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Tomás Gordeiev, um proprietário de fábrica, o cordoeiro Jacob Maiakine, ocupa um lugar de primeiro plano; é um homem de "ferro" e ao mesmo tempo um homem de "cabeça"; era já capaz de um pensamento mais vasto do que o exigido pelos seus interesses estreitamente pessoais, está longe de ser um ignorante e sente a importância da sua classe.
Na realidade não encontrei homem formado psicologicamente como o Maiakine que apresentei. Conhecia na literatura uma única tentativa de representação de um comerciante com pensamento político: Vassili Tiorkine, no romance de P. Boborykine.
A partir de que materiais foi construída a personagem de Jacob Maiakine? Em primeiro lugar eu conhecia bem os "patrões". Muito cedo, ainda adolescente, senti que me consideravam um ser situado mais baixo do que eles, um semi-homem entregue ao seu poder. Mas ao mesmo tempo verifiquei que era na maior parte das vezes mais culto do que eles e algumas vezes parecia-me que era mais inteligente. Ao lado disto, não podia deixar de reparar que o patrão, embora mantendo-me à parte, ensinava-me a trabalhar. Compreendi assim muito cedo o papel histórico e cultural, determinante do trabalho, desde que tive gosto pelo trabalho, desde que senti que se podia encontrar a serrar madeira, a cavar a terra ou a cozer o pão, o mesmo prazer que a cantar.
Eu via os "patrões" fabricarem incansavelmente a vida "normal", mas senti que apesar de tudo o faziam um pouco preguiçosamente e que eram, na realidade, mais escravos do que chefes das suas empresas.
Andavam sempre irritados, gritavam, lamentavam-se do peso do seu "trabalho", dos aborrecimentos que lhes eram causados pela necessidade de vigiarem e comandarem operários, de servirem docilmente as "autoridades" e de se defenderem dos patrões mais fortes que eles do ponto de vista financeiro.
Parecia algumas vezes compreenderem que o que já tinham "acumulado" lhes podia permitir viverem menos tristemente, menos vulgarmente, menos estupidamente do que
o faziam, mas, pelo contrário, mais alegremente, mais livremente e, de um modo geral, de outra maneira.
Sentia-se em muitos deles uma incerteza inquieta e até o medo do futuro; de resto não escondiam uns dos outros esse estado de espírito.
Era absolutamente claro que, embora teimosos e estúpidos, de estupidez secular, as pessoas "normais" não se sentiam absolutamente seguras da sua força e esperavam
alguma desgraça para o dia seguinte.
Foi o ano de 1896 que me forneceu mais conhecimentos acerca dos patrões. Nesse ano realizou-se em Nijni-Novgorod uma exposição pan-russa e um Congresso do "Comércio
e Indústria". Na qualidade de correspondente dos jornais "Notícias de Odessa" e "Gazeta de Nijni-Novgorod", assisti às sessões do Congresso. estavam ali pessoas
da "primeira classe"; fabricantes muito imponentes, grandes proprietários rurais, sábios economistas e professores. Mas eu achava mais interessante seguir na Exposição
as conversas dos pequenos industriais e comerciantes vindos da província. O tema fundamental e primordial dessas conversas na feira eram as preocupações que lhes
causavam os aldeãos, o campo. Era natural: eles próprios eram mujiques pouco tempo antes, e sentiam-se orgulhosos disso porque "Deus deu a terra russa ao mujique",
e porque eles eram "o osso mujique mas já coberto com a carne dos senhores".
Passados trinta e quatro anos, vejo ainda nitidamente diante de mim esses rostos barbudos de patrões de Pskov, de Viatka, da Sibéria e de outras regiões. Vejo-os
nos stands de máquinas. Admirados, sobre isso não havia dúvidas, mas descontentes. Isso também era claro. Sorriam com ar desconcertado, riam contrafeitos. Foi proposto
a um grupo subir num balão cativo. Um velhinho
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seco, a barbicha em ponta, os olhos avermelhados cheios de uma alegria impiedosa, respondeu: "E se largarem a bexiga, ela poderá subir até Deus? Não? Então para
que diabo serve andar metido nos ares como um pau num buraco do gelo?" Quase todas as vezes que eu ia à Exposição, encontrava um porta-voz dos pensamentos e dos
sentimentos dos "patrões" no género daquele velhinho pitoresco; mas apesar de tudo eles não me forneceram materiais bastantes para a personagem típica de Jacob Maiakine.
Modelei, a partir de uma massa de observações e pormenores tomados do vivo, a silhueta mais ou menos completa de um patrão de envergadura média, depois dotei-o de
alguma coisa da filosofia de Frederico Nietzsche. Eu tinha o pleno direito de emprestar a um patrão russo certas características da antiga filosofia: a "moral de
classe" e a "moral dos senhores" são internacionais. Nietzsche pregava ao forte: "Empurra aquele que tomba" e tentava provar o mal causado pelo cristianismo que,
dizia ele, "sustenta os que tombam".
A crítica acusou-me de ter, segundo ela, "romanticizado os mendigos". Fi-lo efectivamente? Duvido. Não coloquei neles nenhuma esperança; mas dotei-os, como a Maiakine,
com a filosofia nietzschiana; isso não nego. Penso ter tido direitos muito legítimos de emprestar a esses "caídos" o anarquismo nietzschiano e o anarquismo dos "vencidos".
Porquê?
Porque os "caídos" que a vida atira para fora dos limites do "normal" nos asilos e certos grupos de intelectuais "vencidos" apresentam sinais videntes de parentesco
físico.
MÁXIMO GORKI (Extracto de uma Conferência pronunciada em 1931)
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I
Há cerca de sessenta anos, numa época em que nas margens do Volga se edificavam fortunas de vários milhões com uma rapidez fantástica, Inácio Gordeiev trabalhava
numa das barcaças do rico comerciante Zaiev, com a categoria de chefe da equipa de sirgadores.
Forte, bonitão e nada tolo, era daquelas pessoas a quem o sucesso acompanha sempre em todas as coisas. Não porque tenham talento, ou porque sejam laboriosos, mas
sobretudo porque dispõem de uma enorme reserva de energia e porque, na caminhada em direcção aos seus objectivos, não sabem - nem podem - preocupar-se com a escolha
dos meios e não conhecem outra lei além da que constitui o seu desejo. Acontece-lhes falarem com terror da sua consciência, por vezes fazem sinceramente um esforço
para a combaterem, mas a consciência é invencível apenas nas almas fracas. As almas fortes dominam-na rapidamente e escravizam-na à perseguição dos seus desejos.
Sacrificam-lhe algumas noites de insónia, e se acontece a consciência sair vitoriosa submetem-se, mas nunca são quebradas, vivem sob o seu domínio com tanto vigor
como viviam antes sem ela.
Aos quarenta anos, Inácio Gordeiev era proprietário de três navios a vapor e de uma dezena de barcaças. Nas margens do Volga era respeitado como ricaço e como homem
inteligente, mas tinham-no apelidado de "chalado", porque a sua vida não tinha decorrido sem sobressaltos, seguindo um curso regular como a das outras pessoas da
sua espécie: entregue incessantemente a uma efervescência atormentada, saltava bruscamente fora do seu leito, afastando-se da pesquisa do dinheiro, objectivo essencial
da existência. Dir-se-ia que havia três
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Gordeiev: no corpo de Inácio viviam três almas. Uma delas, a mais poderosa, era apenas avidez e quando Inácio estava às ordens dela era simplesmente um homem possuído
por uma indomável paixão do trabalho. Essa paixão ardia nele dia e noite, absorvia-o totalmente e levava-o a apoderar-se por toda a parte de centenas e de milhares
de rublos; parecia nunca se sentir saciado do atrito e do tilintar do dinheiro. Diligenciava ao longo do Volga, subindo-o, descendo-o, reforçando e lançando em mil
lugares as redes com que pescava o ouro. Comprava trigo nas aldeias, transportava-o para Rybinsk, carregava-o nas suas barcaças. Por vezes trapaceava sem dar por
isso, outras vezes fazia-o conscientemente; uma vez triunfante, ria-se abertamente dos que enganara e, na sua sede insensata de dinheiro, elevava-se até à poesia.
Mas, mesmo desenvolvendo um tal esforço nessa caça aos rublos, não era ávido no sentido estrito do termo; acontecia-lhe até manifestar um desinteresse sincero em
relação ao que possuía.
Um dia, na época da ruptura dos gelos no Volga, estava na margem do rio e, vendo o gelo quebrar a sua nova barcaça de trinta toesas (1), esmagando-a contra a margem
abrupta, murmurava entre dentes:
- Acabarás por ganhar!... Vá, aperta mais!... Força, esmaga-a!... Vamos, mais uma pancada!...
- Então, Inácio! - perguntou-lhe o compadre Maiakine- o gelo rouba-te dez mil rublos e é tudo o que tens a dizer?
- Que importa! Perco dez mil, ganharei cem mil!... Mas repara como o Volga trabalha! Está cheio de saúde! Pode abrir a terra toda como uma faca a abrir um queijo.
Olha para a minha "Boiarine"! Fez só uma viagem ao todo... Vê o paizinho a trabalhar (2)... E depois!... Vamos beber um copo para celebrar o enterro.
A barcaça foi esmagada. Inácio e o seu compadre, sentados na taverna do cais, bebiam vodka e contemplavam, através da janela, os destroços da "Boiarine" que deslizavam
sobre a água entre os blocos de gelo.
- Tens pena do teu barco, Inácio?
- Para quê? O Volga deu-mo, o Volga mo tirou. É melhor do que partir um braço, evidentemente...
- Apesar de tudo...
- Apesar de tudo, o quê? Desde que eu próprio vi como tudo se passou, está bem, será uma lição para
* (1) Aproximadamente 5 metros. N. do T.
(2) Paizinho: termo que designa o Volga, entre as pessoas da região. *
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o futuro. Quando o meu "Volgar" ardeu, lamentei porque não vi nada. Deve ser uma beleza uma coisa tamanha a arder na água numa noite escura, hem? Era um vapor enorme...
- Também não tens ar de quem o lamenta muito!
- O vapor? Um vapor, foi pena, claro... Bem, lamentarmo-nos é pura tolice. Para que serve? Chora, se quiseres, mas as tuas lágrimas não apagarão o incêndio. Elas
podem correr, os barcos arderão na mesma. E mesmo que tudo arda, que me importa? Desde que a alma arda igualmente no trabalho... não é verdade?
- Por Deus! - respondeu Maiakine, sorrindo. São palavras fortes, não há dúvida... Quem fala assim pode-se pô-lo nu em cima da palha que será sempre rico...
Se bem que encarasse filosoficamente a perda de milhares de rublos, Inácio conhecia o preço de cada copeque. Era mesmo raro que ele desse qualquer coisa aos mendigos,
e mesmo assim apenas àqueles que eram completamente incapazes de trabalhar. Se um homem ainda válido pedia esmola, Inácio dizia severamente:
- Desaparece! Ainda podes trabalhar, vai ajudar o meu criado a levantar o lixo. Depois te darei a moeda.
Nos seus períodos de entusiasmo pelo trabalho, tratava as pessoas duramente e sem piedade, não concedia a si próprio qualquer repouso na caça aos rublos. E bruscamente
- o que acontecia habitualmente na Primavera quando tudo se torna belo e encantador sobre a terra e uma brisa acariciante cai do alto do céu límpido como uma censura
- Inácio sentia que não era o dono dos seus bens, mas sim o seu humilde escravo. Tornava-se sonhador e lançava à sua volta, por baixo das espessas sobrancelhas franzidas,
olhares perscrutadores; ia e vinha durante dias inteiros, aborrecido e mau, como se fizesse a si mesmo em silêncio, certas perguntas e temesse fazê-las em voz alta.
Despertava então nele uma outra alma, a alma impetuosa e impaciente de um animal selvagem excitado pela fome. Tornava-se insolente com todos, cínico, bebia, transtornava
e embebedava os outros, ficava frenético como se um vulcão fervesse dentro dele. Puxava raivosamente aquelas mesmas cadeias que tinha forjado e de que se tinha carregado,
puxava por elas mas não tinha força para as quebrar. Desgrenhado, sujo, o rosto tumefacto pela embriaguez e pelas noites sem dormir, formidável e rugindo com voz
enrouquecida, palmilhava a cidade de um abrigo a outro, semeava dinheiro sem contar, chorava ao ouvir canções melancólicas, dançava e batia fosse em quem fosse,
mas não encontrava apaziguamento em parte alguma nem de modo algum.
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Tinham-se construído lendas a propósito das suas bambochatas, criticavam-no severamente, mas ninguém recusava o seu convite para uma orgia. Vivia assim durante semanas.
De repente reaparecia em casa, ainda impregnado do cheiro das tavernas mas já cabisbaixo e apaziguado. Os olhos humildemente postos no chão, agora ardentes de vergonha,
ouvia em silêncio as censuras da mulher, humilde e estúpido como uma ovelha, depois ia para o seu quarto e fechava-se. Ficava ajoelhado diante dos ícones durante
algumas horas, com a cabeça inclinada para o peito, os braços pendentes, sem força, as costas curvadas e mantinha-se silencioso como se não tivesse coragem de rezar.
A mulher aproximava-se da porta em bicos de pés e punha-se à escuta. Ouvia fundos suspiros do lado de lá da porta, suspiros de cavalo fatigado e doente.
- Meu Deus! Estás a ver!... - murmurava surdamente Inácio comprimindo com força as palmas das mãos no largo peito.
Nos dias de arrependimento só bebia água e comia pão de centeio. A mulher punha-lhe de manhã, à porta, uma garrafa com água, libra e meia de pão e sal (1). Ele abria
a porta, pegava naquela refeição e fechava-se novamente. Nessas ocasiões ninguém o importunava, evitavam mesmo encontrarem-se sob os seus olhos... Alguns dias mais
tarde reaparecia no comércio, gracejava, ria, tomava conta de encomendas de trigo a entregar com o olhar seguro de uma ave de rapina cheia de experiência, fino conhecedor
de tudo o que se referia aos negócios.
Mas nos três terrenos da sua vida um desejo único e apaixonado não o abandonava nunca: o desejo de ter um filho. Quanto mais a idade ia avançando, mais esse desejo
se fortalecia. Era motivo frequente de conversas entre ele e a mulher: ao tomar o chá da manhã, ou durante a refeição do meio-dia, após um olhar sombrio à mulher,
gorda, bem nutrida, de rosto rubicundo e olhos adormecidos, interrogava-a:
- Então, não sentes nada?
Ela sabia ao que ele se referia, mas respondia invariàvelmente:
- Então não havia de sentir? Tu tens as mãos pesadas, parecem mocas...
- É à tua barriga que me refiro, palerma...
- com os socos que me dás, como queres tu?...
- Não é por causa dos socos que tu não engravidas,
(1) Na Rússia, como de resto em muitos outros países, o pão é cozido sem sal e cada pessoa salga-o à vontade à medida que o come. N. do T. *
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mas sim porque te empanturras. Entopes a barriga com uma tal quantidade de comida, que a criança não tem um buraco onde se meter.
- Parece até que nunca tive filhos!...
- Filhas! - dizia Inácio com entonação de censura. - O que eu preciso é de um filho. Estás a perceber? Um filho, um herdeiro. A quem deixarei o capital depois da
minha morte? Quem rezará pelos meus pecados? vou deixar tudo ao mosteiro? Já lhes dei bastante. Deixar-to a ti? As tuas orações deviam ser bem fracas. Mesmo na igreja,
só pensas em empadões recheados. Quando eu morrer voltarás a casar e o meu dinheiro cairá nas mãos do primeiro imbecil que aparecer. É para isso que eu trabalho?...
Apossava-se dele um desânimo implacável, sentia que a vida se lhe escoava sem objectivo se não viesse a ter um filho para a perpetuar.
Em dez anos de casamento a mulher dera-lhe quatro filhas, mas tinham morrido todas. Esperara o nascimento delas a tremer e não o desgostara muito a sua morte: elas
não lhe eram úteis. Tinha batido na mulher a partir do segundo ano do matrimónio; a princípio quando estava ébrio e sem maldade, apenas para seguir o provérbio:
"ama a tua mulher como a tua alma e abana-a como a uma ameixoeira", mas depois de cada um dos partos, enganado nas suas esperanças, o ódio inflamava-se-lhe e daí
em diante gozava em lhe bater por ela não lhe dar um filho.
Um dia em que se encontrava, para negócios, na província de Samara, recebeu de casa um telegrama que lhe anunciava a morte da mulher. Benzeu-se, pensou um bocado
e escreveu ao primo Maiakine:
- Enterra-a sem mim, olha pela propriedade...
A seguir foi à igreja ouvir os ofícios dos mortos e, depois de rezar pela alma da defunta Akilina, decidiu voltar a casar o mais depressa possível.
Tinha então quarenta e três anos: alto, de ombros largos, falava com voz de baixo como um diácono. Os olhos grandes sob as sobrancelhas de pêlos escuros tinham um
olhar audacioso e inteligente; no rosto bronzeado, coberto por uma espessa barba negra, e em toda a sua possante silhueta, havia muito da saudável e rude beleza
russa; dos seus movimentos desembaraçados e do seu andar sem pressa dimanava uma impressão de força. Agradava às mulheres e não as evitava.
Não tinham ainda decorrido seis meses após a morte da mulher, e já ele tinha pedido em casamento a filha de um cossaco, velho crente, do Ural, relação de negócios.
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O pai da noiva deu-lhe a filha, apesar da fama de "chalado" de Inácio chegar até aos Urais. Ela chamava-se Natália. Alta, bem-feita, com grandes olhos azuis e uma
longa trança castanho-escuro, era o digno par de Inácio; este sentia-se orgulhoso da mulher e amava-a com um amor de macho saudável, mas em breve a começou a observar
com um olhar pensativo e inquisidor.
O sorriso aparecia raramente no rosto oval e regular da mulher, ela seguia sempre um pensamento secreto, e nos olhos frios e serenos brilhava de vez em quando um
sombrio clarão selvagem. Nos momentos de ócio que as ocupações domésticas lhe deixavam, sentava-se junto da janela da maior sala da casa e sem se mexer, em silêncio,
ficava ali duas ou três horas seguidas. O rosto estava voltado para a rua, mas o olhar mantinha-se completamente indiferente a tudo o que vivia e se movia para lá
da janela, concentrava-se ao mesmo tempo muito profundamente como se olhasse para dentro de si. O seu andar também era estranho. Natália evoluía nos vários aposentos
da casa lentamente e com precaução, como se algo de invisível lhe incomodasse os movimentos. A casa estava mobilada com um luxo pesado e de grosseira ostentação,
tudo ali brilhava e gritava a riqueza do dono da casa, mas a cossaca passava obliquamente e com temor diante dos móveis caros e das vitrines cheias de pratas, como
se temesse que essas coisas a agarrassem e a esmagassem. A vida ruidosa da grande cidade comercial não interessava àquela mulher: ao passear de carro com o marido
os olhos fixavam-se nas costas do cocheiro. Se ele a levava de visita a alguém, ela ia mas mantinha-se tão silenciosa como em casa. Se os convidados vinham a casa
deles, ela servia-lhes bebidas ou dava-lhes de comer zelosamente, sem manifestar interesse por aquilo que diziam ou marcar preferência por qualquer deles. Dificilmente
Maiakine, espirituoso e brincalhão, conseguia levar de tempos a tempos um sorriso àquele rosto. E ele comentava:
- Uma mulher não é de pau. Digam o que disserem, a vida queima tão bem como um feixe de lenha seca, e esta bebedora de leite acabará também por se incendiar. Vê-la-emos
então alegrar-se como um canteiro de flores.
- Eh! Santinha! - gracejava Inácio. - Em que pensas? Tens saudades da tua aldeia? Alegra-te!
Ela mantinha-se silenciosa, olhando-o sem perturbação.
- Vais à igreja vezes de mais... Devias esperar um pouco. Tens muito tempo de rezar pelos teus pecados
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peca primeiro! Sabes, sem pecado não há arrependimento e sem arrependimento não há salvação... Portanto, já vês, peca enquanto és nova. Se fôssemos dar uma volta
de carro?
- Não me apetece.
Sentava-se junto dela, beijava-a, mas ela mantinha-se fria e respondia às suas carícias de modo insosso e parco. Ele olhava-a de frente e dizia:
- Natália! Porque estás triste? Aborreces-te comigo, hem?
- Não - respondia ela, laconicamente.
- Então? Tens vontade de ir ver os teus pais, talvez?
- Sim, não... Não é nada...
- Em que pensas?
- Não penso.
- Mas que tens?
- Nada!
Uma vez conseguiu arrancar-lhe uma resposta menos monossilábica.
- Tenho uma perturbação qualquer no coração. Nos olhos também... Parece-me sempre que isto não é real.
Estendeu a mão, designando à sua volta as paredes, os móveis, tudo. Inácio não se deteve nessas palavras e disse rindo:
- Mas não tens razão! Aqui é tudo real... Todas as coisas são caras, sólidas... Mas se quiseres eu queimarei, venderei, darei tudo e compram-se coisas novas. É isso
que queres?
- Para fazer o quê? - respondeu ela suavemente. Ele admirava-se que ela, tão jovem, tão saudável,
vivesse como que sonolenta, sem desejar nada, à parte do mundo. E animava-a:
- Espera um pouco, verás - vais-me dar um filho. Depois terás uma vida muito diferente. O que te entristece é não ter preocupações, ele dar-tas-á... Dar-me-ás um
filho, não é verdade?
- Será como Deus quiser.
Em seguida aquele temperamento começou a irritá-lo.
- Então, bebedora de leite, continuas com o nariz no chão? Parece que andas a pisar vidros ou que mataste alguém. Uma mulher robusta como tu, sem gosto para nada!
És uma tola.
Uma vez que regressou a casa depois de beber, começou a assaltá-la com carícias, mas ela evitava-o. Então encolerizou-se e gritou:
- Natália! Não sejas estúpida, tem cuidado.
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Ela fez-lhe frente e perguntou tranquilamente:
- E se não tiver que acontece?
Inácio ficou furioso com estas palavras e com o seu ar decidido.
- O quê? - gritou, avançando para ela.
- Queres-me bater, talvez? - perguntou ela sem recuar e sem pestanejar.
- Toma, então!... - gritou ele levantando a mão. Sem pressa, mas a tempo, ela esquivou o golpe, depois
segurou-lhe a mão, afastou-a e disse sem elevar a voz:
- Se me tocas nunca mais te aproximarás de mim. Não te suportarei.
Os grandes olhos apertaram-se e o seu brilho agudo, cortante, dissipou a embriaguez de Inácio. Ele compreendeu ao ver-lhe o rosto que também ela era animal selvagem
vigoroso e que, se o quisesse, ele nunca mais a teria mesmo que lhe tivesse de bater até à morte.
- Oh, oh! A mosca morta! - rugiu ele ao sair. Tinha recuado uma vez diante dela mas não voltaria
a fazê-lo: não podia suportar que uma mulher, a sua mulher, se não inclinasse diante dele. Isso tê-lo-ia rebaixado. Sentiu porém que ela nunca recuaria em nenhum
terreno e que uma luta teimosa se devia travar entre eles.
- Muito bem! Veremos quem vencerá - pensava ele no dia seguinte, observando-a com uma curiosidade aborrecida, acendendo-se já nele a vontade impetuosa de iniciar
a luta para saborear a vitória mais cedo.
Quatro dias mais tarde Natália Fominichna anunciou ao marido que estava grávida. Inácio estremeceu de alegria, abraçou-a fortemente e pronunciou com voz velada:
- Natacha... se for um filho, se puseres um filho meu no mundo, cobrir-te-ei de ouro. E isso não é nada, digo-o francamente. serei o teu criado. Tão verdade como
Deus nos está a ver. Poderás pisar-me aos pés se te apetecer.
- Isso não depende de nós, mas sim de Deus - respondeu ela com voz baixa e distinta.
- Sim, depende de Deus! - exclamou Inácio com amargura, baixando a cabeça tristemente. A partir desse momento começou a velar pela mulher como se ela fosse um bebé.
- Porque te sentaste junto da janela? Cuidado, há aí uma corrente de ar, ainda acabas por adoecer
- dizia-lhe ele com um misto de severidade e ternura.
- Para que sobes as escadas a galope? Não andes com a criança aos abanões... Come mais, come por dois que ele também precisa.
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A gravidez de Natália tornou-a ainda mais recolhida e silenciosa; entrou mais profundamente em si própria, absorvida pelas pulsações de uma vida nova junto do seu
coração. Mas o sorriso tornou-se-lhe mais claro nos lábios e uma nova luminosidade se lhe acendia por vezes nos olhos, frágil e tímida como os primeiros raios da
aurora.
Quando chegou o momento do parto - foi muito cedo, numa manhã de Outono - ao primeiro grito de dor arrancado à mulher, Inácio empalideceu, quis-lhe dizer qualquer
coisa mas conseguiu apenas fazer um gesto com a mão e saiu do quarto onde ela se torcia convulsivamente. Desceu a uma salinha que servia de oratório à defunta mãe,
pediu vodka, sentou-se à mesa e pôs-se a beber, taciturno, com o ouvido atento à agitação da casa. Num canto do aposento, iluminados pelo bruxulear de uma lamparina,
desenhavam-se os rostos dos ícones, indiferentes e sombrios. Lá em cima,
- por cima da cabeça dele, caminhavam, arrastavam os pés, deslocavam algo de pesado sobre o soalho, a louça tilintava, corriam, passos apressados subiam e desciam
as escadas... Tudo se fazia rapidamente, apressadamente, mas o tempo decorria com lentidão... Vozes abafadas chegavam até aos ouvidos de Inácio.
- Ela não parirá assim... era preciso mandar alguém à igreja para abrir as portas do czar...
Vinda do quarto ao lado daquele em que estava Inácio, entrou Vassuchka, que partilhava a vida da família, e começou a rezar com um murmúrio sonoro:
- Senhor meu Deus... descido dos céus na Tua infinita bondade... nascido da Virgem Maria... conheces o nada da natureza humana... perdoa à tua serva...
E de súbito, cobrindo todos os ruídos, elevava-se um clamor inumano, perturbador, ou então errava suavemente através da casa um gemido prolongado que ia morrer nos
cantos já povoados pelas sombras do crepúsculo. Inácio lançava olhares rabujentos sobre os ícones, suspirava profundamente e pensava:
- Será possível que seja outra vez uma filha?
De vez em quando levantava-se e benzia-se sem dizer nada, inclinando-se reverentemente diante dos ícones, depois voltava a sentar-se diante da mesa, bebia vodka
que não conseguia embriagá-lo, dormitava; passou assim todo o dia, a noite e a outra manhã até ao meio-dia.
Finalmente a parteira desceu as escadas a correr, gritando-lhe com voz vibrante e alegre:
- Inácio, é um rapaz.
- Estás a dizer a verdade?
- Que raio de resposta, homem!
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Suspirando com toda a força do seu peito, Inácio caiu de joelhos e balbuciou com voz trémula, comprimindo violentamente as mãos contra o peito:
- Louvado sejas, Senhor! Não quiseste deixar que a minha raça se extinguisse. Não ficarei diante de ti sem justificação para os meus pecados. Agradeço-te, meu
Deus.
Levantou-se imediatamente e começou a dar ordens com voz forte e animada:
- Vamos. Vai a São Nicolau procurar o pope. Diz-lhe que Inácio Matveitch o manda chamar. Mandem dizer orações pela parturiente...
Uma criada entrou e disse-lhe num tom alarmado:
- Inácio Matveitch! Natália Fominichna manda-o chamar... Ela sente-se mal...
- Que mal? Isso passa! - rugiu ele com os olhos, brilhantes de alegria. - Diz-lhe que vou já. Diz-lhe que ela é uma mulher formidável. vou imediatamente arranjar-lhe
um presente e vou vê-la. Espera! Prepara umas carnes frias para o pope, manda chamar o primo Maiakine.
A sua enorme estatura parecia ter ficado ainda mais imponente; ébrio de alegria mexia-se como um louco pela sala, esfregava as mãos e, lançando olhares enternecidos
aos ícones, persignava-se com um largo gesto do braço... Finalmente foi ver a mulher.
O que antes de tudo o mais lhe saltou aos olhos foi o pequeno corpo vermelho que a parteira lavava numa bacia. Ao vê-lo, Inácio ergueu-se na ponta dos pés e, com
as mãos atrás das costas, aproximou-se dele com precaução fazendo uma careta cómica. A criança soltava gritos agudos e patinhava na água, nu, sem força, enternecedor
e indefeso.
- Cuidado, muito cuidado, hem! Pega nele com mais jeito... Ele ainda nem sequer tem ossos... - implorava Inácio, dirigindo-se à parteira.
Ela pôs-se a rir, abrindo a boca desdentada, passando habilmente o recém-nascido de uma das mãos para a outra.
- Vai ver a tua mulher.
Ele dirigiu-se docilmente para a cama e perguntou entretanto:
- Então, Natália?
Depois, ao chegar à cama, afastou a cortina projectando a sua sombra sobre a roupa.
- vou morrer - disse uma voz fraca e enrouquecida. Inácio ficou silencioso, olhando fixamente o rosto
da mulher, afogado na brancura da almofada na qual se
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espalhavam, como serpentes mortas, as madeixas dos cabelos. Amarela, sem vida, com olheiras negras à volta dos grandes olhos abertos, aquele rosto era-lhe estranho.
O olhar desses olhos assustadores, absortos fixamente no longe, algures para lá da parede, era igualmente desconhecido de Inácio. O coração apertado por um pressentimento
sombrio moderou as suas alegres pulsações.
- Isso não é nada... É sempre assim... - disse ele suavemente, inclinando-se para a mulher para a abraçar. Mas ela repetiu, mesmo junto do rosto dele:
- vou morrer...
Os lábios dela estavam cinzentos, frios, e quando ele os tocou com os seus compreendeu que a morte já se instalara nela.
- Oh! Meu Deus! - murmurou ele num cochichar apavorado, sentindo que o terror lhe apertava a garganta e o impedia de respirar.
- Natacha! Não penses numa coisa dessas! Sabes que ele precisa de um peito para se alimentar. Que dizes a isso?
Sentia-se a ponto de moderar a imaginação da mulher com grandes gritos. Junto dele a parteira agitava-se, balançando no ar o menino que chorava e disse-lhe qualquer
coisa com um tom persuasivo, mas Inácio não ouviu nada; não podia desviar os olhos do espantoso rosto da mulher. Os lábios de Natacha mexiam, ouvia palavras abafadas
mas não as compreendia. Sentado na borda da cama, ele falava com voz surda e tímida:
- Pensa bem, sabes perfeitamente que ele não pode viver sem ti. É um bebé! Reaje: expulsa esse pensamento! Expulsa-o!...
Falava, mas compreendia que falava em vão. As lágrimas subiam-lhe aos olhos, uma coisa pesada como uma pedra, fria como um pedaço de gelo, nascia-lhe no peito.
- Perdoa-me... adeus! Olha por ele, trata-o bem... não bebas... - balbuciava Natália, sem voz.
Chegou o padre e depois de lhe ter coberto o rosto começou, soltando suspiros, a ler as palavras de súplica da prece:
"Senhor Todo-Poderoso, pai de todas as coisas, que curas todos os males... cura a tua serva Natália que teve hoje um filho... ergue-a do leito em que está estendida...
porque, segundo as palavras do profeta David: nascemos na iniquidade e somos vermes perante a tua face..."
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A voz do velho era trémula, o rosto magro era severo, das roupas emanava um odor de incenso.
"Preserva-lhe o filho de toda a malignidade... de toda a maldade... de toda a perturbação... dos espíritos malignos do dia e da noite..."
Inácio chorava silenciosamente. As lágrimas grossas e quentes caíam na mão nua da mulher. Mas decerto a mão não sentia as lágrimas que a atingiam: mantinha-se imóvel
e a pele não estremecia sob o choque. Depois das orações, Natália caiu em coma e, no dia seguinte, morreu, sem ter dito uma palavra a mais ninguém, tão silenciosamente
como tinha vivido. Depois das sumptuosas exéquias com que honrou a mulher, Inácio baptizou o filho; chamou-lhe Tomás e, contrafeito, confiou-o à família do padrinho
dele, Maiakine, cuja mulher tinha também parido pouco tempo antes. Na barba espessa e escura de Inácio a morte da mulher semeou muitos pêlos cinzentos, mas no brilho
dos seus olhos tinha aparecido algo de novo, de suave e acariciador.
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II
Maiakine habitava uma casa enorme, de um só piso, com um grande jardim sumptuosamente plantado com possantes tílias. Os ramos de folhagem densa mascaravam as janelas
com uma pesada renda escura e o sol tinha dificuldade em fazer penetrar os seus raios quebrados, através dessa cortina, nas pequenas salas onde se empilhava um mobiliário
discordante e grandes arcas. Uma penumbra austera reinava assim nas salas. A família era piedosa: o perfume dos círios, do incenso e do azeite das lamparinas colocadas
diante dos ícones enchia a casa, os suspiros de penitenciadas palavras das orações andavam no ar por toda a parte. Os rituais religiosos eram observados com rigor,
com deleite, toda a energia disponível dos habitantes da casa concentrava-se nisso. Na atmosfera de penumbra, abafada e pesada, silhuetas femininas, quase sem o
mínimo ruído, iam e vinham, vestidas com roupas escuras e os pés sempre calçados de pantufas.
A família de Jacob Maiakine compunha-se dele próprio, da sua mulher, uma filha e cinco primas; a mais nova de entre elas tinha trinta e quatro anos. Eram todas igualmente
piedosas, apagadas e dóceis a Antonieta Ivanovna, a dona da casa, uma mulher de elevada estatura, magra, de rosto fechado e severos olhos cinzentos que brilhavam
com um cintilar autoritário e inteligente. Além disso Maiakine tinha um filho, Taras, mas o nome dele nunca era pronunciado na família. Sabia-se na cidade que Taras
partira para Moscovo, aos dezanove anos, prosseguir os seus estudos e três anos depois tinha-se casado contra a vontade do pai. Desde esse dia Jacob tinha cortado
relações com ele. Mais tarde Taras tinha
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desaparecido sem deixar rasto. Dizia-se que tinha sido, por qualquer motivo, deportado para a Sibéria.
Jacob Maiakine, baixo, vivo, com uma barba dividida ao meio, de uma cor ruiva que lembrava uma chama, olhava as pessoas com os seus olhos esverdeados, como que a
dizer a toda a gente e a ninguém:
- Não tem importância, meu caro senhor, não se preocupe. Compreendo-o perfeitamente, mas não se meta comigo porque não sou dos que me fico.
A cabeça, monstruosamente alongada, parecia-se com um ovo. A testa alta, sulcada por rugas, prolongava-se num crânio careca e parecia que este homem tinha dois rostos:
um, que todos viam, penetrante e inteligente, com um longo nariz em bico de pato; outro, sem olhos, feito apenas de rugas atrás das quais parecia dissimular o olhar
e os lábios; escondia-o à sua vontade, mas quando aquele rosto se revelava, Maiakine olhava o mundo com outros olhos, sorria com outro sorriso.
Era proprietário de uma fábrica de cabos e de uma loja na cidade, perto do cais de embarque. Nessa loja empilhavam-se até ao tecto os cabos, as cordas, o cânhamo
e a estopa, e tinha ali um quarto minúsculo que uma porta vidrada fechava, rangendo. Havia nesse quarto uma mesa grande, velha, monstruosa, diante dela uma funda
poltrona, e nessa poltrona Maiakine sentava-se dias inteiros, bebendo em pequenos goles o seu chá e lendo o "Notícias de Moscovo". Gozava da estima da classe comerciante,
de uma reputação de "homem de cabeça", e gostava de citar a sua longínqua linhagem de antepassados, dizendo com voz sibilante:
- Nós, os Maiakine, já éramos comerciantes no tempo da avó Catarina (1). Por consequência sou um homem de sangue puro...
O filho de Inácio Gordeiev passou seis anos nesta família. Aos seis anos, Tomás, um garoto com uma grande cabeça e um peito largo, parecia mais velho do que era,
quer pela estatura quer pelo olhar sério dos olhos amendoados. Silencioso e teimoso nos seus desejos de criança, passava dias inteiros com os seus brinquedos na
companhia de Luba, a filha de Maiakine, sob a vigilância muda de uma das primas, solteirona gorda, marcada pelas bexigas, a quem chamavam - não se sabe porquê -
Búsia, "Bulhenta", um ser constantemente assustado; mesmo às crianças ela falava em voz baixa e por monossílabos. Conhecia um sem-número de orações e nunca contava
histórias a Tomás.
* (1) A imperatriz Catarina da Rússia. *
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Tomás vivia em boa harmonia com a rapariguinha, mas, se ela se encolerizava ou se o escarnecia, ele ficava pálido, as narinas inchavam, rolava os olhos de uma maneira
cómica e batia-lhe freneticamente. Ela chorava, fugia para junto da mãe e fazia-lhe queixas, mas Antonina gostava de Tomás e nunca prestava grande atenção às queixas
da filha, o que reforçava ainda mais a amizade entre as duas crianças. O dia de Tomás era longo e monótono. Levantava-se, e uma vez lavado punha-se diante do ícone
e, acompanhado pelo murmúrio de Búsia, lia longas preces. Depois bebia chá ou comia bolachas, amanteigadas, ou queques. Após isso, no Verão, as crianças iam para
o jardim, enorme e frondoso, que descia para uma ravina cujo fundo era sempre obscuro. Soltava-se de lá humidade e qualquer coisa de sinistro. Não deixavam as crianças
aproximar-se da ravina e esta proibição tinha-lhes inculcado o receio. No Inverno, depois do chá e até ao almoço, brincavam nos quartos se o frio era muito, ou saíam
e deixavam-se escorregar num trenó do alto de uma grande encosta gelada.
Ao meio-dia almoçava-se - "à russa" - como dizia Maiakine. Para começar colocava-se na mesa uma grande terrina com couves gordas com biscoitos de centeio mas sem
carne, depois comiam-se as mesmas couves mas com carne cortada em pedaços miúdos, depois carne assada, leitão, pato, vitela, ou leite coalhado com sêmola cozida,
depois vinha um prato de sopa de tripas ou de massa, e tudo isso terminava com qualquer coisa com açúcar e manteiga. Bebia-se kvass, fermentado com airelas, bagas
de genebra ou grãos de trigo. Antonina Ivanovna tinha sempre essas bebidas de várias espécies. Comia-se sem falar, quando muito com um suspiro de tempos a tempos,
um suspiro de lassidão. Servia-se um prato especial para as duas crianças, os adultos comiam todos do mesmo prato; reduzidos à delinquescência por uma tal refeição,
iam-se deitar e durante duas ou três horas na casa de Maiakine só se ouviam suspiros ensonados ou o barulho de ressonar.
Ao acordarem tomavam chá e comentavam-se as notícias da cidade: falava-se de cantores, de diáconos, de noivados, do comportamento escandaloso de tal ou tal comerciante
amigo... Depois do chá Maiakine dizia à mulher:
- Mãe, dá-nos um pouco -da Bíblia...
Frequentemente ele próprio, Jacob Tarassovitch, lia o livro de Job. Apertando o grande nariz de rapina com lunetas de pesada armação de prata, passeava o olhar à
volta, pela assistência: estavam todos nos seus lugares?
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Todos os ouvintes estavam sentados, ali onde estava habituado a vê-los, e cada rosto tinha revestido essa expressão de devoção beata e recolhida que ele conhecia
bem.
Havia um homem na terra de Hus... - começava
Maiakine com voz sibilante, e Tomás já sabia, sentado ao lado de Luba, num sofá no canto da sala, que o seu padrinho ia parar imediatamente e afagar a calvície com
a mão. Estava sentado e, enquanto ouvia, desenhava no seu espírito o homem do país dos Hus. O homem era grande e nu, os olhos eram imensos como os das trombetas
de cobre em que tocam os soldados nos campos. O homem crescia de minuto a minuto; finalmente, tendo crescido até tocar o céu, mergulhava as mãos terrosas nas nuvens,
afastava-as e gritava com uma voz aterrorizadora:
- Porque foi dada a luz ao homem se o caminho está fechado e se Deus a cercou de trevas?
Tomás começava a ter medo e tremia. A sonolência desaparecia repentinamente e ouvia a voz do padrinho que dizia com um fino sorriso de ironia, acariciando a barbicha:
- Estão a ver como ele é insolente, hem!
O garoto sabia que o padrinho falava do homem de Hus e o sorriso sossegava-o. O homem não furaria o céu, não o rasgaria com as suas mãos assustadoras... E Tomás
via o homem novamente: estava sentado no chão, "o corpo estava coberto de vermes e de crostas nojentas, a pele era uma chaga purulenta. Mas tinha ficado pequeno
e indefeso, era simplesmente um mendigo à porta da igreja..."
E ei-lo que dizia:
- "O que é o homem, para que seja puro e que um ser nascido de mulher seja justo?"
- É ele que fala a Deus - explicava Maiakine, com ar inspirado. - Como posso ser justo, diz ele, uma vez que sou carne? É uma pergunta que ele faz a Deus.
E o leitor, com um olho vitorioso e interrogativo, olhava as suas ouvintes.
- Ele foi justificado... é um justo - respondiam elas, suspirando.
- Tolas!... Vão pôr as crianças na cama...
Inácio vinha todos os dias a casa de Maiakine, trazia brinquedos ao filho, pegava nele, apertava-o nos braços, mas por vezes dizia-lhe, pouco contente, com mal dissimulada
preocupação:
- Porque pões essa cara de quaresma? Porque ris tão pouco?
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Lamentava-se ao primo:
- Tenho medo que o tom se pareça com a mãe...
nos olhos tristes.
- Começas a preocupar-te muito cedo - sorria Maiakine.
também ele amava o afilhado e, quando um dia Inácio lhe anunciou que ia levar o filho para casa, Maiakine sentiu um desgosto sincero.
-"Deixa-o... - pediu ele. - Bem vês, está habituado connosco, vai chorar.
- Não insistas! Não foi para ti que fiz um filho. Na vossa casa a atmosfera é pesada... aborrecida como num convento. É. mau para o menino. Além disso, não sou feliz
sem ele. Quando volto para casa, a casa está vazia. Não sinto gosto por nada. Não sou eu que devo vir para vossa casa por causa dele, não sou eu que fui feito para
eie mas sim ele para mim. É assim. A minha irmã Anfissa chegou, tomará conta dele.
E o menino regressou a casa do pai.
Uma engraçada velha com um nariz comprido e curvo e uma grande boca desdentada acolheu-o. Alta, curvada, com um vestido cinzento e os cabelos brancos cobertos por
um lenço de seda preta. Ao primeiro olhar ela desagradou ao rapaz mais do que o atemorizou. Mas, quando ele observou com maior atenção os olhos escuros no rosto
enrugado que lhe sorria com ternura, ganhou confiança e mergulhou a cabeça no regaço dela.
- Meu pobre órfãozinho! - disse ela com uma voz aveludada, trémula de uma plena sonoridade; docemente acariciou-lhe o rosto. Vejam como ele se aninha... querido
filho!
Havia qualquer coisa de especialmente terno na sua carícia, algo de novo para Tomás e, cheio de curiosidade e esperança, olhava a velha nos olhos. Foi ela que o
levou a penetrar num mundo novo, um mundo que até então lhe era desconhecido. Desde o primeiro dia, depois de o ter posto na cama, sentou-se ao lado dele e, inclinando-se,
perguntou-lhe:
- Queres que te conte uma história?
A partir de então Tomás adormecia sempre ao som aveludado da voz da velha que lhe descrevia uma vida feérica. A alma nutria-se-lhe avidamente com as belezas da criação
popular. Os tesouros de memória e de fantasia daquela mulher eram inesgotáveis: ela aparecia frequentemente no meio-sono da criança, ora sob os traços da Baba-Yaga
da lenda - a boa e doce Baba-Yaga - ora sob o aspecto da bela Vassilissa, a Muito Inteligente. com os olhos muito abertos, retendo a respiração, ele
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perscrutava as trevas nocturnas que enchiam o quarto, via-as tremer suavemente na frágil luz das lamparinas dos ícones. Tomás povoava-as com quadros maravilhosos
da vida dos contos. Sombras mudas mas vivas deslizavam ao longo das paredes e pelo chão; o menino assustava-se e deleitava-se a seguir-lhes as vidas, a dar-lhes
formas e cores, e, uma vez que tinha criado a vida a partir delas, a aniquilá-las num instante, com um simples bater das pálpebras. Algo de novo lhe apareceu nos
olhos tristes, algo de mais infantil e menos sério, mais ingénuo. A solidão e a obscuridade, fazendo nascer nele o sentimento angustiante de alguma coisa que ia
chegar, perturbavam-no e excitavam-lhe a curiosidade, forçavam-no a ir para um canto escuro e a olhar aquilo que se escondia por detrás dos véus das sombras. Ia
e não encontrava nada, mas não perdia a esperança de encontrar...
Temia o pai mas amava-o: a imponente estatura de Inácio, a sua voz de trombeta, o rosto barbudo, a cabeça perdida numa espessa massa de cabelos brancos, os braços
compridos e fortes e os olhos brilhantes, tudo fazia com que Inácio se parecesse com os salteadores das lendas. Um dia - ia já pelos oito anos - Tomás perguntou
ao pai que regressava de uma longa viagem:
- Onde estiveste?
- No Volga...
- A roubar? - perguntou novamente Tomás.
- O quê? - gritou Inácio, com as sobrancelhas a tremerem.
- Tu não és um salteador, Papá? Oh, sei-o muito bem - disse Tomás piscando os olhos com ar esperto, contente por ter penetrado tão facilmente na vida do pai, que
se lhe escondia.
- Sou um comerciante! - disse Inácio severamente; mas, após um momento de reflexão, teve um sorriso amigável e acrescentou: - e tu és um patetinha!... Negoceio com
trigo, trabalho nos barcos; lembras-te do "lermak"? estás a ver, é meu esse barco... meu e teu.
- É muito grande! - suspirou Tomás.
- Bem, compro-te um pequeno, para o teu tamanho, queres?
- Quero! - acedeu Tomás. Mas após alguns instantes de meditação silenciosa, acrescentou arrastando a voz: - E eu que pensava que tu eras um salteador também.
- Já te disse que sou um comerciante! - repetiu gravemente Inácio; no olhar que lançou ao rosto desiludido do filho havia uma expressão de descontentamento e quase
de temor.
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-Como o tio Teodoro, o vendedor de crossanís? - perguntou Tomás depois de ter pensado.
- Isso mesmo, como ele. O que acontece é que eu sou mais rico, tenho mais dinheiro do que o Teodoro.
- Tens muito dinheiro?
-Tenho... e ainda muito mais coisas...
- Quantas barricas tens?
- Barricas de quê?
- De dinheiro, claro!
- Meu tolo! Então o dinheiro mete-se em barricas?
- Evidentemente! - exclamou Tomás com vivacidade. Voltando-se para o pai começou a dizer muito depressa:
- Um dia chegou a uma cidade o bandido Maximka e em casa de um rico comerciante da terra encheu doze barricas de moedas e de toda a espécie de pratas... e pilhou
as igrejas... e matou um homem com um sabre e lançou-o do alto do campanário, e o homem ficou a tocar o sino...
-Foi a tua tia que te contou isso, não foi? - perguntou Inácio, admirando a vivacidade do filho.
- Sim, foi ela, e então?
- Nada! - disse Inácio rindo. - E então promoveste o teu pai a salteador...
- E talvez o tenhas sido antes, há muito tempo
- insistiu Tomás, voltando à sua ideia. Podia-se ler-lhe no rosto que ele bem gostaria de receber resposta afirmativa.
- Não, nunca o fui; pensa noutra coisa.
- Nunca o foste?
- Uma vez que sou eu que o digo: nunca fui! Tu tens graça... Achas que é bem ser salteador? São todos grandes pecadores, os salteadores. Não acreditam em Deus...
saqueiam as igrejas... São amaldiçoados nas orações dos crentes... Ora bem, o que é certo é que vai ser necessário instruir-te. Já é tempo, meu rapaz... Vais começar,
passarás o Inverno a estudar e na Primavera irás comigo à pesca, para o Volga...
- vou para a escola? - perguntou Tomás timidamente.
- Primeiro aprendes em casa, com a tia.
Em breve, o menino instalava-se de manhã à mesa, com a tia e, passando o dedo pelo velho abecedário, repetia com ela:
- A... B... C...
Quando chegaram as sílabas como "bre, cre, dre", o garoto não pôde, durante muito tempo, impedir-se de rir ao lê-las. Tomás assimilou rapidamente essa ciência, conseguiu
muito depressa ler o primeiro salmo do primeiro capítulo do saltério.
- "Bem-aventurado o homem que não aceita o conselho dos ímpios."
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Muito bem, meu rapaz, é isso mesmo. É isso. Ton,
muito bem! repetia a tia enternecida e feliz com os
seus êxitos.
TU és um ás, tom! - dizia seriamente Inácio ao
tomar conhecimento dos êxitos do filho. Na Primavera iremos a Astrakan e no Outono irás para a escola.
A vida do rapaz prosseguia a sua trajectória em frente tão facilmente como uma bola desce um declive. A seu lado, fazendo o papel de professor, a tia era também
o seu companheiro de jogos. Quando Luba Maiakine vinha, a velha transformava-se em companheira e tornava-se tão criança como eles. Brincava às escondidas, à cabra-cega.
As crianças sentiam-se felizes e encantadas por verem Anfissa com os olhos vendados e os braços abertos, a avançar prudentemente através do quarto e chocar, apesar
de tudo, contra as cadeiras e as mesas, ou apalpar os cantos à procura delas, dizendo:
- Ah, os patifes... Ah, os bandidos, onde é que eles se meteram?
O sol de uma velha vida, que embelezava na medida das suas forças e dos seus conhecimentos o caminho das crianças, iluminava terna e alegremente aquele velho corpo
senil e usado que tinha mantido a alma jovem.
Inácio saía cedo para a bolsa de mercadorias e por vezes não o viam durante todo o dia; à noite ia ao Conselho Municipal, em visita, ou a outra parte qualquer. Algumas
vezes regressava ébrio; a princípio, Tomás fugia dele quando isso acontecia, escondia-se, mas depois habituou-se, achando até que o pai era melhor ébrio do que sóbrio,
mais terno, mais simples e um pouco cómico. Se isso acontecia à noite, o rapaz acordava sempre ao som da voz de trombeta.
- Anfissa! Minha querida irmã! Deixa-me ir junto do meu filho, do meu herdeiro, deixa-me vê-lo!
Mas a tia tentava dissuadi-lo, com uma voz de reprovação um pouco chorosa:
- Vai-te embora! Vai-te embora! Vai cozer a bebedeira, velho tonto que irás para o Inferno! Estás cada vez pior, não sei para que te servem os cabelos brancos!
- Anfissa! Posso ver o meu filho? Só uma espreitadela...
Tomás sabia que a tia não o deixaria passar e voltava a adormecer ao som das vozes.
Quando Inácio voltava ébrio à tarde, agarrava imediatamente o filho com as suas fortes manápulas, transportava Tomás de um lado para outro da sala e perguntava-lhe
com uma voz de bebedeira alegre:
- tom! Que queres que te dê? Fala! Bombons, brinquedos?
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Diz! Não há nada no mundo que eu te não dê, percebes? Tenho milhões. E vou ter ainda mais. Estás a compreender? É tudo teu.
Subitamente o entusiasmo extinguia-se-lhe como se apaga uma vela com uma violenta corrente de ar. O rosto congestionado pela bebida estremecia, os olhos enchiam-se-lhe
de lágrimas e ficavam vermelhos, os lábios alongavam-se num sorriso medroso:
- Anfissa! Se ele morresse, que é que eu faria? com estas palavras a raiva apossava-se dele.
- Queimaria tudo - rugia, com os olhos selvàticamente fixos em algum canto escuro da sala. Destruirei tudo. Reduzirei tudo a cinzas.
- Pára com isso, monstro! Tu queres amedrontar o pequeno? Queres fazer com que ele adoeça? - atacava-o Anfissa, e isso bastava para que Inácio se afastasse à pressa,
balbuciando:
- bom! Vou-me embora, vou já... Mas não grites. Não o assustes.
Mas se Tomás adoecia o pai largava todos os negócios, não saía de casa e, massacrando a irmã e o filho com perguntas e conselhos absurdos, sem vivacidade, com o
terror nos olhos, passeava no quarto de um lado para o outro e gemia.
- Não irrites a Deus - dizia Anfissa. - Tem cuidado, os teus murmúrios subirão até ao Senhor e ele castigar-te-á pelas tuas queixas, ele que tem sido tão bom para
ti.
- Ah, minha irmã - suspirava Inácio. - Tenta compreender-me, se é possível. Toda a minha vida ficaria aniquilada. Teria vivido para quê?... Não sei dizer...
Cenas semelhantes e os bruscos saltos de humor do pai assustavam o rapaz, no princípio, mas rapidamente se habituou a ele e ao vê-lo pela janela descer pesadamente
do trenó dizia sem emoção:
- Tia! Aí está o Papá que volta bêbado.
Chegou a Primavera. Fiel à sua promessa, Inácio levou o filho com ele no barco e foi uma nova vida que se abriu diante de Tomás.
Rápido, o belo e vigoroso "lermak", o rebocador do comerciante Gordeiev, desce a corrente; de cada lado as margens do Volga avançam ao seu encontro. A margem esquerda,
toda inundada pelo sol, estende-se até ao encontro do horizonte com o céu como um sumptuoso tapete verde, enquanto a margem direita atira para as nuvens as suas
escarpas cobertas de florestas, e desaparece, calma e austera.
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Entre as duas desenrola-se, magestoso, o rio de largo peitoral. Sem algazarra, solenes e sem pressa as águas deslizam; a margem escavada reflecte-se nelas em sombras
negras, enquanto à esquerda a decoram os bancos de areia com o seu debruado de ouro e as longas pradarias com os seus veludos verdes. Aqui e além, pelas colinas
ou na planície, aparecem aldeias, o sol cintila nos vidros das janelas, e no brocado dos telhados de colmo, as cruzes das igrejas resplandecem entre o verde das
árvores, as velas cinzentas dos moinhos rodam preguiçosamente, o fumo que sai de uma chaminé de fábrica torce no céu as suas espirais. Em grupos, garotos vestidos
com blusas azuis, vermelhas e brancas, plantados na margem, acompanham com gritos o vapor que perturba o silêncio do rio e que lança para os pés das crianças pequenas
vagas alegres. Um grupo de rapazes mete-se num barco e remam para o meio do rio para se balançarem sobre as vagas. Emergem das águas copas de árvores, por vezes
são grupos inteiros de arvoredo afogados pela cheia que se erguem entre as vagas semelhantes a ilhas. Vindo da margem ouve-se um canto melancólico que se assemelha
a um pesado suspiro.
- Oh-oh, oh-oh, for-ça!
O vapor ultrapassa as jangadas alterando-as com as suas vagas. Os toros estremecem batidos por elas; os homens, com camisas azuis, oscilam sobre a perna, olham o
vapor, riem e gritam não se sabe o quê. Uma bela vaca, bem nutrida, caminha de flanco ao longo do rio, carregando pranchas amarelas que brilham como ouro e se reflectem
sem brilho na água turva da Primavera. Um navio de passageiros navega em sentido inverso e apita; o eco ensurdecido do apito esconde-se na floresta, nas gargantas
da margem montanhosa e morre. No meio do rio, as esteiras dos dois navios chocam-se e refluem batendo contra os flancos que os produziram: os dois barcos oscilam.
Nos declives suaves da outra margem estão desenrolados os tapetes verdes do trigo de Outono, as bandas castanhas da terra em alqueives, e as manchas mais escuras
das terras lavradas para o trigo da Primavera, Os pássaros entrelaçam os seus voos por cima dos campos, pequenos pontos nitidamente visíveis na cortina branca do
céu; um rebanho que pasta ali perto parece um brinquedo, à distância; a pequena silhueta do pastor apoiado no seu cajado está de pé e olha o rio.
Por toda a parte uma luz brilhante, espaço e liberdade, a alegria dos prados verdes, a ternura e a claridade do céu azul; no movimento calmo da água sente-se uma
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força contida; no céu o generoso sol de Maio prodigaliza os seus raios, o ar está saturado pelo suave perfume dos pinheiros e pela frescura da folhagem. A margem
avança ao encontro do barco, oferecendo como uma carícia a sua beleza ao olhar e à alma, e descobrem-se-lhe sempre novos aspectos.
Tudo está marcado pela lentidão: tudo - a natureza e os homens - vive desageitadamente, preguiçosamente, mas parece que por detrás dessa indolência se esconde uma
força invencível, ainda privada de consciência, que não formulou claramente os seus desejos e objectivos... E a ausência de consciência nesta vida semi-sonolenta
faz pesar em toda a bela imensidão a sua sombra de tristeza. Uma submissão paciente, a expectativa muda de algo de mais vivo vibra até no grito dos cucos que, levado
pelo vento, chega até à margem e erra sobre o rio... Os cantos melancólicos parecem implorar auxílio... Por vezes têm o acento intrépido do desespero... O rio responde
aos cantos com suspiros... E os cimos das árvores balançam-se pensativamente... Silêncio...
Tomás passava todo o dia na ponte de comando, ao lado do pai. Silencioso, com os olhos muito abertos, olhava o panorama interminável da margem, e parecia-lhe avançar
por um longo caminho de prata nesses reinados maravilhosos onde vivem os mágicos e os valentes heróis lendários. De vez em quando interrogava o pai acerca daquilo
que via. Inácio respondia-lhe de boa vontade e com exactidão, mas as respostas dele não agradavam ao pequeno: elas não comportavam em si mesmas nada que o interessasse
ou que lhe fosse compreensível, e não ouvia nada do que teria desejado ouvir. Uma vez declarou ao pai, suspirando:
- A tia Anfissa sabe melhor do que tu...
- O que é que ela sabe? - perguntou Inácio sorrindo.
- Tudo! - respondeu o rapaz, com convicção.
Os reinos maravilhosos não apareciam diante dele. Mas apareciam com frequência, nas margens do rio, cidades absolutamente semelhantes àquela em que vivia. Umas eram
um pouco maiores, outras um pouco mais pequenas, mas as pessoas, as casas, as igrejas, era tudo como na sua terra. Tomás visitava-as com o pai, não se sentia satisfeito,
e regressava aborrecido e fatigado.
- Amanhã chegamos a Astrakan - disse um dia Inácio.
- É uma cidade como as outras - perguntou Tomás.
- Claro! Como queres tu que ela seja?
- E depois dela, o que é que há?
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- O mar... O mar Cáspio.
- E que tem dentro?
O mar? Tem peixes, meu espertinho! Que podia ter
mais?
Mas a cidade de Kitége está em cima da água.
- Isso é outra coisa!... Kitége! Só lá vivem os justos.
- E no mar, não há cidades justas?
- Não, não há... - disse Inácio, acrescentando após um curto silêncio - A água do mar é salgada, não se pode beber.
- E do outro lado do mar, é outra vez terra?
- Claro. É preciso que o mar tenha margens. É como uma chávena.
- E há cidades, lá, também?
- Naturalmente. Há mais cidades. O que acontece é que do lado de lá já não é a nossa terra, é a terra dos Persas... Lembras-te daquelas persas que apregoavam no
mercado: "Pêssegos, damascos, pistácios!"
- Lembro - respondeu Tomás, começando a sonhar. Uma vez perguntou ao pai:
- Ainda há muita terra?
- Terra, meu pequeno, há muita, mesmo muita.
- E é tudo igual?
- Tudo, o quê?
- As cidades, e tudo?
- Claro... É tudo igual.
Depois de várias conversas deste género, o rapaz pôs-se a fixar mais raramente e com menos tenacidade o olhar interrogador dos seus olhos negros nos longes do horizonte.
A equipagem do navio gostava dele, e ele gostava daqueles magníficos rapazes, queimados pelo sol e pelo vento, que gracejavam com ele alegremente. Fabricavam-lhe
engenhos para pesca, construíam-lhe barcos com pedaços de casca, brincavam com ele como garotos, passeavam-no pelas margens do rio quando o barco estava parado e
Inácio ia para a cidade tratar dos negócios. O rapaz ouvia-os frequentemente resmungar contra o pai, mas não prestava grande atenção a isso, e nunca transmitia ao
pai aquilo que ouvia dizer dele, Mas um dia, em Astrakan, quando o vapor foi carregado de combustível, Tomás ouviu a voz do maquinista Petrovitch:
- E mandou empilhar madeira até não se poder mais. Bah, que estupidez. Carrega o barco até aos bordos, e depois vai-se pôr a berrar: - Dás cabo da máquina, gastas
óleo para nada!
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A voz do piloto, um homem rude, de cabelos brancos, respondia:
- É sempre a avareza dele, como não há outra. O combustível é mais barato aqui, então toca, temos que nos desunhar... É um avarento.
- Avarento...
Repetida várias vezes, a palavra penetrou na memória de Tomás, e à noite, ao jantar com o pai, perguntou de repente:
- Papá!
- Que queres?
- Tu és avarento?
Interrogado pelo pai, relatou a conversa do piloto e do maquinista. O rosto de Inácio fechou-se e os olhos tiveram uma cintilação de cólera.
- Ah! Então é assim!... - disse ele, abanando a cabeça. - Isso a ti não te interessa. Não os ouças! Não são uma companhia para ti. Roda menos à volta deles. Tu és
patrão deles e eles são teus empregados. Mete isso na cabeça por uma vez. Basta nós querermos, tu e eu, e lançamo-los a todos pela borda fora do primeiro ao último;
não valem grande coisa, e arranjam-se outros em qualquer parte, são como os cães. Compreendeste? Podem dizer muito mal de mim, mas se o dizem é porque eu sou feliz
e rico, toda a gente inveja quem é rico. O homem feliz é um inimigo para todos...
Dois dias depois subiam a bordo um novo piloto e um novo maquinista.
- Onde está o Jacob? - perguntou a criança.
- Fiz-lhe as contas... Mandei-o embora.
- Porquê?
- Porque sim.
- E o Petrovitch?
- Também.
Tomás ficou contente por ver que o pai podia despedir os homens da equipagem tão rapidamente. Sorriu ao pai e desceu ao tombadilho, aproximou-se de um marinheiro
que estava sentado no chão a desfazer os nós de uma corda.
- Já temos um piloto novo - declarou Tomás.
- Já sei... bom dia, Tomás Ignatitch! Dormiste bem, estás bem disposto?
- O maquinista também é novo...
- Também. Tens pena dele, de Petrovitch?
- Não.
- Não! Era tão teu amigo...
- Mas porque é que ele insultava o papá?
- Oh! Ele insultava-o?
- Insultou-o, eu ouvi.
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Hum... e o teu pai também ouviu, com certeza.
- Não, fui eu que lhe disse.
Foste tu!... Essa agora! - disse o marinheiro arrastando a voz. Depois calou-se, recomeçando a tarefa.
E o papá disse-me: tu és o dono, aqui, podes
mandá-los a todos embora se quizeres...
É isso mesmo! - respondeu o marinheiro lançando ao rapaz um olhar sombrio, enquanto este exercitava a fazer valer o seu poder de patrão.
A partir desse dia Tomás observou que a atitude da equipagem a seu respeito parecia ter mudado: uns tinham-se tornado ainda mais simpáticos e complacentes; outros
não lhe queriam falar, e se o faziam era com ar zangado e não já em tom de brincadeira como antes. Tomás gostava de ver lavar o tombadilho: com as calças arregaçadas
até aos joelhos, os marinheiros, com os instrumentos de limpeza nas mãos, corriam rapidamente de um lado para outro, inundavam tudo com água despejando grandes baldes,
molhavam-se uns aos outros, riam, gritavam, caíam, torrentes corriam por todo o lado e o barulho vivo dos homens fundia-se com esse alegre chapinhar. Antes, o rapaz
não só não incomodava os marinheiros nesse trabalho agradável e fácil, como até tomava uma parte activa, inundava-os de água e fugia rindo para escapar à ameaça
de o inundarem por sua vez. Mas depois do despedimento de Petrovitch e de Jacob, sentia que agora incomodava toda a gente, ninguém queria brincar com ele e todos
o olhavam sem ternura. Admirado e triste, abandonou o tombadilho, subiu para a casa do leme, sentou-se e, vexado, pôs-se a olhar para a margem azulada e para um
trecho de floresta todo rendilhado. Em baixo a água jorrava alegremente e os marinheiros riam, alegres... Tinha uma grande vontade de ir ter com eles mas alguma
coisa o impedia de o fazer.
"Conserva um pouco melhor as distâncias. És o patrão deles." Estas palavras do pai voltavam-lhe à memória.
Sentiu vontade de gritar aos marinheiros qualquer coisa, algo de ameaçador e que fosse próprio de um chefe: invectivá-los como fazia o pai. Procurou durante muito
tempo: que poderia gritar-lhes? Não se lembrou de nada... Passaram dois ou três dias e compreendeu claramente que a equipagem o não estimava. Começou a aborrecer-se
e, cada vez com mais frequência, surgida da bruma de mil cores das suas novas impressões, vinha flutuar diante de Tomás a imagem esbatida da acariciadora tia Anfissa
com os seus contos de fadas, os seus sorrisos e o riso aveludado. Uma felicidade morna, emanada dessa imagem, vinha aquecer a alma do garoto. Vivia
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ainda no mundo dos contos de fadas, mas já a mão impiedosa da realidade, ciumenta, rasgava a bela renda, fina como teia de aranha, através da qual via tudo o quê
o cercava. O incidente do piloto e do maquinista dirigiu a atenção do rapaz para as pessoas que o cercavam; os olhos de Tomás tornaram-se mais agudos, apareceu neles
uma curiosidade consciente, e nas perguntas que fazia ao pai transparecia a vontade de procurar compreender quais são os fios e as engrenagens que dirigem as acções
dos homens.
Um dia desenrolou-se sob os seus olhos a seguinte cena: os marinheiros traziam madeira e um deles, o jovem e alegre lefime, de cabelos encaracolados, ao atravessar
o tombadilho com a padiola, disse com voz forte e colérica:
- Não, para me fazer isto é preciso não ter nenhuma consciência. Não me deixei contratar para carregar madeira... assim não interessa. Isto quer dizer que pretendem
esfolar-me sem eu ter vendido a pele... É uma vergonha! Ah, não há dúvida, ele tem arte de espremer as pessoas como limões.
O menino ouvia resmungar e sabia que se tratava do pai. Via que, apesar de tudo o que dizia, lefime tinha mais madeira de que os outros na sua padiola e que andava
mais depressa. Nenhum dos marinheiros se fazia eco das queixas de lefime, e mesmo aquele que emparelhava com ele se calava, protestando por vezes contra o zelo que
levava lefime a empilhar madeira na padiola.
- Basta! - dizia ele com ar zangado - Não estás a carregar um cavalo.
- Tu, cala-te! Se te atrelam não tens senão que puxar e sem dar um pio... E se te chupam o sangue, é o mesmo, cala-te. Que é que podes dizer?
De repente Inácio desembocou diante deles, aproximou-se do marinheiro e, plantado diante dele, perguntou com dureza:
- Estás a falar de quem?
- Falo como posso, eu... - respondeu o rapaz, gaguejando. - O contrato não dizia nada... não dizia que eu tinha de estar calado...
- E quem é que vos suga o sangue? - perguntou Inácio acariciando a barba.
O marinheiro, compreendendo que estava perdido e que não se safaria, atirou com a acha que tinha na mão, limpou as mãos às calças e, olhando Inácio de frente, disse-lhe
audaciosamente:
- Então, não disse a verdade? Não nos sugas o sangue, se calhar?
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- Eu?
- Sim, tu.
Tomás viu o pai levantar o braço, ouviu-se um ruído de esmagamento e o marinheiro caiu pesadamente em cima da madeira. Levantou-se imediatamente e recomeçou a trabalhar,
sem dizer uma palavra. Sobre a casca branca das achas de bétula caía o sangue da cara esmagada, ele limpava-o com a manga da camisa, olhava para a manga e, suspirando,
calava-se. Quando passou diante de Tomás carregando a sua padiola, duas pesadas lágrimas tremiam-lhe nas faces, na base do nariz, e o garoto viu-as.
Ao jantar, estava melancólico e examinava Inácio com olhos assustados.
- Porque estás tão calado? - perguntou-lhe o pai em ar brincalhão.
- Porque...
- Sentes-te doente?
- Não.
- Vá, se tens qualquer coisa, diz...
- Tu és muito forte, não és? - perguntou subitamente o pequeno, pensativo.
- Eu? É verdade... Deus não me regateou também isso.
- A maneira como lhe bateste há um bocado!
- exclamou o rapaz em voz baixa, curvando a cabeça.
Inácio ia levar à boca uma fatia barrada com caviar, mas a mão parou a meio do caminho ao ouvir a exclamação contida do filho; lançou um olhar interrogador para
aquela cabeça inclinada e perguntou:
- Estás a falar do léfimka, não é?
- É... Bateste-lhe até fazer sangue!... Depois, quando passava por mim estava a chorar - contava o rapaz com voz baixa.
- Sim, sim!... Ora vejam lá isto!... - disse Inácio. Depois, após um silêncio, encheu de vodka um copo,
bebeu-o e pronunciou gravemente:
- Não há razão para ter pena dele. Ele resmungava por nada e só teve o que merecia. Conheço-o bem, é um bom rapaz, corajoso, forte... e nada estúpido; mas pensar
não lhe diz respeito. Eu posso pensar porque sou o patrão. Ser patrão não é uma coisa simples. Ele não morre por lhe ter partido os dentes, pelo contrário, vai ficar
mais inteligente... É assim... Tomás, tu és uma criança... não compreendes nada... tens de aprender a vida... Já não tenho muito mais tempo para viver na terra e
ensinar-te.
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Inácio calou-se, bebeu mais um copo de vodka e prosseguiu com um tom persuasivo:
- Deve-se ter pena das pessoas... Tens razão em a ter. Mas é preciso tê-la quando é merecida. Primeiro deves reparar de quem se trata. Vê o que podes tirar da pessoa,
para que é que ela pode servir. Se vês que é forte, capaz de trabalhar, tem pena dela, socorre-a. Mas àquele que é fraco, impróprio para o trabalho, cospe-lhe em
cima, passa de largo. Fixa bem isto: O homem que se lamenta de tudo, suspira a propósito de tudo, geme, não vale um caracol. Não merece a tua piedade, e não lhe
serás útil mesmo que o ajudes... Não fará mais do que ficar azedo e fazer ainda mais tolices, quando se lhe presta auxílio... Quando vivias em casa do teu padrinho,
deves ter visto um grande sortido de pessoas assim: peregrinos, parasitas, infelizes... vermes de todo o género... Esquece-os... Não são homens, são lixo, eis a
verdade. Não servem para nada... percevejos, pulgas e outras porcarias. E não é para Deus que vivem: eles não têm qualquer Deus. É por vigarice que invocam o Seu
nome, para sensibilizar os imbecis e encher a pança com o que conseguem tirar da piedade que inspiram. Vivem para a barriga, e além de beber, comer, dormir e gemer,
não sabem fazer mais nada. Lidar com eles só serve para nos baralhar a alma, o seu fim é enfraquecer-nos. Um homem forte no meio deles é como uma maçã boa no meio
de maçãs podres - pode apodrecer também... Tu és pequeno, não podes compreender o que eu digo... Auxilia aquele que se mantém sólido na miséria... aquele que possivelmente
nem sequer te pedirá socorro; nesse caso deves adivinhar, ajuda-o sem te ter sido pedido... Mas aquele que é orgulhoso pode até ofender-se com o socorro que lhe
propões, então ajuda-o em segredo... É assim que se deve agir, para fazer as coisas como deve ser! Vê como elas acontecem: duas tábuas caíram na lama - suponhamos
- uma podre, outra boa, sólida. Que deves fazer? Que podes tirar de uma tábua podre? Deixa-a ficar na lama, pode-se passar por cima para não sujar os pés... Mas
a que está em bom estado, levanta-a e põe-na ao sol; se não te servir, servirá para outro. É assim, meu filho. Ouve e retém o que te digo. Quanto ao léfimka não
há razão para o lamentar, é um rapaz sério que sabe o que vale. Não é uma bofetada que o matará... vou deixar passar uma semana e pô-lo-ei no leme... Desse modo
chegará a piloto... E se o fizerem capitão, será um bom capitão. É assim que eles se fazem homens... Também eu, meu pequeno, passei por essa escola. Socos daqueles
comi mais do que um, na idade
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dele Esta vida, para todos nós, não é uma mamã que dá bombons, é uma madrasta severa que nos aperta.
Durante duas horas Inácio falou ao filho da sua mocidade, das suas tarefas, dos homens e do terrível poder da sua fraqueza; explicou-lhe como eles amam e como sabem
fingir a infelicidade para viverem à custa dos outros; depois regressou à sua própria história, contou como de simples operário chegou a dono de um importante comércio.
O menino ouvia aquele discurso, olhava o pai e tinha a impressão de que este avançava para ele, se aproximava cada vez mais. Embora não surgisse nos relatos paternos
aquilo que fazia a riqueza dos contos da tia Anfissa, eles continham algo de novo, de mais claro e compreensível do que os contos, e que não era menos interessante.
No seu coraçãozinho algo de forte e ardente se punha a bater que o atraía para o pai. Inácio, decerto adivinhou nos olhos do filho os sentimentos que ele experimentava:
levantou-se bruscamente do lugar, tomou-o nos braços e apertou-o contra o peito. Tomás abraçou-se-lhe ao pescoço e comprimindo a sua face contra a do pai ficou silencioso,
com a respiração arquejante.
- Meu filhinho! - murmurava Inácio surdamente.
- Meu querido, minha alegria!... Aprende enquanto eu for vivo... Ah! Não é fácil viver!
O coração da criança estremeceu ao ouvir aquele murmúrio, apertou os dentes e jorraram-lhe dos olhos lágrimas ardentes.
O vapor estava no caminho do regresso, subindo o Volga. Era uma abafada noite de Julho, o céu estava coberto de nuvens espessas e negras, tudo no rio estava sinistramente
tranquilo. Aproximavam-se de Kazan e tinham parado nos arredores de Uslone na cauda de um enorme comboio de barcos. O ranger das cadeias das âncoras e os gritos
da equipagem despertaram Tomás; espreitou pela janela e viu o seguinte: ao longe, nas trevas, cintilavam luzinhas; a água era negra e espessa como azeite, nada mais
se podia ver. O coração da criança estremeceu, oprimido, e pôs-se à escuta. Uma canção triste, quase imperceptível, vinha não se sabe de onde, desolada como um salmo
fúnebre; ao longo do comboio os homens de quarto interpelavam-se gritando, um navio soprava raivosamente largando vapor... A água negra do rio marulhava tristemente
e suavemente contra os flancos dos barcos. Tentando fixamente penetrar a obscuridade, até lhe doerem os olhos, Tomás distinguiu massas negras e luzes que ardiam
quase invisíveis, alto, acima delas... Sabia que eram lanchões, mas saber isso
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não o tranquilizava, o coração batia-lhe com pulsações desiguais, e na sua imaginação ergueram-se tenebrosas e sombrias imagens.
- O-oh... oh!...
Vindo de longe, o grito arrastado acabou como um soluço... E eis que alguém atravessou a ponte e se aproximou da amurada de bordo.
- O-o-oh... - ouviu-se de novo, mas já mais perto.
- léfime - dizia alguém em voz baixa no tombadilho. - Levanta-te. Pega num croque...
- O-o-oh!
Fosse o que fosse gemia mais perto. Tomás estremeceu e, com um salto, afastou-se da janela.
A estranha nota aproximava-se cada vez mais, deslizando na água, soluçava e fundia-se na escuridão das trevas. No tombadilho, alguém murmurava, inquieto:
- léfimka! Levanta-te, está um afogado à deriva.
- Onde?
A pergunta era feita precipitadamente... Pés descalços ecoaram no soalho; ouvia-se o barulho de pessoas, dois croques foram descidos deslizando diante do rapaz e
mergulharam quase sem um ruído na espessura da água...
- Um afoga-a-do!
O gemido estava próximo e a água teve um marulhar estranho.
Tomás tremia de medo ao ouvir aquele grito triste, mas não podia destacar as mãos da janela nem os olhos da água.
- Acende uma lanterna... não se vê nada!...
Uma mancha de luz, mortiça, caiu na água... Tomás viu que a água ondulava suavemente, percorrida por rugas como se estivesse doente e estremecesse de dor.
- Olha!... Olha!... - murmuravam no tombadilho vozes assustadas.
No mesmo instante, apareceu na mancha de luz, grande e horrível, um rosto humano que mostrava os dentes brancos. Flutuava e baloiçava na água, os dentes olhavam
Tomás e pareciam dizer-lhe, sorrindo:
- Eh!, meu pequeno... está frio!
Os croques tremeram, levantaram-se no ar e desceram de novo para a água.
- Empurra-o... Guia-o... Cuidado! Vai direito à roda... Os croques deslizaram pelo casco e arranharam-no
com um ruído que parecia um ranger de dentes. O estremecimento dos passos no tombadilho afastava-se a pouco e pouco no sentido da popa... E de novo se ouviu o clamor
que gemia ao apaziguar-se:
- Um afoga-a-do!
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Papá! - gritou Tomás. - Papá!
O pai levantou-se de um salto e precipitou-se para ele.
O que é? Que estão a fazer? - gritava Tomás.
Inácio lançou-se de um salto fora da cabina soltando um rugido. Voltou pouco depois, antes que Tomás, com as pernas a tremer, a olhar à sua volta, tivesse tido tempo
de atingir o beliche do pai.
- Meteram-te medo, mas não é nada - disse Inácio, pegando-lhe pelos braços. - Anda-te deitar comigo.
- O que era? - perguntou Tomás em voz baixa.
- Não era nada, meu pequeno... Era um afogado... Um homem que se afogou e que vai à deriva... Não é nada, não tenhas medo, já vai longe.
- Porque é que o empurravam? - continuou a criança a perguntar, apertado contra o pai e fechando os olhos, de tal modo sentia medo.
- Mas... era preciso... Seria apanhado por uma roda, uma das nossas por exemplo... amanhã a polícia vê-lo-ia... teríamos aborrecimentos, interrogatórios, teríamos
sido retidos aqui. Por isso fizeram-no ir para mais longe... Que diferença lhe fazia, a ele?... Já está morto... não lhe faz mais mal, mas por causa dele podiam
alguns vivos ser incomodados... Dorme, meu filho.
- E os peixes, vão comê-lo?
- Os peixes não comem o corpo do homem... certos mariscos é que comem.
O pavor de Tomás começava a dissipar-se, mas diante dos seus olhos o rosto assustador, mostrando os dentes, ainda continuava a baloiçar na água.
- E ele, quem era?
- Só Deus sabe. Reza a Deus por ele. Diz: "Senhor, dá o repouso à sua alma".
- Senhor, dá repouso à sua alma! murmurou Tomás por sua vez.
- bom, agora dorme e não tenhas medo!... Agora já está longe. Flutua sossegadamente... Vês, não te aproximes da amurada sem muito cuidado, poderias cair como ele
- Deus nos defenda - à água e...
- Então, ele caiu, ele também?
- Claro que caiu. Talvez estivesse bêbado... ou talvez se tivesse atirado por querer. Há-os assim, que fazem isso... Dá-lhes de repente e lançam-se à água... E afogam-se...
A vida é assim meu rapaz: em certos casos a morte é uma festa para aquele que morre; outras vezes é uma benção para todos.
- Papá...
- Dorme, meu filho...
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III
Desde o primeiro dia da sua existência escolar, aturdido pelo vivo e robusto alarido das partidas violentas e dos jogos impetuosos das crianças, Tomás distinguiu,
entre os colegas, dois alunos que logo lhe pareceram mais interessantes do que os outros. Um deles estava sentado à sua frente. Tomás, examinando-o com o canto do
olho, via-lhe as costas largas, o pescoço robusto semeado de sardas, as grandes orelhas e a nuca cuidadosamente rapada, onde apontavam cabelos de um ruivo brilhante.
Quando o professor, um homem de crânio pelado e lábio inferior pendente, chamou: Smoline Afrikane! - o ruivo levantou-se sem se apressar, aproximando-se do mestre-escola,
olhou-o de frente, ouviu até ao fim os dados do problema e começou a desenhar cuidadosamente na lousa grandes algarismos arredondados.
- Muito bem, isso basta - disse o mestre. - lejov Nicolas, continue!
Um dos vizinhos de banco de Tomás, um rapaz irrequieto, pequeno, de olhos negros semelhantes aos de um rato, deu um salto, passou entre os bancos, agarrando-se a
tudo, voltando a cabeça para todos os lados. Chegado à lousa pegou no giz e, erguendo-se na ponta dos pés, sujando-se com o giz que fazia ranger, começou a esmagá-lo
com pequenas pancadas contra o quadro, que cobria de sinais minúsculos e indecifráveis.
- Devagarinho - dizia o mestre franzindo dolosamente o rosto amarelado de olhos fatigados.
Mas lejov dizia com uma voz sonora e rápida:
- Sabemos agora que o primeiro vendedor ambulante teve um lucro de dezassete copeques.
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- Basta! Gordeiev! Que é preciso fazer para encontrar o" lucro do segundo vendedor?
Ocupado a observar a conduta desses dois rapazes, tão diferentes um do outro, Tomás foi apanhado desprevenido e manteve-se em silêncio.
Não sabes?... Smoline, explica-lhe!
Smoline, que tinha limpado cuidadosamente os dedos maculados de tinta, terminou o problema sem lançar um olhar a Tomás e recomeçou a limpar as mãos, enquanto que
lejov, sorridente, regressava ao seu lugar com um passo saltitante.
- Então, pateta! - cochichou ele, instalando-se ao lado de Tomás e dando-lhe ao mesmo tempo uma cotovelada. - Não sabes resolver o problema? De quanto é o lucro
total? Trinta copeques. Há dois vendedores... Um ganha dezassete... Quanto ganha o outro?
- Eu sei - respondeu em voz baixa Tomás, que se sentia confuso e examinava o rosto de Smoline que regressara calmamente ao seu lugar.
Aquele cara redonda, mosqueada de sardas, com os seus olhos azuis afogados em gordura, já não lhe agradava, lejov beliscou-lhe violentamente a perna e perguntou:
- De quem és filho? Do Chalado?
- Sou.
- Olha, queres que te sopre as respostas?
- Quero.
- Que é que me dás para eu fazer isso? Tomás reflectiu e perguntou:
- E tu sabes, realmente?
- Eu? sou o primeiro...
- Aí em baixo! lejov, ainda estás a falar? - gritou o professor.
lejov levantou-se com um salto e declarou descaradamente:
- Não sou eu, Ivan Andréitch, é o Gordeiev.
- Estavam a falar os dois - declarou Smoline, imperturbável.
com o rosto lamentavelmente carrancudo, o mestre, fazendo estalar còmicamente o seu grosso lábio, ralhou a todos, mas o seu veredicto não impediu lejov de recomeçar
imediatamente o seu murmúrio:
- Deixa estar, Smoline, não perdes pela demora.
- E tu, porque é que acusas o novo? - perguntou Smoline, sem voltar a cabeça.
- Está bem, está bem!
Tomás calava-se, olhando de esguelha o seu irrequieto vizinho que, ao mesmo tempo, atraía-o e despertava-lhe
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o desejo de se afastar um pouco. Durante o recreio soube por lejov que Smoline também era rico, filho de um industrial de coiros; lejov, esse era filho de um guarda
do Tesouro, um homem pobre. Isso via-se claramente pela roupa do pequeno, talhada em fustão cinzento, ornada de remendos nos joelhos e nos cotovelos, via-se pelo
seu rosto pálido e famélico, por toda a silhueta, pequena, angulosa e ossuda, lejov falava com voz metálica e elevada, sublinhando o que dizia com gestos e caretas;
utilizava frequentemente palavras que lhe eram próprias e cujo sentido só ele conhecia.
- Nós os dois vamos ser amigos - declarou ele a Tomás.
- E porque me denunciaste ao mestre, há um bocado? - lembrou Gordeiev, lançando-lhe um olhar oblíquo e desconfiado.
- Essa tem piada! Olha, tu és novo na aula e és rico: aos ricos o mestre não ralha muito... Ao passo que de mim, pobre diabo, ele não gosta nada, porque eu sou traquina
e porque não lhe trago presentes. Sabes, quando sair daqui irei para o liceu... vou acabar a segunda classe e parto... Há um estudante que já me está a preparar...
Lá aprenderei tudo tão bem que farei carreira. Quantos cavalos há em tua casa?
-Três... Porque tens de aprender tanto? - perguntou Tomás.
- Porque sou pobre... Os pobres têm de estudar muito e desse modo tornam-se ricos, tornam-se doutores, funcionários, oficiais... Depois andarei todo a tilintar...
o sabre ao lado, as esporas nas botas - dlim, dlim! E tu, que vais ser?
- Não sei - respondeu Tomás pensativamente, encarando o camarada.
- Bem, tu não precisas de ser nada... Gostas de pombos?
- Gosto...
- Mas que grande ponto! Oh-oh! Oh-oh! - lejov macaqueava a locução lenta de Tomás. - Quantos pombos tens?
- Não tenho nenhum.
- Essa agora! Tu és rico e não crias pombos! E eu tenho três, todos diferentes. Se o meu pai fosse rico teria um cento, e punha-os a voar todos os dias, de manhã
à noite. Smoline também tem pombos... Bonitos. Tem quatorze, foi ele que me deu um dos que tenho... Isso não quer dizer que ele não seja ganancioso... Todos os ricos
são gananciosos. Tu és ganancioso, tu, também?
- Não sei - respondeu Tomás, indeciso.
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- Anda a casa do Smoline, pomo-los a voar, nós os
três.
Irei... se me deixarem...
O teu pai não gosta de ti, por acaso?
- Gosta.
Então deixa-te ir... Simplesmente não lhe vás dizer
que eu também lá estarei senão ele é capaz de te proibir a sério... Basta que lhe digas: "vou a casa do Smoline. Posso ir?". Smoline!
O gordo rapaz aproximou-se e lejov saudou-o com um movimento de cabeça reprovador:
- Eh, ruivo hipócrita! Não vale a pena ser teu camarada.
- Que estás para aí a resmungar? - perguntou tranquilamente Smoline, examinando Tomás com os seus olhos imóveis.
- Não resmungo, digo a verdade - explicou lejov, trepidante de animação. - Ouve! Apesar de seres um molengão, esqueçamos isso. Domingo, depois da missa, vamos a
tua casa, eu e ele.
- Venham - concordou Smoline, com um aceno de cabeça.
- Iremos... Falta pouco para tocar a campainha, vou sair para vender um canário - disse lejov tirando do bolso das calças um embrulhinho de papel onde se debatia
algo de vivo.
E escapou-se do pátio da escola como o mercúrio se escapa entre os dedos.
- Que tipo! - disse Tomás, espantado com a vivacidade de lejov, interrogando Smoline com os olhos.
- Um espertalhão! - explicou o ruivo.
- E um cómico - acrescentou Tomás.
- Um cómico - conveio Smoline.
Depois calaram-se um momento, encarando-se mutuamente.
- Vens a minha casa, com ele? - perguntou o ruivo.
- vou...
- Podes vir... Está-se bem em minha casa. Tomás não respondeu nada. Então Smoline perguntou:
- Tens muitos camaradas?
- Não tenho nenhuns.
- Eu também não, antes da escola não tinha ninguém... só dois primos... Estás a ver, agora tens dois camaradas de uma vez só...
- Sim! - fez Tomás.
- Quando se tem muitos camaradas, é divertido. E é mais fácil aprender; se um tem uma dificuldade o outro sopra-lhe.
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- Tu és bom aluno?
- Eu sou bom em tudo - disse tranquilamente Smoline. A campainha pôs-se a vibrar como que assustada e
precipitando a sua fuga para algures desconhecido.
Sentado na aula, Tomás sentiu-se mais à vontade e pôs-se a comparar os seus dois camaradas com os outros rapazes. Não levou muito tempo a pensar que um e outro eram
de longe os melhores da classe e que isso saltava imediatamente aos olhos, tão claramente como aqueles dois números, 5 e 7, que ainda não tinham sido apagados da
ardósia. Tomás sentia prazer em pensar que os seus camaradas eram melhores do que todos os outros alunos.
Ao sair da escola foram os três juntos, mas lejov deixou-os pouco depois para enfiar por uma ruela estreita. Smoline acompanhou Tomás até casa dele e disse-lhe ao
deixá-lo:
- Estás a ver, fazemos o caminho juntos.
Em casa acolheram Tomás triunfalmente: o pai ofereceu-lhe uma pesada colher de prata gravada com um algarismo complicado, e a tia uma echarpe que ela própria tinha
tricotado. Tinham-no esperado para a refeição, tinham-lhe preparado os seus pratos favoritos, e mal teve tempo de se despir e de se sentar à mesa começaram a interrogá-lo.
- Então, a escola agradou-te? - perguntou Inácio, olhando com ternura a cara do filho.
- Meu querido pequeno! - suspirou a tia, enternecida. - Tem cuidado, não te deixes levar pelos camaradas... Quando te fizerem mal, acusa-os ao professor.
- Ora vejam! - ralhou Inácio. - Nunca faças isso. Faz as contas tu mesmo: os que te provocarem castiga-os com a tua própria mão. E são bons, os rapazes?
- São - respondeu Tomás, sorrindo ao pensar em lejov. - Há um que é atrevido... levado da breca!
- É o filho de quem?
- De um guarda...
- E é atrevido, dizes tu?
- É formidável.
- Bem, deixemos esse. E o outro? O outro... é todo ruivo... Smoline.
- Ah! O filho de Mitri Ivanytch, estou a ver... conserva-o, esse é boa companhia... Mitri é um tipo inteligente... e se o filho se parecer com ele... está bem! Quanto
ao outro... Tomás, vamos fazer o seguinte: convida-os para domingo. Compram-se guloseimas e tu ofereces-lhas... Veremos como eles são.
- Neste domingo fui convidado por Smoline - declarou Tomás lançando ao pai um olhar interrogativo.
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Ora vejam lá!... bom, está bem... É preciso
habituarmo-nos às pessoas, ver como elas são... Sozinho, sem amizades não se pode viver. Olha, eu há mais de vinte anos que sou amigo do teu padrinho; tirei bom
proveito da inteligência dele. Faz outro tanto. Trata de ser amigo dos que são mais inteligentes do que tu... Se acompanharmos com os melhores, acabaremos por valer
mais do que realmente valemos.
Rindo, Inácio acrescentou:
- Digo isto a brincar. Trata de não imitar ninguém, mas de ser tu mesmo!... É melhor não ter demasiado espírito, mas o que se tem ser bem nosso. Deram-te muitas
lições?
- Muitas! - suspirou o rapaz, e a tia fez ouvir em eco um pesado suspiro.
- Bem, estuda-as. Não deves ser menos bom do que os outros. Em todo o caso aí vai a minha opinião: na escola, mesmo que houvesse vinte cinco classes, não te ensinariam
mais nada além de ler, escrever e contar. Pode-se aprender também toda a espécie de parvoíces... mas que Deus te defenda! Dar-te-ia cabo do canastro à chicotada.
Não te lembres, por exemplo, de te pôr a fumar... arranco-te a pele.
- Lembra-te sempre de Deus. tom - disse a tia.
- Tem cuidado, não esqueças Nosso Senhor.
- É justo! Honra o teu Deus e os teus pais. E a propósito disso quero-te dizer que os livros de estudo são muito pouca coisa. Tens necessidade deles como o carpinteiro
precisa da sua plaina e da sua goiva. São utensílios, mas o modo de te servires deles na prática, isso o utensílio não te ensinará. Compreendeste? Suponhamos, por
exemplo, que pões na mão de um carpinteiro uma goiva e ele tem de pôr duas traves em esquadria... A mão e a goiva não são tudo, é preciso saber golpear a madeira
e não a perna... Conclusão: os livros só não são grande coisa, é preciso além disso saber utilizá-los... E é justamente essa ciência que é mais subtil do que todos
os livros, e neles não há nada escrito sobre isso... Isso, Tomás, é preciso aprendê-lo na própria vida. Um livro é uma coisa morta, pega nele como entenderes, rasga-o,
deita-o fora. Ele não soltará um grito... Mas a vida, desde que dás um passo em falso, desde que não ocupas nela o lugar que te compete, ela arrasa-te com os seus
gritos lançados por mil bocas e ainda por cima bate-te, aniquila-te.
Tomás, apoiado na mesa, ouvia atentamente o pai; ao sabor das suas palavras vigorosas, ora imaginava um carpinteiro ocupado em afeiçoar uma viga, ora se via a ele
próprio a avançar sobre o chão incerto em direcção
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a um enorme corpo vivo, prudentemente, com as mãos estendidas para a frente, tentando apanhar essa coisa assustadora...
- O homem deve-se guardar para a sua obra e conhecer bem o seu caminho... O homem, meu pequeno, é o piloto no barco... Quando se é novo, é como nas águas altas,
pode ir sempre a direito. O caminho está aberto... Mas é preciso saber bem quando chega o momento de pegar no leme... A água baixa, cuidado com o escolho, o penedo,
o banco de areia. É preciso ter em conta todos esses obstáculos e evitá-los a tempo, para chegar são e salvo ao porto.
- Eu chegarei! - disse o rapaz, fixando no pai um olhar orgulhoso e seguro.
- Sim? Aí está o que é falar com coragem. Inácio riu. E a tia também riu, gentilmente.
Desde a viagem que tinha feito com o pai no Volga, Tomás tinha-se tornado mais audacioso e falador com ele, com a tia e com Maiakine. Mas na rua ou em qualquer sítio
novo para ele, diante dos estranhos, fechava-se, lançava à sua volta olhares desconfiados e receosos, como se sentisse em toda a parte uma hostilidade escondida,
pronta a assaltá-lo.
Por vezes, à noite, acordava de repente, apurava o ouvido para apreender o silêncio, fixava a sombra com os olhos bem abertos. Diante dele os relatos do pai transformavam-se
em imagens e em quadros. Sem dar por isso misturava-os com os contos da tia e edificava um caos de aventuras em que as cores cintilantes da fantasia se enlaçavam
com as tintas austeras da realidade. Resultava disso alguma coisa de enorme e de insensato; a criança fechava os olhos, expulsava toda essa fantasmagoria e gostaria
de parar o jogo da sua imaginação. Mas era em vão que chamava o sono e o quarto enchia-se de uma multidão cada vez mais premente de imagens tenebrosas. Então, a
meia voz, acordava a tia:
- Ó tia! Tia!...
- Que tens tu? Meu Deus!...
- vou para junto de ti - cochichava Tomás.
- Porquê? Dorme, meu pequeno, dorme.
- Tenho medo - confessava a criança.
- Então reza aquela oração: "Deus ressuscita", e deixarás de ter medo.
Tomás fica deitado, com os olhos fechados, e diz a oração. O silêncio nocturno toma forma sob o aspecto de uma extensão de água sombria, sem limites; está completamente
imóvel, escoa-se para toda a parte e estende-se sem uma ruga, sem sombra de movimento, e na
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sua massa não há mais nada além da sua profundidade insondável. É aterrorizador olhar assim, sozinho, do alto, escondido na obscuridade, esta água morta... Mas eis
que se ouve o som tilintante do guarda-nocturno, e o rapaz vê surgir um frémito na superfície da água, pequenos globos, redondos e luminosos, que saltam criando
a ondulação. O sino que se ouve no campanário força toda a água a agitar-se com um só movimento poderoso e, longamente, ela ondula sob o choque, em vagas compridas;
ondula e uma larga mancha de luz ilumina-a, e difunde-se a partir do seu centro até um vago e negro longe, depois empalidece, dissolve-se. De novo a calma angustiante
e mortal nesse deserto de trevas.
- Tia... - murmura Tomás, suplicante.
- O que é?
- vou para a tua cama...
- Anda, anda, meu querido...
Trepa para a outra cama, para junto da tia, aperta-se contra ela e pede:
- Conta qualquer coisa.
- Agora, no meio da noite? - protesta a tia ensonada.
- Por-fa-vor...
Não é necessário pedir-lhe mais. Bocejando de vez em quando, com uma voz pesada de sonolência, a velha, com os olhos fechados, começa com gravidade.
- Aconteceu uma vez, meu caro, que num certo império, num certo estado, havia um homem e uma mulher que viviam no mais fundo da miséria. Eram tão infelizes, tão
infelizes que não tinham uma migalha para comer. Foram pelo mundo, aqui e além davam-lhe uma côdea de pão duro que sobrara e lá se iam mantendo. E então nasceu-lhes
um filho; era preciso baptizá-lo, mas, como eram pobres, não tinham com que dar uma festa aos amigos e aos conhecidos. Ninguém poderá vir a casa deles para o baptismo.
Começaram a pensar, atormentaram-se, mas nem uma alma lhes apareceu. Então começaram a rezar a Deus: "Senhor! Senhor!"
Tomás conhecia esse conto assustador do afilhado de Deus, tinha-o ouvido mais do que uma vez, e de antemão vê esse afilhado destacar-se diante dele, ei-lo que cavalga
num branco corcel à procura de um padrinho e de uma madrinha, cavalga nas trevas, através do deserto, vê a cada passo os insuportáveis suplícios a que os pecadores
são condenados... E ouve os seus gemidos e as suas preces murmuradas:
- Oh-oh-oh! Homem, vai perguntar ao Senhor se ele ainda nos vai atormentar durante muito tempo.
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Parece então à criança que é ele próprio que cavalga na noite num cavalo branco, que é a ele que se endereçam esses lamentos e essas súplicas. O coração aperta-se-lhe,
as lágrimas jorram-lhe dos olhos, fecha-os bem fechados e teme reabri-los; inquieto, agita-se nos lençóis...
- Dorme, meu filho, que o Senhor te vele! - diz a velha, interrompendo a sua descrição dos sofrimentos humanos.
De manhã, após uma tal noite, Tomás levantava-se, lavava-se precipitadamente, tomava o seu pequeno almoço à pressa e corria para a escola, abastecido em biscoitos
e em bolos açucarados. Na escola esperava-os, esfomeado, lejov, que se nutria das liberalidades do seu rico camarada.
- Trouxeste de comer - perguntava ele, agitando o nariz pontiagudo. - Dá-me, porque eu saí de casa sem tomar nada... Deixei passar a hora, caramba; trabalhei até
às duas da manhã... Fizeste os problemas?
- Não.
- Eh, preguiçoso! Vá, eu vou-te pôr isso em pratos limpos num instante.
Os dentes miúdos e agudos mergulhavam nos bolos; ronronava como um gato, marcava o compasso com o pé esquerdo e resolvia ao mesmo tempo o problema, explicando-o
a Tomás em frases curtas.
- Estás a ver? Numa hora correram oito baldes... quantos baldes correram em seis? Eh, comem-se coisas boas em tua casa!... Seis, portanto é preciso multiplicar por
oito... Gostas dos bolos com cebola crua? Eu adoro... bom, então da primeira torneira correram quarenta e oito em seis horas... ora, ao todo, verteram noventa na
cuba... Depois, estás a perceber?
lejov agradava mais a Tomás do que Smoline, mas Tomás tinha mais intimidade com Smoline. Admirava-se das capacidades e da vivacidade do rapazinho, via que lejov
era mais inteligente do que ele, sentia-se ciumento e ofendido, mas ao mesmo tempo tinha por ele uma piedade condescendente, aquela que o homem repleto sente pelo
esfomeado. Era talvez precisamente essa piedade que o impedia de manifestar a sua estima ao agitado camarada na presença do aborrecido Smoline. lejov escarnecia
os seus colegas bem nutridos, dizia-lhes frequentemente:
- Ah, grandes sacos de bifes!...
Tomás irritava-se com esses gracejos e um dia, ferido mais violentamente, respondeu com maldade, acompanhada de uma careta de desprezo:
- Cala a boca mendigo pedinchão.
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O rosto amarelado de lejov cobriu-se de manchas vermelhas e ele respondeu lentamente:
como quiseres!... Mas eu não te soprarei mais
nada, e vai-se ver o estúpido que tu és.
Durante três dias não se falaram, com grande aflição do mestre-escola, que teve de classificar com um e dois as lições do filho do universalmente respeitado Inácio
Gordeiev.
lejov estava sempre ao corrente de tudo: contava na escola que a criada do procurador tinha tido um filho, que por causa disso a mulher do procurador tinha deixado
cair em cima do marido o conteúdo de uma cafeteira de café a ferver; podia indicar os melhores momentos e os melhores sítios para a pesca a certos peixes do rio;
sabia fazer armadilhas e gaiolas para pássaros; expunha pormenorizadamente as razões que tinham levado um soldado a enforcar-se no sótão da caserna; anunciava de
que pai de aluno tinha o mestre recebido nesse dia um presente e o que era exactamente esse presente.
O círculo de interesses e conhecimentos de Smoline limitava-se à vida dos comerciantes; o pequeno ruivo gostava de determinar quem o batia pela riqueza, pondo na
balança, em avaliação, as casas, os barcos e os cavalos. Tinha de tudo isso uma ciência profunda e falava disso com entusiasmo.
Em relação a lejov, Smoline tinha uma atitude condescendente, tal como Tomás, no entanto mais amigável e menos altiva. Cada vez que Gordeiev se zangava com lejov,
ele precipitava-se para os reconciliar, e uma vez, no caminho para casa, de regresso da escola, perguntou a Tomás:
- Porque és tão duro com o lejov?
- E porque é que ele se julga tão superior? - respondeu Tomás, com raiva.
- Se ele se julga superior é porque tu trabalhas mal e ele está sempre a ajudar-te... Quanto a ser pobre, repara, é acaso culpa dele? Ele aprende tudo o que quer
e quando crescer também será rico.
- Um mosquito, é o que ele é - disse Tomás com um soberano desprezo. - Põe-se a zumbir, a zumbir, e de repente morde.
Mas havia na vida dos rapazes algo que os unia a todos, havia horas em que eles perdiam a consciência das diferenças de carácter e de situação. Reuniam-se todos
os domingos em casa de Smoline e, trepando para o telhado da ala onde estava construído o vasto pombal, largavam os pombos.
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As belas aves, bem alimentadas, batendo as asas brancas como neve, esvoaçavam uma após outra para fora do pombal; colocavam-se em fila no beiral do telhado e, arrulhando,
na luz do sol, tomavam posições diante dos rapazes.
- Mete-lhes medo! - pedia lejov, estremecendo de impaciência.
Finalmente, Smoline esbracejava com um gesto rasgado e assobiava.
Os pombos assustados lançavam-se no ar e enchiam-no com um barulho de asas precipitadas. com um largo ímpeto, elevavam-se na profundidade azul do céu, descrevendo
vastos círculos, e vogavam, com a prata e a neve da sua plumagem a brilharem cada vez mais alto. Um deles, com um golpe de asa sossegado, de falcão, as asas generosamente
abertas e como que imobilizadas, lança-se para atingir a cúpula dos céus. Os outros brincam, fazem piruetas no espaço, deixam-se cair como bolas de neve e novamente,
como flechas, voam para as alturas. Todo o grupo parece agora manter-se imóvel no céu desértico e, diminuindo sem cessar, afogar-se nele. com as cabeças erguidas,
os rapazes admiram os pássaros em silêncio, sem desviarem deles os olhos fatigados, irradiando uma alegria serena não isenta de um sentimento de inveja em relação
àqueles seres alados que o seu voo leva tão facilmente para o puro e tranquilo domínio onde reina completamente o brilho do sol. O pequeno grupo de manchas que os
olhos mal distinguem, incrustado no céu azul, arrasta consigo a imaginação das crianças e lejov formula o sentimento que lhes é comum dizendo com voz abafada e sonhadora:
- Ah, rapazes, devíamos voar assim.
Unidos pelo seu fervor, esperando silenciosa e atentamente que os pássaros regressem do fundo do céu, os companheiros apertam-se estreitamente uns contra os outros;
tal como os pombos, partiram para longe da terra, longe do sopro da realidade; agora são simplesmente crianças, já não podem sentir inveja ou zanga; estão próximos
uns dos outros, estranhos a tudo: sem uma palavra, apenas pelo brilho dos olhos, compreendem os seus sentimentos e sentem-se felizes como as aves no céu.
Mas os pombos pousaram já no telhado. Fatigados pelo voo, regressados ao pombal.
- Vamos às maçãs? - propõe lejov, inspirador de todos os jogos e todas as aventuras.
O seu apelo expulsa das almas infantis a disposição pacífica que os pombos lhes tinham insuflado e ei-los
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que prudentemente, com um andar de salteadores, prestando atenção a cada ruído com uma circunspecção de ratoneiros, introduzem-se pelas traseiras no jardim do vizinho.
O terror de serem apanhados é atenuado pela esperança de um saque sem punição. O roubo é também um trabalho, e um trabalho perigoso; em todo o caso, o fruto do trabalho
é tão doce! Tanto mais doce quanto mais esforços reclama... Os rapazes atravessam a sebe do jardim com precaução e, curvados em dois, deslizam para as macieiras
lançando à sua volta olhares agudos e cautelosos. O coração estremece a cada ruído de folhas e altera-lhes as pulsações; temem com igual intensidade serem surpreendidos
e serem reconhecidos. Se se limitarem a apercebê-los e a gritarem-lhes ficarão contentes. Desaparecerão imediatamente em todas as direcções, e em seguida, novamente
juntos, os olhos inflamados de entusiasmo e de audácia, repetirão uns aos outros as sensações experimentadas ao sentirem-se descobertos e perseguidos, e o que lhes
aconteceu quando corriam através do jardim, tão depressa que dir-se-ia a terra queimar sob os seus pés.
Tomás punha mais entusiasmo nessas operações de assalto do que em todas as outras aventuras e brincadeiras; conduzia-se então com uma bravura que admirava e irritava
os seus camaradas. Nos jardins alheios conservava propositadamente uma atitude imprudente: falava em voz alta, quebrava ramos de macieiras com um estalido ruidoso,
arrancava uma maçã podre e atirava com ela pelo ar ao acaso, ou mesmo em direcção à casa do proprietário. O risco de ser surpreendido no lugar do crime não o assustava,
apenas o perturbava ligeiramente: os olhos escureciam, apertava os dentes, o rosto adquiria uma expressão orgulhosa e exaltada. Smoline dizia-lhe, torcendo a sua
grande boca:
- Caramba, tu és demasiado fanfarrão...
- O que não sou é cagarola - respondia Tomás.
- Sei muito bem que não és cagarola, mas só os idiotas é que são fanfarrões... Pode-se levar a cabo o assalto sem precisar de tanto exibicionismo.
lejov condenava-o de outro ponto de vista:
- Se fores tu mesmo meter-te nas mãos deles... podes ir para o Diabo! Eu não te conheço... A ti, levam-te ao paizinho e ele não te fará nada, mas a mim, o meu velho
tira o cinturão e arranca-me a pele de cima dos ossos.
Aconteceu que um dia Tomás foi agarrado pelas mãos do capitão Tchumakov, um velhinho pequeno e magro. Sem ruído, tinha-se aproximado pé ante pé do
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rapaz que arrecadava as maçãs já arrancadas, agarrou-o pelos ombros e gritou com voz ameaçadora:
- Apanhamos o ladrão! Ah! Ah!
Tomás, nessa época, tinha cerca de onze anos; com uma reviravolta escapou às mãos do velho. Mas sem fugir, com as sobrancelhas franzidas, pronunciou com ar terrível:
-? Não me toques!
-Não te tocarei, vou é levar-te à polícia! Como te chamas?
- Gordeiev...
- O filho de I... Inácio Matveitch?
- Sim.
Foi a vez do capitão se perturbar. Endireitou-se, encheu o peito de ar e tossiu solenemente. Depois os ombros descaíram e disse, com um tom paternalmente compreensivo:
- Uma vergonha! O herdeiro de uma pessoa tão importante e tão estimada... É indigno de si... Pode-se ir embora... Mas se isto se voltar a repetir... serei obrigado
a informar o seu papá... ao qual tenho a honra - seja dito entre parêntese - de apresentar os meus respeitos.
Tomás, que observava o jogo fisionómico do velho, compreendeu que este temia o pai. com um olhar de baixo para cima, como um lobinho, examinava Tchumakov, e o outro
com uma gravidade cómica retorcia os bigodes brancos e bamboleava o corpo, ora num pé ora noutro diante do rapaz que não saía dali, se bem que a permissão já lhe
tivesse sido dada.
- Pode-se ir embora - repetiu o velho, apontando o caminho da sua própria casa.
- E à polícia, não vamos? - perguntou Tomás, com ar amuado, para se apavorar a si mesmo com a possível resposta.
- Era a brincar! - sorriu o velho. - Disse isso para lhe meter medo.
- O senhor é que tem medo do meu pai... - disse Tomás, voltando as costas ao homem e saindo pelo fundo do jardim.
- Medo, eu? Ah-Ah! Essa é boa! -gritou Tchumakov atrás dele. Pelo tom de voz, Tomás compreendeu que ofendera o velho.
Sentiu-se envergonhado e triste; passou o tempo, até à noite, a passear sozinho; ao chegar a casa, foi acolhido por esta severa pergunta do pai:
- tom! Foste tu que entraste no jardim de Tchumakov?
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Fui - disse tranquilamente o rapaz, olhando o pai,
de frente.
Inácio não esperava decerto uma tal resposta e manteve-se em silêncio alguns segundos acariciando a
barba.
Idiota! Porque fizeste isso? As maçãs de cá de
casa não te chegam?
Tomás baixou os olhos e de pé, diante do pai, não respondeu.
- Estás a ver, estás envergonhado! Espera aí, foi decerto esse inútil do lejov que te convenceu. Quando ele vier cá castigá-lo-ei... De resto vou acabar com essa
amizade de uma vez para sempre...
- Fui eu sozinho! - declarou Tomás, com firmeza.
- Estás a tornar as coisas cada vez mais difíceis
- exclamou o pai. - Mas porque fizeste tu isso?
- Porque...
- Porque... - imitou o pai. - Se fazes qualquer coisa, pelo menos que saibas explicar as razões, a ti próprio e aos outros... Anda cá.
Tomás aproximou-se do pai, que estava sentado numa cadeira, e colocou-se junto dele, entre os seus joelhos. Inácio pousou-lhe as mãos nos ombros e, sorridente, encarou
o filho.
- Tens vergonha?
- Tenho vergonha! - correspondeu Tomás, com um suspiro.
- Ora vejam lá este pateta! Envergonhas-te a ti, e a mim ao mesmo tempo.
Apertando a cabeça do filho contra o peito, acariciou-lhe os cabelos e perguntou-lhe subitamente:
- Para que serve roubar as maçãs dos outros?
- Não sei - disse Tomás, perturbado. - Brinca-se, brinca-se, é sempre a mesma coisa... Acabamos por nos aborrecer. E então...
- Dá-vos assim, de repente? - perguntou o pai sorrindo.
- É isso...
- Hum, vamos admitir!... Entretanto, Tomás, vais-me fazer o favor de pôr esse jogo de parte. Senão terei de ser duro contigo.
- Nunca mais irei a parte nenhuma - disse Tomás, com ar de quem sabe o que afirma.
- É bom que respondas por ti próprio. Mais tarde, Deus sabe o que virás a ser, mas por agora... não vai muito mal. Já é muito bom que um homem queira pagar ele próprio
pelos seus actos com a sua própria pele. Outro qualquer no teu lugar teria falado nos seus camaradas ao
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passo que tu só dizes: Fui eu sozinho! É assim que se deve fazer, Tomás. Cometeste uma falta, deves responder... E então, diz-me cá, esse Tchumakov... ele... ele
bateu-te? - perguntou Inácio ao filho, fazendo pausas.
- Não. Eu teria respondido! - declarou calmamente Tomás.
- O quê?... - resmungou o pai.
- Eu disse-lhe que ele tinha medo de ti... por isso é que ele se queixou... antes ele não te queria vir ver.
- Essa agora!
- É verdade. Transmita os meus respeitos ao seu pai, - dizia ele...
- Disse isso?
- Disse.
- Ai, o patife! Vês como são as pessoas? Roubam-nas e elas fazem reverências: apresente os meus respeitos! Admitamos que lhe roubaram um copeque, na realidade esse
copeque vale para ele tanto como um rublo para mim... Mas não é o copeque que tem importância, o que a tem é que ele me pertence; que ninguém se atreva a tocar-lhe
se o não lanço fora eu mesmo... Ah! mas... eles, pelo contrário... Bem, fala: onde estavas e que viste?
O rapaz sentou-se ao lado do pai e contou pormenorizadamente as suas sensações desse dia. Inácio ouvia, as suas sobrancelhas de adulto franziam-se pensativamente.
- Na ravina assustamos uma coruja - contava ele.
- Foi divertido! Ela voou, mas ao voar bateu contra uma árvore. Floc! Começou mesmo a piar que fazia pena... Assustámo-la outra vez, tornou a levantar voo e aconteceu-lhe
a mesma coisa: voava, voava e batia sempre contra qualquer coisa onde ia largando as penas. Andou assim de um lado para outro na ravina, e depois acabou por se esconder
num canto... já nem procurámos, tínhamos pena, tinha-se magoado tanto à força de bater contra as coisas! Porque é que ela é completamente cega durante o dia, papá?
- É cega! - disse Inácio. - Há homens assim, estás a ver, são como a coruja durante o dia, andam de um lado para o outro, na vida... procuram constantemente o seu
lugar, chocam contra tudo, limitam-se a ir perdendo as penas sem que se saiba para que é que isso lhes serve... Enchem-se de pancadas, esgotam-se com dores, perdem
tudo, e no seu ímpeto vão-se aninhar onde calha, desde que possam sossegar um momento a sua agitação. Infelizes deles, meu rapaz! Infelizes deles!
- Mas porque são assim?
- Porquê? É difícil de dizer... Uns porque os cega
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o orgulho- querem muito mas têm pouco vigor... Outros por estupidez... razões para isso não faltam.
Desse modo, dia após dia, desenrolava-se lentamente a vida de Tomás: na generalidade era uma vida pobre em emoções, pacífica, tranquila. Impressões fortes, que despertavam
por uma hora a sensibilidade dele, destacavam-se por vezes muito nitidamente sobre o fundo dessa existência monótona, mas depressa se esfumavam. A alma do rapaz
era ainda um lago tranquilo, um lago protegido das tempestades da vida e tudo o que tocava a superfície do lago, ou caía no fundo depois de ter enrugado por alguns
instantes a água adormecida, ou então, depois de ter deslizado na sua superfície lisa, abria-se em largos círculos e desaparecia.
Após cinco anos na escola primária, Tomás acabou melhor ou pior o ciclo das quatro classes. Era um rapaz sólido, de cabelos negros, rosto moreno, sobrancelhas espessas
e o lábio superior ornado com uma sombra escura de buço. Olhos grandes igualmente escuros olhavam pensativa e ingenuamente, os lábios mantinham-se entreabertos como
os das crianças; mas quando encontrava um obstáculo aos seus desejos ou alguma coisa que o irritava, as pupilas alargavam-se-lhe, os lábios apertavam-se e todo o
rosto adquiria uma expressão teimosa, voluntária. O padrinho dizia dele, com um sorriso céptico:
- Tomás, para as mulheres vais ser mais doce do que o mel... mas entretanto não há muito critério em ti.
Inácio suspirava ao ouvir estas palavras.
- Devias pôr o teu filho a trabalhar.
- Espera um pouco.
- Esperar porquê? Andará na boémia dois ou três anos no Volga e depois casá-lo-emos... Tens Lubov, a minha filha...
Lubov Maiakine, nessa época, estava no curso do liceu, num colégio interno. Tomás encontrava-a frequentemente na rua e ela acenava-lhe com a cabeça de cabelos castanhos,
ornada com um chapeuzinho elegante. Ela agradava a Tomás, mas as suas faces rosadas, os seus alegres olhos castanhos e os lábios de um vermelho-vivo não podiam apagar
a impressão vexatória produzida por aqueles condescendentes acenos de cabeça. Era amiga de certos camaradas de liceu e, se bem que lejov, seu velho colega, pertencesse
a esse número, Tomás não se sentia atraído por eles e acanhava-se com a sua companhia. Parecia-lhe que se gabavam diante dela do seu saber e o escarneciam pela sua
ignorância. Reunidos em casa de Lubov, liam livros, e se ele os encontrava em sessões de leitura ou no jogo de uma discussão barulhenta,
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calavam-se quando ele aparecia. Tudo isso contribuía para o afastar. Numa ocasião em que ele se encontrava em casa dos Maiakine, Luba convidou-o a passear no jardim
e lá, enquanto caminhava a seu lado, ela perguntou-lhe com uma careta:
- Porque é que tu és tão urso? Nunca tens nada para dizer?
- De que havia de falar, se não sei nada? - respondeu Tomás com simplicidade.
- Estuda, lê livros!
- Não me apetece...
- Mas olha para os meus colegas do liceu: eles sabem tudo, podem falar de tudo... O lejov, por exemplo...
- Eu conheço lejov, é um papagaio!
- Tens inveja dele, é o que é... Ele é muito inteligente... Vai sair do liceu, vai para a Universidade de Moscovo.
- Está bem, e depois?
- E depois, tu ficarás um ignorante.
- Paciência!
- Boa resposta! - exclamou ironicamente Luba.
- com ciência ou sem ela, já tenho o meu lugar - disse Tomás com raiva. - E posso partir o focinho a qualquer sábio que apareça... Os mortos de fome que estudem,
eu não tenho necessidade.
-Apre! Como tu és tolo e mau! - disse a rapariga com um tom de desprezo, indo-se embora e deixando-o só no jardim.
Aborrecido e vexado, seguiu-a com os olhos, encolheu os ombros e, cabisbaixo, internou-se pelo meio das plantas.
Começava a encontrar encanto na sua solidão e a saborear a doçura envenenada das fantasias. Frequentemente, nas tardes de Verão, quando a terra toda se tinge com
as cores de fogo do poente tão excitantes para a imaginação, uma melancolia perturbante levava até à sua alma um sentimento vago e incompreensível. Sentado em qualquer
parte, ou num canto sombrio do jardim ou estendido na cama, procurava a imagem de princesas lendárias que lhe apareciam sob o aspecto de Luba e de outras raparigas
que ele conhecia, flutuavam silenciosamente diante dele nas trevas do crepúsculo e olhavam-no de frente com olhos enigmáticos. Por vezes essas visões despertavam
uma onda de energia poderosa e libertavam uma espécie de embriaguez: levantava-se e, endireitando os ombros, bebia o ar perfumado a plenos pulmões; mas outras vezes
essas mesmas visões enchiam-no de tristeza: tinha vontade de chorar, tinha vergonha das lágrimas, continha-se e chorava ao mesmo tempo, suavemente.
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O pai introduzia-o pacientemente e prudentemente no mundo dos negócios, levava-o com ele à Bolsa, falava-lhe das encomendas e das entregas que tinha contratado,
dos seus sócios: contava-lhe como tinha arranjado um "lugar ao sol", qual era agora a sua fortuna, qual o seu carácter. Tomás adaptou-se rapidamente: tratava as
coisas com seriedade e reflexão.
- O que parecia um nabo está a desabrochar numa bela flor! - gracejava Maiakine piscando o olho a Inácio.
E no entanto, mesmo quando Tomás ultrapassou os dezanove anos, havia nele algo de infantil, de ingénuo, que o distinguia dos seus camaradas. Eles caçoavam dele,
julgavam-no estúpido; ele mantinha-se afastado, magoado com essa atitude. Ao pai e a Maiakine, que não tiravam os olhos dele, esta indeterminação de carácter inspirava-lhes
sérias preocupações.
- Não o compreendo - dizia Inácio. - Não se diverte, não anda atrás das raparigas, comigo, contigo, é respeitador, ouve tudo com atenção: é uma donzela e não um
rapaz. No entanto não tem ar de estúpido, não te parece?
- O ar dele não é mais estúpido do que o de qualquer outro.
- Sabes, dir-se-ia que ele espera qualquer coisa, há uma espécie de véu nos olhos dele. A defunta mãe ia assim pelo mundo, às apalpadelas, tal e qual como ele. Repara
por exemplo no pequeno Afrikane Smoline... é certo que tem mais dois anos, mas que espertalhão! Agora é mesmo difícil saber qual dos dois tem a cabeça do outro:
é ele que se parece com o pai, ou o pai que se parece com ele? Quer ir para uma fábrica para se instruir, resmunga, diz ao pai que ele o educou mal... Mas o meu,
esse nunca diz nada que venha dele... Meu Deus!
- Se queres um conselho, ouve: mergulha-o até às orelhas num negócio qualquer, em pleno fogo. É o melhor. É no fogo que se experimenta o ouro... Veremos quais são
as suas tendências, deixando-o agir livremente... Manda-o sozinho para Kama.
- Será preciso fazer essa experiência!
- Acho que sim. Claro que ele estragará qualquer coisa... tu perderás dinheiro... mas por esse preço saberemos o que ele tem lá dentro.
- Tens razão. vou mandá-lo - concordou Inácio.
Na Primavera, Inácio enviou o filho para Kama, com duas barcaças de trigo. O vapor Diligente rebocava as barcaças. Quem o comandava era o velho amigo de Tomás, o
antigo marinheiro léfime - hoje léfime Ilitch
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- um homem de trinta anos, forte, de olhos de lince, cheio de critério e de medida e capitão muito severo.
Navegava-se depressa e alegremente porque todos se sentiam contentes. Tomás estava orgulhoso da missão de que, pela primeira vez, lhe tinham confiado a responsabilidade,
léfime sentia-se feliz com a presença do jovem patrão, que não lhe fazia, à menor coisa, observações ornamentadas com palavrões enérgicos. A boa disposição dos dois
chefes do barco deixava cair a sua irradiação directamente sobre toda a equipagem. Tendo abandonado o lugar de carga, onde embarcaram o trigo, em Abril, o vapor
já estava amarrado nos primeiros dias de Maio no seu ponto de destino, e as barcaças, ancoradas na margem do rio, alinhavam-se atrás dele. Tomás devia descarregar
o trigo o mais depressa possível e, uma vez pago, dirigir-se a Perne, onde o esperava uma carga de ferro que Inácio devia entregar na feira.
As barcaças estavam em frente de uma grande aldeia, acostadas ao longo de um bosque de pinheiros. Logo no dia seguinte ao da chegada, de manhã muito cedo, apareceu
na margem uma multidão ruidosa de aldeãos e aldeãs, a pé e a cavalo; com gritos e canções saltaram para os barcos e num abrir e fechar de olhos o trabalho começou.
Descendo aos porões as mulheres enchiam de trigo os sacos que em seguida os homens transportavam às costas, percorrendo em passo de corrida a passarelle que conduzia
ao cais; dali, já se alongavam em direcção à aldeia as filas de carros, pesadamente carregados com o grão que há tanto tempo esperavam. As aldeãs lançavam canções
no ar, os homens gracejavam e insultavam-se alegremente, os marinheiros, arvorando-se em polícias, gritavam aos que trabalhavam, as tábuas dos passadiços flectiam
sob os passos e faziam pesadamente "floc" na água, enquanto na margem os cavalos relinchavam e, ao mesmo tempo, os carros rangiam sobre a areia.
Logo que o sol se erguia, o ar, saturado do perfume dos pinheiros, tornava-se de uma frescura vivificadora; a água tranquila do rio, levemente frisada, reflectia
o céu claro e batia contra o costado dos barcos e as cadeias das âncoras. O alegre e sonoro clamor do trabalho, a beleza juvenil da natureza primaveril iluminada
alegremente pelos raios de sol, tudo transbordava de uma força cheia de animação e de simplicidade que emocionava agradavelmente Tomás, despertando-lhe sensações
e desejos novos e perturbadores. Estava sentado sob o toldo do vapor, e tomava chá com léfime e o recebedor do trigo, um funcionário local, um senhor ruivo e míope
que usava lunetas. com um sobressalto nervoso dos ombros, o
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funcionário contava com voz trémula a fome que os camponeses tinham sofrido, mas Tomás ouvia-o sem muita atenção, olhando o trabalho, em baixo, ou a outra margem
do rio, alto declive abrupto, amarelo e arenoso, onde se erguiam pinheirais. Para além, era o deserto e a calma.
"Gostaria de ir até lá", pensava Tomás enquanto lhe chegava aos ouvidos, como que vinda de longe, a voz agitada, desagradàvelmente cortante, do funcionário.
- É capaz de não me acreditar, mas acabou por se tornar apavorante. Conto-lhe um caso: em Os, um aldeão que tinha trazido com ele a filha de dezasseis anos, foi
ter com um intelectual. "Que queres?" - "Bem, trago a minha filha a Vossa Nobreza..." - "Porquê?" - "Bem, talvez queirais ficar com ela... Sois solteiro." - "Que
dizes? Que significa isso?" - "Bem, levei-a à cidade, queria-a colocar como criada: ninguém quer... ficai com ela, mesmo que seja para amante!" Está a compreender?
Oferecia a filha como amante! O outro revoltou-se, caiu-lhe em cima, chamou-o à razão. Mas o camponês respondia: "Para que me serve ela, Vossa Nobreza? Ela é inútil...
e tenho três rapazes que darão três trabalhadores, tenho de os conservar... Dai-me dez rublos pela rapariga e salvarei os rapazes..." Que diz a isto, hem? É um horror,
evidentemente...
- É mau - suspirou lefime. - É por isso que se diz que a fome é má conselheira... A barriga tem as suas leis.
Este relato provocava em Tomás um interesse enorme e irritante que lhe era incompreensível, pela sorte da rapariga, e o jovem perguntou rapidamente ao funcionário:
- E que fez ele, esse senhor, comprou-a?
- Claro que não! - declarou o homem em tom de censura.
- Então, onde a meteram?
- Arranjaram-se pessoas boas... as coisas arranjaram-se.
- Hum! Hum! - fez Tomás, e de repente declarou com um tom firme e colérico: - Eu ter-lhe-ia dado uma carga de lenha, a esse labrego. Ter-lhe-ia rebentado o focinho.
- Porquê? - exclamou com uma voz dolorosamente elevada o funcionário, tirando as lunetas do nariz.
- Então, pode-se vender uma criatura humana?
- Convenho que é uma selvajaria, mas...
- E uma rapariga, ainda por cima! Eu é que lhe teria dado os dez rublos.
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O funcionário teve um gesto desiludido e calou-se. O seu gesto revoltou Tomás. Levantou-se da mesa e, afastando-se para a grade da ponte, pôs-se a olhar para a barcaça,
coberta por uma multidão de pessoas que trabalhavam animadamente. O ruído inebriava-o e esse algo de confuso que lhe errava no ser precisou-se num potente desejo
de trabalhar com as suas próprias mãos, de possuir uma força fabulosa, ombros enormes, e de carregar de uma só vez uma centena de sacos de grão para os maravilhar
a todos.
- Mexam-se... mais depressa! - gritou ele voltado para baixo.
Levantaram-se para ele algumas cabeças, rostos se ofereceram por um instante ao seu olhar e um deles, um rosto de mulher com olhos negros, endereçou-lhe um sorriso
acariciador e provocante. Ao ver esse sorriso alguma coisa se lhe incendiou no peito e uma ardente vaga lhe correu nas veias. Saiu da amurada com custo e regressou
à mesa, sentindo que as faces lhe ardiam.
- Ouça-me, por favor - interpelou-o o funcionário. - telegrafe ao seu pai, que reduza uma certa quantidade de grão para compensar o desperdício. Veja o que se perde,
aqui cada grão é precioso. Deve compreender... Vá, apesar de tudo, o senhor tem um papá que... -terminou com uma careta cáustica.
- Quanto é preciso descontar? - perguntou desdenhosamente Tomás, cheio de segurança. - Quer cem libras? Duzentas?
- Pode ser... Então fico-lhe muito grato! - exclamou o funcionário emocionado e radiante. - Se realmente tem o direito de o fazer!
- Sou o patrão - respondeu firmemente Tomás.
- Quanto ao meu pai penso que o senhor não pode falar dele nesse tom, a fazer caretas!...
- Peço desculpa! Não duvido que o senhor tenha plenos poderes... Agradeço-lhe sinceramente... assim como a seu pai, em nome de toda esta gente.
lefime olhava com certo temor o jovem patrão e dava estalidos com os lábios que tinha avançados num movimento de descontentamento, enquanto Tomás ouvia, com uma
expressão de orgulho no rosto, o discurso rápido do funcionário que lhe tinha pegado na mão e a apertava fortemente.
- Duzentas. Eis, meu caro jovem, o que se chama agir à russa. vou anunciar imediatamente a sua oferta a esta brava gente. Vai ver como lhe serão reconhecidos.
Gritou com voz sonora:
- Rapazes! O patrão sacrifica duzentas libras...
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Trezentas! - interrompeu Tomás.
Trezentas libras... Obrigado. Trezentas libras de
trigo rapazes!
A impressão produzida foi fraca. Os aldeãos ergueram a cabeça e, sem uma palavra, voltaram a baixá-la retomando o trabalho. Algumas vozes, hesitantes e como que
contra vontade:
- Obrigado... Que Deus te pague... Agradecemos humildemente.
Alguém gritou alegremente e à vontade:
- E depois!... Ah, se nos dessem a cada um um copo de aguardente, isso sim, é que seria amabilidade! Agora o trigo, esse não é para nós, é da Administração.
- Eles não compreendem - exclamou o funcionário surpreendido. - Eu vou-lhes explicar...
Desapareceu. Mas a atitude dos aldeãos em relação ao seu presente não interessava Tomás; via os olhos negros da mulher contemplarem-no tão estranhamente, tão agradavelmente.
Eles agradeciam-lhe, acariciavam-no, convidavam-no e ele não via mais nada. A mulher estava vestida à moda da cidade, usava botinas, uma blusa de indiana, cabelos
negros retidos por um lenço que tinha algo de original. Alta e forte, sentada numa pilha de madeira, reparava os sacos; os braços nus até ao cotovelo moviam-se com
agilidade e não cessava de sorrir a Tomás.
- Tomás Ignatitch - ressoou a voz de reprovação de lefime - estás a levar a surpresa muito longe... Vá lá quando muito cinquenta libras! Toma cuidado, não vá por
esse andar cair-nos o martelo em cima da cabeça dos dois...
- Basta! - disse Tomás secamente.
- A mim que me importa! Calo-me... Mas como tu ainda és muito novo dizem-me: "Devias vigiá-lo." E se eu te deixo fazer tudo sou eu que terei de ouvir.
- Eu o direi ao meu pai... - disse Tomás.
- Por mim, faz o que te vier à cabeça... És o patrão.
- Deixa-me em paz, lefime!
lefime soltou um suspiro e calou-se. Tomás olhava para a mulher: "Ah!, se me tivessem vindo oferecer uma assim, para eu comprar!"
O coração pulsava-lhe a um ritmo acelerado. Se bem que ainda estivesse fisicamente puro, conhecia já, pelas conversas que tinha ouvido, os mistérios íntimos das
relações entre homens e mulheres. Conhecia-os sob termos grosseiros e vergonhosos e essas palavras excitavam nele uma curiosidade desagradável mas ardente; a sua
imaginação trabalhava obstinadamente, e apesar de
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tudo não conseguia representar o que ouvira em imagens compreensíveis. No fundo dele próprio não acreditava que as relações entre homens e mulheres fossem tão elementares
e grosseiras como lhe contavam. Mesmo quando lhe garantiram, troçando dele, que eram assim e não podiam ser de outra maneira, tinha sorrido, estupidamente perturbado,
mas continuou a pensar que apesar de tudo as relações com uma mulher não podiam revestir, para todos, uma forma tão vergonhosa, e que decerto havia nisso algo de
mais puro, de menos grosseiro e de menos degradante para o homem.
Agora que admirava a operária dos olhos negros, Tomás sentia precisamente que essa grosseira atracção para ela era vergonhosa, terrível. E lefime, de pé a seu lado,
exortava-o:
- Agora que te pões a olhar para uma rapariga, vês bem que me não posso calar... Não a conheces, mas como ela te faz olhinhos, tu, que és novo, e com o feitio que
tens, vais fazê-las tão boas que acabaremos por ter que sair daqui a pé, e ainda muito felizes se conservarmos as calças.
- Que é que tu queres dizer? - perguntou Tomás, corado e confuso.
- Eu... nada... Mas tu deves ouvir o que digo. No capítulo de mulheres posso-te ensinar muita coisa... com uma mulher é preciso proceder com simplicidade: levas-lhe
uma garrafa de vodka, qualquer coisa para mastigar, depois um ou dois copos de cerveja e, para acabar, como dinheiro, metes-lhe na mão uma moeda de vinte copeques.
Por esse preço, ela dar-te-á todo o seu amor, tão bem que não poderás encontrar melhor.
- Mentes de uma ponta a outra! - disse Tomás suavemente.
- Eu minto? Como é que minto se repeti esse processo mais do que um cento de vezes? De resto, basta que me deixes arranjar as coisas com esta... hem! vou arranjar
com que tu a conheças enquanto o Diabo esfrega um olho.
- bom... - disse Tomás, sentindo que lhe era difícil respirar e que alguma coisa lhe oprimia a garganta...
- Então, está combinado... Esta noite levo-ta.
Até à noite Tomás circulou como que envolto numa névoa, sem notar os olhares respeitadores e obsequiosos dos aldeãos. Estava oprimido, sentia-se culpado para com
alguém, respondia, a todos que lhe falavam, com um tom acariciador, como que a pedir desculpa.
Ao chegar a noite, os operários, reunidos na margem junto de uma fogueira, puseram-se a preparar as refeições. Os reflexos do fogo caíam no rio em manchas
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vermelhas e amarelas, tremiam na água calma e nos vidros da cabina onde Tomás estava sentado num sofá, a um canto. Tinha corrido as cortinas e não tinha a luz acesa;
a frágil luz do fogo penetrava através das cortinas, pousava na mesa, batia na parede e estremecia, ora mais luminosa, ora mais fraca. Tudo estava tranquilo, só
chegavam da margem os ruídos confusos de palavras e o marulho quase indistinto da água batendo contra os flancos do vapor. Parecia a Tomás que na obscuridade, perto
dele, alguém se tinha escondido e o vigiava... Vem aí gente, passos apressados franqueiam pesadamente o passadiço, as tábuas batem na água com um chapinar sonoro
e raivoso... Tomás ouve um riso e uma voz abafada à porta da cabina.
- Não entre! - gostaria Tomás de gritar.
Já estava de pé, mas a porta da cabina tinha-se aberto e a alta silhueta de uma mulher apareceu no limiar; fechando silenciosamente a porta atrás de si, dizia em
voz baixa:
- Meu Deus, como está escuro! Há alguém vivo aqui?
- Estou eu... - respondeu suavemente Tomás.
- Bem, então... Boa noite!...
E a mulher avançou prudentemente.
- vou acender o candeeiro - prometeu Tomás com voz entrecortada; mas deixando-se cair no sofá deixou-se ficar encolhido no seu canto.
- Não é preciso, depois de habituar os olhos, vê-se mesmo no escuro...
- Sente-se - disse Tomás.
Ela sentou-se no sofá a dois passos dele. Tomás via-lhe o brilho dos olhos, o sorriso dos lábios. Pareceu-lhe que ela não sorria como antes, mas sim de modo diferente,
com um sorriso lastimoso e sem alegria. Esse sorriso reanimou-o, começou a respirar mais à vontade à vista daqueles olhos que, ao cruzarem os seus, se enterneceram
subitamente. Mas não sabia de que falar com esta mulher, e mantinham-se ambos em silêncio, um silêncio pesado e tímido... Ela tomou a palavra:
- Deve-se aborrecer muito, aqui, sozinho.
- Sim - concordou Tomás.
- E a nossa região, agrada-lhe? - interrogou a mulher a meia voz.
É bonita. Há muitas florestas... Calaram-se novamente.
- Este rio deve ser ainda mais bonito do que o Volga
- disse Tomás com esforço.
- Já estive no Volga. Na região de Simbirsk...
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- Simbirsk... - repetiu Tomás como um eco, sentindo-se uma vez mais incapaz de pronunciar qualquer frase
Mas ela, compreendendo decerto com quem estava a lidar, perguntou de repente num murmúrio provocante:
- E então, patrão, não me ofereces nada?
- É verdade - sobressaltou-se Tomás. - Realmente, que tolo eu sou! É para já!
Agitava-se na penumbra, batia contra a mesa, pegava numa garrafa, depois noutra, voltava a pô-las no lugar, rindo, com ar culpado e confuso. Ela aproximou-se dele,
colocou-se a seu lado, olhando com um sorriso aquele rosto e aquelas mãos que tremiam.
- Estás com vergonha? - cochichou ela subitamente. Ele sentiu-lhe a respiração na face e respondeu
também em voz baixa.
- Es-tou...
Então ela pousou-lhe as mãos nos ombros e apertou-o suavemente contra o peito murmurando com uma voz tranquilizadora:
- Não faz mal, não tenhas vergonha... sabes, sem isso não se pode... meu bonitão... meu rapazinho... fazes-me pena!
Aqueles murmúrios deram-lhe vontade de chorar, o coração fundia-se num doce langor; apertando a cabeça contra o peito da mulher, estreitou-a pronunciando palavras
incoerentes que eram desconhecidas a ele próprio.
- Vai-te embora! - exclamou surdamente Tomás, olhando as paredes com os olhos fixos e abertos.
Ela beijou-lhe a face, ergueu-se docilmente e saiu da cabina dizendo:
- Então, adeus!
Tomás sentira na presença dela uma vergonha intolerável, mas logo que ela desapareceu atrás da porta levantou-se de chofre e sentou-se no sofá. Depois pôs-se em
pé, com as pernas vacilantes, completamente invadido pela sensação súbita de ter estragado algo de precioso, mas cuja existência não teria notado antes de a ter
perdido... Ergueu-se nele imediatamente um sentimento novo e viril de orgulho. Absorveu a vergonha e, em lugar da vergonha, aumentou a sua piedade para com a mulher
que se ia embora, solitária, algures na obscuridade da fria noite de Maio. Saiu rapidamente para o tombadilho; a noite estava estrelada mas não havia luar. A frescura
e a escuridão penetraram-no... Na margem, o monte vermelho e dourado das brasas ainda luzia. Tomás apurou o ouvido: um silêncio pesado esmagava o ar, a água mal
se encrespava ao quebrar-se
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contra a corrente da âncora e não se ouvia nenhum ruído de passos. Teve vontade de chamar a mulher, mas não lhe sabia o nome. Aspirando profundamente o ar fresco,
manteve-se alguns instantes de pé e, de repente, percebeu, vindo da ponta do barco, semelhante a um soluço, o suspiro de alguém. Sobressaltou-se e, com precaução,
avançou para lá, compreendendo que a iria encontrar.
Estava sentada no chão, contra as grades da amurada, e, com a cabeça apoiada num rolo de cordas, chorava. Tomás via tremer a mancha branca dos ombros descobertos,
ouvia profundos suspiros e sentia-se penalizado.
- Que tens?
Ela sacudiu a cabeça e não respondeu.
- Ofendi-te?
- Vai-te embora - respondeu ela.
- Mas porquê? - dizia Tomás desorientado e alarmado, tocando-lhe com a mão na cabeça. - Não estejas zangada!...
- Não estou zangada!... Porque te havia de querer mal? Tu não gemes... tu és uma alma pura! Hem!, meu falcãozinho, meu pássaro de arribação. Senta-te aqui, a meu
lado...
Pegando na mão de Tomás, sentou-se-lhe nos joelhos, como uma criança, apertou-lhe a cabeça contra o peito e, inclinando-se, colou os seus lábios longamente contra
os do rapaz.
- Porque choras? - perguntou-lhe ele, acariciando-lhe a face com uma das mãos e enlaçando-lhe o pescoço com a outra.
- Choro por mim mesma... Porque me mandaste embora? - perguntou ela com ar triste.
- Tinha vergonha - respondeu Tomás baixando a cabeça.
- Meu querido! Diz-me a verdade: não te agradei?
- perguntou ela com um risinho, enquanto grossas lágrimas quentes continuavam a cair no peito de Tomás.
- Que estás a dizer? - exclamou o jovem, assustado, começando a dizer-lhe palavras ardentes e precipitadas acerca da beleza dela; dizia-lhe como ela tinha sido terna,
como ele tinha pena dela e como tinha sentido vergonha. Ela ouvia-o sem parar de o beijar, na cara, no pescoço, na cabeça e no peito descoberto.
Ele calou-se; ela começou com uma voz triste e velada como se falasse de um defunto:
- Eu tinha pensado outra coisa... Quando disseste "Vai-te embora!" levantei-me e saí. Fiquei triste, triste por causa das tuas palavras... Pensava: "Dantes eram
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amáveis comigo, faziam-me festas sem parar, sem ganhar fôlego, só por um sorriso; dantes por uma carícia faziam tudo o que eu queria." Lembrei-me disso e pus-me
a chorar. A lamentar a minha mocidade... já tenho trinta anos... Os últimos dias bonitos para uma mulher. Ah! Tomás Ignatitch! - exclamou ela elevando a voz e apressando
o ritmo das suas frases cantantes, a cujas inflexões o murmúrio da água fazia um eco harmonioso.
- Ouve, conserva a tua mocidade! Não há nada melhor do que ela no mundo. Nada é mais precioso. com a mocidade é tudo como o ouro: tudo o que se quer fazer pode-se
fazer, e imediatamente. Vive para ter na tua velhice alguma coisa para recordar dos tempos da juventude... Vês, recordei-me disso, e embora tenha chorado o meu coração
aqueceu só com a lembrança dos dias que passaram. Rejuvenesci como se tivesse bebido água de Juvêncio. Minha querida criança! Se sou ao teu gosto vamo-nos divertir
os dois, vamo-nos divertir com todas as nossas forças, hem? Desde o momento que me chega o fogo arderei até ao último grão de cinza.
Apertando fortemente o jovem contra si, começou a beijar-lhe os lábios avidamente.
- Sen-ti-ne-la! - gritou a voz de um homem de guarda numa das barcaças.
E após o "ne-la" saído de um rápido movimento da garganta, pôs-se a bater numa chapa de ferro com um pau... As vibrações brutais rasgavam o solene silêncio da noite.
Alguns dias mais tarde, com as barcaças vazias e o vapor pronto a partir para Perm, lefime viu, com grande descontentamento, um carro aproximar-se da margem; Pelágia,
a mulher dos olhos negros, estava ali com uma mala e algumas trouxas.
- Manda um marinheiro buscar-lhe as coisas - ordenou Tomás, com um aceno, de cabeça na direcção da margem.
Abanando a cabeça com reprovação, lefime executou a ordem encolerizado e perguntou em seguida, baixando a voz:
- Então, ela vai connosco?
- Ela vai comigo...
- Ah, sim, claro! Não vai com todos... Meu Deus!
- Tens alguma coisa que resmungar?
- Claro que tenho, Tomás Ignatitch! Vamos partir para uma grande cidade... lá, não faltarão da espécie dela, não te parece?
- Fazes o favor de te calar? - disse Tomás severamente.
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- bom, calo-me, que remédio! Mas não está nas normas.
Tomás tomou um ar grave e macambúzio e disse ao capitão martelando as palavras:
- lefime, dá o assunto por arrumado de uma vez por todas e di-lo a toda a gente, aqui: se ouço dizer, seja a quem for, uma porcaria qualquer sobre ela, rebento-lhe
a cabeça com um marmeleiro.
- Cortas a direito! - disse lefime com ar de dúvida, lançando ao patrão olhares intrigados.
Mas no mesmo momento recuou um passo diante de Tomás. O filho de Inácio mostrou os dentes como um lobo, as pupilas dilataram-se-lhe e ele gritou:
- Cala-te, senão terei de te ensinar, insolente! lefime, apesar do medo que sentiu, respondeu dignamente:
- Tomás Ignatitch, apesar de o senhor ser o patrão, deram-me uma ordem. "Vigia-o, lefime..." e aqui sou eu o capitão...
- O capitão? - gritou Tomás, pálido e a tremer. E eu, o que sou?
- Vá, não se ponha a gritar. Por uma história de mulher...
No rosto congestionado de Tomás apareceram manchas vermelhas, ele balançou-se de uma perna a outra, enfiou, com um gesto nervoso, as mãos nos bolsos e disse com
um tom igual e firme:
- Tu! Capitão! Basta que digas uma palavra mais contra mim e vais para o Diabo! Imediatamente! Saltas para terra! Levarei o barco só com o piloto. Percebeste? Não
tens comando sobre mim. Está entendido?
lefime ficou estupidificado. Olhava para o patrão e piscava còmicamente os olhos sem encontrar resposta.
- Responde: está entendido?
- Entendido - pronunciou lefime. - Porque é este barulho? Caramba...
- Silêncio!
Os olhos selvàticamente faiscantes de Tomás, o seu rosto descomposto, inspiraram ao capitão a feliz ideia de se afastar do patrão e foi-se embora.
Estava furioso contra Tomás e considerava-se ultrajado sem motivo; mas ao mesmo tempo sentia pesar sobre ele a mão rude de um verdadeiro chefe. Habituado à submissão
desde há anos, agradava-lhe ver a autoridade manifestar-se acima dele e, entrando na cabina do velho piloto, foi já com uma ponta de satisfação na voz que lhe contou
a cena.
- Estás a ver isto? - concluiu ele. - É como um cão
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de boa raça, desde a primeira caçada mostra o que vale... E no entanto não se dá nada por ele à primeira vista: uma cabeça perturbada... Ora, não lhe fará mal que
ela o amime... com o feitio que ele tem, não se arrisca grande coisa... O que ele berrou! Parecia uma trompete, é o que te digo. Foi uma explosão súbita, parecia
que tinha aprendido a autoridade e a dureza de repente... como um vulcão.
lefime dizia a verdade: durante esses dias produziram-se em Tomás profundas mudanças. A paixão acesa nele tinha-o feito dono da alma e do corpo de uma mulher e ele
bebia avidamente a doçura de fogo desse poder; ele reduzia a cinzas todo o acanhamento, que antes lhe dava o aspecto de um rapaz melancólico e um pouco pateta e
enchia-lhe o coração de um orgulho jovem, da consciência da sua personalidade de homem. O amor do homem pela mulher é sempre fértil; qualquer que seja, mesmo que
não produza senão sofrimentos, ele contém sempre algo de precioso. Se para uma alma doente o amor é um veneno violento, para uma alma saudável, é o que o fogo é
para o ferro que quer tornar em aço.
A atracção de Tomás por uma mulher de trinta anos que celebrava nos abraços do adolescente o festim fúnebre da sua própria juventude, não arrancava o rapaz aos negócios;
ele não se perdia nem por carícias nem no trabalho, dando todo o seu ser a uma e a outra coisas. A mulher, como um bom vinho, excitava com igual vigor a sua sede
de trabalho e a sua sede de amor. Ela própria rejuvenescia sob os beijos da adolescência.
Em Perm esperava-o uma carta do padrinho. Maiakine informava-o de que Inácio, com saudades do filho, tinha-se posto a beber e que na idade dele era prejudicial beber
assim. A carta terminava com o conselho de que ele apressasse os negócios e regressasse a casa. Tomás sentiu nesse conselho uma preocupação que pôs uma sombra na
festa do seu coração, mas, entre os cuidados do trabalho e as carícias de Pelágia, essa sombra não tardou a dissipar-se. A vida do jovem corria com a rapidez das
águas do rio, cada dia lhe trazia sensações novas que engendravam novos pensamentos. Pelágia punha nas suas relações toda a paixão de uma amante, toda a força de
sentimento que as mulheres da sua idade levam às suas paixões, saboreando até ao fim as últimas gotas da taça da vida. Mas por vezes despertava nela um sentimento
não menos vigoroso que a ligava a Tomás mais estreitamente ainda: um sentimento análogo ao da mãe que se esforça por pôr o filho de sobreaviso contra os erros, por
lhe ensinar a arte de viver; com frequência, à noite, sentada
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junto dele e abraçando-o, ela dizia-lhe com ternura repassada de melancolia:
Ouve-me como uma irmã mais velha... Vivi, conheço
as pessoas... Vi muitas coisas na minha vida!. Pensa duas vezes antes de escolher os teus camaradas, porque há pessoas que são contagiosas como uma doença... Se
não distingues num só olhar que espécie de homem é -um homem como outro qualquer, pensas tu... - apanhas-lhe as enfermidades. Tem cuidado com as pessoas da minha
espécie - que a Mãe de Deus te guarde... Ainda és muito tenro, o teu coração não está endurecido. As mulheres são gulosas de rapazes como tu: és forte, bonito, rico...
Desconfia sobretudo das mais meigas: colam-se ao homem como sanguessugas, e mesmo a mais terna, a mais amável, colar-se-á a ti para te chupar o sangue até à última
gota. Beberá o melhor da tua força e não arriscará nada. É com a condição de não pagar nada que te arranhará o coração... Prefere aquelas que seguem o primeiro impulso,
como eu fiz, por exemplo. Essas vivem sem procurarem enriquecer...
Era efectivamente desinteressada. Em Perm, Tomás comprou-lhe vários enfeites novos e bugigangas. Ela ficou contente mas, depois de ter pensado, disse-lhe com certa
preocupação:
- Tu não olhas muito ao dinheiro... Tem cuidado, não vá o teu pai zangar-se contigo!... Eu, mesmo assim, mesmo sem nada... gosto de ti.
Logo de início lhe tinha dito que só o acompanharia até Kazan, onde tinha uma irmã casada. Tomás não acreditava que ela o deixasse, e quando, na véspera da chegada
a Kazan, ela lhe exprimiu a mesma decisão, ele entristeceu e pôs-se a implorar-lhe que o não abandonasse.
- Não estejas triste antes do tempo. Temos toda uma noite ainda, diante de nós. Quando nos despedirmos será então o momento de o lamentar, no caso de sentirmos desgosto.
Mas ele continuou a rogar-lhe que não o deixasse, e para acabar que pretendia casar com ela.
- Como tu vais depressa! - disse ela pondo-se a rir. - Casar-me contigo... nem perguntas se já tenho marido? Meu querido, como tu és engraçado! Querias-te casar?
Mas, repara, vês alguém casar com raparigas como eu? Terás amantes, vá... Casar-te-ás mais tarde, quando tiveres perdido algum desse fogo, quando te tiveres saciado
dos prazeres... terás então vontade de comer pão integral... então casarás. Já reparei que um homem saudável, para seu próprio sossego, não deve casar muito
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novo... não lhe bastaria uma só mulher e iria procurar outras... Para seres feliz deves casar no momento em que verifiques que uma só te basta.
Mas quanto mais ela falava mais Tomás insistia e teimava em não se querer separar dela.
- Ouve o que te vou dizer - retorquiu ela tranquilamente. - Se tens uma vela na mão e já não vês claro sem ela, o melhor que tens a fazer é atirá-la à água imediatamente,
assim não sentirás o cheiro desagradável e ela não te queimará os dedos...
- Não percebo o que queres dizer...
- Faz por perceber... Não me fizeste mal e eu não quero fazer-te mal a ti... Por isso vou-me embora.
É difícil dizer como esta discussão teria terminado, se não tivesse sido interrompida pelo acontecimento seguinte: em Kazan, Tomás recebeu um telegrama de Maiakine,
ordenando-lhe laconicamente: "Regressa imediatamente num barco de passageiros". O coração de Tomás apertou-se-lhe dolorosamente e algumas horas mais tarde, com os
dentes cerrados, pálido e mal disposto, estava na amurada de um vapor que se afastava do cais, e imóvel, sem pestanejar, olhava o rosto da sua bem-amada que se apagava
ao longe, juntamente com o cais e a margem. Pelágia agitava o lenço e continuava a sorrir, mas ele sabia que ela chorava. O peito da blusa russa de Tomás estava
húmido das suas lágrimas, elas tinham-lhe enchido o coração com uma angústia insuportável, fria e pesada. A silhueta da mulher diminuía cada vez mais como se se
fundisse no ar, mas Tomás, sem desviar os olhos, via-a e sentia que em lugar de se sentir inquieto pelo seu pai e triste por aquela mulher, uma nova sensação violenta
e corrosiva lhe nascia na alma. Não podia dar-lhe um nome, mas sentia-a próxima da indignação.
A multidão das pessoas no cais de embarque amalgamava-se numa mancha compacta, sombria e morta, sem rosto, sem forma, sem gestos. Tomás afastou-se da amurada e pôs-se
a caminhar de um lado para o outro, aborrecido.
Os passageiros conversavam ruidosamente e instalavam-se para tomar o chá, os criados circulavam pelos tombadilhos, colocavam mesinhas. Em baixo, algures na terceira
classe, uma criança ria, um acordeão gemia, o cozinheiro picava carne no cepo, a louça tilintava. Cortando as vagas, obrigando a espuma a jorrar e tremendo sob o
esforço, o enorme vapor vogava rapidamente contra a corrente... Tomás olhou as largas filas de vagas furiosas que desfilavam à popa e sentiu um desejo selvagem de
quebrar, de rasgar fosse o que fosse,
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de partir também ele assim com o peito contra a corrente e de esmagar a pressão contra o peito e os ombros...
- O destino! - pronunciou a seu lado uma voz rouca e fatigada.
Tomás conhecia essa palavra. A tia Anfissa tinha-a dado frequentemente em resposta às suas perguntas e essa palavra representava para ele uma força semelhante à
força de Deus. Lançou o olhar aos que conversavam: um deles era um velhinho, pequeno, arruivado, com bom aspecto; o outro, um pouco mais novo, tinha olhos grandes
e cansados, e usava uma barba negra dividida em duas pontas. O nariz grande e cartilaginoso e as faces caídas e amareladas, fizeram-no lembrar o seu padrinho Maiakine.
- É o destino! - repetiu e velho, retomando em tom convicto a exclamação do seu interlocutor, e num tom de escárneo. - Está na vida como o pescador no rio: lança
à nossa agitação um anzol bem iscado e o homem engole imediatamente o anzol com a boca ávida... Nesse momento ele arranca a presa da água e o homem debate-se no
solo; se se vir bem tem o coração dilacerado... É assim, meu caro senhor!
Tomás fechou os olhos, como se um raio de sol os tivesse perturbado e, abanando a cabeça, disse em voz alta:
- É exacto, absolutamente exacto!
Os dois homens que conversavam examinaram-no fixamente: o velho com um sorriso fino e inteligente, o homem dos olhos grandes, sem amenidade, com um olhar de viés.
Isso perturbou Tomás e, corando, afastou-se deles pensando no destino: perguntava a si mesmo porque tinha sido necessário que ele se lhe tivesse mostrado amigo,
fazendo-lhe o dom de uma mulher para imediatamente lhe arrancar das mãos esse presente com um movimento tão simples e ultrajante. Compreendeu que esse sentimento
confuso e devorador que trazia dentro de si era o rancor para com o destino que o tinha enganado. Tinha sido demasiado amimado pela vida para que pudesse aceitar
sem mais protestos a primeira gota de veneno numa taça que mal levara à boca. Passou as vinte e quatro horas da viagem sem dormir, pensando nas palavras do velho
e acalentando o seu ressentimento. Mas o ultraje não o conduziu ao abatimento ou à tristeza, despertava nele a cólera e o desejo de se vingar.
Ao chegar foi acolhido pelo padrinho. Começou a oprimi-lo com perguntas e este, piscando os olhos amarelados, declarou-lhe com ar agitado, logo que se instalou no
fiacre ao lado do sobrinho:
- O teu pai perdeu o juízo...
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- Bebe?
- Pior do que isso! Ficou completamente doido.
- Hem? Por Deus, explique-se!
- Tens de compreender: uma mulher surgiu ao lado dele...
- E então? - exclamou Tomás que se lembrava da sua Pelágia, e sentiu uma espécie de alegria.
- Colou-se a ele e suga-o...
- É uma meiguinha?
- Ela? Meiga como um incêndio... Setenta e cinco mil rublos que já lhe tirou do bolso, e não pesaram mais do que um monte de penas.
- Oh! oh! Quem é ela?
- A Sofia Médynski, a mulher do arquitecto...
- Meu Deus! Ela... não é possível... O meu pai poderia por acaso fazer dela sua amante? - perguntou Tomás com voz abafada perplexa.
O padrinho afastou-se dele com esgares cómicos e prosseguiu com ar apavorado:
- Mas tu, meu rapaz, também perdeste o juizo? com certeza que o perdeste! Arranjar uma amante aos sessenta e três anos... e por aquele preço! Que bicho te mordeu?
Ah, ah, quando eu contar isso ao Inácio...
E Maiakine ria, com um riso trémulo e soluçante que imprimia à sua barba de bode um tremor intermitente. Tomás levou um certo tempo a pôr o caso em pratos limpos.
Contra o seu hábito, o velho estava inquieto, excitado; a sua maneira de falar, sempre igual, era entrecortada; o seu relato era sublinhado por palavrões e escarros:
a pouco e pouco Tomás ficou mais ou menos a par do que se tratava. Tinha acontecido que Sofia Pavlovna Médynski, a mulher de um arquitecto muito rico, conhecida
de toda a cidade pelo seu zelo infatigável em pôr de pé toda a espécie de empresas de beneficência, tinha persuadido Inácio a sacrificar setenta e cinco mil rublos
para um albergue nocturno e uma biblioteca popular com sala de leitura. Inácio tinha dado o dinheiro e os jornais louvaram-no pela sua generosidade.
Tomás tinha visto mais do que uma vez essa mulher na rua; era pequena, e ele sabia que passava por ser uma das mais belas mulheres da cidade. Falava-se dela em maus
termos.
- Então é só isso? - exclamou Tomás no final do relato do padrinho. - E eu que pensava... Deus sabe o quê...
- Tu! Tu pensavas? - irritou-se subitamente Maiakine. - Não pensavas coisa nenhuma, pateta como és.
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- Que bicho lhe mordeu para se pôr a gritar? - admirou-se Tomás.
- Mas então, diz-me cá, setenta e cinco mil rublos não é uma soma, lá na tua opinião?
- É uma soma, claro! - disse Tomás após um momento de reflexão. - Mas ao meu pai não lhe falta dinheiro... Porque é que se meteu nisso?...
Jacob Tarassovitch voltou-se todo como se fosse feito de uma peça inteiriça, examinou com desprezo o rosto do jovem e perguntou-lhe com uma voz que parecia enfraquecida:
- És tu que falas assim?
- Quem havia de ser?
- Tolices! É a tua jovem tolice que fala, é o que é. Quanto à minha velha tolice - experimentada milhões de vezes pela vida - essa diz-te: Não passas ainda de um
cachorrinho, ainda é muito cedo para que te ponhas a levantar a voz.
Mesmo no passado, a língua demasiado viva do padrinho tinha muitas vezes encolerizado Tomás. Maiakine falava-lhe sempre num tom mais rude do que o utilizado pelo
pai, mas naquele momento o jovem sentiu-se profundamente vexado e com voz contida mas firme declarou:
- Fará melhor em não me insultar assim, sem razão. Já não sou uma criança, sabe muito bem.
- Que estás para aí a dizer? - exclamou Maiakine, erguendo as sobrancelhas ironicamente.
Tomás encolerizou-se. Olhou o velho de frente e martelou com voz de comando:
- Acabo de lhe dizer que não quero ouvir mais os seus insultos. Fui claro e basta.
- Humm!... Bem, bem... Então desculpa...
Jacob Tarassovitch apertou os olhos, mordiscou os lábios e, voltando as costas ao afilhado, ficou silencioso durante um momento. O fiacre enveredava por uma ruela
estreita; apercebendo o telhado da sua casa, Tomás, involuntariamente, inclinou para a frente todo o seu corpo, num sobressalto. Ao mesmo tempo, o padrinho perguntou-lhe
com um sorriso travesso e acariciador:
- Diz-me cá, tom: em que foi que tu afiaste os dentes? Hem?
- Acha-os mais agudos? - perguntou Tomás, alegre com a atitude do padrinho.
- Isso é evidente! E ainda bem, meu rapaz... ainda bem. O teu pai e eu temíamos que não viesses a passar de uma galinha choca. Então sabes beber vodka?
- Bebi algum...
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- Ainda é muito cedo!... Bebeste seco, hem?
- Porquê, seco?
- Era bom?
- Nem por isso!
- Bem, bem!... Nada disso é mau... Simplesmente, ainda és muito confiante e pronto a revelar todos os teus pecados ao primeiro pope que apareça. Pensa um pouco acerca
desse ponto. Não se deve agir sempre assim, meu rapaz... Segura a língua: assim não atrairás aborrecimentos. Não há dúvida: raramente o homem é sóbrio de língua.
Olha, chegámos... Tem cuidado, o teu pai não sabe que estás cá... Nem sei sequer se estará em casa.
Estava: pelas janelas abertas escapava-se até à rua o seu riso sonoro e um pouco rouco. O ruído do fiacre tinha-o feito olhar pela janela e ao ver o filho gritou-lhe
alegremente:
- Ah! ah! Já aí estás?
Uns instantes mais tarde, apertando com uma das mãos Tomás contra o peito, colocou-lhe a outra na fronte e, puxando para trás a cabeça do filho, olhou-lhe o rosto
com os olhos brilhantes e disse com satisfação:
- Estás mais moreno, mais forte... Bravo! Minha senhora, que lhe parece o meu filho?
- Nada mal! - ouviu-se pronunciar uma voz cristalina e acariciante.
Tomás olhou por cima do ombro do pai e eis o que viu: num canto da sala, encostada a uma mesa, estava uma mulher, pequena, com uma sumptuosa cabeleira loira; na
palidez do seu rosto os olhos escuros, as sobrancelhas finas, os lábios macios e vermelhos sobressaíam nitidamente. Por detrás da poltrona, uma grande trepadeira
de apartamento deixava pender as suas pesadas folhas dentadas sobre aquela cabeça dourada.
- Os meus cumprimentos, Sofia Pavlovna! - disse Maiakine com emoção. - Continua por acaso a arrancarmos contribuições, a nós, os pobres?
Tomás saudou-a com uma inclinação de cabeça, sem ouvir a resposta que ela dava a Maiakine nem o que lhe dizia o pai. A senhora olhava-o com atenção, sorrindo-lhe
amavelmente. A sua silhueta infantil, envolta numa fazenda escura, quase se confundia com o tecido carmezim da poltrona de onde pareciam irradiar as ondas douradas
dos cabelos e a palidez do rosto. Sentada nesse canto, sob as folhas verdes, parecia ao mesmo tempo uma flor e um ícone.
- Vê como ele olha para ti, Sofia Pavlovna, é uma águia, hem? - disse Inácio.
Os olhos dela apertaram-se, um frágil rubor iluminou-lhe
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as faces e ela soltou um riso semelhante ao tilintar de uma campainha de prata. Ao mesmo tempo levantou-se dizendo:
- Não quero perturbar o vosso encontro. Até depois. Quando passou, silenciosa, diante de Tomás, ele foi
envolvido pelo seu perfume e distinguiu-lhe a cor dos olhos, um azul-escuro e as sobrancelhas quase negras.
- O peixinho foi nadar para outras águas - disse Maiakine em voz baixa, seguindo-a com um olhar raivoso.
- Bem, conta-nos lá a tua viagem. Gastaste muito dinheiro na paródia? - mugiu Inácio, empurrando Tomás com uma pancada nas costas em direcção à poltrona onde pouco
antes estivera Sofia Médynski.
Tomás esquivou-se ao empurrão e foi sentar-se noutra poltrona.
- Uma bela mulherzinha, hem! - gracejou Maiakine, observando Tomás com um olhar finório. - Basta que fiques de boca aberta diante dela... e ela se encarregará de
te devorar até às entranhas.
Tomás teve um sobressalto e sem responder pôs-se a falar da viagem ao pai, no tom de quem fala de negócios. Mas Inácio interrompeu-o.
- Espera, vou-te servir um brande.
- Dizem que não paras de beber - disse Tomás com ar de reprovação.
Inácio olhou-o com um olhar admirado e curioso, e perguntou:
- Diz-me cá, é nesse tom que se fala a um pai? Tomás caiu em si e baixou a cabeça.
- Ora vejam como ele é! - prosseguiu Inácio, bem disposto, e chamando para que viessem servir-lhes a bebida.
Maiakine, com os olhos franzidos, contemplou os dois Gordeiev, suspirou e despediu-se, saindo depois de os ter convidado a irem tomar chá com ele, à tarde, na estufa
onde cultivava morangos.
- Onde está a tia? - perguntou Tomás, que agora, sozinho com o pai, se sentia de repente pouco à vontade.
- Foi ao convento... Mas conta-me o que fizeste... durante esse tempo irei bebendo...
Tomás falou de negócios durante alguns minutos e concluiu o seu relato com esta confissão sem disfarces:
- Gastei dinheiro com as minhas fantasias... muito...
- Quanto?
- Mais ou menos... seiscentos rublos...
- Em mês e meio? Isso não é nada... Vejo que me ficas caro como caixeiro viajante... Por onde é que os semeaste?
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- Dei trezentas libras de grão...
- A quem? Como?
Tomás contou como as coisas se tinham passado.
- bom, não tem importância - aprovou o pai - Foi pelo prestígio: "Aí está como nós somos". Compreende-se perfeitamente, era pela honra do teu pai, pela honra da
firma... Não é uma perda porque se tirará disso um bom reclame... claro, meu rapaz, é a melhor publicidade para uma casa comercial... E o resto?
- Bem... Foi assim... Gastei-o.
- Fala com franqueza... Não é sobre o dinheiro que te interrogo, quero saber a vida que levaste - insistia Inácio observando atentamente e severamente o filho.
- Comi... bebi... - teimava Tomás, inclinando a cabeça com ar amuado e pouco seguro.
- Bebeste? Vodka?
- Vodka também...
- Ah! Não te parece que ainda és muito novo para isso?
- Pergunta ao lefime se bebi até estar bêbedo...
- Para quê perguntar ao lefime? Deves dizê-lo tu mesmo. Portanto, começaste a beber, pelo que vejo!
- Também posso não beber.
- Vejam isto! Queres um brande?
Tomás olhou para o pai e sorriu abertamente. Este respondeu com um sorriso franco.
- Eh, patifório! Bebe, mas cuidado, é preciso não perder a cabeça... Não esqueças, curamo-nos da bebedeira, mas da tolice nunca... Recorda isso para te consolares...
E com raparigas, divertiste-te? Vá, fala francamente! Não te vou bater por isso.
- Diverti-me, sim... Havia uma no barco... Levei-a de Perm até Kazan.
- bom... - Inácio soltou um profundo suspiro e, com um rosto carrancudo, disse: - Não perdeste o tempo, meu malandro.
- Tenho vinte anos... Disseste-me que no teu tempo os rapazes casavam aos quinze anos - retorquiu o filho, perturbado.
- Nesse tempo casavam-nos. bom, voltaremos a falar nisso... Estiveste com uma mulher, e então? As mulheres são como o sarampo, não se lhes pode escapar... Não serei
eu que vá fingir de hipócrita acerca disso... comecei mais cedo do que tu a andar atrás das raparigas. Mas apesar disso tudo recomendo-te: tem cuidado com elas.
Inácio pôs-se a cismar e ficou muito tempo sem dizer palavra, sem um movimento, de cabeça baixa.
- Falemos claro, Tomás - de repente falava num tom firme e austero - não tardarei muito a morrer...
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Estou velho. Tenho o peito oprimido, respiro com dificuldade... estou a caminho da morte. Nessa altura todo o negócio vai repousar sobre os teus ombros... bom, no
início o teu padrinho ajudar-te-á, ouve os seus conselhos. Já começaste... não foi mal... fizeste tudo como devia ser... seguraste as rédeas. Deus queira que faças
sempre assim no futuro... Nunca te esqueças do seguinte: os negócios são como animais selvagens vivos e violentos, para os conduzir é necessário ter o jeito, manter
solidamente as rédeas, de outro modo são eles que nos montam... Tenta dominar os negócios... para isso coloca-te de modo a que eles estejam sempre debaixo de ti,
sob os teus olhos, para que possas ver o menor dos seus desvios.
Tomás olhava o largo peito do pai, ouvia-lhe a voz espessa e pensava:
- Ora, tu não estás para morrer!
Esse pensamento dava-lhe prazer e despertava nele um caloroso sentimento de afecto pelo velho.
- Faz como o teu padrinho... A inteligência que ele tem na cachimónia bastava para toda a cidade. O que lhe falta é a audácia, sem isso teria ido muito longe. É
como te digo, não me resta muito tempo... Está na hora de me preparar para a morte. Devia pôr tudo de lado, viver piedosamente, e preocupar-me apenas em levar as
pessoas a rezarem pela minha salvação.
- Todos o farão - assegurou Tomás.
- Era preciso fazer qualquer coisa para isso.
- E esse albergue nocturno?
Inácio lançou um olhar ao filho e pôs-se a rir.
- O Jacob disse-te, ele não perde o seu tempo. Tratou-me mal, aposto.
- Alguma coisa, isso é verdade - sorriu Tomás.
- Bem, não importa. Eu conheço-o bem.
- Falou disso exactamente como se o dinheiro fosse dele.
Inácio reclinou-se para trás na sua poltrona e soltou uma gargalhada ainda mais sonora.
- Ah, o velho corvo! És tu quem tem razão. Para ele, o seu dinheiro ou o meu é a mesma coisa, é por isso que lhe dói... Ele tem lá a sua ideia, por debaixo da careca...
Vê se adivinhas qual é... Hem! Qual?
Tomás reflectiu e confessou:
- Não sei.
- Ora, ora, pensa! Ele quer reunir os nossos dois mealheiros.
- Como?
- Adivinha. Não é difícil.
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Tomás olhou para o pai... e adivinhou. O rosto fechou-se-lhe, endireitou-se na poltrona e disse resolutamente
- Não, não quero! Não casarei com ela.
- Oh! Então? É uma rapariga saudável, nada tola, filha única.
- E Taras? O que desapareceu?
- Desapareceu, desapareceu! Não vale a pena falar disso... Há um testamento em que se diz "Todos os meus bens móveis e imóveis irão para a minha filha Luba". Quanto
ao facto de ela ser filha do teu padrinho, isso arranjar-se-á.
- De qualquer modo - repetiu Tomás - não casarei com ela!
- bom, é cedo para se falar nisso... No entanto, que fez ela para te desagradar tanto?
- Não gosto daquele género da rapariga...
- Olha, olha! E diga-me cá, meu caro senhor, se faz favor, qual é o género que tem o seu gosto?
- Aquelas que são mais simples... Ela, com os seus colegas de estudos e os seus livros, agora é uma sábia. Rir-se-ia de mim... - respondeu Tomás com arrebatamento.
- Admitamos, é verdade que ela é esperta, talvez demasiado... Mas isso não tem importância... Qualquer patarata se pode pulir, é uma questão de se aplicar a fundo...
Mas o teu padrinho, esse é um velho sábio... A sua vida foi tranquila, sedentária, e apesar de ter ficado sempre no mesmo sítio, ou talvez por isso, ele reflectiu
sobre tudo... Acredita, meu rapaz, vale a pena ouvi-lo, ele vê o verso e o reverso de qualquer negócio... É um "aristocrata" e vem do tempo da nossa avó Catarina...
Compreende muitas coisas... E como a sua descendência lhe foi arrancada com Taras, ele decidiu pôr-te no lugar de Taras, estás a perceber?
- Não! Eu escolherei o meu lugar sozinho - teimou Tomás.
- Ainda és um tolo - gracejou o pai.
A entrevista foi interrompida pela chegada da tia Anfissa.
- tom! Estás cá! - gritava ela do outro lado das portas.
Tomás levantou-se e foi ao seu encontro com um sorriso de ternura... De novo a sua vida começou a decorrer como antes, lenta e monótona. Mantendo embora nas suas
relações com o filho o tom de ironia simpática e encorajante, o pai adoptou a seu respeito uma atitude mais severa, fazendo-lhe observações a propósito
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de tudo, lembrando-lhe com frequência cada vez maior que o tinha educado numa atmosfera de liberdade, que não o tinha obrigado a nada, que nunca lhe tinha batido.
- Há pais que desancam os filhos à paulada, eu nunca te toquei com um dedo.
- Claro, também não havia motivo - declarou um dia Tomás, sem se perturbar.
Inácio irritou-se com essa réplica e com o tom em que foi pronunciada.
- Ora repete isso! - rugiu ele. - Tornaste-te refilão porque tenho a mão macia. Tens resposta para tudo. Mas tem cuidado porque posso transformar a mão num punho
tão duro que te fará vir as lágrimas dos calcanhares. Cresceste depressa, és como um mau cogumelo, mal saiu da terra e já cheira mal...
Quando o pai recobrou a boa disposição, Tomás, perplexo, perguntou-lhe:
- Porque é que te encolerizas?
- E tu, não podes suportar que o teu pai te ladre um bocado? Tens de começar logo a discutir?
- Mas é uma coisa vexatória... Eu não sou agora pior do que antes.
- A cabeça não te cairá dos ombros, se te ralhar uma vez por outra. E se te ralho é porque vejo em ti alguma coisa que não é meu... Ignoro o que é, mas vejo bem
que existe... E isso far-te-á mal.
Essas palavras levaram Tomás a uma profunda reflexão. Sentia em si, também ele, algo de particular que o distinguia dos rapazes da sua idade, mas de que ele não
podia compreender a natureza. E começou a vigiar-se a si mesmo com desconfiança...
Agradava-lhe estar na Bolsa, entre o ruído e as conversas de homens sólidos que tratavam negócios de vários milhares de rublos; o respeito com que esses homens ricos
o saudavam, lhe falavam, a ele Tomás Gordeiev, agradava-lhe. Sentia-se feliz e orgulhoso se, por acaso, conseguia pelos seus próprios meios arranjar alguma coisa
nos negócios do pai e merecer da parte dele um sorriso de aprovação. Agia muito por impulso de amor-próprio para parecer um homem adulto e sério, mas, tal como no
passado, a sua vida era solitária e não sentia a necessidade de ter amigos, embora encontrasse todos os dias vários filhos de comerciantes que eram da sua idade.
Mais do que uma vez eles o tinham convidado para as suas borgas, mas ele tinha recusado brutalmente e com desdém; tinha mesmo gracejado:
- Tenho medo... Se os vossos pais ouvem falar
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dessas paródias e se vos dão uma tareia, arrisco-me a apanhar a minha parte dessas sovas.
O que lhe desagradava era que aquelas saídas e os seus bródios se fizessem às escondidas dos pais, graças a dinheiro tirado à caixa paterna ou pedido a juros com
taxas elevadas. Tambsém eles não o apreciavam por causa da sua circunspecção, em que sentiam uma altivez que os ofendia.
Muitas vezes lhe vinha à memória a imagem de Pelágia. No início, quando ela se lhe acendia no espírito, ficava melancólico... Mas o tempo passou, diluindo pouco
a pouco as cores vivas dessa evocação e, insensivelmente, tomou lugar nas suas fantasias a pequena e angélica Sofia Médynski. Quase todos os domingos ela passava
por casa de Inácio para lhe expor toda a espécie de pedidos que, todos, tendiam a um único fim: apressar a construção do albergue. Na presença dela Tomás sentia-se
acanhado, enorme, grosseiro; isso vexava-o e corava sob o olhar terno dos grandes olhos de Sofia Pavlovna. De cada vez que ela o olhava tremia ligeiramente e torcia-se
de um modo imperceptível, mostrando os pequenos dentes brancos; ele notava-o e isso apavorava-o sempre. O pai, que tinha surpreendido o modo como Tomás a olhava,
disse-lhe:
- Não gastes muito a vista a olhar para aquela figura. Tem cuidado, ela é como o carvão de madeira de bétula: por fora parece apagado, tão liso e negro se apresenta...
Mas pega-lhe com a mão e terás uma queimadura.
Sofia Médynski não despertava em Tomás nenhum impulso sentimental, nada que se parecesse com o caso de Pelágia, e no fundo não a compreendia. Sabia que existiam
boatos infamantes a respeito dela mas não lhes dava qualquer crédito. No entanto mudou de atitude a partir do dia em que a viu numa caleche ao lado de um gordo fidalgote
de chapéu cinzento com cabelos compridos até aos ombros. Tinha um rosto vermelho e inchado como uma bola de criança; não tinha barba nem bigodes, e o aspecto geral
era o de uma mulher disfarçada... Disseram a Tomás que era o marido dela... Então surgiram nele sentimentos obscuros e contraditórios: tinha vontade de ultrajar
o arquitecto e experimentou a respeito dele um ciúme e uma estima simultâneas. A senhora Médynski pareceu-lhe menos bela e mais acessível; teve pena dela e no entanto
pensou com alegria maldosa:
- Que nojo deve sentir, provavelmente, quando ele a beija...
Por detrás de tudo isso acontecia-lhe sentir em si mesmo um vazio insondável e enfastiado que nem as
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impressões do quotidiano nem as recordações de outrora cumulavam; a Bolsa e os negócios e as reflexões sobre Sofia Médynski eram aspiradas por esse vácuo... Preocupava-se
com isso: na profundidade obscura dessa fenda, suspeitava a presença dissimulada de uma força hostil, ainda indeterminada, mas que já, com prudência e teimosia,
tentava tomar forma.
Entretanto Inácio, embora pouco mudado na aparência, tornava-se cada vez mais inquieto e resmungão, lamentava-se com maior frequência de que sentia todo o corpo
doente.
- Perdi o sono... Dantes dormitava e podiam-me escorchar vivo que nem dava por isso. Agora volto-me para um lado, volto-me para o outro, e só consigo adormecer lá
para a manhã. O coração bate sem ritmo umas vezes como que irritado, outras vezes assim toc-toc-toc... e outras vezes fica de repente como se tivesse parado, parece
que acabou de se soltar e que caí até ao fundo das entranhas... Meu Deus, que a Vossa bondade me proteja.
Suspirando de contrição erguia para o céu olhos já embaciados, já privados do brilho da vida e da inteligência.
- A morte está por aí à minha espreita, muito perto
- dizia ele com um tom aborrecido mas submisso.
E efectivamente ela não tardou a prostrar aquele grande corpo poderoso.
Isso aconteceu de manhã cedo, num dia de Agosto. Tomás dormia profundamente; de súbito acordou, sacudido pelos ombros, enquanto uma voz rouca gritava ao seu ouvido:
- De pé...
Abriu os olhos e apercebeu o pai sentado na cadeira junto da cama pronunciando surdamente:
- De pé, de pé, levanta-te!...
O sol começava a romper e a sua luz, batendo na camisa branca de linho de Inácio, ainda não tinha perdido o tom rosado.
- Ainda é muito cedo - disse Tomás espreguiçando-se.
- Dormirás depois, a sono solto...
Gozando preguiçosamente o conforto dos lençóis, Tomás perguntou:
- Há necessidade de alguma coisa?
- Levanta-te rapaz, já te disse - gritou Inácio com um tom indignado. - Claro que há necessidade de alguma coisa uma vez que te acordo...
Tomás olhou para o pai e viu então que ele estava violáceo e descomposto.
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- Sentes-te mal? vou chamar o médico.
- Não penses nisso - pronunciou Inácio com voz desiludida, acompanhando-a com um gesto de mão resignado. - Já não sou novo, já não tenho necessidade dele para saber...
- Saber o quê?
- Oh! Aquilo que sei! - acrescentou misteriosamente o velho, parecendo examinar o quarto com um olhar estranho.
Tomás vestiu-se enquanto o pai, com a cabeça pendente, dizia com lentidão:
- Tenho medo de respirar... Tenho a impressão de que se soltar um suspiro mais fundo o coração me rebentará no peito... Hoje é domingo. Depois da missa da manhã
é preciso ir chamar o pope.
- Que ideias são essas, pai? - perguntou Tomás, rindo.
- Nada, eu... Lava-te e vai para o jardim... Pedi que levassem para lá o samovar... O jardim está fresco... assim tomaremos lá o chá... Tenho vontade de chá... um
chá forte, quente...
O velho levantou-se pesadamente da cadeira e com passos pouco seguros, os pés descalços, curvado para a frente, saiu do quarto. Tomás seguiu-o com os olhos, um frio
penetrante apertou-lhe o coração. Arranjou-se rapidamente e foi para o jardim.
O pai estava sentado num grande cadeirão de castanho, junto de uma velha macieira de vasta e possante ramagem. A luz do sol caía em finas résteas através da folhagem
na branca silhueta do velho em camisa de noite. No jardim o silêncio era tão imponente que mesmo o frémito de um ramo que Tomás roçou por descuido pareceu-lhe ser
um ruído violento que o fez sobressaltar. O samovar colocado na mesa ronronava como um gato satisfeito e lançava para o ar nuvens de vapor. Na calma e fresca verdura
do jardim, lavado na véspera por uma chuva abundante, a mancha brilhante do cobre insolentemente radioso e sonoro pareceu a Tomás um elemento supérfluo, mal acordado
ao momento, ao local, assim como ao sentimento que nascia nele à vista daquele velho doente, curvado em dois, vestido com a sua camisa de noite, solitariamente sentado
sob o docel verde-escuro das folhas em que se escondia modestamente a vermelhidão das maçãs.
- Senta-te - disse Inácio.
- Não seria melhor mandar chamar o médico - aconselhou o filho, hesitando, sentando-se em frente dele.
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- Não vale a pena... Parece que com o ar livre me sinto melhor... vou beber o chá.
Mas Tomás viu o bule tremer-lhe na mão.
Retomando o seu copo em silêncio, Tomás inclinou-se e, com um aperto do coração, escutou a respiração arquejante e rápida do pai.
Subitamente a mesa estremeceu com uma pancada tão brutal que a loiça tilintou.
Tomás sobressaltou-se, ergueu a cabeça e cruzou o olhar apavorado, quase demente, do pai. Inácio olhou o filho e balbuciou com voz rouca
- Foi uma maçã que caiu... maldita porcaria. Palavra, foi como um tiro, hem?
- Devias pôr um pouco de brande no teu chá.
- Assim está bem.
Calaram-se. Um voo de canários passou por cima do jardim deixando um rasto da alegria provocante dos seus trinados. E de novo um silêncio solene estreitou a bela
maturidade do jardim. O olhar assustado não se apagava porém do rosto de Inácio.
- Meu Deus e Senhor Jesus Cristo - pronunciava ele em voz baixa persignando-se com fervor. - Ah, sim... ela está diante de mim... a última hora da minha vida...
- Não digas isso, papá! - gaguejou Tomás.
- Não digo, porquê?... Vamos beber o nosso chá e depois vais chamar o pope e o teu padrinho.
- Seria melhor ir agora.
- Agora vai tocar para a missa e não encontras o pope... De resto não há razão para pressas, pode ser que isto ainda passe.
Pôs-se a sorver com grande ruído o chá que vertera no pires.
- Seria bem preciso que eu vivesse mais um ano ou dois... És muito novo... Tenho medo, por ti! Vive com firmeza e com honestidade... Não invejes os bens dos outros
e defende os teus com energia...
Tinha dificuldade em falar, parou e esfregou o peito com a mão.
- Não te fies nas pessoas... não esperes delas grande coisa... Todos vivemos para tomar e não para dar... Meu Deus, tende piedade deste pecador.
Algures, ao longe, um espesso som de sino caiu no silêncio da manhã. Inácio e o filho benzeram-se com um triplo sinal da cruz...
Ao primeiro apelo do bronze respondeu um segundo, um terceiro, e em breve os piedosos sons encheram o ar, majestosos, medidos, trazendo de todos os lados o seu ruidoso
convite...
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- Aí está a missa a tocar - disse Inácio apurando o ouvido ao zumbir dos bronzes... És capaz de reconhecer os sinos, pelo toque?
- Não - respondeu Tomás.
- Olha, este, estás a ouvi-lo, tão baixo, é o de São Nicolau e do mártir São Pedro... e aquele, que parece rouco, é o do Crucifixo...
As vagas sonoras saídas dos campanários faziam vibrar o ar que saturavam, e diluíam-se no céu azulado. Tomás olhava pensativamente o rosto do pai e viu o espanto
desaparecer-lhe dos olhos; as pupilas recobravam a vida...
Mas subitamente as faces do velho tornaram-se de um vermelho sombrio, os olhos arregalaram-se e exorbitaram, a boca abriu-se, admirada, e da garganta escapou-se-lhe
um ruído estranho e sibilino:
- F... f... ah!...
Logo a seguir a cabeça de Inácio descaiu para o ombro e o pesado corpo deslizou lentamente para o chão, como se a terra o tivesse atraído. Tomás ficou alguns segundos
imóvel e mudo, a fixar o pai com um olhar assustado e incrédulo, depois lançou-se para ele, levantou-lhe a cabeça e olhou-lhe o rosto. A pele estava terrosa, as
faces sem movimento e os olhos muito abertos não tinham qualquer expressão: nem dor, nem medo, nem alegria... Tomás olhou à sua volta: tal como no momento anterior
não havia ninguém no jardim e no ar continua a planar a linguagem dos sinos... As mãos de Tomás começaram a tremer, deixaram cair a cabeça do pai que se chocou contra
o solo com um ruído surdo. Um sangue escuro e viscoso começou a correr em fio da boca para a face violácea...
Tomás bateu no peito com as mãos e, ajoelhado diante do cadáver, soltou um grito selvagem e desesperado... Sacudido pelo pavor, com olhos loucos, continuava a procurar
alguém na verdura do jardim.
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IV
A morte do pai entonteceu Tomás e encheu-o de uma estranha sensação: a sua alma afogou-se em silêncio, um silêncio pesado e imóvel que submergia molemente todos
os ruídos da vida. À sua volta as relações agitavam-se, apareciam, desapareciam, diziam-lhe alguma coisa a que ele respondia, mas sem que esses discursos tivessem
despertado nele a menor representação: afundavam-se a pique sem deixar rasto no abismo insondável do silêncio mortal que lhe tinha invadido o ser. Não chorava, não
sofria de qualquer angústia, não pensava em nada: taciturno, pálido, com as sobrancelhas franzidas, prestava uma atenção intensa a esse silêncio que lhe tinha aspirado
todos os sentimentos, esvaziado o coração e encerrado o cérebro como num torniquete.
Maiakine organizou as exéquias. Activo e expedito, passava a correr de uma sala para outra, os tacões das botas tocavam no solo com um ruído nítido, a sua voz apressava
a criada com autoridade de patrão, batia no ombro do afilhado e consolava-o:
- Meu rapaz, pareces de pedra! Porquê? O teu pai era velho. O corpo estava cansado... A morte espera-nos a todos, não se lhe escapa. Por consequência, não convém
morrer antes do tempo... A tua tristeza não o ressuscitará e o teu afecto não lhe serve de nada porque está escrito: "Quando a alma se separa do corpo e sobe a apresentar-se
diante dos anjos do Céu, esquece todos os seus amigos e parentes". Isso quer dizer que agora, quer chores ou não, não significas nada para ele... Mas que aquele
que está em vida tome conta do que está em vida... É melhor que chores, é humano... é um grande alívio para o coração...
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Mas também essas palavras não tocavam qualquer ponto sensível, quer na cabeça, quer no coração de Tomás. Saiu do seu espanto imóvel no dia dos funerais, graças à
insistência do padrinho, que punha todo o seu zelo e toda a sua originalidade a tentar despertar-lhe a energia abatida.
No dia do enterro, o tempo esteve sombrio e o céu coberto de nuvens. Numa nuvem de poeira espessa movia-se uma multidão enorme, líquida, atrás do caixão; o ouro
dos paramentos litúrgicos brilhava sobre o clero, o ruído surdo da sua lenta marcha fundia-se com a melodia solene do coro dos cantores episcopais. Empurravam Tomás
de todos os lados; ele avançava sem ver nada a não ser a cabeça grisalha do pai, e a salmodia desolada despertava no seu peito um eco doloroso.
Mas Maiakine, que caminhava a seu lado, importuno e incansável, murmurava-lhe ao ouvido:
- Repara, quantas pessoas... são milhares. O próprio governador veio acompanhar o teu pai... o administrador... quase toda a vereação da Câmara... e atrás de ti,
repara, a Sofia Pavlovna! A cidade quis honrar Inácio.
A princípio Tomás não prestava qualquer atenção ao cochichar do padrinho, mas quando este se referiu a Sofia Médynski voltou-se e apercebeu o governador. Uma fina
gota de prazer se instalou nele ao ver esse homem importante, ornado com uma larga fita e o peito medalhado de condecorações, caminhar atrás do caixão, com o rosto
austero marcado pela tristeza.
- Feliz a via na qual a tua alma se lança hoje - entoou suavemente Jacob Tarassovitch franzindo o nariz.
E de repente cochichou ao ouvido do afilhado:
- Setenta e cinco mil rublos. Por esse dinheiro tinha-se o direito de exigir um cortejo duas vezes mais numeroso do que este... Ouviste dizer que a Sofia organiza
a colocação da primeira pedra para a Quaresma?
Tomás voltou-se mais uma vez e o seu olhar cruzou-se com o da senhora Médynski. Esse olhar cheio de ternura fê-lo soltar um suspiro e instantaneamente sentiu-se
aliviado como se um raio de sol ardente lhe tivesse penetrado na alma e algo de maciço se tivesse posto a fundir ao contacto desse calor. Ao mesmo tempo reparava
na inconveniência que cometia voltando a cabeça para um lado e para o outro.
Na igreja, a alma de Tomás saciou-se com a solenidade tenebrosa dos hinos litúrgicos e, quando ressoou o emocionante convite: "Aproximemo-nos, dêmos ao defunto o
último beijo", um soluço gemido escapou-se-lhe do peito
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tão ruidosamente que a multidão oscilou perante esse grito de dor.
Após esse grito, as pernas dobraram-se-lhe. Imediatamente o padrinho sustentou-o, segurando-o por debaixo dos braços, e pôs-se a bater no caixão, entoando com voz
bastante forte e um pouco frenética:
- Ve-enham dar um beijo àquele que outrora era dos nossos. Beija-o, Tomás, beija-o. Será entregue ao túmulo, será coberto por uma pedra... Habitará as trevas, será
sepultado com os mortos...
Tomás aflorou com os lábios a fronte do pai e, apavorado, lançou-se violentamente para trás, para longe do caixão.
- Devagar! Podias ter caído... - observou-lhe Maiakine, e essas palavras simples e tranquilas sustentaram Tomás mais firmemente do que o abraço do padrinho.
Vós que me olhais, deitado diante de vós, privado da palavra e da respiração, chorai por mim, irmãos e amigos... - implorava Inácio pela boca da Igreja.
Mas o filho já não chorava: o rosto escuro e enternecido do pai tinha-o apavorado e esse pavor tinha curado a embriaguez da sua alma inebriada pela melodia nostálgica
das lamentações da Igreja sobre o seu filho pecador. Cercavam-no amigos, consolando-o com ar enternecido e compenetrado; ouvia-os e compreendia que todos o lamentavam
e se punham a estimá-lo. Mas o padrinho cochichou-lhe ao ouvido:
- Vê como eles te adulam... Os gatos cheiram o toucinho...
Estas palavras desagradaram a Tomás, mas foram-lhe úteis forçando-o a corresponder-lhes interiormente de uma maneira ou de outra.
No cemitério, enquanto se cantava o "In Memoriam", recomeçou a soluçar amarga e ruidosamente. O padrinho agarrou-o imediatamente por um braço e afastou-o do túmulo
para lhe dizer com convicção.
- És pouco corajoso, irmão! Também eu me sinto infeliz, eu conhecia o seu verdadeiro valor, ao passo que tu és apenas seu filho. No entanto não choro... Vivemos
estreitamente ligados por uma amizade do mais fundo das almas durante mais de trinta anos. Quantas coisas dissemos e pensamos juntos... quantos desgostos suportamos
em conjunto!... És novo, não és tu que te deves afligir. Tens toda a vida diante de ti e serás rico com todas as espécies de amizades. Mas eu sou velho... e enterraram
o meu único amigo; daqui em diante serei como um mendigo... Agora não terei outro companheiro para aliviar a minha alma.
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A voz do velho tremia e enrouquecia estranhamente. O rosto torcia-se-lhe, os lábios crispavam-se e tremiam numa careta, as faces enrugadas franziam-se e, caídas
dos seus olhos pequenos, corriam lágrimas, finas e apressadas. Era tão dolorosamente emocionante, tão diferente dele próprio, que Tomás parou, apertou-o contra si
com a ternura de um forte e exclamou com voz alarmada:
- Não chore, querido padrinho, não chore...
- Já acabou, já acabou! - pronunciou fràgilmente Maiakine, e, depois de um pesado suspiro, voltou rapidamente a transformar-se num velho homem sólido e inteligente.
- Não se deve deixar sair as lágrimas - disse ele misteriosamente instalando-se na caleche ao lado do afilhado. - Eis-te agora comandante de exército no campo de
batalha; deves comandar com galhardia os teus soldados. E os teus soldados são rublos e tu tens um gra-ande exército. Conduz a tua guerra sem quartel.
Tomás, admirado com a rapidez daquela metamorfose, ouvia aquelas palavras que lhe eram como uma recordação das pancadas dadas no caixão de Inácio pelos punhados
de terra que as pessoas tinham atirado para a cova.
- O teu pai disse-te que eu era um velhote inteligente e que me devias ouvir?
- Sim, disse...
- Obedece-lhe. Se a minha inteligência se une à força da tua juventude podem-se obter grandes vitórias... O teu pai era um grande personagem mas tinha vistas curtas
e não tinha espírito para seguir os meus conselhos. Na sua vida triunfou, não pelo bom senso, mas pelo seu ardor. Oh, que irás tu dar?... Anda até minha casa; na
tua, sozinho, não te sentirás bem...
- Está lá a minha tia...
- A tua tia, arrasta-se... já não tem também muito muito tempo para andar nesta terra...
- Não fale disso! - implorou Tomás.
- Não, não, voltarei a falar disso. Não tens nada a temer da morte, não és uma velha aninhada junto da lareira. Vive a tua vida sem temor e cumpre a tua missão.
O homem é destinado a organizar a vida sobre a terra. O homem é um capital... como o rublo, é feito de cêntimos de cobre e de copeques. Saiu do barro, diz-se...
Mas à medida que toma forma em vivo impregna-se de gordura e de toucinho, de suor e de lágrimas; nasce nele uma espécie de alma e uma espécie de espírito. A partir
daí ele começa a crescer para o alto e para baixo... agora
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vale um cêntimo, logo uma moeda de prata, depois uma centena de rublos... às vezes está mesmo acima de qualquer avaliação... Posto em circulação, deve trazer um
lucro à vida. A vida sabe o que todos nós valemos e não é ela que interromperá a nossa marcha antes do tempo... Ninguém, meu rapaz, trabalha para perder, a não ser
que seja tolo... Estás a ouvir-me?
- Estou.
- E que compreendestes tu daquilo que eu disse?
- Tudo...
- Estás a mentir, hem? - fez Maiakine com um tregeito de dúvida.
- Mas porque é que ele havia de morrer? - interrogou Tomás em voz baixa.
O padrinho encarou-o com um olhar de compaixão, fez estalar os lábios e disse:
- Eis o que um homem inteligente nunca pergunta. Um homem inteligente vê imediatamente que se se trata de um rio ele corre para qualquer parte, porque se estivesse
parado seria então um pântano...
- A sua piada soa a falso... - disse Tomás aborrecido. - O mar não corre para parte nenhuma...
- Recebe todos os rios... e há nele violentas tempestades. O mar da vida humana nutre-se de agitação, mas a morte renova-lhe as águas... para que elas não apodreçam...
Os homens podem morrer... há sempre cada vez mais.
- Para que serve isso? O pai morreu...
- Também tu hás-de morrer.
- Nesse caso de que me serve que haja cada vez mais gente na terra? - disse tristemente Tomás.
- Claro, não serve para nada a ninguém... Possivelmente as tuas calças também raciocinam assim. Que importa que haja no mundo toda a espécie de fazendas, em quantidades
enormes? Mas tu não as ouves, usa-las e deita-las fora.
Tomás olhou o padrinho com um olhar cheio de censuras e, vendo o velho sorrir, admirou-se e perguntou respeitosamente:
- Padrinho, é possível que o senhor não tenha medo da morte?
- Eu, meu rapaz, o que temo acima de tudo é a tolice - respondeu Maiakine com uma humildade envenenada. - Ò que penso é isto: se um louco te oferece mel, cospe-lhe
em cima, se um sábio te dá veneno, engole-o! Dir-te-ei mais isto: bem fraca é a alma do ouriço se ele não é capaz de eriçar os picos...
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O tom irónico do velho feriu Tomás e enraiveceu-o. Afastou-se e disse:
- Não pode falar sem esses desvios subtis com que foge às respostas?
- Sou incapaz disso - exclamou Maiakine, e a inquietação pôs-se a brilhar nos seus olhos. - Cada um fala com a sua própria língua. Pareço-te severo? É isso, hem?
Tomás manteve-se em silêncio.
- Ouve com atenção... O que tu deves saber é que aquele que ama é aquele que ensina. Aprende isso por uma vez... E quanto ao assunto da morte, não penses nisso...
Para um vivo, pensar na morte é loucura... Ò Eclesiastes reflectiu sobre isso melhor do que ninguém, reflectiu e disse que mesmo um cão vivo vale mais do que um
leão morto...
Chegavam a casa. Toda a rua, diante da moradia, estava atravancada de equipagens e das janelas abertas saía um forte rumor. Desde que Tomás apareceu na sala, agarraram-no
pelo braço e conduziram-no para a mesa coberta de hors-d'oeuvre, exortando-o a comer e a beber. Na sala havia tanto barulho como no mercado; as pessoas comprimiam-se,
havia dificuldade em respirar. Tomás esvaziou sem dizer uma palavra, um, dois, três copos de vodka... À sua volta havia um rumor feito de mastigações, de estalidos
de lábios, de glu-glus de vodka ao sair das garrafas, de tilintar de copos... Falava-se de filetes de esturjão e da oitava do solista do coro episcopal, depois voltava-se
ao filete de esturjão, dizia-se que o presidente da Câmara tinha querido fazer também um discurso mas que não se tinha podido decidir, depois do do bispo, temendo
ser-lhe inferior. Alguém relatava com ternura:
- O defunto fazia assim: cortava uma pequena fatia de salmão, punha-lhe pimenta abundantemente, cobria-a com outra fatia, e, depois de um copo, engolia aquilo tudo.
- Si-igamos o seu exemplo - mugiu uma voz de baixo profundo.
Tomás, aborrecido, ultrajado na sua sensibilidade, olhava os lábios grossos e maxilares que esmagavam os saborosos pitéus; tinha vontade de se pôr a gritar e de
lançar pela porta fora todas aquelas pessoas cuja solidez tinha despertado nele, ainda há pouco, um sentimento de respeito.
- Sê um pouco mais simpático, um pouco mais falador - dizia-lhe Maiakine, que acabava de aparecer a seu lado.
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- Porque é que comem assim? Pensarão que estão numa taverna?
- Chut! - observou Maiakine com terror, lançando rapidamente um olhar à sua volta, arvorando um Sorriso amável.
Mas era demasiado tarde, o seu sorriso não foi de nenhum socorro. As palavras de Tomás tinham sido ouvidas; o ruído e as conversas baixaram de tom, certos convivas
foram tomados por uma agitação precipitada, outros, ofendidos, franziram os sobrolhos, pousaram garfos e facas e afastaram-se da mesa; vários olhavam para Tomás
de esguelha.
Ele encontrou esses olhares, sem baixar os olhos, sem dizer uma palavra, com rancor.
- Vamos, senhores, para a mesa! - gritou Maiakine, cintilando na multidão como uma faúlha na cinza.
- Por favor, tomem lugar! Vão-se servir crepes imediatamente.
Tomás encolheu os ombros e dirigiu-se para a porta depois de ter atirado:
- Não quero almoçar...
Ouviu atrás de si um rumor hostil e a voz aduladora do padrinho que dizia:
- Coitado! É o desgosto. Inácio era verdadeiramente para ele um pai e uma mãe!...
Tomás saiu para o jardim, e sentou-se no sítio onde o pai morrera. Uma sensação de solidão e de angústia oprimia-lhe o peito. Desabotoou o colarinho da camisa para
respirar mais à vontade, pousou os cotovelos na mesa e, com a cabeça nas mãos, imóvel, abandonou-se. Uma bátega fina começou a cair, as folhas da macieira rumorejavam
melancolicamente sob o choque da chuva. Ficou assim durante muito tempo, sem se mexer, olhando as gotas caídas da macieira a esmagarem-se na mesa. O vodka que tinha
bebido deixara-lhe um zumbido na cabeça e ruminava interiormente o insulto que tinha infligido às pessoas. Pensamentos vagos nasciam e desmaiavam dentro de si; o
crânio calvo do padrinho, coroado de cabelos prateados, passava diante dele, por cima de um rosto sombrio semelhante à face dos ícones antigos. Esse rosto de boca
desdentada e sorriso reptiliano despertava o ódio e o temor de Tomás, acentuava ainda mais a sua sensação de solidão. Depois recordou os pequenos olhos de Sofia
Médynski, a sua figura miúda e graciosa; ao lado dela, sem que soubesse porquê, ergueu-se a grande e corada Luba Maiakine de olhos risonhos e farta trança castanho-dourado.
O ar estava cheio de acordes desolados... O céu cinzento parecia
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chorar e nas árvores tremiam lágrimas frias. Na alma de Tomás estava escuro, tudo era seco; angustiado, sentia-se órfão, e este pensamento possuía-o completamente...
Mas já fazia nascer esta pergunta:
- Como vou eu viver?
A chuva tinha-lhe molhado a roupa. Tremia com frio e regressou a casa.
A vida sacudiu-o por todos os lados sem lhe permitir deter-se nas suas reflexões. Quarenta dias após o funeral foi à cerimónia da colocação da primeira pedra do
albergue nocturno; vestido com roupas domingueiras, possuía-o um agradável sentimento. Na véspera, Sofia Médynski informara-o ter sido eleito membro do Comité de
controle dos trabalhos e membro honorário da Sociedade a que ela presidia. Isso tinha-lhe agradado e o papel que devia representar hoje emocionava-o muito. Durante
o percurso, na caleche, pensava no que se ia passar, no porte que devia manter, de modo a não ficar intimidado pelo público.
- Eh! Eh! Pára!
Voltou-se; descendo do passeio, envolto num sobretudo que lhe batia nos tacões, coberto com um boné alto, um enorme guarda-chuva na mão, Maiakine corria para ele.
- Vamos lá, leva-me de carro! - disse o velho depois de ter saltado rapidamente, como um macaco, para dentro da caleche. - Devo confessar que te esperava. Olhava
para a rua pensando que devias estar a passar...
- Também vai lá? - perguntou Tomás.
- Claro! Quero ver bem como é que se vai meter na terra o dinheiro do meu amigo Inácio.
Tomás lançou-lhe um olhar de viés e ficou calado.
- Que estás tu para aí a olhar-me de esguelha? Em todo o caso, já sei que também foste promovido à classe de benfeitor da humanidade.
- Como é que soube? - perguntou Tomás, contendo-se.
- Li-o hoje no jornal: elegeram-te para membro da construção, e ainda por cima membro de honra na sociedade da Sofia... Vai-te custar cara essa honraria- suspirou
Maiakine.
- Não me arruinará.
- Não sei... - balbuciou o velho. - Sobre esse capítulo, o que sei é que esse negócio filantrópico não é dos melhores. Direi mais, não é um negócio, é apenas uma
piada nociva.
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- É o facto de se socorrerem os homens que considera nocivo? - perguntou Tomás provocador.
- Tens uma cabeça de nabo - disse Maiakine com um leve sorriso. - Vem a minha casa um destes dias e eu te abrirei os olhos acerca disso tudo... Deves saber as coisas.
Vens?
- Combinado.
- bom, enquanto se espera trata de te manter em destaque nessa cerimónia, coloca-te bem à vista. É inútil dizer-te que não precisas de te esconder atrás de quem
quer que seja.
Por que razão me esconderia? - disse Tomás aborrecido.
- É isso que eu digo: não há qualquer razão. Uma vez que o dinheiro foi dado pelo teu pai, deves receber a honra como herança. A honra é como o dinheiro... se um
homem de negócios é honrado todos lhe darão crédito, todos os caminhos lhe estão abertos... Coloca-te bem para que todos te vejam e para que, se deste um cêntimo,
te prestem homenagem por um escudo. Se te escondes só conseguirás criar a confusão nos espíritos.
Chegaram ao local da obra quando já todos os personagens importantes se encontravam reunidos e a multidão cercava as pilhas de madeira e de tijolos. O arcebispo,
o governador, os representantes da elite da cidade e da administração, bem como as damas sumptuosamente vestidas formavam um grupo vasto e brilhante. Olhavam para
dois operários que se ocupavam a preparar os tijolos e a cal; Maiakine dirigiu-se para esse grupo com o afilhado, murmurando-lhe ao ouvido.
- Nada de timidez... Apesar de todos aqueles latões em cima do ventre, também são tripas o que eles têm dentro.
E com voz jovial saudou o governador respeitosamente, antes do bispo.
- Apresento-lhe as minhas homenagens, Excelência! Imploro a vossa benção, Monsenhor!
- Ah! Jacob Tarassovitch! - exclamou amigavelmente o governador, apertando a mão de Maiakine e sacudindo-a com um sorriso, enquanto o velho se inclinava para beijar
o anel episcopal. - Como vai isso, velho imortal?
- Os meus agradecimentos, Excelência! Sofia Pavlovna, as minhas respeitosas homenagens! - debitava rapidamente o velho, rodando como um pião no meio das pessoas.
Num instante teve tempo de saudar o presidente do tribunal, o procurador, o presidente da câmara, todos os
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que estimava necessário saudar em primeiro lugar; de resto havia poucos dessa categoria. Gracejava, sorria, e num abrir e fechar de olhos a atenção de todos foi
ocupada pela sua pequena pessoa; quanto a Tomás, mantinha-se atrás dele, baixando a cabeça, lançando à sua volta olhares furtivos sobre as pessoas vestidas com fazendas
caras, bordadas a ouro; invejava o à-vontade do velho, tornava-se tímido e, sentindo a sua timidez, ficava mais tímido ainda. Mas o padrinho agarrou-lhe o braço
e atraindo-o a si.
- Excelência, apresento-lhe o meu afilhado, Tomás, filho único do defunto Inácio.
- Ah! Ah! - zumbiu o governador. - Muito prazer... Compartilho a sua dor, jovem - disse ele, apertando a mão de Tomás. Deixou pairar um curto silêncio, depois acrescentou
com um tom compenetrado: - Perder o pai... é uma infelicidade muito penosa.
Esperou durante um ou dois segundos a resposta de Tomás; depois desviou-se dele para se dirigir a Maiakine.
- O seu discurso de ontem na Assembleia Municipal entusiasmou-se. Excelente, inteligente, Jacob Tarassovitch... Eles não compreendem as verdadeiras necessidades
da população.
- E depois, Excelência, o capital é insuficiente, o que quer dizer que a cidade deve juntar o seu óbulo...
- Absolutamente exacto! Absolutamente exacto!
- Tal como eu digo, a sobriedade é que está bem. Que Deus a conceda a todos. Eu próprio não bebo... Mas para que servem essas bibliotecas, se essas pessoas, o povo,
não sabe ler?
O governador teve um mugido aprovador.
- Consagrem de preferência o vosso dinheiro a uma empresa técnica. Desde que não lhe dêem proporções avantajadas, esse dinheiro poderá chegar. E se necessário, chegado
o momento, podem-se sempre pedir subsídios a Sampetersburgo e serão concedidos. Então a cidade não terá que pôr o seu, e será uma esperteza ainda melhor.
- Precisamente. Gostei do modo como descompôs os nossos liberais, hem!
- Para gritar, é para o que eles servem.
A tosse espessa do arquidiácono da catedral anunciou o início do serviço religioso. Sofia Pavlovna aproximou-se de Tomás, cumprimentou-o e murmurou com voz triste:
- No dia das exéquias, olhava para o seu rosto e o meu coração apertava-se... Meu Deus, pensava eu, como ele deve sofrer!
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Tomás ouvia-a e parecia-lhe beber mel.
- Esses gritos que soltou... perturbaram-me o coração... O senhor é infeliz, meu caro... Posso-lhe falar assim, a seu lado sou uma velha...
- A Senhora! - exclamou Tomás em surdina.
- Não sou? - perguntou ela encarando-o com ar ingénuo.
Tomás, cabisbaixo, manteve-se em silêncio.
- Mas realmente não crê que eu seja uma velha?
- Acredito em si... mas isso não é verdade - disse ardentemente Tomás a meia voz.
- Não é verdade, o quê? Que acredita em mim?
- Não, não é isso... é que... Desculpe-me, não sei falar - desculpou-se, corado de confusão. - Não sou uma pessoa instruída.
- Não é preciso sentir-se envergonhado por isso
- disse Sofia Médynski, protectora. - Ainda é novo e a instrução é acessível a toda a gente... De resto, há pessoas a quem ela é não só inútil mas mesmo prejudicial...
São as pessoas de coração puro... confiantes, sinceras, como crianças... O senhor pertence a esse número... É verdade que sim? Diga o que pensa?
Que podia responder Tomás a uma tal pergunta? Disse com sinceridade:
- Fico-lhe imensamente grato.
Percebendo que estas palavras tinham suscitado uma chispa de alegre vivacidade nos olhos da senhora Médynski, sentiu-se ridículo e tolo, irritou-se imediatamente
contra si próprio e pronunciou com voz abafada:
- Sim, eu sou assim, tenho sempre que dizer aquilo que me vai no coração. Não sei fingir... se alguma coisa me parece engraçada rio abertamente... sou estúpido.
- Vá... porque está a dizer isso? - censurou-o a mulher.
E ao rectificar uma prega do vestido, acariciou por acaso a mão de Tomás que segurava o chapéu. Isso forçou Tomás a lançar os olhos à sua própria mão e, encantado,
a sorrir.
- Evidentemente, estará logo no banquete? - perguntou Sofia.
- Evidentemente.
- E amanhã, na sessão, em minha casa?
- Eu... eu agradeço-lhe. Irei.
- Devo agradecer-lhe essa promessa... Calaram-se. A voz piedosamente suave do bispo
flutuava no ar. com as mãos estendidas sobre o local da primeira pedra, recitava as orações com expressão
- E que nem os ventos, nem as águas, nem o que
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quer que seja possam fazer-lhe mal. Que Deus se digne permitir o acabamento perfeito desta construção e que aqueles que irão viver nela sejam libertos de toda a
calúnia.
- Quanta substância e beleza há nas nossas preces, não é verdade? - interrogou Sofia.
- Sim... - disse amavelmente Tomás, que não tinha compreendido o que ela dizia e se sentia corar uma vez mais.
- Serão sempre opostos aos interesses dos comerciantes que nós somos - cochichava ruidosamente Maiakine, em tom convincente. (Estava perto de Tomás, ao lado do presidente
da Câmara.) Mas a eles que é que isso lhes pode interessar? Desde que, por qualquer meio, obtenham a aprovação do jornal. Mas o fundo do problema, esse eles não
o podem atingir. Vivem para a galeria e não para organizarem a existência... Os jornais da Suécia... eis os seus pontos de apoio. Aquele doutor, ontem, não fez senão
massacrar-me com essa tal Suécia; a instrução pública na Suécia, dizia ele... e todo o resto lá é de primeira ordem. Mas no fundo, ao certo, ao certo, o que é essa
Suécia?... Possivelmente não passa de uma invenção... feita para ser dada como exemplo... e se calhar não possui instrução nenhuma nem o que quer que seja de nenhum
género, apesar de tudo. Ao fim e ao cabo, que sabemos nós da Suécia, à parte as luvas e os fósforos que lhe importamos? Não é para ela que vivemos, não é a ela que
temos de ir fazer exame... Devemos construir a nossa vida segundo os nossos próprios métodos. Não é verdade?
O arquitecto, com a cabeça inclinada para trás, lançava, zumbindo:
Ao fu-undador deste estabelecimento... gra-atidão e-eterna!
Tomás sobressaltou-se, mas já Maiakine estava ao pé dele, e, puxando-lhe pela manga, perguntava:
- Vais ao jantar?
A mãozinha quente e aveludada da senhora Médynski deslizou novamente ao longo da mão de Tomás.
A refeição foi uma tortura para Tomás. Achando-se pela primeira vez na vida misturado com personagens tão solenes, via que eles comiam, falavam e agiam em todas
as coisas muito melhor do que ele e tinha a sensação de estar separado de Sofia Médyinski, que estava colocada mesmo à sua frente, não por uma mesa, mas por uma
alta montanha. O seu vizinho era o secretário da Associação de que ele acabava de ser eleito membro honorário: um jovem funcionário do tribunal que tinha o nome
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estranho de Uktichtchev. Como se quisesse reforçar ainda a inepta aparência desse patronímico, falava com voz estridente de terror; toda a sua pessoa de alegre falador,
rechonchudo, pequeno, de rosto redondo, era semelhante a uma campainha nova e ostentosa.
- O que há de melhor na nossa Associação é a directora; a mais séria das nossas ocupações é a de lhe fazer a corte; a mais difícil é a de inventar um cumprimento
que a satisfaça, e o mais sensato é cair sob o encanto da directora, sem nada dizer ou esperar. Isto é assim, e fique sabendo que o senhor não é membro de uma Sociedade
de Beneficência, mas de uma associação de tântalos que rodam em torno de Sofia Médynski.
Tomás ouvia aquele falatório, observava a directora que cavaqueava com o chefe da Polícia em tom de seriedade, respondia com vagos murmúrios ao seu interlocutor,
fingindo estar muito ocupado a comer, e desejava que tudo aquilo acabasse o mais depressa possível. Sentia-se lamentável, tolo ridículo aos olhos de todos, estava
convencido de que todos o observavam e o criticavam.
Entretanto Maiakine, sentado ao lado do presidente da Câmara, agitava lestamente o garfo no ar e não cessava de lhe falar movendo incansavelmente as rugas. O outro,
um homem grisalho de rosto grosseiro e avermelhado implantado num pescoço taurino, olhava-o com uma atenção bovina e fixa, batendo de vez em quando na borda da mesa
com um dedo aprovativo. A animação dos rumores e os risos abafavam a eloquência petulante do seu padrinho e Tomás não podia distinguir uma só palavra, tanto mais
que a voz de tenor do secretário não parava um momento de lhe tilintar nos ouvidos:
- Veja... aí está o arquidiácono a levantar-se, agora enche o peito de ar... Vai proclamar o eterno reconhecimento que se deve a Inácio Matveitch.
- Eu não poderia ir-me embora? - perguntou Tomás em voz baixa.
- Porque não? Toda a gente compreenderá.
O ataque em força do diácono abafou e pareceu esmagar os rumores da sala; os notáveis da classe comerciante miravam com admiração a boca muito aberta de onde se
escapava uma voz de baixo profundo; aproveitando esse momento, Tomás levantou-se da mesa e saiu da sala.
Alguns minutos mais tarde, com a respiração livre, sentado na caleche, pensava que o seu lugar não era no meio daqueles senhores. Tratava-os no seu íntimo como "muito
lambidos", o brilho deles não lhe agradava, as suas
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caras, os seus sorrisos, as suas palavras não lhe agradavam, mas o à-vontade e a liberdade dos seus movimentos, a sua arte de falar de tudo, os seus fatos de bom
corte, tudo isso despertava nele uma mistura de inveja e de respeito. Estava vexado e melancólico por reconhecer que não sabia falar com tanta leveza e abundância
como todas as pessoas e recordou-se então de que Luba Maiakine se rira já dele mais do que uma vez por causa disso.
Tomás não gostava da filha de Maiakine; desde que Inácio lhe tinha dado a entender a intenção do padrinho de os casar, o jovem Gordeiev tinha-se posto a fugir de
todos os possíveis encontros. No entanto isso fora em vida do pai. Após aquela morte, ia quase todos os dias a casa de Maiakine e uma vez Luba tinha-lhe dito:
- Olho para ti e adivinha o que penso: não te pareces absolutamente nada com um comerciante.
- Também tu, não pareces nada a filha de um comerciante... - tinha respondido Tomás com ar desconfiado.
Não tinha podido compreender o alcance das palavras dela: tinha-o querido ofender, ou tinha-o dito em toda a simplicidade?
- Que Deus seja louvado! - tinha ela respondido, arvorando ao mesmo tempo um sorriso tão bom, tão amigo...
- O que é que te põe contente? - perguntara ele.
- Que não nos pareçamos com os nossos pais. Tomás tinha-a olhado com espanto e tinha-se calado.
- Fala com sinceridade - prosseguiu ela baixando a voz. - Gostas verdadeiramente do meu pai? Estima-lo?
- Realmente... não muito... - respondeu ele lentamente.
- Bem, eu absolutamente nada.
- Porquê?
- Por tudo... Quando souberes mais compreenderás melhor... O teu pai era melhor do que ele.
- E bastante! - concordara orgulhosamente Tomás.
Após essa entrevista, uma espécie de atracção recíproca tinha nascido quase imediatamente entre eles e de dia para dia desenvolvia-se cada vez mais, tendo tomado
rapidamente o carácter de uma amizade, amizade no entanto um pouco estranha.
Luba tinha mais ou menos a mesma idade que o afilhado do pai, mas comportava-se com ele como uma irmã mais velha com um rapazinho. Falava-lhe num tom condescendente,
gracejava frequentemente, no que dizia apareciam a cada instante vocábulos desconhecidos de
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Tomás, que ela pronunciava com uma insistência particular, com uma satisfação evidente. Gostava sobretudo de falar do seu irmão Taras, que nunca tinha visto mas
acerca do qual contava coisas que o faziam parecer-se com os bravos e nobres salteadores da tia Anfissa. Muitas vezes, quando se queixava do pai, dizia a Tomás:
- É o que tu vais ser também: um desmancha-prazeres.
Tudo isso era muito desagradável para o jovem e feria-lhe o amor-próprio. Mas certas vezes ela mostrava-se franca, simples, e de uma ternura especialmente amigável
com ele; então ele abria-lhe o coração e ambos expunham mutuamente, e longamente, as suas reflexões e os seus sentimentos.
Ambos falavam muito, com sinceridade; mas a Tomás parecia que tudo aquilo de que Luba falava lhe era estranho e, a ela, inútil; ao mesmo tempo verificava claramente
que as suas palavras acanhadas não tinham interesse para ela e não sabia compreendê-las. Por muito que durassem aquelas entrevistas, elas não lhes davam mais do
que a sensação de não estarem satisfeitos um com o outro. Dir-se-ia que uma muralha invisível de equívocos se erguia subitamente entre eles e os separava. Não se
resolviam a tocar nessa muralha, a dizerem um ao outro que sentiam a sua existência e renovavam as suas conversas, com a vaga consciência de que havia em cada um
deles algo que os podia aproximar e unir.
Ao chegar a casa do padrinho, Tomás encontrou Luba sozinha. Ela saiu para ir ao seu encontro. Era visível que se encontrava mal disposta ou de mau humor: os olhos
brilhavam febrilmente e estavam rodeados por negras olheiras. Friorentamente envolta num xaile macio, disse-lhe sorrindo:
- Foi bom teres vindo. De outro modo teria ficado em casa sozinha... a aborrecer-me; não tenho vontade de ir a parte nenhuma. Tomas o chá?
- Tomo... Que tens? Estás doente?
- Vai para a sala de jantar, vou dizer para trazerem o samovar - disse ela, sem responder à pergunta.
Ele passou para uma das pequenas salas da casa, cujas paredes eram rasgadas por duas janelas que davam para um jardim. No meio da sala uma mesa oval estava cercada
por cadeiras antigas, forradas a coiro, entre as janelas estava suspenso um relógio numa comprida caixa de porta de vidro; a um canto um armário, igualmente de vidro,
encerrava a prataria.
- Vens do banquete? - perguntou Luba ao entrar.
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Tomás sem dizer nada abanou a cabeça afirmativamente.
- Então, era magnífico?
- Uma miséria! - zombou Tomás. - Sentia-me como se estivesse sentado em cima de brasas... Eram todos como pavões e eu como um mocho...
Luba, colocando as chávenas, não disse nada.
- Porque estás tu com um ar tão aborrecido?
- voltou a perguntar Tomás depois de um olhar ao rosto dela, sombrio.
Ela voltou-se para ele e disse-lhe, com entusiasmo e com tristeza
- Ah, Tomás, que livro acabo de ler! Se tu pudesses compreendê-lo!
- Decerto é um bom livro para que estejas de tal maneira perturbada... - troçou Tomás.
- Não dormi... Li toda a noite... Estás a compreender: lê-se e é como se as portas de outro império se abrissem diante de nós... as pessoas são diferentes, a linguagem
também, e... tudo! toda a vida...
- Não gosto disso... - disse Tomás, descontente.
- Invenções, disparates. É como o teatro, estás a ver? Os comerciantes são ridicularizados... francamente... são na realidade tão estúpidos como os pintam?... Por
exemplo, o padrinho...
- O teatro é também uma escola, Tomás - disse Luba professoralmente. - Os comerciantes foram assim. E que engano pode haver nos livros?
- Como nos contos... Nada disso é real...
- Enganas-te. Claro, tu não lês; como podes julgar? Precisamente, a verdade está neles... Os livros ensinam a viver.
- bom, bom, - disse Tomás com um gesto de desprezo. - Deixemos isso... Todos esses livros não servem para nada. Olha para o teu pai, não lê e no entanto... é esperto
como o Diabo. Vi-o hoje em acção, senti-me com inveja. Conserva perante toda a gente uma atitude tão à vontade, tão inteligente, tem uma palavra para cada um...
Vê-se imediatamente que basta ele querer uma coisa para a obter.
- O que é que ele obtém? - exclamou Luba. - Dinheiro, e mais nada... Mas há homens que querem a felicidade para todos... e para isso não se poupam, trabalham, sofrem,
sacrificam-se. Podem-se comparar com ele?
- Não compares... Tudo o que se pode dizer é que a esses agrada-lhes uma coisa e ao meu padrinho outra.
- Nada lhe agrada, a eles.
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- Que queres dizer?
- Eles querem transformar tudo.
- Vejamos, é decerto por alguma coisa que eles se esforçam tanto - raciocinou Tomás - eles querem decerto alguma coisa.
- A felicidade para todos - exclamou Luba com ardor.
- Bem, eu isso não compreendo... - disse Tomás abanando a cabeça. - Quem é que se preocupa com a minha felicidade entre eles? E de resto, que espécie de felicidade
podem eles arranjar-me se eu próprio não sei o que preciso? Não, sabes, o que tu deverias ver eram aqueles que estavam no banquete, há um bocado...
- Não são homens - declarou Lubov, peremptória.
- Verdadeiramente não sei o que eles são na tua opinião. Mas o que se via imediatamente é que sabiam estar no seu lugar... São pessoas capazes... hábeis...
- Oh, Tomás! - exclamou ela, desgostosa. - Não compreendes nada, nada te comove. Como tu és preguiçoso!
- bom, não vale a pena zangares-te. Ainda não tomei posição, é o que é.
- Tu és oco, essa é a verdade! - decretou Luba com um tom definitivo e seguro.
- Não estás na minha alma - replicou calmamente Tomás. - Não conheces os meus pensamentos.
- Em que poderias tu pensar, então? - disse Luba encolhendo os ombros.
- Por exemplo: Sou sozinho? Uma... É necessário que eu viva? Duas... Da maneira como vivo agora é-me inteiramente impossível viver: é que não consigo compreender
a vida. Não quero que as pessoas me escarneçam... Não sei falar às pessoas, estás a ver?... Nem sequer sei pensar - terminou Tomás com um sorriso de acanhamento.
- Devias ler, devias estudar - aconselhou Luba persuasiva, passeando na sala.
- Qualquer coisa se mexe em mim, mas não posso compreender o que é - prosseguiu sem lhe prestar atenção e como para si mesmo. - Vejo muito bem que o que diz o padrinho
é sempre o real... e o bom senso... Mas isso não me toca... Essas pessoas interessam-me muito mais...
- Essa aristocracia? - perguntou Luba.
- Sim...
- O teu lugar é no meio deles - disse Luba com desprezo. - Pensa bem. Acaso são homens? Têm uma alma?
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- Como é que os conheces? Não tens relações com eles...
- E os livros, para que servem?
A criada trouxe o samovar e a conversa interrompeu-se. Luba preparava o chá, sem dizer nada. Tomás olhava-a e pensava em Sofia Médynski... Era com ela que deveria
falar.
- Si-im - pronunciou a jovem com ar sonhador
- cada dia me convenço mais da dificuldade de viver... Que devo fazer? Casar-me? com quem? com um filho de comerciante que passará toda a vida a pilhar as pessoas,
a beber e a jogar as cartas? Não quero. Quero ser uma personalidade... Sou uma personalidade porque compreendo já que a vida é horrorosamente organizada. Estudar?
Não sei se o meu pai o permitiria?... Fugir? Falta-me a coragem... Que devo fazer?
Apertou os punhos e deixou cair a cabeça sobre a mesa.
Se soubesses como tudo me é odioso... Nem um ser vivo à minha volta... Desde que a minha mãe morreu o meu pai dispersou-os a todos. Alguns saíram daqui, para irem
estudar. A Lídia partiu. Ela escreve-me e aconselha-me: "Lê!". Ah, eu leio! - exclamou Luba com o desespero na voz.
Após um segundo de silêncio, recomeçou tristemente:
- Não se encontra nos livros aquilo de que o coração tem necessidade... nem sempre compreendo grande coisa... ao fim e ao cabo aborreço-me... aborrece-me ler sempre
sozinha! Quero falar a um ser humano e não há nenhum... Estou farta... Só se vive uma vez e já é tempo, para mim, de viver... Mas não há um único ser humano... um
único! Para que serve a minha existência? Vivo numa prisão!
Tomás ouvia, examinava fixamente os seus dedos sob todos os ângulos, sentia todo o sentimento que havia nas palavras de Luba mas não as compreendia. E quando ela
se calou, acabrunhada e vencida pela tristeza, nada encontrou para dizer senão palavras muito próximas da censura:
- Vês, tu própria dizes que os livros não te valem de nada, e recomendas-me que os leia.
Ela lançou-lhe um olhar onde se acendia cólera.
- Oh, como eu gostaria que se erguessem em ti os tormentos em que vivo!... Que os teus pensamentos te impeçam também de dormir, que tudo te seja odioso e que te
sintas odioso a ti mesmo! Detesto-vos a todos... detesto-vos.
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Olhava-o, vermelha, com tanta cólera e tanta raiva que, estupefacto, ele nem se sentiu vexado. Nunca, anteriormente, ela lhe tinha falado assim.
- Que é que tu tens? - perguntou ele.
- Detesto-te... também a ti... Tu... que és? Um morto, o vazio... Qual será a tua vida? Que darás tu aos homens? - disse ela em voz baixa e como que possuída por
uma alegria maldosa.
- Não lhes darei nada, que se desenrasquem eles próprios!... - respondeu Tomás, sabendo muito bem que com essas palavras a enfurecia ainda mais.
A veemência das censuras de Luba tinha forçado Tomás a ouvir atentamente os propósitos enraivecidos, mesmo sem vontade. Sentia que eles tinham um sentido. Fez mesmo
um movimento para se aproximar dela mas, cheia de indignação e de cólera, ela afastou-se dele e manteve-se em silêncio.
Fora ainda havia claridade e o reflexo do crepúsculo iluminava os ramos da tília diante da janela, mas a sala já estava mergulhada na obscuridade. O enorme pêndulo
fazia luzir cada segundo com um brilho macio atrás do vidro da caixa do relógio, e escondia-se com um ruído surdo e fatigado ora à direita ora à esquerda. Luba levantou-se
e acendeu o candeeiro suspenso por cima da mesa. O rosto da rapariga estava pálido e os traços das feições endurecidos.
- Porque me atacaste? - perguntou Tomás em tom comedido. - Não te percebo...
- Não te quero falar- respondeu ela, irritada.
- Isso é contigo... Mas apesar de tudo... de que sou eu culpado?
- Compreende-me! Abafo! Estou apertada... Isto é vida? É assim que se vive? Que sou eu? Vivo como um parasita em casa do meu pai... Mantém-me para eu a governar...
Depois casar-me-ão... e de novo terei uma casa para governar...
- Está bem... mas porque te zangas comigo? - perguntou Tomás.
- Tu não vales mais do que os outros...
- Mas em que sou culpado em relação a ti?
- Deves desejar ser melhor.
- E acaso não o desejo? - exclamou Tomás.
A rapariga ia responder qualquer coisa mas nesse momento ouviu-se tocar uma campainha; ela endireitou-se na poltrona e disse em voz baixa:
- Aí vem o meu pai.
- Ora bolas, ele bem podia ter lá ficado mais um bocado, não nos teríamos lamentado por isso - disse Tomás.
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- Gostaria bem de continuar a ouvir-te... isso interessa-me imenso...
- Ah, meus filhos, meus queridos! - exclamou Jacob Tarassovitch no limiar. - Estão a tomar o chá? Dá-me também uma chávena, Luba.
com um sorriso suave e esfregando as mãos, sentou-se ao lado de Tomás e, depois de uma amigável palmada, perguntou:
- De que falavam vocês?
- De nada! Tolices! - respondeu Luba.
- Foi a ti que perguntei? - disse-lhe o pai, com uma careta. - Fica no teu canto e rumina em silêncio os teus problemas de mulher...
- Falava-lhe do banquete... - "interrompeu Tomás.
- Ah! Ah! Era então isso... Pois bem, vou falar também eu do banquete... Estive a observar-te, lá... Portaste-te abaixo do bom senso!"
- Como? - perguntou Tomás franzindo involuntariamente a testa.
- De uma maneira pura e simplesmente desprovida do menor bom senso, e é tudo. O governador fala-te, por exemplo, e tu nem abres a boca.
- Que lhe havia de dizer? Ele disse-me que a perda de um pai era uma infelicidade... Eu sei isso muito bem... Que se pode responder a isso?
- Pode-se responder, por exemplo: "Como essa infelicidade me foi enviada por Deus, não tenho o direito de me queixar". Isso ou qualquer outra coisa desse género...
Os governadores, meu caro amigo, gostam de ler nas pessoas a submissão.
- Não vejo motivo para ter o ar de ser um carneiro
- resmungou Tomás.
- Não, não se deve ter o ar de ser um carneiro. Não se deve parecer um carneiro, nem um urso. O jogo que se deve jogar é este: o senhor é o nosso paizinho e nós
somos os seus meninos... Ele ficaria suave num instante.
-E para quê?
- Para todos os fins úteis... Um governador, meu rapaz, pode sempre servir-nos.
- Que lhe está a ensinar, papá? - exclamou Luba com voz surda e indignada.
- O que lhe ensino?
- A fazer de lacaio!
- Nada disso, minha sábia tola. Ensino-lhe a política e não a fazer de lacaio, a política da vida... E tu, minha filha, vai para mais longe. Foge da minha cólera...
e prepara-nos qualquer coisa para comer. Vá!
Luba levantou-se vivamente, atirou com o pano que
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tinha na mão para o espaldar da poltrona e saiu. O pai seguiu-a com o olhar franzindo os sobrolhos, tamborilou com os dedos na mesa e começou:
- Tomás, vou-te ensinar as coisas. Vou-te ensinar a verdadeira, a mais segura de todas as ciências filosóficas... e se a compreenderes viverás sem cometer erros.
Tomás lançou um olhar para a fronte do velho onde se agitavam as rugas, e elas pareceram-lhe semelhantes a linhas impressas em velhos caracteres cirílicos.
- Antes de mais nada, Tomás, dado que vives neste baixo mundo, deves reflectir em tudo o que se passa à tua volta. Porquê? Para não ter de sofrer com a tua ignorância
e para evitar prejudicar alguém com a tua estupidez. Agora, todo e qualquer assunto humano tem dois aspectos, um que se apresenta ao olhar de todos e que é falso,
outro escondido, que é verdadeiro. É necessário saber encontrá-lo para compreender o sentido de qualquer assunto... Tomemos como exemplo os albergues nocturnos,
casas de refúgio, hospícios para velhos e outros estabelecimentos dessa espécie. Reflecte: para que servem?
- Já reflecti - respondeu Tomás, aborrecido. - Toda a gente o sabe, é para que... é para os pobres, os inválidos.
- Ah, meu rapaz! Acontece que toda a gente sabe que tal ou tal homem é um patife ou um covarde, mas isso não impede que lhe chamem João, ou Pedro, que lhe chamem
"Senhor Fulano" e não "grande canalha".
- Onde quer chegar?
- Nada disso está fora do problema... Eis como: dizes que as casas são feitas para os pobres, os miseráveis, e que são uma realização dos preceitos de Cristo?...
Bem. Mas o que é um miserável? Um miserável é um homem que o destino forçou a lembrar-nos o Cristo, é o irmão do Cristo, é a sineta do Senhor e soa no mundo para
despertar a nossa consciência, inquietar a humana saciedade da carne... Fica debaixo da janela e canta: "Uma esmolinha, por amor de Deus!" e com essa cantilena traz-nos
à memória a pessoa de Cristo, e a sua ordem sagrada de auxiliar o próximo... Mas os homens arranjaram a sua vida de modo que lhes é inteiramente impossível agir
segundo os preceitos do Cristo, e Jesus Cristo tornou-se assim para nós inteiramente supérfluo. Não uma vez, mas cem mil vezes O entregamos ao calvário, mas não
podemos expulsá-lo do mundo porque o seu irmão, o mendigo, canta o seu nome pelas ruas e nos obriga a recordá-lo... E então nós pensamos: "Fechemos os mendigos em
casas feitas para eles de
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modo a impedi-los de percorrerem as ruas; assim não despertarão a nossa consciência."
- Bem achado! - exclamou Tomás estupefacto olhando o padrinho com os olhos bem abertos.
- Ah! Ah! - fez Maiakine, com os pequenos olhos a brilharem triunfalmente.
- Como é possível que o meu pai não tenha adivinhado isso? - perguntou Tomás perturbado.
- Espera! Ouve um pouco mais. Para a frente é pior. Nós inventamos o fechá-los nessas espécies de casas e, para que o seu sustento não fique caro, esses pobres velhos,
esses estropiados são forçados a trabalhar... Agora não há necessidade de lhes dar esmola e nas ruas, uma vez libertas de todos esses esfarrapados, deixamos de ver
o horror da sua aflição e da sua pobreza. Podemos pensar que todos os homens do mundo estão fartos, calçados, vestidos... É para isso que elas são feitas, essas
casas, para esconderem a verdade, para banir o Cristo da nossa vida. Falei claro?
- Sim - disse Tomás, a quem o hábil discurso do velho tinha embrulhado.
- E isso não é tudo... ainda não esvaziámos o atoleiro até ao fundo - exclamou Maiakine, batendo o ar fogosamente com a mão. As rugas moviam-se-lhe no rosto; o seu
longo nariz de rapina tremia e a voz lançava notas frenéticas e enternecidas.
- Vejamos agora as coisas sob outro ângulo. Quais são aqueles que, mais do que quaisquer outros, se sacrificam no interesse de todas essas casas, asilos, hospícios?
As pessoas ricas, os nossos comerciantes... Bem! E quem dirige e organiza o processo? Os nobres, os funcionários e todos os outros que não são do nosso meio... É
deles que saem as leis, os jornais e as ciências; tudo vem deles. Dantes a terra pertencia-lhes, agora foi-lhes tirada e eles entraram para a Administração... E
quais são, neste momento, as pessoas mais fortes? O comerciante é a primeira força no Estado, porque é com ele que estão os milhões. Não é verdade?
- É verdade! - concordou Tomás, desejando ouvir o mais depressa possível aquilo que ainda não fora dito e que já brilhava nos olhos do seu padrinho.
- É isso que deves compreender - prosseguiu o velho acentuando cada palavra com um tom compenetrado. - Não fomos nós, comerciantes, que organizámos a nossa vida,
e na sua organização não temos até agora voz activa, não podemos meter o dedo. Foram os outros que organizaram a vida, que desenvolveram nela toda a espécie de teias,
esses fingidos, esses deserdados, esses
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enfermos, e uma vez que foram eles que desenvolveram essa sarna, que sujaram a vida, que a fizeram ganhar bolor, é a eles - se se raciocina segundo Deus - que incumbe
limpá-la. Mas somos nós que limpamos, nós que damos o nosso dinheiro aos pobres, nós que os recolhemos... Raciocina um pouco, fazes favor: por que razão devemos
ser nós a coser os andrajos alheios, se não fomos nós quem esfarrapou as roupas? Por que razão devemos nós reparar a casa uma vez que não vivemos nela e ela não
é nossa? Não seria mais sensato pormo-nos de lado de uma vez para sempre e observar como essa podridão prolifera e abafa esse homem que nos é estranho? Ele não escapará,
não possui os meios para isso. Então virá ter connosco e dirá: "Por favor, senhores, ajudem-nos!" E nós responderemos: "Dêem-nos lugar para que possamos trabalhar.
Coloquem-nos no número dos que constróem a vida!" E a partir do momento em que nós sejamos desse número, então, também nós, de uma só vez, devemos libertar a vida
de toda a podridão e de todos os excessos de vária ordem. Então S. M. o Imperador verá com os seus próprios olhos, com os seus olhos claros, quais são os seus fiéis
servidores e quanto espírito acumularam neles próprios durante o tempo em que, manietados, estiveram reduzidos à inacção. compreendeste?
- Evidentemente, compreendi - respondeu Tomás. Quando o padrinho falou dos funcionários, ele
tinha-se recordado do rosto dos convivas, tinha-se lembrado do secretário astuto, e tinha-lhe passado pela cabeça a ideia de que esse homenzinho gordo não tinha
provavelmente mais do que mil rublos por ano, ao passo que ele, Tomás, tinha um milhão. Mas aquele homem vivia com tanta ligeireza e à vontade, enquanto ele, Tomás,
não sabia fazê-lo e vivia como um pacóvio.
Esta comparação e o discurso do seu padrinho suscitaram nele um turbilhão de pensamentos mas não teve tempo de aprender e de formular senão um.
- Efectivamente, é só pelo dinheiro que se trabalha? Para que serve isso, se ele não dá o poder?
- Ah! Ah! - disse Maiakine, com os olhos franzidos.
- Mas então!... - exclamou Tomás com um tom humilhado. - Como Diabo é que o meu pai...? Falou com ele sobre isso?
- Falei durante vinte anos.
- E então, que dizia ele?
- Os meus argumentos não o atingiam... Tinha o cérebro um pouco pesado, o defunto. Tinha o coração nas mãos, mas o espírito, esse tinha-o bem mergulhado...
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E caramba, ele cometeu um erro... É que isso mexia com dinheiro, o que é muito lamentável.
- Não é o dinheiro que lamento...
- Tenta ganhar um décimo e depois me dirás...
- Posso entrar? - ouviu-se a voz de Luba do outro lado da porta.
- Podes... - respondeu o pai.
- Querem comer já? - perguntou ela ao entrar.
- Vamos lá.
Ela aproximou-se do armário e começou a fazer tilintar a loiça. Jacob Tarassovitch olhou-a, mascou os lábios e de repente, dando uma palmada no joelho de Tomás,
disse-lhe:
- É assim, afilhado! Pensa nisso!...
Tomás respondeu com um sorriso e pensou:
- Ele é inteligente... mais inteligente que o meu pai. E imediatamente respondeu a si mesmo, como que
com outra voz:
- Mais inteligente, mas pior.
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v
A ambiguidade das relações de Tomás com Maiakine ia-se acentuando cada vez mais: ouvia-lhe atentamente os discursos, com uma curiosidade ávida, e sentia que em cada
um dos seus encontros se desenvolvia nele um sentimento de hostilidade contra o velho. Por vezes o padrinho despertava no afilhado um sentimento próximo do pavor,
outras vezes mesmo uma repulsa física. Esta aparecia normalmente nos momentos em que o velho, satisfeito consigo mesmo, ria. O riso fazia estremecer as rugas, modificando-lhe
segundo a segundo a expressão do rosto; os lábios secos e finos alteravam-se-lhe, esticavam-se, abriam e mostravam os restos negros dos dentes, a barbicha ruiva
chamejava como fogo. O timbre do riso parecia-se com um ranger de gonzos enferrujados. Incapaz de dissimular os seus sentimentos, Tomás exprimia-os frequentemente
e muito brutalmente, mas o velho não parecia notar a impertinência e, sem tirar os olhos do afilhado, dirigia cada um dos seus passos. Quase nunca ia à sua loja,
consagrava-se totalmente aos negócios de navegação do jovem Gordeiev e deixava a Tomás muito tempo livre. Graças à notoriedade de Maiakine na cidade e à extensão
das suas relações nas margens do Volga, os negócios caminhavam brilhantemente, mas o zelo de Maiakine por esses negócios reforçava a convicção de Tomás- o padrinho
estava firmemente resolvido a casá-lo com Luba; isso aumentava ainda mais a repulsa dele pelo
velho.
Luba agradava-lhe e ao mesmo tempo parecia-lhe perigosa, Não se casava e o pai não dizia nada a esse respeito. não organizava nenhuma festa, não convidava nenhum
jovem para casa deles, e não deixava Luba ir a
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parte nenhuma. No entanto todas as amigas dela estavam já casadas... Tomás admirava-se das suas conversas e ouvia-as com a mesma avidez que as do pai dela; mas quando
ela começava a falar afectuosa e tristemente de Taras, ele tinha a impressão de que, sob esse nome, ela escondia um outro homem, talvez mesmo esse lejov que, segundo
ela, tinha sido forçado por certa razão a abandonar a Universidade e a sair de Moscovo, o que agradava a Tomás; e frequentemente aquilo que dizia inspirava-lhe pena:
parecia-lhe que ela não vivia mas sim que sonhava acordada.
O destempere de Tomás na refeição do funeral do pai tinha-se espalhado nos meios comerciais e tinha-lhe grangeado uma fama pouco invejável. Na Bolsa, notava que
todos lhe lançavam olhares desprovidos de amizade e falavam-lhe num tom diferente. Uma vez tinha mesmo apanhado esta exclamação pronunciada atrás de si por uma voz
abafada e desdenhosa.
- Pateta fanfarrão!
Não se tinha voltado para identificar aquele que tinha lançado tais palavras. As pessoas ricas que, inicialmente, tinham despertado a sua timidez tinham agora perdido
encanto a seus olhos. Mais do que uma vez lhe tinham arrancado das mãos tal ou tal encomenda frutuosa; via claramente que o voltariam a fazer na primeira oportunidade,
todos lhe pareciam igualmente sedentos de dinheiro, sempre prontos a enganarem-se uns aos outros. Quando transmitiu as suas observações ao padrinho, o velho declarou:
- E então! O comércio e a guerra são iguais, é um problema de entusiasmo. Batemo-nos por um saco e nesse saco pomos todo o nosso ser...
- Isso não me agrada - declarou Tomás.
- Também a mim nem sempre agrada, há muita falsidade nisso! Mas no comércio, jogar jogo franco é completamente impossível, é necessária uma política. Aqui, meu rapaz,
se te aproximas de um homem, deves ter mel na mão direita e uma faca na esquerda.
- Não é muito bonito - disse Tomás melancólico.
- Bonito... sê-lo-á mais tarde... quando te tiveres içado ao cume, então será bonito... a vida, meu caro Tomás, está organizada de um modo muito simples: ou se morde
em toda a gente ou não se sai da cepa torta.
O velho sorria e os restos dos dentes sugeriram a Tomás este pensamento irónico: "Vê-se bem que mordeste muito."
- Não há nada de melhor? É mesmo esse o caminho a seguir?
- E onde haveria outro? Todos querem o melhor
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para si... Mas qual é o melhor? Ir mais longe do que os outros, elevar-se acima deles. É assim, todos se desunham para atingir o melhor lugar na vida... uns de uma
maneira, outros de outra... mas todos, obrigatoriamente, querem poder ser vistos de longe como campanários. É a isso que o homem se destina: a elevar-se... Mesmo
no livro de Job está escrito: "O homem nasce do sofrimento, para se lançar para o céu como o fazem as faúlhas". Repara nos garotos que brincam, eles querem ultrapassarem-se
sempre uns aos outros. Cada jogo comporta sempre um ponto máximo que lhes é próprio e é isso que o torna interessante... Entendido?
- Até aí, eu compreendo - disse Tomás.
- É preciso senti-lo... Só com a inteligência não se vai a parte nenhuma; é preciso querer, e querer fortemente, que as montanhas sejam montículos de toupeiras e
os mares simples poças de água. Ah! Eu, dantes, quando tinha a tua idade, vivia a brincar com isso. Mas tu, tu ainda estás a procurar indefinidamente o teu objectivo.
A uniformidade dos discursos do velho conduzia sempre ao fim para que eram calculados: Tomás pautou por ali a sua conduta e encontrou um fim à sua vida. É preciso
ser melhor do que os outros, afirmou ele, e o amor-próprio que o velho tinha despertado lançou raízes profundas no seu coração... Implantou-se ali, mas não o encheu
totalmente, porque as relações de Tomás e de Sofia Médynski tomaram o carácter que deviam fatalmente tomar. Ele sentia-se atraído para ela, tinha sempre vontade
de a ver, e na sua presença ficava intimidado, tornava-se canhestro, ingénuo, verificava o facto e sofria com isso. Ia frequentemente a casa dela, mas era muito
difícil encontrá-la sozinha; peraltas perfumados rodavam sempre à volta dela como moscas num torrão de açúcar. Falavam-lhe em francês, cantavam, riam enquanto ele
ficava mudo e os olhava cheio de raiva e de inveja. com as pernas dobradas para debaixo da sua cadeira, deixava-se estar a um canto qualquer do salão luxuosamente
mobilado e observava-a com um olhar aborrecido.
Ela passava diante dele, rapidamente, sobre as macias alcatifas, concedendo-lhe ao passar olhares acariciadores e sorrisos; à volta dela borboleteavam os seus adoradores,
semelhantes a serpentes; evoluíam facilmente entre a diversidade das mesinhas, cadeiras, vitrines e todo um armazém de coisas belas e frágeis dispersas por aqui
e por além, na sala, com uma negligência tão perigosa para elas como para Tomás. Quando ele caminhava as alcatifas não lhe abafavam o ruído dos passos e todos
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aqueles objectos agarravam-se-lhe à roupa, estremeciam, caíam. Perto do piano de cauda havia um marinheiro de bronze que abria largamente os braços para atirar uma
bóia de salvação, cordas de arame pendiam da bóia e metiam-se constantemente nos cabelos de Tomás. Tudo isso provocava o riso de Sofia e dos seus admiradores, mas
Tomás, a quem isso lançava umas vezes na fornalha ardente, outras vezes no gelo, pagava-o caro.
Mesmo sozinho com ela não se sentia mais à vontade. Ela acolhia-o com um sorriso terno, sentava-se com ele num dos cantos confortáveis do salão e normalmente começava
assim a entrevista: enrolada como um gato, olhava-o nos olhos, com um olhar escuro onde flamejava algo de ávido.
- Gosto tanto de conversar consigo - cantarolava ela, arrastando musicalmente as palavras. - Todos os outros me cansam... são aborrecidos, vulgares, gastos. O senhor,
ao contrário, é fresco, sincero. Estou certa de que também não os aprecia.
- Não posso com eles! - respondia Tomás com firmeza.
- E comigo? - perguntava ela, suavemente. Tomás desviava os olhos e dizia suspirando:
- Quantas vezes já me perguntou isso?
- É-lhe muito penoso responder?
- Penoso... não... mas para quê?
- Tenho necessidade de saber.
- Brinca comigo... - dizia Tomás, fechado.
Ela franzia a testa e, num tom de profunda admiração, perguntava:
- Brincar, como? Eu brinco, eu? Que quer dizer isso, brincar?
E o rosto dela era tão angélico que lhe era impossível não a acreditar.
- Amo-a! Amo-a! Como é que se pode passar sem a amar? - inflamava-se ele, mas logo a seguir acrescentava tristemente, baixando a voz: - Mas, evidentemente, a senhora
não tem necessidade disso.
- É o senhor que o diz! - suspirava Sofia Médynsk com satisfação, afastando-se um pouco. - Dá-me sempre um prazer terrível ouvir a maneira como diz isso... é jovem,
todo de uma só peça... Quer-me beijar a mão?
Sem uma palavra ele pegava na pequena mão branca e fina e, inclinando-se para ela, com precaução, beijava-a longamente. Ela retirava a mão, sorria com graciosidade,
sem mostrar a menor perturbação pelo ardor dele. Sonhadora, com esse brilho nos olhos que transtornava
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Tomás, examinava-o como um objecto raro extremamente curioso e dizia:
- Que saúde, que força, que frescura de alma possui... Sabe muito bem que vocês, os comerciantes, são uma tribo que não está ainda completamente esgotada, uma tribo
completa com as suas tradições originais, dispondo de uma imensa energia de corpo e alma... O senhor, por exemplo: o senhor é sem dúvida alguma uma pedra preciosa,
e se a polissem... ah!
Quando ela dizia "Em vós, segundo vós, na opinião dos comerciantes..." parecia a Tomás que, com essas palavras, o repudiava, de algum modo, para longe dela. Era
triste e ofensivo. Ele caiava-se, contemplando-lhe a silhueta minúscula, sempre vestida com requinte, espalhando sempre, como uma flor, um agradável perfume e uma
atmosfera de delicadeza virginal. Por vezes irrompia nele um desejo brutal de a agarrar e a abraçar. Mas a beleza e a fragilidade desse corpo fino e flexível fazia
com que ele temesse quebrá-lo, estropiá-lo; a voz dela, suave, acariciadora, os olhos claros que pareciam espiá-lo, arrefeciam os seus ímpetos. Ele tinha a impressão
de que ela lia directamente na sua alma todos os seus pensamentos... Essas explosões de sentimento eram raras, em geral o jovem maravilhado com tudo o que era dela
- a sua beleza, a sua conversa, as suas roupas - tinha para com a senhora Médynski uma atitude de adoração. E paralelamente a essa adoração existia nele, aguda e
torturante, a consciência da distância que o separava dela, da sua superioridade em relação a si.
As relações entre eles tinham tomado rapidamente esse carácter: em dois ou três encontros Sofia Médynski dominou totalmente o adolescente e começou lentamente a
torturá-lo. Agradava-lhe decerto comandar um rapagão sólido e robusto, despertar nele o animal e domá-lo unicamente com o olhar e com a voz, e deleitava-se nesse
jogo, segura da solidez do seu império. Ele saía de casa dela meio doente de excitação, cheio de ressentimento contra ela e de raiva contra si próprio. Mas dois
dias mais tarde vinha de novo expor-se à tortura.
Uma vez perguntou-lhe timidamente:
- Sofia Pavlovna... Teve filhos?
- Não...
- Ah! Eu tinha a certeza! - exclamou alegremente Tomás.
Ela lançou-lhe um olhar que era absolutamente o de uma rapariguinha ingénua e disse:
- Como é que sabia? E, de resto, porque tinha necessidade de saber se tive filhos?
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Tomás corou, baixou a cabeça e começou a dizer-lhe com voz surda, como se fosse preciso arrancar de debaixo da terra palavras de que cada uma pesava meia tonelada:
- bom... se uma mulher que... quero dizer que teve filhos... bem, os olhos não podem ser como os seus...
- E como serão eles, então?
- Impudicos! - exclamou bruscamente Tomás. Sofia Médynski começou a rir com o seu riso cristalino e Tomás, a olhá-la, começou a rir também.
- Desculpe-me - disse ele por fim. - Expressei-me mal, decerto... Disse algo que não devia...
- Oh, não! Não! Não pode dizer nada que seja inconveniente... o senhor é muito puro, meu caro, Então, os meus olhos não são impudicos?
- Os seus são como os de um anjo - declarou Tomás, lançando-lhe um olhar radioso.
Ela olhou-o, por sua vez, mas de um modo como nunca o olhara até então: com os olhos de uma mãe, com olhos melancolicamente amigos onde se lia um temor pelo amado.
- Agora vá-se embora, meu caro... Estou fatigada e preciso repousar.
Docilmente, ele saiu.
Durante algum tempo ela adoptou para com ele uma atitude mais severa e mais digna, como se o poupasse, mas em seguida as suas relações retomaram o andamento do jogo
do gato e do rato.
Essas relações entre os dois não se podiam manter ignoradas do padrinho; um dia o velho perguntou, fazendo um esgar com a sua cara de réptil:
- Tomás, devias apalpar a cabeça mais frequentemente: nunca se sabe, poderias perdê-la.
- A que propósito diz isso?
- A propósito de Sônia, vais muitas vezes a casa dela.
- Que tem o senhor com isso? - disse Tomás quase grosseiramente. - E porque é que lhe chama Sônia?
- A mim não me importa, não serei eu que morra se ela te for destruindo a fogo lento. Quanto a chamá-la Sônia, toda a gente sabe porquê... E quanto a pôr os outros
a resolver-lhe os problemas, ela tem gosto para isso, também toda a gente o sabe.
- Ela é inteligente - declarou Tomás com firmeza, franzindo os sobrolhos e apertando os punhos nos bolsos. É cultivada.
- Inteligente, é exacto! Cultivada... Ela cultiva-te... mas sobretudo os inúteis que rodam à sua volta...
- Não são inúteis... pelo contrário, são inteligentes, também eles - replicou raivosamente Tomás, que já se
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contradizia. - Também com eles aprendo coisas... Não me levam, como pensa, pela ponta do nariz... Aprendo... Lá fala-se de tudo... cada um escolhe as suas palavras.
Não me impeça de me parecer com um homem.
- Oh! lá lá! Como tu aprendeste a falar! Então encolerizas-te e saltas como o graniso no telhado! Bem, de acordo, sê como um homem... Simplesmente, para isso é mais
seguro ir à taverna, onde os homens valem um pouco mais do que os que frequentam a Sofia. Farias melhor, meu rapaz, em aprender a distinguir para que servem as pessoas...
A Sofia, por exemplo... Que representa ela? Um insecto para embelezar a natureza, nada mais.
Revoltado até ao mais fundo do seu ser, Tomás cerrou os dentes e deixou Maiakine, mergulhando ainda mais profundamente as mãos nos bolsos. Mas o velho não tardou
a voltar a falar-lhe de Sofia.
Voltavam de uma doca onde tinham inspeccionado barcos; sentados num enorme trenó coberto conversavam de negócios animadamente e amigavelmente. Estava-se em Março;
a água gemia sob os patins, a neve estava quase fundida, o sol lançava no ar claro os seus raios alegres e quentes.
- Ao chegar, o primeiro cuidado vai ser o de ir ver a tua bela dama? - perguntou subitamente Maiakine, interrompendo a discussão de negócios:
- Sim, irei vê-la - respondeu Tomás, aborrecido.
- Hum... Diz-me cá, dás-lhe presentes com frequência? - perguntou Maiakine com ar cordial.
- Presentes? Porquê? - admirou-se Tomás.
- Não lhe dás presentes? Ora esta!... Então é só por amor, muito simplesmente, que ela te atura?
Tomás inflamou-se de cólera e de vergonha, voltou-se brutalmente para o padrinho e disse-lhe com um tom veemente de censura:
- Caramba! Deve ser terrível ser velho, o que vocês dizem dá vergonha ouvir. Acredita que ela consentiria nisso?
Maiakine estalou os lábios e pronunciou com voz desencorajada:
- Espécie de camelo! Grande idiota! (E de repente, furioso, cuspiu.) Pobre diabo! Todo o rebanho bebeu na celha, o que resta é espuma e o imbecil faz dessa pedra
rolada um ídolo! com os diabos, homem, acaba com isso. Vai a casa dela e diz-lhe sem rodeios: "Quero ser seu amante: sou novo, não me leve muito caro!"
- Padrinho, - disse Tomás com ar mau e ameaçador
- não posso suportar isso. Se fosse outro...
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- Mas que outro sem ser eu te avisaria? Ah, meu Deus! - gemeu ele batendo com as mãos. - Então, ela trouxe-te pelo beiço todo o Inverno! Ah!, a nojenta!
O velho estava indignado; vibravam na sua voz acentos de tristeza, de raiva, mesmo de lágrimas. Tomás nunca o tinha visto nesse estado e calou-se contrafeito.
- Ela perder-te-á! Ah, pecadora da Babilónia!...
As pálpebras de Maiakine batiam levemente, os lábios tremiam, e pôs-se a falar de Sofia Médynski em termos grosseiros e cínicos, freneticamente, espumando de fúria.
Tomás sentia que o velho dizia a verdade. Respirava dificilmente.
- bom, bom, basta padrinho... - pediu ele com voz abafada e desgostosa, afastando-se de Maiakine.
- Caramba, é preciso casar-te, depressa! - exclamou o velho, alarmado.
- Por amor de Deus, pare de falar! - disse Tomás em voz surda.
Maiakine lançou um olhar ao sobrinho e calou-se. Tomás tinha as feições alteradas, tinha empalidecido, via-se uma grande estupefacção dolorosa e amarga nas comissuras
dos lábios entreabertos e nos olhos tristes... À direita e à esquerda do caminho estendiam-se os campos cobertos com um manto de Inverno em farrapos. Nos sítios
em que a neve já tinha fundido apareciam placas escuras onde saltitavam corvos. A água esguichava sob os patins do trenó e a neve suja saltava sob os cascos dos
cavalos...
- Ah, sim, o homem é estúpido quando é novo! - exclamou Maiakine a meia voz. Tem-sob os olhos o tronco de uma árvore e vê o focinho de um animal. Oh! Oh!
- Fale em termos compreensíveis - disse Tomás desabrido.
- Não há nada a dizer. O assunto é claro: as virgens são o creme, as mulheres são o leite; as mulheres estão ao alcance da mão, as virgens estão longínquas... portanto
se não podes passar sem isso vai a casa da Sônia e diz-lhe francamente o que queres: isto e isto... Porque te zangas? Porque é que te dás ares?
- O senhor não compreende... - disse Tomás suavemente.
- O que é que não compreendo? Compreendo tudo.
- O coração. O homem tem um coração! - prosseguiu ele no mesmo tom suave.
Maiakine franziu a testa e respondeu:
- O que quer dizer que não tem espírito.
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VI
Tomás chegou à cidade invadido por um furor melancólico e vingativo. Fervia nele um desejo apaixonado de insultar Sofia Médynski, de a cobrir de injúrias. Apertando
convulsivamente os dentes, com as mãos profundamente mergulhadas nos bolsos, passeou durante várias horas nas salas vazias da sua casa: franzia o sobrolho com cólera
e inchava o peito respirando fundo. O coração cheio de rancor sentia-se apertado no peito. Pesadamente e em cadência batia com o pé no chão como que para nele imprimir
a sua raiva.
- A miserável... que se disfarçava de anjo!
De vez em quando a esperança soprava-lhe com voz tímida:
- Talvez tudo isso sejam calúnias...
Mas a segurança frenética e a energia das palavras do padrinho voltavam-lhe à memória e apertava os dentes com mais violência, inchava o peito ainda mais.
Maiakine, ao arrastar a senhora Médynski pela lama, tinha-a tornado mais acessível ao afilhado, e Tomás não tardou a compreendê-lo. Passaram-se alguns dias que Tomás
consagrou a problemas comerciais da Primavera e os seus sentimentos de revolta apaziguaram-se. A tristeza de ter perdido um ser humano abrandou o furor contra a
mulher e o pensamento de que esta era acessível reforçou a atracção que ela exercia sobre ele. Insensivelmente chegou a uma decisão: devia ir a casa de Sofia Pavlovna
e dizer-lhe francamente, simplesmente, o que queria dela, e nada mais.
A criada da senhora Médynski estava habituada às visitas de Tomás e, quando ele perguntou se ela estava em casa, respondeu:
- Faça o favor de entrar para o salão...
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Perdeu um pouco da sua segurança... mas tendo lobrigado num espelho a sua própria figura, bem proporcionada, envolta em boa roupa, o rosto de grandes olhos escuros,
bronzeado, sério, enquadrado numa barba negra e macia, encolheu os ombros e avançou com passo firme.
As notas de um instrumento de cordas vinham ao seu encontro - notas tão estranhas: pareciam rir, com um riso arrastado, exalar um lamento suavemente patético, implorar
sem esperança a atenção de um coração... Tomás não apreciava a música, ela entristecia-o sempre. Mesmo na taberna, quando o órgão de manivela começava a tocar alguma
coisa de desolado, sentia no peito um abatimento nostálgico e pedia que parassem o instrumento, ou então afastava-se com a sensação de não poder ouvir esses discursos
sem palavras mas cheios de lágrimas e de queixas. E eis que, contra a sua vontade, parava diante da porta do salão.
A porta estava tapada com longas fitas com uma enfiada de pérolas de vidro multicolores dispostas de tal maneira que desenhavam os arabescos irreais de não se sabia
que vegetação; as fitas oscilavam suavemente e dir-se-ia que voavam no ar pálidas sombras de flores. Essa barreira translúcida não escondia o interior do salão.
Sofia Médynski, sentada num divã baixo, no seu canto predilecto, tocava bandolim. Uma grande sombrinha japonesa, fixada na parede, cobria com a sua miscelânea de
cores a mulher envolta num roupão escuro; um alto lampadário de bronze, guarnecido com um abat-jour púrpura, inundava-a com uma luz crepuscular. As notas delicadas
das finas cordas vibravam melancolicamente na sala exígua, repleta de uma macia e odorosa obscuridade. A mulher tinha deixado cair o bandolim nos joelhos e, continuando
delicadamente a fazer vibrar as cordas, tinha-se posto a olhar fixamente um ponto distante.
Tomás examinava-a e via que, sozinha com ela mesma, não era tão bela como em público: o rosto era mais grave e mais velho, os olhos perdiam a expressão de ternura
e de suavidade, o olhar exprimia o aborrecimento. Tinha uma atitude fatigada, parecia que se queria levantar mas se sentia incapaz de o fazer.
O jovem tossiu.
- Quem é? - perguntou ela com um sobressalto medroso. (E as cordas tremeram, soltando um som plangente).
- Sou eu - disse Tomás afastando o cortinado de pérolas.
- Ah! Como está silencioso!... Estou contente por o ver... Sente-se!... Porque esteve tanto tempo sem vir?
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Estendeu-lhe uma das mãos e com a outra apontou-lhe uma pequena poltrona a seu lado; os olhos sorriam alegremente.
- Fui ao porto inspeccionar barcos - disse Tomás com um tom excessivamente indiferente, aproximando o seu assento do divã.
- Ainda há muita neve pelos campos?
- Tanta quanta se quiser... mas funde rapidamente... Nos caminhos há água por todos os lados.
Olhava-a e sorria. Decerto a senhora Médynski notou o desembaraço da sua atitude e o que havia de novo no seu sorriso; rectificou as pregas da saia e recuou. Os
olhos dos dois encontraram-se e Sofia baixou a cabeça.
- É o degelo! - disse ela, sonhadora, examinando sob todos os ângulos o anel que lhe enfeitava o dedo.
- Sim... há regatos em toda a parte - declarou Tomás admirando-lhe as botinas.
- É bom... é a Primavera que chega.
- Agora já não deve tardar.
- É a Primavera que chega - repetiu Sofia em voz baixa, como que a prestar atenção à sonoridade das palavras.
- As pessoas vão-se apaixonar - disse Tomás, sorrindo, esfregando as mãos energicamente.
- Prepara-se para isso? - perguntou ela secamente.
- Para mim não há essa possibilidade: há muito tempo que o estou... para sempre...
Ela olhou-o muito rapidamente e recomeçou a tocar, dizendo com ar pensativo:
- Como é bom para si estar ainda, apenas, a começar a viver!... O coração cheio de energia... nada de obscuro nele...
Sofia Pavlovna! - exclamou docemente Tomás. com um gesto acariciador ela fê-lo parar.
- Um momento, meu caro! Hoje, posso-lhe dizer... algo de bom... Sabe, para um ser que viveu muito, há momentos em que se examina o coração com o olhar e se descobre
de repente... alguma coisa que se encontrava perdida, esquecida há muito tempo... Tinha-se escondido muito longe, algures no fundo do coração durante anos... mas
isso não lhe fez perder o bom odor da adolescência e quando a memória o atinge... o sopro de vida e de frescura das auroras envolve o ser...
As cordas estremeciam, choravam sob os seus dedos, Tomás tinha a impressão de que as suas notas e a doce voz da mulher lhe acariciavam suave e delicadamente o seu
coração. Mas firmemente preso à sua decisão, ouvia
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as palavras que ela lhe dizia sem lhes apreender o sentido; pensava:
"Fala, fala, agora já não acredito numa palavra do que dizes."
Aquilo exasperava-o. Lamentava não poder ouvir as palavras dela com atenção e confiança, como as ouvia antes, ainda há pouco...
- Acontece-lhe algumas vezes reflectir sobre a maneira como se deve viver?
- Às vezes penso nisso e depois esqueço tudo outra vez. Não há tempo para isso! - gracejou Tomás. - De resto, pensar para quê? Vê-se como vivem as pessoas... e basta
imitá-las.
- Ah, não faça isso. Tenha pena de si mesmo... O senhor é... maravilhoso... Há em si algo de especial. O quê? Não sei. Mas sente-se... E parece-me que lhe será horrorosamente
difícil viver... Estou convencida de que não seguirá os caminhos normalmente utilizados pelas pessoas do seu meio... Não, não posso conceber que aceite uma existência
inteiramente dedicada à caça aos rublos... oh, não! Sei que tem vontade de outra coisa... não é verdade?
Ela falava depressa. Havia angústia nos seus olhos. Tomás pensava olhando-a: "Onde é que ela quer chegar?"
Ela aproximou-se dele, fixou-o no rosto e disse-lhe com um tom persuasivo:
- Organize a sua vida de um modo diverso, não importa por que meio... É jovem, forte... bom!
- Se sou bom é necessário que a vida seja boa para mim - exclamou Tomás, que sentia a emoção invadi-lo e o coração pôr-se a palpitar.
- Infelizmente, na terra, ela é sempre pior para os bons do que para os maus - disse ela tristemente.
E imediatamente estremeceram sob os seus dedos notas vibrantes. Tomás sentiu que, se não começasse a dizer imediatamente as palavras que devia dizer, não conseguiria
já dizê-las na continuação daquele diálogo.
"Dai-me coragem, meu Deus" pronunciou ele mentalmente; com voz baixa, o peito oprimido, começou:
- Sofia Pavlovna! Basta, agora!... Tenho de lhe falar... É isso que lhe vim dizer: basta! Deve-se agir com franqueza... a descoberto... A senhora atraiu-me a si,
no início... e agora coloca obstáculos entre nós... Não compreendo aquilo que diz... tenho o espírito obtuso... mas sinto perfeitamente que se quer escapar... vejo-o...
Compreende o que me traz aqui?
Os olhos excitaram-se, a cada palavra a sua voz
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tornava-se mais ardente e forte. Ela teve um sobressalto que lhe percorreu todo o corpo e disse num tom alarmado:
- Oh! Pare...
- Não, falarei!
- Eu sei o que vai dizer...
- Não sabe tudo! - ameaçou Tomás levantando-se.
- Mas eu, eu sei tudo o que lhe diz respeito, tudo!
- Sim? Tanto melhor para mim! - proferiu ela, sem se perturbar.
Levantou-se também, como se estivesse para sair, mas, após uma pausa de um ou dois segundos, deixou-se cair novamente no lugar. O seu rosto estava grave, os lábios
estreitamente apertados, mas tinha os olhos baixos e Tomás não lhe via a expressão. Ele tinha pensado que ao dizer "sei tudo o que lhe diz respeito" ela se assustaria,
teria vergonha e, perturbada, se desculparia de o ter mistificado e imploraria o seu perdão. Então tê-la-ia estreitado violentamente e ter-lhe-ia perdoado. Mas as
coisas não se estavam a passar assim; era ele que estava desconcertado com a calma que ela mostrava, olhava-a e procurava, sem as encontrar, palavras que pudessem
prolongar a sua tirada.
- Tanto melhor! - repetiu ela com um tom seco e seguro de si. Portanto sabe tudo, não é verdade? E evidentemente, condenou-me, como deve ser... compreendo... aos
seus olhos, sou culpada... Oh, não... não me vou justificar...
Calou-se subitamente, com um gesto nervoso, ergueu as mãos, pegou na cabeça... e pôs-se a arranjar o penteado.
Tomás soltou um profundo suspiro. As palavras de Sofia tinham aniquilado nele a esperança, uma esperança de que ele sentia ainda a presença no coração, embora estivesse
morta. Amargamente, com reprovação, abanou a cabeça.
- Ainda há pouco, quando falava, eu olhava para si pensando: "Como é bela, como é boa... É uma pomba!..." E agora afirma-se culpada... Que miséria!
A voz quebrou-se-lhe. Mas ela pôs-se a rir suavemente.
- Como o senhor é esplêndido e ridículo!...
O rapaz olhava-a e sentia-se desarmado por essas palavras acariciantes e esse sorriso triste. O que havia no seu coração de frio e duro contra ela desapareceu sob
o brilho quente daquele olhar. Agora essa mulher parecia-lhe pequena, indefesa, semelhante a uma criança. Ela dizia qualquer coisa com a sua voz terna, como que
suplicante, sem cessar de sorrir; mas ele não a ouvia.
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- Quando cheguei vinha impiedoso - interrompeu-a ele. - Pensava: falar-lhe-ei. Não disse nada, nem tenho já vontade de dizer... Falta-me a coragem. Solta-se de si
uma atmosfera estranha que me... Ah! Porque havia de aparecer na minha vida? O que significa para mim? Só me resta ir-me embora, é evidente...
- Um momento, meu caro, não vá embora! - disse ela precipitadamente estendendo o braço na direcção dele. Porquê agir desse modo... com mau humor? Não me queira mal!
Que sou eu para si? O que necessita é de outra amiga, tão simples e de alma tão saudável como a sua... Ela deverá ser alegre, forte... Eu, claro, sou já uma velha...
Sou triste... Levo uma existência vazia e aborrecida... tão vazia! Sabe, quando uma pessoa se habitua a levar uma vida de alegria sem poder ser alegre, torna-se
infeliz. Ela não ri, é a vida que se ri dela... Quanto aos outros... Ouça! Dou-lhe um conselho de mãe, dou-o como se faz uma súplica, uma prece... Não dê ouvidos
a ninguém senão ao seu coração. Viva a vida que ele lhe inspirar. As pessoas não sabem nada, não podem dizer nada que seja justo... não as ouça!
Esforçando-se por falar uma linguagem mais simples e mais compreensível, ela perturbava-se e as suas palavras caíam apressadamente umas atrás das outras sem ligação.
Ò sorriso triste mantinha-se nos lábios.
- A vida é severa... Ela quer que todos os homens se inclinem diante das suas exigências, só aqueles que são muito fortes podem resistir impunemente... E mesmo assim,
poderão? Ah, se soubesse como é penoso viver!... O homem acaba por se temer a si mesmo... desdobra-se: juiz e criminoso ao mesmo tempo; julga-se a ele próprio e
procura justificar-se a seus olhos... e está pronto a passar noite e dia com aquele a quem despreza e que o aborrece, contanto, somente, que não fique só consigo
mesmo!
Tomás levantou a cabeça e disse com um espanto incrédulo:
- Não compreendo nada: que quer dizer? Luba diz precisamente a mesma coisa...
- Qual Luba? Que diz ela?
- É a minha irmã... Diz a mesma coisa, lamenta-se sempre da vida. É impossível viver, diz ela.
- Oh, é uma grande felicidade que já ela fale disso...
- Felicidade? Estranha felicidade aquela que faz gemer e lamentar-se...
- Oh, vejo que não compreende... Ouça-me: nos lamentos das pessoas há sempre muita ponderação... A ponderação é a dor...
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Tomás ouvia a harmonia convincente daquela voz de mulher e lançava à sua volta olhares perplexos. Havia muito tempo que tudo ali lhe era familiar, mas hoje tudo
tomava o mesmo encastelamento de bibelots que enchia o aposento; as paredes estavam cobertas de quadros, de prateleiras, bonitas bagatelas brilhantes atraíam os
olhos. A luz avermelhada do candeeiro espalhava uma desolação inquietante. A obscuridade marcava todas as coisas, aqui e além emergia o faiscar dourado de um quadro
ou as manchas brancas das porcelanas. Pesados reposteiros pendiam, imóveis, nas portas. Tudo isso importunava Tomás, oprimia-o, e sentia-se perdido. Sentia pena
da mulher. Mas ao mesmo tempo ela exasperava-o.
- Está a ouvir o que eu digo? Queria ser sua mãe, sua irmã... Nunca ninguém me inspirou, creia, um sentimento tão caloroso... Mas olha-me agora com tanta... hostilidade...
Acredita em mim? Sim? Não?
Ele olhou-a e disse, suspirando:
- Não sei. Acreditava-a...
- E agora? - perguntou ela com vivacidade.
- E agora, é preferível que a deixe. Não compreendo nada... Vim vê-la e sabia o que devia dizer... Mas fiquei perturbado... A senhora pôs-me em cima de brasas, diz-me:
"Sou a tua mãe!" O que quer dizer: "Desaparece!"
- Tente compreender: tenho pena de si! - exclamou ela em voz baixa.
A exasperação de Tomás crescia cada vez mais, e à medida que falava, as frases tornavam-se-lhe zombeteiras... Ao falar, sacudia os ombros como que para quebrar os
laços que o teriam ligado.
- Tem pena?... Não tenho necessidade... Ah, é verdade que não sei falar... mas devo dizer-lhe: agiu mal para comigo; porquê, porque enganou um ser humano? Eu era
então um brinquedo para si?
- Queria apenas senti-lo junto de mim - disse ela simplesmente e com voz culpada.
Ele não ouviu aquelas palavras.
- Mas como as coisas chegaram a um certo ponto, ganhou medo e quis livrar-se de mim... Começou a arrepender-se... A vida é má! Que vos leva a todos a lamentarem-se
constantemente da vida? O que é a vida? A vida é o homem, sem ele a vida não existe... Mas a senhora foi procurar não sei que monstruosidade... É para contrapartida,
para se justificar. Embala-se a si mesma, perde-se no meio de fantasias e geme! Ah! A vida! Óh! A vida! Mas não foi a senhora que a fez assim, a vida? E ao esconder-se
atrás dos seus lamentos, lança os outros na confusão... Admitamos, tomou por
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mau caminho, mas porquê ter-me enganado? Foi talvez a maldade que a impeliu: disse a si mesma: "Já que sou infeliz, sê-lo-ás também, infeliz, apanha!" Foi isso,
hem?... Deus deu-lhe a beleza de um anjo, mas onde está o seu coração?
Ele tremia com todo o corpo, de pé, diante dela, olhava-a dos pés à cabeça com um olhar cheio de reprovação. Agora as palavras surgiam-lhe sem esforço, falava sem
erguer a voz mas com força, e tinha prazer em falar. A mulher, de cabeça erguida, os olhos muito abertos, examinava-lhe o rosto. Os lábios tremiam-lhe e pequenas
rugas nitidamente desenhadas apareciam nas comissuras.
- O senhor é belo e deve viver segundo as leis do bem... como me diz... No entanto, eis como falam de si...
A voz quebrou-se-lhe e com um encolher de ombros, concluiu:
- Adeus!
- Adeus! - respondeu ela, com voz fraca.
Ele não lhe estendeu a mão e, voltando as costas bruscamente, afastou-se. Mas ao chegar à porta, sentiu que tinha pena dela e olhou-a por cima do ombro. Ela estava
lá, de pé, no canto, um braço pendente imóvel ao longo do corpo; a cabeça estava inclinada.
Ele compreendeu que lhe era impossível partir assim, perturbou-se e suavemente, mas sem remorsos, disse:
- Pode ser que eu tenha dito palavras ofensivas, perdoe-me! Apesar de tudo... eu... eu amo-a.
Soltou um profundo suspiro mas a mulher pôs-se a rir com um riso curto e estranho.
- Não, não me ofendeu... Vá, que Deus o proteja.
- Bem! Adeus! - repetiu Tomás ainda mais baixo.
- Adeus... - respondeu ela no mesmo tom. Tomás afastou com a mão as fitas da porta; as pérolas
balançavam-se com ruído e tocavam-lhe a face. Estremeceu sob o frio desse contacto e saiu, com o coração cheio de um sentimento penoso e complexo. O coração pulsava
como que encerrado numa rede de malhas finas mas sólidas.
Já era noite, a lua brilhava, o gelo tinha coberto as poças de água com uma película prateada. Tomás caminhava pelo passeio e, com a bengala, quebrava aquelas películas
em mil pedaços; o estalido do gelo dava um som melancólico. A sombra das casas alongava-se pela calçada em rectângulos negros e a das árvores em arabescos fantásticos.
Certas dessas sombras pareciam-se com mãos frágeis arranhando a terra inutilmente.
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"Que faz ela agora?" pensava Tomás, imaginando a mulher solitária num canto da sala no meio da obscuridade avermelhada.
"É preferível que eu te esqueça", decidiu. Mas era impossível esquecê-la, ela estava de pé diante dele, provocando por vezes uma piedade pungente, outras vezes a
exasperação e mesmo o furor. A imagem dela era tão nítida e tão pesados pensamentos lhe inspirava que lhe parecia trazer a mulher no peito... Uma caleche passou
por ele, enchendo o silêncio nocturno com o ruído do rodado sobre as pedras e o ranger do gelo partido. O cocheiro e o cliente balançavam-se e saltavam ao ritmo
da viatura: ambos se inclinavam para a frente - não se sabia porquê - e juntamente com o cavalo tudo isso constituía uma única grande massa negra. A rua estava semeada
de manchas de sombra e de luz, mas ao longe as trevas eram tão espessas que parecia existir um muro a cortá-la, subindo do solo para o céu. Veio a Tomás o pensamento
de que aquelas pessoas não sabiam para onde iam... Ele próprio também não sabia para onde ia... Imaginou ver a sua casa: seis grandes divisões. A tia Anfissa tinha
ido para o convento, talvez não voltasse, ia morrer... A casa: Ivan, o porteiro, Sékléteia, uma solteirona, cozinheira e criada de quarto, um cão preto, decrépito,
igualmente velho... "Bem, seja, devo-me casar..." pensou Tomás com um suspiro.
Mas sentiu-se acanhado e mesmo ridículo à ideia de se casar; era tão fácil para ele. Amanhã podia dizer ao padrinho que lhe procurasse uma noiva e menos de um mês
mais tarde teria uma mulher que viveria com ele na sua casa: estaria junto dele noite e dia. Bastaria dizer "Vamos passear" e ela sairia com ele; bastaria dizer
"vamo-nos deitar" e ela iria. E se ela tivesse vontade de o abraçar fá-lo-ia mesmo que ele não quisesse. E se ele dissesse: "Não quero, vai-te embora", ela ficaria
vexada... De que falaria com ela? Recordou-se das raparigas que conhecia. Algumas eram belas e ele sabia que aquela que ele escolhesse casaria com ele de boa vontade.
Mas não havia uma única que ele desejasse para mulher... Como se deve ter vergonha e acanhamento quando uma rapariga se torna nossa mulher... E que podem as pessoas
dizer, depois da cerimónia, no quarto de dormir? Tomás tentava imaginar o que diria nessas circunstâncias, e no seu embaraço pôs-se a rir sem encontrar qualquer
palavra adequada. Depois recordou-se de Luba Maiakine. Essa, possivelmente, pronunciaria ela em primeiro lugar palavras que não eram dela e que nada significariam...
Teve a impressão de que nada do que ela dizia era da sua cabeça
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e que não falava como devia falar uma rapariga da sua idade, do seu porte e da sua condição.
Aqui, o pensamento deteve-se-lhe nas queixas de Luba. Moderou o passo, chocado pelo facto de que todos aqueles com quem conversava um pouco longamente e intimamente
lhe falavam sempre da vida. E o seu pai, a sua tia, ou lhe ensinavam a vida, ou se lamentavam acerca dela. As palavras que o velho do barco tinha pronunciado acerca
do destino voltaram-lhe ao espírito, assim como muitas outras notas a respeito da vida, censuras que se lhe dirigiam e amargas recriminações contra ela, que recolhera
à passagem da boca de toda a espécie de pessoas.
"Que quer isso dizer? - pensava ele. - O que é a vida se não são os homens? Mas os homens falam como se ela não fosse eles; então é porque há outra coisa além dos
homens e que isso os impede de viver."
Um sinistro sentimento de medo apoderou-se do jovem; pôs-se a tremer e lançou um rápido olhar à sua volta. A rua estava silenciosa e deserta: embaciadas, as janelas
escuras das casas olhavam as trevas nocturnas; nas paredes, ao longo das palissadas, a sombra de Tomás movia-se atrás dele.
- Cocheiro! - chamou, com voz forte, acelerando o passo.
A sombra sobressaltou-se e deslizou medrosamente na sua esteira, muda e negra.
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VII
Tinha decorrido uma semana inteira após a entrevista de Tomás com Sofia Médynski. Dia e noite, teimosamente, a imagem dela mantinha-se viva e provocava-lhe no coração
um sentimento doloroso e inquieto. Tinha vontade de ir a casa dela, sentia-se doente com o desejo de estar de novo junto dela, mas mostrava-se enérgico e não queria
ceder a esse desejo, ocupava-se com furor dos negócios e excitava no seu íntimo a sua raiva contra a mulher. Sentia que se fosse a casa dela já não a encontraria
semelhante àquela que tinha deixado; devia-se ter produzido nela qualquer transformação na sequência da entrevista, já não o acolheria com a mesma simpatia do passado,
não mais lhe sorriria com o claro sorriso que despertava nele certos pensamentos e certas esperanças. Temendo que isso não existisse já e em seu lugar encontrasse
outra coisa, continha-se e vivia no tormento...
O trabalho e a saudade de Sofia não o impediam porém de meditar sobre a sua vida. Não raciocinava acerca desse enigma que o inquietava - não sabia raciocinar; mas
começou a prestar atenção a tudo o que as pesssoas diziam. Não lhe ofereciam qualquer esclarecimento, não faziam mais do que exagerar a sua perplexidade e incitavam-no
a considerá-las com suspeição. Eram homens hábeis, espertos e inteligentes: isso via-o perfeitamente. Em negócios era necessário estar sempre de pé atrás com eles;
já sabia que em circunstâncias graves nenhum lhe diria o que pensava. E observando-os atentamente, sentia que os suspiros e as queixas que faziam a respeito da vida
só provocavam nele incredulidade. Silencioso, com um
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olhar desconfiado, examinava-os a todos e uma fina ruga barrava-lhe a fronte...
Uma manhã, na Bolsa, o padrinho disse-lhe:
- O Ananias chegou... Mandou-te convidar... Passa por casa dele esta tarde, mas desconfia dele, segura a língua... O Ananias vai tentar pôr-te a falar para que lhe
desvendes os teus negócios... ele é um espertalhão, um velho Diabo... uma verdadeira raposa... Erguerá os olhos para o céu, passar-te-á a mão pelas costas e palmar-te-á
a carteira... Toma cuidado.
- Devemos-lhe alguma coisa? - perguntou Tomás.
- Claro! Uma barcaça que ainda não pagamos, e recentemente madeira, uns cinquenta esteres. Se te pede para lhe pagares tudo de uma vez, não caias nisso... Um rublo
é uma coisa que cola: quanto mais o remexes na mão mais os copeques se aglutinam.
- Mas se ele exige o pagamento, como é que se pode não o fazer?
- Mesmo que ele chore a pedir, o teu papel é bramar; não pagues.
Ananias Savitch Stchurov era um grande negociante de madeiras, possuía uma enorme serração, construía barcaças, fazia o transporte de toros pelo rio. Tinha tido
negócios com Inácio, e Tomás tinha visto mais do que uma vez esse grande velho, direito como um fuso, com uma imensa barba branca e longos braços. A sua alta e bela
estatura, o seu rosto aberto e o olhar claro tinham provocado o respeito de Tomás, se bem que tivesse ouvido dizer que esse "homem de pau" tinha enriquecido desonestamente,
e que levava uma má vida na sua terra, numa aldeia perdida de um distrito florestal. O pai de Tomás tinha-lhe contado que o madeireiro, na sua juventude, quando
era ainda um pobre aldeão, recolhera no seu jardim, na cabana dos banhos, um forçado evadido, e que esse forçado tinha fabricado para ele moeda falsa. Tinha sido
nessa época que Ananias começara a enriquecer. Um dia a cabana dos banhos ardeu, e nas cinzas foi encontrado um cadáver carbonizado com o crânio fendido. Dizia-se
na cidade que Stchurov tinha matado ele próprio o seu operário e o tinha incinerado daquele modo. Boatos desse género circulavam acerca de vários ricaços da cidade:
todos, segundo parecia, tinham reunido milhões por meio da pilhagem e do assassínio, mas sobretudo com moeda falsa. Desde a sua infância, Tomás ouvira relatos desse
estilo e nunca tinha perguntado a si mesmo se eram ou não exactos.
Acerca de Stchurov, também sabia que ele tinha feito passar duas mulheres desta para melhor: uma tinha
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morrido na própria noite de núpcias nos amplexos de Ananias. Depois tinha raptado a mulher do seu próprio filho; com o desgosto este tinha começado a beber, mas
tinha-se arrependido a tempo e tinha procurado a salvação num eremitério dos Montes Erghemi. Quando a sua amante e nora morreu, tinha levado para casa uma jovem
muda, uma mendiga; desde então vivia com ela e esta tinha dado à luz um nado-morto... No caminho para a estalagem onde se ia encontrar com Ananias, Tomás recordava-se,
mesmo sem querer, de tudo o que lhe contara o pai e o que ouvira a outras pessoas a respeito do velho e tinha a sensação de que aquele homem o interessava curiosamente.
Quando Tomás, depois de ter aberto a porta, parou respeitosamente no limiar do modesto quarto, iluminado por uma única janela através da qual só se apercebia o telhado
de colmo da casa vizinha, viu o velho Stchurov que acabava de acordar; estava sentado na cama e, apoiando-se nela com as duas mãos, olhava para o chão. Estava de
tal modo dobrado em dois que a sua longa barba branca repousava nos joelhos. No entanto, mesmo curvado, era alto...
- Quem é? - perguntou Ananias com voz sibilante e irritada, sem levantar a cabeça.
- Sou eu. bom dia Ananias Savitch...
O velho levantou a cabeça lentamente e, com os olhos franzidos, olhou para Tomás.
- O filho do Inácio, não é?
- Eu próprio...
- Bem, senta-te aí, perto da janela; vamos travar conhecimento. Tomas chá?
- De boa vontade...
- Rapaz! - gritou o velho com todas as forças, chamando pelo empregado.
E pegando na barba com a mão, pôs-se a examinar Tomás em silêncio. Este observava-o também com o canto dos olhos.
A testa alta do velho estava toda marcada pelos sulcos das rugas. Madeixas brancas e onduladas cobriam-lhe as têmporas e as orelhas pontudas; os olhos azuis e serenos
davam ao cimo do rosto uma expressão de inteligência e de nobreza. Mas os lábios eram espessos, caídos, pareciam querer-se dissimular sob os bigodes brancos; o velho
mexia os lábios, mostrando os dentes, amarelados e agudos. Trazia uma blusa de tecido cor-de-rosa apertada com um cinto de seda e calças de balão pretas que lhe
caíam sobre as botas. Tomás olhava-lhe os lábios e pensava que o sujeito devia bem ser aquilo que se dizia que era.
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- Quando eras pequeno parecias-te mais com o teu pai! - disse de repente Ananias, soltando um suspiro.
Depois de um curto silêncio, perguntou:
- Lembras-te do teu pai? Rezas pela sua alma? É preciso rezar, é preciso! - prosseguiu ele depois de ter ouvido até ao fim a curta resposta de Tomás.
- O Inácio era um grande pecador... e morreu sem penitência... de repente... Um grande pecador.
-Não era mais pecador do que os outros, parece-me a mim - respondeu Tomás com voz ofendida, defendendo o pai.
- Do que quem, por exemplo? - perguntou severamente Stchurov.
- Não são os pecadores que faltam!
- Mais pecador do que o defunto Inácio, aqui em baixo, só há um, um pagão danado, é o teu padrinho lachka - martelou o velho.
- Tem a certeza absoluta? - informou-se Tomás com um sorriso.
- Eu? Claro que tenho! - disse o velho com convicção e, depois de um acenar de cabeça, os olhos tornaram-se mais escuros. - Eu próprio me apresentarei diante de
Deus, Nosso Senhor... e não chegarei sem bagagens... Levarei comigo um fardo bem pesado quando estiver perante o seu rosto divino... Também eu lidei com o Diabo...
com a diferença, porém, de que eu acredito na misericórdia divina, ao passo que lachka não acredita em Deus nem no Diabo, nem no grito do corvo... lachka não acredita
em Deus... sei-o muito bem. E porque não acredita será castigado ainda nesta terra.
- Também tem a certeza disso? - perguntou Tomás.
- Também... Que pensas?... Sei muito bem que te diverte ouvir-me... Dizes lá com os teus botões: "Tem a mania que é vidente!". Mas o homem que pecou muito é sempre
inteligente... O pecado é um ensinamento... É por isso que Maiakine é de uma inteligência excepcional.
Ouvindo a voz rouca e segura de si do velho, Tomás pensou: "Não há dúvida, ele fareja a morte."
O empregado, um homenzinho de rosto amarelo e enrugado, trouxe o samovar e rapidamente, com passos miúdos, saiu do quarto. O velho arrumava embrulhos no peitoril
da janela e, sem olhar para Tomás, declarou:
- Tu és insolente... E o teu olhar é escuro... Dantes havia pessoas de olhos claros... as almas eram mais claras... Dantes era tudo mais simples, tanto os homens
como os pecados... mas agora é tudo mais complicado... He! He! He!
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Preparou o chá, sentou-se diante de Tomás e recomeçou:
- Na tua idade, o teu pai... era capataz no Volga, e estava com o seu comboio nas paragens da nossa aldeia... com a tua idade, Inácio era límpido como o vidro...
Bastava um olhar para se ver que espécie de homem era... A ti, olho-te e não vejo quem és. O que és? Nem tu próprio sabes, meu rapaz... e é isso que causará a tua
perda... Todos os homens dos nossos dias devem-se perder porque não se conhecem a si mesmos... A vida é um emaranhado de árvores arrancadas pela tempestade e é preciso
saber traçar o seu caminho pelo meio dessa selva... e durante esse tempo o Diabo esfrega as mãos... Já casaste?
- Ainda não - disse Tomás.
- Essa é boa... ainda não é casado e, claro, deve ser impuro há muito tempo... bom, trabalhas muito no teu negócio?
- É bem preciso... Por agora, estou com o meu padrinho...
- E qual é o vosso trabalho, de momento? - perguntou o velho, balouçando a cabeça, enquanto os olhos continuavam a mexer, ora mais claros, ora mais escuros.
- O trabalho hoje não é pesado. Dantes o comerciante era obrigado a viajar imenso, a cavalo, para fazer os seus negócios... no meio de tempestades de neve, pela
noite dentro... Ordinário, marche. Os salteadores esperavam-no no caminho e matavam-no... morria como um mártir... os seus pecados eram lavados no sangue... Agora
viaja-se de comboio... mandam-se telegramas... ainda por cima inventou-se o meio de falar, sem sair do escritório, com um homem que vos ouve e responde à distância
de cinco verstas... claro que tudo isso não se faz sem espírito diabólico. O homem fica no seu lugar... não se mexe e peca porque se aborrece por não fazer nada;
a máquina faz tudo em lugar dele. Não há verdadeiro trabalho, e sem trabalho o homem está perdido. Está cercado de máquinas, e pensa: "Assim é que é bom!" Mas ela,
a máquina, é uma armadilha colocada pelo Demónio! Quando se trabalha duro não há tempo para o pecado, mas com a máquina fica-se livre. É pela liberdade que o homem
perecerá, como o verme que habita as entranhas da terra vem morrer ao sol... É pela liberdade que o homem perecerá.
E, pronunciando essas palavras de modo a valorizar cada sílaba de maneira insistente, o velho Ananias bateu com o dedo na mesa quatro vezes. O rosto irradiava um
triunfo mau, o peito erguia-se violentamente, os pêlos
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prateados da barba agitavam-se-lhe no peito. Tomás sentiu-se oprimido ao ouvir aquelas considerações, elas tinham o tom de uma fé inquebrantável e o vigor dessa
fé perturbava-o. Já tinha esquecido tudo o que sabia do velho e o que pensava ser verdade ainda há pouco.
Ananias olhava para Tomás de um modo tão estranho que parecia ver atrás dele alguém a quem aquelas palavras feriam de um modo terrificante e doloroso, e esse terror,
essa dor, provocavam a sua alegria...
- E vós todos, os de agora, sereis perdidos por essa liberdade... O Diabo tem-vos na mão... tirou-vos o trabalho, garantiu-se de vós com as suas máquinas e os seus
telegramas... Ora então, diz-me cá... porque é que as crianças são piores do que os pais? Por causa da liberdade, claro! Por isso é que bebem e se lançam em orgias
com as mulheres...
- Ora, ora, - disse calmamente Tomás - bebem e divertem-se tanto como os outros antes deles...
- Tu devias-te calar - gritou Ananias, severo, com os olhos brilhantes... Nesse tempo os homens tinham mais força... os pecados eram à medida da sua força. Nesse
tempo os homens eram como carvalhos... e Deus os julgará segundo as suas forças... Os seus corpos serão pesados e os anjos medirão o seu sangue... e os anjos de
Deus verão que o peso dos pecados não é superior ao peso do sangue e do corpo... Compreendes? Ó Senhor não condena o lobo que devora as ovelhas... mas se um infame
rato devora uma ele condenará o rato.
- Como é que as pessoas podem saber o modo como Deus condenará o homem? - Perguntou Tomás, pensativo. - É necessário um tribunal visível...
- Visível, porquê?
- Para que os homens possam compreender...
- E quem, além de Deus, poderá ser meu juiz? Tomás olhou o velho e calou-se, baixando a cabeça.
Tinha-se lembrado do forçado fugitivo morto e queimado por Stchurov e acreditou imediatamente que a coisa tinha acontecido. E as mulheres, esposas e amantes que
esse velho tinha seguramente empurrado para o túmulo com as suas carícias brutais, tinha-as esmagado sob o seu peito ossudo, tinha-lhes bebido o suco das suas vidas
com os seus lábios espessos, ainda hoje vermelhos como se, neles, o sangue das mulheres mortas no enlace dos seus braços musculados não estivesse ainda seco. E eis
que agora, esperando a morte já próxima, fazia a conta aos seus pecados, julgava os homens e dizia: "Quem, além de Deus, será meu juiz?"
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"Tem medo ou não?" perguntou Tomás a si mesmo, absorto, examinando furtivamente o velho.
- Pensa nisso, meu rapaz - disse Stchurov abanando a cabeça. - Pensa na maneira como deverás viver... Oh! Oh, oh! Há tanto tempo que eu vivo! As árvores cresceram,
foram abatidas, serviram para construir casas e mesmo as casas já caíram em ruínas... mas eu vi isso e continuo a viver. Quando por acaso começo a recordar a minha
vida, penso: "É possível que um só homem tenha podido realizar tantas coisas? É possível que eu tenha podido viver tudo isso?"
O velho lançou a Tomás um olhar duro, abanou a cabeça e calou-se...
O tempo estava calmo. Atrás da janela, sob o telhado da casa, alguma coisa produzia um ruído fraco; um barulho de rodas e de vozes subia da calçada. O samovar, em
cima da mesa, cantava a sua canção desolada. Stchurov olhava fixamente o seu copo de chá e acariciava a barba. A sua respiração era ruidosa, o peito arquejava...
- É penoso viveres sem o teu pai? - perguntou a sua voz sonora.
- Vou-me habituando.
- Tu és rico... O Jacob morrerá e tu serás mais rico ainda, herdarás tudo o que é dele... Ele tem uma filha... deves também pegar na filha... O facto de ela ser
filha do teu padrinho e tua irmã de leite não tem importância... Deves-te casar, senão que Diabo é a vida? Evidentemente, andas atrás das raparigas!
- Não...
- Vai falando! He, hé, hé, hé!... O comerciante perde-se... Um lenhador disse-me - é verdade ou mentira, não sei - que dantes todos os cães eram lobos e que tinham
degenerado em cães... Acontece o mesmo connosco, não tardará muito seremos todos cães... Os homens estudarão as ciências, cobrirão a cabeça com chapéus à moda e
farão tudo o que for necessário para perderem a cara que nos é própria. E já nada nos distinguirá dos outros... Instaurou-se uma tal ordem que todos os menimos devem
ir para o liceu... Os comerciantes, os nobres e os burgueses, são todos colocados no mesmo plano... Vestem-nos de cinzento e ensinam a todos a mesma coisa... faz-se
crescer um homem como se fosse uma árvore. Porquê? Ninguém sabe as razões. Uma árvore ainda se pode diferençar de outra pelos nós, mas, no nosso caso, querem polir
as pessoas tão bem que acabará por não haver mais do que uma cara... Para nós, os velhos, não falta muito para a caixa de madeira... Si-im! Talvez daqui a uns cinquenta
anos ninguém possa
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acreditar que eu vivi nesta terra... Ananias, filho de Savva, apelidado Stchurov... é assim! E que eu, Ananias, não temia ninguém a não ser Deus... E que na minha
juventude, eu era um mujique que possuía dois arpentos de terra mas que nos meus dias de velhice tinha amontoado onze mil, tudo em florestas... e dinheiro, dois
milhões, talvez...
- É o que dizem todos: "O dinheiro" - disse Tomás, desiludido. - Mas que alegria retira dele o homem?
- Hum... - balbuciou Stchurov. - Serás um mau comerciante se não compreenderes o poder do dinheiro.
- E quem o compreende? - perguntou Tomás.
- Eu! - afirmou Stchurov. - E todo o homem inteligente... lachka compreende-o... O dinheiro? É muito, meu rapaz! Alinha dinheiro diante de ti e pensa no que ele
representa... Então compreenderás que é toda a energia humana, toda a inteligência terrestre... Milhares de pessoas puseram a sua vida no teu dinheiro. E tu podes
agarrar nele, metê-lo na fornalha e ficar a vê-lo arder. Nesse momento consideras-te como um senhor...
- Ninguém faz isso...
- Porque os imbecis não têm dinheiro... Coloca-se o dinheiro num negócio... O povo tira o seu alimento desse negócio... e tu, desse povo, tu és o patrão... Porque
é que Deus criou o homem? Para que ele lhe reze orações... Ele estava sozinho e aborrecia-se por isso... então desejou o poder... Como o homem foi criado, conforme
está escrito, à sua imagem e semelhança, o homem deseja o poder. E que é que dá o poder senão o dinheiro?... É mesmo assim... Ora bem, e tu? Trouxeste-me dinheiro?
- Não - respondeu Tomás.
As palavras do velho tinham-lhe enchido a cabeça com uma pesada confusão e sentia-se contente por ver que a entrevista passava para o terreno dos negócios.
- Isso é uma falta! - disse Stchurov com severo franzir de sobrolhos. - Está no fim do prazo, é preciso pagar.
- Amanhã ser-lhe-á entregue metade...
- Metade porquê? Paga tudo.
- Temos necessidade desse dinheiro neste momento.
- E não o tens?... Não importa, também eu tenho necessidade dele.
- Tem de esperar um pouco.
- Ah! Não, meu caro, não esperarei. Tu não és o teu pai. Os principiantes do teu género são pessoas com quem não se pode contar... Num mês podes dar cabo do negócio...
e serei eu a pagar as favas. Entregas-me tudo
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amanhã, senão protestarei as letras... Comigo, as coisas não se arrastam.
Tomás olhava para ele e espantava-se. Era um homem completamente diferente daquele que uns minutos antes pronunciava com palavras de profeta um discurso sobre o
Diabo... O rosto e os olhos tinham-se transformado... agora o olhar era áspero, impiedoso, e nas faces, perto das narinas, havia veias que tremiam avidamente. Tomás
via que, se não lhe resgatava as letras, o outro desonrava efectivamente e imediatamente a firma enviando-as para protesto.
- Os negócios vão mal, claro. É isso? - gracejou Stchurov. - Vá, diz francamente: onde gastaste o dinheiro do teu pai?
Tomás teve vontade de experimentar o velho:
- Os negócios não têm sido muito felizes - disse ele, sentindo que corava. - Não tem havido encomendas... poucas entradas de numerário... em resumo, atravessamos
uma crise.
- Compreendo, compreendo! É preciso ajudar-vos, hem!
- Faça-nos esse favor... recue a data do vencimento
- arriscou Tomás, com os olhos modestamente baixos.
- Hum... devo ajudar-te, em nome da amizade que tive pelo teu pai... seja, ajudar-te-ei...
- Que prazo nos concederá? - indagou Tomás.
- Seis meses...
- Fico-lhe muito grato.
- Não há de quê... Deves-me onze mil e seiscentos... O que tu vais fazer é o seguinte: Vais-me assinar letras de quinze mil, isso dará os juros da quantia adiantada...
e eu, como garantia, levarei duas das tuas barcaças.
Tomás ergueu-se da sua cadeira e disse com um sorriso:
- Mande-me as suas letras amanhã. Pagar-lhe-ei integralmente.
Stchurov levantou-se também, pesadamente, e sem pestanejar sob o olhar irónico de Tomás, dissse coçando tranquilamente o peito:
- É então isso, hem!
- Não quero deixar de lhe agradecer a sua... amabilidade.
- Não aceitas... mas eu teria sido amável, apesar de tudo! - articulou preguiçosamente o velho, mostrando os dentes.
- Boa piada! Eu ter-lhe-ia ficado nas mãos...
- Isso te teria aquecido.
- Queimado, é o que quer dizer.
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- bom, de qualquer maneira, meu rapazinho, podes pensar que não representaste mal o teu papel... mas vais depressa de mais... conseguiste um match nulo e já começas
a empertigar-te. Quando me tiveres batido... poderás então dançar de alegria... Adeus... E prepara o dinheiro para amanhã.
- Esteja descansado. Adeus.
- bom dia.
Ao atravessar o limiar da porta do quarto, Tomás ouviu o velho soltar um profundo bocejo e pouco depois começar a entoar com voz baixa e rouca:
- Santa Maria, Mãe de Deus... abre-nos as portas da tua misericórdia.
Tomás levou do velho uma impressão ambígua: Stchurov repugnava-lhe e agradava-lhe ao mesmo tempo.
Voltavam-lhe à memória os conceitos dele acerca do pecado; pensava no vigor da sua fé na misericórdia divina, e era com um sentimento vizinho do respeito que considerava
o velho.
"E também ele fala da vida... Conhece os seus pecados e não chora nem se lamenta... Pequei, prestarei contas... Mas ela? (pensava em Sofia Médynski e o coração apertou-se-lhe
com tristeza.) Ela arrepende-se mas não se percebe se é por cálculo ou se é realmente o coração que sofre."
A Tomás parecia-lhe invejar Ananias, e o jovem apressou-se a recordar as tentativas que Stchurov tinha feito para o enganar. Isso excitou-lhe hostilidade para com
o velho, não podia acordar os seus próprios sentimentos e, na sua perplexidade, começou a sorrir.
- Bem, já fui ver o Stchurov! - disse ele ao entrar em casa de Maiakine e sentando-se à mesa.
Maiakine, vestido com um velho roupão engordurado, as mãos cheias de facturas, mexia-se com impaciência na sua poltrona de couro e gritou com vivacidade:
- Serve-lhe o chá, Luba! Conta lá, Tomás... Tenho de estar às nove horas na Câmara Municipal. Conta depressa.
Tomás, rindo, relatou o modo como Stchurov lhe tinha proposto assinar uma letra.
- Que disparate! - exclamou Jacob Tarassovitch, abanando a cabeça com desgosto. - Estragaste todo o meu jogo, meu rapaz! Como é possível conduzir um negócio de um
modo tão frontal? Caramba, estou bem arrependido por te ter lá mandado. Devia ter ido eu mesmo... eu tê-lo-ia embrulhado limpamente.
- Havia de o ver. "Sou um carvalho", dizia ele.
- Um carvalho? Então eu sou a serra... O carvalho
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é uma bela árvore, mas os frutos que dá só são bons para os porcos...
- De qualquer modo, isso não altera nada. Temos de pagar.
- Quanto a pagar... as pessoas inteligentes nunca têm pressa. Mas tu, estás pronto a precipitar-te a toda a velocidade para entregar o dinheiro... Raio de comerciante!
Jacob Tarassovitch estava nitidamente descontente com o seu afilhado. Fechou-se mais e, com cólera, ordenou à filha que servia o chá sem dizer nada:
- Passa-me o açúcar, não vês que está longe de mais. O rosto de Luba estava pálido, os olhos perturbados
e as mãos deslocavam-se de uma maneira mole e canhestra... Tomás olhou-a e pensou:
"Como ela é submissa ao pai..."
- De que te falou ele?
- Dos pecados...
- Evidentemente, evidentemente... Cada homem interessa-se pelo que lhe é próprio... e ele, os pecados, fabrica-os em série... Há bom tempo que o esperam quer nas
galés quer no Inferno; mas não esperarão sempre.
- O que ele disse tem um certo peso - comentou Tomás pensativamente, fazendo rodar o chá no copo.
- Disse mal de mim? - inquiriu Maiakine com uma careta de raiva.
- Quase...
- E tu, que fizeste?
- Eu... ouvi-o...
- Hum... E que ouviste?
- Aquele que é forte será perdoado, mas não haverá perdão para os fracos...
- Vale a pena ser esperto para dizer coisas dessas! Até as pulgas sabem isso...
A atitude de desprezo do padrinho em relação a Stchurov exasperava Tomás, sem que ele compreendesse porquê. Olhando o velho de frente, comentou em tom jocoso.
- Ele não gosta de si.
- Ninguém gosta de mim, meu rapaz! - disse Maiakine com orgulho. - De resto não há razão para que se Qoste de mim, eu não sou uma donzela... O que importa é que
me respeitem. E só se respeitam aqueles a quem se teme um pouco...
E o velho, satisfeito, deu uma piscadela de olhos em direcção ao afilhado.
- O que ele disse tem peso - repetiu Tomás. - Ele deplora que o verdadeiro comerciante desapareça...
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ensina-se a todos uma única ciência, de modo que as pessoas acabarão por serem todas do mesmo modelo.
E ele acredita que isso não serve para nada? Que
velho imbecil! - disse desdenhosamente Maiakine.
- E porque é que isso é bom? - perguntou Tomás, olhando o padrinho com um olho céptico.
- Se vemos que as pessoas oriundas de vários sítios, ao acaso, são empurradas para um mesmo lugar onde se inculca a todos a mesma opinião, devemos confessar que
esse método é avisado... Vejamos: o que é o homem no Estado? Nem mais nem menos do que um tijolo, e todos os tijolos, como é sabido, devem ter as mesmas proporções.
É assim ou não? com pessoas que sejam de tamanho e peso idênticos... pode-se fazer o que se quiser...
- Mas quem se sentirá contente por ser esse tijolo?
- insistiu Tomás, amuado.
- Não se trata de saber se é agradável, trata-se de ser realista... Para se construir o mundo com os homens não há outra solução. Se o tijolo não aguenta o esforço,
que se há-de fazer? Não era suficientemente sólido...
- Falou também do esforço... As máquinas trabalham durante todo o tempo, e isso faz com que as pessoas dormitem...
- Estamos bem arranjados! - disse Maiakine com um gesto de soberano desprezo. - Estou admirado do apetite com que engoles todas as aldrabices! A máquina! Ele devia
reflectir, esse velho tamanco, no que a máquina significa. É de ferro, portanto não há que a lamentar; põe-la a trabalhar e ela forja-te os rublos, sem uma palavra,
sem problemas... Em marcha, e ela roda! O homem, pelo contrário, não fica sossegado, inspira piedade, de vez em quando acontece mesmo inspirar muita! Geme, urra,
chora, suplica... embebeda-se até cair, e sob muitos aspectos mantém-se inútil. Uma máquina é exacta como um metro, dá exactamente o que a empresa exige dela...
Bem, vou-me vestir... está na hora.
Levantou-se e saiu, arrastando ruidosamente as pantufas. Tomás seguiu-o com os olhos e, franzindo os sobrolhos, disse a meia voz:
- É preciso ser bem esperto para os entender... Um dia preto, o outro dia branco...
- Também é assim nos livros - murmurou Luba. Tomás ergueu os olhos para ela, sorrindo gentilmente.
Ela correspondeu com um sorriso apagado. Os olhos eram fixos, o olhar triste.
- Continuas a ler? - perguntou Tomás.
- Si-im... - respondeu ela com lassidão.
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- E aborreces-te?
- Aborreço-me ao máximo... Sozinha... Não tenho com quem conversar...
- Tens mau aspecto.
Ela não fez qualquer comentário, contentou-se em baixar a cabeça e pôr-se a triturar entre os dedos as franjas da toalha.
- Devias-te casar... - disse Tomás, sentindo pena dela.
- Pára com isso, peço-te... - replicou Luba, com a testa sulcada de rugas desagradáveis.
- Porquê? Terás de acabar por te casar um dia!
- É isso! - exclamou ela, com um suspiro. - É também isso o que eu penso: terei de o fazer... Mas como posso eu casar. Sabes o que sinto, agora? Parece-me que há
um nevoeiro que flutua imóvel entre mim e as pessoas... um nevoeiro espesso, espesso!
- A culpa é dos livros - afirmou Tomás.
- Cala-te. Já cessei de compreender o que se passa... Tudo me desagrada, tudo se me tornou estranho... Nada é como deveria ser, nada serve... Compreendo isso, mas
é-me impossível explicar o que não vai bem nem porquê.
- São os livros que te metem essas ideias na cabeça... Se bem que também sinta que não vai bem... Pode acontecer que pensemos isso por sermos ainda novos.
- No princípio dizia Lubov, sem o ouvir - parecia-me compreender tudo graças aos livros...
- Deita-os fora, a todos! - aconselhou Tomás negligentemente.
- Ah, não! Como é possível abandoná-los? Sabes, há tantos pensamentos diferentes! Ah! Meu Deus! Há-os que nos põem a cabeça em fogo... Num livro, diz-se que tudo
o que existe é razoável...
- Tudo? - perguntou Tomás.
- Sim, tudo! Mas em outro, diz-se o contrário.
- Reflecte! Tudo isso são apenas tolices, não é verdade?
- De que estão a falar? - perguntou Maiakine, aparecendo no limiar da porta, vestido com um longo dólman ornado de condecorações.
- De nada - disse Luba, aborrecida.
- De livros - acrescentou Tomás.
- De que livros?
- Ela estava-me a dizer que lia... ela leu que tudo o que existe é razoável...
- Ora vejam!
- E eu digo que são histórias.
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Claro!... (Jacob Tarassovitch puxava pela barbicha e franzia a testa.) Que livro é esse? - perguntou
à filha.
É um livrinho pequeno... amarelo - respondeu ela
contrafeita.
- Hás-de pô-lo em cima da minha mesa... uma ideia que não deixa de ser razoável! Esse adivinhou, não há dúvida... É mesmo muito bem achado... Se não fossem os imbecis,
seria mesmo inteiramente justo... Mas como há sempre imbecis que estão onde não deviam estar, não se pode dizer que é razoável tudo o que existe... Adeus, Tomás!
Ficas ou queres que te deixe em casa à passagem?
- Fico ainda um momento...
Luba e Tomás ficaram novamente sozinhos.
- Ele é curioso contigo - disse Tomás, depois de ter abanado a cabeça após a saída do padrinho.
- Curioso?
- Tem resposta para tudo, quer colocar sempre a sua opinião...
- Sim... ele é inteligente... mas há uma coisa que lhe escapa, que ele não vê: é que a minha vida é um fardo...
- disse melancolicamente Luba.
- Eu também não te consigo compreender... nunca estás satisfeita, vês problemas em tudo.
- Eu vejo os problemas em tudo? - gritou ela exasperada.
- Claro. Tudo isso... todas essas ideias, não são as tuas, são as dos outros!
- As dos outros... as dos outros...
Ela queria dizer qualquer coisa de sarcástico mas arrependeu-se e calou-se. Tomás olhava-a, e, comparando-a com a senhora Médynski, pensava tristemente:
- Como tudo difere... as pessoas, as mulheres... e sente-se sempre de modos diferentes.
A obscuridade começava a encher a rua, mas o aposento já estava completamente escuro. O vento sacudia as tílias, cujos ramos arranhavam as paredes da casa como se
tivessem frio e implorassem abrigo dentro do prédio.
- Luba! - disse suavemente Tomás. Ela ergueu a cabeça e olhou-o.
- Sabes... zanguei-me com a Sofia Médynski...
- A que propósito? - perguntou Luba, animando-se.
- A propósito de nada... Ela tinha-me vexado...
- Bem, não há mal nenhum nisso. Pelo contrário, foi bom terem-se zangado, - disse ela num tom de aprovação - ela acabaria por te torcer a cabeça... é uma
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coquete, uma desavergonhada... Oh, sei muitas coisas a respeito dela!
- Não é uma desavergonhada - disse Tomás amuado. - E tu não sabes nada... Vocês mentem todos.
- Bem, bem, desculpa-me!
- Não, Luba... - disse ele suavemente e como que numa prece - não me digas mal dela. Eu sei tudo... Foi ela mesma quem me disse...
- Ela? -exclamou Luba admirada. - Isso mostra como ela é estranha. O que é que ela disse?
- Que era culpada... - articulou Tomás com esforço e arvorando um esgar de sorriso.
- Só isso?
Havia decepção na pergunta. Tomás apreendeu o facto e perguntou com esperança:
- Achas que não tem importância?
- Ama-la muito?
Tomás calou-se, olhou através da janela e, perturbado, respondeu:
- Não sei, parece-me que agora ainda a amo mais do que antes.
- Isso admira-me. Como se pode amar semelhante mulher? - interrogou ela com um encolher de ombros.
- E no entanto pode-se, garanto-te- assegurou Tomás.
- Não compreendo... Não te ligaste a ela só porque não viste melhor?
- Não vi melhor... - concordou ele e, depois de um silêncio, acrescentou indeciso: - Talvez não haja melhor... Tenho muita necessidade dela - prosseguiu, pensativamente,
com voz arrastada. - Tenho medo dela, quer dizer, não quero que ela tenha má opinião de mim... por vezes sinto-me desgostado! Digo a mim mesmo: "Terei de esquecer
os meus desgostos na boémia?" Mas lembro-me dela, falta-me a coragem... e é sempre pela mesma razão: penso nela: "E quando ela souber?" E tenho medo de...
- Si-im - disse a jovem, com voz arrastada e meditativa - ama-la, é um facto. Se eu amasse... pensaria nele do mesmo modo, dizendo: "Que diria ele?"
- Tudo nela é original - começou Tomás a contar.
- Ela tem a sua maneira de falar própria... é bela... Meu Deus! E é tão pequena como uma criança...
- Porque se zangaram?
Tomás aproximou-se dela sem deixar a cadeira e, inclinado para a frente, baixando subitamente a voz, começou a sua narrativa. Falava e, à medida que as palavras
que tinha dito a Sofia lhe voltavam à memória, os sentimentos que as tinham inspirado ressuscitavam em si.
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- Disse-lhe: andaste a enganar-me. Porquê? -censurava ele cheio de cólera.
Luba, com as faces coradas de animação, aprovando com a cabeça, aguilhoava-o:
Muito bem, assim mesmo! E ela, que disse?
- Ela calava-se - disse Tomás com tristeza, encolhendo os ombros. - Isto é, ela falou... mas para quê?
Teve um gesto de lassidão e calou-se. Luba, que
brincava com as tranças, calou-se também. O samovar tinha-se apagado. Na sala a obscuridade adensava-se, pela janela viam-se sombras vagas.
- Devias acender a luz - propôs Tomás.
- Como nós somos infelizes, os dois! - disse Luba, soltando um profundo suspiro.
A frase desagradou a Tomás.
- Eu não, não sou infeliz... - ripostou ele com segurança. - O que acontece é que ainda não estou habituado à existência.
- O ser que não sabe o que fará amanhã é infeliz
- disse Luba melancolicamente. - Eu não o sei. E tu também não. O meu coração nunca está em repouso... está sempre a tremer com o desejo de alguma coisa...
- Sinto o mesmo - confessou Tomás. - Ah!... Isso não me impede de ter de ir ao clube...
- Não vás embora... - implorou Luba.
- Tenho de ir, tenho lá um encontro... Adeus.
- Adeus.
Ela estendeu-lhe a mão e olhou-o tristemente nos olhos.
- Vais-te deitar? - perguntou Tomás apertando-lhe a mão longamente.
- vou ler um pouco.
- Gostas dos livros como um ébrio do vodka...
- disse ele com desgosto.
- Que há de melhor?
Ao chegar à rua, Tomás olhou para as janelas da casa e, atrás de uma delas, apercebeu o rosto de Luba, tão confuso como todos os conceitos ou desejos da rapariga.
Fez-lhe um sinal de cabeça e pensou:
"Também ela não sabe o que quer, tal como a outra."
Perante essa recordação, sacudiu a cabeça como que para assustar e pôr em fuga o pensamento de Sofia Médynski, e apressou o passo:
Um vento frio e vivificante varria a rua com rajadas, empurrando detritos, lançando a poeira à cara dos transeuntes. Pessoas avançam na obscuridade com passos
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apressados. Tomás caminhava entre as nuvens de poeira, apertava os olhos, e pensava:
"Se cruzar agora uma mulher, isso quer dizer que Sofia Pavlovna me receberá amavelmente... como no passado... amanhã irei vê-la... mas se for um homem não irei amanhã,
esperarei um pouco mais..."
Cruzou-se com um cão e isso enraiveceu-o de tal modo que teve vontade de dar uma bengalada no pobre animal.
No bar do clube acolheu-o o alegre Uktistchev. Conversava de pé, junto da porta, com um homem gordo, de bigodes, mas ao ver Gordeiev avançou ao seu encontro, sorrindo.
- Boa noite, discreto milionário.
Ele agradava a Tomás mercê do seu carácter alegre, e Tomás via-o sempre com prazer. Ao mesmo tempo que lhe dava um vigoroso e amigável aperto de mão, Tomás perguntou-lhe:
- De onde conclui que eu seja discreto?
- Ainda pergunta? Um homem que vive como um ermitão, não bebe, não joga, não frequenta mulheres...! Sabe, Tomás Ignatitch, a nossa presidente parte amanhã para o
estrangeiro, passará lá fora todo o Verão.
- Sofia Pavlovna? - interrogou lentamente Tomás.
- Claro. Eis que desaparece o sol da minha vida... e da sua também, talvez?
Uktistchev compôs uma careta còmicamente pérfida e lançou uma olhadela ao rosto de Tomás.
Este, plantado em frente dele, sentiu que a cabeça se lhe abatia para o peito, sem poder fazer nada para o impedir.
- A Sofia Médynski vai-se embora? - troou uma voz baixa e grave. - Maravilhoso. Sinto-me contente.
- Dá-me licença que lhe pergunte porquê? - exclamou Uktistchev.
Tomás sorria com ar estúpido e desamparado, e olhava o homem dos bigodes, interlocutor de Uktistchev. O outro alisou os bigodes com ar grave e escaparam-se dele
estas palavras graves e pesadas, gordas, odiosas, correndo em direcção a Tomás.
- Porque assim haverá menos uma cocote na cidade.
- Oh! Martin Nikititch! - fez Uktistchev reprovador, franzindo os sobrolhos.
- Como sabe que é uma coquete? - perguntou brutalmente Tomás, aproximando-se do homem dos bigodes.
Este envolveu-o com um olhar de desprezo, voltou-se e disse destacando as sílabas
- Eu não disse coquete...
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Martin Nikititch, não se deve falar assim de uma
mulher que... - interveio Uktistchev com voz insistente.
Mas Tomás interrompeu-o.
Um momento, por favor. Quero perguntar a este
senhor qual foi a palavra que empregou.
Ao dizer estas palavras, pronunciadas com calma e com firmeza, Tomás mergulhou profundamente as mãos nos bolsos das calças, inchou o peito, e tudo isso deu imediatamente
a toda a sua figura um ar de manifesta provocação... O outro olhou-o frontalmente e sorriu ironicamente...
- Meus senhores! - exclamou Uktistchev em voz baixa e preocupada.
- Eu disse: co-co-te-, articulou o homem dos bigodes mexendo abertamente os lábios como que para saborear a palavra. - Se não compreende, posso-lhe explicar.
- Mas evidentemente - disse Tomás respirando profundamente e sem tirar os olhos dele. - Espero essa explicação.
Uktistchev teve um gesto de desespero e afastou-se para um canto, longe deles.
- Uma cocote, uma vez que insiste em o saber, é uma mulher que se vende... - disse o homem em voz baixa, aproximando de Tomás o seu rosto espesso.
Tomás soltou um rugido abafado e, antes que o outro tivesse tempo para recuar, agarrou firmemente o homem pelos anéis dos cabelos que começavam a embranquecer. com
um movimento sacudido, começou a abanar-lhe a cabeça e todo o corpo maciço, enquanto o erguia com a esquerda, e pronunciava com voz surda ritmada pelos gestos do
castigo.
- Não insulte por detrás! Insulte de frente, com os olhos nos olhos das pessoas!...
Sentia uma alegria intensa à vista das grossas mãos que gesticulavam ridiculamente no espaço e dos pés do homem que ele sacudia, que não o seguravam e se arrastavam
ruidosamente pelo chão. O relógio de ouro tinha saltado do bolsinho e rolava sobre o ventre redondo oscilando na ponta da corrente. Enebriado pela sua força e pelo
rebaixamento desse homem tão cheio de basófia, presa de uma efervescência de alegria maldosa, fremente da felicidade da vingança, Tomás arrastava a sua vítima pelo
soalho e surdamente, raivosamente, soltava rugidos de alegria selvagem. Nesse instante sentiu-se libertado do fardo de aborrecimento que desde há tempo lhe apertava
o peito num torniquete de angústia e de mal-estar. Agarraram-no por detrás, pela cinta e pelos ombros, torceram-lhe o braço, quebravam-lho quase, alguém lhe
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esmagava os dedos dos pés, mas ele não via nada, ocupado apenas a vigiar, com os olhos injectados de sangue, a massa sombria e pesada que se torcia e gemia suspensa
da sua mão... Finalmente arrancaram-lhe a presa, caíram em cima dele, e ele apercebeu, como que através de uma bruma sangrenta, diante dele, a seus pés, o homem
a quem ele tinha moído de pancada. Despenteado, desalinhado, esbracejava no solo, tentando levantar-se; dois homens o mantinham pelas axilas, as mãos batiam no ar
como asas quebradas e com uma voz arquejante e soluçante gritava a Tomás:
- Bater-me... é proibido, proibido! Sou condecorado... Patife! Oh! Que patife! Tenho filhos... Todos me conhecem! Crápula! Selvagem!... Oh! Oh! Oh!... um duelo!
Uktistchev disse distintamente junto do ouvido de Tomás:
- Venha, meu caro, por amor de Deus!
- Um momento, deixem-me dar-lhe um pontapé nas goelas... - implorava Tomás.
Mas levaram-no. Os ouvidos batiam-lhe. O coração pulsava apressadamente, mas sentia-se leve e em plena forma. Na escadaria do clube, depois de ter soltado um suspiro
profundo de libertação, falou a Uktistchev com um sorriso amável:
- Dei-lhe uma lição, hem!
- Ouça! - exclamou o jovem secretário desconcertado. - É... desculpe-me... é uma selvajaria. Diabos me levem... É a primeira vez que vejo uma coisa assim.
- Meu caro! - disse amavelmente Tomás. - Ele merecia ou não o correctivo? Não é um covarde? Como é que se podem dizer tais coisas nas costas das pessoas? Não, vai-se
ter com elas e diz-se-lhes... cara a cara, francamente.
- Sinceramente, que Diabo! Claro que não foi só por causa dela que lhe bateu daquela maneira?
- Essa agora! Não foi por causa dela? Por causa de quem, então? - admirou-se Tomás.
- Por causa de quem? Não sei... evidentemente, o senhor tinha contas a ajustar. Ah! Meu Deus! Que escândalo. Nunca o esquecerei em toda a vida.
- E o sujeito, quem Diabo é? - perguntou Tomás, pondo-se bruscamente a rir: - Como ele gritava, o palerma!
Uktistchev olhou-o fixamente nos olhos e interrogou-o:
- Mas, diga-me cá, é realmente verdade que não sabe em quem bateu? Então foi apenas efectivamente por Sofia Pavlovna?
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- Caramba, já disse que sim - jurou Tomás.
- Que história fantástica!...
Parou, encolheu os ombros perplexo, fez um gesto de impotência, recomeçou a caminhar pelo passeio, olhando para Tomás com o canto do olho.
- Ele vai-me levar para o tribunal?
- Se Deus pudesse fazer com que as coisas se passassem assim... É o genro do vice-governador...
- Não! - explodiu Tomás, com o rosto crispado.
- Sim. E para dizer a verdade é um crápula e um malandro... Partindo dessa constatação, convém reconhecer que merecia um correctivo... Mas se se toma em consideração
que a dama atacada também...
- Meu caro - atalhou Tomás nitidamente, pousando a mão no ombro de Uktistchev. - És-me simpático desde sempre... e agora fazes caminho comigo... compreendo o que
isso quer dizer e sou capaz de o apreciar... Só te peço uma coisa, não digas mal dela! Ela poderá ser tudo o que vocês quiserem, aos vossos olhos... aos meus...
ela é preciosa... para mim é a melhor! De modo que te digo francamente... desde o momento que me acompanhas, não lhe toques! Eu estimo que ela é boa, por consequência
ela é-o.
Uktistchev ouviu na voz de Tomás o acorde de uma grande emoção, olhou-o e disse pensativamente:
- Deve-se confessar que o senhor é um homem curioso.
- Sou um homem simples... selvagem. Bati e estou todo contente... Aconteça o que acontecer.
- Temo que só possa ser mal... Sabe - confidência por confidência - simpatizo bastante consigo embora, hum!, seja um bocado perigoso andar na sua companhia... Que
lhe suba à cabeça um capricho cavalheiresco e é uma tareia que nos espera.
- Não exageremos. Palavra que é a primeira vez que isso me acontece... Não vou começar a sovar as pessoas todos os dias - disse Tomás, atrapalhado.
O seu companheiro pôs-se a rir.
- O senhor é um fenómeno. Acaba de se bater selvàticamente de um modo pouco bonito, com o devido respeito... Mas devo dizer que por acaso fez uma escolha feliz...
Molestou um debochado, um cínico, um parasita... um homem que, depois de ter despojado os sobrinhos, não foi perseguido e ficou sem punição...
- Então louvado seja Deus! - decretou Tomás com satisfação. Fui eu que lhe dei um pequeno castigo...
- Pequeno? Sim, admitamos que foi pequeno... Simplesmente, meu caro... permita-me que lhe dê um
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conselho... sou um jurista... Esse Kniazev é um canalha, não há dúvida. Mas não se deve bater em ninguém, nem mesmo num canalha, porque é um ser social, colocado
sob a guarda paternal da lei. Não se deve tocar-lhe até ao momento em que tenha transposto o limite fixo pelo Código Penal... Mesmo então, não é o senhor, mas sim
nós, os juizes, que poderemos infligir-lhe sanções... Quanto a si, meu Deus, deixe-me dizer-lhe... faça crescer em si a paciência...
- E ele cairá nas vossas mãos dentro de pouco tempo? - perguntou ingenuamente Tomás.
- Não tenho ideia nenhuma sobre isso!... Como ele não é tolo, o mais possível é que nunca cairá... E enquanto Deus lhe conceder a vida continuará a existir, tal
como qualquer de nós, no mesmo e único plano de igualdade perante a lei... Oh! Meu Deus, que estou eu a dizer! - suspirou còmicamente Uktistchev.
- Está a revelar segredos? - gracejou Tomás.
- Não é que se trate de segredos, mas não convém que eu dê provas de ter espírito fraco... Diabo! Palavra, esta história transtornou-me... É bem verdade que Nemesis
é ainda fiel a si própria mesmo quando escoiceia como um cavalo...
Tomás parou subitamente como se tivesse encontrado um obstáculo no caminho.
- Mas afinal tudo isto veio - proferiu ele lentamente, com voz abafada - a propósito da partida de Sofia Pavlóvana.
-Ah, sim, ela vai-se embora... E então?
Plantou-se diante de Tomás e olhou-o com olhos sorridentes. Gordeiev calava-se, baixava a cabeça, e batia nas pedras do passeio com a bengala.
- Continuamos?
Tomás recomeçou a caminhar e disse com indiferença:
- Bem, apesar de tudo... que parta.
Uktistchev, gesticulando com a sua bengalinha, pôs-se a assobiar, sem perder de vista o seu companheiro.
- Poderei viver sem ela? - perguntou Tomás, com os olhos fixos diante de si; após um silêncio, respondeu calmamente mas sem convicção: - Evidentemente que sim.
- Ouça - exclamou Uktistchev - vou-lhe dar um bom conselho... o homem deve ser autêntico... O senhor é um homem épico, digamos assim, o lírico não se lhe ajusta.
Não é o seu género...
- Meu caro senhor, arranje-se como puder mas trate de me falar com mais simplicidade - disse Tomás, que tinha ouvido atentamente a frase.
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com mais simplicidade? Quero dizer: deixe de
pensar nessa senhora. Ela é, para si, um alimento envenenado...
Foi também o que ela me disse - comentou Tomás
aborrecido.
- Ela disse-o? Hum... Está a ver... Se fôssemos cear?
- Vamos lá, vamos lá! - concordou Tomás. De súbito rugiu freneticamente agitando os punhos cerrados:
- Vamos lá! E que importa?... Depois desta história vou escoicear com os quatro ferros... Cuidado comigo!
- Mas porquê? Vamos muito discretamente...
- Não, ouça! - disse Tomás, com voz melancólica, apertando-lhe o ombro: - Que quer isto dizer? Eu sou pior do que os outros? Cada um vive a seu modo, agita-se, esmera-se,
tem a sua paixão... E eu, aborreço-me... Cada um está contente consigo mesmo e, se se lamenta, mente, o patife! É assim que fazem, fingem para irem para a frente.
Não sei fingir, sou um pateta. Não percebo nada, meu velho... Não sei pensar... sinto-me perturbado, um fala de uma maneira, o outro de outra... E ela... caramba!
Se a conhecesses... Confiava nela... esperava dela... o que esperava eu? Não sei!... Mas ela é a melhor de todas... Eu acreditava que ela me diria um dia certas
palavras... especiais... ela tinha olhos extraordinariamente belos! Tão belos! Meu Deus... Tinha vergonha de os olhar... Não significa nada dizer que eu ia para
ela com amor, era com toda a minha alma... Eu pensava que uma vez que ela era possuidora de uma beleza tão grande, junto dela eu tornar-me-ia um homem!
Uktistchev observava essa avalanche de frases sem ligações que se precipitava pelos lábios do companheiro, via a tensão que agitava os músculos do rosto sob o esforço
que fazia para se exprimir e sentia por detrás da confusão das palavras um grande e grave desânimo. Havia algo de profundamente emocionante na impotência desse grande
e robusto rapagão que de repente se punha a percorrer o passeio com longas passadas desiguais. Saltitando atrás dele, nas suas pernas curtas, Uktistchev sentia-se
obrigado a apaziguá-lo por qualquer meio. Tudo o que Tomás dizia e fazia nessa noite excitava no jovem secretário uma grande curiosidade a seu respeito e sentia-se
também lisongeado pela confiança que lhe demonstrava o jovem ricaço. Esta confiança esmagou-o com o seu obscuro poder, sob um tal peso ele perdeu a sua segurança
e, embora tivesse à sua disposição, apesar da sua juventude, palavras prontas para todas as circunstâncias da vida, levou tempo a encontrá-las.
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- Eh! meu caro! - começou ele pegando amigavelmente no braço de Tomás. - Isso não pode ser assim. Mal entrou na vida e já se põe a filosofar! Não, não pode ser assim!
A vida é-nos dada para ser vivida. Portanto, vamos viver e deixar viver os outros!... Isso é a filosofia. Quanto a essa mulher... bah! Ela impede o mundo de girar?
Se quiser apresento-lhe uma garota tão diabólica que será capaz de lhe tirar da alma o menor resquício da sua filosofia, e isso enquanto o Diabo esfrega um olho.
Oh, é uma rapariga excepcional! E como ela sabe aproveitar a vida! Convir-lhe-á maravilhosamente. É também um pedaço épico... e bela, uma Frine, ouso dizê-lo. Realmente,
é uma ideia luminosa, farei com que a conheça. Uma coisa apagará a outra.
- Tenho escrúpulos... - disse Tomás com voz triste e amuada. - Enquanto ela viver não me sinto com coragem de olhar para as raparigas.
- Um homem tão robusto, em plena juventude! Oh, oh! - exclamou Uktistchev, começando a convencer Tomás, em tom professoral, da necessidade em que estava de dar uma
sólida saída aos seus sentimentos.
- Será óptimo e é-lhe indispensável, acredite-me. Quanto à consciência, vai-me desculpar: define-a com alguma inexactidão, não é a consciência que o retém mas sim
a timidez. Vive fora da sociedade, acanhado e medroso. Sente tudo isso confusamente... e é essa impressão que toma por consciência. A verdade é que, em tal caso,
ela não é chamada para nada. Que vem cá fazer a consciência quando é natural do homem divertir-se, quando isso é para ele uma necessidade e um direito?
Tomás avançava regulando o seu passo pelo do companheiro e olhava a rua que se alongava diante dele, entre duas filas de edifícios, semelhante a um fosso cheio de
trevas. Parecia não ter fim e que algo de sombrio tomava o seu curso para se ir escoar ao longe, algo de inesgotável que impedia a respiração. A voz persuasiva e
suave de Uktistchev ressoava, monótona, aos ouvidos de Tomás e, se bem que ele não prestasse atenção às palavras do discurso, sentia que elas tinham algo de pegajoso,
colavam-se a ele e entravam-lhe na memória sem ele querer. Apesar de uma presença humana a seu lado, sentia-se solitário, perdido na escuridão. Ela apertava-o de
todos os lados e arrastava-o consigo; ele tinha a impressão de ser atraído para algures e não tinha vontade de parar. Uma espécie de lassidão impedia-o de pensar,
não tinha vontade de resistir às exortações do seu companheiro; de resto, porque devia resistir? - Só se
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vive uma vez- dizia Uktistchev, saboreando a sua própria sabedoria - e é essa a razão por que não é mau apressar-se a viver... Mas não, para que serve falar, permita-me
que lhe dê uma boa sacudidela. Vamos imediatamente a uma certa casa... vivem lá duas irmãs... e pode-se dizer que vivem! Decida-se.
- Hum! Vamos lá... - disse tranquilamente Tomás, bocejando. - Não é tarde de mais?
- Em casa delas nunca é tarde de mais - exclamou alegremente Uktitchev.
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VIII
Três dias depois do alvoroço no clube, Tomás achava-se a sete verstas da cidade no cais do comerciante de madeira Zvantsev, em companhia do filho desse comerciante,
de Uktistchev, de um fidalgote sério, que usava suíças e tinha a cabeça calva e o nariz vermelho, e quatro damas... O jovem Zvantsev usava umas lunetas, era magro
e pálido, quando estava em pé as pernas tremiam-lhe como que desgostadas por terem de sustentar aquele corpo franzino, vestido com um comprido sobretudo de quadrados
munido de um capuz, e aquela pequena cabeça ridícula, coberta com um boné de jockey. O senhor das suíças chamava-lhe Jean, em francês, e pronunciava esse nome como
se sofresse de uma coriza incurável. A dama de Jean era uma grande mulher de peito opulento. O crânio era achatado dos lados, a fronte fugidia, um comprido nariz
dava-lhe ao rosto uma certa analogia com a cabeça de um pássaro. Essa figura sem beleza estava integralmente imóvel, só os olhos, pequenos, redondos, frios, não
cessavam de sorrir, com um sorriso sonso e incisivo. A dama de Uktistchev chamava-se Vera; era alta, pálida de rosto e arruivada nos cabelos. A cabeleira era tão
abundante que parecia que a sua detentora tinha enfiado na cabeça um enorme barrete de peles que caía por cima das orelhas, pelas faces e sobre a testa larga, sob
a qual grandes olhos azuis contemplavam o mundo, amáveis e indolentes.
O senhor das suíças encontrava-se ao lado de uma rapariga muito jovem, fresca e roliça, que soltava a cada momento um riso esfusiante provocado por aquilo que o
seu vizinho, inclinado para ela, lhe cochichava ao ouvido.
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A companheira de Tomás era uma morena esbelta, vestida de negro, de pele bronzeada e cabelos ondulados. Mantinha a cabeça bem levantada e lançava à sua volta olhares
condescendentes de tal modo que se descobria ao primeiro olhar que ela se considerava ali como muito superior aos outros.
O grupo estava instalado no último elo de uma cadeia de jangadas que se alongava até longe na superfície lisa e deserta do rio. Nessa jangada tinham sido postas
algumas pranchas e sobre elas estava uma mesa, grosseiramente arranjada; por toda a parte garrafas vazias, cestos de provisões, papéis de bombons, cascas de laranjas.
A um canto um monte de terra onde ardia um fogo de ramagens; um mujique com um fato de peles, de cócoras, aquecia as mãos no fogo e olhava com o canto dos olhos
os senhores e as senhoras. Estes acabavam de comer uma sopa de esturjão e tinham agora diante deles vinho e frutas.
Esgotado por uma estúrdia que tinha durado dois dias e por essa refeição que estava a acabar, o grupo sentia-se inclinado para o aborrecimento. Todos olhavam o rio
e conversavam, mas a cada instante surgiam pausas que cortavam a conversação. Era um dia límpido, impregnado dessa fuga juvenil dos dias de Primavera. Luminoso e
frio o céu abria-se majestosamente sobre as águas turvas do rio que tinha inundado largamente as margens. Uma delas, ao longe, tinha-se molemente enfeitado com uma
bruma azulada; nas cristas da margem montanhosa, ao fundo, como grandes estrelas, cintilavam as cruzes das igrejas. Ali ao pé, o rio estava animado; vapores iam
e vinham, os clamores chegavam como suspiros graves até à margem baixa, onde o suave bater das vagas enchia o ar de sonoridades delicadas. Lá em baixo, subindo a
corrente, alinhavam-se uma atrás da outra enormes barcaças; semelhantes a javalis de dimensões monstruosas abriam sulcos na superfície polida do rio. Das chaminés
dos barcos escapava-se um fumo negro em pesadas baforadas que fundiam lentamente no ar fresco. De tempos a tempos uma sereia lançava o seu rugido de animal colérico,
tornado furioso pelo esforço. Nos prados reinava o silêncio e a paz. Árvores isoladas, banhadas pela inundação, cobriam-se já de rebentos verde-claro. A água escondia-lhes
o tronco e deixava-lhes à vista os cimos, as ramarias pareciam bolas fantásticas que se diria estarem prontas, ao menor sopro de vento, a derivar fantasticamente
sobre o espelho das águas.
160
A ruiva, com o olhar fixo pensativamente no longe, entoou com voz enrouquecida e melancólica:
Ao longo do Volga uma canoa voga...
A morena, franzindo com desprezo os seus grandes olhos duros, disse sem a olhar:
- Não tínhamos necessidade disso para nos chatearmos...
- Deixa-a cantar - pediu Tomás com paciência, contemplando o rosto da sua companheira.
Tomás estava pálido, nos olhos acendiam-se-lhe como que pequenas centelhas, um sorriso vago e preguiçoso errava nos traços do rosto.
- Vamos... em coro! - propôs o senhor das suíças.
- Não, é melhor que cantem as duas! - exclamou vivamente Uktistchev. - Vera, canta aquela que tu sabes: "Partirei na madrugada"... Paulete, cante!
A rapariga das gargalhadas olhou para a morena e pediu-lhe respeitosamente:
- Podemos cantar, Sacha?
- Eu vou cantar! - declarou a companheira de Tomás, e voltando-se para a mulher da cara de pássaro ordenou-lhe: - Canta, Vassa!
A outra acariciou imediatamente a garganta com a mão e dirigiu os seus olhos redondos para o rosto da irmã. Sacha levantou-se, apoiou uma das mãos na mesa e, com
a cabeça levantada, atacou melodiosamente, com voz forte, quase masculina:
Como é bom viver na terra quando não se tem cuidados, quando o coração não sofre!
A irmã balouçava a cabeça e lançava como uma queixa, langorosamente, numa voz de contralto agudo:
Ah! eu que sou bela e donzela...
com os olhos brilhantes fixos na irmã, Sacha pronunciou as notas baixas:
Como a erva dos campos, meu coração feneceu...
As duas vozes enlaçavam-se e planavam acima da água em acordes ricos de beleza e de densidade, vibrantes
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de um excesso de potência. Uma lamentava-se do seu insuportável sofrimento do coração e, saboreando o gosto envenenado do seu lamento, soluçava de desgosto, afogando
com lágrimas o fogo dos seus tormentos. A outra, baixa e viril, corria vigorosamente nos ares, cheia de um sentimento de rancor. Destacando nitidamente as palavras,
expandia-se em ondas espessas e de cada palavra emanava um perfume de vingança.
Oh! Fá-lo-ei pagar caro...
gemia Vassa, com os olhos fechados.
Fá-lo-ei arder, secá-lo-ei...
prometia Sacha, certa do que afirmava e ameaçadora, lançando notas firmes e robustas... E de repente, modificando o ritmo da melodia e levantando a voz, atacou arrastando
tanto como a irmã as ameaças apaixonadas:
Mais seco do que o vento de Verão... Mais seco do que a erva ceifada... Ohé - ceifada, ceifada...
Tomás, com os cotovelos na mesa, olhava o rosto da mulher, os seus olhos negros semicerrados. Fixos algures ao longe, brilhavam com uma alegria tão selvagem e tinham
um tal clarão que a própria voz que se escapava da garganta da mulher lhe pareceu negra e brilhante como os olhos dela. Recordava-se das suas carícias e pensava:
"O que a tornou assim? Quase se tem medo dela..." Uktischev, encostado à sua companheira, com uma expressão de beatitude no rosto, ouvia o canto, irradiando prazer.
O senhor das suíças e Zvantsev bebiam o vinho e, inclinados um para o outro, cochichavam. A mulher dos cabelos ruivos examinava com ar meditativo a palma da mão
de Uktistchev, segurando-a entre as suas; a rapariga risonha tinha entristecido, tinha a cabeça baixa e escutava, imóvel, como que fascinada. Abandonando o fogo,
o mujique aproximava-se. Avançava com precaução na ponta dos pés, as mãos atrás das costas; também ele tinha o largo rosto iluminado, transfigurado por um sorriso
de admiração e de alegria ingénua.
Ah! emociona-te, belo donzel!...
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implorava tristemente Vassa com acenos de cabeça. A irmã, com a sua bem erguida, terminou o canto:
Terríveis são as penas de amor!
Depois olhou altivamente à sua volta e, deixando-se cair ao lado de Tomás, abraçou-lhe o pescoço com um braço firme.
- Era bela, a minha canção?...
- Magnífica! - disse Tomás sorrindo-lhe.
- Bravo, bravo, Alexandra Savélievna! - gritou Uktistchev enquanto os outros aplaudiam.
Mas ela não lhes prestava qualquer atenção e, estreitando imperiosamente Tomás, dizia:
- Dá-me um presente, para me recompensar da canção...
- bom, tê-lo-ás... - concordou Tomás.
- O quê?
- O que tu quiseres.
- Dir-te-ei na cidade... E se me ofereces o que eu quero, oh! como eu te amarei.
- Por causa do presente? - perguntou Tomás com um sorriso incrédulo. - Devias fazê-lo sem isso.
Sem se perturbar ela olhou-o e, após um segundo de reflexão, declarou sem hesitar:
- Vais muito depressa... Não vou mentir, falo francamente: eu amo por dinheiro, por presentes... Também se pode amar dessa maneira... claro. Espera um pouco, estudar-te-ei
e talvez te ame por nada... Mas enquanto se espera, desculpa: para a minha maneira de viver é preciso muito dinheiro...
Tomás ouvia-a, sorrindo, e a proximidade desse corpo fazia-o estremecer.
Aos seus ouvidos rangia a voz rachada e rabugenta de Zvantsev:
- Nunca consegui perceber a beleza desta célebre canção russa... Que é que ela tem dentro? Um lobo que uiva, algo de esfomeado, de selvagem... é um cão doente...
nenhuma alegria, nenhum chic. Vocês deviam ouvir o que canta e como canta um francês! Ou um italiano...
- Dê-me licença, Ivan Nikolaievitch... - gritou Uktistchev revoltado.
- Devo concordar num ponto: a canção russa é monótona e sem brilho - disse o homem das suíças, mexendo o vinho.
O sol declinava. Escondendo-se algures ao longe, do lado da margem baixa, lançava na água escura e fria
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manchas douradas e cor-de-rosa. Tomás olhava o jogo dos raios do sol, seguindo os seus reflexos trémulos sobre a planície lisa das águas e, apanhando pedaços da
conversação, via as palavras sob o aspecto de um enxame de borboletas negras voltejando no espaço. Sacha, com a cabeça apoiada no ombro dele, murmurava-lhe ao ouvido,
em voz muito baixa, palavras que o faziam corar e perturbar-se, excitavam o seu desejo de estreitar essa mulher e de a cobrir de beijos infatigavelmente. Além dela,
nenhum dos que aqui estavam reunidos o interessava. Mais ainda: o fidalgote e Zvantsev eram-lhe antipáticos.
- Que estás para aí a olhar? - gritou severamente Uktistchev.
Era ao aldeão que se dirigia a interpelação. Este tirou o boné, bateu com ele nos joelhos, e respondeu sorrindo:
- Aproximei-me para ouvir cantar a menina.
- Ela canta bem?
- Mais do que isso - disse o aldeão olhando Sacha com admiração. - Ela tem uma grande força de voz no peito.
Estas palavras provocaram os risos das damas e as frases de duplo sentido dos cavalheiros. Sacha perguntou ao aldeão:
- E tu, também cantas?
- Oh! não vale a pena falar nisso! - disse ele com um gesto de desdém.
-Que canções sabes?
- De toda a espécie... Gosto de cantar...
Ao dizer isto, teve um riso de escárnio; Sacha disse:
- Então vamos cantar os dois.
- Que ideia. Somos calhados, os dois?
- Vá, começa.
- Que raio de coisa! - comentou Zvantsev carrancudo.
- Se isso o aborrece, atire-se à água! - disse Sacha, olhando-o com olhos brilhantes de cólera.
- Não... está fria... - respondeu Zvantsev, pouco à vontade sob o olhar dela.
- No entanto o momento é óptimo! Agora há muita, com a cheia, e o seu corpo não conseguiria envenená-la completamente.
- Caramba, que espírito! - exclamou o jovem, acrescentando com desprezo: - Na Rússia até as pegas de luxo são malcriadas.
Falava com o seu vizinho, que lhe respondeu com um sorriso de ébrio. Uktistchev também estava ébrio e gaguejava qualquer coisa à companheira olhando-a com olhos
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embaciados. A rapariga do nariz de pássaro escolhia bombons numa caixa. Paulete tinha ido até à borda da jangada e atirava para o rio cascas de laranja.
- Nunca na minha vida participei de uma excursão tão falta de interesse - confiava Zvantsev ao seu vizinho, dolorosamente.
Tomás observava-o com ironia e regozijava-se com o facto de esse homem em ruínas se aborrecer e por Sacha o ter mimoseado com insultos. Contemplava a sua companheira
com ternura, agradava-lhe que ela falasse com todos num tom agreste e tivesse uma atitude orgulhosa como uma verdadeira dama da nobreza.
O aldeão, de pé ao lado dela, dizia:
- Senhora! Devia-me oferecer alguma coisa para me dar coragem.
- Tomás, dá-lhe um copo.
E quando o aldeão, uma vez esvaziado o copo, tossiu com ar de apreciador, Sacha ordenou:
- Começa...
com a boca um pouco torta, eie lançou com voz de tenor agudo:
Não tenho vontade de beber.
A mulher prosseguiu estremecendo:
Meu coração não quer vinho.
O aldeão teve um sorriso suave, abanou a cabeça e, com os olhos fechados, fez jorrar no ar um grupo palpitante de notas altas:
O? Chegou a hora do adeus.
E a mulher gemendo e chorando:
É a hora de deixar os entes queridos...
Baixando a voz, o aldeão, com uma admirável intensidade na dor, cantou em recitativo:
Ai! É preciso partir para muito longe...
Quando as duas vozes soluçantes e nostálgicas se espalharam no silêncio e na frescura da noite, dir-se-ia que a atmosfera se tinha tornado melhor e mais quente.
Tudo pareceu sorrir de compaixão perante a aflição do homem que um poder obscuro arranca ao seu ninho natal
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para o arrastar para o estrangeiro, para um labor penoso e aviltante. Não eram notas, não era um conto, mas sim as lágrimas ardentes de um coração de homem que exalava
esse lamento em ebulição, eram as próprias lágrimas que impregnavam a atmosfera. A tristeza da alma supliciada no combate, o sofrimento das feridas infligidas ao
homem pela mão de ferro da necessidade, tudo estava incluído nessas palavras simples e imperfeitas, e transmitia-se por meio de acentos inefàvelmente tristes até
ao céu longínquo e vazio onde não há eco para nada nem para ninguém.
Afastado dos cantores, Tomás olhava-os com uma emoção vizinha do medo, o canto inundava-lhe o peito com uma onda tumultuosa e o poder violento da tristeza que ela
continha oprimia-lhe o coração quase até ao desfalecimento. Nesse momento sentia as lágrimas jorrarem-lhe dos olhos, a garganta apertar-se e o rosto tremer. Via
numa névoa os olhos negros de Sofia, imóveis, que lhe pareciam enormes e que aumentavam ainda mais. Parecia-lhe também que não eram dois seres humanos que cantavam,
mas sim que tudo à volta deles cantava, soluçava e tremia nas agruras do desgosto, que tudo o que vivia se apertava num violento abraço desesperado.
Quando acabaram o canto, perturbado e a tremer, ele olhou-os e sorriu.
- Então, isto mexe contigo? - perguntou Sacha. Pálida de fadiga, ela respirava de modo muito rápido,
quase arquejante. Tomás olhou o aldeão: ele limpava a testa perlada de suor e lançava à sua volta olhares tão alucinados que parecia não compreender o que se tinha
passado.
Fez-se o silêncio. Cada um ficou no seu lugar sem um gesto, sem uma palavra.
- Ah! Meu Deus! Oh, aldeão!... Quem és tu? - disse ele quase num grito.
- Sou Stepane... - respondeu o mujique com um sorriso em que se desculpava.
- Mas, como tu cantas!... - exclamou Tomás estupefacto, mexendo-se febrilmente no seu lugar.
- Eh! Eh! Vocelência! - suspirou o aldeão. - Se o desgosto o forçasse um boi cantaria como um rouxinol... Mas a menina, o que a faz cantar se... Bem, Deus é que
sabe... mas ela canta!... depois disso só nos resta deitarmo-nos para morrer! Claro, é uma menina!
- Ele cantou muito bem! - disse Uktistchev com voz avinhada.
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- Maldição - exclamou de repente Zvantsev exasperado e quase em lágrimas, saltando de detrás da mesa.
- Venho para me divertir, quero alegria, e cantam-me o ofício dos mortos... Que quer dizer esse horror? Estou farto, vou-me embora.
- Jean! Vou-me embora também... - declarou o senhor das suíças.
- Vassa! - gritava Zvantsev. - Veste te.
- Sim, é tempo de partir - disse tranquilamente a Uktistchev a rapariga ruiva. - Está frio... E não tarda aí a noite escura.
- Stepane! Junta tudo - ordenou Vassa.
Toda a gente se agitou e se pôs a falar; Tomás olhava sem compreender e todo o seu corpo tremia. As pessoas circulavam na jangada, titubeantes, pálidas, irritadas,
trocavam frases ineptas, descosidas. Sacha acotovelava-os sem atenções, juntando as suas coisas.
- Stepane, chama os cavalos...
- Eu vou beber ainda mais um brande; quem quer beber um brande comigo? - dizia com voz calma o homem das suíças, com a garrafa nas mãos.
Vassa enrolava um lenço à volta do pescoço de Zvantsev. Ele mantinha-se diante dela, amuado, um tregeito caprichoso nos lábios, os joelhos a tremerem. Tomás sentia-se
enojado de os ver, afastou-se deles, passou para a jangada seguinte. Admirava-se por ver todas aquelas pessoas conduzirem-se exactamente como se não tivessem ouvido
a canção. No seu peito ela vivia, excitava em si o desejo inquieto de fazer, de dizer qualquer coisa.
O sol já se tinha escondido, os longes ornavam-se com um nevoeiro azulado. Ele não tinha nenhuma vontade de fazer o caminho até à cidade na companhia daquelas pessoas.
No entanto elas continuavam a ir e vir com passo desigual em cima da jangada, titubeando de um lado e outro, balbuciando palavras sem continuidade. As mulheres estavam
menos embriagadas do que os homens. Só a ruiva esteve muito tempo sentada sem se poder erguer; finalmente, ao consegui-lo, declarou:
- Bem, estou bêbeda!
Tomás sentou-se num cepo e, depois de ter levantado o machado com que o mujique tinha cortado a lenha para a fogueira, pôs-se a brincar com ele atirando-a ao ar
e apanhando-a depois.
- Ah! Como isso é banal! - ouviu-se a voz caprichosa de Zvantsev.
Tomás sentiu que o odiava, a ele e a todos os outros, com excepção de Sacha, que despertava nele uma vaga
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impressão de espanto e o temor de que pudesse realizar alguma acção surpreendente e aterradora.
- Ga-ado! - piava Zvantsev.
Tomás percebeu que ele empurrava o aldeão; o outro, de chapéu na mão, afastava-se humildemente...
- Palerma! - gritava Zvantsev avançando para ele de mão erguida.
Tomás levantou-se de um salto e ameaçou, com voz forte:
- Tu! Não lhe toques!
- O quê? - fez Zvantsev voltando-se para Tomás. Este ergueu os ombros, deu um passo para o jovem...
E de repente uma ideia subiu-lhe à cabeça. Riu-se com maldade e interrogou Stepane:
- Há três pontos de ligação à jangada?
- Há três, claro!
- Corta as amarras...
- Mas eles?...
- Não te preocupes. Corta...
- Mas...
- Corta. Devagar, que eles não pressintam.
O aldeão pegou no machado, aproximou-se sem pressa do ponto em que a jangada dos excursionistas estava estreitamente unida à seguinte e, após alguns golpes, voltou-se
para Tomás:
- Eu não sou responsável, Excelência!
- Não te preocupes.
- Vão à deriva! - murmurou o aldeão assustado, benzendo-se precipitadamente.
Tomás, escondendo o riso, sentia uma sensação sinistra que lhe dava no coração picadas vivas e ardentes, de um estranho, agradável e doce medo.
Na jangada continuavam as idas e vindas em evoluções lentas, chocavam-se uns com os outros, ajudavam as mulheres a vestirem-se, riam e conversavam; no entanto, suavemente,
sem estremecimentos, a jangada começara a ser arrastada.
- Se ela encontra um comboio - murmurou o mujique - ou se apanha um rochedo, desfaz-se em pedaços.
- Cala-te. Apanha um barco e vais apanhá-los.
- Ah! bom!... São seres humanos.
Satisfeito, rindo, o aldeão saltou de jangada em jangada, precipitando-se para a margem. Tomás estava de pé, à beira de água, com uma vontade louca de gritar qualquer
coisa, mas conteve-se esperando que a jangada derivasse para mais longe e esses bêbados não a pudessem deixar saltando para as outras amarradas. Experimentava uma
sensação agradável e apaziguadora no espectáculo
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da jangada a balouçar-se suavemente na água e a afastar-se dele de segundo a segundo. Ao mesmo tempo que as pessoas a flutuarem na jangada, tudo o que havia nele
de obscuro e penoso e o tinha invadido havia pouco desaparecia na linha de água. Respirava o ar fresco e com ele algo de salubre que o libertava. Na beira da jangada
à deriva estava Sacha de costas para ele; Tomás olhava a sua bela estatura e, mesmo sem querer, recordou Sofia Médynski. A outra era ligeiramente mais pequena...
Essa recordação aguilhoou-o e ele lançou esta advertência sonora e irónica:
- Hei! Vocês aí! Adeus!
As silhuetas escuras fizeram imediatamente e todas juntas um movimento na sua direcção e concentraram-se no centro da jangada. Mas já brilhava, entre elas e Tomás,
com um brilho frio uma fita líquida da largura de mais de três metros. Reinou um silêncio de alguns segundos...
E de repente um verdadeiro furacão de guinchos, cheios de um terror bestial, desagradàvelmente lamurientos, voou até Tomás. Mais alta do que todas as outras e mais
desagradável, a voz frágil e trémula de Zvantsev dominava o clamor geral:
- Socorro!
Alguém, provavelmente o grave senhor das suíças, rugia com voz de baixo:
- Afogam-se... afogam-se homens.
- E são vocês, que são homens? - gritou com maldade Tomás, exasperado pelos gritos que lhe chegavam como outras tantas mordeduras.
As pessoas possuídas por um terror louco agitavam-se sobre a jangada. Esta oscilava sob os pés, o que lhe acelerava o movimento. Ouvia-se o chape-chape da água debaixo
das tábuas. Os gritos rasgavam o ar, eles saltitavam, gesticulavam; só a silhueta de Sacha se mantinha imóvel e muda na borda da jangada.
- Os meus cumprimentos aos caranguejos! - gritava Tomás.
Sentia-se cada vez mais leve e mais alegre à medida que a jangada se afastava.
- Tomás Ignatitch - articulou Uktistchev com voz pouco segura, mas já sem traços de embriaguez - tenha cuidado, esta brincadeira é perigosa... Apresentarei queixa.
- Depois de afogado? Queixa-te! - respondeu Tomás alegremente.
- Assassino! - exclamou Zvantsev soluçando.
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Mas nesse momento a água soltou um pluf sonoro, como um soluço de terror e de estupefacção. Tomás sobressaltou-se e ficou imóvel. Depois houve um feixe de hurros
selvagens de mulheres embriagadas, exclamações de terror largadas pelos homens. Todas as silhuetas se imobilizaram no lugar. Tomás ficou petrificado ao olhar a água,
vendo qualquer coisa de negro que vogava para ele cercado de salpicos.
Instintivamente lançou-se de barriga para baixo na beira da jangada e estendeu o braço para a frente, a cabeça à flor da água. Decorreram alguns segundos inacreditavelmente
longos... Dedos frios, molhados, lhe agarraram o braço, dois olhos escuros brilharam diante dele.
O medo estúpido que o tinha dominado desapareceu então para dar lugar a uma alegria extraordinária. Agarrou a mulher e, arrancando-a da água, apertou-a contra si;
sem saber o que lhe havia de dizer, olhou-a nos olhos com admiração. Trocaram um sorriso amigável.
- Está fria! - disse Sacha estremecendo.
Tomás soltou um riso alegre ao ouvir-lhe o som da voz, ergueu-a nos braços e rápido, quase a correr, lançou-se para a margem saltando de jangada para jangada. Sacha
estava encharcada e tinha frio, mas a sua respiração era ardente, queimava a face de Tomás e enchia-lhe o ser com uma tempestade de alegria.
- Tu querias-me afogar? - disse ela apertando-se contra ele arrebatadamente.
- Como tu fizeste bem em saltar! - balbuciava Tomás na sua corrida.
- E tu, também não foi mal achado; no entanto olha-se para ti e estás tranquilo.
- Os outros continuavam a choramingar!
- Que vão para o Diabo. Afogar-se-ão e nós partiremos os dois para a Sibéria... - disse a mulher.
Pôs-se a bater os dentes e os seus arrepios obrigaram Tomás a acelerar a corrida.
Vindos do rio seguiam-nos os gritos e os apelos de socorro. Lá em baixo, na água tranquila, afastando-se da margem na corrente principal do rio, uma pequena ilha
flutuava na obscuridade, onde se mexiam sombrias silhuetas humanas.
A noite caía sobre eles.
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IX
Um domingo, cerca do meio-dia, Jacob Maiakine tomava o chá no jardim. com o colarinho da blusa desabotoado e um guardanapo à volta do pescoço, estava sentado num
banco debaixo do dossel de verdura das suas cerejeiras. Fazia grandes gestos com as mãos limpando o rosto perlado de suor e lançava nos ares, sem interrupção, um
discurso precipitado.
- Ò homem que se deixa dominar pelo ventre é tolo e cobarde!
Os olhos do velho brilhavam de raiva e de exasperação, o desprezo torcia-lhe os lábios, e as rugas da sua face sombria estremeciam.
- Se Tomás tivesse sido o meu próprio filho, eu tê-lo-ia domado.
Brincando com um ramo de acácia, Lubov ouvia sem comentários a conversa do pai, observando com atenção perscrutadora as suas feições transtornadas e trémulas. À
medida que envelhecia, ela tinha, sem reparar, modificado a sua atitude de frieza e de desconfiança em relação ao pai. Sempre mergulhado na efervescência dos negócios,
enérgico e avisado, este seguia sozinho o caminho que traçara; ela via-lhe a solidão, conhecia-lhe o peso, e isso tinha posto mais calor nas suas relações. Acontecia-lhe
de tempos a tempos lançar-se em discussões com o pai; ele respondia-lhe sempre às objecções com uma ironia negligente, mas a cada debate aumentava a sua atenção
e a sua suavidade.
- Se o defunto Inácio pudesse ler no jornal o que se diz da existência inqualificável do filho, matá-lo-ia
- dizia Maiakine batendo com o punho na mesa. - E em que termos o descrevem! Uma vergonha!
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Há razão para isso - dizia Lubov.
Não digo que não há razão! Falaram-lhe como
devia ser... Mas quem montou essa história toda?
Em que é que isso pode interessar-lhe? - perguntou a rapariga.
- Por curiosidade... Seja quem for compôs bem a sua descrição da conduta do nosso amigo... Vê-se bem: fazia parte do grupo boémio e foi testemunha de todos os disparates...
- Não era ele que faria de Tomás a sua companhia!
- afirmou energicamente Lubov.
Sob o olhar interrogativo do pai, ela corou.
- Sim, sim! Vejo que tens boas relações, Lubov! disse Maiakine, cáustico. - Então, quem escreveu essa coisa?
Ela não queria falar, mas o pai insistiu e a sua voz tornou-se mais seca e irritada. Então Lubov perguntou, inquieta:
- Não lhe vai fazer mal?
- Eu? Arrancar-lhe-ia a cabeça com os dentes! És uma tola! Que posso eu fazer? Esses escrevinhadores não são meninos de coro... São fortes, esses diabos! Não sou
governador... de resto nem mesmo ele lhes pode ligar as mãos ou fechar a boca... Eles são como os ratos... Comem-nos lentamente... E então, quem é?
- Lembra-se, quando eu ia à escola, de um aluno que vinha muito cá a casa, o lejov? Um moreno, franzino...
- Claro, vi-o muitas vezes! Foi então ele? A ratazana... Mesmo naquele tempo já se via que não sairia dali senão um pobre Diabo... Eu devia-me ter ocupado dele...
Talvez se tivesse tornado um homem...
Lubov teve um pequeno riso e perguntou com um certo ar decidido:
- Mas acha que aquele que escreve nos jornais não é por acaso um homem?
O velho ficou muito tempo sem responder; os seus olhos tamborilavam na mesa e olhava pensativamente a sua imagem reflectida no cobre brilhantemente polido do samovar.
Depois, erguendo a cabeça, franziu os sobrolhos e pronunciou com energia:
- Não são homens, são furúnculos! O sangue dos Russos corrompeu-se e esse mau sangue faz aparecer todos esses escrevinhadores e plumitivos. Assim surgiram todos
esses furúnculos e não cessam de multiplicar às suas erupções... De onde vem a corrupção do sangue? Da lentidão dos movimentos... A origem dos mosquitos?... O pântano.
Nas águas dormentes proliferam toda
172
a espécie de impurezas... Acontece o mesmo numa existência desprovida de ordem.
- O que está a dizer não é justo, papá - objectou suavemente Lubov.
- Não é justo? Como assim?
- Os escritores são os homens mais desinteressados... são belas almas! Não necessitam absolutamente de nada, é-lhes apenas necessária a justiça, a verdade!... Não
são mosquitos.
Lubov aquecia, alargava-se em louvores aos seres que ela amava com predilecção, as feições ganhavam cor e os olhos fixavam o pai com fervor como que a implorar que
ele a acreditasse sem ser ela própria capaz de o convencer.
- Eh lá! - interrompeu o pai, suspirando. - Estás tola com as leituras! Diz-me cá: quem são eles? Ninguém sabe nada. Esse lejov, por exemplo, quem é ele? Que se
importa ele com Deus, por exemplo? Como são todos modestos! Essa verdade é o seu bem mais querido! É ela - sabe-se lá - que cada um deles persegue então em silêncio?
Acredita-me... não pode existir homem desinteressado... ninguém se irá bater pelo benefício de outro... e se existe alguém para o fazer o seu nome é "louco" e nunca
ninguém tirará dele uma onça de bom senso. É preferível que o homem se saiba domar para sua própria defesa... por aquilo que o sangue lhe pede... e então ele ganhará
a partida. A verdade! Há perto de quarenta anos que leio o mesmo jornal e vejo bem... olha, tens a minha cara diante de ti, e diante de mim, no samovar, está também
a minha cara, mas é diferente... Pois bem, os jornais dão a todas as coisas uma cara samovarizada; quanto ao rosto verdadeiro, esse não se vê... e tu, tu tens confiança
neles!... Eu sei muito bem que a minha cara vista no jornal está desfigurada.
- Papá! - exclamou Lubov tristemente. - Mas nos livros e nos jornais são os interesses públicos, os de toda a gente, que se defendem.
- E em que jornal se fala da tua vida cheia de aborrecimento? Diz-se que devias estar casada há muito tempo? Bem vês, eles não defendem os teus interesses. Os meus
também não, eles não os defendem... Quem sabe o que eu quero? Quem, além de mim mesmo, pode compreender os meus interesses?
- Não, papá, nada disso é verdade, nada! Eu não lhe sei responder, mas sinto que não é como diz - protestou Luba quase desesperada.
- É exactamente como eu digo - afirmou o velho.
- A Rússia está perturbada, não há nada estável, tudo
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estremece nos fundamentos. Toda a gente vive de maneira falsa, tudo avança de través, não há equilíbrio, harmonia na vida... Todos gemem, mas cada um em registos
diferentes. Quais são as necessidades de cada pessoa? Ninguém o compreende. A névoa envolve todas as coisas... todos respiram esse nevoeiro e é isso que corrompeu
o sangue dos homens... o que fez nascer os abcessos... Deu-se às pessoas uma grande liberdade de espírito, mas elas não têm qualquer permissão de agir, é por isso
que não vivem, mas apodrecem e cheiram mal...
- Que fazer então? - perguntou Lubov reclinando-se sobre a mesa e olhando o pai.
- Tudo! - gritou o velho, freneticamente. - Fazer tudo. Que cada um avance até onde é capaz. Mas para isso é necessário dar às pessoas a liberdade, a liberdade!
Ah!, já que chegou o tempo em que qualquer aborto imagina que pode tudo, como se estivesse no mundo para organizar a existência integralmente, que lha dêem, a liberdade,
a essa carraça. Anda, cachorro, vive! Vá, queres viver? Ah, ah! Seguir-se-á uma bela comédia: sentindo que lhe retiraram o freio, o homem perderá o senso de medida,
saltará por cima da própria cabeça e voará como uma pena, lançar-se-á em todos os sentidos ao mesmo tempo... Acreditará que é um fazedor de milagres e começará então
a entregar a sua alma...
O velho fez uma pausa e, baixando a voz, prosseguiu com um sorriso pérfido:
- Mas desse espírito construtivo ele não tem mais do que uma onça. Pavonear-se-á um dia ou dois, exibir-se-á à direita e à esquerda, e depressa esgotará o seu papel,
pobre Diabo! Os miolos estão bolorentos... É então que o querido homem será apanhado pelos homens verdadeiros, os homens respeitáveis; esses homens verdadeiros...
que são capazes de ser os donos efectivos, titulares, da vida... que dirigirão a vida não à paulada ou com palmas, mas sim com a mão e com a cabeça. Eles dirão aos
outros: "Então, meus senhores, já estão fatigados? A vossa energia não suporta o verdadeiro calor?"
Levantando a voz o velho terminou o seu discurso em tom de comando.
- Muito bem, agora fizeram a vossa experiência, assunto arrumado. Nem mais uma palavra, nada de gritarias. Senão far-vos-emos desaparecer da face da terra com um
empurrão, como se abate uma árvore. Acabou a brincadeira, meus carneirinhos. É assim que se passarão as coisas, Lubovka. He! He! He!
O velho irradiava alegria. As rugas brincavam e, deleitando-se com as suas frases, estremecia de prazer,
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fechava os olhos e mexia os lábios como se saboreasse alguma guloseima.
- E nesse momento aqueles que tiverem vencido a confusão organizarão a existência à sua maneira, inteligentemente... As coisas não irão por água abaixo, pelo contrário:
caminharão pautadas como se fossem música. Infelizmente não viveremos para ver isso; é pena!
Essas palavras caíam sobre Lubov umas atrás das outras como as malhas de uma apertada rede onde ela se embaraçava, e a rapariga, sem possibilidades de se libertar,
ensurdecida pelo discurso paterno, mantinha-se em silêncio. Olhando-o com uma expressão tensa procurava nessa linguagem um sustentáculo para si própria e encontrava
pontos de contacto com o que lera nos livros e que lhe parecia a autêntica verdade. Mas o riso mau, triunfante, do pai arranhava-lhe o coração, e essas rugas que
brincavam nas faces dele como pequenas e obscuras serpentes, metiam-lhe medo. Ela sentia que ele a dirigia para uma estrada que a afastava do que lhe parecia tão
simples e tão luminoso nos seus sonhos.
- Papá! - disse ela de repente, obedecendo a uma ideia e a um desejo que acabavam de lhe germinar no espírito. - Papá, na sua opinião que homem é Taras?
Maiakine sobressaltou-se. As sobrancelhas começaram
a mexer colericamente, deteve fixamente sobre a filha
os olhos pequenos e faiscantes, e perguntou secamente.
- Que conversa é essa?
- Mas realmente não se pode falar dele? - disse Luba suavemente, perturbada.
- Não quero falar dele. E não te aconselho a fazê-lo. O velho ameaçou a filha com o dedo e, com o rosto
severo e fechado, baixou a cabeça. Mas ao dizer que não queria falar do filho, tinha decerto ele próprio entendido mal o seu desejo porque, após um momento de silêncio,
proferiu com um tom aborrecido e brusco:
- Taras... também ele é um abcesso... A vida sopramos em cima, patetas, e vocês não são capazes de distinguir quais são os verdadeiros perfumes... Vocês aspiram
uma porcaria qualquer e eis a razão por que ficam com as cacholas cheias de escórias... Taras... Deve ter agora mais de trinta anos... está perdido para mim... Porco
de focinho atravessado!
Que faz ele? - perguntou Lubov, que prestava uma atenção ávida às palavras do pai.
- Ninguém sabe nada. Ele próprio é incapaz de o compreender, hoje... Uma cabeçada qualquer... Evidentemente, ele tornou-se inteligente... não era o filho de um imbecil...
e viu-as de todas as cores... Amimam-nos...
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a esses nilistas! Se dependesse de mim eu os faria compreender... Para o deserto! Mandava-os para o deserto... Em frente, marche! Ora vamos lá, seus espertinhos,
arrangem aqui a vossa vida, segundo os vossos temperamentos. Ora vejamos! Como chefes dar-lhes-ia uns sólidos mujiques... Bem, estimados senhores, foram alimentados,
educados, vestidos: que aprenderam? Paguem a vossa dívida... Não gastaria um copeque com eles, fazia sair todo o sumo: reembolsem! Não se deve atirar fora um homem.
Pô-lo na cadeia, é pouco. Infrigiste a lei e és um nobre? Nada disso: trabalha. Um só grão dá vida a toda uma espiga e então um homem havia de ficar sem utilidade?
É inadmissível! Um marceneiro que sabe fazer contas acha maneira de utilizar cada cavaco, do mesmo modo que o homem deve ser gasto com vantagem para a empresa, inteiro,
até à mais pequena gota do seu sangue. Qualquer dejecto tem o seu emprego na vida, mas o homem nunca é um dejecto... Infelizmente as coisas vão mal quando a força
existe sem o espírito, mas também não vão bem quando o espírito não está junto com a força. Por exemplo, o Tomás... Quem é que vem ali? Olha para lá.
Voltando a cabeça, Lubov viu lefime, o capitão do lermak, que avançava pela álea do jardim, tirando respeitosamente o boné, saudou os presentes.
O rosto dele apresentava uma expressão desesperada e culpada, e ele próprio parecia atordoado... Jacob Tarassovitch reconheceu-o e, imediatamente preocupado, gritou:
- Aconteceu alguma coisa?
- Bem... vinha fazer-lhe uma visita! - disse lefime, parando junto da mesa com uma profunda saudação.
- Bem vejo que me vens visitar... De que se trata? Onde está o barco?
- O barco está lá em baixo!
lefime estendeu o braço no ar e mudou o peso do corpo de um pé para o outro.
- Onde, caramba! Fala! Que aconteceu? - gritou o velho, furioso.
lefime aspirou uma grande golfada de ar e articulou lentamente:
- A barcaça número nove está em pedaços. Um homem tem as costelas metidas dentro, quanto ao outro, deixou de lá estar, quer dizer afogou-se, ao que parece...
- Sim, sim! - exclamou Maiakine olhando sinistramente o capitão. - Muito bem, meu pequeno lefime, vou-te esfolar vivo...
- Não fui eu! - apressou-se a dizer lefime.
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- Não foste tu? - gritou o velho, ao mesmo tempo que todo o seu corpo se punha a tremer. - Então quem foi?
- O próprio patrão.
- Tomás? E tu que fazias?
- Eu? Estava deitado numa camarata...
- Hem! Deitado?
- Amarrado...
- O quê? - hurrou o velho com voz aguda.
- Permita-me que eu conte as coisas pela ordem... Quer dizer, ele tinha bebido e gritava: "Desaparece daqui!". Eu disse-lhe: "Não posso. Sou o capitão". Então ele
ordenou: "Amarrem-no!". E depois de me amarrarem desceram-me para uma camarata, do lado do sector da equipagem. E como tinha bebido teve vontade de se pôr a fazer
disparates... Vinha um comboio ao nosso encontro... seis barcaças vazias, rebocadas pelo Montenegrino. Ignatitch barrou-lhe a passagem. Os outros apitaram... mais
do que uma vez... tenho de dizer a verdade: apitaram!
- E depois?
- Depois não conseguiram evitar o embate... Os dois primeiros caíram-nos em cima... quando nos bateram no costado ficamos em pedaços... e eles também, os dois barcos,
em pedaços... Mas para nós o caso é mil vezes pior...
Maiakine deixou a cadeira e soltou um riso trémulo, mau. lefime afastou os braços e disse:
- Bem se pode dizer que ele tem um carácter difícil!... Em jejum, cala-se a maior parte do tempo e caminha pensativo, mas mal molha as bielas no vinho desunha-se
em gritos, fica transtornado... O que quer dizer que deixa de ser dono de si mesmo, nem dele nem do negócio, é o espírito maligno, digo-o com o vosso respeito. Quero-me
ir embora, Jacob Tarassovitch. Eu, sem patrão, não tenho o hábito, não posso viver sem patrão...
- Cala-te! - disse Maiakine com dureza. - Onde está o Tomás?
- Lá no lugar... - respondeu lefime a meia voz, olhando de esguelha para Lubov. - Logo depois do acidente recobrou os espíritos e mandou imediatamente chamar operários...
Eles vão levantar a barcaça... já devem ter começado...
- Está lá sozinho? - perguntou Maiakine, baixando a cabeça.
- Não completamente... - respondeu lefime, olhando novamente Lubov do mesmo modo. - Havia uma
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senhora com ele... uma de cabelos pretos... dir-se-ia uma mulher que não tem o juízo todo... - disse ele, suspirando. - passa a vida a cantar... canta muito bem...
seduz...
- Não é a respeito dela que te interrogo - pôs-se a gritar Maiakine, cheio de raiva.
As rugas das faces apertaram-se dolorosamente. Luba teve a impressão de que o pai estava a pique de começar a chorar.
- Calma, papá! - implorou ela com ternura. - Talvez o prejuízo não seja muito elevado.
- Pouco elevado? - fez Jacob Tarassovitch num grito. - Que percebes tu disso, palerma? Foi uma barcaça que se perdeu? Raciocina: é um homem que se perde! É isso
que é! E eu tenho necessidade dele. Tenho necessidade deles, malditos patetas que vocês são.
O velho sacudiu a cabeça com furor e com um passo rápido dirigiu-se para casa...
... Nesse momento Tomás encontrava-se a mais de quatrocentas verstas dali, numa cabana, nas margens do Volga. Acabava de acordar e, deitado no meio do casebre, em
cima de um monte de feno recentemente cortado, olhava com ar aborrecido, através da janela, para o céu coberto de nuvens cinzentas esfarrapadas.
Sem mexer a cabeça, pesada pela embriaguez da véspera, Tomás sentia que também no seu peito se moviam nuvens silenciosas; moviam-se e sopravam-lhe no coração um
frio húmido; oprimiam-no. Nos movimentos das nuvens no céu havia como que impotência, temor... era a mesma coisa que sentia em si... Sem pensar, o que tinha vivido
nesses últimos meses veio-lhe à memória.
Tinha a impressão de ter caído numa torrente lamacenta cujas ondas semelhantes àquelas nuvens no céu o tinham agarrado, agarrado para o arrastarem não se sabia para
onde. Nas trevas e no barulho que o cercavam, ele distinguia vagamente outros seres arrastados ao mesmo tempo que ele, seres diferentes em cada dia mas todos identicamente
lamentáveis e repulsivos. Ébrios, ruidosos, cúpidos, agitavam-se em todos os sentidos, andavam na pândega à custa dele, injuriavam-no, batiam-se entre si, gritavam,
choravam até, e mais do que uma vez ele batia-lhes. Lembrava-se de ter socado um rosto, arrancado as roupas a alguém e lançado o homem à água e beijavam-lhe as mãos
com lábios húmidos, frios, viscosos, como a pele das rãs... O homem beijava-lhe as mãos e, cheio de lágrimas, suplicava-lhe que o não matasse... Na sua memória certos
rostos passavam fugidios, sons e
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palavras ali retiniam... Uma mulher, vestida com uma blusa de seda amarela, desabotoada no peito, cantava com voz forte e soluçante:
Assim viveremos, enquanto pudermos... Mas lá, nem a própria erva cresce.
Todas essas pessoas estavam, tal como ele, apanhadas pela mesma vaga sombria e roladas por ela como imundícies. Todas tinham medo. Decerto temiam olhar em frente
para ver onde as levava essa vaga furiosa e possante. Afogando o medo no vinho, debatiam-se, soltavam gritos, cometiam algumas acções ineptas, mexiam-se como fantoches,
faziam barulho, barulho, e nunca estavam contentes. Também ele fazia tudo isso. Hoje parecia-lhe que se tinha feito tudo isso, tinha sido para franquear mais rapidamente
uma etapa sombria da sua existência.
Na algazarra das paródias, na multidão das pessoas desviadas pelo desencadear das suas paixões, meio loucas do desejo de se esquecerem a si mesmas, apenas Sacha
conservava sempre a sua calma e o seu equilíbrio. Nunca se embriagava, falava sempre com voz calma e imperiosa, todos os seus movimentos eram equilibrados e seguros,
como se essa torrente não a dominasse, e, pelo contrário, ela própria dirigisse a onda tempestuosa. Ela parecia a Tomás a mais inteligente de quantos o cercavam,
a mais ávida de barulho e de bulício, comandava todos, inventava constantemente algo de novo e dirigia-se a todos do mesmo modo: com o cocheiro, com o criado, com
o marinheiro, usava o mesmo tom e as mesmas palavras que usava com as suas companheiras e com ele próprio. Ela era mais bela e mais jovem do que Pelágia, mas as
suas carícias eram mudas, frias... Tinha vindo à ideia de Tomás que ela escondia no fundo do coração alguma coisa de assustador, que ela nunca amaria ninguém, nunca
se abriria completamente. O que havia de misterioso, de escondido naquela mulher, atraía-o para ela por meio de um sentimento de curiosidade mesclado de receio,
um interesse para com seu ser mais profundo, tranquilo, frio e sombrio como os seus olhos.
Uma vez Tomás disse-lhe:
- Caramba, quanto dinheiro já deitámos fora, os dois?
Ela olhou-o e perguntou:
- E para quê guardá-lo?
"Para quê, realmente?", pensou Tomás, espantado por ela raciocinar com tal simplicidade.
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- Quem és tu? - perguntou-lhe ele, outra vez.
- Terias esquecido como eu me chamo?
- Tens algumas bem boas!
- Então, que mais queres?
- Era acerca das tuas origens que eu te interrogava.
- Ah, bom!... Sou da província de laroslav, nasci em Uglitch. Família burguesa... Harpista... Então, serei agora mais saborosa, para ti, por saberes quem eu sou?
- Continuo a não saber! - disse Tomás rindo.
- Precisas de mais pormenores? Não te direi mais nada... Para quê? Todos vêm ao mundo do mesmo modo, os homens e os animais... Todas essas conversas não significam
nada... Pensemos antes o que vamos fazer esta tarde.
Nesse dia passearam de barco, com uma orquestra, beberam champagne e embriagaram-se terrivelmente. Sacha cantava uma canção estranha, espantosamente triste, e Tomás
chorava como uma criança, transtornado pelo canto. Depois dançou com ela à moda russa, cansou-se, atirou-se pela borda fora e esteve prestes a afogar-se.
Agora, lembrando-se de tudo isso e de muitas outras coisas, sentia-se envergonhado e também descontente com Sacha. Olhava o harmonioso desenho do seu corpo, ouvia-lhe
a respiração e sentia que não amava aquela mulher, que ela não lhe era necessária. Na sua cabeça enevoada pela embriaguez nasciam lentamente ideias sombrias, espessas.
Era como se aquilo que ele tinha vivido nesses dias se tivesse torcido dentro de si num rolo pesado e húmido que nesse momento se punha a rolar-lhe no peito, movendo-se
suavemente para o apertar entre os seus fios cinzentos e ténues.
"Que se passa comigo?" pensava ele. "Quem sou eu?"
Esta pergunta perturbou-o e deteve-se nela, tentando reflectir: porque é que não podia viver em sossego, sem se perturbar, como vivem os outros? A sua vergonha cresceu
perante esse pensamento, voltou-se no feno, exasperado, e deu uma cotovelada em Sacha.
- Devagar! - fez ela, no meio do sono.
- Ora, ora! Apesar de tudo não és nenhuma princesa!
- resmungou Tomás.
- O quê?
- Nada...
Ela voltou-lhe as costas e, depois de um bocejo voluptuoso, começou, preguiçosamente:
- Sonhei que tinha voltado a ser harpista. Cantava em solo, à minha frente havia um cão enorme, nojento, mostrava os dentes e esperava que eu acabasse... Eu
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tinha medo... Sabia muito bem que me devoraria quando eu acabasse de cantar... de repente a voz faltou-me... que horror! O cão fazia estalar os maxilares... Que
quer dizer este sonho?
- Basta de falatório! - ordenou Tomás, rabujento. Diz-me antes o que sabes de mim.
- O que sei é que estás acordado - respondeu ela sem se voltar.
- É verdade, estou acordado! - pronunciou Tomás pensativamente, e prosseguiu, com a cabeça pousada nas mãos: - É por isso que te pergunto que homem sou eu, na tua
opinião.
- Um homem que bebeu - disse Sacha bocejando.
- Alexandra! - implorou Tomás. - Não te faças de parva! Diz-me, em consciência, o que pensas de mim.
- Não penso nada! - respondeu ela secamente.
Ele soltou um profundo suspiro e calou-se. Depois de se ter também mantido em silêncio durante alguns instantes, Sacha tomou a palavra com a sua voz habitual, indiferente:
- Diz-me, diz-me! E que motivo me levaria a pôr-me a pensar a propósito de cada um? Não tenho tempo sequer de pensar em mim!... Nem de resto tenho vontade de o fazer.
Tomás teve um riso seco e disse:
- Gostaria de não ter vontade de nada.
A mulher levantou a cabeça, olhou para ele e voltou a pousá-la, dizendo:
- Complicas tudo... Tem cautela, não vais arranjar coisa boa, com esse feitio... Não posso dizer nada acerca de ti... Olha, ouve o que te vou dizer: tu és melhor
do que os outros... Mas que é que isso vai dar?
- E porquê, melhor? - perguntou pensativamente Tomás.
- Porque sim! Se se canta uma bela canção, tu choras... se um homem comete uma vilania, tu bates-lhe... És simples com as mulheres, não fazes pouco delas... Além
disso és capaz de ser audacioso...
Tudo isso não bastava a Tomás.
- Não dizes o que eu quero!
- Não sei o que tu queres... Quando a barcaça estiver a flutuar que faremos?
- Que devemos fazer? - perguntou Tomás.
- Iremos a Nijni ou a Kazan?
- Fazer o quê?
- Uma paródia...
- Não quero fazer mais paródias.
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Ambos ficaram muito tempo silenciosos, sem olharem um para o outro.
Tens um carácter difícil - disse Sacha, aborrecida.
- Não me embebedarei mais - afirmou Tomás.
- Tolices! - replicou Sacha, com calma.
- Verás. Pensas que está bem levar esta vida?
- Espero para ver, então. Depois falaremos.
- Não, responde agora. Achas bem?
- Há alguma coisa melhor?
Tomás olhou-a de través e, exasperado, atirou-lhe:
- Tens uma maneira de falar... nojenta!
- Tive pouca sorte, mais uma vez - gracejou Sacha.
- Que raça! - disse Tomás com uma careta dolorosa.
- Também ela vive... mas como? Arrasta-se para qualquer lado... As baratas correm, mas sabem onde vão e porque vão; mas tu, que procuras? Onde vais?
- Alto aí! - parou-o Sacha, sem se excitar. - Ocupa-te com o que te diz respeito. Toma de mim o que quiseres, mas não me toques na alma.
- Na tua alma! - rosnou Tomás, com desprezo. Qual alma?
Ela começou a circular no aposento, apanhando as roupas espalhadas. Tomás observava-a, aborrecido por Sacha se não ter irritado com o que acabava de dizer acerca
da alma dela. O rosto da rapariga estava impassível como sempre, e ele tinha vontade de ler nele uma expressão raivosa ou ofendida, tinha vontade de algo de humano.
- Uma alma! - exclamou ele, tentando atingir os seus fins. - Um ser que tenha alma pode viver como tu vives. Numa alma há um fogo que arde... há lugar para a Vergonha...
Sentada num banco, ela estava a enfiar as meias, mas ao ouvir essas palavras levantou a cabeça e fixou nele um olhar severo.
- Que estás a olhar? - perguntou Tomás.
- Porque dizes isso? - disse ela sem tirar os olhos dele.
Havia algo de ameaçador na sua pergunta. Tomás sentiu-se desconcertado e disse com voz que perdera o ímpeto:
- E porque não havia de dizer?
- Oh! Tu!... - suspirou Sacha, recomeçando a vestir-se.
- Bem, eu, quê?
- Nada... Tens um feitio engraçado!... Sabes uma coisa que eu notei nas pessoas?
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- Diz lá.
- O homem que não é capaz de responder por si mesmo é um homem que tem medo de si próprio; não vale grande coisa.
- É por mim que dizes isso? - perguntou Tomás após um minuto de silêncio.
Ela cobriu as costas com um comprido penteador cor-de-rosa e, de pé no meio da sala, disse com voz baixa e surda ao homem estendido a seus pés:
- Não te preocupes com a minha alma... É um assunto que não te diz respeito. Eu sou capaz de falar. Se eu quisesse, teria que vos dizer, a todos, e de que maneira!
Tenho palavras para vocês... como marteladas... Posso-vos dar no focinho, de modo a ficarem malucos... Mas não se pode curar-vos com palavras... Vocês precisam passar
pelo fogo como o ferro para se transformarem.
com os braços levantados desfez os cabelos com um gesto brusco; quando se espalharam ao longo das costas em pesadas mechas, sacudiu a cabeça orgulhosamente e lançou
com desdém:
- Que eu seja uma pega, não é o que interessa. Há seres que mesmo na lama são mais puros do que os que passeiam no luxo. Se soubesses o que penso de vocês, de cachorros
machos, que ódio sinto por vocês! É por ódio que me calo... com medo de ficar com a alma vazia se o extravasasse... com medo de perder toda a razão de viver!
Agora ela voltava a agradar-lhe. Essa linguagem tinha um certo parentesco com o seu próprio estado de alma. Sorriu e disse com o contentamento na voz.
- Também eu sinto nascer qualquer coisa na minha alma... Também eu direi o que tenho a dizer... Esse tempo virá...
- Tudo isso contra quem? - perguntou ela negligentemente.
- Contra o mundo inteiro! - exclamou Tomás levantando-se com um salto. - Contra a falsidade. Perguntarei...
- Então pergunta se o samovar está pronto! - ordenou-lhe Sacha com ar indiferente.
Tomás olhou-a e gritou com cólera:
- Vai para o Inferno! Pergunta tu.
- Que bicho te mordeu?
com esta pergunta, ele saiu da cabana...
... O vento lançava rajadas cortantes por cima do rio; este, coberto de brumas, vinha convulsivamente ao seu encontro num marulho sonoro, espumante de raiva. Na
margem, os grupos de salgueiros inclinavam-se para o
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solo, trémulos, perseguidos pela ventania. Elevava-se um clamor feito de assobios, uivos e apelos espessos que saíam de várias dezenas de peitos humanos.
- Oh, iça! Oh, iça! Oh, iça!
Ao longo da margem alta, duas barcaças vazias estavam ancoradas. com os mastros erguidos para o céu, animadas de uma oscilação inquieta ora de um lado ora do outro,
descreviam no espaço um arabesco invisível. A coberta das barcaças estava entulhada de andaimes feitos com grossos pranchões; por toda a parte pendiam roldanas;
correntes e cabos balouçavam no vazio; os elos das correntes tilintavam suavemente... Uma multidão de mujiques, com blusas azuis e vermelhas içavam para a ponte
um enorme barrote e gemiam a plenos pulmões:
- Oh, iça! Oh, iça! Oh, iça!
Também nos andaimes se aglutinavam blusas vermelhas e azuis; o vento enfiava-se nas blusas e inchava as calças, dava às pessoas formas estranhas, tornava-as ora
corcundas, ora esféricas, ora inchadas como bolhas. Os homens nos andaimes e nas pontes construíam, cortavam, serravam, pregavam, por todo o lado trabalhavam braços
fortes de mangas arregaçadas até ao cotovelo. O vento espalhava pelo rio os ruídos deste ardor: uma serra rangia com um ruído alegre; os pranchões soltavam gemidos
secos sob o ataque das enchós; as pranchas davam estalidos dolorosos ao fenderem sob os golpes, as plainas soltavam gritos agudos. O ranger de ferralha das cadeias
e o guincho triste das roldanas misturavam-se com o grito dos vapores, o vento uivava e perseguia as nuvens no céu.
- Rapazes, aliviem, vamos lá!
- Mais uma pancada! - gritava alguém em voz alta e como que suplicante.
Tomás, belo e bem-feito, vestido com uma curta samarra de tecido grosso e calçado com botas altas, estava apoiado a um mastro, puxava a sua barbicha com mão agitada
e admirava o trabalho. O ruído que o cercava dava-lhe vontade de gritar, de se misturar ao estardalhaço dos mujiques, de fender madeira, de arrastar fardos, de comandar,
de os forçar a todos a colocarem nele a sua atenção, de mostrar a todos a sua força, a sua capacidade, a alma viva que tinha dentro de si. Mas resistia e mantinha-se
mudo, imóvel: sentia vergonha. Era ele o patrão de todos aqueles homens e, se se pusesse ele próprio a trabalhar, ninguém acreditaria que o fazia simplesmente por
prazer mas sim porque pretendia com esse gesto aguilhoá-los, dar-lhes o exemplo.
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Um jovem rapagão de cabelos castanho-claro, o colarinho da blusa aberto, passava e repassava diante dele a correr, agora com uma tábua ao ombro, logo com um machado
na mão; saltava como um cabrito brincalhão, espalhava à sua volta um alegre riso sonoro, rudes pragas e trabalhava incansavelmente, ajudando um e outro, correndo
de um modo ágil e rápido de uma ponta a outra da coberta juncada de pranchas e de tábuas. Tomás observava-o obstinadamente e sentia inveja dele.
"Este deve ser feliz..." pensou Tomás, e essa ideia despertava nele o desejo agudo de interromper o jovem, de o humilhar. Tudo à sua volta estava invadido pelo fogo
de um trabalho precipitado, os andaimes consolidavam-se rapidamente e sem manobras erradas, as roldanas colocavam-se nos lugares próprios, prontas a erguerem do
fundo das águas a barcaça afundada; todos estavam dispostos e alegres e... viviam. Ele mantinha-se de lado, sem saber que fazer, incapaz, sentindo a sua inutilidade
no meio desse grande labor. Vexava-o sentir-se a mais entre aqueles homens, e quanto mais os observava mais esse sentimento se exacerbava. Chocava-o pensar que o
que se estava ali a fazer era evidentemente para ele e que no entanto ele não participava em nada.
"Onde está então o meu lugar?" pensava ele, aborrecido. "Onde está o meu trabalho?"
O empreiteiro, um homenzinho de barba branca e pontuda, com olhos pequenos e enrugados num rosto cinzento, aproximou-se dele e disse-lhe sem elevar a voz, com uma
articulação especialmente nítida:
- Está tudo pronto, Tomás Ignatitch, agora estão as coisas em ponto... com a bênção podemos começar...
- Comecem então! - respondeu Tomás, voltando-se para fugir ao olhar penetrante daqueles pequenos olhos que o fitavam.
- Glória a Ti, Senhor! - proferiu o empreiteiro, abotoando sem se apressar o sobretudo e inchando o peito, numa atitude um pouco rígida.
Depois disso, voltando lentamente a cabeça, lançou um olhar circular para os andaimes erguidos a bordo das barcaças e gritou:
- Rapazes, aos vossos lugares!
Os aldeãos agruparam-se em grupos distintos e compactos junto dos cabrestantes, ao longo da trincheira da borda, e o ruído das vozes cessou. Alguns tinham trepado
agilmente para os andaimes e, mantendo-se junto dos cabos, aguardavam.
- Atenção rapazes! - pronunciou a voz calma e forte do empreiteiro. - Está tudo a postos? Quando uma
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mulher está no parto não há tempo de coser as faixas. Vamos, rezemos a Deus.
Deixando cair o boné na coberta, o empreiteiro ergueu o rosto para o céu e começou a benzer-se com fervor. E todos os homens, com a cabeça levantada para as nuvens,
começaram também a fazer grandes gestos com os braços, cobrindo o peito com sinais da cruz. Alguns rezavam em voz alta; um murmúrio surdo e abafado misturava-se
com o ruído das vagas.
- Senhor... tende piedade de nós!... Santa Maria, mãe de Deus!... S. Nicolau!...
Tomás ouvia aquelas invocações que se abatiam sobre a sua alma como um fardo. Todas as cabeças estavam descobertas mas ele esquecera-se de tirar o seu boné e o empreiteiro,
terminada a cerimónia, aconselhou-o gravemente:
- Seria bom que rezasse também uma oração.
- Trata dos teus assuntos e deixa o resto. Não tens lições a dar-me - disse Tomás com um olhar cheio de cólera.
Quanto mais o trabalho avançava mais penoso e vexatório lhe era ver aqueles homens tranquilamente confiantes na sua força prontos a retirarem para ele, do fundo
do rio, mais de dois milhares de toneladas. Tinha vontade de que eles não o conseguissem, que ficassem todos humilhados a seus olhos; na sua cabeça passou um pensamento
mau: "Quem sabe, as correntes ainda podem partir..."
- Atenção! - gritou o empreiteiro.
E de repente, batendo as palmas acima da cabeça, exclamou com voz aguda:
- Firmes!
Os operários retomaram o seu grito e com uma só voz ritmaram a excitação do esforço:
- Firme! Oh, iça!...
As roldanas gritavam e gemiam, as correntes rangiam, tensas com o peso que, subitamente, eram obrigadas a suportar; os operários, agindo sobre as barras dos cabrestantes
com o peito, soltavam a sua cantilena, batiam pesadamente com o pé na coberta. No espaço que separava as barcaças] as vagas marulhavam ruidosamente como se não quisessem
ceder a sua presa. Tudo à volta de Tomás tremia sob a tensão, cabos e correntes arrastavam-se pela coberta, metiam-se nos pés como enormes vermes cinzentos, subiam
elo a elo e recaíam com um ranger estranho, mas o rugido surdo dos trabalhadores cobria todos os outros rumores.
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- Oh, tudo!... Oh, tudo!... Oh! - cantavam eles harmoniosamente e solenemente.
Mas na massa espessa das vozes introduzia-se, e cortava como a faca no pão, a voz aguda do empreiteiro.
- Ohé! rapazes! Um... dois... um... dois...
Tomás sentia-se invadido por uma estranha perturbação, tinha uma vontade apaixonada de se fundir nesse rugir dos operários, amplo e possante como o rio, nos gemidos
do ferro, no tumultuoso bater das vagas. A violência do seu desejo fazia-lhe correr o suor pela testa e, de repente, arrancando-se ao mastro onde tinha estado, em
alguns saltos, excitado, precipitou-se para o trabalho.
- Um... dois... Um... dois... - gritou ele com voz selvagem.
Ao atingir o cabrestante, levado pelo seu ímpeto, bateu com o peito; insensível à dor, começou a caminhar à volta do arco, firmando-se solidamente com os pés no
chão. Algo de ardente lhe corria no peito, compensando o esforço que fazia ao rodar a alavanca. Uma alegria inegável desencadeava-se nele e extravasava para o exterior
num grito fogoso. Tinha a impressão de que estava só, de que o aparelho não rodava senão pela sua única força, erguendo o fardo, e que essa força crescia cada vez
mais. Curvado em dois, com a cabeça baixa, ia como um boi adiante da força do peso que o atirava para trás mas que apesar de tudo lhe ia cedendo. Cada passo em frente
excitava-o mais, cada gasto de energia era também compensado por um afluxo de orgulho ardente. Tinha uma vertigem, os olhos injectavam-se de sangue, não via nem
sentia nada excepto que se lhe cedia, que ele vencia, que, dentro de um instante, ele arrasaria com a sua força algo de enorme que lhe barrava o caminho; arrasaria
e venceria, e então respiraria facilmente, livremente, cheio de uma alegria orgulhosa. Era a primeira vez na sua vida que experimentava um tal sentimento de entusiasmo,
saboreava-o com toda a potência da sua alma esfomeada, embriagava-se com ele, e soltava a sua alegria com grandes gritos enérgicos cadenciados pelos dos operários.
- Oh... tudo! Oh... tudo! Oh!... tudo!...
- Alto! Aguentem firme! Alto, rapazes!...
Tomás recebeu uma pancada no peito e foi atirado para trás.
- A coisa acaba bem, Tomás Ignatitch - felicitou-o o empreiteiro, com as rugas a tremerem nas faces como raios de alegria. - Deus seja louvado! Cansado?
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O vento frio soprava na cara de Tomás. Um clamor satisfeito e gabarola cercava-o; injuriavam-se uns aos outros gentilmente; alegres, com um sorriso no rosto suado,
aproximavam-se e formavam um círculo compacto à sua volta. Ele tinha um sorriso desvairado, o seu ardor ainda não tinha arrefecido e não lhe permitia compreender
o que tinha acontecido e por que razão todos à sua volta estavam tão alegres e satisfeitos.
- Duas mil setecentas e vinte toneladas que pesa este grande nabo arrancado à água.
Tomás, de pé sobre um monte de cordas, olhava por cima da cabeça dos operários e via, entre as duas barcaças, borda a borda com elas, uma terceira, negra e viscosa,
cercada de correntes. Estava toda empenada, dir-se-ia que tinha inchado sob a acção de uma horrorosa doença; impotente, desengraçada, pendia acima da água entre
as companheiras, das quais recebia o apoio. Um mastro quebrado apontava no meio dela; pela coberta corriam regatos de água avermelhada, semelhante a sangue.
- Arrancada ao rio? - disse Tomás, não sabendo que dizer perante o espectáculo daquela pesada massa disforme e sentindo-se novamente ofendido com a ideia de que
tinha sido apenas para retirar da água aquele monstro lamacento e desarticulado que uma tal efervescência tinha tido lugar na sua alma e a tinha enchido de alegria...
- E então, como está ela? - disse vagamente Tomás ao empreiteiro.
- Podia ser pior! Temos de a descarregar o mais depressa possível, vamos pôr ao trabalho uma equipa de carpinteiros, cerca de vinte homens. Eles depressa lhe darão
bom aspecto - disse o empreiteiro com voz de consolação.
O rapagão de cabelos castanhos-claros, com um sorriso franco e feliz, perguntou a Tomás:
- Vai haver uma golada para festejar?
- Estás muito apressado! - disse-lhe severamente o empreiteiro. - Bem se vê que estão cansados...
Então os aldeãos começaram:
- Temos razão para estar cansados.
- Não é uma coisa fácil.
- Quando não se tem o hábito, claro, fica-se cansado...
- Quando não se tem o hábito, mesmo comer pão cansa.
- Eu não estou cansado - disse rudemente Tomás. E de novo soaram as exclamações respeitosas dos
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aldeãos que o cercavam numa massa cada vez mais compacta:
- O trabalho, quando se faz com prazer, é uma coisa agradável.
- É uma brincadeira, tal e qual...
- É no género de amimar uma miúda...
Só o rapagão dos cabelos castanhos se mantinha solidamente nas suas posições:
- Vossa Excelência! Mesmo que seja só um pequeno decilitro de vodka, hem! - dizia ele suspirando.
Tomás olhava as caras barbudas que tinha à sua frente e sentia vontade de lhes dizer fosse o que fosse de vexatório. Mas na sua cabeça tudo se embrulhava, não encontrava
a menor ideia e, finalmente, sem medir as palavras, disse com raiva:
- O que vocês gostavam era de se embebedarem. O que fazem ou em que trabalham, é-lhes indiferente. Faziam melhor em raciocinar porquê! Para que serve?... Mas vocês...
É preciso compreender...
A perplexidade pintava-se nas caras que o cercavam. As silhuetas barbudas, vermelhas e azuis, começaram a suspirar, a coçar a cabeça, a mudarem o peso do corpo de
um pé para outro. Alguns, depois de um olhar desesperado a Tomás, afastaram-se.
- Claro! - disse o empreiteiro após um suspiro.
- Não faz mal nenhum. Quer dizer... quanto ao raciocinar. É uma palavra... que vem da inteligência.
- Compreender, é o nosso trabalho? - disse o rapagão dos cabelos castanhos, sacudindo a cabeça.
Falar a Tomás já começava a aborrecê-lo; suspeitava que ele não queria oferecer de beber e irritava-se um pouco com isso.
- Claro que é - declarou sentenciosamente Tomás, satisfeito que o rapaz o enfrentasse, sem reparar que ele o olhava ironicamente. - Aquele que compreende... sente
bem que é necessário produzir um trabalho eterno.
- Quer dizer, para Deus! - explicou o empreiteiro percorrendo com o olhar o grupo dos aldeãos. Suspirou devotamente antes de acrescentar: - É verdade! É bem verdade!
Tomás estava animado do desejo de dizer alguma coisa de justo e de substancial para que esses homens, de uma maneira ou de outra, tomassem a seu respeito uma atitude
diferente; desagradava-lhe que todos, com excepção do rapaz dos cabelos castanhos, se mantivessem em silêncio e o olhassem sem amenidade, sorrateiramente, com os
seus olhos tão mornos, tão aborrecidos.
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Deve-se realizar um trabalho tal - disse ele erguendo os sobrolhos - que daqui a mil anos as pessoas digam "Eis o que faziam os aldeãos de Bogorodsk."
O jovem lançou a Tomás um olhar espantado e perguntou:
- Vamos ser obrigados a beber o Volga? - Cheirou o ar, abanou a cabeça e declarou - Não, não seríamos capazes, rebentaríamos todos!...
Estas palavras perturbaram Tomás, que lançou um olhar à sua volta: os aldeãos tinham sorrisos dissimulados, indiferentes. Esses sorrisos aguilhoaram-no como outras
tantas alfinetadas.
Um aldeão de aspecto grave, de longa barba grisalha, que até esse instante não abrira a boca, abriu-a de repente, avançou para Tomás e enunciou lentamente:
- E mesmo que se conseguisse beber todo o Volga até à última gota, e que ainda por cima se conseguisse comer aquela montanha, mesmo isso seria esquecido, Excelência.
Tudo se esquecerá, a vida é comprida... Coisas assim, que se fazem para se erguer bem alto... não nos compete a nós fazê-las.
Disse, e depois de ter cuspido para o chão, afastou-se com ar indiferente e penetrou na multidão como uma cunha numa árvore. O discurso dele tinha acabado de aniquilar
Tomás, este sentia que os aldeãos o achavam tolo e ridículo. Para salvar o seu prestígio de patrão, para reconquistar a atenção deles, já perdida, tomou um ar importante,
inchou còmicamente as faces e declarou com ar solene:
- Ofereço trinta litros!
Os discursos curtos são sempre os mais densos e os mais apropriados para produzir uma grande impressão. Os aldeãos afastaram-se respeitosamente, inclinando-se profundamente
diante de Tomás, e, com sorrisos reconhecidos e satisfeitos, agradeceram-lhe a sua generosidade por meio de um murmúrio de aprovação unânime.
- Ajudem-me a saltar da barcaça - disse Tomás, sentindo sem sombra de dúvida que a sua excitação não se prolongaria.
Uma angústia roía-lhe o coração.
- Estou enojado! - disse ele ao entrar na cabana onde Sacha, vestida com um luxuoso vestido vermelho, se atarefava à volta da mesa dispondo nela o vinho e os aperitivos.
- Alexandra! Se tu fizesses qualquer coisa, não importa o quê, comigo, queres... hem?
Ela olhou-o atentamente e, depois de se ter sentado no banco ao lado dele, ombro a ombro, disse:
- Se estás enojado, isso quer dizer que tens vontade de qualquer coisa... O quê? Que precisas?
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- Não sei - respondeu Tomás abanando tristemente a cabeça.
- Pensa!...
- Não sei pensar!
- Vá, meu bebé, então! - disse ela suavemente, em tom desdenhoso, afastando-se dele. - É a cabeça que está a mais, em ti...
Tomás não reparou no tom, nem notou o movimento dela. com as mãos apoiadas no banco, inclinou-se para a frente, olhou o soalho e disse balouçando todo o corpo:
- Às vezes pensa-se, pensa-se... as ideias colam-se a toda a alma como visgo... E de repente desaparece tudo, escapa-se como se se afundasse em qualquer parte...
Então faz escuro na alma como numa cave. É assustador... Dir-se-ia que já se não é um homem mas uma fenda sem fundo...
Sacha lançou-lhe um olhar de esguelha e entoou pensativamente a meia-voz
Oh! O vento soprará, o nevoeiro vive do mar...
- Não quero continuar a andar na paródia... É sempre a mesma coisa: as pessoas, a maneira de passar o tempo, o vinho... Torno-me mau... gostava de bater em toda
a gente... as pessoas não me agradam... chega-se a não compreender porque vivem.
Oh! que dor a de viver sem ti, meu amado...
cantava Sacha, olhando para a parede à sua frente. Tomás continuava a balouçar e dizia:
- No entanto todos vivem, fazem barulho, só eu não percebo nada... Será da minha mãe que eu tenho esta insensibilidade? O padrinho diz que ela era como o gelo...
E sempre alguma coisa a atraía algures... Eu gostaria de ir ter com as pessoas e dizer-lhes: "Irmãos, ajudem-me! Não sou capaz de viver!" Olho à minha volta, mas
não vejo a quem falar... Tudo canalhas!... Soltou energicamente um palavrão sonoro e calou-se. Sacha, interrompendo a sua canção, afastou-se dele ainda mais. A ventania
lançava raivosamente poeira contra os vidros. No fogão alguns insectos zumbiam entre as achas. Lá fora, um vitelo mugia um lamento.
Sacha lançou um olhar irónico a Tomás e disse:
- Olha, mais um pobre infeliz que muge sozinho... Devias ir vê-lo, talvez se possam entender... (E com a mão pousada no cabelo encaracolado de Tomás, deu-lhe um
pequeno safanão para rir.) De que te serve estar
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sempre a gemer? Se estás farto da paródia, atira-te ao
trabalho.
Meu Deus! - disse Tomás abanando a cabeça.
É difícil fazer-me entender... difícil! - Exasperado,
quase gritou: - Que trabalho? O que é isso, o trabalho? Não é mais que um palavrão, se se examina de perto, a fundo, até às raízes, não joga com coisa nenhuma. Que
se tira do trabalho? Dinheiro? Não me falta! Poderia despejá-lo por cima da tua cabeça, o bastante para te enterrar. Um engano, nada mais, todos esses negócios...
vejo pessoas de negócios... e depois? É propositadamente que eles se aturdem nos negócios, é para não se verem a si próprios... Escondem-se... os demónios... Mas
se os libertam dessa agitação, que acontece? Começam a bater com a cabeça em todas as paredes, como cegos... acabarão por ficar loucos. Pensas que existe um negócio
que possa fazer a felicidade do homem? Nada disso, isso é uma aldrabice. E não é tudo!... O rio corre para transportar as pessoas e as coisas, a árvore cresce para
que se sirvam dela, o cão guarda a casa... Pode-se encontrar uma justificação para todo esse mundo! Mas os homens são como as traças, totalmente inúteis em cima
da terra... Tudo é para eles, mas eles para quem são? Onde está a sua justificação?
Tomás triunfava. Tinha a impressão de ter encontrado algo de bom para ele e de forte contra as pessoas.
Riu ruidosamente.
- Não te dói a cabeça? - perguntou Sacha, cheia de solicitude, fixando-lhe o rosto com um olhar interrogativo.
- É a alma que me dói - exclamou ele freneticamente. - E dói porque não encontra a paz. Responde-lhe: como viver? Para que fim? O meu padrinho, por exemplo, é inteligente;
ele diz: fazer a vida. Mas toda a gente diz: a vida devora-nos.
- Ouve - disse Sacha com gravidade. - Na minha opinião, deves-te casar, e mais nada.
- Porquê? - perguntou Tomás encolhendo os ombros.
- O que te falta é uma coleira...
- Admitamos. Vivo contigo... E vocês não são todas as mesmas? Uma não vale mais do que a outra... Antes de ti conheci uma, do mesmo género! Não, essa era pelo seu
prazer... eu tinha-lhe agradado e ela... Era bela! E de resto é sempre a mesma coisa, tal e qual como contigo, embora sejas mais bonita do que ela... Mas há uma
senhora que me deu no goto... uma verdadeira senhora, uma nobre. Dizia-se que ela se divertia... Não consegui os meus fins... Uma senhora, sim... Culta, inteligente,
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vivia, vivia no luxo... Às vezes eu pensava: "Eis onde eu encontrarei qualquer coisa de autêntico..." Não consegui... Talvez se as coisas tivessem corrido bem tudo
se tivesse modificado... Ela atraía-me extraordinariamente. Mas agora afoguei-a no vinho, esqueço-a... E não está bem... Que homem sou eu, nem? Um covarde, a falar
francamente...
Tomás calou-se e pôs-se a sonhar. Sacha levantou-se do banco e percorreu o aposento de um lado para outro, mordiscando os lábios. Depois parou em frente dele e,
com as mãos atrás da cabeça, disse:
- Sabes o que vou fazer? Vou-te deixar...
- Para ir onde? - perguntou Tomás sem levantar a cabeça.
- Não sei. É-me indiferente... Tu falas de mais... Aborreço-me contigo...
Tomás levantou a cabeça, olhou-a e soltou subitamente um riso desolado:
- Caramba! Não me digas!
- Também eu sou dessas pessoas que... o meu tempo virá... também me porei a pensar... E então isso será a minha perda... Mas agora ainda é muito cedo... Não, vou
viver um pouco mais... e depois, está bem!... aconteça o que acontecer!
- E para mim, também será a minha perda? - perguntou Tomás indiferente, já cansado dos seus próprios discursos.
- Claro - respondeu Sacha com um tom imperturbável e convicto. - As pessoas assim perdem-se sempre...
Mantiveram-se em silêncio um momento, olhando-se um ao outro.
- Que vamos fazer? - perguntou Tomás.
- Vamos comer.
- Não é isso. Depois?
- Não sei...
- Então, vais-te embora?
- vou... Vamos fazer ainda uma bomba para despedida... Vamos a Kazan e lá, vai tudo pegar fogo, entraremos a fundo... Cantarei o teu requiem...
- Podemos fazer isso - concordou Tomás. - Para um adeus é o que convém!... Ah, raio de vida! Ouve Sacha, de vocês, mulheres de vida fácil, diz-se habitualmente que
sois ávidas de dinheiro e até ladras...
- Deixa falar... - disse Sacha sem se perturbar.
- O quê, não te zangas? - perguntou Tomás com curiosidade. - Tu, por exemplo, não és interesseira: estar comigo era vantajoso para ti, sou rico... E afinal, partes.
Portanto não és interesseira...
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- O que sou eu? - Sacha pensou um pouco e disse com um gesto de indiferença - Pode ser que eu não seja interesseira. Que prova isso? É verdade que não estou absolutamente
no fundo da escala, não sou como aquelas que andam pela rua... Mas zangar-me? Contra quem? Podem dizer o que quiserem. As pessoas hão-de falar sempre, mas a santidade
delas eu conheço-a bem. Podiam-me eleger como juiz, só absolveria os mortos. E começando a rir com um riso mau acrescentou: - Vamos lá, acabemos com os disparates...
senta-te à mesa!...
No dia seguinte, pela manhã, Tomás e Sacha estavam ao lado um do outro na ponte do barco que se aproximava do cais de Ustié. O imenso chapéu preto com plumas brancas
e abas orgulhosamente reviradas de Sacha atraía a atenção unânime do público. Tomás não se sentia à vontade junto dela e sentia os olhares intrigados que lhe deslizavam
pelo rosto constrangido. O vapor apitava e tremia ao acostar ao molhe coberto com uma multidão de pessoas vestidas com cores vivas. Tomás teve a impressão de ver
no meio de todos aqueles rostos e silhuetas diversas alguém conhecido que, parecia, se dissimulava atrás das costas dos outros mas o não perdia de vista.
- Vamos para a cabine - disse ele à sua companheira com voz inquieta.
- Não és tu que me irás ensinar a esconder-me das pessoas - respondeu Sacha, rindo. - Lobrigaste algum amigo?
- Alguém que me vigia...
Pesquisando a multidão com o olhar, mudou de expressão e acrescentou em voz baixa:
- É o meu padrinho...
Na beira do cais de embarque, insinuando-se com dificuldade entre duas gordas mulheres, estava Jacob Maiakine. com uma amabilidade pérfida, agitava o boné e erguia
para o céu a sua cara semelhante à dos ícones. A barbicha tremia-lhe, o crânio reluzia e os pequenos olhos atravessavam Tomás como verrumas.
- Abutre! - resmungou Tomás, levantando o boné por sua vez e fazendo um sinal de cabeça ao padrinho.
O seu cumprimento deu decerto a Maiakine uma grande satisfação: o velho agitou todo o seu corpo, bateu impacientemente com os pés e o rosto iluminou-se com um sorriso
venenoso.
- Pelo que vejo o menino vai ter quem lhe puxe as orelhas - gracejou Sacha, mordaz.
Essas palavras, junto com um sorriso do padrinho, actuaram como brasas ardentes no coração de Tomás.
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- Veremos... - disse ele entre dentes, e subitamente inteiriçou-se numa calma sinistra.
O vapor chegava ao cais, a multidão corria para a passarela. Submerso pela multidão, Maiakine desapareceu por um instante dos olhos de Tomás para emergir novamente,
arvorando um sorriso de triunfo. Tomás, com os sobrolhos erguidos, olhava-o de frente e avançava ao seu encontro, atravessando lentamente o passadiço. Empurravam-no
por detrás, acotovelavam-no e tudo isso o excitava ainda mais. Finalmente chegou junto do velho e este acolheu-o com um cumprimento e com uma pergunta afectada:
- Em que direcção tem intenção de prosseguir a sua viagem, Tomás Ignatitch?
- É uma viagem de negócios - respondeu Tomás com voz firme, sem corresponder ao cumprimento do padrinho.
- Excelente, meu caro senhor! - disse Jacob Tarassovitch alegremente. - E que parentesco tem consigo esta senhora das plumas?
- É minha amante! - disse Tomás em voz alta, sem baixar os olhos perante o olhar agudo do padrinho.
Sacha estava atrás dele e encarava por cima do ombro o pequeno velho cuja cabeça mal chegava ao queixo de Tomás. A assistência, retida pela expressão sonora de Tomás,
examinava-os, farejava um escândalo. Maiakine, que tinha sentido imediatamente a possibilidade de alvoroço, diagnosticou logo, e com precisão, a disposição combativa
do afilhado. Mexeu as rugas durante um momento, mordiscou os lábios e propôs pacificamente:
- Tenho necessidade de falar contigo... Vamos à estalagem?
- Pode ser... desde que seja por pouco tempo...
- Não tens muito tempo? com certeza tens pressa de rebentar com outra barcaça - disse o velho sem se conseguir conter.
- Porque não rebentá-las, se elas não protestam?
- respondeu Tomás com um tom provocador mas sereno.
- Evidentemente!... Não foste tu que as ganhaste, por que razão as havias de poupar? Vamos lá, então... Mas diz-me cá, a senhora... não seria possível fazê-la desaparecer
por um momento? - insinuou Maiakine a meia voz.
- Sacha, vai à cidade e aluga um quarto no Hotel da Sibéria. Eu vou lá ter daqui a um bocado - disse Tomás.
E, voltando-se para Maiakine, declarou à vontade:
- Estou à sua disposição.
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Até à estalagem caminharam os dois em silêncio. Tomás via o padrinho avançar, para não se deixar distanciar, com passos entremeados de pequenos saltos, e dava propositadamente
passadas largas; o facto de o velho não lhe poder acompanhar o passo mantinha e reforçava o sentimento fogoso de revolta que nesse mesmo momento quase não conseguia
conter.
- Rapaz! - disse amavelmente Maiakine ao penetrar na sala da estalagem e dirigindo-se para um canto afastado- Dá-me uma garrafinha de Kvass de arandos...
- Para mim, brande! - ordenou Tomás.
- Ora vejam lá... quando se tem más cartas deve-se jogar sempre o trunfo! - aconselhou ironicamente Maiakine.
- Não conhece o meu jogo - disse Tomás sentando-se à mesa.
- Basta! As pessoas que jogam como tu, conheço-as à légua.
- O meu jogo é este: ou quebro a cabeça ou abro a parede em duas! - disse Tomás excitado, dando um soco na mesa.
- Ainda não curaste a bebedeira hoje? - perguntou Maiakine com um leve sorriso.
Tomás escudou-se bem no assento e, com as feições descompostas, articulou:
- Padrinho... o senhor é um homem inteligente... respeito a inteligência, em si...
- Muito obrigado! - disse o padrinho soerguendo-se um pouco, com as mãos apoiadas na mesa, e inclinando-se.
- Quero dizer que já tenho mais de vinte anos... não sou uma criança.
- E como! - concordou Maiakine. - Não significam nada os anos que viveste, nada contam! Se um mosquito vivesse tanto tempo chegaria ao tamanho de uma galinha...
- É melhor acabar com as suas brincadeiras! -
- advertiu Tomás, e fê-lo tão tranquilamente que Maiakine ficou perturbado e as rugas agitaram-se-lhe com um tremor inquieto.
- Porque veio cá? - perguntou Tomás.
- Bem... fizeste uma data de prejuízos... eu quis ver se eram muitos... Bem vês, sou teu parente... e só me tens a mim...
- Preocupa-se sem razão... O problema é este, padrinho, ou me dá plena e inteira liberdade ou tome os meus negócios todos na mão. Tudo, até ao último rublo.
Isto escapou a Tomás sem que ele o esperasse; não tinha pensado até ali nada semelhante. Mas agora que
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tinha pronunciado essas palavras compreendia subitamente que, se o padrinho lhe tomasse a fortuna, ele se tornaria um homem completamente livre, poderia ir onde
tivesse vontade de ir, fazer o que lhe agradasse... Até esse momento alguma coisa o prendia, mas ignorava quais eram as suas cadeias, não compreendia qual era o
meio de se libertar, e eis que de repente elas caíam por si mesmas, tão facilmente, tão simplesmente. Uma esperança inquieta e alegre chamejou-lhe no peito, balbuciou
palavras sem continuação lógica:
- É o melhor! Fique com tudo e pronto, e a mim mandem-me passear!... Não posso viver assim. É como se tivesse pesos pendurados nos membros... Quero viver em liberdade...
para conhecer tudo por mim mesmo... vou procurar a minha vida... senão, que sou eu? Um prisioneiro... Fique com tudo... que vá tudo para o Diabo!... Sirvo para comerciante?
Não, não gosto de nada... Assim deixarei os homens... farei qualquer trabalho... Em vez disso, agora, bebo... vivo com uma rapariga...
Maiakine olhava-o, ouvia-o atentamente, e as suas feições estavam duras, como que petrificadas. À volta deles elevava-se o rumor surdo do bar, pessoas passavam,
cumprimentavam Maiakine, mas ele não via nada, encarando obstinadamente o rosto transtornado do afilhado, onde errava um sorriso desvairado, ao mesmo tempo alegre
e deplorável...
- Essa é boa! Tu fazes-me de fel e vinagre - interrompeu Maiakine suspirando. - Divagas! É preciso compreender, é o álcool que te faz dizer essas tolices, ou é a
estupidez?
- Padrinho! - exclamou Tomás. - No entanto dantes as pessoas abandonavam todos os seus bens!
- Isso não é do meu tempo... Essas pessoas não eram meus parentes - disse severamente Maiakine. - Senão, eu as ensinaria... eu!
- Vários foram santos depois de se terem retirado...
- Hum... Comigo não se teriam retirado. De resto... Bolas!...
- Padrinho, porque é que não aceita? - exclamou Tomás com energia.
- Ouve-me, se és limpa-chaminés trepa aos telhados, cachorro! Se és bombeiro fica no teu posto de vigia! Cada um deve ter o seu lugar na vida... Mesmo os vitelos
não mugem como ursos. Tens a tua vida própria para viver: vive-a! E sem resmungar. Não metas o nariz onde não és chamado. Vive dentro da tua condição.
Dos lábios violáceos do velho escapava-se uma onda trémula e brilhante, frases seguras e hábeis que Tomás
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conhecia. Invadido por esse pensamento de liberdade que lhe parecia tão simples e tão realizável, não as ouvia. Essa ideia mergulhava-lhe no cérebro, e no coração
afirmava-se cada vez mais o desejo de quebrar os laços que o uniam à sua vida insípida e aborrecida, ao padrinho, aos barcos, às patuscadas, a tudo o que lhe tornava
a existência desagradável e difícil.
O discurso do velho atingia-o vagamente, como se viesse de muito longe, mesclado com o tilintar da louça, o arrastar de pés dos empregados, o grito de um ébrio.
- Todas essas maluqueiras vêm-te à cabeça por causa do ardor da juventude - dizia Maiakine tamborilando na mesa. - A tua audácia é uma estupidez; tudo o que tu dizes
são patetices... Terás por acaso intenção de entrar para um convento?
Tomás ouvia sem dizer nada. O ruído que zumbia à sua volta parecia recuar cada vez para mais longe. Ele via-se no meio de uma enorme multidão barulhenta, constituída
por pessoas que, não se sabia por que razão, se agitavam, trepavam uns para cima dos outros, encarquilhavam avidamente os olhos, gritavam, caíam, esmagavam-se uns
aos outros, acotovelavam-se todos no mesmo sítio. Se se sentia pouco à vontade entre eles era porque não compreendia o que queriam nem acreditava no que diziam.
Se lhe fosse possível arrancar-se ao meio que o cercava, lançar-se para a liberdade, colocar-se na margem da vida e examiná-los dali; então compreenderia tudo e
saberia onde estava o seu lugar entre eles.
- Compreendo muito bem - dizia Maiakine já com mais amenidade vendo Tomás abismado nas suas reflexões. - Queres encontrar a tua felicidade... Mas ela não se entrega
assim tão facilmente... É preciso procurá-la como os cogumelos na floresta, é preciso quebrar a espinha na pesquisa... e quando se acaba por os encontrar, cuidado,
não vão eles ser dos venenosos.
- Então, liberta-me? - perguntou Tomás levantando a cabeça bruscamente. (Maiakine desviou a cara para fugir ao olhar ardente do afilhado.) Deixe-me respirar, deixe-me
afastar. Verei como as coisas se passam e então... De outro modo embebedar-me-ei até à morte.
- Não digas disparates! Porque é que te finges pobre de espírito? - gritou Maiakine com cólera.
- bom, está bem! - respondeu calmamente Tomás.
- Não quer? Então não sobrará nada. Gastarei até ao último centavo. Não temos mais nada a dizer um ao outro: adeus! vou pôr mãos à obra. Vai ser um belo escândalo.
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Tomás estava calmo, falava com tom seguro de si. Tinha a impressão de que uma vez tomada essa decisão o padrinho não poderia impedi-lo de agir. Mas Maiakine voltou-se
na cadeira e declarou também ele com um tom calmo e simples
- Sabes o que te posso fazer?
- Faça o que quiser. - respondeu Tomás com um gesto de indiferença.
- Ouve! O que vou fazer é isto: vou à cidade e iniciarei os passos necessários para que sejas dado como louco e internado no asilo.
- E isso é possível? - perguntou Tomás com voz incrédula mas onde já aparecia uma ponta de pavor.
- Para nós, meu caro, tudo é possível.
Tomás baixou a cabeça e, após um olhar de esguelha ao rosto do padrinho, estremeceu pensando: "Arranjará com que eu seja internado... sem piedade..."
- Se te fazes efectivamente idiota, eu devo também agir efectivamente... Dei a minha palavra ao teu pai, disse-lhe que te manteria em cima dos pés... e manterei.
Se não queres estar em pé, pôr-te-ei a ferros de modo a que sejas obrigado... Ficarás de pé... Eu sei que dizes essas coisas em estado de embriaguez... mas se queres
dilapidar o teu património só para pregar partidas, meter-te-ei a cabeça nos ombros... Não tenhas ilusões, meu menino!... Brincar comigo é muito incómodo.
As rugas subiam nas faces de Maiakine, os seus pequenos olhos sorriam no fundo do seu saco de pele escura, com um clarão frio e irónico. Na testa as rugas desenhavam
estranhos arabescos que lhe invadiam o crânio calvo. O rosto era inexorável e impiedoso.
- Por consequência, não me resta qualquer saída?
- perguntou Tomás sem amenidade. - O senhor barra-me o caminho.
- Há uma saída: caminha! E eu dirigir-te-ei... Estarás exactamente no teu lugar...
Esta certeza, esta vaidade imperturbável, puseram Tomás fora de si. com as mãos profundamente mergulhadas nos bolsos para não bater no velho voltou-se e, com os
dentes cerrados, lançou brutalmente:
- Quem diabo pensa o senhor que é, para se gabar? E gabar-se de quê? O teu filho onde está? A tua filha, o que é? Não há dúvida, és um grande organizador! Sim, és
muito esperto, sabes tudo, então responde: para que vives? Pensas talvez que não morres? Que fizeste tu pela vida? Que recordação deixas?
As rugas de Maiakine sobressaltaram-se e recaíram, o que lhe deu às feições uma expressão dolorosa e lamurienta.
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Abriu a boca mas não disse nada, olhando o afilhado com espanto e quase com temor.
- Silêncio, pateta! - disse ele com voz baixa. Tomás levantou-se, enterrou o boné na cabeça e,
lançando ao velho um olhar de ódio, respondeu:
- vou para a paródia. Gastarei tudo na paródia.
- Muito bem! Veremos isso!
- Adeus! Herói!... - gracejou Tomás.
- Adeus e até breve! - disse Maiakine em voz baixa como que a tranquilizar-se.
Jacob Maiakine ficou sozinho na estalagem. Estava sentado à mesa e, inclinado sobre ela, desenhava arabescos no tampo, molhando o dedo trémulo no Kvass espalhado.
a cabeça definhada inclinava-se cada vez mais para a mesa, como se não pudesse compreender o que o seu dedo descarnado traçava com o líquido.
Gotas de suor brilhavam-lhe no crânio e, como sempre, as rugas das faces tremiam, agora com um tremor diferente e angustiado.
Um momento depois chamou o empregado com um aceno de cabeça, e perguntou-lhe num tom particularmente compenetrado:
- Quanto lhe devo?
200
x
Antes da sua zanga com Maiakine, Tomás fazia uma vida de boémia por aborrecimento, com uma certa serenidade; agora, porém, era com exasperação, quase com desespero,
cheio de um sentimento de vingança e de uma espécie de impertinência nas suas relações com os homens, uma insolência que em certos momentos o admirava a ele mesmo.
Via que aqueles que o cercavam, se estavam em jejum, eram infelizes e tolos, se estavam ébrios, repugnantes e ainda mais tolos. Nenhum deles despertava o seu interesse;
não lhe perguntava sequer os nomes, esquecia quando e onde os tinha conhecido, e tinha sempre vontade de fazer ou dizer qualquer coisa que os ultrajasse. Nos restaurantes
chiques e caros, estava cercado de malandros, cançonetistas, prestidigitadores, actores, proprietários rurais que se arruinavam em bambochatas. Essas pessoas tiveram
para com ele, inicialmente, uma atitude protectora, gabando a qualidade do seu gosto, o seu conhecimento dos vinhos e dos pratos, depois adularam-no para ganharem
as suas boas graças, pediram-lhe dinheiro emprestado que ele próprio já pedia emprestado sob forma de letras. Nas tavernas rodavam à volta dele como abutres, barbeiros,
fiscais, cantores, certos funcionários; entre esta arraia mais miúda sentia-se melhor, mais livre, eles eram menos dissolutos, ele compreendia-os mais facilmente.
Por vezes eles manifestavam sentimentos saudáveis e fortes e encontrava-se sempre entre eles algo de mais humano. Mas, tal como as "pessoas de bem", também estes
eram igualmente ávidos por dinheiro e extorquiam-lho sem vergonha. Ele apercebia-se disso e ralhava-lhes grosseiramente.
201
Bem entendido, havia mulheres. Fisicamente de boa saúde, Tomás procurava-as, custosas ou baratas, feias ou bonitas, dava-lhes grandes somas e mudava-as quase todas
as semanas; em geral tinha mais atenções com elas do que com os homens. Escarnecia-as, dizia-lhes obscenidades e injúrias, mas nunca, mesmo bastante bêbado, se podia
libertar de um certo acanhamento na presença delas. Todas - mesmo as mais desprovidas de vergonha e de pudor - lhe pareciam sem defesa como criancinhas. Sempre disposto
a quebrar os ossos a qualquer homem, nunca tocava numa mulher, se bem que as insultasse por vezes horrorosamente quando estava fora de si. Sentia-se desmesuradamente
mais forte do que a mulher, a mulher aparecia-lhe desmesuradamente infeliz em relação a ele. Aquelas que se entregavam abertamente ao deboche, gabando-se gloriosamente
dos seus excessos, inspiravam-lhe um sentimento de pudor que o tornava tímido e acanhado. Um dia uma mulher dessa espécie, bêbada e de humor facecioso, sentada junto
dele durante o jantar, bateu-lhe na cara com uma casca de melão. Tomás estava bastante bêbado. Empalideceu sob a afronta, levantou-se da cadeira e, com as mãos metidas
nos bolsos, furioso, com voz trémula de raiva, apostrofou-a:
- Miserável! Desaparece! Outro qualquer no meu lugar quebrava-te os dentes por causa disso. Mas tu sabes que nunca levanto a mão contra as mulheres... Mandem-na
para o Diabo.
Alguns dias depois de terem chegado a Kazan, Sacha tinha deixado Tomás e tinha-se deixado pôr por conta do filho de um destilador, companheiro de estúrdia de Tomás.
No momento de partir com o seu dono para qualquer cidade nas margens do Kama, tinha dito a Tomás:
- Adeus meu caro. Talvez nos voltemos a encontrar, seguimos o mesmo caminho. Dou-te um conselho, não deixes o coração agir à sua vontade!... Diverte-te sem pensamento
reservado... Depois de nós, o dilúvio... Adeus!
Beijou-o violentamente na boca e, ao fazer isso, os olhos escureceram.
Tomás sentia-se contente por ela o deixar. Ela aborrecia-o e a sua indiferença glacial assustava-o. Mas nesse instante alguma coisa estremeceu nele, voltou-se de
lado e pronunciou a meia voz:
- Talvez vocês não se entendam... nesse caso anda ter comigo.
- Obrigada! - respondeu ela, soltando, não se sabia porquê, um riso que não lhe era habitual, um riso que rangia.
202
Tomás viveu assim a sua vida, no dia a dia, acariciando a vaga esperança de partir para algures à margem, longe daquele tumulto. à noite, quando ficava só com ele
mesmo, apertava as pálpebras e imaginava uma multidão sombria, assustadora pela sua enormidade. Acumulada numa espécie de ravina, cheia de uma bruma poeirenta, rodava
em círculo no mesmo lugar, num barulho elevado e confuso, e parecia-se com o grão nas mós do moinho. Dir-se-ia que uma mó invisível, escondida sob os pés das pessoas,
as triturava, e que elas se moviam sobre ela, em vagas, ora lançando-se para o fundo de modo a serem trituradas mais depressa, ora fugindo para o alto de modo a
tentar escaparem-se à mó implacável.
Tomás percebia na multidão rostos seus conhecidos: o seu pai, ei-lo, avança direito afastando as pessoas com braço forte, voltando-os a todos na sua passagem, empurrando
com o peito e soltando um riso sonoro... depois desaparece, caindo sob os pés dos outros... Agora, torcendo-se como uma cobra, saltando para cima dos ombros das
pessoas ou imiscuindo-se entre as suas pernas, o padrinho pondo ao serviço todo o seu corpo seco mas maleável e nervoso... Lubov grita e debate-se atrás do pai,
ora se deixando distanciar, ora se aproximando dele novamente. Pelágia caminha depressa e sem desvios... Eis Sofia Pavlovna, está de pé, as mãos caídas numa posição
de impotência, assim como estava, a última vez, no salão... Tem grandes olhos onde ele lê o pavor. Sacha, indiferente, não presta atenção aos empurrões, marcha a
direito no mais espesso da multidão, olhando imperturbavelmente com os seus olhos escuros. O barulho, os berros, os risos, os clamores dos bêbados, discussões frenéticas
atingem o ouvido de Tomás; canções e choros desaguam nesse amontoado enorme e agitado de corpos humanos acumulados na cova; eles rastejam, esmagam-se mutuamente,
saltam para as costas dos seus vizinhos, mexem-se como cegos, chocam-se com outros que lhes são idênticos, batem-se e, quando caem, desaparecem. As moedas tilintam,
voando por cima das cabeças como um enxame de morcegos, e as pessoas tentam avidamente apanhá-las estendendo as mãos; o ouro e a prata tocam, as garrafas tilintam,
as rolhas saltam, alguém soluça e, nostálgica, uma voz de mulher canta:
Então nós amaremos, enquanto ainda é tempo, mas lá longe - nem a erva cresce!
203
Este quadro incrustava-se na cabeça de Tomás e de cada vez surgia mais nítido, maior, mais vivo diante dele, despertando um sentimento impreciso em que se fundiam,
como o regato se funde no rio, o medo, a emoção, a piedade, a raiva e muitos outros elementos. Tudo se punha a fervilhar nele até fazer nascer um desejo intenso,
cujo poder sufocava, as lágrimas vinham-lhe aos olhos, tinha vontade de gritar, de urrar como um animal, de apavorar toda a gente, de travar o insensato movimento
das pessoas, de misturar aos clamores e às agitações da existência alguma coisa que fosse sua, pronunciar palavras sonoras e firmes, dirigi-los todos numa só direcção
e não uns contra os outros... Tinha vontade de os agarrar pelo cachaço, de os arrancar uns dos outros, de abater uns, amimar outros, ralhar a todos, levar-lhes uma
luz que os iluminasse...
Não encontrava nada nele próprio, nem a luz, nada além desse desejo que podia conceber mas não realizar... Via-se no exterior da ravina onde se agitava esse formigueiro
humano; via-se solidamente plantado sobre as pernas e mudo. Teria podido gritar "De que maneira vivem vocês? Não acham que é uma vergonha?" Mas se, ao som da sua
voz, eles perguntassem: "Então, como se deve viver?"
Ele compreendia perfeitamente que após uma tal pergunta ele ficaria na obrigação de cair por ali abaixo, sob os pés das pessoas, em direcção à mó. E a sua perda
seria saudada com risos.
Em alguns momentos tinha a impressão de ficar louco sob os efeitos do álcool e que isso era a razão das suas terríveis divagações. Por um esforço de vontade anulou
essa visão, mas quando ficava sozinho, mesmo que não estivesse muito bêbado, imediatamente o delírio invadia-o e ele sucumbia sob o seu peso. O seu apetite de liberdade
crescia e afirmava-se cada vez mais. Mas não era capaz de se arrancar às grilhetas da sua riqueza.
Maiakine, que era procurador com plenos poderes na direcção da empresa, agia de tal modo que Tomás era levado a ter presente o fardo de obrigações que repousava
sobre os seus ombros. A cada passo se lhe dirigiam para receberem, para lhe proporem assuntos relativos a transportes de mercadorias, os empregados importunavam-no
com pequenos problemas que o não tinham ocupado até aí, e que eles tinham executado por sua conta e risco. Vinham-no procurar aos bares, sobrecarregavam-no com perguntas:
que se devia fazer? Como? Por vezes diziam-lhe sem ter percebido nada: devo fazer isso deste modo ou daquele outro modo? Ele notava um
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dissimulado desprezo nesse pessoal, e muitas vezes verificava que eles faziam as coisas de modo diferente daquele que ordenara, de modo diferente e melhor. Sentia
que a mão hábil do padrinho era ali chamada para qualquer coisa e compreendia que o velho lhe segurava a rédea para chegar aos seus fins. Ao mesmo tempo notava que
não era o dono dos seus próprios negócios mas apenas um elemento, um elemento sem importância. Isso aborrecia-o e afastava-o ainda mais do velho, excitava ainda
mais violentamente o seu desejo de se afastar dos negócios, mesmo que isso custasse a sua perda. Estragava freneticamente o dinheiro de bar em bar, de alcova em
alcova, mas isso não durou muito tempo: Jacob Tarassovitch mandou congelar a sua conta bancária, depois de ter retirado todos os depósitos. Tomás não levou muito
tempo a verificar que, mesmo com letras, já não lhe emprestavam dinheiro com a mesma facilidade que antes. O seu orgulho ressentiu-se e ficou transtornado e apavorado
quando soube que o padrinho tinha lançado nos meios comerciais o boato de que ele não se sentia bem mentalmente e que poderia vir a ser obrigado a interditá-lo.
Tomás não conhecia os limites do poder do padrinho e não se decidia a consultar alguém sobre o assunto. Estava persuadido de que no mundo do comércio o velho era
uma potência e podia fazer tudo o que lhe agradasse. No início angustiava-o sentir acima dele a mão de Maiakine, mas depois fez a sua escolha e prosseguiu a sua
descuidada existência de bêbado onde a sua única consolação eram as pessoas. Cada dia que passava confirmava nele a ideia de que eram insensatas e, de qualquer maneira
piores do que ele, que não eram os donos da vida mas sim os seus lacaios, e que ela os manipulava à sua vontade, curvava-os e quebrava-os conforme queria.
Vivia assim, como se avançasse num terreno pantanoso, a cada passo sob o perigo de se afundar no lodo, enquanto o seu padrinho, colocado num sítio seco e firme onde
se tinha insinuado com movimentos de réptil, vigiava de longe com olho atento a vida do afilhado.
Depois da discussão com Tomás, Maiakine tinha regressado a casa pensativo e com uma disposição incómoda; os seus olhos brilhavam com um brilho seco e ele endireitava
todo o corpo como uma corda bem tensa. As rugas apertavam-se dolorosamente, o rosto parecia ter diminuído, mais sombrio do que o habitual, e quando Lubov o viu naquele
estado pareceu-lhe seriamente doente. Taciturno, o velho passeava nervosamente
205
na sala, respondendo às perguntas da filha com palavras curtas e secas para no fim lhe gritar:
já chega. Não é nada da tua conta...
Teve pena dele quando viu o olhar triste e desolado dos pequenos olhos verdes e penetrantes; quando se sentou à mesa da sala de jantar ela aproximou-se bruscamente,
pousou as mãos nos ombros do pai e, encarando-o, perguntou-lhe com uma tristeza inquieta:
- Papá! Está doente? Fale!
Os seus mimos eram extremamente raros; enterneciam sempre o velho solitário, e embora ele não respondesse apreciava-os. Mas hoje, depois de ter libertado os ombros
com um gesto brusco, disse-lhe:
- Vai, vai para o teu lugar... É a comichão das filhas de Eva que te consome...
Lubov não foi; olhou-o teimosamente nos olhos e perguntou com voz ofendida:
- Papá, porque é que me fala sempre como se eu fosse uma criança ou como se fosse muito estúpida.
- Porque tu és maior, mas não és muito esperta... bom, não se fala mais nisso. Vai-te sentar e come.
Ela afastou-se e sem dizer uma palavra sentou-se em frente do pai, apertando os lábios com ar amuado. Maiakine, contra os seus hábitos, comia lentamente, voltando
a colher dentro do prato das couves e examinando-as sob todos os ângulos obstinadamente...
- Como se o teu espírito fechado pudesse compreender as ideias do teu pai! - disse ele de repente soltando um profundo suspiro.
Lubov pousou a colher ao lado do prato e, quase com lágrimas na voz, protestou:
- Para que lhe serve ofender-me, papá? Repare bem: estou sozinha! Sempre sozinha! Bem podia compreender que a minha vida é dura, e em vez disso nunca me diz uma
palavra amável...
- Ora aí está, o burro de Balaão tomou a palavra!
- exclamou o velho. - Bem, vejamos o que se segue!
- Sente-se muito orgulhoso da sua inteligência, papá.
- E então?
- Não lhe fica muito bem! Porque me repele? Apesar de tudo não tenho ninguém a não ser o papá.
Apareceram-lhe lágrimas nos olhos; o pai notou-as e o seu rosto teve um estremecimento.
- Se pelo menos tu não fosses uma rapariguinha!
- exclamou ele. - Se pelo menos tu tivesses uma inteligência como a da... da Marta, a governadora, por exemplo, ah! Lubov! Bem me ralaria eu com os outros todos...
e com o Tomás... Basta de choraminguices!
206
Ela limpou os olhos e perguntou:
- Que há de novo com o Tomás?
- Está amotinado... Ah! Ah! Ele diz "Tome toda a minha fortuna e deixe-me em liberdade..." Quer salvar a alma... nas tavernas. Aí está o que ele inventou, o nosso
Tomás.
- O que quer dizer isso? - perguntou Lubov, hesitante.
- O que quer dizer? - começou Maiakine estremecendo e começando a excitar-se. - Quer dizer que essas ideias lhe vêm de ter bebido de mais, ou então - que Deus não
o permita! - da sua velha crente mãe... E se é isso, se é esse fundo de mistibeatice que se está a mexer nele, então vou ter muito que lutar. Fez-me frente descaradamente,
com uma grande insolência... E novo... não há subtilezas na sua linguagem... Acabou por me dizer "vou gastar tudo a beber...". Eu lhe darei a bebida!
Maiakine levantou a mão acima da cabeça, fechou o punho e ameaçou:
- Como é que tens coragem?... Quem montou o negócio, quem ganhou o dinheiro? Foste tu? Foi o teu pai... Quarenta anos de trabalho que ele gastou e queres arruinar
tudo? Todos devemos, ora como um só homem, era com prudência, uns atrás dos outros, seguir para o lugar que é nosso... Nós, os comerciantes, pessoas do comércio,
levamos a Rússia nos nossos ombros desde há séculos, e ainda agora a conduzimos... Pedro-o-Grande foi um czar inspirado por Deus... ele sabia o que valíamos. Sustentou-nos.
Imprimiam-se livros propositadamente para nos ensinar a ciência dos negócios... Olha, tenho um livro de Polidoro Virgílio Urbinski sobre os inventores, impresso
por sua ordem... foi impresso em
1720... Isso mesmo. É isso que é necessário compreender. Ele abriu-nos o caminho... E agora... mantemo-nos de pé, sozinhos... Deixem-nos o campo livre. Fomos nós
que colocámos os alicerces da vida - nós próprios que nos pusemos na terra como fundações, em lugar de tijolos, resta-nos agora construir os andares... dêem-nos
liberdade de acção! Esse é o objectivo que devemos atingir, nós, comerciantes... Essa é a nossa tarefa! É isso que Tomás não compreende... Terá de compreender e
de continuar... Dispõe da herança paterna... eu rebentarei... a minha acrescentar-se-á: trabalha, palerma! E em vez disso põe-se a divagar. Não... alto aí. Pôr-te-ei
no teu lugar.
O velho estava tão excitado que a voz estrangulava-se-lhe e olhava para a filha com olhos furibundos como
207
se Tomás estivesse no lugar dela. Aquele estado de vibração assustava Lubov.
O caminho traçado pelos teus pais deves segui-lo!
Trabalhei cinquenta anos para quê? Os meus filhos?... Onde estão os meus filhos?
O velho baixou a cabeça, abatido, a voz quebrou-se, e ele prosseguiu com voz tão surda que parecia dirigir-se para algures no interior de si mesmo:
- Um desaparecido... o outro, um ébrio!... Uma rapariga... A quem legarei o meu trabalho no momento de morrer? Se eu tivesse um genro!... Pensava: tom formar-se-á
- ter-te-ia dado um casamento, para ele, com todo o resto - sim, Tomás não convém... E não vejo outro para tomar o seu lugar... Ah, em que se tornaram as pessoas?...
Dantes o povo era de ferro, hoje os homens não têm qualquer solidez... Que quer isto dizer? De onde vem isto?
Maiakine olhava a filha com ar alarmado e ela calava-se.
- Diz-me - perguntou ele - que seria bom para ti? Na tua opinião, como se deve viver? Que queres? Tu estudaste, leste - quais são as tuas necessidades?
As perguntas choviam sobre a cabeça de Lubov subitamente e ela perturbou-se. No conjunto sentia-se satisfeita por o pai a interrogar sobre aquele capítulo, mas temia
responder-lhe com medo de se comprometer aos olhos dele. E eis que, toda contraída como se estivesse prestes a saltar por cima da mesa, disse com voz trémula e pouco
segura:
- Para que toda a gente se sinta feliz e contente... que todos os homens sejam iguais... é necessária a liberdade para cada um... tal como o ar... em todas as coisas
é necessária a igualdade!
O pai disse com um desprezo tranquilo:
- É o que eu pensava: uma imbecil, é o que tu és, sob a capa do verniz.
Ela baixou a cabeça, mas levantou-a imediatamente e exclamou em tom desgostoso:
- Mas mesmo o papá o disse: a liberdade...
- Cala-te! - gritou o velho brutalmente. - Nem sequer vês o que se mete pelos olhos dentro... Como é que todos podem ser felizes e iguais se todos querem ser superiores
ao seu vizinho? Até o mendigo tem o seu orgulho e diante dos outros mostra-se sempre em vantagem em alguma coisa... A criança também... quer sero primeiro entre
os camaradas... O homem nunca cederá o passo ao seu semelhante, só os imbecis podem pensar isso possível... Cada um tem a sua alma... só aqueles
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que não amam a sua alma se podem deixar reduzir a um padrão único... Por isso cala-te. Estás estúpida de leituras e estúpida de parvoíces...
A amargura das suas censuras, a causticidade do seu desprezo exprimiam-se nas feições do velho. Afastou ruidosamente a cadeira de junto da mesa, escapou-se com um
salto e, com as mãos nas costas, pôs-se a percorrer a sala com passinhos curtos, abanando a cabeça e proferindo para si mesmo um discurso raivoso que se escapava
num murmúrio sibiloso. Lubov, que a emoção e a afronta tinham empalidecido, sentia-se tola e impotente diante dele, prestava atenção aos seus murmúrios e o coração
batia-lhe descompassadamente.
- Fiquei só... como Jacob... Oh, Meu Deus! Que vou fazer? Acaso não sou inteligente? Acaso não sou subtil?
A jovem foi invadida por uma piedade dolorosa; um desejo assustador de encontrar meio de o ajudar tinha-se apoderado dela; tinha vontade de lhe ser útil.
Observava-o com olhos ardentes e de súbito disse-lhe muito suavemente
- Paizinho... querido! Não esteja assim... Taras está vivo... talvez ele...
Maiakine parou bruscamente como que pregado no lugar e, lentamente, levantou a cabeça.
- E a árvore torceu na mocidade, não se aguentou, com mais razão se quebrará nos velhos dias... Mas em todo o caso... Taras também já não me é nada, agora... De
resto é duvidoso que ele valha mais do que Tomás... Gordeiev tem carácter... herdou a audácia do pai... Pode levantar um bom peso nos ombros... Quanto ao Taras...
lembraste-te disso a tempo...
E o velho, que um minuto antes tinha perdido a coragem a ponto de se lamentar, que o desespero fazia passear de um lado para outro como um rato decidido, com passo
firme e tranquilo, instalava a cadeira com gestos exactos, sentava-se e dizia:
- É preciso contactar Taras e apalpar o terreno. Ele vive em Ussolié, numa fábrica... Ouvi dizer em tempos que era uma fábrica de soda, se a memória me não falha...
Hei-de saber isso de certeza...
- Deixe-me escrever-lhe, papá! - implorou suavemente Lubov, trémula e vermelha de alegria.
- Tu? - disse Maiakine olhando-a com um olhar rápido.
Depois calou-se, reflectiu e disse:
- É possível! É mesmo melhor! escreve-lhe... Pergunta se casou. Pergunta-lhe: "Como é que vives? Que pensas?
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E depois te direi o que se há-de escrever quando chegar o momento...
Que seja depressa, papá - disse a jovem.
O que é preciso arranjar depressa é um marido,
para ti... vou vigiar um, um pequeno ruivo, um rapaz que não me parece tolo... De fabrico estrangeiro, seja dito de passagem...
- Smoline, papá? - perguntou Lubov com uma curiosidade inquieta.
- E se fosse ele, que dirias? - inquiriu Jacob Tarassovitch, com a-propósito.
- Nada... não o conheço - respondeu vagamente Lubov.
- Vocês travarão conhecimento... Já é tempo, Luba, já não é sem tempo. com o Tomás já não há esperança... embora eu não renuncie.
- Eu não contava com o Tomás.
- Estavas enganada... Se tivesses sido mais esperta talvez ele não tivesse abandonado o bom caminho... Quando vos via, aos dois, pensava: "Talvez a minha filha o
consiga domesticar!" Enganei-me nos cálculos...
Ela pôs-se a pensar, enquanto ouvia aquelas palavras cheias de gravidade. Nestes últimos tempos, saudável e forte como era, a ideia do casamento vinha-lhe ao espírito
cada vez com mais frequência: não via outra saída para a sua solidão. O desejo de abandonar o pai e de partir para qualquer parte, para prosseguir não sabia que
estudos ou fazer um qualquer trabalho, tinha sido já ultrapassado, como tinha ultrapassado outros desejos, igualmente não muito arreigados. As suas leituras heteróclitas
tinham-lhe deixado um depósito confuso que tinha uma certa vitalidade, mas uma vitalidade análoga à do protoplasma. Nascido desse depósito tinha-se desenvolvido
nela uma certa insatisfação, um impulso para a independência pessoal, uma aspiração para se libertar da pesada tutela paternal, mas ela não tinha nem a força de
realizar esses desejos, nem uma representação exacta da maneira como eles se realizavam. A natureza, no entanto, insinuava-lhe as suas sugestões e a rapariga, quando
via jovens mães com os seus bebés nos braços, sentia uma melancolia nostálgica e frustrada. Por vezes, parando diante do espelho, examinava tristemente o seu rosto
fresco e saudável com as suas olheiras escuras em redor dos olhos e começava a lamentar-se a si própria: a vida passava a seu lado, esquecia-a no seu canto. Agora,
ouvindo o pai, tentava imaginar como poderia ser esse Smoline. Tinha-o encontrado quando ele ainda andava no liceu; nessa época era todo sardento, tinha o nariz
achatado, era sério
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e aborrecido... Dançava pesadamente e sem graça, o que dizia não tinha interesse: ele tinha estado no estrangeiro, tinha feito estudos; como seria hoje? Do Smoline
o pensamento saltou para o irmão e, com o coração apertado, pensou: que iria ele responder à sua carta? Como era ele? A imagem do irmão, tal como o imaginava, apagou
a do pai e a de Smoline, e já dizia a si mesma que daqui até ao seu encontro com Taras não havia razão para que aceitasse casar-se, quando de súbito o pai gritou:
- Eh! Luba! O que sonhas? A propósito de quê?
- Estava a pensar como tudo passa depressa...
- respondeu Luba sorrrindo.
- O que é que passa depressa?
- Tudo... Ainda há uma semana não se lhe podia falar de Taras, e agora... está a ver...
- A necessidade, minha filha! A necessidade é uma força, uma barra de aço que serve de alavanca, aço resistente! Taras? Veremos! O valor de um homem mede-se pelo
seu poder de resistência à força da vida; se não é ela que o arrasta, é ele que a modelará à sua maneira e tiro-lhe o meu chapéu. He! He! Sou velho! Como a vida
ganhou ímpeto, agora! Cada ano que passa ela tem mais interesse, mais gosto! Era assim que eu queria viver sempre, e agir sempre!...
O velho deu um estalo com os lábios como conhecedor, esfregou as mãos e os olhos brilharam com um lampejo de glutão.
- Mas vocês, vocês são seres muito pequenos com sangue de nabiça. Ainda não são adultos e já estão no declínio e vivem sem força como um velho rábano... Que a vida
se torne cada vez mais bela é uma coisa que nos ultrapassa. Há sessenta e sete anos que vivo nesta terra e já tenho um pé na cova, mas verifico: em tempos, quando
eu era novo, havia menos flores e não eram tão bonitas... Tudo se embeleza! Que edifícios se constróem! O comércio dispõe de utensílios diversos, cada vez mais...
barcos a vapor gigantes! A inteligência em massa, investida em tudo. Olha-se para as coisas e dizemos: "Palavra de honra, os homens são uns ases!" Tudo está bem,
tudo é agradável, só vocês, os nossos herdeiros, são desprovidos de todo o sentimento vivo! Qualquer charlatão da pequena burguesia tem mais genica que vocês...
Olha, esse... esse lejov, o que é ele? Não é nada, mas isso não o impede de se arvorar em juiz da vida toda; não é audácia que lhe falta. Mas vocês, bah! Vocês vivem
como mendigos!... Era preciso que vos escorchassem vivos e vos metessem em salmoura, para que vocês se pusessem a saltar.
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Jacob Tarassovitch, pequeno, enrugado, ossudo, com a boca guarnecida de restos negros de dentes, careca e de tez escura como que crestado e temperado ao fogo da
vida, tremia com todo o seu corpo no ardor da excitação e cobria com vibrantes palavras de desprezo a filha, alta e forte. Ela olhava-o com ar dolorido, com um sorriso
confuso, e no seu coração aumentava o respeito por aquele velho vivo e constante nos seus desejos.
Entretanto Tomás prosseguia a sua existência de paródias e extravagâncias. Num luxuoso restaurante da cidade caiu nos braços alegres e amigáveis do filho do destilador
que se fizera protector de Sacha.
- Que belo encontro! E eu que morro de aborrecimento, aqui, há três dias, numa solidão acabrunhante... Em toda a cidade não há um homem que preste, a tal ponto que
ontem acabei por travar conhecimento com jornalistas... Não há nada a dizer, são uns alegres foliões... a princípio fizeram-se aristocratas e riram-se de mim, mas
depois embebedaram-se todos... hei-de-o apresentar... Há um deles que já falou de si, uma vez... Como se chama ele? É divertido, o malandro!
- E a Alexandra! - perguntou Tomás, um pouco perturbado com o palavreado barulhento daquele jovem alto, sem complexos, vestido com um fato de cores pouco vulgares.
- Oh, sabe, a sua Alexandra não vale nada - respondeu o outro um pouco carrancudo: - É inacreditável o que ela pode ser aborrecida! Que vá para o Diabo! fria como
uma rã, arre! Não, vou pô-la com dono...
- Fria, é exacto - disse Tomás, pondo-se a cismar.
- Cada homem deve fazer o seu trabalho o melhor que pode - disse o filho do destilador. - Se se está por conta deve-se também cumprir o seu dever impecavelmente...
quando se é uma mulher séria no ofício... Então, vamos ao vodka?
Beberam e, evidentemente, embriagaram-se.
À noite reuniu-se na estalagem uma numerosa e barulhenta companhia e Tomás, ébrio mas triste e sossegado, dizia, com a língua pastosa:
- É assim que eu compreendo as coisas: uns são vermes, os outros são pardais... Os pardais são os comerciantes... eles procuram os vermes, é a sua missão... são
necessários... mas eu e vocês todos não temos razão de ser. Vivemos sem justificação... não servimos absolutamente para nada... Mas os outros, toda a gente, porque
vivem? É isso que é preciso compreender, amigos! Em
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que é que se tem necessidade de mim? Ninguém tem necessidade de mim... Matem-me... para ficar morto... Quero estar morto...
Chorava grossas lágrimas de bêbado. Um homem pequeno, magro e escuro veio-se sentar ao lado dele; lembrava-lhe alguém; levantava-se para o abraçar e gritava batendo
com a faca na mesa:
- Silêncio! A palavra é dos brutos! Que seja dada a palavra aos elefantes e aos mamutes da desorganização! A consciência russa bruta pronuncia palavras sagradas!
Grita, Gordeiev! Grita contra tudo...
Agarrava-se aos ombros de Tomás e erguia-se para ele, levantando para o seu rosto a cabeça redonda, negra e toda rapada, que se mexia em todos os sentidos e sem
descanso sobre os ombros da vítima, de tal modo que Tomás não lhe podia distinguir as feições; isso irritava-o e procurava afastar o intruso gritando exasperado:
- Desce! Mostra-me o focinho!
Uma hilaridade surda, de bêbados, cercava-os e, quando ele recobrou o fôlego, o filho do destilador urrava em direcção a alguém com voz empastada:
- Anda para minha casa! Cem rublos por mês, cama e mesa. Anda! Palavra de honra! Manda ao Diabo o jornal, eu pagarei mais caro!
Tudo oscilava de um lado para outro num amplo movimento ondulatório. As pessoas ora se afastavam de Tomás ora se aproximavam; o tecto descia ao mesmo tempo que o
chão se elevava e Tomás tinha a impressão de que um segundo para outro ia ser esmagado, desfeito. Depois sentiu-se vogar sem saber para onde, levado por um rio imensamente
largo e torrencial. Titubeando nas pernas, pôs-se a gritar apavorado:
- Onde vamos? Onde está o capitão?
O riso enorme e estúpido dos bêbados respondeu-lhe; misturava-se nele o clamor cortante e desagradável do homenzinho escuro:
- É verdade! Onde está o capitão?
Tomás acordou desse pesadelo num pequeno quarto com duas janelas, e o primeiro objecto em que os olhos se lhe detiveram foi uma árvore seca. Erguia-se perto da janela,
o tronco espesso e descascado barrava o acesso da luz ao quarto, ramos sem folhas, torcidas e negras estendiam-se, sem força, pelo espaço e gemiam desagradàvelmente
ao balançarem. Chovia, rajadas de água desciam pelos vidros; ouvia-se a chuva correr pelo telhado e cair no solo com um ruído de soluços. A esse
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ruído de lágrimas misturava-se uma outra nota, aguda, que se interrompia constantemente, o ranger apressado de uma pena correndo sobre o papel e uma espécie de resmungo
entrecortado.
Voltando penosamente a cabeça na travesseira, Tomás viu o homem escuro: sentado a uma mesa, arranhava, com a pena, o papel rapidamente; sacudia a cabeça redonda
com um ar de aprovação, erguia os ombros e mexia-se sem parar na cadeira, com todo o seu pequeno corpo, vestido apenas com umas calças e uma camisa de noite. Dir-se-ia
que ficar assim o queimava, mas que algo o impedia de se levantar. A sua mão esquerda, magra e fluida, ora limpava a testa ora descrevia no ar sinais incompreensíveis;
os pés descalços moviam-se arrastando-se no chão, uma veia do pescoço tremia, até as orelhas mexiam. Quando o rosto se voltava para Tomás, este via lábios finos
que murmuravam qualquer coisa, um nariz pontudo, um pequeno bigode ralo; esse bigode dava um salto para cima de cada vez que o homenzinho sorria... O rosto era amarelado,
com rugas, e os pequenos olhos vivos e brilhantes pareciam encontrar-se ali fora do seu lugar.
Deixando de o olhar, Tomás pôs-se a passear lentamente os olhos pelo quarto. Colecções de jornais estavam penduradas em grossos pregos, pregados nas paredes, o que
dava a impressão de que as paredes estavam cobertas de inchaços. O tecto tinha sido em tempos forrado com papel branco, mas agora este tinha rasgado, subsistia aqui
e além, e pendia noutros sítios em pedaços sujos. Pelo chão, a monte, jaziam botas, livros, papel rasgado... De todo o quarto emanava a impressão de que o tinham
mergulhado em água a ferver.
O homenzinho pousou a pena, inclinou-se para a mesa, pôs-se a tamborilar com presteza no tampo e entoou em surdina com uma voz fraca e delicada:
Pega no teu tambor e nada temas! Dá ao passar um beijo à empregada! Esse é o sentido da profunda ciência, O sentido de toda a filosofia.
Tomás soltou um profundo suspiro e disse:
- Há por aí um copo de água mineral?
- Ah! Ah! - exclamou o homenzinho, colocando-se com um salto junto do divã onde Tomás estava deitado.
- bom dia, camarada! Agua mineral? com brande ou pura?
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- De preferência com brande... - disse Tomás apertando a mão seca e fria que se lhe estendia e examinando fixamente o rosto do homem...
- legorovna! - chamou este na direcção da porta. Voltando-se para Tomás perguntou:
- Não me conheces, Tomás Ignatitch?
- Lembro-me... vagamente... Decerto já nos encontrámos...
- Esse encontro durou quatro anos... mas já foi há muito tempo, lejov...
- Meu Deus! - exclamou Tomás estupefacto, erguendo-se um pouco. - Como é possível que sejas tu?
- Às vezes, meu velho, nem eu próprio acredito, mas na verdade há qualquer coisa que repele essa dúvida, como a parede faz saltar a bola de borracha...
As feições de lejov alteraram-se còmicamente e as mãos puseram-se a apalpar o peito.
- Caramba! Como tu envelheceste! - disse Tomás com voz arrastada. - Que idade tens?
- Trinta anos...
Vê-se que não tens tido a vida fácil, hem!
Tomás sentia-se penalizado por ver o seu alegre e lesto camarada de escola tão gasto, vivendo naquele chiqueiro. Olhava-o, piscava tristemente os olhos e via-lhe
o rosto trabalhado por tiques e as pupilas flamejantes de exasperação, lejov desarrolhava uma garrafa de água, e absorvido por esta operação calava-se, apertando
a garrafa entre os joelhos e esforçando-se em vão por tirar a rolha. O espectáculo dessa impotência comovia Tomás.
- Caramba, a vida sacudiu-te... E no entanto tens estudos... - dizia ele, pensativo.
- Bebe! - disse lejov, que a fadiga tinha feito empalidecer, dando-lhe o copo.
Depois disso limpou a testa, sentou-se junto de Tomás no divã e começou:
- Deixa os estudos em paz. O saber é uma beberagem divina... mas por agora ainda não é mercadoria de consumo, como se fosse vodka mal decantado. A ciência ainda
não está pronta para a felicidade do homem, meu caro... E os que a utilizam só ganham uma dor de cabeça... tal como eu e tu neste momento... Que quer dizer essa
tua mania de beber sem conta nem medida?
- Que queres tu que eu faça? - perguntou Tomás, em ar de troça.
lejov examinou Tomás com os olhos apertados e disse:
- Pela tua maneira de fazer essa pergunta, assim como por tudo o que largaste ontem, suspeito que
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também tu, meu amigo, não tiras muita alegria dessa
alegre vida...
Bah! - suspirou pesadamente Tomás, levantando-se
do divã. - O que é a vida? Alguma coisa que não rima com nada... Vivo sozinho... não percebo nada, tenho vontade de manter tudo às malvas e desaparecer, não importa
para onde. Fugir para longe de tudo... Aborreço-me.
- É curioso! - disse lejov esfregando as mãos e mexendo com todo o corpo. - É curioso, se é exacto, porque isso demonstra que o santo espírito da insatisfação de
viver já penetrou até aos quartos de dormir do comércio... nas almas cadavéricas afogadas na sopa de couves bem gorda, nos lagos de chá e de outros líquidos... Vais-me
fazer uma exposição completa e metódica... E eu, meu velho, escreverei um romance...
- Disseram-me que não tinhas esperado para escrever sobre mim; é verdade? - perguntou Tomás com curiosidade, encarando uma vez mais o seu velho camarada, sem compreender
o que poderia ele escrever, ele, tão acabado.
- Realmente. Leste?
- Não, não tive ocasião...
- E que te disseram acerca disso?
- Oh!... que tu me tinhas malhado forte e feio.
- Hum... E não te interessa ler o artigo, tu mesmo?
- perguntou lejov olhando Gordeiev nos olhos.
- Lê-lo-ei! - admitiu Tomás, que se sentia acanhado diante de lejov e sentia também que a sua atitude para com os escritos do camarada tinha algo de vexatório.
- Efectivamente, se se trata de mim, interessa-me, claro... - acrescentou ele com um sorriso amigável.
Este encontro fazia nascer nele uma impressão de doçura e de bondade: evocava recordações da infância, agora cintilavam na sua memória, cintilavam como pequenas
chamas modestas, que o iluminavam timidamente do fundo do passado.
lejov dirigiu-se para a mesa onde o samovar já fervia, e sem dizer uma palavra encheu dois copos de um chá espesso como piche e disse a Tomás:
- Vamos lá... Bebe o teu chá e conta.
- Não tenho nada a contar... A minha vida é vazia. Era melhor falares tu, de ti... de qualquer modo sabes fazer isso bem melhor do que eu.
lejov reflectiu, sem parar de se mexer nem de sacudir a cabeça. Durante a sua meditação, só os traços do rosto se imobilizavam, todas as pequenas rugas se reuniam
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junto dos olhos e cercavam-nos como outros tantos raios, o que os mergulhava mais profundamente sob a fronte.
- Pois meu velho, vi certas coisas... - começou ele, abanando a cabeça - e sei talvez mais do que seria preciso; saber mais do que é necessário é tão nocivo ao homem
como ignorar o que lhe é indispensável saber. Contar-te como vivi? vou tentar. Nunca falei de mim a ninguém... É terrível viver neste mundo sem interessar os outros
em si próprio.
- Vejo bem pelo teu aspecto e por tudo que a vida não te amimou - disse Tomás descontente com o facto de o seu camarada ter tido a vida dura.
lejov bebeu o seu chá de uma só vez, pousou o copo no pires, pôs os pés na beira da cadeira e, cercando os joelhos com as mãos, apoiou neles o queixo. Foi nessa
posição, pequeno e flexível como uma borracha, que falou.
- O estudante Statchkov, meu antigo mestre e actualmente formado em Medicina, grande jogador, dizia-me às vezes quando eu sabia bem a lição: "Tu és um ás, Colas!
Tu és um rapaz com qualidades. Nós, que somos pobres diabos, vindos dos pátios traseiros da vida, devemos estudar e aprender cada vez mais para tomarmos o primeiro
lugar... A Rússia tem necessidade de homens inteligentes e honestos, trata de ser assim e serás dono do teu destino, um membro útil da sociedade. É sobre nós que
repousam agora as melhores esperanças do país, a nossa vocação é a de lhe levar a luz, a verdade... etc." E eu, pobre pateta, acreditava-o... cerca de vinte anos
se passaram depois disso, nós, os plebeus, tornámo-nos adultos mas não suportámos a inteligência nem trouxemos luz à existência. A Rússia, tal como no passado, sofre
da sua doença crónica: a superabundância de canalhas! E nós, plebeus, completamos com prazer a sua multidão. O meu professor, repito-o, é um lacaio, um ser impessoal
a quem o governador dá ordens, e eu um fantoche ao serviço da sociedade. Eu, meu velho, a glória persegue-me pela cidade... Quando caminho pela rua, ouço o cocheiro
da tipóia dizer para o colega: "Ali vai lejov. Ele ladra mas a caravana passa!" E caramba, é assim, havia que chegar a isso.
As feições de lejov torceram-se num esgar cáustico, começou a rir sem ruído, apenas com os lábios. Tomás não entendia o significado da peroração de lejov e, para
dizer qualquer coisa, atirou ao acaso:
- Em suma não atingiste os teus fins...
- Sim, eu pensava que me tornaria mais forte... E ter-me-ia tornado!
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O folhetinista saltou da cadeira e começou a andar de um lado para outro do quarto, esganiçando-se:
Mas para se conservar intacto para a existência é
preciso forças enormes! Elas existiam... Eu tinha maleabilidade, capacidade... Gastei tudo isso a aprender coisas... que me são completamente inúteis. Eu, e muitos
outros comigo, roubámo-nos a nós próprios para juntarmos alguma coisa para a vida... Pensa: ao querer fazer de mim um homem de valor enfraqueci de todas as maneiras
a minha própria personalidade... Para aprender e não sucumbir à fome estudei durante seis anos a literatura desses imbecis e suportei um sem-número de vexames dos
meus parentes paternos a todos os graus, que me humilhavam sem qualquer moderação... Trabalhando para ganhar o meu pão e o meu chá, não tinha tempo de ganhar para
as botas e endereçava aos estabelecimentos de assistência humildes pedidos de subsídios... Se ao menos os benfeitores pudessem calcular o que matam de coragem no
homem sustentando-lhe a vida do corpo!... Se soubessem que cada rublo dado é constituído por noventa e nove copeques de veneno para a alma! Se fosse possível eles
rebentarem com o excesso da sua bondade e o orgulho que retiram da sua santa actividade! Não, não há ser mais vil nem mais repugnante sobre a terra do que aquele
que dá esmola, não há homem mais infeliz do que aquele que a recebe.
lejov corria pelo quarto como que tomado de demência, os papéis rangiam debaixo dos seus pés, rasgavam-se e voavam em pedaços. Rangia os dentes, a cabeça abanava,
os braços agitavam-se no ar como as asas cortadas de um pássaro. Tomás olhava-o com uma impressão estranha e ambígua: no conjunto lamentava lejov e sentia prazer
em vê-lo atormentar-se.
Na garganta de lejov alguma coisa rangia com uma charneira mal oleada.
- Envenenado pela bondade das pessoas, sucumbi a essa disposição fatal comum a todos os pobres diabos que tentam seguir o seu caminho, a faculdade de se acomodarem
com o que é pequeno à espera do que é grande... Oh! Sabes! Parecem mais pessoas pelo facto de se subestimarem do que com a tísica, e é talvez por isso que os condutores
de massas acabam inspectores de polícia!
- Os inspectores que vão para o Inferno! - disse Tomás com um gesto de nojo. - Continua, fala de ti...
- De mim? Estou aí dentro, todo inteiro! - exclamou lejov, parado no meio do quarto, batendo com a mão no peito. - Tudo aquilo de que eu era capaz já o realizei.
Atingi o grau de divertidor público, não quero mais nada.
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- Espera um minuto! - animou-se Tomás. - Diz-me cá: o que é preciso para viver em paz?... Quer dizer, para se estar contente consigo próprio?...
- Para isso é preciso não viver em paz e fugir como da peste da possibilidade de estar contente consigo.
Para Tomás essas palavras soavam falso, não atingiam qualquer ponto sensível, não faziam nascer qualquer pensamento.
- É preciso viver sem estar apaixonado por alguma coisa de inacessível... O homem cresce porque procura içar-se para o alto...
Agora que tinha cessado de falar de si, lejov empregava outro tom, mais calmo. A voz tinha um acento de firmeza e de segurança, o rosto tinha-se tornado grave e
severo. Estava de pé no meio do quarto, com a mão levantada, apontando com um dedo, e falava como se lesse:
- O homem contente consigo próprio é um tumor maligno no seio da sociedade... Entope-se de verdades ao desbarato, de côdeas já roídas, de uma sabedoria que cheira
a bafio, e existe à maneira de um armário onde a dona de casa guarda a espécie de velharias que não lhe servem absolutamente para nada e que são totalmente inutilizáveis...
Se se toca num desses homens, se se abre a sua porta, o cheiro da putrefacção invade-nos as narinas e no ar que se respira espalha-se uma corrente de odores de lixos
acumulados... Esses infelizes são chamados homens de espírito firme, homens de princípios e convicções... e ninguém quer notar que tais convicções não são para eles
senão como calças com que cobrem a nudez miserável das suas almas. Na testa baixa dessa gente brilha sempre aos olhos de todos esta inscrição límpida: serenidade
e moderação. Inscrição falsa! Esfrega-lhes a testa com a mão firme e verás a verdadeira sob aquela: espírito limitado, alma deformada.
- Quantas eu vi, dessas! - prosseguiu lejov com cólera e violência. - Como essas mesquinhas têm proliferado! Encontra-se tudo nelas: tecido para mortalhas, alcatrão,
açúcar arcado, veneno para ratos, mas não se encontra nada de fresco, nada de ardente, nada de saudável. Vai-se ali com a alma dolorosa, sedento, para ouvir algo
de vivo... Mas eles só nos propõem velharias sem brilho, pensamentos livrescos que ruminaram, azedos de velhice... E esses pensamentos secos e duros são sempre de
uma tal inconstância que, para os exprimir, emprega-se uma enorme quantidade de palavras sonoras e vazias. Quando um desses homens fala parece-me ter diante de mim
uma pileca farta e bem tratada; toda
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enfeitada com guizos, carrega os lixos para fora da cidade e coitada, está orgulhosa com a sua sorte.
Ao fim e ao cabo também eles são inúteis...
- disse Tomás.
lejov parou diante dele e, com um sorriso cáustico nos lábios, respondeu:
- Não, eles não são inúteis, oh, não! Existem para servir de exemplos: o modelo do que eu não devo ser. A falar verdade o lugar deles é no museu de anatomia, onde
são conservados todos os monstros possíveis, os diversos desvios mórbidos do que é harmonioso... Na vida, meu velho, nada é inútil... até eu, tenho nela a minha
serventia. Só essas pessoas que têm no peito, em lugar do coração morto, o abcesso da mais abominável auto-adoração... só esses são inúteis... no entanto também
têm alguma utilidade, quando mais não seja a de me permitirem lançar em cima deles o meu ódio...
Durante todo dia, até à noite, lejov esteve em ebulição, vomitando as suas injúrias contra as pessoas que odiava. Os seus discursos inocularam o seu ardor maldoso
a Tomás, suscitando no jovem sentimentos combativos. Mas de vez em quando sentia nascer em si uma baforada de desconfiança em relação a lejov, e uma vez perguntou
à queima-roupa:
- E... tu podes dizer isso em frente das pessoas?
- De cada vez que a ocasião é favorável... E todos os domingos no jornal... Queres que te leia?...
Sem esperar a resposta de Tomás, arrancou da parede algumas folhas de jornal e, prosseguindo a sua corrida através do quarto, começou a leitura. A voz rangia, mugia,
ele ria-se, mostrava os dentes como um cão maldoso que se lança para a frente puxando pela corrente com uma violência impotente. Sem apreender a ideia das produções
do camarada, Tomás sentia a sua insolente audácia, a sua ironia venenosa, e retirava disso o mesmo prazer que com uma boa fricção após um banho de vapor.
- Bem apanhado! - exclamava ele, apreendendo uma ou outra frase isolada. - Bem mandado!
Sem cessar passavam e repassavam nomes conhecidos de comerciantes e de cidadões notáveis que lejov flagelava ora com brutalidade e audácia, ora com reverência, com
uma ponta fina como a de um alfinete.
A aprovação de Tomás e o seu olhar chamejante de prazer faziam crescer o entusiasmo de lejov ainda mais; ele urrava e gritava cada vez mais alto, ora se deixando
cair no divã sem forças, ora saltando novamente para se aproximar de Tomás a correr.
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- Lê um bocado do que me diz respeito - exclamou Tomás.
lejov folheou um maço de jornais, arrancou uma folha, pegou nela com as duas mãos, pôs-se diante de Tomás com as pernas afastadas, enquanto este se deixava escorregar
num sofá de assento rebentado e ouvia sorrindo. O artigo sobre Tomás começava por uma descrição da paródia nas jangadas, e Tomás, durante a leitura, pôs-se a sentir
que certas palavras o mordiam como mosquitos. O rosto tomou uma expressão mais séria, inclinou a cabeça e manteve um silêncio amuado. No entanto os mosquitos tornavam-se
cada vez mais numerosos.
- Caramba, tens a mão pesada! - disse ele por fim, bastante descontente. - Sabes, não é apenas pelo teu talento em desonrar pessoas que ganharás o Paraíso...
- Está calado! Espera! - disse rapidamente lejov, prosseguindo a leitura.
Tendo estabelecido no seu artigo que o comerciante se ergue indubitavelmente, em matéria de escândalos, acima dos representantes das outras classes, lejov perguntava:
"Como se explica isso?" e respondia:
- "Parece-me que essa inclinação para as extravagâncias bárbaras resulta de uma insuficiência cultural, na medida em que se está condicionado por uma energia pletória
e pela ociosidade. Não restam dúvidas acerca do facto de a nossa classe comercial, com raras excepções, ser a mais rica sob o ponto de vista da saúde e, ao mesmo
tempo, a menos laboriosa..."
- Lá isso é verdade! - exclamou Tomás dando um murro na mesa. - É isso mesmo. Tenho a força de um boi e faço o trabalho de um pardal...
- "Onde vai pois o comerciante gastar a sua energia? Na Bolsa não a aplica; então vai dissipar o supérfluo do seu capital muscular em bródios pelos bares sem poder
imaginar para as suas forças outros pontos de aplicação mais produtivos e válidos. Ele é ainda um animal selvagem e a vida já se lhe tornou uma jaula, a sua saúde
e o seu gosto do espaço sentem-se aí encarcerados. Apertado nos quadros da cultura de tempos a tempos explode em devassidões. A algazarra do comerciante é sempre
a revolta do animal selvagem prisioneiro. É evidente que essa situação é lamentável... Mas, infelizmente, ainda será pior quando este animal selvagem acrescentar
um pouco de inteligência à sua força e a disciplinar. Acreditem, mesmo nessa altura ele não porá termo aos seus excessos; a partir daí serão acontecimentos históricos.
Que Deus nos poupe a semelhantes acontecimentos.
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Porque eles resultarão de um esforço do comerciante em direcção ao poder, o seu objectivo será a potência isolada de uma só classe e o comerciante não porá dificuldades
quanto à escolha dos meios susceptíveis de o levar a atingir os seus fins..."
- Então, que dizes? É justo? - perguntou lejov, ao chegar ao fim do artigo e pondo-o de lado.
- Não compreendo o final. Mas o que tu dizes da força é justo.
À pressa e de jacto atirou a lejov com os seus pensamentos habituais acerca da vida, dos homens, a confusão da sua alma, e calou-se estendendo-se no divã.
- Caramba! - admirou-se lejov - como tu estás! É uma boa coisa, meu velho. Que pensas dos livros? Lês alguns?
- Não, não gosto. Não tenho o hábito de ler.
- Não gostas porque não lês...
- Até tenho medo... Conheço uma que... Ler é pior do que apanhar uma bebedeira. Para que servem os livros? Um homem inventou qualquer coisa sozinho e os outros lêem-no...
se for divertido não me importo... mas, quanto a aprender como se deve viver, é parvoíce... Quem o escreveu foi um homem, não foi Deus Todo-Poderoso, e que leis
pode um homem instituir para ele com a sua própria autoridade, que exemplos pode propor a si mesmo?
- E o Evangelho? No entanto foi escrito por homens.
- Eram os Apóstolos... Agora já não há nenhum.
- Não está mal, a resposta é sensata! É verdade, meu velho, não há Apóstolos. Só restam Judas, e esses são uns refinados canalhas...
Tomás sentia-se satisfeito por ver que lejov o ouvia com atenção, como se pesasse cada palavra pronunciada. Encontrando pela primeira vez na sua vida uma tal atitude
a seu respeito, Tomás desenvolvia audaciosa e livremente todos os seus pensamentos diante do seu camarada, sem cuidar das palavras e sentindo que o compreendiam
porque o queriam compreender.
- Tu és um raio de tipo! - disse-lhe lejov, dois ou três dias após aquele encontro. - Embora te exprimas com dificuldade, sente-se bem que possuis um coração temerário.
Se ao menos tivesses algumas noções dos usos da vida! Então poderias tomar a palavra... a coisa faria muito barulho... penso eu!
- Não nos podemos libertar por meio de palavras! -observou Tomás suspirando. - Lembras-te do modo como falaste das pessoas que fingem saber tudo e tudo poderem...
Conheço alguns desse género... O meu padrinho, por exemplo... É contra esses que era preciso
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iniciar o movimento... são esses que é necessário desmascarar. É uma casta bastante nociva.
- Não faço ideia, meu caro Tomás, como poderás viver se conservares dentro de ti aquilo que lá tens actualmente... - disse lejov pensativo.
Esse homenzinho, batido pela vida, bebia também. Os seus dias começavam assim: de manhã, ao tomar o chá, percorria os jornais, buscando aí a inspiração para uma
crónica que escrevia imediatamente num canto da mesa. Depois corria à redacção, recortava os jornais das outras cidades e, com esses recortes, csompunha "quadros
da vida provinciana". Na sexta-feira devia escrever a crónica dominical. Por tudo pagavam-lhe cem rublos por mês; ele trabalhava depressa e dedicava todo o seu tempo
livre a "passar em revista e estudar as instituições de beneficência". Na companhia de Tomás, até uma hora avançada da noite, passeava pelos clubes, estalagens,
cabarés, acumulando documentação para os seus escritos, que ele chamava "escovas para excitar a consciência social". Classificava o censor de "administrador da propagação
da verdade e da equidade", intitulava o jornal de "proxeneta encarregada de pôr o leitor em contacto com as ideias perniciosas"; quanto ao seu trabalho no jornal
era "venda de uma alma a retalho" e "tentativa de insolência em relação às instituições divinas".
Tomás diferençava mal as brincadeiras de lejov daquilo que ele dizia seriamente. Este falava de tudo ardentemente e apaixonadamente, condenava tudo de maneira cortante;
isso agradava a Tomás. Mas muitas vezes, depois de ter começado um discurso com paixão, dava a si mesmo a resposta com paixão igual, e refutava-se a ele mesmo ou
então concluía com uma saída cómica. Tomás tinha então a impressão de que esse homem não amava nada, não tinha nada que lhe tocasse o coração e o dirigisse. Só a
seu próprio respeito falava com voz diferente, e quanto mais falava de si com exaltação mais insultava impiedosamente tudo e todos. Em relação a Tomás a sua atitude
era dupla: por vezes encorajava-o, dizendo-lhe fogosamente num tom vibrante:
- Destrói e arrasa tudo o que puderes. Nada é mais precioso do que o homem, fixa-o bem. Grita com todas as forças: liberdade! liberdade!...
Mas quando Tomás se exaltava ao sabor das faúlhas incendiárias de tais conselhos e começava a sonhar a maneira como destruiria e arrasaria aqueles que, por amor
dos seus próprios interesses, não querem alargar os quadros da vida, lejov cortava-o frequentemente:
- Não te preocupes com isso! Não podes fazer nada!
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Tipos como tu, não servem para coisa nenhuma!... A vossa época, a época dos homens fortes mas sem inteligência, passou, meu velho! Estás atrasado... Já não há lugar
para ti na vida...
- Que estás para aí a dizer? Não é verdade! - gritava Tomás, excitado pela contradição.
- Que podes tu fazer, diz lá?
- Matar-te, por exemplo - dizia raivosamente Tomás apertando o punho.
- Espantalho! - pronunciava lejov em tom convicto e compadecido, encolhendo os ombros. - Isso é que é trabalho? De todas as maneiras estou tão acabado que é como
se estivesse meio morto.
E subitamente, ardendo num furor desolado, todo sacudido por tiques, prosseguia:
- A sorte ultrajou-me. Para que trabalhei doze anos seguidos como uma máquina? Para estudar... Porque enguli, durante doze anos, sem cessar, no liceu e na universidade,
palavreados secos e indigestos que não me servem para nada? Para me tornar folhetinista, para fazer de palhaço quotidianamente, divertindo o público e tentando convencer-me
que é útil e necessário... Gastei todo o carregador do meu coração a três copeques o tiro... Que fé adquiri? Apenas esta: aqui em baixo nada vale nada, tudo deve
ser demolido, abatido... O que amo? Só a mim mesmo, e sinto que o objecto do meu amor não é digno desse amor.
Quase chorava e não cessava de arranhar o peito e o pescoço com as suas mãos finas e débeis.
Mas por vezes invadia-o um afluxo de audácia e falava com outra disposição de espírito:
- Ah, não! Ainda não acabei a minha partida. Alguma coisa se nutriu em mim e há-de assobiar como uma chicotada. Verás, vou deixar o jornal, começar um trabalho sério
e escrever um livrinho... Chamar-lhe-ei Obi; há uma oração com esse nome, recitam-na junto dos agonizantes. E esta sociedade, maldita pela maldição da sua impotência
interior, antes de rebentar, receberá o meu livro como almíscar.
Observando-o e comparando os seus discursos, Tomás verificava que lejov era um homem tão fraco e desordenado como ele próprio. Mas a oratória de lejov enriquecia
a linguagem de Tomás e ele verificava com alegria que muitas vezes enunciava correctamente e vigorosamente tal ou tal ideia.
Em várias ocasiões encontrou em casa de lejov certas pessoas que lhe pareciam saber tudo, compreender tudo, oporem-se a tudo, e que viam em todas as coisas o
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embuste e a falsidade. Examinava-as sem dizer nada, ouvia-as com atenção; o atrevimento delas agradava-lhe, mas sentia-se chocado e pouco à vontade com algo de orgulhoso
na atitude que usavam para com ele. Depois saltou-lhe aos olhos que, no quarto de lejov, eram todos mais inteligentes e melhores do que na rua ou na taverna. Tinham
conversas especiais para o quarto e empregavam termos especiais, faziam ali gestos especiais, e tudo isso, ao abandonarem a casa, dava lugar ao que havia de mais
vulgarmente humano. Por vezes, no quarto de lejov, punham-se todos a arder como uma braseira e lejov era, entre eles, o carvão mais ardente, mas o brilho dessa braseira
iluminava fràgilmente as trevas interiores de Tomás Gordeiev.
Uma vez, lejov disse-lhe:
- Hoje vamos fazer uma borga! Os nossos tipógrafos fundaram uma sociedade e trabalharão para o editor por contrato... Vamos molhar o acontecimento e eu sou convidado,
fui eu que lhes dei a ideia... Vamos lá? Ofereces as bebidas aos rapazes?
- Porque não? - disse Tomás.
O tempo pesava-lhe e era-lhe indiferente passá-lo com uns ou com outros.
Nessa noite, Tomás e lejov ficaram na companhia de homens de faces escuras, no arrabalde, na orla de um bosque. Os tipógrafos eram cerca de uma dúzia, razoavelmente
vestidos; tratavam lejov como um camarada, e isso admirou e perturbou um pouco Tomás, aos olhos de quem lejov era, apesar de tudo, alguém no género de um patrão
ou um chefe, ao passo que eles não eram senão seus servidores. Estes não pareciam notar Gordeiev, embora no momento em que lejov o apresentara todos lhe tivessem
apertado a mão declarando-se encantados por o conhecerem. Ele estava um pouco ao lado, sob umas nogueiras, e observava-os a todos com a sensação de ser estranho
no grupo; notava que o próprio lejov parecia ter-se afastado voluntariamente dele e só se preocupar com Tomás muito mediocremente. Notava além disso que o pequeno
folhetinista parecia procurar insinuar-se nas boas graças dos tipógrafos; agitava-se à volta do fogo ao mesmo tempo que eles, desarrolhava garrafas, soltava alguns
palavrões e gargalhadas sonoras, esforçava-se de todas as maneiras por se parecer com eles. Estava mesmo vestido mais simplesmente do que o seu normal.
- He! Rapazes! - exclamava ele com um tom jovial.
- Está-se bem na vossa companhia! Apesar de tudo não
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sou um pássaro de alto voo, não sou mais do que o filho de um guarda do tribunal, o suboficial Matvei lejov!
"Que necessidade há de dizer aquilo?" pensou Tomás. "De quem se é filho... bolas. Não se é honrado pelo pai mas sim pelos talentos que se tem".
O sol escondia-se, no céu ardia outro braseiro enorme que tingia as nuvens com a cor do sangue. Da floresta subia um odor de humidade, emanava o silêncio; perto
agitavam-se ruidosamente escuras silhuetas humanas. Um desses homens, de pouca estatura, magro e coberto com um chapéu de palha, tocava acordeão em surdina, um outro,
com bigodes negros e o boné para a nuca, acompanhava-o trauteando suavemente. Dois deles experimentavam forças puxando um pau, cada um por uma ponta. Alguns moviam-se
em torno de cestos cheios de garrafas de cerveja e de vitualhas; um homem grande, de barba a encanecer, lançava braçadas de ramos no fogo que o envolvia com um pesado
fumo esbranquiçado.
Os ramos húmidos, ao caírem no fogo, lançavam estalidos tristes, enquanto o acordeão soltava uma melodia vibrante e a voz de cabeça do cantor se afirmava e completava
o ritmo vivo do instrumento.
Afastados dos outros, três jovens estavam deitados junto de uma pequena ravina abrupta, e diante deles lejov estava de pé e dizia com voz forte:
- Vocês erguem o estandarte sagrado do trabalho... e eu sou como vocês um soldado do mesmo exército, todos nós servimos sua magestade a imprensa e devemos viver
unidos por uma forte e sólida amizade...
Tomás, distraído por uma outra conversa, deixou de prestar atenção às palavras do seu camarada. Eram dois a falar: um, grande, barrigudo, mal vestido e com o olhar
colérico, o outro, muito novo, cabelos e barba castanhos.
- Na minha opinião - dizia o grande com um ar zangado e tossindo - é estúpido. Como é que um homem da nossa condição se pode casar? Nascerão os filhos e há bastante
para lhes dar de comer? É preciso vestidos... Além disso tudo depende de quem se topa.
- É uma rapariga formidável! - disse o jovem em voz baixa.
- Evidentemente, e agora é bonita... Mas uma noiva e uma mulher são duas coisas diferentes. E de qualquer maneira a questão não é essa... O que conta é que tu não
tens os meios para isso, arruinarás a saúde com o trabalho e vais arruiná-la a ela, também... O casamento é uma coisa absolutamente impossível para nós... Podemos
constituir uma família com semelhante salário? Olha
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para mim: sou casado, quatro anos de casamento ao todo... e já não me resta muito tempo.
Foi tomado por um ataque de tosse e, quando abrandou, disse, arquejante, ao seu camarada:
- Abandona essa ideia... não é possível...
O outro baixou a cabeça tristemente, Tomás pensou: "ele fala com bom senso".
O facto de não se lhe prestar atenção vexava-o um pouco, mas ao mesmo tempo despertava nele um sentimento de respeito para com aqueles homens de rostos sombrios,
impregnados de pó de chumbo. Quase todas as suas conversas eram sérias e práticas, nas suas frases certas palavras especiais deleitavam. Nenhum deles o adulava,
não o vinham importunar, o que era habitual nas suas relações de bares, nos seus camaradas de bambochatas. Isto agradava-lhe.
"Não há dúvida! - pensava ele sorrindo interiormente. - Eles têm o seu orgulho..."
Uma voz que parecia reprovadora fez-se ouvir:
- E o senhor, Nicolas Matveitch, não julgue por meio dos livros, mas sim pela viva realidade.
- Dêem-me licença, meus amigos! Que vos ensina a experiência dos vossos colegas?
Tomás voltou a cabeça para o sítio onde perorava ruidosamente lejov, que tinha tirado o chapéu e o agitava acima da cabeça. Mas nesse momento disseram a Tomás:
- Aproxime-se um pouco de nós, senhor Gordeiev. Diante dele estava um jovem, não muito alto e espesso,
vestido com uma blusa e calçado com botas altas; sorria-lhe amavelmente e encarava-o com franqueza. O largo carão redondo de nariz grosso agradou a Tomás e respondeu-lhe
sorrindo, ele também.
- Porque não?... De resto creio que é o momento de nos aproximarmos do brande. - Tenho ali uma dúzia de garrafas que trouxe comigo... para qualquer eventualidade...
- Oh! Oh! Vê-se que o senhor é um comerciante sério... Apresso-me a comunicar à sociedade a vossa nota diplomática.
Começou a rir com as suas próprias palavras, com um riso alegre e sonoro. Tomás também se riu às gargalhadas, sentindo que uma baforada de jovialidade e calor o
envolvia, vinda do jovem.
O crepúsculo morria lentamente. Parecia que lá no fundo, a ocidente, um enorme reposteiro de púrpura descia sobre a terra, mostrando a insondável profundidade do
céu e o alegre cintilar das estrelas que o ornavam. Ao longe sobre a pesada massa da cidade, uma mão invisível semeava luzes, ao passo que aqui a floresta
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erguia-se, calma e muda, elevando até ao céu a sua muralha... A lua ainda não tinha aparecido. Uma treva quente estendia-se sobre os campos.
Toda a companhia se sentou num grande círculo, perto da fogueira. Tomás encontrava-se ao lado de lejov, com as costas para o fogo, e via diante dele uma fila de
rostos, vivamente iluminados, bem dispostos e simples. Já todos se tinham entregado um pouco à bebida mas não estavam embriagados; riam, gracejavam, tentavam cantar
e bebiam, comendo pepinos, pão branco e chouriço. Tudo isso tinha para Tomás um sabor original, agradável, ele animava-se, arrastado pela disposição geral, que era
excelente, sentia o desejo de dizer qualquer coisa gentil àquelas pessoas, agradar-lhes a todos, lejov, sentado a seu lado, mexia-se, chocava contra o ombro dele
e, abanando a cabeça, murmurava algo de indistinto para dentro.
- Rapazes! - gritou o jovem forte. - Entoemos a estudantina... vamos lá, um, dois!...
Rápida como as vagas...
Alguém zumbia em voz de baixo:
Os dias da nossa...
- Camaradas! - disse lejov, pondo-se de pé com o copo na mão.
Titubeava, apoiava-se com a outra mão na cabeça de Tomás. A canção iniciada foi interrompida e todos voltaram a cabeça para o orador.
- Trabalhadores! Permiti que vos diga algumas palavras... vindas do coração... Sinto-me feliz por estar com vocês... Convosco sinto-me bem... E isso porque vocês
são os homens do trabalho, os homens cujo direito à felicidade é inegável, embora de facto não seja reconhecido... No ambiente salubre, enobrecedor para a alma,
que-é o vosso, no meio de pessoas honestas, é bom, a um homem isolado, envenenado pela vida, respirar livremente...
A voz de lejov vibrou, esganiçou-se, e a cabeça começou a tremer. Tomás sentiu algo de morno cair-lhe na mão e deu uma olhadela ao rosto enrugado de lejov, que continuava
o seu discurso, tremendo com o corpo todo.
- Não estou sozinho... somos numerosos, na minha espécie, acossados pelo azar, extenuados e doentes... Somos mais infelizes do que vocês porque somos mais
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fracos de corpo e de alma, mas somos mais fortes do que vocês porque estamos armados de conhecimentos... para os quais não nos é oferecida qualquer aplicação...
Estamos todos prontos a juntarmo-nos a vocês, a entregarmo-nos com alegria, a ajudar-vos a viver... para nós não há outra tarefa a realizar! Sem vocês estamos privados
de bases, sem nós vocês estão privados de luz! Camaradas! O destino criou-nos para nos completarmos uns aos outros.
"Que Diabo está ele a pedir-lhes?", pensava Tomás perplexo com aquele discurso. E, lançando um olhar à sua volta, para o rosto dos circunstantes, viu que olhavam
o orador com a mesma expressão interrogativa, desconcertada e aborrecida.
- O futuro pertence-vos, meus amigos! - dizia lejov com voz pouco segura e abanando tristemente a cabeça como se lamentasse o futuro e cedesse de má vontade àquela
gente o poder que exercia sobre ele. - O futuro pertence ao mundo honesto do trabalho... Uma alta tarefa vos incumbe! São vocês que devem edificar a nova cultura!...
Filho de soldado, pertenço ao vosso grupo pelo sangue e pelo espírito. Proponho-vos beber ao vosso futuro! Hurrah!
lejov esvaziou o seu copo e deixou-se cair pesadamente no solo... os compositores retomaram em conjunto o seu grito quebrado e um clamor vigoroso rolou no ar, abanando
as folhas das árvores.
- Agora uma canção - propôs imediatamente um rapaz gordo.
- Vamos lá - concordaram duas ou três vozes. Iniciou-se uma ruidosa discussão acerca do que se
devia cantar, lejov ouvia o barulho e, voltando a cabeça para a esquerda, depois para a direita, encarava-os um a um.
- Rapazes! - gritou ele novamente. - Respondam-me!... Respondam algumas palavras à saudação que vos fiz...
Também desta vez - embora apenas por um instante
- todos se calaram olhando-o, alguns com curiosidade, outros dissimulando a sua ironia, ainda outros com uma evidente expressão de descontentamento pintada no rosto.
lejov levantou-se de novo e disse com animação:
- Somos dois, aqui... a serem reprovados pela vida: eu e este... Ambos queremos uma única coisa... que o homem seja tomado em consideração... que possamos gozar
a felicidade de nos sentirmos úteis... camaradas! E este homem grande e estúpido...
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Nicolas Matveitch, não ofenda o nosso convidado!
interveio uma voz espessa e descontente.
É de mais! - confirmou o rapaz entroncado que
convidara Tomás a aproximar-se da fogueira. - Para quê dizer coisas vexatórias?
Uma terceira voz pronunciou com força e nitidez:
- Reunimo-nos para nos divertir... para descansar...
- Tansos! - comentou lejov com um riso débil.
- Belos tansos!... Vocês lamentam-no? Sabem quem ele é? É um dos que vos sugam o sangue...
- Basta, Nicolas Matveitch! - gritaram a lejov.
Todas as vozes começaram a zumbir; não lhe prestavam qualquer atenção. Tomás sentia tanta pena do seu camarada que nem lhe queria mal. Via que essas pessoas que
o defendiam contra os ataques de lejov afectavam agora não se ocuparem com o jornalista, e compreendia que se lejov o notasse sofreria com isso. Para o distrair
de um possível aborrecimento deu-lhe uma palmada e disse com um sorriso amigável.
- Então, insultador! Bebe-se ou não? A menos que já sejam horas de ir para casa.
- Para casa? Onde é a casa do homem para quem não há lugar entre os homens? - perguntou lejov, recomeçando a gritar:
- Camaradas!
O seu apelo afogou-se no rumor geral das conversas e ficou sem resposta. Então ele baixou a cabeça e disse a Tomás:
- Vamo-nos embora!
- Está bem, vamos... No entanto, apetecia-me ficar um pouco mais... isto interessa-me... Têm orgulho, caramba, estes tipos!
Tomás inclinou-se diante dos tipógrafos, disse com voz forte e amena:
- Meus senhores, obrigado pela vossa hospitalidade! Adeus!
Cercaram-no imediatamente e fizeram-se ouvir vozes insistentes:
- Não vá já! Para onde vai? Cantaríamos juntos, não é verdade?
- Não, tenho de ir embora... por causa do meu camarada... não seria fácil regressar sozinho... vou acompanhá-lo... Espero que se divirtam.
- Devia ficar connosco! - exclamou o gordo, murmurando: - Qualquer outro o pode acompanhar.
O barrigudo murmurou também:
- Fique... Nós vamos acompanhá-lo até à cidade, e lá metemo-lo numa tipóia e assunto arrumado.
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Tomás tinha vontade de ficar e ao mesmo tempo temia qualquer coisa... Entretanto lejov tinha-se levantado e, agarrando-se à manga dele, gaguejava:
- Vamos... Que eles vão... para o Inferno!
- Até à vista meus senhores! - disse Tomás, afastando-se acompanhado por exclamações corteses dos operários.
- Ah! Ah! Ah! - gargalhou lejov, a uma vintena de passos do fogo. - Escoltam-te com os seus lamentos, mas sentem-se felizes por eu ir embora... Eu impedia-os de
se transformarem em animais.
- A verdade é que tu os aborreceste - disse Tomás. Por que Diabo te puseste a fazer-lhes discursos? As pessoas reúnem-se para se divertirem e tu massacra-los com
jeremiadas... foi isso que os aborreceu...
- Cala-te! Tu não percebes nada! - gritou secamente lejov. - Pensas que estou bêbado? O meu corpo é que está, mas a minha alma está lúcida... ela está sempre lúcida
e percebe todas as coisas... Oh!, quanta baixeza há na terra, quanta estupidez, quantas coisas lamentáveis. E essas pessoas, esses imbecis, esses infelizes...
lejov parou e, agarrando a cabeça com as duas mãos, ficou um momento parado, oscilando em cima das pernas.
- Bem... - disse Tomás. - Eles são muito diferentes dos outros... portam-se como senhores... e raciocinam bem... compreendem as coisas... apesar de serem simples
operários!
Nas trevas, atrás deles, entoava-se um coro em voz alta. Inicialmente confusa, a canção ia-se afirmando, e de súbito abria-se numa vaga ampla e fogosa na atmosfera
fresca da noite, por cima do campo deserto.
- Oh! Meu Deus! - murmurou lejov suspirando tristemente. - A quem se agarrar? Quem apagará a sede de amizade, de fraternidade, de amor, de trabalho puro e sagrado?
- São homens simples - disse lenta e pensativamente Tomás que, absorto nos seus pensamentos, não seguia as palavras do seu camarada. - Se os observamos bem, são
simpáticos. Muito simpáticos, mesmo... Interessantes... mujiques... operários... Vistos simplesmente são como os cavalos... puxam a carga... bufam...
- É toda a nossa vida que eles levam às costas!
- exclamou lejov aborrecido. -Levam-na como cavalos, docilmente, estupidamente... É a submissão deles que faz a nossa infelicidade, a nossa maldição.
Caminhou durante muito tempo sem dizer mais nada, com passos vacilantes, e de repente com voz surda,
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entrecortada, que parecia sair-lhe do ventre, começou a recitar, gesticulando
Fui cruelmente roubado pela vida. E sofri tantas infelicidades...
- Isto, meu velho, são os meus versos - disse ele, parando e abanando a cabeça tristemente. - Que vem depois? Já me esqueci... Eh! Eh!
No meu peito jamais se reanimará O enxame dos sonhos sepultados...
- Meu velho, tu és mais feliz do que eu, porque é estúpido.
- Não choramingues! - disse Tomás enervado. - Repara como eles cantam...
- Não quero ouvir o canto dos outros... - disse lejov após um abanar de cabeça negativo. - Tenho o meu...
E pôs-se a gritar com uma voz selvagem:
No meu peito jamais se reanimará O enxame dos sonhos sepultados... Eles são uma legião!
lejov pôs-se a chorar com grandes soluços, como uma mulher. Tomás tinha pena dele e sentia-se embaraçado. Impacientemente, puxou-lhe pelo ombro e disse:
-Pára com isso! Vamos... Como tu és fraco, afinal, meu velho...
Agarrando a cabeça com as mãos, lejov endireitou o corpo com esforço e recomeçou a lançar o seu canto desolado e altivo:
Eles são uma legião!
O seu túmulo é estreito:
Amortalhei-os com rimas
E sobre eles entoei muitos cânticos
Tristes e dolorosos.
De longe chegava até ele, através do silêncio e da obscuridade, a melodia do coro. Alguém assobiava o refrão a compasso. E esse assobio agudo, entrando nos ouvidos,
adiantava-se à vaga das vozes potentes. Tomás olhava nessa direcção e via uma alta e negra muralha de árvores onde brincava a mancha brilhante, flamejante do fogo
e as silhuetas enevoadas que o cercavam. O muro da
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floresta era como um peito onde o fogo punha uma ferida sangrenta. Acossados por todos os lados pelas trevas espessas, os homens, contra o fundo de árvore, pareciam
pequenos como crianças, e também eles pareciam arder, banhados pelas chamas, agitavam as mãos e cantavam a sua canção com voz sonora e potente.
Entretanto lejov, de pé ao lado de Tomás, tinha retomado o seu clamor soluçante:
O meu canto acabou. Agora
Não perturbarei o sono da sua morte.
Senhor! Vem apaziguar a minha alma.
Ela sofre desesperadamente!
Senhor!... Vem apaziguar a minha alma.
Tomás sobressaltou-se com os acordes daquele uivo fúnebre, enquanto o pequeno folhetinista se punha a soltar um gemido histérico e se lançava ao chão, brutalmente,
para soluçar lamentosamente e sem barulho, como choram as crianças doentes.
- Nicolas! - disse Tomás, erguendo-o pelos ombros. Pára! Que Diabo é isso? Basta... não tens vergonha?
Mas o outro não tinha vergonha: debatia-se no solo como um peixe fora da água e, quando Tomás o pôs de joelhos, apertou-se contra ele, rodeando-lhe as ancas com
os seus braços franzinos e continuou a chorar...
- Vá, já acabou! - dizia Tomás através dos dentes cerrados. - Basta, meu velho...
Emocionado pelo sofrimento daquele homem atormentado pela escassez da vida, cheio de rancor contra si próprio, pôs-se a rugir com voz espessa e forte, com o rosto
voltado para o ponto onde cintilavam nas trevas as luzes da cidade:
- Ah! Demónios... malditos!
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XI
- Lubovka! - disse um dia Maiakine ao chegar a casa de regresso da Bolsa. - Arranja-te para esta noite; vou trazer o noivo. Prepara uma mesa bem consistente... Põe
a velha prataria em evidência, em cima da mesa, põe também o serviço de frutas... Para que a nossa mesa lhe encha o olho. Para que ele veja que na nossa casa não
falta nada.
Lubov, sentada junto da janela, ponteava as peúgas do pai, com a cabeça bastante inclinada para a sua obra.
- Para que serve tudo isso, papá? - perguntou ela em tom descontente e ofendido.
- É para o molho, para o visgo... E também para a boa ordem... Porque uma rapariga não é um cavalo, não se cede sem os arreios...
Lubov ergueu nervosamente a cabeça e, atirando o trabalho para longe de si, corada sob o ultraje, lançou um olhar ao pai... Mas depois voltou a pegar nas peúgas
e baixou a cabeça sobre elas ainda mais. O velho passeava no aposento puxando a barbicha com preocupação; os olhos olhavam algures, ao longe, era visível que estava
totalmente mergulhado numa profunda e complexa meditação. A jovem compreendeu que ele não a ouviria e que ele não queria compreender o que a sua linguagem tinha
de humilhante. Os seus sonhos romanescos de um esposo-amigo, de um homem culto que leria com ela livros inteligentes e a ajudaria a ver claro na confusão dos seus
desejos, tinham sido abafados pela implacável decisão do pai de a dar a Smoline, mas tinham deixado na sua alma um depósito amargo. Ela tinha-se acostumado a considerar-se
como melhor do que a jovem vulgar da classe comercial que só pensa na sua exibição e se casa quase
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sempre em conformidade com os interesses dos pais, raramente seguindo as inclinações do seu coração; melhor e superior a ela. E agora também se ia casar pela única
razão de que tinha chegado o momento e também porque o pai tinha necessidade de um genro e de um sucessor para os seus negócios. Manifestamente o pai tinha a sensação
de que ela não era capaz de atrair pelos seus próprios meios a atenção de um homem e queria ornamentá-la de prata. Perturbada, picava os dedos, quebrava as agulhas,
mas mantinha-se em silêncio, sabendo muito bem que nada do que dissesse atingiria o coração do pai. O velho continuava a passear de um lado para outro, e ora entoava
salmos em voz baixa, ora doutrinava gravemente a filha acerca da atitude que devia ter com o seu noivo. Chegado aí punha-se a fazer contas com os dedos, contraía-se
e sorria...
- Perfeitamente... Julgai-me meu Deus e julgai a minha batalha... livrai-me do homem injusto e falso... A propósito, põe as esmeraldas da tua mãe, Lubov.
- Basta, papá! - exclamou a rapariga com tristeza. Pare com isso!
- Não resmungues. Ouve o que te ensinam.
E absorvia-se imediatamente nas suas contas, enrugando as pálpebras sobre os olhos verdes e mexendo os dedos ao nível do rosto.
- Isso dá 35%... o patifório! Guia-me com a Tua luz e a Tua verdade...
- Papá! - exclamou Lubov abatida e assustada.
- Que há?
- Agrada-lhe?
- Quem?
- O Smoline.
- O Smoline? Bem... É um esperto, um rapaz prático... bom, eu saio... E durante este tempo equipa-te!...
Ao ficar sozinha, Lubov abandonou o trabalho e apoiou as costas na poltrona, com os olhos fechados. As mãos apertadas uma na outra repousavam sobre os joelhos, os
dedos estalavam. Cheia de amargura, de um amor-próprio humilhado, experimentava um terror sinistro em presença do futuro e rezava em silêncio:
- Oh! Meu Deus! Oh! Senhor!... Permiti que ele seja um homem correcto... que ele tenha coração... Meu Deus! Chega um homem, olha para nós, toma-nos para si durante
longos anos... É degradante e horrível!... Meu Deus! Meu Deus!... Eu devia-me aconselhar com alguém... estou sozinha... se ao menos Taras...
Ao evocar o irmão sentiu-se ainda mais ultrajada, deixou-se invadir por uma enorme piedade por si própria.
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Tinha escrito a Taras uma longa carta impregnada de alegria, na qual lhe falava do seu afecto por ele, da esperança que nele depositava; ao suplicar-lhe que apressasse
a sua entrevista com o pai, traçava o plano da sua vida em comum, garantia a Taras que o pai era um homem inteligente e que podia compreender tudo, falava-lhe da
solidão do velho, exprimia admiração pela sua vitalidade e lamentava a atitude que ele mantinha para com ela.
Esperou febrilmente a resposta durante duas semanas, e quando a leu, sob o efeito da alegria e da decepção, foi possuída por uma crise de lágrimas que tocava a histeria.
A resposta era curta e seca; Taras informava que dentro de um mês os seus negócios o levariam até à região do Volga e que não deixaria de passar por casa do pai,
se realmente este não visse nisso qualquer inconveniente. A carta era fria; leu-a várias vezes, chorando, amarrotou-a, fez dela uma bola, mas esta não se tornou
mais calorosa por isso, pelo contrário, ficou apenas mais molhada. Da folha de papel grosseiro, fornecida pelos correios, coberta com uma escrita firme, parecia
fixá-la um rosto enrugado, metido consigo e desconfiado, magro e auguloso como o do pai. Neste, a carta do filho produziu outra impressão. Ao saber que Taras tinha
escrito, o velho teve um arrepio por todo o corpo e com vivacidade, um pequeno sorriso estendido nos lábios, disse rapidamente à filha:
- Bem, dá-me a carta! Mostra-a! Vamos ver como escrevem os espíritos fortes... Onde estão os meus óculos? "Querida irmã: "... bom...
O velho calou-se, leu para si a missiva do filho, pousou-a em cima da mesa e, com os sobrolhos erguidos e uma expressão de espanto, atravessou a sala. Depois releu
a carta, tamborilou pensativamente na mesa e declarou:
- Nada mal... um bilhete sensato... sem palavras inúteis... que dizer? Talvez efectivamente tenha ganhado firmeza em contacto com o frio... Ali o frio é valente!...
Deixemo-lo vir e ver-se-á... será interessante, não há dúvida... Está escrito no salmo de David: "O meu inimigo bateu em retirada...", esqueci-me do resto... "Foi
por fim despojado das suas armas e o seu nome caiu com fragor..." Muito bem, discutiremos os dois, sem fragor...
O velho esforçava-se por falar com calma, com um sorriso indiferente, mas o sorriso não lhe vinha ao rosto, as rugas estremeciam sob a excitação e as pupilas brilhavam
com uma cintilação especial.
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Escreve-lhe, Lubovka... diz-lhe que venha sem receio.
Lubov escreveu a Taras pela segunda vez, mas a carta já era mais curta e mais calma, e agora esperava a resposta de um dia para outro, tentando imaginar como era
esse irmão misterioso. Até aí pensava nele com o piedoso respeito dos crentes que pensam nos heróis da fé, nos justos, agora começava a temê-lo, porque pelo preço
de penosos sofrimentos, pelo preço da sua mocidade perdida na deportação, ele tinha adquirido o direito de ser juiz da vida e dos homens. - Quando chegasse, perguntar-lhe-ia:
"Então, é livremente, por amor, que te casas?"
Reflexões desencorajadas nasciam, uma após outra, na cabeça da rapariga, perturbavam-na e atormentavam-na. Presa de um nervosismo vizinho do desespero, obedecia
no entanto exactamente, embora inconscientemente, às ordens do pai. Dispôs em cima da mesa a prataria antiga, vestiu um vestido de seda cor de aço e, sentada diante
do espelho, começou a colocar nas orelhas as enormes esmeraldas, jóias de família que uns príncipes georgianos tinham deixado de penhor a Maiakine, e ali tinham
ficado definitivamente com uma quantidade de outros objectos raros.
Olhando, no espelho, o rosto transtornado onde a palidez das faces fazia ressaltar ainda mais o vermelho dos seus grossos lábios carnudos, contemplando o seu peito
opulento modelado pela seda, sentiu-se bela e merecedora da atenção de não importava que homem, qualquer que fosse. As pedras verdes que lhe brilhavam nas orelhas
desgostavam-na; eram supérfluas e parecia-lhe além disso que as suas cintilações lhe punham nas faces uma ligeira sombra amarelada. Tirou-as das orelhas e substituiu-as
por pequenos rubis pensando em Smoline. Que espécie de homem seria?
Depois as olheiras escuras desagradaram-lhe e ela pôs-se a cobri-las minuciosamente com pó de arroz, sem deixar de pensar na infelicidade de ser mulher e de se censurar
pela sua falta de vontade. Quando as manchas em redor dos olhos desapareceram sob a camada de pó, pareceu-lhe que, por esse facto, os olhos tinham perdido o brilho
e retirou o pó... Um último olhar para o espelho convenceu-a de que era bela, bela da beleza sólida e firme de um pinheiro resinoso. Essa convicção acalmou um pouco
a sua inquietação e o seu nervosismo; entrou na sala de jantar com o passo seguro que convém a uma noiva rica consciente do seu preço.
O pai e Smoline já estavam lá.
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Luba parou um instante no limiar, os olhos lindamente enrugados e os lábios altivamente apertados. Smoline levantou-se, deu um passo em direcção a ela e inclinou-se
respeitosamente. Essa saudação agradou-lhe, o fato dele também. O corpo era moldado pela roupa com harmonia. Ele tinha mudado pouco; tinha os mesmos cabelos ruivos,
cortados em escova, o mesmo rosto coberto de sardas; de diferente, só os bigodes, que eram longos e fortes, e os olhos que pareciam ter aumentado.
- Vês no que ele se tornou, hem! - disse Maiakine à filha, apontando o noivo com o dedo.
Smoline entretanto apertava a mão da jovem e; sorrindo, dizia com sonora voz de barítono:
- Poderei ter a esperança de que não esqueceu o seu antigo camarada?
- Vocês falarão mais tarde - disse o velho, tacteando a filha com o olhar. - Tu, Lubovka, por agora vela para que tudo esteja em ordem. Durante esse tempo nós os
dois vamos terminar a nossa pequena entrevista
- Peço que me desculpe, Lubov lakoblevna - disse Smoline, afável.
- Esteja à sua vontade, por favor - respondeu Lubov.
"É educado!" pensou ela, e nas suas idas e vindas à volta da mesa começou a prestar atenção à conversa de Smoline. Ele falava com firmeza, sem acanhamento.
- Portanto, como eu dizia, estudei minuciosamente durante mais de quatro anos a situação do couro russo nos mercados estrangeiros. Há trinta anos o nosso couro era
considerado modelar, lá fora. Agora os pedidos diminuem progressivamente, assim como os preços, evidentemente. E tudo isso está certo, porque por falta de capital
e de conhecimentos todos esses pequenos industriais do couro não têm a possibilidade de elevar a produção ao nível requerido e de, ao mesmo tempo, baixar as suas
tarifas. A mercadoria deles é incrivelmente má e cara... São culpados perante a Rússia de terem destruído o seu renome de produtora do melhor couro. Em geral, o
pequeno industrial, desprovido de conhecimentos técnicos e de capital, fica impossibilitado de melhorar a sua produção em função do desenvolvimento da técnica, e
esse industrial é a infelicidade do país, um parasita para o seu comércio...
Lubov sentia na simplicidade das afirmações de Smoline condescendência em relação ao pai e ficou aborrecida.
- Hum!... - rosnou o velho, com um olho no hóspede e outro a observar a filha. - Em resumo, a tua
239
intenção é lançar uma fábrica tão colossal que se torne um caixão bem pregado para todas as outras?
Oh! Não! - exclamou Smoline, afastando com um
gesto largo as palavras do velho. - O meu objectivo é refazer a reputação e o valor do couro russo no estrangeiro; para isso, armado com as mais modernas técnicas
industriais, construirei uma fábrica modelo e lançarei no mercado uma mercadoria modelo... A honra comercial do país...
- E para isso, que capitais precisarias? - interrogou Maiakine pensativo.
- Cerca de trezentos mil...
"O meu pai não dará tanto por mim", pensou Lubov.
- A minha fábrica produzirá também couro manufacturado, malas, calçado, arreios, cintos...
- E qual é o lucro com que sonhas? - perguntou o velho.
- Não sonho, calculo com a máxima exactidão que é possível nas condições em que estamos, na Rússia - declarou Smoline com gravidade. - O industrial deve ter o raciocínio
estrito de um mecânico que constrói uma máquina... É necessário ter em conta a fricção exercida pela menor engrenagem, se se quer fazer seriamente uma obra capaz.
Posso-lhe emprestar o relatório que redigi, baseando-me no estudo pessoal que fiz acerca da criação de gado e do consumo de carne na Rússia.
- Ora vejam isto! - gracejou Maiakine. - Traz o teu relatório, isso interessa-me. É evidente que não andaste pela Europa inutilmente... E agora vamos comer qualquer
coisa, à maneira russa...
- Como tem passado Lubov lakovlevna? - inquiriu Smoline, armando-se com o garfo e a faca.
Maiakine respondeu pela filha.
- Ela aborrece-se aqui em casa... Governa-a, todos os problemas domésticos lhe caem nos ombros, não tem tempo para se divertir...
- Nem tempo, nem lugar, deve dizer - acrescentou Lubov. - Não aprecio bailes, nem as soirées em casa dos comerciantes...
- E o teatro? - perguntou Smoline.
- vou muito raramente... não tenho ninguém para me acompanhar...
- O teatro! - exclamou o velho. - Gostaria que me explicasse a razão por que se adoptou esse método de representar o comerciante como um imbecil encartado! É muito
engraçado, mas é incompreensível, porque não é a verdade. Como posso eu ser imbecil, se sou um chefe no Conselho Municipal, se sou um patrão no comércio, e
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se, ainda por cima, esse mau teatro é o meu?... Quando se vê o comerciante no palco, vemos que isso não tem relação com a vida! Evidentemente, se se representam
peças históricas, por exemplo, A Vida pelo Czar com cantos e danças, ou o Hamlet, O Encantador, Vassilissa, aí não se pede a verdade porque se trata do passado e
já não nos diz respeito... Verdadeiro ou não, o que importa é que seja bom... Mas se se representa a sociedade contemporânea, não me venham contar mentiras. Mostrem
o homem como se deve mostrar...
Smoline ouvia o discorrer do velho com um sorriso cortês nos lábios, e lançava a Lubov olhares que pareciam convidá-la a ripostar ao pai. Um pouco confusa, ela disse:
- Mas, papá, não há dúvida que na sua maioria a classe comercial é ignorante e boçal.
- Não há dúvida, - atalhou Smoline com um aceno de cabeça, aprovador - infelizmente é a triste verdade... Faz parte de alguma sociedade? Aqui há muitas sociedades
de todas as espécies...
- Sim, há - suspirou Lubov. - Mas eu vivo um pouco à margem de tudo...
- Os problemas domésticos! - interveio o pai.
- Temos aí todo um bricabraque... É preciso contá-lo, limpá-lo, arrumá-lo...
Indicou com um sinal de cabeça, satisfeito, a mesa coberta de prata e os aparadores cujas prateleiras carregadas de bibelots evocavam vitrinas de armazéns. Smoline
examinou tudo isso e nos seus lábios passou um sorriso irónico. Depois olhou Lubov de frente: ela sentiu no seu olhar algo de amigável, de simpático. Um ligeiro
rubor lhe cobriu as faces e ela pensou para si mesma, com uma alegria tímida: "Louvado seja Deus!"
Foi como se a luz do pesado candeeiro de bronze se tivesse posto a iluminar com mais brilho o cristal facetado do pé, a sala ficou mais clara.
- A nossa velha e gloriosa cidade agrada-me - dizia Smoline olhando Lubov com um sorriso amável. Ela é tão bela, tão viva... há nela algo de excitante que dispõe
ao trabalho... mesmo o seu pitoresco desperta não sei o quê... Tem-se vontade de a levar longe... de trabalhar muito e a sério... Além do mais é uma cidade inteligente...
Veja que bom jornal se imprime aqui... A propósito, queremos comprá-lo...
- Quem? - perguntou Maiakine.
- Eu, Ubratsov e Stuchine.
- Bravo! - disse o velho, batendo na mesa. É tempo de o meter na ordem. Há lá um certo lejov,
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sobretudo, que tem os dentes duros... é preciso meter-lhe as rédeas... E com firmeza.
Smoline lançou a Lubov um olhar sorridente e o coração dela estremeceu imediatamente cheio de alegria. com as faces ardentes disse ao pai, dirigindo-se interiormente
ao seu noivo:
- Se bem compreendo o pensamento de Afrikane Dmitriévitch, ele vai comprar o jornal mas não para lhe fechar a boca, como o pai diz...
- Mas isso para que serve? - perguntou o velho encolhendo os ombros. - Só publica palavras e discussões... Evidentemente, se o mundo dos negócios, o próprio comerciante,
começa a escrever...
- A edição de um jornal - começou Smoline suavemente, interrompendo o velho - mesmo encarada do ponto de vista estritamente comercial, pode ser um negócio muito
vantajoso. Mas para além disso há outro objectivo muito importante: a defesa dos direitos, da personalidade e dos interesses da indústria e do comércio...
-É o que eu digo: se o próprio comerciante toma a direcção, então o jornal será útil...
- Dê-me licença, papá! - disse Lubov.
Sentia que era preciso exprimir-se diante de Smoline; tinha vontade de o convencer de que compreendia o sentido das suas palavras, de que não era uma simples filha
de comerciante, uma doméstica, boa para dançar à russa. Smoline agradava-lhe. Pela primeira vez ela via um comerciante que tinha vivido muito tempo no estrangeiro,
raciocinava com profundidade, portava-se convenientemente, andava elegantemente vestido e falava ao pai dela - o homem mais inteligente da cidade - no tom condescendente
de um adulto que se dirige a uma criança:
"Depois do casamento hei-de convencê-lo a levar-me ao estrangeiro..." pensou ela subitamente e, desconcertada por essa ideia, esqueceu o que ia dizer. Corou violentamente
e manteve um silêncio de alguns segundos, aterrorizada com o pensamento de que Smoline poderia interpretar esse silêncio de maneira pouco agradável para ela.
- No calor da conversa, o pai esqueceu-se de oferecer o vinho ao nosso hóspede... - disse ela após alguns segundos de silêncio desagradável.
- Isso é contigo. Tu és a dona da casa... - replicou o pai.
- Oh!, peço-lhe que não se incomode - exclamou vivamente Smoline. - Praticamente não bebo...
- Isso é verdade? - perguntou Maiakine.
- Asseguro-lhe que sim. Por vezes bebo um ou dois copos quando me sinto cansado, ou doente. Mas as
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alegrias do vinho são-me incompreensíveis. Há outras satisfações mais dignas de um homem educado.
- As raparigas talvez? - perguntou o velho, piscando o olho.
Smoline olhou para Lubov e disse ao pai dela secamente.
- O teatro, os livros, a música...
Lubov regozijou-se totalmente com essas palavras. Mas o velho olhou de esguelha o solene jovem, teve uma gargalhada escarnecedora e lançou de repente:
- Eh! A vida avança! Dantes os cachorrinhos comiam restos, agora é preciso dar-lhes creme logo que nascem... Desculpem, meus caros, a amargura dos termos... mas
é bem o caso de os empregar. Não digo isto para ninguém, falo na generalidade...
Lubov empalideceu e lançou um olhar apavorado a Smoline. Este, ocupado a examinar um saleiro antigo, em forma de arco, com ornatos de esmalte, torcia o bigode sem
ter o ar de ouvir o velho... Mas os olhos escureceram e os lábios estavam estreitamente apertados, o que fazia sobressair-lhe o queixo rapado numa expressão de teimosia.
- Portanto, senhor futuro fabricante, trezentos mil rublos - retomou Maiakine como se nada se tivesse passado - e o negócio irá a todo o vapor?
- Dentro de ano e meio lançarei o primeiro love de mercadorias que hão-de ser disputadas - respondeu Smoline com uma segurança imperturbável, fixando nos olhos do
velho um olhar firme e frio.
- Por consequência, haverá a Empresa Smoline e Maiakine e mais nenhuma?... Bem... De qualquer maneira é um bocado tarde para eu iniciar novos negócios, hem? Deve-se
admitir que o meu caixão está pronto desde há muito tempo, não te parece?
Em vez de responder Smoline pôs-se a rir durante alguns segundos com um riso cheio e frio. Depois disse:
- Ora, ora, deixe-se disso...
Aquele riso sobressaltou o velho que recusou instintivamente o corpo com um movimento quase imperceptível. Após as palavras de Smoline ficaram os três em silêncio
durante um momento.
- Bem... - disse Maiakine sem levantar a cabeça que tinha baixada. - Tenho de pensar nisso... tenho necessidade de reflectir...
Depois levantando a cabeça, olhou a filha fixamente e o noivo, e declarou brutalmente, erguendo-se do assento:
- vou para o escritório, por um bocado...
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Saiu arrastando pesadamente os pés, as costas curvadas, a cabeça baixa...
Os dois jovens, deixados frente a frente, trocaram algumas frases ocas e, sentindo certamente que isso os afastava mais um do outro, calaram-se. Esse silêncio era
pesado, acanhado, e esperava qualquer coisa. Lubov pegou numa laranja e começou a descascá-la com excessiva atenção. Smoline examinou os bigodes voltando os olhos
para baixo, depois alisou-os minuciosamente com a mão esquerda, brincou com a faca, e de súbito perguntou em voz baixa:
- Desculpe a minha indiscrição!... Deve-lhe ser um pouco penoso, Lubov lakovlevna, viver com o seu pai... ele é do tempo antigo e está, digamos, perdoe-me a expressão,
bastante ultrapassado.
Lubov estremeceu e dirigiu ao homem ruivo olhos reconhecidos, dizendo:
- Não é fácil, mas estou habituada... Ele tem as suas qualidades...
- Oh! sem dúvida! Mas para si, nova, bela, culta, com uns olhos tão bonitos...
Ele sorria-lhe suavemente, com simpatia, a voz era doce... Na sala um sopro quente animava a alma. No coração da jovem ardia com mais ardor uma nítida esperança
de ser feliz.
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XII
Tomás estava em casa de lejov e ouvia as notícias da cidade que o seu camarada lhe relatava. lejov, sentado, com as pernas a bambolear, em cima da mesa pejada de
jornais, contava:
-Começou a campanha eleitoral e os comerciantes puseram à sua frente o teu padrinho, esse velho demónio. Ele é imortal... deve ter agora passado dos cento e cinquenta...
A filha vai casar com Smoline, lembras-te, o ruivo! Tem fama de ser um homem honesto... na época que atravessamos chamam-se pessoas honestas aos canalhas inteligentes
porque há falta de homens. O Afrikachka finge ser homem instruído, já se conseguiu insinuar entre os intelectuais, e tornou-se imediatamente um personagem em evidência.
A julgar pela tromba é patifório de primeira classe, mas manifestamente desempenhará um papel porque possui sentido das proporções. Claro, meu velho, Afrikachka
é liberal... Um comerciante liberal, é o resultado do cruzamento da loba com o porco.
- Que o Diabo os leve a todos! - disse Tomás com um gesto de indiferença. - Não me interessam. E tu, continuas a beber?
- Há algum motivo para o não fazer?
Meio vestido e com os cabelos eriçados, lejov parecia um pássaro depenado que tivesse acabado uma luta e não tivesse ainda conseguido vencer a excitação do combate.
- Bebo porque necessito, de tempos a tempos, apagar as chamas do meu coração... E tu, continuas a decompor-te pouco a pouco?
- Tenho de ir ver o velho! - disse Tomás fazendo uma careta.
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- Sê insolente.
- Isso não interessa...
- Então não vás.
- Tenho de ir.
- Então vai.
- Porque é que te finges de palhaço permanente? disse Tomás descontente. - Como se realmente fosse alegre...
- Mas eu, caramba, sou alegre! - exclamou lejov saltando abaixo da mesa. - Ontem en-sa-bo-ei um senhor no jornal, e de uma maneira notável. Além disso contaram-me
uma boa história: as pessoas estão à beira-mar e fazem altas filosofias sobre a vida. Um judeu diz: "Meus Senhores, para que servem tantas e tantas palavras? Comparada
com a grandeza deste oceano a nossa vida não vale um copeque..."
- Ora bolas! - disse Tomás. - Adeus!
- Vai-te embora! Hoje estou em forma e não posso gemer contigo... tanto mais que tu nem sequer gemes, tu grunhes...
Tomás saiu, deixando lejov a cantar em voz estridente:
Bate o tambor e nada temas...
"Tu és o próprio tambor..." pensou Tomás aborrecido.
Em casa de Maiakine foi acolhido por Luba. Agitada e cheia de animação apareceu bruscamente diante dele, dizendo rapidamente:
- Tu? Meu Deus, como estás pálido... emagreceste... Vê-se bem que andas na boa vida...
Depois o rosto crispou-se-lhe e exclamou quase a cochichar:
- Ah! Tomás! Não sabes que... aí está, ouves? Estão a tocar... deve ser ele...
A rapariga precipitou-se para fora da sala, deixando atrás de si o ruído do vestido de seda e um Tomás estupefacto: não tinha tido sequer o tempo de perguntar onde
estava o pai dela. Jacob Tarassovitch estava em casa. Vestido com um fato de cerimónia, com a sua casaca, o peito coberto de medalhas, estava de pé no enquadramento
da porta e, com os braços afastados, apoiava-se no alizar. Os olhos verdes e pequenos examinavam Tomás; sentindo-lhe o olhar, este levantou a cabeça e viu-o.
- bom dia, meu caro senhor! - começou o velho com movimentos de cabeça reprovadores. - De onde se dignou sair? Quem é que lhe tem chupado a sua gordura?
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Talvez o porco procure o seu covil e ao fim e ao cabo onde poderia estar melhor?
- Não tem outra linguagem que possa empregar comigo? - perguntou Tomás com humor, encarando o velho frente a frente.
Subitamente percebeu que o padrinho tremia, que as pernas o seguravam com dificuldade, que os olhos piscavam precipitadamente e que as mãos se agarravam ao alizar
da porta. Tomás avançou para ele supondo que o velho se sentisse mal, mas Jacob Tarassovitch disse com voz surda e colérica:
- Afasta-te... Desaparece!
Tomás recuou e achou-se ao lado de um homenzinho redondo que saudava Maiakine, dizendo com uma voz rouca.
- bom dia, papá!
- bom dia, Taras Iakovlitch, bom dia... saudou o velho, com um sorriso de esguelha, sem largar o alizar; as pernas tremiam-lhe.
Tomás afastou-se e sentou-se, petrificado pela curiosidade.
Maiakine, mantendo-se no enquadramento da porta, balançava o seu velho corpo continuando a apoiar-se do mesmo modo e, com a cabeça inclinada para um lado, examinava
o filho silenciosamente. Este estava de pé em frente dele, a cabeça erguida, os sobrolhos franzidos, com grandes olhos escuros. A sua barbicha negra de duas pontas
e os pequenos bigodes tremiam no rosto seco, de nariz ossudo como o do pai. Por cima do ombro de Taras, Tomás via o rosto pálido, assustado e alegre de Luba: olhava
o pai com uma expressão suplicante e parecia prestes a gritar. Durante alguns segundos ficaram todos sem voz, sem movimento, esmagados pelo que sentiam. O silêncio
foi quebrado pela voz abafada, estranhamente surda, de Jacob Maiakine:
- Envelheceste, Taras...
O filho sorriu ao pai, silenciosamente, e olhou-o rapidamente dos pés à cabeça.
O pai, arrancando as mãos dos montantes da porta, avançou para o filho e parou, bruscamente hesitante. Então Taras Maiakine, com um só passo, chegou diante do pai
e estendeu-lhe a mão.
- Vá, abracemo-nos... - propôs o pai.
Apertaram-se convulsivamente, beijaram-se energicamente e afastaram-se um do outro. As rugas do mais velho tremiam, o rosto do mais novo estava imóvel, quase severo.
Luba pôs-se a soluçar de alegria. Tomás, com a respiração cortada, agitava-se pouco à vontade na sua poltrona.
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Ah! Filhos! Vocês são as chagas do coração e não
a sua alegria! - lamentava Jacob Tarassovitch com voz trémula, e sem dúvida exprimia nessas palavras muitas coisas porque logo depois de as ter pronunciado as feições
iluminaram-se-lhe, reencontrou o seu aprumo e, dirigindo-se à filha, disse-lhe alegremente:
- Bem, aí estás tu a morrer de contentamento. Corre, arranja-nos qualquer coisa. Recebamos o filho pródigo, hem? E tu, meu velho, aposto que te tinhas esquecido
como era o teu pai!
Taras Maiakine encarava o autor dos seus dias com um olhar pensativo, e sorria sem dizer nada. O seu fato negro fazia ressaltar mais nitidamente os cabelos brancos
e os pêlos grisalhos da barba.
- Vá, senta-te, fala! Que tens feito, como tens vivido?... Que estás a olhar? É o meu afilhado, o filho do Inácio Gordeiev, Tomás, lembras-te do Inácio?
Lembro-me de tudo - disse Taras.
- Oh! É bom ter memória... desde que não nos gabemos disso. És casado?
- Viúvo...
- com filhos?
- Morreram... tinha dois... Foi pena... teria tido netos...
- Posso fumar? - perguntou Taras ao pai.
- Podes... Ora vejam isto... fuma-se charuto...
- Não gosta?
- Eu?... É-me indiferente... Tinha a ideia de que o charuto era assim como que um hábito de senhores... Dizia isso muito simplesmente a pensar... parece-me estranho...
este velho homem, sólido, esta barba à estrangeiro, este charuto nos dentes... quem é? O meu rebento. He! He! He!
O velho deu uma palmada no ombro de Taras e, com um salto, bateu em retirada como que assustado; não estaria a apressar-se de mais no regozijo? Seria assim que se
devia comportar com aquele homem grisalho? Pôs-se a sondar com um olhar perscrutador e desconfiado os grandes olhos do filho, cercados de rugas amareladas.
Taras teve um sorriso amável para o pai e com esse sorriso caloroso disse-lhe com ar pensativo:
- O pai é tal como eu me lembrava de si, alegre, vivo... Parece que não mudou nada em todos estes anos.
O velho endireitou-se orgulhosamente e, batendo com o punho no peito, declarou:
- Eu, nunca mudarei! Sobre um homem consciente do seu valor a vida não tem poder!
- Oh! Oh! Há aí muito orgulho!
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- E isso deve-se ter transmitido certamente ao meu filho - disse o velho com uma careta espertalhona. - Eu tinha um filho, meu rapaz, que aos dezasseis anos se calava
por orgulho...
- Era porque o pai não o queria ouvir - lembrou Taras.
- Admitamos. Só Deus sabe quem tinha queixas contra o outro... Ele é justo, um dia dir-te-á. Hoje não é altura de falar disso... Diz-me o que fizeste durante este
tempo. Como é que caíste nessa fábrica de soda? Como é que abriste o teu caminho?
- É uma longa história - disse Taras com um suspiro.
Lançou uma nuvem de fumo e começou sem se apressar:
- Quando me concederam o direito de viver em liberdade, entrei no escritório do director das minas de ouro de Rémézov...
- Eu conheço-o... São três irmãos, conheço-os a todos. Um é um monstro, o outro um imbecil, o terceiro é um sovina...
- Trabalhei dois anos com esse, depois casei com a filha... - prosseguiu Taras com voz rouca.
- Não foi tolice nenhuma...
Taras reflectiu um pouco fazendo uma pausa. O velho lançou um olhar ao rosto triste do filho.
- Evidentemente, foste feliz com a tua mulher...
- disse ele - mas que se há-de fazer? Para os mortos há o Paraíso, para os vivos o jogo continua... Demais a mais, não és assim tão velho... Estás viúvo há muito
tempo?
- Três anos.
- E como chegaste à soda?
- É a fábrica do meu sogro...
- Ah! Ah! Quanto ganhas?
- Cerca de cinco mil...
- Soma interessante! Vejam isto: no que dá um forçado!
Taras lançou ao pai um olhar duro e perguntou-lhe secamente:
- A propósito, de onde vem isso de eu ter sido forçado?
O velho olhou o filho com estupefacção que rapidamente se transformou em alegria.
- Mas então?... Não estiveste? Como?... Não te zangues, tinham-me dito: a Sibéria... Então, lá são os trabalhos forçados, as galés, hem!
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Para acabar com isso de uma vez para sempre
disse Taras com gravidade solene batendo com as
mãos nos joelhos - vou-lhe dizer tudo o que se passou. Fui exilado para a Sibéria durante seis anos, e durante o tempo da minha deportação vivi na região mineira
de Lena... Em Moscovo estive nove meses na prisão, e é tudo.
- Bem! Mas então que é que isso quer dizer? gaguejou Jacob Tarassovitch confuso e contente.
- E aqui espalhou-se esse boato idiota.
- É bem verdade: idiota - comentou, desolado, o velho.
- E esse boato, uma vez, pregou-me uma partida bem aborrecida...
- Sim? Como?
- Eu tinha começado o meu negócio...
Ouvindo atentamente a entrevista dos Maiakine, encarando obstinadamente o recém-chegado, Tomás mantinha-se no seu lugar e piscava os olhos com perplexidade. Recordando-se
da disposição de espírito de Lubov em relação ao irmão, ele próprio influenciado em certa medida pelo que ela lhe tinha contado de Taras, tinha esperado encontrar
nele algo de extraordinário, que não se parecesse com o homem banal. Tinha pensado que Taras teria uma linguagem particular, uma maneira original de se vestir que
em geral o diferençaria dos outros. Mas tinha sob os olhos um homem importante, de aspecto severo, cujo rosto se parecia muito com o do pai e não se distinguia dele
senão pelo charuto. Falava concisamente, de coisas simples... Que tinha de especial? Acabava de se pôr a falar das vantagens da indústria da soda... Não tinha estado
nas galés... Lubov mentira-lhe.
Esta entrava na sala a todo o momento. O rosto irradiava prazer e os olhos examinavam com alegria a silhueta negra de Taras, vestido com uma sobrecasaca muito particular,
com bolsos aos lados e grandes botões. Ela caminhava nas pontas dos pés e o pescoço alongava-se sempre mais ou menos na direcção do irmão. Tomás lançava-lhe olhares
interrogativos, mas ela entrava e saía a correr, com pratos e garrafas nas mãos, e não reparava nele.
No preciso momento em que o irmão falou das galés ela lançava uma olhadela à sala. Imobilizou-se, com um prato na mão estendida e ouviu tudo o que o irmão disse
acerca da sua condenação. Escutou até o final e afastou-se lentamente sem ver o olhar de perplexa ironia de Tomás. Absorto nas suas reflexões a respeito de Taras,
um pouco vexado pelo facto de ninguém lhe prestar atenção e não
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o terem, uma única vez, olhado, Tomás tinha cessado durante um momento de seguir a conversa, quando se sentiu subitamente agarrado pelo ombro. Sobressaltou-se e
pôs-se em pé de um salto, quase fazendo cair o padrinho.
- Vê isto, olha! É um Maiakine! Mergulharam-no em sete caldeiras de água a ferver e está vivo. E rico! Compreendes? Sem ajuda nenhuma, sozinho, traçou o seu caminho.
Isso quer dizer que é um Maiakine. Maiakine é um homem que tem o seu destino nas mãos... Percebes? Não há um assim em cada cem... mesmo um em cada mil é preciso
procurar bem. Fixa bem isto: De um homem como Maiakine não se forja nem um anjo, nem um diabo...
Estupefacto com aquele ataque tempestuoso, Tomás perdeu o fôlego não sabendo o que dizer ao velho em resposta à sua ruidosa jactância. Via que Taras continuava a
fumar tranquilamente o seu charuto, olhando o pai e com os lábios a encresparem-se num sorriso. O rosto dele exprimia uma satisfação condescendente e toda a sua
atitude era de um orgulho altivo. Parecia divertir-se com a alegria do velho.
Entretanto Jacob Tarassovitch encostava o dedo ao peito de Tomás e dizia:
- Não conheço bem o meu próprio filho; ele não me abriu o coração... É possível que estejamos hoje separados por uma tal distância que nem o voo da águia nem os
saltos do Diabo poderão franquear... Pode acontecer que o seu sangue se tenha alterado de tal modo que se tenha perdido nele qualquer indício do do seu pai... mas
digo: Agora, Deus Todo-Poderoso, deixa partir o teu servidor!
O velho tremia febrilmente de júbilo; dir-se-ia que executava uma dança diante de Tomás.
- Vamos, sossegue - disse Taras levantando-se devagar e aproximando-se do pai. - Sentemo-nos...
Teve um sorriso indiferente para Tomás e, pegando no pai pelo braço, conduziu-o à mesa.
- Acredito nas virtudes do sangue! - dizia Jacob Tarassovitch. Está nele toda a força! O meu pai dizia-me: "lachka! Tu és o meu verdadeiro sangue! Os Maiakine têm
o sangue espesso, nenhuma mulher conseguirá dilui-lo alguma vez..." Bebamos uma taça de champanhe. Bebes? Fala de ti... Fala sozinho... como é a Sibéria?
Mais uma vez, como que assustado e desembriagado por uma certa ideia, o velho perscrutou cuidadosamente o rosto do filho com os olhos. No entanto alguns instantes
mais tarde as respostas pormenorizadas mas sucintas de
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Taras despertaram a sua alegria barulhenta. Tomás, pacificamente instalado no seu canto, ouvia e observava.
A indústria do ouro é, evidentemente, um negócio
sólido - dizia Taras com calma gravidade - no entanto tem os seus riscos e exige um capital muito elevado... É vantajoso fazer negócios com os naturais... com eles,
mesmo organizado de qualquer maneira, o comércio dá lucros enormes. É uma empresa absolutamente infalível... Mas é aborrecido. Não exige muita inteligência, não
há possibilidade, para um homem de grande iniciativa, de dar todo o seu melhor.
Lubov entrou e convidou toda a gente a passar à sala de jantar. Quando os Maiakine saíram, Tomás, sem se fazer notar, puxou Lubov pela manga; ela ficou sozinha com
ele perguntando-lhe precipitadamente:
- Que queres?
- Nada! - disse Tomás sorrindo. - Queria perguntar se te sentes feliz.
- Imenso! - exclamou Lubov.
- E porquê?
- Tu és bizarro! - disse Lubov lançando-lhe um olhar admirado. - Não vês?
- Bem, tu!... - deixou cair Tomás com uma comiseração onde havia desprezo. - É por causa do teu pai? Pode sair algo de bom da nossa vida de comerciantes? E tu contaste-me
aldrabices: o Taras isto, o Taras aquilo! É um comerciante igual a outro comerciante... Mesmo a barriga dele é de comerciante...
Estava contente por ver a rapariga, desconcertada pelo que ele tinha dito, ver que ela corava e mordia os lábios.
- Tu... tu, Tomás... começou ela sufocada, e, bruscamente, batendo com o pé, gritou: - Nunca mais me fales.
No limiar da sala voltou para ele um rosto furioso e atirou-lhe a meia voz:
- Invejoso!
Tomás pôs-se a rir. Não tinha vontade de se sentar àquela mesa onde se reuniam três seres felizes. Ouvia-lhes as vozes roucas, o riso satisfeito, o tilintar da baixela
e compreendia que o seu lugar, com o seu coração acabrunhado, não era junto deles. E não tinha necessidade de lugar em parte alguma. Depois de se ter detido um instante,
solitário, no meio do aposento, decidiu deixar aquela casa onde as pessoas estavam todas entregues à sua felicidade. Ao sair para a rua, sentiu rancor contra os
Maiakine. Apesar de tudo eles eram os únicos seres que lhe eram próximos. Diante dele erguia-se o rosto do padrinho, as suas rugas vivas de excitação, os seus olhos
verdes iluminados com um brilho de alegria.
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"Até a madeira podre brilha na escuridão", pensou ele com maldade. Depois veio-lhe à memória o rosto calmo e grave de Taras ao lado da silhueta de Luba, cuja atenção
se lançava para o irmão impetuosamente. Essa imagem excitou-lhe a inveja e a tristeza. "Quem me olhará assim?"
Acordou dos seus sonhos junto de um cais de embarque, despertado pelo rumor do trabalho. Por toda a parte se transportava e carregava toda a espécie de objectos
e artigos; as pessoas andavam apressadas e apostrofavam um ou outro, enchiam a rua com um movimento incoerente e com o clamor ensurdecedor do trabalho precipitado.
Comprimiam-se numa estreita banda de terreno empedrado, bordado de um lado por altas casas e caindo brutalmente a pique, do outro lado, sobre o rio: a efervescência
do movimento dava a Tomás a impressão de que toda essa gente se aprestava a fugir para longe desse trabalho na lama, na confusão e no ruído; aprestava-se a fugir
e apressava-se a arrumar o mais depressa possível esse labor inacabado que os não deixava partir. Enormes barcos a vapor esperavam já, alinhados junto da margem,
largando pelas chaminés volutas de fumo. A água turva do rio, estreitamente murada pelo casco dos barcos, marulhava triste e suavemente contra a margem, como se
implorasse o favor de um instante de calma e de repouso.
De um dos cais tinha-se já elevado há muito tempo uma alegre canção, a Dubinuchka. Os carregadores executavam um trabalho que exercia movimentos rápidos, os solos
e os estribilhos seguiam o ritmo:
Os comerciantes nos cafés bebem espessos licores.
contava o solista num recitativo alegre. Toda a equipa retomava em conjunto:
Oh! A Dubinuchka! Oh! Oh!
E depois os baixos lançavam as notas duras:
Oh! Iça! Oh! Iça!...
E o tenor repetia:
Oh! Iça! Oh! Iça!...
Tomás, interessado na canção, avançou pelo cais para se aproximar. Viu então que os carregadores, alinhados
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em duas filas, extraíam do porão do barco enormes barris suspensos por cordas. Sujos, com blusas vermelhas de colarinho desabotoado, mangas arregaçadas acima dos
cotovelos, estavam de pé no porão e, gracejando alegremente ao ritmo da canção, puxavam os cabos. Do porão saía a voz alta e alegre do solista invisível:
Mas para a goela do mujique Não há vodka que chegue...
E todos, a plena voz e em cadência, arfavam como um forte e único peito:
EM Eh! Du-ubinuchka! Eh!
Tomás sentia prazer em contemplar aquele trabalho harmonioso como uma música. As faces sujas dos estivadores sorriam, o trabalho era fácil, ia depressa, e o solista
estava inspirado. Ocorreu-lhe a ideia de que seria bom executar um trabalho tão unânime, com bons camaradas, ao ritmo de uma alegre canção, fatigar-se, beber um
copo de vodka e comer couves com toucinho, preparadas pela rainha da cooperativa operária, corpulenta e desenrascada.
- Mais depressa, rapazes! Mais depressa! - ouviu-se ao lado dele uma voz desagradável e sincopada.
Tomás voltou a cabeça. Um homem gordo, ventrudo, batendo o cais com um cajado, tinha os olhos pequenos fixados nos descarregadores. A cara e o pescoço estavam inundados
de suor; limpava-o constantemente com a mão esquerda e respirava com tanta dificuldade como se estivesse a escalar uma montanha.
Tomás olhou o homem com hostilidade e pensou: "Os outros trabalham e é ele que sua... E eu, ainda sou pior do que ele..."
De cada impressão sentida libertava-se imediatamente no espírito de Tomás um pensamento mordaz acerca da sua própria incapacidade de viver. Tudo o que detinha a
sua atenção tinha algo de ultrajante para ele e esses ultrajes pesavam-lhe no peito como pedras.
À tarde passou novamente por casa de Maiakine. O velho não estava em casa. Na sala de jantar Luba tomava o chá com o irmão. Ao aproximar-se da porta Tomás ouviu
a voz rouca de Taras:
- O que é que obriga o pai a preocupar-se com ele? Quando viu Tomás calou-se, fixando-o com um olhar
sério e inquisitorial. A cara de Lubov exprimiu uma
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evidente confusão e, como que para se desculpar, disse-lhe:
-Ah! És tu?...
- Estavam a falar de mim! - notou Tomás, sentando-se à mesa.
Taras desviou os olhos e recostou-se melhor na cadeira. Um silêncio contrafeito prolongou-se por alguns segundos, e Tomás divertiu-se com isso.
Por fim Lubov perguntou:
- Vais ao banquete?
- Qual banquete?
- O quê, não sabes? Kononov baptiza um novo vapor... Haverá uma cerimónia religiosa e depois um passeio pelo Volga...
-Não me convidaram - disse Tomás.
- Não convidaram ninguém... Ele fez os convites simplesmente na Bolsa: "Aqueles a quem agrade darem-me a honra da sua presença que apareçam".
- A mim não agrada.
- Não. Pensa bem: Vai-se beber de uma maneira grandiosa - disse Lubov, vigiando-lhe a reacção com o rabo do olho.
- Se me apetecer posso-me embebedar à minha custa...
- Eu sei! - comentou Lubov com um aceno de cabeça significativo.
Taras brincava com uma colher de chá que fazia rodar entre os dedos e olhava para eles de vez em quando.
- Onde está o padrinho? - perguntou:
- Foi ao Banco... Há hoje uma reunião do Conselho de Administração... Vai haver eleições.
- E ele vai ser reeleito?
- Evidentemente...
A conversação interrompeu-se. Taras esvaziou o copo do chá e, sem dizer nada, entregando o copo à irmã, sorriu-lhe. Ela sorriu também com ar feliz, pegou no copo
e pôs-se a lavá-lo com aplicação. Depois o rosto dela adquiriu uma expressão tensa, ela parecia vigiar-se a si mesma e, a meia voz, num tom que era quase o da veneração,
perguntou ao irmão:
- Podemos voltar ao princípio da conversa?
- com certeza! - decidiu Taras lacònicamente.
- Que estavas a dizer? Não compreendi... Tinha perguntado se na tua opinião tudo isso são utopias, se é impossível... se são sonhos... que deve fazer o homem a quem
a vida não satisfaz?
Os olhos detiveram-se, numa expressão de intensa expectativa, no rosto sereno do irmão. Ele olhou-a,
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agitou-se um pouco na cadeira e, com a cabeça baixa, começou com um tom calmo e solene:
É necessário indagar qual é a causa dessa insatisfação. Pode ser culpa de não se saber trabalhar. Falta de respeito pelo trabalho. Ou então avaliação errada das
forças que se tem. A infelicidade da maior parte das pessoas é a de se considerarem mais capazes do que são... E no entanto não se exige muito do homem: ele deve
escolher um trabalho proporcional às suas forças e levá-lo a cabo o melhor possível... É preciso gostar do que se faz, e então mesmo a tarefa mais grosseira eleva-se
até se tornar uma obra... Uma cadeira, feita com amor, será sempre uma cadeira bem feita, bela e sólida... Acontece o mesmo em tudo o mais... Lê Smiles; nunca o
leste? É um livro muito sério... um livro salubre... Lê A Alegria de Viver de Lubbock... De um modo geral lembra-te que os Ingleses são a nação mais dotada para
o trabalho, e que é isso que explica o seu sucesso fulminante no domínio industrial e comercial... Entre eles o trabalho é quase um culto... O nível elevado de uma
civilização está sempre em função directa do amor do trabalho... Quanto mais elevado é o nível da civilização, mais as necessidades humanas são profundamente satisfeitas
e menos numerosos são os obstáculos opostos ao desenvolvimento ulterior das necessidades humanas... A felicidade é a satisfação tão completa quanto possível das
necessidades... compreendes? E como vês, a felicidade do homem é condicionada pela sua atitude em relação ao trabalho...
A dicção de Maiakine era tão lenta, tão arrastada, que dir-se-ia que o seu próprio discurso lhe era desagradável e, mais do que isso, fastidioso. Mas Lubov, com
os sobrolhos franzidos e o corpo inclinado para ele, ouvia-lhe as palavras, fixando-o com olhos onde se lia uma atenção ávida, pronta a tudo aceitar, e a fazer disso
o alimento da sua alma.
- bom, mas se o homem sente asco por tudo?
- começou Tomás.
- Asco de quê, precisamente? - interrogou Taras tranquilamente e sem olhar para Tomás.
Este baixou a cabeça apoiando-se com as mãos na mesa e, com ar obstinado, prosseguiu a sua explicação.
- Nada lhe interessa... nem os negócios... nem o trabalho... nem os homens... Suponhamos que vejo que tudo é mentira... os negócios não são mais do que um recheio...
Um enchido para preencher o vazio da nossa alma... Uns trabalham, outros limitam-se a comandar e a transpirar... mas ganham mais por isso... Por que razão é assim?
Hem?
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- Sinto-me incapaz de seguir o seu raciocínio...
- declarou Taras. - Admitamos isto: um homem está num barco, no meio de um rio... O barco pode até ser de boa qualidade, mas isso não impede que a água seja profunda
à sua volta... O barco é sólido... mas se o homem tem a sensação dessa profundidade sombria abaixo dele... nenhum barco o poderá salvar.
Taras olhou com tranquila indiferença. Olhava-o, não dizia nada, e tamborilava suavemente na borda da mesa. Lubov, inquieta, mexia-se na cadeira. O pêndulo do relógio
marcava os segundos com um ruído surdo e arquejante. O coração de Tomás batia com pulsações pesadas e penosas; sentia que aqui ninguém concederia o eco de uma palavra
à sua perplexidade.
-O trabalho não constitui tudo para o homem
- disse, dirigindo-se mais a si mesmo do que àquelas pessoas. - Não é verdade que o trabalho seja uma justificação... Há pessoas que não fazem absolutamente nada
durante toda a sua vida e que vivem no entanto melhor do que os trabalhadores... como se compreende isso? Os trabalhadores são apenas cavalos infelizes. Montam-nos
e eles sofrem... é tudo!... Mas eles têm a sua justificação aos olhos de Deus... Ser-lhes-á perguntado: "Dizei para que vivestes?" e eles responderão: "Não tínhamos
tempo para pensar... Trabalhámos toda a nossa vida!" Mas eu... qual é a minha justificação? E todas as pessoas que mandam, como se justificarão? Viveram para quê?
Suponho que todos, absolutamente todos, devem saber para que vivem.
Fez uma pausa e, erguendo a cabeça, exclamou com voz contida:
- É então possível que o homem nasça para ganhar um salário, juntar dinheiro, construir uma casa, engendrar filhos e... morrer? Não, a vida tem um sentido em si
mesma... O homem nasce, vive e morre para quê? É preciso entender qual é a finalidade da vida! A nossa vida não tem justificação... E de resto, não há igualdade,
isso salta aos olhos! Uns são ricos, possuem tanto dinheiro como um milhar de outros... e vivem sem fazer nada... Os outros... passam a vida inteira curvados sobre
o trabalho e não têm um copeque... No entanto a diferença entre os homens é pequena... Um que não tem calças para vestir raciocina como se estivesse vestido de seda...
Entregue aos seus pensamentos, Tomás expunha-os longamente, mas Taras afastou a sua cadeira, levantou-se e, com um suspiro, articulou com voz abafada:
- Não, obrigado! Para mim basta...
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Tomás interrompeu bruscamente o seu discurso e encolheu os ombros depois de ter olhado ironicamente
para Luba.
Onde arranjaste semelhante filosofia? - perguntou ela num tom seco e desconfiado.
- Não é uma filosofia... é... uma penitência - disse Tomás a meia voz. - Abre os olhos e olha à tua volta; então tudo isso se te meterá na cabeça, sem ajuda...
- A propósito, Luba, - enunciou Taras, de pé, encostado à mesa e examinando o relógio - nota bem que o pessimismo é um sentimento totalmente estranho à raça anglo-saxónica...
O que se denomina pessimismo em Swift ou em Byron não é mais do que um protesto ardente e mordaz contra a imperfeição da existência e do homem... Mas o pessimismo
frio, raciocinador e passivo, não será encontrado entre eles...
Nesse ponto, como se de repente se tivesse lembrado de Tomás, voltou-se para ele, pôs as mãos atrás das costas e disse, flectindo ligeiramente e endireitando a perna
com um movimento rápido e repetido:
- O senhor levanta problemas muito graves. Alguns acham-nos infantis... Se eles o preocupam seriamente, deve ler... Encontrará nos livros um grande número de opiniões
de valor sobre o sentido da vida... Costuma ler?
- Não! - respondeu Tomás. - Não gosto de ler...
- E no entanto os livros poderiam prestar-lhe um certo socorro - disse Taras, com um sorriso a insinuar-se-lhe nos lábios.
- Se os homens são incapazes de me ajudar a pensar... muito menos os livros! - retorquiu Tomás.
Aquele homem indiferente começava a aborrecê-lo. Gostaria de se ir embora, mas ao mesmo tempo tinha vontade de dizer qualquer coisa desagradável a Lubov a propósito
do irmão, e esperava que Taras saísse da sala. Luba lavava a louça, o rosto tinha uma expressão concentrada e pensativa, as mãos moviam-se sem presteza. Taras circulava
pelo aposento, parava diante das montras da baixela de prata, assobiava, dava piparotes nos vidros, examinava os objectos com olhos concentrados. Tomás notou que
Lubov tinha-o olhado várias vezes com ar de interrogação malévola e como se esperasse qualquer coisa; ele compreendeu que a sua presença a maçava.
- vou passar cá a noite - disse ele, sorrindo. - Tenho de falar ao padrinho. Além disso, em casa aborreço-me sozinho.
- Então vai dizer à Marta que te arranje uma cama no quarto do fundo - sugeriu-lhe Luba, precipitadamente.
- vou já...
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Levantou-se e saiu da sala de jantar. Imediatamente ouviu Taras perguntar à irmã qualquer coisa em voz baixa. "Trata-se de mim", pensou ele. Uma ideia maldosa atravessou-lhe
o espírito: "Ouçamos o que dizem as pessoas inteligentes".
Passou para outra sala igualmente contígua à sala de jantar. A luz não estava acesa, só uma estreita banda iluminada proveniente da sala de jantar se alongava pelo
soalho escuro vinda da porta entreaberta. Tomás, silenciosamente, com o coração a bater, aproximou-se da abertura...
- É um rapaz difícil... - dizia Taras. Baixando a voz Lubov prosseguiu rapidamente:
- Ele não pára com a boémia e as bebedeiras... Entrega-se a excessos... que metem medo. Deu-lhe assim, de repente... Começou por dar uma tareia terrível no genro
do vice-governador. O papá teve uma trabalheira danada para abafar o escândalo... Ainda foi uma sorte a vítima ter má reputação... De qualquer modo a brincadeira
ficou ao papá por mais de dois mil rublos. E enquanto ele dava voltas para arrumar o assunto, o Tomás ia afogando uma porção de gente no Volga, propositadamente.
- Que monstro! E preocupa-se ele em analisar o sentido da vida...
- De outra vez viajava no Volga com pessoas que andavam na boémia com ele, e de repente disse-lhes: "Façam as vossas orações! Vou-vos lançar todos à água!" Ele tem
uma força terrível... Os outros puseram-se a gritar... então ele disse: "Quero servir a minha pátria, quero purificar a terra de seres nojentos..."
- É espirituoso!
- É um homem terrível! Tem sido todos estes anos o herói de não sei quantos escândalos selvagens. Gastou somas fabulosas.
- Diz-me cá: o pai dirige os negócios dele em que condições, sabes?
- Não sei... Ele é procurador com plenos poderes... mas porquê?
- Para saber... O negócio é sólido. Evidentemente, está organizado à russa, de maneira execrável... Mas apesar disso não deixa de ser excelente... Que faria se fosse
dirigido como deve ser.
- O Tomás não faz absolutamente nada... Está tudo nas mãos do pai...
- Sim?
- Sabes... por vezes tenho a impressão de que... este estado de espírito do Tomás é voluntário, que o que
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ele diz é sincero e que ele é capaz de ser muito... aceitável. Mas não consigo conciliar a sua conduta escandalosa com o que ele diz e com o seu raciocínio.
- De resto não vale a pena preocuparmo-nos... Um ingénuo e um preguiçoso que procura justificar a sua preguiça...
- Não, sabes, por vezes parece-me uma criança...
- É o que eu dizia: Um ingénuo. Vale a pena falar de um ignorante e de um selvagem que se deseja a si próprio manter selvagem e ignorante? Vês? Ele raciocina tal
e qual como o urso da fábula...
- Tu és muito severo...
- Sim, sou severo! Os homens têm necessidade disso... Todos nós, russos, somos terrivelmente indisciplinados... Por sorte a vida organiza-se de tal maneira que,
com vontade ou sem ela, vamo-nos corrigindo pouco a pouco... Os sonhos, é assunto dos jovens e das raparigas, mas para as pessoas sérias é preciso um trabalho sério.
- Por vezes tenho muita pena do Tomás... Que lhe acontecerá?
- Nada de especial, nem bem nem mal... gastará o dinheiro, ficará arruinado... e não se falará mais nisso. As pessoas da espécie dele começam a rarear, actualmente...
Nos nossos dias, o comerciante compreende o poder da instrução... Quanto a ele, o teu irmão de leite, desaparecerá...
- Exacto, meu caro senhor! - disse Tomás aparecendo no limiar.
Pálido, com os sobrolhos franzidos e os lábios crispados, encarava Taras e disse-lhe em voz contida:
- Exacto. Desaparecerei e ámen! Quanto mais cedo melhor.
Lubov saltou da cadeira, o terror pintado nas faces, e correu para o irmão que se mantinha no meio da sala com os punhos metidos nos bolsos.
- Tomás! Oh, que vergonha! A escutar às portas... Ah! Tomás! - dizia ela, perturbada.
- Cala-te, ovelha ranhosa!
- Efectivamente não é muito bonito escutar às portas- disse lentamente Taras sem tirar de Tomás o seu olhar de desprezo.
- Seja, não é bonito! - disse Tomás com um gesto de indiferença. - Mas é minha a culpa se a verdade não pode ser ouvida senão atrás de uma porta?
- Vai-te embora, Tomás, peço-te! - implorava Lubov, apertada contra o irmão.
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- O senhor tem talvez alguma coisa para me dizer?
- perguntou Taras sem se perturbar.
- Eu? - perguntou Tomás. - Que posso dizer? Não posso nada!... São vocês que podem tudo...
- Portanto nada temos a dizer um ao outro?
- interrogou novamente Taras.
- Não.
- Regozijo-me...
Deixou de encarar Tomás e perguntou a Lubov:
- Achas que o pai virá cedo?
Tomás olhou-o e, sentindo em relação àquele homem qualquer coisa que se assemelhava ao respeito, deixou a casa silenciosamente. Não tinha vontade de ir para a sua,
para aquela moradia deserta e imensa onde cada um dos seus passos produzia um eco sonoro, por isso caminhou pela rua, envolto na luz baixa, cinzenta e melancólica
de um Outono tardio... Pensava em Taras Maiakine.
"É duro... Parece-se com o pai, mas é menos nervoso... Caramba, é um sovina, ele também... E a Lubka quase o toma por um santo, a pateta... Ele arrumou-me a um canto...
como um juiz... Antes, ela era boa para mim."
Mas esses pensamentos não despertavam nele nem rancor contra Taras nem simpatia por Lubov.
Precisamente nesse momento o cavalo do padrinho cruzou-se com ele a trote rápido. Tomás viu a figura pequena de Jacob Maiakine, que igualmente lhe não despertou
qualquer sentimento... O homem que acendia os lampeões seguiu-o a correr, ultrapassou-o, encostou a escada a um deles e começou a subir. De repente ela oscilou com
o peso e o homem, agarrando-se ao poste, praguejou com voz forte e colérica. Uma rapariga bateu em Tomás com o cesto e disse:
- Oh! Desculpe!...
Olhou-a e não disse nada. Depois começou a cair uma névoa fina, minúsculas gotas de humidade, quase invisíveis, embaciaram com a sua poeira acinzentada os clarões
dos candeeiros e as montras dos estabelecimentos. Por causa dessa poeira respirava-se com dificuldade.
"vou passar a noite em casa do lejov? Beber um copo, com ele?", pensou Tomás; encaminhou os passos para casa do folhetinista, mas na realidade não tinha vontade
de o ver, nem de beber...
Em casa de lejov, sentado no divã, estava um homem esfarrapado, com uma blusa e umas calças cinzentas. Tinha um rosto escuro como carne fumada, olhos imóveis e irritados,
bigodes salientes e duros de soldado sobre os
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lábios grossos. Estava com as pernas em cima do divã, abraçando-as com as mãos patudas e o queixo pousado nos joelhos, lejov estava instalado de través numa poltrona,
com as pernas passadas por cima de um dos braços. No meio dos livros e dos papéis, uma garrafa de vodka estava pousada na mesa, a sala cheirava a peixe salgado.
- Andas a passear? - perguntou lejov a Tomás e, apontando-o com um movimento de cabeça, disse ao homem que estava no divã:
-Gordeiev!
O outro olhou para o recém-vindo e disse com voz cortante e rouca:
- Krasnostchecov!
Tomás sentou-se num canto do divã e declarou:
- Venho cá passar a noite...
- Ah Sim? Continue Vassili...
Este teve um novo olhar para Tomás e começou com voz áspera:
- Na minha opinião, não há vantagem em cair desse modo sobre as pessoas estúpidas. Mazanielo era um imbecil mas fez o que era preciso no melhor estilo. E se um qualquer
Winkelried, que no entanto era decerto também um imbecil... não se tivesse deixado atravessar pelas lanças imperiais, os Suíços teriam sido enrolados. Não faltam
imbecis desta espécie! No entanto são heróis... enquanto os belos espíritos são covardes... Onde seria necessário marrar a toda a força contra o obstáculo, cada
uma pergunta onde isso o levará. E como não parecer em vão? Fica-se plantado diante da coisa como uma estaca... arites de estourar. O imbecil, esse é valente. Arranca
com a cabeça contra a parede... e vlan! A caixa das ideias poderá rebentar... e depois? As cabeçadas de burro não são caras... E se ele fizer uma fenda no muro,
os inteligentes depois, alargando-a, podem fazer uma porta de garagem, franqueá-la-ão, e nos seus textos chamarão a si a glória. Não, Nicolas Matveitch, a bravura
é uma boa coisa, mesmo sem a inteligência...
- Vassili, estás a dizer disparates! - disse lejov estendendo-lhe a mão.
- Evidentemente! - conveio Vassili. - Como poderia eu comer a minha sopa de couves servindo-me dos sapatos como colher? Mas apesar de tudo não sou cego... E o que
vejo é que há muito espírito e pouca razão.
- Espera um bocado - disse lejov.
- Não posso. Estou de serviço hoje... De resto já estou atrasado, caramba... Passarei amanhã, está bem?
- Aparece! Vou-te massacrar de cima a baixo.
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- É o seu trabalho...
Vassili rectificou lentamente a sua aparência, ergueu-se do divã e apertou a mão amarela e descarnada de lejov na sua forte pata negra.
- Adeus.
Depois fez um sinal de cabeça a Tomás e passou a porta introduzindo-se de flanco.
- Viste-o? - perguntou lejov a Tomás, indicando com a mão a porta atrás da qual se ouviam ainda os passos pesados.
- Quem é ele?
- O ajudante de mecânico Vasska Krasnostchecov... Toma o exemplo dele: começou a aprender a ler e a escrever aos quinze anos, aos vinte e oito já leu Deus sabe quantos
livros e estudou a fundo duas línguas... Agora vai partir para o estrangeiro.
- Fazer o quê? - perguntou Tomás.
- Estudar, observar como se vive... E tu estiolas...
- A respeito dos imbecis ele falava como deve ser
- opinou Tomás com ar pensativo.
- Não sei, porque eu não sou um imbecil...
- Estava certo. A um ser obtuso é necessária a acção imediata. Atacar e abater!
- Lá começaram os tresvarios! - exclamou lejov. Farias melhor se respondesses a isto: é verdade que o filho de Maiakine regressou a casa do pai?
- É verdade... E então?
- Nada!
- Pela tua cara, deve haver qualquer coisa...
- Nós conhecemo-lo, esse filho - ouvimos falar dele. Parece-se com o pai?
- É mais redondo, meu velho, tem mais gravidade e é frio como gelo!
- Pois muito bem, meu caro, a partir de agora põe-te a pau. Se não abres os olhos engolem-te sem mastigar... Esse Taras depenou sem dó nem piedade o sogro em Iékateriburgo...
- Que me depene também, se lhe apetecer. Eu só lhe diria obrigado.
- Ainda te manténs nessa história: o modo de te libertares? Deixa isso. Para que te serviria a liberdade? Que farias com ela? Sabes muito bem que não serves para
nada, analfabeto... Ah, se se tratasse de me libertar da necessidade de beber vodka e de comer pão!...
lejov levantou-se com um salto e, plantado em frente de Tomás, começou a falar em voz alta, como se declamasse:
- Eu juntaria os vestígios da minha alma em pedaços e juntamente com o sangue do meu coração cuspiria tudo
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no focinho dos vossos intelectuais, que o Diabo os carregue. Eu lhes diria: Percevejos! Vocês são a melhor seiva do meu país. O facto de vocês existirem foi pago
com o sangue e as lágrimas de dezenas de russos. Oh! Vocês são uns piolhos! Como vocês custaram caro ao vosso país! E que fizeram por ele? Metamorfosearam em pérolas
as lágrimas do passado? Que deram à vida? Que fizeram? Acaso consentiram em vencerem-se a vós próprios? Que fazeis? Dignai-vos ralhar a vós mesmos?
No seu ardor batia com os pés e, com os dentes cerrados, semelhante a uma ave de rapina furiosa, dardejava sobre Tomás um olhar mau e ardente.
- Eu lhes diria "Vocês! Vocês raciocinam demasiado, mas vocês são pouco inteligentes, completamente impotentes, e além disso todos covardes. O vosso coração está
entupido de moral e de boas intenções, mas é mole e quente como penugem, o espírito criador dorme nele com um sono pacífico e maciço, vocês não têm um coração que
bate, mas sim que se balouça docemente como um berço". com os dedos mergulhados no sangue do meu coração marcaria nas testas deles sinais das minhas censuras, e
eles, privados da coragem, privados da felicidade na sua suficiência, sofreriam... Ah! Como eles sofreriam! O couro do meu chicote é fino e a minha mão é firme.
E tenho demasiado amor para poder sentir piedade! Mas agora eles não sofrem porque falam de mais, falam constantemente e muito alto dos seus sofrimentos. Mentem.
O verdadeiro sofrimento é mudo, a verdadeira paixão não conhece obstáculos. Paixões, paixões! Quando ressuscitarão elas nos corações dos homens? A infelicidade de
todos nós é a ausência de paixões.
Sem fôlego, foi possuído por um ataque de tosse e tossiu durante muito tempo, correndo de um lado para o outro e gesticulando como um insensato. De repente plantou-se
diante de Tomás, o rosto violáceo, os olhos injectados de sangue. Respirava penosamente, os lábios tremiam, descobrindo dentes pequenos e agudos. Estava hirsuto,
os cabelos curtos faziam-no parecer-se com uma porca que se acabasse de arrancar à água. Não era a primeira vez que Tomás o via nesse estado e, como sempre, era
contagiado pela excitação do outro. Ouvia o discurso fogoso do homenzinho sem dizer nada, sem tentar compreender-lhe o sentido, sem desejar saber contra quem era
dirigido, saboreando-lhe apenas a violência.
As palavras de lejov jorravam nele como água fervente e aqueciam-lhe a alma.
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- Conheço o limite das minhas forças, sei que me gritarão: "Cala-te!". Dirão: "Chut". Falarão com espírito, com calma, rindo de mim do alto da sua grandeza... Eu
sei, sou apenas um minúsculo pardal, não sou de modo algum um rouxinol. Sou um ignorante ao pé deles, não sou mais do que um folhetinista, um ser feito para divertir
o público. Que gritem ou me cortem a palavra à vontade deles. Levarei uma bofetada mas o meu coração continuará a bater, apesar de tudo. E direi "Sim, sou um ignorante!
E a minha primeira superioridade sobre vós é a de não conhecer qualquer verdade livresca que aos meus olhos seja mais cara do que o homem. O homem é o universo;
que ele viva para sempre, ele que contém em si o mundo inteiro. E vós, vós, pelo amor de uma palavra de que talvez nem sempre o sentido vos seja inteligível; vós,
muitas vezes por uma palavra, infligis uns aos outros ferimentos e chagas, por uma palavra cuspis mutuamente nas faces a vossa bílis, violais a alma... A vida há-de-vos
punir duramente, podeis ter a certeza. A tempestade há-de-se desencadear e há-de varrer-vos da face da terra, arrastar-vos-á na sua passagem tal como a chuva e o
vento lavam a poeira das árvores. Na língua dos homens há apenas uma palavra cujo sentido é límpido e querido a todos: e quando se pronuncia essa palavra, eis como
ela soa: "liberdade".
- Força, quebra tudo! - rugiu Tomás.
Saltando do divã e agarrando lejov pelo ombro, fixou-lhe os olhos brilhantes no rosto; inclinando-se para ele quase gemeu com voz cheia de angústia e de aflição:
- Oh! Nikolka... Meu amigo, tenho pena de ti... Uma pena tal que não posso dizer... Apetece-me morrer.
- Que quer dizer isso? Que bicho te mordeu? - gritou lejov empurrando-o, admirado e perplexo com aquele ímpeto inesperado e com as estranhas palavras de Tomás.
- Ah! meu velho - dizia Tomás baixando a voz, o que a tornava mais densa e convincente. - És uma alma que vive: porque corres para a tua perda?
- O quê? Eu? Corro para a minha perda? Isso não é verdade.
- Meu amigo! Não dirás nada a ninguém! Não há ninguém! Quem te ouvirá? Só estou eu!
- Vai para o Diabo! - gritou raivosamente lejov, recuando de um salto como sob o efeito de uma queimadura.
Tomás falava com tom penetrado e impregnado de uma grande tristeza:
- Fala! Fala comigo! Eu irei levar as tuas palavras onde for necessário... Eu compreendo-as... Ah! Como eu
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queimarei as pessoas! Tem paciência!... A ocasião há-de-me ser dada.
Vai-te embora! -pôs-se lejov a gritar histericamente, com as costas encostadas à parede.
Estava ali, assustado, abatido, encolerizado, e afastava com gestos largos o braço de Tomás apontando para ele. Nesse instante abriu-se a porta do quarto e apareceu
no limiar uma mulher de pele muito escura. A sua expressão era raivosa, transtornada, a cara estava envolta num lenço apertado. Ela atirou a cabeça para trás, estendeu
o braço na direcção de lejov e proferiu com voz estridente:
- Desculpe Nicolas Matveitch! É impossível! Gritos selvagens, rugidos... convidados todos os dias... Acabará por vir a polícia... Não, não posso suportar mais isto!
Tenho nervos... Faça-me o favor de deixar amanhã o quarto livre... O senhor não vive no deserto, há pessoas à sua volta. Toda a gente tem necessidade de calma...
Os meus dentes... A partir de amanhã, peço-lhe...
Ela falava rapidamente, a maior parte das palavras apagava-se em guinchos ou assobios; só emergiam as que ela atirava com voz de cana rachada e exasperação. As pontas
do lenço, saídas do nó, erguiam-se-lhe acima da cabeça como pequenos cornos e tremiam ao ritmo dos movimentos do queixo. Tomás, à vista daquela figura enervada e
cómica, deixou-se cair no divã. lejov ficou de pé e, enxugando a fronte, ouviu com atenção tensa o que ela dizia...
- Que isto fique bem claro! - gritou ela, e já detrás da porta repetiu: A partir de amanhã. Isto é um escândalo...
- Diabo! - murmurou lejov, olhando estupidamente a porta.
- Caramba! É levada da breca! - comentou Tomás, olhando-o com espanto.
lejov encolheu os ombros, aproximou-se da mesa, encheu até meio um copo dos de chá com vodka, bebeu-o de uma vez e sentou-se à mesa com a cabeça baixa. Ficaram silenciosos
um instante. Depois Tomás, timidamente e com voz contida, disse:
- Como se passou tudo isto!... Num abrir e fechar de olhos... e de repente, que tempestade!
- Tu! - proferiu lejov a meia voz, levantando a cabeça e olhando Tomás com olhos furiosos e selvagens.
- Tu, cala-te! Que o Diabo te carregue. Deita-te e dorme!... Monstro!... Pesadelo!... Oh!
Ameaçou Tomás com os punhos. Depois serviu a si mesmo outro copo de vodka que despejou imediatamente.
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Alguns minutos mais tarde, Tomás, despido, estava estendido no divã e, através das pestanas dos olhos semicerrados, observava lejov sentado à mesa, imóvel, numa
atitude de boneco partido. Fixava o chão e os lábios mexiam vagamente... Tomás estava admirado: não compreendia porque é que lejov se tinha enfurecido contra ele.
Não era por o expulsarem do alojamento. Apesar de tudo tinha sido ele que gritara...
- Oh! que Demónio! - cochichava lejov, pondo-se a ranger os dentes.
Tomás levantou a cabeça da almofada, com precaução, lejov, suspirando profundamente e ruidosamente, estendia novamente o braço para a garrafa... Então Tomás disse
suavemente:
- Fazíamos melhor se fôssemos a um bar qualquer... Ainda não é muito tarde...
lejov olhou-o e pôs-se a rir estranhamente, coçando a cabeça. Depois levantou-se e disse laconicamente:
- Veste-te!
Vendo Tomás mexer preguiçosamente no divã pôs-se a gritar com impaciência raivosa:
- Vamos, mexe-te! Estaca simbólica!
- Oh! Nada de insultos! - disse Tomás com um sorriso pacífico. - Vale a pena encolerizar-se só porque uma mulherzinha se põe a guinchar?
lejov olhou para ele, cuspiu e soltou uma gargalhada aguda...
267
XIII
- Estão todos a bordo? - perguntou Ilia léfimovitch Kononov, de pé, à proa do seu novo vapor e passeando sobre a multidão dos seus convidados olhos radiantes.
- Parece que sim!
Erguendo a cara gorda, vermelha e feliz para o céu, gritou ao capitão que já estava no seu lugar:
- A caminho, Petruchka!
- Bem!...
O capitão descobriu a cabeça careca, benzeu-se com fervor depois de ter levantado os olhos para o céu, passou a mão pela longa barba negra, tossiu e comandou:
- Atrás! Devagarinho!
Os convidados, seguindo o exemplo do capitão, começaram igualmente a benzer-se; houve no espaço um curto esvoaçar de bonés e chapéus semelhante a um voo de pássaros
negros.
- Dai-nos a vossa bênção, Senhor!
- Para a frente, a toda... - gritou o capitão.
O enorme Ilia Muromets, com um possante suspiro, lançou sobre o cais de embarque uma espessa nuvem de vapor branco e, com um amplo movimento, como um cisne, pôs-se
em marcha contra a corrente.
- Partimos - disse com arrebatamento o conselheiro comercial Lupe Reznikov, homem alto, magro e bem-parecido. - Nem tremeu, hem! Suave como uma mulher a entrar na
dança. - Leviatan! - disse, suspirando devotamente Trofime Zubov, homem de rosto largo, bexigoso, e de costas curvadas, arquivista da Catedral e o maior usurário
da cidade. O dia estava cinzento; totalmente coberto de nuvens outonais, o céu reflectia-se na água do rio, dando-lhe
269
assim um colorido de chumbo. Rutilante sob as pinturas
frescas, o vapor, enorme mancha cintilante, vogava sobre o fundo unicolorido do rio e o fumo negro do seu sopro flutuava numa pesada nuvem. Branco, com os tambores
rosados das suas rodas, com as pás pintadas de um vermelho-vivo, fendia facilmente a água fria e atirava-a para a margem. Os vidros das vigias do casco e das janelas
da cabina cintilavam como se sorrissem, com um sorriso satisfeito e triunfante.
- Meus senhores! Honrosa assistência! - proclamou Kononov, com a cabeça descoberta, fazendo uma profunda reverência aos seus hóspedes. - Como agora já demos, por
assim dizer, a Deus o que era de Deus, permiti que os músicos dêem a César o que é de César!
E sem esperar a resposta dos convidados, com a mão em porta-voz gritou:
- Música! Toquem Sê Glorioso!
A orquestra militar colocada atrás da máquina atacou a marcha.
E Macário Brobov, director do Banco Comercial, pôs-se a trautear com agradável voz de baixo, marcando o compasso com os dedos no ventre enorme:
Sê glorioso, sê glorioso, tu nosso czar, tra-ta-ta, Bum!
- Senhores, para a mesa, peço-lhes! Sentem-se ao acaso... - convidava Kononov chocando-se com o grupo compacto dos hóspedes.
Eram cerca de trinta, todos pessoas sólidas, a flor do comércio local. Os mais velhos, carecas ou de cabelos brancos, estavam vestidos com sobrecasacas à moda antiga,
com a cabeça coberta com bonés e calçados com botas. Mas eram pouco numerosos: os gibões, as jaquetas e as botinas à moda ganhavam em número. Todos se comprimiam
à frente e, cedendo uns após outros aos pedidos de Kononov, dirigiam-se para a popa, onde estavam dispostas mesas guarnecidas de hors-d'oeuvre. Lupe Reznikov caminhava
de braço dado com Jacob Maiakine e, inclinando-se para ele, cochichava-lhe qualquer coisa ao ouvido; o outro escutava e sorria com finura. Tomás, que o padrinho
tinha levado à cerimónia após longas exortações, não tinha encontrado companheiro no meio daquelas pessoas que lhe desagradavam e mantinha-se obstinadamente afastado,
aborrecido e pálido. Nos dois últimos dias, em companhia de lejov, tinha bebido muito e agora sentia a dor de cabeça característica da ressaca. Sentia-se acanhado
nessa sociedade de pessoas
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sérias, o zumbir das vozes, o ruído da música, o rumor do barco, tudo isso o exasperava.
Sentia a imperiosa necessidade de se libertar da sua dor de cabeça e atormentava-o o facto de querer adivinhar a razão que levava o seu padrinho a ser tão amável
com ele, hoje, a razão por que o tinha trazido aqui, para a companhia dos maiorais do comércio da cidade; por que motivo tinha insistido tanto e mesmo suplicado
que ele viesse ao serviço religioso e ao banquete dado por Kononov.
Tendo chegado ao barco durante o serviço, Tomás tinha-se mantido de lado e assistido a toda a cerimónia atrás dos comerciantes.
Todos observavam um silêncio devoto: as caras expressavam uma concentração piedosa; rezavam com um fervor zeloso, suspirando profundamente, inclinando-se até ao
chão, erguendo os olhos emocionados para o céu. Tomás olhava ora um ora outro e recordava o que sabia deles.
Lupe Reznikov, por exemplo, tinha começado a sua carreira como gerente de uma casa de tolerância e tinha enriquecido de repente. Dizia-se que tinha estrangulado
um dos seus clientes, um rico siberiano. Zubov, na sua mocidade, tinha-se ocupado com a compra de fio aos aldeãos. Tinha falido duas vezes... Kononov, vinte anos
antes, tinha respondido em Tribunal como incendiário e ainda agora tinha problemas com a justiça por desvio de menores; ao mesmo tempo que ele, e com a mesma acusação,
agravada por reincidência, era citado no processo Zakar Kirilov; era um armazenista, baixo, de rosto arredondado e de olhos azuis-claros... Entre aqueles homens
não havia quase nenhum acerca do qual Tomás não conhecesse alguma coisa de criminoso.
Sabia que todos invejavam o sucesso de Kononov, que aumentava todos os anos o número dos seus barcos. Muitos deles estavam de relações cortadas, todos eram reciprocamente
impiedosos na luta comercial, todos conheciam as más e desonestas acções dos outros... Mas, reunidos ali em torno do feliz triunfante Kononov, fusionavam-se numa
massa compacta e sombria, e, de pé, cercados por algo de firme embora invisível, de algo que respiravam como um só homem, silenciosos e recolhidos, de algo que repudiava
Tomás para longe deles e lhe inspirava timidez.
"Que corja de impostores!" pensava, recobrando alento.
Eles tossiam suavemente, suspiravam, benziam-se, inclinavam-se, rodeavam o clero com um muro compacto,
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erguiam-se inabaláveis e firmes como outras tantas pedras
negras.
"Como eles representam a comédia!" exclamava para si próprio Tomás. De pé, a seu lado, Pavline Gustchine, corcunda e empenado, que tinha, não havia muito tempo,
lançado à rua os filhos de um irmão meio louco, olhando o céu escuro com o seu único olho, cochichava com ar convencido:
- Senhor! Que a tua fúria não caia sobre mim e a tua cólera não me castigue...
E Tomás sentia que esse homem invocava Deus com uma profunda e inabalável fé na Sua Misericórdia.
- Senhor, Deus dos nossos pais, que ensinaste Noé, o teu escravo, a construir uma arca para a salvação do mundo - dizia o padre com voz espessa, levantando os olhos
para o céu Q o braço para o ar - vela por este barco e dá-lhe também um anjo da guarda de bondade e de paz... Protege os que nele navegarão...
Toda a classe comercial, unanimemente, com largo esvoaçar dos braços traçou no peito o sinal da cruz, e em todas as caras se pintou um único sentimento: a fé no
poder das preces.
Tudo isso se gravava no espírito de Tomás, e ele não sabia o que pensar perante pessoas que, capazes de crerem tão firmemente na bondade divina, eram tão cruéis
para com o homem.
A sua dignidade solene, a sua confiança unânime em si mesmos, os seus rostos triunfantes, os seus risos enraiveciam Tomás. Já estavam sentados à volta das mesas
cheias de hors-d'oeuvres e admiravam glutonamente um enorme esturjão, artisticamente rodeado de verduras e de grandes lagostins. Trofime Zubov, apertando o guardanapo,
olhava o monstruoso peixe com olhos alegres e enrugados de prazer e dizia ao seu vizinho, o moageiro Jonas luchkov:
- Olha para aquilo, Jonas Nikiforitch! Uma baleia! Dava um belo estojo para a tua medida... hem? Enfiavas-te ali como uma perna na sua bota... hem? He! He! He!
O pequeno e obeso Jonas estendia a mão, com cuidado, para uma saladeira de prata cheia de caviar fresco, fazia estalar os lábios avidamente e olhava de esguelha
as garrafas colocadas diante dele e que temia fazer cair.
Em frente de Kononov imperava, em cima de um cavalete, um pequeno barril de vodka velho que tinha mandado vir da Polónia; uma vasca enorme com guarnições de prata
continha ostras e, dominando todos os petiscos, erguia-se um patê multicolor em forma de torre.
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- Meus senhores, por favor, não façam cerimónia, sirvam-se! - gritava Kononov. Eu servi tudo ao mesmo tempo, cada um pegue no que gosta... A nossa cozinha russa,
natal, e a cozinha estrangeira... tudo de uma vez! É melhor assim... Que cada um se sirva! Quem quer caracóis, ou destes pequenos lagostins, hem? Dizem que vêm das
índias...
Entretanto Zubov dizia ao seu vizinho Maiakine:
- A oração "Por um barco" não é própria para um rebocador fluvial, não é porque não convenha, mas só por si não é suficiente. Um vapor fluvial, domicílio de uma
equipagem, deve ser comparado com uma casa... Que bebes enquanto se espera?
- Não gosto muito de vinho, serve-me dois dedos de vodka de cominho - respondeu Jacob Tarassovitch.
Tomás, sentado na ponta da mesa, misturado com pessoas mais tímidas e modestas, sentia a cada momento os olhares do velho pesarem sobre ele.
- Meus amigos - dizia com voz incrivelmente rouca o armador lachtsurov. - Sem arenques não posso comer. Começo obrigatoriamente pelos arenques... sou assim!
- Música! A marcha persa...
- Isso não. Se ele é glorioso, é melhor...
- Muito bem. Se ele é glorioso.
O arquejar das máquinas e o rumor das rodas de pás, confundidos com os acordes da fanfarra, compunham algo de análogo à canção selvagem das borrascas invernais.
O assobio da flauta, o canto nítido dos clarinetes, o mugido irritado do contrabaixo, o martelar do tamboril e a trovoada da caixa de rufo, tudo isso caía no ruído
monótono e surdo das rodas que batiam a água, lançava-se em turbilhões no espaço, cobria o clamor das vozes humanas e precipitava-se para a popa do barco rolando
como um furacão, obrigando as pessoas a gritarem a plenos pulmões. Por momentos o chiar raivoso do vapor aparecia no concerto geral, e nesse ruído que surgia repentinamente
no caos de uivos, de rumores e de gritos havia algo de exasperado e de desprezo...
- E porque não honraste o meu saque? Nunca esquecerei isso até ao túmulo! - gritava alguém com voz frenética.
- Basta! Não é o momento de se discutirem contas!
- troava a voz de baixo de Bobrov.
- Amigos, é preciso que alguém discurse.
- Chut! A música!
- Vai ter comigo ao Banco. Explicar-te-ei porque a não honrei...
- Um discurso. Silêncio...
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- Parem a música.
- Pelos prados...
- Madame Angot...
Nada disso. Fale Jacob Tarassovitch.
- Aquilo chama-se um patê de Estrasburgo.
- Fale... Fale...
- Um patê? Não se parece com... bem, mas apesar de tudo vou prová-lo.
- Tarassitch! Força!
- Meus amigos, que ímpeto! Caramba!
- E na Bela Helena, meu caro, ela aparecia quase completamente nua... - ouviu-se dizer de repente no meio da confusão a voz fina e emocionada de Robustov.
- Esperem! Jacob enrolou Esaú, hem? Ah! Ah!
- Tarassovitch, aguenta firme.
- Silêncio, meus senhores! Jacob Tarassovitch vai dizer-nos uma palavra.
E, precisamente no momento em que as vozes se calaram, ouviu-se uma voz forte indignada:
- Oh! Como ela me vai beliscar, a malandra!
E Bobrov perguntou com o seu tom baixo sonoro:
- E beliscar onde?
Houve uma tempestade de gargalhadas mas que se apaziguou depressa, porque Jacob Tarassovitch Maiakine, que se tinha levantado, tossia e, acariciando a calva craniana,
examinava os circunstantes com um olhar grave que reclamava a atenção.
- Vá amigos, abram os ouvidos - reclamava Kononov, satisfeito.
- Senhores comerciantes - começou Maiakine com um sorriso. - Nos discursos das pessoas instruídas e sabedoras encontra-se uma palavra estrangeira, a palavra "cultura".
É a respeito dela que me proponho discretear um pouco diante de vós, com toda a simplicidade...
- Silêncio!...
- Senhores! - prosseguiu Maiakine elevando a voz. - Nos jornais escreve-se a cada passo a nosso respeito e conclui-se que, ao que parece, essa cultura nós não a
conhecemos, não a desejamos e não a compreendemos, E apelidam-nos de selvagens... Que é isso, a cultura? Para mim, um velho, é ofensivo ouvir tais considerações
e, um dia, entreguei-me à análise desse termo para lhe precisar o conteúdo.
Maiakine fez uma pausa, percorreu o auditório com os olhos e, com um sorriso de triunfo, prosseguiu destacando as palavras:
- Resultou, segundo as minhas pesquisas, que essa palavra significa adoração, amor, amor nobre pelo trabalho
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e pela ordem. É isso, disse eu a mim próprio, é isso mesmo! A palavra quer dizer que o homem culto será aquele que ama o trabalho e a ordem... que, de um modo geral,
gosta de organizar a vida, gosta de viver, sabe apreciar-se a si mesmo e sabe apreciar a vida... bom!
Jacob Tarassovitch estremeceu, as rugas das faces dividiram-se em raios que, partindo dos olhos sorridentes, se dirigiam para os lábios; todo o crânio careca se
assemelhava agora a alguma obscura estrela.
Os comerciantes fixavam as expressões imobilizadas na atitude em que o discurso de Maiakine os tinha encontrado.
- Mas se é assim-e é precisamente assim que é necessário entender essa palavra - se é assim, então os que nos tratam de seres sem cultura e de selvagens, vomitam
injúrias em cima de nós. Porque eles limitam-se a amar essa palavra e não o seu sentido, ao passo que nós amamos a própria raiz da palavra, a moela autêntica; nós,
amamo-la de facto. Somos nós que possuímos em nós próprios um verdadeiro culto à vida, que entregamos à vida a nossa adoração, e não eles. Eles apreciam discutir,
nós gostamos de agir... E eis aqui, senhores comerciantes, um exemplo da nossa cultura, do nosso amor pelo trabalho: o Volga! Ei-lo, o nosso paizinho! Ele pode,
com cada gota da sua água, afirmar a nossa honra, refutar as injúrias com que nos cobrem. Apenas decorreram cem anos, meus senhores, depois que Pedro, o Grande,
lançou veleiros neste rio; e hoje milhares de barcos a vapor circulam nele... Quem os construiu? O mujique russo, um homem completamente ignorante. Todos esses vapores
enormes, todos esses lanchões, de quem são? Nossos! Quem teve a ideia? Nós! Aqui tudo é nosso, aqui tudo é o fruto do nosso espírito, da nossa genica russa e do
nosso grande amor ao trabalho! Ninguém nos ajudou no que quer que fosse. Sozinhos acabámos com a pirataria e pusemos a trabalhar no Volga, ao longo de milhares de
verstas, milhares de vapores e de barcos de toda a espécie. Qual é a mais bela cidade do Volga? Aquela em que há mais comerciantes! A quem pertencem as mais bonitas
casas da cidade? Aos comerciantes! Quem protege e se preocupa mais com os pobres? O comerciante! Ele economiza cêntimo a cêntimo e dá centenas de milhares de rublos.
Quem edificou os santuários? Nós! Quem dá mais dinheiro ao Estado? Os comerciantes... Meus senhores, somos os únicos a estimar o trabalho em si mesmo, em virtude
do nosso amor pela organização da vida, somos os únicos a amar a ordem e a vida. E aquele que fala de nós, esse diz... - aqui acrescentou com sabor
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uma palavra obscena -e nada mais. Seja! Quando o vento sopra os salgueiros fazem barulho, se o vento pára eles calam-se. Mas com o salgueiro não se fazem vassouras
nem andaimes. É uma árvore inútil. E é o que é inútil que faz barulho... Que fizeram eles, os nossos críticos, em que é que embelezaram a vida? Não conseguimos saber.
No entanto a nossa obra é tangível. Senhores comerciantes: é por ver em vós os maiores homens da vida, os maiores trabalhadores e os mais apaixonados pelo trabalho,
é vendo em vós os homens que têm feito tudo e são capazes de fazer tudo, é nesse espírito, que de todo o coração, com o respeito e a amizade que vos consagro, ergo
a minha taça à saúde da magnífica corajosa, laboriosa classe comercial russa... Longa vida a todos! Que vivam na glória da nossa mãe-Rússia. Hurra-ai O grito cortante
e violento de Maiakine provocou um rugido ensurdecedor, entusiasta da parte dos negociantes. Todos esses corpos carnudos, excitados pelo vinho e pelo discurso do
velho, moveram-se e expulsaram do peito um clamor tão unânime, tão maciço que tudo à sua volta parecia tremer e fremir.
- Jacob, tu és a trombeta de Deus! - gritava Zubov, estendendo a sua taça a Maiakine. Voltando as cadeiras e chocando contra a mesa, o que fez tilintar e cair louças
e garrafas, os comerciantes agitavam-se à volta de Maiakine, de taças na mão, arrebatados, felizes, alguns com lágrimas nos olhos.
- Hem! Isto é que é falar! - admirava Kononov, agarrando o ombro de Robustov e sacudindo-o. - Mete isso na cabeça, é um grande discurso.
- Jacob, deixa-me abraçar-te!
- Maiakine, em triunfo!
- Música!...
- A fanfarra! A marcha persa!...
- Não é preciso música! A música que vá para o Diabo!
- Aí está a música! Eh! Maiakine!
- Nós não temos grande coisa, nós... mas temos espírito...
- Estás a mentir, Trofime.
- Jacob, que pena que não possas durar sempre! É uma pena... não há palavras para o dizer.
- Mas que funerais nós lhe faremos!
- Meus senhores, coloquemos um capital em nome de Maiakine! Subscrevo mil rublos.
- Silêncio! Calma!
- Meus senhores! - recomeçou Maiakine, retomando a palavra cheio de vibração. - E se nós estamos na
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primeira fila da vida, se somos verdadeiros donos da nossa pátria, ainda é porque somos mujiques.
- Isso é verdade!
- Perfeitamente! Santa Virgem! Continua!
- Deixa-o falar...
- Somos russos integrais, e tudo o que sai de nós é integralmente russo. O que quer dizer que é o mais autêntico, o mais útil, o mais indispensável...
- É verdade como dois e dois serem quatro...
- Evidentemente!
- Ele tem a sabedoria da serpente!
- E o encanto de...
- Do abutre! Ah! Ah! Ah!
Os comerciantes formavam um círculo compacto em torno do seu orador, olhavam-no com olhos brilhantes e por efeito da sua emoção, já não eram capazes de lhe ouvir
o discurso. À volta dele elevava-se um rumor de vozes que, misturado com o ruído das máquinas e das pás das rodas na água, formava um turbilhão de barulho e abafava
a voz do velho. Alguém, no seu entusiasmo, guinchava:
- É preciso dançar! Uma dança russa!
- Fomos nós que fizemos tudo isso - gritava Jacob Tarassovitch apontando o rio. Tudo é nosso! Nós construímos a vida...
Subitamente explodiu uma voz sonora que cobriu todos os ruídos:
- Ah! Foram vocês? Vocês são...
E uma injúria trivial ressoou. Todos a ouviram ao mesmo tempo e ficaram um segundo mudos, procurando com os olhos quem os insultava. Durante esse segundo só se ouviram
os pesados suspiros da máquina e o ranger das cadeias do leme...
- Quem é que está a ladrar? - perguntou Kononov, com os sobrolhos franzidos.
- Então! Já não se podem segurar? - proferiu Reznikov com um suspiro aflito.
Os rostos dos comerciantes reflectiam a inquietação, a curiosidade, o espanto, a reprovação, e todos ficaram estupidamente interditos. Só Jacob Tarassovitch estava
calmo e parecia mesmo satisfeito com o incidente. Erguendo-se nas pontas dos pés, alongando o pescoço, olhava algures na ponta da mesa, e os seus pequenos olhos
brilhavam estranhamente como se vissem um espectáculo que lhe agradasse.
-Gordeiev... - fez suavemente Jonas luchkov.
E todas as cabeças se voltaram para o sítio que atraía o olhar de Maiakine.
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Ali, apoiando as mãos na mesa, erguia-se Tomás. Mostrando os dentes, passeava sobre os comerciantes olhos ardentes, muito abertos. O lábio inferior tremia, os ombros
estremeciam e os dedos, fortemente enclavinhados na beira da mesa, arranhavam convulsivamente a toalha. À vista desse rosto mau como o de um lobo e dessa atitude
de furor, os comerciantes calaram-se novamente durante um segundo.
- Têm alguma coisa que estarem para aí de olhos esbogalhados, seus... - e de novo Tomás acompanhou a pergunta com uma vigorosa injúria.
- Está bêbedo! - comentou Bobrov abanando a cabeça.
- Também, porque o convidaram? - cochichou Reznikov.
- Tomás Ignatitch! - começou pausadamente Kononov. - Nada de escândalos... Se a cabeça te está a andar à roda... então, meu velho... vai calmamente até à cabina
e deita-te. Deita-te, meu caro, e...
-Cala a boca! - rugiu Tomás detendo os olhos nele.
- Não te atrevas a dirigir-me a palavra. Eu não estou bêbedo. Fui a pessoa que bebeu menos, aqui. Percebeste?
- Mas diz-me cá, quem te convidou? - interrogou Kononov, corando sob a afronta.
- Fui eu que o trouxe - ouviu-se dizer a voz de Maiakine.
- Ah! Então, evidentemente!... Desculpe-me, Tomás Ignatitch... Mas Jacob se foste tu que o trouxeste, és tu que o deves acalmar... Senão, vai ser o diabo...
Tomás calava-se e sorria. Os outros também se calavam.
- Então, Tomás! - começou Maiakine. - Tu desonras uma vez mais a minha velhice...
- Caro padrinho, - disse Tomás mostrando os dentes- eu ainda não fiz nada, portanto é muito cedo para me pregar sermões. Não estou embriagado: não bebi, pelo contrário,
ouvi tudo o que disse... Senhores comerciantes! Permitam que lhes faça um discurso. O meu padrinho, que vocês estimam, acaba de falar... agora ouçam o afilhado...
- É bem o momento para discursos! - disse Reznikov. - Para que servem as palavras? Viemos para nos divertir...
- Não vale a pena, Tomás Ignatitch! Pára...
- Fazias melhor se bebesses um copo.
- Vamos lá, toca a beber... Ah! Tomás... tu és bem o filho do teu pai.
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Tomás afastou-se da mesa, endireitou-se e, sempre a sorrir, ouvia as considerações amáveis e as exortações que lhe dirigiam. Entre aquela gente ele era o mais jovem
e o mais belo. A sua figura esbelta, apertada na sobrecasaca, destacava-se vantajosamente naquela massa de corpos adiposos e ventrudos. O rosto bronzeado, de grandes
olhos, era mais regular e mais fresco do que todas aquelas fuças avermelhadas e flácidas. Inchou o peito e. desabotoando a sobrecasaca, mergulhou as mãos nos bolsos.
- Não é com adulações nem com palavras doces que vocês me calarão o bico, agora - disse ele em tom firme e ameaçador. - Quer me escutem quer não, eu falarei. Aqui
não há processo de me expulsarem...
Sacudiu a cabeça e, endireitando os ombros, declarou calmamente:
- Mas se alguém me toca, mato-o. Juro-o perante Deus: matarei quantos puder.
A multidão diante dele oscilou como canas ao vento. Um murmúrio inquieto elevou-se. O rosto de Tomás tornou-se mais sombrio, os olhos arregalaram-se...
- Portanto, foi aqui dito que foram vocês que fizeram a vida... que fizeram o que ela tem de mais autêntico e mais verdadeiro...
Suspirou profundamente e com um ódio indizível pesquisou com o olhar os rostos dos seus ouvintes que pareceram de repente estranhamente inchados como se os tivessem
enchido de ar... Calavam-se, cada um deles apertava-se mais contra o vizinho. Nas últimas filas alguém gaguejou:
- Está a falar de quê? Hem? Fala pelos Evangelhos ou está a inventar o que diz?
- Ah, canalhas! - exclamou Gordeiev, abanando a cabeça. - Que fizeram vocês? O que fizeram não é a vida, é uma prisão... Vocês não instauraram a ordem, vocês forjaram
cadeias com que agrilhoaram o homem... Abafa-se, estamos metidos numa rede, uma alma viva não tem possibilidade de se mexer... O homem arruína-se... Vocês são assassinos...
Acaso compreendem que é só à paciência dos homens que vocês devem o facto de se manterem com vida?
- Que quer dizer isto? - exclamou Reznikov, batendo as mãos sob o império da indignação e da cólera. Não posso ouvir discursos destes.
- Gordeiev! - exclamou Bobrov. - Tem cuidado. O que estás a dizer é muito grave...
- Discursos destes! Ora, ora! - disse Zubov com ar entendido.
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Calem-se! - rugiu Tomás, com os olhos a injectarem-se-lhe de sangue. - Parem de roncar...
Meus senhores! - disse Maiakine num tom calmo
e sinistro: a voz soava como o ranger de uma lima sobre o ferro. - Peço-lhes humildemente: não o contradigam! Deixem-no ladrar, deixem-no divertir-se. As palavras
dele não nos poderão despedaçar...
- Ah, não, muito obrigado! - gritou luchkov. Entretanto Smoline, de pé, ao lado de Tomás, cochichou-lhe ao ouvido:
- Basta, meu velho! Que tens tu, estás a ficar maluco?
- Desaparece! - respondeu Tomás com firmeza, olhando-o com olhos brilhantes de cólera. - Vai ver Maiakine, lambe-lhe as botas, talvez ele te lance uns restos...
Smoline assobiou entre dentes e afastou-se. E os comerciantes começaram a dispersar, indo uns para ali outros para acolá, o que aumentou a exasperação de Tomás;
ele teria querido fixá-los no lugar e não encontrava palavras bastante fortes para isso.
- Vocês fizeram a vida? - gritou. - Quem são vocês? Vocês são bandidos, são ladrões...
Alguns voltaram-se para Tomás como se este os tivesse chamado.
- Kononov! Falta muito para o julgamento a respeito da rapariguinha? Vais ser condenado às galés. Adeus, Ilia! Não te vale a pena construíres barcos... Irás para
a Sibéria por conta do Estado!
Kononov abateu-se sobre uma cadeira; uma onda de sangue subiu-lhe às faces e sem dizer nada fez uma ameaça com o punho. Depois disse com voz rouca:
- Muito bem... Lembrar-me-ei disso...
Tomás viu-lhe o rosto desfigurado, os lábios trémulos, e compreendeu com que arma, mais potente que as outras, ia atacar as pessoas.
- Construtores da vida! Gustchine, fizeste a esmola aos teus sobrinhos? Dá-lhes alguma coisa, quando mais não seja um copeque por dia... roubaste-lhes bastante...
Bobrov! Porque é que mentiste a respeito da tua amante, dizendo que te tinha roubado e a fizeste meter na cadeia? Se ela te aborrecia bastava que a desses ao teu
filho... De resto não tem importância, agora ele mete-se com a tua nova... Não sabias?... Ora, ora, grande porco... E tu, Lupe, abre outra casa de tia para depenares
novos clientes como se fossem pombos... Mais tarde será a ti que os Diabos depenarão, ah! ah! com um focinho tão
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beato é um prazer ser um malandro. Como era o nome daquele que tu mataste em tempos, hem, Lupe?
Tomás falava, entrecortando o seu discurso com gargalhadas e via que aquelas palavras tinham uma acção eficaz sobre as pessoas. Há pouco, quando se dirigia ao conjunto,
afastavam-se dele, iam-se colocar ao abrigo e olhavam de longe com o seu olhar acusador e desdenhoso. Via-lhes sorrisos nas faces, sentia nos gestos deles algo de
indiferente e compreendia que a sua linguagem, embora os enfurecesse, não os atingia tão profundamente como teria desejado. Tudo isso lhe arrefecia a cólera e começava
já a crer no insucesso do seu ataque... Mas desde que se pôs a falar de cada um em especial, operou-se na atitude do auditório uma mudança brusca e completa.
Quando Kononov se deixou cair na cadeira como que abatido sob o peso das palavras severas de Tomás, este observou sorrisos furtivos, ácidos e maldosos em alguns
rostos. Ouviu alguém que cochichava aprovador e admirado:
- Caramba, foi em cheio!
Esse cochichar deu-lhe forças e Tomás começou a lançar com segurança as suas injúrias e as suas verdades mordazes em cima daqueles que lhe caíam sob os olhos. Rugia
alegremente vendo a eficácia das suas palavras. Era ouvido em silêncio, atentamente, alguns aproximaram-se. Outros protestavam, mas esses protestos eram exclamações
discretas, curtas, e de cada vez que Tomás gritava o nome de algum, todos se calavam e ele era ouvido com uma alegria má, cada um deles espreitando a vítima desmascarada
com o canto do olho.
Bobrov soltou um riso embaraçado, mas os olhinhos trespassavam Tomás como agulhas. Lupe Reznikov, gesticulando, dava pequenos saltos e dizia, sufocado:
- São todos testemunhas!... Nunca lhe perdoarei... Irei para o Tribunal... Como se pode consentir isto?
E de súbito pôs-se a guinchar com voz ácida, com os braços estendidos para Tomás:
- Amarrem-no!... Tomás ria às gargalhadas:
- Não conseguirás amarrar a verdade, mentiroso!
- Bo-om! - disse Kononov com voz quebrada e sumida.
- Senhores comerciantes - disse Maiakine -, convido-os a aproveitarem a ideia. Estão a ver de que raça ele é!
Os comerciantes começaram-se a aproximar de Tomás, a pouco e pouco, e ele via-lhes nas caras a cólera, a
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curiosidade, um sentimento de satisfação, o temor... Uma das pessoas discretas no meio das quais ele se encontrava cochichou-lhe:
Força!... Caia-lhe em cima! Será recompensado...
Robustov! - gritava Tomás. - De que te ris? O que
é que te diverte? As galés também estão à tua espera...
- Desembarquem-no! - começou Robustov a gritar de repente, levantando-se de um salto.
Entretanto Kononov gritava ao capitão:
- Marcha atrás! Para a cidade! Para o governador... E alguém dizia com voz convicta, trémula de emoção:
- É uma conspiração... É premeditado... Ensinaram-lhe a lição... Embebedaram-no para lhe dar coragem...
- É uma sedição!
- Amarrem-no! É muito simples, amarrem-no... Tomás apanhou uma garrafa de champagne vazia e
agitou-a no ar:
- Não se mexam! Terão de me ouvir...
Louco de alegria com o espectáculo daqueles homens que faziam esgares e estremeciam sob os golpes da sua eloquência, recomeçou com ímpeto alegre a chamar nomes e
a gritar injúrias grosseiras e imediatamente o rumor de indignação diminuiu de volume. Os que não conheciam Tomás olhavam-no com uma admiração ávida, aprovadora,
alguns mesmo com uma aprovação alegre. Um deles, um velhinho com cabelos brancos, de faces rosadas e olhos de rato, voltou-se bruscamente para os comerciantes insultados
por Tomás e disse-lhes com voz suave e cantante:
- São palavras que saem do coração. Assim está muito bem. É preciso suportá-las... É uma acusação digna dos profetas... É verdade que nós somos pecadores. Sim, deve-se
confessar a verdade, somos muito...
Assobiaram-no e Zubov foi mesmo ao ponto de lhe dar um empurrão no ombro. Ele inclinou-se e... desapareceu na multidão.
- Zubov! - gritou Tomás: - Quantas pessoas reduziste a estenderem a mão à caridade? Não sonhas às vezes com Ivan Petrovitch Makinninov, que se enforcou por tua causa?
É verdade aquilo que se diz, que em cada missa tu roubas dez rublos da caixa?
Zubov não esperava o ataque e imobilizou-se no sítio onde estava, com o braço erguido. Mas depois começou a gritar com voz trémula, depois de ter bizarramente tropeçado.
- Ah! Também te atiras a mim? A mim também?
E de súbito, com as bochechas inchadas, começou a
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ameaçar Tomás furiosamente com o punho, proferindo com voz esganiçada:
- O insensato diz no seu coração: "Não há Deus!" Irei ver o bispo! Pagão! Mereces as galés!
O borborinho ia crescendo a bordo e Tomás, perante o espectáculo daqueles homens raivosos, perdidos, ultrajados tinha a impressão de ser um herói de lenda ocupado
em arrasar monstros. Agitavam-se, gesticulavam, falavam uns com os outros, uns rubros de cólera, outros pálidos, todos sem forças para deterem a torrente de sarcasmos
que se abatia sobre eles.
- Marinheiros! - gritava Reznikov, sacudindo Kononov pelo ombro. - Vamos Ilia! Convidaste-nos para nos ridicularizar?
- Em frente de um miserável, de um pobre Diabo...
- piava Zubov.
Um grupo tinha-se reunido em torno de Jacob Tarassovitch Maiakine e ouvia o que ele dizia em voz baixa sublinhando as suas expressões com acenos de cabeça raivosos.
- Jacob, faz alguma coisa! - dizia Robustov em voz alta - somos testemunhas, coragem...
- Vocês não construíram a vida, vocês fizeram dela um depósito de lixo! É um lago de esterco, uma coisa fedorenta que vocês espalharam com os vossos negócios. Vocês
têm uma consciência? Pensam em Deus? Não vale um pataco o vosso Deus. Quanto à vossa consciência, vocês expulsaram-na... Para onde a correram? Exploradores! Vocês
vivem da força dos outros... Vocês trabalham com as mãos dos outros! Quantas lágrimas de sangue fizeram verter os vossos negócios? Mesmo no Inferno, seus canalhas,
não há lugar à medida dos vossos crimes... Não é no fogo mas sim na trampa a ferver que vocês cozerão. Séculos de tortura não serão suficientes...
Tomás soltou uma gargalhada enorme e, com as mãos nas ilhargas, pôs-se a balouçar, com a cabeça atirada para trás.
Nesse instante alguns homens trocaram um rápido piscar de olhos, lançaram-se todos juntos em cima de Tomás e esmagaram-no com todo o seu peso.
Começou uma luta...
- Ele caiu! - arquejou alguém.
- Hem? Então é assim - gritou Tomás com voz rouca.
Durante meio minuto todo um cacho de corpos humanos se agitou no mesmo lugar, braços e pernas chicoteavam o ar, exclamações abafadas escapavam daquela massa.
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- Rola-o pelo chão!
- Agarra-lhe o braço... o braço! Aí...
- Pela barba?
- Não batas! Não batas!
- Pronto!...
- Ele é forte!...
Arrastaram Tomás e, tendo-o deposto ao longo da cabina do capitão, afastaram-se dele pondo um pouco de ordem nas roupas, limpando o suor da testa. Ele, esgotado
pela luta, esmagado pela vergonha da derrota, ficou mudo, rasgado, sujo, com as mãos e os pés solidamente garrotados com toalhas.
Agora era a vez dele de ser escarnecido. Zubov começou. Aproximou-se dele, deu-lhe um pontapé nas costas e com voz melosa, todo radiante do prazer da vingança, perguntou:
- Então, profeta, que dizes agora? Goza um bocado a doçura do cativeiro da Babilónia. Eh! Eh! Eh!
- Espera - disse Tomás com voz quebrada, sem o olhar. - Espera que eu me refaça... Não me ligaram a língua.
Mas Tomás compreendia que já não podia fazer nem dizer nada. E não era por o terem ligado, mas porque alguma coisa nele se tinha consumido até ao fim e porque a
sua alma estava vazia e acabrunhada... Reznikov veio-se colocar ao lado de Zubov. Depois, uns atrás dos outros, foram-se aproximando vários deles... Bobrov, Kononov
e um pequeno grupo precedido por Jacob Maiakine afastaram-se conversando em voz baixa.
O barco regressava à cidade a todo o vapor. com as vibrações as garrafas tremiam e tilintavam em cima das mesas e essa sonoridade intermitente e lamentosa era ouvida
por Tomás com mais nitidez do que todas as outras. Uma multidão de pessoas, em pé, dominava-o e dizia-lhe coisas desagradáveis e insultuosas.
Mas Tomás via-lhes os rostos como que através de uma névoa, e as palavras deles não o tocavam. Nele, do fundo da alma, erguia-se uma grande amargura; via-a crescer,
e embora ainda a não compreendesse experimentava já um sentimento de angústia e de humilhação...
- Raciocina, charlatão, no que fizeste a ti mesmo
- dizia Reznikov. - O que vai ser agora a tua vida? Ninguém te quererá sequer cuspir em cima.
"Que fiz eu?" esforçava-se Tomás por compreender. Os comerciantes cercavam-no numa massa sombria e compacta.
- Então, Tomás - dizia lastchurov - o teu papel terminou...
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- Nós te faremos pagar isso bem caro... - rosnava suavemente Zubov.
- Desliguem-me! - disse Tomás.
- Ah! não! Isso era o que tu querias...
- Chamem o meu padrinho...
Mas nesse momento apareceu o próprio Jacob Maiakine. Aproximou-se, parou diante de Tomás, examinou fixamente com olhos duros a figura estendida e soltou um profundo
suspiro:
- Então, Tomás?
- Dê ordem para que me desliguem! - implorou Tomás com voz quebrada.
- Queres recomeçar a fazer barulho? Não, deixa-te estar como estás... - respondeu o padrinho.
- Não direi mais nada, juro! Desliguem-me, tenho vergonha. Bem vê que não estou bêbedo...
- Juras que não fazes escândalo? - perguntou Maiakine.
- Oh! Meu Deus! Não, não farei... - gemeu Tomás. Desamarraram-lhe as pernas mas mantiveram as mãos como estavam. Quando se levantou olhou para toda a gente e disse
com um sorriso lamentável:
- Vocês ficaram por cima...
- E ficaremos sempre! - replicou-lhe o padrinho com fisionomia dura e sarcástica.
Tomás, curvado, as mãos ligadas nas costas, dirigiu-se para a mesa sem dizer nada, sem olhar para ninguém. Tinha-se tornado mais pequeno e mais magro. Os cabelos
despenteados caíam-lhe para a testa; o peitilho rasgado e amarrotado da camisa saía do colete e o colarinho cobria-lhe os lábios. Agitava a cabeça para fazer cair
o colarinho mas não conseguia. Então um pequeno velho de cabelos grisalhos veio até ele, endireitou o que era preciso, olhou-o nos olhos e disse sorrindo:
- É preciso ter paciência.
Agora, na presença de Maiakine, as pessoas que insultavam Tomás calavam-se, olhando o velho com ar interrogativo e curioso, esperando dele alguma coisa. Estava calmo
mas os olhos brilhavam de uma maneira um pouco inconveniente para as circunstâncias; estavam luminosos...
- Dêem-me vodka! - pediu Tomás, que se tinha sentado à mesa e apoiava nela o peito. A sua figura, quebrada em dois, tinha um aspecto lamentável e impotente. À volta
dele falava-se em voz baixa, caminhava-se como que com prudência. Não cessavam de lançar olhares, ora sobre ele ora sobre Maiakine, sentado em frente dele. O velho
não serviu imediatamente o vodka ao
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afilhado. Primeiro encarou-o fixamente, depois, sem se apressar, encheu um copo, e por fim, sem uma palavra, levou-o aos lábios de Tomás. Tomás aspirou a bebida
e
pediu:
- Quero mais!
- Basta!... - respondeu Maiakine. Imediatamente produziu-se um momento de silêncio
total para todos.
As pessoas aproximavam-se da mesa nas pontas dos pés e alongavam o pescoço para verem Tomás.
- Bem, tom, compreendes agora o que fizeste?
- perguntou Maiakine.
Falava baixo mas todos ouviram a pergunta. Tomás sacudiu a cabeça e manteve-se em silêncio.
- Ninguém te perdoará! - prosseguiu Maiakine com firmeza e erguendo a voz. - Embora todos sejamos cristãos não te podemos perdoar. Fixa bem isto.
Tomás levantou a cabeça e disse com ar pensativo:
- Mas, padrinho, não pensei em si... Não me ouviu dizer nada a seu respeito...
- Vejam! - exclamou Maiakine com um tom amargo, apontando o afilhado com um gesto. - Vejam isto!
Um murmúrio de protestos abafados elevou-se.
- Além disso, que importa? - prosseguiu Tomás suspirando. - De todas as maneiras não serviu para nada.
E de novo se curvou para cima da mesa.
- Que querias tu? - perguntou o padrinho severamente.
- O que eu queria? (Tomás levantou a cabeça, olhou os comerciantes e riu.) Eu queria...
- Bêbedo! Canalha!
- Não estou bêbedo! - retorquiu Tomás rabugento.
- Bebi dois copos ao todo... Estou absolutamente lúcido...
- Portanto - disse Bobrov - és tu quem tinha razão, Jacob Tarassovitch; ele não tem o juízo todo.
- Eu? - exclamou Tomás.
Mas não lhe prestaram atenção. Reznikov, Zubov e Bobrov inclinaram-se para Maiakine e começaram a falar-lhe em voz baixa.
Tomás só apanhou uma palavra: "Tutela".
- Estou no uso da razão! - disse ele endireitando-se apoiado ao espaldar da cadeira e olhando os comerciantes com olhos perturbados. - Compreendo o que queria: queria
dizer a verdade... Queria-vos desmascarar...
A emoção apoderou-se dele novamente e de repente sacudiu as mãos tentando libertar-se.
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- Eh! Eh! Um momento! - exclamou Bobrov agarrando-lhe o ombro. - Segurem-no!
- Muito bem, segurem-me! - disse Tomás tristemente amargo. - Segurem-me...
- Deixa-te estar sossegado! - gritou duramente o padrinho.
Tomás calou-se. Tudo o que tinha feito não tinha conduzido a nada, as suas palavras não tinham abalado os comerciantes. Estavam ali, a cercá-lo com a sua multidão
compacta, e ele nada podia ver por causa deles. Estavam à sua volta, calmos e firmes, vigiando-o como um exaltado, e tramavam qualquer coisa contra ele. Sentia-se
esmagado por essa massa sombria de pessoas espertas e saciadas. Aos seus próprios olhos parecia agora um estranho que não compreendia o que tinha feito às pessoas
nem porque o tinha feito. Mais do que isso, sentia algo de humilhante, de análogo à vergonha que se tem de si mesmo. Sentia a garganta irritada. No peito, o coração,
como se estivesse coberto de poeira, batia pesadamente e irregularmente. Lentamente, reflectindo, repetia sem olhar para ninguém:
- Eu queria dizer a verdade...
- Imbecil! - disse Maiakine com desprezo - Que verdade podes tu dizer? Que compreendes tu?
- O meu coração não podia sofrer mais. Não, eu sentia que era verdade!
Alguém disse:
- Pelo que ele afirma, vê-se bem que tem o espírito perturbado...
- Não é dado a qualquer pessoa dizer a verdade
- enunciou Jacob Tarassovitch com um tom austero e doutoral, a mão erguida para o céu. - Sentias... boa piada! A vaca também sente qualquer coisa quando lhe quebram
o rabo. O que é necessário é compreender. Compreende mesmo o teu inimigo... Quando tiveres adivinhado em que é que ele sonha, então poderás atacar!
Como habitualmente, Maiakine deixava-se arrastar pela exposição da sua filosofia, mas compreendendo a tempo que se não ensina ao vencido a maneira de combater, deteve-se.
Tomás olhou-o com ar ausente e pôs-se a sacudir a cabeça bizarramente...
- Deixem-me em paz! - implorou ele tristemente. Ganharam, que mais querem?
Todos prestavam atenção às frases que ele pronunciava e, nessa atenção, havia algo de hostil, de sinistro...
- Vivi - dizia Tomás com voz abafada. - olhei... formou-se um abcesso no meu coração. E de repente o
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abcesso rebentou... Agora estou completamente esgotado! É como se todo o meu sangue se tivesse escapado...
Falava com voz monocórdica, incolor, e a sua maneira de falar parecia-se com o delírio...
Jacob Tarassovitch pôs-se a rir.
- O quê? Pensavas suprimir uma montanha com um arremesso de língua? Tinhas acumulado raiva suficiente para esmagar uma pulga e partiste ao assalto de um urso! Inocente!
Se o teu pai te visse...
- Mesmo assim - disse subitamente Tomás com voz forte e firme, com os olhos a chamejarem de novo.
- Mesmo assim são vocês os culpados de tudo. Vocês estragaram a vida. Deram cabo de tudo... É por vossa causa que se abafa... por vossa causa! E se as verdades que
digo não têm força contra vocês, nem por isso deixam de ser verdades. Vocês são danados! Sede malditos, todos...
Torcia-se na cadeira, tentando libertar as mãos e pôs-se a gritar, com os olhos ferozmente brilhantes:
- Desliguem-me as mãos!
Cercaram-no mais apertadamente, o rosto dos comerciantes fez-se mais severo e Reznikov disse-lhe gravemente:
- Não faças barulho, nem escândalo. Daqui a pouco chegaremos à cidade... Não te cubras de vergonha e não nos envergonhes também... De qualquer maneira não deixarás
de ir direito do cais para a casa de doidos.
- Ah! - exclamou Tomás. - Então é isso, vocês metem-me na casa de doidos!
Não lhe responderam. Olhou para eles e baixou a cabeça.
- Se estiveres sossegado, desamarramos-te - disse alguém.
- Não é preciso! - articulou Tomás suavemente. É-me indiferente.
E as suas frases tomaram de novo um carácter delirante.
- Eu sei que estou perdido... Isso não é motivado pela vossa força... é motivado pela minha fraqueza... Vocês também são vermes aos olhos de Deus... Paciência...
Vocês rebentarão, disso não tenham dúvidas... Eu caí porque sou cego... Vi muitas coisas e fiquei cego... Como a coruja... Recordo-me de quando era pequeno... perseguia
uma coruja numa ravina... ela voava e batia contra tudo... O sol tinha-a cegado... A força de pancadas acabou por cair, esgotada... O meu pai disse-me: "Acontece
o mesmo ao homem. Alguns agitam-se perdidamente, esgotam-se a levar pancadas, torturam-se
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e precipitam-se onde calha na esperança de um pouco de repouso." Oh! Desliguem-me as mãos...
O rosto empalideceu, os olhos fecharam-se, os ombros começaram a tremer. com as roupas rasgadas, oscilou na cadeira, batendo com o peito na beira da mesa, e pôs-se
a murmurar não se sabia o quê.
Os comerciantes trocavam entre si olhares carregados de sentido. Alguns acotovelavam-se, designando Tomás com um mudo aceno de cabeça. O rosto de Jacob Maiakine
estava imóvel e sombrio, dir-se-ia talhado de pedra.
- Podem-se desamarrar as mãos? - disse Bobrov.
- Não, não se deve fazer isso - disse Maiakine em voz baixa. - Deixemo-lo aqui... Alguém irá buscar um carro... e leválo-á para o hospital...
Afastou-se depois de ter murmurado:
- Tenham cuidado!... Tenho medo que ele se atire à água...
- O rapaz mete pena! - disse Bobrov, seguindo Maiakine com os olhos.
- Não é culpa de ninguém, se ele é doido - respondeu Reznikov, teimoso.
- Para o Jacob... - cochichou Bobrov abanando a cabeça na direcção de Maiakine.
- O quê, o Jacob? Ele não perde nada...
- Claro... Agora, é ele que vai ser o tutor!
Os risos abafados e os murmúrios daquela gente misturavam-se com o arfar do motor e certamente não chegavam ao ouvido de Tomás. Ele olhava para a frente, sem se
mexer. com um olhar vazio, só os lábios estremeciam imperceptivelmente...
- O filho voltou...
- Eu conheço-o - disse lastchurov. - Encontrei-o em Perm...
- Que género de tipo é?
- Prático. Montou um grande negócio em Ussolié.
- Por consequência, o Jacob não tem necessidade deste... Caramba... Aí está a chave desta história.
- Olha, está a chorar.
- Oh!
Tomás estava apoiado ao espaldar da cadeira, a cabeça inclinada para o ombro. Os olhos estavam fechados e as lágrimas rolavam das pestanas, uma após outra... Os
lábios tremiam espasmodicamente, as lágrimas caíam dos bigodes para o peito. Mantinha-se silencioso, não mexia, só o peito se erguia pesadamente a um ritmo desigual.
Os comerciantes olhavam aquele rosto pálido, dolorosamente cavado, molhado de lágrimas, as comissuras
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dos lábios descidas, e devagar, sem dizerem nada, afastaram-se dele...
Tomás ficou só, as mãos ligadas atrás das costas, diante da mesa coberta de louça suja e de toda a espécie de restos do festim.
De vez em quando erguia as pálpebras pesadas e tumefactas, e os olhos, através das lágrimas, olhavam com ar apagado e desolado a mesa onde tudo estava voltado e
partido...
Passaram três anos.
Um ano antes Jacob Tarassovitch Maiakine tinha morrido. Morrendo consciente, manteve-se igual a si mesmo, e algumas horas antes da sua morte dizia ao filho, e ao
genro:
- Vamos meus filhos, vivam ricamente. Jacob comeu todas as suas lentilhas, por outras palavras, é tempo de Jacob se ir embora... Vejam, morro, mas não me sinto abatido...
E o Senhor terá isso em conta... Não pus à prova a sua divina bondade senão com futilidades, nunca com gemidos e lamentos. Meu Deus! Sou feliz por ter sabido viver,
graças à Tua bondade! Adeus, meus filhos... Vivam em boa harmonia... não filosofem demasiado. Fixem isto: não é santo aquele que se esconde do pecado e se mantém
tranquilamente deitado... Não é pela covardia que nos garantimos contra o pecado - a parábola dos talentos é clara... Mas aquele que quer descobrir o sentido da
vida, esse não teme o pecado... O Senhor perdoar-lhe-á os seus erros... O Senhor deu por missão ao homem organizar a sua vida... mas não lhe deu muita inteligência;
por consequência não lhe pedirá contas com severidade!... Porque Ele é santo e misericordioso.
Morreu após uma curta mas dolorosa agonia.
Pouco depois do incidente a bordo do vapor, lejov tinha sido banido da cidade.
Nesta tinha-se edificado uma nova e importante casa comercial sob o nome de "Taras Maiakine e Afrikane Smoline".
Durante esses três anos não se ouviu falar de Tomás. Dizia-se que depois de ter saído do hospital, Maiakine o enviara algures no Ural, para os parentes da mãe.
Depois disso Tomás reapareceu nas ruas da cidade. Parece gasto, quebrado, semilouco. Quase sempre ébrio, é visto ora triste, ora sorridente com o sorriso lamentável
e melancólico dos simples de espírito. Às vezes faz
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escândalo, mas isso é raro. Vive em casa de uma irmã de caridade, no pátio, num pequeno pavilhão.
As pessoas que o conhecem, comerciantes e citadinos, zombam dele frequentemente. Quando Tomás caminha pela rua, ouve subitamente alguém gritar-lhe:
- He!, profeta, anda cá!
Aproxima-se raramente de quem o chama, evita as pessoas e não gosta de lhes falar. Mas se se aproxima, dizem-lhe:
He! He! He! Profe-eta! Diz-nos cá, como é que vai ser o fim do mundo?
Máximo Gorki
O melhor da literatura para todos os gostos e idades