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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


TOM SAWYER DETECTIVE / Mark Twain
TOM SAWYER DETECTIVE / Mark Twain

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio VT

 

 

 

Convite a Tom e Huck

Lembro-me bem de que isto ocorreu pouco antes daquela Primavera em que eu e Tom Sawyer - porque assim o deliberámos ambos em nosso perfeito juízo - restituíamos à liberdade o negro Jim, que, por ter tentado fugir aos rigores da sua vida de escravo, se encontrava, na ocasião, preso com correntes de ferro, na fazenda de Silas, tio de Tom, no Arkansas.

A neve do solo, e a do ar, também, começava a derreter-se, e cada dia se ia aproximando mais e mais o tempo do pé nu e, sucessivamente, o das bolinhas de mármore, das estacadas separadoras, das elevações e dos gritos, dos milhanos e, finalmente, entrava-se a direito no Verão e poder-se-ia nadar. Não há dúvida de que um rapaz se sente triste quando olha em frente daquela maneira e vê o Verão ainda tão longe. Está claro que isso obriga qualquer um a suspirar e a isolar se melancolicamente, com a sensação de que alguma coisa, que ele não sabe o que é, o inquieta. Mas, seja como for, trata de se mover, embora cheio de enfado e cismando; e, as mais das vezes, leva a sua espingarda de caça, menos para caçar do que para ter um pretexto de estar só em qualquer ponto alto da colina na orla do bosque. Dali põe-se a contemplar o grande Mississípi, a desenrolar-se por milhas e milhas à volta, até onde o arvoredo começa a esfumar-se na distância e adquire o aspecto duma sombria mancha. E, então, aquilo parece tão longínquo e parado, e tudo surge tão lugubremente solene, que uma pessoa chega a ter a impressão de haverem morrido e abandonado este mundo todos os entes que amou, e quase deseja acabar, ir se da vida, também, pondo assim termo à desolação que sente.

 

 

 

Sabeis o que isto é? Apenas a febre da Primavera! É o nome que lhe dão. Quando se padece assim, sente- se um nostálgico desejo, que não se sabe ao certo o que seja, mas que, tal como é, dilacera o coração fibra a fibra! Tem-se, então, a ideia de que aquilo que principalmente se deseja é partir, apartar-se das coisas que, à força de não interessarem a um, só tédio lhe causam e que se está farto de ver, e reanimar se enfim, com a vista de qualquer ambiência nova. Tal é a ideia: o desejo de partir e de vagabundear por países exóticos, onde tudo é misterioso, fascinante, romântico. Na Lua, talvez. Mas se um sujeito não pode realizar semelhante aspiração, que há-de fazer senão contentar se com bastante menos? E então limitar-se-á a uma excursãozita adentro das suas possibilidades, contanto que não permaneça onde está e se aborrece, acabando por dar graças aos fados que lha propiciem, mesmo com tão grande desconto no total.

Assentámos, pois, eu e Tom, que estávamos ambos atacados de febre da Primavera, fortemente atacados até. Contudo, era inútil pensar que Tom se decidira a partir, porque, conforme declarou, a sua tia Polly não lhe permitiria que abandonasse a escola para ir perder tempo a calcorrear montes e vales; e deste modo ficou frustrado o nosso plano e nós de beiço caído.

Um dia, em que nós estávamos falando disto, quase ao pôr do Sol, sentados nos degraus da porta da fachada principal, vimos chegar sua tia Polly, que, com uma carta na mão, se abeirou de nós e disse:

- Tom, calcula que terás de preparar a bagagem e de seguir para Arkansas. Tua tia Sally precisa lá de ti.

Eu quase saltei da própria pele com a alegria que me deu aquela notícia. E supus que Tom ia correr para sua tia e pendurar-se-lhe ao pescoço num grande abraço; mas afianço- lhes que se manteve quedo como um penedo e sem dizer palavra. Estive vai não vai para soltar uma imprecação ao vê-lo proceder de forma tão insensata, deixando perder um tão feliz acaso como aquele. Porque poderíamos perdê-lo se ele não falasse e não se manifestasse satisfeito e agradecido. Mas ele não se movia, e ruminava qualquer coisa, e ruminou até ao ponto de eu me sentir descoroçoado e sem saber que fazer.

Por fim, ouvi-o dizer, tão cheio de calma que me deu ganas de lhe pregar um soco:

- Tenho muita pena, tia Polly, mas creio que terá de me dispensar dessa viagem, nesta ocasião.

A tia Polly ficou tão estupefacta e atordoada com aquela fria impertinência que, durante meio minuto, perdeu a fala e afastou-se alguns passos, circunstância que me permitiu dar uma cotovelada em Tom, e murmurar lhe:

- Onde tens tu o juízo? Porque não aproveitas uma bela oportunidade como esta, e a deitas fora?

Ele continuou impassível, e volveu-me baixo:

- Huck Finn, quererás tu, porventura, que ela perceba o meu grande desejo de fazer a viagem? Porque se ela o percebesse, começaria logo a duvidar, e a imaginar uma série de doenças, perigos e objecções, e, fica-o sabendo, anulava pela certa a resolução que me anunciou. Deixa-me cá; eu sei como hei-de manejá-la.

Confesso que não tinha pensado naquilo. Mas ele tinha razão. Tom Sawyer tinha sempre razão, era a cabeça mais atilada que tenho visto, constantemente alerta contra a possível má-fé alheia, e pronto para qualquer eventualidade.

Entretanto, sua tia Polly, dominada a impressão de raiva que a assaltara, acercou-se e botou a seguinte fala:

- Com que então querias que eu te dispensasse desta viagem? Mas quem te deu licença para querer seja o que for? Boa vai ela! Nunca ouvi coisa igual na minha vida: Quem manda aqui sou eu, e admiro o teu atrevimento de opor objecções do que eu determino! Vai mas é meter as tuas coisas na mala, imediatamente. E se te atreves a arriscar mais uma palavra para te dispensar do que não queres fazer, juro que te darei uma dispensa - com a chibata!

Aplicou-lhe um piparote na cabeça com o dedal, enquanto nos escapulíamos com receio de novas carícias metálicas, e Tom, fingindo-se muito magoado, dirigiu-se, resmungando, para a escada. Eu segui-o, e, assim que chegámos ao seu quarto, deu-me um abraço triunfal. Estava doido de alegria com a perspectiva da viagem, e disse-me logo:

- Antes de partirmos, podes ter a certeza de que ela se arrependerá da ordem que me deu, mas não encontrará forma de a rescindir Depois do que disse, a sua soberba não a deixará voltar com a palavra atrás.

Tom arrumou na mala, em dez minutos, tudo quanto era necessário, excepto aquilo que sua tia e Mary teriam ainda de arranjar para seu uso.

Esperámos, em seguida, outros dez minutos para dar tempo a que se dissipasse o mau humor da matrona, e a que ela se mostrasse outra vez mansa e agradável. Segundo as observações anteriores de Tom, sua tia necessitava de dez minutos para se acalmar, quando se lhe arrebitava apenas metade dos cabelinhos da venta; mas se os mesmos cabelinhos se lhe punham todos, e não só metade, em pé, tornava-se prudente deixar-lhe vinte minutos para se conseguir que ela esfriasse. Ora, daquela feita, eles tinham-se posto todos em pé. Em verdadeiro pé de guerra.

Decorrido o lapso de tempo que a sabedoria aconselhava, descemos a escada, mortos por saber o que dizia a carta que a tia Polly nos mostrara. Encontrámo-la sentada numa poltrona, com a carta no regaço. Aguardámos em posição de sentido, até que ela disse:

- O caso é o seguinte: eles andam lá muito apreensivos, e pensam que a tua presença e a de Huck poderiam dar-lhes uma espécie de alívio, reconfortá-los, como está aqui na carta. E eu creio que vocês poderão, de facto, ser-lhes bastante úteis. Têm um vizinho chamado Brace Dunlap, que durante três meses teimou em casar com Benny, e ao qual, por fim, desenganaram com uma negativa formal. Ele ficou furioso com aquele "não" claríssimo: e isto inquieta-os, pois parece que o têm na conta de má rês. Julgo que foram aconselhados por alguém a fazerem todo o possível para não estarem de candeias às avessas com o tal Dunlap. E, no intuito de se reconciliarem com ele, deram lhe trabalho na herdade ao irmão, como auxiliar agrícola, embora mal tenham em que o ocupar e não precisem dum auxiliar para nada.

- Quem são os Dunlaps?

- É uma gente que vive a cerca de uma milha da fazenda do tio Silas. Na generalidade, os lavradores daquela região encontram-se separados uns dos outros por uma distância análoga: Brace Dunlap é bastante mais rico do que qualquer dos outros, e possui grande número de negros. É viúvo, de trinta e seis anos de idade, sem filhos, orgulhoso do seu dinheiro e arrogante, e todos mais ou menos se arreceiam dele. Naturalmente pensou que lhe bastaria pedir qualquer rapariga do seu agrado, para que lha dessem, e deve ter-lhe custado imenso que lhe recusassem a mão de Benny. Na realidade, a pequena tem apenas metade da idade dele, e não ignora, porque bem a conhece, quanto ela é meiga e afável. Pobre tio Silas! Faz dó vê-lo obrigado a reconciliar-se dessa forma, pois ele não é rico, e provavelmente, só com sacrifício colocou na fazenda esse inútil Júpiter Dunlap.

- Que nome tão curioso, Júpiter! Aonde o teria ele ido buscar?

- É apenas uma alcunha. Suponho que esqueceram já há muito tempo o verdadeiro nome que ele tinha antes da chamadura, supérflua e fútil, como todas as alcunhas, que lhe puseram, por simples e irreflectida malignidade. Consta-me que a coisa se passou assim: quando ele era mais novo, conquanto ainda não seja velho, porquanto tem só vinte e sete anos agora, e pela primeira vez em que se lançou a nadar, o professor dele viu uma nódoa do tamanho duma moeda na sua perna esquerda, precisamente por cima do joelho, e mais quatro semelhantes à roda da outra. Como o rapaz estava despido, visto não ser costume, nem cómodo nadar vestido - e sabe-se isto pelos naufragos -, o sábio mestre, tão atento às atitudes dos seus alunos que até lhes observava as particularidades da pele, declarou que as manchas referidas lhe recordavam o planeta Júpiter e os seus quatro satélites. Os outros rapazes acharam graça ao chiste do professor de alcunhas - a quem eles aliás, e seja dito de passagem, tinham posto, por seu turno, havia muito tempo, a alcunha de Coca-Bichinhos - e daí por diante começaram a tratá- lo por Júpiter, e Júpiter continua a ser ainda hoje. É um tipo alto, mandrião; nunca ninguém o viu oferecer se para trabalhar.

- Nisso parece-se ele - observou a tia Polly - com qualquer outro animal, pois nunca se viu um só oferecer se, de moto próprio, para trabalhar.

- E dissimulado.

- Eh! Eh! - riu-se a tia Polly. - Nunca conheci ninguém que o não fosse.

- Perdão, minha tia! - exclamou Tom, prosseguindo:

- E lastimavelmente cobarde.

- Não quero supor que não haja fundamento na tua antipatia por esse homem. Em todo o caso, muitas vezes parece cobardia o que é simples reflexão e prudência. Nem Hércules contra dois, costuma-se dizer! Admitindo que esse Júpiter não passe dum grande pelintra, sem dinheiro sequer para comprar uma faca de cortar marmelada, como queres tu que ele se mostre valente entre rapazes que, embora novos como ele, dispõem de boas armas? A sua pobreza é uma fraqueza; e a abastança dos outros rapazes, uma força. É preciso ponderar as duas coisas.

- Peço-lhe outra vez perdão, minha tia. Mas chegou agora o momento de eu reconhecer, também, que apesar de tudo, Júpiter tem boa índole.

- Não estarás a exagerar no sentido oposto? Teremos de admitir que as pessoas de bom carácter podem ser indolentes, astutas e cobardes? Sinto-me deveras perplexa, Tom! Mas continua.

- Continuo, então: usa o cabelo comprido e a cara rapada.

- Verosimilmente isso acontece - disse a tia Polly - porque não tem dinheiro para cortar o cabelo e consegue barbear se com a navalha do irmão.

- Talvez - concordou Tom; - e nunca ninguém o viu com um centavo na algibeira.

- Acha-o mais seguro na algibeira dos outros! - gracejou ela de novo.

- Ou os outros o acham mais seguro na sua algibeira do que na dele - opinou Tom. - Seja como for, o que é certo é que Brace dá-lhe alojamento grátis - há quem diga que dorme na carvoeira -, presenteia-o com os seus fatos velhos, que, como é óbvio, depressa aparecem esfarrapados - à força de puídos - no corpo dele, e mostra-lhe o maior desprezo.

- Seria bem melhor que lhe proporcionasse meios para se estabelecer com uma loja de bebidas.

- Porquê de bebidas?

- Porque, em geral, quem vende bebidas não bebe, horrorizado com as loucuras que vê praticar aos ébrios a quem as vende, e quem não bebe, e ganha, enriquece.

- Tem razão, tia Polly! Ainda não tinha reparado nisso! Devo ainda dizer que Júpiter é gémeo doutro.

- De um só? Eis o que me parece surpreendente: porque há milhões de tipos assim! - atalhou Polly, que, evidentemente, estava de maré para se divertir com a alta sabedoria do sobrinho. - Mas, diz-me cá, e como é o outro gémeo?

- Ouvi dizer que é igual a ele, mas há sete anos que ninguém lhe põe a vista em cima. Como não o ensinaram a fazer nada, improvisou para si o ofício de ladrão quando tinha dezanove ou vinte anos, e como isso é contra a lei, aliás muito justa, porque ninguém, nem os próprios ladrões, gosta de ser roubado, meteram-no na cadeia, donde ele conseguiu fugir para o Norte, seguindo, talvez, essa direcção por ser a da agulha da bússola. Nunca mais se soube nada a seu respeito. Como suspeitava, e talvez se não enganasse, que ninguém lhe queria bem, e inversamente sabia que não faltava quem lhe jurasse pela pele, absteve- se de dar notícias suas a quem quer que fosse. Dizia-se que, antes daqueles incidentes, assaltava residências e vivia de intrujices, facto, este último, que lhe valeu a execração de inúmeros trapaceiros que se prezavam, ao menos, de não assaltar a residência alheia. Consta que o desventurado e detestável gémeo do pouco feliz e pouco interessante Júpiter morreu.

- E como se chamava ele?

- Jake.

Houve um longo silêncio durante o qual a tia Polly se conservou meditativa. Não revelou o tema das suas cogitações, mas soube- se, depois, que pensara: Jake!

Ainda se fosse um "Jack of all trades" - um pau para toda a obra. Quebrando, por fim, o silêncio, que era uma coisa que fazia de bom grado e que não a arreliava, ao contrário do que lhe sucedia quando ela quebrava, ou lhe quebravam, uma peça de loiça do seu impoluto aparador, declarou:

- O que mais apoquenta á tua tia Sally é a má disposição em que teu tio fica, sempre que encontra o tal Júpiter.

Tom e eu não pudemos ocultar a nossa surpresa.

Tom observou mesmo:

- Má disposição? No tio Silas? A tia está com certeza a brincar, pois não o julgo capaz de semelhante coisa.

- E que às vezes o lança em fúrias endiabradas, diz tua tia Sally; actuando, nessas ocasiões, e por vezes, como se realmente quisesse bater no sujeito.

- Tia Polly, tudo isso me assombra pois nunca ouvi dizer que ele batesse fosse no que fosse. De facto, as próprias papas de milho não são mais brandas do que a sua índole compassiva.

      - Não obstante, ela anda muito preocupada. Afirma que o teu tio Silas já não é o homem que era, por causa de todas estas disputas. Os vizinhos murmuram acerca disto, e lançam as culpas todas para cima de teu tio, como é natural, porquanto ele é um pregador e cumpria-lhe evitar rixas com outrem. Tua tia Sally diz, também, que ele mostra relutância em apresentar-se no púlpito, por se sentir envergonhado; que os seus paroquianos começam a manifestar-lhe frieza e que ele já não é tão popular como era dantes.

- Tudo isso é estranho, não lhe parece? Porque, na verdade, tia Polly, ele foi sempre em extremo bom, cortês, abstracto, um sonhador, uma cara de páscoa, um ser estimável, digamos, um verdadeiro anjo! Que lhe terá, então, sucedido para estar mudado dessa forma?

 

Jake Dunlap

Fomos deveras felizes na questão da viagem, dado que tivemos a sorte de topar com um barco de rodas procedente do Norte, que demandava um dos vários afluentes ou rios subsidiários que sulcam a Luisiana, e deste modo pudemos percorrer o Alto e Baixo Mississípi, até à herdade aonde nos dirigíamos, no Arkansas, sem termos de fazer transbordo em São Luís, navegando, assim, cerca de mil milhas de uma assentada.

O barco era admiravelmente sossegado; levava poucos passageiros a bordo, gente de idade, que se sentavam à parte uns dos outros, e passavam o tempo a dormitar, numa grande quietude. O navio levou quatro dias a sair do Alto Mississípi, porque lhe roçava com frequência no fundo, o que obrigou a uma navegação cautelosa e, portanto, mais demorada.

Mas isto não foi para nós, como rapazes em viagem, é claro, motivo de aborrecimento. Pouco depois do começo da viagem, e daí por diante, eu e Tom tivemos a impressão de que, num camarote vizinho do nosso, estava alguém doente, porque o criado ia lá levar a comida às horas regulamentares. Aquilo despertou-nos a curiosidade, e Tom acabou por interrogar- o criado referido. Este respondeu que se tratava de um homem, mas que o seu aspecto não era de doente.

- Bem, mas não poderá dar se o caso de ele estar realmente doente?

- Não sei; isso não seria impossível, mas a mim parece-me que ele está apenas repousando, estirado na cama do seu beliche.

- porque tira você essa conclusão?

- Porque se ele estivesse doente havia de despir a sua roupa uma vez ou outra, não acham? Ora, ele não o faz. Pelo menos, nunca se separa das suas botas.

- Que disparate! Nem mesmo à noite?

- Não.

O mistério era sempre uma sedução para as tendências detectivescas de Tom Sawyer. Se pusessem diante de nós um mistério e um pastel, a escolha nem necessitava de ser recomendada, estava feita por si mesma.

O meu modo de ser levar me-ia logo a deitar a mão ao pastel, e o Tom à ficar com o mistério. Cada indivíduo é diferente dos outros, e melhor é que assim suceda. Tom disse para o criado:

- Como se chama o passageiro?

- Phillips.

- E onde é que ele entrou a bordo?

- Se não me engano, foi em Alexandria, na fronteira do Estado de Iowa.

- Sabe em que é que ele se ocupa?

- Não sei. Nada tenho que ver com a vida particular dos passageiros e limito-me, como empregado de mesa que é a função que tenho, e pela qual me pagam, aqui a bordo, a servir-lhes a comida, cujo custo eles desembolsam quando compram os seus bilhetes de viagem. Se eu me dedicasse a bisbilhotar da vida dos nossos passageiros, em vez de os servir à mesa, a empresa do barco punha-me fora! É por este motivo, também, que eu não pergunto ao senhor quem é e em que se ocupa. Realmente eu não tenho nada com isso, e confesso-lhe, pedindo-lhe ao mesmo tempo desculpa, que tais particularidades mão interessam tanto como a primeira camisinha que vesti quando era menino de peitos, há um ror de anos.

Ouvindo a parlenga do embarcadiço, Huck, que assistia à cena, reprimiu uma risada, e disse para consigo: "Aqui está outro a quem interessa mais o pastel do que o mistério".

Apesar de tudo, agarrado à sua ideia fixa de detective amador, Tom insistiu:

- O senhor tem notado nele qualquer coisa de estranho, quer no seu modo de falar, quer no de proceder?

O criado esteve para o mandar bugiar; mas como era moço paciente e cortês, e em atenção à pouca idade do seu interlocutor, respondeu, disfarçando a sua estranheza:

- Não, nada. Só que uma vez notei que ele utilizou um balde do beliche, em vez de ir à privada; mas atribui isso a qualquer indisposição repentina. - Fez uma pausa, e acrescentou: - Ah, espere! Tenho notado que ele parece tão assustadiço, que tem a porta e a lucarna do seu beliche sempre fechadas dia e noite. Mas talvez não seja por medo, e sim misantropia ou doença dos olhos. Também pode ser um infeliz perseguido por gente perversa, e por esse motivo sempre em guarda contra qualquer partida dos seus inimigos.

E com um gesto vago:

- Quem pode adivinhar a causa profunda das atitudes duma pessoa que se não conhece, e com as quais, aliás, e em última análise, eu por mim não tenho nada que ver?

A despeito destas conclusões, perfeitamente sensatas, o criado era, no fundo, coscuvilheiro, e sentia um certo prazer naquele diálogo com o jovem Tom, razões por que ajuntou:

- Quando bato com os nós dos dedos à porta, não me manda entrar sem espreitar primeiro, por uma frincha, para ver quem é. Não há dúvida de que toda a gente de mediano juízo costuma fazer o mesmo; em todo o caso, dá-se este facto. E claro que se se enforcassem todas as donas de casa e homens que fazem o mesmo, espreitar pelo rótulo ou por uma abertura da porta, antes de dar entrada a quem não se espera ou não se conhece - já não haveria ninguém, ou pouca gente haveria viva no mundo, excepto, evidentemente, os próprios carrascos.

Tom, sem reparar nas reflexões do criado, reteve apenas aquele facto, e exclamou:

- Oh! Tudo isso é muito interessante.

O criado sorriu, e observou:

- Não há dúvida, é interessante, apesar de ser tão natural como ver a luz quando não há trevas! Mas, quem sabe? Nas lotarias, entre milhares de números brancos, sempre há um ou outro que sai premiado.

Tom, dominado pela sua paixão, que tinha pelo menos o mérito da isenção, porque ele não ganhava qualquer ordenado como detective, propôs:

- Escute: eu gostaria de ver esse homem. Na próxima vez que você entre no beliche dele, deixe ficar a porta entreaberta, e.

- Isso não; porque ele está sempre atrás da porta - o que nem ao diabo sucede; como não ignora - e não me consentiria semelhante manobra.

Tom reflectiu um momento, e, depois, tentou a fragilidade financeira do criado, nestes termos:

- Façamos o seguinte: você empresta- me o seu avental, e deixa-me ir levar lhe o primeiro almoço amanhã de manhã. Dar lhe-ei, embora saiba que você não ficará milionário com a dádiva, uma recompensa de um quarto de dólar.

O camareiro, encantado com a ideia, declarou-se disposto a aceitá-la, mas só no caso de a ela se não opor o chefe do pessoal de mesa.

Tom achou aquilo razoável, mas calculou logo que poderia conseguir, por gorjeta igual ou mesmo maior, a anuência do tal chefe ao seu projecto. E, com efeito conseguiu-a. Ficou combinado que ele iria com o seu amigo Huck, munido, também, do seu avental e dum tabuleiro com alguma baixela.

Dormiu pouco naquela noite, na ânsia de penetrar no beliche e de decifrar o mistério em que Phillips parecia envolver se; e além disso passou horas arquitectando conjecturas supérfluas, visto que, encontrando-se ele em vésperas de estabelecer contacto com aquele passageiro e de o sondar, que necessidade tinha de se cansar assim, com hipóteses vãs? Huck, por seu lado, dormiu a sono solto: não se importava absolutamente nada com o assunto de Phillips.

Na manhã seguinte, de aventais e com as bandejas nas mãos, Tom e o seu companheiro bateram à porta do beliche. O homem entreabriu a porta, espreitou e, depois de nos mandar entrar, tornou a fechá-la. Ao vê-lo, quase íamos deixando cair as bandejas, com a surpresa que tivemos, e Tom disse:

- Olá, Júpiter Dunlap, por aqui? Donde vem você?

O passageiro ficou, por seu turno, assombrado e a princípio deu-nos a impressão de quem não sabe se deve temer ou alegrar se, ou entregar se a outro sentimento, até que por fim pareceu ter optado por mostrar-se satisfeito; e nesse momento voltaram as cores ao seu rosto, que se havia posto lívido.

Enquanto ele comia, fomos conversando. A certa altura, disse-nos:

- Eu não sou Júpiter Dunlap, nem me chamo Phillips. Se vocês forem capazes de guardar segredo, dir-lhes-ei quem sou.

Tom redarguiu:

- Está bem, guardaremos segredo; mas se você não é

Júpiter Dunlap, torna-se desnecessário dizer quem é.

- Porquê?

- Porque se você não é Júpiter, é o outro gémeo, ou seja seu irmão Jake. Você é imagem exacta de Júpiter.

- Não o nego: sou Jake. Mas, digam-me, donde conhecem vocês os Dunlaps?

Tom descreveu-lhe as nossas aventuras na propriedade do tio Silas, quando lá estivemos no Verão transacto; e logo que se capacitou de que nós sabíamos tudo quanto se referia a ele e a sua família, abriu-se connosco e falou-nos sem reservas e confiadamente.

-      Isto parecia demonstrar que ainda subsistia, naquele homem pervertido, uma boa fé que nem sempre se encontra em pessoas tidas por modelos de virtude. Pintou-se a si mesmo como um ratoneiro, como sempre havia sido e seria até ao fim, sem conceder aos seus desvarios o desconto, sem dúvida considerável, da parte que cabia ao seu meio, e às circunstâncias que não eram obra sua, nos mesmos desvarios. Era candidamente magnânimo, aquele diabo, apesar de destituído de toda a dignidade! Rematou a sua narrativa, dizendo que uma vida como a dele era perigosa, e soltou uma espécie de rosnido, e estendeu o pescoço como quem escuta. Nós conservámo-nos silenciosos, e tudo foi silêncio por uns instantes à nossa volta, apenas se ouvindo os rangidos do casco do barco e o ruído surdo das máquinas nos arcanos do seu bojo.

Para o distrair, voltámos a falar lhe da família; contámos-lhe que a esposa de Brace tinha morrido havia três anos, e que este quisera casar-se com Benny, que não aceitou e correu com ele; de Júpiter dissemos-lhe que estava trabalhando como auxiliar na fazenda do tio Silas, e que andavam sempre às turras um com o outro.

Isto acabou por pô-lo à vontade, e fê-lo rir.

- Ouvir tudo isso que vocês me contam transporta-me aos tempos idos, e faz-me bem. Há mais de sete anos que eu não ouvia falar dessas coisas. Que dizem eles de mim por lá?

- Quem?

- Os fazendeiros e a família.

- Nunca falam de você. Quando muito lembram as suas aventuras, uma ou outra rara vez.

- Porquê?

- Porque o julgam morto há muito tempo.

- Isso é verdade? Dá-me a sua palavra de honra.

E, exultante, pôs-se em pé de um salto.

- Palavra de honra. Afirmo-lhe que todos, ali, o julgam morto.

- Então, estou salvo! Regressarei a casa; ali poderei ocultar-me, e viverei. Guardem segredo. Jurem-me que guardarão segredo; jurem-me que jamais, jamais falarão de mim. Sêde bons, meus rapazes, para com um pobre homem acossado e que não pode mostrar a cara. Eu não lhes fiz nenhum mal a vocês, nem lho farei mais, pelo céu lho juro.

Depois de ouvirmos aquilo, fizemos a jura que pedia, e, até se ele fosse um cão, teríamos jurado da mesma forma. Ele nem sabia como agradecer-nos, e todos os agradecimentos lhe pareciam poucos, e a custo se conteve para não nos abraçar.

Continuámos a palestra, e ao fim de algum tempo ele puxou por um pequeno saco de mão e começou a abri-lo, rogando-nos, nessa conjuntura, que nos voltássemos de costas para ele. Como ele jurara que nunca nos faria mal algum, não hesitámos em obedecer-lhe, e quando nos pediu para voltarmos à posição anterior era um homem perfeitamente diferente daquele que pouco antes víamos diante de nós. Pusera uns óculos azuis, uma comprida barba castanha e um bigode que, de todo em todo, pareciam naturais. Nem a sua própria mãe seria capaz de o reconhecer com aquele disfarce.

Ele perguntou-nos, então, se ainda lhe achávamos qualquer parecença com o seu irmão Júpiter?

- Não - redarguiu Tom -; apenas se lhe parece no cabelo comprido.

- Bem, mandarei cortá-lo rente antes de lá chegar. Com certeza, tanto ele como Brace guardarão segredo, e assim poderei viver na companhia deles como se fosse um estranho, sem que a vizinhança o suspeite. Que pensam vocês do meu plano?

Tom examinou o homem, e depois redarguiu:

- É claro que eu e aqui o meu amigo Huck não diremos nada, mas, se você mesmo não guardar segredo, pode haver nisso, se não muito, algum risco. Por outras palavras, lá os conterrâneos, se você falar, podem notar que a sua voz é igual à de Júpiter; e isto há-de, talvez, trazer-lhes à lembrança o irmão gémeo que julgavam morto, mas que poderia, no fim de contas, haver estado escondido, durante este lapso de tempo, com outro nome.

- Coa breca, vejo que você é um rapaz cheio de sagacidade! Tem carradas de razão. Terei de me fingir surdo-mudo na presença de qualquer vizinho. Olha se eu volto para casa, sem reparar nesse pormenor! Na realidade, eu não pensava tornar para junto da família, e sim em refugiar-me em qualquer sítio, onde pudesse ver-me livre dos meus perseguidores. Era minha ideia usar este disfarce,, com outra roupa.

De súbito, deu um salto para a porta e, encostando a ela o ouvido, pôs-se à escuta, e como que ofegante. Em seguida, murmurou:

- Pareceu-me ouvir o aperrar duma espingarda! Deus! Que vida esta!

      Tom, lembrando-se de que já tinha visto pessoas cordatas, como o leitor ou qualquer outra também decente, quase delirando de terror por motivos muito diferentes, absteve-se de exteriorizar uma repentina vontade de fugir que o assaltou ao observar a atitude extravagante daquele vagabundo, que, entretanto, se deixara cair numa cadeira, desgrenhado, a enxugar o suor que lhe aljofrava o rosto.

 

Roubo de diamantes

Dali por diante passávamos a maior parte do tempo na sua companhia, e um de nós dormia na cama da prateleira superior do seu beliche. Disse-nos que estava farto de solidão e que lhe era muito agradável ter companhia e alguém com quem desabafar.

Nós almejávamos por conhecer o seu segredo, mas Tom observou que a melhor forma de o conseguir era não manifestarmos curiosidade a tal respeito. Usando este sistema havia todas as probabilidades de que Jake acabasse por no-lo revelar de moto próprio numa das suas conversas, o que não sucederia se lhe despertássemos suspeitas com as nossas perguntas.

E tudo veio a ocorrer como ele previa. Nós adivinhávamos que ele queria falar acerca desse assunto mas sempre que parecia prestes a abordá-lo detinha-se receoso, e começava a falar doutra coisa. Por fim, entrou no caminho das declarações - por que nós suspirávamos - desta maneira: perguntou-nos, com ar indiferente, quem eram os passageiros que costumavam estar no convés. Nós descrevemos-lhos como pudemos. Mas os nossos informes, por lhe parecerem insuficientes, não o satisfizeram. Pediu-nos que lhos descrevêssemos mais pormenorizadamente. Tom fez-lhe a vontade.

Quando Tom se referiu a um dos mais rudes e andrajosos, Jake teve um estremecimento e, com um suspiro, disse:

- Que fatalidade! Esse é um deles! Bem me queria parecer que eles se encontravam a bordo. A certa altura as coisas deram-me a impressão de que me achava livre deles, mas nunca o acreditei. Continue.

Tom falou, então, doutro passageiro do convés, tão sarnoso e tosco como o primeiro a que aludira, e o seu interlocutor teve novo estremeção e pôs-se a resmungar:

- É ele! Esse é outro que tal. Oxalá que, ao desembarcar, esteja uma noite escura de tormenta, a fim de me poder embrenhar a salvo pelos campos. Está a ver? Cercam-me de espias. Eles lá conseguem subir ao bar, comprar bebidas, e aproveitam tal possibilidade para subornarem alguém que não me perca de olho, engraxador ou outro qualquer criado. Tenho a certeza de que se eu desembarcasse sem que ninguém me visse, eles teriam conhecimento disso daí a uma hora.

Tom, apesar da sua pouca idade e experiência, não ignorava, por tê-lo ouvido contar a velhos colonos, que uma espionagem multiforme não era mito, em domínios muito diversos daqueles em que agem e se enredam criminosos de delito comum como Jake; mas não pôde deixar de surpreender-se da ingenuidade com que o seu interlocutor se confiava tão facilmente a um sujeito desconhecido como ele, concluindo disto que Jake não tinha o juízo todo.

Entretanto, este continuou a falar pelos cotovelos e, pouco a pouco, foi derivando para o assunto que o preocupava, e que constituía precisamente o objectivo das predilecções detectivescas de Tom, a ponto de acabar por dizer:

- Foi uma jogada confidencial, que teve por cenário uma joalharia de São Luís. Decidimos apoderar nos de dois magníficos diamantes, grados como avelãs, que toda a gente se detinha a admirar. Como andávamos bem vestidos, foi-nos possível realizar o truque em pleno dia. Com ares assim como que desdenhosos e importantes, demos ordem ao caixeiro para no-los enviar ao hotel, declarando que ficaríamos com eles se agradassem às pessoas a quem os destinávamos. Depois, quando no hotel os examinámos, substituímos os dois diamantes verdadeiros por outros falsos que já tínhamos antecipadamente preparado para o efeito, e que foram os que regressaram à joalharia, quando alegámos que não tinham luminosidade suficiente para o preço que nos pediam, de doze mil dólares.

- Doze mil dólares! - exclamou Tom. - E você crê que eles valiam tanto dinheiro?

- Sim, sem sombra de dúvida.

- E vocês fugiram com os diamantes?

- Com toda a facilidade, e suponho que os joalheiros mem deram pelo roubo. Mas seria imprudência permanecer em São Luís, e resolvemos ir para outras paragens. Cada um de nós propunha a ida para terras diferentes, de modo que acabámos por deitar sortes, e ganhou o Alto Mississípi.

Metemos os diamantes num invólucro de papel, no qual pusemos os nossos nomes e demo-los a guardar ao gerente do hotel, recomendando lhe que não os entregasse a nenhum de nós sem estarem presentes os restantes. Em seguida, saímos, cada um para seu lado da cidade, pois suponho que todos tínhamos a mesma ideia, embora o não possa afirmar.

- E que ideia era essa?

- A de roubar os outros parceiros.

- Quê?! Que um se apoderasse de tudo que fora conseguido com a ajuda dos restantes?

- Justamente.

Tom Sawyer, nauseado, disse que aquilo era duma baixeza abjecta, sem paralelo; e Jake Dunlap declarou-lhe ser coisa vulgar, entre os ratoneiros como ele, o facto que parecia extraordinário ao seu interlocutor. E, prosseguindo, disse:

- Certo era que não podíamos repartir dois diamantes entre três. Andei vagueando muito tempo por várias ruas, a pensar naquilo. Por fim, deliberei apossar-me dos diamantes, na primeira oportunidade que surgisse, disfarçar me com acessórios que antecipadamente adquiriria, e, logrados assim os meus cúmplices, fugir-lhes. Em seguida, disfarçar-me-ia, e eles que dessem depois comigo se fossem capazes. Adquiri, pois, o bigode postiço, as lunetas e estas roupas de campónio, e trouxe tudo num saco de mão; mas quando ia a passar diante dum armazém onde vendiam toda a casta de objectos, divisei, através do vidro da montra, um dos meus parceiros. Era Bud Dixon. Fiquei satisfeito por poder observá-lo sem ele o saber e espreitei-o. E que julga, você, que ele comprou?

- Outro bigode? - exclamei eu.

- Não.

- Um par de óculos foscados?

- Também não.

- Não te deites a adivinhar, Huck; maças-nos com isso. Que foi, então, que ele comprou, Jake?

- Uma coisa que nem vocês sonham: muito simplesmente uma chave de parafusos.

- É curioso! E para que queria ele isso?

- O mesmo pensei eu. Admirou-me que ele fizesse semelhante compra, e fiquei intrigado.

Quando saiu dali - continuou Jake - segui-o sem que ele o notasse. Vi-o entrar numa loja de fato em segunda mão, onde adquiriu uma camisa de flanela escarlate e algumas roupas velhas, precisamente as mesmas que ele traz agora vestidas, conforme você me descreveu, Tom. Dirigi-me, então, para o cais e escondi todas as minhas coisas no barco, pois já tínhamos pago as passagens. Depois, voltei à cidade e tive de novo sorte, porque descobri o outro companheiro a comprar, por seu turno, um fato em segunda mão, esfarrapado. Fomos por último, buscar os diamantes, em seguida ao que nos instalámos no barco em que tínhamos alugado um beliche para todos.

Mas logo surgiu, para os três, um grande embaraço, porque, desconfiando uns dos outros, não podemos deitar nos. Era uma pena que duas semanas não tivéssemos jogado todos à pancada, e que, no fundo, apenas fôssemos amigos quando se tratava de perpetrar qualquer golpe em comum. A dificuldade acentuava-se pelo facto de só dispormos de dois diamantes para três.

Depois da ceia, andamos juntos a passear e a fumar no convés até à meia-noite. Em seguida descemos para o cate, onde, com a porta fechada, nos sentámos e examinámos o invólucro de papel, para nos certificarmos de que as duas pedras ainda se encontravam dentro. Pusemo-lo na prateleira-cama inferior, de modo a que todos o víssemos bem, e conservámo-nos sentados, conquanto, em certos momentos, nos fosse muito penoso termos de nos manter acordados. A certa altura, Dixon, vencido pelo sono, pôs-se a ressonar com o queixo apoiado no peito. Vendo que ele dormia deveras,   Clayton acenou para os diamantes com um movimento de cabeça, e depois, pelo mesmo processo, indicou-me o exterior do camarote, e eu compreendi logo. Aproximei-me do invólucro de papel onde tínhamos tornado a meter as pedras; e deitei-lhe a mão, após o que ficámos um instante de pé e muito quietos, a ver se Bud se movia. Como ele continuasse ferrado no sono, saí. Fechei a porta à chave e corri o ferrolho pela parte de fora, suavemente.

Não se via ninguém em qualquer ponto da coberta, e o navio cortava veloz e incansavelmente as caudalosas águas do rio sob o luar um pouco empanado pela neblina. Nenhum de nós proferia palavra, e dirigimo-nos para a parte superior, onde fomos sentar-nos num recanto isolado. Ambos sabíamos as nossas mútuas intenções, sem necessidade de as explicarmos um ao outro. Bud Dixon, quando acordasse e desse pela falta do embrulho, não deixaria, sem medo de nada nem de ninguém, de vir à nossa procura. Ele poderia aparecer, e, se isso sucedesse, atirá-lo-íamos à água, se ele não nos matasse. Esta ideia fez-me tremer de medo, mas sabia que não convinha mostrar me acobardado, se ele surgisse. No entanto, o meu desejo era que o barco se detivesse em qualquer sítio e eu pudesse saltar e não correr o risco duma refrega com Bud Dixon. Este infundia-me temor, mas o certo era que não havia a menor probabilidade de um barco como aquele fazer qualquer escala imprevista. Porém, o tempo passando, hora após hora, e Bud não aparecia. Entretanto, amanheceu, e como ele não desse sinal de si, disse para o meu companheiro:

- Co'a breca! Que te parece tudo isto? Não achas estranho que ele não nos procure?

- Hum! - redarguiu Hal Clayton. - Desconfias que ele nos tenha intrujado? O melhor é abrir esse papel.

Ao desdobrar o embrulho, apenas achámos dentro dele dois torrões de açúcar! Esta era a razão por que ele não viera à nossa procura, e dormira tão sossegadamente toda a noite. Um finório, não havia dúvida; porquanto conseguira preparar e ter prontos os dois invólucros, e trocar o dos diamantes por aquele em que metera os torrões, mesmo nas nossas barbas e sem que nós o sonhássemos sequer!

Ficámos achatados. Mas o que havia a fazer era traçar qualquer plano, e assim fizemos. Dobraríamos novamente o papel como estava quando o trouxemos, e tornaríamos a ir colocá-lo na tarimba do beliche; fingiríamos que não déramos pela tramóia, e que não tínhamos a menor suspeita de que ele se ria à nossa custa, enquanto se deixava adormecer muito tranquilo. Não arredaríamos pé de junto dele, e, logo que desembarcássemos, embebedá-lo-íamos e apoderar-nos-íamos dos diamantes. Uma vez que estivéssemos de posse destes, trataríamos de prevenir nos para que ele não nos pudesse fazer dano, pois ele não deixaria de no-lo fazer a nós quando se visse despojado das pedras. Mas isto daria resultado? Poderíamos emborrachá-lo, e revistá-lo por tempo sem fim, sem encontrar o que procurávamos.

- Mas, de repente, fiquei com a respiração suspensa, varreram-se-me todos os pensamentos da mente!

Acabava de descobrir algo que me encheu de contentamento. Eu tinha descalçado as botas, que me faziam doer os pés, a fim de os aliviar por uns instantes - e, querem vocês saber? - quando ia para as calçar outra vez, e peguei numa delas, o meu olhar pousou acidentalmente no tacão, e fiquei estupefacto. Já lhes digo porquê. Vocês lembram-se de eu lhes haver falado na chave de parafusos que um dos meus parceiros comprou?

- Lembramo-nos, sim - disse Tom em voz alta, vibrando de curiosidade.

- Pois bem, quando me fixei no tacão da bota, descobri onde ele tinha escondido os diamantes! Vocês vêem? Este tacão tem por baixo uma chapa de ferro, aparafusada. Foi para a desaparafusar que ele adquiriu a chave de que lhes falei.

- Não achas isto formidável, Huck? - comentou Tom.

- Sem dizer chus nem mus, calcei, então, as botas e, tendo ambos voltado ao beliche, colocámos o invólucro com os torrões de açúcar em cima da tarimba. Em seguida, sentámo-nos mansamente, sem ruído, e ficámos a ouvir o ressonar de Bud Dixon. Daí a pouco, Hal Clayton adormeceu, mas eu mantive-me acordado, e nunca estivera daquela maneira na minha vida. Ocultando o olhar sob a aba do chapéu, perscrutei o soalho do beliche a ver se descobria nele algum pedaço de cabedal. Depois de muito tempo, quando eu já considerava inútil aquela busca, divisei o que procurava. Estava junto da cabeceira da tarimba e era quase da mesma cor da alcatifa. Tratava-se duma pequena rodela com cerca de um centímetro de espessura, e calculei que naquele esconderijo teria ele ocultado os diamantes, donde os teria retirado no momento oportuno. Imagine-se a esperteza e a calma dum tipo daqueles! Prevendo que nós tentaríamos deixá-lo a chuchar o dedo, empregou aquela artimanha para nos cortar as vazas. Ele enquanto esteve só, retirou os diamantes do esconderijo do soalho, e tratou de os meter no tacão da sua bota, para o que desbastou a sola, e, uma vez as pedras ocultas na cavidade, tapou esta com um bocado de cabedal que aparafusou ao tacão. Ele calculou que nós não deixaríamos de roubar o invólucro com as duas pedras, e que, em seguida, esperaríamos toda a noite que ele despertasse e viesse ter connosco para o atirarmos à água, e não se enganava pois, como já expliquei, era esse o nosso plano. Reconheci então que ele era de facto um grande finório.

- E não resta dúvida que era! - exclamou Tom a transbordar de admiração.

 

Os três forasteiros

- Durante todo o dia simulámos vigiar nos mutuamente, e afirmo-lhes que, para dois de nós, semelhante comédia era bem enfadonha.

Quase ao anoitecer, desembarcámos numa pequena cidade do Missuri; perto de Iowa. Ceámos numa locanda, e alugámos um quarto com uma espécie de maca e duas camas; mas tive o cuidado de deixar o meu saco debaixo duma mesa tosca, no vestíbulo sem luz, enquanto nos dirigíamos para o dormitório, em fila simples, com o hospedeiro, alumiando com uma vela, à frente e eu à retaguarda de todos os outros. Tínhamos trazido uma provisão de whisky, e entretivemo-nos a jogar às cartas e a beber. Quando o whisky começou a fazer efeito na cabeça de Bud, nós cessámos de beber, mas procurámos conseguir que ele não nos imitasse, e que bebesse até cair da cadeira e ficar a ressonar no pavimento.

Eu disse, então, que seria melhor tirarmos as nossas botas para não fazermos ruído; e depois de nos descalçarmos, coloquei as minhas junto das de Bud, que assim me ficariam à mão. Em seguida, tirámos-lhe o fato e revistámos tudo, até o interior das suas botas, e a sua bagagem. Mas não encontrámos os diamantes. Achámos a chave de parafusos, e Hal disse: "Para que queria ele aquilo?" Eu respondi que não formava a menor ideia; mas num instante em que ele não olhava para mim, deitei-lhe a unha e guardei-a. O meu companheiro, desapontado, observou que era melhor desistirmos das nossas pesquisas. Era precisamente aquilo que eu desejava que ele dissesse. Para me evadir, lembrei que havia um lugar que nós não tínhamos esquadrinhado: o estômago de Bud. O meu companheiro achou óptima a lembrança, e perguntou como nos arranjaríamos para lhe revistar aquela víscera.

- E eu propus-lhe que ficasse ele ali, enquanto eu ia à rua, a qualquer farmácia, procurar um laxante que obrigasse as duas pedras a sair do lugar onde, sem dúvida Bud as teria escondido. Ele concordou com o projecto, olhou-me fixamente, mas a despeito disso, eu pude calçar as botas de Bud em vez das minhas, sem que ele notasse. Ficavam-me um pouco grandes, mas isso era preferível a ficarem-me apertadas. No vestíbulo, agarrei no meu saco e, num abrir e fechar de olhos, pelo caminho das traseiras da casa, dirigi-me a toda a velocidade para o rio.

Não era realmente desagradável caminhar assim sobre diamantes. Ao fim de um quarto de hora disse comigo: "Já me distanciei deles uma milha e tudo é tranquilidade à minha volta. "

      Após mais alguns minutos de marcha, já a uma distância de duas milhas e meia, pensei que Hal Clayton havia de estar inquieto e resmungando por causa da minha demora. E que, seguidamente, teria acabado por compreender o logro, e que naquele mesmo instante lhe estaria ocorrendo que eu havia encontrado as pedras enquanto revistávamos Bud Dixon, e que as guardara à socapa. Apercebendo-se disto, ele teria saído correndo para se lançar em minha perseguição, buscando orientar-se pelos vestígios de pegadas, que aliás, era um rasto muito incerto. De súbito, vi caminhar na minha direcção um homem montado numa mula, e,      num impulso irreflectido, corri a esconder me atrás duns arbustos. Quando chegou em frente do maciço onde eu me refugiara, parou e esperou um pouco que eu aparecesse, e como isto não se deu, sacudiu as rédeas da azémola e continuou a sua jornada. O incidente inquietou-me, porque se aquele homem encontrasse, o Hal Clayton, este, enfurecido por ter sido ludibriado, não deixaria de querer tirar uma desforra da partida.

Enfim, pelas três horas da madrugada cheguei a Alexandria, e ao ver ali o barco fiquei muito satisfeito, porque, como vocês compreendem, me julguei perfeitamente a salvo. Entretanto, amanhecera. Entrei para bordo, meti-me neste camarote e, para me distrair, observei os diamantes, à espera de que o barco partisse, coisa que ele não fez. Ocorrera qualquer desarranjo na máquina, que foi preciso reparar, se bem que eu nada percebesse do que se passava, porque não entendo patavina de barcos a vapor. Em suma, apenas largámos dali, pelo meio-dia. Porém, muito antes de o navio se pôr em andamento, eu , havia-me escondido neste beliche, porque, antes do primeiro almoço, bispara um sujeito cujo pisar se parecia com o de Hal Clayton, e este facto acabrunhou-me de todo em todo. Disse para comigo que, se ele me descobrisse a bordo deste barco, me deitaria as unhas como a um rato sem buraco por onde fugisse.

Ele não deixaria, pela certa, de me espiar e de esperar até que o barco tocasse em qualquer porto, onde eu saísse e donde ele me seguiria para me matar no primeiro sítio que se lhe afigurasse de feição. Se ele conseguisse ter os diamantes à mão, fazia-me a partida e eu ia parar perto! Era horrível! E pensar que, ainda por cima, o outro, o Bud, também se encontrava a bordo! Isto seria u ma desgraça, rapazes, uma verdadeira desgraça! Mas vocês vão ajudar-me a salvar me, não é assim? Sejam compassivos, rapazes, para um pobre diabo que eles perseguem e querem matar, e salvem-me, e eu admirarei o chão que vocês pisarem!

Tom e eu tentámos reanimá-lo, prometendo-lhe que planearíamos a forma de o ajudar, e incitando-o a libertar se daquele terror. Pouco a pouco, retomou ânimo, e, então, pôs-se a desaparafusar o tacão da bota, de cujo vão retirou as duas pedras. Remirou-as com ar admirativo e caricioso. Quando lhes dava a luz, faiscavam e eram realmente belas. Apesar de tais fulgores, eu não pude abster me de pensar que Jake Dunlap não passava dum louco, porquanto fácil lhe seria entregar os dois bocados de vidro refulgente aos seus cúmplices, e desse modo conseguiria que eles desembarcassem e o deixassem em paz. Mas o juízo não lhe chegava para tanto. Ele entendia que valiam uma fortuna, e isso fazia-o esquecer de tudo o mais.

O vapor, durante o percurso, teve de parar duas vezes para reparação das máquinas; e uma das paragens foi de noite, e bastante demorada. Mas Jake achou que a escuridão não era suficiente, e não se atreveu a escapulir se de bordo. Depois, o barco teve de se deter novamente, pelo mesmo motivo. Desta feita, surgiu uma oportunidade mais favorável. Tínhamos atracado nas vizinhanças dum depósito de madeiras no campo, a umas quarenta milhas da fazenda do tio Silas, um pouco depois da uma hora da madrugada. O céu estava carregado de nuvens escuras e ameaçava tempestade. Jake entendeu que o ensejo era propício para fugir do vapor. Começaram a embarcar madeira no barco. Mas daí a pouco a chuva principiou a cair, insistente, e o vento soprava com força. Os carregadores de bordo haviam enfiado sacos de grossaria na cabeça à laia de capuzes como costumavam fazer quando acarretavam madeira.

Tom e eu lográmos apoderar nos de um daqueles compridos sacos, para Jake. Este, assim disfarçado, desembarcou, misturou-se com os carregadores, e safou-se levando o seu taleigo de viagem na mão, e quando nós, à luz dos lampiões, o vimos afastar-se e desaparecer nas trevas, pudemos respirar novamente, cheios de satisfação. Porém, o nosso contentamento durou pouco. Ninguém denunciou a sua fuga, segundo nos pareceu; daí que, passados uns escassos oito ou dez minutos, os outros dois figurões desembarcaram também com quanta rapidez puderam, e logo se meteram por terra dentro, sumindo-se por sua vez na escuridão da noite. Nós esperámos a pé firme até de madrugada que os dois perseguidores de Jake regressassem, mas eles nunca mais voltaram a bordo. Ficámos cheios de pesar e deprimidos.

E apenas nos restava a esperança de que, graças à dianteira que Jake lhes levava, os dois gabirus não conseguissem alcançá-lo, podendo ele, assim, chegar a casa do seu irmão, onde se esconderia e estaria salvo. Jake tencionava seguir o caminho que corria ao longo da margem do rio, e, antes de partir, havia-nos pedido que, à nossa chegada ao destino, víssemos se os seus irmãos Brace e Júpiter estavam em casa e se não havia gente estranha, após o que deveríamos procurá-lo ao pôr do Sol e informá- lo. Dissera-nos também, então, que esperaria por nós num pequeno maciço de sicómoros, mesmo atrás da plantação de tabaco do tio Silas, local solitário à beira do rio.

Durante bastante tempo, estivemos ambos conversando acerca da sorte que o acaso reservaria a Jake. Na opinião de Tom, seria afortunado para ele que os outros subissem e não que descessem o curso do rio, mas isso não era provável porque talvez soubessem donde era. O mais certo era endireitarem pelo caminho que tomara, perseguindo-o todo o dia, sem que ele o suspeitasse, e que, chegada a noite, o matassem e lhe tirassem as botas. E tudo isto, assim visionado, nos encheu de tristeza.

 

Tragédia na floresta

Já passava do meio-dia quando a máquina do vapor, que claudicava por assim dizer a cada passo, ficou de novo reparada; e foi quase ao sol-posto que conseguimos desembarcar no ponto que demandávamos, e donde nos dirigimos ao nosso destino. Calcorreámos a estrada sem parar no trajecto, até que torcemos caminho para o bosque de sicómoros, com a maior rapidez que nos foi possível, a fim de comunicar a Jake o motivo da nossa demora, e dizer lhe que esperasse ali até nós voltarmos duma saltada a casa de seu irmão Brace, para observarmos como as coisas por lá estavam. Já fazia muito escuro quando chegámos à orla da floresta, cheios de suor e arquejantes com aquela longa corrida. Estávamos a umas trinta jardas dos sicómoros, quando vimos dois homens correndo para lá, em seguida ao que ouvimos dois ou três dilacerantes gritos de socorro.

- Com certeza, mataram o pobre Jake - dissemos ambos ao mesmo tempo.

Estávamos trespassados de medo, e fomos, correndo, esconder nos na plantação de tabaco.

Tremíamos de tal maneira que as nossas roupas só a custo se sustinham; e mal nos tínhamos precipitado para aquele sítio, vimos passar a pouca distância dois homens que se sumiram na floresta. Um segundo depois, surgiram quatro homens que corriam pela estrada a toda a velocidade, perseguindo, os dois de trás, os dois da frente.

Nós, estendidos no chão, semimortos de terror, ficámos à escuta, a ver se ouvíamos mais barulho, mas nada ouvimos durante uns momentos a não ser as pancadas do nosso coração. Por último, divisámos à distância, entre os sicómoros, uma coisa assustadora, semelhante a um espectro, que nos produziu calafrios. A coisa nasceu, como se irrompesse da terra, majestosamente grande, redonda e brilhante, e, por entre as filas de árvores, dava a impressão duma cara a espreitar através das grades duma prisão. Víamos por todos os lados alongarem-se escuras sombras e clarões, e à nossa volta tudo era de uma alarmante quietude, que o sopro da brisa da noite, fúnebre e impressionante, não perturbava.

De repente, Tom murmurou:

- Olha para além! Que será aquilo?

- Não sei - redargui - mas não me assustes dessa forma, porque quase morto de medo já eu estou.

- Olha para lá, repito-te. Qualquer coisa vem a sair do meio das árvores.

- Cala-te, Tom.

- É duma altura extraordinária.

- Oh, céus! Fujamos.

      - Deixa-te estar quieto. Delírio da minha vista, seja o que for, aquilo dirige-se para este lado.

O meu companheiro, quase tão perturbado como eu, mal podia falar. Olhei também. Estávamos ambos de joelhos atrás dum talude pouco elevado, com o queixo apoiado numa saliência da rampa, trémulos e ofegantes. O vulto aproximava-se pela vereda do bosque e só o distinguimos bem quando se avizinhou bastante de nós. A luz da Lua iluminava-o, e nós, pensando que aquilo fosse o fantasma de Jake Dunlap, atirámo-nos para o fundo do nosso esconderijo, tomados de enorme pânico.

      Daí a momentos, espreitámos, e como o vulto já tivesse desaparecido, pusemo-nos a falar a respeito dele em voz baixa, e Tom reflexionou:

      - Dizem que a maioria dos espectros são como sombras esfumadas, ou talvez sejam feitos de névoa, mas este tinha aparência diferente.

- Eu vi-lhe perfeitamente as lunetas e o bigode.

- Sim, e a cor do fato lembrava a das vestes dos camponeses em dia de festa, com calções verdes assertoados a preto.

- O casaco de veludo aos quadrados amarelos e cor de romã.

- Com atilhos de correia nas extremidades dos calções, e uma das correias ia pendente.

- E o chapéu, reparaste?

- Era um penante bem estranho, para um fantasma!

Naquela época começavam a usar uns chapéus negros, de aba direita rígida, muito altos, de superfície áspera, e com copa circular à guisa de qartola.

- Notaste se o cabelo era o mesmo, Huck?

- Parece-me que sim, e parece-me que não.

- Ficamos na mesma! Eu também não reparei. Mas lembro-me de que ele levava o saco da bagagem na mão.

- Isso notei eu, igualmente. Haverá sacos para fantasmas, Tom?

- 'Tá visto! Admira-me que tu não tenhas ouvido contar, o que não sucederia se tu fosses eu, que o ouvi, que se torna fantasmático tudo que a fantasma pertence. Eles têm o que é deles, como qualquer outra pessoa. Tu acabaste de ver como a sua andaina se transformou numa veste de aspecto fantástico. Por conseguinte, porque não havia ele de trazer a sua taleiga de viagem?

Aquilo tanto podia ser como não ser razoável; mas por deferência para com o meu companheiro, optei pela primeira hipótese, tanto mais que é tão fácil zangarem-se as pessoas por coisas deste mundo, que não há que procurar motivos, fantásticos, para isso no outro mundo. Certa ocasião vi dois amigos esmurrarem-se, porque um afirmava que determinado grande vulto da história dos séculos idos era um déspota e um salafrário, e o outro defendia opinião contrária. E como o primeiro dissesse ao segundo que ele era tão bom como aquele de cuja memória e conduta sobre a terra se fazia paladino, engalfinharam-se; e eu retirei-me, porque não me meto nunca onde não sou chamado, tanto mais que eu não sabia qual dos dois contendores tinha razão, se porventura algum deles a tinha. De súbito, interrompendo estas cogitações, vimos aparecer Bill Withers, um sujeito um tanto esconso, que eu e Tom conhecíamos, e seu irmão Jake. Quando passaram pelo lugar onde nós estávamos escondidos, Jake ia dizendo para o irmão:

- Que calculas tu que contivesse o volume que elevava às costas?

- Não faço ideia; mas parecia ser bastante pesado.

- Naturalmente, pois suponho que seria algum negro ajoujado com cereais subtraídos ao velho pároco Silas.

- Eu também suponho o mesmo. Por isso pensei que não valia a pena correr atrás dele para ver quem era.

- Está claro que não valia a pena.

Riram-se ambos, e afastaram-se até que deixámos de ouvir as suas vozes. Aquilo mostrava bem como o tio Silas se tornara impopular. Apesar de suspeitarem de que o preto roubara o grão do celeiro, não intervieram, coisa que não deixariam de fazer se a vítima do furto fosse outra.

Instantes depois, ouvimos o ruído doutras vozes que se iam acercando do ponto onde nós permanecíamos e que se iam tornando mais claras, entrecortadas, por fortes gargalhadas.

Do nosso esconderijo, lobrigámos, ao perpassarem por nós, que se tratava de Lem Beebe e Jim Lane, e ouvimos este último dizer:

- Quem? Júpiter Dunlap?

- Sim.

- Não sei; mas talvez fosse. Vi-o há cerca de uma hora, pouco antes do pôr do Sol, na companhia do cão. Disse que não podia afastar se esta noite, mas que podíamos levar o seu cão, se precisássemos dele.

- Achaste-o muito cansado, não é assim?

- Sim, trabalha muito! Estafa-se à procura de pretextos para não fazer nada.

- Não aposto que isso não é verdade, porque perde.

Riram-se, e foram-se perdendo na distância.

Tom propôs-me, naquela altura, que seria melhor abandonarmos a vala onde nos ocultávamos, e seguir os dois homens, visto que o nosso trajecto era o deles, seria desagradável arriscarmo-nos a topar com o espectro de Jake num ermo daqueles.

Assim fizemos, e chegámos a casa sem qualquer novo incidente. Aquela noite de sábado, caiu a 2 de Setembro. Nunca o esquecerei.

Um pouco mais adiante, vereis porquê.

 

Tom Sawyer projecta chamar a si, por dois dólares, os diamantes que andavam à procura dum dono

Seguindo atrás de Jim e Lem, fomos palmilhando a estrada até chegarmos à cancela do eido onde, numa barraca, residia o velho escravo que nós havíamos libertado da suserania do tio Silas.

Momentos depois, os cães deste último atropelavam-se à nossa volta como que a darem-nos as boas-vindas e, a pouca distância, as luzes da casa pareciam chamar-nos. Esta ambiência restituiu-nos a tranquilidade, e já nos dispúnhamos a subir para saudar a família, quando Tom se deteve bruscamente, dizendo:

- Espera lá. Não me ocorria isto, cos diabos! Sentemo-nos aqui um instante.

- Que temos, então? - disse eu.

- É algo importante - volveu ele. - Com certeza não pretendes que sejamos nós os primeiros a falar do morto do bosque de sicómoros? E que vamos descrever tudo o que observámos acerca dos meliantes que o assaltam, e dos diamantes que eles devem ter retirado da bota do cadáver, só para desfrutarmos a glória de sermos os primeiros a contar estas coisas?

- Tens razão! Deixarias de ser Tom Sawyer se procedesses com tanta simplicidade. Mas não perdem com a demora; quanto mais esperarem, melhor pintura lhes apresentarás.

- Enganas-te - atalhou ele, com perfeita calma. Afirmo-te que decidi não dizer uma palavra sobre este assunto. Assombrado de o ouvir falar assim, observei:

- Parece mentira! Estás falando sério, Tom Sawyer?

- Cedo o verás! Olha lá: reparaste se o fantasma ia descalço?

- Não, não ia descalço. Porquê?

- Já lá vamos; já vais ver porquê. Levava, portanto, as botas calçadas?

- Sem dúvida, notei isso muito bem.

- Juras?

- Decerto! Juro.

- Também eu o juro. Agora, vejamos: sabes tu o que isso significa?

- Significa que os que o assaltaram não levaram os diamantes.

- E porque supões isso?

- Não suponho, tenho a certeza. Porventura não converteram em coisas de fantasmas os calções, as lunetas, o bigode, o taleigo, e tudo que levava consigo? E o mesmo sucedeu com as botas, visto que as levava calçadas quando o vimos a deambular pelo bosque. Ora, isso não prova que os seus matadores não tiveram tempo de despojar das botas, a que havemos de chamar prova.

Avalie-se por isto que cabeça maravilhosa era a sua! Nunca admirei perspicácia como a de Tom Sawyer! E por fim, eu tinha olhos para ver as coisas, mas estas nada significavam para mim. Com o meu companheiro não sucedia o mesmo. Quando via uma coisa, esta punha-se em pé e dizia-lhe toda a sua história. Não, nunca vi argúcia igual!

- Tom Sawyer - disse-lhe eu -, repito mais uma vez que não tenho capacidade sequer para te limpar os sapatos. Mas isto não tem importância. O Ser Supremo dispôs as coisas assim, e por isso não lastimo a minha insuficiência, nem invejo a tua grandeza. Continua, pois. Agora percebo claramente que os bandoleiros não tiraram os diamantes a Jake. E, na tua ideia, porque não lhos teriam tirado?

- Simplesmente porque fugiram ao verem correr os outros dois homens, antes de haverem arrancado as botas ao cadáver.

- Dizes bem! Compreendo agora. Mas por que não havemos de contar isso?

- É possível que o não adivinhes, Huck Finn? Reflecte nisto: que sucederia se o contássemos? Far-se-ia uma investigação durante a manhã, e esses dois homens que afugentaram os salteadores contariam que ouviram gritos e que correram para acudir, mas que não chegaram a tempo de salvar o forasteiro.    

Por fim, o júri, após os debates do costume, pronunciará o veredicto, no qual se descreverá que o desconhecido fora morto a tiro, à cacetada, ou por estrangulamento, porque assim o quis o Destino. E, depois de inumerarem o defunto, venderão todas as suas coisas em hasta pública, a fim de se pagarem as despesas originadas pelo caso. Será precisamente na altura do leilão que chegará para nós uma boa oportunidade.

- Que pensas fazer, Tom?

- Comprar as botas por dois dólares!

Aquele plano quase me tirou a respiração.

- Formidável! E dessa maneira ficaríamos nós, não é isso, Tom? com os diamantes roubados pelos três ladrões! Mas não nos cumpriria entregá-los aos donos?

Ou informar o júri para que fossem entregues?

- Às vezes, chego a crer te, quando te declaras uma cabeça de avelã! Quem sabe disto senão nós?

- Por o sabermos é que.

- Julgava-te menos néscio, Huck Finn! - atalhou o meu companheiro, que logo acrescentou: - Qualquer dia, podem oferecer um prémio a quem lhos entregue,

- uma soma importante, que por certo não será inferior a mil dólares. E tal importância será nossa! Agora vamos cumprimentar a gente aqui do sítio. Mas não esqueças que nada sabes acerca de qualquer assassínio, de quaisquer diamantes, nem de quaisquer ladrões. Não esqueças o que te recomendo.

Soltei um breve suspiro, com pena de o ver determinar as coisas daquele modo. A sabedoria que Tom me transfundira, havia pouco, tinha-se rapidamente expandido na minha cachimónia, e daí pensei para comigo:

Seria ainda mais sensato vendermos os diamantes por doze mil dólares, nem mais nem menos. Mas conhecendo a intransigência olímpica dos ditames de Tom Sawyer, limitei-me a inquirir:

- E que vamos nós dizer à tia Sally, para explicar a nossa demora em chegarmos do povoado, aqui à fazenda?

- Ocupa-te tu de a aturar. Inventa o que entenderes. Decerto lhe darás explicações que a satisfaçam.

Tom era sempre muito escrupuloso e delicado nos seus assuntos com as tias, além do mais porque precisava delas. Jamais desceria a uma mentira, pelo menos quando achava alguém que mentisse por ele. A tia Polly, do Mississipi, assim pensava a seu respeito. Verdade seja que a tia Polly não era muito certa para relógio, porque, extremamente dominadora e vingativa como mula de recoveiro, pelava-se por atormentar quem quer que fosse que não se curvasse quando ela proclamava a sua vontade.

Atravessámos o vasto pátio, olhando todos os seus pormenores, que nos eram familiares e gratos, e ao chegarmos ao corredor, com telhado, que liga a casa com a cozinha, notámos que tudo seguia ali como dantes, cada coisa pendurada no seu lugar do costume, inclusive a velha e puída blusa esverdeada que o tio Silas usava no trabalho, com seu capuz, e um remendo de pano branco de ombro a ombro, que, ao longe, dava a impressão de haver sido atingido naquele ponto por uma bola de neve que alguém lhe tivesse atirado.

Levantámos o trinco da porta e, ao entrarmos, vimos que a tia Sally andava, conforme era seu costume, numa dobadoura dum lado para o outro. As crianças estavam reunidas a um canto, e noutro o velho Silas parecia rezar, com expressão muito preocupada. A velhota assim que nos viu correu para nós, com lágrimas de alegria a deslizarem-lhe pela face; e, dando-nos um carinhoso puxão de orelhas; abraçou-nos e beijou-nos efusivamente. Repetiu aquelas demonstrações de alegria várias vezes, e, por fim, disse:

- Por onde têm vocês andado a vadiar, seus marotos? Estava já tão apoquentada por não saber de vocês, que nem sabia o que havia de fazer. As vossas bagagens já aqui chegaram há que tempos, e tive que aquecer a ceia algumas quatro vezes, para não estar fria e sem graça quando vocês aparecessem. Impacientei-me tanto de estar à espera que, palavra! sentia ganas de vos esfolar vivos! Vocês devem estar cheios de fome, coitados! Sentem-se! Sentem-se ambos e não percam mais tempo.

      Era-nos bem agradável encontrar- nos ali outra vez, em frente da sopa de milho indiano, de umas costeletas e outros acepipes. E enquanto o velho Silas descascava uma das suas mais solenes bênçãos à maneira antiga, com mais refolhos do que uma cebola, eu rebuscava na mente algo que pudesse explicar a nossa demora. Quando, cheios os pratos diante de nós, principiámos a comer, ela interrogou- me a tal respeito e eu tentei uma desculpa:

- Não vê a senhora que.

- Porque te deu agora, Huck Finn - interrompeu-me, abespinhada -, para me chamar senhora? Na verdade nunca te regateei tabefes e beijos, porque o dinheiro poupa-se, desde o primeiro dia em que entraste nesta casa, sem fazer distinções entre ti e Tom Sawyer E agradecia a Deus a tua presença - até por ter à mão de semear mais um pelém para lhe dar sopapos e ajudar à faina -, muito embora me impingisses milhares de mentiras que eu engolia como uma papa- natas!

Pensei para comigo que ela mentia, atribuindo-me toda aquela aluvião de patranhas, mas calei-me, e ela intimou-me:

- Chama-me tia Sally, como sempre me chamaste. Apressei-me a obedecer, e disse:

     - Pois bem, tia Sally, eu e o Tom viemos a pê para respirar melhor. Encontrámos no bosque o Lem Beebe e o Jim Lane, que nos pediram que fôssemos às amoras com eles, afiançando-nos até que poderiam levar um cão de Júpiter Dunlap. Acrescentaram que tinham falado com Júpiter, um instante antes.

- Onde é que eles o viram? - perguntou o velho Silas. Relanceei a vista para ele por não esperar aquela manifestação de dúvida em minúcia tão insignificante, e notei que o seu olhar ansioso fuzilava na minha direcção. Isto surpreendeu-me tanto que fiquei um momento atrapalhado, mas logo recuperei a serenidade, e disse:

- Viram-no quando estava amanhando umas terras na sua companhia, quase ao pôr do Sol.

Ele soltou uma exclamação que traduzia um certo desapontamento, e desinteressou-se logo por completo da minha conversa com a tia Sally. Observando isso, continuei:

- Bem, como eu ia então dizendo.

- Basta, não digas mais nada - atalhou ela, trespassando-me com um olhar indignado e objectando em se falar em colher amoras, em Setembro, nesta região?

Apanhado numa invencionice tão absurda, fiquei varado, sem poder dizer nada. A tia Sally aguardou um momento com os olhos cravados em mim, e depois prosseguiu:

- E como podia ocorrer-lhes essa ideia idiota de ir colher amoras na escuridão da noite?

- É que, sim, é que eles disseram-nos que tinham uma lanterna, e.

- Oh, fecha essa boca, Huck! E, olha lá, para que lhes servia um cão? Para caçar as amoras com ele?

- Quer me parecer que.

- Ouve tu, agora, Tom Sawyer: que casta de mentira estás ruminando para acrescentar a todas estas trapalhices? Fala, mas aviso-te desde já de que não acreditarei uma palavra do que acrescentares. Tu e Huck fizeram qualquer partida; conheço-os bem a ambos. Explica-me, pois, o que significa isso do cão, das amoras, da lanterna, e trata de falar direito como uma linha esticada, ouviste?

Tom, bastante impressionado, ainda conseguiu redarguir, com um ar muito digno:

- É lamentável que Huck dissesse o que acaba de ouvir, apenas devido a um pequeno lapso que qualquer podia ter.

- A que lapso te referes?

- O de haver dito amoras em vez de dizer morangos.

- Se continuas a querer embair-me dessa forma, Tom Sawyer, garanto-te que.

- Creia, tia Sally, que, sem o saber e sem o querer, está laborando num erro. Se a tia houvesse estudado história natural, não ignoraria que em todo o mundo, excepto aqui em Arkansas, se apanham morangos com um cão e uma lanterna.

A indignação da tia Sally aumentou, ao ouvir aquela descarada balela, e fez cair sobre Tom uma saraivada de ralhos. Encolerizara-se de tal modo que as palavras se lhe atropelavam ao lançá-las em torrente. Era precisamente aquilo que Tom desejava. Deixou-a desabafar, sem lhe interromper as censuras, nem o fluir da cólera. No fim, ela ficaria tão enjoada daquele assunto que não tornaria a dizer uma palavra sobre ele, nem permitiria que outros a dissessem. Foi, de facto, o que sucedeu. Quando notou que o furor de sua tia se dissipava e que ela ia cessar de ralhar, Tom insinuou com a maior calma:

- E, apesar de tudo, tia Sally.

- Cala essa boca! - explodiu ela. - Não te quero ouvir nem mais uma palavra.

Desta forma nos vimos livres da dificuldade, sem nos preocuparmos mais com a explicação da nossa demora. Realmente, a astúcia de Tom Sawyer tivera êxito.

 

Noite de vigília

No decorrer da ceia notámos que, talvez devido à nossa presença, Benny, a prima de Tom, se mostrava tranquila, conquanto suspirasse de vez em quando. Depressa começou a interessar se por tudo, perguntando por Mary, por Sid e por Polly, tia de Sawyer. Entretanto, as nuvens que ensombraram o aspecto da tia Sally desapareceram e ela recuperou o seu bom humor. Associando-se às perguntas no que à família se referia, estabeleceu, com a sua afabilidade natural, um ambiente alegre e agradável até ao fim do repasto. Mas o velho Silas quase não articulou uma palavra durante todo aquele tempo, e tinha um ar inquieto e abstracto, suspirando amiúde. Metia dó vê-lo tão triste, sem sossego, e preocupado.

Pouco depois de terminar a ceia, bateu à porta um negro que, dentre os umbrais, dando voltas ao seu velho chapéu de palha, comunicou que o seu amo, Brace, se encontrava lá em baixo, ao fundo da escada, à procura de seu irmão, e que estava farto de esperar por ele para cear. Por isso, pedia ao tio Silas o favor de lhe dizer onde estava Júpiter.

Eu nunca tinha ouvido o tio Silas responder com tanto desabrimento e mau humor como naquele momento, quando resmungou:

- Que maçada! Sou eu, porventura, guarda do irmão dele?

Porém, acalmando-se logo, pareceu repeso de haver respondido assim, e disse, com doçura:

- Não lhe digas isto, Billy. Vieste falar-me num momento em que me encontro mal disposto. Há uns dias que não ando nada bom, e mal sei o que digo. Informa-o apenas de que o seu irmão não está aqui.

Quando o negro saiu, ele pôs-se a passear pela sala, dum lado para o outro, resmoneando e murmurando para si coisas sem nexo, ao mesmo tempo que, maquinalmente, passava a mão pelo cabelo. O seu aspecto, na verdade, causava pena. A tia Sally avisou-nos, em segredo, de que não devíamos dizer lhe nada, porque, se percebesse que o observávamos, ficaria muito agitado. Ela contou-nos, baixinho, que desde que haviam começado as hostilidades com os Dunlap, se fora tornando dia a dia mais cismático, e que, ao magicar naquelas coisas, andava como areado de juízo e nem dava tento do que fazia. Revelou-nos, também, que se haviam tornado mais frequentes os seus acessos de sonambulismo, e que por vezes andava, adormecido, pela casa e chegava a sair para a fazenda. Que, se se desse o caso de o toparmos num desses acessos, não deveríamos acordá-lo, nem interromper a sua divagação. No entender dela, aqueles passeios sonambólicos não o prejudicavam e antes lhe faziam bem. Acrescentou que, desde que se haviam agravado aquelas cismas, não queria que ninguém lhe falasse, excepto Benny. Só esta sabia como tratá-lo nas suas crises maiores e quando convinha deixá-lo sozinho.

Ao fim de algum tempo daquele passeio de maníaco dum lado para o outro da vasta quadra, sem cessar de resmungar entre dentes, o tio Silas deu mostras de estar muito fatigado. Então, Benny acercou-se dele, pegou-lhe numa das mãos e, passando-lhe o braço pela cintura acompanhou-o uns momentos no seu passeio. O velho cura sorriu-se para ela e beijou-a; e daquela forma, pouco a pouco, a sua agitação dissipou-se, e ela persuadiu-o a ir se deitar, o que ele fez com docilidade.

A tia Sally também subiu ao piso superior para deitar as crianças. Eu e Tom, sentindo-nos aborrecidos de estar ali parados, saímos para dar uma volta ao luar.

Chegados ao melancial próximo, tratámos de comer uma melancia, enquanto conversávamos. Tom era de opinião de que todos os desconcertos que notávamos naquela casa eram motivados pela presença de Júpiter; e ia procurar certificar-se se assim era. No caso afirmativo, faria todo o possível para ajudar o tio Silas a despedi-lo do serviço da fazenda. Deste modo, conversando, fumando e comendo melancias, passámos cerca de duas horas, e então, como já era bastante tarde, voltámos para casa. Nesta já se haviam apagado as luzes e reinava tranquilidade, pois todos se tinham, entretanto, recolhido aos seus quartos.

Ao passarmos no corredor, Tom, a quem nada escapava, notou que a blusa verde do tio Silas desaparecera. Nós tínhamo-la visto pendurada no lugar do costume quando saímos, e, comentando aquele estranho facto, subimos ao andar superior e fomo-nos deitar.

Ouvíamos Benny andar de um lado para o outro no seu quarto, contíguo ao nosso , e calculámos que, preocupada com seu pai, não se deitara. Também nós não podíamos conciliar o sono. Estivemos a pé ainda por algum tempo, fumando e conversando em voz baixa, bastante tristonhos e abatidos. Falámos do assassínio de Jake e do fantasma do bosque, e tudo aquilo nos enervou de tal maneira que não nos chegava o sono.

Ao fim dum largo lapso de tempo, já noite alta, quando até nós apenas vinham fracos ruídos distantes, Tom, chamando-me a atenção, em voz baixa, disse-me que olhasse para o exterior da casa. Olhei e pude ver um homem que se movia no pátio, hesitante, como se não tivesse uma clara noção do que queria fazer. Como a noite estava um tanto escura não o víamos distintamente.

Por fim, dirigiu-se para os degraus que davam acesso à cancela, e, quando ele os subia, pudemos ver, numa aberta de forte luar, que levava uma pá de ferro ao ombro, e divisámos a mancha branca do remendo da sua velha blusa.

- Anda a passear, adormecido - disse Tom. Gostaria de poder segui-lo, e de observar aonde é que ele vai. Olha, está a atravessar agora o campo de tabaco. lá desapareceu! É horrível que o coitado deambule daquela forma, porque assim não pode repousar.

Esperámos muito tempo, mas o tio Silas não regressou, a menos que tivesse dado a volta por outro lado da casa; e nós, por fim, cansadíssimos, fomos dormir. O nosso sono foi agitado por infindáveis pesadelos. Pela madrugada desencadeou-se uma formidável tormenta, cujos trovões e relâmpagos nos despertaram. O vento estorcegava as árvores, e a chuva caía em bátegas diluvianas, transformando os regatos em torrentes.

A certa altura, Tom disse:

- Ouve, Huck, isto é bem curioso. Até ao momento em que eu e tu saímos, à noite, ninguém aqui sabia da morte de Jake Dunlap. No entanto, os homens que perseguiram Hal Clayton e Bud Dixon deveriam, em boa lógica, ter espalhado a notícia por todos os lados em meia hora, e parece que todos os que na aldeia o souberam haviam de ir de casa em casa, no afã de serem os primeiros a contá-la. Porque, enfim, eles não terão, nem de trinta em trinta anos, uma coisa tão importante como esta para dizer! Acho isto, portanto, deveras estranho, e não posso compreendê-lo.

E assim esperou, impaciente, que a chuva parasse, a fim de podermos sair e falar com gente do lugar, a ver o que nos diziam. Tom observou que, se alguma coisa nos contassem sobre o assunto, deveríamos mostrar-nos cheios de surpresa e horrorizados.

Assim que cessou a chuva, saímos. Já era então dia claro. Fomos andando estrada fora, e sempre que encontrávamos qualquer pessoa detínhamo-nos e, depois da troca de saudações, dizíamos-lhe da nossa chegada, como tínhamos encontrado a família em casa, quanto tempo tencionávamos demorar nos ali e outras coisas triviais. Mas nenhum dos indivíduos com quem travámos conversa nos disse uma palavra acerca do assunto, o que nos surpreendeu e não deixava lugar a dúvidas. Tom, em dado momento, disse-me de súbito:

- Ia apostar que, se déssemos uma saltada ao bosque, encontraríamos ali o cadáver solitário, abandonado, sem alma viva nas cercanias.

Era convicção sua que os homens haviam perseguido os ladrões tanto para o interior da floresta que os fugitivos teriam de algum modo tido ensejo de lhes fazer uma rápida espera e de os atacar, e provavelmente, ter-se-iam morto todos uns aos outros, não ficando nenhum para contar o sucedido.

Quase sem dar por isso, calcorreando apressados o caminho, achámo-nos no bosque de sicómoros. Percorriam-me a espinha calafrios tais, que decidi não dar mais um passo, apesar de todas as instâncias de Tom em contrário. Ele, porém, não conseguia reprimir a sua curiosidade, e avançou para ir ver se as botas ainda se conservavam nos pés do morto. Um instante depois, estava de volta, agitado e com os olhos brilhantes, e, ao chegar perto de mim, gritou-me:

- Huck! O morto desapareceu.

Eu fiquei assombrado e disse:

- É possível? Estás a brincar!

- Desapareceu, podes crer; não vi nem sinal dele. O chão está pisado, mas sem quaisquer vestígios de sangue; a chuva da trovoada deve tê-lo sumido, por que está lá tudo cheio de poças de água e de lama.

Resolvi ir ver com os meus próprios olhos e certifiquei-me de que Tom falara verdade - não havia no local o menor rasto do cadáver.

- Maldição! - exclamei. - Os diamantes foram-se. Não te parece, Tom, que os ladrões voltaram atrás e levaram o defunto?

- Parece que sim. Dá a impressão de que foi isso que fizeram. Mas onde o teriam escondido?

- Vá lá sabê-lo! - volvi, aborrecido. - Nem isso importa. O que interessa, e vemos, é que as botas se evaporaram. O morto pode ficar no bosque o tempo que quiser, que não serei eu quem o irá procurar.

Tom, em face de nenhum êxito da nossa diligência, apenas sentia curiosidade em saber para onde teriam levado o morto, e opinou que, se nos conservássemos vigilantes, não tardaria muito que os cães, ou alguém que passasse pelo bosque, o encontrassem.

Regressámos a casa para almoçar, muito aborrecidos da nossa vida com o desapontamento que sofrêramos. Nunca um cadáver me dera um dissabor assim.

 

Colóquio com o fantasma

O pequeno-almoço decorreu num ambiente pouco ameno. A tia Sally tinha o ar envelhecido e cansado, e deixou que as crianças fizessem bulha e até que jogassem à pancada umas com as outras, sem ligar importância ao caso, o que não era seu costume.

Eu e Tom estávamos absortos nos nossos pensamentos e não dizíamos palavra. Benny, que mal repousara umas horas, tinha o aspecto fatigado pela sua vigília, e quando ela ergueu um pouco a cabeça para lançar um olhar a seu pai, viam-se-lhe lágrimas nos olhos. O velho, com o olhar cravado no prato, onde a comida arrefeceu sem que ele a provasse, cismava e cismava, e não dizia uma palavra.

Momentos depois, quando tudo estava em sossego, assomou à porta a cabeça do negro para dizer que o seu amo Brace estava extremamente inquieto por causa do amo Júpiter, que ainda não voltara para casa, motivo por que rogava ao amo Silas o favor.

O preto, olhando para o tio Silas, suspendeu o resto da frase, como se ela se lhe houvesse congelado nos lábios, porque entretanto o velho tinha-se erguido, trémulo, amparando-se com os dedos na mesa, e olhava, ofegante, para o negro. Fez o gesto de quem se sente asfixiar, elevou duas vezes a mão à garganta; por fim, voltou-lhe a fala, e disse:

- Mas que é, sim, que é que ele pensa? Dize-lhe, dize-lhe. - não concluiu a frase, porque caiu desfalecido, esgotado, na sua cadeira, para logo acrescentar em voz tão fraca que mal se ouvia:

- Vai-te! Vai-te!

O preto, amedrontado, retirou-se. Nós ficámos impressionados, pensando não sei o quê, e observando o velho Silas, cujo aspecto traduzia um pânico horrível, e que arquejava e lançava em redor de si olhares aflitivos como os de alguém que vai morrer. Benny acercou-se dele com doçura, com lágrimas a deslizarem-lhe pela face, e pôs-se a seu lado, após o que encostou ao seio a cabeça branca do triste velho e começou a acariciá-lo, acenando-nos ao mesmo tempo para que os deixássemos sós. Nós obedecemos, em silêncio, como se a morte ali houvesse entrado.

Eu e Tom encaminhámo-nos para o bosque bastante pensativos e comparámos quão diferente era aquele Verão do anterior quando ali havíamos estado, e tudo era paz e alegria, todos se mostrando deferentes para com o tio Silas, que então se mantinha sempre afectuoso, bom e tratável, muito contrariamente ao que estava sucedendo. E concluímos por acordar em que, se ele não perdera de todo o juízo, pouco lhe faltava para isso.

O dia estava ameno, claro, cheio de sol, e à medida que nos internávamos pela floresta, ladeando colinas, em direcção às veigas, mais belos se nos afiguravam o arvoredo e as flores, a ponto de parecer impossível que existisse a desgraça num mundo como aquele, a par com a felicidade que ele exalava, e que muita gente fruía. A certa altura, suspendi de repente a respiração e, desfeito de terror, agarrei no braço de Tom, e tartamudeei:

- Olha para além! Lá está ele!

Ocultámo-nos, num pulo, atrás duma moita de arbustos, tremendo como as folhas destes quando o vento as sacudia. Julgo que soltei qualquer voz insólita, porque Tom repreendeu:

- Chuta! Leva de ruídos!

O vulto estava sentado num tronco caído, na margem da pradaria, e tinha o ar pensativo. Tentei persuadir Tom a irmo-nos embora, mas recusou-se; e eu não me atrevia a dar um passo sozinho. Alegou que não poderíamos ter outro ensejo como aquele para o vermos à nossa vontade, e que queria aproveitá-lo, nem que lhe custasse a vida.

Então, pus-me também a olhar, embora cheio de medo. Tom tinha qualquer coisa a dizer-me e comunicou-me, em voz baixa:

- Pobre Jake! Conforme nos disse que faria, traz consigo toda a sua bagagem. Agora repara no cabelo, em que não nos tínhamos fixado bem: já o cortou, rente, como nos dissera. Quer me parecer, Huck, que nunca vi nada mais natural do que os gestos que ele faz.

- Realmente - disse eu - tê-lo-íamos reconhecido onde quer que fosse.

- Sim. Parece perfeitamente sólido e genuíno, como era antes de morrer.

Continuámos a olhar, e daí a pouco Tom acrescentou:

- Não achas curioso que esta alma penada nos apareça de dia?

- Sem dúvida. Nunca ouvi dizer que jamais tivesse acontecido coisa semelhante.

- É assim mesmo. Só aparecem de noite, e antes de baterem as doze horas. Digo-te que este fantasma não é como os outros, visto que aparece de dia. Lembras-te de que Jake tinha a intenção de se fingir surdo-mudo quando aqui chegasse, para que os vizinhos não o reconhecessem pela voz? Achas que ele usaria desse fingimento, se lhe gritássemos?

- Oh, não faças isso, Tom! Eu morria de medo.

- Tranquiliza-te, não lhe gritarei! Observa, Huck, está a coçar a cabeça, não vês?

- Vejo, e então?

- Como se explica que possa coçar a cabeça? É porque existe nela algo material susceptível de ser coçado. Uma cabeça feita de névoa, ou coisa assim, não se pode coçar. A névoa não se coça; qualquer néscio vê isto.

- Bem, se a névoa não tem comichão, nem pode ser coçada, porque está ele a coçá-la? Não será mero costume?

- Não, por certo, amigo! Não me agrada nada a maneira como actua este fantasma. Está-me a parecer que não é autêntico, tão certo como nós estarmos aqui. Porque, se o fosse, Huck!. . .

- Vamos! Que queres dizer?

- Que não é transparente, que não se vêem arbustos através do seu vulto.

- Tens razão, Tom! Com efeito, é maciço como um bezerro. Estou em crer que. . .

- E repara agora: está a mascar tabaco! Ora, os fantasmas não fazem tal coisa, não podem mascar, Huck.

- Estou a ouvir.

- Aquele vulto não é um fantasma. É o próprio Jake Dunlap em carne e osso.

- És um génio, Tom!

- Não é verdade, Huck, que não encontrámos nenhum cadáver no bosque de sicómoros?

- Não, de facto.

- Nem qualquer rasto do corpo?

- Também não.

- Pela simples razão de que não havia nenhum morto.

- Mas não esqueças, Tom, que ouvimos.

- Sim, ouvimos, um grito ou dois. Mas acaso isso prova que estavam matando alguém? Evidentemente que não. E vimos quatro homens correndo. Este apareceu, depois, caminhando, e nós tomámo-lo por um fantasma. É-o tanto como tu! Era e é o próprio Jake Dunlap, que cortou o cabelo, como disse ser sua tenção, e que se faz passar por forasteiro, como também nos disse que faria. Fantasma? Tanto como uma noz compacta.

Então compreendi tudo, e a leviandade com que tomámos tudo aquilo por verdadeiro. Eu, e bem assim Tom, ficámos profundamente contentes por ver que não o tinham morto; mas não sabíamos qual o melhor procedimento a adoptar, na emergência: se deveríamos fingir que não o conhecíamos, conforme tínhamos combinado com ele, ou se lhe agradaria mais que lhe falássemos?

Tom foi de opinião que o mais lógico seria informarmo-nos directamente, conversando com ele. Pusemo-nos a caminhar, mas deixei-me ficar um pouco para trás, sempre receoso de que ele fosse efectivamente um fantasma. Quando Tom chegou junto dele, falou-lhe nestes termos:

- Eu e Huck folgamos muito por tornar a vê-lo, e o senhor não deve temer que, contrariamente ao que combinámos, nos ponhamos a badalar o que nos contou. E se julga preferível que nós façamos menção de não o reconhecer quando o encontrarmos, queira dizê-lo e verá que pode depositar confiança em nós, e que preferíamos cortar as mãos a colocá-lo em qualquer perigo.

A princípio, ele pareceu surpreendido, e pouco regozijado ao ver nos; mas com o desenrolar da conversa de Tom, o seu aspecto amenizou-se um pouco; e acabou por sorrir. Moveu repetidas vezes a cabeça, descreveu uns gestos vagos com as mãos e emitiu uns sons guturais à maneira dos surdos-mudos, que Tom consideraria perfeitos, e a mim me pareceram apenas constrangidas vozes de peru debilitado por escassez de milho. Justamente naquele instante vimos, no lado oposto da veiga, sair alguém da casa de Steve Nickerson, e, entretanto, Tom disse:

- Está bem imitado, sim senhor! Nunca ouvi melhor imitação. Você faz bem: treina-se connosco, e desta forma melhor praticará quando a repetir com os outros. Nós vamos deixá-lo e faremos de conta que não o conhecemos, e você fará também de conta que não nos conhece, conforme combinámos no vapor; mas se alguma vez precisar de nós para o que estiver ao nosso alcance, não tem mais que dizer no-lo.

Pusemo-nos a caminho e encontrámo-nos com os Nickersons, uns almas do diabo que tinham a tineta, aliás quase universal, de gostar de saber com quem tratavam, e que nos perguntaram se o indivíduo com quem acabáramos de falar era o novo forasteiro, ajuntando logo outras perguntas: donde vinha ele, como se chamava, a que credo pertencia, se era baptista ou metodista; e qual o seu partido, se era conservador ou democrata; e se se demoraria por ali muito tempo, e outras bisbilhotices vulgares, a mostrarem bem que eles tinham pouco que fazer naquele momento. E Tom respondeu que o desconhecido era surdo-mudo e que nada percebera acerca dele, em virtude de tão-somente se expressar por meio de mímica e de sons inarticulados, incompreensíveis.

Os nossos interlocutores apartaram-se então de nós, e dirigiram-se para onde Jake se encontrava, o que nos inquietou deveras. Tom receava que fossem necessários alguns dias para ele não se esquecer do seu papel de surdo , quando necessário, de mudo, e que se pusesse a falar, sem se lembrar disso. Ficámos algum tempo a observar aquela entrevista, até nos certificarmos de que Jake representava bem a sua farsa, a calcular pela profusão de gatimanhos que o vimos fazer ante o desapontamento dos curiosos que com ele investiram. Retomámos então o nosso caminho e, andadas três milhas, topámos com a escola quase à hora do recreio.

Eu sentia-me desapontado por Jake não nos ter descrito o combate que, calculávamos, teria havido nos sicômoros, onde ele teria estado a ponto de ser morto. Não podíamos deixar de pensar naquilo, e Tom acabou por dizer que, no caso de Jake, nós procederíamos como ele, não dando à língua para não corrermos riscos.

Os rapazes e as raparigas da escola ficaram muito contentes por nos tornarem a ver; e nós passámos agradavelmente com eles todo o tempo que durou o recreio. Quando tinham vindo para a escola, os rapazes da família Henderson haviam-se cruzado na estrada com o desconhecido surdo- mudo, e contaram o facto aos outros. Por este motivo todos ficaram cheios de curiosidade e não falavam noutra coisa. Devorava-os o desejo de verem o surdo-mudo; porque nunca tinham visto nenhum lá no sítio.

Tom achava deveras molesto não poder contar tudo o que sabia a respeito do desconhecido, e chegou a dizer me que nós faríamos ali figura de heróis se pudéssemos abrir-nos e dizer tudo que era do nosso conhecimento. Mas, no fim de contas, devia consolar-nos a ideia de que ainda era mais heróico ficar calados porque num milhão de rapazes não havia dois que fossem capazes de o fazer. Tal era o critério de Tom Sawyer sobre o assunto, e creio que ninguém traria à cabeça outro melhor.

 

Tom, com um cão emprestado, descobre Júpiter Dunlap

Passados dois ou três dias, o surdo-mudo tornara-se objecto do interesse de toda a aldeia. Convivia com todos os da terra, que o acolhiam de bom grado, e se mostravam ufanos de terem uma tão surpreendente curiosidade adentro dos seus muros. Disputavam-no entre si para o sentarem à sua mesa ao almoço, ao jantar e à ceia. Atulhavam-no de bons nacos de carne de porco e de pratalhadas de papas de milho, e não se fartavam de o contemplar e de querer saber quanto possível da sua vida, de tal forma aquilo era para eles inusitado e romântico.

A sua mímica era incompreensível para aquela gente, tanto como provavelmente para ele próprio, mas o homem acabava por suspirar o seu ruído gutural do costume, e todos ficavam satisfeitos e encantados por ouvirem aqueles sons sem qualquer sentido. Arranjaram uma ardósia e um lápis do mesmo material, e os vizinhos escreviam nela as suas perguntas, a que ele respondia pelo mesmo meio; mas só Brace Dunlap podia ler as suas respostas. Brace explicava então que lia com dificuldade o que ele escrevia, mas que na maioria dos casos, embora com muito custo, lograva apreender lhe a significação. Contou que o surdo-mudo lhe dissera que procedia de boa origem, e parecia ter tido fortuna; mas que fora espoliado por uns intrujões em que se fiara, e que ficara pobre, não dispondo já de meios para se manter.

Todos gabavam a bondade de Brace Dunlap para com o forasteiro. Cedera-lhe uma pequena habitação de madeira, onde ele vivia só, e recomendara aos seus negros que cuidassem dele e lhe ministrassem todos os alimentos que lhe fossem necessários.

O surdo-mudo vinha por vezes a nossa casa, porque o tio Silas mostrava-se tão aflito naquela altura, que lhe dava alívio ter diante dos olhos fosse quem fosse que aflito estivesse também. Eu e Tom simulávamos não conhecer o visitante, que por sua vez, fingia nunca nos ter visto antes. A família falava das preocupações diante dele como se ele ali não estivesse; mas nós entendíamos que não havia qualquer prejuízo para ele em ouvir o que se estava dizendo. Geralmente, parecia que não atentava no que se dizia, mas algumas vezes prestava atenção.

Decorridos uns dias, a gente do lugar começou a preocupar-se com o desaparecimento de Júpiter Dunlap. Ninguém sabia o que fora feito dele. Aquilo causou estranheza. Os dias foram passando, e a certa altura correu o boato de que ele fora assassinado. Os habitantes do lugar ficaram excitadíssimos com aquele rumor, e não falavam noutra coisa. No sábado seguinte, dois ou três grupos de indivíduos da terra dirigiram-se aos bosques, onde fizeram pesquisas para ver se encontravam os restos do morto. Eu e Tom acompanhámo-los e ajudamos às buscas, emocionados e cheios de interesse. Tom andava de tal maneira absorto naquele assunto, que nem podia alimentar-se nem dormir. Disse-me que, se nós fôssemos capazes de descobrir o cadáver, toda a gente do sítio nos admiraria e que falariam mais de nós do que se tivéssemos morrido afogados.

Os outros que se haviam empenhado em procurar o defunto acabaram por se aborrecer e desistiram do intento. Tom Sawyer, porém, não os imitou, porque a sua índole era outra. No sábado à noite, não dormiu nada, tentando gizar um plano, que, ao amanhecer, conseguiu delinear.

Então, animado de grande entusiasmo, fez-me saltar da cama, e disse:

- Depressa, Huck, trata de te vestir. Já achei o meio: um cão de caça!

Minutos depois, no crepúsculo matinal, caminhávamos pela estrada que, vinda do rio, conduzia à povoação. O velho Jeff Hooker possuía um cão de caça, e nós íamos pedir lhe que no-lo emprestasse. Eu observei:

- Já passaram muitos dias, Tom, e choveu. É pouco provável que ainda exista qualquer rasto.

- Isso não faz diferença, Huck. Se o corpo estiver oculto em qualquer parte da floresta, o cão não deixará de o encontrar. Se o mataram e enterraram, o corpo não estará, provavelmente, muito fundo, e se o cão der com o local, o seu faro, com certeza, fará o resto. Huck, crê que isto há-de trazer nos notoriedade, tão certo como tu teres nascido !

Tom ardia de impaciência, e a sua excitação era ilimitada. Em dois minutos desenrolou, em imaginação, perante mim todas as fases do que tentava conseguir: o achado do morto, o rasto de quem o matara e a sua captura, e, além disso, como procederia até que. . .

- Bem - interrompi eu - o melhor é descobrir primeiro o cadáver; julgo que já seria o bastante, por hoje. Pelo que até agora sabemos, parece que tal morto não existe e que ninguém foi assassinado. Se calhar, o sujeito pôs-se ao fresco e não foi morto.

Estas objecções aborreceram Tom, que redarguiu:

- Nunca vi ninguém como tu, Huck Finn, para estragar tudo. Quando pensas numa coisa, não te importas com a opinião dos outros. Embirraste que não houve morto, nem assassínio, e pronto! Admira- me que procedas assim para comigo, pois, como sabes, eu seria incapaz de te tratar de semelhante forma. Surge-nos um ensejo esplêndido para firmarmos a nossa reputação, e. . .

- Oh, não te amofines! - exclamei eu. - Sinto ver te magoado, e retiro o que disse, porque não tinha a intenção de te enfadar. Arranja lá isso como queiras. Que me importa esse Júpiter Dunlap? Se o mataram, não me cumpre chorar por ele, como tu não choras; e se pelo contrário. . .

- Eu não digo que chore. No entanto. . .

- Faz-te pena? Também a mim, nesse caso. Qualquer que seja o processo de seca que lhe dês, adopto-o também.

- Não há qualquer seca no assunto, Huck. Eu não falei em pôr Júpiter Dunlap a curar ao calor E quanto ao resto. . .

Suspendeu-se, por se haver esquecido do que queria dizer, e continuou a caminhar, pensativo. Ao fim duns instantes, disse-me, novamente alvoroçado:

- Seria um êxito, Huck, se encontrássemos o cadáver, depois de os outros terem desistido de tal intento. E mais tarde apanhar o assassino. Isto não seria apenas uma honra para nós, mas também para o tio Silas, que se levantaria do abatimento em que se consome.

Chegámos à ferraria do velho Jeff Hooker, o qual, assim que lhe expusemos o fim da nossa visita, lançou como que um balde de água fria sobre o nosso plano.

- Eu não me importo de lhes emprestar o cão - disse ele. - Mas vocês não encontrarão o cadáver, porque não existe. Todos desistiram dessas buscas, e fizeram bem. E vou dizer-lhes a vocês porquê. Qual a razão por que um indivíduo mata outro, Tom Sawyer? Responde-me a isto.

- Acho que será por. . .

- Deixa-te de rodeios, e responde. Tu não és nenhum néscio. Porque é que um mata outro?

- Será umas vezes por vingança, e. . .

- Espera. Uma coisa de cada vez. Disseste que pode ser por vingança, e pode. Mas vejamos: quem teria motivo para dar cabo dum pobre diabo como Júpiter Dunlap, insignificante como um coelho?

Tom ficou perplexo. Calculo que nunca lhe passara pela mente a ideia absurda de que alguém pudesse ter uma razão, qualquer que ela fosse, para matar o seu semelhante. E para mais, via-o agora, quem poderia levar o seu rancor ao ponto de cometer tal infâmia contra um pobre diabo como aquele? Depois o ferreiro continuou:

- Como vocês compreendem, a ideia duma vingança não é admissível. Procuremos, então, outra. Terá sido para o roubarem? Se calhar foi por isso, Tom!? Algum semelhante que lhe cobiçou as velhas calças remendadas, e daí.

A hipótese que ele próprio acabara de aventar pareceu-lhe de tal maneira cómica, que desatou a rir, em gargalhadas repetidas. Tom, humilhado, parecia arrependido de ter ali vindo. Mas o velho Jeff não o largava. Passou em revista diversos motivos que poderiam arrastar um homem a matar outro, e, como fosse evidente que nenhum desses motivos era ajustável àquele caso, ria-se de todos os que tinham andado à procura do morto. E por fim disse:

- Se eles tivessem algum senso comum, perceberiam que Júpiter Dunlap, aconselhado pela sua preguiça, desaparecera para dar descanso às palmas das mãos, com receio de as calejar. Daqui a umas duas semanas aparece por aí outra vez, e então será coisa de ver a cara dos que andaram à procura do seu cadáver! Em todo o caso, vocês podem levar o cão para irem à procura do defunto. Não desistas, Tom!

Pôs-se novamente a rir, em gargalhadas intermináveis. Depois de tudo aquilo, Tom não quis recuar o seu desígnio, e disse:

- Perfeitamente. Faça o favor de soltar o cão.

O ferreiro fez o que ele lhe pedia, e nós pusemo-nos os dois a caminho de regresso a casa, deixando o velho entregue à hilaridade que tudo aquilo lhe provocava.

O cão, que nos conhecia e gostava de nós, acompanhava-nos contentíssimo, com a boa disposição característica dos cães de caça. Ia à nossa frente, correndo dum lado para o outro, satisfeito de se ver à solta; mas Tom estava tão arreliado que nem lhe prestava atenção, e disse-me que se sentia repeso de haver empreendido aquela tola excursão. O velho Jeff Hooker contaria aquilo a todos os seus conterrâneos, que não deixariam de se rir, por sua vez, à nossa custa.

E fomos caminhando por atalhos em direcção a casa, bastante amofinados e sem dizer palavra. Quando passávamos junto da plantação de tabaco, ouvimos o cão soltar ali um uivo prolongado. Acercámo-nos do lugar onde ele estava, e vimo-lo a esgaravatar a terra com toda a força, levantando de vez em quando a cabeça em plano oblíquo e latindo novamente.

Deparou-se-nos um extenso rectângulo, que tinha o contorno duma sepultura; a chuva fizera afundar o terreno naquele ponto, que assim tomara aquela forma. Ao chegarmos ali, detivemo-nos e olhamos um para o outro, sem dizer palavra. Ao cabo de haver escavado algumas polegadas de terra, o cão encontrou qualquer coisa que puxou para fora. Era um braço humano com a respectiva manga.

Tom respirou fundo; e disse:

- Vamo-nos, Huck, já achámos o corpo!

Eu sentia-me deveras horrorizado.

Dirigimo-nos para a estrada e convidámos os primeiros homens que encontrámos a irem connosco à plantação de tabaco. Estes foram buscar uma pá de ferro ao estábulo, e desenterraram o cadáver.

Todos estavam possuídos de emoção indescritível. Não se divisavam as feições do morto, mas não era preciso. Alguém dentre os presentes exclamou:

- Pobre Júpiter! É a sua vestimenta, do primeiro ao último farrapo !

Vários homens abandonaram o local para irem espalhar a notícia, e avisaram o regedor da terra. Tom e eu fomos para casa. Tom ia afogueado e arquejante, quando irrompemos aonde se encontravam o tio Silas, a tia Sally e Benny E o meu companheiro deu-se pressa em anunciar o que acabara de suceder:

- Eu e Huck achámos o cadáver de Júpiter Dunlap, sozinhos, com um cão de caça, depois de todos terem desistido de continuar a procurá-lo. Se não fôssemos nós, nunca mais o encontrariam. Mataram-no com uma moca ou coisa assim. Agora vou começar a procurar e em breve hei-de descobrir quem o matou, garanto-lho!

A tia Sally e Benny ergueram-se, num sobressalto, pálidas e assombradas, e o tio Silas deixou-se cair da sua cadeira para o chão, gemendo:

- Oh, meu Deus! E foram vocês descobrir o morto!

 

Detenção do tio Silas

Aquela horrível exclamação deixou-nos como que petrificados, e quedámo-nos imóveis durante cerca de meio minuto. Depois, recobrámos os movimentos e fomos levantar o velho e sentá-lo na sua cadeira. Benny acariciou-o e beijou-o e tentou reanimá-lo, e a coitada da tia Sally fez o mesmo; mas estavam ambas tão abatidas e apavoradas e com o espírito tão perturbado que mal compreendiam o que se passava. Tom sentia-se aterrado, esmagado pela ideia de que lançara seu tio numa aflição mil vezes maior do que nunca, e que isto não sucederia se não tivesse tido a ambição de se salientar e houvesse deixado o cadáver tranquilo na sua cova, como os outros tinham feito. Mas daí a momentos, vencendo a confusão que o tomara, disse:

- Não volte a falar dessa maneira, tio Silas. É perigoso e, além disso, não há sombra de verdade no que se lhe meteu na cabeça.

A tia Sally e Benny ficaram cheias de reconhecimento por lhe ouvirem dizer aquilo, e disseram o mesmo; mas o velho abanou a cabeça com tristeza e desespero, e, com as lágrimas a correrem-lhe pela face, disse:    

- Não; fui eu quem o matou. Pobre Júpiter, fui eu!

Era medonho ouvi-lo dizer aquilo. Depois continuou a falar, e afirmou que praticara o crime no dia em que eu e Tom chegámos, por alturas do pôr do Sol. Que Júpiter o havia mortificado e ofendido a ponto de lhe fazer perder a cabeça, e que, agarrando num pau, lhe batera no crânio com toda a força. O outro caiu por terra, e, então, assustado e pesaroso, ele ajoelhara-se a seu lado, e, erguendo-lhe a cabeça, pedira-lhe que falasse e lhe dissesse que não morrera! Depois, recuperou algum senso, e notando a imobilidade mortal da cabeça que soerguera nas suas mãos, ficou espavorido e, erguendo-se, saltou o valado e fugiu através da floresta. A princípio, inclinara-se a supor que não o ferira mortalmente.

- Mas, infelizmente - acrescentou o tio Silas - os passos que ele ainda deu foram-lhe amparados por um último arranco de medo, e um instante depois foi-se a terra no meio do matagal. Como não havia ali ninguém para o ajudar, morreu.

O velho chorava e lastimava- se, e dizia de si mesmo que era um assassino, com a marca de Caim, que tinha desgraçado a sua própria família, e que iam prendê-lo e enforcá-lo.

Mas Tom interveio:

- Não, nada disso se passará. O senhor não o matou. Ainda supondo que lhe tivesse dado uma paulada, não o mataria. O culpado deve ser outro.

- Fui eu - teimou o tio Silas -, sim, fui eu e mais ninguém! Quem tinha motivos de rancor contra ele, a não ser eu?

Olhou-nos como se esperasse que algum de nós estivesse apto a indicar alguém que fosse inimigo duma nulidade como Júpiter Dunlap, mas como de facto nada sabíamos a tal respeito, calámo-nos. Notando isto, recaiu na sua tristeza, e a sua expressão era tão desalentada que metia dó.

De súbito, Tom teve uma ideia, e disse:

- Mas, esperem lá! Alguém o havia de ter enterrado. Quem teria sido?

Calou-se, porém, imediatamente, e percebi a razão por que o fez. Eu estremecera ao ouvir lhe aquelas palavras, por me lembrar logo de ter visto o tio Silas vagueando na escuridão, munido duma comprida pá, naquela noite. E sabia que Benny também o tinha visto, porque ela um dia falou nisso. Depois da brusca suspensão do que estava a dizer, Tom mudou de assunto e pediu ao tio Silas que nada revelasse, e os restantes que ali nos achávamos imitámo-lo, dizendo-lhe que lhe cumpria estar calado, pois não devia falar de si próprio que assim ninguém o saberia; além de que, se fosse descoberto e lhe sucedesse algum desaire, sua família morreria de desgosto, e tudo isso sem qualquer vantagem para ninguém. Por fim, ele prometeu calar se. Ficámos então mais tranquilos, e procurámos reanimar o velho. O que tinha a fazer era manter-se sossegado, e tudo aquilo passaria em breve e esqueceria. Afirmámos todos que ninguém suspeitaria do tio Silas, nem em tal coisa sonharia, bom e afável como era e dotado dum tão benigno carácter; e Tom, cordial e carinhosamente, disse:

- Na verdade, vejamos as coisas por um instante; consideremos isto. O tio Silas está aqui há muito tempo como pregador, à sua própria custa; e sempre praticando o bem gratuitamente, na maior proporção e de todas as formas que lhe são possíveis, estimado e respeitado por todos. Foi sempre pacífico e, tratando da sua vida, nunca se meteu na dos outros, como todos sabem. Quem suspeitaria do senhor? Nada menos possível do que. . .

A frase foi-lhe interrompida pela voz do xerife da terra, que intimou da porta:

- Em nome da autoridade do Estado de Arkansas, venho prender Silas por ter assassinado Júpiter Dunlap.

Houve uma cena horrível. A tia Sally e Benny precipitaram-se, chorando e gritando, para o tio Silas, a quem se abraçaram e do qual não queriam desprender-se. A tia Sally disse para o xerife que se fosse embora, que nunca permitiria que lhe levassem o marido, que não o deveriam deter; entretanto, um grupo de negros assomara à porta, dando gritos, e enfim, como aquilo era superior às minhas forças e de partir o coração a uma pessoa, retirei-me.

Ao cabo de tudo, levaram o tio Silas e meteram-no na pequena cadeia da terra, e todos o fomos acompanhar para nos despedirmos dele; e Tom disse-me, com ar solene:

- Em breve teremos ensejo de praticar uma alta façanha, Huck, libertando, embora com risco, o tio Silas, em qualquer noite escura propícia. Isto constará por toda a parte, e todos nos hão- de admirar!

Tom chegou mesmo, num murmúrio, a informar o tio Silas do seu projecto. Mas o velho desaprovou-o imediatamente, dizendo-lhe que o seu dever era submeter-se à lei, e que ficaria na prisão até ao fim se não lha abrissem. A decisão do velho deixou Tom muito desapontado, e entristeceu-o bastante, mas por fim conformou-se.

Porém, como se sentia de certo modo responsável pela detenção do velho, persistiu no desígnio de o libertar; e disse, por último, à tia Sally que não se apoquentasse muito, porque ele não largaria o assunto de mão, e trabalharia dia e noite até provar que o tio Silas estava inocente. Ela agradeceu vivamente a boa vontade do sobrinho, dizendo-se convicta de que ele faria quanto pudesse para conseguir o seu objectivo. E pediu-nos que ajudássemos Benny a cuidar da casa e das crianças.

Despedimo-nos, chorando, e regressámos à fazenda, deixando a tia Sally com a mulher do carcereiro, em cuja casa ela viveria um mês, conservando-se assim à beira do velho até que o julgamento dele, em Outubro, se realizasse.

 

Tom Sawyer descobre os assassinos

Aquele mês foi bastante duro para todos nós. A pobre Benny fez quanto pôde para enfrentar as dificuldades da emergência, e eu e Tom esforçámo-nos por afastar a tristeza daquela casa, embora nem sempre o conseguíssemos, como é fácil de compreender.

Na prisão, sucedia o mesmo. Íamos ali todos os dias para vermos os velhos, mas a tristeza era pungente, porque o tio Silas quase não dormia, e, quando dormia, dava voltas de sonâmbulo, pelo cárcere, enfraquecendo-se assim a tal ponto que a sua mente vacilava, chegando nós a temer pela sua vida. Quando tentávamos persuadi-lo a manter o ânimo, limitava-se á abanar a cabeça, e dizia-nos que, se nós soubéssemos o que era ter sobre o coração o peso dum homicídio, não lhe falaríamos como falávamos. Tom e todos nós repetíamos que não houvera tal homicídio, mas apenas morte acidental; ele, porém, não fazia essa distinção, e recusava-se a atender os nossos raciocínios.

À medida que se aproximava a data do julgamento, mais se lhe arraigava na mente a ideia de que havia tentado matar o homem. Era uma coisa deplorável, como se subentende. Aquilo aumentava o inquietante aspecto do assunto, e a tia Sally e Benny estavam inconsoláveis.

Conseguimos, todavia, que ele nos prometesse não falar daquela maneira diante de gente estranha, e isto tranquilizou-nos um pouco.

Tom Sawyer passou todo aquele mês a dar voltas ao miolo para achar um meio de livrar o tio Silas; e muitas noites não me deixou conciliar o sono, a expor me mil planos para atingir o fim que tinha em vista, e que apenas me fatigavam por não haver neles nada de prático. Aconselhava-o, então, a abandonar aquela ideia, mas ele insistia e eu, extenuado de o ouvir, não tinha outro remédio senão resignar-me. Ele continuou a parafusar no problema que o absorvia, formando novos e incessantes planos.

Chegou, por fim, a data do julgamento, em meados de Outubro, ao qual fomos todos assistir.

A sala de audiência regurgitava de público, como era natural. O pobre tio Silas parecia mais morto do que vivo, de tal forma tinha os olhos encovados e estava magro e triste.

Benny e a tia Sally sentaram-se a um lado e outro do velho, ambas com o rosto coberto pelos véus, e mostravam-se muito perturbadas.

Quanto a Tom, sentara-se ao lado do advogado de defesa, e por condescendência deste e do juiz, intervinha em tudo. Repetidas vezes se substituiu ao defensor no decorrer da audiência, e explicava-se que assim procedesse, atendendo a que o dito defensor não dispunha de envergadura para causas difíceis.

Depois de o júri ter prestado juramento, o advogado de acusação ergueu-se e começou a falar.

Fez um discurso severo contra o tio Silas, que se lamentava e gemia, afligindo assim ainda mais Benny e a tia Sally, que se puseram a chorar.

Por ser muito diferente do que o velho nos contara, o seu relato do crime deixou-nos estupefactos. Disse haver duas testemunhas que tinham visto o tio Silas matar Júpiter Dunlap, e que o crime fora premeditado, visto que o velho proferira ameaças de morte no momento em que o agrediu à cacetada. As mesmas testemunhas declararam tê-lo visto também a ocultar a vítima entre os arbustos; e outras duas acrescentaram que o tio Silas voltara mais tarde e que levara Júpiter para a plantação de tabaco. O acusador, continuando, ajuntou que um outro homem vira o tio Silas aparecer, algum tempo depois, e, ao abrigo das sombras da noite, enterrar o corpo de Júpiter. Ouvindo tudo aquilo, pensei que o velho tio Silas, para não afligir a tia Sally e Benny, nos havia mentido quando nos disse que ninguém presenciara o que se havia passado. Mas no seu caso, quem não teria mentido da mesma forma para evitar desgostos às pobres mulheres que nada tinham com o assunto? A peroração do advogado de acusação deixou o defensor de todo em todo confuso; e pôs também Tom como que aparvalhado, durante uns instantes. Mas este conseguiu dominar se e aparentar serenidade, conquanto eu adivinhasse que ele estava preocupado. O público, na sala, mostrava-se agitadíssimo com o que acabara de ouvir!

Quando o procurador terminou a acusação com que esperava convencer o júri, sentou-se e começou a inquirir as suas testemunhas.

Primeiro, chamou várias, que confirmaram, acusando, existirem desavenças entre o tio Silas e o homem que ele matara; e que, por diversas vezes, tinham ouvido o velho proferir ameaças contra a vítima, e que a rixa se fora constantemente agravando a ponto de todos falarem naquilo. Acrescentaram que Júpiter Dunlap temia pela própria vida, chegando a dizer a dois ou três deles que tinha a certeza de que o tio Silas o mataria mais dia menos dia. Tom e o defensor dirigiram algumas perguntas àquelas testemunhas, sem qualquer resultado, porque elas mantiveram o que tinham dito.

Em seguida, chamaram Lem Beebe, que subiu para o estrado. Ocorreu-me, então, que Lem Beebe e Jim Lane tinham perpassado, naquela noite, junto do nosso esconderijo, e que iam falando do empréstimo dum cão por Júpiter Dunlap. Atrás desta lembrança, veio-me a da lanterna para ir colher amoras, e esta trouxe-me à memória Bill e Jack Withers, que tinham passado rente ao nosso abrigo, falando de milho roubado ao tio Silas por algum negro; depois, recordei-me do fantasma que nos aparecera quase ao mesmo tempo, e que nos assustou a valer. Este último encontrava-se também na sala da audiência, e haviam-lhe reservado um dos melhores lugares, por se tratar dum forasteiro e em atenção ao facto de ele ser surdo-mudo. Achava-se sentado numa das cadeiras que se viam sobre o estrado, onde podia cruzar as pernas e estar à vontade, ao contrário do que sucedia ao resto do público, apertado como sardinha em canastra e que mal podia respirar. E todos aqueles pensamentos me fizeram recordar com tristeza como o tempo fora fagueiro até àquele dia e quantos aborrecimentos eu e Tom havíamos tido a partir de então.

Lem Beebe, depois de haver prestado juramento, declarou:

- Eu e Jim Lane íamos caminhando, naquele dia dois de Setembro, ao anoitecer, e de súbito ouvimos falar em voz alta, como que em disputa, próximo de nós, por trás duns arbustos que bordam a vala, e uma voz ameaçou: "Já te disse mais de uma vez que daria cabo de ti", e reconhecemos que a voz que proferia a ameaça era a do acusado. Seguidamente, vimos erguer um varapau, por cima das moitas, que logo desapareceu, descendo por detrás dos mesmos arbustos, e chegou-nos aos ouvidos o baque duma queda e, quase no mesmo instante, um ou dois gemidos. Então dirigimo-nos cautelosamente para um ponto donde poderíamos ver o que se passava, e distinguimos Júpiter Dunlap, que jazia, morto, por terra, e o acusado, com o varapau na mão, junto dele. Um momento depois, o mesmo acusado levou o corpo para um maciço de arbustos, e ali o escondeu. Rastejando para não sermos vistos, afastámo- nos do local.

Aquela declaração era atroz. Gelava-se o-sangue de cada um, ao ouvi-la, e a assistência conservou-se tão silenciosa enquanto Lem Beebe falava como se não estivesse ninguém na sala. Quando ele terminou, o público, anelante, soltou um suspiro, e cada qual olhava para o vizinho, tão espantados uns como os outros, como que a dizer: "É terrível; é medonho!"

Naquela altura, deu-se uma coisa que me surpreendeu deveras. Durante todo o tempo em que as testemunhas lidavam por demonstrar as rixas e ameaças, e coisas assim, Tom Sawyer mostrava-se animado e vigilante, atacando-os sem demora para os apanhar quando mentiam e anular o seu testemunho. Mas, de súbito, a sua atitude mudou. Ao notar que Lem nada dizia, no seu depoimento, acerca da sua conversação com Júpiter, nem com respeito ao pedido de empréstimo do cão que ao mesmo Júpiter fizera - e não o ocultaria por vergonha, que era coisa que não o vexava, de confessar que pedira fosse o que fosse a um mísero como era o irmão de Brace Dunlap, conquanto não o fosse tanto que não dispusesse de casa e meios para ter e sustentar um cão - manteve-se atento e alerta, esperando, talvez, o momento de o esmagar com as suas interrogações.

Pensei que tanto ele como eu não tardaríamos a erguer nos dos nossos lugares para contarmos o que lhe ouvíramos dizer a ele e a Jim Lane. Nesta crença, deitei uma olhadela a Tom, mas fiquei como que gelado ao notar que ele se encontrava em profunda abstracção, dir-se-ia que a muitas milhas de distância daquele local. Estava tão indiferente ao que Lem Beebe dizia, como se se encontrasse ausente e não o ouvisse E quando a testemunha acabou de despejar o seu saco de patranhas, o defensor do tio Silas tentou despertar Tom daquele ensimesmamento, mas ele, estremecendo, apenas respondeu:

- Interrogue a testemunha, se o achar conveniente. Arranje- se sozinho, eu preciso de pensar. . .

Aquilo desconcertou-me. Eu não podia compreender o seu desinteresse pelo que se estava passando.

E Benny e sua mãe pareciam, por seu turno, tão agoniadas, como se estivessem doentes. Movendo os seus véus, tentaram chamar a atenção de Tom, mas aquela mímica resultou inútil, e eu também não conseguia atrair lhe o olhar, que parecia perder-se nas nuvens.

O atarantado defensor interrogou a testemunha, mas tão desastradamente que nenhum resultado prático tirou do interrogatório.

Em seguida depôs Jim Lane, que repetiu tintim por tintim a mesma história que o seu companheiro havia contado.

Alguns espectadores tinham, entretanto, adormecido, fartos de ouvir mentiras e disparates. E o próprio autor confessa que não faz o mesmo, porque precisa de ganhar o pão a contar estas coisas que o editor lhe encomendou e que ele não lhe pagaria, como é natural, se se pusesse a dormir e não as escrevesse.

Tom não prestou a mínima atenção a nada do que Jim Lane declarou, aferrado aos seus pensamentos, que parecia vaguearem a muitas milhas do que ali se passava. O defensor tomou, por fim e novamente, a palavra, e como da primeira vez não disse coisa com coisa, e a sua intervenção teve tanto efeito como teria se ele se conservasse calado. O advogado de acusação mostrava-se impante de contentamento, mas o juiz parecia desgostoso. Tom podia fazer as vezes de advogado, porque a lei do Estado de Arkansas dá ao acusado a faculdade de indicar quem ele entenda para auxiliar o defensor, e Tom conseguira que o tio Silas o elegesse a ele para tal fim; mas afinal acabara por não dar sinal de si, descurando daquele modo os interesses do velho Silas, e aquilo não agradava muito ao juiz.

Quanto ao defensor, o mais que pôde conseguir de Lem e Jim foi o seguinte:

- Por que razão - perguntou- lhes - não contaram logo, a quem de direito, o que viram?

- Porque temíamos meter nos neste enredo, e além disso porque tencionávamos passar toda a semana na caça. Mas quando regressámos soubemos que andavam à procura do corpo de Júpiter Dunlap, e então fomos contar a Brace tudo o que já dissemos e havíamos presenciado.

- Em que data foi isso?

- Na noite de sábado nove de Setembro.

Naquele instante ouviu-se a voz do juiz:

- Xerife, prenda essas duas testemunhas por suspeitos de haverem encoberto o crime.

O advogado de acusação pôs-se em pé e, muito excitado, disse:

- Meritíssimo juiz: protesto contra este extraordi...

- Sente-se! - interrompeu o juiz, puxando pelo maço e colocando-o em cima da mesa. - Exijo-lhe respeito pelo Tribunal.

O acusador obedeceu. Em seguida chamou Bill Withers, que, depois de prestar juramentos, declarou:

- No sábado, dois de Setembro, eu ia passando, ao anoitecer, pelo campo do acusado. Acompanhava-me meu irmão Jack. E ambos vimos, de súbito, um homem que levava um pesado volume às costas. A princípio, supusemos que fosse um negro que houvesse roubado algum saco de milho. Nós não víamos bem devido á obscuridade, mas depois afigurou-se-nos que era um homem que transportava outro aos ombros e, pela maneira flácida como o corpo pendia, calculámos que este fosse o de algum ébrio. Pelo andar do homem que transportava o corpo, dissemos que era o reitor Silas, e julgámos que, tendo encontrado Sam Cooper embriagado na estrada, resolvera pô-lo ao abrigo de perigo, tanto mais que sempre se interessara pela sua regeneração.

O público estremeceu, imaginando o tio Silas, com o corpo às costas, a caminhar até ao lugar da sua plantação de tabaco, onde o cão o encontrara. Mas notava-se pouca simpatia na expressão fisionómica do auditório, e dentre este houve um sujeito que disse:

- É o acto mais friamente sanguinário de que tenho ouvido falar: arrastar um morto daquela forma e enterrá-lo como a um animal. E fazer um pregador uma coisa assim!

Tom continuava pensativo, como que alheio a tudo que o rodeava. O defensor interrogou também aquela testemunha o melhor que pôde, mas o resultado, para não variar, foi quase igual a zero.

Subiu, em seguida, Jack Withers ao estrado e disse aproximadamente o mesmo que seu irmão Bill.

Após aquela testemunha veio Brace Dunlap, que parecia muito consternado e choroso, e, por entre a agitação geral, ouviram-se vozes de mulheres da multidão, lamentando: "Pobre criatura, pobre criatura!", e viam-se algumas delas a enxugar lágrimas.

Após o juramento, Brace Dunlap disse:

- Durante muito tempo andei bastante preocupado com meu irmão, mas sempre julguei que as coisas não estavam tão feias como se lhe afiguravam, pois não podia crer que alguém tivesse a peito fazer mal a um pobre diabo inofensivo como ele era.

Ao ouvir estas palavras de Brace, pareceu-me ver uma animação no rosto de Tom, mas aquilo durou pouco, porque a sua expressão volveu a ser, quase imediatamente, de fastio.

O irmão de Júpiter Dunlap continuou a falar:

- Como se percebe, eu não podia supor que um clérigo, um pregador fosse capaz de lhe fazer mal, e por essa razão nunca fiz caso do que se passava, mas vejo agora que melhor teria feito estando atento, porque, se assim tivesse procedido, o meu pobre irmão ainda se encontraria vivo a meu lado, e não morto como agora está; ele, que não causava dano a ninguém!

A comoção obrigou-o a interromper por momentos o seu depoimento, até que os soluços lhe deixassem a voz novamente livre. Entretanto, a sala soltava exclamações de dó e as mulheres choravam. O ambiente era pesado ali, e solene, a tal ponto que o próprio tio Silas deixou escapar um enorme suspiro que foi ouvido por toda a assistência. Então, Brace prosseguiu:

- No sábado, dois de Setembro, não apareceu para cear. Acabei por me inquietar com aquela demora, e mandei um dos meus negros à residência do acusado, que voltou e me disse que meu irmão não se encontrava lá. A minha inquietação aumentou, assim, e eu não podia sossegar. Deitei-me, e não consegui dormir, motivo por que decidi levantar me de novo, já noite alta, e andei vagueando nas proximidades da casa do acusado durante um bom lapso de tempo, na esperança de topar o meu pobre irmão, sem sonhar sequer que ele, liberto dos seus sofrimentos, já se partira para sempre desta para melhor.

Aqui assaltou-o novo acesso de soluços, e as mulheres que se achavam na audiência puseram-se outra vez a chorar. Decorrido um instante, Brace pôde dominar se e continuou:

- Como a minha vigília se demonstrasse inútil, voltei para casa, mas não consegui dormir. Um ou dois dias depois, toda a gente da terra andava sobressaltada com tudo aquilo, e começou-se a falar acerca das ameaças que o acusado dirigia a meu irmão, dizendo- se, por fim, que ele fora assassinado, rumor a que não prestei grande crédito. E deram-se a procurar o corpo, mas, como não o encontrassem, desistiram do intento. Supus que Júpiter se houvesse apartado do lugar para ir descansar em qualquer outra terra, e que voltaria quando se sentisse com mais saúde. Mas no sábado, nove, Lem Beebe e Jim Lane foram a minha casa, e contaram-me tudo, pondo-me ao corrente do horrível homicídio. eu fiquei com o coração despedaçado de dor. Naquela altura, recordei-me duma coisa em que até ali não atentara: que me tinham dito que o acusado era atrito a acessos de sonambulismo, praticando nesses momentos toda a espécie de actos inconsequentes, sem saber o que fazia. E sucedeu que naquele mesmo sábado, andando eu a passear nas cercanias da casa do acusado, no extremo da plantação de tabaco, ouvi um ruído como o que se produz quando alguém cava um terreno de saibro. Aproximei-me mais, e espreitei por entre as folhas das heras que pendiam das barras de ferro da estacada, e vi o acusado que está ali presente, cavando, com uma pá de cabo comprido, a terra, que em seguida ia lançando para uma grande cova quase cheia. Embora ele estivesse de costas, reconheci-o, à luz da Lua, pela sua velha blusa esverdeada, com um remendo branco de neve entre os ombros. Estava sepultando o homem que tinha morto!

Dito isto, Brace deixou-se cair sobre a cadeira, choroso e soluçando. A maioria da assistência manifestou-se com gemidos e prantos, e ouviam- se exclamações de assombro. A agitação era enorme e indescritível, e a meio daquele alarido o tio Silas ergueu-se de salto, branco como um lençol, e gritou:

- É verdade, tudo isso é verdade. Matei-o a sangue-frio!

Aquilo como que petrificou o auditório ! Depois, toda aquela gente se levantou, excitada, estendendo o pescoço para ver melhor o acusado, enquanto o juiz martelava com o seu maço no tampo da mesa, e o xerife vociferava:

- Ordem! Ordem no tribunal, ordem!

Entretanto, o velho Silas permanecia de pé, imóvel, com os olhos como que a arderem em febre, sem fazer caso da sua mulher e da sua filha, que se inclinavam para ele, suplicando-lhe que se calasse. Afastou-as mesmo de si com as mãos, e clamava que queria purificar a sua negra alma daquele crime, e libertar se de vez dum tal peso que não podia suportar nem mais uma hora! E prosseguiu com a sua arrepiante história, enquanto todos o olhavam ofegantes - juiz, júri, advogados - e Benny e a tia Sally choravam aflitivamente. E Tom Sawyer nem olhou para ele uma vez sequer! Nem uma vez, conservando-se indiferente no seu lugar, com o olhar perdido, fixo não se sabia em quê. O velho, alucinado, continuou a falar, e as palavras saíam-lhe em borbotões coma uma torrente de fogo.

- Matei-o! Sou eu o culpado! Mas nunca na minha vida pensei em agredi-lo, nem em fazer lhe mal, a despeito das mentiras que foram aqui ditas ao atribuírem-me ameaças contra Júpiter Dunlap. Porém, quando ergui o cacete contra ele, o coração esfriou-se-me e ficou vazio de piedade, e dei-lhe com ganas; dei-lhe para matar. Naquele instante vieram-me à mente todos os agravos, todos os insultos que aquele homem e o patife de seu irmão, que está ali presente, lançaram sobre mim; e as maquinações que os dois juntos puseram em prática para me malquistarem com a gente da terra, e enxovalharem o meu nome, e para me compelirem à prática de qualquer acto que me aniquilasse e à minha família, quando era certo - que sabe-o Deus! - nem eu nem os meus lhes fizemos mal jamais. E procederam assim por torpe vingança, - sabem porquê? Tão-só porque esta filha inocente e pura que está aqui a meu lado não quis casar se com esse rico, insolente, ignorante e cobarde que se chama Brace Dunlap e que aí está! Vejam-no, vejam-no ali a choramingar hipocritamente por seu irmão Júpiter, de quem ele nunca quis saber para nada, a quem ligava menos importância do que a um centavo !

Tom erguera-se num pulo e, naquele momento, a sua fisionomia irradiava satisfação. Entretanto, o tio Silas continuou:

- E naquele momento a que me referi há pouco, cresceu-me cá dentro uma grande cólera e, Deus me perdoe, desanquei-o com intenção de o matar! Passado um segundo, senti-me cheio de remorso, mas pensei na minha desditosa família e que por amor dela me cabia ocultar o que fizera. Escondi, então, o cadáver entre uns arbustos da floresta, e depois levei-o para a plantação de tabaco, onde, mais tarde, protegido pelas sombras da noite, com uma pá de que me munira, lhe dei sepultura numa cova que escavei para esse efeito.

Naquela altura da narrativa, Tom Sawyer, interrompendo as divagações do tio Silas, gritou:

- Agora vejo tudo claro! - E, acenando com a sua mão fina e enérgica para o velho, ordenou:

- Sente-se! Cometeu-se um homicídio, sem dúvida, mas o senhor não teve nele qualquer intervenção!

Houve um silêncio de grande expectativa: O tio Silas, desorientado, deixou-se cair novamente na sua cadeira, sem que sua mulher e Benny o notassem, porque, assombradas, olhavam para Tom, de boca aberta e cheias de confusão com a sua repentina interferência. E toda a sala foi tomada de igual surpresa. Jamais tinha visto olhos mais esbugalhados, olhando emparvecidos, numa atitude de tanto embaraço, como notei naquele auditório.

Tom solicitou, em seguida, com perfeita calma:

- Senhor juiz, dá-me licença que eu fale?

- Por Deus, sim, fala! - respondeu o juiz, tão admirado e confuso, que só escassamente distinguia o que se passava à sua volta.

Tom, de pé, manteve-se silencioso um ou dois segundos, para que tivesse maior efeito, conforme ele chamava àquilo, o que ia dizer, e, seguidamente, com a sua serenidade habitual, iniciou a sua dissertação:

- Há quase duas semanas que se encontra um pequeno édito afixado na fachada deste tribunal, oferecendo dois mil dólares de recompensa a quem indique o paradeiro de dois grandes diamantes, roubados em São Luís. O valor de tais diamantes é de doze mil dólares, mas isso não importa por agora. É com respeito ao homicídio que vou falar, dizendo como e quem o praticou, enfim, todos os pormenores.

A assistência anichou-se melhor nos seus lugares, e preparou-se para escutar, cheia de curiosidade.

- Esse homem que ali vedes, Brace Dunlap, que tanto tem chorado a morte de seu irmão Júpiter Dunlap, a favor de quem, em vida, nunca moveu uma palha, pretendeu casar se com aquela pequena que ali está, mas ela recusou dar-lhe a sua mão. Então, ameaçou o pai dela, o tio Silas, jurando-lhe que se havia de arrepender por causa daquela negativa. O tio Silas, que sabia como Brace era poderoso, e quão grande era a sua inferioridade em relação a semelhante homem, ficou assustado e cheio de apreensões, e fez quanto pôde para abrandar o seu ressentimento e obter a sua benevolência. Chegou até a admitir o irmão dele, Júpiter, que era um inepto, na sua fazenda, e deu- lhe um salário, que só conseguia pagar lhe cerceando no que era destinado à sua própria família. Júpiter fez tudo que seu irmão pôde imaginar para ofender o tio Silas, a fim de o afligir e inquietar, no desígnio de o impelir para um desforço contra Júpiter, que o deixasse mal colocado perante a gente da terra. A maquinação deu resultado, porque todos, notando as impaciências do velho reitor, começaram a censurá-lo e a dizer mal dele. O tio Silas foi assim entristecendo gradualmente, e andava tão preocupado e abatido que dava com frequência a impressão de não estar bom do juízo.

Naquele sábado que tantas perturbações suscitou, duas testemunhas aqui presentes, Lem Beebe e Jim Lane, passaram perto do lugar onde o tio Silas e Júpiter Dunlap estavam trabalhando, e, até esse momento, o que eles disseram neste tribunal é exacto; mas o resto dos seus depoimentos são falsidades. Eles não ouviram o tio Silas dizer que mataria Júpiter, nem o ruído de qualquer contenda nem de pancada. Também não viram qualquer homem morto, nem viram o tio Silas ocultar fosse o que fosse entre o mato da floresta. Observem-nos a ambos ali sentados, pesarosos de terem falado de mais. E mais pesarosos ficarão com o que tenho ainda para expor.

Naquele mesmo sábado, ao anoitecer, Bill e Jack Withers viram, com efeito, um homem que ia arrastando outro. Este ponto é o único verdadeiro do seu depoimento, porque tudo o mais é mentira. Primeiro, supuseram que era um negro que houvesse roubado um saco de cereais ao tio Silas. Reparem agora como essas duas testemunhas se mostram confusas, ao saberem que alguém os ouviu dizer aquilo. E mostram-se preocupados não só porque souberam, depois, de quem era o corpo que foi arrastado e quem o arrastou, mas também, e ainda melhor, o motivo por que vieram aqui jurar que, pelo trajo, lhes pareceu tratar se do tio Silas, coisa que não ignoravam ser falsa quando juraram, para mentir. Com efeito, um homem, à claridade do luar, viu enterrar um morto no campo plantado de tabaco, mas não foi o tio Silas quem o enterrou.

Naquela ocasião, o tio Silas achava-se em casa, deitado na sua cama.

      - Naquele mesmo sábado, não, na noite anterior, atracou um barco ao cais de Flager, a umas quarenta milhas daqui, numa noite de chuva e de tempestade violenta. A bordo daquele barco vinha um ladrão que tinha em seu poder os dois diamantes a que alude o aviso que se encontra afixado à porta deste tribunal. Saltou para terra com a sua taleiga, e desapareceu na escuridão em meio da tempestade, com a esperança de chegar a salvo a esta terra. Mas no barco vinham escondidos dois dos seus cúmplices, ele não ignorava que esses homens o matariam no primeiro ensejo que se lhes deparasse para se apoderarem dos diamantes, porque os três tinham roubado as pedras, e ele subtraíra-as e pusera-se em fuga.

- Uns dez minutos depois, os cúmplices do que fugira do barco deram pela sua fuga e imediatamente saltaram para terra e correram em sua perseguição. Provavelmente, com qualquer luz de que dispusessem, conseguiram achar o rasto do fugitivo. A perseguição durou todo o dia de sábado, e, ao anoitecer, o que se evadira com os diamantes chegou ao pequeno bosque de sicómoros junto do terreno do tio Silas. E ali mesmo tratou de se disfarçar com acessórios que para esse fim guardava no saco da sua bagagem. Ele contava tornar-se irreconhecível por meio daquele disfarce, e instalar se desse modo cá na terra. Convém reparar que o homem fez aqueles preparativos algum tempo depois da pretensa agressão, à paulada, do tio Silas contra Júpiter Dunlap. Quando os dois ladrões que perseguiam o seu cúmplice o descobriram, por fim, oculto no bosque de sicómoros, saltaram da espessura do matagal e, caindo sobre o fugitivo, atacaram-no, vibrando-lhe cacetadas à cabeça. Apesar dos gritos que o atacado soltava, os agressores espancaram-no desapiedadamente até que o mataram.

- Entretanto, dois homens que ouviram os gritos do que foi mortalmente agredido, correram em direcção ao sítio donde eles partiam, no bosque de sicómoros, e os assaltantes, quando viram os outros dois homens, desataram a fugir, perseguidos por eles. Mas, passados um ou dois minutos, os dois homens desistiram da perseguição, e regressaram muito tranquilos para os sicómoros.

- Quereis saber o que fizeram, então? Vou contá-lo. Encontrado o local onde o ladrão tinha tirado o disfarce do seu saco de bagagem, deitaram-lhe a mão e um deles utilizou-o em si próprio. .

Tom fez uma breve pausa para aumentar a impressão do auditório, após o que continuou, muito circunspecto:

- O homem que envergou o trajo e os acessórios de disfarce do morto era Júpiter Dunlap !

Ouviram-se exclamações de toda a assistência da sala, e o velho tio Silas parecia completamente espantado:

- Sim, era Júpiter Dunlap que, como vêem, estava vivo. Então, tiraram as botas ao cadáver e calçaram-lhe as botas velhas e em frangalhos de Júpiter Dunlap, calçando este último as do morto.

     Seguidamente, enquanto Júpiter Dunlap permanecia onde estava, o outro homem arrastou o cadáver para um sítio escuro. Depois da meia-noite, dirigiu-se a casa do tio Silas, tirou dali a velha blusa de trabalho que, como de costume, se encontrava pendurada no corredor entre a habitação e a cozinha, e vestiu-a, e, apoderando-se da pá de cabo comprido, voltou à plantação de tabaco, onde enterrou o corpo do morto.

Deteve-se, e esteve silencioso coisa de meio minuto após o que bradou:

- E quem julgam que era a vítima? Era Jake Dunlap, o salteador de quem há muito tempo se ignorava o paradeiro!

Levantou-se nova vaga de murmúrio na sala.

- E o homem que o enterrou. . . era Brace Dunlap, irmão do defunto. E quem supõem os senhores que seja aquele idiota que ali está, e que há umas semanas se faz passar por um forasteiro surdo- mudo? É. . . Júpiter Dunlap.

Toda a assistência se manifestou, num assombro, tomada de agitação nunca vista. Tom dirigiu-se num rompante a Júpiter Dunlap e arrancou- lhe as lunetas e o bigode com que seu irmão Jake tencionava disfarçar-se. Então, todos os presentes viram diante de si, tão vivo como qualquer deles, aquele que supunham morto! A tia Sally e Benny, chorando, foram abraçar e beijar, para o reconfortarem, o velho tio Silas, que, naquela emergência, se mostrava mais perplexo e areado do juízo do que nunca.

O auditório gritava de admiração, repetindo-lhe o nome, até que se ouviu uma voz:

- Calem-se todos, e deixem-no continuar! Continua, Tom Sawyer!

Aquilo envaideceu-o, porque lhe agradava exibir se ante o público como um sujeito extraordinário, uma personagem de lenda heróica. Assim, logo que viu o auditório mais calmo, Tom prosseguiu:

- Já pouco resta para dizer. . .

E, seguidamente, descreveu com minúcia as maquinações de Brace Dunlap para apoquentar e fazer perder o juízo ao tio Silas, e a maneira como, após o acidental encontro do cadáver do irmão, Jake Dunlap, que ele não reconheceu, por estar desfigurado pela agressão de que fora vítima, alugara as testemunhas para comprometerem o velho no tribunal, com depoimentos falsos.

Contou, também, que ele próprio e Huck Finn haviam viajado no mesmo vapor em que vinham os três ladrões, e o projecto que Jake Dunlap, com quem, incidentalmente, travaram conversa, lhes confiou de regressar a casa de seu irmão Brace Dunlap, e de ali viver em sossego, disfarçado de forasteiro e de surdo-mudo. E o desgosto que ele, Tom, experimentara quando o tio Silas, no tribunal, insistiu em declarar-se autor da morte do pseudo Júpiter Dunlap, cujo suposto cadáver ele e Huck Finn tinham descoberto, e o embaraço em que se viu durante grande parte da audiência para perceber, finalmente, que o morto não era Júpiter Dunlap mas sim seu irmão Jake. E que descobrira quem era o pseudoforasteiro surdo-mudo que se encontrava ali no tribunal, por ter notado que ele, em determinado momento, traçara maquinalmente, com o dedo, uma cruz na face como era um tique seu antigo. E reconhecendo, por aquele trejeito do pretenso surdo-mudo, que tinha na sua frente o próprio Júpiter Dunlap, fez-se completa luz no seu espírito e conseguiu deslindar aquela meada e coordenar todos os factos expostos na audiência.

Naquela altura, o juiz baixou a vista do alto do seu púlpito sobre Tom Sawyer, e interrogou:

- Mas dize-nos, meu rapaz, se presenciaste todos os diversos pormenores da maquinação e tragédia que nos descreveste?

- Não, meritíssimo juiz, não fui testemunha de nenhum desses pormenores.

- Então, se não viste nada, porque nos contas com tanta firmeza toda essa história, como se a tivesses visto? Como arranjas isso?

Tom respondeu, com todo o à-vontade e segurança:

- Apenas observando os factos, e ligando-os entre si. Qualquer um faria igual trabalho de coordenação, se lhe desse para o fazer.

- Não é bem assim! - observou o juiz. - Não havia, num milhão de pessoas, duas que pudessem fazer outro tanto. Tu és, na verdade, um rapaz extraordinário.

Repetiram-se as aclamações a Tom Sawyer, que este não teria trocado por uma mina de prata.

Depois, o juiz insistiu:

- Mas tens a certeza de que toda esta estranha história é como tu a contaste?

- Absolutamente, meritíssimo juiz! Ali está Brace Dunlap que não se atreverá a negar a sua intervenção, porque eu não lho consentirei. Vêem todos como ele se conserva silencioso, e bem assim as quatro testemunhas que ele comprou para virem aqui dizer falsidades. Quanto ao tio Silas, é inútil consultá-lo, porque eu não acreditaria nem mesmo sob juramento.

O auditório manifestou-se de novo, ruidosamente, e o próprio juiz não conteve o riso. Tom estava radiante que nem um arco-íris, e quando terminou a risota na assistência, olhou para o juiz e disse:

- Meritíssimo juiz: há um ladrão nesta sala.

- Um ladrão?

- Sim, senhor, E tem em poder dele os diamantes que valem doze mil dólares.

A agitação foi enorme! Todos gritavam:

- Quem é? Quem é? Indica-o!

- É o homem a quem todos consideravam morto, Júpiter Dunlap !

Rebentou outra tempestade de exclamações de surpresa e de excitação. Júpiter, esmagado de assombro pelo que já tinha ouvido, reagiu daquela feita e, quase chorando, disse:

- Aquilo não é verdade, senhor juiz, e é injusto. De outras coisas de que ele falou sou culpado, mas não desta. Brace meteu- me nisto com a promessa de que faria assim a minha fortuna, e eu obedeci-lhe. Lamento bastante ter lhe dado ouvidos, mas não roubei diamantes nenhuns, nem tenho diamante algum, e que eu morra agora mesmo se isto é mentira. O xerife pode revistar-me.

Tom interveio:

- Meritíssimo juiz, reconheço que não foi justo chamar ladrão a Júpiter Dunlap. Com efeito, ele roubou os diamantes, mas sem o saber. Ele roubou-os a seu irmão Jake quando o encontrou morto no bosque. E, como eu já aqui disse e devem recordar-se, Jake tinha-os furtado por seu turno aos seus dois cúmplices. Mas Júpiter ignorava que os tinha furtado, e anda há um mês com eles, sem o suspeitar. As pessoas inteligentes que se encontram nesta sala hão-de dizer, talvez, que tudo isto é uma cabala, e um absurdo; mas não é, afianço-lho eu, Tom Sawyer, que sou sobrinho do tio Silas e bom rapaz, como todos sabem, visto que todos me vêem bem alimentado e bem vestido, e não devo nada a ninguém, a não ser às minhas tias que me amparam, comovedoramente, sem dúvida, por ser raro que uma pessoa de família ampare outra quando ela necessita disso!

As mulheres do auditório, que, em geral, só pensavam em amparar-se a elas próprias, como sucede, também em geral - excepções à parte -, com os homens, fingiram enxugar lágrimas, e Tom prosseguiu nas suas denúncias, muito desculpáveis pelo amor que tributava a sua família:

- É como lhe digo: Júpiter Dunlap traz consigo nada menos de doze mil dólares; uma soma que pode fazer sorrir qualquer rei de petróleo, mas é enorme para uma terra destas, e há várias semanas que, no seu papel de forasteiro e surdo-mudo, está vivendo, como um pobre diabo, das papas de milho sem açúcar de seu carinhoso irmão Brace! Sim, meritíssimo juiz, ele tem aquele valor consigo, desde há coisa de um mês a esta parte e agora mesmo.

O juiz ergueu a voz, ordenando:

- Passe revista a Júpiter Dunlap, xerife.

O funcionário revistou-o de alto a baixo, por toda a parte, no chapéu, nas peúgas, nas costuras, nas botas, por todos os lados, enfim, enquanto Tom, calado, observava a cena, esperando empolgar a assistência com uma revelação final, que lhe ia fazer.

Ao cabo, o xerife desistiu de mais rebuscas, e todos na sala pareciam desapontados com aquele nulo resultado da sua solicitude profissional, e Júpiter exclamou, consoladíssimo:

- Aí está! Era ou não certo o que eu dizia?

O juiz, ante aquela exclamação, falou novamente, dirigindo-se a Tom Sawyer:

- Parece que desta feita te enganaste, meu rapaz!

Tom simulou concentrar se nos seus pensamentos, e coçou a cabeça, não com a ligeireza de qualquer macaco, mas com a solenidade duma pessoa profundamente circunspecta. E, de repente, olhou o vazio, como se no vazio houvesse encontrado inopinadamente o que pro curava, e perguntou:

- Algum dos presentes pode ter a bondade de me emprestar uma chavinha de parafusos? Havia uma no saco de bagagens que você palmou a seu irmão, Júpiter Dunlap, mas você extraviou-a certamente, e calculo que não a terá consigo.

- Não. Não precisava dela, e dei-a a alguém, não sei a quem.

Júpiter calçara novamente as suas botas, que por sinal eram do defunto, ou seja de seu irmão Jake, e por fim, não se sabe donde, por cima das cabeças do auditório, passada de mão em mão, chegou à sua posse a chavinha que pedira. Então, imperativo, Tom Sawyer disse para Júpiter:

- Ponha o pé em cima dessa cadeira.

Ante a expectativa da assistência, Tom ajoelhou-se aos pés de Júpiter e começou a desaparafusar a chapa do tacão. Todos observavam com funda curiosidade aquela cena, e quando ele, finalmente, retirou as volumosas pedras da cavidade dissimulada no tacão, e as ergueu e as fez rebrilhar no ar em mil posições, toda aquela gente ficou sem respiração, indizivelmente surpreendida. Júpiter parecia tão chocado e dissaborido, que metia dó.

- C'os demónios! - pensava ele. - Se eu tivesse sabido para que servia a chavinha de parafusos, que estava no saco de lona das bagagens do defunto, poderia viver a estas horas em qualquer país longínquo, rodeado da consideração e estima pública, sem precisar de Brace nem de ninguém, cheio de dinheiro e de saúde.

Júpiter esquecia que as pessoas ricas também podem sofrer, e quantas sofrem, até de carências mentais, ou de males físicos, conquanto o dinheiro possa servir-lhes, algumas vezes, de lenitivo! Mas ele não tivera nunca tempo para aprender a pensar, porque, de cada vez que tentava um tal prodígio, o aguilhão da sua desdita obrigava-o a desistir do intento e a seguir em frente, sempre em frente, como o judeu errante da lenda.

Depois daquele último êxito do seu génio, Tom atingira o apogeu da glória. O juiz tomara conta dos diamantes, e pondo-se de pé diante da sua mesa, disse, depois de tossir para aclarar a voz e de colocar as lunetas no nariz:

- Vou guardar estas pedras e notificar o facto imediatamente aos seus donos. E quando as mandarem buscar, terei o maior prazer, Tom, em entregar-te os dois mil dólares de recompensa, que ganhaste. E ganhaste, também, meu rapaz, a gratidão de todo o povo desta terra, por teres livrado uma família inocente da ruína e do opróbrio, e salvo um homem bom e honrado duma morte infamante. Em contraposição, foi também, graças a ti, que se tornou possível aplicar o castigo da lei ao malandrim do Brace e aos seus ignóbeis acólitos!

Tom e eu pensamos que, se uma filarmónica começasse a tocar naquele momento, o fecho daquele acto teria sido verdadeiramente perfeito, como apoteose à glória do triunfo obtido no tribunal.

O xerife, entretanto, deteve Brace Dunlap e os seus auxiliares na maquinação contra o velho Silas, e no mês seguinte foram julgados e metidos na cadeia. A gente da terra voltou a encher a pobre e velha igreja do tio Silas, e todos se esforçavam por mostrar-se corteses e afectuosos para com ele e sua família. O velho pastor tornou a pregar-lhes os seus sermões, que adquiriram, então, a característica de serem os mais atontados e confusos de que jamais se dera notícia no lugar, a ponto de os paroquianos saírem dali tão aturdidos e com o juízo tão abalado que, mesmo em pleno dia, não atinavam com o caminho dos respectivos lares. Em todo o caso, os que lhe ouviam as prédicas retiravam-se convencidos, apesar de não terem percebido nada do que ele dizia, de que elas eram em extremo luminosas e edificantes. Tom Sawyer não aparecia, talvez pelo receio de sair de lá tão atordoado como eu e os outros, com os sermões do bom velho.

Com o tempo e os reconfortantes carinhos da família, a mente do tio Silas foi-se restabelecendo até ficar sã como no passado, sem que isto envolva, suponho, qualquer sombra de elogio.

Todos os da família se mostravam contentes como pássaros, e ninguém seria capaz de exteriorizar maior reconhecimento e boa vontade do que os que testemunhavam a Tom Sawyer, e a mim igualmente, se bem que eu nada houvesse feito para tanto.

Quando vieram os dois mil dólares, Tom deu-me metade a mim, sem dizer nada a ninguém, atitude que não me causou admiração, porque o conhecia.

 

 

                                                                                Mark Twain 

 

                      

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