estivesse lendo uma lista de compras. Ergueu os olhos e sorriu. – Permita-me dizer que isso realmente é digno de aplausos. O senhor nunca voou tão alto e não faço esse elogio levianamente, considerando o que o senhor já conseguiu no passado. – A situação não exigiria menos, Dick – disse Creel, em tom mordaz. – Quando pode deixar isso se espalhar? – Basta uma ordem sua e estará na internet. Cinco minutos depois, todas as grandes agências de notícias o terão em suas ansiosas garras. – Tem certeza de que não vão segurar a informação? Tentar checar os fatos? Pender riu. – Checar? Hoje em dia? Quem se importa em checar alguma coisa? Tudo tem a ver com velocidade. Quem chega primeiro define a verdade. O senhor sabe disso tão bem quanto qualquer um. – Então faça isso. Agora. Pender digitou uma palavra em seu BlackBerry. Lançar. Disse a palavra em voz alta enquanto a digitava. – Achei o termo apropriado para alguém na indústria de armas – disse ele. – Bem pensado – respondeu Creel, entediado. Os dois homens trabalharam por muitas horas e depois Pender arrumou suas coisas. – O que virá depois? – perguntou ao bilionário. – Outras tropas na linha de frente – respondeu Creel. – Tenha uma boa viagem de volta a Washington. Dick, quando assinarmos os contratos com a China e a Rússia, acho que haverá um bônus substancial para você. Pender não conseguiu esconder seu prazer. – Só estou fazendo o meu trabalho.
– Isso significa que não quer o bônus? Os dois homens riram, Pender um pouco nervoso. – Obrigado, Sr. Creel. Depois que Pender foi embora, outra porta para a sala de conferências se abriu. Caesar se sentou na frente de seu patrão. – É claro que você sabe onde está a jornalista – disse Creel. Não era uma pergunta. O outro homem assentiu com a cabeça. – Escondida em Londres, mas nós a estamos mantendo em rédea curta desde que cuidamos de Lesnik. – Aron Lesnik. Nunca confiei nas pessoas que fazem coisas por motivos altruístas. Nunca se sabe quando vão querer fazer a coisa certa de novo e ferrar você. – Ele com certeza ficou muito chateado por aquele velho ter sido morto pelos soviéticos. Então, quer que matemos esse sujeito, o Shaw? – Não. Pelo menos por enquanto. Se eu fosse um apostador, e às vezes sou, diria que chegará a hora em que a resposta para essa pergunta será sim. – E quanto a Katie James? – Ela desempenhou seu papel e não vejo nenhum motivo para mantê-la por perto para que possa retornar. Ela realmente revelou a parte russa em sua matéria, por isso a solução é bastante óbvia. – Olhou sugestivamente para Caesar. – Polônio 210, não – protestou Caesar. – É perigoso mexer com essa porcaria e vai demorar algum tempo para eu conseguir um pouco. – Seria estupidez fazer isso de maneira tão óbvia. – Creel se sentou mais para a frente e olhou diretamente nos olhos de Caesar. – Mas era uma vez um dissidente búlgaro chamado Georgi Markov que, ironicamente, foi morto em Londres com um guarda-chuva. Creio que conhece essa história. Caesar sorriu maldosamente. – Conheço. – Então faça isso.
Creel fez um sinal com a mão e Caesar desapareceu tão rápido quanto havia surgido.
SHAW OBSERVAVA EM SILÊNCIO os homens de Royce esquadrinharem o interior do local do massacre em busca de pistas que simplesmente não surgiam. O agente do MI5 tinha ido lá fora se encontrar com alguém, deixando Shaw sozinho, imaginando se as coisas poderiam piorar. Royce ficara furioso com a matéria de Katie James, mas não pudera culpar Shaw por isso, pois não sabia nada sobre seu envolvimento com Katie e o falecido Aron Lesnik. Lesnik havia sido tirado do Tâmisa com a bala ainda alojada na parte de trás de seu cérebro. Ele não responderia a nenhum interrogatório. Frank atravessou o corredor e se juntou a ele. – Você nunca me disse para onde foi depois que saímos do apartamento de Anna. – É verdade, nunca disse. – Você tem algo a ver com Katie James e sua matéria exclusiva? – Não ando por aí com essa mulher, Frank. – Certo. Então como ela conseguiu aquela história do polonês? E quem o matou? – Não faço ideia – disse Shaw em tom entediado, enquanto Frank o olhava de cara feia. Shaw ouviu a porta da frente do prédio, no andar de baixo, ser batida com força. Ao mesmo tempo, um perito que ele nunca tinha visto se aproximou dele e disse: – Com licença, estou apertado. Shaw olhou por cima do ombro e percebeu que estava na frente da porta do banheiro. Afastou-se para o lado e o perito esticou a mão para tentar abrir a porta. Pés subiam pesadamente as escadas. Shaw ouviu Royce gritando. Estava claramente aborrecido com alguém e, pelo visto, era com ele. O perito forçou a maçaneta da porta do banheiro. Um sargento que passava por ali e que estava de serviço no prédio desde o primeiro dia falou:
– Você deve ser novo aqui. Terá que usar o banheiro do subsolo. Este está interditado. Shaw pôde ouvir Royce mais claramente: – Shaw? Droga, Shaw! O agente do MI5 apareceu no alto das escadas, ofegante e com o rosto vermelho. Avançou na direção de Shaw agitando um papel. – Que diabo você sabe sobre isso? – perguntou. Shaw leu o papel. Era uma impressão de uma página de serviço de notícias on-line. A história era curta mas objetiva. O governo chinês era dono do Phoenix Group ou tinha ligação com ele. Também revelava que a evidência encontrada dentro do prédio supostamente provava que o Phoenix Group estava por trás da campanha da Ameaça Vermelha, o que significava, é claro, que os chineses também estavam. Segundo a fonte anônima do site de notícias, foi por isso que os homens de Gorshkov atacaram o lugar. Aquela era uma explicação simples que serviria muito bem para o mundo inteiro. – Isto está por toda a internet – gritou Royce apontando para Shaw. – E agora por todo o maldito mundo. Frank havia lido a folha por cima do ombro de Shaw. – Por que isso é problema dele? – Não sou a fonte – disse Shaw calmamente. – Não contei nada sobre o que aconteceu aqui a ninguém. A expressão de Royce deixava claro que ele não acreditava naquilo. – Nem mesmo à sua amiga Katie James? Outro furo para ela, talvez? – Não sei do que você está falando! – disse Shaw, irritado. – Está negando que a conhece? Shaw hesitou. – Já sei a resposta para essa pergunta, por isso não minta para mim! – Como ficou sabendo? – perguntou Shaw, impassível, enquanto olhava com curiosidade para o sargento da polícia.
– Sou um maldito agente do serviço secreto, é isso que eu faço.
– Não a tenho visto ultimamente. E não tenho a menor ideia de onde ela está... – Shaw ficou paralisado enquanto o perito passava por ele e descia as escadas. Frank confrontou Royce diretamente: – Se você tem um problema de vazamento de informações sigilosas, Royce, por que não o discute com seu pessoal? Porque não há como Shaw ser a fonte dessa história. – Não acredito que algum dos meus homens tenha algo a ver com isso – disse Royce, indignado. Enquanto Frank e Royce discutiam, Shaw agarrou a manga do uniforme do sargento que avisara o perito sobre o banheiro. – Há quanto tempo esse banheiro está interditado? – perguntou-lhe em voz baixa. O sargento deu um sorriso cansado. – Desde que chegamos aqui, senhor. Muito inconveniente. Estava trancado. Cano quebrado. Foi o que deduzi quando consegui abrir a porta. Afinal de contas, este é um prédio antigo. E parece que aquele pobres coitados nunca tiveram uma chance de consertálo. Por isso o tranquei de novo. Agora as pessoas têm que ir ao subsolo para se aliviar, porque o único outro banheiro fica no primeiro andar e é feminino. Embora alguns dos homens também o usassem. Acho que isso não importa agora, não é? – Onde exatamente fica o banheiro feminino no primeiro andar? – No final do corredor, no lado oposto à escada, perto dos fundos do prédio. Shaw atravessou o corredor e viu a placa na porta de madeira com o nome William Harris. Olhou para a sala onde ficava a copiadora. Situava-se no meio do caminho entre o escritório de Harris e o banheiro interditado. Royce veio esbravejando pelo corredor com Frank andando apressadamente atrás dele. – Shaw? – berrou. – Quero a maldita verdade!
Shaw olhou para a escada, as imagens passando depressa por sua mente. Mesmo que Lesnik tivesse de fato usado o banheiro do subsolo ou até o feminino no primeiro andar, em vez de o interditado do segundo, as coisas não poderiam ter acontecido como ele contara. Segundo Katie, ele ouvira tiros quando estava saindo do banheiro. A essa altura a equipe de assalto já estava no primeiro andar, cobrindo as duas extremidades. Voltando do subsolo e especialmente do primeiro andar, Lesnik teria dado de cara com eles. Teria sido morto. Ele nunca havia se escondido na copiadora. Provavelmente nunca estivera no prédio. E tudo se resumia a onde você havia urinado. Ou não havia urinado. Shaw desceu a escada correndo, deixando Royce para trás, aos berros, sem ouvir as imprecações que choviam sobre ele. Telefonou para o número que Katie lhe dera. – Vamos, atenda, atenda o maldito telefone. – Ele tocou três, quatro, cinco vezes. Shaw estava certo de que cairia na caixa postal. Puta merda! – Alô? Shaw sentiu alívio quando ouviu a voz de Katie. – Lesnik estava mentindo – disse. – O quê? – No dia dos assassinatos o banheiro do segundo andar estava interditado, com a porta trancada. Ele só poderia ter usado o banheiro do subsolo ou o do primeiro andar, perto da porta dos fundos. Não teria corrido direto para os assassinos. Seria morto. Estava mentindo sobre a coisa toda. Você foi usada, Katie. Houve silêncio do outro lado. Shaw se perguntou se Katie havia desligado. – Tem certeza? – perguntou ela, com a voz trêmula. – Ele foi bem instruído. Se não fosse pelo lapso do banheiro, que obviamente se esqueceram de checar e presumiram que estava funcionando, e um pouco de sorte, eu nunca teria descoberto. – Minha matéria. Era uma mentira? – disse ela com a voz entrecortada, sem poder acreditar. – Onde você está?
– Não posso acreditar nisso. Não posso. Eu disse para aquele idiota do Gallagher que não tinha nenhuma fonte que a corroborasse. – Katie, onde você está? – Por quê? – Porque, agora que escreveu a matéria, você é dispensável. – Estou segura. – Não, não está segura! É provável que eles saibam exatamente onde você está. Agora me diga. Ela lhe deu o endereço. – Não abra a porta para ninguém. E esteja pronta para fugir. Ele saiu correndo para o meio da rua, fez um táxi parar, abriu a porta com violência, arrancou um surpreso passageiro de dentro do veículo, entrou e disse ao espantado motorista exatamente aonde ir. O diminuto taxista viu o tamanho e a expressão irritada de Shaw e o táxi partiu ruidosamente.
SÓ HAVIAM SE PASSADO 20 minutos desde o telefonema de Shaw quando o interfone do apartamento de Katie tocou. Ela correu para a porta e atendeu: – Shaw? – Sim. Ela apertou o botão para abrir a porta e depois ficou paralisada. Aquela era a voz de Shaw? Em sua agitação, simplesmente presumira... Katie ouviu passos lá embaixo, subindo cuidadosamente. Não pareciam... Ela passou o ferrolho na porta, pegou sua bolsa de viagem arrumada às pressas e olhou freneticamente ao redor procurando outra saída. Só havia uma. A janela que dava para o beco nos fundos. Abriu-a e olhou para fora. Era uma queda de dois andares. Nos filmes sempre havia uma saída de emergência ou montes de lixo macio lá embaixo, mas na vida real, não. E não lhe restava tempo para amarrar lençóis e fazer uma corda. O que havia lá embaixo era um homem forte usando jeans e um suéter, sentado em uma cadeira dobrável, lendo um jornal. – Cem libras se você me pegar – gritou ela. – Como disse? – perguntou ele, erguendo os olhos. Katie subiu no peitoril da janela, com a bolsa de viagem às costas. – Vou pular e você vai me pegar. Entendeu? O homem deixou cair seu jornal e ficou em pé olhando ao redor, talvez para ver se isso era algum tipo de brincadeira. – Você disse que vai pular? – Não me deixe cair! – Ah, meu Deus – foi tudo que ele conseguiu dizer. Havia alguém do lado de fora da porta de Katie. Ela ouviu algo sendo pressionado contra a madeira. Por um momento dolorosamente longo, tudo o que viu foi Anna Fischer, posicionada exatamente como ela estava agora, e as balas atravessando seu corpo. Se ao menos Anna tivesse pulado um segundo antes! – Lá vou eu – gritou ela para o homem, que saltava com os braços grossos estendidos em todas as direções, tentando calcular a trajetória dela. – Não me deixe cair! – repetiu Katie. Pulou e alguns segundos depois ela e o homem estavam embolados em uma confusão de braços e pernas. Ela se levantou com todas as partes de seu corpo aparentemente intactas, exceto por um braço arranhado. Pôs cinco notas de 20 libras na mão do homem, lhe deu um beijo e correu feito louca. Katie virou a esquina e se afastou do prédio. Não olhou para trás e não viu o homem mudar de direção e segui-la. Também não viu a porta do prédio ser escancarada enquanto outro homem chegava à rua e corria atrás dela. Mas pôde sentir a presença deles e correu mais rápido. Deveria começar a gritar? Havia muitas pessoas ao redor. Mas e se eles tivessem armas? Tinham atirado no pobre Lesnik com um milhão de pessoas em volta. Katie procurou desesperadamente um policial, mas não viu nenhum. Ela não viu o terceiro homem, mas ele estava à sua frente, vindo em sua direção. Ele era o ponto de apoio para o caso de a primeira equipe falhar, e parecia que teria sua chance. O homem deslizou a seringa para fora da manga de seu casaco, destampou-a e segurou-a pronta, enquanto corria.
O TÁXI ENTROU NA RUA e Shaw a examinou com atenção. Avistou Katie. O olhar dela era de puro terror. Estava correndo. Ele viu um dos homens atrás dela. Mas haveria mais de um. E então aconteceu. Shaw viu a luz do sol se refletir no objeto na mão do homem. Ele saltou do táxi em movimento e se lançou para a frente a toda a velocidade. www Katie e o homem estavam a poucos centímetros um do outro. Ele moveu a seringa, mirando a barriga da jornalista. Ela deu um grito sufocado quando o homem na sua frente foi derrubado para o lado por um homem muito maior. Sentiu algo escorregar pelo seu braço. Olhou para baixo e viu a agulha que não a atingiu por um centímetro. Depois viu Shaw agarrar a mão do homem, dobrá-la para a frente e enterrar a agulha no peito dele, com o êmbolo totalmente empurrado para baixo. O homem olhou horrorizado para a coisa espetada nele, empurrou Shaw, se levantou e correu pela rua. Seus lábios já estavam ficando dormentes quando a droga começou a viagem letal pelo seu corpo. Caesar não havia optado por ricina, o veneno injetado na perna do búlgaro Georgi Markov com a ponta de um guarda-chuva. O que havia sido injetado no corpo do homem era uma grande dose de tetrodoxina, uma substância mil vezes mais letal do que o cianureto e para a qual não havia antídoto. Ele estaria morto em 20 minutos. Shaw agarrou Katie pelo braço. Eles dispararam para a estação de Euston, saltaram para dentro do metrô, foram até King’s Cross, correram de volta para a luz do dia e pegaram um táxi. Shaw disse ao homem para simplesmente dirigir e depois olhou para Katie. Ela não dissera uma única palavra enquanto corriam e estavam no metrô. Um pensamento terrível pareceu dominá-lo: – A seringa, ela não...? Katie pôs a mão trêmula no braço dele. – Não, não entrou. Graças a você. Como soube?
– Mais por sorte do que qualquer outra coisa. – Ele se recostou no banco. – Era a terceira parte, não era? Shaw fez um sinal afirmativo com a cabeça. – Sim. Katie olhou para fora da janela enquanto o táxi avançava no trânsito de Londres. A noite caía rapidamente. – Para onde vamos? Ele não disse nada. – Shaw? – Eu ouvi. Só não tenho uma resposta. – Sinto muito não ter escutado você em relação ao Lesnik. – Eu também – disse ele em tom rude. – Eu não deveria ter escrito a matéria. – Não, não deveria. – Estamos ferrados, não é? – Parece que sim. E eu disse a você para não sair de onde estava. – Eles estavam no prédio. Tive que correr. – Como saiu? – Eu... – Katie se deteve. Não queria lhe dizer que havia pulado de uma janela e conseguido sobreviver. Ao contrário de Anna. – Pelos fundos. Você tem algum tipo de plano? – Tenho um objetivo. Permanecer vivo. O plano ainda surgirá. – Agora está claro que Lesnik trabalhava para essa terceira parte. Eles o mataram e tentaram me matar. De algum modo fizeram o Scribe me contratar e depois jogaram Lesnik no meu colo. Eu sabia que aquilo era bom demais para ser verdade. Droga! – Katie deu um tapa no banco. – Lesnik disse algo que poderia nos levar a quem o contratou? Ela fez um sinal negativo com a cabeça.
– Nada. Chequei o passado dele. Era verdadeiro. Parecia um homem sincero. O pai dele foi morto pelos soviéticos. Provavelmente Lesnik guardava rancor e essas pessoas o exploraram. – Mas isso não nos leva para mais perto da verdade. – Precisamos ir para a clandestinidade para ter uma chance de descobrir o que realmente está acontecendo. – Katie olhou para ele. – Conhece alguém que pode ajudar nisso? Shaw já tinha pegado seu telefone. – Talvez.
ESSE DEVERIA TER SIDO um dos dias mais felizes da carreira de Nicolas Creel. Depois de anos de trabalho e uma enorme e recém-criada crise internacional, tanto o governo da Rússia quanto o da China estavam prestes a assinar contratos com a Ares e suas subsidiárias, que renderiam cerca de 1 trilhão de dólares, com muito mais ainda por vir. O fato de países dos dois lados de uma disputa comprarem suas armas da mesma empresa era uma prova da centralização dos fornecedores militares na era moderna. Mas a Ares não tinha predileções. Era e sempre seria uma fornecedora de armas de destruição em massa que oferecia oportunidades iguais para todos. O que selara o sucesso do negócio fora a firme exigência do presidente Gorshkov de um pedido de desculpas público por parte de Pequim. E ele também queria dinheiro, bilhões, pelos danos causados à reputação internacional da Rússia. Não admirava que Pequim não tivesse concordado. Enviara uma resposta igualmente firme para Moscou, dizendo que os chineses não estavam envolvidos com a campanha da Ameaça Vermelha, portanto não deviam nada aos russos. Como era de se esperar, a partir daí as relações entre os dois gigantes degringolaram em uma velocidade incrível. Outros países tentaram intervir para negociar uma solução pacífica. Os Estados Unidos naturalmente assumiram o papel principal, mas, como o governo chinês estava basicamente financiando o consumo americano comprando sua dívida, Washington não teve muito a fazer quando Pequim lhe disse para recuar. Pelo mesmo motivo, os russos acusaram os americanos de estarem nas mãos dos chineses. Consequentemente, quando o embaixador americano implorou aos russos que não tomassem nenhuma atitude drástica, estes o mandaram ficar quieto ou arrumar as malas e sair da Rússia. A França foi a próxima a interferir, mas Gorshkov nem mesmo retornou o telefonema do presidente francês. Os alemães ficaram em silêncio. Obviamente Berlim não queria ser arrastada de volta para trás de uma Cortina de Ferro ou para um Caixão de Titânio. A Grã-Bretanha estava em uma situação extremamente delicada. Se a Rússia estivesse por trás do massacre e a China estivesse dirigindo a campanha da Ameaça Vermelha de Londres, os pobres ingleses não sabiam exatamente qual deveria ser seu papel ou sua reação. E, quando os primeiros canais diplomáticos com a China foram abertos para discutir esse assunto, os comunistas negaram sua culpa com tanta veemência quanto a Rússia fizera antes e acabaram dizendo ao governo britânico para não se meter na discussão. Agora o mundo inteiro se armava para uma Terceira Guerra Mundial. O vice-presidente da Ares enviara um e-mail para Creel dizendo que a quantidade de negócios seria a maior de toda a história. Sua alegria era evidente em cada palavra da mensagem. Ele ainda acrescentara: “Que golpe de sorte essa Ameaça Vermelha.” Creel leu a mensagem uma vez e depois a deletou. Que golpe de sorte mesmo. Ele fez uma anotação mental sobre encontrar um novo vice-presidente para substituir aquele idiota. A Guerra Fria estava de volta e melhor do que nunca. Com uma série de movimentos hábeis e um notável planejamento, ele havia recolocado a estrutura de poder do planeta onde deveria estar. Os inconsequentes do Oriente Médio imediatamente tentaram atrair de novo a atenção do mundo com uma espécie de “Ei, e quanto a mim? Ainda tenho más notícias”, explodindo uma mesquita em Bagdá e bombardeando um mercado em Anbar, matando oitenta civis e dois soldados americanos. A resposta do mundo tinha sido rápida e inequívoca: “Não nos incomodem, temos problemas de verdade. Milhões podem morrer!” Ironicamente, Creel havia tornado o mundo muito mais civilizado voltando a um “real” estado de guerra. Afinal de contas, era esse o seu plano. Nenhum tiro disparado. Dinheiro fluindo. E os selvagens sem consciência postos no seu devido lugar. Este é o truque da cartola. Muito obrigado. Nunca se tratara de dinheiro, mas do mundo. Nicolas Creel acabara de salvá-lo. Ainda assim, havia algo errado.
Creel estava atualmente no pitoresco solo italiano, com a beleza da costa do Mediterrâneo se descortinando à sua frente. A madre superiora estava diante dele, resplandecente em seu adorável hábito branco. Radiante, ela olhava para os esboços de um novo orfanato que substituiria o construído logo após a Segunda Guerra Mundial, quando houve um grande número de órfãos. – Isso é lindo – disse ela em italiano. – E você é um belo homem por tê-lo feito, Nicolas. – Por favor, Madre Superiora. Era o mínimo que eu podia fazer. E lhe garanto que me beneficiarei espiritualmente no mesmo grau em que as crianças se beneficiarão com um novo lar. – Ele disse tudo isso em italiano fluente. Creel dominava muitos idiomas. Ele os havia aprendido apenas para obter uma vantagem nos negócios. Alguns de seus maiores contratos só tinham surgido porque ele era capaz de dizer “por favor” e “obrigado” na língua de seus clientes. Sim, esse deveria ter sido um momento de grande triunfo para Creel, que andava pelo local onde seria construído o novo orfanato. Mas não era. Por um único motivo. Caesar havia chegado de Londres e ido de lancha para o Shiloh. Katie James escapara. Um dos homens de Caesar tinha sido envenenado no lugar dela com a maldita agulha. E Shaw, o homem com olhos iguais aos de Creel, estivera metido nisso. Ele e Katie estavam juntos agora. Fazendo o quê, só eles sabiam. Segundo as fontes de Creel, Shaw tinha saído correndo do prédio do Phoenix Group como se estivesse pegando fogo, 20 minutos antes de chegar ao apartamento de Katie James. E o pior de tudo era que Creel não sabia por quê. Pela primeira vez em um longo tempo, o 14º homem mais rico do mundo sentiu uma pontada de medo. Nicolas Creel não era o tipo que arriscava tudo ou se considerava infalível. Era talentoso o suficiente para reconhecer que não sabia de tudo. Era capaz de adaptar rapidamente um plano, aplicar nova inteligência para máximo efeito e perceber que um plano inalterável estava fadado ao fracasso. Enquanto ele refletia sobre isso, a madre superiora o abraçou, suas lágrimas angelicais manchando o blazer dele. – Deus o abençoe por isso – sussurrou ela ao seu ouvido.
Acima de tudo, Creel era um homem que se precavia de todas as maneiras possíveis. – Madre Superiora, posso lhe pedir um favor? – Peça e eu o farei, meu filho – disse ela. – Pode rezar por mim?
SHAW E KATIE TINHAM se escondido em uma pequena casa num conjunto residencial fora de Londres e perto de Richmond, que Shaw arranjara previamente. Na noite seguinte eles receberam um visitante, um italiano com sotaque holandês. Era o mesmo homem que dirigia o restaurante favorito de Shaw em Amsterdã. Ele cumprimentou Katie de modo educado e depois fez um sinal afirmativo com a cabeça para Shaw, que o observava de perto. – Como chegou aqui? – perguntou Shaw. – De trem – respondeu o homem. – Um pouco mais adequado em termos de segurança. Shaw assentiu com a cabeça enquanto Katie observava, curiosa. – Você trouxe? O homem tirou um pequeno pacote do bolso e o entregou a Shaw. Shaw tentou lhe dar um maço de euros, mas o italiano os empurrou para longe. – Pelo menos para as suas despesas – insistiu Shaw. – Venha me ver em Amsterdã depois que tudo isso terminar. Gaste seu dinheiro lá com boa comida e vinho ruim. Os homens apertaram as mãos e o italiano que falava holandês foi embora. Shaw pôs o pacote no bolso de seu casaco e olhou para Katie, que o encarava em expectativa. – Importa-se de me mostrar? – Não. Depois Shaw telefonou para Frank e o pôs a par do ocorrido. Ao fim de sua longa explicação, o comentário de Frank foi breve, mas direto: – Puta merda! – Eu estava esperando algo um pouco mais útil. – O que você quer que eu faça? Não tem nenhuma prova concreta e ainda não sabe quem é a terceira parte.
– Então me leve para Dublin e seguirei em frente a partir de lá.
– Por que Dublin? – Tenho que me encontrar com algumas pessoas. – Como quem? Leona Bartaroma no castelo Malahide? Sei que você foi procurá-la. – Para sua informação, Katie James está comigo. – Sorte sua. – Então, pode me levar para Dublin? – Olhe, tive muita dificuldade em convencer meus superiores de que trabalhar como freelancer para o MI5 era um bom uso do seu tempo. Se eles descobrirem que você abandonou o caso, não sei o que pode acontecer. – Só me leve para Dublin. – Posso fazer isso, mas tem que jurar que não vai procurar Leona para aquilo. – Eu juro. No dia seguinte, Shaw e Katie foram levados de Londres para o País de Gales em um ônibus velho. Depois se esconderam no porão úmido de um rebocador caindo aos pedaços que atravessava o agitado mar irlandês. Katie passou uma hora vomitando em um balde enquanto eles balançavam a caminho da Irlanda. Shaw lhe passava toalhas molhadas para limpar o rosto. Katie finalmente se sentou, sem ter mais nada em seu estômago. – Sua adaptação ao balanço do mar é impressionante – disse ela. – Gosto mais de terra firme. – O ferryboat não é uma opção quando todos no mundo estão atrás de você. – Todos querem ser famosos até que conseguem e descobrem que isso é horrível. – Nós logo chegaremos lá. – É bom saber – disse Katie com uma das mãos sobre a barriga, ainda se sentindo enjoada. – E o que faremos depois?
– Encontraremos alguém que pode nos ajudar a ficar na clandestinidade. Disfarces, novas identidades. – E depois disso? – Aí pensaremos no próximo passo. Mais tarde, Shaw olhou por uma vigia. O rebocador tinha diminuído a velocidade e o balanço cessara. Eles tinham passado pelo quebra-mar e entrado no porto. – Vamos. Katie se levantou devagar, testando suas pernas. Ela deslizou a bolsa de viagem para cima do ombro. – Shaw, nós vamos morrer, não vamos? – Provavelmente. Por quê? – Só queria uma confirmação.
ELES PEGARAM UM TÁXI no porto e seguiram para oeste, através de pequenas vilas, a caminho de Dublin. Caía uma chuva fria e até mesmo os pubs pelos quais passaram estavam vazios. Katie olhou para dentro da janela de um bar, viu fogo aceso e um homem tomando uma bebida, mas não teve a menor vontade de se juntar a ele. Aparentemente estava curada do alcoolismo. E tudo o que havia sido preciso para isso fora o fim do mundo. Antes de deixarem a Inglaterra, Katie havia telefonado para Kevin Gallagher e lhe explicado que sua fonte provavelmente mentira para ela. – Você tem uma prova cabal disso? – perguntara ele. – Não, não cabal. – Tem como provar que os fatos de sua matéria não são verdadeiros? – Não, não tenho. – Então vamos acreditar nela. – Mesmo se eu não acreditar? – Essa é a maior reportagem da minha vida, Katie, por isso vou fingir que esta conversa nunca aconteceu e sugiro que você faça o mesmo. – Então Gallagher desligara na cara dela. – Filho da puta! – gritara Katie. – Odeio editores! Ela e Shaw saltaram do táxi e caminharam na chuva. Katie olhou ao redor. – Aquela não é a universidade? Shaw fez que sim com a cabeça. – Vamos. Eles se dirigiram para um beco. Shaw bateu numa porta onde havia uma tabuleta pendurada. – Livraria da Maggie? – perguntou Katie. A porta se abriu e uma mulher alta e robusta os fez entrar.
Ela fechou a porta e Katie observou cuidadosamente os livros em todas as quatro paredes. Eles estavam correndo para salvar suas vidas e Shaw a havia forçado a vomitar por todo o mar da Irlanda para levá-la a uma livraria na sombria Dublin? A mulher não disse seu nome a Katie, que também não se apresentou. Presumiu que a mulher fosse Maggie. – Sinto muito por Anna – disse ela a Shaw. Levou-os para o andar de cima, onde uma sala tinha sido arrumada como um salão de beleza. – Sente-se aqui, por favor. – A mulher apontou para uma cadeira giratória na frente de um longo espelho. Katie se sentou e a mulher pegou uma tesoura e ergueu um punhado do cabelo dela. Katie pulou para fora da cadeira. – O que pensa que está fazendo? – Você não disse para ela? – Disse o quê? – perguntou Katie, olhando fixamente para Shaw. – Que iria cortar o cabelo – respondeu Shaw. Ele fez um gesto afirmativo com a cabeça para a mulher. – Deixe curto e mude a cor. Depois cuide do meu. Uma hora depois, Katie James era morena e tinha cabelos espetados, olhos castanhos em vez de azuis, pele mais escura, olhos mais redondos e lábios mais estreitos. Usava roupas volumosas que a faziam parecer uns 10 quilos mais gorda. Shaw não poderia ter se tornado mais baixo, mas 20 minutos depois a maior parte de seus cabelos se fora e a mulher tinha feito uma transformação em seu rosto que incluía bigode e cavanhaque, nariz arrebitado e lentes de contato que deixaram seus impressionantes olhos azuis com um tom suave de castanho. Katie mal pôde reconhecê-lo. Ela os levou para outra sala, arrumada como um estúdio fotográfico. – Para a dona de uma livraria, ela tem muitas atividades paralelas – disse Katie a Shaw. As fotos foram tiradas e, duas horas depois, Shaw e Katie tinham novos passaportes, carteiras de habilitação e outros documentos oficiais que diziam que eles eram um casal de um subúrbio de Londres. Shaw agradeceu à mulher e lhe pagou pelo serviço. – Boa sorte – disse ela. – Ah, vamos precisar de muito mais do que sorte, querida. Por que não reza por um milagre? – retrucou Katie, fechando a porta atrás de si. Enquanto eles caminhavam no beco, Katie perguntou: – O que vamos fazer agora? – Dormir um pouco. E de manhã tenho uma consulta com um médico. – Com um médico? – perguntou Katie, cética. – Vamos deixar uma coisa clara: não vou contar tudo para você. – Certo. Desde que saiba que isso é uma via de mão dupla. – Então as regras básicas estão estabelecidas. Shaw apertou o passo e ela teve que de correr para acompanhá-lo.
ELES SE REGISTRARAM NO hotel como um casal, por isso estavam no mesmo quarto. Shaw dissera a Katie que não queria deixá-la sozinha em nenhum momento. – Eles quase a pegaram uma vez e com certeza vão tentar de novo. Pediram comida, embora o estômago ainda sensível de Katie só aceitasse um pouco de chá e pão. Eles se sentaram para conversar à pequena mesa, de frente um para o outro. – O que ainda não consigo entender – disse Shaw – é por que o alvo foi o Phoenix Group. – Porque pertencia aos chineses – respondeu Katie, segurando sua xícara de chá e vendo pela janela a chuva cair lá fora. – Há muitos lugares em Londres que pertencem aos chineses. E por que escolheram Londres? – Mas um centro de pesquisas pertencente aos chineses...? – O.k., então por que um centro de pesquisas? – Pelo que você diz, eles plantaram aqueles documentos sobre a Ameaça Vermelha. Um grupo de pessoas superinteligentes trabalhando em um centro de pesquisas secreto por trás da campanha de difamação global parece plausível. Provavelmente não teria parecido tão plausível se eles tivessem atacado uma lanchonete, assassinado um monte de adolescentes e plantado documentos incriminadores ali. – Então eles toparam por acaso com o Phoenix Group, ficaram sabendo por acaso de sua conexão com a China e enviaram uma equipe de assalto? – Tem que haver um catalisador – disse Katie. – Talvez alguém com quem depararam. Um projeto em que estivessem trabalhando. Obviamente eles tinham o lugar sob vigilância. Quando eu estava lá, vi muitas pessoas entrando e saindo, por isso talvez devêssemos checar... Katie parou de falar quando a horrível e absolutamente apavorante possibilidade lhe ocorreu. Olhou para Shaw e, pelo seu olhar, pôde ver que haviam chegado à mesma conclusão.
– Eles poderiam ter visto você lá – disse Shaw com um perceptível nervosismo em sua voz. – Sim, poderiam – respondeu Katie em um tom abafado. – E, como já estavam me usando, poderiam ter se concentrado no Phoenix Group por causa de minha conexão com Anna. E depois descobriram o elemento chinês. – Mas esse é apenas um possível motivo – disse Shaw, embora não acreditasse em suas próprias palavras. – Sim – disse Katie sem energia. – Acho que sim. Ela pousou sua xícara e olhou para a cama. – Hum, estou realmente exausta, Shaw. Pode ficar com a cama. Vou dormir no chão. – Não, eu fico com o chão. – Shaw! – Vá para a cama, Katie. Foi um longo dia e nós dois estamos exaustos. Katie trocou de roupa no banheiro, saiu e se enfiou debaixo das cobertas. Shaw já estava no chão, com um cobertor por cima. Katie apagou a luz. Alguns minutos depois, enquanto a chuva continuava a cair, ela disse em voz baixa e trêmula: – Sinto muito, Shaw. Não obteve nenhuma resposta.
QUANDO COMEÇOU A AMANHECER, Shaw se levantou, encostou-se na cama e olhou para Katie, que estava com os olhos bem abertos, vermelhos e inchados. Era óbvio que ela não havia dormido nada. – Tenho algo a lhe dizer – começou ela, puxando o lençol em volta de seu corpo. – Katie, você não tem que... Ela pôs a mão no ombro de Shaw. – Por favor, deixe que ponha isto para fora antes que me cause uma úlcera. Ele esperou, observando-a. – Eu estava fazendo isso pela matéria. Mesmo quando voei para ver você no hospital, parte de mim pensava em pôr minha carreira de volta nos eixos. Então fechei esse contrato e fui para Londres. Só conseguia sentir que estava de volta. – Ela baixou os olhos, enrolando as cobertas em suas mãos, com a boca trêmula. – Acho que nem sou mais. Já fui, mas agora não sei quando exatamente deixei de ser. Faz algum tempo. Sei que... sinto muito. – Katie, você é repórter. Está no seu sangue. – Mas isso não faz com que esteja certo. E sou uma idiota, nunca se esqueça disso. – O.k., você é uma idiota. Mas, se vamos trabalhar juntos, precisamos confiar um no outro. – Eu confio em você. Acho que o problema é que você não confia em mim. E não posso culpá-lo. – Não estou muito acostumado a confiar nas pessoas. Mas vou ter que trabalhar isso. Além do mais, preciso de sua ajuda. Às vezes você vê coisas que eu não vejo. Não conheci muitas pessoas capazes de fazer isso. – Ele conseguiu sorrir fracamente para ela. Katie retribuiu o sorriso, aquela quebra de gelo no relacionamento deles imediatamente reanimando-a. – Vou tomar um banho. Enquanto isso, vá para a cama. Você deve estar todo doído.
Shaw se levantou lentamente do chão e deitou na cama. Ouviu o chuveiro ser ligado. A cama estava quente do corpo de Katie e então seus olhos se fecharam. A próxima coisa que sentiu foi o cheiro de café, bacon e ovos. Ele se sentou e olhou ao redor. Katie estava vestida e sentada diante de uma mesa de serviço de quarto. Ela lhe serviu uma xícara de café. – Que horas são? – perguntou Shaw. – Oito e meia. Ele tomou um gole de café. – Está com fome? Shaw assentiu com a cabeça e se sentou de frente para ela. – Você deveria ter me acordado quando saiu do banho – disse, irritado. – Foi muito mais conveniente assim – retrucou ela. – Com você dormindo profundamente, pude me vestir aqui e não naquele banheiro minúsculo. Sabe como é, esse arranjo de casamento vai ser embaraçoso – disse ela olhando-o por cima da borda de sua xícara. Ele esticou seu braço machucado cuidadosamente. – É por isso que vamos ao médico? – Sim, mas não só pelo motivo em que provavelmente está pensando. – Que surpresa! Eles pegaram um táxi para a cabana de Leona, uma estrutura de pedra simples em uma estrada de cascalho. Ficava a cerca de 3 quilômetros do castelo Malahide, onde ela era guia de turismo. Quando eles saíram e olharam ao redor, Katie disse: – Lugar estranho para um consultório médico. – Ela está aposentada. – Ah, isso faz muito sentido. Leona os convidou a entrar, cumprimentou Katie e eles se sentaram em sua ampla cozinha com vista para o jardim dos fundos. Ela não disse nada sobre a aparência alterada de Shaw.
– Posso falar abertamente na frente dela? – perguntou, olhando para Katie. – Eu não a teria trazido se não pudesse. – Frank já telefonou. – É claro. – Ele disse que você prometeu que não me procuraria. – Não. Prometi que não a procuraria para aquilo. Shaw bateu em seu lado direito. – Os homens dele estão por toda parte – acrescentou Leona. – Sei disso. – Como? – Senti o cheiro deles. – Então sabe que não posso fazer o que quer que eu faça. – Como sabe o que quero que você faça se eu ainda não lhe disse? Leona pareceu curiosa, enquanto Katie ficava olhando de um para outro. – Então me diga. Shaw enrolou a manga de sua camisa, expondo os grampos de metal em seu ferimento. – Meu Deus, como isso aconteceu? – Acho que Frank esqueceu de lhe contar. Ela olhou mais atentamente para o braço dele. – Parece estar cicatrizando bem. O cirurgião fez um bom trabalho. – Agradeço sua opinião experiente. Mas não é por isso que estou aqui. – Então por quê? Ele tirou um pequeno cilindro de metal do bolso. – Quero que coloque isto aqui – disse ele, apontando para o corte em seu braço. – Não está falando sério. – Shaw! – exclamou Katie.
– Estou falando muito sério. – O que é isso? – perguntou Leona. – Você não precisa saber – disse Shaw. – É aço inoxidável, se isso ajuda. – Não ajuda. Há o risco de infecção – começou Leona. – Ponha-o em uma bandagem esterilizada. Mas é aí que preciso que fique. Pode fazer isso? – É claro que posso. A questão é: por que deveria fazer? – Porque eu estou lhe pedindo. Educadamente. – Qual é a profundidade? – perguntou Leona, nervosa. – Não muito fundo. Pode ser que eu precise tirá-lo às pressas. – Isso é ridículo – disparou Katie. – Não muito fundo – repetiu Shaw. – E você me deve essa. – Não vejo as coisas dessa forma. – Mas eu vejo. – Ele tirou sua camisa de dentro da calça e levantou a frente, expondo a cicatriz em seu lado direito. – Eu vejo. Katie olhou para a marca e depois para Leona, franzindo as sobrancelhas. – Você fez isso com ele? Leona umedeceu os lábios. – Não tenho uma sala de cirurgia aqui, Shaw. Não tenho instrumentos. – Dublin é uma cidade grande. Estou certo de que encontrará tudo de que precisa. – Vai demorar algum tempo. – Esta tarde – retrucou ele, com um quê de ameaça em sua voz. – Não posso. Tenho que ir ao Malahide. – Esta tarde. – Está bem. Eu ligo para você. Shaw se levantou para ir embora e Katie o imitou.
– Não tenho como lhe dar uma anestesia geral – disse Leona. – Somente uma local. Vai doer. Shaw pôs novamente a camisa para dentro da calça. – Sempre dói, Leona. Do lado de fora, Katie perguntou: – Que diabo era aquilo, a mulher do Dr. Frankenstein? E o que está acontecendo? – É melhor você não saber, Katie. Confie em mim. – Confiar em você? E quanto a você confiar em mim, como conversamos? – Eu disse que precisava trabalhar isso. Não que já conseguia.
A CHUVA HAVIA PASSADO E o dia estava lindo em Dublin. Pássaros brincalhões voavam de árvore em árvore; flores coloridas em belos canteiros ondulavam à brisa suave; pessoas caminhavam, conversavam e tomavam café em lanchonetes; carros passavam pelas ruas largas. Dentro da saleta desinfetada, Shaw trincava os dentes e apertava o braço da cadeira em que estava sentado. Leona, com luvas, máscara e instrumentos cirúrgicos, havia removido alguns dos grampos de metal que prendiam a pele de Shaw, enquanto Katie segurava o braço dele com suas mãos enluvadas. – Essa foi a parte fácil – disse Leona em tom afável, enquanto deixava cair em uma panela o último dos três grampos que removera. Tinham restado quatro no braço dele. – Fico feliz em saber – murmurou Shaw. – Ainda quer continuar? Isso vai retardar o processo de cura. – Apenas vá em frente, Leona. Ela usou um instrumento fino que parecia um pé de cabra em miniatura para abrir o ferimento e o sangue começou a jorrar. Gotas de suor brotavam no rosto de Shaw. Katie aumentou sua pressão sobre o braço dele. Leona lhe dera anestesia local ao redor do ferimento, mas o prevenira mais uma vez de que sentiria dor. E não estava mentindo. Ela havia envolvido o pequeno cilindro de metal com uma bandagem cirúrgica esterilizada. – Você não pode ficar com isso aí por muito tempo – alertou. – Eu o esterilizei, mas acabará provocando uma infecção. É inevitável. – Engraçado, você não disse isso da última vez. – Da última vez foi diferente. – Não para mim. – Shaw tocou a lateral de seu corpo. – Você nunca me disse que ter esta coisa em mim seria um problema a longo prazo. – São coisas diferentes – disparou ela. – Esse dispositivo é como um marca-passo, feito para ser usado dentro do corpo por um longo período. Mas não esta coisa. Portanto, como médica, estou lhe dando esse aviso. Vai infeccionar. – Estou devidamente avisado – grunhiu Shaw. – Agora ponha isso aí dentro. Leona introduziu cuidadosamente o dispositivo na ferida, seus dedos ágeis encontrando uma pequena cavidade onde se encaixaria. A dor fez todo o corpo de Shaw tremer. – Segure a minha mão, Shaw. Aperte-a – propôs Katie. – Não – grunhiu ele. – Por quê? – Porque vou quebrar todos os seus malditos ossos. Um segundo depois, o encosto para o braço se soltou na mão dele, com os parafusos quebrados. Leona tirou os dedos do ferimento e olhou com satisfação para seu trabalho. – Posso pôr grampos novos ou cauterizar isso. – Não. – Por que não? – Porque não vou conseguir tirar a maldita coisa quando precisar dela, Leona. Esse é o objetivo – disparou Shaw. – A linha de sutura tradicional ficará ótima. Leona deu de ombros, limpou o ferimento o melhor que pôde, suturou-o, cobriu-o com gaze e se recostou de novo em sua cadeira. – Pronto. Katie soltou Shaw e deu um suspiro de alívio. Ele se aprumou devagar, movendo cuidadosamente o braço. – Obrigado – disse, em tom áspero. – De nada, Shaw – respondeu Leona com sarcasmo. – Como você disse tão claramente, eu lhe devia essa. – Bem, agora estamos quites. – No mínimo quites – corrigiu ela. – Na verdade, a balança pode ter pendido para o meu lado.
– Acho que não. Dizer que estamos quites foi uma gentileza da minha parte. – Ele vestiu sua camisa. Enquanto a abotoava, Leona olhou para a cicatriz no lado direito de seu corpo. – A propósito, como isso está funcionando? – Pergunte ao Frank. Tenho certeza de que ele vai adorar lhe dizer. – Shaw estendeu a mão e pôs no bolso o diminuto instrumento que ela havia usado para pôr o cilindro de metal em seu braço. – Para me lembrar dos velhos tempos – disse ele, enquanto Leona parecia prestes a protestar. Quando eles estavam saindo, Leona o fez parar à porta. – Essa coisa no seu braço é o que penso que é? – Nunca se sabe, Leona. Nunca se sabe.
– SHAW, VAI ME DIZER o que está acontecendo? O que é isso no seu braço? Como conheceu Leona? Onde conseguiu aquela cicatriz do lado direito? Katie disparou essas perguntas enquanto eles jantavam no Shelbourne Hotel, do outro lado da rua do Stephen’s Green, no centro de Dublin. Era noite, suficientemente tarde para eles ocuparem uma mesa sossegada nos fundos e poderem discutir algumas coisas. Embora Shaw não parecesse disposto a discutir, porque ela estava fazendo essas mesmas perguntas havia horas, sem obter nenhuma resposta. Shaw terminou estoicamente de mastigar sua comida. Agora detestava Dublin. Fora ali que tinha pedido Anna em casamento, num pequeno lugar ao norte de Liffey. Ajoelhado com o maldito anel. Anna dissera sim em nove idiomas. E agora estava morta. Não haveria mais casamento, nem quatro ou cinco filhos, não envelheceriam juntos. Nada. Para onde quer que Shaw olhasse, havia um lugar, um recanto, um cheiro, um som, até mesmo algo estranho no céu, a chuva caindo ou a buzina de um carro irlandês que o fazia se lembrar dela. Ele mal podia respirar ali. Mal podia funcionar. Detestava Dublin. E isso era tudo. O corpo de Anna estava voltando com seus pais para a Alemanha, onde seria enterrado. Eles o culpavam pela morte dela, a mulher por quem Shaw teria sacrificado sua vida de bom grado. Anna em uma placa de metal frio em Londres, com um buraco de bala na cabeça. Anna sendo levada para o chão frio e solitário em Wisbach, por toda a eternidade, em vez de estar em seus braços quentes. Os dois juntos, em segurança. Katie interrompeu esses pensamentos: – Precisamos descobrir quem realmente estava por trás da Ameaça Vermelha. – Todo mundo tem tentado descobrir e até agora parece que ninguém conseguiu nada. – Não tenho certeza se todo mundo tem mesmo tentado descobrir a fonte. As pessoas simplesmente aceitaram que era verdade, fizeram um julgamento apressado. Ou, se tentaram, não se esforçaram muito. E então continuaram a acontecer coisas que deixaram as pessoas sobressaltadas. Depois de algum tempo, a história deixou de ser quem estava por trás disso e passou a ser “que diabo vamos fazer com os malditos russos”. Acho que todo mundo foi enganado. Shaw a olhou com um novo respeito. – Era mais ou menos assim que Anna pensava. – Vou considerar isso um grande elogio. – Você tem alguma ideia? – perguntou ele. Katie puxou sua cadeira mais para perto de Shaw e baixou a voz. – Na verdade, tenho pensado nisso. – Ela remexeu em sua bolsa e tirou um caderno de anotações amassado. – Quando eu estava no escritório de Anna naquele dia, ela teve que sair para ver alguém e dei uma olhada em suas coisas. – Quer dizer que bisbilhotou – disse Shaw um pouco zangado, defendendo instintivamente a privacidade de Anna. – Quer ouvir o que descobri ou não? – Desculpe-me, continue. – Eu vi na escrivaninha algumas coisas sobre a Ameaça Vermelha e anotações que ela havia feito. Uma era uma lista de sites ou endereços de e-mail. Talvez tenha entrado em contato com eles. De qualquer maneira, algo chamou a minha atenção e eu o anotei. – Por que chamou sua atenção? – O nome era Terra de Barney Rubble. Você sabe, Os Flintstones? Um dos meus desenhos favoritos na infância. Seja como for, era um blog. Não o chequei naquela época, mas, enquanto você tomava banho no hotel depois que a Dra. Frankenstein o operou, acessei o site do meu laptop. – O que descobriu? – Esse blogueiro, parece que seu nome é Barney, também tinha algumas dúvidas sobre a Ameaça Vermelha. Pelo que postava, não achava que era legítima. – Em que isso nos ajuda? – Para ser sincera, não acho que o blog seja legítimo.
– O que quer dizer? – Acho que Barney é uma fraude. Tenho muitos amigos blogueiros. Eles são enlouquecedores, escrevem o tempo todo. Não são nada organizados. Fazem livres associações, agem impulsivamente. E em geral há um local para as pessoas discutirem coisas. Quero dizer, esse é um dos principais motivos de se ter um blog. Certo? – Certo. – Bem, esse blog não tinha isso. Verifiquei as datas das postagens. Eram feitas no mesmo horário, em dias alternados. Isso não parece a Terra de Barney Rubble. Parece um padrão de blog predefinido, dia sim, dia não. – Por que alguém criaria um sistema desses? – perguntou-se Shaw em voz alta. – Para testar as águas. – Testar as águas? – Sim, as pessoas nas áreas de entretenimento e publicidade fazem isso o tempo todo. Na verdade, escrevi uma matéria sobre esse assunto há alguns anos. Você cria um produto e quer sondar a reação das pessoas a ele. Pode ter grupos de foco, oportunidades de ouvir opiniões pelo telefone, discussões em sites. Mas algumas empresas dão um passo além. Usam uma fachada para realmente saber como as pessoas se sentem sem que se julguem pressionadas. Pode ser um site falso, um telefone 0800 de banco ou um questionário criado sob o nome de uma empresa falsa. Shaw agora parecia muito interessado. – Então está dizendo que esse Barney Rubble poderia ter sido uma fachada para testar como as pessoas estavam reagindo à campanha da Ameaça Vermelha? – E como o blog de Barney era muito crítico e desconfiado... – Poderia ter sido posto ali para ver se alguém se sentia do mesmo modo. Mas você disse que não havia nenhum fórum para deixar sua opinião. – Mas se você mandasse um e-mail para ele, o que Anna fez... Shaw concluiu por ela.
– Então eles teriam seu endereço. E o e-mail de Anna era AFischer@ThePhoenixGroup.com. – Ele olhou fixamente para Katie. – Pode ter sido assim que eles descobriram sobre o Phoenix Group. Não por sua causa. – Provavelmente nunca teremos certeza disso. Um minuto de silêncio se passou enquanto eles terminavam suas refeições. – Katie, eu... – Nem pense nisso, Shaw. Essa coisa é complicada e nós dois cometemos erros. Sem dúvida cometeremos mais alguns. – Tomara que nenhum deles nos faça ser mortos. – Podemos rastrear esse site de alguma maneira? Não sou muito boa com coisas tecnológicas. Shaw assentiu com a cabeça e ligou para Frank. Ele colocou seu telefone de lado e terminou o vinho. – Vamos ver o que ele sugere. – Então ficaremos em Dublin? – perguntou Katie. – Partiremos amanhã. – Para onde? – Para a Alemanha. Uma cidadezinha chamada Wisbach.
NENHUM DIA É BOM para se enterrar alguém. Mesmo quando o sol brilha e está quente, não há nada de positivo em depositar um corpo gelado na terra fria, particularmente alguém com três buracos de bala que teve sua vida encurtada em pelo menos quatro décadas. E em Wisbach o dia não estava ensolarado nem quente. Chovia torrencialmente. Shaw e Katie estavam sentados dentro do carro, no cemitério perto de uma pequena igreja. Eles tinham voado para Frankfurt naquela manhã e dirigido até lá. No aeroporto de Dublin, os alarmes haviam soado quando Shaw atravessara o detector de metais. O bastão que o guarda passou por ele se dirigiu exatamente para seu braço esquerdo. – Enrole a manga, senhor – ordenara o guarda, com um tom áspero na voz. Ao ver a fileira de grampos de metal sob a atadura, ele se encolhera. – Nossa, isso dói? – Só quando enrolo a manga – respondera Shaw. No local do sepultamento a chuva tinha transformado a terra fresca perto da cova de 1,80m de profundidade num monte de lama. O caixão de Anna e as pessoas que lhe prestavam homenagem estavam sob uma grande tenda armada perto do túmulo para mantê-los razoavelmente secos. Shaw decidira não se juntar ao cortejo. Tinha visto Wolfgang Fischer andando pesadamente, com Natascha a seu lado. Nenhum dos dois parecia muito alto hoje. Estavam curvados, destruídos. Shaw ficou sentado no carro e os observou descendo o caixão para a sepultura. Wolfgang quase desabou de dor. Foram precisos vários homens para levá-lo de volta ao carro. Perto dele, Katie sentiu as lágrimas escorrendo pelo seu rosto enquanto observava. Graças a Deus não tenho que escrever este obituário, pensou. Ela olhou para Shaw, que permanecia impassível, com os olhos secos. – É muito triste – disse Katie. Shaw não respondeu. Apenas continuou observando.
Meia hora depois a última pessoa tinha ido embora e os coveiros chegaram, com tempestade e tudo, para plantar Anna para sempre na terra de Wisbach. Shaw saiu do carro. – Você se lembra do que fazer? – perguntou. Katie assentiu com a cabeça. – Tome cuidado – alertou ele. – Você também. Shaw fechou a porta, olhou ao redor e se dirigiu para o buraco na terra, tentando não pensar no buraco muito maior que havia em seu coração. Tirou alguns euros do bolso e, em alemão, pediu que os coveiros o deixassem ali sozinho por um tempo. Claramente felizes por não precisarem trabalhar na chuva, eles pegaram o dinheiro e foram embora. Shaw ficou em pé perto da sepultura e olhou para o caixão. Não queria imaginar Anna dentro dele. Ela não pertencia àquele lugar. Falou com ela em tom tranquilo, dizendo coisas que deveria ter dito enquanto ela estava viva. Tinha muitos arrependimentos em sua vida. O maior deles era não ter estado com Anna quando ela mais precisara dele. – Sinto muito, Anna. Sinto muito. Você merecia alguém muito melhor do que eu. Shaw pegou uma pá e passou a meia hora seguinte tapando a sepultura dela. Sentia que essa tarefa cabia a ele e a mais ninguém. Estava molhado até os ossos quando terminou, mas não parecia notar. Ele olhou a lápide. Tinha o nome inteiro de Anna: Anastasia Brigitte Sabena Fischer, suas datas de nascimento e de morte. E, embaixo, escrita em alemão, a frase: “Que nossa linda filha descanse em paz.” – Descanse em paz – disse Shaw. – Descanse em paz por nós dois, Anna. Porque não vejo nenhuma possibilidade de eu voltar a ter paz. Ele se ajoelhou na lama, com a cabeça abaixada.
Quando fez isso, dois homens saíram do meio das árvores empunhando armas. A buzina do carro quebrou o silêncio do cemitério e Katie deslizou para o chão do veículo. Surpresos, os dois homens correram diretamente para Shaw. Uma fração de segundo depois, o vidro de trás do carro em que Katie estava foi estilhaçado por um tiro.
COM UM MOVIMENTO RÁPIDO, Shaw se atirou para a frente, como um jogador de rúgbi, e derrubou os dois homens no chão. No instante seguinte, enfiou o cano de sua pistola na boca de um deles quase até a garganta, enquanto o outro continuava no chão ali perto. Um momento depois, os homens de preto chegaram. Katie se sentou novamente em seu banco, batendo os cacos de vidro de seu corpo. Ela olhou ansiosa para Shaw. Quando ele se levantou segurando um dos homens armados, Katie deu um suspiro de alívio e saiu do carro. Seis metros atrás do carro, Frank estava em pé ao lado do corpo do homem que havia tentando matar Katie. Ela se juntou a ele. – Desculpe-me por termos demorado tanto – disse Frank. – O desgraçado atirou antes que pudéssemos atingi-lo. Mais tarde eles se sentaram em um celeiro vazio fora de Wisbach. Os dois malsucedidos assassinos estavam algemados de costas um para o outro no meio da palha no chão. Frank, Katie e Shaw estavam de pé juntos, em uma reunião informal. – Obrigado por concordar em nos ajudar nisto – disse Shaw a Frank. – Além de manter o mundo seguro, tenho muito tempo livre. Eles já haviam checado as impressões digitais da dupla nos bancos de dados de sempre, sem chegar a lugar algum. Até agora seu interrogatório tinha resultado em uma série de palavras obscenas proferidas pelo homem em cuja boca Shaw tinha enviado o cano da pistola. Por outro lado, seu parceiro, um homem musculoso com uma expressão estoica, não dissera nenhuma palavra. Parecia que nem falava inglês. Eles tinham tentado vários outros idiomas, mas o homem se mantivera em silêncio. A dupla não tinha carteiras de identidade. Duas pistolas e um facão foram as únicas coisas que encontraram com eles. O homem morto também não parecia ter nada que pudesse identificá-lo. – Nem mesmo um telefone celular – disse Frank.
– Significa que eles iam se encontrar com alguém depois de nos matarem – disse Katie. – Provavelmente ali por perto. Frank se virou para Shaw. – E agora? – Continue a espremer esses dois até eles falarem. Manteremos contato. Frank pôs uma das mãos no ombro de Shaw e alertou: – Tome cuidado. Meus instintos me dizem que deixamos passar algo. – Como assim? – perguntou Katie. – Parece que eles estão sempre um passo à nossa frente. Enquanto dirigia pela estrada, Shaw disse sombriamente: – Eu estava quase certo de que eles observariam o funeral de Anna, para o caso de nós aparecermos. Foi por isso que pedi ajuda a Frank. Mas isso não nos levou a nada. – Em algum momento eles vão falar. – Eles foram pagos para nos matar. Duvido que saibam muito mais do que isso. Essas pessoas sabem mesmo como não deixar rastros. – Elas vão cometer um erro. Sempre cometem – disse Katie, confiante. – Você acha? – Eu sei. Ele parou o carro. – Por que de repente tem tanta certeza disso? Katie mal conseguiu conter sua excitação: – Acabei de pensar em um modo brilhante de fazer com que eles saiam de suas tocas.
A ESSA ALTURA, TODO O mundo tinha se convencido de que a China, por motivos ainda desconhecidos, estava por trás da campanha da Ameaça Vermelha e de que os russos atacaram o Phoenix Group em retaliação. E, por mais que Pequim e Moscou negassem tudo isso, essa crença permanecia essencialmente inabalada. Teorias complexas surgiam em toda parte, tanto na internet quanto na mídia impressa, sobre os motivos que teriam levado a China a fazer uma coisa dessas. Variavam da intenção de pôr o mundo contra o único país asiático que era, econômica e militarmente, um verdadeiro rival em sua ascensão ao primeiro lugar na ordem global a temores de que a volta da Rússia à autocracia representasse uma ameaça à estabilidade da Ásia. Como o fato de tornar a Rússia ainda mais irritada e perigosa do que supostamente era diminuiria essa ameaça permanecia sendo um enigma. Porém, quando as pessoas queriam muito acreditar em algo, fatos e lógica nunca eram obstáculos difíceis de transpor. Fosse qual fosse o motivo, as duas nações agora estavam realmente se mobilizando. A fronteira entre a China e a Rússia era enorme a leste da Mongólia e ainda havia uma faixa muito menor entre este país e o Cazaquistão. As unidades do Exército russo, com apoio de veículos blindados de combate e aeronaves, se enfileiravam nesses dois locais. Também havia boatos de que Gorshkov estava pensando em invadir a China passando diretamente pela Mongólia, o que seria uma rota muito mais curta para Pequim, apesar de alguns problemas políticos e topográficos. Os chineses, sabendo muito bem disso, tinham erguido grossas muralhas de homens e armamentos em cada um desses pontos. Contudo, a guerra não parecia iminente. Na verdade, estava claro que os dois países sabiam muito bem que ela resultaria em perdas para ambos, pois estavam em pé de igualdade. Mas também se acreditava, embora nenhum pronunciamento público tivesse sido feito, que tanto a China quanto a Rússia tinham assinado contratos de rearmamento de longo prazo com fornecedores militares não revelados para que, se realmente entrassem em guerra dentro de alguns anos, pudessem conquistar uma vitória impressionante.
Reagindo a esses acontecimentos, muitos países do Ocidente, entre eles os Estados Unidos, também estavam se armando. Sem medo de tornar públicas suas intenções, o Pentágono anunciou que a Ares Corporation, assumindo a posição de liderança e trazendo vários outros fornecedores de armamentos a reboque, fora premiada com uma série de contratos sem licitação para reconstruir suas divisões de tanques e artilharia, atualizar sua infraestrutura eletrônica de inteligência, reconfigurar seus sistemas de defesa à base de mísseis, reequipar seus porta-aviões, submarinos nucleares lançadores de mísseis balísticos e contratorpedeiros, deixar prontos para operar vários aviões e outros veículos fortemente blindados de transporte pessoal e atualizar os quase novos e aparentemente já obsoletos caças Raptor. O Pentágono afirmou que somente a Ares, sediada nos Estados Unidos e fabricante original de grande parte desses armamentos, com muitas áreas de expertise e capacidade de administração global, poderia encarar essa enorme tarefa de acordo com os padrões exigidos pelas Forças Armadas americanas. – Isso garantirá que as Forças Armadas americanas mantenham, durante décadas, sua posição de maior força de combate mundial – disse uma fonte do Pentágono. O Congresso tinha aprovado rapidamente um pacote para pagar por tudo isso, que o presidente assinara igualmente rápido. Em vários jornais, uma fonte que pediu para não ser identificada porque não estava autorizada a falar sobre o assunto disse que os contratos da Ares Corporation eram de oito anos e perfaziam quase 1 trilhão de dólares de impostos de contribuintes. Isso elevaria o orçamento militar dos Estados Unidos para mais de 800 bilhões de dólares por ano, superando até mesmo os pagamentos da previdência social e o tornando, de longe, o maior gasto do governo. Mas, por sorte, tecnicamente isso não aumentaria o enorme déficit orçamentário e a dívida nacional, porque alguns burocratas espertos apoiados por membros igualmente espertos do Congresso conseguiram aprovar a verba adicional destinada à defesa em um pacote suplementar de gastos tecnicamente não incluído no orçamento oficial. E, em Washington, “tecnicamente” era tudo que importava. – Então a próxima geração poderá se preocupar com a realidade – observou uma pessoa com informações políticas privilegiadas que pediu para não ser identificada, para que continuasse a ter acesso a informações privilegiadas.
Depois de assinar o pacote de gastos com defesa em uma grande cerimônia na Casa Branca, o controvertido presidente, com suas chances de reeleição ainda menores por ter sido descrito como brando com a Rússia, marcou uma coletiva de imprensa em que disse, nos termos mais claros: – Agora qualquer um que tente ir contra os interesses dos Estados Unidos da América nos encontrará muito bem preparados para fazer o que for preciso para nos defendermos. E que Deus continue a abençoar os Estados Unidos da América. Imediatamente ele subiu 11 pontos percentuais nas pesquisas de intenção de voto. Não havia nada melhor para conquistar os eleitores do que a preparação para o combate. A Ares lançou uma nova campanha publicitária cuidadosamente elaborada e aperfeiçoada durante meses. Não ressaltou o novo contrato ou os dólares envolvidos. Aquilo foi considerado grosseiro pela grande agência de Nova York que desenvolveu a campanha. O narrador disse apenas: “Estados Unidos da América e Ares Corporation. Juntos, somos invencíveis.” Aquela era uma afirmação e tanto, e sua mensagem básica era cristalina: a Ares tinha se colocado em pé de igualdade com a única superpotência mundial que ainda restava. Essa fala simples foi seguida de cenas clássicas, em preto e branco, de aeronaves, tanques, navios e um pelotão de soldados marchando. Tudo com uma canção muito popular ao fundo. Disseram que pessoas em grupos de foco previamente organizados para avaliar o impacto emocional do comercial choraram em suas cadeiras. Em certos círculos publicitários comentava-se que aqueles eram os 50 milhões de dólares mais bem gastos da vida de Nicolas Creel. Tudo estava correndo exatamente conforme o planejado por Creel e Pender. Exceto por um pequeno e inesperado problema que acabaria tornando as coisas ainda melhores. À meia-noite, no horário da Mongólia, um general de campo russo recebeu uma série de ordens confusas que interpretou como uma autorização para um ataque de sondagem contra a China. Ele era um comandante entusiasmado, que nunca estivera em combate e tinha um ressentimento pessoal por tudo o que tivesse origem chinesa. Por isso lançou imediatamente o ataque, sem se dar o trabalho de pedir esclarecimentos ao alto comando. Sua artilharia rugiu, atingindo alvos previamente designados, enquanto aviões de caça MIG invadiam com autoridade o espaço aéreo chinês. Os aviões logo depararam com aeronaves de combate chinesas, que, ironicamente, eram da mesma família MIG sob licença da Rússia e haviam sido legalmente submetidas ao processo de engenharia reversa pelos chineses. Então, na verdade, os pilotos dos dois lados estavam voando nos mesmos aviões. Essa igualdade de condições fez com que a batalha aérea que se seguiu culminasse em um empate, com cada lado perdendo dois aviões. Os chineses, um pouco irritados, para dizer o mínimo, lançaram imediatamente um contra-ataque. Durante as seis horas seguintes, os dois exércitos dispararam tudo o que tinham um contra o outro. Quando aquilo terminou, além das aeronaves perdidas, a “sondagem” resultou na pulverização de uma cidade rural chinesa e na morte de 2 mil cidadãos. Dez tanques, 20 veículos blindados de transporte pessoal, ou VBTPs, 40 peças de artilharia e 900 soldados chineses também foram perdidos quando 1 milhão de rajadas de vários tipos de armas russas choveu sobre eles, embora uma quantidade muito maior tivesse errado o alvo. Do lado russo, morreram 600 civis infelizmente apanhados no meio dos dois exércitos, a maioria dos quais ainda em suas camas. Junto com essa carnificina colateral, oito tanques foram explodidos, seis helicópteros abatidos, 12 VBTPs esmagados, 412 soldados mortos e toda uma bateria de artilharia vaporizada por um ataque direto de mísseis que incendiou um depósito de combustível próximo. Uma observação interessante é que essa conflagração também vitimou o comandante de campo russo que havia começado a coisa toda com base em ordens que, como se viu depois, diziam que ele só deveria lançar o ataque se fosse atacado primeiro. Ao que parecia, aquilo realmente era um detalhe. Os exércitos, sem fôlego e traumatizados, recuaram para suas respectivas posições para se reagrupar e pensar no que acabara de acontecer. Se esse era o início da Terceira Guerra Mundial, era um começo realmente nefasto.
NICOLAS CREEL, JUNTO COM a madre superiora, assentou cerimoniosamente a pedra fundamental do novo orfanato, sob os aplausos da imprensa italiana e do público. Em seguida, acariciou as cabeças dos pequenos e gratos órfãos, que receberam agrados especiais, leu uma breve declaração para a imprensa e apertou a mão do prefeito e de outros dignitários. Depois Creel se retirou para o Shiloh, para apreciar como as coisas estavam indo bem. Os russos tinham atacado a China, que contra-atacara. Quando Creel procurou na internet matérias sobre o último incidente, viu com alegria que já havia milhares e que mais eram publicadas a cada minuto. Isso só cimentaria seus contratos com os dois países e encorajaria outras nações, hesitantes em relação ao rearmamento, a passar para o lado dos fortes. Ele ficaria muito feliz em servi-las. Embora fosse verdade que os americanos, ingleses e franceses estavam liderando esforços diplomáticos para negociar um cessar-fogo e uma reconciliação entre os dois países asiáticos, Creel sabia que era um pouco tarde para isso. Uma conferência de cúpula fora marcada para aquela semana, em Londres. Contudo, as duas nações em conflito nem sequer tinham concordado em comparecer. E mesmo se comparecessem, o que era improvável depois desse último incidente, isso não seria relevante. O telefonema que Creel recebeu tirou o sorriso de seu rosto. Era Caesar informando que o ataque no cemitério em Wisbach não tinha saído conforme o planejado. Na verdade, tinha sido tão diferente do planejado quanto poderia ser. – Um homem morto, outros dois presos – disse Creel, repetindo as palavras de Caesar. – Presumo que os homens que você contratou não saibam nada de útil. – Nada – disse Caesar com firmeza. – Sei que isso é um contratempo, mas vamos pegá-los, Sr. Creel, eu garanto. Estamos perto. Realmente perto. – Era o que eu pensava até pouco tempo atrás, Caesar. E olhe para nós agora. Creel desligou, respirou fundo, olhou pela vigia na direção de onde o novo orfanato seria construído e telefonou para Pender.
– Comece o vazamento, Dick – ordenou. – Quero ver o fluxo de mídia cheio de munição rancorosa para apoiar a guerra. – Sem que realmente haja uma guerra – disse Pender cautelosamente. – Uma guerra fria – observou Creel com impaciência. – Ganho mais dinheiro quando tiros não são disparados. – Mas tiros foram disparados. – Uma sondagem estúpida e sem sentido que, segundo minhas fontes, apavorou os dois lados. Agora podemos nos preparar para uma bela e longa fase de rearmamento. – Mas e se eles realmente entrarem em guerra? – Dick, lembre-se de apenas fazer o seu trabalho e deixar que eu me preocupe com as consequências. Se eles entrarem em guerra, não será o fim do mundo. Precisarão de armas para lutar e terão que repor as que usarem. E, se eles se explodirem, quem ligará? – Mas e quanto às armas nucleares? – Destruição mútua assegurada. Nem Moscou nem Pequim desejam sumir do mapa. Por isso é que eu nunca pude fazer isso com os muçulmanos. Eles não parecem se importar em ser aniquilados, desde que todos os outros também sejam. Está vendo? Até na guerra você precisa de uma atitude civilizada para fazer a coisa funcionar. Agora comece o vazamento! Creel desligou e Pender imediatamente instruiu sua equipe a prosseguir. A missão tinha sido um desafio, mas Creel sempre era um desafio. Pender abriu seu manual de estratégias e partiu para a ação. Ensinaria a Creel o que era um vazamento. Nenhum veículo de comunicação no mundo deixaria de obter sua atenção. O planeta vibraria com mais mentiras do que nunca na história. Aquela seria a melhor hora. Agora eles estavam perto de um final bem-sucedido. Pender pensava em quão grande seria o bônus para sua empresa – na verdade, para ele. Creel não lidava com números pequenos. Cinquenta milhões? Cem milhões? Havia duas coisas que Pender sempre desejara mais do que tudo: um iate e um avião particulares. Não da mesma classe que os de Creel, é claro. Isso sempre estaria além de suas posses. Mas um jato Gulfstream V e um belo iate italiano de 120 pés e convés duplo seriam perfeitos. Hoje em dia esses dois itens eram tudo de que alguém realmente precisava para demonstrar seu sucesso. E Pender teria prazer em demonstrá-lo. Ele sonhou acordado com essa possibilidade por mais alguns minutos até seus sonhos se transformarem em pesadelo. Na tela de seu computador surgiu uma mensagem de seu auxiliar. Dizia: “Atualização do Blog de Barney Rubble”. O blog recebera um e-mail que, segundo o auxiliar, Pender precisava ver imediatamente. Ele abriu a mensagem e começou a ler, tratando ao mesmo tempo de outros itens da agenda. Assim que leu a primeira fase, deixou todas as outras coisas de lado. Sei quem você é e o que fez. Quero um encontro cara a cara ou vou desmentir a matéria e escrever a verdade. K.J. P.S.: Bela tentativa com Lesnik. E, da próxima vez que criar um blog falso, use alguém que realmente saiba o que está fazendo. Imediatamente todos as fantasias de Pender sobre o jato e o iate se dissiparam. Seu manual de estratégias não tinha um contraataque para isso. O especialista em gestão da percepção acabara de confrontar seu maior medo. A verdade estava literalmente o encarando.
SHAW ESTAVA SENTADO, OLHANDO a tela do computador por cima do ombro de Katie, que enviara o e-mail havia 10 minutos. Eles tinham esperado que a resposta chegasse antes. – Devo enviar de novo? – perguntou Katie. – Não – respondeu ele, embora também parecesse um pouco nervoso. Felizmente, eles não tiveram que esperar muito mais. A mensagem era curta. O que você quer? Katie e Shaw se entreolharam. – Responda – disse Shaw. Um encontro, digitou Katie. Impossível, foi a resposta. Então vou escrever minha nova matéria. Ninguém acreditará em você. Posso ser muito persuasiva. E tenho alguns fatos que vão corroborar minha versão e arruinar seus planos. Que fatos? Eu lhe direi pessoalmente. Não vou fazer isso. Pode ser uma armação. Shaw e Katie olharam um para o outro. É claro que era uma armação. Um telefonema, então. A resposta não veio imediatamente. Quando chegou, dizia: Sobre o que você quer falar? Dinheiro!!!, digitou Katie. Dinheiro pelo meu silêncio. Podemos tratar disso por e-mail. Quero ouvir você suar. Katie sorriu com essa frase intencionalmente confusa.
Um longo minuto se passou enquanto eles olhavam ansiosamente para a tela. Quando? Katie bateu palmas. Esta noite. À meia-noite, no horário da Costa Leste americana. Ela digitou um número de celular que Shaw lhe dera e que não podia ser rastreado. – Ele vai suspeitar de que tentaremos rastrear a chamada quando estiver ao telefone – disse Katie. – Usará um celular impossível de rastrear, acreditando que, mesmo se rastrearmos o sinal e mirarmos em um alvo entre as torres de celular, ainda vai ser um lugar grande. – E não vai? – perguntou Katie. – O mundo não é nem de perto tão grande quanto as pessoas pensam. Na verdade, é muito pequeno. Se conseguirmos rastrear o sinal dele, isso nos dará um alvo do tamanho de um quarteirão. Quando o conseguirmos, Frank poderá enviar seu pessoal rapidamente. Com suas conexões, ele tem recursos em todos os lugares que pode acionar. – Ainda é uma área muito grande para procurar, Shaw. – Sim, é. Mas isso é melhor do que nada. E talvez tenhamos sorte. www Pender se recostou em sua cadeira depois de encerrar a troca de mensagens com Katie James. É claro que era ela, a maldita repórter. As iniciais no final do e-mail, K. J., e a ameaça de desmentir a matéria. Ele deveria ter telefonado imediatamente para Nicolas Creel, mas não pôde fazer isso. Obviamente seria culpado por ter criado o blog falso, porque a maldita mulher o identificara imediatamente. Não poderia deixar Creel saber disso. Nunca testemunhara o que Creel fazia com as pessoas que falhavam com ele, mas ouvira boatos suficientes. Cuidaria disso sozinho. Era apenas um telefonema e ele tomaria todas as precauções necessárias para não ser rastreado. Não haveria como encontrá-lo.
Se tudo o que ela queria era dinheiro, poderia dá-lo. Katie sem dúvida seria razoável em seu pedido. Se pedisse milhões, ele simplesmente os tiraria de seu bônus. Não precisava do iate e do avião particular. Mas e se ela continuasse pedindo dinheiro? Pender respirou fundo e seus nervos começaram a se retesar. Isso nunca havia lhe acontecido. Ele era contratado para ficar nos bastidores, nunca na linha de frente. Mas daria um jeito. Era especialista nesse jogo. No fim, sempre ganhava. E o melhor de tudo era que Nicolas Creel nunca precisaria saber. Ele pediu a Deus que o homem nunca descobrisse.
PERTO DA MESA A que Katie se sentaria para falar ao telefone, Shaw pusera um grande relógio com um visor de LED que registrava os segundos. Ele segurava uma câmera virada para Katie e o relógio. Também usava um fone de ouvido. – Apenas o mantenha na linha o máximo que puder. Quando rastrearem os locais das torres poderão se concentrar em um ponto mais exato e enviar uma equipe. Exatamente à meia-noite o telefone tocou. Shaw começou a filmar o relógio enquanto Katie atendia. – Bem na hora – disse ela. – Quanto você sabe? – perguntou a voz. – Mais do que você gostaria. – Quanto quer? Shaw fez um sinal para Katie. – Mantenha-o na linha. – Shaw não pronunciou essas palavras, mas Katie pôde ler seus lábios. Pelo fone de ouvido, ele continuava prestando atenção no homem. – Quer saber como eu descobri? – ofereceu ela. – Quero dizer, para o caso de querer evitar que algo assim volte a acontecer. – Sim, como? – perguntou Pender. Katie se demorou explicando sobre Lesnik, o banheiro quebrado, as inconsistências na história dele e finalmente a impossibilidade de as coisas terem acontecido como ele contou. – Você deveria ter levado Lesnik lá – observou. – Em vez de apenas instruí-lo depois. – Por que você escreveu a matéria se sabia que não era verdade? – Acabei de descobrir. Shaw levantou rapidamente a cabeça quando a voz de Frank falou em seu fone de ouvido. Ele apontou para Katie.
– Ele está em um carro em movimento. Diga-lhe para sair da estrada! Agora! Katie gritou imediatamente: – Saia da estrada agora! Pender ficou tão espantado com a observação e a exigência dela que quase jogou seu grande Mercedes para fora da estrada antes de recuperar o controle. – Como sabe que estou num carro? – perguntou, desconfiado. Pensando rápido, Katie disse: – Sua voz estava falhando. Eu não estou em movimento, por isso você deve estar. E, além disso, dá para ouvir o barulho do trânsito ao fundo. Agora saia da estrada para que eu possa ouvi-lo claramente. Não queremos mal-entendidos, não é? – Me dê um minuto. – Pender ainda parecia desconfiado. Ele pegou a primeira saída que viu e disse: – O.k. Quanto? – Vinte milhões de dólares. E considere uma pechincha. – Não é uma pechincha. É uma quantia enorme. – Bem, a coisa em que você está envolvido é enorme. Mas, se não quiser pagar, tudo bem. Desmentirei minha matéria e escreverei a verdade. – Qual é a verdade? – Você poderá lê-la junto com todas as outras pessoas. Mas o mundo saberá que os russos não são os responsáveis pelo Massacre de Londres e que os chineses não estão por trás da campanha da Ameaça Vermelha. E toda essa coisa de guerra irá por água abaixo. É disso que se trata, não é? Guerra? Pender estava realmente suando agora. Vinte milhões de dólares. – Vou demorar um pouco para levantar esse dinheiro. – Não vai, não. Quero o depósito em 24 horas. Tenho uma conta no exterior. Você pode anotar as instruções para a transferência. Sei que a fará de modo a não ser rastreada, mas isso não me importa. Só quero o dinheiro. – Não posso fazer isso tão rápido. Preciso de mais tempo.
– Quanto mais? – Uma semana. – Setenta e duas horas. E considere-se uma pessoa de sorte. Realmente quero começar minhas férias. – Está cansada de ser repórter? – zombou Pender. – Prefiro ser rica. – Cinco dias – retorquiu ele. – As negociações estão encerradas! Três dias ou seu plano irá por água abaixo. – Duvido que uma matéria sua mude uma corrente global tão forte. – Então não pague e veremos o que acontece. Adeus. – Espere, espere! – Estou ouvindo. – Está bem. Três dias. Mas vou lhe dar um aviso, Srta. James. Se fizer algo incrivelmente estúpido como nos enganar... – Sei, sei. Isso não será bom. Não se preocupe. Já recebi meus Pulitzers. Tudo o que quero agora é aproveitar as coisas boas da vida. Ela lhe deu a informação sobre o banco e olhou para Shaw. Ele estava fazendo um movimento de corte contra seu pescoço. – Foi um prazer negociar com você – observou Katie antes de desligar. Ela olhou para Shaw, que desligou a câmera. – E aí? – Subúrbio a oeste de Washington, D.C. Dulles Toll Road – disse ele. – Eles conseguem saber tão rápido assim? – Há duas torres de celular bem ali. Foi fácil rastrear o sinal. Ele estaria muito mais seguro sentado em um hotel cheio de gente, onde haveria sinais de mais para que se pudesse chegar a uma pessoa específica. – O.k., mas e quanto a apenas rastrear o número que ele usava?
– Fizemos isso. Ele tentou bloqueá-lo, por isso não apareceu em seu identificador, mas tínhamos um mecanismo de interceptação de sinais wireless no telefone que você usou. Ele se sobrepôs ao quarteirão, localizou o número e 60 segundos depois tínhamos o dono da linha. – Quem é? – Segundo Frank, um padre de 86 anos em Boston que estou razoavelmente certo de que não está correndo pelo mundo começando guerras e não tem a mínima ideia de que alguém roubou seu número de telefone. – Então como saber que o homem estava dirigindo naquela estrada nos ajuda? Eles conseguiram identificar o carro? Shaw fez um sinal negativo com a cabeça. – A tecnologia ainda não chegou a esse ponto. É o mesmo que tentar apontar com precisão uma pessoa. – Então como rastrearemos o homem, Shaw? – perguntou Katie, exasperada. Ele deu um tapinha na câmera. – Usando isto. – Isso? Você estava filmando a mim e ao relógio. – Exatamente. – E agora? – Agora voaremos para Washington.
ELES TINHAM PEGADO UMA carona num avião particular que Frank conseguira. A aeronave tinha autonomia suficiente para ir de Londres a Washington sem precisar ser reabastecida, então eles se acomodaram para o voo de mais de sete horas. Edward Royce, do MI5, estava com eles. Shaw e Katie afivelaram seus cintos nas poltronas de trás enquanto Frank e Royce reviam alguns detalhes na frente. Katie cobriu-se com um cobertor macio. Sorveu um club soda e olhou para Shaw enquanto eles sobrevoavam tranquilamente o Atlântico. – Isto é muito melhor do que atravessar o mar da Irlanda naquela montanha-russa, não é? – disse ela, puxando conversa. Shaw assentiu com a cabeça, mas continuou encarando a poltrona na sua frente. – Você realmente acha que vamos descobrir quem está por trás disso? – perguntou Katie. Shaw olhou para ela. – Se tivermos sorte, talvez. Mas descobrir e fazer algo a esse respeito são duas coisas completamente diferentes. – Você quer dizer obter uma evidência que seja aceita pela justiça? Shaw desviou os olhos, sem responder. – Você está bem? – insistiu Katie, tocando no ombro dele. Era o braço machucado, por isso ela o tocou bem de leve. – Sim, estou – respondeu Shaw, de modo não convincente. – Quando resolvermos tudo isso e os bandidos forem presos, acho que vou ver meus pais. – Onde eles estão? – Em Vermont, pelo menos era onde estavam da última vez que chequei. Eles gostam de se mudar. Acho que herdei a sede de viajar deles. – O que eles fazem?
– Meu pai é professor de inglês. Dá aulas de escrita criativa. É por isso que meu nome do meio é Wharton. Edith é uma de suas escritoras favoritas. Na verdade, fui batizada em homenagem a Katherine Chopin, mas as pessoas sempre me chamaram apenas de Katie. Meu pai cresceu em Washington, mas foi para a Universidade Stanford. Foi lá que conheceu minha mãe. Ele obteve seu ph.D. e começou a lecionar em Harvard. Minha mãe também lecionou lá até os filhos começarem a chegar. – Quantos? – Quatro. Sou a mais nova. Nasci em Harvard Square. Literalmente. Depois de três filhos, acho que minha mãe pensou que poderia esperar até o último segundo antes de ir para o hospital. Acabei nascendo em uma sala de aula vazia. E você? – E eu o quê? – Acabei de contar alguns detalhes do meu passado emocionante. Agora é a sua vez. – Não, obrigado. – Ah, vamos, Shaw, não vou correr para escrever uma matéria sobre isso. Só me conte algo sobre sua família. – O.k. Não tenho nenhuma lembrança da minha mãe porque ela se livrou de mim quando eu tinha uns 2 anos, ou pelo menos foi o que me disseram. Nunca conheci meu pai. Vivi em um orfanato até ser expulso, aos 6 anos. Passei os 12 anos seguintes com pessoas das quais não tenho nenhum motivo para me lembrar. Não tenho irmãos, pelo menos não que eu saiba. Pronto, agora você sabe tudo sobre mim. Shaw lhe deu as costas. Katie só ficou sentada, pasma. – Lamento muito. – Não há nenhum motivo para lamentar. – Isso realmente deve ter sido difícil para você. – Provavelmente foi a melhor coisa que já me aconteceu. – Como pode dizer uma coisa dessas? – Isso me ensinou desde o início a só contar comigo mesmo – disse ele firmemente.
Katie apertou mais o cobertor em volta do corpo enquanto Shaw voltava sua atenção para a poltrona à sua frente. – O que você vai fazer depois que tudo isto terminar? – perguntou ela. – Depende de como terminar. – Quero dizer, se nós sairmos desta vivos. – Realmente ainda não pensei tão adiante – respondeu ele. Katie olhou para a frente do avião, onde Royce e Frank estavam sentados a uma pequena mesa examinando alguns documentos. – Mas não vai ficar com Frank, não é? Você precisa sair antes que seja tarde demais. – Você não entende? Já é tarde demais para mim, Katie. – Mas Shaw... Ele lhe deu as costas, deitou sua poltrona e fechou os olhos para dormir. Katie continuou olhando para ele durante algum tempo antes de desviar os olhos para a janela. O céu estava escuro, o grande oceano invisível vários quilômetros abaixo. Ela estivera em milhares de voos ao longo dos anos e, por algum motivo, tinha sentido frio em todos eles. Mas nunca sentira o gelo em suas veias que sentia agora.
FRANK, ROYCE, SHAW E Katie se sentaram em uma sala e olharam para as imagens gravadas que eram exibidas na grande tela. Agora Katie entendia o que Shaw pretendia. – Há câmeras de vídeo em postes por toda a estrada – explicou Shaw. – Servem tanto para registrar acidentes e congestionamentos quanto para vigilância, mas são muito úteis para o que queremos fazer. Em outra tela estava o vídeo que Shaw gravara de Katie falando ao telefone, com o relógio de LED claramente visível. – O.k. – disse Shaw. – Inicie o vídeo da estrada exatamente ao mesmo tempo que o vídeo que gravei. Os vídeos começaram e o tempo foi passando. À meia-noite ainda havia tráfego na Dulles Toll Road. Washington era exatamente esse tipo de lugar. Mas os carros não estavam muito próximos uns dos outros. – Lá está a posição inicial do sinal de celular – disse Frank, apontando para a tela. – Parece que os carros estão a uma velocidade de cerca de 100 quilômetros por hora – calculou Shaw. – Isso dá 1,5 quilômetro por minuto. – Ele olhou para o vídeo de Katie e do relógio e disse a Royce: – Assim que Frank me disse que eles tinham captado o sinal na estrada e que o sujeito estava se movendo, pedi que Katie o mandasse “sair da estrada”. Haviam se passado três minutos e três segundos de conversa. Royce fez um sinal afirmativo com a cabeça. – Então cerca de 4,5 quilômetros. – Acho que ouvi pneus cantando quando disse a ele para sair da estrada – comentou Katie. – E uma buzina também. – Vamos chegar a esse instante agora – observou Shaw. E fez uma pausa. – Cinco, quatro, três, dois. Ele parou e todos olharam para o vídeo da estrada. – Ali! – disparou Royce, apontando para a pista mais à esquerda da qual um Mercedes preto passou bruscamente para a pista do meio, quase atingindo uma picape.
Frank falou em um microfone: – Aproxime o Mercedes preto que quase bateu na picape. Depois congele a imagem. Alguns momentos depois a imagem do Mercedes aumentou até quase ocupar toda a tela. Infelizmente, o ângulo não era favorável: o motorista era claramente um homem – o que eles já sabiam –, mas não estava totalmente visível. – Um homem branco – observou Shaw. – Magro e um pouco grisalho, mas a porta está escondendo o rosto dele. Parece que está falando ao celular. – Como provavelmente 90 por cento das pessoas nessa estrada – disse Katie. Frank deu instruções para o técnico e eles tentaram ângulos diferentes, mas sem muito sucesso. – Continue a passar o filme – disse Shaw. – Ele saiu da estrada depois que Katie falou com ele. Poderíamos dar uma boa olhada nele ou na placa do carro. Infelizmente isso não foi possível. O Mercedes tinha pegado a saída seguinte, mas as imagens foram bloqueadas pelo tráfego. Eles não conseguiram ver o homem nem a placa do carro quando ele saiu da estrada. – É um Mercedes S500 – disse Frank. – Isso limita um pouco a busca. Presumiremos que está registrado em Washington, Maryland ou Virgínia e começaremos a procurar nos registros de veículos. – Essa é uma região de gente endinheirada – observou Katie. – Acho que você vai encontrar mais Mercedes S500 do que imagina. E está apenas presumindo que seja dessa área. Poderia ser de qualquer estado, já que não conseguimos ver a placa. Podemos estar falando de centenas ou milhares de pessoas. – Ela está certa – disse Royce. – Pode haver um modo mais fácil – disse Shaw. – Essa é uma estrada com pedágio. Frank estalou os dedos. – Eles devem ter uma câmera para filmar as pessoas que não pagam. E, se não tiverem, aposto que ele tem um dispositivo para pagamento eletrônico. Isso nos dará um registro.
– Como pode estar tão certo de que ele paga seus pedágios eletronicamente? – perguntou Royce. – Um S500 custa mais de 100 mil dólares. Quem gasta tanto em um carro não vai ficar catando moedinhas nos bolsos. – Mas não há uma chance de o carro apenas ter mudado de direção para evitar um acidente? – sugeriu Royce. – E não ter nenhuma relação com nada disso? – E ele sai da estrada no exato momento em que Katie lhe diz pelo telefone para fazer isso? Não, é ele – disse Shaw. – Você ouviu os pneus cantando e uma buzina e o tempo estava de acordo com a minha gravação. – Podemos checar com o pessoal do pedágio e obter um registro dessa cabine aos... – Frank olhou de relance para o relógio – quatro minutos depois da meia-noite. – Ele olhou de novo para o filme da estrada. – Essa é a saída da Toll Road para a Wiehle Avenue. – Pegaremos esse cara e tudo vai terminar – disse Royce. Nós o prenderemos, o extraditaremos para Londres e ele e seus colegas vão ficar presos para sempre. – Certo – concordou Frank. Katie lançou um olhar nervoso para Shaw, que tinha os olhos perdidos em algum ponto longe deles e uma expressão dura como pedra. Não vejo as coisas dessa forma, pensou ele.
FORA PRECISO VENDER TÍTULOS e ações, liquidar fundos de aposentadoria, desfalcar contas corporativas e abrir cofres bancários, mas Pender conseguira os 20 milhões de dólares. Dois dias depois de falar com Katie James, ele se levantou cedo. Ia fazer a transferência. Esperava desesperadamente que o bônus de Creel tivesse oito dígitos para compensar essa despesa pessoal imprevista. Depois rezaria para conseguir deixar para trás todo esse negócio horrível. Divorciado, com dois filhos na universidade e outro no último ano de uma escola de elite em Washington, Pender vivia numa mansão em McLean, Virgínia, lar de muitos políticos famosos – ou infames, dependendo do ponto de vista – de Washington. Adorava sua liberdade, se concentrava em seu trabalho e suas únicas relações sexuais eram casuais, geralmente com uma funcionária jovem em busca de mais de uma forma de ascensão. Preferia assim – sem compromissos. Jamais entendera por que um homem esperto como Nicolas Creel se casava com mulheres cujos cérebros continham tanta massa cinzenta quanto os seios. Sim, ele tinha os 20 milhões e faria a transferência. Mas e se Katie James fosse em frente e escrevesse a matéria mesmo assim? Ou se pedisse mais dinheiro? Ou, pior ainda, se Creel descobrisse? Vai dar certo. Tem que dar. Ele tomou um banho, se vestiu, bebeu apressadamente um copo de suco de laranja, pegou sua pasta e saiu. Quando chegou à garagem, tudo escureceu de repente. Pender acordou várias horas depois, em um catre numa saleta. A única luz vinha de uma lâmpada brilhante em uma mesa. Quando se sentou e olhou lentamente ao redor, pôde sentir que havia mais alguém ali, por trás da luz. Levantou a mão para proteger os olhos. – Que diabo está acontecendo? – perguntou com o máximo de coragem que pôde, que na verdade foi nenhuma, porque sua voz saiu entrecortada, seus lábios tremiam e ele estava quase ofegante. O homem grande e com aparência zangada saiu de trás da luz e Pender imediatamente se encolheu contra a parede.
Pender ouviu uma voz, mas não soube dizer de onde vinha. – Nós só o trouxemos aqui para mantê-lo seguro. A porta se abriu, as luzes do teto foram acesas e Pender se viu piscando rapidamente. Seu rosto se abateu quando reconheceu o homem que havia entrado na sala. – Você? – Eu – respondeu Nicolas Creel, com Caesar de pé, em silêncio, atrás dele.
EMBORA APARENTEMENTE O GOVERNO pudesse espionar seus cidadãos sem um mandado de busca, dizer se determinado veículo tinha passado por uma certa cabine de pedágio em uma hora específica era muito mais problemático. Shaw e os outros descobriram que a câmera na cabine pela qual Pender passara não estava funcionando. Tantos motoristas haviam passado sem pagar, sido filmados, recebido a multa pelo correio e se recusado a quitá-la que o pessoal do pedágio tinha simplesmente desistido. Eles disseram que agora a câmera estava lá apenas com uma função inibitória. Mas todos sabiam que não estava funcionando, porque um jornal local tinha publicado uma matéria sobre isso. Portanto, não inibia nada. Depois Frank havia procurado a empresa de pedágio eletrônico. Eles se recusaram a lhe dar a informação, apesar de suas credenciais. Frank procurou a ajuda da polícia da Virgínia. Com esse apoio oficial, fez outra tentativa de obter a informação. Então lhe disseram que aparentemente houvera uma falha no servidor, um bug ou um arquivo fora apagado acidentalmente, o que ocorria de vez em quando. Eles iriam investigar e retornar o contato. – Retornar o contato! – gritou Frank ao telefone. – Retornar o contato? O mundo inteiro está prestes a virar fumaça e vocês vão retornar o contato? A mulher do outro lado da linha disse a Frank que não se importava com seu tom e que eles estavam fazendo o melhor que podiam, mas aqueles computadores não eram perfeitos. – Bem, querida – disse Frank –, quando tudo isso chegar ao fim e o mundo acabar, quem vai se importar com computadores com defeito? A mulher aparentemente não estava ouvindo, mas lendo um roteiro. Desejou a Frank um bom-dia e disse que, se houvesse mais alguma coisa que pudesse fazer por ele, ficaria feliz em ajudar, porque o atendimento ao cliente era a principal prioridade da empresa. Frank bateu com o telefone e teria arrancado seus cabelos se lhe restasse algum.
Ele olhou para os outros. – E agora? Simplesmente esperamos a primeira arma nuclear ser lançada? Royce deu de ombros. – Qual é a alternativa? Shaw se levantou. – Cavar um pouco por nossa própria conta. – Cavar o quê? – perguntou Frank. – A sujeira – respondeu Shaw, fechando a porta atrás de si. Katie olhou para os outros dois homens. – O que há com ele? – quis saber Royce. – Ele passou por muitas coisas – disse Katie, defendendo-o. – Todos nós passamos – rosnou Frank. Katie não ouviu isso, pois já estava correndo atrás de Shaw. Ela tentou alcançá-lo enquanto ele andava a passos largos pelo corredor. – Shaw? Ele parou e a esperou. – O que você vai fazer? – perguntou Katie. – O que eu falei. Cavar. – Ele recomeçou a andar. Katie teve que correr para acompanhar seus passos largos. – Onde? Você não pode simplesmente fazer esse sujeito aparecer com um passe de mágica. – Nunca se sabe. – Você precisa ser tão misterioso? Porque isso é muito frustrante. – Katie pôs a mão no braço dele. – E pode fazer o favor de parar por um segundo? Há tempos não corro uma maratona. Ele a encarou. – Não estou pedindo sua ajuda. – Eu sei – disse Katie, calma. – Mas quero ajudar. Achei que poderíamos pegar esse cara com meu plano. A irritação no rosto de Shaw desapareceu.
– Seu plano foi ótimo, Katie. E quase o pegamos. – Então, posso ajudar? Quero dizer, não tenho mais nada para fazer agora. E você sabe como é, essa coisa de o “mundo inteiro estar em risco”. – Ela tentou sorrir. – Está bem. Você tem alguma ideia? – Tudo o que temos é aquele vídeo do carro. E acho que vale a pena dar mais uma olhada nele. Podemos ter deixado escapar alguma coisa. Shaw finalmente deu de ombros. – Vou pedir uma cópia e podemos revê-la. – Uma cópia? Por que apenas não voltamos e o assistimos com Royce e Frank? Shaw não respondeu. Já estava andando de novo pelo corredor.
CREEL ERGUEU UM PEQUENO gravador. Ele o ligou e Pender ouviu sua conversa com Katie James. – Você sabia disso? – perguntou, pálido e com a voz fraca. – É claro que sabia, Dick. Eu sei de tudo. A esta altura você já devia ter notado. Pender começou a gaguejar: – E... eu só estava tentando cuidar disso sem incomodá-lo, Sr. Creel. Tenho o dinheiro. Está tudo pronto para a transferência. – Aprecio seu esforço, de verdade. Mas a falha com o blog foi desastrosa. Eu esperava, com todo o dinheiro que estava lhe pagando, que isso não acontecesse. Mas a vida é assim. Às vezes surge um imprevisto. Sei disso tão bem quanto qualquer outro ser vivo. – Mas quando nós pagarmos a ela... Creel o interrompeu: – Infelizmente, não é tão simples assim. Tenho sérias dúvidas de que alguém como Katie James subitamente se importe tanto com dinheiro. Eu a investiguei bastante antes de decidir usá-la em meu plano. Anos atrás ela poderia ter ganhado uma fortuna se tornando uma personalidade do noticiário matinal de qualquer grande emissora de TV, mas recusou. Ela se importa mais com a história do que com o dinheiro. Não, nem mesmo 20 milhões de dólares mudarão esse quadro. – Então por que ela entrou em contato comigo? – Para obrigá-lo a ligar para ela. Meu amigo aqui me disse que, quando a Srta. James o mandou sair da estrada, você quase jogou o carro para fora dela. – Ele estava me seguindo? – perguntou Pender, olhando para Caesar. – Apenas responda à pergunta, Dick. – Sim, é verdade. Aquilo foi enervante. Como se ela estivesse me observando. – Alguém o estava observando, Dick. E não era apenas eu.
– Do que está falando? Quem estava me observando? – Há câmeras em toda a estrada. Ela fez esse comentário para você reagir. E você reagiu. Agora eles assistem ao vídeo, comparam com o tempo da conversa e veem você quase sofrer um acidente no exato momento em que Katie disse aquilo. Assim podem localizar o carro. – E então ela lhe disse para sair da estrada – acrescentou Caesar. – E você saiu. Pela cabine do pedágio. – Ah, meu Deus! Eles podem estar em minha casa agora. Faz dois dias. Eu... – Acalme-se, Dick. Se as câmeras da estrada tivessem gravado uma imagem clara de você, já estaria preso. Então obviamente não gravaram. – Mas o pedágio. Eu pago eletronicamente. Terão um registro. – Felizmente, soubemos disso a tempo. Mandei alguns dos meus melhores hackers cuidarem da empresa que opera o pedágio eletrônico. Logo depois que você passou pela cabine, todo o sistema de gravação sofreu uma pane. Pender deu um suspiro de alívio. – Como sempre, o senhor pensou em tudo. – Agora preciso que você faça algo para mim. – O que quiser. – Teremos que fechar o projeto. Imediatamente. Quero que você mande seus funcionários no centro de comando para casa. Vamos tirar de lá tudo que mostre sua conexão com a Ameaça Vermelha. – Meu pessoal pode fazer isso, Sr. Creel. Posso telefonar para eles agora. – Diante dos últimos acontecimentos, prefiro que o meu pessoal cuide disso. Estou certo de que me entende. – Está bem, se o senhor insiste. – E o melhor de tudo é que você não terá que dar o dinheiro a Katie, Dick. – Acho que não. Mas então ela escreverá a matéria, a verdadeira história.
– Deixe-a escrever. Creio que as coisas chegaram a um ponto em que não há como voltar atrás. Os contratos estão assinados e a China e a Rússia ainda estão apenas a alguns passos de entrarem em guerra, apesar do recente esforço diplomático. A única coisa que ela pode fazer é desmentir sua matéria original. “Eu estava enganada”, dirá. Mas, sem nenhuma corroboração, sua credibilidade será zero. Ela só parecerá incompetente. – Então vencemos. Creel pôs um braço ao redor dos ombros de Pender. – Sim, Dick, vencemos. Agora ligue para seus funcionários e vamos acabar com isso.
ELES ESTAVAM NO QUARTO de hotel de Katie, assistindo ao vídeo pela centésima vez. Uma mesa do serviço de quarto estava repleta de pratos e xícaras, pois não tinham sequer se dado o trabalho de sair para comer. O quarto estava escuro, com as cortinas fechadas, para que pudessem ver melhor todos os detalhes na tela. Tinham ampliado no laptop todos os ângulos das tomadas e as dissecado grade a grade. E não chegaram a absolutamente nada. Shaw estava deitado no chão, olhando para o teto. Katie, exausta, de olhos vermelhos e mau humor, estava na cama fazendo o mesmo. Ela tirou seus escarpins, foi de meias até a mesa do serviço e se serviu de uma xícara de café. – Quer uma? – ofereceu. Shaw negou com a cabeça e continuou a olhar fixamente para o teto. – Frank checou a conta que abriu para o depósito. Os 20 milhões de dólares ainda não entraram. – Ótimo – retrucou Katie. – Ainda estou pobre e sem pistas. Ela se sentou na cadeira em frente à escrivaninha, sorveu seu café e olhou para a tela. – Quais são as últimas notícias sobre os esforços diplomáticos? – perguntou Shaw. Katie acessou a internet e leu as notícias. – Eles ainda estão se reunindo em Londres. A China e a Rússia não enviaram representantes. Mas os outros ainda têm esperança de chegar a uma solução pacífica. Ela saiu da internet e passou o vídeo do Mercedes de novo, dessa vez em câmera lenta. Shaw a olhou de relance. Ela estava de saia, meias, blusa e com o rosto franzido, concentrada. – Katie, nós fizemos isso um monte de vezes e não conseguimos nada. O maldito pessoal do pedágio ainda não pode nos dizer coisa alguma. E cada minuto que passa... – Ele não precisou terminar a frase. Katie não o ouvia. Seu olhar estava cravado na tela. – Shaw! Olhe! Ele se levantou de um pulo e se juntou a ela na escrivaninha. – O quê? – Ali. – Katie apontou para a parte inferior da tela cuja grade havia ampliado. – É o para-lama traseiro do Mercedes. E daí? – É um Mercedes preto. – Jura? Droga, pensei que fosse branco – disse ele com certa irritação. – Vá direto ao ponto. – Ei, controle seus nervos. – Katie tocou a tela com a unha. – O carro é preto, mas aquele ponto é azul. E dourado. – Ela apontou para outra cor. – E vermelho. – Eu já tinha notado isso. Todos nós notamos. É um adesivo no para-choque. Mas é tudo o que se pode ver. Não há nada escrito. Poderia ser qualquer coisa. Os técnicos já ampliaram e não descobriram nada. – Sei disso. Mas espere um minuto. – Katie estava ampliando ainda mais a grade. Agora a tela mostrava uma barra superior vermelha, uma linha fina dourada e um fundo azul profundo. Katie apertou outra tecla, aproximando as partes dourada e vermelha. – Nós vimos isso, Katie – disse Shaw, estudando a expressão concentrada dela. – Qual é a grande descoberta? – Quando vi isso pela primeira vez, achei que conhecia essa imagem, mas nada me ocorreu e pensei que estava enganada. Mas, agora que estou olhando de novo, sei que já a vi antes em algum lugar. Estou ficando intrigada. – Ela olhou para a jaqueta de Shaw pendurada na cadeira e tocou no bolso no peito. – Droga, é isso. É isso! As mãos de Katie voaram por cima do teclado. Ela entrou novamente na internet e fez uma pesquisa no Google. Quando a tela mostrou os resultados de sua busca, Shaw ficou boquiaberto, olhando para o topo da página.
Era um emblema com uma barra superior vermelha e um escudo azul, com um X dourado com uma coroa vermelha no centro dele. Parecia combinar perfeitamente com o pedaço de adesivo no para-choque do Mercedes. Shaw leu o nome no alto da tela. – Escola St. Albans? Katie assentiu com a cabeça. – Eu lhe disse que meu pai cresceu em Washington? Bem, ele estudou na St. Albans. É uma escola particular apenas para garotos. – Ela levantou a manga da jaqueta de Shaw. – Ele ainda tem uma jaqueta com esse emblema. É onde me lembro de tê-lo visto. E aposto que esse homem tem um filho que estuda ou estudou lá. Um segundo depois Katie foi erguida no ar. A força de Shaw era tanta que ele fez isso apenas com seu braço bom. – Ótimo trabalho, Katie – sussurrou no ouvido dela. Shaw a pôs no chão e voltou sua atenção para a tela, enquanto Katie parecia um pouco perturbada. – Ligue para Royce e Frank – disse ela. – Eles podem fazer uma busca no banco de dados da St. Albans e obter uma lista de nomes. Nós os compararemos com os registros dos veículos e descobriremos o Mercedes preto e nosso homem. – Você acha que podemos descobrir isso sem a ajuda de Royce e Frank? – Shaw não olhou para ela quando disse essas palavras. – Não sei – respondeu Katie, hesitante. – Quero dizer, você provavelmente precisaria de um mandado de busca. – Mas você disse que seu pai estudou lá. Isso poderia fazer diferença. – Talvez, mas não posso acessar o registro de veículos. E por que não quer telefonar para eles? – Katie olhou para Shaw, sentindo-se desconfortável. Ele se virou, avultando sobre ela. Sem perceber, Katie deu um passo para trás. – O que você acha? – disse ele abruptamente. – Não sei o que pensar.
– É claro que sabe. Você é uma mulher esperta. – Ele fez um sinal com a cabeça na direção da tela. – Esperta o suficiente para ter visto isso quando nenhum de nós viu. – Não posso ajudar você a fazer o que quer, Shaw. – A voz dela transmitia um silencioso desespero. – De repente se tornou prudente com relação a mim? Preocupada com os direitos dos outros? Inocentes até os advogados encobrirem a verdade para que ninguém possa descobri-la e os culpados saiam impunes? – Não ligo a mínima para as pessoas que fizeram isso. Elas podem apodrecer no inferno. – Então qual é o problema? – O problema é você. Se fizer justiça com as próprias mãos, vai ser preso. Ou pior. Não quero ser parte disso. Não posso. Shaw se sentou na cadeira da escrivaninha e olhou para o carpete. – Shaw, você não pode jogar sua vida fora desse jeito. Katie se moveu para a frente e pôs uma das mãos no ombro dele. – Você precisa deixar isso sair, Shaw, antes que o destrua. Ele se levantou tão rapidamente que ela teve que pular para trás. – Vou telefonar para Frank e colocá-lo em ação. – Simples assim? – perguntou ela, perplexa. – Simples assim. Vai ser mais rápido – acrescentou Shaw, em tom sinistro. Enquanto ele telefonava, Katie olhou para o emblema da Escola St. Albans e depois para Shaw, que contava a descoberta dela para Frank. Quando desligou, Shaw disse: – Calce os sapatos. Estamos presos neste quarto há tempo de mais. Vou levar você para jantar enquanto eles examinam o banco de dados. Katie foi buscar os sapatos, se sentou e os calçou.
Shaw segurou o braço dela e a conduziu porta afora. Enquanto eles caminhavam pelo corredor, o coração de Katie batia acelerado. Não acreditava em Shaw. De jeito nenhum. Katie estava com medo. Não por ela. Por ele.
UM CRUZAMENTO DE DADOS do registro de veículos e da Escola St. Albans mostrou que havia oito famílias que possuíam Mercedes S500 pretos. Shaw, Royce, Frank e Katie estavam sentados numa sala do escritório do FBI no norte da Virgínia analisando essa lista. – Dois em McLean. Um em Great Falls. Três em Potomac. Os outros dois em Washington. Quatro delas têm filhos ainda matriculados na escola – recitou um agente do FBI. Katie desviou os olhos da tela para Shaw. Pôde perceber que ele estava totalmente focado na lista. Enquanto o observava, ela o viu repetindo palavras para si mesmo. Ele está decorando os nomes e endereços. – A coisa inteligente a fazer – disse Frank – é dividir nossos recursos e pegar todos eles de uma só vez. – Podemos reduzir ainda mais a lista – disse o agente. – A casa em Great Falls e o carro estão registrados no nome de uma mulher de 86 anos. Os donos dos Mercedes em Washington são homens, Stephen Marshall e Sohan Gupta, mas são respectivamente um negro e um indiano. Você disse que nosso homem era branco. Podemos checar essas pessoas mais tarde, só para o caso de alguém ter tido acesso aos seus carros, mas faz sentido priorizar. – Então isso nos deixa cinco – disse Frank. – Dois em McLean, Virgínia, e três em Potomac, Maryland. – Precisaremos de mandados de busca – disse o agente do FBI. – Isso vai demorar um pouco, porque as circunstâncias são um tanto incomuns – observou ele, dando uma olhada para Frank. – Quanto? – perguntou Royce. O agente olhou para o relógio. – Vamos nos esforçar para apressá-los, mas o mais cedo possível é amanhã de manhã. – Faça isso. – Deveríamos pôr equipes de vigilância nas casas? – perguntou Frank.
– Isso poderia espantá-los – salientou Shaw. – E se não conseguirmos os mandados... – Eles poderiam destruir evidências e não haveria nada que pudéssemos fazer a esse respeito – concluiu Frank. Ele suspirou e disse para o agente do FBI: – Consiga os mandados o mais rápido que puder. Katie olhou para Shaw a tempo de ver um sorriso amargo atravessar seu rosto. E então o sorriso desapareceu. – Quero estar com você quando pegá-los – disse Shaw. Frank balançou a cabeça. – Mas deixaremos o FBI assumir o comando. – Sem dúvida. Royce concordou com a cabeça. – Estou claramente fora da minha jurisdição aqui. A reunião terminou e Shaw saiu. Katie o seguiu rapidamente. Quando ele chegou ao seu carro no estacionamento, ela pôs a mão na porta do veículo. – Não faça isso. Shaw tirou a mão dela da porta. – O que exatamente? – Você sabe. – Vou lhe dar uma carona até o hotel. Você sem dúvida precisa dormir. Está parecendo um pouco confusa. Katie agarrou a manga da camisa dele. – Shaw, eu vi o que você fez lá dentro. Decorou a lista. Não vai esperar um mandado de busca. Vai àqueles lugares esta noite. E... – E o quê? Vou começar a matar pessoas? É isso que você pensa? – Não sei bem o que pensar. – Ótimo, bem-vinda ao clube. – Ele desvencilhou-se dela. – Quer a carona? – Não, não quero. – Você é que sabe.
Shaw foi embora. Frank e Royce saíram do prédio. Frank olhou o carro se afastando. – Seu amigo deixou você na mão? – Não, eu só... – Quer uma carona? Quando eles entraram no carro, Frank se virou e olhou para ela. – Está tudo bem? – Tudo ótimo. Royce lançou-lhe um olhar penetrante, depois virou-se para Frank e deu de ombros. Quando Katie chegou ao hotel, tomou um banho quente e se esfregou até quase ficar em carne viva. Apoiou a cabeça na parede de azulejos do boxe e deixou a água cair sobre seu corpo. O que eu faço agora? Conto para Frank e Royce? Deixo que sigam Shaw? Impeço Shaw de matar alguém? De ser morto? Katie sabia que era exatamente isso que devia fazer. Mas não era assim tão simples. E se estivesse errada? E se Shaw descobrisse que ela o traíra? Mas ela não havia prometido não contar. Ele nunca lhe pedira que não revelasse suas suspeitas. Katie saiu do chuveiro e vestiu uma roupa escura. Não podia denunciar Shaw. Mas também não podia ficar parada e deixar que ele destruísse a vida que lhe restava. Ela telefonou para o quarto de Shaw. Quando ele atendeu, desligou. Ainda estava lá. Dois minutos depois Katie estava no saguão, sentada em uma cadeira de espaldar alto, esperando que ele descesse. Uma hora depois Shaw desceu. Ele saiu. Ela também.
NENHUMA DAS DUAS PRIMEIRAS casas que Shaw checou era a certa. A distância, Katie o observou entrar nelas apenas para sair alguns minutos depois. Contudo, da terceira casa, uma mansão de pedra em McLean, ele não saiu imediatamente. Na verdade, não saiu. Katie olhou para o relógio. Dez minutos haviam se passado. Essa deveria ser a certa. Ela deslizou para fora do carro e se esgueirou para dentro da casa exatamente como Shaw fizera: pela porta dos fundos. Seu coração bateu forte ao atravessar o corredor. Quase tropeçou em algo no caminho. Tudo o que pôde fazer foi não gritar. É um corpo? É o corpo de Shaw? Tateando, sentiu uma cadeira virada na sua frente. Quando seus olhos se acostumaram com a escuridão, também notou outras coisas que não deveriam estar onde estavam, inclusive uma foto amassada no chão. Katie a pegou e apertou os olhos para vê-la. Era de um homem com um garoto pequeno. Ela deixou a foto de lado e avançou pouco a pouco pelo corredor. Havia uma caixa no chão. Abaixou-se para ver o que era. Estava vazia, mas parecia ter guardado alguma coisa. Aquilo seria obra de Shaw? Ele estava procurando algo que ela não soubesse? Havia mais alguém ali e tudo aquilo indicava uma luta? Ela deveria apenas correr, mas e se Shaw estivesse ferido? A porta estava bem à sua frente. Katie agarrou a maçaneta, respirou fundo e a abriu. Era um quarto. Um quarto grande. A suíte principal da mansão. Katie prendeu a respiração ao ver a figura na cama. Estava apoiada em travesseiros. O pálido luar que entrava pela janela permitia que ela o visse perfeitamente. O homem ainda parecia estar gritando. Só que não gritaria mais. Katie já tinha visto cadáveres antes e aquilo, definitivamente, era um. Ela se virou para correr. E deu de cara com uma parede humana. Shaw pôs a mão sobre sua boca.
Katie ergueu seus olhos arregalados para ele, cada centímetro de seu corpo tendo espasmos de terror. Ele tirou a mão da boca de Katie e apontou para o corpo. – Está morto. Ela assentiu lentamente com a cabeça, seus olhos ainda arregalados e aterrorizados. Shaw entendeu o que ela estava pensando e revelou isso em sua expressão, que logo foi substituída por uma de raiva. – Sinta o corpo, já está frio. – Não, obrigada. Ele a empurrou na direção da cama. – Acredito em você – disse ela, virando-se de novo para ele. – Não, não acredita. Veja por si mesma. Katie avançou pouco a pouco. Shaw a seguiu. – Ele está totalmente rígido – disse Shaw. – Isso acontece de 12 a 24 horas após a morte. Só estou aqui há 15 minutos. Mais curiosa do que assustada, Katie tocou no braço do homem. Estava duro como pedra; a pele gelada. – Como ele morreu? Shaw apontou para o travesseiro, onde Katie viu manchas secas. – Tiros na parte de trás da cabeça. Katie se afastou da cama e olhou ao redor do quarto. Shaw usou uma lanterna para iluminar a área. Os móveis ali também estavam virados, as cortinas tinham sido arrancadas e havia coisas no chão. – Uma luta? – perguntou ela. – Uma busca? Shaw apontou para o closet. – Veja isso. Eles entraram no aposento. Nos fundos um retrato pendia de dobradiças, revelando uma cavidade na parede. – Meu palpite é que havia um cofre ali. Quem fez isso o levou.
– Então foi apenas um roubo que deu errado? O homem morto está totalmente vestido. Ele poderia ter chegado em casa, deparado com os ladrões e sido assassinado. Shaw a olhou fixamente. – Realmente acredita nisso? – Não. – Ótimo. Porque tudo isso foi armado. Como o resto dessa maldita coisa. – Mas é a casa certa, não é? Ele assentiu com a cabeça. – Chequei o carro na garagem antes de mais nada. Tem o adesivo atrás. E um leve arranhão na parte traseira que observei no vídeo. É o carro certo. – E o cadáver? Shaw pegou uma foto que estava em uma prateleira e a iluminou com a lanterna. Parecia o homem no vídeo. – É o dono da casa, Richard Pender – disse ele. – É melhor sairmos daqui. – Não, primeiro quero terminar de vasculhar o lugar. – Shaw, e se formos pegos? – Você pode ir embora. – Droga, você sempre tem que tornar tudo tão complicado? – Não lhe pedi que me seguisse esta noite. – Como sabe que eu o segui? – Talvez porque você está aqui comigo. – Eu poderia estar aqui por iniciativa própria. Também sei decorar endereços. – Se você tivesse decorado o endereço saberia que esta é a casa de Pender. Além do mais, vi você várias vezes esta noite me seguindo em seu carro. – Espere um minuto. Se sabia que eu o estava seguindo, por que não me deteve? Ou tentou me despistar?
Shaw começou a dizer algo, mas parou. Ele desviou o olhar e disse em voz baixa: – Não sou um assassino. – Fico feliz que tenha percebido isso. Um breve momento se passou e então Shaw perguntou: – Vai me ajudar a procurar ou não? – Vou. Mas vamos fazer isso rápido. Meia hora depois eles não tinham encontrado nada útil. Richard Pender era dono de uma empresa chamada Pender & Associates. Shaw nunca ouvira falar nela. Eles pegaram o endereço do escritório em um papel timbrado que encontraram numa gaveta da escrivaninha. Katie olhou fixamente para o papel. – Por alguma razão, conheço esse nome. – Ela pensou por um momento e depois balançou a cabeça. – Não consigo me lembrar. Eles saíram pela porta dos fundos. Pelo menos, tentaram. Não conseguiram.
SHAW ACORDOU PRIMEIRO, AS sinapses em seu cérebro gritando mensagens intensas de dor para o resto de seu corpo, mas a frágil caixa de correio dos nervos já estava lotada. Ele tentou se sentar e conter a sensação de náusea que o invadia. Presumiu que estaria amarrado. Mas não, tinha as mãos e os pés livres. Ele ouviu um gemido e olhou para trás, por cima do encosto do banco. Katie estava deitada no chão. – Katie, você está bem? Houve um grunhido baixo e depois um pouco de movimento, quando Katie se sentou devagar. Ela esfregou sua cabeça. – Sim, mas estou com o maior dos galos na... Eles ouviram um rangido, como o de metal contra algo duro. – O que foi isso? – perguntou ela. – Onde estamos? Katie olhou ao redor. Estavam em um carro. O carro dela. O mesmo em que seguira Shaw. – Não se mexa – sussurrou ele. – O quê? Eles ouviram outro rangido e Katie teve a nauseante sensação de chão deslizando por baixo dela. – O que está acontecendo? Shaw inclinou a cabeça para a janela. Katie olhou para fora, mas só viu a escuridão. Não, não escuridão total. Viu algumas árvores grandes e mata densa. – Eles nos deixaram na floresta? – Sim, mas não exatamente no nível do chão. – Do que você está falando? – Olhe pelo para-brisa, mas não se mexa. Katie virou sua cabeça para a frente devagar e prendeu a respiração. Estava olhando diretamente para baixo ou pelo menos era o que parecia. Era como estar em uma montanha-russa prestes a despencar, ou num avião caindo em espiral, no assento do piloto, vendo o chão se aproximar assustadoramente rápido. – Onde estamos? – sussurrou ela. – Em um carro na encosta do que parece ser uma colina muito íngreme, com um percurso de uns 60 metros à nossa frente, pelo menos até chegarmos à base. Então atingiremos uma parede de árvores. E, se conseguirmos abrir caminho por elas, cairemos no rio. – Rio? – O Potomac. – Ele ergueu seu braço devagar e apontou para o para-brisa. – Aquilo parece Georgetown, não é? Katie olhou para as luzes cintilando do outro lado do rio. – Então estamos fora da George Washington Parkway? Ele fez um sinal afirmativo com a cabeça. – Você consegue abrir as portas? – Estão trancadas e, se eu tentar abrir uma, vamos cair bem rápido. – Como chegamos aqui? A última coisa de que me lembro é que íamos sair da casa de Pender. – Eles deviam estar à nossa espera. Como fui idiota! Estavam esperando por nós no cemitério na Alemanha. Por que não na casa de Pender? Devem ter descoberto o que fizemos pelo telefone, chegado à casa de Pender primeiro e esperado por nós. Katie deu de ombros. – Fizeram a morte dele parecer latrocínio e agora vamos morrer num acidente de carro. Shaw fez uma careta ao sentir outra pontada de dor em sua cabeça machucada. – Uma corrida para fora da estrada e colina abaixo, até o tanque de gasolina explodir ao batermos nas árvores. Estou certo de que marcas de derrapagem para fora da estrada foram feitas por profissionais. – Então por que o carro ainda não rolou morro abaixo? – Parece que ficamos presos na ponta de uma rocha.
– Estamos realmente tão perto de descer ou não tenho nenhum motivo para estar quase histérica? – Nenhum dos pneus está tocando no chão. É como se estivéssemos em uma gangorra e a rocha fosse o ponto de apoio. Se nos mexermos muito, desceremos. – Se não nos mexermos, também acabaremos caindo em algum momento. Podemos ligar para alguém? Frank? Royce? O presidente? Shaw apalpou suavemente seu bolso. – Eles levaram meu telefone. E o seu? – Estava na minha bolsa. Eu a deixei no carro. Você a está vendo? Shaw olhou para o piso do automóvel. – Sim, mas se tentar pegá-la, vamos cair. – Você consegue escorregar para o banco de trás? Seu peso poderia estabilizar o carro. Shaw tentou ir para trás, mas outro rangido longo e o carro deslizando mais alguns centímetros o fizeram parar. – Isso é um sinal para não ir. – Não podemos simplesmente ficar sentados aqui esperando para morrer! – exclamou Katie. Shaw moveu seu peso um pouco para a esquerda. O rangido foi imediato e os dois sentiram o carro se mover mais um centímetro para a frente. – Está bem, isso me diz algo. – O quê? – Não se mexa de novo. Shaw olhou para o interior do veículo. As chaves ainda estavam na ignição. Tinham que estar, pensou ele, para que realmente parecesse um acidente quando a polícia encontrasse os restos queimados do carro. Ele estendeu sua mão para a frente e virou cuidadosamente as chaves uma vez. Isso não ligou o motor, mas acionou a parte elétrica. Shaw se esticou e apertou o botão da janela. O vidro se abriu enquanto o carro se movia mais um centímetro para a frente.
– O.k., a janela está aberta, mas e agora? Não podemos exatamente pular por ela. Shaw abaixou a mão, abriu seu cinto e o tirou. – Por favor, diga que está usando um cinto. – Estou. – Tire-o e me entregue. Devagar. Katie fez isso, mas até mesmo o movimento de seus braços fazia o carro balançar em seu ponto de apoio precário. Ela finalmente tirou o cinto e o deu a Shaw. Com movimentos muito lentos e cuidadosos, Shaw fez um laço com o cinto de Katie e depois passou o dele por esse círculo, apertando com força e deixando uma tira de couro de uns 10 centímetros de comprimento em sua mão. – O que é isso? – perguntou Katie. – Um laço. – O que exatamente vai laçar? – Aquela árvore do lado de fora. – Ele indicou com a cabeça o pedaço curto mas grosso de madeira. – Se eu conseguir me puxar pela janela, sem meu peso no banco da frente, o carro deve se estabilizar para trás. Posso encontrar algo para calçar os pneus da frente. E depois tirar você daqui. – Deve? Deve se estabilizar? E se isso não acontecer? E se sua saída fizer o carro se arremessar contra aquelas árvores? Vai ficar apenas acenando para mim enquanto despenco para a morte? Shaw pensou por um minuto. – Está bem. Vamos fazer isso de uma só vez. Uma só vez. Se sairmos, sairemos juntos. Se cairmos, bem... – O.k. Já entendi. Qual é o plano? – Basicamente uma chance em mil. – O.k., já estou adorando – disse ela, sarcástica. – Assim que eu laçar aquele galho, você se agarrará em mim como nunca agarrou nada em sua vida. Entendeu? A respiração de Katie se acelerou quando o carro começou a se inclinar ainda mais para a frente.
– Vamos conseguir, não vamos? – Katie, você me ouviu? – Sim, ouvi. É para agarrar você e não soltar. Por nada. Entendi. – Mas espere até eu laçar o galho. – E você vai fazer tudo isso no milésimo de segundo antes de despencarmos para a morte? Nos puxar em segurança com um cinto que comprei na Gap por 10 dólares? – Katie, não fique histérica comigo. Sei que você já esteve em muitas situações difíceis. Esta é apenas mais uma. Ela olhou receosamente para o para-brisa e depois para o outro lado. – Está bem. Shaw se moveu lenta e cuidadosamente para o lado e olhou para o galho, tentando se convencer de que não seria um milagre se aquilo desse certo. Ele percebeu que na verdade seria mais do que um milagre. Exigiria intervenção divina, além de sorte e um elemento desconhecido de magia cósmica. – Está pronta? – perguntou ele. Katie estava tão ofegante que parecia prestes a levantar um peso de uma tonelada ao se preparar para escapar de um carro de 900 quilos que passaria por eles em alta velocidade. Ela olhou pela abertura da janela. Parecia ter 10 centímetros de diâmetro. Nunca iriam conseguir. Eu posso fazer isso, disse para si mesma. Posso fazer isso. Ah, Deus, por favor, permita que eu faça isso. Shaw atirou o laço. Errou. – Talvez eu possa tentar aqui de trás – sugeriu Katie. Ela tocou no botão da janela e o vidro começou a baixar. E então o carro subitamente escorregou para a frente. – Droga! – exclamou Katie. – Aguenta firme! – Está caindo, Shaw. Está caindo. Ah, meu Deus! O carro estava mesmo caindo e não havia nada entre ele e as 100 toneladas de carvalho lá embaixo. De onde estava sentado, Shaw não podia mais alcançar o galho com seu cinto.
– Shaw – gritou Katie, agarrando o banco com todas as suas forças enquanto a frente do carro se inclinava para baixo e a parte de trás se erguia no ar, como o Titanic em seu mergulho final. Shaw praguejou, pulou para trás por cima do banco, deu meia-volta e deixou o laço voar para fora da janela de Katie. De algum modo, alcançou o galho e Shaw o apertou. Pelo visto, milagres acontecem. O impulso do carro havia puxado Shaw, que segurava o cinto com as duas mãos e metade do corpo para fora da janela. – Katie, agarre minhas pernas. Agora! Ele a sentiu segurando suas pernas. O carro ia despencar e não havia mais como impedir que isso acontecesse. Shaw deslizou perfeitamente para fora da janela, mas então algo pareceu errado. – Katie! Ela não estava lá. Shaw bateu com força na terra; uma ponta de pedra o atingiu no estômago. O cinto escorregou de sua mão e ele caiu na íngreme colina. Olhou à sua frente e viu o carro ganhando cada vez mais velocidade. Seu impulso o fez se virar bruscamente e cair com força de costas. Quando conseguiu se sentar, viu o carro bater nas árvores no pé da colina. Um segundo depois, uma explosão rasgou o ar quando o tanque de gasolina se incendiou. Shaw se agarrou a tudo que pôde, arbustos, galhos, terra e pedras, para frear sua descida. Se rolasse mais 6 metros, não teria como parar e também acabaria no inferno lá embaixo. Ele finalmente bateu em um velho cepo de árvore. – Katie! – gritou. – Katie! Mas ela não respondeu.
O TELEFONE DESPERTOU FRANK DE um sono profundo. Era o agente do FBI com quem estivera trabalhando. Frank se sentou, já procurando as roupas que havia deixado na beira da cama ao se deitar. – O que houve? – Richard Pender, uma das pessoas na lista da St. Albans, acaba de ser encontrado morto em sua casa. Os pés de Frank tocaram o chão. Ele segurou o telefone ao ouvido com o ombro enquanto vestia a calça. – Puta merda! – E não é só isso. – Não? – perguntou Frank cautelosamente. – Um vizinho de Pender telefonou para a polícia; foi assim que descobriram o corpo. – Por que telefonou? Ele viu alguma coisa? O assassino? – Viu o que pareciam duas pessoas sendo carregadas para fora da casa e postas em um carro. – Duas pessoas! Conseguiram identificá-las? – Estava escuro. Ele não soube dizer ao certo. Mas o homem era grande. Foram precisos três homens para carregá-lo. E a outra pessoa parecia uma mulher. – Ele viu mais alguma coisa? – Anotou a placa do carro em que foram postos. – E? – Frank vestiu a camisa, enfiou-a para dentro da calça e depois pôs as meias. – Ah, droga, não me diga. – Conferimos a placa. Era o carro que Katie havia alugado. Frank meteu os pés nos sapatos e rugiu: – Que diabo eles estavam fazendo lá? Ainda não tínhamos um mandado de busca. – Parece que estavam fazendo uma investigação independente.
– A polícia já encontrou o carro? – Não, eles emitiram um aviso para todas as delegacias, mas até agora nada. – Alguém tentou ligar para Shaw ou para Katie? – Sim. Ninguém atendeu. Mandamos pessoas procurá-los no hotel. Nada. – Quando esse vizinho telefonou? – Há cerca de duas horas. – Cristo! Eles já podem estar mortos. Provavelmente estão mortos. O que descobriram sobre Pender? Quando o mataram? – Vinte horas atrás ou mais, segundo os exames preliminares. – Droga, essa é uma pista fria. Espere um minuto, se eles mataram Pender tanto tempo atrás, por que estavam vigiando a casa dele? – Esperando alguém aparecer? – Você quer dizer, esperando Shaw e Katie aparecerem. Como no funeral em Wisbach. O que eles estavam pensando quando foram até lá? – Os policiais na casa de Pender disseram que a cena parecia a de uma tentativa de assalto. – Assalto uma ova. Então qual é a história desse Pender? Quem é ele? – É dono de uma empresa chamada Pender & Associates, sediada no norte da Virgínia. O quadro não está totalmente claro, mas parece ser algum tipo de empresa de relações públicas. Frank telefonou para Royce, informou-o do ocorrido e combinou encontrar o agente do MI5 no saguão em cinco minutos. Ele pegou seu revólver, abriu a porta e correu pelo corredor, enquanto discava um número em seu celular. – Shaw e Katie estão com um sério problema. Rastreie-o. Agora! Frank se encontrou com Royce no saguão e os dois agentes correram para o carro.
Enquanto se afastavam, Frank telefonou para o agente do FBI.
– Quero que uma equipe de assalto vá para a Pender & Associates imediatamente. – Ainda não temos os mandados de busca. – Quais são as chances de um sujeito em nossa lista ser baleado e Shaw e Katie serem sequestrados na casa dele e isso não ter ligação com essa maldita conspiração? – gritou Frank. – Cerca de uma em um bilhão – admitiu o agente. – Então que se danem os mandados. Vão para a Pender & Associates agora! Contudo, os instintos de Frank lhe diziam que já era tarde demais para a Pender & Associates. E tarde demais para Shaw e Katie.
SHAW SE LEVANTOU LENTAMENTE e se apoiou em um pinheiro inclinado e com raízes pouco profundas. Olhou para baixo, para os destroços do carro. As chamas começavam a diminuir enquanto a gasolina era consumida. Ele havia parado de gritar por Katie porque ficara rouco. Desceu a colina agarrando-se ao que podia. Aproximando-se do carro incendiado, não queria nem pensar no que estava dentro dele. Os restos carbonizados de Katie James. O gemido fraco o pegou tão desprevenido que Shaw quase caiu para a frente, direto nas chamas. Ele se virou, olhando para a escuridão à sua esquerda. – Katie? Quase teve medo de dizer o nome dela e não ouvir resposta. Agora definitivamente havia movimento. E era grande demais para um coelho ou esquilo. Shaw se lançou para a frente, tropeçou, caiu, se levantou e correu para o lado dela. Katie estava deitada de bruços perto de um carvalho, tentando se levantar. Ele se ajoelhou ao seu lado e a virou delicadamente. – Droga, pensei que estivesse morta. Katie estava com o rosto ensanguentado e o braço dobrado num ângulo estranho. Ela o olhou, sorriu fracamente e depois fez uma careta de dor. – Então não estou morta? Ele balançou a cabeça. – Não. A menos que eu também esteja. E estou com dor de mais para não estar vivo. Consegue andar? Com a ajuda dele, Katie se levantou, segurando seu antebraço direito. – Acho que quebrei o braço. Shaw olhou para o ferimento de Katie. Parte do osso se projetava para fora da pele.
– Droga! – exclamou. – Precisamos levar você a um hospital. – Ele pegou sua jaqueta e improvisou uma tipoia para manter a fratura o mais imóvel possível. – Consegue andar? Katie fez que sim com a cabeça. – Se você me ajudar. Shaw pôs sua grande mão sob a axila dela e seu outro braço ao redor de sua cintura e eles começaram a subir lentamente. – O que aconteceu? Você estava segurando em mim e de repente se foi. – Minha mão escorregou e depois fiquei enganchada na maçaneta da porta. – Como saiu do carro? – Pura sorte. Quando estava descendo, o carro bateu em algo, provavelmente outro bloco de rocha. A porta se abriu e caí para fora. – Ela olhou para trás, para a massa escura de metal queimado. – Foi por pouco – disse. – Muito pouco. – Shaw, acho que vou vomitar. – Tudo bem, estou com você. Ele a segurou enquanto ela esvaziava o estômago. – Me desculpe – disse Katie com um olhar constrangido depois que terminou. – Fraturas expostas também sempre me fizeram vomitar – disse Shaw, tentando sorrir. Quando eles se aproximavam do topo, ouviram carros freando na estrada acima e depois pés começando a correr em sua direção. – Abaixe-se, Katie. – Shaw, você está aí embaixo?! Era Frank. – Nós dois estamos – gritou Shaw de volta. – E precisamos de ajuda. Katie quebrou o braço.
Cinco minutos depois, eles estavam dentro de uma caminhonete. Frank e Royce os acompanhavam. – Pender está morto, mas você já sabe disso, porque foi à casa dele ontem à noite – disse Frank, em tom acusador. – Pode esperar pelo menos até amanhã para me criticar, Frank? – disse Shaw. – Por quê? Isso não será nem um pouco melhor amanhã. Só vai piorar. – Você sabe quem o sequestrou? – perguntou Royce. – Não vi. Quem quer que tenha sido nos atingiu rápido e com força. – Ele olhou para Katie. – Ela precisa ir para um hospital. – É para onde estamos indo – disse Frank. – Já telefonei para eles. – Como sabia onde Shaw e Katie estavam? – perguntou Royce. Frank olhou de relance para Shaw antes de responder. – Um palpite certeiro. Antes que Royce pudesse dizer algo, o telefone de Frank tocou. Ele ouviu por uns cinco minutos sem dizer nada além de praguejar. Desligou e atirou o telefone no chão. – Pelo visto as notícias não foram boas – disse Royce. – Eles foram à Pender & Associates. – E? – perguntou Shaw. – Não encontraram nada. O lugar tinha sido limpo. – Mas deve haver funcionários com quem possamos falar. – É claro que há. Mas, depois do que aconteceu com Pender, duvido que algum deles se anime a falar. – Mas terão que ser interrogados. – E serão. Só não espere muito. – Duvido que alguém além de Pender saiba quem é a terceira parte – disse Shaw. – Por quê? – perguntou Royce.
– Porque ele está morto – disse Shaw abruptamente. – O que vocês descobriram sobre a Pender & Associates? – O FBI fez uma investigação rápida sobre eles – disse Frank. – São uma espécie de empresa especializada em relações públicas. – Não. São mais do que isso. São uma empresa de GP – exclamou Katie de repente. – Era por isso que eu conhecia o nome. Todos olharam para ela. – O que é uma empresa de GP? – exclamou Frank. – Gestão da percepção. Trata-se de fabricar a verdade em grande escala. O Departamento de Defesa define essa atividade mais precisamente em um ou outro manual. As Forças Armadas realmente usaram muito a gestão da percepção depois da Guerra do Vietnã. Há várias empresas especializadas nisso em todo o mundo. Fiz uma matéria sobre o assunto há alguns anos. Quero dizer, tentei fazer. Algumas pessoas especulavam se as empresas de GP estavam por trás do que aconteceu na Primeira e na Segunda Guerras do Golfo. Armas de destruição em massa, repórteres acompanhando as tropas e sendo manipulados, esse tipo de coisa. Há vários métodos e artifícios para gerir a percepção. As melhores empresas de GP consideram isso uma grande arte. – Se eles são especialistas nisso, por que ninguém suspeitou de que estavam por trás da maldita campanha da Ameaça Vermelha? – disparou Frank. – A maioria das pessoas, inclusive muitos líderes de governo, não têm a menor ideia de que essas empresas existem. E, como eu disse, tentei fazer uma matéria sobre isso. Eles são discretos e não falam em público sobre o que fazem. As empresas que realmente consegui investigar, inclusive a Pender & Associates, não falaram comigo. Todas guardaram sigilo. – Além disso, a Rússia é uma “vilã” fácil – observou Shaw. – Assim como a Coreia do Norte. As pessoas acreditarão em tudo de ruim sobre esses países, em geral por um bom motivo. – Sem dúvida foi por isso que a escolheram – acrescentou Royce. Katie disse lentamente:
– Então a Pender & Associates também poderia ter sido contratada para fazer parecer que os chineses estavam por trás da Ameaça Vermelha. – Quer dizer que eles mataram 28 pessoas em Londres e puseram a culpa nos russos? – acrescentou Shaw ferozmente. – Mas isso é loucura. Por que alguém faria uma coisa dessas? – perguntou Frank. – A Rússia e a China estão prestes a entrar em guerra. O resto do mundo está se rearmando – disse Katie. – Certo, mas quem desejaria isso? – De repente todos os países estão gastando centenas de bilhões em armamentos – disse Shaw. – E esse dinheiro está indo para algum lugar. Frank o olhou de cara feia. – O quê, está dizendo que fornecedores militares estão por trás disso? Realmente duvido de que Northrop Grumman, Ares Corporation ou Lockheed estejam envolvidas nessa porcaria. Elas têm quadros de diretores e acionistas. Não há como guardarem segredo. E, pelo que sei, de qualquer maneira todas estão ganhando muitos dólares. – De fato, Shaw, a British Aerospace está se saindo muito bem sem recorrer a um possível Armagedom – acrescentou Royce. – Talvez isso não tenha a ver com dinheiro – disse Shaw. – Com o que mais as grandes empresas se importam? – retrucou Frank. Shaw se recostou e fechou os olhos. – Shaw? É melhor você me responder se tiver alguma ideia sobre isso. Mas, apesar da insistência e da irritação de Frank enquanto o carro seguia em frente, Shaw continuou em silêncio. www Katie foi operada. Teve seu osso fraturado recolocado no lugar e seu braço engessado. Passou a noite no hospital com Shaw dormindo ao lado de sua cama. No dia seguinte, quando voltaram para o hotel, foi com Shaw para o quarto dele. Ela se sentou na cama com um travesseiro debaixo de seu braço machucado enquanto ele improvisava um lanche com o que havia no frigobar. Katie esfregou o gesso. Estava tomando analgésicos, mas seu braço ainda latejava e todo o seu corpo doía da violenta queda pela encosta. Enquanto mastigava algumas batatas fritas e tomava um refrigerante diet, Katie disse: – O.k., Frank não está aqui. Você sabe por que outro motivo além de enriquecer ainda mais alguns fornecedores de armas Pender estaria jogando a Rússia e a China uma contra a outra? Shaw se sentou em uma cadeira e mastigou alguns amendoins. – Pense no que realmente tem acontecido. Katie olhou para ele com as sobrancelhas franzidas. – Morte, destruição, guerra? Praga? Esqueci alguma coisa? – Anna me disse algo quando começou a estudar a Ameaça Vermelha. – O quê? – Disse que isso a fazia se lembrar de uma coisa. De tentativas de criar uma nova ordem mundial, ou pelo menos restabelecer a velha ordem mundial, se é que isso faz sentido. Os russos acabam com uma grande parte do Talibã com um só ataque e dizem aos outros países árabes para recuarem, senão poderão ser aniquilados. Agora o Oriente Médio vai para o inferno e ninguém se importa, porque todos estão concentrados no conflito entre a Rússia e a China. E as maiores potências estão se rearmando para o que parece ser um impasse duradouro. – Ele ergueu os olhos para ela. – Déjà vu. – Está dizendo que quem está por trás disso quer que voltemos à Guerra Fria? – Segundo a opinião geral, a Rússia e a China assustaram muito uma à outra. Não atacarão de novo. Só vão entrar em uma longa fase de rearmamento, junto com todas as outras grandes potências. Chegaremos a um impasse. E, agora que a Rússia usou mísseis cruzadores contra o Afeganistão e escapou impune, você acha que outros países não poderiam tentar essa tática contra algumas das outras nações indisciplinadas, muçulmanas ou não?
– Você quer dizer meninos grandes voltando a usar seus músculos? Como a Rússia e os Estados Unidos costumavam fazer? – Algo desse tipo. Talvez alguém esteja cansado de terroristas ditando a pauta mundial e queira a velha ordem de volta. – Sim, ótimo, a velha ordem que envolvia a ameaça constante de destruição nuclear. – Mas a Guerra Fria também levou à maior escalada militar da história. E, fora a equação Israel-Palestina, naquela época ninguém realmente dava a mínima para o que acontecia no Oriente Médio, exceto no que dizia respeito ao petróleo. Não havia questões morais obscuras sobre certo e errado ou diferenças religiosas. Aquele era só um caso de bem versus mal. As pessoas não tinham que pensar sobre isso. Talvez algumas prefiram que seja assim, mesmo com a possibilidade do Armagedom. Droga, talvez muitas pessoas prefiram. Katie comeu sua última batata frita. – Sabe, aquele idiota do Pender nunca me pagou os 20 milhões de dólares. – E daí? – Daí que eu disse que, se ele não pagasse, contaria a verdade ao mundo. O rosto de Shaw demonstrou que ele entendera o que ela estava querendo dizer. – Katie, você sabe que isso a tornará um alvo. – Eu já sou um alvo. Com dificuldade, Katie foi para a beira da cama e pôs os pés no chão. – Shaw, eu passei toda a minha vida adulta tentando descobrir a verdade e não vou parar agora. E eles virem atrás de mim provavelmente é o único modo de sabermos a verdade. – Ela se esticou e tocou no braço dele. – Além disso, tenho você para me proteger. Shaw apertou a mão dela. – O.k., se fizermos isso, teremos que fazer do meu jeito. Haverá muitos riscos, mas você tem que confiar em mim. – Eu confio. Na verdade, sempre confiei.
À MEIA-NOITE DO TEMPO UNIVERSAL, Katie James apareceu em um vídeo divulgado no mesmo site que exibira o de Konstantin. Aquilo não foi uma coincidência. O vídeo tinha sido gravado por Shaw, no quarto de hotel dela. Os cabelos de Katie tinham voltado ao seu louro natural, embora ainda estivessem picotados. Ela falou clara e firmemente, sem recorrer a anotações. – Meu nome é Katie James e tudo o que escrevi em minha matéria anterior estava errado. Eu disse ao meu editor para não publicá-la, mas o jornal a divulgou assim mesmo, sem me consultar. Agora quero contar a verdade. Os chineses não estão por trás da campanha da Ameaça Vermelha. E os russos não foram os responsáveis pelo Massacre de Londres. Minha fonte, Aron Lesnik, mentiu. – Katie ergueu seu braço machucado. – Quase fui morta pelos verdadeiros responsáveis por tudo isso. – Ela fez uma pausa. – E quem são? Um homem chamado Richard Pender era um deles. Ele dirigia a Pender & Associates, sediada na Virgínia. Era especialista em gestão da percepção. Agora está morto. Foi assassinado por quem o contratou para divulgar mentiras e fazer o mundo acreditar que fossem a verdade. Konstantin era uma farsa. Assim como as dezenas de milhares de pessoas que pensamos que tinham sido assassinadas pelo governo russo. A “Tábua das Tragédias” era uma mentira. Ela fez uma pausa para criar impacto. Em seguida explicou: – Tudo isso foi feito com um objetivo: levar a Rússia e a China à beira da guerra. Por quê? Para que o mundo se rearmasse. Quem desejaria isso? Quem poderia se beneficiar com isso? Recentemente muitos países, incluindo a Rússia, a China, a GrãBretanha, a Inglaterra, a França e o Japão, fizeram encomendas de trilhões de dólares em armamentos a vários fornecedores militares, por causa dos eventos desencadeados pela Ameaça Vermelha. Alguém está tentando criar uma nova Guerra Fria, fazendo todos nós vivermos com medo da aniquilação. Mas isso não vai acontecer, porque não permitiremos. Portanto, seja quem for que estiver por trás de tudo isso, eis uma pequena mensagem minha. – Ela se interrompeu. – A verdade surgirá. E, acredite em mim, você não vai gostar quando isso acontecer. Junto com o vídeo de Katie, foram divulgadas para todas as grandes agências de notícias informações sobre o envolvimento e subsequente assassinato de Pender, com detalhes que visavam fazer seus colegas jornalistas se empenharem ao máximo para descobrir a verdade. Uma lista de fornecedores de armas que se beneficiavam com o novo entusiasmo pelo rearmamento foi postada na internet. Detalhes do assassinato de Lesnik e de como sua farsa havia sido descoberta foram enviados para dezenas de blogs importantes. Dizer que esses fatos se espalharam como um incêndio florestal teria sido um eufemismo. A reação global foi rápida. Dizem que o céu em todo o mundo se encheu da fumaça da queima das camisetas com o “Lembrem-se de Konstantin”. O Scribe tentou encontrar algo de positivo no que tinha feito com a matéria de Katie, descobriu que era impossível e Kevin Gallagher, seu editor, foi demitido. O FBI começou a enviar milhares de agentes para descobrir o assassino de Richard Pender. E o mesmo foi feito em Londres em relação ao massacre no Phoenix Group e à morte de Aron Lesnik. Todos os grandes fornecedores de armas fizeram declarações de que não estavam envolvidos na campanha da Ameaça Vermelha. De um modo muito parecido com o que havia acontecido com os russos, poucos acreditaram em suas negativas. Os departamentos de defesa de todos os grandes países receberam ordens de seus líderes para suspender todos os contratos de novos armamentos. Enquanto isso, os governos russo e chinês ordenaram uma interrupção em sua quase-guerra e o presidente Gorshkov e seu equivalente na China concordaram em se reunir em um local neutro para discutir as relações futuras entre os dois países. Contudo, o mundo queria mais. Muito mais. Queria saber quem havia mentido para ele. Queria o responsável por tudo aquilo. Para ontem.
NICOLAS CREEL ESTAVA SENTADO sozinho em sua suntuosa sala de conferências no Shiloh. Tinha recebido notícias de seus executivos na Ares. E nenhuma delas era boa. Todos os contratos estavam sendo suspensos. Vários trilhões de dólares escorriam por entre seus dedos. Aquela mulher idiota conseguira assegurar que o mundo permanecesse num atoleiro infernal em que os fracos e maníacos governavam os poderosos e civilizados. E ela era considerada uma salvadora? Ele, Nicolas Creel, era o único que podia ver a verdade? Com sua visão, o mundo seria um lugar muito mais seguro; agora tudo isso estava perdido. E ela ainda lhe custara seu especialista em gestão da percepção. Pender poderia ser substituído, mas Creel sabia que nunca encontraria alguém tão bom quanto ele. Por causa de Katie James, uma legião de investigadores pesquisaria todos os detalhes da origem da Ameaça Vermelha. E, apesar do grande esforço de Creel para manter seu envolvimento anônimo, alguém poderia ter a sorte de seguir seu rastro. Ele nunca iria para a prisão, é claro. Os ricos e poderosos nunca iam, independentemente dos crimes que tivessem cometido. Ele tinha advogados excelentes, uma conta bancária gorda e uma ótima reputação. Havia criado meios elaborados de se defender como parte de sua estratégia de saída no caso de um desastre. E seus homens tinham destruído todas as evidências no escritório de Pender. Não havia nenhuma prova direta. Suas impressões digitais não estavam em lugar nenhum. Pender estava morto. Ninguém mais sabia de seu envolvimento, exceto umas poucas pessoas que tinham tanto a perder quanto ele. Não era o medo de um julgamento que o esmagava agora. Era o sabor de uma terrível injustiça feita contra ele. Em vez de seu triunfo, em vez de o mundo ser recolocado em seu equilíbrio natural, um nome ecoava na Terra: Katie James. As pessoas estavam dizendo que ela salvara o mundo. Que havia corrigido um grande erro. A mulher era uma verdadeira heroína. Contudo, a única coisa que ela realmente havia feito fora ferrar com ele, concluiu Creel, e enfraquecer a parte do mundo que realmente importava. Ela teria que pagar por isso. Ele não era homem de guardar ressentimentos. Pelo menos não por muito tempo. Era impaciente demais. Tinha que lidar com o ofensor depressa. A vingança não era um prato que se comia frio. Era um prato que precisava ser servido ainda ardendo de raiva. Creel pegou o telefone. Podia não ter sua adorada Guerra Fria de volta, mas não haveria mais desastres. A começar por um em particular. – Não dou a mínima se você precisar explodir uma cidade inteira – disse ao telefone. – Ou você me traz a mulher em 48 horas ou nosso arranjo estará permanentemente acabado. E você também. Nicolas Creel deixou seu adorado Shiloh e foi de lancha até a praia. Passou as horas seguintes tratando com funcionários públicos italianos sobre a construção do novo orfanato. Depois disso rezou na capela, com a madre superiora ao seu lado. Naquela noite jantou em um restaurante local e dividiu uma garrafa de Chianti com o prefeito e a mulher dele, tentando se esquecer pelo menos por algumas horas da total desintegração de sua visão do mundo. Antes de voltar ao iate, visitou o local da construção. Ficou olhando para um buraco que havia sido escavado alguns dias antes. Muito em breve a fundação seria feita ali. Centenas de milhares de metros cúbicos de concreto seriam despejados naquele buraco. O lugar ficaria em pé por um século, fornecendo um telhado digno para muitos órfãos. Mas a fundação não seria feita até que Creel ordenasse. E ele ainda não ia fazer isso. Tinha algo muito especial com que queria abençoar aquele lugar. Uma dádiva que permaneceria ali por toda a eternidade. Ele pegou a lancha de volta para o Shiloh. E contou os minutos até a morte de Katie James. Aquilo não faria tudo ficar bem, é claro. Mas teria que bastar por enquanto.
FRANK E ROYCE ENTRARAM correndo na sala onde Katie estava sendo mantida sob o olhar vigilante de dois veteranos do FBI. – Acabamos de receber outra ameaça de bomba digna de crédito – disse Frank. – Devem ter descoberto onde ela estava. Há uma picape esperando aí na frente. Eles desceram apressadamente as escadas. Royce empurrou Katie para dentro da picape e depois gritou para Frank: – Esta é a terceira vez. É melhor a tirarmos logo do país, Frank. – Farei isso. – Para onde você quer que eu a leve desta vez? – Local quatro. Eu o encontrarei lá em 20 minutos. Royce balançou a cabeça com um ar cansado e sentou no banco ao lado de Katie. – Lá vamos nós de novo – disse ele gentilmente. – Sinto muito, Katie. O motorista acelerou e o homem ao lado dele, alto e corpulento, se virou para olhar para Katie, com uma grande arma na mão. Caesar sorriu e disse: – É um prazer tê-la conosco, Srta. James. Katie pareceu surpresa e então sentiu algo espetando seu braço. Olhou para a seringa se projetando dela e depois para Royce, que apertava o êmbolo até o fim. Quando a medicação entrou em sua corrente sanguínea, Katie caiu no banco. Royce tirou a agulha e fez um sinal afirmativo para Caesar. – Aparelhos de escuta? – perguntou Caesar. Royce examinou habilmente Katie em busca de dispositivos de vigilância e balançou a cabeça. Caesar entregou a Royce uma serra a bateria, que ele usou para cortar o gesso de Katie. Examinou-o minuciosamente e balançou a cabeça de novo.
A picape diminuiu a velocidade até parar. Royce saiu e jogou o gesso em um caminhão de lixo que passava por ali. E entrou de novo no veículo. – Se houver algum dispositivo no gesso, eles vão seguir em outra direção agora. Pise fundo! O motorista acelerou e a picape disparou para a frente, virou à esquerda e desapareceu. Oito horas depois, o avião particular aterrissou em um campo de pouso remoto na Itália. Um caminhão parou perto da aeronave e foi carregado com uma caixa tirada dele. Vários homens entraram no caminhão e foram embora. Uma hora depois, chegaram ao litoral italiano, onde o Mediterrâneo adquirira um brilho melancólico sob o sol poente. Uma lancha levou a caixa, Caesar, Royce e vários outros homens até o Shiloh. A tripulação havia tirado a tarde de folga. Somente o capitão permanecia a bordo, mas estava isolado na ponte superior. Visitantes especiais de natureza sensível tinha sido a única explicação dada ao homem. Ele tampouco pediu mais. Nicolas Creel estava sentado na biblioteca do iate, cercado pelas primeiras edições de livros que comprara ao longo dos anos. Ao contrário de alguns colecionadores, realmente os havia lido. Quando as portas se abriram e a caixa foi trazida para dentro, ele não sorriu. Na verdade, teve a sensação de que nunca voltaria a sorrir. Ele fez um sinal afirmativo com a cabeça para Royce. – Bom trabalho. Nunca tive nenhuma dúvida de que nossa associação me traria bons resultados. – Fico feliz em saber, Sr. Creel. O MI5 nunca reconheceu meu potencial. E certamente nunca me pagou o valor justo por ele. Creel olhou para Caesar. – Devemos deixar a ilustre Srta. James se juntar a nós? O homem grande abriu a caixa e tirou Katie de lá. Ela estava quase acordando. Caesar a colocou sobre uma mesa. Os homens ficaram em pé ali até ela despertar e olhar ao redor. – Bem-vinda, Katie – disse Creel. – Posso chamá-la de Katie? Embora nunca tenhamos nos encontrado, tenho a sensação de que a conheço muito bem.
Katie escorregou para fora da mesa e caiu em uma cadeira. Esfregou a cabeça e fez uma careta ao segurar o braço. – Onde está meu gesso? – Achamos melhor removê-lo – disse Royce. – Pode haver aparelhos de GPS embutidos nessas coisas. – Era só uma porcaria de gesso, seu idiota. – Katie ergueu o braço, onde o corte em sua pele era claramente visível. – É o que você diz. Katie voltou sua atenção para Creel. – Eu conheço você – disse. – Nicolas Creel. Qualquer jornalista que se preze o conhece. – Estou lisonjeado. Mas você não parece muito surpresa. – Depois que refleti sobre algumas coisas, a lista de suspeitos foi bastante reduzida. – Ela olhou de relance para Royce. – Mas não suspeitei do envolvimento dele. Agora Creel sorriu de verdade. – É claro que não. Mas sempre se deve ter uma margem de segurança. Uma fonte interna. E o Sr. Royce partilha minha visão de como o mundo deveria ser. Uma visão que você destruiu. E não posso calcular quanto você custou à humanidade. – Eu custei? Impedindo que a China e a Rússia entrassem em guerra? – Nunca haveria uma guerra, sua idiota! – rugiu Creel. – A Guerra Fria foi o período mais seguro que a humanidade já experimentou. Meu plano teria libertado o mundo. É isso que eu era, um libertador – disparou ele, enquanto Katie o olhava, incrédula. – Agora você garantiu que seremos eternamente regidos por selvagens que não têm nenhum respeito pela vida humana. Eles acabaram com todo o equilíbrio, todas as possibilidades de diplomacia. E estamos tão perto da aniquilação global quanto sempre estivemos, graças a você, Katie James. – Ele disse o nome dela como se fossem as duas palavras mais repulsivas que seus lábios já haviam proferido. – Sim, estou certa de que isso desapontou você. Mas acho que está realmente chateado por ter perdido todos aqueles dólares.
– Posso lhe garantir que tenho dinheiro suficiente. Mas Theodore Roosevelt estava certo. Fale com suavidade e carregue na mão um grande porrete. Os melhores presidentes dos Estados Unidos sabiam que o poder militar era a chave para tudo. Tudo! – Sim, a guerra é ótima, não é? – Você construiu sua carreira cobrindo guerras, portanto não tem do que reclamar. A glória sempre vai para o vencedor. – Não cobri essas guerras por escolha. E minhas reportagens mostraram o horror da guerra. Nunca vi nenhuma glória nisso. – Obviamente você não olhou com atenção. A história política é definida por esses confrontos. – Um general famoso não disse que é bom que a guerra seja tão terrível porque de outro modo gostaríamos muito dela? – Esse foi o general confederado Robert E. Lee, na batalha de Fredericksburg. E, como a história mostrou, ele foi um perdedor. Só lido com vencedores. – Já esteve nas Forças Armadas, Sr. Creel? Já levou um tiro ou pelo menos tentaram lhe dar um? – Ele não respondeu. – Bem, eu já. E lhe digo que entre as pessoas que realmente lutam nas malditas guerras não há vencedores nem perdedores. Só sobreviventes. – Bem, eu não a trouxe aqui para um sermão. Eu a trouxe aqui para morrer. Mas queria que soubesse por quê. E quero que morra sabendo que a culpa é toda sua. Katie se aproximou um pouco dele. – Posso lhe dizer uma coisa? – Todo condenado tem direito às últimas palavras. – Vá se ferrar! – Brilhante, Srta. James. Como você é hábil com as palavras! A porta se abriu e um de seus homens entrou. – O senhor tem uma visita, Sr. Creel – anunciou ele em voz baixa. Depois de ouvi-lo, Creel disse: – Tire-a do iate agora.
– Senhor – insistiu o homem –, ela mencionou algo sobre ter visto alguns arquivos no computador do seu escritório. Creel arregalou um pouco os olhos. – Entendo. Está certo, já vou. A esposa dele aguardava no corredor, com sapatos de salto alto e uma saia curta. Dois dos homens de Creel estavam perto dela. – Minha querida, que surpresa agradável! Em resposta, ela deu um tapa na cara dele. Os capangas a agarraram e contiveram. – Você acha que pode simplesmente me jogar fora como se eu fosse um monte de lixo? – gritou Hottie. – Depois do que fiz por você? E para você? Seu desgraçado! Sou a Sra. Nicolas Creel e vou continuar sendo. – Entendo que você esteja chateada. Mas todas as coisas boas terminam e a pensão do divórcio é mais do que generosa. – Você não vai se divorciar de mim. Sei de coisas – disse ela, com um tom triunfante na voz. Quando Creel a olhou com frieza, ela se apressou a continuar: – Sei que você acha que sou uma estúpida. Mas lembra-se de que eu lhe disse que gostava do seu escritório? Bem, não foi pelo motivo que pensou. Descobri que é sempre bom ter um pouco de munição para o caso de as pessoas ficarem com o ego muito inflado. Então chequei o seu computador. Sabe, Nick, quando você se divorciou de sua última mulher deveria ter parado de usar o nome dela como senha. E, pelo que vi, você realmente tem sido um garoto mau. – Bem – começou Creel de forma agradável. – Isso muda totalmente as coisas. Venha comigo e conversaremos. – Ele olhou para seus homens. – Mandem a lancha dela embora. Não será necessária. Ela ficará comigo. Hottie olhou lentamente ao redor, para os homens na sala, e depois seu olhar pousou em Katie. – Conheço você, é Katie James. Creel olhou para Hottie com uma falsa tristeza. – Acho que você não poderia ter escolhido um momento pior, minha querida. E, a propósito, vir aqui sozinha para me dizer o que sabe mostra que realmente é estúpida.
Ele olhou para Royce e fez um sinal afirmativo com a cabeça. Royce sacou seu revólver e cravou uma bala no cérebro de Hottie. A mulher caiu morta para a frente sobre a mesa, escorregou e se estatelou no chão. O telefone tocou. Era o capitão. Um barco se aproximava do iate. – Quem é? – Parece a polícia italiana, senhor. Um dos barcos que patrulham o perímetro do Shiloh. Creel olhou para Caesar. – Dope a jornalista. Há um saco para cadáveres na casa de máquinas. Enfie-a lá dentro e leve ela e aquilo – ele apontou para a mulher morta – para o submarino. Depressa. Royce arrastou Katie à força para baixo enquanto Caesar enfiava uma agulha nela. O corpo de Katie amoleceu e ela caiu de novo. Quando os dois homens saíram apressadamente com Katie e a mulher assassinada, Creel ajeitou sua jaqueta e foi calmamente para o deque superior cumprimentar seus visitantes.
APÓS SE LIVRAR DE seu aparelho de propulsão subaquática e sua máscara de mergulho com um pequeno tanque de oxigênio embutido, Shaw emergiu da água e subiu pela lateral esquerda do Shiloh encostando suportes imantados no casco de aço. Mesmo com a ajuda dos suportes, foi difícil escalar o barco com seu braço machucado. Ele tinha tomado uma injeção de cortisona, porque sabia que as coisas provavelmente ficariam violentas, mas o braço ainda estava fraco. Shaw olhou para o aparelho transmissor amarrado em sua cintura. Katie estava em algum lugar dentro daquele iate de nove andares. Quando ela foi raptada, Shaw pôs seu plano em ação. Eles a haviam rastreado por satélite, seguido o jato particular e visto a lancha se dirigindo para o Shiloh. Frank estava preparado para qualquer eventualidade e levara com eles tudo de que Shaw precisaria para invadir praticamente qualquer lugar. Eles haviam concordado em que Shaw iria primeiro e os chamaria no momento crítico. O Shiloh certamente tinha sistemas de segurança eletrônica de primeira linha, motivo pelo qual Shaw usava um dispositivo de interferência em transmissões de rádio ou radar ao redor de sua cintura. Isso o tornaria invisível a praticamente tudo que o barco pudesse atirar nele. A maior preocupação era a sobrevivência de Katie. Embora ela pudesse ter sido assassinada em qualquer momento durante o percurso, eles concluíram que quem estivesse atrás dela tinha em mente um encontro cara a cara, afinal de contas, esse era o único modo de confrontar alguém. Aquilo era incrivelmente perigoso. Contudo, Katie não havia voltado atrás, embora eles tivessem lhe dado muitas chances de fazer isso. A admiração de Shaw pela coragem dela nunca tinha sido maior. Agora só precisava tirar os dois dali inteiros. Shaw pegou uma arma em sua sacola à prova d’água, viu uma porta e se esgueirou por ela. www Um minuto depois o barco da polícia chegou ao iate.
No deque, Nicolas Creel recebeu gentilmente o policial uniformizado e falou na língua nativa dele. O policial pareceu constrangido por incomodar o bilionário. Creel lhe ofereceu uma taça de vinho e perguntou em que poderia ajudá-lo. O policial disse que havia recebido informações da costa de que uma mulher muito zangada havia embarcado em uma lancha e seguido para o iate. – Nós vimos uma lancha passar, mas, como era a Sra. Creel, a deixamos seguir. Depois recebemos uma descrição da mulher zangada que correspondia à da sua mulher. – O homem pareceu constrangido e disse desajeitadamente: – Então viemos aqui para ver se... estava tudo bem, senhor. Creel riu e agradeceu ao homem por sua preocupação. – Sim, minha mulher exagerou um pouco na bebida, mas não é perigosa. Na verdade, posso garantir que ela nunca machucará ninguém. – Tem certeza? – Sim. Só lamento que tenha tido todo esse trabalho para nada. – Não foi trabalho algum, Sr. Creel. Quando o homem voltou para sua lancha, Creel lhe bateu uma pequena continência. www Shaw desceu para as entranhas do barco e ficou surpreso por não esbarrar com ninguém no caminho. A ausência da tripulação não o fez se sentir melhor, apenas mais paranoico em relação a estar sendo enganado. Essa cautela lhe foi útil, porque ele hesitou por uma fração de segundo antes de fazer uma curva. Um homem armado passou e um segundo depois caiu no chão com o crânio quebrado. Shaw continuou a andar, olhando para o rastreador em sua cintura. Estava se aproximando de Katie. Mas o transmissor não podia lhe dizer se ela ainda estava viva. Ele sentiu uma pontada de culpa no peito. Nunca deveria ter lhe pedido para fazer isso, mesmo se ela quisesse. Havia muitas maneiras de tudo dar errado. Shaw chegou a um conjunto de portas duplas e abriu uma. À sua frente havia um cinema ricamente decorado. Seguindo pelo corredor, sentiu cheiro de cloro. Abriu uma porta e o cheiro se intensificou. O dono daquela cidade flutuante tinha uma piscina coberta. Ele sentiu a presença antes de propriamente ver a pessoa. Shaw e o homem colidiram e o impacto jogou os dois na água. Um dos braços do homem envolveu o pescoço de Shaw. Ele agarrou a mão de seu oponente e seu dedo foi ferido pela faca que o homem segurava. Shaw dobrou o pulso do homem para trás, quebrando-o. Pegou a faca, girou-a e a enterrou na lateral do corpo do homem. A pressão em seu pescoço diminuiu. Shaw deu outra facada no peito dele e se libertou. Quando saiu da piscina, viu o corpo afundar na água agora vermelha. Felizmente, tinha perdido sua arma antes de cair na piscina. Ele a pegou, abriu a porta e saiu correndo. Parou bruscamente. Royce apontava uma pistola para ele. – Aquilo foi muito fácil. Não chegou a me impressionar. Agora largue a arma. Shaw largou sua arma e murmurou: – Como é a sensação de ser um policial corrupto, Royce? – Quando não apareci com Katie, acho que você entendeu tudo. – Não, eu descobri antes. Royce ergueu a cabeça, sua expressão revelando desconforto. – Como? – Isso não lhe interessa. – Por quê? – Porque você vai morrer. Royce brandiu sua pistola, recuperando a confiança. – Você realmente é um idiota. Bem, estou certo de que quer ver a pequena Katie. Então vamos. Acabaremos com vocês dois juntos. Ela está no submarino – acrescentou ele. – Que tal? O homem tem seu próprio submarino. Isso é que é poder. Shaw passou a mão por seu cinto, apertando uma pequena ondulação nele que enviou um sinal de perigo para Frank. – Vou lhe dizer uma coisa, Royce. – É mesmo? O quê? – perguntou Royce com um olhar de desprezo. – Já se deu o trabalho de examinar seu relógio? Porque pusemos um aparelho de escuta nele. Royce olhou de relance para o relógio em seu pulso. No momento seguinte ele estava apertando o peito, de onde o cabo da faca se projetava, o sangue de seu coração perfurado já saindo pelo ferimento. Ele olhou para Shaw, que lhe perguntou: – Está impressionado agora? Quando Royce tombou, Shaw já havia passado por ele a caminho do submarino. E de Katie. O interior do Shiloh era uma série de enormes hangares, com o submarino de 35 toneladas parado em um dique seco no centro de um deles. Shaw observou os homens montando guarda. Havia três, um deles, de cabelos pretos compridos e encaracolados, maior do que Shaw. Um rádio zumbiu na mão do homem. Ele atendeu, disse algo que Shaw não conseguiu entender e saiu às pressas com os outros dois. Shaw subiu no submarino, ergueu a escotilha e entrou. Procurou o mais rápido que pôde. Ao ver o braço e as pernas de uma mulher embaixo de um banco, nos fundos da embarcação, sentiu seu coração quase parar. Quando puxou a mulher e viu seus cabelos louros, ficou paralisado. Ao constatar que não era Katie, voltou a respirar. Então viu o saco para cadáveres e sentiu tudo aquilo de novo. Ele abriu o zíper com dedos trêmulos. Então ouviu outro som. Os homens estavam voltando.
TIREM-NA DAQUI AGORA. E a enterrem no buraco para a fundação do orfanato – ordenou Creel aos dois homens que seguravam o saco para cadáveres. – Ponham-na em uma caixa. Eu providenciarei tudo no local da construção. Direi a eles que é uma cápsula do tempo. Onde está Royce? – perguntou ele a Caesar. – Em algum lugar por aqui. Um dos homens perguntou: – Quer que a matemos primeiro, Sr. Creel? – Não. Quero que ela acorde e perceba que foi enterrada viva. Dizem que não há medo maior no mundo. Quero que ela sinta esse horror. O saco para cadáveres foi colocado na lancha e os homens partiram. – E agora? – perguntou Caesar a Creel. – Agora você vai desaparecer. Até a próxima vez. – Acho que não. Os dois se viraram devagar. Shaw apontava uma arma para eles. Creel se assustou ao ver quem era, mas logo se recuperou. – Seu nome é Shaw, não é? – Não houve resposta. – Sei de sua ligação com essa história, por isso duvido que eu consiga suborná-lo para que vá embora. – Shaw continuou sem dizer nada. – Então parece que estamos num impasse – concluiu Creel. Shaw apontou sua arma para a cabeça de Creel. – Não é como vejo as coisas. – Sr. Creel? O capitão estava olhando assustado para eles dos degraus que levavam ao deque superior. Shaw tirou os olhos dos dois homens apenas por um instante. Ainda assim, foi tempo de mais. O tiro disparado por Caesar passou de raspão por sua cabeça.
Shaw imediatamente rolou para a esquerda e reagiu com quatro tiros seguidos. Creel já havia se escondido atrás da área do bar enquanto Caesar procurava um lugar mais alto para que tivesse um ângulo melhor para atirar. Shaw arruinou esses planos atingindo-o no pé. Caesar esvaziou o pente na direção de Shaw. Um momento depois, quando Shaw se preparava para dar o tiro mortal, sua arma emperrou. Caesar se arrastou escada acima com Shaw atrás dele. Os dois gigantes se colocaram em posição defensiva no deque superior. Depois de alguns socos para testar as defesas um do outro, Caesar deu um murro no braço ferido, mas insensível, de Shaw e, em troca, recebeu um soco no estômago. Depois tentou uma cabeçada. Como era mais pesado, conseguiu derrubar Shaw e os dois voaram contra o console da ponte. Caesar agarrou a camisa de Shaw e quase a rasgou. Shaw tentou segurar as pernas de Caesar, que, demonstrando considerável agilidade para um homem de seu tamanho e apesar do ferimento em seu pé, se pôs fora de alcance e depois atacou. Ele agarrou o pescoço de Shaw e começou a apertá-lo. Shaw pôs uma das mãos sob o queixo de Caesar e tentou empurrar a cabeça dele para trás, mas o outro se esquivou da mão de Shaw, passou para trás dele e lhe deu uma gravata. Shaw tentou se soltar, mas logo percebeu que, mesmo se estivesse em plena forma, Caesar ainda seria mais forte. Seus olhos começaram a ficar esbugalhados e seus joelhos se dobraram. Caesar, obviamente pressentindo a vitória, disse: – Primeiro a sua mulher e agora você. Belo par. Ela morreu sem fazer nenhum barulho quando meti a bala em seu cérebro. – Ele aumentou a pressão. – E posso ver o mesmo fim silencioso para você, idiota. Ao ouvir aquelas palavras, a mente de Shaw se esvaziou por completo e depois, com um grito, ele se libertou da gravata de Caesar. Shaw dobrou tanto e com tamanha violência o braço do homem para trás que o destroncou. – Você... – começou Shaw.
Caesar caiu de joelhos, vomitando de dor. Shaw o atingiu no rosto com um de seus sapatos tamanho 46, fazendo-o cair de costas. – Está... Uma faca brilhou na mão boa de Caesar, mas apenas por um segundo antes de Shaw arrancá-la com uma força proveniente da raiva. Ele enfiou a lâmina no estômago de Caesar e depois a arrastou por seu peito, abrindo caminho entre carne e osso até a garganta dele. Caesar estava prestes a morrer quando Shaw pegou sua pistola, a desemperrou, recarregou, apontou e disparou em sua testa. – Morto – concluiu Shaw.
UM GRANDE HELICÓPTERO CIRCUNDOU o Shiloh. Através de um sistema de alto-falantes, a voz de um homem disse: – FBI! Estamos abordando esse barco. Aqui fala o FBI! Estamos abordando esse barco. A 100 metros de distância, o barco da polícia italiana deslizava em direção ao iate. Quando o helicóptero pousou no heliponto e o barco da polícia foi amarrado ao iate, Nicolas Creel estava de pé em meio a tudo aquilo, impassível. O FBI e Frank queriam prender Creel imediatamente. A polícia italiana insistiu em que isso não poderia ser feito. Eles passaram os 20 minutos seguintes discutindo esse assunto, sem nenhum progresso de qualquer uma das partes. – O Sr. Creel está em águas italianas. – O que o FBI quer comigo, afinal? – disse Creel inocentemente. – Não pode me acusar de evasão de impostos. Não sou um cidadão americano. Frank aumentou a voz: – Evasão de impostos! Que tal criação de desordem global? O que diz disso, idiota? Creel se virou para o capitão da polícia italiana. – Não tenho a menor ideia do que esse homem está falando. Eles invadiram meu iate. Deram tiros. Alguns dos meus homens foram feridos, talvez até tenham sido mortos. Eu é que devia estar prestando queixa. Vocês estavam bem aqui, oficial. Viu algo errado? O policial olhou com firmeza para Frank. – Nada, Sr. Creel. E agora escoltarei estes homens para a costa. – Vou junto para prestar queixa contra eles. – Não vamos a lugar nenhum – disse um agente do FBI. – Temos todo o poder dos Estados Unidos do nosso lado. – Bem, vocês não estão nos Estados Unidos – retorquiu o policial. – Não têm poder algum aqui. – Na verdade, têm sim.
Todas as cabeças se viraram quando Shaw desceu as escadas da ponte. Creel ergueu os olhos para ele. – Estou ouvindo. – Por causa do sequestro de uma cidadã americana – disse Shaw. – Quem? – disparou o policial italiano. – Katie James! – bramiu Frank. – Suponho que tenha ouvido falar nela. – Está dizendo que ela está aqui? – perguntou o oficial. – Não está – disse Creel, assertivo. – Não mesmo? Todos se viraram quando Katie entrou no deque. Agora Creel estava pálido e olhava para a água, desnorteado. – Seus homens levaram a mulher morta, imagino que fosse sua esposa, no saco para cadáveres, depois que Shaw fez a troca – disse Katie. – Eles não se deram o trabalho de checar se era eu que estava lá. Tínhamos mais ou menos o mesmo tamanho e peso. O policial italiano olhou para Creel. – Sua mulher está morta? – Claro que não. Ela não está aqui. Mandei que a levassem de volta para a cidade. Deve ter visto a lancha passar. – Então como Katie chegou aqui? – perguntou Frank. – Do mesmo modo que ele – respondeu Creel, apontando para Shaw. – Obviamente, invadindo uma propriedade particular. Katie ergueu seu braço quebrado. – O rastreador não estava no gesso. Estava em mim. – Ela apontou para o ferimento em seu braço. – Eles me cortaram no mesmo lugar de minha fratura exposta e o puseram aqui dentro. – Ela olhou para Shaw. – Essa é uma técnica que só conheci recentemente. – Foi assim que a seguimos até aqui – disse o agente do FBI. – E depois recebemos um sinal de perigo de Shaw e viemos.
– Estou confuso – disse o policial italiano. – Do que se trata tudo isto? – Deste homem – começou a dizer Katie antes de Creel a interromper. – Ela anda fazendo acusações absurdas na internet. Agora suponho que vai dizer que tenho uma mente criminosa, o que é totalmente ridículo. – Ele me sequestrou – disse Katie. – Não sequestrei. É sua palavra contra a minha. O tipo de coisa que não é aceita em um tribunal. – O Sr. Creel está construindo um orfanato em nossa cidade – disse o italiano. – Não ligo a mínima para se ele está cobrindo de ouro todas as suas estradas – exclamou Frank. – Vamos levá-lo conosco. – Acho que não. – Oficial, vou ficar aqui no meu iate – disse Creel. – Telefonarei para meu advogado e lidaremos com toda esta história do modo correto, como manda a lei. – Ele também tem um submarino aqui – salientou Shaw. Creel revirou os olhos. – Ah, sim, vou escapar num submarino. Muito James Bond. – Ele estudou Shaw atentamente. – Mas acredito que os fatos mostrarão que há um criminoso violento a bordo. Este homem matou meu guarda-costas pessoal. Vejam o sangue nas mãos e na camisa dele. Shaw realmente estava coberto com o sangue de Caesar. – Subam e vejam por si mesmos – acrescentou Creel. Um dos policiais correu para cima e voltou pálido, fazendo o sinal da cruz. – Meu Deus, ele foi rasgado. O oficial olhou para Shaw. – Você matou aquele homem? – Sim. – Enfim, uma confissão – disse Creel, triunfante.
– Foi em legítima defesa. Não fiquei assim sozinho – disse Shaw, mostrando seu rosto machucado e sua camisa rasgada. – Isso será decidido por um tribunal italiano. Oficial, por favor tire esse assassino do meu barco imediatamente. O policial e seus homens sacaram suas armas. Frank e os agentes do FBI fizeram o mesmo. – Não – disse Shaw. – Eu vou com eles. Ele olhou para Creel. – Isto ainda não terminou. – É claro que não. Você fará suas acusações ridículas e minha equipe de advogados as refutará e, quando isto estiver terminado, ainda serei um homem livre amado pelo mundo enquanto você apodrecerá na prisão. É isso que chamo de justiça. Shaw se lançou contra Creel antes de ser contido. Ninguém o viu pôr algo no bolso do homem. Ofegante, Creel disse: – E agora você pode acrescentar agressão à lista de acusações. – Vamos, Shaw – disse Frank. – Resolveremos tudo isto. E você – disse ele, apontando para Creel –, tente sair do barco num submarino, num helicóptero ou numa nave espacial e pode dar adeus à vida. – Adeus, cavalheiros. Estou louco para resolver tudo isto no tribunal e ver cada um de vocês devidamente punido – disse Creel friamente. Ele encarou Shaw e deu um sorriso largo. – E pensarei em você sempre que estiver em meu iate. www Quando o helicóptero e o barco foram embora, Nicolas Creel se retirou para sua cabine. Tinha muitos telefonemas a dar para contornar aquela confusão. O primeiro seria para os homens que naquele momento estavam plantando sua quarta esposa em solo italiano. Mas ele resolveria tudo. Sempre resolvia. Só precisava de um pouco de tempo, dinheiro e engenhosidade, além de coragem. Era sempre isso o necessário. Creel tirou um charuto do humidor e procurou o isqueiro em seu bolso. Sua mão se fechou em volta de um objeto metálico, mas não era um isqueiro. Pegou-o. Era fino e achatado. Como diabo aquilo tinha ido parar em seu bolso? Ele o olhou bem de perto. Aquilo era uma mancha de sangue? Também sentiu o cheiro de algo que lhe pareceu remotamente familiar. Ele não tinha como saber que naquele momento Shaw segurava um controle remoto. Com suas mãos algemadas no barco da polícia, ele olhou para Katie, que estava ali perto. Katie olhou para ele – mais especificamente, para sua camisa rasgada. Somente ela parecia ter notado que os pontos que Leona Bartaroma, a guia de turismo/cirurgiã aposentada de Dublin, dera no braço de Shaw haviam sido abertos. Então Katie viu o pequeno dispositivo na mão de Shaw e ergueu a cabeça para ele. Quando seus olhos se encontraram, Shaw começou a dizer algo, mas Katie balançou a cabeça. – Tudo bem, Shaw. Faça o que tem que ser feito. Katie apertou a mão dele e desviou o olhar. Enquanto o helicóptero do FBI voava sobre eles, Shaw olhou para o mar, onde o aço flutuante do Shiloh ocupava uma grande área, como uma baleia de barriga para cima. Mas ele não estava pensando nos brinquedos aquáticos de bilionários comprados com o dinheiro da morte. Nem nos mestres em gestão da percepção, como o falecido Pender. Tampouco estava preocupado em ir para uma prisão italiana por matar Caesar. Naquele momento, nem mesmo a verdade lhe interessava. Contra o céu escuro, Shaw pensou poder ver Anna olhando para ele, talvez acenando, ele não tinha certeza. Eles eram apenas duas pessoas tentando se amar num mundo que nem sempre permitia que isso acontecesse. Tinham sido pegos num pesadelo que não fora criado por eles. Shaw estava tão furioso com tudo aquilo, tão paralisado por uma perda que nunca conseguiria entender totalmente nem superar, que pensar nela era tudo o que podia fazer para conseguir apertar o botão no pequeno controle remoto em sua mão. Olhando para o rosto de Anna no céu, encontrou forças para isso. Quando terminou, atirou o controle na água, onde ele desapareceu, provocando apenas uma ligeira ondulação. Os efeitos em outro lugar seriam muito mais duradouros.
Em sua cabine, Creel sentiu o objeto de metal esquentando. Era a última coisa que sentiria. Quando ouviu os gritos e sentiu o cheiro de fumaça, o capitão desceu correndo as escadas e entrou na cabine. O ponto onde Creel estivera sentado era agora apenas uma massa escura de cinzas e ossos no chão. Exames posteriores mostrariam que eram os restos do homem, embora não se parecessem mais com um ser humano. Mais tarde o capitão testemunharia que Creel estava totalmente só quando morreu. Por isso ninguém jamais conseguiu explicar o que exatamente acontecera. Ou por que Nicolas Creel havia cometido suicídio usando um dispositivo incendiário à base de fósforo altamente letal.
NA MANHÃ SEGUINTE A polícia local descobriu o corpo da Sra. Creel em uma cova recém-aberta no fundo do buraco escavado para a fundação do orfanato. Alguns minutos depois, Shaw foi solto de uma prisão italiana. Ele saiu como um homem livre, com uma camisa nova e o braço ferido suturado, uma cortesia de um médico local chamado à prisão. Demoraria muito tempo para se descobrir, catalogar e dissecar o que havia acontecido com a Ameaça Vermelha, Nicolas Creel e a Pender & Associates. Mas, apesar disso, as potências mundiais, inclusive os Estados Unidos, a Rússia e a China, decidiram que aquela verdade nunca poderia ser revelada ao público. E cada pedaço de informação descoberto sobre a grande trama de Nicolas Creel era imediatamente considerado confidencial e enterrado para sempre. Poderia parecer surpreendente que isso fosse possível, mas também era verdade que esses “enterros” aconteciam o tempo inteiro, em todo o mundo. Katie, Shaw e Frank, entre outros que sabiam dos detalhes, tiveram de jurar segredo pelo resto de suas vidas. A princípio, Katie não aceitara isso muito bem. – Por que manter isso em segredo? Para que possamos cometer o mesmo erro de novo? Disseram-lhe que, se o mundo soubesse quão perto havia chegado do Armagedom e como os governos em todo o planeta foram enganados, isso faria as pessoas perderem a confiança em seus líderes. – Bem, talvez elas devessem perder mesmo – retrucara Katie. Contudo, quando o presidente dos Estados Unidos foi pessoalmente lhe expôr suas razões e apelar para o patriotismo de Katie, ela enfim cedeu. Mas fez uma advertência: – Da próxima vez, por que as pessoas não pensam nessas coisas antes de fazer julgamentos apressados? Que tal usar essa estratégia? Por fim o mundo deixou para trás esse evento quase cataclísmico e seguiu em frente, como sempre parecia fazer. Poderia não estar tão seguro quanto esteve durante a Guerra Fria, mas pelo menos essa não era uma mera percepção de segurança baseada em mentiras. Shaw, Katie e Frank viajaram para Londres, onde houve uma cerimônia em memória das vítimas do Massacre. Os pais de Anna compareceram, mas Shaw se manteve afastado deles. Ser atacado por Wolfgang Fischer em uma catedral de Londres não era o modo como queria homenagear a mulher que amava. Shaw viajou mais uma vez para Wisbach, para visitar o túmulo de Anna. No segundo dia em que estava lá, Katie e Frank chegaram ao vilarejo sem que ele soubesse e bateram na porta da casa dos Fischer. Wolfgang, parecendo muito velho e cansado, atendeu. – Sou Katie James. Este é Frank Wells – disse ela. Wolfgang olhou desconfiado para eles. – O que vocês querem aqui? Frank disse, nervoso: – Digamos que eu precise esclarecer os fatos sobre Shaw. – Não quero saber sobre aquele homem – disse Wolfgang, seu rosto ficando vermelho. – Sim, acho que quer – disse Katie com firmeza. – Por quê? – Porque ele merece isso. Merece a verdade. E você precisa fazer isso por Anna. – Por Anna? O que quer dizer com isso? – Sua filha era brilhante, linda, bem-sucedida e totalmente apaixonada por aquele homem. E você precisa entender por quê. – Deixe-os entrar, Wolfgang. Todos eles olharam para Natascha, que estava em pé atrás do marido. – Deixe-os entrar e vamos ouvi-los. Ela está certa. Devemos isso a Anna. Frank e Katie passaram por Wolfgang e durante as horas seguintes os quatro conversaram sobre o que realmente havia acontecido.
– Meu Deus! – exclamou Wolfgang quando aquilo terminou. – Eu gostaria de ver Shaw. Diga a ele, diga a ele... – Wolfgang olhou, desamparado, para sua mulher. – Diga a ele como nos sentimos, que agora é diferente – concluiu Natascha. – Sim – disse Wolfgang. – É diferente. – Peguem seus casacos – disse Katie.
SHAW ESTAVA SENTADO NO chão perto do túmulo de Anna. As folhas começavam a balançar e o vento estava frio. Era bom estar naquele lugar, como se ela ainda vivesse. Sua presença parecia muito real. Shaw poderia ficar ali para sempre. Ele ouviu passos se aproximando muito antes de ver alguém. Levantou-se e olhou para o grupo, liderado por Wolfgang. Shaw começou a se afastar furtivamente do túmulo de Anna até que viu Katie e Frank. Então parou, sem saber ao certo o que estava acontecendo ou o que deveria fazer. Wolfgang caminhou diretamente para ele. – Estas pessoas – ele apontou para Katie e Frank – nos disseram coisas sobre o que aconteceu. – Eles nos disseram a verdade, Shaw – disse Natascha, segurando a mão dele. – E estamos muito arrependidos do modo como o tratamos. – Sim, muito arrependidos – acrescentou Wolfgang, com um olhar culpado. Shaw olhou rapidamente para Katie e Frank. O homem não o encarou. Em vez disso, manteve o olhar fixo no chão. Katie lhe deu um sorriso encorajador. Wolfgang passou seus braços em volta de Shaw, enquanto Natascha abraçava os dois. Logo lágrimas escorriam pelos rostos dos Fischer. Até mesmo os olhos de Shaw ficaram úmidos e seus lábios tremiam ocasionalmente, enquanto os três falavam em voz baixa e ficavam abraçados ali, perto do lugar onde jazia Anna. Katie precisou enxugar as lágrimas enquanto os observava. Frank finalmente sussurrou: – Não aguento mais isto. Não sou bom com essas coisas emocionais, Katie. Lido melhor com uma Glock 9 milímetros enfiada na minha garganta do que com isto. – Ele se virou e foi embora, mas Katie pensou ter ouvido um pequeno soluço escapar de seus lábios. Quase uma hora depois, Wolfgang e Natascha foram embora.
Katie caminhou lentamente até Shaw, que permanecia de pé ao lado do túmulo. – Obrigado pelo que você fez – disse ele, seu olhar no monte de terra. – Como se sente? – Parte de mim sabe que Anna está morta. A outra parte... simplesmente não consegue aceitar. – O luto é uma coisa estranha. Dizem que é um processo com fases distintas. Mas parece muito diferente para cada pessoa. E você se sente tão só que não sei como podem chamar isso de outra coisa além de uma espécie de inferno aleatório... personalizado. Shaw se virou para ela. – Você perdeu alguém? Katie deu de ombros. – Todos que vivem perderam alguém. – Quero dizer alguém em particular. Katie abriu a boca, mas a fechou igualmente depressa. – É por isso que bebe tanto? – disse ele devagar, seu olhar agora nas árvores coloridas. Katie pôs as mãos nos bolsos de seu casaco e revolveu a terra com a ponta de seu pé. – O nome dele era Behnam. Era um garotinho que se tornaria um bom homem, mas não teve chance de crescer. E a culpa foi minha. Ganhei meu segundo Pulitzer e ele acabou em um buraco em Kandahar. – Ela respirou fundo. – E sim, é por isso que bebo muito. – Você nunca se esquecerá dele, não é? – Nunca. Não posso. – Ela conteve um soluço. – Sei como se sente – disse Shaw. Ele pôs uma das mãos no ombro dela. – Adeus, Katie. Cuide-se. Ele se virou e foi embora. Após alguns segundos, Katie não pôde mais vê-lo. Ela ficou ali sozinha entre os mortos. Olhou para o túmulo de Anna, se abaixou e moveu as flores que Shaw havia posto perto da lápide. Nas poucas palavras gravadas no granito, viu a vida e a lembrança de uma mulher notável e a imagem pungente do homem que a amara em vida e que claramente ainda a amava na morte. Katie se levantou, virou-se e caminhou lentamente de volta para o mundo dos vivos. Então começou a correr.
Shaw ouviu o som de passos se aproximando atrás dele. Virou-se e seu rosto demonstrou surpresa quando a avistou. – O que foi? Você está bem? – Só agora percebi que não tenho como sair daqui. – Posso lhe dar uma carona para algum lugar. – Shaw olhou para o relógio. – Podemos chegar a Frankfurt em uma hora e meia. De lá, você pode pegar um voo para Nova York. Talvez chegue em casa a tempo de um jantar tardio em seu restaurante favorito. – Não quero ir para Nova York. – É lá que você mora, não é? – Nunca tive uma residência fixa em toda a minha vida adulta. E estou desempregada. – Você provavelmente poderia substituir Amanpour na CNN agora. – Não quero isso. – Então o que você quer? – Uma carona. – O.k., mas para onde? – Falaremos sobre isso no caminho. Eles olharam um para o outro. Os olhos de Katie brilhavam e Shaw desviou os dele para a calçada. Disse, hesitante: – Katie, eu não posso... Ela pôs uma das mãos na boca de Shaw. – Sei que não, Shaw. E, se você tivesse dito algo diferente disso, eu já teria ido embora. Não é isso que quero.
– Então o que você quer? Katie desviou os olhos para a noite de Wisbach antes de olhar de novo para ele. Quando falou, sua voz pareceu se vergar com o peso de suas palavras: – Sou alcoólatra. Estou desempregada. Não tenho muitos amigos. Na verdade, acho que não tenho nenhum amigo. E estou apavorada, Shaw. Morrendo de medo de que isso seja tudo o que me resta. E, se você me disser para ir para o inferno, eu lhe direi que nós dois já estivemos lá e que não é tão ruim quanto as pessoas pensam. Enquanto o vento soprava as folhas das árvores e, ao redor deles, e a boa gente de Wisbach se preparava para uma noite agradável de sono, Shaw e Katie se entreolharam em silêncio. Era como se nenhum deles tivesse coragem, fôlego ou disposição para falar. Finalmente, Shaw murmurou: – Vamos. Os dois se viraram e caminharam pela rua silenciosa. Exatamente para onde, nenhum deles sabia.
David Baldacci
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