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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


TORMENTA SILENCIOSA / Amanda Stevens
TORMENTA SILENCIOSA / Amanda Stevens

 

 

                                                                                                                                   

  

 

 

 

 

Conseguiria Marly trabalhar lado a lado com o lindíssimo Deacon?

Ele era o tipo de homem que uma moça como Marly Jessop jamais tinha visto. Deacon Cage chegou ao Mission Creek, Texas, como uma espécie de espectro, furtivo e silencioso… E com a habilidade de inquietar Marly como ninguém tinha feito antes.

Mas ela não tinha tempo para fantasias femininas. Como ajudante do xerife, Marly estava muito ocupada com a investigação de uns misteriosos suicídios. Haveria alguma relação entre eles e o assassino que Deacon estava procurando?

 

 

 

 

                                                               Capítulo 1

A chuva era incessante. Um firme e constante garoar. Refugiada no alpendre de uma desconjuntada moradia nos subúrbios de Mission Creek, Marly Jessop escrutinava o céu cinza com crescente inquietação.

Os meteorologistas falavam da primavera mais úmida do sul do Texas dos últimos cinqüenta anos e atribuíam aquelas incomuns precipitações ao El Niño, um produto do aquecimento do planeta. Mas para Marly não importavam muito os argumentos científicos. A única coisa que ela sabia era que aquele clima tão deprimente estava começando a lhe pôr os nervos de ponta.

O clima… e também os suicídios.

Três mortes em uma semana eram motivo de alarme em qualquer comunidade, mas em uma população do tamanho de Mission Creek, de uns dezoito mil habitantes, resultavam horripilantes.

Marly secou nervosamente a mão no uniforme e bateu na porta daquela casa de madeira. Ao não obter resposta, olhou rapidamente por cima do ombro, como se estivesse esperando que alguém a atacasse.

Mas não havia ninguém. A chuva retinha todo mundo no interior de suas casas. Toda a cidade transmitia um ar de abandono. Não passavam carros pelas ruas. Os cães não ladravam, nem havia meninos jogando nos atoleiros.

O único som era o do tamborilar das gotas de chuva sobre o telhado do alpendre e o do misterioso sussurro da água entre as folhas dos cítricos do jardim. Marly teria querido tampar as orelhas. A chuva era quase como uma presença, como uma entidade fantasmagórica que se instalou em Boa Vista, um bairro operário habitado por trabalhadores temporários, mecânicos e operários da construção como Ricky Morais, do qual não se sabia nada há três dias, conforme tinha advertido uma chamada anônima.

Marly bateu na porta com mais insistência.

—Ricky? Está aí? Sou Marly. Marly Jessop. Navarro me enviou para vê-lo. Alguns de seus vizinhos estão preocupados com você. Abra.

Como continuava sem receber resposta, Marly colou a orelha à porta. No princípio, não ouvia nada por cima do som da chuva, mas ao cabo de um momento, chegou até ela o débil tinido de uma melodia. Marly não sabia se procedia do interior da casa ou de qualquer outra parte; de sua imaginação, possivelmente, mas aquele som distante lhe produziu uma misteriosa sensação de déjá vu.

Sem prévia advertência, sua mente retrocedeu no tempo e de repente voltou a ter doze anos. Era uma adolescente desengonçada e estava no alpendre da casa de sua avó, batendo na porta.

—Vó, está em casa? Sou eu, Marly. Mamãe está preocupada porque não te viu na igreja esta manhã. Vó?

Tampouco tinha obtido resposta naquela ocasião, só um triste som de trompetistas e a formosa voz de um cantor mesclada com o ruído da chuva.

O disco estava riscado, recordou Marly, de modo que um de seus fragmentos se repetia uma e outra vez.

«Domingo sombrio… Domingo sombrio… Domingo sombrio»

Marly podia recordar-se a si mesmo abrindo a porta, entrando na casa e enrugando o nariz ante o penetrante aroma de amônia que a impregnava.

—Vó?

Marly percorreu lentamente o corredor, olhando de vez em quando por cima do ombro para assegurar-se de que não estava deixando rastros de barro no chão. Sua avó odiava a sujeira quase tanto como desprezava os meninos. Criaturas imundas, dizia a seu irmão e a ela.

—Vó?

Seguindo o som da música, Marly subiu as escadas que conduziam ao dormitório de sua avó. E a encontrou pendurando de uma das vigas do teto, suspensa entre os últimos raios de luz da tarde. As bolinhas de pó dançavam a seu redor enquanto Marly a olhava horrorizada e não podia evitar pensar em quanto odiaria sua avó ter sido encontrada de um modo tão indecente, como haveria dito ela.

Faltava-lhe um sapato e se havia algo que a Isabel Jessop obcecasse mais que sua casa, era seu aspecto. Vestia sempre trajes feitos especialmente para ela por uma costureira de Santo Antonio. Algodão para o dia-a-dia e seda e linho para os domingos e as ocasiões especiais.

Sua avó levava um desses vestidos de domingo naquela ocasião, um vestido impecável de linho e Marly podia ver os brincos de diamantes que sempre tinham adornado as orelhas dela. No instante que precedeu seu grito, Marly se perguntou o que ocorreria com aqueles brincos depois daquilo…

«Domingo sombrio… Domingo sombrio…»

A música se esfumou junto a suas lembranças e Marly levou a mão trêmula aos lábios. De verdade tinha ouvido aquela canção? Ou sua imaginação lhe estava jogando um mal pensamento?

Tendo em conta tudo o que estava ocorrendo em Mission Creek, era compreensível que tivesse conjurado aquela melodia em sua cabeça. Todo mundo estava nervoso. O trágico suicídio da senhorita Gracie já tinha sido um golpe suficientemente duro para a comunidade, mas o posterior suicídio de dois alunos do instituto tinha sido uma autêntica overdose.

Marly se estremeceu. Mission Creek era uma cidade pequena. Ela conhecia as três vítimas e suas mortes a tinham afetado profundamente. E tinham ressuscitado seus pesadelos.

Sentiu uma onda de náuseas e apoiou a cabeça contra o marco da porta.

Apertou os punhos com força, tentando dominar a vertigem. Ela era uma agente da lei de Mission Creek, no condado de Durango, no grande estado do Texas. Tinha jurado não só defender a lei, mas também lhe servir e proteger. Se havia alguém com problemas no interior da casa, tinha a obrigação de comprová-lo e oferecer sua ajuda. Possivelmente não fosse muito tarde.

Mas, e se fosse?

Marly sentiu uma mão em seu ombro e, por um instante, ficou paralisada pelo terror, segura de que, se voltava, se descobriria olhando aos olhos de sua avó.

As gotas de chuva tamborilavam como um tambor de guerra na cabine da caminhonete de Deacon Cage enquanto este se dirigia aos subúrbios da cidade. Com impaciência, alargou a mão por cima do volante para limpar o pára-brisa com a manga da jaqueta. Tinha ligado o ar, mas párabrisa continuava embaçado. E tinha frio. Estava gelado até os ossos, apesar de que a temperatura exterior rondava os quinze graus.

Mas a umidade que se deslizava através das portas e janelas. Chegava como um presságio, como uma funesta advertência para a boa gente de Mission Creek.

De acordo, possivelmente estivesse se pondo um pouco melodramático, admitiu Deacon enquanto baixava o olhar para o periódico no que tinha rabiscado uma direção. Por não dizer apocalíptico. Mas era difícil não interpretar como um sinal que não tivesse deixado de chover durante semanas.

Não era estranho que houvesse uma sensação tão opressiva e escura em toda a cidade. Deacon tinha chegado no dia anterior e a chuva já lhe estava dando nos nervos.

Viu o desvio justo diante dele, diminuiu a velocidade e olhou pelo espelho retrovisor antes de trocar de pista. Mas não havia ninguém atrás dele na estrada. Parecia não haver uma só alma em quilômetros ao redor.

Tinha sintonizado a emissora de rádio local. O locutor estava falando dos suicídios. Eram as únicas coisas de que se falava. Dos suicídios e da chuva.

Deacon escutou um momento, mas não havia nada novo. Os informes da autópsia demonstravam que David Shelley e Amber Tyson, ambos estudantes do instituto de Mission Creek, tinham tomado uma dose letal de remédios para dormir que continham benzodiazepan. Tinham encontrado seus corpos na manhã seguinte de sua morte em uma estrada situada perto de um antigo quartel do exército.

Segundo o testemunho da família e os amigos mais íntimos, David e Amber eram adolescentes normais. Não eram duas pessoas solitárias nem inadaptadas. Não consumiam drogas nem procediam de lares problemáticos. Ao menos aparentemente, tinham um brilhante futuro ante eles. Mas então, por que tinham decidido acabar com suas vidas?

E por que Gracie Abbot, uma professora aposentada que estava planejando uma viagem a Grécia com sua sobrinha favorita, tinha metido o carro na garagem um sábado pela tarde, tinha fechado as portas e tinha decidido pôr fim a sua vida?

Aqueles suicídios não tinham nenhum sentido para as pessoas que melhor conheciam as vítimas, mas a polícia local sustentava que os informes do forense confirmavam o suicídio em ambos os casos. E não havia nenhum motivo para suspeitar do contrário. No final das contas, os maiores índices de suicídio se davam entre a população anciã e eram a terceira causa de morte em adolescentes.

De modo que Deacon possivelmente estivesse equivocado ao procurar uma relação entre ambos os casos. Um motivo. E rezava para está-lo. Mas não acreditava que o estivesse.

Assim que tinha cruzado os limites da cidade três dias atrás, tinha sabido que alguém sinistro e escuro andava por ali. Um assassino rondava pelos arredores, um assassino tão ardiloso que ninguém sabia ainda ao que enfrentava.

Mas Deacon sim. Sabia muito bem. E essa era a razão pela que estava ali.

—Vim por ti —murmurou no silêncio.

E enquanto girava para Boa Vista, ouviu o retumbar de um trovão na distância que intensificou o frio do interior de sua alma.

A mão se esticou sobre o ombro de Marly e esta girou tão rápido que a pessoa que estava atrás dela retrocedeu. A mulher escorregou no alpendre e teria caído escada abaixo se Marly não a tivesse agarrado no último momento.

Nona Ferries lhe dirigiu um olhar acusador.

—Que demônios te passa, Marly? Esteve a ponto de me empurrar.

—Sinto muito, não tinha ouvido você chegar.

Marly esticou a mão por volta de Nona, resgatou seu guarda-chuva das escadas e o apoiou contra a parede do alpendre.

—Certamente, você demorou a chegar —se queixou Nona—. Chamei a polícia faz um par de horas.

Nona a olhou arqueando as sobrancelhas.

—Foi você que chamou a polícia?

—Sim, mas não esperava que enviassem só você —Nona levava um pacote de cigarros e um isqueiro em uma mão—. Pensei que viria Navarro.

Seria essa a razão pela qual tinha chamado?, perguntou-se Marly. Não seria a primeira vez que uma cidadã de Mission Creek chamava à polícia com a esperança de que Tony Navarro, o chefe de polícia, se apresentasse em pessoa. Era um homem alto, moreno, de feições duras e muito atraente, com uma enigmática personalidade e um misterioso passado que tinha propulsado sua fama a proporções quase míticas no condado de Durango.

Com um suspiro, Marly tirou uma caderneta e tentou parecer profissional.

—Navarro tem muito trabalho. Suponho que pensei que podia atender eu mesma esta chamada.

—O menos que podia ter feito era enviar a um de seus xerifes.

—Eu sou xerife, vê? Levo a placa e todo o resto.

—Não é que não esteja muito bonita com o uniforme, carinho, mas já sabe o que quero dizer.

Marly sabia perfeitamente o que queria dizer. E, curiosamente, não se sentiu ofendida pela atitude daquela mulher, provavelmente porque conhecia Nona desde sempre. Tinham ido juntas ao instituto, mas nos anos que tinham passado desde sua graduação, a vida lhe tinha dado a pobre Nona muitos golpes. Em outro tempo tinha sido uma garota bonita, mas naquele momento, era um anúncio vivo dos efeitos do excesso de álcool de baixa qualidade.

—Quando chamaste à delegacia de polícia, disse a Patty Fontes que Ricky está há três dias desaparecido, é certo?

—Eu não diria que desaparecido. Mas algo não vai bem.

—A que te refere?

Nona assinalou com seu charuto.

—Sua caminhonete está há três dias no mesmo lugar. Conhece o Ricky, inclusive quando ia ao instituto era muito trabalhador. Jamais tiraria uma folga a não ser que esteja realmente doente.

—Talvez esteja doente —sugeriu Marly.

—Tão doente que não pode responder ao telefone? Inclusive tentei olhar pela janela de sua casa e não o vi.

—Tentou bater na porta?

—Não, mas não está fechada —disse Nona—. Faz tempo que rompeu o ferrolho.

—Mas mesmo assim, não quiseste entrar.

Nona desviou o olhar.

—Não acredito que seja uma boa idéia.

—Por que não? —perguntou Marly surpreendida—. Ricky e você são muito amigos, não é certo?

—O que se supõe que quer dizer isso? —perguntou Nona com o cenho franzido.

—Vamos, Nona. Os dois estiveram saindo e se separando periodicamente desde que iam ao instituto.

—Sim, e agora estávamos separados —respondeu com amargura—. As coisas mudam. A gente segue vivendo —olhou ao Marly—. Algo assim como o que aconteceu com você e com o Joshua Rush, suponho.

Marly sentiu que lhe esticava o estômago ao ouvir o nome de seu ex-namorado. Tinham passado meses, mas continuava sendo um tema que lhe ardia. Jamais tinha falado com ninguém dos detalhes de sua separção, apesar de que a curiosidade de seus vizinhos era evidente. Estavam assombrados, supunha Marly, de que um partido como Joshua Rush lhe tivesse escapado por entre os dedos.

—Estávamos falando de você e Ricky —recordou a Nona.

Nona encolheu os ombros.

—Não há muito que contar. Rompemos faz tempo. Foi uma ruptura total. Ricky me advertiu que não voltasse a me aproximar dele, e tendo em conta como gosta de brincar com sua maldita pistola, tinha medo de que o canalha me disparasse se o fizesse —tragou intensamente seu cigarro—. Por isso chamei à polícia. Inclusive Ricky pensaria duas vezes antes de enfrentar à lei.

Marly se voltou para a porta.

—Suponho que será melhor que entre para dar uma olhada.

—Você sozinha? —perguntou Nona nervosa—. Deveria chamar para pedir reforços ou algo assim.

—É um pouco prematuro. Provavelmente Ricky esteja fechado em casa pelo mau tempo.

—E se não for assim? E se lhe ocorreu algo mau? O que aconteceria…? —Nona se interrompeu e desviou o olhar.

Marly a olhou com os olhos entrecerrados.

—Se o que, Nona? Sabe algo que não me quer dizer, verdade?

—É obvio que não —Nona se mordiscou uma unha—. Mas depois do que passou a esses meninos e à anciã Abbot a semana passada, é impossível não ficar nervosa.

—Estou segura de que este não é um desses casos —Marly rezou para ter razão. Chamou de novo à porta.

Como não responderam, abriu a porta, mostrando o escuro interior da casa. As venezianas estavam fechadas, o que impedia a entrada de luz natural, e um aroma débil e delator fez com que lhe revolvesse o estômago.

Retrocedeu e tentou não se deixar levar pelo pânico.

—Volta para sua casa e chae Patty —disse com mais autoridade do que realmente sentia—. Lhe diga que necessito ajuda. Que venham Boyd, ou A.J., ou o chefe. Quem esteja mais perto.

O terror se apoderou das feições de Nona.

—Ricky… não está morto, verdade?

—Vá fazer a chamada, Nona. Depressa.

—Mas…

—Vamos. Isto é assunto da polícia.

Nona se voltou a contra gosto, baixou correndo as escadas do alpendre, cruzou o pequeno pátio que a separava de seu próprio alpendre e desapareceu no interior de sua casa.

Marly entrou na casa de Morais, se detendo um momento na soleira da porta para criar coragem. A entrada principal dava diretamente para a sala, que estava separado da cozinha por um balcão. Uma janela situada ao lado da geladeira dava para a garagem e, à esquerda, via-se o estreito corredor que conduzia ao banheiro e aos dormitórios.

—Ricky? Está aí? —chamou-o nervosa.

A casa estava muito silenciosa. Marly nem sequer podia ouvir o murmúrio habitual de qualquer lar: o zumbido da geladeira, o tic–tac do relógio. Inclusive o som da chuva parecia amortecido.

Tampouco se ouvia música, advertiu. E era quase um alívio.

Mas… havia algo estranho naquele silêncio. Algo… anormal. Era como se tudo no interior da casa de Ricky tivesse deixado de funcionar repentinamente.

Com uma mão na pistola, Marly cruzou a habitação e olhou para o corredor.

—Ricky? Sou a policial Jessop. Está aí?

Continuava sem receber resposta.

O suor empapava sua fronte enquanto cruzava o corredor. A porta do final estava semi-aberta e, ao se aproximar, o aroma se fazia mais intenso.

Colocando-a camisa sobre a boca e o nariz, Marly tentou criar coragem. Tinha um trabalho que fazer. Era uma servidora da lei e naquele momento não importava que a chamada mais perigosa que tivesse tido que atender em sua curta carreira no departamento de polícia do Mission Creek fosse a perseguição de dois meninos de dez anos que tinham roubado em uma loja.

Mas aquele aroma… O sentia filtrando-se por seu nariz, pelos poros de sua pele. Tinha ouvido falar daquele aroma de alguns dos veteranos que lhe tinham dado aula na academia. Todos eles diziam que era inconfundível e que era virtualmente impossível desfazer-se dele. Uma vez colocava a um sob a pele, ninguém podia esquecê-lo.

«Não pense agora nisso», advertiu-lhe uma vozinha interior.

Tentou funcionar como um autômato enquanto empurrava a porta com o pé. O dormitório estava inclusive mais escuro que o resto da casa. Marly tirou a lanterna, acendeu-a e iluminou a habitação.

Não podia dizer que a tivesse surpreendido o que viu. Até certo ponto, esperava-o. Temia-o. Preparou-se para isso. Mas isso não fazia que a cena resultasse menos aterradora.

Ricky Morais estava na cama com o rosto voltado, oculto aos olhos de Marly. Mas a enorme mancha na cabeceira da cama dizia a Marly muito mais do que queria saber.

 

                                                             Capítulo 2

Marly retrocedeu cambaleante. Apertou os olhos com força, tentando reprimir as náuseas. Tentando bloquear seu asco.

Mas já era muito tarde. Ia vomitar. Derrubou-se contra a parede e tentou dominar-se.

O que estava fazendo ali?, perguntou-se frenética. Como lhe tinha ocorrido entrar para a polícia? Aquele jamais tinha sido um de seus sonhos. Ela não encaixava nem remotamente naquele trabalho e todo mundo sabia. Tinha decidido apresentar-se a aquele posto porque depois de ter sido despedida tão repentinamente de seu trabalho anterior, precisava trabalhar em algo.

E depois, com apenas oito semanas de treinamento, tinham-lhe posto aquela placa no peito, tinham-lhe colocado um 38 na cintura e lhe haviam dito que era xerife. Mas isso não significava que estivesse preparada para o trabalho. Não significava que estivesse preparada para enfrentar aquela confusão de sangue no que se converteu o que em outro tempo tinha sido o rosto do Ricky Morais.

Mas tinha que enfrentar a isso. Tinha que fazer algo. Chamar para pedir reforços…

Um ruído sutil lhe fez elevar a cabeça bruscamente. Não podia dizer o que era nem de onde procedia, mas saber que não estava sozinha fez que lhe gelasse o sangue nas veias.

Separou-se da parede e, pela primeira vez durante sua curta carreira de polícia, tirou sua arma.

Com o coração palpitante e a boca seca pelo terror, apareceu ao corredor e dali se dirigiu à sala de estar.

Havia alguém ali. Sem dúvida. Podia ver sua silhueta no final do corredor. Não distinguia suas feições, mas parecia grande, e se dirigia para ela.

Marly empunhou a pistola com as duas mãos.

—Polícia. Fique onde está.

Para seu imenso alívio, o homem se deteve. Não moveu um só músculo, mas Marly pôde sentir seu olhar sobre ela. Um olhar escuro. Intenso. Frio. Os cabelos se puseram de ponta.

—Levante as mãos por cima da cabeça —lhe ordenou—. E nada de movimentos bruscos.

O homem levantou as mãos lentamente e as colocou detrás da cabeça.

Sem soltar sua arma, Marly caminhou lentamente para ele.

—Quem é você?

—Deacon Cage —tinha uma voz profunda e tranqüila.

Muito tranqüila, decidiu Marly.

—O que está fazendo aqui? —perguntou-lhe Marly.

—Estou procurando o Ricky Morais.

—É amigo dele?

—Não exatamente. Não apareceu esta manhã pelo trabalho e seu chefe me pediu que viesse ver o que lhe passa.

—Seu chefe tem nome?

—Skip Manson. É capataz do Satterfield Construction. Estão construindo o novo ginásio do instituto.

Nesse momento, Marly estava a só meio metro daquele desconhecido. E o que viu quando elevou o olhar fez que o coração lhe deixasse de pulsar. Cabelo negro, olhos negros, maçãs do rosto marcadas, uma boca bem perfilada e um queixo carregado de determinação.

Não estava mau, pensou Marly. Não estava mal absolutamente.

O desconhecido arqueou uma sobrancelha com gesto zombador, como se soubesse exatamente o que estava pensando.

Algo que era impossível, é obvio, mas mesmo assim, Marly sentiu um intenso calor nas bochechas. Para dissimular sua vergonha, dirigiu-lhe um olhar penetrante.

—Tem o costume de meter-se em casas particulares sem prévio convite, senhor Cage?

—A porta estava aberta. Além disso, quando vi o carro de polícia, temi que pudesse haver ocorrido algo mau a Morais.

—Algo como o que?

—Um acidente, possivelmente.

Olhava-a de uma maneira que lhe resultava irritante. Era como se a conhecesse, pensou Marly estremecida.

Tomou ar e tentou ignorar as agulhas de gelo que pareciam correr por suas veias.

—Necessito que se identifique.

Esticou-se quando o viu baixar os braços.

—Tenho que tirar a carteira do bolso —lhe explicou.

—Não faça movimentos bruscos —lhe advertiu ela.

Deacon tirou lentamente sua carteira e a estendeu. Não havia nada nem remotamente ameaçador em sua atitude. Mas então, por que se sentia tão vulnerável? Tão exposta?

Marly escrutinou a fotografia da carteira de motorista, fixando-se em sua idade, em sua direção e em sua descrição física. Para sua consternação, a mão lhe tremia enquanto lhe devolvia a carteira.

—Está muito longe de sua casa, senhor Cage.

—Não há nenhuma lei contra isso, verdade?

Marly ignorou sua pergunta.

—Vou ter que lhe pedir que saia.

—Por que? Aconteceu algo a Morais?

—Limite-se a sair, senhor Cage.

Apareceu algo em seu olhar, uma escuridão que fez Marly consciente do quanto estavam sozinhos na casa.

Mas ela tinha uma pistola, Deacon Cage não podia lhe fazer nenhum dano. E, entretanto, quando Deacon se moveu ligeiramente para ela, Marly retrocedeu.

—Eu não o faria —lhe advertiu Marly.

—Não vou lhe fazer mal.

—É obvio que não —replicou ela, lhe apontando.

Deacon retrocedeu com as mãos em alto.

—Olhe, só quero saber o que passou.

Um som procedente do salão lhe fez interromper-se. Parecia cada vez mais tenso.

—Parece que temos companhia —comentou.

Graças a Deus, pensou Marly. Não estava segura de quanto tempo teria sido capaz de agüentar a sós com ele. Aquele homem lhe resultava intimidante, embora não tinha a menor idéia de por que. Não a tinha ameaçado, e tampouco havia dito nada ofensivo. Mas sua intuição lhe advertia que era um homem perigoso. E em mais sentidos dos que era capaz de imaginar.

Elevou ligeiramente o queixo e tentou olhar por cima dele.

—Quem anda aí? —perguntou—. Identifique-se.

Depois de uma ligeira vacilação, uma voz masculina respondeu:

—Tony Navarro. Jessop, é você?

Deacon voltou a cabeça ao ouvir a voz do Navarro e ficou olhando fixamente o corredor um décimo de segundo antes de voltar-se de novo para Marly. Esta ficou sem respiração ao vê-lo. Se segundos antes tinha pensado que era perigoso, já não ficava nenhuma dúvida.

Que demônios estava fazendo ali?, perguntou-se desesperada. Quem era aquele homem? E por que lhe tinha medo?

Havia algo nele, algo… que não parecia deste mundo. Aqueles olhos, aquela voz…

Marly esteve a ponto de engasgar-se quando por fim pôs nome a seu medo. Aquele homem era uma tentação.

Olhou para o corredor, onde acabava de aparecer o chefe de polícia Tony Navarro. Poderia ser imaginações dela, mas Marly teria jurado que o nível de testosterona acabava de subir até um nível perigoso.

Nem sequer naquelas lúgubres circunstâncias lhe passou por cima o irônico da situação. Não tinha tido um encontro há quase um ano e, de repente, encontrava-se na presença de dois homens altos, morenos e perigosamente atraentes. As oportunidades de que ocorresse algo assim em Mission Creek eram virtualmente nulas e, para desgraça de Marly, havia um cadáver na habitação do lado.

Tony Navarro era mais alto que Deacon Cage, mas não muito mais. Só um par de centímetros. Seus ombros eram ligeiramente mais largos, seu cabelo um pouco mais escuro e mais largo. Devia ser alguns anos mais velho que Deacon, mas não muitos. A única de que Marly estava segura era de que ambos os homens seriam capazes de lutar até o final.

Tudo aquilo estava atravessando sua mente quando, de repente, viu que Navarro baixava a mão para a pistola, de modo que se precipitou a lhe dizer:

—Não passa nada, chefe, tudo está sob controle.

—O que está acontecendo aqui? —perguntou Navarro, cravando seu penetrante olhar no Deacon Cage—. Q… Quem é você?

—Deacon Cage.

Aquela voz profunda e de textura quase líquida provocava calafrios em Marly.

Esta clareou a garganta.

—Diz que trabalha com o Ricky Morais e que veio procurá-lo.

—Não, não foi isso o que eu disse. Eu disse que o chefe de Morais me pediu que viesse ver o que lhe ocorre.

Marly franziu o cenho.

—Eu dei por certo que…

—A primeira norma de um policial —disse Navarro lentamente, enquanto começava a caminhar para eles—, é não dar nunca nada por certo. Sabe tão bem como eu.

Marly se ruborizou violentamente e se perguntou se Deacon Cage teria tentado fazer com que ficasse mal diante do Navarro.

Elevou o queixo e tentou recuperar sua dignidade.

—Neste momento lhe estava pedindo ao senhor Cage que esperasse fora.

Navarro olhou ao homem e assentiu.

—Parece uma boa idéia. Mas não se vá muito longe —lhe aconselhou—. Temos algumas perguntas a lhe fazer.

Deacon Cage vacilou enquanto deslizava o olhar de Marly ao Navarro para olhar de novo ao Marly. Elevou uma sobrancelha, voltou-se e percorreu o corredor a grandes pernadas sem dizer uma só palavra.

O primeiro que notou Deacon quando saiu, foi que tinha diminuído a intensidade da chuva. Permaneceu no alpendre, escutando a destilação constante da água através das árvores enquanto se perguntava o que estava ocorrendo no interior da casa. Que classe de cena tinha deixado Jessop tão pálida e estremecida.

Deacon se fazia uma idéia bastante ajustada. No fim das contas, estava familiarizado com a morte. Tinha-a cheirado em outras ocasiões, muito mais vezes do que podia recordar. Inclusive poderia chegar a dizer-se que tinha uma relação íntima com ela.

Estudou a possibilidade de jogar limpo com a polícia, de lhes dizer quem era e o que estava fazendo em Mission Creek. Mas rapidamente o descartou por considerá-lo precipitado e estúpido. Em qualquer caso, ninguém acreditaria nele. Teria que encontrar a essa pessoa especial, a essa pessoa suficientemente aberta para ser capaz de escutá-lo. Mas quem ia ser capaz de deixar a um lado suas noções preconcebidas sobre a realidade para saber a verdade?

Seria esse alguém a xerife Jessop?

Em um princípio, Deacon haveria dito que não. Havia nela certa cautela, um instinto de amparo que sugeria que não seria fácil convencê-la de que abandonasse a segurança das três dimensões. Mas mesmo assim, algo lhe dizia que, de todas as pessoas de Mission Creek, possivelmente ela fosse a única que pudesse ajudá-lo a encontrar ao assassino.

Ou estaria expressando um desejo?, refletiu Deacon. Jessop era uma mulher atraente e não lhe importaria absolutamente passar algum tempo com ela, embora sabia perfeitamente que isso não poderia levá-los a nenhuma parte. Ele estaria em Mission Creek temporalmente e, assim que cumprisse com sua missão, partiria. Até a seguinte cidade. Até dar com o seguinte assassino.

Além disso, viajava com muita bagagem, vivia com muitos pecados do passado. Tinha dormido com muitos demônios. Demônios que jamais poderiam ser exorcizados.

Mas isso não lhe impedia de tentá-lo. Não lhe impedia de continuar sonhando com aquela liberdade que se converteu em uma lembrança distante. Uma lembrança na qual nem sequer sabia se podia confiar.

De modo que ali estava. Em Mission Creek, Texas. Procurando outro assassino. A alguém muito parecido a ele. Todos se pareciam de uma ou outra forma. E, em outro tempo, ele tinha sido como eles.

De modo que não, em suas cartas não aparecia nenhuma relação com a xerife Marly Jessop e não podia permitir que se convertesse para ele em algo mais que um meio para conseguir um fim.

—Ei, você é da polícia?

Deacon girou ao ouvir uma voz feminina atrás dele. Irritou-o não ter ouvido que alguém se aproximava. Mas então se deu conta de que havia tornado a chover e o som da chuva tinha mascarado a chegada da mulher.

Esta subiu correndo os degraus do alpendre e o olhou com curiosidade. Não devia ter mais de trinta anos e, em outro tempo, suspeitava Deacon, devia ter sido muito atraente. Mas naquele momento tinha as feições endurecidas de alguém que tinha experimentado toda uma vida de desilusões.

—Não sou da polícia —lhe disse Deacon.

—Imaginava. Conheço todos os policiais daqui nunca o tinha visto —Nona acendeu um cigarro e exalou rapidamente a fumaça—. Então, quem é você?, se não lhe importar que o pergunte.

—Meu nome é Deacon Cage.

—Eu me chamo Nona e vivo aí em frente —assinalou por cima do nome uma casa quase idêntica a de Morais—. Você é amigo do Ricky?

—Não exatamente. Mas temos um conhecido comum.

—Um conhecido comum, né? —olhou-o com receio—. Perdoe que o diga, mas você não é exatamente o tipo de pessoa com a que Ricky se relaciona.

—Bom, já sabe o que se está acostumado a dizer: as aparências enganam.

—E é condenadamente certo. O vi sair da casa faz uns minutos, falou com Marly?

—Refere-se a xerife Jessop? Sim, falei um pouco com ela.

—E o que lhe disse sobre o Ricky?

—Não me disse nada.

—Não importa —Nona olhou para a chuva com expressão repentinamente triste—. Já sei que está morto.

—Como sabe?

Nona encolheu os ombros.

—Porque ultimamente as pessoas estão caindo como moscas.

—Refere-se aos suicídios?

—Sabe o que acredito? —Nona o olhou preocupada—. Acredito que é o tempo. Toda esta maldita chuva. É deprimente. Marly tem que estar aterrada.

—Por culpa do tempo?

—Não, por culpa dos suicídios.

—O que quer dizer?

—Digamos que Marly tem alguns assuntos, e deixemos por aí.

Que classe de assuntos?, Deacon tinha querido perguntar, mas não a pressionou. Tinha a sensação de que Nona era uma mulher que gostava de falar e, com um pouco de paciência, encontraria a maneira de que o dissesse.

—Parece que conhece muito bem a xerife Jessop.

—Não muito. Fomos juntas ao instituto, mas não saíamos com o mesmo tipo de gente, não sei se sabe o que quero dizer. Marly era a típica garota de nota dez enquanto que eu… —se interrompeu e o olhou de soslaio—, digamos que quando estava no instituto tinha outras prioridades.

Deacon assentiu.

—Mas lhe asseguro que jamais a teria imaginado trabalhando de polícia.

—Por que não?

—Não está feita para isso. É muito para uma menina boa. As pessoas a pressionam constantemente. Sobretudo seu velho.

—Seu marido?

—Não, Marly não está casada. Não, estava falando de seu pai. É um coronel aposentado. Fazia parte do Fort Stanton antes que fechassem a base. E não era muito popular, por dizê-lo de algum jeito. Eu conhecia alguns dos homens do quartel e diziam que o odiavam, que era um filho de… —se interrompeu para lhe dar outra tragada a seu charuto e expeliu a fumaça com uma risada nervosa—. Ok, não pretendia lhe fazer ouvir este tipo de coisas. Mas tendo a falar muito quando estou nervosa —atirou a bituca por cima do corrimão do alpendre—. Também fumo muito.

—Não me importa, estou desfrutando da conversação —disse Deacon.

—Ah, sim? —perguntou-lhe Nona, com expressão especuladora.

—Estava me falando do pai do Marly Jessop —a animou delicadamente.

—Minha mãe foi sua governanta. Por isso sei tanto deles. E me deixe lhe dizer que se sabia histórias sobre essa família que poderiam lhe pôr os cabelos em pé. E sempre compadeceu ao Marly e ao Sam.

—Sam?

—O irmão do Marly.

—Vive aqui, em Mission Creek?

—Voltou depois de acabar o serviço militar e foi viver na casa de sua avó. Arrumou-a e a deixou preciosa. O outro dia passei por ali e vi que inclusive alugava um apartamento que construiu em cima da garagem. Não é que eu esteja interessada —encolheu exageradamente os ombros—. Não viveria ali embora me pagassem. E embora isso significasse poder ver o Sam todos os dias. E o digo eu, que sempre senti algo por ele.

Deacon tinha que se esforçar para manter uma expressão de relativa indiferença.

—E diz que esteve no exército? Em que corpo?

—No exército, como seu pai e como seu avô. Seu avô tinha sido um importante general do Pentágono ou algo assim. Supunha-se que Sam tinha que seguir seus passos, mas se retirou ao cabo de uns anos e voltou para Mission Creek para converter-se em professor. Por isso, ouvi dizer, seu pai esteve a ponto de estrangulá-lo. Minha mãe diz que esse homem sempre tentou dirigir a vida de seus filhos. Não é de estranhar que Marly seja como é.

—O que quer dizer?

—Ela é diferente. Tem sua forma de fazer as coisas. É como… como se soubesse coisas que outros não sabem. É difícil de explicar, mas suponho que isso de ser estranha vem de família, tendo em conta o que fez sua avó —se inclinou para o Deacon e baixou a voz—. Recorda que lhe disse que Marly tem suas coisas?

Deacon assentiu.

—Pois bem, a avó do Marly se pendurou de uma viga quando Marly tinha somente doze anos. Foi Marly a que encontrou o cadáver. E acredito que ainda não o superou.

—Deve ser difícil superar algo assim —murmurou Deacon.

Nona acendeu um cigarro.

—Quando pensa nisso, resulta horripilante. Marly foi quem encontrou a sua avó faz anos e agora está aqui, trabalhando de polícia e tendo que investigar todos esses suicídios. Isso sim que é uma misteriosa coincidência.

Misteriosa possivelmente. Mas Deacon não acreditava nas coincidências.

 

                                                       Capítulo 3

O doutor Alvin Pliner, médico forense do condado do Durango, colocou um par de luvas de látex enquanto se aproximava do cadáver com o que Marly percebeu como uma boa dose de entusiasmo.

Eis aí um homem que desfrutava com seu trabalho, pensou estremecida.

—Suponho que não alterou o cenário do crime.

—Não se preocupe, está completamente virgem —lhe assegurou Navarro.

Piscou um olho para Marly, como burlando-se da pomposidade do médico e ela sentiu uma incômoda revoada no estômago. Navarro era o epítome do homem atrativo. Todas as mulheres da cidade estavam apaixonadas por ele, mas ninguém sabia muito sobre seu passado. Era um ex-militar de um corpo de elite da marinha que tinha chegado à cidade um ano atrás para reunir-se com o prefeito e os vereadores da prefeitura. Depois de uma série de sessões a porta fechada os tinha convencido para que o colocassem como chefe de polícia.

Desde o primeiro momento, tinha sido um policial diferente a seu predecessor. Body Hendrickson era um velho advogado que se conformou ocupando o posto sem esforçar-se muito até seu retiro. Ninguém podia acusar Navarro de autocomplacência. Participava ativamente em todas as investigações, mas também permanecia no departamento como se fosse um intruso, evitava colocar o uniforme e estava acostumado a se vestir com jeans, botas e, nos dias frios como aquele, com uma jaqueta negra que o fazia parecer distante e mais que ligeiramente perigoso.

Marly baixou o olhar e tentou centrá-la no doutor Pliner enquanto este movia suas mãos enluvadas sobre o cadáver.

—Está morto. Fixaram-se no golpe que tem na mão direita? O relatório vai ser positivo. Quase posso garanti-lo.

—De modo que acredita que se trata de outro suicídio —aventurou Navarro.

—O número quatro —se mostrou de acordo Pliner—. Poderei lhe dizer algo mais sobre o momento de sua morte depois da autópsia.

Continuou examinando o cadáver tão minuciosamente que Marly, ainda a ponto de esvaziar seu estômago, teve que abandonar a habitação. Saiu à sala de estar e olhou a seu redor.

A habitação estava escassamente mobiliada; só havia um velho sofá e uma poltrona reclinável situada em frente ao aparelho de televisão. Nas paredes pendurava um pôster dos Astros de Houston e outro da Harley Davidson. A mesa de jantar estava coberta de peças de motor, provavelmente da Harley que Marly tinha visto sob a cobertura que fazia de garagem. Marly imaginou Ricky sentado ali pelas noites, vendo uma partida de beisebol enquanto reconstruía peça a peça o que indubitavelmente tinha sido seu orgulho e seu bem mais prezado.

Estar naquela casa, examinando seus objetos pessoais, era como poder vislumbrar os sonhos mais íntimos daquele homem. Marly não pretendia misturar-se em todos os aspectos de sua vida, não queria acabar com os últimos vestígios de sua dignidade. Na realidade, a única coisa que queria era voltar para casa, meter-se na ducha e desprender-se daquele terrível aroma.

Ela não era como Navarro. Ela não era o tipo de polícia capaz de afastar-se de uma cena tão horripilante e tirá-la de sua mente. A morte do Ricky Morais a devoraria. Seus olhos a perseguiriam em sonhos durante anos.

Controlar o tráfico era uma coisa, mas todas aquelas mortes…

Marly começou a considerar a idéia de retirar-se. Podia sair por aquela porta e partir sem olhar para trás e a ninguém surpreenderia. De fato, as pessoas que melhor a conheciam se surpreendiam de que tivesse agüentado tanto tempo naquele posto.

«Que pouco perseverante», burlou-se dela uma voz interior. Uma voz que soava muito parecida com a de seu pai.

Enfim, melhor ser pouco perseverante e poder dormir todas as noites, raciocinou Marly.

Navarro lhe havia dito em uma ocasião que ela tinha algo que necessitava todo bom policial. Tinha intuição, havia-lhe dito. Mas tinha coragem?

Era uma boa pergunta. Uma pergunta que Marly ainda não estava segura de poder responder. Especialmente naquele momento, quando toda sua intuição lhe estava dizendo algo que não queria ouvir.

Algo mau estava ocorrendo em Mission Creek. Algo… terrível.

E Marly não sabia como lutar contra isso.

Quando a xerife Jessop saiu por fim da casa, baixou a toda velocidade os degraus do alpendre, sem olhar sequer para o Deacon. Por um instante, pareceu como se estivesse fugindo do diabo e Deacon se perguntou se deveria segui-la. Averiguar que demônios estava se passando. Mas nesse momento, um dos policiais que tinha chegado depois de que aparecesse o médico forense, chamou-a e Jessop se deteve. Voltou-se e, com inapetência, pareceu ao Deacon, aproximou-se para falar com seu colega.

Deacon a estudou atentamente, fixando-se nos sentimentos que refletia seu rosto e no movimento quase convulsivo de suas mãos. Recordava o que Nona lhe havia dito anteriormente, que aquela mulher não era feita para ser polícia. Que era muito boa garota. Que se deixava pressionar por todo mundo.

Possivelmente.

Mas durante os escassos minutos que tinha falado com ela, Deacon tinha visto algo que lhe tinha feito pensar que Marly Jessop era muito mais do que aparentava. Possuía aquele tipo de coragem inata que lhe tinha permitido permanecer em seu posto inclusive quando era óbvio que tinha percebido um grave perigo. Era uma coragem profundamente enterrada, suspeitava Deacon, mas estava ali. E se ele tinha razão no que se referia à natureza de todas aquelas mortes, Marly ia necessitar até a última gota daquela coragem.

Como se houvesse sentido seu escrutínio, Marly elevou o olhar. Seus olhos se encontraram e ela os desviou rapidamente. Mas nesse momento, produziu-se algo entre eles. Atração, pelo menos por parte do Deacon, mas também algo mais. Uma chama de compreensão, ou possivelmente o reconhecimento de que seus caminhos se cruzaram por alguma razão.

Marly levou uma mão ao pescoço e continuou falando com o policial. Ao cabo de uns segundos, este se voltou para seu carro e ela retornou ao alpendre.

Nona, que tinha estado fumando enquanto observava a cena, atirou o cigarro por cima do corrimão do alpendre.

—Vai nos dizer de uma vez o que passou ao Ricky?

—Sinto muito, Nona, Ricky está morto.

—Isso já sei —o tom de Nona era duro como o aço, mas seus olhos brilhavam de emoção—. Mas quero saber o que passou.

Marly olhou para o Deacon.

—Nona, se importaria de me esperar em sua casa? Preciso falar com o senhor Cage —quando a mulher começou a protestar, Marly posou a mão em seu braço—. Irei te ver assim que tenha terminado e te contarei tudo o que possa.

—De acordo, mas não me deixe pendurada.

Marly esperou até que Nona abandonasse o alpendre para voltar-se para Deacon. Inclinou a cabeça para olhá-lo e Deacon reparou então no quanto estava magra. No quanto parecia jovem com o cabelo empapado e pego à cabeça. Não levava maquiagem e as sardas que salpicavam a ponte de seu nariz lhe davam um aspecto quase infantil. Mas seus olhos, de uma estranha cor dourada, refletiam uma amargura que fazia Deacon se perguntar por seu passado.

Algo se esticou dentro dele e, não pela primeira vez, desejou ser outra pessoa. Desejou ser o tipo de homem que poderia chegar a ter uma mulher como Marly Jessop.

Ele poderia tê-la, de fato. Tinha o poder para fazê-la sua. A única coisa que tinha que fazer era olhá-la profundamente aos olhos e lhe fazer desejá-lo. Fazer-lhe acreditar que não poderia viver sem ele. E Marly seria dele.

Durante um tempo. Até que aprendesse a verdade sobre ele.

Então o odiaria. E teria motivos para fazê-lo.

—Por que voltou? —perguntou-lhe Deacon brandamente.

—Perdão? —Marly o olhou surpreendida.

Deacon assinalou para a rua.

—Já se ia, não? O que a tem feito voltar?

O aborrecimento relampejava nos olhos do Marly.

—Você não me conhece, senhor Cage, assim não presuma saber nada sobre mim. Além disso, aqui sou eu a que faz as perguntas.

—Adiante, então.

—O que está fazendo em Mission Creek?

—Só estou de passagem.

—De caminho para…?

—O oeste.

—O oeste do Mission Creek? O oeste do Texas?

—Não estou seguro de qual é meu plano. Mas sei que não infrinjo nenhuma lei estando aqui.

—Sempre tem uma resposta preparada, não é? Se eu fosse uma pessoa receosa, pensaria que tem consciência culpado.

—Me considera suspeito de algo?

—Não, simplesmente, intrigam-me os motivos pelos quais apareceu aqui.

—Já o expliquei. O chefe de Morais me enviou para ver o que lhe passava.

—E por que a você?

—Tinha passado pela empresa para pedir trabalho. Tinha ouvido dizer que estavam contratando gente.

—Está procurando trabalho em Mission Creek? Pensa instalar-se por aqui?

—Como lhe disse, de momento não tenho planos. Mas sempre vem bem algum dinheiro extra.

Os olhos do Marly eram muito expressivos, pensou Deacon. E muito bonitos. Como dois poços de ouro líquido.

—De modo que foi procurar trabalho e o capataz lhe disse que devia ver ao Ricky.

—Comentou-me que Morais não tinha ido trabalhar, estava preocupado por ele, mas não tinha tempo para vir vê-lo.

—De modo que se ofereceu voluntário.

Deacon baixou o olhar para ela.

—Alguma vez está de mais ser amável com o chefe, verdade?

Algo apareceu nos olhos do Marly; foi como um certo pudor que lhe fez recordar ao Deacon o aspecto que tinha quando tinha chegado Navarro. Estava nervosa. Desconcertada. Haveria algo entre eles?

Em realidade não lhe importava, mas aquilo poderia dificultar seu trabalho.

O olhar do Marly se tornou de repente desafiante.

—Não sei quem é você nem por que está aqui —murmurou—. Mas algo me diz que não me está dizendo toda a verdade.

—E realmente importa por que eu esteja aqui? —olhou-a aos olhos, tentando abrir caminho até sua alma—. Tem coisas mais importantes com as quais se preocupar, não é? Em um período de dez dias houve quatro suicídios nesta cidade. Eu diria que tem problemas mais importantes que eu.

—E acredita que não sei? —replicou ela—. Mas eu não disse em nenhum momento que Ricky Morais tinha se suicidado.

—Não tem por que fazê-lo —Deacon a observou atentamente—. Eu posso te ajudar, Marly.

—Do que está falando? Me ajudar a que? —seu tom era de indignação.

—Os dois sabemos que esses suicídios não são o que parecem.

Uma sombra obscureceu os olhos de Marly e, por um instante, pareceu a ponto de mostrar-se de acordo com ele. Mas seu lado mais racional ganhou e endureceu sua determinação.

—Não há nenhum motivo para pensar que se trata de crimes. Todas as provas forenses…

—Apóiam a tese do suicídio, sim, sei. Não estou sugerindo que essas pessoas não tenham posto fim a suas próprias vidas. Não tenho a menor duvida de que Graça Abbott colocou seu carro na garagem, subiu todas as janelas e deixou que o monóxido de carbono fizesse seu trabalho. E estou seguro de que esses adolescentes tomaram sua overdose, e de que Ricky Morais apertou o gatilho. O que estou sugerindo é que houve algo que os obrigou a fazê-lo.

Marly o olhou com incredulidade.

—Como demônios se pode obrigar a alguém a suicidar-se?

—Já ocorreu antes —disse Deacon—. Um homem chamado Jim Jones conduziu a mais de novecentos de seus seguidores à morte no Jonestown, Guyana. Trinta e nove devotos das Portas do Céu foram encontrados mortos em uma mansão perto de San Diego, Califórnia. E poderia continuar, mas acredito que não tem sentido.

Uma miríade de emoções cruzou o rosto do Marly. Repugnância. Horror. Incredulidade.

—Não estará sugerindo que aqui está ocorrendo algo parecido, verdade?

—O que estou sugerindo é que precisa manter a mente aberta se quer acabar com isto.

Marly desviou o olhar e observou a rua. Uma pequena multidão se reuniu na calçada. A brisa assobiava através das laranjeiras e, sobre suas cabeças, a chuva continuava golpeando o telhado do alpendre.

Demorou muito tempo para voltar a falar. E inclusive então, evitou seu olhar, como se sentisse que o contato visual poderia ser perigoso.

—Nos casos que você citou, todos os cadáveres foram encontrados juntos. Aqui, as mortes estão acontecendo de uma em uma. Os incidentes não parecem ter nenhuma relação. Dois adolescentes. Um trabalhador da construção. Uma anciã. Que relação pode haver entre eles?

—Isso é o que temos que averiguar.

—Temos?

—Como te disse, posso te ajudar.

—Se tiver informação sobre alguma destas mortes, deveria comunicar ao Navarro. Ele está a cargo da investigação.

—Eu estou dizendo isso você, Marly, porque você sabe que nesta cidade está ocorrendo algo mau. Sabe que há algo que não encaixa nessas mortes. Vejo isso em seus olhos. E queira admitir ou não, você é a única que pode impedir o que está passando.

 

Deacon brincou com o dial da rádio de sua caminhonete, mantendo um olho no alpendre da casa de Ricky Morais. Depois da conversação com Marly e ante sua insistência, tinha abandonado a cena. Tinha rodeado um par de vezes a quadra e depois tinha deixado a caminhonete na calçada, a um par de casas de distância, em um lugar do que podia observar as idas e vindas das autoridades. Justo depois de que Deacon se fosse, tinha chegado um carro fúnebre, o que queria dizer que logo tirariam o cadáver. Ao cabo de um dia ou dois, a autópsia confirmaria o suicídio e o caso se daria por terminado. Haveria todo tipo de especulações, é obvio, mas ninguém em Mission Creek consideraria seriamente a possibilidade de um homicídio. Ninguém exceto Deacon… E, depois daquela conversa, Marly Jessop.

Marly continuava no alpendre, falando com outro policial. Deacon não podia distinguir nitidamente suas feições através da chuva, mas recordava todos os matizes de seu rosto. Aqueles olhos dourados, aqueles lábios que não eram nem muito magros nem tão grossos para resultar luxuriosos, e, entretanto, eram uns lábios maleáveis, flexíveis… Deacon se imaginou deslizando o polegar por aqueles lábios, tentando-a, persuadindo-a até lhe fazer abri-los sob seu dedo.

Teria idéia de quão atraente era? De sua sensualidade? Deacon sabia instintivamente que era uma mulher complicada e se perguntava se algum homem se teria tomado realmente a moléstia de chegar a conhecê-la. Se algum homem se teria tomado tempo para alimentar a paixão que pulsava nela.

Porque era uma mulher apaixonada, pensou. Por baixo daquela fria fachada, ele tinha vislumbrado uma chama ardente esperando ser avivada para consumir-se em um inferno de desejos. Deacon esfregou os olhos, tentando apagar a visão de uma Marly Jessop excitada. Aquele tipo de pensamentos era perigoso porque podia lhe fazer perder de vista sua missão. Ele estava ali para deter um assassino e, para isso, necessitava da ajuda de Marly. Além disso, não podia permitir que se envolvessem seus sentimentos.

Mas, o que ocorreria se Marly se negava a ajudá-lo?

Ele tinha maneiras de ganhar sua colaboração, é obvio. Formas de convencê-la. Mas depois, Marly não confiaria nele.

Bom, assim teria que ser, disse-se com tristeza.

Nesse momento soou seu celular e rapidamente o levou a ouvido.

—Cage.

—Deacon, sou Camille.

Ao ouvir a voz de sua colega, Deacon se esticou.

—O que passou?

—O avô…

—Piorou?

—Não, não é isso —o tranqüilizou Camille—. Só queria assegurar-se de que está bem. Tem um mau pressentimento sobre este trabalho, Deacon.

Deacon deixou escapar um suspiro de alívio.

—Tem maus pressentimentos sobre todos os trabalhos.

—Sei. É porque tem a sensação de que o tempo corre em nosso contrário.

Deacon às vezes também o sentia. Eram muitos os inimigos, um exército secreto de soldados que tinham sido treinados e programados para matar…

E Deacon tinha sido um deles.

Não gostava de pensar no que teria sido sua vida se o doutor Nicholas Kessler, um especialista em física quântica, e sua neta não o tivessem encontrado.

—Por muito que me doa admiti-lo, o avô não vai estar sempre entre nós —disse Camille—. Este ano fará oitenta e nove anos.

—E segue tão agudo como sempre —lhe recordou Deacon.

—Mentalmente sim, mas o corpo lhe está falhando. Já sabe quão delicado está. Deacon, não posso evitar me preocupar com o que passará quando não estiver ele.

Deacon encolheu os ombros.

—Já enfrentaremos a isso.

—Você tomará conta da organização quando chegar o momento?

—Você está mais qualificada que eu —respondeu com o cenho franzido—. Além disso, eu gosto de trabalhar sobre o terreno.

—Sei. E isso é o que me preocupa. Porque um destes dias…

—Um destes dias, o que?

Camille vacilou.

—Um destes dias poderia encontrar o seu par fora daqui.

—Isso não vai acontecer.

Mas Deacon sabia que poderia ocorrer facilmente porque em todas suas missões jogava com vantagem. Ele sempre jogava em seu próprio campo e a única maneira de intervir era recrutar a alguém do lugar que pudesse ajudá-lo. Alguém como Marly Jessop.

Entretanto, não o disse a Camille, porque ela tendia a preocupar-se muito e já tinha suficiente trabalho. Tinha razão. Seu avô não viveria muito mais e quando chegasse o momento, a morte do Nicholas seria para ela um duro golpe. Tinha perdido a seu único filho não fazia muito tempo e embora tinha confrontado sua morte com valentia, Deacon sabia que ainda não tinha se recuperado. Seu avô e seu trabalho eram o único que ficava.

—Que tal vão as coisas por ali? —perguntou-lhe Camille.

—Houve outra morte —olhou para a casa do Ricky Morais.

Naquele momento estavam tirando o cadáver. Marly estava falando com o Navarro e Deacon franziu o cenho ao vê-los. Havia algo em sua linguagem corporal, algo em sua forma de olhar a seu superior…

—Deacon?

Deacon apertou os dentes e desviou o olhar.

—Sim, estou aqui. Agora mesmo estou no cenário do crime.

—Foi… um suicídio?

—Sim, suicídio atrás de suicídio —respondeu.

—Sim, sei.

Deacon podia imaginar a Camille sentada atrás de seu computador, com o cabelo recolhido na nuca e olhando a tela com o cenho franzido. Teria os lábios apertados em um gesto de concentração e uma sombra de tristeza apagaria o brilho de seus olhos violeta.

—Tem alguma pista?

—Nada concreto. Tenho um par de nomes que eu gostaria que examinasse na base de dados. Não espero averiguar nada, mas nunca se sabe. O primeiro é Tony Navarro, o chefe de polícia da cidade.

—Tem algum motivo em particular para investigá-lo?

—Só intuição.

—De verdade acha que o chefe de polícia poderia ser um deles? —insistiu Camille.

Devia ter percebido algo em sua voz. Às vezes sua intuição era assombrosa.

—Um dos nossos, quer dizer?

Camille vacilou.

—Já sabe que não te vejo dessa maneira. Além disso, nem todos os que passaram pelo Montauk foram ou são uns assassinos. Alguns desses homens tornaram a viver uma vida normal.

—Sim, e alguns estão encerrados em um hospital psiquiátrico. E outros vivem pelas ruas —e outros continuavam matando.

—Disse que tinha dois nomes.

—O outro é Sam Jessop. Ainda não o conheço, mas, pelo que ouvi sobre ele, encaixa no perfil. Esteve no exército e procede de uma família de militares.

—De acordo. Investigarei-os e voltarei a me pôr em contato contigo. Há algo mais?

—Há uma base do exército abandonada perto daqui. Veja o que pode averiguar sobre ela.

—Não pensará que seja parte do Montauk, hein?

—Sabemos que estenderam o terreno de operações. E nunca temos descoberto outras sedes. Vale a pena investigar.

—Isto me manterá ocupada durante um par de dias pelo menos —disse Camille—. Enquanto isso, não perca o contato conosco. O avô está preocupado por ti. E eu também —acrescentou.

—Eu gostaria que não o estivesse. Não me mereço isso.

Camille suspirou.

—Alguma vez vais esquecer, verdade?

—Esquecer quem sou? Esquecer o que fiz?

—Estava seguindo ordens —respondeu Camille—. Estava programado para…

—Matar gente.

—Disso não está seguro.

—Enfrente a isso, Camille. O fato de que não possa recordar não significa que não tenha acontecido. Fui um assassino. E não há redenção para o que fiz.

—Poderia havê-la —disse Camille brandamente—, se fosse capaz de te perdoar.

 

                                                       Capítulo 4

Nona tinha deixado a porta aberta e quando Marly subiu os degraus do alpendre minutos depois, ouviu-a dando golpes no interior de sua casa.

—Nona?

—Está aberta!

Marly olhou a seu redor e entrou. A casa era idêntica a de Ricky Morais. A porta principal dava a uma sala de estar abarrotada e decorada em azul. Umas alegres cortinas xadrezes penduravam das janelas e um exército de gansos caminhava em fila indiana na beira do teto.

Marly se surpreendeu com aquela decoração tão caseira, embora a verdade era que não tinha ideia do que podia esperar. A mãe de Nona tinha trabalhado para sua família, mas Marly tinha que admitir, não sem vergonha, que nunca se deu ao trabalho de conhecer Nona ou à senhora Ferris.

Mas não era porque fosse uma esnobe. Justamente o contrário. A verdade era que Marly sempre se havia sentido um pouco intimidada pela atraente Nona e seu desconcertante costume de dizer o que pensava sem considerar as conseqüências.

Inclusive depois do quanto a vida tinha sido dura com ela, Marly suspeitava que aquela mulher continuava vivendo a sua maneira. Podia não ser muito feliz com as cartas que lhe haviam distribuído a sorte, mas as aceitava e não se desculpava nem se desculpava por elas.

E Marly continuava invejando-a.

—E bem? —perguntou-lhe Nona da cozinha—. Vai passar todo o maldito dia aí de pé ou vai vir aqui me falar do Toby?

Marly se aproximou do balcão que separava a sala de estar da cozinha e se sentou em um tamborete.

—Sinto muito. Só estava admirando sua casa.

Nona soprou com desprezo.

—Sim, claro.

—Não, digo a sério —Marly olhou a seu redor—. É cálida e acolhedora. Eu gosto.

Nona encolheu os ombros.

—Vá, obrigado. Mas dificilmente pode competir com a tua.

—Eu não tenho casa —disse Marly—, vivo em um apartamento.

—Referia-me à casa de seus pais.

«Cálida e acolhedora» não eram adjetivos que pudessem descrever a casa em que Marly tinha crescido. Aquele rancho tão meticulosamente decorado por sua mãe sempre lhe tinha parecido frio e hostil. Opressivo.

—Quer um café? —Nona tirou duas canecas do escorredor de pratos e as colocou no mostrador.

—Não, obrigado.

—Tem certea? Acabo de fazê-lo.

—Não estou acostumado a tomar café —lhe disse Marly.

—Um refresco? Um suco?

—Não, obrigado, estou bem.

Marly desviou o olhar para um folheto que havia sobre o mostrador. Reconheceu-o antes de ler o anúncio de uma reunião da igreja de Joshua Rush. O emblema era inconfundível: os raios de luz emanando de um olho que simbolizava a iluminação, ou pelo menos isso era o que lhe tinha explicado Joshua em uma ocasião.

Ao advertir o curso de seu olhar, Nona comentou:

—Alguém me colocou isso por debaixo da porta outro dia. Suponho que estão tentado me dizer algo.

Marly sorriu.

—Provavelmente não seja nada pessoal. Provavelmente tenham deixado folhetos em todas as casas.

—Possivelmente —Nona tomou sua taça com ambas as mãos, como se de repente lhe tivesse entrado frio—. Me fale do Ricky. O que lhe passou?

—O médico forense terá que determinar a causa da morte —disse Marly—. De modo que o que vou te dizer não pode ser dito em público. Não o diga a ninguém até que não haja um anúncio oficial, de acordo?

Nona assentiu, mas sua expressão parecia dúbia. Certamente falaria, pensou Marly, mas em realidade não importava. Todo mundo se inteiraria da morte do Ricky em questão de horas.

—Ao que parece Ricky morreu pelo disparo de uma pistola.

—O muito… —Nona deixou escapar um suspiro—. Eu tinha medo de que pudesse machucar a alguém com essa pistola, mas jamais pensei que poderia terminar disparando nele mesmo.

—Eu não disse que tinha sido um suicídio.

—Mas o foi, não é? Que demônios está passando nesta maldita cidade? Por que toda essa gente está se matando? Por que Ricky teve que matar-se?

Marly encolheu os ombros com impotência. Ela não podia deixar de pensar no mesmo. Poderia ter razão Deacon Cage? Haveria alguém na cidade, alguém a quem ela conhecesse, obrigando às pessoas a suicidar-se?

Seu olhar voou de novo para o folheto.

—Não sou nenhuma perita em condutas humanas —tentou dizer com naturalidade—, de modo que suponho que nos levará algum tempo averiguá-lo. Enquanto isso, preciso te fazer algumas pergunta sobre o Ricky. Parece-te bem?

—Que tipo de perguntas? —perguntou Nona com o cenho franzido.

—São perguntas rotineiras —Marly tirou sua caderneta—. Me disse que recentemente se separaram. Me fale disso.

—Se está pensando que essa poderia ser a razão pela que Ricky se suicidou, se equivoca. Não acredito que perdesse o sono por nossa ruptura —respondeu Nona com amargura.

—Como sabe?

—Porque tinha outra namorada. Os vi em sua casa uma noite. Ricky esteve… entretendo-a no sofá da sala de estar. Nem sequer a levou a seu quarto —sua voz refletia sua dor e seu aborrecimento—. Tivemos uma discussão e as coisas saíram de controle. Eu terminei tirando a roupa dessa garota de sua casa e ele terminou me jogando. Disse-me que tudo tinha terminado entre nós, que estava apaixonado por outra mulher e que o deixasse em paz —esfregou o nariz.

—Quando o viu pela última vez?

—No sábado de noite. Tinha ficado com uns amigos em um local que abriu na auto-estrada sete. Ricky estava ali com a Crystal.

Marly elevou o olhar imediatamente.

—Crystal.

—Crystal Bishop, sua noiva. É a sobrinha do Gus Bishop. Já sabe, o vigilante do Instituto. Com certeza esse velho canalha chantageou a alguém do Instituto, porque se não fosse assim, não se explicaria como é possível que Crystal tenha terminado trabalhando no escritório. Temo que não tem precisamente um grande talento como secretária, não sei se me entende.

Sim, pensou Marly com inesperada amargura. Ela conhecia muito bem no que residia o talento do Crystal Bishop.

Recordava, com vivida claridade, o dia que a tinha encontrado na casa de Joshua. Recordava sua negra juba caindo em cascata por suas costas, e o movimento rítmico de seu corpo nu enquanto seus gritos se fundiam com os de Joshua.

Marly tinha ficado paralisada, muito afetada para mover-se ou falar. Crystal estava de costas a ela, mas Joshua, ajeitado no sofá, tinha-a visto no marco da porta. Não tinha se mostrado particularmente surpreso. Limitou-se a rodear a cintura de Crystal com a mão e a apartar dele, não sem antes, teria jurado Marly, ter terminado.

Ficou furiosa ao compreender que aquela lembrança ainda lhe doía, e não porque continuasse abrigando nenhum tipo de sentimento para o Joshua, mas sim porque durante algum tempo, tinha permitido que Joshua exercesse seu poder sobre ela.

Mas isso pertencia ao passado, recordou-se. E era uma lição que tinha aprendido perfeitamente.

—Que mais quer saber sobre o Ricky? —perguntou Nona.

Marly se obrigou a prestar atenção à conversação.

—No sábado de noite falou com ele?

—Não. Não fiquei muito tempo. Luanne MacAllister me deixou em casa antes das dez. Ricky chegou em casa ao redor das doze. Ouvi sua caminhonete.

—E sabe se veio sozinho?

—Sim, veio sozinho. Apareci na janela e não vi ninguém com ele.

—Não ouviu nem viu nada estranho essa noite?

—Como um disparo? Não, mas isso não quer dizer nada. Quando durmo é como se estivesse morta.

—Essa foi a última vez que viu o Ricky?

Nona assentiu.

—Sua caminhonete seguia em sua casa ao dia seguinte, mas era domingo, assim não prestei atenção. Quando vi que não a tinha movido na segunda-feira pela manhã, pensei que o tinham suspendido do trabalho por culpa da chuva. Mas depois, nessa mesma manhã encontrei a um de seus companheiros e me disse que estavam trabalhando no ginásio e que a chuva não representava nenhum problema porque trabalhavam quase sempre dentro. Isso me fez pensar que seria melhor chamar à polícia.

—Esteve em casa todo o fim de semana?

Nona assentiu.

—Neste momento estou sem carro, assim que fiquei em casa.

—E viu se alguém se aproximou de casa do Ricky?

—Não.

—Tampouco viu nenhum carro desconhecido pelo bairro?

Nona pareceu surpreendida.

—Aonde quer chegar, Marly? Não estará pensando que alguém pôde assassinar ao Ricky, verdade?

—Como te disse, são perguntas rotineiras. Não tem por que se alarmar —mas Marly não estava segura de que estava tentando convencer a Nona ou estava tentando convencer a si mesma—. Que aspecto tinha Ricky na sábado de noite?

—Bom, não sei. Mas tive a impressão de que Crystal e ele não estavam muito bem. Se acha que alguém matou ao pobre Ricky, será melhor que fale com ela.

Marly pretendia fazê-lo, mas aquela não era uma conversação de que gostasse particularmente. Fechou sua caderneta e se levantou.

—No momento, com isto basta. Obrigado por sua colaboração, Nona.

Nona encolheu os ombros.

—É o menos que posso fazer pelo Ricky.

—Estaremos em contato. Assim que tenha o relatório do forense, te avisarei —Marly abriu a grade da porta, mas antes que pudesse sair, Nona a agarrou pelo braço.

—Marly?

Marly se voltou.

Nona mordeu o lábio. Parecia de repente uma mulher que precisasse desafogar-se.

—O que te passa, Nona? —urgiu-a Marly com delicadeza.

—Quer ouvir algo… misterioso?

—O que?

Nona se abraçou a si mesmo.

—Estive tendo sonhos muito estranhos ultimamente. No princípio não pensava muito neles, mas agora, depois do que passou ao Ricky —se interrompeu e olhou para a porta.

Sua inquietação era tão evidente que Marly teve a repentina urgência de olhar por cima do ombro.

—Que tipo de sonhos?

Nona desviou o olhar…

—Estive sonhando que feria a mim mesma.

Marly tentou dissimular sua surpresa.

—O que?

—Tinha uma faca na mão, o tipo de faca que utilizava meu pai para ir caçar. O caso é que o aproximava de meu pulso —o demonstrou com um dedo.

Marly olhava de lado a lado o pulso de Nona.

—Vejo que estou a ponto de me suicidar, mas não posso evitá-lo. É como se… como se algo me estivesse obrigando a fazê-lo —sussurrou Nona.

«O que estou sugerindo é que alguém pode estar obrigando-os a fazê-lo».

Um calafrio percorreu as costas de Marly.

—Todo mundo sonha loucuras —certamente, ela tinha tido sua boa dose de pesadelos ultimamente—. É natural com tudo o que está passando.

—Sei, mas… —Nona a olhou aos olhos—. O que me assusta é que tive esse sonho no sábado de noite, provavelmente quando Ricky estava apertando o gatilho.

 

Crystal Bishop olhou seu reflexo no espelho e sorriu. Tinha motivos para estar satisfeita consigo mesma, decidiu. Por fim tinha voltado para o lugar ao que pertencia: à vida de Rush e a sua cama. E, se ela tinha algo que dizer nesse assunto, não partiria logo dali.

De fato, se tivesse sido por ela, jamais o teria deixado. Sua separação tinha sido coisa de Joshua. Depois daquela desagradável cena com Marly em seu escritório, tinha-lhe preocupado o que Marly poderia contar às pessoas, os rumores que podia estender pela cidade. E, tendo em conta seu trabalho, Joshua não podia ficar sob nenhum escândalo.

De modo que tinha convencido Crystal para que fingissem distanciar-se até que tivesse terminado definitivamente com Marly.

Mas, para surpresa de Crystal, Marly não havia dito nada do que tinha visto naquele dia. Crystal não estava tão segura de se ela em seu lugar tivesse sido tão discreta. Embora, certamente, Marly não gostaria de contar que encontrou a seu prometido deitando-se com uma mulher mais bonita, mais jovem e mais sensual que ela.

Crystal passou as mãos no cabelo e sorriu ao recordar as semanas e os meses que tinham passado até que Joshua se decidiu a chamá-la. Se não tivesse saído com Ricky não estava tão segura de que Joshua houvesse voltado com ela, mas Joshua não podia suportar a ideia de que outro homem desfrutasse do que ele considerava dele.

Ao pensar no Ricky Morais, o sorriso do Crystal se desvaneceu. No final, aquele homem se converteu em um problema. O que se supunha que era só uma aventura, tinha terminado convertendo-se em algo muito sério para Ricky. Apaixonou-se por ela e inclusive lhe tinha pedido que se casasse com ele. E quando a tinha visto com o Joshua…

Crystal se estremeceu ao recordar aquela terrível cena. Diferente de Marly, Ricky não tinha sido capaz de manter a boca fechada. Inclusive tinha ameaçado Joshua, algo que tinha aterrorizado Crystal, nem tanto pelo que Ricky pudesse fazer, mas sim pelos rumores que poderiam chegar a correr sobre Joshua.

Mas Joshua se limitou a lhe dizer que tentasse resolver o problema. E ela o tinha feito. No sábado à noite. Não era algo que gostasse. Não encontrava nenhum prazer em fazer mal ao Ricky. Era como torturar a um gatinho. Ricky era um homem realmente doce, mas ela não podia arriscar seu futuro por ele. Não estava disposta a terminar de novo em Boa Vista. Ela queria a alguém mais sofisticado. Com mais mundo. Alguém que a levasse de viagem. Alguém como Joshua Rush.

Além disso, Ricky era, por dizê-lo brandamente, sexualmente indiferente. Algo que certamente não podia dizer sobre o Joshua. De fato, custava-lhe acreditar algumas das coisas que lhe tinha ensinado a fazer na cama e ainda não estava de tudo convencida de que gostasse de experimentar até esse ponto. Mas nunca dizia que não. Não podia. Não podia negar nada ao Joshua. Tinha essa aura de poder sobre ela.

Olhou o reflexo do Joshua no espelho e se estremeceu. Naquele momento estava curvado atrás dela na cama, dormindo profundamente. Parecia tão inocente em algumas ocasiões, com aqueles olhos azuis e o cabelo loiro e revolto. Mas Crystal sabia que era tudo menos angélico.

Um anjo caído possivelmente, pensou com um calafrio.

Elevou o olhar para seu rosto e viu que tinha os olhos abertos. Estava olhando seu reflexo. Olhando-a dessa maneira que às vezes a fazia se perguntar se podia lhe ler o pensamento.

Crystal se voltou.

—Pensava que estava dormido.

—Estava —sorriu—. Me deixaste esgotado.

—Que eu te deixei esgotado?

—Isso. É insaciável, mas… —aplaudiu a cama—, agora chega a segunda ronda.

Crystal se aproximou da cama, mas não se reuniu com ele. Agachou-se para procurar sua blusa, a pôs e começou a fechar-lhe.

—Agora tenho que ir ao trabalho.

Joshua olhou o relógio.

—São quase três, o colégio está a ponto de fechar.

—Sei, mas prometi ao senhor Henesey que voltaria depois da consulta com o médico para ajudá-lo a terminar um relatório.

Joshua sorriu.

—Uma consulta com o médico, não é? Vêem aqui e te farei um exame do qual não poderá te esquecer.

Crystal se ruborizou. Joshua era o único homem capaz de fazê-la ruborizar-se.

—Ultimamente perdi muitas horas de trabalho —murmurou—. Se não tomar cuidado, poderiam me demitir.

Isso, é obvio, era um gancho para que Joshua lhe dissesse que não precisava trabalhar porque ele podia mantê-la. Mas Joshua se limitou a encolher os ombros.

—Há muitos outros trabalhos na cidade.

Crystal reprimiu sua desilusão. Terminou de se vestir com mais determinação que nunca. Porque apesar do que Joshua havia dito, não havia outros trabalhos na cidade. Pelo menos trabalhos decentes, e ela não estava disposta a voltar para a fábrica de camisas.

—Crystal.

O sorriso do Joshua tinha desaparecido. Em seu lugar estava aquele escuro e penetrante olhar que lhe dirigia em algumas ocasiões. Como se pudesse lhe ver a alma, pensou Crystal nervosa.

—De verdade tenho que voltar —quase suplicou.

—Venha aqui —lhe ordenou, e naquela ocasião, quando seus olhares se cruzaram, Crystal sentiu que toda sua resolução fazia água.

—Não posso…

Mas já estava desabotoando a blusa. A tirou, igual à saia, pousou um joelho na cama e se colocou escarranchada sobre ele.

Joshua deslizou os dedos por seu cabelo, atraiu-a para ele e a beijou daquela forma que a fazia estremecer-se de antecipação e medo por não ser capaz de resistir. Não podia lutar contra ele, embora a pouca consciência que ficava advertia que o fizesse.

—O que faz comigo? —sussurrou quando interromperam o beijo—. Por que não posso te dizer que não?

—Porque —lhe sussurrou Joshua ao ouvido—, sabe que não seria boa ideia me obrigar a tirar meu lado mau.

 

                                               Capítulo 5

Marly gemeu quando viu Deacon Cage caminhando por volta da delegacia de polícia essa mesma tarde. Sabia que ia vê-la e sua primeira intenção foi evitá-lo. Não queria vê-lo outra vez, e menos ainda falar com ele. Não queria ter nada a ver com ele nem com suas loucas hipóteses e já o tinha deixado suficientemente claro. De modo que, o que estava fazendo ali?

Olhou-o. Tinha trocado de roupa, Naquela ocasião levava uns jeans escuros e uma jaqueta que lhe faziam parecer inclusive mais misterioso do que era. A chuva fazia brilhar seu cabelo e Marly se imaginou de repente afundando a mão naquele úmido cabelo, acariciando seu rosto com o polegar, desenhando a linha de seus lábios com a língua…

Pestanejou horrorizada para apagar aquela visão. Deus santo, pensou impactada. Como podia estar ali, com a lembrança de uma morte ainda fresca, e ter uma fantasia tão íntima com um homem ao que quase não conhecia e no que, certamente, não confiava? Um homem ao que não conseguia tirar da cabeça.

O que lhe estava passando? O que lhe tinha feito Deacon?

O coração de Marly pulsava erraticamente enquanto o via falar com o policial da recepção. Este último se voltou e assinalou para Marly. E o coração lhe deu um tombo quando viu que Deacon começava a caminhar para ela.

Evitando o contato visual, Marly baixou o olhar por volta de um dos arquivos de seu escritório, mas não foi capaz de concentrar-se em seu conteúdo. Não podia evitar perguntar-se o que estaria fazendo Deacon Cage em Mission Creek.

Depois de deixar o cenário do crime, tinha passado pelo instituto para falar com o Skin Manson, o capataz da empresa que estava construindo o ginásio, e este tinha corroborado a história do Deacon até certo ponto. Cage tinha ido procurar trabalho, sim, mas também queria falar dos dois adolescentes que tinham morrido na semana anterior.

Aquilo tinha inquietado ao Marly porque demonstrava que estava interessado nos suicídios muito antes de saber o do Ricky Morais.

Tudo indicava que tinha ido à cidade com uma missão e Marly estava mais convencida que nunca de que ocultava algo. Mas o que? E o que tinha a ver com ela?

Elevou o olhar quando sentiu que se aproximava de seu escritório. Seus olhares se encontraram durante um breve instante e Marly voltou a sentir-se sobressaltada por quanto seus olhos eram escuros. Escuros e… estranhamente hipnóticos. Custou-lhe desviar o olhar.

—O que está fazendo aqui?

—Temos que falar.

Sua voz lhe provocava calafrios, mas Marly conseguiu manter a brutalidade de seu tom.

—Estou ocupada.

—Não nos levará muito tempo. Posso? —sentou-se em frente ao escritório antes que Marly pudesse protestar.

Marly o fulminou com o olhar.

—Como lhe disse antes, senhor Cage, se tiver alguma informação sobre essas mortes, tem que falar com o Navarro. Em caso contrário, lhe agradeceria que não me fizesse perder o tempo.

Embora parecesse impossível, os olhos do Deacon Cage se obscureceram ainda mais e, por muito que tentasse, Marly não foi capaz de desviar o olhar.

—Falaste ao Navarro sobre mim? Sobre nossa conversação?

—Não.

—Por que não?

—Porque não dei muito crédito ao que me disse. E porque não quero me converter em uma boba.

Deacon se inclinou para diante tão repentinamente que Marly jogou a cadeira para trás. Por um momento, pensou que ia lhe agarrar.

—Me acredite, isto não é um assunto de risadas. Sei que você intui o mesmo que eu, mas não quer acreditar.

Marly apertou os punhos no regaço.

—Você não sabe nada sobre mim, de acordo? Não sabe no que acredito, assim me deixe em paz antes que encontre algum motivo para prende-lo.

—Há um assassino na cidade.

O medo formava redemoinhos no estômago de Marly, não sabia se pelo que Deacon havia dito ou pelo que tinha visto em seus olhos. Não queria acreditá-lo, não podia acreditá-lo, mas aqueles olhos a obrigavam a escutá-lo quisesse ou não.

—Como se explica nesse caso que não tenhamos encontrado rastros nem nenhuma outra prova que indique que se trata de um crime?

—Não os está matando com suas próprias mãos. Os está matando com a mente.

Marly ficou sem ar. «Você está louco», tentou pronunciar, mas não emitiu nenhum som. O único que pôde fazer foi olhar para ele de cima abaixo com impotente fascinação.

Evidentemente, aquele homem era um louco. Um demente. Sem dúvida alguma, tinha escapado de um hospital psiquiátrico. Necessitava ajuda, mas Marly não a ia proporcionar. Naquele momento, o único que queria era que partisse.

—Está familiarizada com o término psicoquinesia? —perguntou-lhe.

Marly franziu o cenho.

—É algo assim como dobrar colherinhas com a mente?

—Isso faz parte da psicoquinesia. Mas os experimentos que se tem feito com ela vão muito além de dobrar colherinhas ou fazer rodar canetas sobre uma mesa. Um verdadeiro psicoquinético é capaz de interferir no encefalograma de outro ser humano. Está capacitado para manipular os pensamentos de outra pessoa.

Marly tinha a certeza de que estava louco. Tinha que está-lo.

Mas então por que escutava aquelas tolices? E por que de repente sentia um medo que lhe chegava até os ossos?

Não podia ser certo. Não era possível. E mesmo assim, ali estava, tremendo ante o impossível.

—Não lhe acredito. Ninguém pode fazer isso. Uma pessoa não pode ser manipulada, nem sequer lhe podem lavar o cérebro até o ponto de que faça algo que de outra maneira podia ser estranho a ela. Mas se o que está sugerindo…

—Isto vai muito além de uma lavagem de cérebro.

—Está me dizendo que um psicoquinético está causando esses suicídios controlando o pensamento de outras pessoas? Se isso fosse possível, por que ia fazer isso? Qual poderia ser sua motivação?

Deacon encolheu os ombros.

—Por que um assassino em série escolhe a suas vítimas? Porque sofre algum tipo de fantasia doente. Porque desfruta manipulando a suas vítimas. Porque quer presumir de seu poder sobre elas. Em outras palavras, seus motivos são complexos e não sempre compreensíveis.

—Um assassino em série —repetiu Marly.

—Não no sentido habitual do término —disse Deacon—. Mas nos estamos enfrentando a um monstro.

Marly deixou escapar um trêmulo suspiro.

—Suponho que é consciente de que isto parece com uma loucura.

Deacon continuava olhando-a aos olhos. E Marly sabia que ela não seria capaz de desviar o olhar embora sua vida dependesse disso.

—Provavelmente está procurando um homem que tem entre os trinta e quarenta anos, mas poderia ser mais velho. Tem um passado militar, mas não fala dele. Inclusive é possível que o mantenha em segredo —Deacon se interrompeu—. Conhece alguém que se ajuste a esse perfil?

Conhecia muitas pessoas que encaixavam com aquela descrição, mas não ia admitir isso diante de Deacon Cage.

—Por que tenho a sensação de que está me tomando por uma estúpida? —perguntou-lhe zangada.

Deacon quase sorriu ao ouvi-la.

—Se pensasse que é uma estúpida não estaria aqui.

—Por que está aqui? —insistiu Marly—. Que espera que faça com… com toda essa história?

—É muito simples —se levantou—. Quando chegar o momento, espero que faça o que tem que fazer —se voltou e caminhou a grandes passos para a porta da delegacia de polícia.

 

A primeira coisa que Marly fez quando chegou em casa depois do trabalho foi se despir e entrar na ducha. Permaneceu sob o jorro durante um longo momento, esfregando o cabelo e a pele uma e outra vez até que esteve segura de que não ficava nem rastro daquele aroma tão truculento.

Teria gostado de poder apagar também as imagens sangrentas de sua mente, mas não era possível. Não tinha sido capaz de esquecer aquele cenário em todo o dia, da mesma forma que não podia esquecer ao Deacon Cage nem sua enigmática visita à delegacia de polícia.

«Não os mata com as mãos, mata-os com sua mente».

Um assassino com poderes sobrenaturais? Um homem com um passado militar capaz de manipular os pensamentos de suas vítimas?

Marly tremia só de pensá-lo.

Os suicídios eram trágicos, havia algo sinistro em todos eles. Certamente, não havia neles nada sobrenatural. Ninguém tinha obrigado às vítimas a acabar com suas próprias vidas. Ninguém controlava seus pensamentos. Tinham tomado uma decisão pela razão que fosse. Da mesma forma que sua avó anos atrás. E o fato de que diferentes pessoas tivessem tomado a mesma decisão em menos de duas semanas não significava nada. Acontecia às vezes. Um suicídio provocava o seguinte. Era como uma reação em cadeia, Marly o tinha lido.

Ninguém podia manipular os pensamentos. Ninguém podia matar com sua mente. Deacon Cage era um louco ou um conspirador. Marly ainda não o tinha averiguado. Mas o averiguaria. No dia seguinte o investigaria e, se encontrava algo suspeito, procuraria a forma de detê-lo ou tirar da cidade. Se sua história se espalhava, Marly podia imaginar o pânico que desataria um rumor sobre um assassino em serie com poderes sobrenaturais.

Saiu da ducha, secou-se vigorosamente e colocou uns jeans e uma camiseta. Dirigiu-se à cozinha, abriu a geladeira e estudou seu conteúdo, embora sabia que não poderia comer até que seu estômago se acalmasse um pouco.

Seu olhar voou para uma garrafa do Pinot Grigio, o vinho branco favorito de Joshua. Não estava segura de por que tinha guardado aquela garrafa depois de sua ruptura. Ela não estava acostumada a tomar vinho, mas tampouco gostava de se ver como aquelas mulheres que precisavam se desfazer de tudo relacionado com um antigo amor para lhe tirar de sua vida.

Decidindo que uma taça poderia ajudá-la a relaxar, tirou a garrafa, fechou a porta do frigorífico com o pé e procurou um saca-rolha na gaveta da cozinha.

Qual o problema se aquele vinho recordasse ao Joshua?, pensou com lúgubre resolução. Joshua Rush já não lhe importava. Não tinha nenhum poder sobre ela. Marly sabia o tipo de homem que realmente era. Depois de uma fachada carismática e encantadora se ocultava um frio e cruel megalômano, um homem muito parecido a seu pai.

Graças a Deus, tinha percebido a tempo. Inclusive antes de tê-lo visto com Crystal, Marly já tinha chegado à conclusão de que sua relação estava condenada ao fracasso. Joshua era muito egoísta e controlador. No princípio, tinha conseguido dissimular sua verdadeira personalidade, mas com o tempo, tinha ido tão longe que lhe dizia inclusive como devia se vestir, a quem tinha que ver ou o que tinha que dizer.

E fazia muito tempo que Marly tinha decidido que nenhum homem teria aquele poder sobre ela.

Seria essa a razão pela qual tinha decidido ser polícia? Porque a pistola que levava em cima lhe transmitia uma sensação de poder?

E se isso era assim, o que queria dizer isso dela?

Marly se serviu uma taça de vinho e se dirigiu à sala de estar, mas antes que tivesse podido sentar-se no sofá, soou o timbre da porta. Deixou a taça em cima da mesinha do café e foi abrir.

—Sim? —perguntou ao jovem que encontrou do outro lado.

A mulher lhe dirigiu um sorriso nervoso.

—Não sei se você lembra de mim. Vivia ao final de sua rua. Sou Lisa, Lisa Potter. A filha do James e do Nadine.

Marly a olhou surpreendida.

—É obvio que me lembro de você. Eu cuidava de você quando era assim —levou a mão à cintura.

Mas Lisa tinha trocado após. Converteu-se em toda uma mulher vestida aquele dia com uns jeans azuis e uma camiseta que lhe deixava o umbigo ao descoberto.

Lisa pareceu relaxar um pouco.

—Estava acostumada a passar de bicicleta por sua casa com a esperança de ver seu irmão. Estava enamoradissima dele.

—Sim, havia muitas garotas rondando minha casa —disse Marly—. De modo que voltaste para o Mission Creek? Tinha ouvido dizer que tinha ido viver em Dallas.

De fato, tinha ouvido dizer que Lisa dançava em um clube de striptease em uma das zonas mais sórdidas da cidade, mas Marly não tinha a menor idéia de que fosse ou não certo.

—Estive em Dallas, mas voltei. Meu noivo tem um apartamento neste bairro. Te vi entrar faz um momento e me perguntava se… teria um momento para falar comigo.

Marly não tinha a menor idéia do que podia querer aquela mulher, mas encolheu os ombros e retrocedeu.

—Claro, passa.

Lisa seguiu Marly e observou a austera decoração de seu apartamento. O único que tinha de valor era o sofá que Marly tinha comprado em uma loja de desenho do Santo Antonio.

—Posso te oferecer algo? —perguntou a Lisa—. Uma taça de vinho?

—Não, obrigado. Além disso, não posso ficar muito tempo.

Marly assinalou o sofá.

—Sente-se então —quando ambas estiveram instaladas, disse—: e do que quer que falemos?

Lisa voltou a ficar nervosa.

—Agora é polícia, verdade?

—Sim, sou xerife.

—Sim, sabia. Não sei se sabia, mas Amber Tyson era minha prima.

—Tinha esquecido —disse Marly surpreendida—. Este deve ser um momento muito duro para sua família.

Lisa assentiu.

—A tia Rudy está passando muito mal. Eu também me sinto mal, mas não tinha muita relação com o Amber. Sou mais velha que ela e estive fora tanto tempo… —se interrompeu e de repente se inclinou para diante—: Essa é a razão pela que estou aqui. Amber e eu não estávamos muito unidas. Apenas a conhecia. Mas veio me ver antes de morrer. Apareceu de repente em meu apartamento.

—O que queria?

Lisa encolheu os ombros.

—Foi tudo muito misterioso. Como já disse, apenas nos conhecíamos e não tínhamos muitas coisas em comum. Amber era uma menina boa, sabe? Por isso me surpreendeu que viesse para me ver. À tia Rudy não teria gostado se tivesse se informado. Eu sou a ovelha negra da família.

—O que te disse Amber? —pressionou-a Marly.

Lisa franziu o cenho como se ainda estivesse perplexa pela visita de sua prima.

—Queria que lhe emprestasse um traje. Algo com o que pareceria mais sofisticada, mais sexy. Essas foram exatamente suas palavras. Assustou-me lhe ouvir falar assim porque eu a via como a uma menina.

—E te disse por que queria o traje?

—A verdade é que não, mas tenho a impressão de que o queria para impressionar a alguém.

—Ao David?

—Não acredito. Veio com o David um dia a minha casa e Amber me disse que só eram amigos.

—Talvez se sentisse embaraçada de reconhecer que era seu noivo —sugeriu Marly—. Especialmente se seus pais não aprovavam essa relação.

Lisa negou com a cabeça.

—Não acredito que fosse ele. Acredito que era alguém mais velho. Se não por que iria querer parecer mais sofisticada?

—Não mencionou nenhum nome?

—Não, mas acredito que poderia ser algum de seus professores.

—Por que pensa isso?

Lisa encolheu os ombros.

—Porque as adolescentes tendem a se apaixonar por seus professores.

—E teve a impressão de que esses sentimentos eram recíprocos?

—Não sei, mas posso te dizer algo —Lisa se inclinou para trás—. Amber não se suicidou esse dia. Ao contrário, estava feliz, emocionada, como se guardasse algum segredo.

—Disse-te algo mais?

—Não, emprestei-lhe um vestido e partiu —Lisa olhou o relógio—. Olhe, tenho que ir. Sinto me haver apresentado desta forma e ter que ir agora correndo, mas não sabia o que fazer. Não podia contar a minha tia Ruby. E quando tentei dizer ao Navarro, jogou-me.

—Espera um momento, falaste ao Navarro da visita de Amber? Quando?

—Faz um par de dias. Mas Navarro me disse que não tinha importância, que isso não trocaria nada e que iniciar um rumor sobre uma possível relação do Amber com uma pessoa mais velha poderia machucar a tia Rudy. Suponho que tinha razão, mas, estava me carcomendo por dentro, sabe? Inquietava-me. Não posso evitar pensar que é algo importante.

Marly permaneceu em silêncio um instante, tentando assimilar tudo o que Lisa lhe tinha contado. Por que Navarro não teria mencionado aquela visita da Lisa? Por que não tinha pontuado aquela conversação no relatório do caso? Normalmente era muito meticuloso.

Marly se levantou e acompanhou a Lisa até a porta.

—Posso te perguntar algo?

—Claro.

—Por que veio me ver?

Lisa pareceu vacilar um instante, mas logo sorriu.

—Quando te vi hoje, recordei-me o quanto foi sempre boa comigo. E também recordei que era realmente inteligente, como Amber. Não sei como explicar se interrompeu—, suponho que imaginei que saberia o que tinha que fazer.

Oxalá fora certo, pensou Marly enquanto a via partir.

Quando Marly abandonou a auto-estrada e saiu para a velha estrada do cemitério, já era de noite. Tinha deixado de chover e algumas estrelas brilhavam no céu. Marly queria acreditar que aquelas estrelas eram um presságio de que o pior tinha passado, mas tinha a sensação de que se morava um desastre.

O que ocorreria se Lisa tinha razão? Se Amber tinha relações com um homem mais velho? Não significaria isso que tanto a polícia como os meios de comunicação tinham julgado equivocadamente os motivos daquele duplo suicídio?

Marly não queria acreditar que Navarro tivesse suprimido voluntariamente uma prova ou uma pista potencial, mas por que não tinha incluído uma nota sobre aquela conversação com a Lisa no expediente do caso? Por que não lhe tinha tomado declaração? De verdade estava tentando proteger à família do Amber?

Navarro nunca tinha parecido a Marly um homem sentimental, pelo menos no que às investigações concernia. Sempre se tinha apertado estritamente às normas… seria possível que fosse ele o homem mais velho no que Amber estava interessada? O homem para o que queria parecer mais velha e sofisticada? Não era nenhuma ideia rocambolesca. A metade das mulheres da cidade tinham estado apaixonadas por Navarro em um ou outro momento.

Mas embora fosse ele, isso não significava que tivesse feito algo mau, raciocinou Marly. Não queria dizer que fosse responsável pelo suicídio de Amber. Mas isso poderia explicar por que não tinha querido tomar uma declaração formal a Lisa Potter. E poderia inclusive questionar o fato de que fosse o responsável pela investigação.

Marly sabia que estava fazendo muitas hipóteses e ignorando o óbvio, os outros suicídios. Mas qualquer explicação era preferível à insistência do Deacon Cage em que as vítimas tinham sido obrigadas a suicidar-se por alguém com interesses sinistros. Um assassino em série. Um homem que podia arrebatar a vida com a mente.

 

Marly esticou as mãos sobre o volante enquanto abandonava a estrada para estacionar. Quando apagou as luzes, a noite ficou muito mais escura do que tinha antecipado. Olhou inquieta a seu redor.

A estrada velha do cemitério tinha conduzido em outro tempo até o Fort Stanton, mas naquele momento, a antiga base estava rodeada por um alambrado de espinhos. A intervalos, sobrevinham-se os letreiros que advertiam que qualquer que transpassasse a grade seria punido pela lei.

O qual, é obvio, convertia-o em um atrativo irresistível para os meninos da localidade. Marly sabia que alguns tinham encontrado a maneira de entrar. Tinha ouvido histórias sobre suas explorações noturnas na base. Diziam que tinham descoberto caixas cheias de computadores e equipamentos eletrônicos e vigilantes perambulando pela zona vestidos com uniformes negros e armados com as armas mais futuristas.

Marly imaginava que aquelas histórias eram, para dizer pouco, um grande exagero. Fort Stanton estava há anos fechado e, embora certamente ainda ficava ali parte da equipe, duvidava seriamente de que tivesse ficado um pouco de valor.

Mesmo assim, tinha que admitir que havia algo naquela base do exército que a fazia sentir-se incômoda. Nunca tinha podido explicá-lo, mas, inclusive nas estranhas ocasiões nas quais tinha acompanhado a seu pai ao quartel, havia sentido algo inquietante naquele lugar.

À diferença do resto dos meninos que freqüentavam aquele ambiente, ela nunca tinha estado interessada nos uniformes, nem nas pistolas, nem na artilharia pesada. Em vez de aproveitar aquelas ocasiões para explorar, Marly corria acovardada ao escritório de seu pai, convencida de que algo terrível a esperava atrás de suas paredes.

À medida que tinha ido crescendo, tinha se dado conta de que não era a base que a atemorizava. Era seu pai. E, mentalmente, não podia separar ambas as coisas.

O coronel Wesley Jessop tinha passado os últimos dez anos de sua carreira no Fort Stanton e quando tinham fechado a base, aposentou-se em vez de aceitar um novo destino.

Aquilo sempre tinha parecido estranho para Marly. Em vez de ir em busca de outro destino como outros filhos de militares, seu irmão Sam e ela tinham passado a maior parte de suas vidas no Mission Creek. Marly supunha que deveria agradecer essa estabilidade, mas a gratidão não era um sentimento que fosse a sua mente quando pensava em sua infância.

Tirou uma lanterna do porta-luvas, saiu do carro e fechou a porta. Se havia vigilantes aquela noite, esperava que não vissem seu carro. Se a descobriam, a menção de seu pai provavelmente seria suficiente para que a soltassem, mas nesse caso, estaria em dívida com ele.

E estar em dívida com seu pai era um destino pior que passar uma noite no calabouço.

Marly continuou caminhando pela estrada principal, saltou a sarjeta e se dirigiu para uma zona na qual as pessoas da localidade continuavam se referindo como o antigo cemitério do Mission Creek. Lá por mil novecentos e quarenta, quando a expansão da base tinha ameaçado alcançá-los, as tumbas tinham sido exumadas e transladadas a outra zona da cidade. Mas embora as tumbas tinham desaparecido, todo mundo continuava considerando aquela zona como sagrada. A própria Marly tentava tratá-la respeitosamente. Se ainda ficavam por ali alguns espíritos, não queria ofendê-los.

Acendeu a lanterna e abriu caminho por aquele atalho pantanoso. Sinceramente, não sabia o que esperava encontrar.

Ouviu quebrar um ramo atrás dela e deu meia volta sem saber se realmente tinha ouvido algo ou era produto de sua imaginação.

—Há alguém aí? —perguntou nervosa.

Ninguém respondeu.

Começou a perguntar outra vez, mas não tinha nenhum interesse em particular em chamar a atenção sobre si mesma. Pelo que sabia, podia haver guardas patrulhando pelos arredores. Legalmente, as terras do cemitério nunca tinham formado parte do Fort Stanton, mas Marly temia que um vigilante armado de gatilho fácil não fizesse distinções.

—Sou a xerife Marly Jessop, do departamento de polícia de Mission Creek. Se houver alguém aí, por favor, saia de entre as sombras.

Continuava sem receber resposta. Não se ouvia nada, salvo o gotejar da água das árvores.

Marly desejou ter levado a pistola, mas jamais ia armada quando não estava de serviço. Além disso, não tinha nenhum motivo para pensar que podia correr algum perigo.

Mas então, por que lhe pulsava o coração com tanta força? E por que respirava de maneira tão irregular?

Estava assustada, essa era a razão, e, de repente, Marly se perguntou se possivelmente Deacon Cage não estaria tão louco. Possivelmente tivesse razão. Talvez houvesse um assassino no Mission Creek, e possivelmente o assassino era alguém que estava perto, vigiando-a…

Marly soltou uma risada nervosa para aliviar a tensão. Estava deixando-se levar por sua imaginação.

Um novo ruído a fez deter-se sobre seus passos. Daquela vez, Marly o reconheceu imediatamente. Era o som de sua própria voz. Havia começando a cantar, de forma suave, mecânica, a melodia que a tinha atormentado em sonhos durante anos:

«Domingo sombrio… Domingo sombrio… Domingo sombrio…»

 

                                                       Capítulo 6

Uma chuva fina e constante continuava caindo enquanto Deacon conduzia para casa de Sam Jessop para ver o apartamento do que lhe tinha falado Nona Ferris. Tinha chamado a primeira hora da manhã para marcar uma entrevista e Sam tinha estado de acordo em que se encontrassem depois das aulas.

A primeira impressão do Deacon foi de que aquele homem não se parecia nada a sua irmã. Entretanto, quando Sam o conduziu pela escada exterior para o apartamento, reconheceu alguns traços de Marly em seu perfil, no corte teimoso de sua mandíbula e seu queixo.

Perguntava-se o que diria Marly quando averiguasse que pretendia alugar o apartamento de seu irmão, ou como reagiria se soubesse que considerava Sam Jessop como um possível suspeito, apesar de que Camille ainda não tinha encontrado nada que incriminasse a ele ou ao Navarro. Nem sequer tinha averiguado nada sobre o Fort Stanton, por certo.

Mas Deacon tinha aprendido muito tempo atrás a confiar em seus instintos. Sua intuição lhe havia dito que Marly era a única que podia ajudá-lo a encontrar o assassino e também lhe dizia naquele momento que Sam Jessop era um homem que guardava um segredo.

Sam se voltou no alto das escadas e o olhou com certo receio.

—O apartamento é bastante pequeno. Espero que não tenha claustrofobia.

O apartamento era pequeno, sim. Mas Deacon gostou do que viu. Chão de madeira de carvalho, vigas no teto e altas janelas que deixavam entrar a luz a torrentes.

Os móveis, entretanto, deixavam muito a desejar. O sofá estava em bom estado, mas parecia de outra era, igual ao resto dos móveis e os adornos da sala de estar.

—O que lhe parece?

Deacon olhou a seu redor.

—Não está mau. Poderia ser justo o que estou procurando. Assumindo, é obvio, que o preço do aluguel seja razoável.

Na realidade não importava. Deacon não estava preocupado pelo dinheiro. Estava mais interessado em poder controlar as idas e vindas do Sam Jessop.

Sam disse uma cifra e Deacon assentiu.

—Então, durante quanto tempo disse que pensa ficar na cidade? —era uma pergunta aparentemente natural, mas Deacon teve a sensação de que havia algo mais que curiosidade atrás dela.

—Não o disse, mas no momento meus planos estão no ar.

Sam assentiu, mas não pareceu particularmente satisfeito com sua resposta.

—Como se inteirou de que alugava este apartamento, por certo?

—Alguém me comentou isso —Deacon encolheu os ombros— e decidi vir vê-lo.

—Inclusive sem saber ainda quanto tempo pensa ficar na cidade? É um pouco estranho alugar um apartamento nessas circunstâncias, não acha?

—Não vou escapar no meio da noite, se isso for o que lhe preocupa. De fato, lhe pagarei três meses adiantado mais a fiança.

Sam arqueou uma sobrancelha.

—E já está? Não quer ver o resto das habitações?

—Não o necessito. Eu gosto do que vi até agora. Além disso, não quero que ninguém me adiante.

Sam riu com ironia.

—Evidentemente, não leva muito tempo na cidade. Digamos que não há muito movimento imobiliário nesta cidade.

—Então fechamos o trato?

—Fechamos o trato, sim —Sam lhe estendeu a mão e a estreitaram—. Quando quer se mudar?

—Quanto antes melhor —disse Deacon—. Esta mesma noite se fosse possível.

—Tão logo? A casa está pintada e pronta, mas acredito que ainda seria melhor arejá-la um pouco.

Deacon observava o seu futuro caseiro. Embora Nona Ferris não lhe tivesse mencionado que Sam Jessop tinha estado no exército, Deacon o teria sabido por sua forma de mover-se e falar. Deacon suspeitava que Sam tinha passado vários anos arrolado e a disciplina militar, igual a suas experiências, estavam profundamente arraigadas em sua psique.

Sam elevou o olhar.

—Tem família por esta zona, senhor Cage?

—Me chame Deacon. E não, não tenho família na cidade. A verdade é que vim ver um conhecido, gostei da cidade e decidi ficar uma temporada.

—É estranho que alguém queira instalar-se em um lugar como este.

—Felizmente, não necessito muitos entretenimentos.

Sam estava a ponto de dizer algo mais, mas nesse momento soou seu celular e, depois de murmurar uma desculpa, tirou-o do bolso, aproximou-se da janela e começou a falar em voz baixa para que Deacon não pudesse ouvir a conversação. Quando se voltou de novo para ele, tinha o cenho franzido.

—Sinto muito, mas tenho que ir —se afastou a grandes passos para a porta—. Pode ficar todo o tempo que queira, mas fecha quando for. Oh —lhe tendeu uma chave—, necessitará isto se quer voltar.

—E o dinheiro?

—Traga quando voltar. E se necessitar ajuda para subir suas coisas, me avise.

—Obrigado, o farei.

Um segundo depois, ouvia os passos do Sam baixando as escadas.

Deacon se aproximou da janela. Observou Sam correr através da chuva até chegar ao pátio coberto anexo à casa principal. Mas em vez de entrar, deteve-se para elevar o olhar para o apartamento.

Deacon retrocedeu, mas continuava vendo o Sam no pátio. Tinha uma expressão estranha, uma expressão que Deacon não sabia como interpretar. Mas ativou todos os seus sinos de advertência.

Após um momento, Sam Jessop deu meia volta e desapareceu no interior da casa.

 

Marly tinha estado muito poucas vezes na casa de sua avó desde que Sam tinha comprado a casa de seus pais, mas não porque não gostasse de estar com seu irmão. Os dois tinham estado muito unidos desde que Sam tinha deixado o exército e tinha voltado para Mission Creek.

Mas aquela casa abrigava muitas más lembranças. Lembranças que lhe tinham provocado pesadelos durante anos embora, verdade fosse dita, Marly não tinha lamentado muito a morte de sua avó. Isabel Jessop tinha sido uma mulher amargurada cujo único prazer na vida tinha terminado sendo infligir sofrimento a outros, especialmente à mãe de Marly.

Isabel tinha sido tirânica, egoísta e cruel, mas, para desconcerto de Marly, Andrea Jessop jamais havia dito uma só palavra contra sua sogra. De fato, Andrea tinha sido a única que se preocupou quando a anciã não tinha aparecido na igreja naquela fatídica manhã.

O resto do dia estava gravado com fogo na memória do Marly. Ainda podia ver os pés de sua avó balançando-se no ar. Marly visualizava perfeitamente o vestido lilás, o sapato perdido e os diamantes de suas orelhas. E ainda podia ouvir aquela música.

Tomou ar e pressionou o timbre da porta. Quando esta se abriu, ficou momentaneamente desconcertada ao ver um rosto desconhecido atrás do mosquiteiro. Mas assim que reconheceu aquele rosto, espetou-lhe:

—O que está fazendo aqui?

Max Perry a olhou zombador. Era psicólogo do instituto da localidade e tinha estado trabalhando muito de perto com o departamento de polícia depois da morte dos dois adolescentes.

—Sam me convidou para jantar, quer jantar conosco?

—Ah, não, só passava a vê-lo um momento. Está aqui?

—Acaba de subir ao apartamento para assegurar-se de que seu novo inquilino não tem nenhum problema —comentou Max—. Passa à cozinha. Logo voltará.

Enquanto a conduzia pelo corredor, Marly não pôde evitar fixar-se na facilidade com a que Max parecia mover-se na casa de seu irmão. Ela, por sua parte, ainda tinha que lutar contra as vontades de olhar por cima do ombro para assegurar-se de que não estava deixando manchas de barro no chão.

Uma vez na cozinha, Max se aproximou de um dos armários e tirou duas taças.

—Quer um café? Acabo de fazê-lo.

—Não, obrigado —murmurou Marly.

—Oh, claro —Max se serviu um café—, Sam me comentou que não toma café. Provavelmente seja o melhor. Eu bebo muito.

—Não sabia que meu irmão e você eram tão bons amigos —comentou Marly com curiosidade.

—Bom, trabalhamos juntos. E depois de tudo o que aconteceu ultimamente no colégio, fizemos certa amizade.

Levou a taça à mesa e assinalou uma cadeira para que Marly se sentasse em frente a ele.

—Inteirei-me do Ricky Morais. Pela rádio disseram que ainda não foi determinada a causa de sua morte, mas naturalmente, especula-se com a possibilidade de outro suicídio.

Marly lhe observou levar a taça aos lábios. Tinha umas mãos bonitas, advertiu.

—Saberemos algo mais quando tivermos os resultados da autópsia.

Max assentiu.

—Se resulta ser outro suicídio, então será mais importante que nunca que abramos uma linha telefônica de assistência.

Marly sabia que Max tinha estado falando com o Navarro daquela possibilidade e lhe parecia uma boa idéia.

—Tenho entendido que tiveste algumas reuniões depois do horário escolar às que podiam acudir os alunos para falar sobre o que aconteceu. Acha que estão sabendo enfrentar à situação?

—Neste momento, é difícil dizê-lo. Esses suicídios têm preocupado a todo mundo. Estou pensando em abrir as reuniões a toda a comunidade. Os estudantes não são os únicos que necessitam apoio.

Marly não podia estar mais de acordo.

—Tinha visto alguma vez algo parecido?

—Não, mas ouvi falar destes fenômenos. Os sociólogos se referem a eles como suicídios em grupo.

—Posso te perguntar algo, Max?

Max lhe dirigiu um encantador sorriso que lhe fez parecer dez anos mais jovem.

—Pode me perguntar o que queira.

—Embora… embora soe completamente absurdo?

—Agora sim estou intrigado.

—Sabe algo sobre controle mental?

Foi evidente que aquela pergunta o sobressaltou.

—Suponho que o que estou perguntando… —se interrompeu e se mordeu o lábio inferior—, bom, pode parecer uma loucura, mas estou te perguntando se é possível que esses suicídios tenham sido induzidos por… outra pessoa.

—Acredito que não te sigo.

—É possível, em sua opinião, que alguém manipule a outra pessoa até o ponto de que essa pessoa possa chegar a fazer algo que em condições normais não faria?

—Refere a uma lavagem de cérebro?

—Algo assim. Sei que acontece em algumas seitas.

Max pensou um momento nisso.

—É certo que os líderes de algumas seitas podem ser extremamente persuasivos. Charles Manson foi inclusive capaz de induzir a seus fiéis a perpetrar assassinatos. E suponho que se poderia argumentar que algumas mulheres que continuam com seus maridos apesar de sofrer maus entendimentos sofrem uma forma de controle mental. De modo que sim, imagino que é possível, mas não acredito que esteja ocorrendo nada parecido neste caso. As vítimas não parecem estar relacionadas.

Antes que Marly pudesse seguir fazendo mais perguntas, abriu-se a porta traseira da casa e quase a aliviou poder interromper a conversação. Tinha a sensação de que tinha estado a ponto de soltar tudo o que lhe havia dito Deacon Cage e o último que queria era que começassem a desatar-se rumores.

—Bom, que agradável surpresa —disse seu irmão. Aproximou-se dela e a abraçou—. Espero que fique para jantar.

—Estava a ponto de começar a convencê-la —Max se levantou e não voltou para a mesa, advertiu Marly, mas sim permaneceu apoiado no mostrador, com um pé cruzado sobre o outro.

Marly também se levantou.

—Obrigado pelo oferecimento, mas não posso ficar. Só devia jogar uma olhada a algumas coisas da avó.

—Não me diga que quer uma lembrança de nossa adorável avó.

Marly lhe dirigiu um irônico sorriso.

—Olhe quem fala. Eu diria que você ficou com todas as suas lembranças. Nunca entendi como pode viver aqui.

Sam encolheu os ombros.

—Sempre gostei deste lugar. É uma casa antiga, com uma boa estrutura —olhou com orgulho a seu redor—. Além disso, penso desfrutar exorcizando o fantasma da Isabel de todas e cada uma das habitações.

Marly reprimiu um calafrio. Não acreditava que pudesse se desfazer do fantasma de sua avó por muito que renovasse e decorasse a casa.

—Buscas algo em particular?

—Seus discos. Tinha uma coleção insuperável.

—Sim —Sam abriu um armário e tirou um pote de molho de espaguetes—. Seus discos estão ainda em seu dormitório. E o velho fonógrafo deveria estar aí também. Quer que te acompanhe?

—Não, obrigado, posso ir sozinha.

O olhar do Sam se escureceu e Marly soube que estava recordando, igual a ela, a última vez que sua irmã tinha estado no dormitório de sua avó.

—Está segura de que não quer que te ajude?

—Estarei bem, de verdade. Desfrutem do jantar.

Marly saiu da cozinha e, estava a meio caminho das escadas, quando pensou em algo que queria perguntar a seu irmão. Retrocedeu pelo corredor até a cozinha, deteve-se no marco da porta e a pergunte lhe congelou nos lábios.

Sam tinha se aproximado do Max e os dois estavam de costas para Marly. Ambos estavam olhando pela janela, falando em voz muito baixa e Max posava a mão no braço do Sam.

A intimidade daquele gesto a impactou. Deu meia volta e correu com sigilo para as escadas.

 

                                                   Capítulo 7

Marly se deteve no final da escada, acendeu a luz e olhou a seu redor, tentando orientar-se. Nem sequer quando era menina freqüentava aquela parte da casa. Quando a família ia ver a avó, Isabel só lhes permitia entrar ao Sam e a ela em certas habitações. E, a maior parte das vezes, eram relegados ao alpendre ou ao pátio traseiro.

Mas de vez em quando, Marly e Sam se aventuravam a explorar. Sam adorava o apartamento de cobertura e Marly sempre tinha atraído o dormitório de sua avó. Os preciosos frascos de perfume e os cremes que tinha em cima da penteadeira exerciam um atrativo irresistível para uma adolescente a que nem sequer lhe deixavam lixar as unhas.

Em uma ocasião, o pai do Marly a tinha surpreendido depois de ter pintado os lábios com um batom de sua avó e ainda podia recordar a gelada fúria que refletia sua voz enquanto lhe ordenava que lavasse a cara e descesse ao piso de baixo. Marly tinha baixado lentamente, morta de medo.

Sua avó permanecia ao lado de seu pai no final das escadas, com o rosto crispado em uma careta de superioridade.

—Está vendo, Wesley. Disse uma e outra vez que estes meninos estão fora de controle. E deveria culpar a sua insensata esposa de sua conduta. Possivelmente se passasse mais tempo com eles em vez de com esse psiquiatra do Santo Antonio, teriam aprendido alguns maneiras.

—Não se preocupe —tinha respondido seu pai friamente—. Eu os controlarei.

Tinha agarrado Marly pelo braço e a tinha levado até a porta do alpendre.

—Sua avó tem razão —lhe havia dito uma vez ali, com o rosto rígido pela fúria—. É uma desgraça, Marlene Louise, e já é hora de que aprenda a respeitar as coisas dos outros.

Jamais tinha pego ao Marly, mas aquele dia, havia algo em seus olhos, algo… era como se estivesse fora de controle.

Sam também devia tê-lo sentido, porque se tinha equilibrado pelos degraus do alpendre com os punhos apertados e os olhos tão ferozes como os de seu pai.

—Deixa-a em paz!

Seu pai se voltou surpreso por aquele estalo. E quando tinha começado a caminhar para o Sam, este se tinha negado a retroceder. Ficou colado no chão inclusive quando seu pai o agarrou, arrastou-o até ao jardim, tirou o cinturão e lhe golpeou com ele.

Marly permanecia chorando no alpendre, mas Sam não tinha derramado uma só lágrima. E quando seu pai teve terminado, seu irmão se ergueu, tinha-o olhado aos olhos e lhe tinha feito uma saudação militar.

Aquele gesto irritou profundamente o seu pai, mas a partir daquele dia, Marly teve a sensação de que seu pai tratava ao Sam com mais respeito. E, a partir de então, Sam se tinha convertido no herói do Marly.

Aquela lembrança se desvaneceu para ser substituído por outro mais recente: o da mão do Max Perry sobre o braço de seu irmão. Marly também arquivou aquela lembrança. Não tinha tempo para pensar nele, mas o faria mais tarde. Analisaria-o e tentaria averiguar o que podia significar mas, no momento, precisava concentrar-se no que estava fazendo.

Entrou no dormitório de sua avó atemorizada. A habitação estava tal como ela a recordava. Limpa e ordenada. Se não fosse pelas más lembranças, seria uma habitação agradável, supôs Marly. No momento no que acendeu a luz, seu olhar voou para as vigas do teto e teve a sensação de que o espírito de sua avó ainda rondava por ali.

Estremecida, cruzou a habitação para aproximar-se do velho fonógrafo que descansava sobre o console e para a preciosa coleção de discos de sua avó.

Marly se ajoelhou e começou a revisar as capas dos discos. Não sabia o nome do cantor, de modo que tinha que ler os títulos de cada canção. Terminou de revisá-los todos, mas Domingo Sombrio não aparecia em nenhum deles.

Seria possível que a polícia tivesse confiscado o disco quando tinham registrado a casa depois da morte de sua avó? levaram outros objetos durante o curso da investigação e Marly não tinha a menor idéia de se os haviam devolvido. Por isso ela sabia, o disco podia estar perfeitamente em alguma sala da delegacia de polícia.

Sacudiu o pó das mãos, levantou-se e se aproximou da janela. A luz do apartamento que tinha construído seu irmão na garagem lhe recordou que Max Perry tinha comentado que Sam tinha um novo inquilino.

—Estou procurando o Sam —disse Deacon quando um homem ao que não conhecia lhe abriu a porta.

—Você deve ser seu novo inquilino —o homem lhe estendeu a mão—. Eu sou Max Perry, um amigo do Sam.

—Deacon Cage.

Do interior da cozinha, se ouviu a bem-vinda do Sam.

—Entre, Deacon.

Max se tornou a um lado para deixá-lo passar, voltou a apoiar-se em um dos mostradores da cozinha e olhou ao Deacon com curiosidade.

Sam permanecia em frente à cozinha, removendo algo que cheirava deliciosamente. Deacon não tinha comido nada do café da manhã e aquele delicioso aroma lhe fez ser consciente de seu estômago vazio.

Sam se voltou da cozinha.

—Estou preparando uns espaguetes. Nada complicado. Mas se quiser, pode jantar conosco.

A oferta era tentadora. E Deacon poderia havê-la aceito se não tivesse advertido o olhar de impaciência que aquele convite provocou no Max Perry.

—Obrigado, mas ainda tenho que desfazer as malas —lhe estendeu um envelope—. Te trouxe o dinheiro do aluguel.

Sam assinalou o mostrador com a cabeça.

—Deixa-o aí.

—Não quer contá-lo?

—Se falta algo, sei onde te encontrar —aquela noite parecia diferente, pensou Deacon. Mais amável e menos desconfiado—. Se não fica para jantar, quer tomar uma taça? Max acaba de abrir uma garrafa de vinho, mas eu prefiro a cerveja.

—Tomarei uma cerveja, obrigado —disse Deacon.

—Max, quer fazer as honras?

—Certamente —Max tirou uma cerveja da geladeira—. Quer uma jarra ou prefere bebê-la em garrafa?

—Em garrafa, obrigado —Deacon aceitou a bebida e lhe tirou a tampa.

—a pelo Mission Creek? —perguntou Max, enquanto se servia uma taça de vinho.

—Veio ver um conhecido —respondeu Sam por ele.

Max arqueou uma sobrancelha.

—Bom, temo que escolheste o pior momento para nos visitar. O tempo está atroz, e agora, com todos estes suicídios… —se interrompeu—, porque suponho que terá ouvido falar dos suicídios.

Sam o olhou com o cenho franzido.

—Maldito seja, Max, é que não podemos passar uma só noite sem falar desses suicídios? No colégio não se fala de outra coisa. Eu adoraria poder ter uma conversação que não girasse ao redor da morte e a chuva.

—Tirei o tema porque Marly e eu estivemos falando sobre isso —lhe explicou Max—. Como certo, Marly tem uma curiosa teoria sobre as seitas.

—Seitas? —Sam franziu o cenho—. De que demônios está falando?

—As seitas procuram aplicar formas de controle mental, lavagens de cérebro.

—Está de brincadeira, verdade? Uma seita em Mission Creek? Essa sim que é boa —mas a expressão do Sam era algo menos divertida.

—Poderia não ser tão rocambolesco como acredita —murmurou Deacon.

Max o olhou com curiosidade.

—Exceto pelo fato de que as vítimas não parecem ter nenhuma relação entre si.

—Possivelmente ainda não se pôde estabelecer uma conexão —disse Deacon.

A cordialidade do Sam pareceu desvanecer-se.

—Que classe de conexão poderia haver?

—Sim —disse Marly do marco da porta - é o que eu gostaria de saber .

No momento no que seus olhares se cruzaram, Deacon sentiu que lhe esticava o estômago. Aquela noite, Marly se tinha posto uns jeans velhos e um pulôver amarelo que realçava a cor dourada de seus olhos. Inclusive tinha pintado os lábios, fazendo-os parecer cheios, luxuriosos e indescritivelmente sensuais.

Marly não era uma mulher particularmente atraente, mas havia algo especial nela, uma espécie de sensualidade adormecida que parecia a ponto de florescer. E, agonizante de paixão, estaria preciosa, pensou Deacon.

—Marly —disse Sam—, eu gostaria de te apresentar ao Deacon Cage. Aluguei-lhe o apartamento da garagem. Esta é minha irmã, Marly.

—Já nos conhecemos —Marly entrou na cozinha com um brilho furioso no olhar—. Assim pensa ficar na cidade.

—Durante algum tempo —Deacon a olhou divertido—. Não há nenhuma lei que o proíba, verdade?

Marly esticou os lábios enquanto se colocava uma mecha de cabelo atrás da orelha.

—Voltemos para a conversação anterior. Se tiver descoberto alguma conexão entre todas essas mortes, estou muito interessada em ouvir falar dela.

—Há uma conexão em que estou seguro que pensastes —disse Deacon.

Os três o olharam espectadores.

—Dois estudantes, um ex-professor e um homem empregado no instituto.

Marly o olhou com ceticismo.

—Acredita que a conexão é o instituto?

—É uma conexão —respondeu Deacon—, o que não posso dizer é se teve ou não algo que ver com suas mortes.

—Mas Gracie Abbot se aposentou faz anos —assinalou Marly.

—Ainda fazia alguma substituição de vez em quando —disse Sam—. Embora não muito freqüentemente. Não se deve falar mal dos mortos, mas a verdade é que não era muito apreciada nem entre os alunos nem entre os professores.

—Era muito intrometida —murmurou Max.

Um vaio procedente da cozinha fez Sam soltar uma maldição.

—Maldita seja, me queimou o molho.

Deacon deixou sua cerveja e se endireitou.

—Será melhor que vá e lhes deixe jantar.

—Está seguro de que não quer ficar? —perguntou-lhe Sam.

—Não, obrigado. Tenho que desfazer as malas.

—E você, Marly?

—Eu também tenho que ir. O acompanharei à porta —disse ao Deacon.

Assim que estiveram no pátio, Marly se deteve e olhou por cima do ombro para a porta.

Deacon a olhou em meio da escuridão.

—Ocorre algo?

—Não, só estava me fazendo uma pergunta. Mas não importa. Estou mais interessada em averiguar como é que alugou o apartamento de meu irmão.

—Ontem ouvi alguém comentar que o alugava.

—E o fato de que esse apartamento pertença a meu irmão é só uma coincidência?

—Que outra coisa poderia ser?

—Não sei —respondeu Marly—. Me diga isso você.

—Marly, seu irmão aluga um apartamento e eu estou procurando casa. É algo tão simples como isso.

—E por que tenho a sensação de que nada relacionado com você é singelo? —seus olhos resplandeciam em meio da chuvosa escuridão—. Não sei por que está aqui, mas tenho minhas suspeitas. Acredito que é um jornalista que farejou uma boa reportagem, ou um detetive contratado por alguma das famílias das vítimas. Ou…

Deacon arqueou uma sobrancelha com expressão interrogante.

—Ou alguém que está completamente louco.

—Não estou louco —lhe assegurou Deacon—. E a única razão pela que estou aqui é que quero te ajudar.

—Isso é o que diz constantemente —repôs Marly com aborrecimento—. Mas o que não parece compreender é que não necessito sua ajuda. Não há nenhum assassino no Mission Creek.

—Está equivocada, Marly. Está completamente equivocada.

Deacon a viu estremecer-se em meio da escuridão.

—Demonstre-me isso.

—Quer uma prova? Sobe a meu apartamento e te darei o que necessita.

Aquele era o recurso mais antigo do mundo e Marly o olhou desgostosa, mas o coração começou a lhe pulsar violentamente no peito.

—Dá-te medo subir a meu apartamento?

Sim, pensou, dava-lhe medo. Mas o negou com a cabeça.

—Então sobe —urgiu Deacon brandamente—. Tenho algo que quero te mostrar.

Marly sabia que deveria resistir, mas perguntou a si mesma assentindo a sua petição e, embora não tinha idéia de por que, seguiu-o em meio da chuva.

Uma vez no interior, Marly olhou a seu redor, reconhecendo imediatamente os móveis que em outro tempo tinham pertencido a sua avó.

—Sinto não poder te oferecer nada —Deacon fechou a porta atrás deles—. Ainda não pude fazer nenhuma compra.

—Não importa, esta não é uma visita social —lhe recordou Marly.

—Pelo menos me deixe te ajudar a tirar a jaqueta.

Marly se deu conta de que estava gotejando sobre o tapete. Tirou a jaqueta e a estendeu.

—Sinto —lhe disse.

—Não importa. Quer uma toalha?

—Não, não se incomode —cruzou os braços—. Vejamos o que tem que me mostrar.

Se sua brutalidade o irritava, não o demonstrou. Deacon se aproximou da mesa e lhe entregou uma pasta.

—Dê uma olhada nisto.

Marly se aproximou a contra gosto dele. Abriu a pasta e examinou rapidamente seu conteúdo, pensando em um princípio que aquela dúzia de artigos relacionados com os suicídios eram da imprensa local. Depois se deu conta de que a data era de dois anos atrás.

Elevou o olhar confundido.

—Não o entendo.

—O que está acontecendo no Mission Creek já aconteceu antes. Faz dois anos, houve uma série de suicídios em Glynes, Oklahoma. Sete pessoas perderam a vida em quatro semanas.

—E? —Marly fechou a pasta e a devolveu—. Isso não demonstra nada. De vez em quando se produzem uma série de suicídios em uma comunidade. Max Perry diz que os chamam suicídios em cadeia.

—Não é o mesmo. Os suicídios em cadeia têm um catalisador ou existe algum tipo de vínculo entre as vítimas. Os suicidas do Glynnis não tinham nenhuma relação aparente. As vítimas pertenciam a diferentes ambientes, profissões e grupos de idade. Não se encontrou nenhuma conexão entre eles.

—Mas isso não demonstra que não fossem suicídios —insistiu Marly.

—Não foram suicídios. Foram assassinatos.

—Pretende me dizer que os suicídios do Glynnis e os daqui estão relacionados? Que o responsável é a mesma pessoa?

—Não é a mesma pessoa. Mas tem a mesma capacidade.

—De matar com a mente —Marly se sentia ridícula inclusive dizendo-o—. Continuo sem engolir isso.

—Suponho que terei que lhe demonstrar isso —Sua voz lhe fez estremecer e se perguntou se teria sido sensato subir com ele a seu apartamento. Louco ou não, era um homem muito atrativo e ela… Ela era polícia e poderia dirigir ao Deacon Cage.

Deacon deixou a pasta na mesa e baixou o olhar para Marly.

—Já te disse que o homem ao que está procurando tem um passado militar. Em algum momento, formou parte de uma equipe de operações especiais relacionado com uma estratégia conhecida como Projeto Montauk. O projeto estava dirigido por um grupo de cientistas e paramilitares cujo objetivo era criar um exército de guerreiros secretos, uma espécie de supersoldados com capacidades psíquicas especiais, que não se deteriam ante nada quando tivessem que levar a cabo uma missão.

—Capacidades como a psicoquinesia?

—Entre outras.

Marly esteve a ponto de soltar uma gargalhada.

—Espera que acredite nisso? Guerreiros secretos? Supersoldados? Vamos —ao ver que Deacon não sorria, sua própria diversão se transformou em assombro—. Não pode estar falando a sério. Olhe, se me dissesse que estamos tratando com um psicopata tão ardiloso que é capaz de fazer que suas mortes pareçam um suicídio, poderia estar disposta a escutá-lo. Se me dissesse que é tão inteligente e meticuloso que não deixa nenhum rastro atrás dele, provavelmente conseguiria que lhe prestasse atenção. Mas todas estas explicações de expediente X são uma loucura. Não sei o que se propõe, mas sim que me está fazendo perder o tempo.

Voltou-se para partir, mas Deacon a agarrou por braço.

—Espera um momento, Marly, disse que posso lhe demonstrar isso recorda?

Disse-o de uma forma que lhe fez tremer. Sua voz era muito sedutora, seus olhos hipnóticos. Marly tentou desviar o olhar, mas não o conseguiu.

Deacon permanecia muito perto dela e Marly conteve a respiração enquanto elevava o olhar para ele. Queria retroceder, queria dar a volta e sair correndo, mas não podia. Estava paralisada. Era incapaz de fazer nada, salvo tremer de terror, de antecipação.

Deacon elevou a mão e deslizou um dedo ao longo de seu queixo, mas mesmo assim, Marly não era capaz de mover-se. Deacon continuou descendendo por seu pescoço, pelo decote de seu pulôver, e Marly não foi capaz de fazer nada mais que gemer.

Deacon posou então a mão em seu pescoço e a atraiu para ele. E Marly se estreitou contra seu corpo, sem querer fazê-lo, mas sem opor resistência. Não tinha escolha.

Queria fechar os olhos e romper o feitiço, mas nem sequer podia fazer isso. O que fez em troca foi umedecer os lábios e entreabri-los para que a beijasse. Quando finalmente Deacon a beijou, sua respiração se converteu em um entrecortado ofego. Os joelhos lhe dobravam da impressão.

Fechou então os olhos, mas o feitiço continuava funcionando. De fato, era inclusive mais consciente da pressão da boca do Deacon contra a sua, forçando-a a abrir os lábios por completo. E então sentiu a invasão de sua língua.

Marly tremia dos pés a cabeça, tremia como se estivesse gelada, mas seu corpo estava ardendo. Não era a primeira vez que sentia a boca de um homem, as mãos de um homem, o corpo de um homem. Mas jamais tinha estado tão consumida pelo desejo como o estava naquele momento. Jamais tinha estado em perigo de perder o controle tanto como então. Não se reconhecia a si mesma. Não reconhecia os gemidos que escapavam de sua própria garganta.

Deixou-se cair contra seu peito, mas não para empurrá-lo, mas sim deslizou a mão pelos acerados músculos de seu abdômen e continuou baixando para pressioná-la contra suas calças. E então foi Deacon o que gemeu contra sua boca, foi ele o que perdeu o controle.

Deslizou as mãos no interior de seu pulôver, procurando seus seios e Marly se arqueou contra ele.

Estava tão absorta na paixão do momento que demorou para dar-se conta de que tudo tinha terminado. Mas de repente, Deacon tinha deixado de beijá-la. Tinha afastado as mãos de seus seios e havia lhe tornado a colocar o pulôver. Depois se afastou dela.

Marly nunca tinha se sentido tão afligida em toda sua vida. E tão profundamente traída.

Marly elevou o olhar para ele com os olhos obscurecidos pela confusão e o desejo. Não tinha se equivocado, pensou Deacon. Na agonia da paixão, Marly Jessop era uma mulher muito bela.

Enquanto permanecia em frente a ele, o desconcerto que refletiam seus olhos ia sendo substituído pela incredulidade. E pelo medo. E finalmente pelo horror quando se deu conta do que tinha passado.

Deacon tinha visto outras vezes aquele olhar.

Alargou a mão para ela, mas Marly se apartou bruscamente.

—Não me toque —começou a retroceder para a porta—. O que me tem feito?

—Marly…

—Não me chame. Não se aproxime de mim. Nem sequer me olhe. Não sei quem é você. Não sei o que está fazendo aqui, mas afaste-se de mim, me ouve? Não volte a aproximar-se de mim.

Marly correu para o carro através da chuva, abriu bruscamente a porta e saltou ao interior. Pôs o motor em marcha e ao sair as rodas patinaram perigosamente no asfalto. Advertiu-se a si mesma que devia tranqüilizar-se, concentrar-se em conduzir se não queria terminar na sarjeta, mas não podia pensar em nada que não fosse Deacon Cage. Não podia esquecer o que tinha estado a ponto de ocorrer entre eles. O que Deacon fazia que ocorresse.

Mas não era possível, disse a si mesma. Deacon não podia obrigá-la a fazer nada contra sua vontade. Certamente ela também o desejava. Uma parte dela queria.

Se agarrou ao volante com mãos tremulas. Através da chuva que caía sobre o pára-brisa pôde ver os raios que cruzavam o horizonte. Marly conduziu diretamente para eles. Conduziu sem olhar para trás. Conduziu através da noite como se a perseguisse o mais repugnante dos demônios.

Com o coração ainda palpitante, deixou o carro no estacionamento de seu edifício e correu até seu apartamento. Fechou-se no interior, derrubou-se contra a porta e fechou os olhos, tentando bloquear as lembranças. Mas não podia esquecer. Como ia esquecer quando ainda sentia o sabor da boca do Deacon nos lábios, quando ainda podia sentir suas mãos sobre seus seios? Caminhou cambaleante até a sala de estar, deixou-se cair no sofá e se abraçou a uma almofada.

—O que está me passando? —sussurrou.

Marly não era virgem, mas nesse momento se deu conta de que só fisicamente. Deacon Cage tinha aberto um novo mundo para ela, um mundo que jamais poderia ter imaginado.

E a assustava. Assustava-a como nada o tinha feito até então. Nem sequer seus piores pesadelos.

Tombou-se no sofá e voltou a cabeça para os raios que se filtravam pelas janelas. A tormenta se aproximava, mas Marly sabia que, por terrível que fosse o tempo aquela noite, não seria nada comparado com a tempestade que rugia em seu interior.

Uma tormenta silenciosa, compreendeu, que levava anos gerando-se.

 

Deacon franziu o cenho enquanto observava o carro do Marly e conteve a respiração no momento em que patinou. E só quando perdeu de vista os faróis traseiros, deu-se conta de que estava apertando os punhos com força. Relaxou-os, mas isso não diminuiu a tensão que bulia em seu interior.

Não deveria ter deixado que se fosse correndo em meio da chuva estando tão afetada, mas, naquelas circunstâncias, não podia fazer muito mais. Já tinha ido muito longe. Tinha assustado a ela até tal ponto que possivelmente já não pudesse reparar o dano. Deveria ter tentado ganhar sua confiança.

Mas não tinha podido evitá-lo e isso era o que mais o assustava. Fazia que Marly o desejasse para lhe demonstrar que tinha razão, mas se tinha descoberto desejando-a. Tinha estado a ponto de fazer algo impensável. Imperdoável. Tinha estado a ponto de perder o controle da situação e isso era o mais perigoso.

Começou a apartar-se da janela, mas a chama de um raio lhe fez ver que algo se movia no jardim.

Deacon observou o mesmo lugar durante um longo momento, até que um novo raio o convenceu de que seus olhos lhe tinham jogado uma má passada. Não havia ninguém.

Mas enquanto continuava olhando a chuva, sentiu-o. Uma delicada sondagem. Uma tentativa de exploração no interior de sua cabeça. Um décimo de segundo antes que Deacon fosse plenamente consciente do perigo, um tentáculo invisível tinha estado a ponto de penetrar as defesas de sua mente.

Tinha baixado a guarda durante muito tempo. Tinha deixado que Marly distraísse sua atenção. Mas não voltaria a acontecer.

Porque Deacon sabia, com pavorosa certeza, que o assassino estava ali. Muito perto. E acabava de lhe jogar a luva.

 

                                               Capítulo 8

Marly bateu na porta do escritório do Navarro na manhã seguinte e colocou a cabeça.

—Queria me ver?

Navarro lhe fez um gesto para que entrasse.

—Passe, xerife, e feche a porta.

Max Perry estava sentado em frente ao escritório do Navarro e se levantou quando Marly entrou. Mas a terceira pessoa que havia na habitação fez que ao Marly lhe revolvesse o estômago. Era Joshua Rush, que se apoiava contra a parede com os braços cruzados enquanto lhe dirigia um rápido e insolente olhar.

O cabelo loiro escuro e os olhos azuis de menino lhe davam um aspecto que fazia com que todo mundo confiasse nele. Seu magnetismo era inegável, mas o que a maior parte das pessoas não via, ou preferia ignorar, era a crueldade que se escondia atrás de seu deslumbrante sorriso.

Marly olhou nervosa para o Navarro, sentia-se como se estivessem a ponto de lhe tender uma emboscada.

Navarro assinalou outra das cadeiras que havia em frente a sua escrivaninha.

—Sente-se.

Marly obedeceu, cruzou as mãos no regaço e olhou para a frente. Mas podia sentir o olhar do Joshua sobre ela, e também aquele sorriso tão carismático com o que tinha conseguido enganá-la em outro tempo. O mesmo sorriso que naquele momento era capaz de lhe gelar o sangue nas veias.

Voltou a olhar ao Navarro.

—O que ocorre, senhor?

—Max me comentou que ontem estiveram falando sobre as últimas mortes do Mission Creek.

—Tivemos uma conversação, sim.

Teria mencionado Max seu interesse pelas seitas e o controle mental? Seria esse o motivo da reunião? Pensaria Navarro que estava perdendo a cabeça?

Depois do incidente no apartamento do Deacon Cage, Marly não estava segura de que pudesse argumentar nada em sua defesa. Ainda sentia calafrios quando pensava em como tinha perdido o controle.

—Comentou-me que está interessada em abrir uma linha telefônica para atender consultas relacionadas com o tema.

—Bom, sim —disse Marly, respirando com mais tranqüilidade—, sempre pensei que seria uma boa ideia.

—Me alegro de ouvi-lo —Navarro se reclinou em seu assento—. Eu gostaria que ajudasse ao Max a pô-la em funcionamento. Já conseguimos um número especial da companhia telefônica e, de momento, utilizaremos uma das salas da delegacia de polícia. O próximo passo será divulgá-lo. E aí é onde você intervém.

—O que quer que faça? —perguntou Marly.

—Por uma parte, precisaremos repartir folhetos impressos. É um trabalho em que pode ajudar. Max também esteve dirigindo uma série de reuniões no instituto que quer abrir ao público. A primeira é esta noite, no auditório do instituto, e eu gostaria que acudisse como representante do departamento de polícia. Queremos nos assegurar de que todo mundo saiba que estamos profundamente preocupados com todas essas mortes e decididos a encontrar respostas —Navarro se interrompeu e a olhou aos olhos—. Alguma pergunta até agora?

Sim, pensou Marly. Tinha muitas perguntas. Queria pensar que Navarro lhe estava oferecendo aquele trabalho porque tinha fé nela, mas, de algum jeito, não estava convencida de que fosse essa sua motivação. Não podia evitar perguntar-se se estaria sabendo da visita que lhe tinha feito Lisa Potter e se lhe estava atribuindo aquele trabalho só para distraí-la.

—Max também acertou uma entrevista no programa do Phil Garner para esta tarde —estava dizendo Navarro.

—Uma entrevista? —a mera idéia de ter que responder perguntas em direto fez que lhe suassem as mãos—. Não sei se sou a pessoa mais adequada para…

—Relaxe —murmurou Max—, eu me ocuparei de tudo.

Marly lhe dirigiu um agradecido sorriso e olhou de novo para o Joshua. O que pintava ele em tudo aquilo? Teria convencido ao Navarro para que lhe encarregasse essa missão porque considerava que era mais apropriada para uma mulher que o trabalho de investigação? Joshua sempre tinha albergado certas expectativas para sua futura algema e o dia que o tinha deixado, Marly lhe havia dito exatamente o que podia fazer com essas expectativas.

Sua ruptura não tinha sido amistosa e Marly não tinha vontade de ter nenhum tipo de relação com seu ex prometido, nem sequer trabalhista. Tinha conseguido evitá-lo durante meses e de repente aí estava, no mesmo escritório que ela.

«propõe-se algo», pensou Marly estremecida ao vê-lo sorrir.

—Provavelmente estará se perguntando o que estou fazendo aqui —comentou Joshua.

—Chamamos a todos os responsáveis pelas Igrejas da zona para que se envolvam no projeto —lhe explicou Navarro—. Pedimos ao reverendo Rush que abra à reunião inicial porque sua igreja é a que se viu mais afetada pelos suicídios.

O rosto do Joshua era uma máscara perfeita de preocupação e tristeza.

—Estão sendo uns momentos de prova para nossa congregação, como pode imaginar. Suponho que recorda, Marly, que David e Amber pertenciam ao grupo de jovens, e a senhorita Grade não só cantava no coro, mas também era nossa mais devota catequista —seus olhos se umedeceram—. Naturalmente, estou desejando ajudar tudo o que possa para que a comunidade saiba como enfrentar essas tragédias.

Além disso, pensou Marly com cinismo, os suicídios eram um mau negócio. Se as pessoas perdiam a fé nele, descenderia a assistência a sua igreja, e também as coletas dos domingos.

A reunião durou alguns minutos mais. Quando Navarro a deu por terminada, Marly se levantou para seguir ao Max e ao Joshua, mas antes que pudesse sair, Navarro lhe pediu que ficasse.

Assinalou para a cadeira que Marly acabava de abandonar.

—Tenho a sensação de que não está especialmente emocionada com a missão que lhe atribuí.

Aquele comentário a pegou despreparada.

—Não é isso… É só que, não sei se sou a pessoa indicada para fazer esse trabalho. Não levo muito tempo no departamento de polícia e, certamente, não tenho nenhuma experiência como relações públicas. A verdade é que nem sequer sou uma pessoa muito sociável.

—Este é um terreno novo para todos nós —lhe explicou Navarro—. No departamento não há ninguém que tenha experiência em relações públicas. Mas você foi à universidade e sabe dirigir-se às pessoas com delicadeza. Isso é mais do que posso dizer da maior parte de meus xerifes.

—Mas eu me graduei em educação —assinalou Marly.

—Uma razão a mais para lhe atribuir esta missão. Quando era professora, tinha que tratar com pessoas difíceis e em situações difíceis.

Sim, pensou Marly. Essa era a razão pela que só tinha durado um ano dando aulas.

—Farei tudo o que possa —respondeu em voz alta.

—É o único que lhe peço —quando Marly começou a levantar-se, Navarro acrescentou—: Só uma coisa mais —se inclinou para frente. Olhava-a de maneira muito intensa, advertiu Marly, e teve a estranha sensação de que, de algum jeito, a estava provando—. Ouvi dizer que Deacon Cage veio vê-la outro dia na delegacia de polícia.

Marly sentia calafrios só ante a menção de seu nome.

—Sim, veio para me ver.

—O que queria?

—Deacon tem uma teoria sobre os suicídios.

—E é?

Marly não estava segura do que queria lhe contar ao Navarro sobre sua conversação com o Deacon Cage.

—Comentou algo sobre que os suicídios poderiam não sê-lo.

Navarro elevou o olhar.

—Que disse o que?

Marly encolheu os ombros.

—Sei que parece uma loucura. De fato, no princípio eu pensava que estava louco. Que era um louco que se inteirou dos suicídios pelas notícias e tinha decidido aproximar-se aqui para tentar intervir na investigação. Agora tenho outra teoria.

—Que é?

—Acredito que é um jornalista que pretende inventar uma nova perspectiva para esta historia com o fim de vender mais jornais. Ou possivelmente tenha sido contratado por alguma das famílias para procurar algo que possa ser utilizado em uma denúncia, possivelmente desacreditando ao departamento de polícia.

Navarro pareceu refletir sobre isso durante alguns segundos.

—Investigou-o?

—Sim, mas no momento não apareceu nada.

—Bom, continue indagando. Seja qual for o trambique que se traz entre mãos, parece ter tomado a você como objetivo. Veja o que pode averiguar sobre ele, mas cuide-se. Pelo que sabemos, esse homem poderia ser perigoso.

«me diga algo que não saiba», pensou Marly enquanto se levantava e saía do escritório.

Quando abandonou a delegacia de polícia um pouco mais tarde, Joshua estava esperando-a. Chamou-a, mas Marly o ignorou. Joshua baixou correndo os degraus da entrada atrás dela e a agarrou pelo cotovelo para detê-la.

Marly se voltou e apartou o braço.

—O que acha que está fazendo?

Joshua elevou as mãos, para lhe demonstrar que não era uma ameaça.

—Só queria falar contigo, isso é tudo.

—Não temos nada que falar.

Joshua a olhou com expressão de arrependimento.

—Te equivoca, Marly. Não pode esconder tudo o que passou entre nós sob o tapete e esperar que desapareça. Não até que não ponhamos as coisas em ordem.

—Acredito que aquele dia em seu escritório, tudo ficou perfeitamente claro. O capítulo um de minha vida está fechado. Já nem sequer penso nisso.

—Mentirosa —disse Joshua com um sorriso que desatou sua fúria. Aquele homem tinha um ego sem limites.

—E tem a coragem de me chamar mentirosa? Toda sua vida não é outra coisa que uma mentira.

—Vamos, Marly, já é hora de que te desfaça de toda essa amargura. Além disso, se formos trabalhar juntos…

—Deixemos uma coisa clara —o interrompeu—. Você e eu não vamos trabalhar juntos, pelo menos se eu tiver algo que dizer a respeito.

Joshua a olhou com os olhos abertos como pratos e expressão inocente.

—Não ouviste o que disse Navarro? Quer que os líderes das Igrejas se envolvam nesse programa para a comunidade. E como você vai ser o contato do departamento de polícia, passaremos muito tempo juntos. Algo que, tenho que admitir, estou desejando. Assim teremos oportunidade de limar algumas de nossas diferenças. E, quem sabe? Possivelmente até possamos reiniciar nosso noivado.

—O dia que se gelem os infernos —disse Marly entre dentes.

Joshua se limitou a rir.

—Sua mãe alguma vez lhe disse que não é bom queimar todas as pontes?

—Algumas pontes é preferível fazê-las saltar em pedaços —disse Marly friamente—. Sempre esteve tão preocupado por sua imagem… Me pergunto o que ocorrerá com sua reputação quando sua congregação se inteire de que teve uma aventura com Crystal Bishop quando estava comprometido comigo.

De repente, desapareceu toda a inocência de seu rosto e o verdadeiro Joshua Rush apareceu no brilho furioso de seus olhos e a cruel careta de sua boca. Agarrou Marly pelo braço.

—E quem te acreditaria? Seria sua palavra contra a minha e todo mundo na cidade sabe quão patética é. Aqui está, com vinte e oito anos e nem sequer tem coragem suficiente para te apartar da sombra de seu pai. Basta que ele te diga que salte para que você lhe pergunte até onde.

Antes que Marly tivesse podido empurrá-lo, uma voz masculina disse atrás dela:

—Vai tudo bem?

Marly reconheceu a voz e gemeu por dentro. O último que queria era ser resgatada pelo Deacon Cage.

O sorriso do Joshua era angélico enquanto a soltava. Qualquer vestígio de seu aborrecimento tinha desaparecido como por encanto.

—Sinto-o —disse, estendendo a mão ao Deacon—, acredito que não nos conhecemos. Sou Joshua Rush, o reverendo Rush.

Deacon ignorou a mão que lhe estendia e se voltou para Marly.

—Está bem?

—É obvio —tentava manter uma atitude fria e profissional. Não queria a ajuda do Deacon, não a precisava—. Necessita algo?

—Eu gostaria de falar contigo —Deacon olhou para o Joshua—, em particular.

—Quer que fique um momento por aqui? —perguntou Joshua.

Oh, magnífico. Simplesmente, magnífico.

Joshua pretendia protegê-la do Deacon, Deacon pretendia protegê-la do Joshua e Marly não confiava em nenhum dos dois.

—Não —disse ao Joshua—, não necessito que fique por aqui. Você e eu terminamos —não havia nenhuma ambigüidade no que lhe estava dizendo e a máscara de amabilidade do Joshua caiu durante um breve instante, revelando sua irritação e seu aborrecimento.

—Bom, nesse caso, deveria voltar para meu escritório. Veremo-nos logo —lhe deu um beijo nos lábios antes que Marly pudesse protestar—. Estou desejando-o —sussurrou.

Reprimindo um calafrio, Marly esperou até que não pudesse ouvi-los para voltar-se para o Deacon. Quando seus olhares se encontraram, todos os seus terminais nervosos ficaram em alerta. De repente recordou cada detalhe de suas carícias, de seu beijo.

Marly desviou o olhar enquanto se sentia ruborizar.

—Temos que falar do que ocorreu ontem à noite —murmurou Deacon.

—Não, não temos que falar. O único que terá que dizer sobre o de ontem à noite é que não voltará a ocorrer.

—Não foi tua culpa, Marly.

—Se está tentando me dizer que me manipulou de algum jeito para… que fizesse o que fiz, equivoca-se. Ninguém pode me obrigar a fazer nada que não queira. Você não pode controlar meus pensamentos. Não pode meter-se em minha cabeça —se obrigou a respirar fundo e baixou a voz—. O de ontem à noite foi simplesmente um engano. Deixemo-lo assim.

—De verdade acredita, Marly? Essa é sua maneira habitual de responder a um primeiro beijo?

Marly não tinha respondido dessa forma a um beijo em toda sua vida. Mas não porque Deacon Cage tivesse controlado sua mente e manipulado seus pensamentos. Ninguém podia fazer isso. Nem seu pai, nem Joshua Rush. Ninguém.

—Ontem falava a sério. Não quero que se aproxime de mim.

—Por que?

No momento em que elevou os olhos, o escuro olhar do Deacon capturou o seu. Seus olhos a mantinham prisioneira e Marly não era capaz de desviar o olhar por muito que o tentasse.

—Se de verdade acha que não fui eu o que manipulou sua resposta, por que me tem medo? —desafiou-a.

Não era evidente?, desejava gritar Marly. Não a aterrorizava que tivesse sido ele o que a tinha feito responder. O que realmente lhe dava medo era que não o tivesse feito.

 

Phil Garner era um homem diminuto cuja plácida e cavalheiresca conduta contrastava com sua rica voz de barítono e sua desafiante e às vezes brusca personalidade como locutor de rádio. Era uma instituição em Mission Creek e levava na rádio mais tempo do que Marly podia recordar.

Phil se tinha mostrado encantado de ceder os últimos trinta minutos de seu programa ao Max Perry e a Marly e, em deferência à seriedade do assunto, tinha diminuído a brutalidade de seu estilo. Entretanto, não deixava de fazer perguntas carregadas de intenções que Max dirigia com profissional aprumo.

Marly tinha que admitir que ambos os homens estavam conscensiomaente preparados e se sentia deslocada sentada entre eles. Quando por fim se apagou a luz que indicava que estavam no ar, foi um alívio poder sair. Enquanto Max ordenava suas notas, Marly se voltou para o Phil.

—Tem um minuto livre? Eu gostaria de falar contigo.

Max a olhou com curiosidade.

—Quer que lhe espere fora?

—Não, pode partir, bom, se Phil pode me conceder um minuto.

Phil olhou o relógio.

—Sim, ainda fica um pouco de tempo. Vamos a meu escritório.

Despediram-se do Max e se afastaram os dois pelo corredor.

—Do que se trata? —perguntou Phil enquanto abria a porta do escritório e acendia a luz. Apontou para uma cadeira que havia em frente a seu escritório.

Assim que ambos estiveram instalados, Marly perguntou:

—Conhece uma canção chamada Domingo Sombrio?

—Pergunta por alguma razão em particular?

—Minha avó estava acostumada a cantá-la —respondeu vacilante—. Sempre tive curiosidade sobre ela.

—Não tem nada a ver com o que está acontecendo por aqui?

—O que quer dizer?

Phil encolheu os ombros.

—Domingo Sombrio é uma canção que convida ao suicídio.

Marly o olhou surpreendida.

—Por que?

—De verdade não sabe? —Phil se reclinou em sua cadeira e cruzou os braços—. Essa canção tem toda uma história por trás. Não sei até que ponto é certa ou se trata de uma lenda urbana, mas essa canção alcançou uma grande notoriedade na Europa em mil novecentos e trinta e foi relacionada com uma quebra de onda de suicídios.

Ao Marly lhe puseram os nervos de ponta.

—Relacionada de que maneira?

—Supostamente, a letra desta canção é apoiada na nota que deixou um suicida antes de atirar-se pela janela de um sétimo andar. Outro homem se deu um tiro depois de ter ouvido essa canção soando em um pub. Há muitas histórias, mas minha favorita é a de um menino dos recados em Roma, que ouviu a canção e começou a cantarolá-la. O menino estacionou sua bicicleta, deu todo seu dinheiro a um mendigo e se atirou por uma ponte.

Marly teve de repente uma estranha sensação na boca do estômago. Não podia evitar se perguntar se sua avó também conheceria essas histórias.

—Se quer escutá-la, tenho a versão do Billie Holiday —lhe disse Phil—. De fato, outro dia me pediram isso.

Marly elevou o olhar bruscamente.

—Sabe quem lhe pediu isso? E quando?

—Posso averiguá-lo. Pelo menos o quando. Conservamos todos os pedidos que nos fazem para não terminar repetindo sempre as mesmas canções —acendeu o computador, procurou na tela e se deteve—. Aqui está. O pedido nos chegou no domingo passado, justo depois do meio-dia. O ouvinte nos pediu especificamente que puséssemos Domingo Sombrio à uma da tarde.

—Sabe quem chamou?

—Não, às vezes nos dão um nome, mas a maioria dos pedidos são anônimos. Minha produtora é a que seleciona as chamadas. Se quiser, pode falar com ela, mas duvido que se lembre. Os domingos têm as linhas abertas durante todo o dia e nos pedem todo tipo de música. Ela aponta o título das canções e a hora que se emitem. Como te disse, nós não gostamos de nos repetir.

Marly assentiu, mas sua mente corria a toda velocidade. No domingo às treze horas, esses eram o dia e a data do primeiro suicídio.

 

Crystal Bishop se meteu na banheira e suspirou enquanto se afundava entre as bolhas. Já estava ficando tarde e deveria ter-se conformado com uma ducha rápida, mas o prazer do banho era muito tentador. Além disso, ela tinha tido que esperar muitas vezes ao Joshua. De fato, tinha tido que esperá-lo durante quase um ano até que Marly os tinha surpreendido.

Mesmo assim, sabia que o encontraria de péssimo humor quando chegasse a sua casa. Joshua tinha muito pouca paciência com a impontualidade, exceto com a sua, é obvio. Crystal tinha a sensação de que ultimamente não tinha paciência com nada. Custava-lhe admiti-lo, mas era suficientemente inteligente para ver o que se escondia atrás dos sinais.

Era óbvio que Joshua tinha a outra pessoa. Era alguém de quem Crystal jamais teria suspeitado, mas os havia visto juntos essa mesma manhã.

Passava casualmente diante da delegacia de polícia e os tinha visto ali, estreitados um contra o outro e olhando-se aos olhos. Tentou convencer a si mesma de que aquilo não era o que pensava. Não podia ser. Marly não sentia nada pelo Joshua.

Em algum lugar, no interior da casa, Crystal ouviu um algo parecido com uma porta ao fechar-se. Ficou muito quieta, esperando que aquele som se repetisse, mas não ouviu nada, de modo que decidiu que teriam sido ou sua imaginação, ou algum vizinho que tinha dado uma portada no carro.

Mas não, voltou a ouvir algo. Naquela ocasião, era um som diferente, como se alguém estivesse procurando em uma gaveta.

O coração lhe subiu à garganta. Havia alguém em sua casa, rebuscando entre suas coisas.

Em condições normais, não teria chegado tão rapidamente a essa conclusão, mas depois de tudo o que tinha passado na cidade, depois da morte do Abby, e da desses meninos… e da do pobre Ricky…

Saiu da banheira sustentando uma toalha contra o peito e jogou o ferrolho da porta do banho. Depois olhou a seu redor. O que ia fazer? Não havia telefone no banheiro e tinha o celular na bolsa. E, inclusive se pudesse forçar a janela que havia em cima da banheira, não estava segura de que pudesse deslizar-se por ela.

Possivelmente deveria tranqüilizar-se e esperar, decidiu Crystal. Provavelmente fossem alguns adolescentes estúpidos procurando dinheiro para drogas. Encontrariam sua bolsa, tirariam o dinheiro e partiriam.

O trinco da porta do banheiro se moveu e Crystal afogou um grito. Tremendo incontrolavelmente, viu como girava o trinco da porta e, horrorizada, observou como rodava o ferrolho.

Mas não era possível…

A porta se abriu então e Crystal soltou um grito e retrocedeu. O chão estava empapado, escorregou e, ao cair, golpeou-se a nuca contra a banheira.

Gemendo, levou a mão para a parte posterior da cabeça e sentiu algo úmido. Tentando superar o enjôo, engatinhou até a porta, mas alguém lhe bloqueou o passo.

Com a respiração convertida em uma série de ofegos entrecortados, elevou o olhar confundido.

—O que… o que está fazendo aqui?

Algo caiu a seu lado no chão e Crystal o olhou horrorizada.

E então, com um lento movimento, alargou a mão para a faca.

 

                                                 Capítulo 9

Deacon detectou pânico em mais de um rosto da multidão que se reunia no auditório aquela noite. A maior parte dos assistentes eram pais de adolescentes que foram ao instituto com o David Shelley e Amber Tyson e tinham assistido à reunião com a esperança de ouvir algo que pudesse ajudá-los a evitar a tragédia em sua própria família.

Mas não tinham a menor idéia do que estavam enfrentando, pensou Deacon enquanto se apoiava contra a parede e os observava com a sensação de que eram cordeiros aos que estavam levando ao matadouro.

Escrutinou o auditório com o olhar, perguntando-se se o assassino estaria em alguma parte, escondido entre familiares e amigos.

Centrou o olhar no soalho e deixou que se detivesse em Marly. Ainda levava o uniforme e se perguntou por que não se teria fixado antes no quanto lhe assentava bem. Para ser uma mulher pequena, tinha umas curvas surpreendentes. Sinuosas e perigosamente sexys. Pelo menos para ele.

E se fosse ela a que tinha conseguido lhe roubar a vontade? Marly não era uma mulher particularmente atrativa. Mas Deacon não tinha podido tirá-la da cabeça depois do que tinha ocorrido em seu apartamento na noite anterior. Tinha sonhado com ela. Tinha sonhado com sua boca aberta sob a sua, com seu corpo suplicante e ofegante contra o seu. Aquela manhã despertou cedo, excitado, frustrado e mais que ligeiramente incômodo pela facilidade com a que aquela mulher tinha se metido sob sua pele. Pela facilidade com a que tinha baixado a guarda com ela.

Incapaz de voltar a dormir, aproximou-se da janela e, enquanto observava cair a chuva, prometeu a si mesmo manter Marly sob controle.

Mas apesar de sua resolução, não tinha podido deixar de pensar nela durante todo o dia, nem sequer depois do que lhe havia dito Marly aquela manhã. E naquele momento, não era capaz de apartar o olhar dela.

Sua atitude no soalho era a de uma mulher que não se sentia particularmente cômoda sendo o centro da atenção e, por alguma razão, isso a fazia mais atrativa ante seus olhos.

Marly respondia as perguntas que foram diretamente dirigidas a ela, mas em caso contrário, preferia que fosse Max Perry que o fizesse. A noite anterior, Max não tinha impressionado especialmente ao Deacon, mas aquela noite, tinha que admitir que estava dirigindo a reunião com delicadeza, perspicácia e uma boa dose de sentido comum.

Deacon observou durante alguns minutos mais e saiu. Uma vez fora, localizou o carro de Marly e olhou a seu redor, escondido entre as sombras enquanto se dispunha a esperá-la.

Quando Marly saiu do auditório meia hora depois, tinha começado a chover outra vez. Olhou para o céu, fez uma careta e correu para seu carro. Quando chegou a ele, viu Deacon esperando-a.

Marly se parou em seco. Ignorando a chuva, fulminou-o com o olhar.

—O que está fazendo aqui?

—Vim te ver.

—Pensava que tinha deixado as coisas suficientemente claras esta manhã —respondeu com frieza—. Agora, afaste-se de meu carro.

Deacon permaneceu onde estava.

—O que fiz ontem à noite foi completamente ofensivo e quero me desculpar por isso.

Marly apartou o cabelo empapado da cara.

—Não por isso. Já lhe disse esta manhã que não quero que se culpe do ocorrido. Foi culpa dos dois. O único que quero é esquecê-lo.

—Mas pode?

Marly suspirou pesadamente.

—Não, se insistir em me incomodar continuamente. Olhe —disse com impaciência—, aceito suas desculpas. Caso fechado.

Deacon assentiu.

—Agradeço-lhe isso, mas continuo dizendo que estamos cometendo um engano. Eu gostaria de te ajudar.

Marly elevou os olhos ao céu.

—Não está disposto a renunciar, verdade?

—Não posso quando há tantas vidas em jogo.

—Bom, então pode relaxar-se —respondeu Marly com um ponto de sarcasmo—. Vi o relatório da autópsia do Ricky Morais esta manhã. A causa da morte é um disparo que ele mesmo se deu. É um suicídio trágico, como o resto dos suicídios o foram, mas não é um assassinato.

—Como pode estar tão segura?

—Pelas provas. Ou possivelmente deveria dizer pela falta de provas. Ao contrário do que parece acreditar, ontem à noite não me demonstrou nada.

Aquilo pareceu ao Deacon um desafio e teve a tentação de lhe demonstrar então o que podia chegar a fazer. Lhe resultaria fácil fazer que o desejasse outra vez. Bastaria lhe olhar aos olhos e estabelecer uma conexão. Manipular sua mente e seus pensamentos até que só pudesse pensar nele. Até que seus sentimentos fossem tão intensos que a superassem.

O sexo seria incrível entre eles. Poderia fazê-lo, sim. Mas depois, quando Marly se desse conta do que lhe tinha feito, o odiaria. Jamais voltaria a confiar nele. Possivelmente nunca voltasse a confiar em ninguém e isso não estaria bem, porque uma mulher como Marly necessitava amor, embora ela não soubesse.

—Jante comigo esta noite —lhe pediu em um impulso.

Marly pareceu surpreendida pelo convite.

—Eu… não posso, tenho outros planos.

Deacon sentiu uma pontada de ciúmes absurdos e desejou lhe pedir que os cancelasse. Em troca, ofereceu-lhe:

—Um café então.

—Não tomo café.

—Chocolate quente, um refresco. Há uma cafeteria muito perto daqui.

—O Pato Vermelho, leva ali toda a vida.

—Então ficamos ali?

Marly começou a dizer que não, Deacon sabia que o tinha na ponta da língua, mas, de repente, trocou de opinião e assentiu.

Marly foi a primeira a chegar ao café, e em vez de esperar por Deacon na porta, correu ao interior, sacudindo a água do cabelo. Uma aborrecida garçonete lhe assinalou um reservado situado ao lado da janela e quando Deacon chegou, serviu a este uma xícara de café. Uns minutos depois, voltou com um chocolate quente para Marly.

A chuva aumentava, golpeava com força os cristais. As noites como aquela sempre tinham comovido de uma forma especial ao Marly. Faziam-na sentir-se sozinha.

Ignorando o vazio que sentia no peito, elevou a taça e deixou que o vapor do chocolate quente aliviasse seu frio.

—Como sabia onde podia me encontrar esta noite? —perguntou ao Deacon com curiosidade.

—Ouvi anunciar a reunião esta tarde na rádio.

Marly fez uma careta.

—Ouviu a entrevista? Estive tão mal como me pareceu?

—Esteve muito bem.

—Sim, claro —Marly suspirou—. Foi idéia do Navarro. Suponho que prefere me ter na rádio que correndo pela cidade com uma pistola. E não posso dizer que o culpe —murmurou—. Ainda não encontrei meu lugar no departamento de polícia.

—Outro dia, na casa do Ricky Morais, parecia controlar perfeitamente a situação —assinalou Deacon.

Marly o olhou surpreendida.

—De verdade? —encontrou um prazer incompreensível naquela observação.

Deacon deu um gole em seu café, olhando-a por cima da borda da taça.

—O que te fez querer ser polícia?

Marly encolheu os ombros.

—Na realidade não queria ser polícia. Necessitava um trabalho e havia um lugar no departamento de polícia.

—O que tinha feito antes?

—Trabalhava em uma igreja.

—Na igreja do reverendo Rush?

Marly esticou a mandíbula.

—Pois a verdade é que sim.

—Esta manhã, ao lhes ver diante da delegacia de polícia, tive a sensação de que se conheciam bastante bem.

—Suponho que poderia dizer-se que sim. Joshua e eu estivemos comprometidos.

Deacon não disse nada, mas Marly estava segura de que o tinha surpreendido.

—O que ocorreu? —perguntou Deacon por fim. E rapidamente acrescentou—: Não, não importa, não é meu assunto.

—Não, claro que não é —se mostrou de acordo Marly—. Não é assunto de ninguém, mas isso não evita que as pessoas não pare de falar disso. Alguns pensam que fui uma estúpida ao deixar que um homem como Joshua me escapasse de entre as mãos.

—Eu o teria dito ao reverso.

Marly sentiu uma revoada no estômago. De acordo, possivelmente não confiasse naquele homem, ou não confiasse em si mesmo quando estava com ele, mas tinha que reconhecer que sabia como dizer as coisas.

—Isso diz porque não me conhece —o acusou.

—Não, digo porque conheci ao reverendo Rush.

Marly não pôde evitar um sorriso.

—O que, não se deixou enrolar por seu carisma? —tomou uma colheradinha de chocolate—. Deveria ver como o trata a congregação. Os domingos, virtualmente o idolatram, e lhe encanta. Deleita-se com essa adoração, além de com as generosas contribuições de seus fiéis.

—Deduzo que não te arrependeste da ruptura —comentou Deacon.

—Digamos que passei os últimos oito anos de minha vida com um homem como Joshua Rush e no momento não penso passar o resto de meus dias com outro.

Seus olhares se encontraram sobre a mesa e Deacon assentiu, como se compreendesse perfeitamente o que lhe estava dizendo. Foi uma vinculação repentina que pegou Marly de surpresa. E a deixou sem respiração.

O coração começou a lhe pulsar violentamente quando se deu conta de que estavam sozinhos no café. Inclusive a garçonete tinha desaparecido.

Pensou de novo no beijo que tinham compartilhado a noite anterior e, antes que pudesse evitá-lo, seu olhar caiu sobre os lábios do Deacon. Eram uns lábios cheios e bem desenhados. Sexys, beijáveis. O que faria Deacon, se perguntou, se se inclinasse sobre a mesa e lhe desse um beijo? Se afastaria?

Não, se o que tinha ocorrido a noite anterior era um indicativo de algo. Marly imaginou de repente arrastando por cima da mesa e beijando até lhe fazer perder toda sua força de vontade. Até fazê-la incapaz de viver para outra coisa que não fosse sentir seus lábios sobre os seus, o sussurro de sua respiração contra seu pescoço, a pressão de suas mãos em seus seios…

Marly desviou o olhar para a chuva.

Ao cabo de uns segundos, Deacon lhe disse:

—Me fale de seu pai.

Marly franziu o cenho.

—Por que quer que lhe fale dele?

—Porque tenho a sensação de que para te conhecer tenho que conhecer a ele.

Marly afundou a colherinha no café.

—A verdade é que não há muito que dizer. É um homem dominante, megalômano, que tentou controlar todos os aspectos de minha vida, igual ao faz com a de minha mãe. O vi intimidá-la durante anos. Minha mãe nem sequer pode planejar um menu sem contar com sua aprovação. Diz-lhe como tem que vestir-se, pentear-se, inclusive o que pode ou não comer. Se engordar, ridiculariza-a até que emagrece. Se comprar um vestido sem sua permissão, lhe faz devolvê-lo. Se pudesse controlar até seu último pensamento, o faria. Mas não pode. Ou, pelo menos, comigo não foi capaz de fazê-lo. Podia me obrigar a me pôr roupa que odiava ou a comer coisas que me repugnavam, mas nunca pôde controlar minha mente. Ninguém pode —o olhou, como se Deacon fosse a rebatê-la.

Como não o fez, suavizou-se um pouco.

—Sabe o que é o mais triste? Que minha mãe nunca conheceu outra coisa. Seu pai era igual a ele. De fato, meu pai foi o protegido de meu avô quando foi destinado ao Fort Stanton. Quando meu avô foi enviado ao Pentágono, meu pai se encarregou do comando da base. Ele é muito mais velho que minha mãe e sempre me perguntei se se casou com uma mulher tão jovem só para poder moldá-la e chegar a ter a esposa que sempre tinha desejado.

—Essa é a razão pela qual decidiu ser da polícia? —perguntou Deacon—, para poder ter você o controle?

Marly se surpreendeu com sua perspicácia.

—Em parte sim, suponho. E em parte também porque sabia que meu pai não o aceitaria.

—E seu irmão? —perguntou Deacon com prudência—. Se parece com seu pai?

—Sam? Já o conhece, não se parece nada a meu pai.

—Mas seguiu os passos de seu pai, não? Ouvi dizer que esteve no exército.

Marly o olhou com receio.

—Por que está tão interessado no Sam?

—É meu caseiro, e além disso é seu irmão.

—Por que está tão interessado em mim? —perguntou-lhe então Marly.

«Porque é fascinante», teria gostado de lhe dizer.

—Porque necessito sua ajuda. E você necessita a minha.

—Para encontrar a um assassino que não existe. —Marly fechou os olhos e sacudiu a cabeça—. Nem sequer sei por que estou aqui —murmurou.

Deacon se inclinou para ela.

—Porque sabe que tenho razão. Sabe que o assassino está fora, em alguma parte.

Marly deixou escapar um comprido suspiro.

—Apresenta-se de repente na cidade e começa a formular todo tipo de teorias extravagantes, e se supõe que tenho que confiar cegamente nelas? Não sei nada sobre você.

—Sabe o suficiente.

—Não sei nada —replicou furiosa.

Deacon retrocedeu e a estudou um instante.

—Isso ajudaria? Que soubesse algo mais sobre mim?

—Não me faria nenhum dano.

—O que é que quer saber? —perguntou Deacon com relutância.

—Não sei —Marly colocou uma mecha de cabelo atrás da orelha—, como está tão interessado em minha família, por que não me conta algo sobre a sua?

—Não tenho família.

—Nenhuma?

Deacon encolheu os ombros.

—É melhor assim. Se não tiver família, ninguém poderá utilizá-la em seu contrário.

—Utilizá-la em seu contrário? Diz como se pertencesse à máfia —disse Marly secamente.

—À máfia não, mas, devido a meu trabalho, tive que enfrentar a gente muito perigosa. Gente a quem não faz precisamente feliz meu trabalho —disse criticamente.

—E no que consiste exatamente seu trabalho?

Deacon voltou a vacilar, como se estivesse debatendo-se sobre o que devia ou não lhe dizer.

—Trabalho para uma organização que se encarrega de perseguir assassinos.

—Refere-se… ao FBI?

—Não, não é uma organização como o FBI —elevou o olhar—. Recorda o que te contei a outra noite sobre o Projeto Montauk?

—Comentou que era uma equipe secreta de operações especiais —disse Marly—. Supersoldados… como os chamou? Soldados com habilidades psíquicas?

—Faz cinco anos, uma equipe desses soldados embarcou em um submarino para ir a um encontro no Atlântico Norte. A missão era tão secreta que os homens só deviam permanecer reunidos durante uns minutos antes de se afastar cada um a seu destino. Mas se produziu uma explosão a bordo antes que tivessem abandonado o submarino. Quando chegou a equipe de resgate uns dias depois, já era muito tarde para salvar à tripulação. Só sobreviveram ao acidente seis membros da equipe.

Marly o olhou confundida.

—E isso o que tem a ver com você? Ou com o que está passando no Mission Creek?

—Agora continuo —Deacon esperou a que a garçonete lhe servisse outro café antes de continuar—. Quando os homens se recuperaram, foram submetidos a rigorosas sessões nas que deviam dar parte do acontecido. Nelas se incluíam técnicas de lavagem de cérebro que não só lhes destroçaram as lembranças daquela missão, mas também os experimentos aos que tinham estado submetidos, em alguns casos, durante anos. Foram declarados como inúteis mentais pelo exército, de maneira que, se algum deles falava, ninguém acreditaria —se inclinou para Marly—. O problema era que tinham sido treinados para matar, já vê. E alguns não sabiam como deixar de fazê-lo.

—E aí é onde você intervém —disse Marly.

Deacon assentiu.

—A organização para a que trabalho esteve perseguindo a esses homens durante anos. Não só aos sobreviventes do acidente, mas também a outros que foram submetidos a experimentos similares na base das Forças Armadas do Montauk, no Long Island.

—E como lhes segue o rastro? Têm uma lista de nomes?

—Não é tão fácil. Os nomes de todos eles desapareceram dos arquivos quando se abandonou o projeto. Mas temos outras formas de localizá-los.

—Como quais?

—Quando eles utilizam suas habilidades especiais, são tema de conversação. Seguimos os rumores e, em algumas ocasiões, o rastro dos cadáveres.

Marly dissimulou um calafrio.

—Essa organização… está conectada com o governo?

—De algum jeito. Mas se pergunta a alguém, negaria sua existência, da mesma forma que negam todo o fiasco do Montauk.

Uma desculpa muito conveniente para ele, pensou Marly. Era como se estivesse preparando seu álibi, como se quisesse se assegurar de que não podia comprovar a veracidade de sua história.

—E se essa missão da equipe que se reuniu no submarino era tão secreta, como é possível que esteja informado dela?

—Porque eu ia a bordo desse submarino. Eu era um membro da equipe.

Marly o olhou com os olhos abertos como pratos.

—Quer dizer que você era um… supersoldado?

—Sim —disse Deacon com gravidade—. Estava treinado para matar.

 

                                                   Capítulo 10

Apesar do que Deacon havia dito a Marly, suas perguntas sobre seu irmão eram devidas a algo mais que um natural interesse. Um dos segredos mais escuros do Projeto Montauk era que estavam acostumados a utilizar aos filhos do pessoal militar para seus testes. As vítimas que escolhiam eram varões de entre nove e doze anos com grande rendimento físico e acadêmico. Deacon suspeitava que Sam Jessop, filho do coronel e neto de general, tinha sido um candidato perfeito.

Da janela de seu apartamento, Deacon observou ao Sam sair da casa, subir no jipe e afastar-se dali. Esperou até que perdeu de vista as luzes traseiras para sair do apartamento e baixar as escadas a toda velocidade. Fundiu-se com as sombras do jardim, embora não acreditava que corresse perigo de ser detectado. O jardim não se podia ver da rua e a chuva e a escuridão o protegiam dos vizinhos que pudessem aparecer na janela.

A fechadura da porta traseira era um modelo antigo que Deacon poderia ter aberto facilmente, mas não teve necessidade de fazê-lo porque Sam tinha deixado a porta aberta. Era quase como um convite, pensou com inquietação.

Entrou na casa e se deteve na cozinha para orientar-se. As duas noites anteriores, aprendeu o mobiliário de cor e foi capaz de se dirigir diretamente para a porta.

Deslizando em silencio pela casa às escuras, chegou até o vestíbulo. O salão estava à direita e a escada a sua esquerda. Subiu-a rapidamente.

A primeira habitação do andar de cima era o dormitório. Tirou a lanterna e o iluminou. Tudo parecia limpo e ordenado, mas o aroma das lembranças parecia impregnar aquele espaço. Deacon recordou o que lhe tinha contado Nona Ferris sobre a avó de Marly. Tinha se suicidado anos atrás e tinha sido Marly a que tinha descoberto o cadáver.

Deacon se perguntou se seria aquela a habitação em que tinha ocorrido. Imaginou Marly subindo lentamente as escadas, sentindo possivelmente o que ia encontrar ao final da escada.

Uma madeira rangeu em algum lugar da casa e Deacon deu meia volta. Permaneceu muito quieto, escutando na escuridão, apagou a luz da lanterna e se aproximou da porta. Se encostando contra a parede, percorreu o corredor até chegar às escadas.

Não havia ninguém.

Começou a caminhar, mas um ruído sutil, como o de uma caneta rodando sobre uma mesa, lhe fez ficar paralisado.

E, quase imediatamente, compreendeu seu engano.

O ruído procedia do andar de baixo, mas o intruso já estava no andar de cima, utilizando o poder de sua mente para se divertir. No décimo de segundo que Deacon demorou para compreendê-lo, o assassino saiu da escuridão para saltar contra ele.

Deacon estava ainda de costas e antes que pudesse girar, algo lhe golpeou na cabeça. A dor estalou atrás de seus olhos. Caiu para a frente e tentou se agarrar cegamente ao corrimão. Mas não pôde deter o impulso. Continuou caindo escada abaixo até aterrissar ao final da escada. Não podia dizer até que ponto estava ferido porque não era capaz de se mover. Nem sequer podia levantar a cabeça.

Mas durante um breve instante, antes de perder a consciência, Deacon teria jurado ouvir uma música. Uma melodia monótona que se repetia uma e outra vez.

 

Todas as quintas-feiras de noite, embora caíssem raios e centelhas, Marly tinha que jantar na casa de seus pais. Os dias que antecediam a esse jantar se converteram em uma espécie de ritual para ela. Começava pensando no jantar na segunda-feira, a preocupar-se com ele na terça-feira, a sofrer antecipadamente na quarta-feira, e nas quintas-feiras pela tarde quase estava doente de terror.

Marly se perguntava freqüentemente por que continuava se torturando, por que não colocava um fim de uma vez por todas naquele costume. A única resposta lógica que lhe ocorria era que o fazia por sua mãe. Por muito que Marly odiasse os jantares das quintas-feiras, sua mãe parecia os desejar. Era a única noite da semana que não passava a sós com seu marido.

Pelo que Marly sabia, seu pai jamais lhe tinha posto a mão em cima a sua mãe. Tinha outras formas de intimidá-la. Outras maneiras de atormentá-la. Era um homem frio e desumano, perito em apontar diretamente para as debilidades dos outros, incluindo as de seus próprios filhos.

Quando Marly bateu na porta, já tinha o estômago feito um nó e as mãos suarentas. Se a senhora Hicks, a governanta, não tivesse aberto tão rapidamente, Marly poderia ter dado meia volta.

Mas já era muito tarde. A senhora Hicks a apressou a entrar e lhe tirou a gabardina e o guarda-chuva.

—Onde está minha mãe? —perguntou Marly enquanto sacudia a água do cabelo.

—Pediu-me que lhe dissesse que descerá um pouco tarde esta noite.

Marly a olhou preocupada. Sua mãe nunca chegava tarde. Seu pai não suportava os atrasos.

—Não estará doente, verdade?

—Não comentou nada —a senhora Hicks pendurou a gabardina—. O coronel Jessop está no escritório, se quer ir lhe fazer companhia.

Marly fez uma careta. Isso era o último que gostaria.

—Acredito que antes vou ao banheiro.

Se jogava bem suas caras, poderia passar pelo menos cinco minutos no banheiro sem ter que ver seu pai.

De modo que se tomou seu tempo em pentear-se e maquiar-se e, quando por fim saiu, sua mãe já estava descendo. Marly correu a saudá-la.

Andrea estava tão adorável como sempre. Seu cabelo loiro estava penteado com a meia juba que tinha levado durante anos. O vestido de manga larga realçava a esbelteza de seus ombros e sua cintura estreita. A maquiagem, como sempre, apenas se notava. Era uma mulher discreta, elegante e com classe. Não havia nada em seu traje ou em sua atitude que pudesse despertar assombro ou ser motivo de conversação. Os anos que tinha passado junto a seu marido a tinham ensinado perfeitamente. Ninguém poderia lhe encontrar um só defeito, embora o coronel o tentasse com muita freqüência.

Se inclinou para dar um abraço na sua filha.

—Me alegro muito de te ver.

Marly a abraçou e retrocedeu preocupada.

—A senhora Hicks me disse que is chegar tarde. Está bem? Não estará doente, não é?

—Estou bem, carinho. Tive que ir dar um recado no último momento —posou a mão na bochecha de sua filha—. Mas me enternece que se preocupe por mim —sorriu e, de repente, Marly foi consciente de que sua mãe estava diferente aquela noite.

Era uma mudança sutil. O penteado e a maquiagem eram os de sempre, mas seus olhos pareciam resplandecer com uma certa emoção interna. Marly conteve a respiração. «meu deus», pensou, «está verdadeiramente preciosa».

O que teria posto aquela luz nos olhos de sua mãe? Certamente, tinha que ser algo mais que as vontades de ver seus filhos durante o jantar.

Soou o timbre e sua mãe lhe deu outro rápido abraço.

—Deve ser Sam. Irei lhe abrir. Você vá ver seu pai.

Marly preferiria ter esperado ao Sam, mas sua mãe a apresssou com uma suave cotovelada e, com inapetência, Marly entrou no estudo no que estava lendo seu pai. Era um homem alto e musculoso, em muito boa forma para ter completo já mais de sessenta anos.

—Olá, papai.

O coronel elevou o olhar de seu livro.

—Marlene.

Ninguém a chamava nunca dessa forma, salvo seu pai e sua mãe. Aquele era um nome que ela odiava.

O coronel deslizou um olhar crítico pela saia de couro e o pulôver negro com decote de pico. A Marly nunca tinham permitido sentar-se à mesa com calças quando era menina e, por alguma razão, não tinha quebrado nunca com aquele costume. Mas o couro era quase uma provocação.

—Parece uma prostituta com esse traje —foi o único comentário de seu pai.

A saia era bastante larga e o decote não revelava muito mais que seu pescoço. Marly elevou o queixo desafiante.

—Esse era justo o aspecto que pretendia ter.

Seu pai não se incomodou em responder.

—Houve outro suicídio. Navarro deve estar muito ocupado.

—Sim, está. De fato, pediu-me que seja a coordenadora de…

—Coordenadora? Surpreende-me que conheça sequer o significado dessa palavra.

Marly sentia que ia crescendo seu aborrecimento, mas dominou sua raiva. Queria que a noite transcorresse tão tranqüilamente quanto fosse possível pelo bem de sua mãe.

—Trabalharei com o Max Perry, o psicólogo do instituto, e com os líderes de várias Igrejas da comunidade para abrir uma linha telefônica que possa assessorar sobre os suicídios —se interrompeu. Estava ficando sem ar. Seu pai voltou a se concentrar no livro.

—Felicidades, Marly. Bem feito, Marly. Sabia que o conseguiria —murmurou ela.

O coronel elevou o olhar.

—O que?

—Nada. Aqui está mamãe —se levantou aliviada quando viu que sua mãe e seu irmão entravam no estudo.

O coronel apartou o livro e dirigiu a seu filho o mesmo olhar de desaprovação que lhe tinha dedicado ao Marly. Mas havia uma grande diferença. Ao Sam nunca tinha importado. Não se incomodava em arrumar-se para o jantar. Ou, possivelmente sim. Porque os jeans gastos e aquele pulôver negro de pescoço alto pareciam uma opção deliberada.

—Bom —disse sua mãe com alegria forçada—. Que agradável estar todos juntos outra vez. O que querem beber? Seu pai está tomando um uísque e eu um copo de vinho branco.

Isso queria dizer que se esperava que Marly bebesse também um vinho e Sam podia escolher entre as duas bebidas, embora sabendo sempre que um verdadeiro homem optaria por um uísque.

—Um Martini? —sugeriu Sam.

Produziu-se um intenso silêncio. Marly olhou rapidamente a seu pai. Todos os músculos de seu rosto se esticaram. Sabia que Sam estava provocando-o, mas não ia morder o anzol até que não estivesse seguro de que ia ganhar.

Marly emprestou atenção a sua mãe, que se estirava nervosa as mangas do vestido.

—Não sei se tem Martini —murmurou.

Sam levantou a bolsa de papel que levava com ele.

—Passei pela adega quando vinha para aqui. Me deixe fazer as honras —caminhou a grandes passadas para o bar móvel e começou a mesclar os ingredientes.

Quando terminou, levou uma bandeja com três taças.

—Mamãe?

Sua mãe estava sentada na borda do sofá, com os joelhos apertados, corretamente sentada, como sempre.

—Oh, não sei —olhou a seu marido—. Faz anos que não tomo nada mais forte que um vinho.

—Não vai te fazer mal —lhe assegurou Sam—. Inclusive, possivelmente você goste —como continuava duvidando, urgiu-a brandamente—: Vamos, mamãe, desfruta um pouco.

Sua mãe riu nervosa e aceitou uma das taças.

—Marly?

Marly normalmente tampouco bebia nada mais forte que o vinho, mas não pela desaprovação de seu pai. Tinha tido algumas experiências muito ruins com o álcool quando estava na universidade.

Sam pegou a última taça e brindou com Marly.

—A sua saúde. E não é um mau brinde, tendo em conta tudo o que está acontecendo por aqui.

Marly fez uma careta.

—Não me recorde isso.

—Oh —disse sua mãe, embalando sua taça—, inteirei-me do acontecido com Ricky Morais pela rádio. Que terrível deve ter sido para sua família.

—Eu não perderia meu tempo me compadecendo de gente como ele —Wesley Jessop estendeu a mão para a garrafa de uísque—. Esse maldito louco se disparou. Nunca compadeci aos covardes.

—Mesmo assim, eu continuo compadecendo a sua família —murmurou Andrea—. Provavelmente chamarei a sua mãe.

Marly elevou o olhar surpreendido.

—Conhece sua mãe?

—Não muito bem, mas vai a minha igreja.

—Sua mãe escolheu uma nova igreja, não lhes contou isso? —havia algo no tom de voz de seu pai, em seu olhar, que fez que Marly se estremecesse.

Aquela noite ia ocorrer algo. A tensão era mais intensa que habitualmente.

—Estou segura de que a meus filhos não interessam minhas atividades eclesiásticas —disse Andrea nervosa.

A governanta anunciou então que o jantar já estava preparado e os quatro se dirigiram para o salão. O coronel se sentou na cabeceira da mesa, sua mãe ao outro lado e Sam e Marly um em frente ao outro. Quando seus olhares se cruzaram, Sam lhe piscou um olho com um gesto conspirador que imediatamente lhe levantou o ânimo.

E, quase imediatamente, seu pai voltou a afundá-lo ao se queixar do alinho da salada, das verduras que acreditava excessivamente cozidas e da carne, que considerava crua. Para Marly tudo estava estupendamente bom enquanto comia e tentava ignorar os insultos de seu pai, dirigidos todos eles a Andrea, embora não tivesse preparado pessoalmente a comida.

—Então, mamãe, a que igreja se decidiu unir? —perguntou com curiosidade.

Sua mãe deixou cair o garfo no prato. Rapidamente o recuperou enquanto murmurava uma desculpa.

Seu pai deixou os talheres sobre o prato.

—Sim, Andrea, por que não falas a seus filhos de sua nova igreja?

—Não acredito que lhes interesse…

—Oh, eu acredito que sim. Sobretudo a Marlene —o gélido olhar de seu pai se transladou desde o Andrea para sua filha—. Ao que parece, sua mãe decidiu unir-se à igreja de seu antigo noivo.

Alguém escoiceou. Marly pensou que certamente tinha sido ela.

Seu pai assentiu.

—É verdade, sua mãe está encantada com seu ex prometido.

Marly sentiu que o sangue abandonava seu rosto enquanto olhava para a pétrea expressão de sua mãe.

—Do que está falando papai? —perguntou brandamente.

Andrea a olhou fugazmente aos olhos antes de cravar o olhar em seu prato.

—Estive assistindo aos serviços da Igreja do Glorioso Caminho.

—Desde quando? —perguntou Marly assombrada.

—Há uns meses — sua mãe continuava olhando furiosamente para seu prato—. Eu gosto dos sermões do Joshua. Os encontros inspiradores. Isso é tudo.

—Eu diria que há algo mais —a aguilhoou seu marido—. Sua mãe trabalha agora para a igreja, Marlene. Acredito que está fazendo o trabalho que fazia você, verdade, Andrea?

—Estive ajudando desde que morreu a senhora Abbot. Trabalho como voluntária várias horas por semana…

—Isso sim que é novo —a interrompeu Wesley—, uma mãe seguindo os passos de sua filha. Primeiro sua igreja, depois seu noivo e agora seu trabalho.

Andrea levou a mão à boca, mas quando elevou o olhar, seus olhos resplandeciam de uma forma que Marly jamais tinha visto. E não estava segura se era de desafio ou culpabilidade o que via neles.

Ao Marly lhe tinha revolto o estômago e sabia que não ia poder comer um só bocado mais.

Aquela era a melhor dieta do mundo, pensou secamente. Jantar com seus pais.

Mas, aparentemente ao menos, o apetite de seu pai não tinha diminuído. Tomou a faca e o garfo e reatou tranqüilamente seu jantar.

—O que será o seguinte?, pergunto-me, te deitar com o Rush?

Sua mãe emitiu um pequeno som de protesto e Sam disse entre dentes:

—Te cale.

Wesley deixou de comer.

—O que há dito?

Sam o fulminou com o olhar.

—Já me ouviste. Disse que feche a boca. Mamãe encontrou outra coisa, algo que é mais importante para ela. E já era hora de que o fizesse.

O rosto de seu pai estava vermelho pela fúria.

—Como te atreve a me falar dessa maneira? Não penso consenti-lo, ouviste-me? Não vou tolerar essa classe de insolência em minha própria casa. Vou ter que…

—O que? —o sorriso do Sam era glacial—, me pôr em meu lugar?

—Não me tente —lhe advertiu Wesley.

—Vamos —Sam jogou sua cadeira para trás—, levo esperando este momento toda minha vida.

—Acha que é suficiente homem para te pegar comigo? —mofou-se Wesley—. Acha que não sei tudo sobre ti? Deixou o exército porque não encaixava nele. Não é outra coisa que… —se interrompeu.

Contorsionava o rosto em uma careta que em princípio Marly atribuiu à fúria. Mas ia ficando cada vez mais vermelho, tentou tomar ar e levou as mãos ao pescoço.

—Meu Deus —disse Marly horrorizada—, está se engasgando!

Tudo pareceu acontecer em milésimos de segundos. Enquanto Marly se levantava da mesa e corria para seu pai, pôde ver de reolho o rosto de seu irmão. Sam permanecia sentado, com o olhar fixo em seu pai e, durante um breve instante, Marly teria jurado que continuava sorrindo.

 

                                                     Capítulo 11

Marly esperava no corredor do andar de cima que sua mãe saísse do dormitório principal. Quando por fim o fez, agarrou Marly pelo braço e baixaram juntas as escadas.

—Como vai? —perguntou Marly.

—Está descansando. O médico disse que ficará bem.

—E também disse que tem que ir ao hospital para que o examinem —lhe recordou Marly.

Estavam já no final da escada e sua mãe se voltou para ela.

—Já conhece seu pai.

Sim, e também pensava que conhecia a ela, pensou Marly. Olhou a sua mãe aos olhos. Aquela noite, a mulher que a tinha dado a luz parecia de repente uma estranha. Marly queria lhe perguntar pelas acusações de seu pai. Queria lhe advertir que se afastasse do Joshua Rush, e não porque ainda guardasse algum sentimento por ele. Não por culpa dos ciúmes ou do ressentimento, mas sim porque aquele homem era idêntico a seu pai.

Como se estivesse sentindo sua confusão, sua mãe lhe dirigiu um terno sorriso.

—Salvou a vida dele.

—Não fui eu sozinha. Sam também ajudou.

Depois de um segundo de vacilação, Sam tinha deslocado a seu lado e a tinha ajudado a tombar a seu pai no chão assim que Marly tinha conseguido desfazer-se daquilo que bloqueava sua garganta e tinha estado tomando o pulso. Mas assim que tinha chegado a equipe de emergências para se encarregar de seu pai, tinha desaparecido.

—Sim, mas você foi a primeira que correu para ele. Foi você a que conseguiu que voltasse a respirar —disse sua mãe brandamente—. Até esta noite, me custava te imaginar de polícia. Mas já não —os olhos de sua mãe resplandeciam com orgulho enquanto acariciava a bochecha de sua filha—. É uma mulher extraordinária.

Aquele foi um dos momentos mais comovedores que Marly tinha compartilhado com sua mãe. E não queria deixá-lo terminar. Os olhos lhe encheram de lágrimas.

—Obrigado, mamãe.

Voltou o rosto ligeiramente para ela e ao beijar a palma da mão de sua mãe, viu a cicatriz que tinha no pulso.

Uma cicatriz da que ninguém nunca falava. Uma cicatriz idêntica a que tinha no outro pulso.

Sam estava no alpendre, contemplando a chuva, quando Marly saiu.

—Pensava que tinha ido —disse surpreendida.

—Precisava tomar ar. Como vai?

—Ficará bem. Mas não irá querer ir ao hospital.

—Sim, sei. Falei com os enfermeiros antes que se fossem.

Marly se aproximou de seu irmão e permaneceu junto a ele em frente ao corrimão do alpendre.

—Parece que não vai deixar nunca de chover —disse com um suspiro.

—Antes você gostava da chuva —lhe recordou Sam—. Sempre dizia que quando chovia não tinha que se sentir culpado por estar dentro de casa, aconchegada com um livro.

Marly se estremeceu.

—Era tão estranha.

—Ambos fomos uns meninos muito estranhos. Mas a quem pode lhe assombrar tendo em conta o ambiente no que crescemos?

Marly estendeu a mão, deixando que as gotas de chuva caíssem sobre sua palma.

—Odeia-o, Sam?

—Você não?

—Às vezes —fechou o punho, como se quisesse apanhar as gotas de chuva—. Às vezes simplesmente me pergunto por que é como é. Não teve a melhor das mães…

—Deixa de desculpá-lo - disse Sam zangado.

—Não o estou desculpando —se defendeu Marly.

—Sim, está desculpando-o, mas é uma perda de tempo. Papai é como é. Terá que aceitá-lo e continuar. Dessa forma será muito mais feliz.

—Você é feliz, Sam?

Sam vacilou.

—Suponho que estou satisfeito. Assumi o que é meu pai e tenho feito o mesmo comigo.

E quem era ele?, perguntou-se Marly. Pensou na cena que tinha visto na cozinha de sua casa, na familiaridade com a que Max Perry tinha pousado a mão em seu braço, e de repente desejou lhe perguntar o que significava aquele gesto.

Mas como ia perguntar lhe a seu irmão, um homem adulto, um homem com o qual tinha perdido o contato durante anos quando estava no exército, um homem que tinha voltado para casa mostrando-se receoso e fechado, algo tão pessoal?

Além disso, se aquilo era algo que queria que soubesse, o diria, não?

Mas, e se estava esperando que o perguntasse? E se levava anos esperando que lhe fizesse essa pergunta?

Marly elevou o olhar para ele e reconheceu nas profundidades de seus olhos uma solidão que ela nunca tinha chegado a compreender plenamente.

Sam era seu irmão e ela o queria, lhe confiaria sua própria vida, mas, de repente, Marly se deu conta de que na realidade nunca o tinha conhecido.

Quando voltou para seu apartamento aquela noite, Deacon a estava esperando na porta. Marly se deteve em seco ao vê-lo e recordou imediatamente sua conversação.

«Fui treinado para matar».

Não estava segura de que gostasse de reatar aquela conversação. Ou, para ser mais precisa, não estava segura de que gostasse de estar com um homem que, ou era um completo demente ou era um cruel assassino. Ou ambas as coisas de uma vez.

Mesmo assim, tirou o chapéu a si mesmo caminhando para ele. Quando chegou a seu lado, elevou o olhar com relutância.

—O que está fazendo aqui?

Deacon afundou as mãos nos bolsos da jaqueta.

—Tinha que te ver.

—Como averiguou onde vivo?

—Esta é uma cidade pequena, Marly. Não me deu muito trabalho averiguá-lo.

Deacon se voltou então e Marly viu seu rosto.

—Oh, Meu Deus —sussurrou—, o que lhe passou?

Antes de poder deter-se, tinha posto a mão sobre uma de suas feridas.

Deacon escoiceou, mas não retrocedeu.

—Caí por umas escadas —murmurou.

—Está bem?

—Sobreviverei.

—Deveria ir ao hospital para que lhe examinassem.

—Estou bem, mas temos que falar, Marly —tirou as mãos dos bolsos e pareceu impor-se em toda sua altura sobre ela. Seus olhos resplandeciam na noite enquanto a olhava.

—Sobre o que? —perguntou Marly nervosa.

—Te disse no primeiro dia que o homem que estávamos procurando devia andar entre os trinta e os quarenta anos e tem um passado militar do que não gosta de falar, recorda-o?

Marly assentiu.

—Também te perguntei se conhecia alguém que encaixasse com essa descrição —a profundidade de seu olhar se intensificou de tal maneira, que Marly soube que não poderia desviar os olhos embora lhe queria—. Quero perguntar isso outra vez.

Marly sentia o estômago encolhido pelos nervos.

—Aonde quer chegar?

—Quero que me fale de seu irmão.

—Do Sam? O que tem o Sam?

—Quando esteve no exército, manteve-se em contato com a família? Ou passavam longos períodos de tempo sem que tivessem notícias dele?

Marly não gostava do rumo que estava tomando aquela conversação.

—Isso não é seu assunto —disse zangada.

—Só tem que responder uma pergunta. Ou tem medo de respondê-la?

Marly o fulminou com o olhar.

—Não tente me manipular. Acredita que não me dou conta do que está fazendo? Vivi com um professor dessas táticas durante anos —sua voz tinha um toque de desprezo—. Mas, de todas as formas, responderei à pergunta. Não, Sam não mantinha contato com a família. Em uma ocasião, passamos meses sem ter notícias dele. Um ano quase. E houve momentos nos que não sabíamos se estava vivo ou morto. Mas isso não demonstra nada. Meu irmão não é um assassino.

—Encaixa com esse perfil.

—Igual a muitas outras pessoas desta cidade —Marly continuava sem poder desviar o olhar.

—Quando voltou para casa, tinha lacunas na memória? Havia coisas que deveria recordar, mas das quais não conseguia lembrar-se?

Marly não queria seguir. Deacon estava tocando um ponto sensível. Sam era um homem diferente quando tinha retornado do exército. Mostrava-se sombrio, fechado, às vezes se comportava como um educado desconhecido. E não era capaz de recordar algumas coisas de sua infância, coisas que não deveriam ser importantes, mas eram. Pelo menos para ela.

—Quando eram pequenos, Sam passava algumas temporadas fora de casa? —insistiu Deacon.

Não tinha por que responder, advertia-lhe uma vozinha interior, mas se ouviu dizendo:

—Quando tinha dez anos, enviaram-no a uma academia militar. Esteve ali durante dois anos. E quando voltou…

—Também era um menino diferente, verdade?

Marly se levou a mão à boca.

—Como sabe tudo isso?

—Porque há outros iguais a ele. Alguns colaboravam com seus pais voluntariamente, outros eram enviados à força. A maior parte eram varões de entre nove e doze anos, que mostravam umas qualidades atléticas e acadêmicas superiores à média, além de certas capacidades psíquicas. Outros, como eu, fomos recrutados das filas do próprio exército. Submetemo-nos voluntariamente a esses experimentos porque pensávamos que estávamos servindo a nosso país, a toda a humanidade. Mas estávamos equivocados. O Projeto Montauk não estava destinado a melhorar a humanidade. Era só uma questão de poder.

Marly apertou os punhos.

—Não compreendo nem a metade do que diz, mas sei que meu irmão não é um assassino.

—E se te dissesse que poderia ter sido ele o que me atacou esta noite?

Marly deu um coice.

—Me disse que tinha caído pelas escadas.

—Depois de que alguém me desse um golpe na cabeça.

O coração de Marly se acelerou.

—Onde estava?

—Na casa de seu irmão.

—Marly o fulminou com o olhar—. Sam esteve comigo esta noite, não pode tê-lo atacado. E, por certo, que demônios estava fazendo você em sua casa?

—Esteve contigo toda a noite?

A mente do Marly voou rapidamente até a primeira hora da noite. Sam tinha chegado um pouco tarde a casa de seus pais. Havia dito que tinha parado na adega.

—Sim, jantamos juntos —lhe disse—. E foi um acontecimento um tanto traumático, assim, se me perdoar…

Deacon a agarrou pelo braço.

—Não deixe passar por cima o evidente, Marly.

—O que se supõe que quer dizer isso?

—Isso quer dizer que deve manter a mente aberta. Não pode descartar nenhuma suspeita.

—Suspeita? —seu tom se tornou gélido—. Nem sequer estou convencida de se cometeu algum delito, salvo o de invadir a casa de meu irmão. Poderia detê-lo por isso, sabe?

De algum jeito, foi empurrada contra a porta de seu apartamento. Deacon permanecia em frente a ela, bloqueando-a com seu corpo de maneira que não pudesse escapar. Pela primeira vez durante aquela noite, Mary sentiu autêntico medo.

—Tem que me acreditar, só nós podemos encontrar ao assassino.

—Como sei que não está inventando tudo isto? —desafiou-o—. Como sei que não é você o verdadeiro assassino?

Deacon lhe dirigiu um sorriso completamente carente de humor.

—Pelo menos acaba de admitir que há um assassino. Suponho que isso já é um progresso.

—Eu não admiti nada.

Deacon arqueou ligeiramente a sobrancelha.

—Ainda necessita provas?

Marly umedeceu os lábios.

—Não pode demonstrar o impossível. Não pode controlar meus pensamentos.

—Está segura? —elevou a mão e deslizou o dorso por seu queixo.

—Não me toque.

Deacon deixou cair a mão.

—Pode dar a volta e te colocar em seu apartamento quando quiser. Não lhe vou impedir isso.

Mas o estava fazendo. Possivelmente não com sua mente, mas sim com sua presença. Com a atração que crepitava entre eles embora Marly tentasse negá-lo.

—Tem me feito algo. Não sei o que é, mas…

Deacon deslizou a mão por seu cabelo e a pousou em seu pescoço.

—Deseja-me —lhe sussurrou ao ouvido.

Que o céu a ajudasse, mas sim. Era quase como uma dor física.

Deacon a beijou então. Foi um beijo longo que fez Marly se estremecer da cabeça aos pés, que lhe fez sentir como se houvesse algo a ponto de lhe explodir no peito. Deacon também estava acariciando-a. Deslizava as mãos por todo seu corpo. Tirou-lhe a jaqueta e a explorou mais intimamente. Marly quase não podia respirar. Sentia que algo crescia dentro dela. Algo poderoso, algo que não podia controlar.

Recostou-se contra a porta com os olhos fechados, tremendo e aterrorizada.

—Eu também te desejo —lhe sussurrou Deacon ao ouvido—, quero te levantar nos braços, te levar a seu apartamento, te deixar na cama e te despir lentamente. Quero tocar todo seu corpo, saborear cada centímetro de ti e depois, quero estar dentro de ti…

Marly se estremeceu contra sua mão e voltou a cabeça.

—Oh, Deus…

—Marly…

Deacon pronunciou seu nome com tanta ternura que lhe encheram os olhos de lágrimas.

—Possivelmente seja certo que controla meus pensamentos —sussurrou—. Talvez seja certo que tem algum poder sobre mim. Porque eu não perco o controle tão facilmente. Isto não é próprio de mim.

—Sim, sim o é. Esta é a verdadeira Marly. É uma mulher forte e apaixonada. E quanto antes o aceite, melhor estará.

Marly ainda não se atrevia a olhá-lo.

—Por que não se vai ao inferno? —disse sem muita convicção.

—Já estive ali, Marly.

Deacon se voltou então e se dirigiu para a chuva. Marly o viu cruzar o estacionamento até chegar a sua caminhonete, meter-se em seu interior e afastar-se dali. Continuou observando-o inclusive quando as luzes desapareceram na noite.

Observava a escuridão sabendo que aquela não era a última vez que ia ver o Deacon Cage.

 

Marly despertou sobressaltada, convencida de que havia alguém em seu apartamento. Podia senti-lo. Estava fora, em alguma parte, xeretando entre seus objetos pessoais, violando seu espaço privado.

O medo fazia pulsar com força seu coração. Estendeu a mão para a pistola que tinha deixado na gaveta da mesinha de noite e, agarrando-se ao frio metal da pistola, olhou na escuridão.

Continuava ali. Não podia vê-lo, mas estava ali. Sentia-o.

O que podia fazer?, perguntou-se frenética. Seu primeiro impulso foi esconder-se sob os lençóis com a esperança de que se afastasse. Mas os policiais não se escondiam. Os policiais assumiam o controle da situação.

Obstinada ainda a sua arma, apartou a colcha e pousou os pés no chão. E ficou paralisada pelo terror quando de repente soube. O assassino tinha ido lhe fazer uma advertência.

Mas não estava no interior de seu apartamento. Estava no interior de sua cabeça.

 

                                                       Capítulo 12

Navarro pediu para Marly que fosse a seu escritório na manhã seguinte, convocando-a para uma reunião. Além de Joshua Rush e Max Perry, havia outros quatro assistentes, todos eles pastores das Igrejas locais que estavam dispostos a somar-se ao programa que Max tinha aceito dirigir.

Marly estava sentada a um lado, fingindo tomar notas, mas sua mente a levava continuamente à noite anterior. No instante em que tinha visto ao Joshua e ao Navarro no escritório, tinha começado a pensar nas acusações de seu pai e não podia deixar de se perguntar pela relação de sua mãe com o Joshua.

Realmente haveria algo entre eles?

Elevou o olhar para ele. Ia vestido com umas calças chinesas de cor bege e uma camisa azul claro que fazia um perfeito conjunto com seus olhos. Levava o cabelo penteado com um estilo quase infantil e suas feições expressavam intensa preocupação enquanto escutava ao Navarro.

Mas seus olhos eram frios, cínicos, zombadores, pensou Marly.

A idéia de que sua mãe e Joshua pudessem ter estado… juntos a punha fisicamente doente. E lhe resultava difícil acreditar que sua mãe, depois de ter vivido tantos anos sob a tirania de seu marido, apaixonou-se por outro homem como ele.

Mas as pessoas tendiam a repetir seus enganos. A dela podia ser como um círculo vicioso e sua mãe era uma mulher vulnerável e insegura. E Marly sabia melhor que ninguém quão encantador podia chegar a ser Joshua quando se propunha algo. E que melhor forma de vingar-se dela por havê-lo deixado que seduzir a sua mãe?

Embora possivelmente estivesse se dando muita importância, admitiu Marly. Possivelmente nada disso tivesse a ver com ela. Sua mãe continuava sendo uma mulher atraente, desejável. Não era inconcebível que Joshua tivesse decidido somá-la a lista de suas conquistas.

Marly não podia acreditar que ela mesma tivesse podido ser tão crédula e estúpida. Ao olhar para trás, resultava-lhe fácil ver como os cuidados e os presentes do Joshua tinham formado parte de um plano de sedução. Como seu encanto e seu carisma a tinham cegado e impedido de ver sua sutil crueldade.

Felizmente, tinha descoberto ao verdadeiro Joshua antes que fosse muito tarde. Antes de se casar com ele. Antes de terminar como sua mãe.

Poderia ser ele o assassino?, pensou Marly com um repentino estremecimento.

A noite anterior, quando estava sozinha e assustada em seu dormitório, quase se tinha convencido a si mesma de que Deacon tinha razão. À luz do que tinha ocorrido entre eles anteriormente, quase queria acreditá-lo. Queria acreditar que sua conduta tinha sido provocada por algo mais que sua atração para um homem ao que quase não conhecia.

E se era verdade? E se havia alguém naquela cidade, naquela habitação possivelmente, com um passado militar e essas extraordinárias capacidades das que Deacon lhe tinha falado?

Marly olhou ao Tony Navarro e recordou os rumores que tinham circulado quando tinha chegado à cidade, incluindo o de que tinha formado parte de um corpo especial da marinha. Navarro nunca tinha confirmado nem negado aquele rumor. Não falava nunca de sua vida pessoal. Marly nem sequer sabia de onde era. Tinha chegado um bom dia à cidade, tinha sido contratado pela prefeitura e de repente Marly se descobria perguntando-se como teria conseguido convencer às autoridades tão facilmente. Por sua trajetória? Por sua personalidade? Ou era algo mais…? Teria tido que utilizar medidas extraordinárias para convencê-los?

Marly teria rido de suas próprias especulações se não tivesse sido por um fato absolutamente gracioso. Havia quatro pessoas mortas. Quatro habitantes do Mission Creek se tiraram a vida em menos de dez dias. Quatro pessoas que não tinham dado nenhuma amostra de estar deprimidas, e muito menos de pretender suicidar-se.

Gracie Abbot, David Shelley, Amber Tyson e Ricky Morais.

Quatro pessoas que, com exceção do David e do Amber, não tinham nenhum vínculo entre elas, salvo o da remota conexão do instituto.

E a Igreja do Glorioso Caminho.

Um escuro pressentimento se apoderou dela quando seus pensamentos voltaram de novo para o Joshua. Curiosamente, sabia muito poucas coisas sobre seu passado. Tinha-lhe contado o básico. Tinha crescido no sul, tinha assistido ao seminário no Memphis e lhe tinham devotado trabalhar em uma igreja a que ainda não tinham posto nome depois de que seu predecessor tinha aceitado um posto no Passo.

Era filho único e seus pais tinham morrido quando ele ainda estava no colégio. Não tinha nenhum familiar e essa era uma das razões pelas que tinha aceito o posto em Mission Creek. Aquela era uma comunidade muito unida e acolhedora. Em outras palavras, um substituto da família.

Desde que Joshua era pastor, a Igreja do Glorioso Caminho tinha triplicado seus membros. Joshua incluso tinha sabido atrair a fiéis de outras comunidades da zona que tinham terminado unindo-se a sua congregação.

Marly desviou o olhar para o Max Perry e compreendeu que tampouco sabia nada sobre ele. Tinha assumido o posto de psicólogo do instituto depois da trágica morte em um acidente de carro do anterior psicólogo durante as férias de Natal. A disponibilidade do Max tinha sido interpretada como um golpe de sorte por parte do instituto, mas, e se houvesse algo por trás daquela sorte?

Marly estava começando a suspeitar de todos os homens de Mission Creek, sobretudo daqueles aos que menos conhecia. E de idades compreendidas entre os trinta e os quarenta anos. Quão únicos possivelmente tinham um passado militar.

Deacon Cage lhe tinha implantado aquela suspeita quando, de fato, era a ele ao que menos conhecia.

—Marly?

Marly se sobressaltou ao ouvir seu nome, quando elevou o olhar, Navarro arqueou uma sobrancelha.

—Alguma pergunta?

Marly baixou o olhar para sua caderneta. Tinha a folha em branco.

—Não, senhor.

—Nesse caso, eu diria que já é hora de começar a trabalhar.

Marly se levantou e abandonou rapidamente a habitação, antes que alguém tivesse a oportunidade de detê-la.

—Quer me fazer um favor? —dizia Marly poucos minutos depois enquanto colocava a jaqueta.

Patty Fontes estava apoiada contra uma esquina de seu escritório.

—O que quer?

No instante no que Marly tinha saído do escritório do Navarro, Patty se tinha aproximado de sua mesa com a esperança de poder manter uma larga conversação com ela. Mas Marly não tinha tempo para fofocas aquele dia, embora sempre tinha desfrutado da companhia de Patty. A recepcionista era sociável e graciosa como Marly nunca poderia chegar a sê-lo.

—Se alguém te perguntar aonde fui, diga que saí a patrulhar.

Patty examinou suas perfeitamente manicuradas unhas.

—Claro, sem problema. E se alguém precisa te localizar?

—Inventa algo por mim. Me dê uma hora.

Patty arqueou uma de suas perfiladas sobrancelhas.

—Agora sim que estou morrendo de curiosidade. O que vais fazer, carinho?

—Preciso dar um recado.

Patty entrecerrou os olhos.

—Nada disso, você se propõe a algo. Leva a culpabilidade gravada no rosto —inclinou a cabeça e a escrutinou longamente com o olhar—. Se não te conhecesse…

—Se não me conhecesse, o que? —perguntou Marly com ar ausente.

Patty se inclinou para a frente e baixou a voz.

—Se não te conhecesse diria que tem o aspecto de uma mulher que aconteceu uma muito boa noite na cama.

Marly se ruborizou intensamente.

—Alguém te disse alguma vez que tem uma mente muito suja?

—Sim —Patty cruzou os braços, sem deixar de observá-la—. Quem é ele? —perguntou—. Vamos, me diga, quero detalhes.

—Está louca —murmurou Marly.

Mas lhe resultava difícil falar, porque as imagens que tinha tentado manter a raia durante toda a manhã, de repente pareciam ter ocupado toda sua mente.

«Eu também te desejo. Quero te levantar nos braços, te levar ao interior de seu apartamento, te deitar na cama e te despir lentamente. Quero acariciar todo seu corpo, saborear cada centímetro de ti e, depois, estar dentro de ti…».

O coração de Marly começou a acelerar-se. Bastava pensar no Deacon Cage, recordar sua boca e suas mãos, para perguntar-se, apesar de si mesma, o que seria tê-lo dentro dela.

«Meu Deus, o que está me passando?».

—Se olhe, está vermelha como uma beterraba —brincou Patty—. E vai me dizer quem é, verdade?

Marly baixou a cabeça, fingindo estar organizando os papéis de seu escritório.

—Não há nada que dizer.

—Sabe o que acredito? —Patty lhe dirigiu um sorriso—. Acredito que esse brilho de seus olhos tem algo a ver com o homem que veio te buscar no outro dia.

—Que homem?

—Esse que veio outro dia. Deacon Cage, acredito que assim se chamava.

Marly empurrou sua cadeira e se levantou.

—Sua imaginação não para.

Patty sorriu de orelha a orelha.

—Possivelmente. Não seria a primeira vez. Mas de uma coisa sim estou segura, com o Joshua seus olhos nunca brilharam dessa maneira…

Interrompeu-se de repente e murmurou algo quase imperceptível. Marly elevou o olhar. Joshua estava a menos de dois metros de seu escritório e, a julgar pela fúria que refletiam seus olhos, tinha ouvido todas e cada uma das palavras de sua conversação.

 

Marvin Bolt, o padrasto do Amber Tyson, abriu a porta rapidamente. Marly se perguntou se a teria visto chegar pela janela.

—Obrigado por ter aceitado me ver —lhe disse Marly enquanto entrava no vestíbulo.

Marvin fechou a porta atrás dela e a olhou com o cenho franzido.

—Ruby saiu para dar uns recados. Voltará em um par de horas, assim que isto terá que ser rápido. Não quero que chegue em casa e a encontre aqui. Já sofreu suficiente.

Marly assentiu.

—Compreendo-o, não demoraremos muito.

Marly esfregou o queixo com gesto de desconcerto.

—Ainda não compreendo por que quer ver a habitação do Amber.

—Só estou tentando compreender o que lhe aconteceu —lhe explicou Marly, embora sabia que era uma pobre desculpa—. Possivelmente nos ajude a evitar que possa lhe passar a alguém mais.

—Espero que tenha razão.

Conduziu-a pelas escadas até o dormitório do Amber e se deteve no marco da porta como se não tivesse coragem para entrar.

—Esta é sua habitação. Não sei onde pôs Ruby todos os objetos pessoais que lhe devolveu Navarro, mas suponho que estarão em alguma parte.

—Navarro devolveu os objetos pessoais do Amber?

—Trouxe uma caixa outra noite. Pensei que era um gesto muito amável, embora não posso dizer que seja um homem especialmente amigável. Mas apreciamos o gesto.

Um gesto que parecia completamente impróprio do Navarro. Normalmente, teria enviado a qualquer de seus ajudantes para uma missão como aquela. Mas supunha que isso demonstrava o pouco que realmente sabia sobre ele.

O dormitório de Amber era o típico de uma adolescente, decorado em diferentes tons de azul e com pôsteres de seus grupos favoritos nas paredes. Marly olhou ao Marvin, que não parecia querer invadir o espaço de sua enteada.

—Parece-lhe bem que olhe a habitação?

—Para isso veio, não?

Marly entrou na habitação e a percorreu lentamente, detendo-se para examinar uma prancha na qual Amber tinha colocado algumas lembranças pessoais. Fotografias de seus companheiros de classe, um prêmio em ciências assinado pelo Sam…

Marly ficou olhando fixamente o prêmio, momentaneamente desconcertada ao ver o nome de seu irmão na habitação daquela menina.

—Amber estava muito orgulhosa desse prêmio —disse Marvin do marco da porta, afundando as mãos nos bolsos dos jeans—. Era muito boa estudante, uma boa garota. Ia à igreja todos os domingos, embora a verdade é que eu não aprovava que o fizesse.

Marly olhou por cima do ombro.

—Ia à Igreja do Glorioso Caminho?

Marvin assentiu com expressão sombria.

—E por que não o aprovava? —perguntou-lhe Marly.

—Porque esse pregador, o irmão Rush, tem muita lábia —disse Marvin com desprezo—. Recorda a esses pregadores de televisão evangélicos. Os domingos pregam uma coisa para conseguir dinheiro e o resto da semana fazem o que gostam.

Tinha retratado ao Joshua com grande precisão, pensou Marly secamente.

—Eu não gostava que tivesse tanta confiança com esse tipo e o disse a Ruby. Não me parecia bem, ele era um homem adulto e Amber era só uma menina, acabava de fazer dezoito anos. Mas Ruby não queria ouvir nada contra ele.

—O que quer dizer exatamente com confiança? —perguntou Marly, tentando parecer natural.

—A chamava depois das horas da aula para lhe pedir que fosse à igreja por uma ou outra razão. Amber era um gênio com os computadores e sempre lhe dizia que necessitava ajuda. Depois a trazia para casa de carro, às vezes de noite. Eu não gostava, mas tampouco tinha muito que dizer, ao fim e ao cabo, só sou seu padrasto.

—Amber e você tinham problemas?

—Não mais do que os normais. É difícil aceitar a um novo membro na família, isso o compreendo. Ruby e eu nos casamos faz só uns meses, mas me parecia que as coisas foram bem até que Amber começou a ir a essa igreja. Então trocou.

—De que maneira?

Marvin encolheu os ombros.

—Sempre tinha sido uma garota muito sociável e começou a se voltar triste, fechada, como se nos estivesse ocultando algo.

—Não tem idéia do que poderia ser?

—Tenho minhas suspeitas. Mas guardei isso para mim. Possivelmente não deveria tê-lo feito. Possivelmente deveria ter tentado falar com ela, averiguar o que lhe ocorria. Possivelmente então não tivesse feito o que fez, mas… suponho que alguma vez saberemos, verdade?

Marvin se voltou com os ombros afundados e se afastou pelo corredor. Marly pôde ouvir seus passos pelas escadas e, uns segundos depois, o som amortecido do televisor.

Uma vez sozinha, aproximou-se da cômoda e procurou entre os lápis de lábios, as sombras de olhos e os perfumes, maravilhada de que uma adolescente pudesse ter um sortimento tão caro como aquele.

Viu uma pequena cruz de ouro pendurando de uma esquina do espelho do Amber e pegou, sentindo o frio do metal na mão.

Poderia ser Joshua a conexão entre todos aqueles suicídios, perguntou-se? David e Amber eram membros ativos do grupo de jovens e, conforme havia dito Marvin, Amber tinha uma relação muito estreita com o Joshua. Gracie Abbot participava da escola dominical e trabalhava no escritório, e embora Ricky Morais não estivesse diretamente relacionado com a igreja, sua mãe pertencia a ela.

E estava também o comentário de Nona sobre a suposta relação entre o Crystal Bishop e Ricky. E se Crystal houvesse voltado com o Joshua e Ricky tivesse descoberto…?

«Espera um momento», advertiu-se Marly a si mesmo. Estava começando a pensar como se de verdade acreditasse no Deacon Cage.

E se acreditava no dos assassinatos, não deveria acreditar também em todo o resto? Que era capaz de controlar os pensamentos alheios. Que podia manipular a mente de alguém até conseguir que fizesse o que ele desejava…

Como se não poderia explicar-se sua conduta?

Se era capaz de despertar nela aquele tipo de resposta por   apenas beijá-la e acariciá-la…

Não podia pensar nisso naquele momento, decidiu Marly. Precisava concentrar-se no que tinha ante ela e Deacon tinha chegado a converter-se em uma grande distração. Além de em uma ameaça para sua paz mental.

Aproximou-se da mesinha de noite e tomou um livro para ver o que Amber tinha estado lendo. Era A Letra Escarlate, certamente deveres de inglês. O simbolismo de uma relação ilícita e inapropriada provavelmente não era a não ser outra coincidência.

Mas quando Marly folheou o livro, caiu uma fotografia do meio das páginas e, ao agachar-se para recolhê-la, ficou gelada.

Era uma fotografia de seu irmão. Do Sam e alguns de seus alunos, para ser mais precisa. Estavam reunidos sobre um projeto de ciências e Marly reconheceu Amber e David Shelley no grupo. Estavam um ao lado do outro, mas Amber olhava ao Sam e havia algo em seu sorriso, em seus olhos, que resultava… quase íntimo.

Havia alguém mais na fotografia. Marly a aproximou da luz, tentando distinguir a figura que aparecia entre as sombras. Não podia estar segura, mas lhe pareceu que era Max Perry.

—Marly?

A voz do Deacon a sobressaltou de tal maneira que esteve a ponto de jogar o livro. Marly se voltou e o descobriu olhando-a do marco da porta.

Rapidamente, deixou a fotografia onde estava e fechou o livro.

—O que está fazendo aqui?

—Te vi sair da delegacia de polícia.

—E me seguiu? —seu tom era de indignação, mas se sentia profundamente culpada.

—Pensei que poderia te ajudar —Deacon entrou lentamente na habitação e olhou a seu redor.

—Com o que?

—Com a investigação —respondeu em tom desafiante—. Está procurando pistas, verdade? Alguma prova que aponte para o assassino —baixou o olhar para o livro que Marly ainda sustentava entre as mãos e Marly se perguntou de repente se, além de poder manipular os pensamentos, Deacon seria capaz de ler as mentes.

—Estou procurando a verdade —disse, deixando o livro na mesinha de noite.

—A verdade?

—Sobre o David e Amber. Acredito que nos precipitamos na hora de analisar seu suicídio —admitiu, e lhe falou da visita da prima do Amber—. Se nos equivocamos na motivação deste caso, se isto for algo mais que o suicídio de uma adolescente, não posso deixar de me perguntar o que outras coisas pudemos fazer mal. Possivelmente tenhamos descartado algumas pistas que poderiam nos ajudar a averiguar o que está passando.

—E acha que esse homem no que Amber estava interessada poderia ter algo a ver com sua morte?

—Não sei. Mas há algo do que me contou Lisa que me inquieta. Lisa ofereceu ao Navarro a mesma informação que a mim e ele se limitou a lhe dizer que o esquecesse, que não supunha nenhuma diferença. Que o caso estava fechado e falar de uma possível relação do Amber com um homem mais velho só serviria para fazer sofrer a sua família.

Deacon continuava passeando lentamente ao redor da habitação.

—Parece lógico.

—Não se conhecer o Navarro. É um investigador muito meticuloso. Não posso o imaginar escondendo nenhuma prova ou informação sob o tapete para evitar que alguém sofra. Não posso deixar de pensar…

Marly colocou uma mecha de cabelo atrás da orelha.

—Suponho que não posso deixar de pensar se não seria ele o homem pelo qual Amber se apaixonou.

Algo brilhou nos olhos de Deacon.

—Acha que é possível que Amber tivesse algum tipo de relação com o Navarro?

—Não é inconcebível. Todas as mulheres da cidade estiveram apaixonadas pelo Navarro desde que chegou.

—Incluindo você?

Deacon estava de costas a ela. Marly não podia ver sua expressão, mas havia algo em sua voz… Se não soubesse que era impossível, teria jurado que estava ciumento.

Mas não tinha sentido. Não havia nada entre eles. De fato, ainda eram dois desconhecidos.

Embora desde que o tinha conhecido, não tinha podido tirá-lo da cabeça. Inclusive depois das loucuras que lhe havia dito sobre o controle mental e a psicoquinesia, inclusive depois de que virtualmente tivesse acusado a seu irmão de ser um assassino, não tinha sido capaz de resistir ao beijo da noite anterior.

Naquele momento, Deacon estava em frente a penteadeira e seus olhos se encontraram no espelho. Deacon deslizou o olhar sobre ela, lhe recordando vividamente que, a um nível muito íntimo, já não eram desconhecidos.

—O que é isto? —murmurou Deacon, alargando a mão para agarrar algo do espelho.

Marly se aproximou dele, sustentava um olho de papel diminuto de cuja íris emanavam uns raios.

—É o símbolo da Igreja do Glorioso Caminho —disse Marly—, a igreja do Joshua.

Deacon elevou o olhar.

—Tinha-o colado no espelho, o que acha que pode significar?

—Possivelmente lhe recordava que um poder mais alto a vigiava de forma constante —ou possivelmente Joshua, pensou estremecida—. Seu padrasto acredita que podia haver algo entre o Joshua e ela.

Deacon voltou a colar o olho no espelho.

—E você o que pensa a respeito?

—Acredito que no que diz respeito ao Joshua Rush, algo é possível.

—Inclusive um assassinato?

Marly desviou o olhar.

—Não sei. Eu não confio nele.

Sua resposta pareceu satisfazê-lo, ao menos no momento. Cruzou a habitação e estudou o mesmo envelope que ela tinha estado examinando anteriormente. E soube que estava vendo exatamente o mesmo ela tinha visto. Ao cabo de uns segundos, Deacon se voltou.

—Sam era professor do Amber, não é?

—E? —Marly sabia exatamente aonde os ia levar aquela conversação. Não tinha gostado das acusações do Deacon na noite anterior e muito menos naquela manhã. Deacon se aproximou dela.

—Diz que quer averiguar a verdade? —tomou o livro da mesinha cabeceira e o estendeu—. Então não ignore as pistas, Marly. Escuta a sua intuição. Diga o que te diga.

 

Doris Keating olhou nervosa pela janela antes de fechar a porta. Era uma mulher pequena, de menos de um metro e sessenta, e não devia pesar mais de quarenta e cinco quilogramas. Marly a conhecia desde muitos anos. Os pais de Marly viviam justo no final dessa rua e quando ela era menor, a senhora Keating tinha sido sua professora de piano.

—Entre, Marly —a anciã estava de costas a ela quando entrou—. Meu Deus, chegaste muito rápido. Não te esperava até muito mais tarde.

Marly limpou cuidadosamente os sapatos no tapete antes de passar ao interior da cuidada casa da senhora Keating.

—Estava por aqui e decidi me aproximar.

—Foi ver sua mãe? —perguntou-lhe a senhora educadamente.

—Não, estou de serviço.

—Oh, querida —a senhora Keating reparou então no uniforme do Marly—, não terá havido outra morte, verdade?

—Não, não é nada disso. Como lhe disse por telefone, precisava dar uma olhada no interior da casa da senhorita Gracie. É pura rotina e, como você foi sua vizinha durante tanto tempo, pensei que possivelmente tivesse uma chave de sua casa.

—Bom, pois tem razão. Tenho a chave de casa de Gracie. Gracie e eu não só fomos vizinhas, fomos amigas, amigas íntimas —cruzou a habitação e tirou uma chave de um dos sapatos de cerâmica que tinha guardados em uma estante de nogueira. A entregou para Marly.

—Mas assim que termine, me traga isso, ouviu? Sei que Gracie não vai voltar a necessitar dela, mas me deu isso para que a guardasse. Eu não gostaria que ninguém pudesse entrar tranqüilamente em sua casa.

—Compreendo. Agora mesmo a trago —Marly se dirigiu para a porta, mas se voltou de repente—. Viu a alguém entrar na casa da senhorita Gracie ultimamente?

—Não, bom, só a esse jovem tão amável do instituto.

O coração do Marly deixou de pulsar.

—Que jovem amável?

—Esse cavalheiro, o senhor Perry…

Marly se voltou para ela.

—Max Perry?

—Estava interessado em comprar a casa de Gracie e queria saber se eu podia lhe proporcionar algum contato para isso. Disse-lhe que falasse com a sobrinha de Gracie que vive no Santo Antonio. Lhe dei seu cartão e se mostrou muito agradecido. Foi uma visita muito agradável. Esse jovem é um grande conversador, além de muito educado. Oh, e que mãos tão maravilhosas tem —suspirou—. Certamente, não me importaria de o ter como vizinho.

—O senhor Perry lhe pediu emprestada a chave? —perguntou Marly.

—Oh, não, isso foi idéia minha —mordeu o lábio—. Tenho feito algo mal?

—Não, é obvio que não —Marly lhe dirigiu um sorriso tranqüilizador—. Lhe trarei a chave assim que termine.

Uma vez fechada a porta, Marly cruzou o jardim sob a chuva. Depois de abrir a porta principal, dedicou alguns segundos a fazer uma composição da casa e correu do corredor até a cozinha. Uma porta conectava o quarto da máquina de lavar roupa com a garagem e quando Marly entrou, procurou automaticamente o interruptor de luz. Como a luz não se acendeu, perguntou-se se a teriam desligado.

Na garagem, havia duas janelas pequenas que davam ao jardim, mas o dia era tão cinza que quase não entrava luz, de modo que Marly tirou a lanterna.

A garagem era suficientemente espaçosa para dar capacidade ao carro da senhorita Gracie, às ferramentas do jardim e a habitual acumulação de objetos. Marly se aproximou do carro com uma crescente sensação de inquietação. Era arrepiante estar na mesma habitação que alguém que tinha morrido tão recentemente. Aquele era um aspecto de seu trabalho ao que nunca terminaria de acostumar-se.

Abriu a porta do carro e iluminou seu interior com a lanterna. Olhou o dial do rádio. Estava no número da emissora da localidade. Se a senhorita Gracie tinha aceso a rádio ao sair da igreja, estaria escutando Domingo Sombrio ao entrar da garagem. Seria possível que tivesse chamado ela mesma para pedir essa canção? Que tivesse planejado até o último detalhe de seu suicídio?

Ou se tratava de um trabalho mais sutil? De algo muito mais sinistro? Estaria utilizando o assassino essa canção para enviar uma mensagem para Marly?

«Diz que quer saber a verdade? Então não ignore as pistas, Marly. Escuta sua intuição».

Mas Marly não queria escutar sua intuição. Não queria se aprofundar na possibilidade de que aquela canção fosse realmente uma pista, porque isso só podia significar uma coisa: o assassino tinha que ser uma pessoa próxima a ela.

Com o coração palpitante, voltou para o carro e enquanto se endireitava, viu alguém aparecendo na janela. Foi uma sombra que desapareceu tão rapidamente que Marly se perguntou se não teria sido sua imaginação que a tinha conjurado. Tinha sido como quando via o fantasma de sua avó na janela depois de um pesadelo.

E tinha sido igualmente aterrador, decidiu Marly enquanto abandonava a garagem e voltava para o interior da casa. Retrocedeu até a cozinha e estava no corredor quando ouviu um ruído, como o rangido da madeira.

Marly se deteve e escutou com atenção. Mas não ouviu nada. Só silencio. O mesmo silêncio quase sobrenatural que tinha notado na casa do Ricky no dia que tinha descoberto seu cadáver.

Não se ouvia nada, mas sabia que não estava sozinha. Podia sentir outra presença, como lhe tinha ocorrido na noite anterior em seu apartamento. Mas naquela ocasião, o intruso estava fisicamente ali, escondido em algum recanto da casa de Gracie Abbot.

Marly tirou sua arma e a sustentou com ambas as mãos enquanto se dirigia para o vestíbulo.

A porta principal estava entreaberta, como se o intruso quisesse lhe fazer pensar que se foi. Mas Marly sabia que não era assim. Que ainda estava ali, esperando.

E então o sentiu.

Em sua mente.

Era uma sensação que não se parecia com nada do que até então tinha experimentado. Frio. Negro. Como um tentáculo de gelo penetrando em seu cérebro.

Lentamente e sem nenhuma força de vontade, Marly levou a pistola à têmpora.

E apertou o gatilho.

 

                                                             Capítulo 13

Uma frenética chamada à porta no meio do dia sobressaltou ao Deacon. Aparentemente, a urgência da pessoa que estava ao outro lado da porta encaixava melhor com a meia-noite, pensou. Ao abrir a porta de trás, recebeu sua segunda surpresa.

Marly permanecia em frente a ele com o cabelo e a roupa empapados pela chuva. Mas o que lhe paralisou o coração, foi o medo que viu em seus olhos.

Deacon a agarrou por braço e a arrastou ao interior da casa.

—O que ocorre? —perguntou com ansiedade—. O que passou?

Os dentes de Marly tiritavam de tal maneira que não era capaz de pronunciar uma palavra. Deacon a deixou um momento para ir procurar umas toalhas no banheiro. Quando retornou, ajudou-a a tirar a jaqueta, colocou-lhe uma toalha sobre os ombros e lhe estendeu outra para o cabelo.

Marly secou a roupa e o cabelo o melhor que pôde e, quando terminou, já era capaz de falar. Continuava tremendo, mas a cor tinha voltado para seu rosto.

—Diga-me isso.

—Que te diga o que?

Marly fechou os olhos um instante.

—Me diga como posso detê-lo.

—Então me acredita —o que a teria convencido afinal?—. Que passou, Marly?

Marly se aferrou com força à toalha que levava sobre os ombros.

—Tentou me matar.

—Quando? Onde?

—Faz uns minutos. Tinha ido a casa do Gracie Abbot para comprovar algo. Tinha um pressentimento. Quando estava ali, entrou alguém na casa —Marly desviou o olhar—. Parece uma loucura. Nem sequer estou segura de que possa dizê-lo. Mas ocorreu —passou a mão pelo cabelo—. Tirei a pistola e, o seguinte que soube, foi que me tinha levado isso a cabeça. Podia me sentir apertando o gatilho, mas não podia me deter —sussurrou horrorizada—. Isso é o que lhes deve ter passado a outros. Sabiam, sabiam, mas não podiam impedi-lo.

Estremeceu violentamente. Não havia nada que Deacon desejasse mais que estreitá-la entre seus braços e abraçá-la, a proteger daquele demônio que rondava fora de seu apartamento. Mas seus braços não poderiam protegê-la de um assassino. Nada a salvaria, exceto sua própria força. E a força procedia do conhecimento. Da aceitação.

—De algum jeito, fui capaz de baixar a pistola. Não sei como nem por que. Mas o que sei é uma coisa —elevou desesperada o olhar para ele—. Não é Sam.

—Como pode estar tão segura?

—Por que o teria sabido. Haveria sentido algum tipo de conexão. Além disso —em seus olhos brilhava o desafio, algo que Deacon interpretou como um bom sinal—, meu irmão jamais me faria mal.

E não o tinha feito, pensou em lhe recordar Deacon, mas se reprimiu. Marly já tinha sofrido muito. Já teriam tempo de falar sobre suas suspeitas quando tivesse ouvido toda a história.

Marly tomou ar.

—Seja quem for, temos que encontrá-lo. Temos que detê-lo —elevou repentinamente o olhar—. Como poderemos fazê-lo?

—É humano, se for a isso ao que te refere. Pode ser… neutralizado —disse Deacon.

—E aí é onde você intervém.

—Sim.

—Porque é como eles.

—Sim.

Marly se agarrou à toalha.

—Poderia me matar agora mesmo sem me pôr um só dedo em cima.

—Jamais te faria mal, Marly.

Marly não parecia tão convencida.

—Só me responda uma pergunta. Na outra noite foi você o que… me fez…

—Acredito que já respondeste a essa pergunta.

Marly se voltou, aproximou-se da janela e fixou o olhar no exterior.

—Como é possível?

—Quer a versão curta?

Marly olhou por cima do homem.

—Algo que me ajude a compreendê-lo.

Deacon permaneceu em silêncio, procurando a melhor maneira de começar.

—Sabe algo a respeito dos Quantums?

—Só o que vi na televisão. Estava acostumado a ver Quantum Leap quando era pequena.

—Isto vai muito além de um programa de televisão —respondeu ele—. Vai inclusive mais à frente do controle mental e a psicoquinesia. O que te contei até agora é só a ponta do iceberg. A investigação tecnológica se remonta aos finais da Segunda Guerra Mundial, quando começaram a realizar-se experimentos. Cientistas e físicos relacionados com o projeto estiveram dirigindo durante anos experimentos em psicotrópicos, estimulação de buracos negros e fazedores de partículas.

Marly se voltou.

—O que significa psicotrópicos?

—A interferência entre o ser humano e a máquina.

—E todo o resto?

—Estamos falando de viagens no tempo —respondeu Deacon—. De fases interdimensionais.

Marly voltou a empalidecer.

—Meu Deus, tem ideia de como soa o que me está dizendo? Está utilizando uma terminologia da que só ouvi falar nos filmes de ficção científica.

—Isto não é ficção, Marly —se aproximou dela—. É realidade. Está aqui, agora, e temos que enfrentar a ela.

—Como? Eu sou só uma policial de uma cidade pequena. Cresci em Mission Creek. Quase não saí do estado do Texas. O que está me dizendo… me resulta quase incompreensível. Como se supõe que vou enfrentar a algo assim?

Deacon a agarrou pelo braço e a levou até o sofá. Quando esteve sentada, ajoelhou-se em frente a ela.

—Vais enfrentar a isso escutando a mim. Mas mantendo a mente muito aberta. Saber é poder.

—Ainda não sei se posso confiar em você.

—Então por que vieste aqui?

—A que outro lugar podia ir?

A angústia que refletia sua voz rasgou o coração de Deacon. Agarrou-a pelo queixo e lhe fez voltar delicadamente a cabeça para ele.

—Pode confiar em mim, Marly. Eu sou dos bons —embora não o tivesse sido sempre.

Milhares de sentimentos cruzaram as feições de Marly.

—Quem é você? —perguntou por fim—. Alguma espécie de polícia quântico?

Deacon quase sorriu ao ouvi-la.

—É uma forma de dizê-lo, se levantou e começou a caminhar pela sala de estar—. A organização a que pertenço está dirigida por um homem chamado Nicholas Kessler. Faz seis anos, era um reconhecido cientista cujas investigações sobre a teoria da relatividade e a física quântica atraíram a atenção de certos setores do governo que estavam procurando maneiras novas e inovadoras de combater ao inimigo. Encarregaram ao doutor Kessler de dirigir uma série de experimentos relacionados com campos eletromagnéticos em Couraçados. Aparentemente, estavam procurando maneiras de desmagnetizar os cascos dos navios para fazê-los invisíveis às minas do inimigo.

Marly o observava do sofá. Não dizia nada, mas seu olhar era suficientemente eloqüente.

—Entretanto, o que o doutor Kessler conseguiu foi a invisibilidade completa.

—Mas isso é…

—Impossível? —Deacon procurou seu olhar—. Tem que me escutar, recorda? Manter a mente bem aberta.

—Estou tentando —sussurrou Marly.

—Quando o navio voltou a materializar-se, era idêntico a como era antes, mas a tripulação tinha sido submetida a um doloroso trauma, tanto físico como psicológico. O doutor Kessler estava tão aflito pelo estado no que tinham ficado os homens que tentou sabotar seu próprio projeto para evitar que se repetisse o experimento. Sabia que se essa tecnologia caía nas mãos equivocadas, os resultados poderiam ser catastróficos.

Deacon se aproximou do sofá e se sentou ao lado de Marly.

—Desgraçadamente, um grupo de homens ricos e poderosos que operava sob o manda-chuva do governo e inclusive de algumas organizações de espionagem, já tinha roubado suas notas. Persuadiram ao protegido do doutor Kessler, um homem chamado Joseph Von Meter, de que continuasse experimentando em uma série de caixas abandonados pela Força Aérea no Long Island, New York. Von Meter se mostrou de acordo e, desde esse dia, o doutor Kessler e ele se converteram em inimigos.

Marly o olhou surpreendida.

—Quer dizer que… ainda estão vivos?

Deacon assentiu.

—São muito anciões, é obvio, mas a rivalidade entre eles segue sendo tão forte como sempre. Como disse, o doutor Kessler dirige a organização para a que eu trabalho. Durante os últimos sessenta anos, esteve tentando pôr fim ao que criou seu próprio gênio. Um de seus primeiros objetivos é encontrar e, se fosse necessário eliminar, aos supersoldados criados no Montauk.

—Mas você é…

—Era um deles —reconheceu Deacon—, estive submetido a todo tipo de experimentos, lavagens de cérebro e controle mental. Fui treinado para matar, igual a todos os outros.

Marly se estremeceu.

—E o fez voluntariamente.

Deacon assentiu.

—Até certo ponto. Mas tinham estado me observando durante anos. Eu me sobressaía tanto em condições físicas como em intelectuais e inclusive tinha certas aptidões psíquicas. Fizeram-me ver que assentia voluntariamente aos experimentos, mas agora acredito que estive sendo preparado para me converter em um supersoldado pelo menos desde que estava no instituto.

—E outros?

Deacon encolheu os ombros.

—Alguns casos são como o meu. Simplesmente, foram dirigidos sutilmente. Outros foram levados pela força. Quando os experimentos estavam começando, utilizavam sobretudo a indigentes. As pessoas desapareciam das ruas e ninguém voltava a saber nada delas. Depois começaram a recrutar ao pessoal militar e, ao cabo de um tempo, a utilizar meninos. Alguns procediam de famílias de militares, mas também montaram falsas creches como cobertura para conseguir seus objetivos.

—O que faziam a esses meninos?

A expressão de Marly refletia confusão acima de tudo o que lhe estavam contando.

Deacon sabia exatamente como se sentia. Para ele também tinha sido muito duro aceitar a verdade.

—Eu não descobri o dos meninos até muito mais tarde, mas pelo que soube depois, inclusive os mais pequenos eram submetidos a um rigoroso treinamento e a técnicas de lavagem de cérebro até que se convertiam em peritos no que se considerava que fora sua principal aptidão. Depois apagavam sua memória. A intenção era devolvê-los a suas casas, reintegrá-los na sociedade até que chegasse o momento no que se necessitassem seus serviços.

Marly elevou o olhar.

—Um exército secreto de guerreiros —sussurrou horrorizada.

—Como eram os experimentos? —perguntou Marly um pouco depois, enquanto olhava ao Deacon, que se deslocava pela cozinha para preparar café para ele e uma taça de chá para Marly.

Deacon levou as taças à mesa e se sentou em frente a ela.

—Alguns eram brutais. Eu não presenciei pessoalmente nenhum tipo de abuso físico, mas sei que utilizavam o medo e o sonho para controlar aos sujeitos. O objetivo era dissociar e compartimentar a mente e a personalidade. Em meu caso, começaram com várias técnicas de hipnose com as quais aprendi os processos da relaxação profunda, a visualização e a autocura. A partir daí, progredi para a telequinesia: dobrar colherinhas, etc. Mais tarde, aprendi a manipular estados psicológicos básicos, a interferir em algumas funções mentais e nos reflexos motores, a intervir em processos conscientes e inconscientes e a implantar mensagens subliminares.

Marly pensou no dia que se conheceram no alpendre do Ricky Morais. Teria jurado que tinha ouvido música procedente do interior da casa, mas ao mesmo tempo, sabia que aquela música procedia de sua cabeça. Seria aquela uma mensagem subliminar que lhe tinha enviado o assassino?

—O projeto se enclausurou, por que?

Deacon deu um gole no seu café e fez uma careta.

—O projeto tinha sido clandestino inclusive da Segunda Guerra Mundial. Funcionava com recursos privados ao amparo do governo, mas depois do acidente do submarino, suponho que a situação começou a ser mais arriscada. É difícil ocultar algo dessa magnitude. Certa gente começou a suspeitar e começaram também a se fazer muitas perguntas. Abandonaram Montauk, mas suspeitamos que se estabeleceram em outros lugares. E se não tiverem começado a operar já em alguma parte, em algum momento o farão.

Marly permaneceu em silêncio, tentando assimilar tudo.

—E não sabe por que os embarcaram naquele submarino?

—Não —Deacon baixou o olhar para seu café—, mas tenho a sensação de que era algo grande. Algo que inclusive punha nervosos aos cientistas que estavam a cargo do projeto. Essa é a razão pela que se fechou tão rapidamente toda a operação depois de seu fracasso.

Marly se agarrava a sua taça, deixando que o calor do chá esquentasse seus dedos.

—Como chegou a conhecer o doutor Kessler?

—Primeiro conheci sua neta. Eu pensava que tinha sido um encontro casual, mas faz tempo que cheguei à conclusão de que em minha vida não houve nada casual.

Marly se estremeceu ante a escuridão que apareceu em seu olhar.

—Deve ter sido terrível —aventurou brandamente—, mas pelo menos agora é consciente da manipulação. E pode lutar contra ela.

—Você também sabe algo sobre isso, verdade?

Seus olhares se encontraram e Marly teve uma estranha sensação de deja vu, como se Deacon e ela se conhecessem antes, em outro momento, em outra vida.

—Continue —lhe pediu—. Quero ouvir todo o resto.

—Depois do acidente, apagaram nossas lembranças, mas eu fui capaz de recordar ao menos o suficiente para saber que não tinha família nem nenhum lugar aonde ir. Entretanto, tinha uma conta no banco que me permitiria viver durante algum tempo se a administrava com prudência. De modo que estive dando voltas ao redor do país, trabalhando de vez em quando, e inclusive conduzi até Califórnia, embora não sabia realmente por que. Acredito que foi ali onde cresci. Em qualquer caso, um bom dia, estava em uma loja de Los Angeles e entrou um homem armado com uma automática. Havia outros três clientes, duas mulheres e um menino. O assaltante disparou ao atendente e agarrou ao menino para utilizá-lo como refém. Eu sabia que o menino ia morrer, que todos íamos morrer. Podia ver nos olhos desse pistoleiro. De modo que lhe fiz voltar a arma para ele e disparar-se. Aquele dia me dei conta do que podia fazer. Até então, nem sequer era consciente de que possuía essa qualidade.

O coração de Marly pulsava com dolorosa força em seu peito. Não sabia como nem por que, mas se sentia como se tivesse estado naquela loja com o Deacon. Como se tivesse sido testemunha de tudo o que lhe havia descrito.

—Salvou a vida desse menino.

—E também tirei outra vida. E sabia que o tinha feito porque era o mais fácil para mim.

Seus olhares se cruzaram e Marly se estremeceu ao ver a dor e a angústia, a lembrança daquela morte em seu olhar.

Em um impulso, estendeu a mão por cima da mesa para tomar a de Deacon.

—Fez o que tinha que fazer, Deacon.

Era a primeira vez que o tocava e Marly sentiu uma estranha emoção percorrendo suas costas. Não sabia se era devido ao fato de ter pronunciado seu nome ou ao contato físico. Mas algo os estava aproximando, algo os estava unindo de maneira inexorável.

Marly lhe soltou bruscamente a mão.

—O que ocorreu depois?

—Não me ocorreu nada. A polícia pensou que aquele homem tinha sofrido um ataque de pânico e tinha decidido suicidar-se ao se dar conta de que não tinha saída. Pouco depois, me inteirei de que alguém estava me buscando.

—A neta do Kessler?

—Ela era uma das duas mulheres que estava aquele dia na loja. Não era a mãe do menino, se não a outra. Eu me tinha fixado nela ao entrar. Morena, olhos azuis. Uma loucura de mulher. Havia algo nela que me resultava familiar, mas não conseguia localizá-la. Depois, a descobri me observando. Tinha um olhar estranho, como se soubesse o que eu tinha feito. Naquele momento não pensei muito nisso. Ainda estava muito afetado pelo que tinha passado.

Fez um pausa e acrescentou:

—Uns dias depois —continuou—, veio me ver. Disse-me que sabia quem era eu e o que podia fazer.

—E?

—Disse-me também que alguém queria me conhecer.

—E você fez conta? Sem saber quem era?

—Picava-me a curiosidade —respondeu Deacon, um pouco na defensiva—. Além disso, imaginava que não tinha muito que perder.

—Como se chama essa mulher?

—Camille.

Camille. Claro, tinha que ter um homem exótico. Cabelo negro, olhos azuis. Uma autêntica beleza. O tipo de mulher a que um homem seguiria a qualquer parte.

O tipo de mulher que era, exatamente justamente o contrário que Marly. Ela nunca tinha se iludido sobre seu atrativo. Era uma mulher que não tinha se destacado em nada na vida. Nem sequer era uma boa policial.

—E o que queriam de ti? —não pôde evitar perguntar.

—No princípio, estavam sobretudo interessados no acidente do submarino e no que sabia daquela missão. Já tinham chegado à conclusão de que cada um dos membros da equipe de operações especiais tinha sido cuidadosamente selecionado porque era perito em uma ou mais habilidades psíquicas. O doutor Kessler acreditava, e ainda acredita, que quando se reagrupassem diferentes membros do Montauk, poderiam tentar repetir a missão. E no caso de que o fizessem, certamente tentariam ressuscitar a mesma equipe.

—E tentariam voltar a te recrutar.

Deacon assentiu.

—No princípio, eu reagia ao que me diziam como o fez você. Parecia-me muito absurdo para que pudesse ser verdade, e isso por que era consciente do que eu era capaz de fazer. Sabia que a psicoquinesia não era algo normal, que tinha sido treinado e programado para nascê-lo. E também sabia que tinha podido matar a um homem com tanta facilidade, era possível que pudesse fazê-lo outra vez. E, possivelmente, nessa segunda ocasião, os motivos não fossem tão nobres.

—Então como o encontraremos?

Continuavam sentados à mesa e Deacon ia já pela segunda taça de café. Perguntava-se como estaria assimilando Marly tudo o que lhe tinha contado. De momento parecia estar bem.

Deacon apartou a taça de café e cruzou os braços em cima da mesa.

—Utilizaremos um perfil. E a partir daí, estabeleceremos um processo de eliminação.

—Sim, bom, eu vou pôr alguma questão a esse perfil. Você acha que o assassino é alguém entre trinta e quarenta anos. Mas pelo que você me contou, os experimentos começaram faz muitos anos. Como sabe que o assassino não é alguém mais velho?

—Porque estamos trabalhando na faixa de tempo durante ao que o projeto dos supersoldados alcançou seu maior auge —disse Deacon—. É um lugar pelo qual começar.

—Também disse que a maioria dos sujeitos eram varões. A maioria, mas não todos, verdade? De modo que o assassino também pode ser uma mulher.

—Suponho que é possível. Havia algumas mulheres no projeto. A única que conheci tinha sido recrutada quando só tinha cinco anos. Seu pai era um cientista que trabalhava para o Von Meter. Tiveram-na retida durante quatro anos.

—E quando a soltaram, era capaz de controlar os pensamentos?

—Não, mas podia caminhar pelas paredes.

Marly abriu a boca para dizer algo, mas negou com a cabeça.

—Suponho que já nada deveria me surpreender —murmurou—. Caso tenha razão, caso o assassino se encaixe com esse perfil, isso não significa que seja Sam. Há muitas pessoas nesta cidade que encaixam com essa descrição.

—Tem alguma em mente?

Marly encolheu os ombros.

—Quando Navarro chegou à cidade, houve rumores de que tinha servido em uma força especial da marinha. E está nessa faixa de idade.

—E ainda segue pensando que é estranho que não mencionasse sua conversação com a Lisa Potter.

—Entre outras coisas. Apesar de tudo, não acredito que seja o assassino. Mas além disso, há alguém na cidade que me dá vibrações estranhas.

—Quem?

—Joshua Rush.

Deacon arqueou uma sobrancelha.

—Sei, sei —disse Marly rapidamente—. Provavelmente pense que é uma espécie de vingança pessoal, mas não é assim. E quando… quando estávamos juntos, havia algo nele que me resultava muito inquietante. Sua intensidade podia resultar inquietante. Só estivemos comprometidos durante um par de semanas, mas soube desde o começo que estava cometendo um engano terrível. Embora não o tivesse descoberto com outra mulher, teria encontrado a maneira de romper com ele. Nunca me teria casado com esse homem.

—Acredito em você.

Marly colocou uma mecha de cabelo atrás da orelha.

—Antes disse algo que me tem feito pensar. No projeto utilizavam as seitas para recrutar a potenciais soldados. E se o assassino tivesse sido recrutado ou inclusive levado à força de uma de suas seitas? Possivelmente, quando lhe apagaram a memória voltou a fazer o que já sabia.

—Voltar para a seita, quer dizer.

—Ou algo parecido —Marly cruzou os braços—. Há algo estranho na Igreja do Glorioso Caminho. Pelo menos desde que Joshua chegou. Deveria ver como se comporta com sua congregação. Ou, melhor dizendo, como se comporta a congregação com ele. É como se houvesse uma espécie de vínculo entre eles.

—Há alguma possibilidade de que possa marcar uma entrevista com o reverendo Rush?

—Farei algo melhor que isso. Esta semana têm serviço todas as noites. Te levarei para que o veja em ação.

 

                                               Capítulo 14

Quando Marly e Deacon chegaram à Igreja do Glorioso Caminho naquela noite, o local estava abarrotado e os fiéis tão entusiasmados que ninguém pareceu fixar-se neles quando se sentaram em um dos bancos de trás.

Marly escrutinou a capela com o olhar. A maioria da congregação estava de costas a ela, mas podia ver alguns perfis quando a pessoa elevava a cabeça para o púlpito. Reconheceu a alguns dos assistentes. Um casal de seu complexo de apartamentos. Um homem ao que tinha multado por excesso de velocidade. Um xerife e sua esposa.

Seu olhar se iluminou ao ver um homem moreno sentado a vários bancos de distância. Inclusive dali lhe resultava familiar, mas não sabia por que. De repente, como se estivesse sentindo seu escrutínio, o homem a olhou por cima do ombro.

Seus olhares se cruzaram, Max Perry sorriu e assentiu antes de voltar a prestar atenção ao púlpito. Mas, durante esse breve instante, Marly sentiu o brilho de algo que poderia ter sido uma premonição.

O que estava fazendo ali?, perguntou-se. Max não lhe parecia um homem de igreja, mas a verdade era que sabia muito pouco dele. Seu olhar voou para o primeiro banco e, de repente, esqueceu-se do Max Perry e sentiu um frio glacial na nuca. Via sua mãe de perfil, mas discernia perfeitamente a expressão com a que olhava ao Joshua. Parecia encantada. Emocionada. Apaixonada.

Marly se sentiu doente.

—Está bem? —sussurrou-lhe Deacon ao ouvido.

—O que?

Deacon baixou o olhar para a mão de Marly, que se agarrava ao banco com tanta força que seus nódulos tinham empalidecido.

—Sim, estou bem —mentiu.

—Para onde leva esse corredor? —sussurrou Deacon, assinalando uma lateral da capela no que havia um arco que conduzia a um estreito corredor.

—Aos escritórios e às salas-de-aula da escola dominical, por que?

—Onde está o escritório do Rush?

—No final do corredor.

Quando Deacon se levantou, Marly o agarrou pelo braço.

—Aonde vai?

—Dar uma olhada.

—E se alguém te vê?

—De verdade acha que alguém poderia fixar-se em mim?

Marly seguiu o curso de seu olhar. E se estremeceu. Havia algo profundamente inquietante em todos aqueles rostos absortos no Joshua.

—Vem?

—Agora mesmo.

Deacon assentiu e se afastou. Marly permaneceu sentada, olhando para a congregação para comprovar se seu movimento tinha distraído a algum dos fiéis. Mas todos os olhos seguiam fixados no Joshua.

Para então, Joshua, armado com um microfone sem fio, tinha deixado o púlpito e passeava entre seus seguidores, estreitando mãos, aplaudindo ombros e repartindo abraços. Quando chegou ao lado da mãe do Marly, acariciou-lhe a bochecha. Andrea Jessop tomou a mão do Joshua e a levou aos lábios.

O coração de Marly deu um tombo ao ver aquela amostra de afeto entre sua mãe e seu ex prometido. Entretanto, ninguém mais pareceu notá-lo. Ninguém pareceu se importar.

Mas ao Marly sim importava. E não porque estivesse ciumenta, mas sim porque sabia que sua mãe terminaria sofrendo.

Marly se levantou e se aproximou até o arco que conduzia ao corredor.

Dirigiu-se ao banheiro de senhoras, inclinou-se sobre um dos lavabos e esteve molhando a cara com água fria até que sentiu que se assentava seu estômago. Fechou a torneira, e estava tentando alcançar uma toalha de papel, quando a luz se apagou.

Marly ficou muito quieta, tratando de orientar-se na escuridão. Queria acreditar que toda a igreja tinha sofrido um blecaute, mas sabia que não era certo. Alguém tinha apagado as luzes do banheiro. Alguém que possivelmente a tinha seguido.

Sabia que poderia encontrar a porta sem grandes dificuldades, mas também que o assassino podia estar esperando-a do outro lado. E se tivesse sido uma pessoa valente, teria ido para ele para averiguar de uma vez por todas quem era o responsável por todas aquelas mortes.

Mas depois do episódio na casa da senhorita Gracie, sabia exatamente com quem estava tratando. Sabia que nem sequer armada poderia enfrentar a esse assassino. Sua única esperança era Deacon.

De modo que Marly se encerrou em um dos cubículos do banho e se fechou com ferrolho. Deacon a encontraria, sabia. Não necessitava poderes especiais para saber onde estava escondida.

Reclinou-se contra a porta e escutou em meio da escuridão. Um segundo depois, a porta do banheiro se abriu.

O assassino estava ali. A só uns metros dela. Estava ali e ia matá-la.

Não, estava ali para obrigá-la a se suicidar. Todo mundo pensaria que era outro suicídio, todos, exceto Deacon.

Deacon. Onde estaria? Oh, Deus, se pelo menos ela tivesse seus poderes…

A porta do cubículo mais afastado do seu se abriu e se fechou de uma portada. Marly levou a mão à boca para reprimir o grito de terror que estava se formando em sua garganta.

Outra porta.

E depois outra.

Havia cinco cubículos no banheiro. Marly estava no último.

A porta seguinte se abriu e se fechou tão violentamente que escapou um gemido de entre os dedos do Marly. De repente, o resto das portas começou a se abrir e se fechar tão violentamente que Marly não pôde continuar reprimindo seus gritos. O assassino nem sequer estava tentando invadir sua mente. Naquela ocasião era diferente. Marly sabia que na realidade não tinha intenção de lhe fazer mal. Só queria que apreciasse sua raiva e sua frustração.

Deacon colocou o carro no estacionamento de Marly e apagou o motor.

—Possivelmente deveria ficar em sua casa esta noite. Não acredito que deva estar sozinha.

Marly tampouco acreditava que fosse uma boa ideia que Deacon passasse a noite em sua casa. Sentia-se especialmente vulnerável aquela noite, mas assentiu porque não queria estar sozinha. Depois do ocorrido, já não tinha nenhuma dúvida de que o assassino a tinha eleito como objetivo, mas ainda não sabia com que propósito.

Abriu a porta de seu apartamento, acendeu as luzes e se dirigiu diretamente para a geladeira.

—Vou tomar uma taça de vinho. É o mais forte que tenho. Você quer?

—Claro, por que não?

Marly serviu duas taças de vinho e as levou junto à garrafa à sala de estar. Estendeu uma ao Deacon, assinalou o sofá e se sentou em uma cadeira em frente a ele. Levou a taça aos lábios e a esvaziou com um par de goles.

—Vá —disse Deacon—, acredito que deveria te tranqüilizar um pouco.

—Provavelmente, mas, se por acaso não o notaste, tive um dia muito duro —se serviu outra taça—. Mas o desta noite foi diferente —murmurou, com o cenho franzido—. Me deu um susto de morte, mas sabia que não queria me fazer mal. Era como… como se quisesse me fazer ver sua frustração.

—Sua frustração?

—Sei que pode parecer uma loucura —Marly bebeu um gole de vinho—, mas tenho a impressão de que me escolheu, embora não sei por que.

—Me ocorrem um par de razões. Não é estranho que um assassino em série fique em contato com a polícia, ou inclusive que procure um policial em particular. Enviam-lhe mensagens e inclusive chegam a considerar que têm uma relação especial com esse policial.

Marly elevou o olhar.

—E acha que isso é o que está acontecendo aqui?

—Poderia ser. Ou poderia ser alguém que interpreta, correta ou equivocadamente, que já tem algum tipo de relação contigo —Deacon se interrompeu—. As duas vezes que se pôs em contato contigo, foste capaz de distinguir algo, por sutil que fosse, que pudesse nos dar alguma pista sobre sua identidade?

—A verdade é que não, embora… —Marly se inclinou para frente e deixou sua taça sobre a mesinha do café—. Conhece uma canção que se intitula Domingo Sombrio?

Deacon negou com a cabeça.

—Essa canção era a que estava soando no dia que encontrei a minha avó. Ouvi-a assim que entrei na casa. Foi a canção que me conduziu até… seu cadáver. Inclusive tive pesadelos com ela. O outro dia, na casa do Ricky Morais, acreditei ouvi-la outra vez, mas decidi que eram minha imaginação. Mas me ocorreu o mesmo no dia que fui pela estrada velha do cemitério até o lugar no que encontraram os cadáveres do Amber e David. Então tive a sensação de que alguém estava me observando… e de repente me descobri cantarolando essa canção.

—Como se alguém lhe tivesse metido isso na cabeça?

—Sei o que está pensando —disse na defensiva—. Acha que o assassino está me enviando uma mensagem com essa canção e que tem que ser alguém que me conheça, alguém muito próximo a mim. Mas possivelmente só seja uma coincidência. Domingo Sombrio é uma canção que convida ao suicídio.

—Sam conhece essa canção, Marly?

Marly baixou o olhar para sua taça.

—Sam foi o primeiro ao chegar depois de minha chamada naquele fatídico dia. Subiu para assegurar-se de que a avó tinha morrido enquanto eu esperava no alpendre. Assim suponho que ouviu a canção. De todas as formas, qualquer que tenha tido acesso aos informe da polícia sobre o suicídio de minha avó, sabe o dessa canção. Além disso, Mission Creek é uma cidade pequena, as pessoas falam.

—Alguma vez contaste a alguém?

—Não, acredito que não. Não é algo do que eu goste de falar. Mas não posso falar por todo mundo. Por exemplo, Sam e Max Perry agora são muito bons amigos. Se tiverem falado dos últimos suicídios, é possível que Sam lhe tenha contado o que aconteceu a nossa avó.

Deacon elevou sua taça e olhou ao Marly por cima da borda.

—Nem sequer disse ao Joshua Rush?

—Não, mas pode haver contado alguém.

—Quem?

—Minha mãe começou a ir à Igreja do Glorioso Caminho.

Deacon a olhou surpreso.

—Por isso parecia tão preocupada?

—Segundo meu pai, Joshua e minha mãe têm uma relação… muito íntima.

—Como de íntima?

Marly suspirou.

—Não sei.

—E a possibilidade de que tenham uma relação de casal lhe afeta?

—Não da maneira a que você se refere. Simplesmente, não quero que minha mãe sofra. Já sofreu bastante com meu pai.

—É uma mulher adulta, Marly. Tem direito a cometer seus próprios enganos.

—Sei. É só que…

—Não quer vê-la com outro homem como seu pai. Tampouco queria isso para ti, verdade? —perguntou-lhe brandamente.

Marly franziu o cenho.

—Aonde quer chegar?

Deacon encolheu os ombros.

—Erigiste umas muralhas muito grossas entre você e o mundo, Marly. Pergunto-me se alguma vez permitirá a alguém acessar a seu interior.

—Olhe quem fala —respondeu Marly, fulminando-o com o olhar por cima da taça do café.

—O que quer dizer?

—Convenceu a si mesmo de que fez coisas terríveis porque foi capaz de matar a um homem para salvar a vida de um menino. Mas nem sequer recorda se foi ou não um assassino. E, de todas as formas, é uma boa desculpa para manter distância de todo mundo, não? —Marly se inclinou para ele—. Sabe o que acredito? Acredito que você também levantou seus próprios muros. E que tem medo de que lhe façam mal.

Algo se iluminou nos olhos do Deacon.

—Está dizendo que você e eu temos algo em comum?

Marly se estremeceu ao ouvi-lo.

—Não, a verdade é que não. Como vamos ter algo em comum? Você experimentou coisas que eu nem sequer posso compreender. Eu mal saí daqui.

—Isso é algo que poderia mudar.

—Não sei —passou um dedo pela borda de sua taça—. Fora daqui, o mundo me parece aterrador.

—Mais aterrador que Mission Creek?

Depois de três taças mais de vinho, Marly por fim começou a relaxar. A abrandar, inclusive. E, de repente, já não lhe pareceu um engano ter deixado que Deacon ficasse para passar a noite em sua casa. Fazia muito tempo que não desfrutava da companhia de um homem. E Deacon não só era um homem. Era um homem fascinante, atraente… e perigoso.

Tentando dissimular seus nervos, Marly se levantou e levou a garrafa vazia e as taças à cozinha.

—O banheiro está ao final do corredor —disse, olhando ao Deacon por cima do ombro—. Há toalhas limpas no armário e uma escova de dentes sem estrear na gaveta da penteadeira.

—Uma escova de dentes sem estrear, não é?

Marly se voltou ao ouvi-lo.

—Já sei o que está pensando, mas não estou acostumado a convidar as pessoas a passarem a noite em casa. E menos a… desconhecidos. O que ocorre é que estou acostumado a comprar mais de uma escova de dentes de uma vez.

—Muito eficiente —respondeu Deacon.

Mas seu olhar dizia algo mais. De repente, o pequeno apartamento do Marly parecia carregado de tensão. Marly jamais tinha sido tão consciente da presença de um homem. Estava preparada para o que podia ocorrer? Para terminar o que os olhos do Deacon já tinham começado?

—Sim, sou uma mulher muito prática —e já era hora de que seu pragmatismo se tomasse conta da situação—. Te prepararei uma cama.

—Bastará uma manta —respondeu Deacon—, não necessito muitas comodidades.

—Mas necessitará um lugar decente para dormir —tirou uns lençóis, uma manta e um travesseiro—, caso contrário, não sei como vai poder descansar.

—De todas as formas, não acredito que possa dormir muito esta noite.

—Por que não? —perguntou Marly, quase sem respiração.

—Estou aqui para te proteger, recorda?

Oh. Marly tentou dominar a desilusão enquanto se inclinava para lhe preparar a cama no sofá. Deacon tentou ajudá-la, mas, em algum momento, seus braços se roçaram e Marly se endireitou, estremecida por aquele contato.

Deacon também se ergueu.

Durante longos segundos, olharam-se aos olhos. Depois, Deacon levantou lentamente a mão para o cabelo de Marly.

Marly umedeceu os lábios.

—Provavelmente não seja uma boa idéia.

—Estou absolutamente convencido de que não o é.

—Então por que…?

—Porque estou desejando fazê-lo toda a noite.

—Fazer o que…? —mas a pergunta morreu em seus lábios quando Deacon se inclinou para beijá-la.

E, de repente, Marly se esqueceu de tudo o que tinham estado falando. Esqueceu-se de tudo, salvo da boca do Deacon sobre seus lábios.

Rodeou-lhe o pescoço com os braços e lhe devolveu o beijo com entusiasmo, apaixonadamente. O seguinte que soube foi que Deacon lhe tinha feito apoiar-se contra a parede e a estava acariciando de tal maneira que tinha dificuldades para respirar.

E então giraram e foi ela que o pressionou contra a parede, beijando-o tão profundamente que Deacon gemeu contra sua boca e aprofundou seu beijo.

Continuaram se beijando pelo corredor enquanto se dirigiam ao dormitório. Quando chegaram lá, Marly já estava completamente nua.

Nas estranhas ocasiões em que se encontrou na mesma situação, Marly tinha se sentido torpe, envergonhada e terrivelmente consciente de si mesma. Com o Deacon se sentia valente, formosa e extremamente feminina.

E ele era… todo um homem. Marly conteve a respiração quando Deacon tirou sua roupa para ficar nu em frente a ela sob a luz da lua.

Era incrível. Marly não teria imaginado, nem no mais selvagem de seus sonhos que…

—Meu Deus —sussurrou justo antes que Deacon a levantasse nos braços e a levasse para a cama.

Permanecia deitada de costas e Deacon se elevava sobre ela com olhos ardentes.

—É uma mulher maravilhosa, Marly Jessop —deslizou o olhar por todo seu corpo—, e é exatamente como tinha imaginado.

—Me… tinha imaginado assim?

—Desde o momento em que pus meus olhos em ti.

E então começaram a trabalhar suas mãos, operando aquela magia incrível. Acariciava-a em zonas que Marly nunca tinha considerado particularmente erógenas, mas o roçar da língua de Deacon contra a parte posterior de seus joelhos ou o desenho de seus dedos sobre as linhas das palmas de suas mãos se fazia insuportavelmente sensual.

Marly começou a tremer. Mal tinham começado e já sentia que tinha perdido o controle. Fazendo um enorme esforço, rodou na cama para sentar-se escarranchada sobre Deacon, para poder operar sua própria magia.

E quando Deacon começou a protestar, ela se limitou a sorrir.

Aquele sorriso. Aquele sorriso ia ser sua perdição, pensou Deacon. Era tão doce e inocente, mas ao mesmo tempo, havia tanta sensualidade espreitando atrás dela. Havia uma mulher apaixonada esperando florescer. E ele estava fazendo todo o possível por liberá-la.

Marly estava muito equivocada sobre si mesmo. Ela não era uma mulher singela de uma cidade pequena. Marly era uma mulher complexa e mais perigosa que nenhuma outra mulher que Deacon tivesse conhecido.

Naquele momento, enquanto se inclinava para beijá-lo, estava vislumbrando parte da verdadeira Marly. Deacon sabia que estava a ponto de perder o controle. E não queria que isso ocorresse. Pelo menos não tão rápido. Ainda tinha muitas coisas que experimentar, que saborear… que desfrutar.

Tentou levantar Marly, mas esta resistiu, entrelaçou os dedos com os seus e o obrigou a levantar as mãos por cima de sua cabeça enquanto o beijava tão intensamente que mal podia respirar.

—Sou eu a que controla a situação —murmurou contra seus lábios—, compreendido?

—Perfeitamente —sussurrou Deacon.

—E posso fazer o que quiser, de acordo?

—Quanto antes melhor.

Marly sorriu, mas naquela ocasião, tinham desaparecido de seus lábios a inocência e a doçura. Por fim tinha decidido mostrar a verdadeira Marly.

 

                                                 Capítulo 15

Marly elevou a cabeça e semicerrou os olhos para proteger do sol que se filtrava pela janela do dormitório. Imediatamente soube que ocorria algo diferente naquela manhã. Estava nua e ela nunca dormia nua. E além disso, todos os lençóis estavam revoltos, e ela dormia com a cabeça apoiada no quadril de Deacon.

Não, aquela manhã não era normal.

Marly jamais despertou em uma postura tão comprometedora. Quando se moveu, afastando-se da tentação, Deacon se estirou, mas não despertou.

Marly permaneceu durante uns segundos com o olhar cravado no teto deixando que as lembranças fluíssem de novo para ela. Recordava cada carícia, cada beijo, cada uma das palavras que tinham cruzado ao calor da paixão. Tinham se dito muitas coisas. E tinham feito coisas que Marly… Ainda lhe custava acreditar o quanto atrevida tinha sido. O quanto foi agressiva… O quanto foi criativa. Custava-lhe acreditar que tivesse sido capaz de abrir-se dessa forma com ninguém, e só podia haver uma explicação para isso.

Não tinha sido ela.

Aquela não era a verdadeira Marly.

A criatura hedonista da noite anterior era uma mulher nascida nas fantasias de Deacon, que tinha convertido em realidade seus sonhos manipulando-a e obrigando-a a fazer coisas que jamais teria feito por si mesma.

Na escuridão da noite, Deacon a tinha feito desejá-lo como jamais tinha desejado a um homem, tinha-a feito comportar-se de uma forma que nem sequer se acreditava capaz. E naquele momento, à luz do dia, sentia-se traída. Utilizada. Violada.

Levantou-se da cama em silêncio, tirou o uniforme do armário e a roupa interior limpa da cômoda e entrou no banheiro. Quando por fim saiu dali, descobriu que Deacon se levantou. Com apenas os jeans postos, Deacon ficou junto à janela até que a ouviu sair. Então se voltou para ela com um sorriso.

E, apesar de toda sua resolução, Marly sentiu que lhe dobravam os joelhos.

Deacon compreendeu que algo andava mal assim que viu Marly no marco da porta.

Não lhe devolveu o sorriso, nem sequer o olhou aos olhos.

Deacon cruzou a habitação para aproximar-se dela.

—Parece uma mulher que sofre um caso severo de arrependimento.

Marly cruzou os braços e o olhou fixamente.

—Arrependimento? Sim, poderia se dizer assim.

—Por que?

—Que por que? —sua pergunta estava carregada de ressentimento—. Porque a mulher que estava na cama contigo não era eu.

—Do que está falando?

—Sabe condenadamente bem do que estou falando. Foi você o que me fez… me comportar assim.

Deacon mal podia acreditar no que estava ouvindo. Não podia ser que Marly acreditasse que…

Mas era óbvio que sim. Tinha chegado a se convencer de que todo o ocorrido da noite anterior tinha sido culpa dela.

—Olhe, Marly —replicou ele com aborrecimento—, ontem éramos dois adultos que estávamos na cama com plenas faculdades mentais.

—Esse é o problema, eu não sei se estava em plenas faculdades mentais.

Deacon passou a mão pelo cabelo.

—Isto é uma loucura. Eu não te fiz fazer nada que não estivesse disposta a fazer.

—Sim, claro, essa é a essência da questão. Como sei que não foi você que fez desejá-lo? Já se meteu em minha cabeça em uma ocasião. Como sei que não estava me manipulando? E se estava me manipulando, não pode haver nada mais repugnante. De fato, é como se tivesse me violado —lhe espetou com desprezo.

—Te violar? —não lhe teria deixado mais estupefato se lhe tivesse dado uma bofetada—. Meu Deus, Marly, de verdade é isso o que pensa? Porque essa é uma acusação muito grave. Está segura de que é isso o que quer dizer?

Marly desviou o olhar.

—Possivelmente isso seja muito forte. Talvez esteja exagerando. Mas se me fez algo…

—Não te fiz nada. O que ocorreu ontem à noite foi o que ocorre quando uma mulher e um homem se atraem. É normal…

—Não, o que fizemos foi…

—Perder a cabeça? Esse o problema, verdade, Marly? —deu um passo para ela—. O que é que verdadeiramente a preocupa? O que te preocupa não é que eu tenha me metido em sua cabeça e tenha manipulado seus pensamentos, mas sim que a verdadeira Marly se revelasse ontem a noite. Ontem à noite se sentiu apaixonada, e desejosa, e vulnerável… e isso te assusta.

—Não sabe o que diz —mas suas palavras não expressavam verdadeira convicção.

—Não pode aceitar o que realmente é, não é? —perguntou-lhe Deacon com mais suavidade—. É assim como quer viver? Escondida atrás desses muros para não terminar como sua mãe?

—E se for assim, o que tem? —disse obstinada—. Além disso, o que importa a você? Logo partirá daqui. Não voltaremos a nos ver alguma vez. O que tem a ver com o que eu faça com minha vida?

O olhar de Deacon se suavizou.

—Importa-me porque gostod e você.

—Eu não quero que me aprecie.

Mas já era muito tarde para isso, pensou Deacon. Mesmo assim, Marly tinha razão em uma coisa. Não tinha nenhum direito de preocupar-se com ela. Ele não tinha nada que oferecer a uma mulher como Marly. Ele tinha um trabalho a fazer e depois seguiria adiante. Não podia ficar em Mission Creek e, certamente, não podia pedir a Marly que formasse parte de sua vida. Porque não tinha vida.

Ele era um homem sem lar, um homem sem lembranças. Era um soldado que tinha sido programado para matar… e poderia voltar a fazê-lo algum dia.

Era melhor que Marly não confiasse nele. Era melhor que mantivessem distância porque Deacon nem sequer confiava em si mesmo.

—De acordo, tem razão —disse, ignorando o profundo vazio que sentia em seu coração—. Eu sou responsável pelo que ocorreu ontem à noite.

Marly levou a mão à boca.

—Oh, Meu deus…

—Marly, sinto muito.

Quando começou a caminhar para ela, Marly retrocedeu e o olhou furiosa. Mas atrás de seu aborrecimento, a dor da traição rasgava a determinação do Deacon.

—Sai —sussurrou—. Sai de uma condenada vez de meu apartamento.

Depois de passar a maior parte do dia patrulhando, Marly decidiu se dar um descanso e passar pelo instituto para ver Sam. Ao longo de todo aquele dia, Marly tinha estado tentando convencer-se de que o que tinha ocorrido entre Deacon e ela não tinha sido nada importante. As pessoas tinham aventuras de uma noite constantemente. Mas ela não. Ela não tinha sido capaz de levar o sexo à ligeira até que Deacon lhe tinha feito…

Marly sacudiu a cabeça, decidida a não voltar a pensar nisso. Decidida a não seguir pensando no que podia ter sido a maior traição de sua vida.

Era curioso que ter encontrado a seu prometido deitando-se com outra mulher não a tivesse afetado tão profundamente. Não lhe tinha doído dessa forma. De fato, depois do aborrecimento inicial, Marly tinha encontrado inclusive certo alívio ao poder contar com uma desculpa para romper com Joshua.

Mas o que Deacon fazia… Deacon tinha descoberto seus piores temores e os tinha utilizado contra ela. Aquilo era imperdoável, especialmente tendo em conta que Marly estava começando a suspeitar que havia algo mais que simples atração entre eles. Marly tinha começado a querê-lo, possivelmente inclusive tinha começado a apaixonar-se por ele. Mas isso já estava superado. Não queria voltar a vê-lo nunca mais.

O único que queria era falar com seu irmão. Depois de ter visto o Max Perry na igreja na tarde anterior, começava a recear sobre ele e queria fazer ao Sam algumas perguntas sobre seu passado. No final das contas, não sabia nada sobre ele e, pelo menos por idade, Max encaixava no perfil do assassino. E, quanto mais pensava nisso, mais se perguntava Marly se Sam teria mencionado ao Max os detalhes do suicídio de sua avó. Detalhe como o de Domingo Sombrio.

Estacionou em frente ao instituto, saiu e passou pela secretaria antes de dirigir-se à sala-de-aula de seu irmão.

Depois dela entrou uma jovem carregada de papéis que, ao ver o uniforme, parou em seco e empalideceu.

—Oh, o que passou? —perguntou—. Por que você está aqui?

—Só devo ver a meu irmão —explicou Marly—. Sam Jessop?

A jovem deixou escapar um suspiro de alívio.

—Oh, obrigado. Me perdoe, mas tivemos uma manhã de loucura. Estamos escassos de pessoal e o senhor Henesy é um desastre. Deveriam despedir a essa mulher, eu já o teria feito, mas não me corresponde… —elevou o olhar—. Sinto muito, o senhor Jessop você disse? —teclou no ordenador—. Oh, não veio hoje.

—Não veio? Está doente?

—Não, tirou o dia livre por assuntos pessoais. Quer que lhe mande alguma mensagem?

—Não, já o verei mais tarde —Marly começou a voltar-se para a porta, mas de repente se deteve—. E Max Perry?

—O vi faz um momento, mas não sei se está em seu escritório. Se quiser, posso chamá-lo pelo megafone.

—Não, não se incomode. Me aproximarei de seu escritório e verei se está ali.

—Está ao final do corredor à direita.

—Obrigado.

Marly não teve nenhum problema para localizar o escritório do psicólogo, mas não encontrou ao Max em seu interior. Mesmo assim, olhou por cima do ombro para assegurar-se de que ninguém a via e entrou.

Olhou ao escritório do Max e percorreu com o olhar todas as pastas e papéis que tinha em cima. Não sabia o que estava procurando. Não tinha nenhum motivo para suspeitar de Max Perry, exceto havê-lo visto na igreja no dia anterior.

Mas isso não significava que fosse culpado, recordou a si mesmo enquanto folheava o calendário que tinha em cima da mesa. Retrocedeu até que uma anotação que lhe chamou a atenção.

Reunião com a AT, dizia.

«AT».

Amber Tyson.

Marly desviou rapidamente o olhar para a data. Era o dia que Amber e David tinham morrido.

Ouviu vozes no corredor e trocou rapidamente a folha do calendário. Depois pegou um papel e uma caneta e começou a rabiscar uma nota.

Quando Max chegou, foi capaz de elevar o olhar e dizer em tom convincente:

—Max, estava a ponto de te deixar uma nota.

—Marly! Isto sim que é uma surpresa. O que está fazendo aqui?

—Phil Garner chamou a delegacia de polícia. Queria saber se estávamos interessados em ir a seu programa a semana que vem.

—Mmm, terei que ver minha agenda —Max se aproximou do calendário e começou a passar folhas.

O coração de Marly pulsava violentamente.

—Não mencionou nenhum dia em particular.

Max elevou o olhar.

—Não era necessário que viesse até aqui para me dizer isso. Poderia ter me chamado, ou ter deixado uma mensagem.

—Sim, sei, também queria ver o Sam, mas me disseram que não veio.

Max franziu o cenho.

—Não veio? Ontem a noite não me disse que se encontrasse mal.

Tinha-o visto a noite anterior? Antes ou depois de assistir ao serviço do Glorioso Caminho?

—Estou segura de que não é nada sério. Possivelmente precisava ter um dia livre. Todos o necessitamos de vez em quando.

Max a olhou de esguelha.

—Encontra-te bem?

Marly encolheu os ombros.

—Sim, estou bem, por que pergunta?

—Parece um pouco tensa.

—Só estou um pouco cansada. Ultimamente há muito trabalho na delegacia de polícia. Alguns meninos não chegam a casa na hora do jantar e os pais chamam à delegacia de polícia convencidos de que lhes aconteceu algo terrível.

—Esta tem que estar sendo uma experiência particularmente dura para ti.

—Por que o diz?

—Sam me falou de sua avó. Aquele teve que ser um suicídio muito traumático para uma menina de doze anos. Sam me comentou que tinha pesadelos sobre o ocorrido muito depois.

Marly ficou absorta durante alguns segundos na caneta que Max sustentava entre as mãos. Depois elevou o olhar para ele, e acreditou ver algo em seus olhos.

Ou seria imaginação dela? Tentou se concentrar na conversação.

—Diz que ele inclusive continua as tendo agora.

Marly umedeceu os lábios. Começava a se sentir mal com aquela conversação. Era como se Max estivesse tentando despertar sua curiosidade.

—Sam ainda tem pesadelos? Então, por que se mudou para a casa de minha avó?

—Talvez acreditasse que poderia exorcizar velhos fantasmas.

—Possivelmente —Marly vacilou um instante—. Te falou dos detalhes de sua morte?

—O suficiente para eu fazer uma imagem do ocorrido. Sua avó se enforcou, verdade? E naquele dia levava um vestido de cor lilás.

Marly conteve a respiração.

— Sam lhe contou isso?

Nos lábios do Max apareceu um sorriso.

—Contou-me muitas coisas, mas, por alguma razão, o detalhe do vestido ficou gravado.

—Deve confiar muito em ti para te contar todas essas coisas —disse Marly.

—Temos muitas coisas em comum. Estou seguro de que essa é a razão pela qual nossa amizade se desenvolveu tão rapidamente.

—Como quais?

—Por uma parte, nossa profissão. E a de nossos pais por outra —elevou o olhar—. Meu pai também era um militar de carreira. O destinaram ao Fort Stanton quando eu tinha uns quinze anos. De fato, lembro ter ouvido falar do que ocorreu a sua avó. As bases militares são como os povoados pequenos. Os rumores correm muito rápido —se interrompeu—. Está muito pálida, Marly, por que?

—Não sabia que antes vivia aqui. Não tinha nem idéia.

— Enviaram a meu pai depois ao estrangeiro e minha mãe e eu passamos uma temporada no norte. Mas eu na realidade gostava daqui. Por isso vim assim que tive uma oportunidade. Pode parecer estranho, mas para mim, Mission Creek sempre foi meu lar —como Marly não respondia, inclinou a cabeça—. Está segura de que está bem?

Estaria tentando lhe dizer algo?, se perguntou Marly. Estaria lhe enviando algum tipo de mensagem? Sorriu.

—Como te disse, estou cansada. Esgotada na realidade. E não deveria estar te fazendo perder tempo. Além disso, tenho que voltar para a delegacia de polícia —se voltou para a porta, desejando escapar.

—Marly?

Marly o olhou por cima do ombro.

—Sim?

—Se cuide.

Seus olhares se cruzaram um instante. E Marly se estremeceu.

Patty Fontes correu para Marly quando esta última chegou à delegacia de polícia minutos depois.

—Se inteiraste?

—Me inteirei de que? —perguntou Marly com ar ausente—. Acabo de chegar.

—Houve outro suicídio.

Marly deixou cair a caneta que tinha entre os dedos.

—Quem? Quando?

Patty se estremeceu.

—Crystal Bishop. Seu vizinho a encontrou faz uns minutos e nos chamou. Navarro foi para lá.

Marly não quis esperar para ouvir o resto. Deu meia volta e saiu para a zona da cidade em que vivia Crystal.

As palavras do Patty se repetiam em sua cabeça. «Outro suicídio. Outro suicídio».

Mas Marly sabia que não era um suicídio. Era outro assassinato.

Se perguntou por um instante se deveria tentar localizar ao Deacon. À margem de sua relação pessoal, necessitava sua ajuda. Sem ele, não poderia deter o assassino.

Mas algo a arrastava para casa do Crystal. Quase temendo o que ia encontrar, Marly estacionou o carro atrás do de Navarro e saiu.

Encontrou a um jovem xerife ao que mal conhecia vomitando sobre um leito de flores quando cruzou o jardim. Seu companheiro, Pete Tenney, saudou-a do alpendre.

—Outra cena dura, Jessop.

—Obrigado pela advertência - murmurou Marly enquanto girava para a porta traseira e entrava na casa.

Era um lugar escuro, claustrofóbico. Ou possivelmente essa era a imagem que propriamente lhe transmitia, pensou Marly enquanto se detinha um instante para criar coragem.

—Navarro?

—Estou aqui.

Marly seguiu o som de sua voz até chegar ao banho. E assim que olhou para o interior, retrocedeu horrorizada.

Crystal Bishop tinha aparecido desabada na banheira com as mãos para cima, de forma que eram imediatamente visíveis as feridas de seus pulsos.

A maior parte do sangue tinha desaparecido com a água, mas ainda ficava suficiente para que o estômago de Marly se revolvesse.

Navarro estava ajoelhado no chão, ao lado da banheira. Olhou por cima do ombro ao ouvir Marly entrar.

—Alguma vez tinha visto algo parecido?

Em princípio Marly pensou que se referia aos pulsos de Crystal, mas depois elevou o olhar e viu o espelho. Ficou olhando-o fixamente, incapaz de decifrar aqueles ganchos de ferro. E de repente o compreendeu.

Era uma mensagem para ela. Repetiam-se duas palavras desesperadamente, uma e outra vez.

Domingo Sombrio… Domingo Sombrio… Domingo Sombrio.

Marly deixou a casa de Crystal Bishop e conduziu diretamente para a casa de Sam. Nem sequer estava segura de por que. Possivelmente só precisava vê-lo, reafirmar sua convicção de que ele não podia ter nada a ver com aquelas mortes.

Ou possivelmente porque já não podia seguir negando que a mensagem que aparecia no espelho de Crystal Bishop estava dirigida a ela.

«… tanto se quer admiti-lo como se não, é a única que pode detê-lo».

As palavras do Deacon a perseguiam enquanto parava o carro em frente à casa de Sam. Seu jipe não estava na entrada, mas Marly supôs que o teria na garagem. Tampouco estava a caminhonete do Deacon.

Marly permaneceu sentada um momento, com o olhar fixo na branca fachada da casa. Ali era onde tinha começado tudo, pensou. Com a morte de sua avó. E possivelmente ali fosse onde encontrasse seu fim.

Saiu do carro e caminhou até o alpendre. Tinha começado a chover outra vez, da mesma forma que chovia quinze anos atrás. Quando Marly subiu os degraus da entrada, teve a estranha sensação de estar revivendo o passado.

Seu irmão estava acostumado a deixar a chave em um dos suportes de vasos do alpendre, mas Marly não precisou utilizá-la porque a porta estava entreaberta. Enquanto empurrava o mosquiteiro para entrar, sentia-se como se tivesse retrocedido no tempo.

Marly vacilou quando entrou no vestíbulo.

—Sam? Está aí?

A casa estava em silêncio. Mas era um silencio estranho. O mesmo silêncio que Marly tinha notado na casa de Gracie Abbot, e antes, na casa de Ricky Morais.

E então ouviu a música.

O sangue lhe gelava nas veias enquanto subia as escadas. E nesse momento soube. Soube o que ia encontrar ao final da escada. O assassino estava esperando-a na habitação de sua avó. Ali onde tinha começado tudo.

—Sam?

Seguia sem receber resposta. Só se ouvia o triste lamento das trompetistas e a formosa voz do cantor.

Marly subiu lentamente as escadas, olhando por cima do ombro a meio caminho para assegurar-se de que não estava deixando rastros de barro no tapete.

A porta do dormitório de sua avó estava aberta. Marly a cruzou e elevou o olhar. Por um instante, esperou ver sua avó pendurando de uma das vigas do teto.

Mas a encontrou aparecida na janela.

O coração lhe pulsava tão violentamente que mal podia respirar. Era impossível que estivesse vendo o que via. Sua avó estava morta. Morta e enterrada.

E, entretanto, ali estava.

Marly reconheceu o vestido de cor lilás. Por que não ia ser ela? Tinha visto aquele vestido em seus pesadelos durante anos. E o cabelo o levava igual a como ela o recordava. Penteado para trás e formosamente recolhido em um coque. Marly viu inclusive os diamantes que brilhavam em suas orelhas.

Segurou-se ao marco da porta; os joelhos ameaçavam deixar de sustentá-la. Mas depois de um primeiro momento de terror, compreendeu seu engano. A pessoa que estava na janela era mais alta, mais magra e mais jovem que sua avó.

E então se voltou.

—Sabia que viria.

Aquela voz suave e familiar flutuou na habitação e envolveu a garganta de Marly como se fosse uma corda. Marly teve que fazer um grande esforço para poder respirar.

—Mamãe? —sua voz era pouco mais que um suspiro.

—Encontrou-a, verdade?

—A quem? —conseguiu perguntar Marly.

—Ao Crystal.

—Como sabe…? —começou a perguntar Marly aterrada.

—Fui eu quem chamou à polícia. Sabia que quando a visse… o averiguaria e encontraria a maneira de deter tudo isto - dirigiu ao Marly um carinhoso e terno sorriso—. Minha filha, a policial.

—Mamãe, por quê?

Mas sua mãe não respondeu. Tinha o olhar fixo em algo que sustentava na mão. Quando o aproximou da luz, Marly viu que era uma das pistolas de seu pai.

—Mamãe?

—Não é para ti, Marly. Eu nunca quis te fazer mal. E tampouco ao Sam. Mas queria que soubesse - elevou o olhar para viga em que Marly tinha encontrado anos atrás a sua avó—. Ela foi a primeira, sabe.

—A primeira?

—O curioso é que… eu não pretendia que ocorresse. Nem sequer sabia que o podia fazer… Foi uma impressão muito forte para mim, Marly, não tem idéia, saber o que tinha sido capaz de me fazer meu próprio pai. Tinham me submetido a esses experimentos terríveis… Tinham me convertido em algo que eu nem sequer reconhecia. Nos encerravam em um lugar horrível. Para eles só éramos ratos de laboratório. Roubaram nossa vontade. Destroçaram nossas vidas. E só éramos meninos.

o coração de Marly pulsava com tanta força que quase podia ouvi-lo. Sua própria mãe tinha estado submetida a esses experimentos dos que Deacon lhe tinha falado.

—Acredite ou não, eu uma vez fui uma mulher muito forte - sua mãe sorriu com nostalgia—. Meu pai estava acostumado a me chamar teimosa. E possivelmente o fez por isso.

Marly fechou os olhos um instante.

—Me fale da avó.

O sorriso de Andrea desapareceu.

—Sua avó me pediu que passasse para vê-la antes de ir à igreja. Ordenou-me que fosse. E quando cheguei, esteve destrambelhando por minha forma de educar os meus filhos. Dizia que Sam e você eram uma desgraça para o sobrenome Jessop. E logo te acusou de querer roubar seus brincos de diamantes. Mas se não os tirava nunca, pelo amor de Deus. Quando o disse, ficou feito uma fúria. Não podia calá-la - Andrea se interrompeu para tomar ar—. Enquanto a escutava, só podia pensar em quanto a odiava. Em quanto desejava sua morte. Comecei a imaginar como seria. Sua avó tiraria um cinturão da gaveta, subiria a uma cadeira e se penduraria em seu próprio dormitório. E o seguinte que soube foi que acabava de fazer exatamente isso.

Elevou o olhar para as vigas do teto.

—Eu estava horrorizada. Me aterrorizava saber o que era capaz de fazer. O sentimento de culpa era insuportável.

—Por isso tentou se suicidar?

—Mas não fui capaz de fazê-lo. Não podia deixar ao Sam e a ti aos cuidados de seu pai. Ele era como ela.

—Por isso ficou com ele durante todos estes anos?

—Sim. E porque ele me oferecia amparo. Sabia o que me tinha passado. E me prometeu que não permitiria que voltasse a me acontecer nada igual outra vez.

—E Joshua? O que te oferecia ele?

Os olhos de sua mãe resplandeceram.

—Oferecia-me a liberdade. Me fazia feliz. Pela primeira vez em minha vida, alguém me fazia me sentir verdadeiramente querida.

Mas era uma ilusão, desejava lhe gritar Marly, uma mentira.

—As outras… queriam afastá-lo de mim - continuava dizendo sua mãe—. Eu… Não podia voltar a viver apanhada em um matrimônio sem amor, a viver com esse homem frio, cruel…

Um homem muito parecido ao Joshua. Isso era o mais irônico de tudo, supunha Marly.

—E o que fez?

—Aquilo para o que me tinham treinado, para o que estava programada. Em meu desespero, voltaram para mim todos meus recursos. Era tão fácil que em princípio me parecia terrífico. Mas Gracie Abbot me recordava tanto a Isabel… Sempre zombando de mim e assinalando meus enganos diante do Joshua. Aquela velha amargurada estava ciumenta.

—Assim decidiu lhe tirar a vida.

—Não foi doloroso. Não sofreu.

Deus santo pensava Marly horrorizada. De verdade estavam mantendo aquela conversação? A mulher que estava em frente a ela de verdade era sua mãe?

—E Amber?

—Ela tinha algo que eu não podia voltar a ter. Juventude. Joshua me dizia que minha idade não importava, mas eu sabia que se Amber continuasse se oferecendo ele algum dia a aceitaria. Como ia rechaçá-la? E como não ia nos comparar?

—E David?

—Esse foi um engano —respondeu sua mãe com profundo arrependimento—. Estava no lugar equivocado no momento equivocado. Esse foi meu único engano.

—E matou a Crystal porque estava tendo uma aventura com o Joshua.

—A aventura tinha terminado, mas ela não o deixava em paz.

—Isso foi o que te disse Joshua?

—E depois Ricky Morais começou a lhe fazer essas terríveis ameaças ao Joshua…

—Oh, mamãe.

—Eu sou assim, Marly, assim é como me fizeram. Mas agora isso tem que terminar. Queria que soubesse para que pudesse compreendê-lo - elevou a pistola—. E agora acredito que deveria partir.

E de repente Marly compreendeu tudo. Aquela era a confissão de sua mãe antes de morrer.

—Não - sussurrou, e avançou para sua mãe.

—Não se mova. Não quero fazer isto diante de ti, mas o farei se tiver que fazê-lo. Isto tem que terminar, Marly, e esta é a única maneira de que o faça.

A pistola estava na têmpora de sua mãe. Marly deu outro passo para ela, mas quando Andrea colocou o dedo no gatilho, deteve-se. Não se havia sentido tão impotente em toda sua vida.

—Mamãe, por favor…

Sua mãe abriu os olhos, impactada. Pareceu enfrentar durante uns instantes a um terrível conflito interno e de repente, com um lento movimento, baixou a mão, deixou a pistola no chão e agachou a cabeça com gesto de derrota.

Só então Marly foi consciente de que havia alguém atrás dela. E soube quem era antes de se voltar.

 

                                                     Capítulo 16

Um mês depois

O jardim do Centro Médico River Oaks do Santo Antonio, Texas, era um lugar tranqüilo e normalmente solitário pelas tardes, que era quando Marly se aproximava para ver sua mãe. Algo surpreendente, tendo em conta a exuberância e a beleza daquele lugar com suas cascatas, samambaias e orquídeas selvagens. Mas Marly compreendia que muitos visitantes não queriam prolongar muito sua estadia em um hospital psiquiátrico, por mais maravilhoso que fosse o entorno.

Para ela, entretanto, aquele jardim era um bom lugar para pensar. Para refletir sobre o que tinha passado durante o mês anterior e sobre sua vida em geral. Tinha chegado a reconciliar-se com o que tinha feito sua mãe e inclusive tinha iniciado uma frágil reconciliação com seu pai. Mas havia outros aspectos de sua vida que ainda continuavam feitos um torvelinho. Havia partes escondidas de si mesmo que só então estava começando a descobrir.

Deacon tinha razão. Tinha erigido um montão de muros a seu redor e esses muros não se derrubavam facilmente, por muito que o desejasse.

A porta de ferro se abriu e Marly se voltou quando alguém a chamou.

—Como sabia que estava aqui? —perguntou surpreendida.

—Uma das enfermeiras te viu sair —Sam se sentou a seu lado—. Já a viu?

Marly assentiu.

—Sim, é muito duro, verdade?

—Sim, mas pelo menos por fim conseguiu a ajuda que durante tanto tempo necessitou.

—Alguma vez poderá sair daqui, não é, Sam?

—Provavelmente não. Fez coisas terríveis, Marly. Arruinou muitas vidas. Acredito que ela mesma não suportaria ser livre.

—Sei.

Era impossível que sua mãe pudesse ser julgada pelo que tinha feito. Uma mulher que matava com a mente? Nenhum jurado do mundo acreditaria numa história tão fantástica.

A única alternativa tinha sido aquela clínica. Deacon tinha sugerido aquele hospital em particular porque um dos médicos era perito em tratar às vítimas do Montauk.

Deacon tinha salvado a vida de sua mãe aquele dia e depois partiu. Marly não tinha tornado a ter notícias suas. E, provavelmente, fosse o melhor. Ou, pelo menos, ela passava muito tempo tentando convencer-se de que o era.

—Encontrei-me com o Navarro esta manhã —lhe estava dizendo Sam—. Me disse que você assinou a renúncia, por que, Marly?

Marly encolheu os ombros.

—Porque não estou feita para ser policial, Sam. Não sei para que valho, ainda não encontrei meu lugar no mundo, mas possivelmente vá sendo hora de que comece a buscá-lo de verdade.

—O que quer dizer?

—Há muitos outros mundos fora daqui, acredito que já é hora de que saia de Mission Creek e vá conhecê-los.

—Não estará fugindo, verdade?

—Não, de fato, acredito que por fim deixei de fugir —se voltou para olhá-lo fixamente—. E você?

—Acredito que eu já encontrei meu lugar. Eu adoro o ensino, tenho uma casa e alguns amigos. Não é uma vida perfeita, mas é suficientemente boa.

—E papai? Vais poder voltar a ter algum tipo de relação com ele?

—Provavelmente não. Sei que não fez todas essas coisas horríveis a mamãe, mas sabia o que lhe tinham feito e as utilizou para controlá-la, para fazer com que o necessitasse. E, se por acaso o esqueceste, não se pode dizer que fosse um modelo de pai para nós.

—Sei, mas é nosso pai.

Sam se limitou a encolher os ombros. Ao cabo de uns segundos, Marly tomou a mão de seu irmão.

—Sempre senti que durante estes últimos anos me escondia algo. Sabia sobre a mamãe, verdade?

—Suspeitava. Tinha ouvido rumores quando estava no exército sobre experimentos secretos e equipes clandestinas relacionadas com o Projeto Montauk. Comecei a fazer algumas investigações e a relacionar dados. Mas quando terminei de averiguar tudo, era muito tarde.

—Todos chegamos muito tarde —Marly lhe estreitou a mão—. Posso te perguntar algo?

Sam se voltou para olhá-la. Ainda havia algo em seus olhos, uma solidão imensa que rasgava o coração de Marly.

—Se tiver outro segredo, algo do que gostaria de falar, sabe que pode me dizer isso verdade? Pode me dizer algo.

Sam sorriu.

—Terei em conta. Mas agora não sei se nenhum de nós está preparado para uma conversação de coração para coração. Necessitamos tempo para nos recuperar.

—Suponho que tem razão.

Sam se levantou.

—Já é hora de que volte para dentro, vem?

—Esperarei um momento.

—Mas me promete que não irá sem se despedir?

—Prometo-lhe isso.

E Sam partiu. Marly apoiou a cabeça no respaldo do banco e fechou os olhos. E quase dormiu sob o sol da tarde quando ouviu que se abria de novo a porta do jardim. Acreditando que era Sam, disse sonolenta:

—Esqueceu de algo?

—Sim, a verdade é que sim.

Ao ouvir a voz de Deacon, Marly abriu os olhos como pratos. Durante um instante, não foi capaz de pronunciar uma palavra. Depois balbuciou:

—O que está fazendo aqui?

—Vim para te buscar —cruzou o curto espaço que os separava e se sentou a seu lado no banco.

O coração de Marly pulsava com tanta força que mal podia respirar, e muito menos pensar.

—Me buscava? Por que?

—Porque eu não gosto de como deixamos as coisas, Marly. Acredito que ainda há muitas questões sem resolver entre nós.

—Como quais? —foi capaz de dizer.

—Como o fato de que não fui capaz de dormir nem comer desde que me fui de Mission Creek. E não pude deixar de pensar em ti nem um só minuto. Tem algum tipo de poder sobre mim, e quero saber qual é.

Aquela acusação pegou Marly completamente despreparada.

—Que tenho algum tipo de poder sobre ti? Não sou eu a que pode controlar os pensamentos e manipular emoções, recorda? Aquela noite em meu dormitório…

—Não ocorreu o que você pensa. Essa noite eu não estive em sua cabeça, Marly. Não manipulei nada, exceto, bom… —seu sorriso fez Marly se estremecer.

—Então por que deixou que acreditasse que o tinha feito?

—Porque pensei que era melhor assim, que tinha razão. Pensava que o melhor era que abandonasse a cidade e nos esquecêssemos um do outro. Mas não funcionou. Pelo menos para mim. Há algo entre nós, Marly, algo importante. Quero-te, Marly.

—Eu também te quero —admitiu Marly—. Nunca havia sentido nada parecido por ninguém, mas…

—Mas?

—Mas não estou segura de que esteja preparada para isso Deacon, assusta-me. As coisas que pode fazer com sua mente… — passou a mão pelo cabelo—. Me resulta terrífico pensar que alguém pode ter essa aula de poder sobre mim.

—Compreendo. Mas o que não parece entender é que você é a única que tem o poder aqui. É você a que pode determinar nosso futuro. Se me disser que vá, irei. Se me disser que não volte, não o farei. Mas antes que diga algo, acredito que deveria saber que…

Marly conteve a respiração.

Deacon tomou a mão.

—Já estou meio apaixonado por ti. E a cada segundo que passa, meu amor se faz mais profundo.

Marly ficou estupefata ante aquela confissão. Não sabia o que responder, o que dizer. Elevou o olhar para ele.

—Sou eu a que tem o controle? De verdade sou eu a que tem o poder sobre ti?

—Não sabe até que ponto.

Marly tragou saliva.

—E diz que está disposto a te ater ao que eu dito?

—Te dou minha palavra.

—Nesse caso, me beije. E não deixe de me beijar até que eu lhe diga isso.

Deacon se aproximou para ela sem vacilar, até que seus lábios estiveram a só uns milímetros dos de Marly.

—Há algo que provavelmente deveria te dizer antes. Acredito que eu também estou me apaixonando por ti.

E passou muito tempo antes que algum dos dois voltasse a dizer algo.  

 

                                                                                                    Amanda Stevens

 

 

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