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TRAIÇÃO DO SANGUE / Marion Zimmer Bradley
TRAIÇÃO DO SANGUE / Marion Zimmer Bradley

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

TRAIÇÃO DO SANGUE

 

Todas as noites, enquanto a escuridão envolvia o Castelo di Speranza, a pequena Condessa, Teresa, descia para tripudiar sobre o prisioneiro. Havia formalidade nessa visita, tão estilizada quanto os movimentos de algum sacerdote pagão celebrando algum ritual antigo diante do altar.

 

Primeiro, ela dispensava todos os criados, até mesmo o surdo-mudo Rondo, que lhe obedecia como um cão treinado. Depois, a cada noite, machucando outra vez as frágeis mãos no aço, ela puxava os ferrolhos de seu quarto, prendia as trancas de cada janela. Se algum observador mítico pudesse se esconder por trás das cortinas, perceberia uma coisa estranha: em cada ferrolho de metal, inscrito de forma tosca e meticulosa por mãos que não estavam acostumadas a esse trabalho, havia o sinal da cruz.

 

Ela se ajoelhava por um momento diante do oratório de carvalho, cruzando os dedos sobre as contas; era um mero hábito, pois há muito que deixara de rezar. O espelho no outro lado do quarto exibia o seu vago reflexo, um padrão indefinido de preto e branco; os cachos pretos dos cabelos aninhavam-se em renda fina, o preto de um vestido de luto cruzado pelos dedos das mãos alvas sobre as contas de marfim, o rosto - encovado até a brancura dos ossos, de alabastro - marcado pelas sobrancelhas pretas.

 

Um rosto feito para a ternura e o amor, mas agora impiedoso e cruel, os olhos irradiando ódio, a boca suave contraída para uma linha fina e pálida. Uma santa, transformada pelo tormento duplo do pesar e da vingança jurada contra um demônio das profundezas.

 

Levantando-se e largando as contas, a Condessa ergueu a tampa de um baú todo lavrado, tirou um chicote de couro trançado com três pontas. Em cada extremidade havia pedaços de aço afiado; o couro era enegrecido e nos pedaços de aço havia manchas opacas, de um marrom-avermelhado. Ela tocou com as pontas dos dedos no aço e retirou a mão no mesmo instante; o aço afiado lhe tirara sangue. Deu de ombros, ignorando a dor. Na pega de couro do chicote, toscamente cortado por uma faca inábil, havia também o sinal da cruz.

 

Não houve nenhum rangido quando ela puxou a tranca do painel secreto. Aquela porta era mantida sempre oleada, em perfeitas condições. Com uma vela levantada por uma das mãos, a Condessa desceu a escada, tão silenciosa quanto sua própria sombra, as saias varrendo teias recentes e fazendo com que pequenas aranhas corressem para as rachaduras na pedra.

O cheiro salobro de águas subterrâneas estagnadas subiu ao seu encontro. Houvera um tempo em que suas narinas delicadas tremiam a esse cheiro, mas isso pertencia ao passado distante. Ela própria mal percebia como mudara, como deixara de ser aquela jovem com medo de cada sombra, os dedos frágeis sangrando da luta com os ferrolhos enferrujados, que descera pela primeira vez aqueles degraus, em desespero e terror.

 

Ela parou por um instante e suspirou. "Por que estou indo?", indagou, quase em voz alta. Como um eco das profundezas úmidas, houve um sussurro e um suspiro: "Venha."

 

Duas voltas da escada sinuosa, e ela entrou num corredor arqueado, iluminado pelo tênue luar que se filtrava através de longos poços de ventilação, construídos há muitos séculos. Havia na passagem os remanescentes de uma época mais sombria: barras de ferro enferrujadas de uma roldana ainda sugeriam a estrapada, barras cruzadas como um divã duro, o sombrio olhar verde-bronze de uma Dama de Ferro. A Condessa mal olhou para essas coisas, que outrora a faziam estremecer; agora, pareciam amigas familiares. Até aventou por um instante uma possibilidade - podiam ser restauradas - antes de virar a última curva na passagem, parando diante de uma grade de aço que se erguia do chão ao teto em arcada. Pegando a chave grande na argola pendurada em seu cinto, ela abriu a grade e passou.

 

Boa noite, Condessa. - disse o homem acorrentado à parede.

 

A Condessa inclinou a cabeça.

 

- Também lhe desejo uma boa noite, senhor. - respondeu ela, em sua voz melodiosa, cuja modulação era um hábito tão profundamente arraigado que nem mesmo a transformação de donzela em demônio podia alterar.

 

Ela contemplou o homem à sua frente; os braços estavam envoltos por punhos de ferro, presos à parede por correntes compridas, que passavam por uma argola ali. As pernas também se encontravam contidas em argolas de ferro nos tornozelos, unidas por uma corrente. Uma camisa branca esfarrapada e um culote de couro com manchas escuras constituíam toda a sua vestimenta; quando ele inclinou a cabeça, no entanto, os cabelos louros refletiram o brilho da vela e a sombra instável na parede de pedra parecia ter asas largas.

 

A mulher, mantendo-se cautelosamente além do alcance da corrente, examinou as feições do prisioneiro, suaves, afiladas, sutilmente sensuais. Quando ele tornou a levantar a cabeça, os olhos, ardendo com algum fogo estranho, encontraram-se com os da Condessa. E ele estremeceu, como se experimentasse alguma dor terrível.

 

O longo olhar foi quase como o de um amante. A Condessa ficou outra vez abalada pela estranha beleza do homem acorrentado. Beleza? Uma palavra insólita, mas era mesmo beleza, a beleza de uma águia irrequieta engaiolada, batendo as asas com o intenso desespero e a agonia de sua ânsia inumana. Mas o homem baixou os olhos, primeiro, embora houvesse uma insinuação de escárnio em sua voz quando falou:

 

Está linda hoje, Madonna. Lamento não poder beijar sua mão.

 

Um espasmo de emoção indefinível pareceu convulsionar o rosto da Condessa.

 

- Pode beijar, se quiser. - disse ela, bruscamente.

 

E estendeu os dedos delgados, esfolados e sangrando. Era um gesto zombeteiro, mas ele pegou a mão estendida e baixou a cabeça para encostar os lábios. Depois, abruptamente, debateu-se como se uma súbita loucura o possuísse, as mão acorrentadas apertando o pulso da Condessa, puxando a mão dela para seus lábios, avidamente. Num gesto rápido, ela levantou o chicote com a mão livre e desferiu um único e brutal golpe. O homem encolheu-se e nesse instante a Condessa voltou a ficar longe de seu alcance, os olhos flamejando.

 

- Eu tinha esquecido - zombou ela. - É lua cheia e você... está com fome.

 

Ele permaneceu derreado nas correntes, sem se dar ao trabalho de responder à provocação. Só depois de um longo tempo é que murmurou:

 

- Ah, a lua cheia de novo... Não tem pesadelos, Madonna?

 

Ela estremeceu como se afastasse a lembrança, mas disse em voz firme:

 

- Eu me considero afortunada se você não puder me causar mais mal do que isso... provocar-me pesadelos!

 

Um espasmo de repulsa contraiu os lábios da Condessa. Subitamente ela recuou, levantou outra vez o chicote e gritou, em voz retumbante:

 

- Angelo, Conde Fioresi, alimentou-se de sua última vítima... Vampiro!

 

Ela soltou uma gargalhada.

 

- Por três meses mantive-o acorrentado, observei suas forças diminuírem e sua fome diabólica aumentar!

 

No mesmo instante ele sacudiu freneticamente as correntes, mas o esforço foi débil e logo desistiu, exausto, encostando-se na parede.

 

Houve um tempo em que você poderia romper essas correntes, - comentou a Condessa, num triunfo cruel - se eu não tivesse esculpido a cruz em cada grilhão! Agora, acho que até mesmo correntes comuns poderiam contê-lo!

 

Ele deu um impulso com as mãos para se empertigar, murmurando:

 

- Madonna, minha vida está à sua mercê; pode encerrá-la quando quiser. Ninguém poderia culpá-la, se me matasse. Mas porque sente prazer em me atormentar?

 

- Precisa perguntar? - gritou ela, numa voz estridente e angustiada, o último resquício da jovem que fora apenas três meses antes. - Você, que veio a este castelo como meu pretendente, enganando meu pai ao se apresentar como neto de seu mais antigo amigo?

Quantas vezes ele falou a seu respeito, dizendo que sentia, quando estava em sua presença, que o amigo da juventude retornara dos mortos? Não podia imaginar a verdade que havia em suas palavras!

 

- Nada disso. Se quer contar outra vez essa velha e triste história, então relate a verdade. Não passa de invenção essa alegação de que volto dos mortos. Não morremos. Vivemos muitas vezes a duração da vida dos mortais, a menos que um acidente interrompa a nossa vida... ou... ou... sejamos privados por tempo demais de nossa outra fonte de vida.

 

O rosto convulsionado da Condessa parecia tremer na semi-escuridão.

 

- Que seja assim. Seu velho amigo, meu pai, adoeceu e morreu, depois foi meu irmão Rico, de uma doença que o fez definhar. E por último Cassilda, a irmã que me criou quando fiquei órfã, abandonada em terra profana... e ainda assim tentou casar comigo.

 

- Madonna, chama-me de demônio...

 

E pode negar? Pode afirmar que é humano, você que não tocou em comida ou bebida em todos esses meses desde que eu o trouxe para cá?

 

- Admito que não sou um humano da sua espécie - murmurou ele, de cabeça baixa. - Minha raça é muito mais antiga do que a sua, Madonna, talvez criada antes que seu Deus concedesse o domínio à sua espécie. Como alguns animais, nós vivemos... depois que passamos da juventude... apenas pelo sangue de coisas vivas. Até completar trinta anos, eu me julgava como os outros homens. Seja como for, Condessa, eu não matei sua família. E que diferença isso faria? Seu irmão mais velho, Stefano, foi morto num duelo com o senhor de Monteno, mas apesar disso os Monteno são recebidos como hóspedes de honra aqui em Castelo di Speranza. Eu não sabia... - Ele pareceu subitamente se contorcer em dor. - Eu não sabia que a morte já se encontrava em sua família quando cheguei aqui.

 

- Está mentindo!

 

O chicote assobiou pelo ar e foi atingir o homem no rosto e peito. Ele soltou um grito rouco, e um sorriso cruel estampou-se no rosto da moça.

 

Sinto alegria em saber que você pode sofrer! - exclamou ela. - Sofra como eu sofri!

 

A chicotada arrancara sangue; ela olhou para as gotas escarlates com um estranho sorriso de exultação.

 

- Tome cuidado, Madonna - murmurou Conde Angelo Fioresi. - Eu procurava o sangue dos homens para não morrer; você vem procurá-lo por prazer.

 

Ela levantou o chicote de novo, mas baixou-o sem desferir o golpe.

 

- Por que não posso querer a sua morte? Por que ainda não o matei? Por que não posso livrar a doce terra do Senhor de uma coisa como você?

 

- E por que tem pesadelos? - indagou ele, suavemente. - E por que houve um tempo em que me amou, Madonna? Seu Deus proibiu a vingança aos fiéis. Por que não pode me entregar à vingança Dele e ao inferno... ou à Sua misericórdia?

 

Ela virou-se abruptamente e fugiu pelo corredor, subiu a escada em caracol. Os passos ecoavam pela noite. E Conde Angelo Fioresi, homem, monstro, Vampiro, o que quer que ele fosse, baixou o rosto para as mãos e chorou.

 

A Condessa escancarou as janelas de seu quarto, estremecendo quando o vento noturno soprou o fedor da masmorra de suas roupas; teria se ajoelhado se as palavras do Vampiro não ardessem em seu coração; Deus proibira a vingança.

 

O que me tornei?, ela perguntou a si mesma, atordoada. Deitou-se na cama enorme, mas temia dormir, tão intenso era o horror dos pesadelos que a dominavam. Era algum encantamento maligno do Vampiro que mantinha acorrentado, ela pensou; e, no entanto, tão profundo era o terror nas noites de lua cheia que ela não se atrevia a fechar os olhos. Permaneceu acordada, recordando como aprisionara a coisa maligna em forma de homem que agora mantinha na masmorra.

 

Quando ele aparecera, mostrara-se bastante insinuante. Ela pensara a princípio que era a mão de Cassilda que ele desejava, pois a irmã era mais velha e mais bonita; e, no entanto, ele tratava Cassilda apenas com cortesia e gentileza. Era essa gentileza que ela agora não podia conciliar com os horrores. Quando o pai morrera, e o irmão em seguida, ela chorara.

 

- Sou malfadada; você não pode me querer agora.

 

Ele sorrira e respondera:

 

- Talvez, quando se tornar minha esposa, o infortúnio se canse de seguí-la.

 

Mas parecia que um encantamento maligno envolvia a todos eles naquela ocasião, pois houve mortes em toda a aldeia, como se fosse alguma doença misteriosa. Ao final, até mesmo Cassilda morrera, embora o capelão do Castelo, Padre Milo, escondesse o corpo de Teresa.

 

Angelo a procurara naquele dia no lugar em que ela chorava, perto da capela - ela podia lembrar agora que ele nunca entrava na capela - o rosto bonito contraído no que parecia ser uma compaixão sincera. Seria de fato uma hipocrisia diabólica?

 

- Teresa, Teresa, não posso suportar vê-la tão sozinha!

 

Agora ela se perguntava: o que teria acontecido se sucumbisse às súplicas de Angelo? Os sinais da cruz que ela fizera o mantinham imobilizado; ele seria capaz de casar?

E, na verdade, ela não teria realizado Seu propósito ao prendê-lo no Sacramento?

 

O Padre Milo, tenso e trêmulo em terror, levara-a para a capela naquela noite, fizera o sinal da cruz sobre ela. Pedira-lhe que sentasse num banco, enquanto ficava de pé à sua frente, o rosto contraído em angústia e horror. A princípio ela não prestara muita atenção às suas histórias incoerentes sobre estranhas mortes na aldeia, as marcas encontradas na garganta de seu pai e irmão, a insinuação de algum horror ainda pior envolvendo a morte de Cassilda. Só lentamente, incrédula, ela compreendeu o que o padre tentava explicar - que aquelas mortes era a obra de um Vampiro!

 

Mas isso não passa de superstição! - protestara ela.

 

O padre sacudira a cabeça.

 

- Não, é obra do demônio, cometida por alguém em conluio com o demônio!

 

O rosto do sacerdote estava muito pálido e contraído. Gradativamente, palavra por palavra, ele a convencera. Mesmo assim, Teresa ainda hesitara em acreditar nas terríveis histórias - que o conde fora visto a voar sob a forma de um morcego da janela da velha torre, que uma santa mulher da aldeia sentira o cheiro de mortalha e caixão à sua passagem; mas quando finalmente se convencera, ajoelhara-se diante do padre, a raiva e o terror dominando seu coração.

 

- O que se pode fazer?

 

O Padre Milo respondera lentamente: A criatura deve morrer.

 

- Só a morte não seria bastante! - gritara ela, em angústia, o rosto tão branco quanto o véu de luto. - Estou lembrando... antes da noite de sua morte, Cassilda sentou ao lado da minha cama e chorou; e eu... eu não sabia o motivo!

 

O Padre Milo pusera a mão sobre a cabeça de Teresa.

 

- Deve aceitar com coragem o que devo lhe dizer agora, minha filha. Cassilda morreu por suas próprias mãos, com medo de sofrer o mesmo destino.

 

- Então a morte apenas não será suficiente para esse monstro! Ele deve sofrer... sofrer tanto quanto eu e minha família sofremos!

 

- A vingança a Deus pertence - protestou o padre. - Não tenho certeza, mas já ouvi dizer que essas monstruosas criaturas do demônio... não podem realmente morrer, mas vivem em seus caixões, de onde saem para procurar o sangue de coisas vivas. Filha, devo ir a Roma e solicitar uma dispensação para lidar com essa... essa coisa, a fim de podermos nos livrar dele para sempre.

 

- Deve partir esta noite.

 

Mas primeiro precisamos tomar algumas precauções, a fim de que ele não possa prejudicá-la ou destruí-la, como fez com sua família. Mantenha-se vigilante, mas não deixe transparecer qualquer mudança em seu comportamento, para que ele não desconfie que já sabemos o que é. E depois, quando eu voltar, poderemos destruí-lo e mandá-lo para o verdadeira morte em seu caixão, para que Deus, em sua infinita misericórdia, possa puni-lo ou perdoá-lo.

 

Teresa cobrira o rosto com as mão, sussurrando:

 

- Uma coisa saída da sepultura, e eu o amei! A misericórdia de Deus? Eu gostaria de vê-lo ardendo por toda a eternidade no inferno!

 

O Padre Milo fizera o sinal da cruz, balançando a cabeça tristemente.

 

Aflige-me que você fale palavras tão terríveis, minha filha. Podem-se fixar limites à misericórdia de Deus?

 

- Para aquele demônio, claro que sim!

 

- Lembre-se, filha de que um santo disse uma vez ao próprio Satã: "Também posso lhe prometer a misericórdia de Deus, quando a pedir em oração." Pense bem, Teresa. O Conde Fioresi é um valente soldado e um gentil fidalgo. Arca com essa maldição do demônio há muitos anos, e para ele deve ser um verdadeiro inferno, longe da vista de Deus. Pode negar que o Deus misericordioso não seja capaz de perdoá-lo um dia?

 

- Se eu pensasse assim - protestara ela, com veemência -, então encontraria um meio de mantê-lo para sempre afastado desse perdão... para fazê-lo viver e sofrer tanto quanto eu e minha família!

 

O padre limitara-se a responder:

 

Está abalada, o que não é de admirar. Que Deus perdoe suas palavras impensadas. - Ele estendera a mão para ajudá-la a levantar-se. - Preciso partir esta noite. Vamos para o seu quarto, onde providenciaremos toda a segurança possível.

 

Ele fizera o sinal da cruz em cada porta e janela, salpicara-as com água benta. Deixara a porta principal por último, mas nesse instante Teresa sentira um terror súbito e desesperado. Mesmo para se salvar da morte não podia suportar a perspectiva de ficar encerrada por encantamentos, nem que fossem encantamentos santos.

 

Esta eu lacrarei com meu crucifixo, quando estiver no quarto - dissera ela.

 

Mesmo enquanto falava, o plano aflorara plenamente definido em seu coração.

 

- Talvez seja melhor assim - respondera o padre, pensativo, tirando um pequeno frasco do bolso do hábito. - Dê-lhe isto no vinho. Que Deus nos perdoe, filha, mas pelo menos isto o despachará para a primeira morte. Cuidaremos do Vampiro quando eu voltar de Roma, com a estaca e o fogo. - Ele entregara um rosário a Teresa, com toda a reverência. - Isto foi abençoado por um grande santo e é uma herança de minha família. Vai impedir que ele se levante dos mortos até minha volta.

 

Ele estendera a mão sobre a cabeça de Teresa, numa bênção.

 

- E trate de esquecer esses pensamentos iníquos de vingança. Eu lhe ordeno, sob o risco de salvação de sua alma, que reze pela alma dessa ovelha perdida de Deus; reze pela alma de Angelo Fioresi.

 

Mas as palavras caíram num coração duro. Ela inclinara a cabeça, mas clamava por dentro: "Nunca!"

 

Ela prepara pessoalmente a comida e a bebida para a primeira etapa da viagem do padre; mas depois que se despediram e ele se afastara a cavalo, Teresa assumira um sorriso cruel, comprimindo o frasco na mão e murmurando:

 

- Mas você não voltará e a vingança me pertencerá!

 

Depois, virando-se para a porta, deparara com os olhos risonhos do Conde Angelo. Forçou-se a sorrir em retribuição e lhe estendera a mão para um beijo.

 

- Por que o padre nos deixou?

 

- Foi solicitar permissão para o nosso casamento.

 

- Quer dizer que estamos a sós aqui? - Ele a abraçara, sempre sorrindo. - Que sua viagem seja rápida!

 

Mas havia uma estranha contração no rosto de Angelo, e ela se encolhera e se esquivara de seu beijo.

 

- Não agora!

 

Teresa passara aquela noite acordada, sentindo-se como a cabra amarrada a uma estaca para atrair o leão da montanha, a pálida claridade que entrava pela porta aberta iluminando seu rosto, à espera de passos e da sombra, de asas negras entrando em seu quarto. Apertara a cruz em terror, pensando: é mesmo verdade que o Vampiro se move como um gato ou um fantasma, em passos silenciosos.

 

Lentamente, a sombra se inclinara, até que lábios cheios encostaram em sua garganta; e nesse instante, simulando despertar, ela murmurara:

 

- Angelo?

 

- Amor...

 

- Espere um instante - balbuciara ela, com a cruz na mão. - A porta está entreaberta.

 

- Não está, não - respondera ele, virando-se.

 

Mas Teresa correra até a porta, batera-a e empurrara o trinco, ali prendendo o crucifixo, branca como sua camisola.

 

- E agora quero ver se pode sair por onde veio, Conde Angelo Fioresi... demônio, monstro, assassino... Vampiro! - Ela avançara em sua direção, a lanterna levantada. Angelo se virara como um animal na iminência da morte, correra para as janelas lacradas, a outra porta, tudo em vão.

 

- Nunca acreditei muito, até agora - dissera Teresa, numa voz que tremia. - Parecia uma mentira monstruosa, mas agora sei que é verdade!

 

O Conde estendera as mãos em sua direção e ela levantara a cruz para repeli-lo. Teresa esperava que ele avançasse com a intenção de matá-la, mas o Conde não se mexera.

 

- Teresa, não é o que você pensa. Eu lhe peço... imploro que me escute, antes que seja tarde demais.

 

Mas em sua ira e fúria ela não queria escutar. Pegara o chicote e o golpeara no rosto e ombros. Ele gritara e num movimento rápido arrancara o chicote de sua mão, jogara-o no tapete.

 

Tenha cuidado, Madonna - murmurara o Conde. - Sei de muitas coisas que você ignora. E posso lhe garantir, Teresa, que neste momento corre um perigo muito maior do que eu. Quer me ouvir... me ouvir por um momento, em nome do pai que está morto?

 

Ouvir você, seu monstro, assassino, violador de sepulturas? - gritava Teresa, com um sorriso desolado.

 

- A velha história de que me levanto de um caixão? Não, Madonna, ainda não conheci a morte. Nem quero morrer por enquanto. Mas se me matar agora, correrá um grande perigo. Por isso, peço que me escute primeiro.

 

Ele se adiantara, como se fosse agarrá-la e obrigá-la a escutar, mas Teresa pegara o crucifixo no oratório e o estendera à sua frente. O Conde recuara e ela exultara:

 

- Então pelo menos esta superstição é verdadeira?

 

Ele se encolhera, o braço levantado cobrindo o rosto.

 

- Verdadeira em parte, Teresa. Não posso fazer-lhe mal enquanto estiver com esse símbolo de sua fé, esse sinal de que se encontra sob a proteção de Deus. Mas eu lhe imploro, pela última vez...

 

- Poderia me enganar com palavras?

 

Com o crucifixo numa das mãos, ela levantara o chicote com a outra e golpeara o corpo encolhido. O Conde recuara um passo e ela o seguira, o chicote subindo e descendo.

 

- Quer dizer que você pode sangrar e sofrer? - gritara Teresa, em triunfo.

 

- Tanto quanto você - murmurara ele, caindo de joelhos.

 

Protegendo-se com a cruz, Teresa continuara a chicoteá-lo, saboreando cada estalo seco e as linhas de sangue que pouco a pouco foram se cruzando no corpo do Conde. Ao final, ela estava parada por cima dele, ofegante, o Conde sem sentidos e ensangüentado. Com olhares cautelosos, temendo que o desmaio fosse simulado, Teresa correra até a arca e pegara as pesadas correntes. Ela mesma, com seus frágeis dedos, arranhara em cada elo o sinal da cruz, com seu anel de diamante. Depois, chamara Rondo, o surdo-mudo, para ajudá-la a arrastar o Conde pela longa escada e prender as correntes na parede da masmorra. Em seguida, tonta de horror e cheia de satisfação por seu primeiro plano de vingança, ela quase caíra desfalecida em sua cama.

 

- Abra todas as janelas - balbuciara ela para Rondo. - Estou desmaiando.

 

Ele se retirara depois e Teresa adormecera, mas seus sonhos foram terríveis. Tivera a sensação de se levantar e percorrer o castelo como um espectro silencioso, confusos horrores de sangue e rostos agonizantes desfilando por sua mente. Despertara para descobrir que andara no sono e se encontrava debruçada na janela.

 

Será que ele me enfeitiçou?, especulara Teresa, enquanto voltava para a cama, à claridade crescente do dia, e tornava a dormir.

 

Acordara ao crepúsculo e descera para a cripta, tremendo; mas seu medo fora atenuado ao verificar que seu inimigo continuava acorrentado. E assim ela adquirira o costume de todos os dias, ao crepúsculo, descer para a cripta.

 

À medida que os dias passavam, isso fora absorvendo-a mais e mais. Começara a viver só para os momentos em que se postava diante do homem acorrentado, fitava seus olhos ardentes, como um falcão engaiolado; e quando as súplicas do Conde tornavam-se muito perturbadoras, silenciava-as com o chicote cruel, no qual também inscrevera a cruz, a fim de que ele não pudesse arrebatá-lo.

 

Os pesadelos ainda a atormentavam. O encantamento parecia dominar todo o castelo, pois alguns dos criados fugiram, enquanto outros a procuravam com histórias de mortes na aldeia; mas Teresa os ignorava, como se fossem apenas moscas incômodas. O responsável pelas mortes está acorrentado lá embaixo, ela pensava; não podem agora atribuir todas as mortes a visitas sobrenaturais! E ela sentia-se impaciente e cruel com os servos, ansiando apenas pelo momento em que desceria para tripudiar sobre o prisioneiro, depois voltaria para dormir o sono da exaustão.

 

Os habitantes da aldeia se inquietavam porque o Padre Milo não voltava e lhe enviaram uma delegação de velhas para suplicar que providenciasse outro padre.

 

- Estão querendo me dar ordens? - gritara Teresa, andando de um lado para o outro. Depois que a delegação se retirara, ela se contemplara no espelho, horrorizada; vão pensar que estou louca!

 

Assim se passaram três luas, sem que a situação se alterasse. E veio uma noite em que Angelo mal se mexeu quando ela lhe falou, permanecendo aparentemente sem sentidos sobre a palha. Só depois de um longo tempo é que ele abriu os olhos e murmurou:

 

Exulte por meu desespero, Madonna. O fim se aproxima. Mas vejo-a mergulhando mais e mais para o perigo. Por seu próprio bem, eu lhe suplico que acabe logo com isto.

 

- Ah, o demônio estava doente, o demônio quer se passar por monge! Devo instalá-lo na capela do Padre Milo?

 

- Não sou um monstro de crueldade, embora não possa culpá-la por me julgar assim. Mas acontece que continuo acorrentado aqui, Teresa. Por que então as pessoas na aldeia continuam a morrer?

 

Ela deu de ombros, indiferente.

 

- As pessoas assim estão sempre morrendo. Sou responsável por elas, por suas almas ou corpos?

 

A criatura acorrentada lançou-lhe um estranho olhar calculista.

 

- Houve um tempo em que você não falaria assim. Houve um tempo em que você era generosa e devota.

 

- E se virei um demônio do inferno, não foi você quem me fez assim?

Ele quase riu.

 

- Claro que não, pois você soube se defender de mim... mas não fez de si mesma um demônio?

 

- Cale-se! - berrou Teresa. - Cale-se!

 

Ela chicoteou-o no rosto. O Conde caiu, com um grito terrível, o sangue esguichando dos lábios partidos.

 

Teresa largou o chicote e ajoelhou-se a seu lado. "Ele falou a verdade", pensou ela. "O fim está próximo. Que ele fique aqui por toda a eternidade."

 

O crucifixo que ela ainda usava balançava para a frente e para trás, projetando uma estranha sombra no prisioneiro. Um súbito pensamento ocorreu a Teresa.

 

"Já tive minha vingança. Ainda não é tarde demais para deixar de lado meu ódio e fazer o que o Padre Milo recomendou: pôr um fim ao sofrimento dele e entregá-lo à misericórdia de Deus. Só preciso golpeá-lo no coração. Ele disse que não pode se levantar dos mortos. Ainda assim, posso dizer por ele a oração dos mortos, fazer penitência. E depois, eu também me entregarei à misericórdia de Deus. E Angelo... Angelo voltará ao pó onde há muito deveria estar, sua alma se apresentará a Deus para ser julgada pelos crimes que cometeu."

 

Ela experimentava a estranha sensação de que a masmorra se encontrava apinhada de espíritos observando; era como se ela estivesse em alguma encruzilhada, esperando que uma vítima fosse enforcada ou perdoada... e a vítima era ela própria. Poderia remover o ódio e procurar misericórdia ou...

 

Os lábios de Teresa contraíram-se num terrível sorriso de crueldade. Nunca, jamais poderia renunciar ao prazer que encontrara naquilo! Não, que ele sofresse, que ele sofresse para sempre! Quem precisava do perdão de Deus? Havia muitos além do domínio de Deus!

 

Então é tarde demais - murmurou o Conde.

 

Teresa recuou, mas ele se sentou, com um movimento determinado, segurou-a rudemente, partiu as correntes de suas mãos, depois dos tornozelos.

 

Ela gritou, encolhendo-se, fazendo um esforço para se levantar. Tropeçou no chicote no chão e caiu para as pedras. Angelo, ficando de pé, aproximou-se.

 

- Eu a teria salvado - murmurou ele, depois de um longo silêncio. - Pense em seus pesadelos, Teresa. Não começaram antes mesmo de minha chegada ao Castelo di Speranza? Há muitos anos uma mulher da família Fioresi casou no clã Speranza; e eu sabia que pelo menos uma pessoa de sua família teria... o sangue completo de minha gente. Se fosse Rico, eu o tomaria como meu escudeiro, para guardá-lo e protegê-lo. Eu... eu poderia salvá-la, Teresa, guardando-a como uma coisa mais preciosa que minha própria vida. Velaria por você, tudo faria para mantê-la sã e salva, haveria de mantê-la na inocência do que você era, embora eu tivesse chegado tarde demais para salvar seu pai...

 

Ela gritou horrorizada quando seu cérebro registrou o significado daquelas palavras, mas Angelo continuou, implacável:

 

- Quando Rico morreu, não pude mais suportar. Em desespero, procurando apenas protegê-la, revelei a verdade a Cassilda. Eu... não podia imaginar que ela se mataria de tanto horror. Pensei apenas que juntos poderíamos proteger você, até que eu pudesse conduzi-la com segurança ao conhecimento do que era. Você poderia até aceitar... não como uma coisa de terror, mas apenas como outra espécie de vida; uma natureza diferente, vivendo inofensivamente por suas próprias leis. Não, não fui eu quem matou sua família. Já vivi até agora duzentos anos. Desde o primeiro ano em que soube o que eu era, nenhum homem jamais morreu por meu contato. Sei como... extrair a vida de que preciso... sem prejudicar as pessoas mais que ocorreria numa sangria, com sanguessuga. Não sou mal nem cruel, Madonna, apenas vivo como devo.

 

Ele inclinou-se para Teresa. Ela se encolheu, enlouquecida pelo medo, estendendo o crucifixo na direção dele.

 

- Não, Madonna - disse ele, gentilmente, segurando-a pelos ombros. - Isso não vai protegê-la agora.

 

Uma pausa e o Conde continuou, quase com tristeza:

 

- Fui criado para temê-lo; foi incutido em meu coração e cérebro que nunca poderia tocar em alguém que se declarasse sinceramente sob a misericórdia de Deus. Enquanto você ainda ignorava o que era, Teresa, enquanto ainda era sinceramente devota em sua fé, eu não poderia passar pelo símbolo de sua crença sincera. E a cruz que você esculpiu nas correntes, pensando em proteger os outros do meu mal, era uma barreira para mim. Mas agora você se tornou má. Não pode mais invocar a proteção de Deus. Para você, a cruz é agora apenas um símbolo vazio... e não pode mais me conter.

 

Ele arrancou o crucifixo da garganta de Teresa, contemplou-o com um olhar triste e largou-o de lado.

 

Talvez eu nunca tenha tido uma alma, mas você, Teresa, jogou a sua fora. É um monstro... terrível demais para viver até entre meu povo.

 

A última coisa que a Condessa viu foi o rosto de Angelo, contraído pela angústia, baixando numa mancha escarlate, na qual ela mergulhou como a morte.

 

Horas depois os aldeões se reuniram para observar o Castelo di Speranza desabar em meio às chamas. Ninguém percebeu o homem silencioso que se embrenhava a cavalo pela floresta, encurvado como se em profunda agonia, encolhido na sela em dor e desespero. Ele não olhou para trás uma única vez, ignorando as chamas, mantendo-se inclinado sobre o pescoço do cavalo, enquanto murmurava sem parar:

 

Teresa... Teresa... Teresa...

 

                                                                                Marion Zimmer Bradley  

 

                      

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