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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


TRAIÇÃO EM FAMILIA / David Baldacci
TRAIÇÃO EM FAMILIA / David Baldacci

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                   

 

 

Biblio VT

 

 

 

 

Após sua festa de 12 anos, Willa Dutton, sobrinha da primeira-dama, Jane Cox, é sequestrada. Estranhamente, Pam Dutton mãe de Willa, havia chamado os investigadores particulares Sean King e Michelle Maxwell à sua casa a fim de contratar seus serviços. Porém, ao chegar lá, eles encontram Pam morta, seu marido e seus dois filhos mais novos desacordados e descobrem que Willa desapareceu. Agora Jane Cox faz questão de que Sean - que já salvou seu marido de um escândalo político uma vez - e sua parceira assumam a investigação e resgatem sua sobrinha. Para resolver o caso, Sean e Michelle passarão por cima de todo mundo, até mesmo do FBI e do Serviço Secreto, e não hesitarão nem mesmo em ferir o ego da primeira-dama, se for necessário.

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ELA CAMINHAVA SEM PRESSA. Desceu a rua, dobrou à esquerda, seguiu em linha reta por dois quarteirões, então fez uma curva leve à direita. Parou por um instante em um cruzamento, depois um pouco mais em outro. Só por hábito, na verdade. O radar em sua cabeça não detectara nenhum perigo. Ela seguiu adiante. Apesar de ser tarde, havia gente na rua, mas ninguém a notava. Ela parecia passar feito a brisa: as pessoas a sentiam, porém nunca a viam. O prédio de concreto de três andares estava bem ali, onde sempre estivera, entre um arranha-céu à esquerda e um prédio com estrutura de concha à direita. É claro que havia um sistema de segurança, mas apenas básico, não dos melhores. Retardaria um assaltante qualquer por alguns minutos; um profissional, por muito menos tempo. Em vez de arrombar a porta da frente, ela escolheu uma janela nos fundos do prédio. Quase nunca tinham alarmes. Arrebentou a trava de segurança, levantou a janela e passou para o lado de dentro. Cantarolou baixinho enquanto desarmava com facilidade o detector de movimentos. Contudo, foi um cantarolar nervoso. Estava chegando mais perto de seu objetivo, daquilo que fora buscar – e que a deixava apavorada. Não que fosse admitir isso algum dia. O armário de arquivos estava trancado. Ela sorriu. Você realmente está me dando um bocado de trabalho, Horatio. Cinco segundos depois, a gaveta deslizava para a frente. Seus dedos percorreram as abas de identificação dos arquivos. Ordem alfabética. O que deixava sua pasta no meio das demais, algo que nunca acontecia com ela na vida real. Seus dedos pararam sobre uma pasta. Era grossa. Ela nunca imaginara que pudesse não ser.
Evidentemente seu caso não era do tipo que se resumisse em 10 páginas. Exigira a derrubada de muitas árvores. Retirou a pasta e lançou um olhar para a copiadora. Tudo bem, aqui vamos nós. Horatio Barnes era seu psiquiatra, seu guru. Algum tempo atrás, ele a convencera a se internar em um hospital psiquiátrico. Durante o período de internação voluntária, o único mistério que havia conseguido solucionar não tinha nada a ver com os problemas dela. Mais tarde, como qualquer terapeuta razoável, Horatio a hipnotizara e a levara de volta à infância. Aparentemente, a sessão havia revelado muitas coisas. O único problema era que Horatio tinha decidido não lhe contar o que ela dissera. Ela estava ali para corrigir aquele pequeno detalhe. Colocou as páginas na bandeja e apertou o botão. Um por um, os acontecimentos de sua vida deslizaram rapidamente para dentro da copiadora. À medida que cada folha era puxada pela máquina, seu coração acelerava um pouco mais. Devolveu o arquivo original à gaveta, passou um elástico em volta de suas cópias e as segurou com as duas mãos. Embora tivessem apenas alguns gramas, ainda assim seu peso ameaçava fazê-la afundar através do piso. Saiu pelo mesmo caminho por onde entrara, suas botas produzindo um som metálico abafado ao beijar o asfalto. De novo como o sopro invisível da brisa, ela caminhou calmamente até o carro. Ao seu redor, vida noturna por toda parte: ninguém nem sequer a vislumbrou. Entrou no veículo, deu partida no motor. Estava pronta para ir embora. Correu as mãos pelo volante. Ela queria dirigir, sempre adorara pisar fundo e acelerar o motor de oito cilindros por uma estrada qualquer que não conhecesse. Contudo, olhando pelo parabrisa, soube que não queria nenhuma novidade, só desejava desesperadamente que as coisas voltassem a ser como antes. Olhou de relance para as folhas do arquivo e viu um nome na primeira pá gina: Michelle Maxwell. Por um momento, não pareceu ser ela. O que aquelas páginas traziam eram a vida, os segredos, os tormentos de outra pessoa. Problemas. Aquela palavra temida. Parecia tão inocente. Problemas. Todo mundo os tinha. Mas aquelas nove letras sempre pareciam defini-la, reduzindo-a a alguma fórmula mais simples que, apesar disso, ninguém parecia capaz de compreender.
O carro ficou em ponto morto, despejando gás carbônico numa atmosfera já carregada dele. Algumas gotas de chuva se chocaram contra o para-brisa. As pessoas começavam a acelerar o passo à medida que percebiam o temporal se aproximando. Demorou apenas um minuto e ela sentiu o vento fustigar o carro. Um raio riscou o céu, logo seguido pelo estrondo de um trovão. A força com que a tempestade chegava também indicava que ela seria breve: tamanha violência não poderia se sustentar por muito tempo; despendia uma energia grande demais, depressa demais. Ela não conseguiu se conter. Desligou o motor, pegou as páginas que copiara, arrancou o elástico e começou a ler. Primeiro, informações gerais. Data de nascimento, sexo, escolaridade, profissão. Virou a página. E então outra. Nada que já não soubesse, nada de surpreendente, uma vez que era tudo a seu respeito. Na quinta página de anotações, suas mãos começaram a tremer. O cabeçalho era “Infância – Tennessee”. Engoliu em seco uma vez e depois outra, mas não conseguiu aliviar a secura na garganta. Tossiu e pigarreou, mas isso só piorou as coisas. A saliva acumulada na boca parecia ter se solidificado, exatamente como no dia em que ela quase se matara na água, remando para ganhar uma medalha olímpica de prata que significava menos para ela a cada dia que passava. Agarrou uma garrafa de isotônico e a virou na boca, deixando parte do líquido derramar sobre o assento e as páginas. Praguejou, esfregou o papel tentando secá-lo. Então a folha se rasgou quase na metade. Aquilo fez lágrimas brotarem em seus olhos, ela não sabia muito bem por quê. Levou a folha rasgada para bem perto dos olhos, apesar de ter a visão perfeita. Era perfeita, mas mesmo assim ela não conseguia ler o que estava escrito. Olhou para fora pelo para-brisa e também não pôde enxergar nada, tão forte era a chuva que caía. As ruas agora estavam vazias: as pessoas haviam corrido para se abrigar e desaparecido na primeira pancada de água que descera quase na horizontal, impelida pelo vento. Olhou de volta para as páginas, mas também não encontrou nada. As palavras estavam lá, é claro, mas ela não conseguia vê-las. – Você consegue, Michelle. Você pode enfrentar isso. As palavras saíram baixas, soaram forçadas, vazias. Ela se concentrou de novo. – Infância, Tennessee – começou.
Voltava aos 6 anos, quando morava no Tennessee com a família. O pai era um policial bem-sucedido; a mãe, bem, a mãe era sua mãe. Os quatro irmãos mais velhos tinham crescido e saído de casa. Só ficara a caçulinha, a pequena Michelle, morando com eles. Sentia-se melhor agora. As palavras estavam claras e suas lembranças iam se cristalizando à medida que ela se esgueirava de volta àquele trecho isolado de sua história pessoal. Quando virou a página e seu olhar passou ligeiro sobre a data no alto, foi como se o raio lá fora tivesse caído nela. Um bilhão de volts de dor, um uivo de angústia que se podia ver e sentir concretamente enquanto a trespassava. Ela olhou pela janela. As ruas ainda estavam vazias e a chuva agora se lançava com tanta violência no chão que as gotas pareciam interligadas, como trilhões de fios de contas. Enquanto estreitava os olhos para ver através da chuva, notou que as ruas não estavam de todo vazias. O homem alto estava parado lá fora, sem guarda-chuva, sem capa. Estava ensopado até a alma, com a camisa e a calça coladas na pele. Ele a encarou e ela retribuiu seu olhar. Observando-a através da cortina de água, não havia temor, ódio ou simpatia nos olhos dele. O que havia, concluiu ela, era uma tristeza oculta facilmente comparável ao desespero dela. Ela girou a chave, engatou a marcha e pisou no acelerador. Ao passar velozmente por ele, lançou-lhe um olhar bem no instante em que outro raio faiscava e, por um breve segundo, transformava a noite em dia. As imagens de ambos pareciam congeladas naquela explosão de energia, o olhar de cada um deles fixo no do outro. Sean King em nenhum momento fez menção de falar nada, nem tentou detê-la quando o carro passou cantando pneu. Apenas ficou ali parado, o cabelo ensopado colado no rosto, os olhos, no entanto, parecendo grandes e invasivos como sempre. Aqueles olhos a assustavam como se quisessem tomar sua alma. Um instante depois, ele tinha ficado para trás e desaparecido, enquanto ela dobrava a esquina e reduzia a marcha. Baixou o vidro da janela e jogou fora a pilha de folhas de papel, que aterrissou dentro de uma caçamba de lixo. Em seguida, o carro sumia em meio à violenta tempestade.
BALÕES DE ANIVERSÁRIO E submetralhadoras. Talheres elegantes pousando em doces cremosos enquanto dedos ásperos se posicionavam em gatilhos de metal. Presentes sendo desembrulhados e risadas alegres espalhando-se pelo ar junto com o som ameaçador de um helicóptero que chegava. O Departamento de Defesa se referia àquele retiro como base militar. Para a maioria dos americanos, porém, ele era simplesmente Camp David. Mas, qualquer que fosse o termo usado, aquele não era o local típico para uma festa de aniversário de pré-adolescente. Construído durante a Grande Depressão para servir de retiro e colônia de férias, tinha sido transformado em casa de campo presidencial por Franklin Roosevelt, que a batizara de U.S.S. Shangri-la porque, em essência, fazia as vezes de um iate presidencial. O nome atual e muito menos exótico tinha sido dado por Eisenhower, em homenagem ao neto. A rústica propriedade de cerca de 53 hectares tinha muitas instalações para atividades ao ar livre, entre elas quadras de tênis, trilhas para caminhada e uma pequena área para a prática de golfe. A festa de aniversário estava sendo realizada no salão de boliche. Os convidados eram uma dúzia de crianças, devidamente acompanhadas por seus responsáveis. Compreensivelmente, todas estavam empolgadas por estarem em solo sagrado, onde figuras históricas como Kennedy e Reagan haviam pisado. A organizadora e principal responsável pela festa era Jane Cox. Era algo a que estava acostumada, pois, sendo casada com Dan Cox, era a primeira-dama dos Estados Unidos. Desempenhava seu papel com charme, dignidade e as necessárias doses de humor e astúcia. Embora o grande especialista no assunto fosse o presidente, era fato que, por tradição, a primeira-dama não era nenhuma incompetente nesses quesitos. Com seu cabelo castanho, que ia até os ombros, preso em um rabo de cavalo, ela colocou sapatos de boliche nas cores da bandeira americana e marcou 97 pontos, sem mandar a bola para fora uma vez sequer. E foi ela quem carregou o bolo e puxou o “Parabéns para você” da sobrinha, Willa Dutton. Willa era pequena para a idade e tinha cabelos escuros. Era um tanto tímida, mas muito inteligente e cativante depois que se passava a conhecê-la. Embora, é claro, Jane jamais admitisse isto publicamente, Willa era a sobrinha favorita. A primeira-dama não comeu bolo. Como o país inteiro – o mundo inteiro, talvez – estava de olho nela, precisava manter a forma. Tinha engordado alguns quilinhos desde que se mudara para a Casa Branca. E mais alguns durante o “inferno a bordo de um avião”, como costumava se referir à campanha para reeleição a que o marido atualmente se dedicava. Tinha 1,72 metro, alta o suficiente para que a maioria das roupas lhe caísse bem. Uma vez que o marido tinha 1,80 metro, Jane nunca usava saltos exagerados, que o fariam parecer menor que ela. As aparências eram importantes e as pessoas gostavam que seus líderes fossem mais altos e mais robustos que o restante da população. Tinha um rosto respeitável, refletiu, enquanto se olhava de relance no espelho. Trazia as marcas de expressão de uma mulher que era mãe e enfrentara muitas campanhas políticas. Nenhum ser humano poderia passar por isso incólume: sempre haveria uma brecha pela qual suas fraquezas se revelariam em detalhes ao mundo. A imprensa ainda se referia a ela como bonita. Alguns iam um pouco além e a descreviam como mulher dotada da beleza de uma estrela de cinema. Talvez em outros tempos, acreditava ela. Agora estava definitivamente no estágio de “atriz que representava personalidades excêntricas”. Mesmo assim, havia percorrido um longo caminho desde a época em que as maçãs do rosto bem delineadas e as costas retas e firmes tinham estado no topo de sua lista de prioridades. A festa prosseguia e Jane de vez em quando lançava um olhar pela janela para os fuzileiros que passavam sérios, fazendo o patrulhamento de armas em punho. O Serviço Secreto a acompanhara até o evento, é claro, mas oficialmente era a Marinha que controlava Camp David. Assim, dos carpinteiros aos jardineiros, toda a equipe que trabalhava na casa de campo pertencia àquela instituição. E a maior parte da segurança cabia aos fuzileiros baseados ali. Na verdade, Camp David era mais bem protegida que a própria Casa Branca, embora pouca gente admitisse isso.
Mas segurança não era um tema importante na cabeça de Jane enquanto observava radiante Willa soprando 12 velinhas em seu bolo de duas camadas e depois ajudando a distribuir as fatias. Jane foi até a mãe de Willa, Pam Dutton, uma mulher alta e magra com cabelos ruivos cacheados: – Ela parece estar muito contente, não acha? – comentou. – Ela sempre fica contente quando está perto da tia Jane – respondeu Pam, afetuosamente, batendo de leve nas costas da cunhada. Quando as duas mulheres se abraçaram, Pam disse: – Não tenho como lhe agradecer por nos deixar fazer a festa aqui. Sei que não é bem de acordo com as regras, já que Dan, quero dizer, o presidente nem está aqui. Como não era parente consanguínea, Pam ainda achava constrangedor chamar o cunhado pelo nome de batismo. Já os irmãos do presidente e a própria Jane com frequência o chamavam de Danny. Jane sorriu. – A lei estabelece que todos os imóveis federais são propriedade conjunta do presidente e da primeira-dama. E, só para seu conhecimento, sou eu quem ainda controla nossa conta bancária. Danny não é muito bom com números. – Mesmo assim, foi muito gentil de sua parte – insistiu Pam. Ela olhou para a filha. – No ano que vem ela será uma adolescente. Minha filha mais velha, adolescente... É difícil acreditar. Pam tinha três filhos. Willa, John, de 10 anos, e Colleen, de 7. Jane também tinha três filhos, mas todos mais velhos. O caçula tinha 19 anos e já estava na faculdade e sua mais velha era enfermeira em um hospital em Atlanta. Entre eles havia mais um rapaz, que ainda não sabia ao certo o que fazer da vida. Os Cox haviam tido filhos cedo. Jane tinha apenas 48 anos e o marido acabara de festejar seus 50. – Pela minha experiência – disse Jane –, os meninos dão trabalho ao seu coração e as meninas, à cabeça. – Não tenho certeza de que minha cabeça esteja preparada para Willa. – Esteja sempre aberta para conversar com ela. Saiba quem são os amigos da sua filha. Se intrometa delicadamente em tudo o que estiver acontecendo ao redor dela e tenha cuidado ao comprar uma briga. De vez em quando ela vai se afastar de você. Isso é natural, mas depois que você tiver definido as regras básicas, vai ficar tudo bem. Ela é muito inteligente e logo vai entender. E vai ficar feliz com seu interesse. – Parece um bom conselho, Jane. Sempre posso contar com você. – Pena Tuck não ter podido vir. – Ele deve voltar amanhã. Você conhece o seu irmão. Ela lançou um olhar ansioso para Pam. – Vai ficar tudo bem. Acredite em mim. – Vai, com certeza – disse a mulher em voz baixa, o olhar cravado na filha Willa, visivelmente radiante. Enquanto Pam se afastava, Jane se concentrou na sobrinha. A menina era uma mistura curiosa de maturidade e lampejos de préadolescência. Escrevia melhor que alguns adultos e era capaz de discursar sobre temas que deixariam tontas pessoas bem mais velhas que ela. Além disso, tinha uma curiosidade que não se limitava às questões comuns de sua faixa etária. Contudo, observando-a bem, era possível ver que ela ria impulsivamente, usava com frequência termos como “tipo” e “uau” e estava começando a desenvolver um misto de atração e desagrado pelos meninos. Essa reação ao sexo oposto não mudaria muito quando Willa se tornasse adulta, Jane sabia muito bem. Exceto que as apostas seriam bem mais altas. A festa acabou, as pessoas se despediram. Jane Cox entrou no helicóptero. Não era identificado como “Marine One” porque o presidente não estava viajando nele. Naquele dia, sabia Jane, sua proteção estava a cargo da equipe B. Mas, para ela, estava muitíssimo bem. Na vida pública, ela ficava dois passos atrás do marido, como era esperado de uma primeira-dama. Já na vida pessoal não havia distinção entre eles. Jane afivelou o cinto e um fuzileiro uniformizado trancou a porta. Com o rosto impassível, quatro agentes do Serviço Secreto a acompanhavam. Decolaram e, alguns momentos depois, olhavam do alto para Camp David, a casa de campo aninhada nas montanhas Catoctin. O helicóptero virou para o sul e, 30 minutos depois, chegava em segurança à Casa Branca.
Jane levava na mão um papel que Willa lhe entregara antes de sair da festa. Era uma carta de agradecimento. Ela sorriu. Não era nenhuma surpresa que a garota já a tivesse preparado. O texto tinha um tom maduro e apresentava uma seleção perfeita de ideias e palavras. Certos integrantes da equipe de Jane bem que poderiam aprender alguma coisa com o manual de etiqueta de sua sobrinha. Dobrou a carta e a guardou. O resto do dia e da noite não seria nem de longe tão agradável. O dever a chamava. A vida de uma primeira-dama, ela descobrira rapidamente, era uma máquina em movimento contínuo, muitas vezes interrompida por pequenos intervalos de tédio. Os trens de pouso do helicóptero tocaram o gramado. Uma vez que o presidente não estava a bordo, houve pouco alarde enquanto ela se encaminhava para a Casa Branca. O marido estava em sua sala de trabalho perto do Salão Oval, que era o gabinete oficial da Presidência. Jane lhe fizera poucas exigências ao concordar em apoiá-lo na corrida pelo cargo mais alto da nação. Uma delas tinha sido a permissão para entrar no gabinete particular dele sem ser anunciada e sem estar na lista oficial de visitantes. “Não sou visita”, dissera ela na ocasião. “Sou sua mulher.” Ela se aproximou do assistente pessoal do marido, que espiava por um olho mágico antes de entrar e interromper uma reunião. Ele era a pessoa encarregada de manter a agenda presidencial no horário e funcionando com eficiência máxima. Para isso, ele acordava antes que o sol raiasse e dedicava todos os momentos de seu dia a providenciar qualquer coisa de que o presidente necessitasse – geralmente se antecipando e resolvendo tudo antes mesmo que o chefe desse conta. Em qualquer lugar que não fosse a Casa Branca, refletiu Jane, o assistente especial seria chamado de esposa. – Trate de fazer com que eles saiam, Jay, porque eu vou entrar – Jane disse a ele. Com um jeito jovial, Jay foi fazer o que ela lhe pediu. Nunca a espiara pelo olho mágico. E nunca faria isso, se quisesse continuar no emprego. Ela passou alguns minutos com o marido e lhe contou como fora a festa, então seguiu para os aposentos particulares do casal a fim de se arrumar para uma recepção em que seria a anfitriã. Algumas horas mais tarde, quando a noite já havia caído, voltou para seu “lar oficial”, tirou os sapatos e tomou uma xícara de chá. Precisava muito daquilo. A 30 quilômetros dali, Willa Dutton, que acabara de comemorar seus 12 anos, gritou.
SEAN OLHOU PARA MICHELLE enquanto eles seguiam no carro. Um olhar rápido, de avaliação. Se ela percebeu, não comentou. Continuou voltada para a frente, encarando a rua. – Quando você os conheceu? – perguntou ela. – Quando trabalhava na segurança. Nós mantivemos contato. É uma família muito simpática. – Sei – disse ela distraidamente, olhando fixo pelo para-brisa. – Tem visto Horatio? A mão de Michelle se apertou ao redor do copo de café da Starbucks. – Por que me seguiu até o consultório dele? – Porque eu sabia o que você iria fazer. – Que era o quê? – Arrombar, entrar lá e tentar descobrir o que disse quando ele a hipnotizou. Michelle permaneceu calada. – E então? Descobriu? – prosseguiu ele. – Está um pouco tarde para irmos à casa de alguém. – Michelle, acho que precisamos conversar a respeito deste... – O que você precisa, Sean, é esquecer esse assunto. Sean encarou a noite, que parecia se fechar sobre ele. – Você não respondeu à minha pergunta – disse ela. – Você também não respondeu à minha – retrucou ele, irritado. – Então diga por que estamos indo à casa deles tão tarde. – Não foi escolha minha.
– Pensei que fosse para você entregar o presente de aniversário. – Comprei o presente depois que ela telefonou. De repente lembrei que era aniversário dela. – Então para quê? – Pode ter algo a ver com um trabalho para nós. – A tal família fina e realmente simpática precisa de investigador particular? – E não podia esperar. Eles saíram da estradinha cheia de curvas e entraram no longo acesso para carros, passando por árvores de ambos os lados. – Isto é um fim de mundo – resmungou Michelle. – Dá mais privacidade – contrapôs Sean. Um segundo depois, a casa surgia diante deles. – Bela propriedade – comentou ela. – Pelo visto, seus amigos ganham bem. – Contratos públicos. Aparentemente, o governo é generoso. – Uau, que surpresa. Mas a casa está às escuras. Tem certeza de que entendeu direito a hora? Sean estacionou diante da casa. – Isso foi um grito de mulher – disse Michelle, largando o copo de café e tirando a pistola do coldre na cintura. – Calma, não se precipite – disse Sean, pondo a mão no braço dela. Um estrondo veio de dentro da casa, fazendo-o abrir o portaluvas e pegar sua arma. – Vamos confirmar antes de chamar a polícia – disse ele. – Você vai por trás, eu cuido da frente – disse Michelle. Ele saltou do carro e correu para os fundos da ampla casa de tijolos em estilo colonial, beirando a garagem que ficava na lateral da construção. Parou por alguns instantes para avaliar o terreno, então prosseguiu. Em um minuto, Michelle também havia feito seu reconhecimento de área e se postava ao lado da porta da frente.
Não houve mais gritos nem estrondos. Não havia outros veículos à vista. Ela poderia gritar por alguém da casa, ver se estava tudo bem. Só que, se não estivesse, esse alarde todo poderia alertar os criminosos. Tentou abrir o trinco da porta da frente. Trancada. Alguma coisa a fez puxar a mão rapidamente, não soube bem o que havia sido, mas agradeceu aos céus por ter feito isso. A bala arrebentou a porta, lançando lascas de madeira pintada pelo ar. Michelle chegou a sentir os projéteis passarem velozes antes de atingirem o carro de Sean. Ela saltou da varanda da frente e rolou pelo chão. Levantou-se e, dois passos depois, já estava correndo a toda velocidade. Enfiou a mão no bolso e seus dedos pressionaram os números no celular. Ouviu a voz do atendente da emergência. Michelle estava prestes a falar quando a porta da garagem se abriu com uma explosão e uma picape fez uma curva fechada, indo direto para cima dela. Ela se virou e disparou contra os pneus, depois contra o para-brisa. O telefone voou de sua mão quando ela se lançou para o lado e rolou por um barranco. Foi aterrissar numa pilha de folhas e lama no fundo de uma vala. Sentou-se e olhou para cima. E puxou o gatilho. O tiro, como sempre, foi certeiro. A bala atingiu o homem bem no peito. Houve apenas um problema: o projétil encapsulado da 9 milímetros não o derrubou. Ele cambaleou para trás, levantou a arma, fez pontaria e disparou. Naquela noite, o que salvou Michelle Maxwell foi o fato de haver deduzido que seu agressor usava um colete à prova de balas e de ter sido ágil o suficiente para rolar para trás de um enorme carvalho antes que os projéteis da MP5 começassem a voar em sua direção. Uma saraivada de tiros penetrou a árvore, retalhando sua casca e lançando pedaços do tronco pelo ar. Árvores daquele porte, no entanto, sempre suportavam rajadas de balas, mesmo que viessem de uma submetralhadora. Quando os tiros cessaram pelos segundos necessários para que uma pessoa bem treinada ejetasse o carregador e repusesse a munição, Michelle não se deteve. Com um salto, surgiu de trás da árvore empunhando a pistola com as duas mãos, pronta para mirar a cabeça e derrubar seu agressor de uma vez por todas. Só que não havia ninguém ali. O homem a encurralara e então fugira.
Cautelosamente, ela subiu a encosta com a pistola em punho apontada para a frente. Ao ouvir o rugido do motor da picape, acelerou o passo, agarrando-se a raízes, galhos e cipós. Quando chegou à entrada para veículos, ela havia sumido. Michelle correu em direção ao carro de Sean, pensando em sair atrás da picape, mas se deteve ao ver a fumaça que subia do capô. O olhar dela seguiu os buracos de bala na carroceria. Com aquele carro, eles não iriam a lugar nenhum. Eles? – Sean – gritou. – Sean! – Aqui dentro! Ela subiu correndo os degraus da varanda, abriu com um pontapé o que restava da porta da frente e entrou na sala pronta para disparar, sua arma perfazendo arcos precisos. Sean estava ajoelhado no chão, debruçado sobre uma mulher ruiva. Os cabelos dela iam até os ombros. Estava caída de costas, com as pernas e os braços abertos como se fosse uma marionete abandonada. Os olhos estavam abertos, mas vidrados e opacos. Era fácil ver o que a matara. Sua garganta tinha sido dilacerada. – Quem é ela? – Pam Dutton. A mulher com quem nos encontraríamos. Michelle reparou em algo escrito nos braços nus da mulher. – O que é isso? – Não tenho certeza. É apenas um punhado de letras. – Ele se inclinou para olhar mais de perto. – Parece que usaram uma caneta preta. – Há mais alguém na casa? – Vamos ver. – Não podemos estragar a cena do crime. – Mas também não podemos deixar uma pessoa morrer se pudermos salvá-la – rebateu Sean. Foram necessários apenas alguns minutos. Havia quatro quartos no andar de cima, dois de cada lado do corredor. No primeiro em que entraram, havia uma garotinha. Estava inconsciente, mas sem ferimentos visíveis. Sua respiração estava regular e o pulso fraco, mas constante.
– Colleen Dutton – disse Sean. – Foi drogada? – perguntou Michelle enquanto olhava para a menina. Sean levantou a pálpebra da menina e observou a pupila dilatada. – Parece que sim. No segundo quarto havia um garoto nas mesmas condições da menina. – John Dutton – informou Sean, enquanto checava o pulso e examinava a pupila do menino. – Drogado também. O terceiro quarto estava vazio. O último era o maior, mas havia alguém nele. Encontraram um homem caído no chão. Usava calça, camiseta e estava descalço. Um lado do rosto inchado e bastante ferido. – É Tuck Dutton, marido de Pam – acrescentou Sean, tomando-lhe o pulso. – Está desacordado, mas a respiração está normal. Parece que levou uma pancada e tanto. – Precisamos chamar a polícia. – Michelle pegou o telefone da mesinha de cabeceira. – Sem sinal. Devem ter cortado a linha na caixa lá fora. – Use seu celular. – Perdi quando tentaram me atropelar. – Quando quem tentou atropelar você? – Havia o motorista e um sujeito com uma submetralhadora. Você não viu ninguém quando entrou? Ele sacudiu a cabeça. – Ouvi disparos quando entrei pela porta dos fundos. Depois veio outro estrondo. – Isso foi quando eles saíram arrebentando a porta da garagem. Parece que toda a diversão da noite foi comigo. – Pam morta. Tuck desacordado. John e Colleen drogados. – Você me disse que eles tinham três filhos. – E têm. Parece que levaram Willa. O quarto dela está vazio.
– Na picape? Sequestraram a garota? – Não dá para ter certeza. O que você viu? – Era um Toyota Tundra, cabine dupla, azul-escuro. Não deu para ver a placa porque eu estava ocupada tentando não morrer. Um motorista e um atirador. Ambos homens. Ah, e tem pelo menos um buraco de bala no para-brisa. – Você conseguiu vê-los bem o suficiente para identificá-los? – Não, mas um deles estava usando um colete dos bons, talvez das Forças Armadas. Levou um projétil encapsulado de minha Sig sem nenhum problema. E estava usando uma máscara preta de esqui, o que dificulta a identificação. – E nenhum sinal de uma menina de 12 anos dentro da picape? – Não que eu tenha visto. Provavelmente também a drogaram. Sean usou seu celular para ligar para a emergência e passar todas as informações. Depois guardou o telefone de volta no bolso e olhou ao redor. – O que é aquilo? Michelle atravessou o aposento para examinar a maleta que se projetava do armário. – Uma mala com roupas – constatou ela, abaixando-se para olhar mais de perto. – Tem uma etiqueta. United Airlines, voo 567 para o aeroporto Dulles, com data de hoje. – Ela pegou uma toalhinha no banheiro para não deixar digitais enquanto terminava de abrir o zíper. – Roupas de homem. Devem ser de Tuck. Sean olhou para o homem, os pés descalços, a camiseta. – Ele chega em casa, provavelmente fala com Pam, vem aqui deixar a mala, começa a trocar de roupa e... bum. – Tem alguma coisa me incomodando. Aquele Tundra saiu da garagem. Ou pertence aos Dutton ou os criminosos pararam o próprio carro na garagem. – Devem ter feito isso para que ninguém os visse botar Willa dentro dele. – Neste fim de mundo? A esta hora? Nem se consegue ver outra casa daqui. Não tenho certeza nem de que exista outra casa. – E por que levar Willa e não uma das outras crianças?
– E por que eles matariam a mãe e deixariam todos os outros vivos? Sean tentou reanimar Tuck, mas não conseguiu. – É melhor não mexermos nele. Pode ter ferimentos internos. Eles desceram para o térreo, seguiram para a cozinha e, dali, para a garagem. Havia três portas nela. Numa das vagas estava um Mercedes sedã quatro portas de modelo recente. Na outra, uma minivan Chrysler. A terceira estava vazia. Michelle apontou para a porta de garagem vazia. – Com certeza a picape estava estacionada naquele espaço. Sabe se os Dutton tinham um Tundra azul-escuro? – Não sei. Mas é provável. – Porque a vaga está vazia? – Exato. As pessoas costumam entupir a garagem de todo tipo de porcaria. O fato de todas as vagas estarem limpas e desimpedidas significa que eles usavam três carros, caso contrário a vaga teria virado depósito. – Nossa! Você é mesmo um detetive e tanto. Sean pôs a mão sobre o capô do Mercedes. – Morno. Michelle passou o dedo em um dos pneus do carro. – Os frisos ainda estão molhados. Choveu esta noite. Tuck deve ter usado o carro na volta do aeroporto. Eles retornaram à sala e ficaram olhando para Pam Dutton. Sean acendeu a luz pressionando o interruptor com o cotovelo. Depois puxou seu bloco de notas e copiou as letras escritas no braço da mulher. Michelle se agachou e examinou as mãos de Pam. – Parece que tem sangue e pele sob as unhas. É muito provável que tenha tentado se defender. – Também tinha reparado nisso. Espero que consigam encontrar alguma coisa num banco de dados de DNA. – Mas não deveria haver mais sangue? – observou Michelle. Sean examinou o corpo mais detalhadamente.
– Você tem razão. Parece que cortaram a carótida. O tapete deveria estar coberto de sangue. Ela teria morrido de hemorragia bastante depressa. Michelle foi a primeira a avistar um objeto de plástico projetando-se sob o cotovelo da mulher morta. – Isso é o que acho que seja? Sean fez que sim. – É uma ampola vazia. – Ele olhou para a parceira. – Será que colheram sangue dela?
HAVIA UMA LIQUIDAÇÃO NA Talbot’s. Diane Wohl tinha saído do trabalho às quatro para ir lá. Um vestido novo, umas blusas, talvez algumas calças, uma echarpe. Acabara de receber um aumento de salário e queria fazer bom proveito dele. Não havia nada de errado em mimar-se um pouco de vez em quando. Ela estacionou o carro na garagem do shopping e caminhou cerca de 300 metros até a loja. Saiu de lá duas horas mais tarde, depois de ter experimentado várias peças e comprado duas sacolas cheias de roupas – cumprindo seu dever patriótico de estimular a economia. Jogou as sacolas no banco do passageiro e entrou no carro. Estava com fome e pensou em comprar comida chinesa a caminho de casa. Acabara de enfiar a chave na ignição quando sentiu o pequeno círculo de metal ser pressionado contra sua cabeça. Um cheiro forte a fez esquecer o frango kung pao. Era uma mistura de cigarro e óleo lubrificante de arma. – Dirija – disse a voz em tom baixo, mas firme. – Ou então morre. Ela dirigiu. Uma hora depois, os subúrbios tinham ficado para trás. Só se viam o asfalto com suas faixas brancas, a lua cheia e muralhas de árvores. Não havia nenhum outro carro, nenhuma outra pessoa. Diane Wohl estava completamente sozinha com quem quer que fosse o monstro sentado no banco de trás de seu Honda. Ele voltou a falar: – Saia da estrada aqui. O estômago dela revirou e os ácidos gerados pelo medo subiram por sua garganta. O carro chacoalhou pela estrada de chão por alguns minutos. A massa compacta de árvores parecia engoli-lo. – Pare.
Diane botou o carro em ponto morto. Enquanto tirava a mão do câmbio, olhou de soslaio para a bolsa. Seu telefone celular estava ali dentro. Se de algum modo conseguisse ligar... Ou então pegar suas chaves. Tinha um grande molho. Poderia usá-lo para acertar os olhos dele, como tinha visto na televisão. Mas estava tão apavorada que não conseguiria. Seu corpo inteiro tremia como se sofresse de mal de Parkinson. – Saia – disse o monstro de poucas palavras. Ela não se moveu. Sua garganta estava seca, mas conseguiu dizer: – Se quiser levar meu carro e meu dinheiro, pode ficar com eles. Só não me machuque. Por favor. O monstro não se deixou convencer: – Saia. Ele enfiou o cano da arma na parte de trás de sua cabeça. Um pequeno chumaço de cabelo se prendeu na mira do cano da arma e foi arrancado com raiz e tudo. Lágrimas escorreram pelas faces da mulher enquanto ela se confrontava com os últimos minutos de sua vida. Lembrou-se de todas as advertências costumeiras: Preste atenção no ambiente que a rodeia. Esteja alerta. Leva apenas um segundo. Da Talbot’s para a morte numa estradinha isolada de terra batida. Ela abriu a porta do carro e começou a deslizar para fora, a mão agarrando a bolsa. Arquejou e largou a bolsa quando dedos enluvados se cerraram ao redor de seu pulso. – Você não vai precisar disso. Ela fechou a porta depois que saiu. Suas esperanças desapareceram quando ele veio se juntar a ela fora do carro. Rezara para que ele apenas embarcasse no banco da frente e levasse seu Honda, em vez de lhe tirar a vida. Era um homem mais velho, com cabelos brancos fartos e um tanto compridos que pareciam suados e sujos. O rosto parecia talhado em rocha, com pequenos sulcos marcando toda a pele. Apesar de certa idade, era um homem robusto: alto, bem mais de 90 quilos, ombros largos e mãos enormes com veias saltadas. Parecia imenso em comparação à franzina Diane. Mesmo que não estivesse armado, a mulher não teria nenhuma chance contra ele. Mas a arma estava apontada direto para a cabeça dela. O fato de ele não estar usando máscara a aterrorizou: ela podia ver seu rosto claramente. Ele não se importa. Não faz diferença que eu saiba quem é. Ele vai me matar. Vai me estuprar e depois me matar. E me largar aqui. Ela começou a soluçar. – Por favor, não faça isso – disse, quando ele deu um passo à frente e ela recuou, preparando-se para o ataque. Ela nem ao menos percebeu o outro homem se aproximar pelas suas costas. Quando ele tocou seu ombro, ela gritou e se virou. Ele era baixo e musculoso, as feições hispânicas claramente definidas. Contudo, ela não chegou a perceber isso, porque ele levantou uma lata de spray e um jato denso a acertou bem no rosto. Engasgando, Diane respirou fundo para limpar os pulmões. Não funcionou: estava perdendo os sentidos. Logo caiu desmaiada nos braços dele. Os homens a puseram na traseira de uma van alugada que haviam estacionado ali perto e se foram.
AS FORÇAS DA LEI haviam chegado em peso. Sean e Michelle observavam a um canto, no pátio coberto por agulhas de pinheiro, enquanto policiais uniformizados, peritos e homens de terno – os agentes mais graduados – lotavam a casa dos Dutton como abutres sobre uma carcaça. Em certos aspectos, a analogia era mais do que válida. As ambulâncias tinham levado os sobreviventes da família Dutton para o hospital. A Sra. Dutton continuava dentro da casa, objeto da atenção de todos. Sean e Michelle foram interrogados três vezes por policiais uniformizados e depois por detetives da Homicídios usando paletó e gravata. Deram respostas detalhadas à medida que blocos de anotações eram preenchidos com suas descrições dos terríveis acontecimentos da noite. De repente a atenção de Michelle se voltou para dois sedãs pretos que pararam derrapando no acesso para carros. Quando os homens e as mulheres saltaram de dentro dos veículos, ela perguntou a Sean: – Por que o FBI está aqui? – Eu não contei? Tuck Dutton é irmão da primeira-dama. – Da primeira-dama? De Jane Cox, a esposa do presidente Cox? Sean apenas olhou para ela. – Então, isso significa que a cunhada dela foi assassinada e a sobrinha, sequestrada? – Os carros da imprensa devem chegar a qualquer momento – disse ele. – E a resposta deve ser: “Sem comentários.” – Então, Pam Dutton queria nos contratar. Alguma ideia do porquê?
– Não. Ambos observaram enquanto os agentes federais conversavam com detetives locais e em seguida entravam na casa. Dez minutos depois, eles foram na direção de Sean e Michelle. – Eles não parecem nada satisfeitos por estarmos aqui – comentou Michelle. E não estavam. Depois dos primeiros três minutos, ficou claro que os agentes do FBI estavam tendo dificuldade em acreditar que os dois tivessem sido chamados por Pam Dutton e não soubessem por quê. Sean repetiu pela quarta vez: – Como já disse, sou amigo da família. Ela me ligou e disse que queria conversar comigo. Não tenho a mínima ideia da razão. Foi por isso que viemos. Para descobrir o motivo. – A esta hora? – Foi ela quem marcou a hora. – Se você é tão íntimo deles, talvez tenha uma ideia de quem poderia ter feito isto – disse um deles. Era um sujeito de estatura mediana, rosto magro, braços musculosos e uma expressão azeda que fez Michelle imaginar que ele ou sofria de úlcera ou tinha problemas intestinais. – Se eu tivesse alguma ideia, já teria falado para os detetives do condado quando me perguntaram. Encontraram algum sinal da picape? Minha parceira acertou alguns tiros no para-brisa. – E por que sua parceira anda armada? – perguntou Cara Azeda. Sean lentamente enfiou a mão no bolso e tirou sua carteira de identidade. Michelle fez o mesmo, bem como sua licença para porte de armas. – Detetives particulares? – Cara Azeda conseguiu fazer com que aquilo soasse como “pedófilo”, então devolveu as identidades. – E ex-agentes do Serviço Secreto – disse Michelle. – Os dois. – Parabéns – retrucou Cara Azeda asperamente. Ele balançou a cabeça apontando para a casa. – Na verdade, é provável que o Serviço Secreto tenha que responder pelo que houve aqui.
– Por quê? – perguntou Sean. – Os parentes do presidente não recebem proteção, a menos que haja ameaça específica. Não é possível proteger todo mundo. – Você não entendeu? É uma questão de como o assunto será visto pela opinião pública. Mãe assassinada, criança sequestrada. Não vai ficar bem nos noticiários. Sobretudo depois da festa em Camp David hoje. Esposa do presidente volta para casa em segurança. Restante da família é vítima de tragédia. Não será uma manchete agradável. – Que festa em Camp David? – quis saber Michelle. – Quem faz as perguntas sou eu – rebateu ele. Durante a hora seguinte, Sean e Michelle mais uma vez relataram minuto a minuto tudo o que tinham visto e feito. Apesar das características irritantes de Cara Azeda, ambos tiveram que admitir que o homem era bastante competente. Acabaram voltando ao interior da casa e encarando novamente o cadáver de Pam Dutton. Um técnico forense tirava fotografias em close-up dos padrões de esguicho de sangue, do ferimento que causara a morte e dos resíduos sob as unhas da mulher. Outro técnico digitava em um laptop a série de letras escritas nos braços dela. – Alguém sabe o que significa? – perguntou Michelle, apontando para a sequência de letras. – É alguma língua estrangeira? Um dos técnicos sacudiu a cabeça em negativa. – Não é nenhum idioma que eu conheça. – Parecem escritas aleatoriamente – sugeriu Sean. – Há bastante resíduo sob as unhas dela – assinalou Michelle. – Parece que tentou se defender e conseguiu arranhar o agressor. – Nada que já não saibamos – disse Cara Azeda. – Como estão Tuck e as crianças? – perguntou Sean. – Estou indo para o hospital agora para tomar o depoimento deles. – Se tiveram que derrubar o marido, é possível que ele tenha visto alguma coisa – comentou um dos agentes.
– Sim, mas, se ele de fato viu, é o caso de se perguntar por que não lhe deram o mesmo tratamento que deram à esposa – disse Michelle. – As crianças foram dopadas, provavelmente não viram nada. Mas por que deixar uma testemunha ocular? Cara Azeda não pareceu ficar impressionado. – Se eu quiser falar com vocês de novo, e provavelmente vou querer, poderei encontrá-los nos endereços que me deram? – Sem dúvida – respondeu Sean. – Certo – disse Cara Azeda, enquanto ele e sua equipe se retiravam. – Vamos embora – disse Sean. – Como? Seu carro está todo furado. Você não reparou? Sean saiu da casa e foi examinar o Lexus destruído. Então se virou rapidamente e olhou furioso para ela. – Bem que você poderia ter me dito antes. – Não tive tempo. – Vou chamar o reboque. Enquanto esperavam pelo socorro mecânico, ela perguntou: – Então vamos simplesmente deixar as coisas assim? – Assim como? Ela apontou para a casa dos Dutton. – Assim. Um dos canalhas tentou me matar. Não posso falar por você, mas para mim isso é uma ofensa pessoal. E Pam queria nos contratar. Acho que devemos isso a ela: aceitar o caso e tentar resolvê-lo. – Michelle, nós não temos certeza de que o motivo pelo qual ela me ligou tenha alguma coisa a ver com a morte dela. – Se não tiver, foi uma coincidência e tanto. – Está bem, mas o que podemos fazer? A polícia e o FBI estão envolvidos. Não vejo muito espaço para agirmos. – Isso nunca o impediu antes – retrucou ela teimosamente. – Mas isso é diferente. – Por quê?
Ele não disse nada. – Sean? – Já ouvi! – Então qual é a diferença? – A diferença são as pessoas envolvidas. – Quem? Os Dutton? – Não. A primeira-dama. – Por quê? Que importância tem? – Tem importância, Michelle. Ela é importante. – Você fala como se a conhecesse. – Eu conheço. – Como? Ele começou a se afastar. – E o reboque? – perguntou Michelle levantando a voz. Ela ficou sem resposta.
SAM QUARRY ADORAVA A Atlee – ou o que restava dela. A propriedade pertencia à família havia quase 200 anos. Inicialmente, suas terras se estendiam por quilômetros, com centenas de escravos trabalhando nela. Agora estava reduzida a 80 hectares, com imigrantes mexicanos fazendo o grosso da colheita. A sede propriamente dita já tivera dias melhores, mas ainda era ampla e habitável, se você não se importasse com as goteiras no teto, com as correntes de ar que passavam pelas paredes, ou com um camundongo correndo de vez em quando pelos pisos de madeira maltratados e frágeis. Na época da Guerra Civil, aquele chão tinha recebido generais e até o próprio Jefferson Davies, presidente dos estados confederados que logo depois seria vencido. Quarry conhecia bem a história, só que nunca se deleitara com ela. Mas ninguém escolhe a família em que nasce nem a história dela. Tinha agora 62 anos e cabelos espessos e brancos como a neve, que pareciam ainda mais alvos por causa do tom de sua pele queimada pelo sol. Forte, de ossos longos e voz imperiosa, era um homem que vivia ao ar livre tanto por escolha quanto por necessidade. Tirava seu sustento da terra, mas também apreciava o contato com todo o equipamento necessário à caça, à pesca e à agricultura. Como gostava de dizer, era um homem da terra. Estava na biblioteca, sentado à sua escrivaninha atravancada e gasta. Fora naquela mesma escrivanhinha que gerações de homens da família Quarry tinham tomado decisões importantes que afetavam a vida de outros. Ao contrário de alguns de seus ancestrais, notáveis por seus descuidos, Sam Quarry levava sua responsabilidade muito a sério. Mantinha tudo sob rígido controle, tanto para se sustentar quanto para prover o sustento das pessoas que ainda empregava. Mas, na verdade, Atlee era mais que isso: era tudo o que lhe restava. Ele se espreguiçou, alongando o corpo de 1,93 metro, e repousou sobre a barriga reta as mãos grandes, calejadas e avermelhadas pelo sol. Olhando para as paredes, para os retratos embaçados e as fotos em preto e branco granuladas dos homens da família, Quarry avaliou sua situação. Era do tipo que sempre se dava o tempo necessário para pensar bem nas coisas. Hoje em dia quase mais ninguém fazia isso, do presidente dos Estados Unidos, passando pelos ricaços de Wall Street, até o homem do povo. Velocidade. Todo mundo queria tudo para ontem. E por causa dessa impaciência, as respostas a que chegavam geralmente estavam erradas. Trinta minutos se passaram sem que ele se movesse. Seu cérebro, porém, estava muito mais ativo que o corpo. Por fim se inclinou para a frente, enfiou as luvas e, sob o olhar vigilante do retrato do avô e xará Samuel W. Quarry – um dos líderes da oposição à campanha de direitos civis no Alabama –, começou a datilografar nas teclas desbotadas de sua velha IBM Seletric. Sabia usar computador, mas nunca comprara um, embora tivesse telefone celular. Estava ciente de que era possível e fácil roubar coisas de um computador, mesmo estando em outro país. Quando Sam queria usar um computador, ia até a biblioteca local. Ora, para extrair seus pensamentos de sua máquina de escrever, a pessoa teria que invadir Atlee – e ele duvidava seriamente de que sairia viva. Datilografando com dois dedos, escreveu o texto e depois puxou o papel. Leu o breve conteúdo mais uma vez e colocou a folha em um envelope, molhando a aba com um pouco de água para ativar a cola. Nunca usaria saliva para isso: não gostava da ideia de deixar rastros que levassem até ele, fossem o DNA de sua saliva ou qualquer outra coisa. Enfiou o envelope na gaveta da escrivaninha e trancou-a girando uma chave de quase 100 anos, mas que ainda funcionava muito bem. Levantou-se e seguiu até a porta, ganhando a luz do dia para supervisionar seu pequeno reino. Passou por Gabriel, um menino negro magricela de 11 anos cuja mãe, Ruth Ann, trabalhava para Quarry como governanta. Bateu de leve na cabeça do garoto e lhe deu uma nota dobrada de um dólar e um selo antigo para sua coleção. Gabriel era um menino inteligente, que poderia estudar e entrar para uma faculdade, e Sam Quarry estava decidido a ajudá-lo. Não havia herdado nenhum dos preconceitos do avô ou do pai, que consideravam George Wallace, o ex-governador do Alabama que se opusera às leis antissegregacionistas, um grande homem que “sabia manter os negros em seu devido lugar”.
Sam Quarry acreditava que todos os seres humanos tinham fraquezas e pontos fortes e que nada disso estava relacionado à cor da pele. Uma de suas filhas se casara com um negro e Sam ficara feliz em levá-la ao altar. Infelizmente, o casal havia se divorciado e já fazia anos que Quarry não via nenhum dos dois, mas nem por isso culpava o ex-genro pelo fim do casamento. A verdade era que não era fácil conviver com sua filha caçula. Passou duas horas percorrendo suas terras a bordo da picape maltratada e enferrujada que ostentava mais de 300 mil quilômetros rodados. Finalmente se deteve diante de um velho trailer prateado cheio de mossas e com um toldo puído estendido na lateral. Dentro dele havia um banheiro apertado, um fogão a gás embutido, um frigobar sob o balcão, um aquecedor de água, um minúsculo quarto e um ar-condicionado. Quarry adquirira o trailer numa troca: um varejista que andava com a grana curta durante a estação da colheita o oferecera como pagamento por produtos agrícolas. Para que houvesse eletricidade nele, Sam mandara passar a fiação sob a terra, puxando-a de uma caixa do celeiro. Havia três homens sentados sob o toldo, todos membros da tribo indígena koasati. Quarry conhecia bastante a respeito da história dos índios do Alabama. Ao longo de séculos, os koasatis tinham vivido em partes do norte do estado, tendo os muscóguis, os creeks e os cheroquis a leste e as tribos chickasaw e choctaw a oeste. Com a Lei de Remoção dos Índios, de 1830, a maioria dos nativos americanos tinha sido expulsa do Alabama e obrigada a se mudar para reservas em Oklahoma e no Texas. Quase todos os que falavam a língua koasati agora viviam na Louisiana, mas alguns tinham conseguido voltar para seu estado. Fazia anos, muito tempo depois de Sam ter herdado a propriedade, um daqueles koasatis fora para lá e permanecera desde então. Quarry havia até lhe dado o pequeno trailer para servir de casa. Os outros dois tinham chegado fazia cerca de seis meses. Quarry não tinha certeza se iriam ficar ou não, mas gostava deles – e eles pareciam tolerá-lo. De maneira geral, não confiavam em homens brancos, mas permitiam que Sam os visitasse e ficasse em sua companhia. Afinal, tecnicamente, a terra era dele, embora os koasatis tivessem sido donos dela muito antes que houvesse qualquer Quarry ou mesmo outro branco no Alabama. Ele sentou num banco de concreto coberto por um tapete de borracha e, juntos, os homens beberam cerveja, fumaram alguns cigarros enrolados à mão e trocaram histórias. O índio a quem Quarry dera o trailer era conhecido pelo nome de Fred. Era pelo menos 10 anos mais velho que Quarry, miúdo e todo encurvado, com o cabelo branco muito liso e um rosto de traços marcantes. Era o que mais falava no grupo e também o que mais bebia. Era um homem instruído, mas Sam sabia muito pouco de seu passado. Sam Quarry conversava com os indígenas na língua deles, esforçando-se para falar o melhor que podia. Seus conhecimentos de koasati eram limitados. Os outros tentavam ajudá-lo falando o idioma de Sam, mas apenas quando se dirigiam a ele. Não podia culpá-los. O homem branco tinha basicamente destruído as únicas nações que podiam se autodenominar nativas da América. Contudo, ele guardava seus sentimentos para si, porque os índios não gostavam de piedade. Seriam capazes de matar um homem por causa disso. Fred gostava de contar a história de como os koasatis tinham adquirido seu nome. – Significa “tribo perdida”. Muito tempo atrás, nosso povo saiu daqui em dois grupos. O primeiro foi deixando sinais para que o segundo o seguisse. Mas, ao longo do curso do rio Mississippi, todos os sinais do primeiro grupo desapareceram. O segundo grupo continuou seu caminho e acabou por encontrar homens que não falavam a nossa língua. Nossa gente disse a eles que estava perdida. E, em nossa língua, “estamos perdidos” se diz koasai. Então aquelas pessoas escreveram isso para indicar que o meu povo era os koasatis. Quarry, que já tinha ouvido a história cerca de uma dúzia de vezes, se manifestou. – Bem, Fred, para dizer a verdade, de certa maneira todos nós estamos perdidos. Cerca de uma hora mais tarde, enquanto o sol brilhava impiedoso sobre eles, fazendo o toldo fino irradiar um calor semelhante ao de uma fornalha, Quarry se levantou, limpou a poeira da calça e se despediu tirando o chapéu, prometendo voltar em breve. E levar uma garrafa de boa bebida, umas espigas de milho para assar e um balde de maçãs. E cigarros. Os indígenas não tinham dinheiro para comprá-los, mas gostavam mais de cigarros industrializados do que dos enrolados à mão.
Fred ergueu os olhos na direção dele, seu rosto ainda mais curtido e enrugado do que o de Quarry. Tirou da boca o cigarro feito à mão, teve um longo acesso de tosse e então disse: – Traga os sem filtro da próxima vez. São mais saborosos. – Pode deixar, Fred. Por um longo tempo Sam dirigiu por trilhas de terra batida tão cheias de sulcos que faziam sua velha picape sacolejar de um lado para outro, mas o homem mal se dava conta disso. Era exatamente assim que ele vivia. A estrada acabou. Lá estava a casinha. Na verdade, não era realmente uma casa. Ninguém vivia ali, pelo menos não por enquanto. Porém, mesmo se vivesse, aquele nunca seria um lugar onde alguém pudesse ficar por um período mais longo. Era apenas um cômodo com teto e porta. Quarry virou e olhou na direção de cada um dos pontos cardeais e não viu nada exceto terra e árvores. E o céu azul do Alabama, que, é claro, era mais bonito que qualquer céu que Quarry jamais tivesse visto. Com certeza mais bonito que o do sudeste da Ásia, mas, enquanto estivera por lá, aquele horizonte ficava repleto do fogo de armas antiaéreas apontadas diretamente para ele e seu caça F-4 Phantom. Ele caminhou em direção à casa e subiu os degraus da varanda. Aquela construção fora erguida com suas mãos. Não ficava em Atlee, mas a vários quilômetros de distância da propriedade, em um lote que seu avô tinha comprado havia 70 anos e com o qual nunca fizera nada, e por bom motivo. Ficava no meio de lugar nenhum, o que se encaixava perfeitamente nos objetivos de Quarry. Seu avô devia estar bêbado quando comprou aquelas terras – o que não seria novidade. A construção tinha apenas pouco mais de 20 metros, mas era grande o suficiente para seus objetivos. Havia uma única porta, lisa, com 90 centímetros de largura e presa por dobradiças de latão comuns. Ele pegou uma chave e destrancou a porta, mas não entrou de imediato. Construíra todas as quatro paredes seis centímetros mais grossas do que o normal, embora fosse preciso ter um olhar muito aguçado para perceber isso. Por trás das paredes externas, havia grossas folhas de metal soldadas umas nas outras, o que dava àquela casinha uma resistência extraordinária. Ele próprio fizera o trabalho de solda com seu maçarico. Cada emenda era uma obra de arte. Provavelmente seria preciso que um tornado passasse bem em cima do lugar para derrubá-lo. Talvez nem assim conseguisse. Deixou o ar fresco encher o cômodo antes de entrar. Já havia cometido o erro de entrar direto e quase desmaiara ao trocar o ar fresco do lado de fora pela quase total ausência de oxigênio do interior. Não havia janelas. O assoalho era de pranchas de madeira de cinco centímetros de espessura. Ele tinha lixado bem as tábuas: não havia uma única farpa em lugar nenhum. O que havia, contudo, era um espaço de três milímetros entre cada tábua, outro detalhe quase imperceptível a olho nu. O subsolo também era especial. Sam podia afirmar com bastante segurança que provavelmente nenhum outro piso de qualquer casa no país tivesse algo parecido com o que ele construíra. As paredes internas eram recobertas de gesso aplicado à mão sobre uma tela de arame. O teto era tão firme quanto o de um petroleiro. Ele usara grampos e parafusos fortes para garantir resistência e evitar qualquer instabilidade ou movimentação. A fundação era de cimento e havia ainda um vão de 40 centímetros sob a estrutura. Isso elevava o prédio do solo, mas, por causa da varanda, dificilmente seria notado. A mobília era simples: uma cama, uma cadeira com encosto vazado, um gerador movido a bateria e alguns equipamentos encostados em uma das paredes. Ele deu um passo para dentro e virou o rosto para encarar sua criação. Cada canto era perfeito. Ele trabalhara sob a luz de geradores enquanto batia pregos e preparava vigas em cavaletes, o olhar aguçado em cada detalhe. Fora um trabalho exaustivo sob um calor mortal, mas sua mente e seu corpo estiveram movidos pelas duas mais fortes emoções humanas: Ódio. E amor. Ele balançou a cabeça com aprovação. Tinha feito um bom trabalho. Era sólido, tão perfeito quanto poderia ser. Não parecia ser nada de especial, mas na verdade era uma obra extraordinária de engenharia. Nada mau para um garoto dos rincões do Sul que nunca frequentara uma faculdade.
Olhou para oeste, onde, numa árvore protegida tanto do sol quanto de olhos curiosos, havia uma câmera de vigilância. Ele também tinha projetado e construído aquilo, porque nada que pudesse comprar pronto seria confiável ou suficientemente bom. Com uma poda cuidadosa de folhas e galhos, a câmera oferecia um bom ângulo de visão de tudo o que precisava ser visto ali. Sam tinha entalhado uma longa ranhura na parte de trás do tronco da árvore e passado o cabo da câmera por ali, então colara cascas da árvore sobre ele, escondendo-o completamente. Havia enterrado o cabo no chão por centenas de metros, até uma passagem natural que abrigava outro item feito pelas mãos do homem. Havia um segundo cabo subterrâneo estendendo-se daquele ponto até a casinha e por baixo dela, dentro de uma tubulação de PVC que Quarry instalara antes de concretar as fundações. Ele se subdividia em dois e tudo ficava escondido atrás do revestimento de chumbo que ele sobrepusera às folhas de metal soldadas à parede. Quarry trancou a porta da casa e retornou para sua velha picape. Agora precisava ir a outro lugar. E não seria de carro. Olhou para aquele céu azul perfeito do Alabama. Um belo dia para um passeio de avião.
UMA HORA DEPOIS, O velho Cessna de quatro assentos decolava de uma pequena pista. Quarry olhou para baixo pela janela lateral enquanto suas terras passavam correndo. Oitenta hectares parecia muita terra, mas na verdade não era. Ele voou baixo, mantendo-se atento a pássaros, outros aviões ou helicópteros. Nunca apresentava seu planejamento de voo às autoridades competentes, portanto era essencial prestar atenção. Passada outra hora, ele embicou o avião, aterrissou suavemente no asfalto de uma pista particular e reabasteceu. Ali não havia jatinhos chiques de empresas, apenas hangares de metal sem porta, uma pista estreita para pouso e decolagem, uma biruta e aviões como o dele: velhos, recondicionados, mas tratados com carinho e respeito. E por mais barato que seu avião tivesse sido quando o adquirira de terceira mão anos antes, hoje em dia ele não teria condições de comprá-lo. Quarry voava desde que se alistara na Força Aérea e pilotara seu robusto caça F-4 Phantom sobre as plantações de arroz e as densas selvas alagadiças do Vietnã. E depois sobre o Laos e o Camboja, cumprindo ordens para lançar bombas e matando gente numa fase da guerra que, só mais tarde, ele descobriria não ter sido oficialmente autorizada. Mas isso não tinha importância para ele. Soldados cumprem ordens. Voar enquanto disparavam contra ele não era sua forma de protesto. Tornou a embarcar em seu aviãozinho, ganhou velocidade, arremeteu e mais uma vez decolou. Seguiu adiante, aproveitando o vento que soprava a menos de 10 quilômetros por hora. Algum tempo depois, diminuiu a aceleração, empurrou o manche e planou nas correntes de ar quente para iniciar a descida. Aquela era a parte arriscada: aterrissar em sua outra propriedade. Ela ficava nas montanhas e não tinha pista de pouso, apenas uma longa faixa de grama que ele mesmo havia aplainado e aparado. Era firme e lisa, no entanto, os ventos por lá podiam ser difíceis. As bochechas de Quarry se contraíram e suas mãos fortes apertaram o manche enquanto ele descia rapidamente, os flapes erguidos para a aterrissagem. O avião tocou a terra, quicou, tocou de novo e quicou mais uma vez, sua suspensão estremecendo. Quando atacou pela terceira vez, as rodas se mantiveram na terra e Sam pressionou os calcanhares com força sobre os pedais para acionar o freio. Dessa forma, o Cessna parou bem antes do fim da pista improvisada. Ele deu meia-volta com a aeronave e desligou o motor. Pegou sua mochila e um conjunto de calços triangulares presos a uma corda e saltou do avião. Posicionou os calços sob as rodas e então suas longas pernas começaram a subir o terreno íngreme e pedregoso em direção à encosta da montanha. Tirou um molho de chaves do bolso do casaco e selecionou a certa. Depois se inclinou e destrancou a grossa porta de madeira embutida na face da montanha. Ficava quase completamente escondida atrás de algumas rochas que ele retirara de um afloramento próximo e empilhara bem juntas umas das outras. Ao longo de décadas, seu avô tinha trabalhado nos veios de carvão dentro daquela montanha, ou melhor, pusera sua equipe de homens mal remunerados para trabalhar. Na infância, Quarry fora até ali com o avô. Na época, tinham seguido por uma estrada que continuara acessível até o dia anterior, quando Quarry a bloqueara. Era por ali que os caminhões buscavam o carvão quando a mina estava ativa e por ali ele trouxera, também de caminhão, todos os suprimentos de que precisava. Não teriam cabido em seu avião. Aquele trecho de montanha nem sempre fora uma mina. Ao longo dos tempos, grandes cavernas tinham sido criadas pela ação da água e das forças da natureza. Nesses espaços, durante a Guerra Civil, muito antes que qualquer carvão fosse extraído, soldados feitos prisioneiros tinham morrido lenta e dolorosamente, passando seus últimos dias sem sol nem ar fresco, até que só restassem deles os esqueletos. As minas agora tinham luz elétrica, mas Quarry não a usava desnecessariamente. A força vinha de um gerador e o combustível era caro. Ele se guiava usando uma velha lanterna, a mesma que o pai carregava ao ir atrás de “negros metidos a besta” – como os chamava – à noite nos pântanos do Alabama. Quando criança, às escondidas, ele havia observado o pai voltar para casa inebriado com o que tinha feito junto com os companheiros de ódio. Por vezes via o sangue das vítimas nas mangas e nas mãos do pai, que gargalhava enquanto se enchia de uísque, numa celebração doentia do que quer que acreditasse estar alcançando ao matar homens por serem diferentes dele. – Velho canalha nojento – disse Quarry por entre os dentes cerrados. Odiava aquele homem por todo o sofrimento que causara, mas não o suficiente para jogar fora uma lanterna tão boa. Quando não se tinha muito, o ideal era conservar o que pudesse. Abriu outra porta embutida numa parede de rocha de um dos túneis principais. Retirou uma lanterna à pilha de uma prateleira e a acendeu, colocando-a sobre uma mesa no meio do aposento. Olhou ao redor, admirando seu trabalho. Ele mesmo tinha preparado o recinto usando robustas vigas de madeira de 5 por 10 centímetros e fazendo paredes de gesso. Cada uma delas era perfeitamente vertical e pintada de azul-claro. Ele havia conseguido todo o material de construção de graça com um amigo empreiteiro. Eram sobras que ele não tinha onde estocar. Atrás das paredes ficava a sólida rocha da montanha, mas qualquer um que olhasse ao redor acreditaria estar numa casa. A ideia era exatamente essa. Ele andou até um canto e examinou a mulher esparramada em uma cadeira de espaldar reto. Estava dormindo, a cabeça repousada sobre o ombro. Sam cutucou seu braço, mas ela não reagiu. Ele arregaçou a manga da moça, tirou uma seringa esterilizada da mochila e a espetou no braço dela. Aquilo fez com que acordasse. Seus olhos se abriram e depois lentamente entraram em foco. Quando se detiveram nele, a mulher tentou gritar, mas a fita adesiva que lhe cobria a boca a impediu. Ele sorriu enquanto eficientemente enchia duas ampolas com o sangue que retirava dela. Horrorizada, a mulher o observou, mas as amarras a mantiveram imóvel na cadeira. – Sei que isto deve parecer estranho, minha senhora, mas acredite: é por uma boa causa. Não tenho intenção de feri-la nem a qualquer outra pessoa, sinceramente. A senhora compreendeu bem isso? Ele retirou a seringa, pressionou um algodão com álcool no local e cuidadosamente colocou um Band-aid. – A senhora compreendeu? – repetiu, dando um sorriso tranquilizador.
Finalmente ela fez que sim com a cabeça. – Bom. Lamento ter tirado um pouco de seu sangue, mas realmente precisei fazer isso. Vamos lhe dar de comer e mantê-la limpa e tudo mais. Não vamos deixá-la amarrada assim. Terá alguma liberdade para se movimentar. Sei que entende que isto foi necessário num primeiro momento, mantê-la amarrada. Certo? Ela se descobriu encarando-o nos olhos e, apesar do horror da situação, balançou a cabeça de novo em sinal de concordância. – Bom, muito bom. Agora, não se preocupe. Vai acabar tudo bem e não haverá nenhuma agressão. Você sabe, pelo fato de ser mulher e tudo mais. Não tolero essas coisas. Está bem? A senhora tem minha palavra. – Ele apertou o braço dela delicadamente. Ela chegou a sentir os cantos de seus lábios se curvarem num sorriso. Ele guardou as ampolas de sangue na mochila e deu as costas para a mulher. Por um momento ela o imaginou virando-se rapidamente e, com uma gargalhada maníaca, disparando uma bala em sua cabeça ou cortando-lhe a garganta. Mas ele apenas saiu. Diane Wohl olhou ao redor, sem a menor ideia de que lugar era aquele, por que estava ali ou o que levara o sequestrador a colher seu sangue. Ela saíra para fazer compras na Talbot’s, ao voltar o encontrara dentro de seu carro com uma arma em punho e agora ela estava ali. Onde quer que fosse. Diane começou a chorar.
SEAN KING ESTAVA SENTADO no escuro. A luz foi acesa, fazendo-o erguer a mão para proteger os olhos. Estreitou-os tentando ver quem seria o intruso. – Desculpe, não sabia que você estava aqui – disse Michelle, embora não houvesse sinal de arrependimento em sua voz. – Dormi aqui – explicou ele. Ela se empoleirou na mesa dele. – Vai ficar fazendo birra? Recusando-se a responder a perguntas? Dormindo no escritório? Ficando sentado no escuro? Será que estou percebendo um padrão? Ele empurrou um jornal para ela. – Você viu a matéria? – Li on-line. Eles apresentaram a maioria dos fatos de maneira correta. Você parecia devidamente sério e atento na foto. – Usaram uma foto de arquivo dos meus tempos no Serviço Secreto. – Achei que você parecia incrivelmente jovem. – Recebi um monte de telefonemas de repórteres. Desliguei na cara de todos. – Eles não estão apenas telefonando. Estão montando guarda na frente de nosso escritório. Eu entrei pelos fundos. Acho que alguém me viu, de modo que essa saída agora também já deve estar coberta. – Maravilha. Quer dizer que agora estamos presos aqui. Ele se levantou e andou de um lado para outro, os pés batendo no chão com raiva. – Quer conversar sobre o assunto agora? – perguntou ela.
Ele parou, chutou um tufo de lã do tapete com o bico do sapato. – É uma situação difícil – respondeu ele. – Que parte? A da mulher esfaqueada e da menina sequestrada? Ou há alguma outra coisa passando pela sua cabeça? Ele apenas recomeçou a andar de um lado para outro, o queixo enterrado no peito. – Você disse que conhecia a primeira-dama. Como? Você já tinha saído do Serviço Secreto há muito tempo quando Cox foi eleito. Vamos lá, conte tudo. Ele estava prestes a dizer alguma coisa quando o telefone tocou. Sean deu as costas para o aparelho, mas Michelle o atendeu. – King e Maxwell. Espionamos para que você não precise espionar. – Ela se calou de repente. – O quê?! Eu... Ah, sim, claro. Vou passar para ele. Ela lhe estendeu o fone. – Eu não quero falar com ninguém. – Vai querer falar com esta pessoa. – Quem é? – Jane Cox – sussurrou ela. Sean puxou o fone até o ouvido. – Sra. Cox? – Ele escutou e, lançando um olhar rápido e constrangido para Michelle, disse: – Tudo bem, Jane. Sua parceira arqueou uma das sobrancelhas e o observou atentamente. – Eu sei. É mesmo uma tragédia. Willa, sim, é claro. Certo. Exato. Compreendeu muito bem. Já falou com Tuck? Entendo. É claro, eu compreendo. O quê? – Ele consultou o relógio. – Com certeza, podemos fazer isso. – Ele lançou um olhar para Michelle. – Ela é minha sócia e parceira. Nós trabalhamos juntos, mas se preferir... Obrigado. Ele desligou e olhou para Michelle. – Se você ficar calado e começar a andar de um lado para outro de novo, juro que vou lhe dar uma coronhada – disse ela em tom zangado. – O que ela falou?
– Ela quer que a gente vá se encontrar com ela. – Um encontro com ela? Onde? – Na Casa Branca. – Por quê? Para que ela precisa de nós? Para contar o que vimos? – Não exatamente. – Então o quê? – Acho que ela quer nos contratar para descobrir quem fez aquilo. – A primeira-dama quer nos contratar? Por quê? Ela tem a droga do FBI inteiro à disposição. – Aparentemente, ela não quer o FBI. Quer a gente. – Eu não sou surda. Você quer dizer que ela quer você. – Você acha que podemos nos livrar dos repórteres? Não quero que eles nos sigam. Michelle se levantou e puxou as chaves. – Fico ofendida pelo simples fato de você perguntar.
SAM QUARRY DESTRANCOU A porta e olhou para dentro. Ela estava sentada à mesa comendo uma tigela de cereal. A garota virou rapidamente a cabeça, levantou-se de um salto e recuou, encostando-se na parede. Ele manteve a porta aberta enquanto entrava. – Não há motivos para ter medo, Willa. – Eu não sou burra. Há todos os motivos para ter medo. O principal é você! As bochechas dela estremeceram e lágrimas assustadas encheram os cantos de seus olhos. Quarry puxou uma cadeira e sentou. – Acho que eu também ficaria com medo. Mas não vou machucar você, está bem? – Você pode falar qualquer coisa, dizer o que quiser. Como vou saber que não está mentindo? Você é um criminoso. Criminosos mentem o tempo todo. É por isso que são criminosos. Quarry assentiu. – Então você acha que eu sou um criminoso? – Você é um criminoso. Você me sequestrou. As pessoas vão para a cadeia por isso. Ele assentiu de novo e então lançou um olhar para a tigela. – O cereal ficou mole demais? Desculpe, mas só temos leite em pó. Ela continuou colada contra a parede. – Por que você está fazendo isto? – Fazendo o quê? Quer dizer, trazer você para cá? – Diante das circunstâncias, o que mais poderia ser?
Quarry sorriu ao perceber a franqueza da lógica da garota. – Tinha ouvido dizer que você é inteligente. – Onde está minha família? Perguntei ao outro homem, mas ele não quis me contar. Apenas resmungou. Quarry puxou um lenço e enxugou o rosto, escondendo uma expressão de profundo desagrado ao fazer isso. – Por que você está usando luvas de látex? – perguntou ela de olhos cravados nas mãos dele. – Já ouviu falar de eczema? – Claro. – Eu tenho e não quero passar para mais ninguém. – Eu perguntei pela minha família – disse ela seriamente. – Todos estão bem? Diga logo. – Eles estão muito bem. Mas, se eu sou um criminoso, poderia estar mentindo. – Eu odeio você! – gritou ela. – Não posso culpá-la por isso. – Isto é por causa da minha tia? – perguntou ela de repente. – Sua tia? – retrucou ele inocentemente. – Não me trate como se eu fosse burra. Jane Cox é minha tia. Meu tio é o presidente. – Você está certa. Você está absolutamente certa quanto a isso. – Então tem a ver com ele? – Não vou responder. Desculpe. Willa puxou a manga da camisa, revelando um Band-Aid perto da dobra do braço. – Então me diga para que é isto. – Acho que você se cortou. – Eu olhei. É apenas um furinho de agulha. Ele olhou de novo para a tigela e a colher. – Você já acabou? – Tem a ver com meu tio? – retrucou ela com aspereza.
– Vamos tratar de esclarecer uma coisa agora, Willa. Não quero machucá-la. É verdade que violei a lei e a trouxe para cá, mas preferiria ver você sair andando por aquela porta e voltando para casa. Só que, enquanto você estiver aqui, seria muito bom se pudéssemos tentar nos dar bem tanto quanto possível. Sei que é difícil, mas é assim que as coisas têm de ser. Será melhor para mim. – Ele a encarou sério. – E melhor para você. Sam retirou a colher e a tigela da mesa e, apoiando-as contra o peito, se encaminhou para a porta. – Pode dizer à minha mãe e meu pai que estou bem? – perguntou ela em tom mais suave. Ele se virou. – É claro. Essa declaração fez com que a raiva que crescia dentro dele ganhasse força. Depois que ele se foi, Willa tornou a se sentar numa cama dobrável posicionada em um canto e, vagarosamente, olhou ao redor. Tinha falado de modo destemido com o homem, mas não se sentia muito corajosa. Estava com medo e queria ver sua família. Abria e fechava as mãos com ansiedade. Lágrimas começaram a escorrer por suas faces à medida que imaginava uma sequência de possibilidades assustadoras. Ela rezou e falou em voz alta com a mãe e o pai. Disse ao irmão e à irmã que, apesar de eles entrarem no quarto dela sem bater e mexerem em suas coisas, ela os amava muito. Enxugou as lágrimas e tentou se manter concentrada. Não acreditava no que o homem dissera sobre as luvas ou sobre a marca em seu braço. Achava que tinha algo a ver com os tios. Que outro motivo poderia haver? Exceto por aquilo, sua família era comum. Ela começou a andar pelo aposento, cantando baixinho – era o que quase sempre fazia quando estava preocupada ou assustada. – Vai ficar tudo bem – disse para si mesma várias vezes quando já não conseguia continuar cantando. Ela se deitou e puxou o cobertor sobre si. Antes de apagar a luz, olhou para a porta. Levantou-se, atravessou o aposento e olhou fixamente para a tranca. Era robusta e com pinos, reparou pela primeira vez.
E por causa disso, o medo de repente deu lugar a um minúsculo lampejo de esperança.
QUARRY DESCEU PELO TÚNEL da mina, uma das mãos roçando preguiçosamente as paredes de rocha negra nas quais antigos veios de carvão ainda eram visíveis. Destrancou a porta de outro aposento. Depois de entrar, sentou-se a uma mesa, tirou as ampolas de sangue da mochila e colou nelas etiquetas com números diferentes. Puxou uma caixa de uma prateleira afixada numa parede e a abriu. Dentro dela havia mais frascos de sangue. Alguns eram de Pam Dutton, que agora estava em um necrotério na Virgínia, ele sabia. Outros continham o sangue que colhera de Willa enquanto a garota estava inconsciente. Pôs etiquetas numeradas nos frascos de sangue de Pam e de Willa e os colocou dentro de uma caixa térmica cheia de sacos de gelo. Em seguida, enfiou em sacos plásticos a tigela e a colher que a menina usara e as colocou dentro de outra caixa. OK, o serviço mais urgente está feito. Agora tenho que agilizar as coisas. Ele se levantou e destrancou um cofre alto de metal que havia trazido de caminhão. Dentro dele havia pistolas semiautomáticas, espingardas, fuzis, miras, duas MP5 e duas AK, além de munição para tudo aquilo. Aquela coleção representava o apego de várias gerações de homens da família Quarry ao direito de possuir armas. Ele as examinou atentamente e escolheu uma pistola semiautomática calibre 45. Segurou o corpo de polímero da arma e encaixou um pente com balas-padrão. Era uma arma leve, embora muito potente, e era necessário ter força para puxar seu gatilho. Por sua estrutura ser tão leve para aquele calibre, não era fácil de usar. Mas era fácil de carregar e qualquer coisa que se acertasse de perto com ela era derrubada na hora. Era uma arma compacta, boa para autodefesa, mas não era por isso que ele a usaria. Enquanto sua mão segurava a pistola carregada, começou a suar.
O pente tinha sete balas. Na verdade ele só precisaria de duas e usá-las não lhe daria nenhum prazer. Nem um pingo. Decidido, seguiu pelo corredor de rocha, preparando-se para o que precisava ser feito. Seu pai e seu avô tinham caçado seres humanos antes – embora Sam soubesse que eles não consideravam negros seres humanos. Provavelmente os matavam sem pensar muito, como matariam uma cobra ou um roedor. Era nisso, entretanto, que ele se diferenciava e se afastava de seus parentes. Ele faria o que precisava ser feito, mas também estava consciente de que as cicatrizes seriam profundas e de que ele reviveria o momento da matança inúmeras vezes pelo resto de sua vida. Quarry chegou ao local e apontou a luz da lanterna para as barras de ferro cravadas na abertura de um grande vão na parede. Eram as mesmas barras que, durante a Guerra Civil, tinham mantido prisioneiros dezenas de soldados – embora Quarry as tivesse lixado para tirar a ferrugem e depois tornado a fixá-las na rocha. Havia dois homens agachados, recostados na parede ao fundo. Vestiam fardas militares e estavam com as mãos algemadas às costas. Quarry olhou para o homem baixo e musculoso que estava postado perto dele, do lado de fora das grades. – Vamos tratar de resolver isto logo, Carlos. O homem lambeu os lábios nervosamente e disse: – Sr. Sam, com todo o respeito, acho que não devemos fazer isso. Quarry se virou depressa para ele, elevando-se como um gigante acima do homenzinho. – Só há um líder nesta porcaria de lugar, Carlos, e sou eu. Existe uma hierarquia e é exatamente assim que deve ser. Você é um homem do Exército e sabe que isso é verdade, filho. Acredite: isso vai me fazer sofrer muito mais do que a você. E vai me deixar sem apoio para o que preciso. Uma verdadeira droga em todos os sentidos. O homem, assustado, baixou a cabeça, abriu a porta e, com um aceno hesitante, sinalizou para que os dois prisioneiros saíssem. Suas pernas estavam acorrentadas, de modo que avançaram mancando. Quando entraram no clarão da lanterna de Carlos, a transpiração brilhou claramente em suas faces. – Eu sinto muito – disse um dos homens. – Por Deus, eu sinto muito.
– Também sinto muito, Daryl. Isso não me dá prazer nenhum. Nenhum. Daryl era atarracado, ao passo que o homem atrás dele era alto e magro. Seu pomo de adão subia e descia revelando terror. – Não tivemos intenção de fazer aquilo, Sr. Quarry – argumentou o mais alto. – Mas depois que demos a injeção e apagamos a garota, a mulher entrou e começou a gritar e a lutar. Que diabo, veja só o rosto de Daryl. Ela quase o arrancou com as unhas. Foi legítima defesa. Estávamos tentando dopá-la também, mas ela perdeu a cabeça, ficou louca. – O que você esperava que uma mãe fizesse se tentassem levar a filha dela? Nós avaliamos essa possibilidade centenas de vezes e tudo mais que vocês deveriam fazer em qualquer porcaria de situação. Não era para matar ninguém. Agora uma menina nunca mais vai ver a mãe. Isso jamais deveria ter acontecido. – Mas o pai estava em casa. – A voz de Daryl soou suplicante. – E não deveria estar. – Não importa. Também tínhamos pensado nisso. Daryl não iria desistir: – Ela me arranhou muito, enterrou o dedo no meu olho. Fiquei furioso. Perdi a cabeça. Estava com a faca na mão e girei o corpo. Acertei a mulher bem no pescoço, mas foi sem querer. Ela morreu. Nós tentamos salvá-la. Sinto muito. Não houve nada que pudéssemos fazer. – Você já me contou isso. Se tivesse feito alguma diferença, você não estaria onde está agora, nem eu. Daryl olhou nervosamente para a arma de Sam. – Nós sempre estivemos ao seu lado quando precisou. O senhor sabe disso. E pegamos a garotinha. Ela não sofreu nem um arranhão. – Não há como fazer concessões. Quando vocês concordaram em me ajudar nisso, foram avisados de que não havia muitas regras, mas ainda assim violaram a mais importante. Vocês fizeram um juramento. Agora aqui estamos nós. Ele fez um sinal de cabeça para Carlos, que, relutantemente, agarrou os homens pelos punhos e os forçou a ficar de joelhos. Quarry se aproximou deles.
– Orem, homens, se acreditarem em algum deus. Eu lhes darei tempo para isso. Daryl começou a balbuciar o que pareciam fragmentos de uma oração. O homem magro chorou. Sessenta segundos depois, Quarry disse: – Acabaram? OK. Ele encostou o cano da arma na nuca de Daryl. – Ah, meu Deus. Meu Jesus misericordioso – gemeu o homem. – Por favor! – gritou o outro. O dedo de Quarry deslizou da lateral da arma para o gatilho. Ele, contudo, acabou afastando a pistola da cabeça de Daryl. Não sabia exatamente por que, apenas fez. – Levante-se! O homem olhou para ele com espanto. – O quê? – Eu disse levante-se. Daryl se levantou com as pernas trêmulas. Quarry encarou seu rosto todo arranhado e o sangue no olho direito. Então, com um puxão, rasgou o peito da camisa de Daryl, expondo um grande hematoma entre os músculos peitorais. – Você disse que foi uma mulher quem atirou em você? – Sim, senhor. Estava escuro, mas pude ver que era uma moça. – Aquela moça era uma excelente atiradora. Você deveria estar morto, rapaz. – Usei colete, como o senhor mandou – disse Daryl ofegante. – Lamento que a mulher tenha morrido. Não queria que acontecesse. – E você diz que acha que deixou uma ampola cair? – Só uma. Depois do que aconteceu, foi tudo a maior correria, principalmente quando aquelas outras pessoas apareceram. Nós contamos as ampolas no caminho de volta. De qualquer maneira, quando fizerem a autópsia, vão saber que tiramos sangue da mulher. Quarry pareceu indeciso por um momento. – Trate de ir andando.
– O quê? Quarry balançou a cabeça para um Carlos aliviado, que rapidamente tirou as correntes e algemas de Daryl. Ele esfregou os pulsos esfolados e olhou para o homem magro ainda de joelhos. – E Kurt? Quarry enfiou o cano da arma no peito de Daryl. – Chega de conversa. Trate de sair daqui antes que eu mude de ideia. Kurt não é da sua conta. Daryl saiu cambaleante, se endireitou e continuou a andar meio que aos tropeços pela escuridão. Quarry se virou para Kurt. – Por favor, Sr. Quarry – balbuciou o homem condenado. – Lamento muito tudo isso, Kurt. Mas a situação aqui é olho por olho, dente por dente. – Mas foi Daryl quem matou a mulher, senhor. – Mas ele é meu filho. Não tenho muito, mas tenho ele. Ele apontou a pistola para a cabeça de Kurt. – Mas o senhor é como um pai para mim, Sr. Quarry – argumentou Kurt, as lágrimas escorrendo pelo rosto. – É por isso que é tão difícil. – Isso é loucura, Sr. Quarry. O senhor está louco – berrou ele. – Está absolutamente certo: eu sou maluco, rapaz! – gritou Quarry em resposta. – Está no meu sangue, não há como fugir. Kurt jogou o corpo para o lado e tentou se afastar arrastandose pelo chão, suas botas pesadas levantando pequenas nuvens de poeira negra. Seus gritos ecoaram pela mina, como os dos soldados de tanto tempo atrás. – Traga esta luz para perto, Carlos – ordenou Quarry. – Não quero que ele sofra um segundo a mais do que o necessário. A arma foi disparada e Kurt parou de tentar fugir. Quarry deixou cair ao lado do corpo a mão que segurava a pistola. Balbuciou algo incompreensível enquanto Carlos fazia o sinal da cruz.
– Sabe como estou furioso? – disse Quarry. – Compreende meu nível de raiva e de desapontamento? – Sim, senhor – respondeu Carlos. Quarry cutucou com a bota o cadáver no chão e enfiou a pistola na cintura. Então deu meia-volta e saiu andando pelo túnel da mina, em direção à luz do dia. Estava cansado da escuridão. Queria apenas voar.
MICHELLE DEIXOU A PISTOLA trancada no cofre do carro. Não tinha a menor vontade de passar os próximos anos numa prisão federal contemplando o erro que cometera ao tentar entrar na Casa Branca com uma arma carregada. Tinham conseguido despistar os repórteres que estavam do lado de fora do escritório, embora o esforço tivesse custado um bocado da borracha dos pneus da picape de Michelle e, durante a breve perseguição, um dos carros dos jornalistas houvesse batido em uma van estacionada. Ela não havia parado para ajudar. Eles seguiram pela entrada para visitantes. Esperavam ser conduzidos ao interior da Casa Branca, mas foram surpreendidos quando, depois de passar pelo detector de metais e serem revistados, um dos agentes lhes disse: – Venham. Eles foram rapidamente postos em um carro com motorista que esperava junto à entrada. O veículo saiu em alta velocidade assim que as portas se fecharam. – Para onde estamos indo? – perguntou Sean ao motorista. O homem não respondeu. O sujeito ao lado dele nem ao menos se virou. – O Serviço Secreto não parece muito satisfeito – sussurrou Michelle. – O jogo da culpa começou – sussurrou Sean em resposta. – E é possível que eles saibam por que a primeira-dama nos chamou aqui. E provavelmente não gostam de ter gente de fora se metendo. – Mas nós já fizemos parte da equipe. Ele deu de ombros. – Eu não saí exatamente nos melhores termos. Nem você.
– Então, não é só o FBI que nos odeia. O nosso pessoal também. Sabe, o que precisamos é de união. – Não, precisamos é saber para onde estamos indo. – Ele estava a ponto de repetir a pergunta quando o carro reduziu a marcha e parou. – Saltem aqui, na igreja – disse o motorista. – O quê? – Tratem de sair do carro e entrar na igreja. A primeira-dama está esperando. Assim que desceram do veículo, eles se deram conta de que a viagem tinha sido muito curta. Estavam do outro lado do Lafayette Park, adjacente à ala oeste da Casa Branca. A igreja era a St. John. A porta estava aberta. Eles entraram enquanto o carro se afastava. Ela estava sentada no banco da frente. Mais do que ver o destacamento de seguranças dentro da igreja, Sean e Michelle puderam sentir sua presença. Quando Sean sentou ao lado de Jane Cox, não conseguiu identificar se ela estivera chorando ou não. Desconfiava que sim, mas também sabia que ela não era o tipo de mulher que mostrasse suas emoções facilmente. Talvez nem para o marido. Ele a tinha visto se mostrar emotiva uma vez, mas uma vez só. Nunca havia imaginado que presenciaria outro episódio daqueles. Ela usava um vestido azul na altura do joelho sob o longo casaco preto, com sapatos de saltos discretos e quase nenhuma joia. O cabelo, embora coberto por um lenço, estava preso no coque que era a sua marca registrada e que fazia muitos a compararem, favoravelmente, a Jackie Kennedy. Aquela mulher nunca fora dada a extravagâncias, Sean sabia, apenas tinha classe. Era elegante. Nunca tentava parecer o que não era. Bem, aquilo não era exatamente verdade, concluiu. Uma primeira-dama tinha que ser muitas coisas para muitas pessoas e não havia como manter uma personalidade imutável atendendo a tantas solicitações diferentes, de modo que era inevitável haver alguma encenação, como se ela interpretasse um papel. – Esta é Michelle Maxwell, Sra... Jane. Jane sorriu gentilmente para Michelle e então se virou de volta para Sean. – Obrigada por ter concordado em se encontrar comigo tão rapidamente.
– Pensamos que o encontro seria na Casa Branca. – Eu também pensei, mas depois mudei de ideia. A igreja me dá um pouquinho mais de privacidade. E... tranquilidade. Sean se recostou no banco e examinou o altar por um momento antes de dizer: – Em que podemos ajudar? – Vocês realmente estavam lá? – Estávamos. Eu tinha ido levar um presente para Willa. Ele relatou os detalhes dos acontecimentos daquela noite, omitindo apenas as partes mais chocantes. – Tuck não se lembra de muita coisa – comentou ela. – Disseram que ele vai ficar bem, que não houve hemorragia interna nem nada, mas a memória de curto prazo parece ter sido afetada. – Isso é comum em casos de pancadas na cabeça – observou Michelle. – Mas ele ainda pode recuperar a memória. – O Serviço Secreto agora está cuidando da proteção do... do restante da família presidencial – disse ela. – Boa providência – disse Sean. – Depois de exposto o calcanhar de aquiles – observou Jane em voz baixa. – O FBI está investigando – disse Sean. – Não tenho certeza se há alguma coisa que possamos fazer que eles não possam. – Dei uma festa de aniversário para Willa em Camp David. Pam estava lá, e os amigos de Willa, o irmão e a irmã. Foi um dia muito especial para uma menina muito especial. – Ela é mesmo especial. – E pensar que no mesmo dia daquela comemoração maravilhosa aconteceu esse... esse horror. – Ela encarou Sean. – Quero que encontre Willa. E os responsáveis por isso. Ele engoliu em seco nervosamente. – É uma investigação federal. Não podemos nos intrometer. Vão fazer picadinho de nós. – Você me ajudou uma vez, Sean, e nunca me esqueci disso. Sei que não tenho o direito de pedir, mas preciso desesperadamente de sua ajuda mais uma vez.
– Mas e o FBI? Ela balançou a mão num gesto de desdém. – Tenho certeza de que são muito bons. Mas não preciso nem dizer que, por causa do relacionamento especial que tenho com Willa, isto logo vai se tornar alvo de brigas políticas. – Como alguém poderia fazer do assassinato de uma mãe e do sequestro da filha uma questão política? – perguntou Michelle. Jane lhe deu um sorriso terrivelmente próximo de ser condescendente. – Estamos no meio da campanha para reeleição. Esta cidade se especializa em tornar o nada político em muito político, Michelle. Não existem limites para as baixarias de que algumas pessoas são capazes. – E acha que isso poderia influenciar a investigação do FBI? – perguntou Sean. – Não quero correr o risco de que a resposta para essa pergunta seja sim. Quero ter uma pessoa com um objetivo apenas: descobrir a verdade. Sem manobras e sujeiras. Sem interpretações manipuladas. Isso significa que quero você. – Tem alguma ideia de por que alguém teria feito isso, Sra. Cox? – perguntou Michelle. – Nem consigo imaginar. – E que tal os suspeitos habituais? – sugeriu Sean. – Um grupo terrorista? Os parentes diretos do presidente são bem protegidos demais, portanto teriam atacado um alvo mais fácil. – Se for isso, algum grupo deve assumir a responsabilidade em breve, ou então fazer algum tipo de exigência – acrescentou Michelle. – E isso aconteceria logo, logo. O que o presidente acha? – perguntou Sean. – Ele está tão preocupado e interessado quanto eu. – O que quis dizer é: ele tem alguma ideia de quem possa ter feito isso? – Não, creio que não. – Ele sabe que a senhora está aqui, reunindo-se conosco? – Sean acrescentou em tom delicado.
– Não vejo nenhum motivo para que saiba, pelo menos não de imediato. – Com todo o respeito, os agentes do Serviço Secreto encarregados de sua segurança sabem – disse Michelle. – Creio que possa confiar na discrição deles. Michelle e Sean trocaram um olhar nervoso. Não havia um agente do Serviço Secreto disposto a esconder algo do presidente intencionalmente. Seria suicídio profissional, apesar de motivado pela discrição. – Tudo bem – disse Sean. – Mas se vamos nos meter nessa história, nosso envolvimento pode vir a ser revelado em algum ponto. – Se isso acontecer, podemos afirmar que estamos investigando apenas porque Sean é amigo da família e estava no local quando os fatos aconteceram – acrescentou Michelle. – E tentaram me matar. Portanto, também poderíamos usar isso. Sean assentiu e lançou um olhar para Jane. – Podemos usar esses argumentos, com certeza. – Ótimo. – Vamos precisar falar com Tuck, John e Colleen. – Posso providenciar isso. Tuck ainda está no hospital. As crianças estão na casa da irmã de Pam, em Bethesda. – E precisaremos ter acesso à cena do crime. – O FBI coletará todas as evidências – lembrou-se Michelle. – Também precisaremos vê-las, se quisermos chegar a algum lugar. – Vou ver o que posso fazer. Afinal, é a minha família. – Está bem – disse Sean lentamente, observando-a com atenção. – Então vão aceitar o caso? – perguntou a primeira-dama, pondo a mão sobre a de Sean. Ele olhou para Michelle, que fez um rápido aceno de cabeça: – Vamos.
ELES SAÍRAM DA IGREJA. O carro do Serviço Secreto não os estava esperando. – Acho que não pagamos o suficiente para a viagem de volta – resmungou Michelle. Estavam começando a atravessar o Lafayette Park quando Sean disse: – Espere. Lá vêm eles. Os dois homens vinham andando na direção deles cheios de determinação. Um era Cara Azeda, o agente do FBI que estivera na cena do crime. O outro, alguém que Sean e Michelle conheciam bem: Aaron Betack, do alto escalão do Serviço Secreto. Sua carreira notável o impelira rapidamente das tricheiras para a torre do poder, e Sean observou que ele tinha um andar enérgico. Eles bloquearam o caminho de Sean e Michelle. Sean fingiu surpresa. – Ei, vocês também saíram para uma caminhada? Que coincidência termos a mesma ideia, não? – Sabemos onde vocês estavam e com quem conversaram e estamos aqui para acabar com isso agora mesmo. A última coisa de que precisamos são dois caubóis... – Cara Azeda fez uma pausa e lançou um olhar desdenhoso para Michelle. – Perdoe-me: e uma mocinha se intrometendo e atrapalhando. – Ainda não sei seu nome – disse Sean em tom amistoso. – Chuck Waters, agente especial do FBI. – É bom saber – retrucou Michelle. – Porque andei me referindo a você como o babaca. – Maxwell! – repreendeu-a Betack. – Mais respeito.
– Quando vir algo que deva respeitar, eu respeitarei – rebateu ela.
Waters se aproximou dela e balançou o dedo em riste a dois centímetros de seu nariz. – Trate de ficar fora disso, mocinha. Uma vez que Michelle era quase 10 centímetros mais alta que Waters, respondeu malcriada: – Se eu sou uma mocinha, isso deve significar que você é um anão. – E só para seu conhecimento, Chuck, esta mocinha aqui é capaz de derrubar nós três sem nem sequer transpirar, portanto pare com isso – disse Sean. Com 1,88 metro, Betack era do mesmo tamanho que Sean, mas com ombros ainda mais largos. Ele pigarreou, lançou um olhar de advertência para seu colega do FBI e então fez um sinal com a cabeça. O rosto do agente ficou vermelho, mas ele deu um passo para trás. – Sean, você e Michelle não vão investigar este caso. Ponto – anunciou Betack. – Da última vez que conferi meu contracheque, não era o Tio Sam que pagava. – Mesmo assim... – Não há “mesmo assim”. Nós nos encontramos com uma cliente em potencial e concordamos em representá-la. Estamos em um país livre, fazendo o que a lei permite. Agora, temos um caso em que precisamos começar a trabalhar. – Você realmente vai se arrepender disso, King – disse Waters com aspereza. – Já me arrependi de muita coisa na vida. E, apesar disso, aqui estou eu. Sean os afastou e passou por eles. Michelle o seguiu, certificando-se de deixar o cotovelo bater com força no braço de Waters. Quando chegaram de volta ao carro de Michelle, ela disse: – Fiquei realmente orgulhosa de você.
– Não fique. Acabamos de virar inimigos de duas das mais poderosas agências de segurança do mundo. – É melhor ir com tudo do que não fazer nada. – Estou falando sério, Michelle. – E daí? – disse ela, engrenando o carro. – Significa apenas que teremos que solucionar este caso depressa. – E você realmente acredita que isso seja mesmo remotamente possível? – Já tivemos casos difíceis antes. – É, mas nada se resolveu depressa. – Nada como uma mistura de cautela e pessimismo... Aonde vamos primeiro? Falar com Tuck? – Não, com as crianças. Enquanto faziam o percurso de carro, ela perguntou: – E o que você achou da história de Jane Cox? – Pareceu bastante franca. – Ah, você achou? – Você, não? – Ainda não me contou como a conheceu. – E como alguém chega a realmente conhecer outra pessoa? – Ah, pare com essa lenga-lenga filosófica. Quero saber como se conheceram. – Por que isso teria importância? – Tem importância porque, se seu julgamento for influenciado... – Que diabo! Quem disse que meu julgamento está influenciado? – Ora vamos, deixe disso! Eu vi o jeito que ela botou a mão sobre a sua. Vocês tiveram um caso ou coisa parecida? – Você acha que andei transando com a esposa do presidente dos Estados Unidos? Pare com isso, me deixe em paz! – Talvez ela não fosse primeira-dama quando você a conheceu. – disse Michelle muito calmamente. – Mas não tenho essa informação, porque você se recusa a me contar seja lá o que for. A mim, sua parceira. Para você ver como são as coisas. Eu contei tudo a você, despi minha alma. Esperava um pouco de reciprocidade. – Está bem, está bem. Ele ficou em silêncio e olhou para fora. – Está bem o quê? – Eu não tive um caso com Jane Cox. – E quis ter? Ele lhe lançou um olhar irritado. – Que importância isso tem para você? Michelle, que estivera sorrindo, naquele momento pareceu ficar sem graça. – Pouco me importa por quem você se sinta atraído. É assunto seu. – É bom saber, porque realmente prefiro ter privacidade nesse assunto. Houve um silêncio constrangido enquanto eles seguiam o percurso. Michelle estava quebrando a cabeça em busca de um outro tipo de abordagem. Afinal o encontrou: – Mas você já tinha saído do Serviço Secreto quando o marido dela se candidatou à Presidência. – Ele também foi senador. – Mas qual é a ligação com o Serviço Secreto? Ou não teve nada a ver? – Teve. E também não teve. – Maravilha, muito obrigada pelo esclarecimento. Ele permaneceu em silêncio. – Vamos, Sean, fale! – soltou ela, batendo no volante com frustração. – Isso tem que ficar só entre nós, Michelle. – Claro, porque eu sempre dou com a língua nos dentes. – Nunca contei a ninguém. Ninguém.
Ela olhou para ele e percebeu sua expressão muito séria. – Tudo bem. Ele se recostou no assento. – Anos atrás eu estava na Geórgia trabalhando na equipe de segurança presidencial. Uma noite saí para comer com outro agente. Ele voltou para o serviço, mas eu estava no meu turno livre. Fui caminhar um pouco, dar um passeio e aproveitar para fazer o reconhecimento da área, ficar de olho em pontos que pudessem ser problemáticos na rota por onde os carros passariam. Eram por volta de onze e meia e eu vinha caminhando fazia cerca de uma hora. Foi quando o vi. – Viu quem? – Dan Cox. – O presidente? – Ele não era presidente naquela época. Tinha acabado de ser eleito senador. Não sei se você lembra, mas ele ocupou seu assento no Senado por um mandato inteiro e depois por mais dois anos durante o governo seguinte antes de se candidatar à Presidência. – OK, então você o viu, e daí? – Ele estava dentro de um carro estacionado numa viela, bêbado de cair, com uma mulher em cima dele. – Está brincando! – Você acha que eu inventaria isso? – E o que aconteceu? – Eu o reconheci. Nos preparativos para a visita do presidente, tínhamos feito uma reunião com as autoridades locais e ele havia participado. – Então por que ele estava numa viela, transando com uma mulher que não era a esposa dele? – Bem, eu ainda não sabia que aquela não era a esposa dele, mas achei a situação arriscada. Ele era do mesmo partido do presidente e eu não queria que aquilo gerasse um escândalo às vésperas de o homem chegar à cidade. Então, bati na janela do carro e mostrei meu distintivo. A garota saiu de cima dele tão depressa que pensei que fosse atravessar o teto do carro. Cox estava tão bêbado que nem entendeu direito o que estava acontecendo.
– E o que você fez? – Disse à garota para sair do carro. – Era uma prostituta? – Acho que não. Era jovem, mas não estava vestida da maneira que você esperaria de uma prostituta. Lembro que ela quase caiu do carro enquanto tentava recolocar a calcinha. Pedi que me apresentasse um documento de identidade. – Por quê? – Só para o caso de aquilo vir a me trazer problemas mais tarde. Queria poder encontrar a garota se precisasse. – Ela lhe mostrou um documento? – Ela não queria, mas eu falei que não havia escolha. Blefei e disse a ela que, se não mostrasse, eu teria que chamar a polícia. Então ela me mostrou a carteira de motorista e eu anotei seu nome e endereço. Ela morava na cidade. – O que aconteceu depois disso? – Eu ia chamar um táxi para a garota, mas ela saiu correndo. Pensei em ir atrás, mas então Cox começou a falar engrolado dentro do carro e corri de volta para ele. Fechei o zíper do homem, empurrei-o para o banco do passageiro, peguei a carteira de motorista dele para ver seu endereço e o levei para casa. – E foi lá que conheceu Jane Cox? – Exato. – Cara, que apresentação. Você contou tudo a ela? Sean começou a dizer alguma coisa, mas então se calou. – A prudência é a principal característica dos heróis? – Mais ou menos isso – disse ele. – Eu apenas disse a ela que o tinha encontrado dentro do carro “meio arriado”. Embora se pudesse sentir o cheiro de perfume feminino nele e houvesse manchas de batom na camisa. Eu o carreguei escada acima, até o quarto. Foi muito desagradável e embaraçoso em todos os sentidos. Por sorte, os filhos estavam dormindo. Eu tinha mostrado a minha identificação a ela logo que cheguei. Ela se mostrou incrivelmente grata, disse que nunca esqueceria o que eu tinha feito por ela. E por ele. Então... então ela de repente se descontrolou e começou a chorar. Acho que não era a primeira vez que aquilo acontecia. Eu... eu fiquei ouvindo, meio que tentei consolá-la, tentei acalmá-la. – Você meio que tentou consolá-la? – Está bem, eu a abracei, deixei que chorasse em meu ombro. Que diabo eu podia fazer? Estava tentando acalmar a mulher. – Foi aí que o desejo se instalou no seu coração? – Michelle! – exclamou ele exasperado. – Desculpe. OK, você a abraçou. E depois? – Quando parou de chorar e se recompôs, ela me agradeceu de novo. Ofereceu-se para me levar de volta à cidade, mas achei que não seria boa ideia. Então andei um pouco e peguei um táxi. – E ficou só nisso? – Não, não ficou só nisso. Ela me telefonou. Não sei exatamente como explicar: primeiro nos tornamos conhecidos e, depois, amigos. Creio que ela tenha ficado realmente agradecida pelo que fiz. Se outra pessoa o tivesse encontrado daquele jeito, provavelmente ele hoje não seria presidente. – Não tenha tanta certeza. Os políticos não são conhecidos pela moralidade. – De qualquer maneira, eu estava bem por dentro do que acontecia em Washington e ela me consultou a respeito disso. Acho que passou a entender melhor do que o marido a maneira como a cidade funciona. – E foi assim que você conheceu Tuck e a família dele? – Jane me convidou para algumas festas e jantares. Não creio que Dan Cox se lembrasse de mim. Ou daquela noite. Não sei muito bem como ela lhe explicou a minha presença, mas ele nunca a questionou. Depois que virou presidente, na verdade quase nunca mais os vi, pelos motivos óbvios. Pessoas como eu não andam naqueles círculos. E eu já não estava no Serviço Secreto ou em Washington. Mas ela sempre me mandou um cartão de Natal. E eu mantive contato com Tuck e a família dele. Quando viemos para cá, eles foram um dos primeiros a me receber e me dar as boas-vindas. Michelle pareceu surpresa. – Então como foi que você nunca me apresentou a eles? Um sorriso descontraiu o rosto de Sean.
– Ora, eu não queria assustá-los. – Agora você vai ajudá-la mais uma vez. – Pois é, déjà-vu, tudo de novo. – É mesmo? Bem, espero que a gente sobreviva. Quase me acertaram naquela noite e venho gastando minhas nove vidas com uma velocidade assustadora, desde que comecei a andar com você. – Mas também nunca é tedioso. – Não, nunca é tedioso.
SAM QUARRY DIRIGIU SUA picape de volta a Atlee seguindo por estradas de terra esburacadas. A pistola semiautomática que usara para matar Kurt estava no banco ao seu lado. Estacionou em frente à sua casa, uma construção formada por pedras retiradas dos arredores e tijolos feitos à mão. A poeira do Alabama rodopiava ao redor dos pneus da picape, mais parecendo ondas de calor tremeluzentes. Ele ficou ali, imóvel, por um tempo enorme, apenas sentado com as mãos no volante, olhando fixamente para a arma. Por fim, passou o polegar sobre um dos lados da coronha. Tentava afastar de sua mente o que fizera tocando o instrumento com o qual praticara aquele ato. Quase tinha caído com o Cessna no voo de volta. Começara a trepidar de maneira descontrolada logo depois da decolagem. Então, quando mal atingira 200 pés de altitude, pegara ventos desfavoráveis e suas asas ficaram praticamente na vertical. Mais alguns segundos e ele teria perdido de vez a altitude e não conseguiria recuperar o controle do avião. Sempre mantivera Daryl perto de si na infância e na adolescência. O garoto nunca fora muito brilhante – o pai sabia disso, mas o amava mesmo assim. Era um menino leal, isso não se podia negar. Fazia qualquer coisa que o pai mandasse. E o que lhe faltava em intelecto ele compensava com sua determinação e sua atenção aos detalhes, atributos que tinha em comum com Sam. Essas características lhe haviam sido úteis no Exército. Ele, Kurt e Carlos se alistaram e serviram no Iraque e no Afeganistão, ganhando medalhas e sobrevivendo a todos os horrores possíveis, até a bombas caseiras. Então os problemas haviam começado. Um belo dia, Quarry havia descido e encontrado os três homens tomando café na cozinha de Atlee. – O que vocês estão fazendo aqui? – perguntara. – Pensei que tivessem recebido ordens de embarcar para o Oriente Médio.
– Ficamos com saudades de casa – resmungara Daryl, a boca cheia de aveia e bacon. Kurt apenas balançara a cabeça e sorrira, bebendo ruidosamente o café forte feito por Ruth Ann. Carlos, sempre calado, ficara olhando nervosamente para o prato e espetando a comida com o garfo. Quarry lentamente havia se sentado na cadeira diante deles. – Deixem-me fazer uma pergunta estúpida. O Exército sabe que vocês estão aqui? Os três homens trocaram um olhar antes que Daryl respondesse: – Imaginamos que não vai demorar para que saiba. O rapaz deu uma risadinha. – Então por que vocês saíram sem permissão? – Estamos cansados de lutar – respondeu Kurt. – De dia faz mais calor no Iraque que no Alabama. E, à noite, mais frio que no inverno na Lua – acrescentou Daryl. – Já estivemos lá quatro vezes. Metemos bala na Al-Qaeda. E nos talibãs também. – Malucos de turbante – acrescentou Carlos enquanto levantava a xícara de café. – Mas eles sempre voltam – disse Kurt. – Como joões-teimosos. Você derruba um, aparece outro. – As crianças chegam perto de você pedindo balas e então se explodem – acrescentou Daryl. – A coisa mais medonha que o senhor puder imaginar, Sr. Quarry – acrescentou Kurt. – Cansamos disso. É a pura verdade, juro por Deus. Daryl descansou o garfo e limpou a boca com as costas da mão grandalhona. – Então, a gente decidiu que estava na hora de voltar para o Alabama. – Nosso lar doce lar – acrescentou Kurt com um sorriso malandro. O Exército bateu lá no dia seguinte.
– Por aqui não apareceram – disse Quarry para os soldados de cara sisuda. Os homens falaram com Ruth Ann, Gabriel e até com o índio Fred. Mas não conseguiram arrancar nada deles. Uma família cuidava de seus integrantes. Sam não contou aos soldados sobre a velha mina, porque era lá que Kurt, Carlos e Daryl estavam se escondendo. Tinha levado os três para lá de avião na noite anterior. – Dar abrigo a soldados que se ausentam sem permissão é crime federal – anunciou um sargento baixinho de origem hispânica. – Eu servi meu país no Vietnã, sargento. Matei mais homens do que o senhor conseguirá até em seus sonhos. E fui condecorado por meus serviços, mas não recebi nem um obrigado do Tio Sam por meus esforços. Levei um belo pé na bunda de meu país quando voltei para casa. Nada de desfiles comemorativos para os homens que lutaram no Vietnã. Mas não se preocupe: farei a coisa certa se vir meu filho. Quarry batera continência e então fechara a porta na cara deles. Aquilo tinha acontecido havia dois anos e o Exército voltara duas vezes nesse período. Mas as estradas de acesso àquela área eram poucas e Quarry sempre sabia que eles estavam a caminho antes que chegassem a Atlee. Depois da terceira tentativa, o Exército nunca mais apareceu. Aparentemente tinham mais com que se preocupar do que com três garotos do Alabama que haviam se cansado de lutar contra árabes a mais de 10 mil quilômetros de casa, refletira Quarry. Kurt tinha sido como um filho para ele, quase tanto quanto Daryl. Conhecia o garoto desde que nascera. Acolhera-o quando sua família morreu em um incêndio. Ele e Daryl eram muito parecidos. Carlos tinha aparecido na porta de sua casa certa manhã havia mais de 12 anos. Na época, não era muito mais velho do que Gabriel hoje. Sem família, sem dinheiro, sem sapatos. Tinha apenas uma muda de roupa, mas força para trabalhar e uma ética de trabalho que desconhecia a palavra “desistir”. Parecia que Sam tinha passado a vida inteira acolhendo desgarrados. – O que o senhor está fazendo, seu Sam? Sam deixou seus pensamentos de lado e olhou pela janela da picape. Gabriel o observava da escada da frente. O garoto vestia calça jeans desbotada e a camiseta branca habitual e estava descalço como sempre. Estava com o velho boné dos Atlanta Falcons que Quarry lhe dera. Usava-o virado ao contrário para evitar que o pescoço ficasse queimado demais pelo sol, ou pelo menos fora o que dissera a Quarry um dia, quando este lhe perguntara. – Só pensando, Gabriel. – O senhor pensa muito, seu Sam. – É o que adultos fazem. Portanto, trate de não crescer depressa demais. Ser criança é muito mais divertido. – Se o senhor diz... – Como está indo na escola? – Gosto muito de ciências. Só que, mais que tudo, eu gosto é de ler. – Então quem sabe você não vai ser escritor de ficção científica? Como Ray Bradbury. Ou Isaac Asimov. – Quem? – Por que não entra e vai ajudar sua mãe? Ela sempre tem coisas para fazer e ninguém para ajudá-la. – Está bem. E obrigado pelo selo. Eu não tinha aquele. – Sei que não tinha. Senão não o teria dado, filho. Gabriel se afastou e Quarry engrenou a marcha da picape e dirigiu até o celeiro. Saltou e enfiou a pistola semiautomática no cós da calça. Levou uma escada até a área superior da construção onde armazenava feno, e suas botas foram se apoiando nos degraus estreitos enquanto ele se içava. Abriu as portas do depósito e olhou para fora, examinando o que restava de Atlee. Subia até ali várias vezes por dia para fazer isso, como se a propriedade pudesse desaparecer se não ficasse de olho. Apoiou-se no umbral de madeira, fumou um cigarro e observou os imigrantes ilegais trabalhando em seus campos a oeste. Ao leste, viu Gabriel ajudando a mãe a cuidar da horta da cozinha, de onde cada vez mais vinha o que eles comiam. O Alabama rural estava na vanguarda do movimento a favor de uma América “verde”. Por necessidade. Quando as pessoas estão se dando mal, fazem qualquer coisa para sobreviver.
Quarry apagou cuidadosamente seu cigarro, de modo a não incendiar o feno seco, desceu depressa a escada, agarrou uma pá e saiu andando em direção ao sul por quase um quilômetro, então parou. Cavou um buraco fundo – o que foi difícil, porque o solo era muito compactado ali. Mas era um homem acostumado a trabalhar com as mãos e a pá foi se enterrando cada vez mais a cada golpe. Atirou a pistola na cova, depois cobriu-a e colocou um pedregulho sobre ela. Era como se ele tivesse enterrado alguém, mas não fez nenhuma prece. Não faria isso por uma arma. Por coisa nenhuma. Nunca mais. A mãe dele não teria gostado disso. Pentecostal durante a vida inteira, ela costumava falar em línguas estranhas e levá-lo aos cultos todos os domingos desde que ele se lembrava. Enquanto agonizava no leito de morte, durante uma tempestade devastadora, ela falara em línguas com seu Senhor. Quarry tinha apenas 14 anos na época e aquilo o deixara apavorado. Não por causa das línguas estranhas – com isso ele estava acostumado. Assustador fora a morte chegar acompanhada de gritos numa linguagem que ele jamais compreenderia. Foi como se a mãe soubesse que estava deixando esta vida e quisesse anunciar ao Senhor a sua chegada, só que talvez Ele fosse surdo, tendo em vista quanto ela havia berrado a plenos pulmões. Sam teve a impressão de que Jesus iria aparecer no quarto de sua mãe a qualquer instante, só para fazer com que a pobre mulher ficasse quieta. Em suas últimas horas de vida, ela não falou com o filho, embora ele tivesse se mantido ao lado dela, lágrimas grossas escorrendo pelas faces magras enquanto dizia que a amava, esperando de todo o coração que ela olhasse para ele e respondesse algo como “Eu te amo, Sammy”, ou pelo menos “Adeus, filho”. Talvez algo assim tivesse sido dito nos momentos em que ela falou em línguas estranhas, mas não havia como saber. Ele nunca compreendera aquela linguagem. E então lhe escapara mais um grito e ela simplesmente deixou de respirar. Foi seu fim. Na verdade, sem muito alarde. Aquilo o deixou realmente pasmo: como era fácil morrer, como era simples ver alguém morrer. Sam esperara um pouco para se assegurar de que ela estivesse realmente morta e não apenas descansando entre os gritos que dava para o Senhor. Então fechara seus olhos e cruzara as mãos sobre o peito, como tinha visto nos filmes.
Seu pai não tinha sequer estado por perto quando ela morreu. Mais tarde naquela mesma noite, Sam o encontrara bêbado na cama da mulher de um dos empregados da fazenda que estava hospitalizado por causa de um acidente no campo. O filho carregara o pai sobre o ombro e o levara de carro de volta a Atlee. Apesar de ter apenas 14 anos, já estava com quase 1,90 metro e tinha a força de um trabalhador rural. Dirigia desde os 13 anos pelas estradinhas dos campos do Alabama do princípio dos anos 1960. Naquela noite, ele estacionara o velho carro dentro do celeiro, desligara o motor e pegara uma pá. Então abrira uma cova para o pai perto de onde um dia viria a enterrar uma pistola semiautomática calibre 45. Depois voltara para o celeiro, pensando qual seria a melhor maneira de matar o pai. Tinha acesso às armas de Atlee – e havia muitas delas – e sabia atirar bem com todas, mas imaginara que uma pancada na cabeça seria muito mais silenciosa que um tiro. Com certeza queria matar o velho adúltero, mas era inteligente o bastante para não perder sua liberdade por isso. Havia arrastado o pai para fora do carro e o deitara de bruços no chão coberto de feno do celeiro. Seu plano era dar o golpe de misericórdia na nuca, como se faz para abater um animal. Quando estava preparando a marretada, o pai se sentara abruptamente. – Que diabo está acontecendo, Júnior? – perguntara com a voz pastosa, encarando o filho com os olhos entreabertos e sem foco. – Nada – havia respondido Sam, perdendo a coragem. Ele podia ter a altura de um homem adulto, mas ainda era apenas um garoto. Um olhar de seu pai bastara para recordá-lo disso. – Estou morto de fome – dissera o velho. Quarry baixara a arma improvisada e o ajudara a se levantar, apoiando-o enquanto seguiam de volta para casa. Ele dera de comer ao pai e depois o ajudara a subir para o segundo andar. Deixara apagada a luz do quarto, despira o homem e o pusera na cama. Na manhã seguinte, ao acordar ao lado do corpo gelado da esposa, o velho havia gritado tanto que Sam o ouvira lá do galpão da ordenha, onde estivera tirando leite das vacas. Tinha rido tanto que chegara às lágrimas. Sam Quarry caminhou de volta para casa depois de enterrar a arma. Era um anoitecer bonito: o sol poente criava no céu um glorioso crepúsculo incendiado que se estendia até o platô da Sand Mountain, no sul dos Apalaches. O Alabama, refletiu, era realmente o lugar mais bonito da Terra – e Atlee era sua melhor parte. Foi para seu escritório e acendeu a lareira, embora o dia houvesse sido quente e a noite estivesse abafada e úmida, cheia de mosquitos à procura de sangue. Sangue. Havia um bocado de sangue naquelas caixas térmicas. Quarry tinha trancado as ampolas no grande cofre onde seu avô costumava guardar documentos importantes. Ficava no porão, ao lado da velha fornalha barulhenta que, naquela região do país, raramente era usada. Quando criança, Sam havia tentado inúmeras vezes descobrir a combinação do cofre, girando sua tranca sempre que podia, na esperança de cair nos números certos e revelar seu conteúdo. Nunca conseguira. O testamento do pai finalmente lhe dera a sequência numérica correta. A emoção não tinha sido a mesma. Com o fogo na lareira, ele pegou o atiçador e o enfiou nas chamas até ficar bem quente. Tornou a sentar na cadeira, enrolou a manga da camisa e encostou o metal incandescente na pele. Não gritou, apenas mordeu o lábio inferior. Largou o atiçador e olhou para o braço que latejava. Arquejando de dor, obrigou sua mente a examinar a marca deixada pelo metal em brasa. Tinha feito uma linha, uma linha comprida. Ainda tinha mais três por fazer. Destampou a garrafa de gim que ficava na escrivaninha e bebeu no gargalo. Derramou um pouco sobre a marca. A pele queimada pareceu inchar mais com o ardor do álcool, como se fosse uma minúscula cadeia de montanhas formando-se depois de um soluço de milhões de anos vindo das entranhas da Terra. O gim era barato e só o que ele bebia agora, principalmente grão misturado com outras porcarias, engarrafado na região. Como também era tudo o que ele fazia ultimamente: regional. Ele não mentira para o pobre Kurt. De fato havia loucos em sua família. Seu pai, com certeza, e o pai dele também. Ambos tinham acabado no manicômio estadual, onde chegaram ao fim de seus dias dizendo sandices que ninguém queria ouvir. Na última vez que Quarry vira o pai vivo, o homem estava sentado nu no assoalho sujo de um quarto, fedendo mais que uma privada pública e falando incoerentemente e sem cessar sobre o maldito traidor LBJ e os negros, usando termos nada educados. Naquela ocasião, Sam concluíra que o pai não era insano, apenas mau.
Sam Quarry se recostou na cadeira e examinou as chamas saltitando e sibilando diante dele. Talvez eu seja um caipira infeliz de lugar nenhum, mas vou levar isso até o fim. Sinto muito, Kurt. Sinto muito mesmo, filho. Mas uma coisa eu lhe prometo: você não morreu em vão. Nenhum de nós morrerá em vão.
ELES SEGUIRAM PARA A casa da cunhada de Tuck em Bethesda, Maryland, onde estavam as crianças. John e Colleen Dutton ainda estavam em choque e sabiam de muito pouco. Michelle se encarregou de falar com a menina de 7 anos, Colleen, e deu o melhor de si para tentar arrancar alguma informação, mas quase sem nenhum sucesso. A garotinha já estava na cama quando a porta tinha sido aberta, mas, antes que ela pudesse olhar, alguém a agarrara e encostara algo em seu rosto. – A mão de alguém ou um pano? – perguntou Michelle. – As duas coisas – disse Colleen. As lágrimas encheram os olhos da menina quando ela disse isso e Michelle decidiu não pressioná-la. As duas crianças tinham sido medicadas com calmantes, mas era evidente que ainda estavam muito abaladas. John Dutton, de 10 anos, também dormia em seu quarto. Havia acordado ao sentir alguma coisa perto de si, mas isso era tudo de que conseguia se lembrar. – Um cheiro? Um som? – sugeriu Sean. O garoto sacudiu a cabeça em negativa. Nenhum dos dois sabia dizer em que parte da casa Willa teria estado. John achava que com sua mãe, no andar de baixo. A irmã caçula achava ter ouvido Willa na escada, indo para o segundo andar, minutos antes de ser atacada. Sean lhes mostrou a sequência de letras deixadas no corpo da mãe, mas nenhum dos dois reconheceu seu significado. As perguntas habituais sobre estranhos rondando a casa, cartas esquisitas no correio ou telefonemas estranhos também não levaram a lugar nenhum. – Vocês têm alguma ideia de por que sua mãe queria falar comigo? Ela comentou algo a respeito disso?
Ambos sacudiram a cabeça. – E o pai de vocês? Algum de vocês o viu na noite passada? – Papai estava fora da cidade – respondeu Colleen. – Mas ele voltou ontem à noite – observou Michelle. – Eu não vi – disseram John e Colleen ao mesmo tempo. A garotinha queria desesperadamente saber se Willa voltaria. – Vamos fazer todo o possível – prometeu Michelle. – E somos muito bons no que fazemos. Mais tarde, quando deixavam a família Dutton e iam embora, Michelle perguntou a Sean: – E agora? – Recebi uma mensagem de Jane. Tuck vai nos receber. – Podemos falar com todo mundo, mas se não tivermos acesso à cena do crime e ao material da perícia, não teremos muitas chances. – O que aconteceu com a Senhora Otimismo? Michelle lançou um olhar pelo retrovisor. – Ficou naquela casa. As crianças estão arrasadas. – É claro que estão. Mas ficarão ainda mais se não encontrarmos Willa.   No hospital, dois agentes do Serviço Secreto montavam guarda diante da porta do quarto de Tuck, mas eles tinham sido notificados da visita de Sean e Michelle, que prontamente obtiveram autorização para entrar. Tuck estava sentado na cama e parecia grogue. Uma bolsa de soro com medicamentos pendia de um pedestal ao lado da cama e um tubo intravenoso ia até o seu braço. Sean apresentou Michelle e pôs a mão sobre o ombro do homem. – Sinto muito por Pam – disse. As lágrimas escorreram pelo rosto de Tuck. – Eu não consigo aceitar. Não consigo aceitar que ela tenha morrido. – Nós acabamos de ver John e Colleen.
– Como eles estão? – perguntou Tuck, endireitando-se na cama, ansioso. – Bem, na medida do possível – respondeu Sean diplomaticamente. – E Willa? Alguma notícia? Sean lançou um olhar para Michelle, puxou uma cadeira e sentou ao lado da cama. – Não. O que você pode nos contar sobre o que aconteceu naquela noite? Michelle chegou mais perto: – Pense com calma. Não tenha pressa. Conforme esperavam, não havia muito o que Tuck pudesse acrescentar. Ele estava em seu quarto quando ouviu um grito. Tinha corrido para a porta e então alguma coisa o acertara na cabeça com violência. – Os médicos disseram que tive uma concussão bastante séria, mas que não vai causar danos permanentes. – A que horas as coisas aconteceram? – Eu tinha subido para trocar de roupa. Estava vindo de uma reunião fora da cidade. Cheguei tarde em casa. – A que horas mais ou menos? – Um pouco depois das 23h. – Nós chegamos lá às 23h30 – disse Sean. Tuck pareceu confuso: – Vocês foram lá? Sean levou um minuto para explicar. – De onde você estava voltando? – Jacksonville. – E voltou para casa dirigindo o Mercedes? – Foi. Como sabe? – Você foi direto para casa? Sem paradas? – Sim, por quê?
– Bem, se alguém o estivesse seguindo, você poderia ter notado alguma coisa se tivesse parado. – Por que alguém me seguiria? – O que Sean está querendo dizer é que, seja lá quem for que atacou sua família, poderia ter seguido você até a casa. – Você quer dizer que foi um crime aleatório? – O cara vê alguém num Mercedes novo e segue a pessoa. Não é nada tão incomum, Tuck. O homem cobriu o rosto com uma das mãos. – Meu Deus, não consigo acreditar nisso. – Você se importa se eu perguntar a respeito de que era a reunião? Tuck retirou a mão do rosto lentamente. – Nada de muito emocionante. Você sabe que presto serviços na área de defesa. Temos um pequeno escritório em Jacksonville. Minha companhia é subcontratada por um grupo que trabalha num projeto de biodefesa para o Departamento de Segurança Interna. Estávamos apenas dando uma ajeitada em nossa proposta. – E você voltou para casa bem a tempo de levar uma pancada na cabeça – disse Michelle. – Eles me contaram sobre Pam – Tuck falou vagarosamente. – Sobre como ela morreu. – Quem contou? A polícia? – Os homens de terno. FBI, eu acho. Minha cabeça ainda não está funcionando direito. Desculpem. Fizeram a ele as mesmas perguntas que tinham feito às crianças e ouviram as mesmas respostas que não ajudaram em nada. – Foi um dia especial para Willa. – Tuck deu um sorriso pálido. – Ela teve uma festa de aniversário em Camp David. Quantas crianças têm uma chance dessas? – Não muitas – concordou Michelle. – Pena que você não tenha podido ir. – Foi a primeira vez que perdi um aniversário dela. E a oportunidade de ir a Camp David também. Nunca estive lá.
– É bastante rústico – disse Sean. – Então quer dizer que a primeira-dama tem um papel importante na vida de Willa? – Ah, sim. Quero dizer, dentro do que a agenda dela permite. Às vezes não consigo acreditar que ela seja casada com o presidente. Que diabo, não consigo acreditar que eu seja cunhado dele. – Mas vocês dois sempre foram unidos? – Sempre. E também gosto muito de Dan. Até votei nele. – Tuck conseguiu dar um sorriso antes de conter um soluço. – Não consigo compreender por que alguém faria uma coisa dessas, Sean. – É um assunto em que ninguém quer tocar, Tuck – respondeu ele. – Você quer dizer que está relacionado a Dan e Jane? – Todo mundo sabe que vocês são da família. E vocês são um alvo muito mais fácil. – Mas se for esse o caso, o que eles querem? Se for dinheiro, o presidente não pode pegar do Tesouro Nacional e pagar um resgate. Sean e Michelle trocaram um olhar enquanto Tuck os observava, seus olhos indo de um para o outro. – Ele não pode, certo? – Vamos nos concentrar apenas nos fatos, Tuck. Teremos tempo de sobra para especulações. – Nós não temos tempo, Sean. E Willa? Eles estão com minha filha. Ela poderia ser... Agitado, ele se ergueu na cama. Sean delicadamente o empurrou de volta. – Olhe, Tuck, o FBI está investigando este caso e nós também vamos fazer tudo o que pudermos. O que precisamos agora é que todo mundo fique calmo e nos diga o que sabe. Sean mostrou uma cópia das letras escritas nos braços de Pam. – Sabe o que é isto? – Não. Por quê? – O FBI não lhe fez perguntas a respeito? – Não. Que diabo é isso?
– É o que estava escrito nos braços de Pam com uma caneta preta.
– Ah, meu Deus. É algum tipo de seita ou coisa assim? É disso que se trata? – O rosto de Tuck se alterou, passando da raiva ao terror. – Algum maluco com raiva do governo sequestrou Willa? A enfermeira entrou no quarto e disse em tom severo: – Vou ter que pedir para irem embora. Ele está ficando agitado demais. Michelle começou a protestar, mas Sean a cortou e disse: – É claro. Mil perdões. – Ele apertou o braço de Tuck. – Trate de pensar apenas em ficar bom. John e Colleen precisam muito de você. Tuck balançou a cabeça e se recostou na cama. Alguns minutos depois, Sean e Michelle entravam no carro. – Eu tenho uma pergunta – disse Michelle. – Só uma? Estou impressionado. – Por que Tuck estava fora da cidade no dia da festa de aniversário da filha em Camp David? Francamente, será que uma reunião em Jacksonville para dar uma ajeitada em uma proposta não podia esperar? Ou não poderia ter sido feita por videoconferência? E foi apenas impressão minha ou ele realmente queria saber se o presidente poderia pagar um resgate tirando dinheiro do Tesouro Nacional? – Ele também caiu na história do sequestrador fanático um pouco depressa demais. Por isso não perguntei a ele sobre Pam ter nos chamado, porque é possível que ela quisesse falar conosco a respeito de Tuck. – Então você desconfia dele? – Eu desconfio de todo mundo. Foi por isso que também não mencionei o fato a Jane Cox. – Gostei de sua tática para confirmar que ele foi direto para casa. Mas você acha realmente que tenha sido um crime aleatório? – Não, acho que não. – Então acha que tudo está ligado à família do presidente? – Achava até Tuck dizer aquilo.
– Aquilo o quê? – Que estava trabalhando em um projeto de biodefesa para o governo.
MAIS TARDE NAQUELE NOITE eles seguiram para a casa dos Dutton, mas não puderam entrar na rua deles, porque havia cones fechando a passagem. Na frente deles, radiopatrulhas e veículos do FBI estavam estacionados desordenadamente. Por trás daquele bloqueio temporário, a rua estava repleta de vans da polícia e da perícia forense. Impedidos por essa barreira, jornalistas ávidos corriam de um lado para outro com grandes microfones na mão, enquanto seus câmeras trotavam atrás deles. Havia vans de redes de notícias por todos os cantos, com suas antenas parabólicas apontadas para o céu. Também havia uma massa de curiosos tentando dar uma espiada no que estava acontecendo e tornando-se presa para os repórteres, que não tinham muito que fazer senão coletar comentários idiotas, uma vez que as autoridades não dariam entrevistas. – Lá se foi a ideia de darmos uma olhada no material da perícia – disse Michelle. Sean não estava ouvindo. Estava de olhos cravados na folha de papel em que havia escrito as letras encontradas nos braços de Pam Dutton. Tentava juntá-las de alguma forma que fizesse sentido. – Chaffakan, tayyi e hatka? – Chaffakan? Como Chaka Khan? Talvez eles sejam fãs de cantoras pop com nomes bacanas. – Quer falar sério, por favor? – OK, tayyi parece japonês ou chinês. Uma arte marcial ou uma técnica de relaxamento. – Ou que tal um código? – Se for, não temos a chave. Sean pegou seu telefone e passou a digitar na tela.
– O que você está fazendo? – O que todo mundo faz: pesquisando no Google. Ele esperou pelo resultado da busca e então começou a descer pela tela, examinando as respostas. Não parecia muito confiante. – Hatka pode ser uma atriz ou uma empresa de comunicação. E tayyi parece ter alguma coisa a ver com árabes no século VI, aparentemente grupos tribais. – Algo a ver com terroristas? – Não me parece. Vou tentar mais algumas combinações com essas letras. Ele foi pressionando as teclas digitais e obteve mais resultados, até que uma resposta chamou sua atenção. – Yi. – O que é que tem? – Tentei yi em vez de tayyi e veja só o que diz: “As origens do silabário yi se perderam no tempo, mas acredita-se que ele tenha sido influenciado pelo sistema de escrita chinês. Cada caractere representa uma sílaba. Era usado principalmente para escritos religiosos e secretos. É falado por milhões de pessoas nas províncias chinesas de Yunan e Sichuan.” – Então uma sociedade secreta religiosa chinesa com uma linguagem esquisita é responsável por tudo isso? – perguntou Michelle com incredulidade. – Mas as letras não são do alfabeto chinês. – Eu não sei. Estou apenas tentando encontrar alguma pista. – Ele digitou um número no telefone e levantou a mão quando Michelle começou a dizer alguma coisa. – Oi, Phil, aqui é Sean King. Certo, é verdade, faz muito tempo, eu sei. Olhe, estou de volta a Washington e tenho uma pergunta sobre um idioma. Isso. Não, não estou querendo aprender, mas tentando descobrir se algo é um idioma ou não. É, eu sei que não faz muito sentido. Olhe, você sabe de alguém que conheça uma língua chamada yi? Da China? Michelle tamborilou no volante enquanto ele falava.
– Sim, eu sei que não é uma das principais. Mas será que você poderia ver se alguém em seu departamento conhece? Obrigado, fico devendo esta. Ele deu seu número de telefone a Phil e desligou. Quando Michelle lançou-lhe um olhar inquisidor, ele explicou: – É um amigo meu que trabalha no departamento de línguas estrangeiras na Universidade Georgetown. Ele vai checar e me ligar de volta. – Ah, que bom. Ele olhou para ela aborrecido. – Você tem alguma ideia melhor? Ela estava a ponto de responder quando o telefone de Sean tocou. – É mesmo? – disse ele para a pessoa do outro lado da linha, então olhou para fora, pela janela. – Agora? Certo, tudo bem. Quando desligou, seu rosto demonstrava perplexidade. – Quem era? – Agente especial Waters, do FBI. Acabamos de ser oficialmente convidados a participar da investigação. – Caramba, Jane Cox realmente cumpriu o que prometeu – disparou Michelle.
WATERS FOI RECEBÊ-LO NA porta da frente. Era bastante evidente que ele tinha sido posto em rédeas curtas e não estava gostando nada daquilo. O agente os fez pôr calçados descartáveis e os instruiu a só andar por onde ele andava. Estava visivelmente se esforçando para falar de forma educada, mas sua voz saía como um rosnado. – Deve ser bom ter amigos influentes – disse ele enquanto subiam a escada para o andar dos quartos, depois de passarem pelo desenho do contorno do corpo de Pam Dutton no tapete da sala. – Você deveria experimentar, mas para isso teria que passar pela primeira fase, que é ter amigos – retrucou Michelle. Sean cutucou a parceira com o cotovelo quando eles se detiveram diante de um dos quartos. Waters abriu a porta. Sean e Michelle olharam ao redor, parados à soleira. Aquele era o quarto de Willa. Estava limpo e arrumado. Havia prateleiras cheias de livros e um laptop prateado fininho na escrivaninha. As palavras “Terra de Willa” estavam escritas numa parede que recebera um revestimento de quadro-negro. – John Dutton acha que Willa estava no andar de baixo com a mãe na hora do ocorrido. Mas Colleen acredita tê-la ouvido subir a escada – relatou Sean. – Foi a mesma coisa que eles nos disseram – respondeu Waters secamente. – Você sabe dizer qual das duas versões está correta? – Se Willa foi atacada na escada, não ficou nenhum vestígio disso por lá. O que a menina ouviu pode ter sido os passos dos sequestradores. – Algum sinal de arrombamento?
– Acreditamos que eles entraram na casa pela porta dos fundos. Não estava trancada. Lá também há uma escada que vem até o segundo andar. – Ele apontou para a esquerda. – Fica logo ali, descendo por aquele corredor. – Então a ideia é que os agressores entraram pela porta dos fundos e avançaram pela casa, quarto por quarto, da parte de trás para a da frente? – perguntou Michelle. – Doparam Colleen, depois John, nocautearam Tuck e depois mataram Pam e levaram Willa? – concluiu Sean. – Essa é uma teoria – disse Waters. – Por que também não doparam Tuck? Ele nos disse que abriu a porta do quarto e foi golpeado com alguma coisa. – Ele é um homem, não uma criança. Talvez não tenham querido se arriscar tentando dopá-lo. Uma pancada na cabeça era melhor. – Que droga eles usaram? – Os médicos colheram amostras dos resíduos nos rostos das crianças. Parece ser um tipo de anestésico líquido. – E a teoria de vocês é a de que Willa tenha sido o alvo desde o início? – perguntou Sean. – Não necessariamente. É possível que eles tenham encontrado Willa primeiro e a tenham agarrado. Pam Dutton entrou, viu o que estava acontecendo e começou a lutar para proteger a filha. Seria natural. Eles matam Pam e levam a menina. Sean sacudiu a cabeça. – Mas a sala fica na parte da frente da casa. Se eles entraram pelos fundos, como vocês suspeitam, e foram avançando de trás para a frente pelos aposentos, teriam encontrado primeiro Tuck, depois John e então o quarto de Willa, e por último o de Colleen. E só depois teriam chegado à parte da frente da casa. Se Willa estivesse no quarto, eles teriam chegado a ela antes de passar por Colleen. E não consigo acreditar que tenham matado Pam primeiro e depois se dado o trabalho de derrubar Tuck e dopar as crianças. – E ouvimos um grito quando chegamos – acrescentou Michelle. – Provavelmente de Pam. Os criminosos estavam na sala naquele momento. Tuck já tinha sido derrubado e as duas crianças, dopadas.
– Portanto, Willa provavelmente não estava no quarto – continuou Sean. – Talvez estivesse na sala. Ela era a mais velha, era o dia do aniversário dela: a mãe pode ter deixado que ficasse acordada até mais tarde ou tê-la chamado quando o pai chegou para que ele pudesse lhe dar os parabéns. Michelle retomou a sequência dos acontecimentos: – A mãe sai da sala, talvez vá até a cozinha para pegar alguma coisa, Tuck sobe para trocar de roupa. Talvez as duas crianças já estivessem dopadas. Eles nocauteiam Tuck, correm para a sala e pegam Willa. A mãe volta, vê o que está acontecendo, luta com eles e isso lhe custa a vida. – Mas o importante é que Willa era o alvo – acrescentou Sean. – Eles já haviam tido acesso às outras crianças. Pela expressão de Waters, o homem não havia pensado em nada daquilo antes. Com toda a confiança que conseguiu reunir, observou: – Ainda é cedo para afirmar qualquer coisa. O rosto de Michelle telegrafou ao parceiro sua opinião sobre aquela resposta: desculpa esfarrapada. – O legista já determinou quanto do sangue de Pam foi retirado? – Mais do que se esperaria apenas com aquele ferimento. – Quem é o legista? – Lori Magoulas. Você a conhece? – O nome não me é estranho. Alguma ideia de por que levariam sangue dela? – Talvez sejam vampiros. – E quanto ao material que foi encontrado sob as unhas dela? – Estamos analisando – respondeu ele sucintamente. – Impressões digitais? E quanto à ampola? – Devem ter usado luvas. Fizeram o serviço direito. – Nem tanto – disse Sean. – Eles perderam o controle de Pam e tiveram que matá-la, pelo menos é o que parece. – Talvez sim, talvez não – respondeu Waters, em tom evasivo.
– Vocês encontraram o Tundra? – Está licenciado em nome dos Dutton. Nós o encontramos numa área de floresta a cerca de dois quilômetros daqui. Foi jogado num barranco. Provavelmente para escondê-lo. – Algum sinal de para onde foram depois? – Ainda estamos examinando a picape em busca de vestígios. Deviam ter outro veículo por perto, mas não encontramos nenhum sinal. Estamos passando um pente-fino na vizinhança para descobrir se alguém viu alguma coisa. Mas, até agora, nada. – O agente fez uma pausa e olhou para Michelle: – Tem certeza de que eram dois sujeitos? – O motorista e um cara com uma submetralhadora. Vi o motorista através do para-brisa. Era alto. Homem, com certeza. Sean consultou o relógio. – Pelo tempo que já passou desde que ela foi levada e calculando a distância que o carro poderia ter percorrido em todas as direções, estamos facilmente falando de milhares de quilômetros. – De jatinho, eles poderiam estar em qualquer lugar do mundo – acrescentou Michelle. – Pelo que entendi, ainda não houve pedido de resgate. Waters se virou para encarar Sean. Pela expressão no rosto do homem, ficou claro que as rédeas já não o controlavam. – Sabe, andei pesquisando a seu respeito. Você ainda se incomoda com o fato de ter sido posto para fora do Serviço Secreto depois de fazer uma besteira que custou a vida de um homem? Deve ser uma coisa difícil de se lidar. Alguma vez já pensou em se matar por causa disso? Quero dizer, seria compreensível, sabe como é. – Olhe, agente Waters, sei que esta é uma situação desagradável. E sei que parece que lhe fomos enfiados goela abaixo... – Não, não parece. Vocês me foram enfiados goela abaixo – declarou ele. – Ótimo. Então vamos fazer um trato: se descobrirmos qualquer coisa ou encontrarmos uma pista, nós passaremos para você. Estou pouco me importando em ganhar manchetes de jornal com este caso. Só quero encontrar Willa, está bem?
Waters levou alguns segundos avaliando a proposta, até que por fim estendeu a mão para que Sean a apertasse. Só que, quando ele lhe estendeu a mão, o agente do FBI a retirou. – Não preciso que você me passe coisa nenhuma neste caso. Agora, há mais alguma coisa que você queira ver enquanto estou aqui bancando a babá para você e sua parceira? – Sim, que tal o seu cérebro? – retrucou Michelle com raiva. – Está com ele enfiado no rabo? – Essa competição inútil não nos ajuda a encontrar Willa – assinalou Sean. – Exatamente – concordou Waters. – Quanto mais tempo eu perder com vocês dois, menos tempo terei para trabalhar no meu caso. – Então não vamos desperdiçar mais o seu tempo – disse Sean. – Obrigado por nada. – Se importa se dermos uma olhada antes de sair? – Quando Waters pareceu pronto para recusar, Sean acrescentou: – Quero me certificar de que meu relatório para o presidente Cox esteja completo. E com certeza o informarei de como você foi prestativo. Se Waters tivesse empalidecido mais, os técnicos da perícia o teriam enfiado numa maca para transporte de cadáveres. – Ei, King, espere um minuto – disse o homem nervosamente. Sean já estava na escada. – Homens assim me deixam tão orgulhosa de ser americana – disse Michelle quando o alcançou. – Deixe para lá. Você se lembra bem da mala de Tuck, a que estava no quarto? – Azul-marinho, com rodinhas, leve, de poliéster comum. Ligeiramente esgarçada. Por quê? – Estava com a etiqueta da companhia aérea, então ela foi despachada. – E daí? Sean pegou rapidamente seu telefone e digitou alguns números. Esperou a tela carregar e depois procurou em mais algumas janelas.
– United, voo 567 de Jacksonville para o Dulles? – Isso. Ele examinou a tela. – É um voo que costuma chegar às nove e meia da noite. Tuck desembarca, busca a bagagem, pega o carro e dirige para casa. Quanto tempo você acha que teria levado? – Depende do portão em que ele desembarcou, porque isso determina se ele teve que usar transporte para ir para o terminal principal. Se tiver sido em um portão do terminal A, ele poderia ter ido a pé. Sean deu um telefonema rápido. Depois desligou. – Era do terminal A. – Então, não houve necessidade de transporte. E não devia haver muito tráfego àquela hora da noite. Eu diria que, no máximo, 30 minutos para chegar em casa. – Então digamos que ele tenha levado 15 minutos para pegar a mala, chegar ao carro e sair do aeroporto. Mais o percurso de carro, daria umas 22h15. Vamos arredondar: 22h30. – Se o avião tiver chegado no horário previsto. – Teremos que verificar isso. Mas, se chegou no horário, temos 30 minutos não explicados na vida de Tuck Dutton. Isso se acreditarmos no que ele disse sobre ter chegado em casa por volta das 23h. – Você acredita? – O sangue no rosto dele estava coagulado quando o encontramos, de modo que sim, acredito. – O que será que aquele homem andou fazendo?
SAM QUARRY TINHA IDO de carro até uma caixa de autosserviço da UPS para envio de encomendas e colocou nela seu pacote com as ampolas de sangue etiquetadas. Seriam enviadas para um laboratório em Chicago que ele havia descoberto usando a internet na biblioteca local. Estava mandando junto um envelope com postagem pré-paga para a resposta. Depois disso, havia dirigido mais de 150 quilômetros, deixando os limites do estado e entrando na Geórgia. Saiu da estrada e entrou numa parada de caminhões. Levava consigo seis pacotes, mas apenas um deles tinha importância: o que seria enviado para um endereço em Maryland. Nele estavam a tigela e a colher que Willa havia usado e a carta que ele datilografara. Estacionou seu carro e caminhou até o posto dos correios. Depois de se certificar de que não haveria câmeras de segurança por perto, colocou seus seis pacotes na caixa coletora. Não tinha ideia se as autoridades conseguiriam rastrear a origem do envio, mas presumia que sim. Portanto, os outros cinco embrulhos eram apenas para despistar, para o caso de alguém estar observando e mais tarde contar à polícia que um homem havia despachado uma caixa dali. Bem, esse homem não seria ele. Ele provavelmente seria lembrado apenas como um caminhoneiro que despachara várias encomendas para casa. Quarry dirigiu de volta para o Alabama, fazendo uma parada para comer alguma coisa antes de seguir adiante. Quando chegou a Atlee, a única luz acesa era a do quarto de Gabriel. – Gabriel? – chamou Quarry, batendo à porta. O garotinho a abriu: – Sim, seu Sam. – O que está fazendo acordado a esta hora? – Lendo. – Lendo o quê?
– Isto. Gabriel levantou o livro. Quarry pegou e olhou o título. – O diário absolutamente verdadeiro de um índio de meio expediente? – É muito bom mesmo. Faz a gente ter vontade de rir. E às vezes de chorar. E tem conversas de gente grande, sabe? Mas adoro o livro. – Mas você não é índio. – O livro não é sobre isso, seu Sam. Tem coisas que valem para todo mundo. Foi a moça da biblioteca que indicou. Um dia eu quero escrever um livro. – Bem, Deus sabe que você tem palavras de sobra nessa cabeça, porque às vezes elas saem mais depressa do que consigo acompanhar. – Quarry devolveu o livro. – Sua mãe já foi deitar? – Tem mais ou menos uma hora. Ficamos imaginando onde o senhor estava. – Precisei cuidar de alguns negócios. Quarry se apoiou no batente da porta, riscou um fósforo na madeira e acendeu um cigarro. – Viu o Kurt por aí ultimamente? – Não, senhor. Ele olhou para Gabriel franzindo as sobrancelhas espessas. – Acho que talvez tenha ido embora. Gabriel pareceu surpreso: – Mas por quê? Para onde poderia ir? Quarry bateu de leve com o cigarro na porta e a cinza caiu no chão. – Todo mundo tem algum lugar para onde ir. Algumas pessoas demoram mais a descobrir qual é. – Acho que o senhor tem razão. – Se alguém perguntar, acho que podemos responder isso. Mas que droga! Ele era como se fosse da família. Você nunca me faça uma coisa dessas, ir embora sem falar comigo antes, está bem? Gabriel pareceu chocado com a ideia:
– Se algum dia eu for embora, seu Sam, o senhor vai ser o primeiro a saber, logo depois de minha mãe. – Bom garoto. Continue lendo, Gabriel. Você tem que estar bem preparado. O mundo vai lhe dar uma chance, mas só uma. O resto depende de você. Se perdê-la, perdeu. – O senhor me diz isso desde sempre. – Vale a pena repetir os bons conselhos. Sam Quarry caminhou pesadamente para seu quarto. Ficava no último andar e outrora pertencera a seus pais. Arrumação nunca tinha sido um dos pontos fortes dele, embora Ruth Ann e Gabriel fizessem o possível para manter minimamente organizada cada pilha de coisas. A esposa de Quarry, Cameron, morrera havia três anos. Tinha sido a maior perda de sua vida (e ele sofrera muitas). Sam não dormia na cama desde a morte dela. Passara a usar um sofá comprido e caindo aos pedaços, com mais de um século de uso, que ficava encostado em uma parede. Tinha conservado muitos dos objetos da esposa no banheiro e Ruth Ann os espanava religiosamente, embora nunca mais fossem ser usados. Ele talvez devesse ter vendido Atlee há muito tempo. Mas não poderia. Cameron amava aquele lugar. Desfazer-se dele significaria romper o vínculo com ela. Ele seria incapaz disso, do mesmo modo que não conseguiria matar o próprio filho. Embora o assustasse pensar em como tinha chegado perto de fazer isso. Era a herança de loucura dos Quarry. Aumentava com o passar do tempo, dia a dia, ano a ano, como ramificações de um tumor infiltrando-se em seu cérebro. Acomodou-se no sofá e pegou uma garrafa de gim. Antes de tomar um gole, contudo, mudou de ideia, levantou-se, calçou as botas e apanhou de novo as chaves da picape que deixara sobre uma mesa de pernas bambas. Dois minutos depois estava de volta à estrada, olhando para um céu tão salpicado de estrelas que a noite parecia dia. Ele baixou a janela, botou uma música para tocar e bebeu seu gim. O calor da noite do Sul bateu em seu rosto. Detestava ar-condicionado. Nunca tivera um, nem em casa nem no carro. Um homem tinha que suar. Fugir do suor era o mesmo que fugir daquilo que nos torna humanos.
A velha picape deixou 30 quilômetros para trás, saindo da terra batida para o cascalho e depois para o calçamento, e foi quicando sobre o asfalto aquecido e amolecido pelo calor do dia. E então ele chegou. Já estivera ali milhares de vezes. Cada visita era igual e ao mesmo tempo diferente. Conhecia todos ali pelo nome. O horário de visitas tinha acabado havia muito tempo, mas ninguém se importava – ele era Sam Quarry. Todo mundo o conhecia porque todo mundo conhecia Tippi Quarry. O nome era uma homenagem à atriz Tippi Hedren, do filme Os pássaros, que Cameron adorava. A filha caçula deles, Suzie, a que havia se casado com um negro e se divorciado, agora morava na Califórnia. Sam não sabia ao certo o que ela fazia por lá, mas tinha certeza de que, se soubesse, desaprovaria. Daryl era o caçula do casal, seu bebê. Só que meu bebê matou uma mãe de três filhos. Nenhum dos outros dois filhos, no entanto, tivera o mesmo fim de Tippi. Desde que chegara, ela nunca mais pusera os pés fora dali. E jamais poria. Acabara de fazer 36 anos no último mês. Estava ali havia 13 anos, oito meses e 17 dias. Sam sabia disso porque marcava a passagem do tempo em um calendário mental, como se riscasse os dias que ainda lhe restavam na Terra. E, de certa maneira, era o que estava fazendo. As longas pernas de Quarry o conduziram automaticamente ao quarto de sua filha mais velha. Abriu a porta como tantas vezes antes. Estava escuro. Ele se dirigiu à cadeira em que havia se sentado por tanto tempo que gastara a tinta. O tubo para passagem de ar estava preso ao pescoço dela, um procedimento comum em casos de tratamento prolongado, porque, entre outros motivos, era mais fácil de manter limpo do que quando inserido na garganta. Uma máquina ligada a ele bombeava ar, mantendo os pulmões de Tippi inflados. A tela que monitorava os sinais vitais emitia seus bipes. Um tubo saía de um balão de oxigênio preso na parede e seguia em direção às narinas de sua filha. Um aparelho computadorizado controlava o fluxo de medicação e nutrientes que ela recebia por via intravenosa através de uma abertura feita em sua pele, perto da clavícula. Quarry tinha um ritual. Acariciava o cabelo que se espalhava pelo pescoço e sobre o ombro de Tippi. Quantas vezes tinha enrolado aquele cabelo ao redor do dedo quando ela era pequena? Depois lhe tocava a testa, uma testa que havia se franzido quando dera banho na filha ainda bebê. Então lhe dava um beijo no rosto. Quando ela era criança, sua pele era lisa e suave ao toque. Agora estava murcha, ressequida e áspera, muito antes do que deveria. Concluído o ritual, ele tomou a mão de Tippi, sentou-se e começou a falar com a filha. Enquanto fazia isso, sua mente voltou às palavras que os médicos tinham dito a ele e Cameron: Perda excessiva de sangue. Falta de oxigenação no cérebro. Coma. E finalmente: Irreversível. Eram palavras que nenhum pai jamais quisera ouvir. Ela não estava morta, mas estava tão perto disso quanto era tecnicamente possível, respirando com a ajuda de aparelhos e de medicamentos caros. Ele tirou o livro do bolso do paletó e começou a ler para ela sob a luz do abajur que havia acendido na mesa de cabeceira. O livro era Orgulho e preconceito. A obra mais famosa de Jane Austen tinha sido a favorita da filha desde que ela o encontrara nas prateleiras de Atlee, quando ainda era uma adolescente cheia de vida. Seu entusiasmo pela história levara Quarry a lê-la também, na verdade várias vezes. Antes que Tippi acabasse ali, Sam via a filha como uma Elizabeth Bennet da vida real. Elizabeth era a personagem principal de Orgulho e preconceito, uma jovem inteligente, sagaz e cheia de vida. Depois que Tippi fora para aquele lugar, Quarry reavaliara o alter ego da filha na história e chegara à conclusão de que ela era na verdade mais parecida com a irmã mais velha de Elizabeth, Jane Bennet: doce, tímida e sensível, mas não tão perspicaz quanto a outra. Seu traço mais marcante era sempre ver o lado bom de todos. Isso a levara à felicidade na história de Jane Austen, mas fora devastador para Tippi Quarry na vida real. Uma hora mais tarde, ele se levantou e disse o que sempre dizia. – Descanse bem, querida, papai não vai demorar a voltar. Eu amo você, filhinha.
Quarry dirigiu de volta para Atlee. Deitado no sofá tomando seu gim, a última imagem fugaz que viu antes de adormecer foi a de Tippi jovem e sorrindo para ele.
O VOO DE TUCK DUTTON não havia atrasado. Na verdade, chegara 20 minutos antes do horário por ter saído um pouco mais cedo de Jacksonville e conseguido rapidamente a autorização de aterrissagem da torre de Dulles. As malas despachadas também tinham chegado dentro do tempo previsto. – Portanto, ele teve no mínimo 50 minutos livres, em vez de 30. Talvez até mais de uma hora – observou Michelle. Ela e Sean estavam sentados numa cafeteria em Reston, perto do escritório, tomando uma xícara de café na manhã seguinte. Para se livrar do assédio da imprensa, Sean dera uma declaração que não dizia muito, mas que lhes dava algum tempo para respirar. Depois disso, não tinham voltado para o escritório e se hospedaram em um hotel, só para o caso de os repórteres voltarem a atacar. – Exato. – Você acha que ele está envolvido? – Se está, por que simplesmente não se manter fora dos acontecimentos? Por que voltar e levar uma pancada na cabeça? – Para desviar as suspeitas. – Motivo? – É espantosamente comum um marido matar a esposa – disse Michelle. – O que é o único motivo de que eu preciso para nunca querer chegar ao altar. – E Willa? Michelle deu de ombros. – Talvez seja parte do plano. Sequestrar Willa, para depois a descobrirmos em algum lugar, sã e salva. – É de presumir que tudo isso tenha custado um bom dinheiro. Deve haver algum registro.
– Seria bom se pudéssemos dar uma olhada nas finanças de Tuck – disse Michelle. – Sei onde fica o escritório dele. – Vamos até lá agora? – Depois de nos encontrarmos com a legista. Falei com ela. Acabou de fazer a autópsia de Pam Dutton. – Então você de fato a conhece? – Sou apenas um sujeito simpático. – Isso é o que me assusta. Lori Magoulas tinha cerca de 45 anos, era baixa e um pouco atarracada, o cabelo louro oxigenado preso num rabo de cavalo. Depois que Sean apresentou Michelle, Lori disse: – Fiquei surpresa de saber que está por aqui, Sean. Pensei que fosse se perder lá naquele seu lago. – Washington tem uma atração irresistível, Lori. Lori não pareceu se convencer. – Entendi. Mal posso esperar para dar o fora daqui e encontrar o meu lago. Ela os conduziu por um corredor azulejado onde pessoas com roupas cirúrgicas examinavam cadáveres. Eles se detiveram diante de uma mesa de metal na qual jazia Pam Dutton, seu corpo marcado para sempre pelo corte na garganta e pela incisão em Y que Lori fizera. – O que você descobriu? – Ela estava bem de saúde. Provavelmente teria muitos anos de vida pela frente se não fosse por isso – disse, apontando para o pescoço estraçalhado da mulher. – E a quantidade de sangue? A legista foi até um laptop numa escrivaninha ao lado da mesa de metal e examinou alguns números na tela. – Levando em conta o que ficou no tapete e nas roupas, calculo que falte em torno de meio litro. – Presumivelmente levado pelos sequestradores?
– O ferimento foi na região da bainha carótica. Abriu a artéria carótida e a veia jugular esquerdas. Num caso assim, a perda de sangue causa a morte em poucos minutos. – O que você imagina que tenha acontecido? – perguntou Michelle. – A julgar pelo ângulo do ferimento e pelos vestígios sob as unhas, eu diria que ela foi agarrada pelas costas e então sua garganta foi cortada. Ela deve ter estendido as mãos para trás e enterrado as unhas no rosto do agressor. Encontramos uma boa quantidade de pele e sangue sob as cutículas, portanto ela deve ter ferido bastante o sujeito. Provavelmente o deixou furioso. – Tem certeza de que foi um homem? – perguntou Sean, provocando uma careta de Michelle. – Também encontramos pelos de barba com o sangue e a pele. – Estava apenas confirmando – disse Sean para sua parceira. – Então, se a jugular e a carótida esquerdas foram cortadas, significa que o agressor provavelmente era destro, se ele atacou por trás. – Exatamente. – Ela pegou uma pequena garrafa plástica. Dentro dela havia vários fios de um material preto. – Encontrei alguns sob as unhas do polegar direito e do indicador esquerdo dela e mais outro preso no cabelo. Michelle estreitou os olhos para examinar o material dentro da garrafa. – Parece náilon. – De uma máscara? – sugeriu Sean. – O sujeito que eu vi estava com uma máscara preta – disse Michelle. – Pam estende as mãos para trás, lanha o rosto dele e fica com o náilon sob as unhas. – Você viu mais alguma coisa? – perguntou Lori. – Na verdade, não. Sou muito observadora, mas o sujeito estava atirando em mim com uma MP5. Por poucos centímetros não me acertou em vez de na árvore. Achei que seria mais inteligente me manter viva do que tentar identificá-lo. Com os olhos arregalados, Lori a encarou: – Parece uma boa escolha.
– Descobriram alguma coisa com relação às letras escritas nos braços dela? – perguntou Sean, indicando-as. Agora as letras estavam mais difíceis de ler, por causa da descoloração da pele de Pam, que se decompunha. A pele morta parecia estar absorvendo a tinta. Em vez de letras, elas agora pareciam ser alguma doença de pele, ou símbolos de algum tipo bizarro de catalogação humana. – Sou patologista, não linguista. É tinta preta, provavelmente de uma caneta de ponta grossa comum. A escrita foi feita em maiúsculas e a letra, na minha humilde opinião, não é das melhores. Sou fluente em espanhol, mas isto não é espanhol. Não é nenhuma língua latina. E obviamente não é chinês nem russo. O alfabeto seria outro. – Talvez uma língua tribal africana? – sugeriu Sean. – Também não creio que teriam usado o nosso alfabeto. Talvez esses símbolos não signifiquem nada e tenham sido feitos para nos deixar confusos. – Certo, mais alguma coisa interessante? – perguntou Sean. – Sim, esta senhora tinha cabelos realmente muito vermelhos. Já fiz autópsias em muitas ruivas, mas ela leva o prêmio. Quase precisei pegar óculos escuros para conseguir trabalhar. – E de que modo isso é relevante para a investigação? – perguntou Michelle. – Ele não me perguntou sobre coisas relevantes, perguntou sobre detalhes interessantes. – E acrescentou com um sorriso: – Até os legistas precisam levar as coisas na brincadeira de vez em quando, senão a vida pode ficar bastante deprimente. – Certo – disse Sean. – Vou reformular a pergunta. Mais algum coisa relevante? – A mulher teve filhos. – Nós sabemos disso. – Duas cesarianas. Ela indicou as cicatrizes paralelas à base da incisão em Y na barriga de Pam. Pareciam zíperes desbotados. – E um terceiro de parto normal – comentou Sean. – Impossível – contrapôs Lori.
– O quê? – espantou-se Sean. – O exame visual mostrou que os ossos pélvicos tinham uma configuração incomum e que o canal de parto era anormalmente estreito. Os raios X confirmaram. E embora seja difícil afirmar na autópsia, ela parece ter tido uma malformação da articulação sacroilíaca; provavelmente nasceu assim. Para ser bem franca, nenhum obstetra teria aceitado fazer um parto normal nessa senhora, a menos que quisesse perder o registro de médico. Seria arriscado demais. Os partos tinham que ser por cesariana. Ela olhou para Sean e Michelle, que mantinham os olhos cravados na barriga de Pam Dutton, como se a resposta que desejavam pudesse sair dali. – Isso é relevante? – perguntou a legista, olhando curiosa para eles. Sean finalmente afastou o olhar das velhas cicatrizes cirúrgicas e da incisão mais recente. – Digamos que é interessante.
UMA HORA DEPOIS ELES chegavam ao estacionamento de um prédio de dois andares no condado de Loudon. – Como você sabe onde ele trabalha? – perguntou Michelle. – Sou amigo da família. – Ele fez uma pausa. – E peguei um cartão de visitas no quarto de Tuck. – Então uma das crianças não era de Pam. Mas qual delas? – Pam é ruiva e Tuck é louro. Willa tem cabelo bem escuro. As outras crianças são louras. – De modo que, mesmo que seja um gene recessivo, o cabelo ruivo era relevante. – E interessante. Sean e Michelle entraram no prédio e se encaminharam para a mesa da recepcionista. – Meu nome é Sean King. Esta é minha parceira, Michelle Maxwell. Estamos trabalhando para Tuck Dutton nessa tragédia que aconteceu com a família dele. – Ah, meu Deus, eu sei, todos nós ouvimos a notícia – disse a recepcionista, uma moça de cabelos castanhos curtos e grandes olhos tristes. – Foi horrível. Como ele está? – Não muito bem, na verdade. Ele pediu que viéssemos ao escritório para buscar algumas coisas. – Espero que ele não esteja preocupado com os negócios em um momento como este. Sean se inclinou para mais perto. – Acho que é a única coisa que o está mantendo de pé. Acabamos de vir do hospital.
– O senhor disse que estão trabalhando para ele. São advogados? Sean apresentou suas credenciais: – Investigadores particulares. Estamos tentando descobrir quem fez isso e trazer Willa de volta. – Ah, meu Deus, tomara que consigam. Willa veio aqui algumas vezes. É uma garotinha fantástica. – Com certeza – disse Michelle. – E em casos de sequestro, o tempo é da maior importância. Por isso Tuck pediu que déssemos uma olhada no que ele estava trabalhando e que pudesse estar ligado ao caso. Ela pareceu incomodada. – Ah, compreendo. Bem, muitas coisas em que o Sr. Dutton estava trabalhando são, hum, confidenciais. Sabe, material de acesso restrito. Sean sorriu. – Eu compreendo perfeitamente. Ele nos avisou. Talvez haja alguém que possa nos ajudar, não? A mulher sorriu, visivelmente aliviada por transferir a responsabilidade para outra pessoa. – Com certeza. Deixe-me ligar para o Sr. Hilal. Ela pegou o telefone e, alguns minutos depois, um homem alto, magro e calvo, de 40 e poucos anos, apareceu no lobby. – David Hilal – apresentou-se. – Em que posso ajudar? Sean explicou quem eram e por que estavam ali. – Compreendo. – Hilal esfregou o queixo. – Vamos entrar e conversar. Sean e Michelle o seguiram até seu escritório. O homem fechou a porta e sentou-se de frente para eles. – Como está Tuck? – Fisicamente, ele vai se recuperar – afirmou Sean. – A parte emocional é outra história. – Foi uma coisa horrível. Nem acreditei quando soube.
– Sei que a sua firma está envolvida em trabalho de biodefesa. Tuck nos disse que vocês estavam bem no meio de uma concorrência para um contrato importante com o governo. – Exato. Somos subcontratados nessa concorrência. Mas se ganharmos, será um negócio muito expressivo para nós. Equivalente ao valor que costumamos obter em anos de trabalho. Tuck estava dedicando todo o seu tempo a isso. Assim como o restante da equipe. – E foi por isso que ele foi a Jacksonville no dia do acontecido? – É... isso mesmo – respondeu Hilal com hesitação. – Foi por isso ou não? – provocou Michelle. Hilal pareceu constrangido. – Esta empresa na verdade é de Tuck. Sou apenas um sócio. – Estamos trabalhando para ele – disse Sean. – Só queremos saber a verdade, descobrir quem matou Pam Dutton e encontrar Willa. Imagino que também seja o desejo de Tuck. – Isso é um tanto desconfortável – comentou Hilal. – Sinceramente, não é da minha conta. Michelle se inclinou para a frente, batendo com o dedo no tampo da mesa de Hilal: – Estamos falando da vida de uma criança. Hilal deixou seu corpo arriar na cadeira. – Bem, acho que Tuck estava acompanhado em Jacksonville. – Acompanhado? Ele disse que estava no escritório da firma trabalhando nessa proposta. Não é verdade? – De fato temos um escritório lá. Mas só há uma pessoa trabalhando nele, uma mulher. Sean e Michelle trocaram olhares. – E essa mulher tem nome? – perguntou Sean. – Cassandra. Cassandra Mallory. Ela está trabalhando na proposta. Foi contratada há cerca de seis meses. Tem excelentes contatos no Departamento de Segurança Interna. Muita gente gostaria de tê-la na equipe. – Porque ela podia ajudar a conseguir negócios?
– Fazer negócios com agências do governo não é diferente de negociar com outros setores. É preciso ter bons relacionamentos e inspirar confiança para fechar um contrato. Os federais gostam dessa familiaridade. O fato de Cassandra fazer parte de nossa equipe nos ajudaria enormemente. – E Tuck fica lá com ela. Está sugerindo que há mais que interesse profissional nisso? – Ela é uma mulher muito atraente. Muito inteligente. Loura, bronzeada, gosta de usar saias curtas – acrescentou Hilal em tom constrangido. – Ela e Tuck se dão muito bem. O ponto forte dela não é a questão técnica, mas a área de vendas. Ela sabe vender. Qualquer coisa. Sean se inclinou para a frente. – Tuck estava tendo um caso com essa mulher? – Se está perguntando se tenho alguma prova disso, não tenho. São apenas indícios. Como, por exemplo, as visitas frequentes dele. Ou coisas que ouvi. – Então nada de concreto? – perguntou Michelle. – Houve algumas contas de cartão de crédito que chegaram há cerca de um mês. Eu sou o diretor financeiro não oficial aqui. Examino as contas e assino os cheques. – De que eram as despesas? – Só achei estranhas as despesas de Tuck por lá. – Tipo flores, bombons ou lingerie para a bela Cassandra? – perguntou Michelle. – Não, você me compreendeu mal. O estranho não foram os gastos que ele incluiu no cartão de crédito, foram os que não incluiu. – Não estou entendendo – disse Sean. – Não houve despesa de hotel. Sean e Michelle trocaram outro olhar. – Talvez ele tenha usado outro cartão – sugeriu Michelle. – Ele sempre usa o da empresa. Em contratos do governo, é preciso ser muito meticuloso com despesas e cobranças. Para gastos relativos ao trabalho, nós só usamos esse cartão. Além disso, é nele que Tuck acumula os pontos que troca por passagens de avião e upgrades. Todos nós fazemos isso – acrescentou Hilal. – E ele sempre fica no mesmo hotel quando vai para lá. É simpático, mas não caro demais. E Tuck tem vantagens com o programa de fidelidade da rede de hotéis. Mas dessa vez ele ficou três noites e não houve despesas de hospedagem no cartão. – E Cassandra tem uma casa por lá. – Um apartamento com vista para a praia. Ouvi dizer que é muito bonito – acrescentou ele apressadamente. – E Tuck não poderia ter ficado na casa de outra pessoa? – Ele não conhece mais ninguém por lá. Só abrimos aquele escritório porque Cassandra morava lá e não queria se mudar para cá nem trabalhar de casa. Creio que existam regras na convenção do condomínio dela que proíbem isso. Além do mais, Jacksonville é uma área importante para negócios no setor de defesa e poderíamos conseguir outros trabalhos. Portanto, fazia sentido ter uma pequena base por lá. Sean se recostou na cadeira. – O que realmente achou quando soube do que havia acontecido com a família dele? – perguntou. – Sinceramente. Hilal deixou escapar um longo suspiro. – Não é segredo que Tuck e Pam não eram o casal mais unido do mundo. Ele tinha seus negócios e ela cuidava da casa e das crianças. Mas assassinar a esposa e sequestrar a própria filha? Tuck não é nenhum santo, mas não seria capaz disso. – Você acha que Pam desconfiava de que alguma coisa estivesse acontecendo? – Honestamente, não sei. Eu não tinha muito contato com ela. – Se ele quisesse dar um fim ao casamento, existem maneiras mais fáceis de fazer isso – assinalou Michelle. – Tudo bem. Então por que ele simplesmente não se divorciou? – perguntou Sean. Hilal tamborilou sobre o tampo da mesa. – Poderia ser complicado. – Como assim? – Eu disse que Cassandra entrou para nossa equipe há cerca de seis meses. Antes disso, ela trabalhava para o Departamento de Segurança Interna no setor de contratos. É a mesma agência da concorrência que estamos tentando ganhar. Foi o que eu quis dizer quando falei que ela tinha bons contatos. – De modo que, se Tuck tentasse se divorciar de Pam, talvez o caso se tornasse público? – O governo não gosta nem de imaginar que possa haver um conflito de interesses nessas concorrências. Se o contratado principal para quem estamos trabalhando soubesse que alguém de nossa empresa poderia estar tendo um caso com uma ex-funcionária do Departamento de Segurança Interna, teríamos um grande problema. Em circunstâncias normais, talvez não chegasse a causar o rompimento dos nossos negócios com eles, mas as circunstâncias aqui não são o que se chamaria de normais. – O que está querendo dizer? – perguntou Sean. – Tuck é cunhado do presidente. Todo mundo fica pisando em ovos com a possibilidade de parecer que há algum tratamento preferencial por causa disso. E alguém no governo poderia até pensar que havia alguma coisa entre eles antes de Cassandra deixar a agência. Aí talvez começassem a reavaliar nossos contratos anteriores. As coisas poderiam se complicar rapidamente. Já é um bocado difícil ganhar esse tipo de contrato. Os outros concorrentes exploram qualquer deslize. – Você se dá conta de que acabou de apresentar uma hipótese muito plausível para Tuck ter orquestrado toda essa história? – disse Sean. – Continuo não acreditando que ele faria uma coisa dessas com a própria família. Sean lançou um olhar sutil para Michelle, que ela traduziu imediatamente. – Temos mais algumas perguntas, Sr. Hilal. Mas, antes, será que tem um café por aqui? Talvez uma xícara também lhe faça bem. Hilal se levantou. – É claro. – Ele olhou para Sean. – Aceita? – Não, mas se puder mostrar onde fica o banheiro masculino, eu agradeço. Hilal os conduziu pelo corredor e indicou a Sean onde ficava o banheiro, depois seguiu para o refeitório com Michelle.
Em vez de entrar no banheiro, Sean voltou e entrou discretamente no escritório que ficava a duas portas do de Hilal. Tinham passado por ali ao chegarem e, como o nome na entrada indicava, era a sala de Tuck. O escritório era grande mas atulhado. Indicava claramente ser de uma pessoa que cuidava de muitas coisas ao mesmo tempo. Sean não perdeu tempo: foi direto para o computador sobre a mesa. Tirou um pequeno pen-drive do bolso. Nele havia um programa usado por agências de segurança para extrair dados de computadores sem ter de desligá-los e confiscá-los. Sean tinha conseguido uma cópia com um amigo do FBI. Ele encaixou o dispositivo, deu alguns cliques no mouse e o programa surgiu na tela. A base de dados no computador de Tuck era protegida por senha, é claro. O programa espião podia burlar qualquer software de segurança, mas levaria algum tempo, de modo que Sean decidiu optar por um atalho. Fez várias tentativas antes de se tocar. Digitou o nome Cassandra. Nada. Então tentou Cassandra1. Os portões digitais se abriram e, com alguns comandos de Sean, o programa começou a copiar para o pen-drive partes dos arquivos do disco rígido de Tuck Dutton.
QUANDO O JOVEM AGENTE do Serviço Secreto pegou a correspondência, sua atenção logo se voltou para o pacote. Não havia remetente e o endereço do destinatário havia sido escrito em letras de imprensa. Ele passou a informação para seus superiores e, menos de 30 minutos depois, um caminhão do esquadrão antibomba chegava à rua. Os peritos fizeram seu trabalho e, para felicidade geral, a vizinhança não desapareceu numa bola de fogo. Mesmo assim, o conteúdo do pacote se revelou bastante estranho. Uma pequena tigela com restos de cereal e de leite. Uma colher com uma crosta da mesma mistura. Um envelope contendo uma carta datilografada. Depois que os técnicos chegaram à conclusão de que não havia impressões digitais nem resíduos úteis na caixa, no envelope e nem na carta, os agentes voltaram a atenção para o conteúdo da carta. Chequem as impressões digitais da tigela e da colher. Descobrirão que pertencem a Willa Dutton. Nós estamos com ela. Ela está bem. Entraremos em contato em breve. A caixa tinha sido enviada para a casa da irmã de Pam Dutton em Bethesda, onde John e Colleen estavam sob a proteção do Serviço Secreto. Quando as digitais foram postas no computador e comparadas com os dados recolhidos no quarto de Willa, combinaram com perfeição. Contataram imediatamente os correios, na tentativa de rastrear de onde a encomenda havia sido enviada. O assunto recebeu prioridade máxima, entretanto, tudo o que conseguiram descobrir foi que o pacote tinha passado por Dalton, uma cidade no norte da Geórgia. Pelo menos fora lá que a entrega havia sido registrada.
Naquela tarde, Sean e Michelle foram chamados ao Departamento do Tesouro, que ficava no lado leste da Casa Branca e tinha uma estátua de Alexander Hamilton, o primeiro secretário do Tesouro do país, bem na entrada. Eles foram escoltados até o subsolo do prédio, onde entraram em um longo túnel que se estendia para oeste. Sean já tinha estado ali na época em que trabalhava na segurança da Casa Branca, mas para Michelle era a primeira vez. Enquanto passavam por portas fechadas ao longo do corredor, ele cochichou para ela: – Você nem imagina as histórias que eu poderia lhe contar sobre as coisas que aconteciam em algumas dessas salas. – Viu muito passarinho verde voar por aqui, foi? A primeira-dama os recebeu em seu gabinete na Ala Oeste. Usava calça preta, um suéter azul-claro e sapatos pretos, que apareciam sob a mesa. Parecia muito mais cansada do que da última vez em que a tinham visto. Sean ficou surpreso ao ver Aaron Betack mantendo-se discretamente ao fundo da sala. Não, “quase se escondendo” seria o termo mais apropriado. O homem parecia estar ali contra a sua vontade. Mas o que a primeira-dama queria ela geralmente conseguia. – Este é um daqueles momentos em que me arrependo de ter parado de fumar – disse Jane, enquanto, com um gesto, os convidava a sentar nas cadeiras diante dela. – Você não estava participando da campanha em Connecticut? – perguntou Sean. Ela assentiu distraidamente. – Tomei um avião de volta hoje cedo quando me falaram sobre a encomenda. Pedi ao agente Betack que viesse aqui para responder em nome do Serviço Secreto a quaisquer perguntas que tenham. Sean e Michelle olharam para Betack, que não pareceu nem remotamente interessado em lhes informar sequer que horas eram. Contudo, ele assentiu e tentou dar um sorriso, que mais pareceu uma careta de dor. – Ouvi dizer que o FBI não se mostrou nada cooperativo com seu trabalho – disse Jane. – Espero que isso tenha sido resolvido e que vocês não tenham encontrado má vontade por parte de nenhuma outra agência.
Havia apenas mais uma agência envolvida, a que estava representada pelo homem grandalhão de pé atrás dela, que corou ligeiramente ao ouvir suas palavras. – Todos vêm cooperando bastante – respondeu Sean rapidamente. – Sobretudo o Serviço Secreto. É uma situação estressante para todo mundo, mas eles têm nos ajudado em todos os momentos. – Excelente – disse Jane. Betack encarou Sean por um longo momento, então deu um ligeiro aceno de cabeça, agradecendo pela mentira. Jane Cox sentou à sua mesa e dedicou alguns minutos a explicar o que havia acontecido. Betack se encarregou dos detalhes mais técnicos sobre a entrega do pacote e seu conteúdo. – Então alguém está com ela – observou Michelle. – Disseram que ela está bem e que vão entrar em contato mais tarde. – Não temos ideia se ela está realmente bem – replicou Jane em tom áspero. – Poderia estar morta. – É preocupante que eles saibam para onde enviar a carta – observou Sean. Betack assentiu. – Nossa teoria é a de que eles podem ter pesquisado sobre a família e descoberto que a tia morava perto. Mesmo que as crianças não estivessem lá, o pacote acabaria chegando a nós. – Ou isso mostra que os sequestradores têm acesso a informações privilegiadas – disse Sean. Ele lançou um olhar incisivo para Betack. – Não estou sugerindo que venham do Serviço Secreto, mas poderiam existir outras fontes. – Você tem razão – disse Betack. – Vamos verificar isso. – Então o que fazemos agora? – quis saber Jane. – Conseguiram determinar de onde a encomenda foi postada? – perguntou Sean. – Dalton, na Geórgia – disse Jane. – Pelo menos foi o que o diretor do FBI me disse. Betack confirmou com um sinal de cabeça. – Certo, já é alguma coisa. Se a encomenda passou por um centro de processamento específico, então podemos determinar um raio para as buscas de acordo com os pontos de coleta postal que despacham para lá. Vai exigir muita mão de obra, mas é possível examinar a área. – O FBI já está cuidando disso – disse Betack. – Mas se eu fosse o sequestrador, saberia dessa possibilidade e dirigiria para bem longe de onde estivesse mantendo Willa para fazer a remessa – ponderou Michelle. – Dalton fica no norte da Geórgia – acrescentou Sean. – De carro, é uma distância relativamente pequena até o Tennessee, o Alabama, a Carolina do Norte e a do Sul. – O que torna a coisa difícil, mas não impossível – observou Betack. – E é uma das poucas pistas que temos. Sean notou que Jane olhava fixamente para uma fotografia que tinha nas mãos. Ela virou a foto para que todos vissem. Era um retrato de Willa montada num cavalo. – Ela tinha acabado de fazer 6 anos. Queria ganhar um pônei. Acho que toda criança um dia quer. Dan ainda estava no Senado na época. Nós a levamos a uma pequena fazenda perto de Purcellville, na Virgínia. Ela montou imediatamente neste animal e depois foi uma luta para a tirarmos de lá. A maioria das crianças teria ficado morta de medo. Ela lentamente largou a fotografia. – Uma menina corajosa – disse Sean baixinho. – Ela é corajosa e inteligente, mas é só uma criança – disse Jane em tom enfático. – O FBI já tem alguma ideia com relação ao motivo? – perguntou Michelle. – Não que eu saiba. Ela olhou para Betack, que apenas sacudiu a cabeça. – Falamos com Tuck e fomos até o escritório dele. – Descobriram alguma coisa útil? Sean se remexeu ligeiramente na cadeira antes de olhar pouco à vontade para Betack. – Talvez o assunto seja pessoal – explicou. – Posso me retirar se quiser, Sra. Cox – falou o agente.
Ela pensou por um instante e então aceitou. – Ótimo. Obrigada, agente Betack. O presidente e eu queremos ser informados imediatamente de qualquer novidade. Betack saiu e ela se virou para Sean. – O que quer dizer com pessoal? – Pam alguma vez lhe falou sobre problemas no casamento? – Por que pergunta? – disse Jane em tom incisivo. – Só quero cobrir todas as possibilidades – disse Sean. – Então, houve alguma coisa? Jane se recostou na cadeira e juntou as pontas dos dedos, fazendo um triângulo com as mãos, enquanto lentamente assentia. – Foi na festa em Camp David. Estávamos conversando sobre Tuck não estar presente. Sobre estar viajando a trabalho. Na verdade, não foi nada, mas... – Mas o quê? – Tive a impressão de que ela quis dizer alguma coisa e depois mudou de ideia. Fez um comentário casual sobre o jeito de ser de Tuck, disse que ele estaria de volta no dia seguinte. O que foi? – interrompeu-se ao olhar para os dois investigadores. Tanto Sean como Michelle tinham se inclinado para a frente em suas cadeiras. – Tuck deveria voltar no dia seguinte, depois do sequestro? – perguntou Sean. Jane pareceu insegura. – Sim. Creio que foi isso o que ela disse. Mas ele estava em casa naquela noite – emendou Jane, também inclinando-se para a frente. – O que está havendo? Sean lançou um rápido olhar para Michelle. – É possível que Tuck estivesse tendo um caso. Jane se levantou. – O quê? – Não sabia disso? – É claro que não, porque não é verdade. Meu irmão nunca faria uma coisa dessas. Que provas vocês têm disso?
– O suficiente para nos fazer querer investigar melhor. Jane se sentou de novo. – Isso é... inacreditável – murmurou e então ergueu os olhos. – Se acha que ele tinha um caso, não está sugerindo que... – Jane, não tenho como responder a essa pergunta. Pelo menos não por enquanto. Faz muito pouco tempo que descobrimos essa possibilidade. Estamos fazendo o máximo que podemos. – E nossa prioridade é recuperar Willa sã e salva – acrescentou Michelle. – É claro que esse é o objetivo. Foi a única razão por que pedi a ajuda de vocês. Jane pôs a mão trêmula sobre a testa. Sean não teve dificuldade em interpretar os pensamentos dela. – Quando se começa uma investigação, nunca se sabe aonde se vai chegar. A verdade às vezes dói, Jane. Está preparada para isso? A primeira-dama lhe lançou um olhar frio e rígido. – A verdade é que, a esta altura da vida, nada mais me surpreende. Encontrem Willa. As consequências não importam. Os três se viraram quando a porta foi aberta de repente. Sean e Michelle levantaram de um salto enquanto o presidente Dan Cox entrava no aposento, ladeado por dois agentes veteranos do Serviço Secreto. Ele sorriu e estendeu a mão. Dan Cox tinha mais ou menos a altura de Michelle, muitos centímetros mais baixo que Sean, mas seus ombros eram largos e o rosto, aos 50 anos, guardava mais vestígios da juventude do que marcas da meia-idade – o que era bastante surpreendente, considerando o tempo que ele havia passado sob os olhares impiedosos do mundo. Sean e Michelle apertaram a mão do homem. – Estou surpresa de ver você – observou Jane. – Cancelei os outros compromissos de hoje – respondeu Cox. – Meu pessoal não gostou muito, mas ser presidente tem lá suas vantagens. E quando se está com uma vantagem de 25 pontos nas pesquisas e seu adversário concorda mais do que discorda de você, um dia livre de vez em quando é razoável. E mesmo se estivéssemos atrás nas pesquisas, a segurança de Willa é mais importante. Jane deu um sorriso agradecido. – Eu sei que você sempre pensou assim. Cox foi até junto da esposa e lhe deu um beijinho no rosto, acariciando seus ombros antes de se virar para os dois agentes do Serviço Secreto. Seu olhar relanceou quase imperceptivelmente em direção à porta. Imediatamente os agentes se retiraram. Sean, que tinha notado o comando, refletiu: Quantas vezes um presidente me deu exatamente este olhar? – Jane me contou o que vocês estão fazendo – disse Cox. – Agradeço a vocês pela experiência e contribuição. Temos que fazer tudo o que pudermos para ter Willa de volta. – É claro, senhor presidente – respondeu Sean de forma automática. Cox se acomodou na ponta da mesa da esposa e fez um gesto indicando aos dois investigadores que se sentassem. – Fui informado sobre o pacote durante o voo. Peço a Deus que nos leve a algo positivo – disse. Então fez uma pausa antes de prosseguir: – A política não deve interferir nessa história. Farei tudo o que for possível para não permitir que isso aconteça. Contudo, a oposição controla o Congresso, de modo que não tenho poder absoluto na questão. Ele contemplou a esposa e sorriu ternamente. – Nem mesmo na minha casa tenho poder absoluto, o que é bom, porque a minha cara-metade é muito mais esperta do que eu jamais serei. O sorriso descontraído desapareceu. – Mas, oficialmente, é o FBI que comanda a investigação – ressaltou o presidente. – Alguns de meus conselheiros não acham prudente que eu peça um tratamento diferenciado para este caso, mas já disse ao diretor Munson, do FBI, que se trata de prioridade máxima. Cuidarei das repercussões políticas depois. Minha esposa confia em vocês para tratar do assunto, portanto eu também confio. Entretanto, embora vocês tenham acesso à investigação, preciso lembrá-los de que seu papel é de consultores privados. O FBI comanda.
– Compreendemos, senhor. – Eles têm sido muito prestativos – acrescentou Michelle, sem demonstrar uma gota do desdém que sem dúvida estava sentindo. – Ótimo. Fizeram algum progresso? Sean lançou um olhar rápido para Jane Cox. As feições dela estavam imperturbáveis, mas mesmo assim ele soube interpretá-las. – Ainda é cedo, senhor, mas estamos trabalhando o mais depressa e arduamente que podemos. A encomenda pode ser uma boa pista. Vamos ter esperanças de que nos leve a algum lugar. Acontece com frequência: os criminosos fazem contato e deixam escapar alguma informação. – Está bem. Cox se levantou. Sean e Michelle também. – Falo com você mais tarde, querida – disse o presidente. Um instante depois ele tinha ido embora, sem dúvida novamente ladeado pelos agentes silenciosos. Do lado de fora da Casa Branca, os poucos metros quadrados ao redor do presidente exigiam proteção máxima. Usando uma analogia com o futebol americano, alguns agentes se referiam a esse espaço como “zona vermelha”, a área onde a defesa nunca podia falhar. Havia camadas e mais camadas de seguranças a partir dali, como as cascas de uma cebola. Para chegar à etapa seguinte, o intruso tinha que passar pela barreira acima. A zona vermelha era a última muralha antes de se chegar ao presidente. Consistia em agentes muito bem treinados que tinham passado por toda sorte de provas para chegar àquele nível. Eles se posicionavam em torno do líder da nação formando um diamante. Um diamante bruto. Cada um desses agentes lutaria até o fim e não hesitaria em se colocar no caminho de um disparo mortal. Aquela era a camada que não podia ser vencida, porque era a última. Quando se tratava da segurança presidencial, nunca havia garantias de onde estivessem os inimigos ou de que os amigos eram realmente confiáveis. Exceto por um lugar – os aposentos particulares da família –, o Serviço Secreto estava sempre a um palmo do presidente.
Alguns minutos depois, Sean e Michelle estavam no túnel voltando para o Tesouro, com um fuzileiro usando uniforme de gala a conduzi-los. – Sempre quis conhecer o presidente – comentou Michelle. – Ele é um homem impressionante. Mas... A voz de Michelle se reduziu a um sussurro: – Mas você sempre o imagina no carro com aquela mulher? Ele fez uma careta, mas não respondeu. – Por que você não perguntou a Jane sobre as duas cesarianas e os três filhos? – Porque minha intuição me disse para não perguntar. E, no momento, minha intuição está me matando de medo.
SEAN BOCEJOU, RECOSTANDO-SE NA cadeira. Acabou seu café e levantou para ir buscar mais, enquanto Michelle continuava de olhos cravados na tela do computador. Estavam no apartamento dela, perto da região de Fairfax Corner. Enquanto do lado de fora carros e consumidores circulavam pela área comercial de luxo, os dois tinham permanecido no atravancado escritório da casa de Michelle, analisando detidamente os dados no monitor de seu Mac. Sean voltou e passou uma xícara de café fresco para a parceira. Levara muito tempo examinando os arquivos que retirara do computador de Tuck Dutton. Mas algumas informações interessantes tinham recompensado o esforço: o homem de fato havia se programado para voltar para casa na manhã seguinte à tentativa de sequestro, tinha o celular de Cassandra Mallory listado em seus contatos (Sean havia discado o número e desligado quando uma mulher atendeu) e também o endereço dela nos arquivos. – É provável que tenhamos que fazer uma visita – disse Michelle. – Se ela ainda estiver por lá. – Acha que ela está envolvida? – Difícil dizer. Não tenho dúvida de que havia alguma coisa entre eles. Ninguém usa o nome de uma colega de trabalho como senha de seu computador. Mas se ela sabia a respeito disso ou se Tuck estava realmente envolvido... – Ele deu de ombros. Ela lhe dirigiu um olhar confuso. – Não pensei que ainda duvidássemos do envolvimento de Tuck. Se ele não estava envolvido, foi uma baita de uma coincidência, não acha?
– Mas demos uma olhada nas finanças dele. Não há qualquer movimentação financeira que não seja justificada. Então, qual é, os sujeitos fariam o trabalho de graça? – Talvez ele tenha outra conta. O homem trabalha com contratos do governo. Vai me dizer que pessoas assim não têm dinheiro escondido em algum canto? – Mas se ele decidiu estar em casa, aparentemente foi coisa de última hora. Verifiquei com a companhia aérea. A reserva foi alterada no último segundo possível. – Como já conversamos antes, ele pode ter pensado melhor no assunto e chegado à conclusão de que teria um álibi mais forte estando em casa. Sean olhou pela janela. – Tenho a sensação de que estamos dando voltas sem chegar a lugar nenhum. Talvez os resíduos encontrados sob as unhas de Pam levem a uma identificação nos registros de algum banco de dados. – Espere um minuto! – disse Michelle, empolgada. – E se o resgate for o pagamento? Assim Tuck não precisaria ter mexido em nem um tostão e não haveria rastro de dinheiro para o FBI seguir. – Mas os caras fariam todo o trabalho em troca de uma mera possibilidade? Você sabe como esse negócio de sequestro é arriscado. O pagamento do resgate é problemático. Mesmo com transferências eletrônicas, sempre fica um rastro que pode ser seguido. Você recebe o dinheiro e então o FBI põe sua porta abaixo. Sean respirou fundo. – E ainda não temos ideia de por que tiraram sangue de Pam – acrescentou ele. – Então como vamos abordar isso com Tuck? – Vamos interrogá-lo mais um pouco, mas sem mostrar o que sabemos. – Talvez o amigo dele, Hilal, faça isso, alerte Tuck sobre o que sabemos. – Creio que não. Ele está mais é preocupado em não perder a tal concorrência. E não vai querer se meter nessa confusão com Tuck se ele for culpado. Acho que vai preferir manter distância.
– Então, se Pam não era a mãe natural de Willa, quem poderia ser?
– Talvez não tenha importância. – Mas você deu a entender que achava que Willa fosse a adotada. Achei que quisesse dizer que isso estava ligado à coisa toda de alguma maneira. – Willa tem 12 anos. Se isso tem qualquer ligação com ela, alguém levou muito tempo para tomar uma atitude. – Você se lembra de eles alguma vez terem mencionado o fato de Willa ser adotada? – Nunca. Eu imaginava que as três crianças fossem deles. – Tudo bem. E Jane Cox? – O que tem ela? – Ela sabe de nossas suspeitas. E se alertar o irmão? Antes que Sean pudesse responder, o telefone de Michelle tocou. – Alô. Ah, oi. Bill... O quê? – Michelle empalideceu. – Ah, meu Deus. Quando? Como? Michelle não disse nada durante cerca de um minuto, mas a respiração dela se acelerou. – Certo. Tudo bem. Vou estar no primeiro voo. Ela desligou. – O que houve? – Minha mãe morreu.
AS RODAS ROBUSTAS DO Cessna bateram contra a grama sobre a terra compactada, perderam velocidade e afinal pararam. Sam Quarry taxiou pela pista de pouso improvisada e, controlando os pedais, executou uma manobra bem-feita e virou o avião no sentido oposto. Ele saltou, enfiou a mochila no ombro e pôs os calços nas rodas do avião. Depois destrancou a porta externa da velha mina e seguiu pelo túnel, seu caminho iluminado pela lanterna de mão e pelo brilho baço das lâmpadas acima de sua cabeça. Alguns minutos depois, encontrou Carlos e Daryl. – Cuidaram do corpo de Kurt? – perguntou em tom sério. Daryl baixou o olhar, mas Carlos respondeu: – Nós o enterramos na mina sul. Fizemos uma prece e tudo mais. Tudo com o maior respeito. – Bom – aprovou Quarry, então lançou um olhar para o filho: – Aprendeu alguma coisa com isso, garoto? Daryl assentiu constrangido. – Nunca perder o controle. O tom de sua voz não deixava implícito que de fato tivesse aprendido algo. Quarry percebeu isso. Deu um tapa nas costas do filho e enterrou seus dedos fortes na pele dele. – Toda vez que pensar em perder a cabeça, trate de se lembrar do preço que Kurt pagou. Pense muito bem nisso. Porque vou lhe dizer: eu poderia facilmente ter deixado que Kurt sobrevivesse. E Carlos e ele poderiam ter rezado o pai-nosso diante da sua cova. Ouviu bem? – Ouvi, pai. Ouvi, sim. – Uma pequena parte de mim morreu com ele. Talvez mais que uma pequena parte. Eu me condenei ao inferno por toda a eternidade ao fazer aquilo. Pense nisso também.
– Pensei que o senhor não acreditasse em Deus – disse Daryl baixinho. Carlos apenas olhava, insondável exceto pelo fato de estar esfregando lentamente a medalha de São Cristóvão que usava pendurada no pescoço. – Posso não acreditar em Deus, mas com certeza acredito no diabo. – Está bem, papai. – Eu não crio muitas regras, mas espero que as que imponho sejam cumpridas à risca. É a única maneira de fazer com que essa merda funcione. Entenderam? – Sim, senhor – disse Carlos, que tinha parado de esfregar a medalha e a devolvera para debaixo da camisa. Quarry deixou os homens e seguiu adiante. Um minuto depois, estava sentado diante de Willa, que vestia calça de veludo e uma camisa de lã que Quarry lhe dera. – Tem tudo de que precisa? – perguntou Quarry. – Eu gostaria de ter alguns livros aqui – disse Willa. – Não há nada para fazer, então quero ler. Sam Quarry sorriu e abriu a mochila. – Bem, então tivemos a mesma ideia. Ele puxou cinco livros e os passou para ela, que os examinou cuidadosamente. – Gosta de Jane Austen? – perguntou ele. Ela assentiu. – Não é minha autora favorita, mas eu só li Orgulho e preconceito. – Era o livro preferido de minha filha. – Era? Quarry se empertigou ligeiramente. – Ela não lê mais. – Ela morreu? – perguntou Willa com a franqueza da juventude.
– Alguns diriam que sim – falou ele e então apontou para os outros livros. – Sei que você é muito inteligente, então não peguei porcarias de criança que provavelmente não lhe interessam mais. Mas me diga do que gosta e não gosta. Tenho livros de sobra. Willa empurrou os livros para um lado e ficou observando Sam. – Poderia me arrumar papel e caneta? Gosto de escrever. E isso me distrairia. – Tudo bem, sem problemas. – Você falou com meus pais? Disse que falaria. – Sim, enviei uma mensagem. Disse a eles que você está bem. – Você vai me matar? Quarry se retraiu como se ela lhe tivesse dado um murro – e talvez tivesse. Afinal, recuperou a voz: – De onde, diabos, você tirou essa ideia? – Às vezes os sequestradores não devolvem a pessoa. Eles matam o refém. Os grandes olhos de Willa ficaram cravados nos dele. Ela evidentemente não estava interessada em pôr o assunto de lado. Quarry esfregou o queixo com a mão calejada e marcada pelo tempo. Então olhou para a mão como se a estivesse vendo pela primeira vez. Era a mesma que havia posto fim à vida de Kurt, de modo que talvez a garota tivesse razão. Sou um assassino, afinal de contas. – Eu sei disso. Compreendo o motivo de sua pergunta, com certeza. Mas, se eu estivesse planejando matar você, poderia mentir e dizer que não. Portanto, que diferença faz a resposta? Ela estava pronta para aquele pequeno duelo de lógica: – Mas, se você disser que está planejando me matar, provavelmente é verdade. Por que mentiria a respeito disso? – Que diabo, aposto que de vez em quando as pessoas lhe dizem que você é mais esperta do que deveria, não dizem? O lábio inferior da menina tremeu um pouco enquanto ela se transformava de Einstein na pré-adolescente que era.
– Quero ir para minha casa. Quero ver minha mãe e meu pai. E meu irmão e minha irmã. Eu não fiz nada de errado – fungou, as lágrimas escorrendo de seus olhos. – Eu não fiz nada de errado e não compreendo por que você está fazendo isso. Não compreendo! Quarry baixou a cabeça, incapaz de confrontar aqueles olhos grandes cheios de lágrimas e o terror que revelavam. – Não tem nada a ver com você, Willa. Realmente não tem. É só... É que esta é a única maneira de fazer a coisa funcionar. Pensei muito nas alternativas e só esta fez sentido. Era a chance que eu tinha. A carta que eu tinha para jogar. – De quem você está com raiva? De quem está tentando se vingar? Ele se levantou. – Se quiser mais livros, é só me avisar. Quarry saiu depressa do cômodo, deixando Willa chorar sozinha. Nunca tinha se sentido tão envergonhado. Alguns minutos depois, estava encarando Diane Wohl agachada no canto de sua “cela”. Deveria ter sentido pena da mulher, mas não sentiu. Willa era uma criança. Não tivera chance de fazer escolhas nem de cometer erros. Aquela mulher tinha feito ambas as coisas. – Posso lhe fazer uma pergunta? – disse Wohl com voz trêmula. Quarry se sentou a uma mesinha no meio do aposento. Parte dele ainda estava pensando em Willa. – Mande ver – disse ele. – Posso telefonar para minha mãe? Para avisar que estou bem? – Não posso permitir isso. Hoje em dia, rastreiam qualquer coisa. O olho do governo está em tudo. Lamento, mas as coisas são assim. – Bem, então será que você poderia dizer a ela que estou bem? – Isso eu provavelmente poderei fazer. Dê o endereço dela. Ele passou um lápis e um pedaço de papel para Diane. Ela franziu a testa enquanto escrevia e depois devolveu o papel para ele. – Por que você tirou meu sangue? – perguntou a mulher.
– Porque precisava dele para fazer uma coisa. – O quê? Quarry olhou para o pequeno espaço ao redor. Não era um hotel de luxo, mas ele já vivera em lugares piores. Tinha tentado oferecer tudo de que a mulher precisava para ficar confortável. Eu não sou mau, disse a si mesmo. Se continuasse pensando assim, talvez começasse a acreditar naquilo. – Posso lhe fazer um pergunta também? Ela pareceu espantada com aquilo, mas assentiu. – Você tem filhos? – O quê? Não, não, nunca tive. Por quê? – Só queria saber. Ela se aproximou um pouco dele. Como Willa, tinha trocado suas roupas por outras, limpas. Quarry havia trazido as que ela comprara na Talbot’s. Caíam-lhe muito bem. – Você vai me deixar ir embora? – Depende. – De quê? – De como as coisas evoluírem. Posso lhe garantir que não sou um homem violento. Mas não tenho como prever o futuro. Ela se sentou à mesa defronte a ele e cruzou as mãos. – Não consigo pensar em nada que eu tenha feito que justifique isto. Eu nem sequer conheço você. O que foi que eu fiz? Que diabo eu fiz para merecer isto? – Você fez uma coisa – disse Quarry. Ela levantou o olhar para ele. – O quê? Diga! – Vou deixar que pense e descubra por si mesma. Tem tempo de sobra para isso.
ERA DE MANHÃ BEM cedo quando o pequeno avião da rota cheia de escalas avançou aos solavancos pelas últimas nuvens acinzentadas de uma tempestade. Mais tarde, quando a aeronave começou a descer para pousar no aeroporto de Nashville, Michelle continuou a fazer o que fizera durante o voo inteiro: olhar fixamente para as mãos. Quando abriram as portas do avião, ela saiu com sua mala de rodinhas e alugou um carro. Vinte minutos depois de ter chegado ao portão de desembarque, estava na estrada. Seu pé, porém, não estava enterrado no acelerador como de costume. Em vez disso, ela dirigia a modestos 90 quilômetros por hora. Não desejava se apressar para encarar o que viria. De acordo com seu irmão Bill, a mãe deles tinha acordado bem-disposta, comido uma tigela de cereal no café da manhã e saído para cuidar do jardim. Mais tarde havia jogado golfe em um campo nas vizinhanças, voltara para casa, tomara banho e se arrumara e, antes de assistir a um programa que havia gravado mais cedo, ainda esquentara um ensopado para o marido. Estava pronta para sair e se encontrar com amigos para jantar quando caiu na garagem. Frank Maxwell estava no banheiro na hora. Um pouco mais tarde, quando foi à garagem, encontrou a esposa no chão. Aparentemente, Sally morrera antes mesmo de bater no cimento. Não tinham certeza do que a havia matado – derrame, ataque do coração ou aneurisma –, mas o fato era que ela estava morta. À medida que as árvores na beira da estrada passavam voando, a mente de Michelle ia ainda mais rápido, das primeiras lembranças que tinha da mãe até os últimos e raros encontros, nenhum deles especialmente marcante. Uma hora depois, Michelle falara com os quatro irmãos. Dois deles moravam relativamente perto dos pais, Bobby vivia mais distante, mas na mesma cidade, e Bill morava na Flórida, mas estava na estrada e a menos de uma hora da casa dos pais, indo visitá-los, quando recebera a notícia. Michelle fora a última a chegar. Tinha ficado as horas seguintes com o pai, que passou metade do tempo mudo e metade com o olhar perdido no vazio, saindo do estado catatônico apenas para tomar as providências necessárias para o funeral. Frank Maxwell tinha sido policial a maior parte da vida e encerrara a carreira como chefe de polícia. Ainda parecia perfeitamente capaz de saltar de uma viatura, sair correndo numa perseguição e fazer o que fosse preciso quando alcançasse a pessoa. Era do pai que Michelle tinha herdado o físico, a ambição pelo sucesso e sua total incapacidade de se contentar com o segundo lugar. Contudo, agora, ao observá-lo de longe quando ele não estava olhando, Michelle percebeu lampejos de um homem já idoso que havia acabado de perder tudo e não tinha ideia do que fazer com o tempo de vida que lhe restava. Depois de absorver tanto quanto pôde disso, ela se retirou para o quintal dos fundos, onde sentou em um banco perto de uma macieira tão carregada que os galhos quase encostavam no chão. Fechou os olhos e fez de conta que a mãe ainda estava viva. Recordou seus dias de infância com os pais. Isso era difícil, porque havia períodos que Michelle simplesmente eliminara da memória, por motivos que eram mais claros para seu psicoterapeuta do que para ela mesma. Ela ligou para Sean para dizer que tinha chegado bem. Ele disse as coisas apropriadas e se mostrou solidário e gentil. Mesmo assim, depois de desligar, Michelle se sentiu sozinha como sempre. Um a um, seus irmãos foram se juntar a ela no quintal. Bateram papo, choraram, conversaram um pouco mais e choraram mais um pouco. Ela reparou que Bill – o mais velho e maior de todos, um policial durão que trabalhava numa área de Miami que podia, sem exagero, ser classificada como zona de guerra – era quem soluçava mais alto. Michelle não era do tipo afetuoso por natureza, mas se viu consolando os irmãos mais velhos. E estar tão próxima daqueles homens num momento triste, marcado pelo luto, começou a sufocála. Ela acabou deixando-os sozinhos e voltando para dentro da casa. Seu pai estava no andar de cima. Michelle o ouviu falando ao telefone com alguém. Na cozinha, olhou para a porta que fazia ligação com a garagem. Ainda não tinha ido lá. Na verdade, não queria ver onde a mãe morrera.
Mas também era uma pessoa habituada a enfrentar seus medos, de modo que girou a maçaneta, abriu a porta e olhou para baixo, para os três degraus de madeira sem pintura que levavam à garagem para dois carros. Havia um carro estacionado na vaga mais próxima, o Camry azul-claro de seus pais. A garagem era igual a qualquer outra. Exceto por uma coisa. A mancha de sangue no piso de cimento. Michelle chegou mais perto. Sangue no piso? Será que a mãe tinha caído da escada? Batido com a cabeça? Ela examinou a porta do Camry. Não havia nada ali. Calculou o espaço entre os degraus e o carro. Sua mãe era uma mulher alta. Se tivesse tropeçado e tombado para a frente, teria batido no carro. E não poderia ter caído para o lado, porque havia uma mureta em ambos os lados da escada. Ela teria ficado ali mesmo. Mas e se tivesse tropeçado porque tivera um derrame? Poderia ter se chocado contra o carro e depois batido com a cabeça no chão. Isso explicaria o sangue. Tinha que explicar o sangue. Ela se virou e quase gritou. O pai estava ali. Oficialmente, Frank Maxwell tinha 1,90 metro, embora a idade e a gravidade houvessem lhe roubado alguns centímetros. Tinha a musculatura compacta e densa de um homem que praticara atividades físicas a vida inteira. O olhar dele examinou o rosto ansioso da filha, talvez tentando interpretar o que havia nele. Então seguiu para a mancha no chão, contemplando o borrão carmesim como se fosse uma mensagem em código que estivesse tentando decifrar. – Ela andava tendo dores de cabeça – falou Frank. – Eu disse a ela para ir ao médico. Michelle assentiu lentamente, pensando que aquilo era um comentário estranho para se começar uma conversa. – Talvez tenha tido um derrame. – Ou um aneurisma. A vizinha mais abaixo na rua, o marido dela teve um. Quase morreu.
– Bem, pelo menos ela não sofreu – disse Michelle, meio sem jeito.
– É, acho que não. – Bill disse que o senhor estava no banheiro... Ele assentiu. – Estava tomando banho. E pensar que ela ficou caída aqui enquanto eu... Ela pôs a mão no ombro dele e apertou. Ver o pai naquele estado a assustava. A um passo de perder o controle. Se havia uma coisa que o pai sempre fora, era controlado. – Não havia nada que você pudesse ter feito, pai. Essas coisas acontecem. Não é justo, mas acontecem. – E ontem aconteceu comigo – concluiu ele. Michelle tirou a mão e olhou ao redor, para a garagem. As coisas de criança tinham sido excluídas da vida de seus pais fazia muito tempo. Não havia bicicletas, piscininhas, nem tacos de beisebol para atravancar a casa onde aproveitariam sua aposentadoria. A garagem era organizada mas desoladora: parecia que o passado da família havia sido levado embora. O olhar dela voltou para o sangue como se ele fosse uma isca e Michelle, o peixe faminto. – Então ela ia se encontrar com amigas para jantar? Ele piscou rapidamente. Por um momento ela pensou que o pai fosse se desmanchar em lágrimas. Subitamente se lembrou de que nunca o tinha visto chorar. Tão logo esse pensamento se formou em sua cabeça, algum lugar de sua mente pareceu levar um solavanco. Eu vi meu pai chorar, mas não lembro quando. – Acho que sim. A resposta vaga a deixou de boca seca e com uma sensação de ardor na pele. Passou pelo pai sem dizer uma palavra e apanhou na bancada da cozinha as chaves do carro que alugara. Antes de acelerar e sair, olhou de relance para a casa. Seu pai a estava observando pelo janelão da sala de estar. Trazia uma expressão que ela não só não sabia decifrar, como também não queria.
Com um copo descartável de café na mão, ela dirigiu pelas ruas do subúrbio de Nashville, onde, com a ajuda financeira dos cinco filhos, os pais tinham construído sua casa dos sonhos. Michelle era a única solteira e sem filhos, de modo que havia contribuído muito mais, mas nunca se arrependera. Criar uma família grande com um salário de policial não era fácil e os pais dela tinham se sacrificado muito. Ela não tinha nenhum problema em retribuir. Michelle pegou o telefone e ligou para o irmão mais velho. Não deixou que ele acabasse de dizer alô antes de partir para o ataque. – Bill, por que diabo não me falou do sangue na garagem? – O quê? – O sangue na droga do chão da garagem! – Ela bateu com a cabeça quando caiu. – Bateu com a cabeça em quê? – Provavelmente no carro. – Tem certeza disso? Porque não vi marca nenhuma no carro. – Mik, que diabo você está sugerindo? – Vai ter autópsia? – O quê? – Autópsia! – Eu... não tenho certeza. Acho que talvez tenham que fazer – acrescentou ele sem jeito. – E por que você nem mencionou isso quando me ligou? – De que teria adiantado? Vão fazer a autópsia e nós saberemos se ela teve um derrame ou um ataque de coração ou sei lá o quê. Ela caiu. Bateu com a cabeça. – Sei, a cabeça de novo. Alguém chamou a polícia? – É claro. E uma ambulância. Estavam aqui quando cheguei. – Qual de vocês quatro chegou primeiro? Ela ouviu a conversa ao longe enquanto Bill aparentemente consultava os irmãos, mas achava que já sabia a resposta: Bobby era sargento de polícia na cidade. Bill voltou ao telefone.
– Papai ligou para Bobby e ele chegou aqui em menos de 10 minutos, apesar de morar do outro lado da cidade. – Ótimo. Ponha Bobby na linha! – Mas por que você está tão furiosa? – Ponha Bobby na linha, Bill. Bobby atendeu momentos depois. – Mik, o que está havendo com você? – começou ele, rispidamente. – Papai ligou para você e você veio. Estava de serviço? – Não. Ontem foi minha folga. Eu estava em casa ajudando Joanie a fazer o jantar. – O que papai lhe disse? Bobby levantou a voz. – O que ele me disse? Ele me disse que nossa mãe estava morta. Foi isso que ele me disse. – A polícia já estava aí quando você chegou? – Já. Papai tinha ligado para eles. Chegaram aqui talvez uns cinco minutos antes de mim. – E o que exatamente papai disse a eles? – Bem, que ele estava no chuveiro, de modo que não tinha certeza do que tinha acontecido. Encontrou mamãe, chamou a emergência e depois ligou para mim. – E o que os tiras disseram depois que deram uma olhada nas coisas? – Que parecia que ela havia caído e batido com a cabeça. – Mas não sabiam por que ela caiu. – Não teriam como saber. Se ela apenas tivesse tropeçado, caído e batido com a cabeça, tudo bem. Mas se alguém a tivesse empurrado para fazer com que ela caísse, teriam que esperar pelo laudo do legista – disse. Então acrescentou em tom furioso: – Estou ficando louco só de pensar neles cortando a mamãe. – Você viu sangue na porta do Camry quando entrou na garagem? – Por que você quer saber?
– Porque ela bateu a cabeça em alguma coisa, Bobby. – Ela pode ter tropeçado na escada, batido no carro e caído no chão e depois batido com a cabeça. Ou talvez na mureta da escada. Tem uma quina com ponta. Uma pancada ali e pronto. Você sabe disso. Michelle tentou imaginar a mãe prendendo o salto em alguma coisa – talvez a cabeça de um prego que estivesse se soltando com o passar do tempo –, tropeçando, caindo, indo contra o carro sem deixar marcas, caindo de lado e batendo com a cabeça no chão com tanta força que tirara sangue. E se a autópsia revelasse um motivo para sua morte? – Mik? Você ainda está aí? Ela voltou a si. – Estou. – OK. Olhe, não sabemos aonde você quer chegar com essa história, mas... – Nem eu, Bobby. Também não sei. Ela desligou, parou o veículo ao lado de um pequeno parque, saltou e começou a correr. Os pensamentos que passavam por sua cabeça a aterrorizavam. Tudo o que podia fazer naquele momento era tentar fugir deles, ainda que a imagem de seu pai a perseguisse por todo o trajeto, observando-a da janela, com o rosto contraído numa máscara sólida de um sentimento que ela não conhecia muito bem.
ENQUANTO SUA PARCEIRA ESTAVA no Tennessee tentando resolver seus problemas de família, Sean acabava de comer um prato de comida italiana que trouxera para o escritório e ainda examinava a pilha de papel impresso. Tinha esperança de que em algum lugar houvesse uma pista que lhe apontasse se, por motivos ainda desconhecidos, Tuck Dutton mandara matar a esposa e sequestrar a filha. O toque do telefone interrompeu seus pensamentos. Era Jane Cox. – Quero que venha se encontrar comigo no hospital – disse ela. – Tuck quer conversar com você. – A respeito de quê? – perguntou ele, desconfiado. – Acho que você sabe. Sean vestiu o casaco e caminhou até o carro alugado. O seu estava na oficina. O conserto custaria cerca de 8 mil dólares e a seguradora estava alegando que a apólice dele não cobria os danos causados por uma saraivada de tiros. – Por que não? – perguntara. – Porque consideramos isso um ato terrorista e o senhor não tem cobertura contra terrorismo – respondera a mulher da companhia de seguros, de algum modo conseguindo dar um tom alegre à frase. – Não foi terrorismo. Foi um ato criminoso e eu fui a vítima. – Havia 37 buracos de bala em seu carro, Sr. King. De acordo com as diretrizes de nossa apólice, isso não é um ato criminoso, é terrorismo. – Vocês se guiam pelo número de buracos de bala! De que maneira isso faz sentido, minha senhora? – O senhor pode recorrer da decisão.
– É mesmo? E que probabilidades de vencer as suas diretrizes eu tenho? Menos que zero? A Madame Simpatia desligou o telefone depois de lhe agradecer por ser cliente. Sean deu partida no carro e estava se preparando para dar marcha a ré quando alguém bateu em sua janela. Ele olhou para trás. Era uma mulher, 30 e poucos anos, loura, bem-feita de corpo, com batom vermelho demais e a pele ressecada de quem era obrigada a usar maquiagem diariamente para enfrentar as câmeras de alta definição. Segurava um microfone com um gravador embutido como se fosse uma granada que estivesse a ponto de lançar. Ele olhou por trás dela e viu a van da emissora de televisão bloquear sua saída. Merda. Sean baixou a janela. – Em que posso ajudá-la? – Sean King? – Exato. Olhe, fiz uma declaração ao sujeito do pool de imprensa. Pode pegar o material com ele. – Fatos novos exigem uma declaração nova. – Que fatos novos? – O senhor roubou arquivos confidenciais do computador do escritório de Tuck Dutton? O estômago de Sean deu uma cambalhota e parte da vitela que havia comido lhe subiu à garganta. – Não sei do que você está falando. Quem disse isso? – O senhor nega ter ido ao escritório dele? – Não vou negar nem admitir coisa nenhuma. – A firma de Tuck Dutton é contratada do governo e trabalha com material ultrassecreto do Departamento de Segurança Interna. – A senhora é repórter ou porta-voz da empresa? Eu não saberia dizer. – O senhor se dá conta de que é crime roubar propriedade de outra pessoa? E que, se for descoberto que está de posse de informações secretas com o objetivo de espionagem, poderia ser acusado de traição? – Certo, agora você parece uma aspirante a advogada. Eu por acaso sou um advogado de verdade. De modo que, se a senhora não mandar seu companheiro aí atrás tirar a van do caminho, vou ver até onde meu carro consegue empurrá-la. E depois vou tirar o motorista de dentro da van e teremos “agressão e lesão corporal”. Mas direi que foi legítima defesa. Assim fica mais difícil ir a julgamento. – O senhor está nos ameaçando? – Estou a um segundo de ligar para a polícia e acusar a senhora de violar meu direito de ir e vir, de assédio e difamação. Confira o significado disso em um dicionário de termos jurídicos quando quiser entrar em um curso de direito. Sean acelerou e pôs o carro em marcha a ré. A mulher saltou para trás e o motorista da van a tirou do caminho bem a tempo de evitar a colisão. Meia hora mais tarde, Sean se encaminhava para o quarto de hospital de Tuck e seu humor ficava mais azedo a cada passada. É claro que ele tinha copiado as informações, mas não porque fosse um espião, mas porque estava tentando determinar se Tuck estivera envolvido no assassinato da esposa. Aquilo o deixava legalmente exposto, mas não era a primeira vez que violava as regras. Não era por esse motivo que estava irritado. Alguém havia armado para incriminá-lo. Queria saber quem e por quê. Ele mostrou sua identidade para um dos homens da muralha de agentes do Serviço Secreto postados no corredor. Como a primeira-dama estava ali, eles se empenharam mais em revistá-lo e passar o detector de metais e só depois o conduziram ao quarto. Tuck estava sentado numa cadeira ao lado da cama. Jane Cox estava de pé ao lado dele, a mão consoladora no ombro do irmão. Dois agentes se posicionaram contra uma parede até que Jane disse: – Por favor, esperem lá fora. Um agente grandalhão lançou um olhar penetrante para Sean enquanto se dirigia à porta com o parceiro. – Estaremos aqui fora.
Ele fechou a porta ao sair. Sean se virou para encarar os dois irmãos. – Obrigada por vir – disse Jane. – A senhora deu a entender que era importante. Espero que seja. O tom áspero pareceu pegar a mulher de surpresa. Antes que ela pudesse responder, Sean voltou sua atenção para Tuck. – Parece estar se sentindo melhor. A concussão foi bastante séria. Você está melhor? – Ainda dói um bocado – respondeu Tuck em tom defensivo. Sean puxou uma cadeira e sentou diante dos dois. – Eu acabei de ser cercado por uma repórter de TV pronta para uma caça às bruxas – disse, enquanto olhava rapidamente para Jane: – Sabe de alguma coisa a respeito disso? – É claro que não. Como poderia saber? – Não sei. – Ele voltou o olhar para Tuck. – Muito bem, Tuck, o tempo é vital, de modo que vamos esquecer os rodeios, está bem? Vamos lá: Cassandra Mallory. – O que quer saber a respeito dela? – O que ela significa para você? – Ela é uma funcionária de minha companhia. – Só isso? – É claro que sim. – Não é o que seu sócio acha. – Então ele está errado. Sean se levantou e olhou pela janela. Os carros que acompanhavam a primeira-dama a aguardavam lá embaixo. A vida dentro da bolha. Sean conhecia bem aquilo. Cada movimento submetido a um impiedoso escrutínio, sugando até seu fôlego. Apesar disso, algumas pessoas gastavam centenas de milhões de dólares e devotavam anos de sua vida a entrar naquela realidade. Será que aquilo era insanidade, narcisismo ou as duas coisas, disfarçadas sob a desculpa de servir ao povo? Ele se virou de volta para eles, pensando rapidamente. Se admitisse que sabia que a senha do computador de Tuck era Cassandra, estaria confessando que havia invadido a máquina. Em vez disso, perguntou: – Estaria disposto a se submeter a um teste de polígrafo? Tuck começou a dizer alguma coisa, mas Sean viu os dedos da primeira-dama apertarem o ombro dele e Tuck ficou calado. – Sean – começou ela –, por que está fazendo isso? – Você me pediu para investigar esse caso. É o que estou fazendo. Não tenho como controlar para onde ele vai me levar, mesmo que sejam lugares que prefira que eu não veja. Na Casa Branca, você me disse para ir fundo nas investigações. Tenho certeza de que se lembra. Não faz muito tempo. Creio que a expressão que usou foi “as consequências não importam”. – Também lhe pedi que encontrasse Willa. – Bem, não posso fazer isso se não descobrir quem a sequestrou e por quê. E matou Pam ao levar a menina. Ele lançou um olhar furioso para Tuck ao dizer a última parte. – Não tive nada a ver com isso – retrucou Tuck com aspereza. – Então não vai se importar de se submeter ao polígrafo. – Você não pode me obrigar – rebateu ele. – Não, mas se eu for procurar o FBI e contar o que descobri, eles vão começar a revirar o que você não quer que vejam. Se passar no teste de polígrafo, não farei isso. Essa é minha proposta. – Então você conversou com o sócio dele, David Hilal? – comentou Jane calmamente. – Não pensei que conhecesse tão bem o trabalho de seu irmão. Ela prosseguiu imperturbável: – Hilal também lhe contou que anda louco para comprar a parte de Tuck na empresa? Que ele quer ser o único dono? Sean olhou para Tuck. – Isso é verdade? – Verdade absoluta. Não vou mentir, tive alguns reveses financeiros. David sabia que eu precisava de dinheiro. Ele quer comprar a minha parte, mas a um preço que não reflete o valor do contrato em que estamos trabalhando com o Departamento de Segurança Interna. Significaria milhões de dólares a mais.
– Compreendeu? É interesse de Hilal que Tuck seja envolvido no que aconteceu. Se meu irmão for para a cadeia, Hilal fica com tudo por uma bagatela. – Não necessariamente – disse Sean. – Mas eu seria obrigado a vender, no mínimo para pagar os honorários dos advogados – ressaltou Tuck. – Ele ficaria com ela por quase nada. E fui eu que ergui aquela empresa. – Sean, talvez fosse mais indicado redirecionar sua atenção para um suspeito mais plausível – acrescentou Jane. Sean levou um momento para digerir tudo aquilo. – Vocês acham que Hilal orquestrou um sequestro e um assassinato só para culpar Tuck e ficar com a empresa? É ir um pouco longe demais, não acham? E por que sequestrar Willa? Jane se aproximou e se sentou na beira da cama. – Não vou tentar entender o raciocínio de um possível psicopata. Isso é ir tão longe quanto pensar que meu irmão mandaria matar a esposa e sequestrar a filha, e ainda levar uma pancada na cabeça que poderia facilmente tê-lo matado, apenas porque supostamente estivesse tendo um caso amoroso. Sean olhou pela janela de novo, as mãos enfiadas nos bolsos. O que Jane estava dizendo fazia algum sentido. Era possível que ele tivesse tirado conclusões precipitadas sobre o que Hilal dissera, sem confirmar as informações antes. Mas e a senha do computador? Uma ideia súbita lhe ocorreu. E se alguém a tivesse mudado para Cassandra1? E se Hilal tivesse feito isso, pensando que Sean tentaria invadir o computador, descobriria a senha e sem dúvida concluiria que Tuck e a mulher estivessem tendo um caso? Isso, concluiu ele, era tão provável quanto sua seguradora lhe pagar os danos causados por terroristas. Ele deu meia-volta. – Tuck, qual é a senha do seu computador no trabalho? Sean estalou os dedos para fazer o homem responder depressa. – Vamos lá, qual é? Tuck hesitou apenas um momento: – Carmichael.
– É o nome de solteira de Pam, não é? – perguntou Jane rapidamente. Tuck assentiu, enquanto levantava a mão e limpava uma lágrima no olho direito. Os dois estão mentindo para mim. De alguma forma, sabem que invadi o computador. Eles mandaram aquela repórter vir atrás de mim. Para me assustar. O fato de Tuck ter um caso não o surpreendia, mas a primeira-dama acobertá-lo era estranho demais para Sean. Era evidente que precisava aprofundar sua investigação. – Tudo bem, vou investigar Hilal. – Ótimo. Jane se levantou, deu um beijo no rosto de Tuck e o abraçou. Enquanto ela andava na direção de Sean, disse: – Agradeço sua colaboração. – Certo. Ele ignorou a mão que ela lhe estendia e saiu do quarto.
SAM QUARRY ENXUGOU O suor da testa e esticou a coluna dolorida até ouvir o estalo que sinalizava o alívio da pressão em suas vértebras. Estava observando suas terras do ponto mais alto de Atlee, um monte rochoso irregular de mais de 15 metros de altura, com acesso ao topo por uma série de degraus de pedra lisos e gastos pelas botas de seus ancestrais. Era chamado, pelo menos desde que Quarry conseguia se lembrar, de rochedo do Anjo – como se fosse um caminho para o céu e, aparentemente, para uma vida melhor do que a que fora concedida à família Quarry no plano terrestre. Sam não era dado a jogatinas, mas teria apostado alguns dólares em que quase nenhum de seus ancestrais tivera sucesso nessa jornada. Apesar de toda a sua importância histórica, Atlee era apenas uma fazenda. As únicas coisas que tinham mudado ao longo dos últimos 200 anos eram o que se plantava e como se plantava. Motores a diesel tinham substituído mulas e arados e uma variedade de produtos agrícolas havia ocupado o espaço onde um dia houvera algodão e tabaco. Quarry não tinha preferência por nenhum produto em particular e sempre tentava algo diferente, desde que pudesse dar lucro em uma fazenda pequena como Atlee havia se tornado. Como a maioria dos fazendeiros competentes, vivia obcecado por todos os detalhes: composição do solo, índices de chuvas, momento exato da colheita, previsões de geadas por hectare e a forma como poderiam afetar os preços, número de trabalhadores necessários para determinada colheita, máquinas agrícolas e créditos bancários. A propriedade ficava muito ao norte no Alabama para plantar kiwi, mas Sam tinha se aventurado a cultivar canola porque haviam instalado maquinário para extração de óleo não muito longe dali. Além disso, a planta era uma boa safra de inverno e dava mais lucro por hectare que o trigo. Ele também cultivava produtos tradicionais da região, como repolho, feijão, vagem, milho, quiabo, abóbora, tomate, nabo e melancia.
Um pouco daquilo servia para alimentar os moradores de Atlee, mas a maior parte era vendida para companhias e lojas locais, gerando uma renda indispensável. Sam Quarry também criava 20 porcos e duas dúzias de cabeças de gado. Parte da carne ficava na fazenda, para consumo próprio, mas todo o restante era vendido para Atlanta e Chicago, onde virava churrasco. Mesmo nas melhores circunstâncias, a atividade agrícola era arriscada. A pessoa podia fazer tudo certo e, ainda assim, perder a colheita inteira numa estiagem prolongada ou numa geada precoce. A natureza nunca pedia desculpas por sua maravilhosa e por vezes desastrosa intervenção. Quarry vivera anos bons e ruins. Embora soubesse que nunca ficaria rico com suas atividades, também estava claro que dinheiro não era a questão principal para ele. Pagava suas contas e andava de cabeça erguida. Tinha plena certeza de que um homem não deveria esperar mais que isso da vida, a menos que fosse corrupto, ambicioso demais ou as duas coisas. Passou as horas seguintes trabalhando no campo junto com os empregados temporários que contratara. Ele fazia isso por dois motivos. Primeiro, porque gostava de trabalhar na terra, o que fazia desde menino, e não via razão para parar agora que estava ficando velho. Segundo, porque seus funcionários sempre pareciam se dedicar um pouco mais quando o chefe estava presente. Gabriel veio se juntar a ele à tarde, depois de andar um quilômetro e meio desde o ponto de ônibus. O garoto era forte, concentrado no trabalho, sabia manusear as ferramentas e dirigir as máquinas com mão firme e experiente. No jantar, Quarry deixou Gabriel dizer a oração de agradecimento, enquanto Daryl e a mãe do menino, Ruth Ann, olhavam. A refeição era simples, basicamente conservas feitas com produtos colhidos em safras anteriores. Quarry ficou prestando atenção enquanto Gabriel contava o que tinha aprendido na escola naquele dia. Olhou com admiração para a mãe do garoto. – Ele é inteligente, Ruth Ann. Absorve tudo, como uma esponja. A mulher deu um sorriso satisfeito. Ela era magra como uma tábua e sempre seria, por causa de um problema intestinal do qual não tinha dinheiro para tratar de maneira adequada e que provavelmente a mataria em 10 anos.
– Não foi a mim que ele puxou – respondeu. – Só o que tenho na cabeça é cozinhar e cuidar da casa. – Mas você faz isso muito bem – elogiou Daryl, que estava sentado defronte a Gabriel e estivera ocupado comendo pão de milho, antes de tomar um grande gole de água para ajudá-lo a descer. – Onde está Carlos? – perguntou Gabriel. – Ele também não foi embora como Kurt, não é? Daryl lançou um olhar ansioso para o pai, mas Quarry acabou calmamente de comer o molho de tomate com o pão de milho antes de responder. – Está fazendo algumas coisas para mim fora da cidade. Logo vai voltar. Depois do jantar, Quarry se aventurou a ir até o sótão, onde sentou em meio a vestígios da história de sua família cheios de teias de aranhas. A maior parte era de mobílias, roupas, livros e papéis. Contudo, não estava ali por causa de saudade. Abriu as plantas sobre uma velha mesinha de cabeceira que pertencera à bisavó materna (que matara o marido com um tiro de espingarda por causa de – assim diziam na família – uma mulher de rosto bonito, boas maneiras e pele escura). Sam Quarry examinou a planta: a estrada, o prédio, os pontos de acesso e as áreas problemáticas em potencial. Então sua atenção se voltou para um conjunto de desenhos de natureza mais mecânica que havia preparado. Ele ganhara uma bolsa para estudar engenharia mecânica, mas a guerra no Vietnã destruíra seus planos quando o pai exigiu que ele se alistasse para combater os comunistas. Ao voltar para casa, anos depois, o pai estava morto, Atlee era dele e ir para a faculdade já não era possível. Quarry sabia consertar qualquer coisa que tivesse motor ou partes móveis. As entranhas de uma máquina, por mais complicadas que fossem, se revelavam para ele com espantosa simplicidade. Aquilo significava economia para Atlee, pois, enquanto outros fazendeiros chamavam técnicos caros quando o equipamento quebrava, Quarry simplesmente consertava os dele. Assim, ele estudou os planos e desenhos com um olhar de perito, vendo onde seria possível fazer melhorias e como evitar desastres. Depois desceu e encontrou Daryl limpando rifles na salinha de armas perto da cozinha.
– Não existe cheiro mais gostoso que o de óleo lubrificante de armas – disse Daryl, levantando o olhar para o pai quando este entrou na sala. – Você é que está dizendo. O sorriso repentino de Daryl se apagou do rosto, talvez por causa da lembrança de uma pistola semiautomática calibre 45 apontada para a sua nuca pelo homem que estava a poucos metros dele, em um aposento cheio de armas de fogo. Sam Quarry trancou a porta e se sentou ao lado do filho, desenrolando um conjunto de plantas no chão. – Já repassei isto com Carlos, mas quero que você também tenha conhecimento, só por via das dúvidas. – Eu sei – disse o filho, enquanto limpava o cano do rifle que usava para caçar cervos. Quarry apontou para os papéis: – Olhe, isto é importante, Daryl, não há margem para erros. Preste atenção. Depois de 30 minutos de explicações e repetições, Quarry se levantou satisfeito e enrolou as plantas. Enquanto as enfiava em um longo tubo, disse: – Quase caí com o maldito do avião de tão triste que estava por causa de Kurt. – Eu sei – respondeu Daryl, com uma sombra de medo na voz, pois sabia que o pai era um homem imprevisível. – Provavelmente eu teria chorado se tivesse sido você. Só queria que soubesse disso. – O senhor é um homem bom, pai. – Não, não creio que seja – disse Quarry, saindo da sala. Ele subiu para o quarto de Gabriel e perguntou da porta: – Quer vir comigo visitar Tippi? Vou ter que parar no trailer de Fred no caminho. – Quero, sim – respondeu Gabriel, largando seu livro, calçando os tênis e depois enfiando na cabeça o boné virado ao contrário. Um pouco depois, Sam Quarry e Gabriel estacionavam a velha picape na frente do trailer. No assento entre eles havia uma caixa com algumas garrafas de uísque e três pacotes de cigarro sem filtro. Depois de colocar a caixa na escadinha de madeira da entrada do trailer, Gabriel e Quarry tiraram da caçamba dois caixotes contendo verduras em conserva, 10 belas espigas de milho e 20 maçãs. Sam bateu à porta, enquanto Gabriel, com seus pés ligeiros, corria atrás de um lagarto até que este desaparecesse sob o velho e maltratado trailer. Um homem velho e enrugado abriu a porta e ajudou Quarry e Gabriel a carregar as provisões. – Obrigado – disse ele em sua língua nativa enquanto examinava os caixotes. – Temos mais do que precisamos, Fred. O índio não dissera seu nome quando aparecera por lá, apenas aparecera. Depois de alguns meses de constrangimento, Quarry tinha passado a chamá-lo de Fred e o sujeito nunca reclamara. Quarry não sabia como os koasatis o chamavam, mas isso era assunto deles. Os dois outros indígenas estavam dentro do trailer. Um dormia num sofá esgarçado que não tinha pernas nem molas, fazendo-o afundar quase até o chão. Os roncos altos indicavam que aquilo não o incomodava nem um pouco. O outro homem assistia a um programa humorístico em uma velha televisão de 15 polegadas que Quarry dera a Fred alguns anos antes. Eles abriram o uísque, fumaram e conversaram, enquanto Gabriel bebericava uma garrafa de Coca-Cola que Fred lhe dera e brincava com um velho vira-lata que tinha adotado o índio e seu trailer. Quando Quarry ocasionalmente tropeçava numa palavra em koasati, Gabriel levantava a cabeça e a traduzia. Cada vez que fazia isso, Fred dava uma risada e, em recompensa, oferecia um gole de uísque ao menino. E sempre Quarry levantava a mão e dizia: – Quando ele for homem, poderá beber, mas eu não aconselho. A longo prazo, faz mais mal que bem. – Mas o senhor bebe, seu Sam – argumentou Gabriel. – Muito. – Não me use como modelo, filho. Encontre alguém melhor. Mais tarde eles foram visitar Tippi. Quarry deixou Gabriel ler Orgulho e preconceito para ela.
– É meio chato – declarou o menino quando terminou uma longa passagem. Quarry tomou o livro dele e o enfiou no bolso de trás da calça. – Ela não acha. Gabriel olhou para Tippi. – O senhor nunca me contou o que aconteceu com ela, seu Sam. – É, nunca contei.
SEAN CONVERSOU NOVAMENTE COM David Hilal, encontrando-o no estacionamento quando o homem estava de saída para casa. O sócio de Tuck não tivera muito a acrescentar ao que já contara. Contudo, tinha respondido calmamente a cada pergunta enquanto se apoiava no carro e ao mesmo tempo lia e digitava mensagens em seu Blackberry. Quando Sean abordou a questão sobre ele adquirir o controle da firma, o tom de Hilal mudou. Ele enfiou o Blackberry no bolso, cruzou os braços no peito e fechou a cara: – Com que dinheiro eu iria comprar a parte dele? Investi tudo o que tinha na firma. Estou endividado até o pescoço. Não conseguiria um empréstimo agora nem para comprar um carro. – Ele disse que você lhe fez uma proposta abaixo do preço de mercado. – A gente conversou algo a respeito, mas foi ao contrário. – Ele comprar a sua parte? – Exato. E me fez uma proposta abaixo do preço de mercado. Tudo bem, qual dos dois está dizendo a verdade? – Por que você pensaria em vender antes de ganhar a concorrência? Tuck disse que isso aumentaria o valor da firma em milhões. – E aumentaria mesmo. Se ganharmos. Mas não é garantido. Temos direitos registrados sobre tecnologias que, em minha opinião, são o que existe de melhor por aí. Foi por esse motivo que fomos chamados para fazer parte do consórcio. Mas estamos disputando com outras grandes companhias que têm produtos próximos dos nossos em termos de desempenho e confiabilidade. E não há fair play no mundo dos contratos governamentais. Os grandes burlam as regras usando o dinheiro. E como geralmente têm informações de cocheira, eles também compram as cabeças mais brilhantes e disputadas e deixam as sobras para as firmas menores. Eu não queria sair da sociedade, mas estou ficando sem dinheiro. Se não ganharmos a concorrência, a firma vai valer menos do que a proposta que ele me fez. Podemos estar numa posição privilegiada agora, mas, como eu já disse, o fato de nosso sócio e cunhado do presidente do país estar tendo um caso com Cassandra não nos ajuda. Se isso vier a público, teremos problemas. – Tuck disse que não havia nada entre Cassandra e ele. – É mesmo? Então pergunte a ele onde foi que dormiu enquanto esteve em Jacksonville. Com certeza ele terá uma boa desculpa. – Você disse que não achava que Tuck fosse capaz de matar a esposa, mas não me parece que goste muito de seu sócio. – Não gosto mesmo. – Não tinha mencionado isso antes. – Não? – Fico sempre atento aos detalhes. De modo que não mesmo. – Bem, não tenho o hábito de falar mal de meu sócio para pessoas que não conheço. Mas é difícil não fazer isso, se quer que eu lhe diga a verdade. – Por quê? – Digamos que ele já me aborreceu. – Poderia dar mais detalhes? – Você acreditaria em mim se eu desse? – Tenho a mente muito aberta. Hilal desviou o olhar por alguns momentos antes de tornar a encarar Sean. – Se quer saber, é meio constrangedor, francamente. – Não sou do tipo que espalhe o que me contam. Hilal enfiou um chiclete na boca e começou a mastigar e a falar rapidamente, como se mascar o chiclete lhe fornecesse a coragem necessária para confessar tudo. – No Natal do ano passado, tínhamos ganhado uma bela concorrência. Nada de muito grande, mas festejamos com tudo, para animar. Bebida, uma banda e um bufê chique em um salão privado no Ritz-Carlton. Gastamos mais do que devíamos, mas tudo bem. – Certo. E daí? – E daí que Tuck encheu a cara e se engraçou com a minha mulher. – Se engraçou como? – De acordo com ela, puxando-a pela bunda e tentando enfiar a língua em sua garganta. – Você viu isso? – Não, mas acredito na minha mulher. Sean passou o peso do corpo para o pé direito e dirigiu a Hilal um olhar de descrença. – Então por que diabo continuou sócio de Tuck? Hilal baixou os olhos, obviamente constrangido. – Tive vontade de arrebentar a cara dele e ir embora. Foi o que quis fazer de verdade. Mas minha mulher não deixou. – Ela não deixou? – Temos quatro filhos. Minha mulher é dona de casa. Como eu já disse, tudo o que temos está investido nesta firma. E sou o sócio minoritário. Se tentasse sair, Tuck poderia me ferrar, me deixar sem um tostão. Não teríamos como sobreviver. Perderíamos tudo. Então só engolimos nosso orgulho. Mas nunca mais deixei minha mulher sozinha com Tuck. E nunca mais deixarei. Pode perguntar a ela se quiser. Ligue para ela agora. Ela lhe contará exatamente como foi. – Pam estava nessa festa? Hilal pareceu ficar surpreso por um momento, então assentiu. – Certo, entendi aonde você quer chegar. Sim, ela estava na festa. Vestida de Mamãe Noel, pode acreditar. Magra e ruiva. Acho que algumas pessoas estavam rindo dela, e não com ela. – Você acha que ela viu Tuck se engraçar com a sua mulher? – O salão não era assim tão grande. Na verdade, acho que uma porção de gente viu. – Mas não houve nenhuma reação por parte de Pam?
– Eles não foram embora juntos, é o que posso lhe dizer – afirmou Hilal, antes de fazer uma pausa. – Olhe, há mais alguma coisa em que eu possa ajudar? – prosseguiu. – Porque realmente preciso ir para casa. Sean voltou para seu carro. Havia dois bons motivos para acreditar em Hilal. O primeiro era o fato de a senha do computador de Tuck ser “Cassandra1”. E o segundo era a afirmação de Tuck sobre estar com problemas financeiros e Hilal tentar se aproveitar disso. Depois de seu encontro com Jane e Tuck, Sean tinha feito um exame muito mais atento dos registros financeiros de Tuck que encontrara no disco rígido do computador. O homem tinha uma carteira de títulos e ações no valor de mais de oito dígitos e o somatório de suas dívidas dava menos de um quarto daquilo, de modo que a história de estar com a corda no pescoço era balela. Contudo, se eles sabiam que Sean havia invadido e copiado os dados do computador de Tuck, também sabiam que ele descobriria a mentira. Mesmo assim, os irmãos tinham tentado enganá-lo. Sean deixou aquilo de lado e se dedicou à pergunta óbvia seguinte. Então por que você voltou para casa antes do previsto, Tuck? E o que fez durante quase uma hora, entre o aeroporto e a sua casa? No percurso de volta para o escritório, Sean ligou para Michelle, mas ela não atendeu. Ele deixou um recado. Estava preocupado com a parceira, embora passar grande parte de seu tempo se preocupando com ela já fizesse parte de sua vida. Michelle aparentava ser a pessoa mais durona que ele já conhecera, uma verdadeira rocha. Mas havia descoberto que, se procurasse bem, aquela rocha tinha algumas rachaduras. Ele dirigiu até em casa, preparou uma mala suficiente para uma noite, seguiu para o aeroporto e pagou um preço exorbitante por um voo para Jacksonville que partiria dentro de uma hora. Precisava falar com Cassandra Mallory. Pessoalmente. Recebeu um telefonema quando estava a caminho do aeroporto Dulles. Era Phil, seu amigo linguista da Universidade de Georgetown. – Encontrei uma pessoa que conhece a língua yi. Se quiser me enviar uma amostra do texto a respeito do qual me falou, posso pedir que ela dê uma olhada. – Vou mandar por e-mail – disse Sean.
Mandou a mensagem assim que chegou ao Dulles. Então se dirigiu ao portão de embarque, torcendo para que as letras deixadas nos braços de Pam Dutton levassem a alguma pista. Mas quanto mais pensava naquilo, mais achava que não havia chances. Como Michelle tinha apontado, aquilo nem sequer era chinês. Olhou fixamente para a fotografia de Cassandra Mallory que David Hilal lhe mandara por e-mail. A mulher certamente tinha os atributos necessários para atrair um homem. Enquanto o jato de 50 passageiros subia para o céu claro da noite, Sean teve a esperança de que sua viagem não o estivesse levando na direção oposta aonde precisava ir para encontrar Willa. A cada dia que passava, aumentavam as possibilidades de que, em vez de localizarem a menina, encontrassem apenas um corpo.
JANE COX OLHOU PARA fora pela janela da sala de estar. A residência oficial da família do presidente, na avenida Pennsylvania, 1.600, ficava bem no centro da capital. Para quem morava nela, no entanto, poderia ser até em outro sistema solar. Só quem já residira ali e tivera a vida atrelada ao cargo máximo da nação poderia compreender plenamente a vida de Jane. E talvez nem todos eles. Até relativamente bem pouco tempo atrás, um presidente – como Harry Truman, por exemplo – conseguia andar pela cidade na companhia de um único segurança. Hoje isso era inconcebível. E em nenhum outro tempo o menor dos atos, as mínimas palavras ou o gesto mais corriqueiro estiveram sob tanto escrutínio quanto agora. Ela compreendia por que algumas primeiras-damas haviam entrado em depressão ou sucumbido às drogas e ao álcool. Jane tratava de se manter longe de tudo isso, exceto talvez por uma taça de vinho ou, em época de campanha, se beneficiasse a imagem do marido, uma caneca de cerveja. As únicas drogas que experimentara tinham sido maconha, na faculdade, e uma fileira de cocaína, em uma viagem que fizera pelo Caribe depois da formatura. Graças a Deus, aquilo não fora percebido e nunca ninguém tocara no assunto depois de ela embarcar na longa jornada que a levaria de estudante liberal a primeira-dama do país. Ela ligou para a irmã de Pam Dutton e falou com John e Colleen, esforçando-se ao máximo para tranquilizar as crianças. Dava para perceber claramente que elas estavam com medo. Desejou ter mais para lhes oferecer do que apenas algumas palavras de esperança e a garantia de estar orando para que Willa voltasse logo para casa. Depois que desligou, telefonou para o irmão, que continuava no hospital, mas agora já com previsão de alta. As duas crianças o haviam visitado. Jane mandou que providenciassem seu jantar em casa e comeu sozinha. Recebera vários convites para jantar fora naquela noite e recusara todos. A maioria era de pessoas interessadas apenas em inflar o próprio status sendo vistas na companhia da primeiradama e conseguir uma foto que um dia exibiriam aos netos. Ela preferia ficar sozinha. Bem, tão sozinha quanto permitia uma casa com mais de 90 funcionários e inúmeros agentes de segurança trabalhando o dia inteiro. Decidiu sair para uma caminhada ao ar livre – acompanhada, é claro, por assistentes e pelo Serviço Secreto. Sentou por algum tempo em um recanto escondido que tinha sido criado pela esposa do presidente Lyndon Johnson pensando nas crianças. Jane adorava contemplar as impressões de mãos e pés de filhos e netos de presidentes pelo caminho. Esperava que seus próprios filhos se animassem e começassem logo a lhes dar netos. Depois, Jane passou pelos canteiros onde milhares de tulipas iriam florir na primavera e dar ao jardim um colorido estonteante. A seguir, encaminhou-se para o solário construído em um sótão a pedido da esposa do presidente Coolidge. Era o aposento menos formal da Casa Branca e, na opinião de Jane, o que tinha a melhor vista. Com frequência as primeiras-damas tinham assumido a tarefa de dar um toque pessoal àquela residência e, ao mesmo tempo, embelezá-la para os futuros presidentes e suas famílias. A própria Jane tinha feito um pouco disso, embora sem nem sequer chegar perto da grande reforma empreendida por Jackie Kennedy. Ela voltou a seus aposentos e se lembrou do dia em que tinham chegado ali, fazia mais de três anos. A família do expresidente saíra às 10 da manhã e os Cox chegaram às quatro da tarde. Era como uma troca de inquilinos. Entretanto, no instante em que passaram pela porta, suas roupas já estavam nos armários; seus quadros, nas paredes; suas comidas favoritas, na geladeira; e seus artigos de higiene pessoal, arrumados sobre a bancada do banheiro. Ela ainda não sabia como tinham conseguido fazer tudo aquilo em seis horas. Mais tarde Jane bebericou seu café enquanto refletia sobre a conversa que tivera com Sean King. Podia contar com ele. Fora um bom amigo – de fato salvara a carreira política de seu marido. Sabia que King estava aborrecido com ela no momento, mas aquilo passaria. Estava mais incomodada com o irmão. Tuck era cinco anos mais moço e ela fora responsável por ele a maior parte da vida, principalmente porque a mãe deles havia morrido quando Jane tinha 11 anos. Ela cuidara dele como de um bebê, alguns diriam até que o mimara. Precisava encarar o fato de que aquele instinto protetor fizera mais mal que bem. Contudo, não podia dar as costas a ele agora. Jane andou até a janela e ficou observando os pedestres parados diante da Casa Branca. A casa dela. Pelo menos durante os próximos quatro anos, se pudessem confiar nas pesquisas. A decisão final, porém, seria dada por mais de 130 milhões de americanos, que diriam sim ou não a um segundo mandato de seu marido. Com o rosto apoiado no vidro à prova de balas, seus pensamentos pousaram em Willa. A menina estava em algum lugar, com as pessoas que tinham assassinado sua mãe. E elas queriam alguma coisa, mas Jane não sabia o quê. Começava a se preparar para a possibilidade de Willa não voltar para a família. Para ela. De talvez já estar morta. Jane fora treinada para não demonstrar emoções, principalmente em público, a menos que as condições políticas exigissem. Não que lhe faltasse emotividade. Simplesmente muitas carreiras políticas tinham naufragado por conta de demonstrações de raiva ou de frivolidade ou então de hipocrisia – que, para os eleitores, eram uma prova inegável de desonestidade. Ninguém queria uma pessoa desonesta e instável controlando senhas de armas nucleares, nem desejava que a esposa dessa pessoa fosse uma louca desvairada. Portanto, pelo menos nos últimos 20 anos, Jane Cox havia pesado cada palavra sua, calculado cada movimento, pensando em cada ato físico, espiritual ou emocional. E o preço disso fora ter abandonado quaisquer esperanças de permanecer humana. O programa que lhe fora entregue para aquela noite previa uma brecha de 10 minutos durante a qual poderia ligar para o marido, que estava na Pensilvânia fazendo comício e angariando fundos. Ela fez a chamada e conversou mecanicamente, parabenizando-o pelos últimos resultados das pesquisas e suas apresentações impecáveis na TV. – Está tudo bem com você, querida? – perguntou ele. – Tudo, exceto Willa – respondeu ela em um tom mais forte do que pretendera. Aliados e mesmo adversários de Dan Cox o consideravam extremamente habilidoso no jogo político. Contudo, a percepção dele a respeito dos problemas e do estado de espírito da própria esposa nunca parecia alcançar aquele nível de excelência.
– É claro, é claro – disse ele, enquanto fragmentos de conversas ao fundo chegavam ao ouvido de Jane. – Estamos fazendo tudo o que podemos. Só precisamos manter o pensamento positivo e não perder as esperanças, Jane. – Eu sei. – Te amo – disse ele. – Eu sei – repetiu ela. – Boa sorte esta noite. Os minutos livres acabaram e ela desligou o telefone. Meia hora depois, colocou a televisão na CNN. Tinha como regra não assistir a noticiários e programas políticos em ano eleitoral, mas isso não se aplicava às aparições do marido. O segundo grupo de oradores havia acabado suas apresentações e a multidão de 75 mil pessoas logo veria quem realmente esperava. O presidente Daniel Cox entrou no palco acompanhado por uma música ensurdecedora. Jane ainda se lembrava da época em que os comícios não pareciam shows de rock, com apresentações de abertura, música alta e a multidão entoando slogans ridículos. Antes as coisas eram feitas de um jeito mais digno e talvez mais real. Não, não “talvez”: antigamente, de fato, havia mais autenticidade. Agora era tudo encenado. Os fogos foram disparados no momento exato, o instante em que seu marido pisou no palco, aproximou-se da bancada para leitura e encarou dois teleprômpteres quase invisíveis. Também houve uma época, ela sabia, em que os políticos improvisavam ou simplesmente consultavam suas anotações. Ela tinha lido que os políticos da época das guerras de Independência e Civil muitas vezes memorizavam discursos de centenas de páginas que eles mesmos escreviam, proferindo-os depois com perfeição. Jane não acreditava que qualquer líder político vivo hoje – inclusive seu marido – fosse capaz de reproduzir tal feito. Nos tempos de Abraham Lincoln, porém, um discurso não corria o mundo em um piscar de olhos. Mesmo assim, ao observar o marido ler nas telas digitais e bater o punho no tampo da bancada enquanto, às escondidas das câmeras, o público era instruído a aplaudir, dar vivas, bater os pés e cantar, uma parte de Jane sentiu saudades dos velhos tempos. Da época em que Dan e ela chegavam sozinhos aos locais dos eventos, e distribuíam broches e adesivos que eles mesmos levavam em caixas no porta-malas. Depois ela assistia enquanto Dan se postava bem no meio das pessoas e discursava com a cabeça e o coração, apertava as mãos dos eleitores, dava beijinhos em bebês e pedia votos. Agora que Dan era presidente, toda vez que ia a algum lugar, era como se tivessem de mudar um país do mapa. Eram necessários aviões de carga, quase mil pessoas e, para que o chefe da nação pudesse pegar seu telefone em qualquer parte do planeta e falar direto com os Estados Unidos, uma quantidade de equipamento suficiente para montar uma companhia telefônica. Os líderes do mundo livre não podiam ser espontâneos. E, infelizmente, suas esposas tampouco. Ela continuou a vê-lo na TV. Seu marido era um homem bonito e, em muitas carreiras, inclusive na vida política, isso só ajudava. Ele sabia lidar com o público. Tinha um talento especial, sempre tivera. Era capaz de criar uma ligação com as pessoas e encontrar algo em comum, fosse ao lidar com milionários, operários, brancos ou negros, sérios ou brincalhões. Por isso havia chegado tão longe. As pessoas de fato o amavam. E acreditavam que ele realmente se importasse com elas. E se importava, Jane acreditava nisso – e nenhum homem jamais se tornara presidente sem ter o empenho e o compromisso de sua cara-metade. Ela acompanhou os 27 minutos do discurso enlatado de Dan. Naquela noite, o foco era a economia. Ele falou de incentivar os empregos formais e, uma vez que estava na Pensilvânia, abordou especificamente os setores de aço e carvão. Jane se pegou dizendo as palavras do discurso junto com ele. Fazendo pausas quando ele as fazia – por, um, dois, três segundos – antes de dizer a frase que finalizava a piada concebida por algum redator formado em universidade renomada e que ganhava muito mais do que deveria. Tirou a roupa e se deitou na cama. Mesmo antes de apagar a luz, sentiu a escuridão se fechar ao seu redor. De manhã, uma arrumadeira da Casa Branca encontraria os travesseiros da primeira-dama ligeiramente úmidos de lágrimas.
WILLA COLOCOU RAZÃO E SENSIBILIDADE de lado. Não muito depois de ter sido levada para aquele lugar, tinha batido em cada uma das paredes e percebido algo de sólido por trás delas. Ficara atenta aos sons de passos e, consultando seu relógio, calculara que alguém fazia ronda de duas em duas horas. Ela mesma preparava suas refeições, que consistiam de enlatados que comia frios ou refeições prontas para consumo produzidas para as Forças Armadas. Não era o que estava habituada a comer, mas seu estômago não se importava. Bebia água mineral, comia biscoitos, tentava se manter aquecida e economizava no uso da lanterna, desligando-a quando descansava e fazendo o possível para não pensar no que a escuridão traria. Ficava à escuta, esperando pelo homem, o alto e mais velho. Aprendera a reconhecer o som de seus passos. Gostava mais dele do que dos outros, que lhe levavam água, comida enlatada, roupas limpas e pilhas para a lanterna. Eles nunca falavam, nunca faziam contato visual, porém faziam Willa sentir medo. Medo de que seu silêncio pudesse ser substituído por uma fúria repentina. No início tinha tentado conversar com eles, mas agora não. Em vez disso, se esforçava para parecer invisível quando eles surgiam. E deixava escapar um suspiro aliviado no momento em que saíam e trancavam a porta. Ela olhou para o relógio. Os passos tinham acabado de passar. Agora teria tempo. Duas horas livres. Agarrou a lanterna e andou até a porta. Bateu de leve nela. Esperou. Bateu. Esperou. – Oi! – chamou. – Hum, parece que vocês estão fazendo uma fogueira aí. Nenhuma resposta. Baixou a lanterna e tirou do bolso a caneta que Quarry lhe dera, ou melhor, o prendedor da caneta, que tinha o gancho de que precisava. Em seguida pegou uma pequena peça metálica comprida, que tinha uma das pontas em forma de triângulo. Ela a havia feito usando a tampa de uma lata que abrira. Tinha pegado o círculo de metal e cortado-o meticulosamente, usando o peso da lanterna para firmá-lo contra a mesa enquanto a tampa de outra lata servia de faca. Depois o havia enrolado, formando um longo cilindro, e em seguida martelara uma ponta para que ficasse no formato desejado. Willa examinou a tranca enquanto tentava recordar seus conhecimentos e habilidades de arrombamento. Dois anos antes, nas férias de verão, os Dutton tinham visitado os Cox em uma casa centenária na costa da Carolina do Sul que amigos ricos do presidente tinham lhe emprestado por duas semanas. Colleen, que na época tinha apenas 5 anos, se trancara no banheiro e começara a gritar apavorada, socando em vão a porta e puxando para todos os lados a velha tranca. Um agente do Serviço Secreto pegara um clipe de papel e, em menos de 10 segundos, arrombara a fechadura. Willa tinha passado horas abraçando a irmã, que ficara inconsolável depois do episódio. Mais tarde, preocupada com a possibilidade de que Colleen voltasse a se trancar acidentalmente no banheiro quando voltassem para casa, pedira ao agente do Serviço Secreto que lhe ensinasse a abrir trancas. O homem completara a aula mostrando-lhe a diferença entre uma fechadura comum e uma tranca com pinos. As que tinham pinos eram mais difíceis de abrir e exigiam mais habilidade e duas ferramentas diferentes. Era esse tipo de tranca que a esperava agora. Willa pendurou a lanterna na maçaneta para que sua área de trabalho ficasse iluminada. Então inseriu o prendedor da caneta, que iria até o fundo da abertura da tranca, mantendo a posição de modo a impedir que os pinos dela voltassem para o lugar. Com a outra mão, deslizou para dentro a peça metálica com ponta triangular. Apesar do frio, estava tão tensa que uma gota de suor surgiu em sua testa. Empurrou a ferramenta para cima, tentando alinhar os pinos. Foi quando sua mão escorregou e o prendedor da caneta saiu da posição. A menina a reinseriu e tentou de novo. Havia praticado aquilo em casa muitas vezes, mas nunca se sabia quanto tempo iria levar na tarefa. Ela não era nenhuma perita e não sabia qual a pressão ideal para se aplicar na tranca. Podia levar minutos ou horas para abri-la. Rezou para que fossem minutos. O som de passos vindo em sua direção a fez parar. Girou o pulso e consultou o relógio. Tinham se passado apenas 20 minutos.
Será que o homem estava vindo vê-la? O senhor falava manso e baixo, mas, apesar disso, Willa percebia o perigo, a raiva que dele emanava. Não, não era o andar dele. Era um dos outros homens. Ela puxou as duas ferramentas para fora da fechadura e estava pronta para correr de volta para a cama quando as passadas se afastaram. Esperou mais um pouco, só para ter certeza. Voltou a inserir suas ferramentas, dessa vez com o dobro de concentração. Agora podia sentir os pinos tocando o metal e deslizando para dentro de seus encaixes. Um por um, ela os levantou até ficarem em linha reta, o tempo todo segurando o prendedor com tanta força que seu braço e pulso começaram a doer. Encaixou o último pino na posição desejada e girou a ponta triangular do cilindro como se fosse uma chave. A lingueta desapareceu dentro da porta. Ela respirou fundo e fez uma prece. Diminuindo a intensidade da luz da lanterna, escutou atentamente e abriu a porta devagar. Willa esperou alguns minutos e então, lentamente, saiu de seu cárcere para a escuridão.
SEAN TOMOU UM GOLE de seu café e observou o portão do prédio pelo zoom de sua câmera. O estacionamento do condomínio estava bem à vista, atrás de uma imponente cerca de ferro fundido. A temperatura estava em torno de 30 graus em Jacksonville. Ele havia tirado o paletó, jogado-o no banco do passageiro de seu carro alugado e ligado o ar. Um minuto depois se endireitou no banco e deu partida no automóvel. Seu alvo acabara de passar pelas portas de correr de vidro, parando um segundo para pôr os óculos escuros e proteger os olhos do sol forte. Ele reparou que ela estava vestida para matar: minissaia pregueada, sapatos de salto alto, as pernas bronzeadas à mostra e uma camiseta sem manga com um decote tão fundo que um homem poderia se perder ali. A mulher apontou o chaveiro para o carro, ouviu-se o trinado eletrônico habitual e ela embarcou no veículo. Uma combinação de fatores – o chassis baixo de seu Mercedes conversível e uma brisa sorrateira – fez com que sua saia se levantasse, revelando momentaneamente as coxas bronzeadas, assim como a linha branca da calcinha fio-dental. A mulher apertou um botão no painel e a capota metálica retrátil se abriu. O carro arrancou pelo portão automático e ganhou velocidade enquanto a brisa marítima sacudia o cabelo da mulher. A cena daria um belo comercial de carros. Sean saiu atrás dela. As duas primeiras paradas foram na tinturaria e na farmácia. Ele não conseguiu conter um sorriso ao notar que ela sabia o que estava fazendo. Por onde quer que andasse – e ela definitivamente sabia andar –, os homens ficavam boquiabertos. Quando entrava ou saía do carro, parecia se movimentar em câmera lenta, exibindo por um segundo espantosamente longo tudo o que fazia os caras suarem à noite e fantasiarem durante o dia. E quando ela ia mais devagar, todos os homens pareciam acompanhar seu ritmo – quando não paravam onde estivessem até que as pernas bronzeadas, a bunda perfeita e o decote estonteante desaparecessem numa arrancada do Mercedes. O destino seguinte, uma área residencial restrita, foi mais promissor. Sean a observou embicar na entrada para carros de uma magnífica e linda casa de estuque e tijolos vermelhos com palmeiras no jardim. Usando o zoom da câmera, Sean conseguiu ver a pessoa que abriu a porta. O cavalheiro era alto, de aparência distinta, tinha cabelos bastos ligeiramente grisalhos e vestia calça, camisa polo e blazer azul. Sean tirou várias fotos antes que entrassem na casa. Reparou na van do correio que vinha descendo a rua. Depois que o carteiro enfiou a correspondência na caixa da casa, esperou que o veículo dobrasse a esquina e seguiu com o carro até lá. Abriu a tampa e conferiu o que havia ali. – Greg Dawson – leu em um dos envelopes. Continuou a examinar a pilha. Outra carta atraiu seu olhar. Era uma mala direta endereçada a “Greg Dawson, vice-presidente, Science Matters, Ltda.”. Aquilo estava ficando cada vez mais interessante. Colocou a correspondência de volta na caixa, dirigiu até o fim da rua e fez um rápido reconhecimento da área. Viu um terreno baldio cheio de árvores ao lado da casa vizinha à de Greg Dawson. Saltou discretamente do carro e, de câmera na mão, andou pelo terreno baldio, pulou uma mureta, correu pelo quintal dos fundos do vizinho de Dawson e espiou por cima de um muro de estuque que separava as duas propriedades. O caminho estava livre. Escalou o muro, caiu nos fundos do terreno e se escondeu atrás de alguns arbustos. O paisagismo do quintal era luxuoso, trabalho de profissional. Sean observou a grande piscina, a cascata e a construção anexa, que combinava os materiais usados na casa. Dawson tinha dinheiro, sem sombra de dúvida. Havia uma mesa ao lado da piscina, com um jarro de limonada e dois pratos. Ele focalizou a câmera e esperou. Uma mulher de origem hispânica usando uniforme de empregada chegou trazendo uma bandeja de comida, pôs tudo na mesa e tornou a entrar. Dawson e Cassandra vieram alguns minutos depois. Ele puxou a cadeira para sua acompanhante e os dois se sentaram para comer. Cassandra tinha um sorriso no rosto enquanto olhava para o ambiente luxuoso ao redor. Sean podia ler seus pensamentos: ela não teria dificuldade em se acostumar àquele estilo de vida. Quando Greg Dawson puxou um envelope do bolso do blazer e o passou para Cassandra, Sean também conseguiu tirar algumas fotos. Dawson disse alguma coisa, mas Sean não conseguiu ouvir por causa do barulho da água fluindo da cascata. Cassandra abriu o envelope, deixando entrever cédulas de dinheiro quando as puxou. Isso também foi fotografado. Um pouco depois, a mulher descalçou um dos sapatos de salto fino, esticou a perna comprida e deliberadamente posicionou o pé bem na virilha do acompanhante. A moça não era nada sutil, refletiu Sean. O homem, porém, fez cara feia e disse alguma coisa. Sean não conseguiu ouvir, mas ela pareceu aborrecida e decepcionada enquanto se apressava em calçar de volta o sapato. Sean não conhecia Greg Dawson, mas aplaudiu sua capacidade de rejeitar a tentativa nada discreta de Cassandra. Depois do almoço, a mulher dirigiu de volta para casa. Lá, Sean parou de segui-la e ligou para David Hilal. Sem contar o que acabara de ver, apenas perguntou sobre a Science Matters Ltda. – É uma de nossas concorrentes no contrato. – Você conhece um sujeito chamado Greg Dawson? – Ele chefia toda a equipe que trabalha no contrato de biodefesa na Science Matters. É esperto como o diabo e aceitaria fazer qualquer coisa para garantir a vitória. Por quê? – Estou apenas checando uma teoria. Então vocês estão contando com os contatos de Cassandra no Departamento de Segurança Interna para ganhar a concorrência? – Bem, achamos que nossa proposta e nossa tecnologia são melhores que as da equipe de Dawson, mas ter Cassandra do nosso lado realmente ajuda. Ela conhece o projeto, os concorrentes e o pessoal do governo. No caso de um empate técnico, o fato de tê-la conosco provavelmente nos dá o contrato. – Mas então não haveria uma porção de gente querendo ter a ajuda dela, como a Science Matters, por exemplo? É uma empresa maior que a de vocês, certo?
– É claro que sim. E eu sei que provavelmente lhe ofereceram muitas vantagens e também mais dinheiro, mas Tuck conseguiu convencê-la a ficar conosco. Sean assentiu pensativo. – Alguma ideia de como? – Apenas uma ideia. – Diga lá. – Ele pode ter oferecido participação nos lucros. Sei que ela recebe salário, porque sou eu que faço os pagamentos, mas essa outra parte pode ter sido acertada e até formalizada apenas entre eles. – Apesar de você ser sócio? – Como já lhe disse, sou sócio minoritário. O que basicamente significa que só pego o que me cabe e torço para que me deem um pouco mais. – Mas se Tuck e Cassandra estiverem tendo um caso e isso vier a público...? – Não seria bom para nós. – Há algum motivo por que ela poderia querer que o caso viesse a público? – perguntou Sean. – Não vejo por quê. Se Cassandra de fato tiver participação nos lucros, isso seria prejudicial a ela, certo? – Não se ela tiver um plano B que lhe pague mais, Dave.
DUAS HORAS DEPOIS, SEAN aproveitou que um carro estava chegando ao condomínio e entrou atrás dele, os portões automáticos fechando-se só depois que ambos haviam passado. Estacionou numa vaga para visitantes, pegou uma caixa comprida no banco e entrou no hall do prédio. O porteiro, um homem magro, musculoso e calvo que usava um blazer azul grande demais para ele, ergueu o olhar do jornal. – Em que posso ajudá-lo? Sean bateu de leve na caixa: – Entrega de flores para Cassandra Mallory. – Tudo bem. Pode deixar aqui. – Não, senhor. Minha ordem de serviço diz entrega em mãos. Ela precisa assinar. – Eu assino. Não gostamos de entregadores usando o elevador. – Ora, vamos, quebre esse galho. O que me pagam mal dá para a gasolina. Eu vivo das gorjetas. Você não vai me dar gorjeta, vai? – É claro que não, as flores não são para mim. – Olhe, eu sou apenas um trabalhador tentando ganhar a vida. Tenho uma dúzia de rosas nesta caixa e mais 15 entregas por fazer antes das oito da noite. Estou ralando para ganhar um troco. – Você me parece um pouco velho demais para viver de entrega de flores. – Eu já tive uma empresa de financiamento de hipotecas. – Ah – fez o homem, lançando-lhe um olhar compreensivo. – Então será que você não poderia ligar para ela e dizer que estou aqui? Se ela não quiser as flores, tudo bem. O homem hesitou, mas pegou o telefone.
– Sra. Mallory, aqui é o Carl, da portaria. Olhe, tenho uma entrega de flores para a senhora. – Ele fez uma pausa. – Ah, não sei. Espere um segundo. – Ele olhou para Sean. – De quem são? Sean remexeu no bolso da camisa e consultou um pedaço de papel em branco. – Do Sr. Greg Dawson. Carl repetiu isso ao telefone. – Certo, tudo bem, a senhora manda. Ele desligou e olhou para Sean. – Hoje é seu dia de sorte. Ela mora no 756. O elevador fica ali. – Maravilha. Espero que dê uma boa gorjeta. – Você é um cara boa-pinta. Se for mesmo seu dia de sorte, é capaz de ela lhe dar outra coisa. Sean fingiu surpresa e disse: – Está dizendo que ela é gata? – Vou dizer só uma coisa, amigo: quando ela passa aqui pela portaria, eu tenho a sensação de estar dentro de um sonho da Playboy. É o único motivo para eu ficar neste emprego horrível. Sean subiu no elevador panorâmico admirando a incrível vista da costa. Cassandra devia estar esperando ao lado da porta, porque a abriu um segundo depois de ele bater. Estava descalça e vestindo um roupão que ia até a metade das coxas. O cabelo estava úmido: devia ter saído para nadar ou acabado de tomar banho. – Flores? – perguntou ela. – Sim, senhora, do Sr. Dawson. – Confesso que estou surpresa. Sean a admirou dos pés à cabeça. – Madame, a senhora me parece uma pessoa que ganha muitas flores. Ela lhe deu um sorriso. – Você é muito gentil. – Só preciso que a senhora assine aqui.
Ele lhe entregou um bloco e uma caneta. Enquanto ela assinava, ele abriu a caixa, exibindo as 12 rosas que havia comprado por quatro dólares de um vendedor de rua. Ela tirou uma e cheirou. – São lindas. – A senhora tem um vaso? É bom botar na água logo. Ela lhe lançou um olhar penetrante e alargou o sorriso. Enquanto avaliava o rosto bonito e o corpo esguio de quase 1,90 metro de Sean, ela disse em uma voz ligeiramente rouca que o fez sentir-se sujo de repente: – Qual o seu nome? – Sean. – Nunca o vi por aqui antes, Sean. – Nunca estive por aqui antes. Azar meu, eu acho. – Por que não traz as flores enquanto procuro um vaso? Enquanto se virava, ela conseguiu roçar os seios no antebraço dele. Foi uma manobra tão bem-feita que Sean não pôde evitar deduzir que havia sido treinada e aperfeiçoada ao longo de anos. Ele a seguiu para o interior do apartamento e puxou a porta, a tranca fechando-se automaticamente com um estalo. O apartamento era luxuoso e por toda parte havia itens que deveriam ter custado caríssimo. A mulher também tinha bom gosto em relação a obras de arte, mobílias e tapetes orientais. Ela chegou à cozinha, abriu um armário e se abaixou. A visão resultante fez Sean corar. O fio-dental branco fora substituído por uma minúscula calcinha preta, mas o resto era só Cassandra. Ainda inclinada para a frente, ela virou para se certificar de que ele estivesse vendo tudo. Quando seu olhar captou o dele, ela fingiu se assustar: – Ah, desculpe. Ele conseguiu dar um sorriso. – Não precisa se desculpar. O corpo feminino é tão bonito. Por que escondê-lo? Ela retribuiu o sorriso. – Gosto de sua atitude.
Ela demorou tanto para apanhar o tal vaso que ele chegou a pensar que um dia poderia ser capaz de reconhecê-la apenas pelas nádegas. Finalmente ela se endireitou e se virou para ele. E parou de sorrir. Olhou fixamente para a tela da câmera dele, para a foto de Greg Dawson entregando-lhe o envelope de dinheiro. – O que é isso? Quem é você? Sean sentou em um dos banquinhos de bar ao lado do balcão de granito da cozinha. – Onde arrumou essa foto? – perguntou ela em tom acusador. – Primeiro, vá se vestir. Seu showzinho de striptease está começando a me cansar. Ela fez uma careta: – E por que eu não deveria simplesmente chamar a polícia? Em resposta, ele levantou a câmera de novo. – Porque assim esta sua maravilhosa foto com Greggie seria enviada para o Departamento de Segurança Interna. E a menos que possa explicar por que um homem da empresa concorrente de Tuck Dutton está lhe entregando dinheiro durante um simpático almoço íntimo na casa dele, a Science Matters pode dar adeus àquele contrato. Estou certo ou não estou, Cassandra? Agora vá se vestir! Ela saiu pisando duro. Quando voltou, seu corpo estava coberto por um conjunto violeta de calça e casaco de moletom. Ele balançou a cabeça em sinal de aprovação: – Muito melhor. Agora posso tratá-la como adulta. Ele se acomodou no sofá da sala, que tinha uma belíssima vista para o mar. Ela sentou diante dele e enfiou os pés debaixo do corpo. – Então as flores não eram do Greg? – perguntou ela com impertinência. – Não. Ele foi sincero quando lhe deu um passa-fora no almoço. Talvez esteja acostumado a mulheres do seu tipo e não seja bobo. – Então, quem exatamente é você e o que quer? – perguntou ela. – Porque quanto antes sair daqui, melhor.
– Regra básica: eu faço as perguntas, não você. – Por que... Ele exibiu novamente a foto e ela se calou. – Sei sobre você e Tuck Dutton. Ela revirou os olhos. – É disso que se trata? Por favor... – Você estava tendo um caso com ele. – Prove. – Na verdade, não preciso. Posso deixar essa tarefa para o FBI. – FBI? De que diabo está falando? – A esposa de Tuck foi assassinada e a filha mais velha, sequestrada. Vai dizer que não sabia? – É claro que sabia. Está em todos os jornais. A irmã dele é a primeira-dama. – Gosta de transar com o cunhado do presidente? – Vá para o inferno. – É algo com que deveria se preocupar. – O que está querendo dizer? – retrucou ela, fingindo tédio. – Quero dizer que o motivo mais antigo do mundo para que um marido infiel se livre da esposa é poder casar com a amante. – As coisas não eram desse jeito entre mim e Tuck. – Então como eram? Você pode contar para mim ou para o FBI. E o agente encarregado do caso não é nem de longe tão simpático quanto eu. – Tuck se sentia atraído por mim. – Sim, disso eu sei. Mas se você fez aquele showzinho se exibindo como fez comigo, não posso culpar o sujeito. Bem, na verdade até posso, porque ele é evidentemente um cretino e um fraco. Então por que você foi trabalhar para ele quando tenho certeza de que recebeu ofertas melhores de empresas maiores? – Você parece saber de muita coisa a meu respeito. – Sempre fui curioso. E você estava dizendo...?
– Ele disse que seria muito generoso comigo se conseguíssemos o contrato. – Significa que não era apenas o salário, que também haveria participação nos lucros? – Algo assim. – Não estou interessado em “algo assim”, quero fatos. – Vinte por cento do lucro do contrato – disparou ela. – Além do salário e do bônus. – Mas você recebeu uma proposta melhor, depois de fechar com Tuck? – Não sei do que você está falando – disse ela com hesitação. – Ah, sabe, com certeza. Você teve um caso com Tuck. Dawson estava atento e descobriu, ou talvez tenha encarregado você de fazer isso, quem sabe? Mas o fato é que ele tinha uma prova para apresentar ao Departamento de Segurança Interna, mostrando que você estava tendo um caso com o cunhado do presidente. O governo ficaria sabendo, Dawson ganharia a concorrência e você levaria uma bela grana por baixo dos panos. Talvez parte desse dinheiro estivesse naquele envelope que ele lhe deu hoje. Sean ergueu sua câmera, exibindo-a a Cassandra. – Só que agora eu tenho a prova de que você e Greggie estavam agindo juntos. Posso entregá-la ao Departamento de Segurança Interna e enterrar os seus sonhos. Interessante, não acha? E por que pagar em dinheiro? – Greg disse que hoje em dia é possível rastrear qualquer movimentação financeira: transferências eletrônicas, contas na Suíça, qualquer coisa. O dinheiro que recebi foi uma espécie de entrada. – Certo. – Olhe, talvez nós possamos fazer um acordo. – Não estou interessado em dinheiro em envelopes. – Acordos não precisam ser necessariamente em dinheiro – disse ela, lançando um olhar ansioso para o homem. – Talvez você me ache uma mulher fácil, mas realmente não sou. Nós poderíamos nos divertir muito. Falo sério.
– Obrigado, mas não estou interessado em mulheres que mostram a bunda para qualquer entregador que bata à porta. E, sem querer ser rude: quando foi a última vez que fez um exame para detectar DSTs? Ela se levantou para dar-lhe um tapa na cara, mas ele a segurou pelo pulso. – Não dá para sair dessa abrindo as pernas. Não se trata da porcaria de um contrato com o governo ou de ganhar na cama um belo apartamento e uma vida mansa. A menos que coopere comigo, está correndo o risco de ser considerada cúmplice de sequestro e assassinato. Na Virgínia, onde esses crimes aconteceram, é caso de pena capital. E, mesmo sendo indolor, a morte por injeção letal ainda é morte. Lágrimas começaram a escorrer dos olhos de Cassandra. – Não tive nada a ver com isso, juro por Deus. Sean tirou um gravador digital do bolso e o colocou sobre a mesa de centro. – Sente-se. Ela obedeceu. – Aqui vai minha proposta: a menos que você me conte toda a verdade, e eu conheço o suficiente dela para saber se você tentar me enganar só um pouquinho, as provas serão entregues aos federais imediatamente, entendeu? Ela assentiu, enxugando as lágrimas. – Ótimo. – disse Sean, ligando o aparelho: – Na véspera da morte da esposa de Tuck, ele estava aqui com você. Ficou aqui, em seu apartamento, certo? Ela assentiu. – Preciso ouvir sua resposta. – Ele estava aqui. – Ele tinha passado a noite anterior aqui também, não? – Tinha. – E vocês estavam tendo um caso? – Estávamos. – A mulher dele sabia?
– Não sei. Tuck achava que não. – Tuck a contratou por causa de seu emprego anterior, no Departamento de Segurança Interna. Ele achava que isso lhe daria uma boa chance de ganhar uma concorrência nesse departamento, correto? – Correto. – E agora você o está passando para trás com a Science Matters? Cassandra hesitou. Sean estendeu a mão para o gravador. – OK, faça como quiser – disse ele. – Espere. Sim. Estou trabalhando com Greg Dawson e passando Tuck para trás. Greg mandou nos seguir. Descobriu que tínhamos um caso. Veio me procurar e me ofereceu um negócio melhor. Eu aceitei. – Tuck Dutton iria voltar para a Virgínia um dia depois de a família ser atacada, mas voltou antes. Você sabe por quê? – Nós... nós tivemos um desentendimento. – A respeito de quê? – Acho... acho que ele desconfiou de que alguma coisa estivesse acontecendo. – Entre você e Dawson? Ela pareceu surpresa. – Não, foi o oposto disso. Sean ficou confuso. – O oposto? – Ele achou que a esposa estivesse tendo um caso. Eu disse que era besteira. Perguntei quais seriam as probabilidades de ele e a mulher estarem tendo um caso ao mesmo tempo. Acho que foi falta de tato minha, mas os homens são infantis demais quando se trata de adultério. Tudo bem, vocês tiveram casos. Não é nada de mais. Superem, deixem para lá. – Mas ele não quis deixar para lá. – Não. Na verdade pensei até que ele fosse me bater. Ele disse que amava a esposa. E aqui estávamos nós, nus, na minha cama, depois de transar até não poder mais. E eu disse alguma coisa idiota, tipo: “Bem, você tem um jeito estranho de demonstrar isso.” Aí ele ficou furioso, gritou comigo, pegou suas coisas e foi embora. – Ele chegou a dizer por que achava que a esposa estivesse tendo um caso? – Ele mencionou alguma coisa a respeito de telefonemas que tinha escutado. E disse que em determinada ocasião tinha seguido Pam e que ela havia tomado um café com um homem que ele não conhecia. Sam se recostou nas almofadas. Aquela era uma possibilidade que ele nunca havia considerado. – Ele por acaso descreveu como era o tal homem? – Não. Nunca falou disso. – Há um intervalo de cerca de uma hora que não conseguimos explicar entre o momento em que Tuck deveria ter chegado em casa e aquele em que de fato chegou. Vai mais ou menos de 21h30 até por volta das 23h. Ele por acaso ligou para você durante esse período? – Não, eu não falo com ele desde que saiu daqui. Sean olhou para ela com visível descrença. – Preciso da verdade absoluta, Cassandra. – Eu juro. Pode checar os registros de meu telefone. Eu fui para a cama e não falei com ninguém. Sean desligou o gravador. – Se eu precisar falar com você de novo, é melhor conseguir encontrá-la. – Você vai revelar isso? – Não. Pelo menos não por enquanto. Mas vou lhe dar um conselho. Diga a Greggie para desistir da concorrência. – Ele vai ficar furioso. Já me pagou um dinheirão. – Isso é problema seu. Por que não tenta apresentar seu número de exibição da calcinha? Parece que Greg não gosta muito de pé na virilha. Sean embarcou no voo de volta para Washington naquela noite. Tinha descoberto muita coisa. O único problema era que agora tinha mais perguntas do que antes.
WILLA SE MANTEVE PERTO da parede de rocha enquanto avançava pelo corredor, os dedos roçando na superfície irregular. Seguia atenta a todos os sons e à procura de qualquer sinal de luz. Ligara a lanterna no nível mínimo de luminosidade, de modo que quase não conseguia enxergar. Fazia muito frio e o vapor de sua respiração a acompanhava pelo caminho escuro. Ela dobrou uma quina e parou. Será que aquilo era alguém vindo? Ela desligou a lanterna e se colou contra a rocha. Cinco minutos depois começou a se mover de novo. Dessa vez manteve a luz apagada. Sua mão roçou em madeira e então tocou em algo metálico. Ela se deteve, acendeu a lanterna novamente. A luz fraca revelou uma tranca de metal. Igualzinha à da minha porta. Reuniu coragem para levantar a mão e bateu de leve na madeira. Nenhuma resposta. Bateu de novo, um pouco mais forte. – Quem é? – perguntou uma voz trêmula do outro lado. Willa olhou ao redor e então encostou o rosto contra a porta e perguntou: – Você está trancada? Ela ouviu o som de passos e depois a voz disse: – Quem é você? – Meu nome é Willa. Também estava presa, mas consegui sair. Acho que também consigo tirar você daí. Como se chama? – Diane – respondeu a outra. – Você sabe por que está aqui? – Não. – Eu também não. Espere um pouco.
Willa pegou seu prendedor de caneta e a tampa de lata enrolada e se pôs a trabalhar. Foi mais difícil que da primeira vez, porque tinha que manter a luz bem fraca. Enquanto se concentrava em sentir os pinos da tranca se alinharem, continuava atenta a qualquer som de pessoas se aproximando. Os pinos finalmente se alinharam. Willa girou sua chave improvisada e a porta se abriu. Diane Wohl olhou para ela. – Você é só uma criança. – Sou quase uma adolescente – disse Willa com firmeza. – E consegui sair de minha cela. E tirar você da sua. Vamos. Enquanto elas avançavam para a saída, Diane olhou ao redor. – Onde nós estamos? – Fale baixo – sussurrou Willa. – O som ecoa e vai longe em lugares como este. – Lugares como quais? – perguntou a mulher em voz mais baixa. Willa tocou na parede lateral: – Acho que estamos em um túnel ou em uma velha mina. – Ai, meu Deus – gemeu Diane. – Se estivermos em uma velha mina, ela poderia desabar em nossa cabeça a qualquer minuto. – Eu acho que não. As vigas de suporte parecem firmes. E os homens que estão nos mantendo aqui não teriam nos trazido para um lugar que não fosse seguro. – Por que não? – Porque eles também poderiam se ferir. – Você sabe para que lado fica a saída? – Estou tentando sentir para que lado o ar se move. – Mas, se seguirmos adiante, vamos nos perder. Talvez para sempre. – Não, não vamos – disse a menina, virando o foco de luz para baixo. – Rasguei alguns rótulos de latas e vim jogando pedacinho de papel no chão mais ou menos de três em três metros. Assim saberemos o caminho, se precisarmos voltar. Elas seguiram adiante, dobrando numa curva e depois em outra.
Willa consultou o relógio sob a luz da lanterna. – Temos cerca de 20 minutos antes que eles voltem por aqui. Mas o outro homem poderia aparecer. Ele é imprevisível. – O homem alto de cabelos brancos? – É. Ele não parece tão mau quanto os outros, mas tenho medo dele. – Eu tenho pavor de todos. – Onde você mora? – Na Geórgia. – Eu sou da Virgínia. Espero que minha família esteja bem. O homem falou que tinha entrado em contato com eles e dito que eu estava bem. Você tem família? – Não, não tenho – respondeu Diane rapidamente. – Quero dizer, não tenho marido e filhos. Mas pedi a ele que entrasse em contato com minha mãe e dissesse que estou bem. Só não sei se vou continuar bem. – Mais um motivo para tratarmos de fugir daqui – respondeu Willa. – O que foi isso? – perguntou Diane alarmada. Um grito tinha vindo de algum lugar atrás delas. – Acho que descobriram que não estamos lá – disse Willa. Foi exatamente naquele instante que a menina sentiu no rosto o leve sopro de uma corrente de ar. Ela agarrou a mão de Diane: – Por aqui! As duas avançaram depressa pelo corredor. – Olhe! – disse Willa. O corredor acabava em uma porta maciça. Diane tentou virar a maçaneta da velha porta, mas ela não se moveu. Willa já estava com suas ferramentas na mão. Enquanto Diane segurava a lanterna, ela inseriu os instrumentos e começou a trabalhar depressa e metodicamente. – Como você aprendeu a fazer isso?
– É muito útil quando se tem uma irmã caçula que vive ficando presa no banheiro – disse Willa enquanto empurrava e cutucava, rezando para que os pinos entrassem em suas ranhuras corretamente. Diane olhou para o fundo do corredor. – Eles estão vindo. Ai, meu Deus, acho que estão vindo. Depressa! Depressa! – Se eu me apressar, não vou conseguir – respondeu Willa calmamente. – Se não andar logo, eles vão nos encontrar. O último pino se encaixou, Willa girou a trava e, com a ajuda de Diane, empurrou e abriu a pesada porta de madeira. A luz que irrompeu fez as duas cobrirem os olhos. Elas correram para fora e olharam ao redor, ofuscadas. Então o som de passos correndo as golpeou com mais violência que o sol. – Vamos! – gritou Diane. Ela agarrou a mão de Willa e elas saíram em direção ao terreno plano adiante, exatamente no momento em que um pequeno avião aterrissava. – Quem você acha que está vindo? – perguntou Diane. Willa olhou ao redor, observando que o único meio de chegar ou sair parecia ser o avião. – Ninguém que a gente queira encontrar. Por aqui, depressa! Elas mudaram de rumo e se esconderam atrás de uma rocha bem no instante em que Daryl e Carlos saíam da mina e se separavam, correndo em direções diferentes à procura delas. Willa e Diane seguiram adiante pela encosta estreita e íngreme, arrastandose agarradas à pedra e tão abaixadas quanto conseguiam. – Talvez possamos chegar ao topo e então descer pelo outro lado – disse Willa, ofegante. Diane arfava tanto que não conseguiu responder. Ela agarrou Willa: – Preciso tomar fôlego. Nunca fui muito de fazer exercícios. Retomaram a subida um minuto depois. Chegaram ao topo da encosta, atravessaram a crista e então olharam para o outro lado.
– Deus nos ajude! – exclamou Diane. Era íngreme, um paredão quase reto. – Não vou conseguir descer isto. – Bem, eu vou tentar – disse Willa. – Você acha que encontraria um lugar para se esconder? Se eu conseguir fugir, trago ajuda. – Acho que sim – disse Diane, olhando ao redor. Então espiou pela borda de novo: – Willa, você vai acabar morrendo. Não pode ir. – Eu tenho que tentar. A menina agarrou a ponta de um pedregulho, encaixou o pé em uma reentrância estreita e desceu. Na manobra, algumas pedras e um pouco de terra escorregaram pela montanha e desceram em cascata até serem levadas pelo vento forte. – Por favor, tenha cuidado – disse Diane. – Estou tentando – disse Willa, arquejante. – É difícil. Ela apoiou o pé em uma depressão mais abaixo e estava a ponto de tentar outro movimento quando a rocha em que estava pisando cedeu. – Willa! – gritou Diane. A menina tentou se segurar, mas nada em que tocou deteve sua queda e uma chuva de terra e pedra começou a cobri-la. – Socorro! Diane foi atirada para o lado quando um homem passou correndo por ela, o braço comprido se estendendo e agarrando Willa pelo pulso um segundo antes que ela despencasse. Willa se viu sendo içada do desfiladeiro como um peixe do mar e então foi posta sobre uma rocha plana. Ela olhou para cima: Sam Quarry não parecia nada satisfeito.
MICHELLE OLHOU FIXAMENTE PARA o corpo da mãe. A autópsia fora concluída e, embora ainda faltassem resultados de exames toxicológicos e de alguns outros, a conclusão fora que Sally Maxwell não morrera de causas naturais. Tinha morrido em decorrência de um golpe na cabeça. Michelle havia falado diretamente com o legista do condado. O fato de seu irmão ser sargento da polícia lhe permitira isso, algo que de outro modo não ocorreria. Em geral, as famílias de vítimas de homicídio só recebiam palavras de consolo e algum tempo para se despedir, mas não tinham acesso aos fatos. O motivo era simples e inquietante: com frequência os assassinos eram os próprios parentes. O médico-legista tinha sido conciso mas taxativo: – Sua mãe não caiu e bateu com a cabeça. O ferimento foi profundo demais. O chão liso de cimento não poderia tê-lo causado e não havia nenhum vestígio de sangue na maçaneta do carro nem na ponta do corrimão da escada. Além disso, essas superfícies não combinam com o formato do ferimento. – E qual era o formato do ferimento? – Não devo falar disso com você, sabe? – disse ele, aborrecido. – Por favor, era minha mãe. Ficarei muito grata por qualquer ajuda que possa me dar que não viole regras importantes. O pedido simples pareceu comover o homem. – Era um formato incomum. Com cerca de 10 centímetros de comprimento e um centímetro de largura. Se eu tivesse que arriscar um palpite, diria que foi metal. Mas tinha um desenho esquisito. Também encontramos uma pegada muito estranha. – Portanto não há dúvida de que ela tenha sido morta?
O legista baixou os olhos e encarou Michelle através das lentes multifocais. – Trabalho nisso há 30 anos e até hoje ainda não vi alguém se matar com um golpe na cabeça e, depois de morto, esconder tão bem a arma que a polícia não conseguisse encontrá-la. O corpo havia sido liberado pelo legista e seguido para a funerária local. Michelle tinha ido lá para ver a mãe antes que o corpo fosse preparado para o velório. Havia um lençol cobrindo-a até o pescoço, piedosamente ocultando a incisão em Y feita em seu tórax e abdômen durante a autópsia. Nenhum dos irmãos de Michelle quisera acompanhá-la. Conheciam o trabalho da polícia e sabiam como ficava um cadáver depois de uma autópsia – sobretudo 48 horas depois da morte. Não, seus irmãos “durões” esperariam até que o corpo da mãe fosse colocado no caixão de 3 mil dólares. Antes disso, ele receberia as substâncias que impediriam sua decomposição, teria o cabelo penteado, o rosto maquiado e ganharia roupas elegantes para esconder as marcas da autópsia. Dizem que a beleza é fugaz. A frase nunca lhe parecera tão apropriada. Michelle não queria se lembrar da mãe daquele jeito, mas precisava ir lá. Tinha que ver os efeitos brutais que alguém causara à mulher que há mais de três décadas lhe dera à luz. Sentiu-se tentada a virar a cabeça da mãe para o lado e olhar o local do ferimento ela mesma, mas resistiu. Seria desrespeitoso e, se o legista não havia conseguido identificar a arma usada, não havia esperança de que ela conseguisse. Imaginou os últimos momentos da mãe. Será que tinha visto o assassino? Será que o reconhecera, fosse homem ou mulher? Será que soubera o motivo da agressão? Será que sentira dor? E o último e o mais arrasador dos pensamentos: será que seu pai havia matado sua mãe? Ela pegou a mão da mãe e a acariciou. Disse coisas para a Sally morta que nunca havia conseguido dizer enquanto estava viva. Aquilo a fez sentir-se mais vazia que antes. E ultimamente suas depressões vinham sendo realmente profundas. Cinco minutos depois ela estava do lado de fora, ao ar livre, puxando tanto oxigênio quanto podia. No percurso de volta para casa, se perdeu em lembranças da mãe. Quando estacionou na entrada, ficou dentro do carro por algum tempo ainda, tentando se recompor. O pai tinha preparado o jantar. Michelle se sentou para comer com ele. Seus irmãos tinham saído para ficarem juntos, imaginava ela, ao mesmo tempo que davam à irmã caçula uma oportunidade de estar a sós com o pai. – Está boa a sopa – disse ela. Frank tomou uma colherada da canja. – Eu fiz tudo. Nos últimos anos, eu vinha assumindo a cozinha cada vez mais – disse. Então acrescentou com uma ponta de ressentimento: – Mas é claro que você não saberia disso. Ela se recostou na cadeira, cortou um pedaço de pão, pôs na boca e o mastigou devagar, pensando em como responder. Até certo ponto, não havia resposta. Ela não costumava aparecer por ali. Não sabia daquilo. Por outro lado, ficou imaginando por que o pai iria querer fazê-la sentir-se culpada naquele momento. – Mamãe andava ocupada? – Tinha seu círculo de amizades. Sua mãe sempre foi uma pessoa mais sociável do que eu. Acho que era por causa do meu trabalho. Fui obrigado a manter certa distância. Ela nunca teve esse problema. E essa amargura? – De ter de se preocupar que um de seus colegas pudesse violar a lei? Michelle desejou poder trazer as palavras de volta no instante em que as pronunciou, antes que ganhassem força fora de sua cabeça. Ele levou alguns segundos para responder. – Algo assim. – Quem eram? Os amigos. – Amigas – respondeu ele. – Rhonda, Nancy, Emily, Donna. – E o que faziam? – Jogavam cartas. Faziam compras. Jogavam muito golfe. Almoçavam juntas. Fofocavam. Coisas que senhoras aposentadas fazem.
– Você nunca ia com elas? – De vez em quando ia. Mas eram mais programas de mulheres. – Quem ela ia encontrar naquela noite? Mais uma vez ele demorou a responder. Se fosse um jogo, Michelle teria apostado que o pai estava se preparando para blefar. – Donna, pelo menos é o que acho. Para jantar, acredito. Não tenho certeza. Ela só comentou rapidamente. – Donna tem sobrenome? Desta vez não houve demora na resposta. – Por quê? – disparou de volta. – Por que o quê? – Por que você quer saber o sobrenome de Donna? – Bem, alguém já ligou para ela e explicou que mamãe não apareceu porque estava morta? – Não estou gostando de seu tom, menina. – Pai, não sou menina há pelo menos 20 anos. Ele descansou a colher. – Eu liguei para ela, OK? Mas isto aqui não é nenhuma cidade grande. Ela já sabia. – Então era mesmo com Donna que mamãe ia se encontrar? Por um instante ele pareceu confuso e inseguro. – O quê? Era, acho que era. Michelle sentiu uma dor lancinante no peito. Levantou-se, deu uma desculpa qualquer e saiu da casa. Do lado de fora, ligou para a única pessoa em quem jamais se permitira confiar. Sean King tinha acabado de aterrissar em Washington, no aeroporto Dulles. – Preciso da sua ajuda – disse ela, depois de contar o que havia acontecido. Sean foi procurar um voo para Nashville.
– VOCÊ PODIA TER MORRIDO – disse Sam Quarry asperamente enquanto se sentava diante de Willa em sua “cela”. – Eu sou prisioneira aqui. Prisioneiros têm que tentar fugir – respondeu ela prontamente. – É o papel deles. Todo mundo sabe disso. Quarry tamborilou os dedos longos e grossos no tampo da mesa. Tinha confiscado as “ferramentas” de Willa e retirado toda a comida enlatada. Também havia mandado Daryl e Carlos reforçarem a segurança da porta. – Quem é Diane? – perguntou Willa. – Uma mulher – respondeu Quarry de má vontade. – Disso eu já sei. Por que ela está aqui? – Não é da sua conta. Ele se levantou para ir embora. – Aliás, obrigada – disse Willa. Quarry se virou, parecendo surpreso. – Por quê? – Por salvar minha vida. Se não fosse por você, eu estaria no fundo daquele penhasco. – De nada. Mas não tente fazer algo parecido de novo. – Posso ver Diane outra vez? – Talvez. – Quando? – Não sei. – Por que não? É um pedido bastante simples.
– Por que você faz tantas perguntas se não estou respondendo a nenhuma delas? – retrucou Quarry, evidentemente frustrado e, ao mesmo tempo, intrigado com a persistência da garota. – Porque fico na esperança de que em algum momento você comece a responder. – Você é diferente de todas as meninas que já conheci. Não, retiro o que disse. Você me faz lembrar de uma pessoa. – Quem? – Uma pessoa. Ele saiu, trancou a porta e deslizou uma grossa tábua de madeira para a frente dela. Mesmo que Willa conseguisse de alguma forma abrir a tranca novamente, não conseguiria empurrar a porta. Enquanto ia andando, foi tirando os papéis do bolso. Eram o motivo por que ele estava ali naquele dia. Chegou à porta e bateu. – Quem é? – respondeu a voz trêmula de Diane. – Preciso falar com você – disse ele através da porta. – Está vestida? Já se lavou depois de seu passeio lá fora? – Já. Ele destrancou a porta e entrou. Como na cela de Willa, eles haviam preparado o lugar com uma cama, uma pequena mesa, uma lanterna, um banheiro portátil, água e sabão para o banho, comida enlatada, água para beber e algumas roupas. Diane havia trocado as roupas que sujara na tentativa de fuga por outra calça e uma blusa branca. Quarry fechou a porta depois de entrar. – Acabei de conversar com Willa. – Por favor, não a castigue pelo que fez. – Não estou planejando machucá-la – disse, acrescentando em tom sombrio: – A menos que vocês duas aprontem outra dessas. Não há como sair daqui, mesmo que consigam sair da mina. – Por que você está fazendo isso? Ele se sentou à mesa e exibiu dois pedaços de papel. – É por isto – disse, então apontou com a cabeça para a única outra cadeira no aposento. – Não quer sentar?
– Quero ir para casa. – Você precisa dar uma olhada nisto. Reunindo coragem, Diane chegou um pouco mais perto. – Se eu olhar, vai me deixar ir embora? A voz dela estava suplicante, os olhos cheios de lágrimas. Era como se quisesse desesperadamente ouvir dele algo que lhe assegurasse que em algum momento seria livre de novo. – Bem, com certeza não pretendo manter vocês aqui por muito tempo mais. – Por que me trouxe aqui? E Willa? – Eu precisava das duas. Nada do que preciso fazer aconteceria sem vocês – disse Quarry com simplicidade. Então exibiu os papéis que trazia. – O sangue que tirei de vocês foi enviado para um lugar que fez uma porção de exames. Testes de DNA. Eu poderia ter pegado apenas uma amostra de dentro de sua boca, mas, pelo que li sobre o assunto, achei que usar o sangue talvez fosse melhor. Não queria erros. – DNA? – É. São como impressões digitais, só que melhores. Estão tirando um monte de inocentes do corredor da morte com isso. – Eu nunca cometi um crime. – Não disse que tinha cometido. Ele olhou para as folhas de papel, silenciosamente lendo os resultados mais uma vez. – O que você fez foi dar à luz uma garotinha 12 anos atrás. Deu à luz e depois a entregou para adoção. Gostou de ver a menina hoje? O sangue abandonou por completo o rosto de Diane. – Do que você está falando? – Willa é sua filha. Agora se chama Willa Dutton. Ela acabou de comemorar 12 anos. O nome da mãe dela é Pam Dutton. Quero dizer, a mãe adotiva. Também mandei examinar o sangue da Sra. Dutton, caso o seu não combinasse. Mas combinou. Sem nenhuma sombra de dúvida, você é a mãe dela.
– Isso é impossível – disse a mulher com dificuldade, sua voz mal conseguindo articular as palavras. – Você engravidou, teve a criança e então os Dutton a adotaram – afirmou. Ele agitou os papéis no ar: – DNA não mente, minha senhora. – Por que está fazendo isso? – perguntou em voz baixa, mas num tom de pânico. – Tenho meus motivos – disse apenas. Depois se levantou e virou para Diane: – Gostaria de ver sua filha de novo? A mulher pôs a mão sobre o tampo da mesa para se firmar. – O quê? – Sei que vocês duas acabaram de se conhecer, mas achei que gostaria de revê-la, agora que sabe. Ela olhou para os papéis. – Eu não acredito no que você disse. Ele passou as páginas para ela. – Pedi que escrevessem em termos que pessoas comuns como eu pudessem compreender. A folha de cima do teste é de Willa. A de baixo é sua. Leia a linha do resultado. Ela pegou os papéis e leu lentamente. – Aqui diz 99,9% de compatibilidade para mãe e filha – falou, entorpecida. De repente, Diane atirou os papéis sobre a mesa: – Quem é você? – gritou. – Isso é uma longa história e não estou disposto a lhe contar. Quer ver a garota ou não? Diane balançava a cabeça. Quarry olhou para ela com uma curiosa mistura de compreensão e repulsa. – Você poderia ter ficado com a criança – disse ele. – Acho que entendo por que não ficou, mas isso não significa que concorde com o que fez. Filhos são preciosos. A gente tem que ficar com eles. Aprendi essa lição da maneira mais difícil. A mulher se empertigou:
– Não sei quem você é nem o que quer, mas não tem o direito de me julgar. – Se eu fosse do tipo que julga, talvez você já estivesse morta. Esse comentário fez com que Diane caísse de joelhos, se encolhesse e desatasse a chorar. Quarry se abaixou, pegou os resultados dos testes de DNA onde ela os deixara cair e ficou parado, olhando para ela. – Última chance de ver a garota – disse finalmente. Um minuto se passou. Afinal a mulher disse: – Ela... ela tem que me ver? – Vocês já se conheceram... – Mas eu não sabia que ela era minha filha – rebateu Diane Wohl. Então acrescentou calmamente: – Eu não sabia que... eu era mãe dela. – Está bem, eu entendo. Um pensamento súbito ocorreu a Diane: – Ah, meu Deus, ela sabe que eu sou a mãe dela? – Não. Não vi motivos para contar, porque não foi você quem criou a menina. – Você conhece essa Pam Dutton? – Nunca a vi. – Mas sabe se ela foi boa para Willa? – Está me dizendo que não conheceu a mulher antes de entregar a ela a sua filha? – Não foi assim. Na verdade, não tive escolha. – Todo mundo tem escolha. – Então posso vê-la sem que ela me veja? – Tenho como fazer isso. Se estiver disposta. A mulher se levantou, as pernas bambas. – Eu gostaria de vê-la. De alguma forma, admitir aquilo soou como uma confissão de culpa. – Me dê alguns minutos.
Diane avançou rapidamente e o agarrou pelo braço: – Não vai fazer nada que a machuque, não é? Quarry lentamente retirou os dedos da mulher de sua manga. – Volto daqui a pouco. Cinco minutos depois, ele voltou e segurou a porta aberta para que ela passasse. Diane olhou temerosa para a porta, como se pensasse que passar por ela significaria não voltar. Percebendo isso, Quarry disse: – Eu lhe dou minha palavra: vou levá-la para ver a garota e depois trazê-la de volta. – E depois? – Depois veremos. Não posso prometer mais que isso.
SAM QUARRY RETIROU A tábua dos ganchos de metal bem pregados na parede de pedra, abriu a porta e convidou Diane Wohl a entrar. – Onde ela está? Quarry apontou para a esquerda. – Ali. Diane girou o corpo e olhou fixamente para um pequeno vulto debaixo do cobertor numa cama encostada na parede. Quarry ergueu o cobertor, deixando ver Willa, que dormia sob ele. Diane se esgueirou mais para perto. – E se ela acordar? – Dei uma coisinha para fazê-la dormir. Dura pelo menos uma hora. Ela parece com você – disse ele em voz baixa. – O nariz, o queixo. Os olhos dela são da mesma cor dos seus. Diane balançou a cabeça involuntariamente, concordando. Ela também via a semelhança. – Willa Dutton. É um nome bonito. – Você não deu nome a ela? – Não. Eu sabia que não iria ficar com ela, então... Quero dizer, não pude. Diane acariciou o cabelo castanho da garota. Olhou de volta para Quarry: – Não faça mal a ela. – A culpa dessa situação não é dela. Também não é sua, na verdade. – Mas você disse antes... – Existem graus de culpa.
– Então quem... – Você queria entregar a menina para adoção? – Eu disse que não tive escolha. – E como eu lhe disse antes, as pessoas sempre têm escolha. – Posso abraçá-la? – Vá em frente. Diane pôs os braços ao redor dos ombros de Willa. Acaricioulhe o rosto, encostou a face na da garota e finalmente lhe deu um beijo na testa. – De que você se lembra da adoção? – Não muito. Eu só tinha 20 anos. – E o pai? – Não é da sua conta. – Então você simplesmente desistiu dela? – Foi – afirmou, encarando-o. – Eu não tinha dinheiro. Ainda estava na faculdade. Não tinha como cuidar dela. – Então eles a tiraram de você. E sua vida acabou dando certo – disse Quarry. – Terminou a faculdade, conseguiu um bom emprego. Casou, mas depois se divorciou. Nunca mais teve filhos. – Como sabe de tudo isso a meu respeito? – Não sou um homem muito inteligente, mas me esforço. Precisava saber de tudo a seu respeito e fiquei sabendo. – E para que está fazendo tudo isso? – Não é da sua conta. Diane se virou de volta para Willa quando a garota começou a gemer um pouquinho. – Ela está acordando? – perguntou temerosa. – Apenas sonhando. Mas é melhor sairmos. Depois de voltar à sua cela, Diane disse: – Quanto mais tempo vou ser mantida aqui? – Se eu tivesse uma resposta para isso, lhe daria, mas não tenho. – E Willa?
– A mesma coisa. – Você disse que o nome da mãe adotiva dela era Pam? – Correto. – Ela deve estar louca de preocupação. – Creio que não – respondeu Quarry. – Por que não? – Porque ela está morta.
SEAN CONSEGUIU EMBARCAR EM um voo para Nashville ainda naquela noite. Michelle o apanhou no aeroporto. No percurso até a casa do pai dela, Sean a colocou a par do que havia descoberto sobre Tuck Dutton e Cassandra Mallory. – Ela me parece alguém que eu adoraria mandar tomar naquele lugar – comentou Michelle, irritada. – Bem, não parece que seria exatamente um problema para ela. – Então quem era o homem que se encontrava com Pam, o tal que Tuck pensou que estivesse tendo um caso com ela? – Não tive chance de descobrir. Depois de seguirem em silêncio por alguns segundos, ele disse: – Você realmente acha que seu pai matou sua mãe? – Não sei o que pensar. Só sei que alguém matou minha mãe e que ele tem agido como principal suspeito. – A polícia também pensa assim? – Ele foi chefe de polícia e meu irmão Bobby é policial aqui. Existe uma tendência a proteger a corporação. – Mas se as provas apontarem nessa direção, eles terão que agir. – Eu sei – retrucou ela, em tom tenso. – Você já falou com essa tal Donna, a mulher com quem sua mãe iria jantar? – Ainda não. Estava na esperança de que você e eu pudéssemos fazer isso juntos. Ele apertou o ombro dela. – Sei que é difícil, Michelle. Mas vamos conseguir.
– Você está superocupado com o caso Dutton. Quero dizer, com a primeira-dama e tudo mais. Eu me sinto um pouco culpada por metê-lo nisso. Ele deu um sorriso tranquilizador. – Sou um multitarefas muito eficiente. Você já devia saber disso. – Mesmo assim, obrigada. – Já falaram com as pessoas da vizinhança? Alguém viu alguma coisa? – Tinha uma festa na piscina na casa do vizinho. Aniversário de 16 anos da neta dos donos da casa. Carros estacionados por todo lado pela rua inteira. Muito barulho, música, mas ninguém viu nada. – Talvez possamos descobrir alguma coisa – observou ele em tom encorajador. A casa dos Maxwell estava cheia, por isso Michelle fez uma reserva para Sean num hotel na cidade. Ele deixou sua mala no quarto e os dois seguiram de carro para a casa dos pais dela. Sean deu pêsames a todos e depois a parceira o levou ao quintal dos fundos, onde poderiam conversar. – O enterro é amanhã – disse ela. – Seus irmãos parecem estar curiosos para saber o que faço aqui. – Deixe que fiquem. – Eles também desconfiam de seu pai? – Mesmo que tivessem suspeitas, nunca admitiriam. – Mas você não tem problema em admitir. – De que lado você está? – Do seu, sempre. Por onde quer começar a investigação? – Roubei a agenda de endereços de minha mãe. Tem o nome de uma Donna Rothwell lá. É a única Donna, portanto deve ser a que procuramos. Sei que já é tarde, mas poderíamos ligar para ela e pedir que nos receba. – Com que pretexto?
– O de querer conhecer as amigas de minha mãe? De ela poder me contar algumas histórias? De que alguma recordação em particular talvez ajude a encontrar o assassino? – E se essa pessoa for o seu pai? – Não abro exceções. Se for ele, é ele. Apesar da hora, Donna Rothwell concordou em recebê-los. Era uma mulher de 60 e poucos anos, com cerca de 1,65 metro de altura e físico compacto e atlético. Tinha o cabelo meticulosamente penteado e estava muito bem maquiada. Emanava simpatia e vivacidade. Sua casa ficava a cerca de seis quilômetros da dos Maxwell. Era grande, luxuosamente mobiliada e imaculada. Uma mulher com o uniforme completo de doméstica atendeu a porta. Donna definitivamente tinha dinheiro e, a julgar pelos muitos suvenires e fotos expostos nas prateleiras e mesas, ficava claro que ela viajara pelo mundo inteiro em grande estilo. – Meu falecido marido, Marty, foi um alto executivo de uma grande fabricante de computadores e se aposentou cedo – explicou ela. – Pudemos aproveitar bem a vida juntos. – Seu marido morreu? – perguntou Sean. – Há anos. Do coração. – Não quis se casar de novo? – Marty e eu éramos namorados desde os tempos de faculdade. Duvido que possa encontrar alguém tão bom novamente, então, para que arriscar? Mas eu saio. Agora, na verdade, estou até namorando. Parece coisa de adolescente, eu sei, mas o ciclo se repete se você vive tempo suficiente para isso. – Bem, a senhora e minha mãe eram muito amigas? – Nós fazíamos muitas coisas juntas. Ela era divertida. Sei que tudo isso é terrivelmente triste e deprimente, mas quero que você saiba que sua mãe sabia se divertir. – E meu pai? Donna pegou seu coquetel e bebeu um golinho antes de responder. – Ele não saía tanto quanto ela. Gostava de ler, ou pelo menos era o que Sally me dizia. Era mais reservado. Ele foi da polícia, não é? Viu o lado ruim da vida por muitos anos. É provável que isso deixe a pessoa marcada, ou pelo menos eu acho. Talvez faça com que a pessoa não consiga se divertir. Não sei. Estou apenas especulando – acrescentou rapidamente ao ver a expressão amarga no rosto de Michelle. – Seu pai é um bom homem. E bonito. Muitas mulheres por aqui achavam que sua mãe tinha sorte. – Tenho certeza disso. Então mamãe havia combinado de vir se encontrar com a senhora na noite em que morreu? Donna descansou o copo. – Quem lhe disse isso? – Importa? – Acho que não. – Então ela vinha? – Nós tínhamos falado no assunto, com certeza – disse, parando um segundo para tentar ordenar seus pensamentos. – Na verdade, creio que íamos fazer algo juntas. Jantar, talvez ir ao cinema. Fazíamos isso praticamente toda semana. – Não foi há tanto tempo assim. A senhora não pode dar certeza? – perguntou Sean gentilmente. – Quero dizer, a polícia vai querer saber com precisão. Donna tornou a pegar seu drinque. – A polícia?! – A morte de minha mãe não foi acidental, Donna. A polícia está investigando. – Pensei que ela tivesse tido um ataque do coração ou batido com a cabeça ou coisa assim. – Não. – Então o que aconteceu? Quando nenhum dos dois disse nada, Donna exclamou: – Estão mesmo dizendo que ela foi assassinada? – Por que acha isso? – perguntou Michelle. – Porque se o coração dela não parou e ela não bateu com a cabeça e a polícia está investigando, o que mais poderia ser? – O que pode me dizer sobre a vida de minha mãe, as pessoas que conhecia, as coisas que fazia?
Donna estava com o olhar perdido. A boca se movia, mas sem emitir nenhum som. Finalmente disse: – Se houver um assassino à solta... – Ninguém disse que era esse o caso. Agora voltemos à minha mãe. Donna bebeu de um gole o resto de seu drinque e disse apressadamente: – Sally tinha muitas amigas. Todas mulheres, até onde sei. Nós fazíamos as coisas juntas, nos divertíamos. Era só isso. – Pode me dizer os nomes delas? – Por quê? – Porque quero conversar com elas, como estou conversando com a senhora. – Você está investigando? – retrucou, seus olhos nervosamente fitando Michelle. – Sally me contou que você trabalhava para o Serviço Secreto. E que agora é investigadora particular. – É verdade. Mas tudo o que sou neste momento é uma filha que perdeu a mãe. Pode me dizer os nomes? Donna lhe passou os nomes, bem como os endereços e contatos. Enquanto eles iam saindo de carro, o telefone de Michelle tocou. Ela atendeu, ouviu e depois desligou. – Merda! – O que foi? – Era meu irmão Bill. A polícia acabou de levar meu pai para ser interrogado.
ELES FORAM DE CARRO com Bill Maxwell até a delegacia, mas, apesar da ligação de Bobby com a polícia, receberam poucas informações e acabaram esperando sentados na entrada, bebendo um café ruim vendido numa máquina automática. Quase ao amanhecer, um Frank Maxwell pálido e cansado surgiu no final do corredor. Ele pareceu surpreso ao vê-los. Bill imediatamente passou o braço em volta dos ombros do pai. – Você está bem, pai? Não consigo acreditar que tenham feito isso. – Eles estavam apenas fazendo o trabalho deles, Billy. Como você faria. – O que eles queriam? – perguntou Michelle. – As perguntas de costume, uma chuva de onde, o quê e por quê – disse Frank em tom casual, sem olhar para ela. – O que você disse a eles? – perguntou ela. Naquele momento ele a encarou com dureza: – A verdade. Michelle se aproximou mais do pai. – Que é...? Bill se posicionou entre eles e pôs a mão no ombro da irmã. – Quer parar, por favor? Pelo amor de Deus, o enterro da mamãe é hoje à tarde! – Eu sei – rebateu Michelle, irritada, afastando a mão dele. – O que você disse a eles, pai? – Isso é entre mim e eles. E meu advogado. – Seu advogado? – espantou-se Bill.
– Estou sendo investigado. Preciso de um advogado. – Mas você não fez nada. – Não seja idiota, Billy. Homens inocentes já foram para a cadeia, você e eu sabemos bem disso. Tenho o direito de ter um advogado, como todo mundo. Voltaram todos juntos para casa, com Frank e Bill Maxwell no banco de trás do carro. Ninguém disse uma palavra durante todo o percurso. Mais tarde, quando Sean ia saindo da casa dos Maxwell para ir para o hotel, disse a Michelle: – Por que você não fica de olho em seu pai e eu cuido da lista de amigas e tento falar com algumas antes do enterro? – Não, quero ir com você. Podemos fazer isso depois. – Mas sua família... – Ele tem meus quatro irmãos. Duvido que chegue a sentir minha falta. Pode até ser bom, uma vez que não estamos nos entendendo muito bem. – OK, então vou dormir algumas horas. – Eu também – disse ela. De volta ao hotel, Sean atacou o frigobar, dormiu quatro horas, depois deu alguns telefonemas. Tuck Dutton tinha recebido alta do hospital. Sean ligou para a casa da irmã de Pam Dutton em Bethesda. Tuck tinha passado lá, buscado os filhos e ido para uma casa alugada, disse ela. O investigador ligou então para o celular de Tuck. Alguém atendeu no segundo toque. Não era Tuck. – Jane? – Oi, Sean. – Soube que Tuck se mudou com as crianças para uma casa alugada. – Exato, eu os estou ajudando a se instalarem. – Onde fica?
– Na Virgínia. É uma casa na cidade, perto da estação Vienna do metrô. O FBI a usa de vez em quando para acomodar seus agentes. O Serviço Secreto também está aqui, é claro. – Como estão Tuck e as crianças? – Não muito bem. Você fez algum progresso? – Fiz, será que posso falar com ele? – Não pode falar comigo? – Eu realmente preciso falar com Tuck a respeito disso. Pelo ruído que escapou da garganta da mulher, ficou claro que ela não tinha gostado nem um pouco da recusa. Mesmo assim, um momento depois, ouviu-se a voz de Tuck: – O que há de novo, Sean? – Jane está ao seu lado? – Está, por quê? – Você vai precisar de alguma privacidade quando ouvir o que tenho a dizer. Dê um jeito. – Mas... – Ande, dê um jeito! – Hum, um momento. Sean o ouviu balbuciar alguma coisa e então outros ruídos se fizeram ouvir ao telefone, dando a entender que Tuck estava andando para algum lugar. Depois uma porta se fechou e, finalmente, ele retornou à linha. – Pronto. De que se trata? – Estive em Jacksonville. – Por quê? – retrucou Tuck. – Precisava de um bronzeado. – Sean... – Eu sei de tudo, Tuck. Na verdade, sei mais do que você. – Eu disse a você que... – Passei a tarde com Cassandra, a Exibida. Isto é, depois que Greg Dawson passou uma grana para ela. – Greg Dawson! – gritou Tuck.
– Baixe a voz, Tuck, já ando meio surdo. Pois bem, aqui vai o furo de reportagem. Dawson descobriu que você tinha um caso com Cassandra e agora ela está trabalhando para ele, para fazer você perder a concorrência. Tenho certeza de que eles conseguiram fotografias e tudo mais de vocês dois. É o que vão usar para entreter o Departamento de Segurança Interna. – Aquele canalha. E aquela cadela! – Pois é. A propósito, esta é uma boa lição de por que a fidelidade é o melhor caminho. – Você não contou a Jane... Sean o interrompeu. – Não faz parte do meu trabalho. Para mim, você é um canalha por ter feito essa merda com a mulher que era sua esposa e mãe de seus filhos, mas sei que a minha opinião não importa. – Ela deu em cima de mim, Sean. Eu juro. Ela me seduziu. – Trate de crescer, Tuck. Mulheres manipuladoras como Cassandra sempre voam em cima de panacas como você. E a sua obrigação como homem casado é dizer para caírem fora. Até eu disse isso quando ela ficou me mostrando a calcinha. E eu sou solteiro! Poderia ter deitado e rolado com ela sem nenhuma culpa, mas, por sorte, meu bom gosto me salvou. Mas não sou terapeuta de casais e não foi por isso que telefonei. – Então por que ligou? – perguntou Tuck, nervoso. – Cassandra disse que vocês discutiram por causa de uma questão envolvendo a possibilidade de Pam estar tendo um caso. É verdade? – Bem... – Ou você começa a me dizer a verdade ou vai ter de encontrar Willa sozinho. – Sim, é verdade. – Saber disso antes teria sido realmente muito útil, Tuck. – Eu... eu estava confuso, isso para não mencionar aquela pancada na cabeça. – Cassandra disse que você tinha ouvido algumas conversas e que chegou a ver Pam com um sujeito.
– Foi isso mesmo. Não conseguia acreditar que ela pudesse estar me traindo. – Pois é, que audácia, não? Muito bem, aqui vai a próxima pergunta. Sei que seu avião chegou cedo. Você disse que não parou em lugar nenhum. Portanto, onde passou a hora livre que teve entre sua saída do aeroporto e a chegada em casa? – Como você... Sean o interrompeu com impaciência. – Sou investigador, Tuck. É o meu trabalho. Estamos perdendo tempo e sua filha está por aí em algum lugar com um bando de criminosos. Então, onde você esteve? E se pensar em mentir para mim, vou até aí e, com proteção do Serviço Secreto ou não, arranco a verdade de você. – Eu fiquei do lado de fora de minha casa – respondeu ele apressadamente. – Do lado de fora de sua casa? – É. Estava vigiando. Achei que se Pam acreditasse que eu ainda estava em Jacksonville, poderia se encontrar com o “amigo”. Queria pegá-los em flagrante. Mas ninguém apareceu, então guardei o carro na garagem e entrei. – E se o cara aparecesse, o que exatamente pretendia fazer? – O que iria fazer? Hum, não tenho certeza. Provavelmente dar uma surra nele. – E depois o quê? Confessar sua própria infidelidade a Pam e deixar que ela batesse em você? – Olhe, você perguntou e eu respondi. Não preciso de um sermão, está bem? Alguma coisa na explicação de Tuck, porém, não estava batendo. – Sua casa fica depois de uma longa entrada para carros ladeada por mata dos dois lados. De onde você ficou vigiando? – A entrada para carros faz uma curva e há uma clareira entre as árvores na parte leste do terreno. Dá para ter uma visão clara da porta da frente e também da garagem. – Era noite e estava escuro. – Eu tinha binóculos no carro.
– Assim, por acaso? – Tudo bem, comprei os binóculos pensando nisso. – Quando você estava observando sua casa, não reparou em ninguém por perto que não deveria estar lá? – Não, não havia ninguém. – Com certeza havia alguém, Tuck. Eles não estavam dentro da casa enquanto você observava, caso contrário você provavelmente teria ouvido gritos. Eles na certa montaram um esquema de vigilância da área antes. Devem ter visto você imediatamente e esperaram que entrasse antes de partirem para o ataque. – Mas eu os teria visto, Sean. – Não, não teria. Eles sabiam o que estavam fazendo. E você, não. – Merda! – resmungou Tuck. – O que você ouviu nos telefonemas? Com o máximo de detalhes que puder se lembrar. – Foram duas chamadas. Por acaso calhou de eu atender uma no mesmo instante que Pam. Eu ouvi uma voz de homem. Ele disse algo tipo “Preciso vê-la. E logo”. E Pam queria que fosse depois. Foi tudo o que ouvi antes de ficar nervoso demais e desligar. – E a outra? – Eu estava passando pela porta do quarto. Pam deve ter pensado que eu já tinha saído, mas esqueci minha pasta e voltei da garagem. Ela estava falando em voz baixa, mas a ouvi dizer que eu estaria fora da cidade dali a dois dias e que então eles poderiam se encontrar. – E o que aconteceu? – Eu fingi viajar. Mudei meu voo e a segui. Ela foi a uma cafeteria a cerca de meia hora de casa. – E você viu o cara? – Vi. – Cor de cabelo, altura, raça e idade? – Um homem alto. Mais ou menos do seu tamanho. Sei disso porque ele se levantou quando ela entrou. Era branco, de cabelo escuro e curto, um pouco grisalho. Talvez uns 50 anos. Tinha uma aparência realmente profissional. – E o que você fez? – Fiquei sentado no carro por cerca de meia hora. Então Pam saiu e eu fui embora. – Por que você não esperou que o sujeito saísse e foi pedir satisfações? – Já lhe disse, era um cara grande. – Esse foi o único motivo? Silêncio. – Fale, Tuck. – Está bem, está bem. Ele estava de terno. Vi os dois examinando uns papéis. Em nenhum momento agiram como pombinhos apaixonados. Então, de repente, comecei a pensar... – Que talvez eles não fossem amantes? Que talvez o homem fosse um advogado e Pam estivesse pensando em se divorciar de você? – Ou que fosse um detetive particular que ela tivesse contratado para me seguir. Era provavelmente por isso que Pam tinha pedido o encontro comigo. – Espere um minuto, se você pensou isso, por que voltou antes da Flórida na noite em que Pam foi morta? Você falou que queria pegá-los em flagrante e cair na porrada com o sujeito, mas agora acabou de dizer que desistiu porque o cara era grande. E também admitiu que tinha suspeitado de que ele não fosse amante e sim detetive. Pare de mentir. Eu quero a verdade. – Isso é constrangedor, Sean. – Tuck, você quer Willa de volta? – É claro que quero! – Então esqueça a vergonha e me diga a verdade. Tuck falou num rompante: – Pensei que se eu apanhasse o sujeito saindo de nossa casa, talvez pudesse falar com ele e suborná-lo.
– Por quê? – Pelo mesmo motivo que Dawson fez o que fez. Se Pam descobrisse meu caso e o levasse a público, a concorrência estaria perdida. Eu não podia deixar que isso acontecesse, Sean. Trabalhei como um condenado. Significava tudo para mim. Sean desejou loucamente que fosse possível dar uma surra em Tuck via celular. – Bem, obviamente era mais importante para você que o seu casamento. E aquela história que você e Jane me contaram no hospital? Sobre seu sócio estar querendo obrigá-lo a vender porque você precisava de dinheiro. Aquilo era tudo mentira! – É, não era exatamente a verdade. – E Jane sabia? – Ela estava apenas tentando me proteger, Sean. Sempre fez isso. E eu sempre a decepciono. – Bem, você acha que Pam poderia ter algo escrito que nos leve a localizar esse homem? Talvez um cartão de visitas, se o cara era advogado ou detetive particular? – Por quê? Ele não está ligado a Willa e ao que aconteceu a Pam. Isso deve ter a ver com meu caso com Cassandra. – Tuck, será que você poderia parar de pensar com a cabeça de baixo um instante? Se quer minha opinião, essa história ter a ver com seu caso com Cassandra é apenas uma teoria e bastante implausível. Pense um pouco: para que matar sua mulher e sequestrar Willa por causa de uma concorrência? Por que Dawson faria isso? Ele já estava com o esquema montado para derrubar você. Existem outros concorrentes que estariam dispostos a se arriscar à pena de morte em nome daquele contrato? – Bem, não. Na verdade, não mesmo. As concorrências por contratos do governo são ferrenhas, mas não a esse ponto. – Ótimo, obrigado por usar um pouco de lógica. Agora, outra possibilidade é que o tal homem tenha alguma coisa a ver com o desaparecimento de Willa e a morte de Pam e que isso não tenha nenhuma relação com a merda que você aprontou. – Mas como seria possível? Por que ele ligaria para Pam e depois se encontraria com ela se pretendia fazer uma coisa daquelas?
– Já ouviu falar de pessoas que usam falsos pretextos para adquirir informações privilegiadas? Vocês que participam de concorrências do governo são mestres nisso. Tuck respondeu vagarosamente: – É, acho que entendo o que quer dizer. – Você contou ao FBI alguma coisa a respeito disso? Sobre Cassandra e o sujeito que viu com Pam. – É claro que não. Espere um minuto, eu tenho que contar? – Não me pergunte, não sou seu advogado. E quando eu voltar à cidade, vamos esclarecer algumas coisas com sua irmã. – Voltar à cidade? Onde você está? – No Tennessee. – Por quê? – Um enterro. – Nossa! Acabei de me lembrar: o enterro de Pam é na sextafeira. Jane está tomando as providências. – Tenho certeza de que está. – Você vem? – Vou. Mas sabe de uma coisa, Tuck? – O quê? – Vai ser por Pam, não por você! Ah, e aproveitando que você está sendo tão sincero agora, me diga uma coisa: a criança adotada foi Willa? – O quê?! – Tuck deixou escapar, surpreso. – A autópsia confirmou que Pam só fez duas cesarianas e que não podia ter parto normal. Vocês têm três filhos, portanto qual deles foi adotado? Willa? Tuck bateu o telefone. – Obrigado pela resposta – disse Sean para si mesmo.
SAM QUARRY TIROU DO bolso seu gordo molho de chaves, encontrou a certa e abriu a porta quase bicentenária de 10 centímetros de espessura. Atlee era uma mistura: parte coisa de branco pobre, parte Sul rural e parte história americana. Esta última era bastante representada pelo aposento em que ele estava entrando. Ficava nas entranhas da casa principal, tão profundamente incrustada na terra que ali não se podia fugir do cheiro adocicado de barro vermelho. Era naquele cômodo que os ancestrais de Quarry mantinham por longos períodos seus escravos mais rebeldes, de modo que não influenciassem os demais. Sam tinha retirado os grilhões das paredes, assim como as divisórias que formavam as celas individuais – que eram assim para que os escravos não se fortalecessem na companhia uns dos outros. Aquela era uma parte da história da família que ele não se importaria de esquecer. Pessoas haviam morrido ali. Sua família escravagista guardara registros disso. Homens, mulheres e até crianças. Por vezes, quando ele estava ali à noite, sentia a presença deles, pensava ouvir seus gemidos, a respiração agonizante à beira da morte, o som abafado de suas palavras de despedida. Entrou e trancou a porta atrás de si. Como sempre fazia, reparou nos longos e profundos arranhões no carvalho grosso serrado à mão: marcas de unhas de gente tentando se libertar. Olhando bem de perto, era possível ver as manchas escuras de sangue na madeira. Pelo que lera nos registros da família, Quarry sabia que ninguém que fora preso ali tinha conseguido escapar. As paredes agora eram pintadas, revestidas de compensado de 18 milímetros. Ele mesmo havia preparado as armações e prendido as placas de 2,5 metros de comprimento. Usara apenas um martelo robusto e seus braços fortes. Fora um trabalho pesado, mas compensara. Sempre gostara de serviços que lhe cansavam o corpo.
Agora, exposta sobre os painéis de madeira, estava a obra que representava anos inteiros da vida de Sam. Havia quadros-negros que retirara de escolas abandonadas e lousas brancas que havia comprado barato de uma empresa que estava fechando. Aquelas superfícies eram cobertas da escrita bem desenhada de Quarry, aprendida em aulas de caligrafia em casa. Havia traços ligando anotações e linhas associando conjuntos de fatos. Alfinetes de cabeças vermelhas, azuis e verdes estavam presos por todos os lados, cada um deles conectado a outro por um barbante. Era como a obra de arte de um matemático ou de um físico. Por vezes ele se sentia como se fosse o John Nash daquele cantinho do Alabama. Exceto, esperava ele, pela parte da esquizofrenia paranoide. Uma diferença clara entre ele e o matemático ganhador do prêmio Nobel era que em suas anotações distribuídas pelas paredes não havia fórmulas complicadas nem números, exceto pelas datas. A obra de Sam era constituída de palavras que contavam uma história complexa. Tinha sido ali, durante longas noites, que Quarry montara as peças do quebra-cabeça. Desde que podia se lembrar, sua mente sempre fora boa em trabalhar com fluxos e movimentos. Ao desmontar seu primeiro motor, foi como se pudesse ver a fagulha de energia que punha o combustível em ignição, depois todo o processo que se seguia, permitindo que o sistema de combustão fizesse sua mágica. Esquemas e diagramas considerados desafios intransponíveis pela maioria das pessoas eram claros como água para ele. O mesmo valia para tudo o mais: aviões, armas, equipamentos agrícolas complicados e com tantas peças que deixavam os melhores mecânicos zonzos, sem descobrir qual possibilidade, entre um milhão de outras, se encaixava no caso. Mas Sam Quarry sempre descobria. Achava que tinha herdado esse dom da mãe, porque seu pai adúltero e racista não saberia sequer fazer ligação direta em um carro. Sam era um tipo raro de homem, que quase não se encontrava mais. Ele de fato conseguia construir ou consertar qualquer coisa. Enquanto examinava a maior obra de sua vida, ocorreu-lhe que aquilo representava um tempo, um lugar e uma oportunidade determinados: era uma espécie de mapa do tesouro que o tinha guiado até onde precisava ir. Levara-o a fazer o que fizera. E o motivaria a fazer o que faria no futuro. Num futuro próximo. Havia ainda, no cômodo, velhos e maltratados arquivos cheios do trabalho de investigação que permitira a Sam preencher as lacunas em seus esquemas. Ele tinha viajado para muitos lugares, falado com muitas pessoas, enchido centenas de páginas com as anotações que agora ficavam dentro daqueles armários, mas os frutos da pesquisa estavam expostos nas paredes. O olhar dele começou a seguir o traçado daquele mosaico, partindo de onde tudo havia se iniciado e seguindo adiante até a extremidade oposta, onde tudo se encaixava. De um extremo ao outro, os pontos no fim se conectavam. Algumas pessoas poderiam considerar aquele aposento o santuário de uma mente obsessiva. Sam não teria discordado. Para ele, no entanto, o cômodo também representava a única rota para chegar às metas mais ilusórias do mundo: não apenas à verdade, mas também à justiça. Não eram objetivos incompatíveis, mas Sam Quarry os achara imensamente difíceis de conciliar. Ele nunca havia falhado em nada a que tivesse se dedicado com afinco. Contudo, contemplara diversas vezes a possibilidade de que aquilo se tornasse seu primeiro fracasso. Ele caminhou até o canto mais afastado do aposento, onde havia um pequeno vão, e olhou por trás de uma divisória de madeira, para alguns pesados cilindros de metal empilhados ali junto com tubos, calibradores e outras peças. Também havia restos de revestimento de chumbo sobre uma bancada de madeira. Bateu de leve num dos tanques, sua aliança ressoando contra o metal. Seu ás na manga. Saiu, trancou a porta, subiu para a biblioteca, calçou as luvas, enfiou uma única folha de papel na máquina de escrever e começou a bater nas teclas. As palavras que surgiam diante dele na página não lhe causavam surpresa: fazia muito tempo que ele as planejara. Ao acabar, dobrou a página, enfiou-a em um envelope préendereçado, acrescentou nele uma chave que tirara do bolso, fechou o envelope e saiu em sua velha picape. Depois de rodar mais de 300 quilômetros, alcançando o estado do Kentucky, depositou a carta numa caixa de coleta do correio. Já era manhã quando chegou de volta a Atlee. Apesar de ter dirigido a noite inteira, não estava nem um pouco cansado. Parecia que sua energia se renovava a cada passo que conseguia concluir em seu plano. Tomou o café da manhã com Gabriel e Daryl e ajudou Ruth Ann a lavar os pratos na cozinha. Depois foi para o campo e trabalhou por seis horas com o filho. Calculava que sua carta chegaria ao destino no dia seguinte ou pouco depois. Imaginou qual seria a reação deles, o pânico que se instalaria. Aquilo o fez sorrir. Depois do jantar, montou em um de seus cavalos e foi até o trailer de Fred. Lá, apeou, acomodou-se num dos bancos de concreto do lado de fora e distribuiu cigarros, uma garrafa de uísque e latas de energético, algo muito apreciado por seus amigos koasatis. Fred contou histórias de sua infância, passada em Oklahoma numa reserva indígena, com um homem que ele afirmava ser filho do guerreiro Gerônimo. – A reserva lá era cheroqui, não era? – perguntou Quarry preguiçosamente, enquanto observava o cachorro de Fred lamber suas partes íntimas e depois rolar na terra tentando se livrar das pulgas. – Pensei que Gerônimo fosse apache. Fred olhou para ele com uma mescla de divertimento e seriedade nas feições duras como pedra. – Você acha que pessoas como você sabem diferenciar pessoas como eu? Quarry e os outros índios riram. – Então por que acabou voltando para cá? Eu na verdade nunca soube. Fred abriu os braços curtos. – Isto aqui é terra koasati. Eu voltei para casa. Quarry não diria que aquilo não era terra koasati, que era a boa e velha terra dos Quarry. Gostava do homem. Gostava de visitálo e de trazer cigarros e uísque para ele, de ouvir suas histórias. Então sorriu e ergueu sua cerveja: – À volta para casa – brindou. – À volta para casa – todos disseram juntos. Alguns minutos depois, todos entraram para fugir dos mosquitos e fazer mais alguns brindes a coisas absurdas. Um dos koasatis ligou a TV, mexeu nos controles e ajustou a imagem. Era hora do noticiário. Enquanto Quarry se sentava e bebericava seu drinque, seu olhar se fixou na tela e ele parou de ouvir as histórias de Fred.
A matéria principal era sobre o sequestro de Willa Dutton. Novas informações de uma fonte não revelada tinham acabado de chegar. Eram sobre a cena do crime. Quarry se levantou enquanto o apresentador relatava o que era. Haviam escrito algo no braço da mulher assassinada, letras que não faziam nenhum sentido, mas que a polícia estava investigando. Quarry saltou do degrau mais alto do trailer para a terra, assustando tanto o velho cachorro que ele começou a ganir e se enroscou para se proteger. Fred chegou à porta a tempo de ver Quarry montar seu cavalo e sair em disparada de volta para Atlee. O índio sacudiu a cabeça, resmungou alguma coisa sobre os malucos dos brancos e fechou a porta. Sam Quarry encontrou Daryl sozinho no celeiro. O rapaz observou com incredulidade enquanto seu pai se aproximava dele como um zagueiro enfurecido. Sam o empurrou na parede com violência e pressionou o antebraço contra a garganta do filho. – Você escreveu alguma coisa nos braços dela! – rugiu. – O quê? – arquejou Daryl. – Você escreveu alguma coisa nos braços dela! O que foi? – Deixe eu respirar que eu lhe digo. Quarry deu um passo atrás, mas não antes de dar um violento empurrão que fez o filho bater contra a parede mais uma vez. Ofegante, Daryl contou ao pai o que fizera. – Por que diabo você fez isso? – Depois que a mulher morreu, eu fiquei com medo. Achei que assim poderia despistá-los. – O que você fez foi burrice, moleque. – Desculpe, papai, sinto muito. – Você com certeza sente muito. – Mas da maneira como escrevi, eles nunca vão descobrir. – Me diga exatamente como você escreveu. Daryl apanhou um velho catálogo de sementes da bancada de trabalho, arrancou uma página e escreveu as letras nela, usando uma caneta esferográfica. Quarry pegou o papel e leu.
– Está vendo, papai? Para eles não vai fazer sentido, certo? Você sabe o que quer dizer, não sabe? – É claro que sei o que quer dizer – retrucou com aspereza. Quarry saiu do celeiro e olhou para o céu. Ainda estava claro, embora o sol poente tingisse as nuvens de um vermelho chamejante como brasa. Ele não reparou que Daryl o seguira e que agora o olhava fixamente com uma expressão que implorava por um elogio por ter tomado aquela atitude. Sam Quarry nunca saberia que aquele era o mesmo olhar suplicante que ele próprio dera à mãe no dia em que ela morrera. Sam acendeu um fósforo e queimou o papel até que se desfizesse em cinzas. Ele as observou esvoaçarem no ar, levadas por uma ligeira brisa, até se espalharem na terra alguns metros adiante. – Está tudo bem, pai? – perguntou Daryl nervosamente. Quarry apontou para o pó negro espalhado. – Este foi seu segundo erro, rapaz. Mais um e será o fim, sendo meu filho ou não. Com essas palavras, ele se virou e saiu andando.
ACOMPANHADA POR SEAN KING e um grande grupo de amigos, a família Maxwell assistiu ao ministro dizer sua prece. Ele leu um trecho das Escrituras em um tom devidamente solene e depois se afastou para que os presentes pudessem chegar ao caixão coberto de flores e dizer algumas palavras de despedida. Os irmãos de Michelle avançaram todos juntos, em grupo, seguidos por outras pessoas. Mais tarde, à medida que o aglomerado de gente foi aos poucos se desfazendo, Frank Maxwell pôs as mãos no caixão da mulher e baixou a cabeça. Michelle estava ao lado de Sean e observou o pai. Ele passou a mão nos olhos para enxugá-los e, de cabeça ainda baixa, seguiu para seu carro. Michelle tinha chegado a estender a mão para segurar o braço dele, mas mudou de ideia no último segundo. – Você vai lá? – perguntou Sean. – Aonde? – Até o caixão. Prestar a última homenagem. Michelle olhou fixamente para o caixão de mogno dentro do qual a mãe estava. Os funcionários do cemitério esperavam ao fundo, prontos para baixá-lo à sepultura. O céu estava carregado. A chuva não tardaria e eles provavelmente estavam ansiosos para acabar seu trabalho. Havia outros enterros a fazer – cuidar dos mortos, ao que tudo indicava, era uma ocupação de tempo integral. Havia poucas coisas de que Michelle Maxwell tinha medo. Mas naquele momento estava olhando para uma delas. – Você vem comigo? Sean pegou o braço da parceira e eles seguiram adiante juntos. Ela pôs a mão na tampa do ataúde, seus dedos alisando as pétalas de algumas flores. – Ela não gostava de lírios – comentou Michelle.
– O quê? Michelle indicou as flores sobre o caixão. – Ela preferia rosas. – No instante em que disse a última palavra, afastou a mão de súbito, como se tivesse levado uma ferroada. – Você está bem? Ela olhou para a mão. Não havia nada ali, não tinha sido picada ou mordida nem nada. E lírios não tinham espinhos. – Eu... eu não sei – murmurou. Então, em um tom mais firme, acrescentou: – Vamos sair daqui. De volta à casa, o ambiente era de conversas tristes em voz baixa, mescladas a piadas ocasionais e o som de risos. Amigos chegavam e havia fartura de comida para recebê-los. No meio daquilo tudo, Frank Maxwell estava sentado no sofá com o olhar vago. Qualquer um que se aproximasse para lhe dar os pêsames logo ia embora, sua presença nem sequer era notada. Sean observou Michelle, que observava o pai. Quando um grupo de pessoas entrou, Frank Maxwell finalmente se mexeu. A expressão de desdém em seu rosto fez com que Sean e Michelle se virassem para ver para quem ele estava olhando. Seis pessoas tinham entrado, quatro homens e duas mulheres. Traziam travessas de comida e conversavam entre si. Michelle reconheceu alguns deles do funeral. Quando se virou para olhar para o pai, espantou-se. Ele não estava mais lá. Ela e Sean trocaram olhares. Seu parceiro apontou para o corredor dos fundos, onde ficava o quarto principal. Então bateu de leve no peito e meneou a cabeça em direção ao grupo que chegara. Michelle piscou, demonstrando que o compreendera, e seguiu para o quarto. Ela bateu à porta. – Que é? A voz de seu pai soou zangada. – Sou eu, pai. – Só estou descansando um minuto – disse ele. O tom foi mais calmo, mas ela ainda percebeu uma pontada de raiva.
– Posso entrar? Seguiram-se 30 segundos de silêncio. Ela bateu de novo. – Pai? – chamou. – Está bem. Céus, entre. Ela abriu a porta, entrou e tornou a fechá-la. Seu pai estava sentado na beira da cama segurando alguma coisa. Michelle sentou ao lado dele e olhou para baixo. Era uma foto do casamento. Eles tinham feito como mandava o figurino: uma cerimônia grandiosa na igreja, sua mãe radiante toda de branco e seu pai de cabelo à escovinha, casaca e gravataborboleta. Com apenas 21 anos, ele acabara de voltar do Vietnã. Era alto, bronzeado e bonito, com um sorriso confiante. Sally Maxwell, que ainda não tinha 20 anos, era linda. Michelle tinha muito da beleza da mãe, embora, quando mais jovem, nunca tivesse pensado nisso. Fora mais apegada ao pai, a clássica menina levada que queria impressionar o pai alto, forte e durão. Ela tirou a foto das mãos dele e a colocou de volta na mesinha de cabeceira. – Precisa de alguma coisa? – Estou cansado de gente, Michelle. Não posso voltar para lá. – Então não precisa voltar. Pode deixar que cuido de tudo. Talvez devesse tentar dormir um pouco. – Está bem, certo – disse ele em tom de dispensa. – Seu advogado já entrou em contato? Ele lançou um olhar incisivo para ela. – O quê? – Você disse que tinha um advogado. Estava querendo saber se já tinha falado com ele. Ele sacudiu a cabeça e baixou o olhar. Ela esperou mais um minuto, mas ele não disse nada. Finalmente ela lhe deu um abraço e se levantou para sair. Quando ia chegando à porta, ele falou. Suas palavras fizeram com que ela parasse com a mão na maçaneta.
– Você acha que eu a matei, não acha? Ela se virou lentamente. Ele estava mais uma vez segurando a foto do casamento, embora não estivesse olhando para o casal feliz mostrado ali para toda a eternidade. Olhava fixamente para ela. – Você acha que eu a matei. Ele levantou a foto como se a prova para sustentar sua acusação estivesse bem ali. – Eu não disse isso. – Não precisava dizer – rebateu ele. – Pai... Ele a interrompeu. – Apenas saia daqui. Agora! Ela saiu correndo do quarto.
TODO MUNDO TINHA IDO embora, a comida havia sido guardada e as lágrimas, derramadas. Os irmãos Maxwell estavam reunidos no quintal dos fundos, conversando baixinho enquanto bebiam cerveja. Frank Maxwell continuava no quarto. Sean e Michelle ficaram sentados na sala enquanto, lá fora, o crepúsculo lentamente se transformava em noite. – Então ele a acusou de pensar que ele era o assassino? Michelle assentiu devagar, ainda tentando digerir aquilo. – Acho que não posso culpá-lo – disse ela. – E uma vez policial, sempre policial. Ele conhece muito bem os procedimentos. Os parâmetros habituais o colocam como suspeito. – Isso é verdade. Quando uma mulher sofre uma morte violenta, há grandes chances de que o culpado seja seu companheiro. – Não acho que eles se amassem. Sean descansou sua lata de refrigerante e a encarou. – Por quê? – Eles nunca tiveram nada em comum, além dos cinco filhos. Papai estava sempre fora, trabalhando. Mamãe estava sempre em casa. Quando ele se aposentou, os dois mal se conheciam. Lembra quando fizeram aquela viagem para o Havaí para comemorar o aniversário de casamento? Eles acabaram voltando antes da data prevista. Conversei com Bill a respeito disso mais tarde. Ele me contou que papai tinha dito que eles ficaram sem assunto para conversar já no primeiro dia. Que nem sequer tinham algo de que gostassem de fazer juntos. Simplesmente se afastaram. – Eles alguma vez pensaram em divórcio? – Não sei. Nunca me falaram nisso. – Mas você não era tão ligada à sua mãe, era?
– Eu era mais apegada a meu pai, mas mesmo isso ficou desgastado com o passar dos anos. – Por quê? – Não estou com vontade de enfrentar seu lado psicanalista agora. – Tudo bem, estava só perguntando. – Quem eram aquelas pessoas que chegaram logo antes de papai se enfurnar no quarto? – Você não conhecia nenhuma delas? – perguntou Sean. – Não conheço nenhum dos amigos de meus pais. – Eu dei uma circulada e bati papo com as pessoas. Na maioria, eram amigos de sua mãe. Jogavam golfe, cartas e faziam compras juntos. Alguns participavam de projetos de caridade. – Nada fora do comum? Tive a impressão de que papai não queria nem vê-los. – Nada que tenha me chamado a atenção. Pareciam sinceramente tristes com a morte de sua mãe. Eles se viraram quando ouviram a porta se abrir. Frank Maxwell passou por eles e saiu antes que sequer se levantassem do sofá. Michelle conseguiu chegar à porta da frente a tempo de ver o pai entrar no carro e sair dirigindo em alta velocidade. – Mas que diabo foi isso? – perguntou Sean, juntando-se a ela na porta. Michelle sacudiu a cabeça e então olhou para o corredor que levava ao quarto. – Venha – disse. A primeira coisa em que Michelle reparou foi que a foto do casamento não estava no lugar. Sean olhou para um canto, se abaixou e a apanhou. – Por que ele teria jogado isto na cesta de lixo? – Estou começando a ter realmente um mau pressentimento. Sean examinou a foto.
– Sua mãe está morta. No dia do enterro dela, seu pai joga a foto do casamento no lixo. O que o levaria a fazer isso? – Você acha que Pam Dutton chegou a jogar sua foto de casamento no lixo? – Porque Tuck a estava traindo? Você acha que sua mãe... Ele não conseguiu concluir seu raciocínio na presença de Michelle. – Estou apenas... Não sei. – Você tem certeza de que quer examinar essa possibilidade? – Quero descobrir a verdade. Como for possível. – Geralmente há sinais. – E acrescentou: – Além de fotos de casamento em cestas de lixo. Michelle começou a abrir as gavetas da cômoda. Sean foi revistar o armário. Alguns minutos depois, Michelle exibiu algumas peças de lingerie bastante ousadas que ainda traziam a etiqueta de preço, enquanto Sean tirara do armário três mudas de roupas novas e um par de botas de salto fino. Eles se entreolharam, mas preferiram não falar sobre a conclusão óbvia. Puseram as roupas de volta em seus lugares e Michelle o conduziu ao pequeno escritório que ficava em frente à sala de jantar. Havia uma escrivaninha em um canto. Ela começou a vasculhar as gavetas. Tirou o talão de cheques e o entregou a Sean. – Mamãe cuidava das contas. Enquanto Sean avaliava os canhotos dos cheques, Michelle metodicamente examinou os extratos de cartão de crédito. Alguns minutos depois, ela levantou a cabeça. – Há centenas de dólares de despesas em roupas para homem em quatro lojas diferentes na internet. Não vi nada dessas lojas no quarto. Ele levantou o talão de cheques. – Há um registro aqui do pagamento de uma taxa de torneio de golfe. Seu pai joga golfe? – Não, mas mamãe jogava. Não tem nada de estranho. Sean mostrou um papel que havia tirado da escrivaninha.
– Isto é parte do formulário de registro para o torneio de golfe. Custava 50 dólares por pessoa, mas o cheque foi de 100. – Duas pessoas. – Michelle, o formulário diz que é um torneio de casais. Michelle arrancou o papel da mão dele e o examinou antes de deixá-lo separado. Sean olhou para ela incomodado. – Você não acha que seu pai poderia facilmente ter encontrado tudo isso? Puxa, nós descobrimos em cerca de 10 minutos. – Parece que minha mãe não se esforçava muito para esconder. Talvez ela não se importasse. Talvez ele não se importasse. – Seu pai não me parece ser do tipo que simplesmente aceitaria a traição sem fazer nada. – Você não conhece meu pai na verdade, Sean – disse, encarando as próprias mãos. – E talvez eu também não. – O que está havendo aqui? Ambos levantaram o olhar. Bill Maxwell os encarava. Olhou para o talão de cheques e os extratos de cartão de crédito. – O que você está fazendo, Mik? – Examinando algumas contas. Era mamãe que cuidava disso e não quero que papai se enrole. Ela guardou tudo de volta na gaveta e se levantou. – Papai saiu – disse ela. – Aonde ele foi? – Não sei, ele não me pediu permissão. Ela olhou para a lata de cerveja na mão de Bill. – É isso o que vocês pretendem fazer o tempo todo agora, tomar cerveja e ficar de conversa? – Puxa vida, Mik, nós acabamos de enterrar nossa mãe. Dê um desconto. – Tenho certeza de que ela não falou por mal, Bill. – Falei, sim – retrucou Michelle com aspereza.
Ela pegou as chaves do carro e seguiu em direção à porta. Sean lançou um olhar de desculpas para Bill e foi correndo atrás dela. Alcançou-a quando ela estava entrando no carro. – Aonde você vai? – Falar com Donna Rothwell de novo. – Por quê? – Se minha mãe estava tendo um caso, ela provavelmente sabe com quem.
SHIRLEY MEYERS OLHOU FIXAMENTE para a carta, sem saber o que fazer com ela. Tinha recolhido a correspondência mais cedo, mas não a abrira. Agora, enquanto se preparava para sair para o trabalho, tirara alguns minutos para examinar a pequena pilha. Não havia endereço de remetente na carta em sua mão. Quando examinou o carimbo do correio, estreitando um pouco os olhos para enxergar, sacudiu a cabeça, confusa. Não conhecia ninguém em Kentucky. Virou o envelope: não era carta comercial nem um pedido de doação. Era apenas um envelope branco simples. E havia um pequeno volume dentro dele. Algo mais além de papel. Ela abriu a carta, usando o dedo mindinho para soltar a cola. Havia uma folha de papel e uma pequena chave. Depois de examinar a chave, que tinha números gravados, desdobrou a carta. Era datilografada e não estava endereçada a ela. Shirley cobriu a boca com a mão quando viu o nome do destinatário. Leu as palavras e então rapidamente pôs a carta de volta no envelope, junto com a chave. Por um longo período ficou paralisada onde estava. Coisas daquele tipo não deviam acontecer com pessoas como ela. Mas ela não podia ficar ali parada. Vestiu o casaco e saiu de casa. Pegou o ônibus para o centro da cidade e consultou seu relógio. Shirley se orgulhava da própria pontualidade. Nunca chegava atrasada ao trabalho. Parte dela, contudo, não queria ir trabalhar naquele dia, não com aquela carta no bolso. Continuou aflita enquanto seguia até a entrada, passava pela segurança e recebia permissão para entrar no prédio, cumprimentando os conhecidos com um aceno de cabeça à medida que cruzava com eles. Ela entrou na cozinha, tirou o casaco e o pendurou, lavou as mãos e começou a preparar a comida. Olhava para o relógio sempre que uma pessoa surgia. Tentava não encará-las. Em vez disso, apenas acenava com a cabeça quando a cumprimentavam. Ela não sabia o que fazer. Os pensamentos que lhe ocorriam eram uns piores que os outros. Será que poderiam mandá-la para a cadeia? Mas ela não havia feito nada senão abrir a própria correspondência. Será que acreditariam nela? Então outra possibilidade aterradora lhe ocorreu: e se pensassem que ela a havia roubado dali? Bem, eles não poderiam. Era o endereço dela que estava no envelope, não aquele. A certo ponto, ficou tão aflita que seu supervisor foi lhe perguntar o que estava acontecendo. De início ela resistiu, mas o fato era que se não contasse a verdade a alguém, teria um colapso. Ela tirou a carta do bolso e a mostrou ao homem. Ele a leu inteira, examinou a chave e então lançou um olhar severo para ela. – Que diabo! – disse. – Está endereçada a ela – disse Shirley. – Toda a correspondência que vem para cá tem que ser examinada antes, você sabe disso – disse o homem em tom de censura. – Mas não veio para cá, veio? – rebateu Shirley. – Foi para a minha casa. Não há nenhuma lei contra eu abrir minha própria correspondência – acrescentou, desafiadora. – Como descobriram que poderiam mandar para você? – Como vou saber? Não posso impedir que me enviem uma carta. O homem pensou em outra coisa: – Não havia nenhum pó branco, havia? – E eu ainda estaria aqui se houvesse? Não sou burra, Steve. Foi apenas a carta. E aquela chave. – Mas você pode ter estragado as digitais e coisas assim. – Como eu poderia saber? Não imaginava o que era até abri-la. Steve coçou o queixo. – Está mesmo endereçada a ela. – A carta, sim, mas não o envelope. Mas não posso levar e entregar a ela. Não tenho permissão. Você sabe disso, não sabe? – Eu sei, eu sei – respondeu ele com impaciência. – E agora, o que faço?
Ele hesitou e depois disse: – Falar com a polícia? – Você leu o que a carta diz. Quer que ela morra? – Droga! Para que fui me meter nisso? – reclamou Steve, baixando a voz quando outros funcionários da cozinha entraram. Ele estava com cara de quem queria sair dali e atacar a adega de vinhos da Casa Branca para tomar coragem. Se fizesse isso, suas escolhas seriam limitadas: desde o governo do presidente Ford, ali só tinha vinhos produzidos no país. – Temos que fazer alguma coisa – cochichou ela. – Se alguém descobrir que recebi esta carta e não fiz nada... Não quero sujar minhas mãos com o sangue dela. Não quero! E agora você também sabe. Tem que fazer alguma coisa. – Calma, calma! – disse Steve e parou para pensar um pouco. – Olhe, deixe eu dar um telefonema – falou por fim, devolvendo-lhe a carta. Cinco minutos depois, uma mulher de terninho preto entrou na cozinha e pediu a Shirley que a seguisse. Elas passaram para uma área da casa em que Shirley jamais estivera. Enquanto olhava ao redor, para as pessoas que passavam apressadas, depois para homens e mulheres de rostos inexpressivos em posição de sentido diante de portas, ou para os militares e homens em belos ternos que carregavam grossas pastas, ela sentiu a boca ficar seca. Aquelas eram as pessoas que se via na TV o tempo todo, as pessoas importantes. Ela queria apenas voltar correndo para a cozinha e acabar de preparar sua travessa de queijos e frutas. Quando chegaram ao escritório da mulher de terninho, esta se virou para Shirley e disse em tom severo: – Isto é absolutamente contra as regras. – Eu não sabia o que fazer. Steve contou à senhora? – acrescentou Shirley nervosamente. – Contou. Onde está a carta? Shirley tirou o envelope do bolso e o entregou à mulher. – Leia a senhora mesma. O que mais eu poderia fazer?
A mulher pôs a chave sobre a escrivaninha, abriu a carta e a leu enquanto seus olhos se arregalavam. Rapidamente, pôs os dois itens de volta no envelope. – Quero que volte a seu trabalho e esqueça que viu isto. – Sim, senhora. Vai entregar a ela? A mulher já tinha tirado o telefone do gancho. – Isso não é mais problema seu. Depois que Shirley saiu do aposento, a mulher teclou um número e falou por alguns segundos. Minutos depois, chegou um homem de aparência ainda mais severa que ela e levou o envelope. Ele subiu apressadamente uma escada, cruzou um amplo vestíbulo, seguiu por outro corredor e finalmente chegou a uma porta. Bateu rapidamente. Uma mulher a abriu, recebeu a carta e fechou a porta sem trocar uma palavra com seu visitante. Um minuto depois, a carta estava sobre sua mesa. A porta fora trancada e a mulher estava sentada, sozinha, olhando para o envelope branco simples. Jane Cox finalmente tirou a carta do envelope e a leu. A pessoa que a escrevera tinha sido direta. Se Jane quisesse Willa Dutton de volta viva, a próxima carta que recebesse não poderia ser mostrada a mais ninguém. Se a polícia soubesse dela, dizia seu autor, ele descobriria. E se o público tomasse conhecimento do seu conteúdo, tudo seria destruído. E custaria a vida de Willa Dutton. Releu várias vezes uma parte crucial da carta. Dizia: Não quero matar a garota, mas, se tiver que fazer isso, farei. A próxima carta que lhe será enviada vai revelar muita coisa. Sob certos aspectos, vai revelar tudo. Se o público descobrir, estará tudo perdido para você. Sei que você sabe do que estou falando. Se você seguir as instruções, Willa lhe será devolvida sã e salva. Se não seguir, Willa morre e tudo mais estará perdido. Esse é o único caminho possível. O autor a informava de que a carta seguinte seria enviada para uma caixa postal em Washington, que estava identificada na carta. A chave era para isso, para abrir a caixa postal. Jane se recostou na cadeira. Uma sensação de horror quase incapacitante se apoderava de seu corpo. Pegou o telefone e depois o largou.
Não, não iria fazer aquela chamada. Ainda não. Trancou a carta na gaveta da escrivaninha e enfiou a chave no bolso do casaco. Dali a 10 minutos seria a anfitriã de uma recepção para governadoras e outras mulheres envolvidas em política, que estavam na cidade para discutir melhorias nos serviços de assistência médica. Ela deveria proferir alguns breves comentários, que já haviam sido postos no palanque montado na Sala Leste. Era o tipo de coisa que já fizera centenas de vezes e, quase sempre, de forma praticamente impecável. Já tinha experiência nisso: a Casa Branca recebia milhares de visitantes daquele tipo toda semana. Agora sabia que iria precisar de toda a sua força de vontade apenas para chegar ao palanque, abrir as anotações e ler as palavras que outra pessoa escrevera por ela. Cinco minutos depois, enquanto seguia pelo corredor rodeada por assessores e seguranças, sua mente não estava ocupada com os serviços de saúde. Nem com o conteúdo da carta. Depois de tê-lo pressionado impiedosamente, seu irmão finalmente lhe contara o que Sean havia lhe perguntado no telefone. Willa era a criança adotada? Ela pisou em falso ao pensar nisso e os agentes do Serviço Secreto imediatamente a seguraram pelo braço. – A senhora está bem? – Estou. Estou bem. Obrigada. Ela seguiu adiante, mergulhando em seu papel de primeiradama. Mas um terrível pensamento penetrava naquela armadura, geralmente sólida feito rocha, como se ela fosse de papel. Será que o passado está vindo atrás de nós?
SAM QUARRY DIRIGIA ENQUANTO Gabriel ia sentado no meio, com Daryl do outro lado. A picape sacolejou, chacoalhou e balançou até chegar ao asfalto. Tinham passado praticamente o dia inteiro no campo e estavam exaustos. Mas não tinham como deixar de fazer aquela visita. Puseram-se a caminho logo depois do jantar. Gabriel olhou pela janela e disse: – Seu Sam, acho que o senhor estava certo a respeito do Kurt. Ele foi embora. Nunca mais tivemos notícias dele. Daryl lançou um olhar para o pai, mas não disse nada. Quarry também não respondeu, apenas manteve uma das mãos no volante e os olhos fixos à frente, a fumaça de seu cigarro subindo em espiral. Eles entraram no estacionamento da clínica. Quarry pegou um gravador no painel, saltou da picape e pisou no cigarro que jogara no chão. Então os três entraram. Enquanto seguiam pelo corredor, Sam disse: – Faz muito tempo que você não visita sua irmã, Daryl. O rapaz fez uma careta: – Não gosto de vê-la assim. Não quero me lembrar dela desse jeito, pai. – Ela não teve escolha. – Eu sei. – Ela pode ter uma aparência diferente agora, mas ainda é a sua irmã que está lá dentro. Sam abriu a porta e os três entraram. A enfermeira tinha apoiado Tippi sobre o lado direito, de modo que Quarry levou as cadeiras para lá. Ele tirou o livro de Jane Austen do bolso e o entregou a Daryl.
– Não sou bom de leitura – argumentou o filho. – Ainda mais sendo essas coisas antigas, pai. – Tente. Não estou distribuindo prêmios por bom desempenho. Daryl suspirou, pegou o livro, sentou e começou a ler. Sua leitura era hesitante e lenta, mas ele deu o melhor de si. Depois de quatro páginas, Quarry lhe agradeceu e passou o livro para Gabriel. O garotinho era muito mais ágil nessa tarefa e num instante leu um capítulo inteiro, interpretando as características dos personagens e mudando a voz para diferenciá-los. Quando acabou, Quarry disse: – Você não me pareceu entediado desta vez, rapazinho. Gabriel pareceu encabulado. – Eu li o livro em casa. Achei que, se o senhor e a dona Tippi gostavam tanto, eu precisava tentar de novo. – E o seu veredito? – perguntou Quarry, com um sorriso nos lábios. – Melhor do que imaginei. Mas não é o meu favorito. – De qualquer maneira, muito bem. Quarry colocou o gravador na mesinha de cabeceira ao lado da cama e o ligou. Ele pegou a mão de Tippi e a apertou enquanto a voz de Cameron Quarry, a falecida esposa de Sam, enchia o quarto. Ela falava diretamente com a filha, dizendo palavras que manifestavam amor, encorajamento, esperança e tudo o que trazia em seu coração. A voz se enfraquecia ao final, porque aquelas tinham sido as últimas frases de Cameron Quarry antes de morrer. A pedido dela, Sam tinha feito aquela gravação nos últimos instantes de sua vida, enquanto a mulher jazia na cama em Atlee, morrendo aos poucos. Suas últimas palavras foram: – Eu amo você, Tippi querida. Mamãe ama você de todo o coração. Mal posso esperar para abraçá-la novamente, minha menina, quando estivermos bem e saudáveis nos braços de Jesus. Quarry mexeu os lábios, acompanhando as últimas palavras da esposa. Então desligou o gravador. Assim que o nome de Jesus deixara seus lábios, Cameron Quarry dera o último suspiro e morrera. Para uma mulher que acreditava tanto em Deus, Quarry achava que aquela havia sido uma maneira muito digna de morrer.
Ele fechara seus olhos e cruzara as mãos dela sobre o peito, como tinha feito com a própria mãe. Daryl e Gabriel tinham lágrimas nos olhos. Ambos as enxugaram enquanto se esforçavam para não olhar um para o outro. – Mamãe era a melhor mulher que já existiu no mundo – disse Daryl afinal, em voz baixa. Quarry assentiu e então tocou na face de Tippi. – E esta aqui está lá no alto com ela. – Amém – disse Gabriel. – Ela algum dia vai melhorar, seu Sam? – Não, meu filho, não vai. – O senhor gostaria de fazer uma prece para ela? – ofereceu o menino, juntando as mãos e ajoelhando-se. – Você pode orar se quiser, Gabriel, mas eu não faço mais isso. – Mamãe diz que o senhor não acredita em Deus. Por quê? – Porque ele parou de acreditar em mim. Sam se levantou e guardou o pequeno gravador no bolso do casaco. – Quando você terminar, estarei esperando lá fora no carro, fumando um cigarro. Quarry sentou na velha picape, com um cigarro apagado pendurado nos lábios secos, e deixou a janela aberta. O calor do Alabama estava em seu auge, mesmo sendo quase nove horas da noite. Sam limpou uma gota de suor do nariz enquanto um mosquito zumbia junto à sua orelha direita. O mosquito não o incomodava tanto. Estava observando um meteoro riscar o céu como uma linha de fogo, tendo a Ursa Maior como pano de fundo para o espetáculo. Depois que o show acabou, Sam baixou o olhar para o prédio cinzento que agora era o lar de sua filha. Não haveria marido, filhos nem netos para Tippi. Apenas um cérebro morto, um corpo maltratado e um tubo para alimentá-la. – Você estragou tudo, Deus. Não deveria ter feito isso. Conheço essas besteiras “escreve certo por linhas tortas” e “tudo tem o seu propósito”. Você errou, não é infalível. Deveria ter deixado minha menina em paz. Nunca o perdoarei pelo que fez e pouco me importa se você não me perdoar pelo que tenho que fazer – falou aos trancos, numa voz que soava brusca, até que se calou. Queria que as lágrimas viessem, se por nenhum outro motivo, pelo menos para aliviar a pressão que sentia na cabeça. Mas elas não chegaram. Sua alma era uma terra queimada já sem água para verter. Quando Darryl e Gabriel saíram do prédio e entraram na picape, Quarry jogou o cigarro apagado pela janela e eles seguiram de volta para Atlee em silêncio. Quarry imediatamente foi para a biblioteca, sentou à escrivaninha e se fortificou com uma boa dose de uísque com alto teor alcoólico. Acendeu a lareira, enfiou o atiçador no fogo, enrolou a manga da camisa e, com o ferro em brasa, fez uma segunda marca, perpendicular e à direita da que já havia ali. Dez segundos depois, o atiçador caía sobre o tapete, abrindo mais um buraco queimado, e Quarry se deixava tombar na cadeira. Respirando pesadamente, os olhos cravados no teto sujo de centenas de anos de fuligem produzida por seus ancestrais, Quarry começou a falar. A maior parte do que dizia não fazia sentido para ninguém, exceto para ele mesmo – para ele, era tudo mais do que claro. Começou pedindo desculpas às pessoas. Disse nomes com o tom de voz elevando-se e diminuindo a intervalos irregulares. Levou a garrafa aos lábios por um longo momento e tomou mais um gole de uísque. Mais palavras saíram de sua boca, todo o seu coração e sua alma jorrando. Lá em cima, no teto, estavam Cameron e Tippi, abraçadas. Ele as enxergava tão vividamente que tinha vontade de subir até lá e tomá-las nos braços, deixar que os três subissem juntos rumo a um lugar melhor que aquele, de agonia, onde ele estava. Por vezes se perguntava o que estava fazendo. Um homem inculto lutando contra o mundo. Ridículo, inacreditável, tolo: era tudo isso, com certeza. Mas agora não podia parar. Não só porque já tivesse ido longe demais, mas porque não tinha mais para onde ir. Quando fechou os olhos e depois os reabriu, a mulher e a filha tinham desaparecido. O fogo na lareira crepitava baixo. Ele o acendera apenas para aquecer o atiçador. Olhou novamente para o braço, para as linhas que se cruzavam. Hércules tivera os seus trabalhos. Ismael tivera que enfrentar a baleia Moby Dick. Jesus carregou a cruz e o fardo da vida de todos sobre seus ombros.
Aquela era a cruz que Sam Quarry tinha que carregar. Era, com certeza. Não se resumia apenas ao fato de que os outrora muitos hectares da terra dos Quarry tinham se reduzido a quase nada. Nem ao de que a casa quase em ruínas jamais seria reformada. Tampouco à esposa morta e à filha destruída. Ao filho fraco e à outra filha distante. Também não era apenas a história da família Quarry, tão turrona sob muitos aspectos que envergonharia qualquer descendente respeitável. O fato era que Sam Quarry não era mais o homem que fora. Tornara-se irreconhecível para si mesmo. E não por causa das queimaduras em seu braço, mas pelas marcas infernais feitas a fogo dentro dele. Ele tinha mentido para Gabriel, talvez até para si mesmo. Não era verdade que não acreditava em Deus: ele o temia. De alma e coração. Por causa do que tinha feito, jamais iria se juntar à sua adorada esposa e à bela filha, ressuscitadas, quando chegasse a hora. O preço que pagaria seria ficar longe delas por toda a eternidade. Era por isso que ouvia inúmeras vezes as últimas palavras da esposa. Era por isso que visitava Tippi com tanta frequência. Porque, quando chegasse seu fim, tudo estaria realmente acabado. Ele olhou para o teto mais uma vez. Então, tão baixinho que quase não se pôde ouvir, com o crepitar cansado do fogo na lareira, disse: – O inferno da eternidade é que ela é para sempre. Do lado de fora da porta fechada, Gabriel saiu correndo. Havia descido para buscar mais um livro e tinha ouvido muito mais do que queria. Muito mais do que o garoto, por mais esperto que fosse, poderia compreender. Ele sempre admirara seu Sam. Nunca conhecera um homem que o tratasse melhor. Contudo, mesmo assim, Gabriel correu todo o caminho de volta para seu quarto, trancou a porta e se enfiou debaixo das cobertas. Não dormiu aquela noite. Parecia que os lamentos de Sam Quarry lá embaixo eram capazes de penetrar cada centímetro quadrado de Atlee. Parecia não haver nenhum lugar que estivesse a salvo ou livre deles.
DONNA ROTHWELL NÃO ACREDITAVA que Sally Maxwell estivesse tendo um caso, disse a Sean e Michelle. Os três estavam sentados na ampla sala de visitas da mulher. – É um insulto à memória de sua mãe insinuar tal coisa – disse ela em voz estridente, lançando um olhar furioso para Michelle. – Mas alguém a matou – assinalou Sean. – Pessoas são mortas todos os dias. Um assaltante? Um ladrão? – Nada foi levado. Ela agitou a mão como se o que ele tinha dito fosse bobagem. – Então se assustaram e fugiram. – Da última vez que conversamos, a senhora estava apavorada com a ideia de um assassino andando à solta por aqui, agora parece ter aceitado facilmente essa possibilidade – observou Michelle numa voz cheia de ceticismo. – Aqui é um bom lugar para se viver, mas crimes existem em toda parte. É claro que estou assustada, mas isso não significa que não seja realista. Tenho um bom sistema de segurança. Tenho duas empregadas que moram comigo. E tenho Doug. – Doug? – Meu namorado. Mas acho que você está sendo muito injusta com sua mãe ao acusá-la de algo como isso. Principalmente agora, que ela não pode se defender. Sean pôs a mão no braço de Michelle. Percebera que ela estava a ponto de voar da cadeira em cima da mulher e não seria uma luta justa. Naquele momento um homem entrou na sala trazendo um saquinho de biscoitos salgados. Tinha mais ou menos 1,80 metro e parecia em ótima forma física. Ostentava a basta cabeleira grisalha de um apresentador de televisão e a pele bem bronzeada. Era um belo homem de 60 e poucos anos. – Este é meu namorado, Doug Reagan, de quem lhes falei antes – apresentou Donna, toda orgulhosa. – Fundador muito bemsucedido de uma empresa multinacional de TI. Ele a vendeu há quatro anos e agora está aproveitando a vida. Comigo. – Bem, este é o sonho americano – disse Michelle com uma gota de repulsa. Doug apertou a mão deles. – Sinto muito por Sally – disse ele. – Era uma mulher extraordinária. Uma boa amiga de Donna. – Obrigada – disse Michelle. Doug olhou para Donna e segurou-lhe a mão. – Vamos sentir saudades de seu rosto sorridente, não vamos? Donna apertou um lenço de papel que segurava e assentiu. – Michelle acha que Sally poderia estar tendo um caso. – O quê? – disse Doug, olhando incrédulo para eles. – Isso é absurdo! – O senhor pode garantir? – perguntou Sean. O homem abriu a boca e então a fechou. – O quê? Eu... – balbuciou. Depois olhou para a namorada. – Donna poderia saber melhor do que eu. Eu conhecia Sally, mas não tão bem como Donna. Mas mesmo assim, vivemos em uma comunidade pequena. Alguém saberia, não? – É o que estamos tentando descobrir – respondeu Michelle. – Mas precisamos que as pessoas digam a verdade. – Estou dizendo a verdade – retrucou Donna. – Sua mãe não estava tendo um caso com homem nenhum, que eu saiba. E como Doug disse, estamos em uma comunidade pequena. – Minha mãe comprou um pacote para participar de um torneio de golfe para casais. Meu pai não joga golfe. – Ah, pelo amor de Deus. Ela jogava com Doug – disse Donna. Michelle e Sean olharam para Doug, que estava com um biscoito na boca.
– Donna, você me pediu, lembra? Porque ela não tinha com quem jogar. – Exatamente, eu pedi. – Por que ele não jogava com a senhora? – perguntou Michelle. – Também joga golfe, não? Donna respondeu. – Porque, apesar de ser para caridade, era um torneio competitivo – respondeu Donna. – Não sou uma grande jogadora. Sua mãe era excelente e Doug também é. – É praticamente só o que faço hoje em dia – disse ele sorrindo. – Acertar a bola com o taco. – Então acrescentou rapidamente: – E ficar com Donna. – Ele é meu namorado firme – disse Donna. – Parece que é o que a gente deveria desejar ao se aposentar – disse Michelle, franzindo o cenho para Donna. – Olhe, se você veio aqui para nos insultar – Donna começou a dizer, mas Sean a interrompeu. – É um momento de tensão para todo mundo. Nós agradecemos sua ajuda. Creio que agora precisamos ir. Antes que Michelle pudesse protestar, Sean a pegou pelo braço e a empurrou para a porta. Levou um instante para que percebessem que Doug os havia seguido. – Realmente sinto muito por sua mãe. Eu gostava muito de Sally. Todo mundo gostava. – Bem, alguém não gostava – retrucou Michelle. – O quê? Ah, sim, é claro. Eles ficaram ali, constrangidos, parados na varanda da frente com as colunas em estilo coríntio os ladeando. Para Michelle, pareciam barras enfeitadas de uma prisão. – Há alguma coisa que queira nos dizer? – perguntou Sean. – Isso é muito constrangedor – disse Doug. – É verdade, é mesmo – concordou Michelle. Sean lhe lançou um olhar rígido.
– Eu, na verdade, não conhecia seu pai, mas Sally às vezes conversava com Donna e comigo a respeito dele. – Você vai me dizer que eles não eram felizes e que minha mãe estava pensando em deixá-lo? – Não, não, de jeito nenhum. Creio que sua mãe era, bem, relativamente feliz com seu pai. Eu... bem... – Vamos, diga logo, Doug. – Não creio que seu pai fosse feliz com Sally. Eles pareciam ter se afastado. Pelo menos era assim que ela descrevia. O rosto de Michelle desabou. Doug olhou atento para ela. – Você também acha isso? – O que eu acho realmente não importa. O que importa é quem a matou. – Bem, ela não nos falou sobre ninguém que a estivesse incomodando, ou assediando. Ela levava uma vida muito normal. Amigas, golfe, jardinagem. Que eu saiba, não existem psicopatas por aqui. – Este é o problema dos psicopatas, Doug: a gente nunca os vê se aproximarem até que nos enfiem uma faca no coração – disse Michelle. Doug, o namorado firme, balbuciou uma despedida apressada e praticamente correu de volta para dentro da casa. Eles ouviram o clique da porta sendo trancada. Enquanto andavam para o carro, Michelle disse: – Você acha que foi apenas um assalto que deu errado? – É possível. Eles entraram no veículo. – Está a fim de comer alguma coisa? – perguntou ela. – Conheço um bom lugar. Dez minutos depois eles estavam em um pequeno restaurante e tinham feito o pedido. – Muito bem – disse Sean –, o pessoal da polícia examinou toda a garagem e não encontrou nenhuma pista. A porta externa estava baixada e o portão de saída da garagem para o pátio lateral estava trancado. Mas o assassino poderia tê-lo fechado ao passar. A tranca era simples. – Portanto, qualquer pessoa poderia ter entrado, esperado por ela, matado-a e saído por ali. O chão estava seco, de modo que não ficaram pegadas. – E há uma cerca na lateral da garagem. Mais um esconderijo. – O legista disse que a morte ocorreu entre oito e nove horas – disse ela. – Você acha que alguém teria visto alguma coisa ou ouvido mamãe gritando quando foi atacada? Sean ficou pensativo. – O barulho da festa na piscina teria encoberto qualquer coisa desse tipo – disse e depois acrescentou: – Todas as pessoas da festa foram interrogadas? – Acho que sim – respondeu. Quando observou a expressão do parceiro, emendou: – Por quê? No que está pensando? – Estou pensando que, se eu quisesse matar alguém, daria um jeito de ser convidado para aquela festa, sairia sem ser notado, faria o que quisesse e voltaria discretamente. – Também pensei nisso, mas seria preciso saber que minha mãe iria sair, que ela estaria na garagem naquela hora. – Não necessariamente. Poderiam ter chegado pela porta lateral da garagem e estar planejando entrar na casa quando sua mãe saiu e poupou o trabalho. – Seria arriscado, Sean. Meu pai estava em casa. Ele era policial e tem uma arma dentro de casa. Como Donna disse, é uma comunidade pequena. As pessoas saberiam disso. Sean se recostou, perdido em pensamentos. Os pratos chegaram e eles comeram em silêncio. – Posso pedir um favor? – perguntou ela quando estavam saindo. – Pedir sempre se pode – disse ele sorrindo. As palavras que se seguiram apagaram aquele sorriso. – Quando eu era pequena, nós morávamos a cerca de duas horas ao sul daqui, em um cantinho rural do Tennessee. Quero voltar lá. Preciso voltar lá. Agora.
ELES SAÍRAM DA ESTRADA principal e os pneus do carro mastigavam o cascalho. Sean estava dirigindo e seguira as instruções precisas de Michelle. – Quando foi a última vez que esteve aqui? – perguntou ele. Ela olhava fixamente para a frente. Uma nesga de lua era a única iluminação além dos faróis do carro. – Quando eu era criança. Ele pareceu surpreso. – Como se lembra do caminho? Consultou algum mapa antes de virmos? – Não. Eu... eu apenas sei. Ele olhou para Michelle com uma ruga na testa. Uma mistura curiosa de emoções se revelava no rosto dela: grandes expectativas e medo também. Este último não era algo que normalmente Sean associasse a ela. Eles entraram numa rua escura, revelando casas que haviam sido novas em folha há cerca de 60 anos. Agora estavam ruindo – as varandas fora de prumo, os quintais com um emaranhado de ervas, mato, árvores e arbustos doentes. – Já houve dias melhores por aqui – observou ela. – É o que parece – respondeu ele em voz baixa. – Qual é a casa? Ela apontou para a frente. – Aquela. A velha casa de fazenda, a única do tipo nesta rua. O restante desta área foi criado com o desmembramento da propriedade. Sean estacionou diante da casa. – Parece que agora não mora ninguém aqui – observou ele.
Ela não fez nenhum movimento para sair do carro. – E agora? – perguntou Sean por fim. – Não sei. – Você quer saltar, ir até lá para dar uma olhada? Viemos de tão longe... Ela hesitou. – Acho que sim. Eles seguiram pelo caminho deteriorado. A casa ficava bem afastada da rua. Havia um pneu velho amarrado com uma corda meio podre ao galho que restava em um carvalho moribundo. Uma picape sem pneus se apoiava sobre tijolos de concreto no pátio lateral. A porta de tela estava caída no piso arqueado da varanda. Quando iam passando por um local, Michelle se deteve e olhou fixamente para os restos de alguns arbustos. Haviam sido plantados em fileira, mas tinham sido cortados a ponto de ficarem apenas galhos nus. – Era uma cerca viva – disse Michelle. – Não me lembro de quê. Uma bela manhã, nós acordamos e ela estava podada bem rente. Meu pai a tinha plantado para comemorar um aniversário de casamento. Depois disso, ela murchou e nunca mais cresceu. Acho que a pessoa que fez isso colocou algum tipo de veneno também. – E vocês chegaram a descobrir quem foi? Ela apenas sacudiu a cabeça e continuou a andar em direção à casa. Passaram por cima da porta de tela e Michelle levou a mão à maçaneta, que girou com facilidade. Sean pôs a mão sobre a dela. – Tem certeza de que quer fazer isto? – Viemos de tão longe... E duvido que eu algum dia vá voltar. Ele tirou a mão e os dois entraram. O lugar estava vazio e imundo. Sean tinha pegado uma lanterna no carro e a moveu em círculo, revelando cobertores esfarrapados, embalagens de comida, garrafas de cerveja vazias e mais de uma dúzia de camisinhas usadas. – Não é uma imagem para guardar num álbum de recordações – murmurou Michelle ao ver aquilo.
– Costuma ser assim quando se revive uma memória. Ela quase nunca é tão boa quanto você se lembra. Michelle olhou para a escada. Sean seguiu seu olhar. – Qual era o seu quarto? – O segundo à direita. – Quer subir? – Talvez depois. Eles andaram pelo térreo, encontrando mais lixo e coisas apodrecidas, e Sean reparou que Michelle na verdade não estava dando muita atenção a nada. Ela abriu a porta dos fundos e foi para o lado de fora. Encontraram mais lixo, a carcaça da picape no pátio lateral e uma garagem sem porta com espaço para um carro. Dentro dela, apenas um monte de lixo. Era tudo patético e deprimente e Sean mal suportava estar ali. Não imaginava como Michelle conseguia não sair correndo e gritando. – Então o que estamos fazendo aqui? – perguntou ele. Ela sentou na varanda dos fundos. Ele se manteve de pé ao lado dela. – Você alguma vez voltou ao lugar onde foi criado? – Uma vez – disse ele. – E? – Não tive grandes revelações. Exceto pelo fato de ser muito menor do que me lembrava, o que faz sentido, já que agora sou muito maior. Eu só vi a casa e segui adiante de carro. – Eu gostaria de fazer isso. Ver a casa e seguir adiante de carro. – Então vamos fazer isso – Disse ele, enfiando a mão no bolso, puxando as chaves do carro e entregando-as à parceira. – Pode fazer as honras. Eles fizeram o caminho de volta por dentro da casa. Michelle se deteve diante da escada. – Michelle, você não precisa ficar se remoendo por causa disso.
Ela começou a subir a escada. – Tem certeza de que quer fazer isso? – Não – respondeu ela, seguindo adiante. Eles chegaram ao amplo patamar e pararam. Havia quatro portas, duas de cada lado. – Então o segundo era o seu? Ele apontou para a direita. Ela assentiu. Sean avançou para abrir a porta, mas ela o deteve. – Não. Ele recuou e olhou para a parceira. – Talvez devêssemos ir embora. Michelle fez que sim com a cabeça, mas, quando ele avançou pelo corredor, ela abruptamente deu meia-volta, agarrou a maçaneta e abriu a porta. E gritou quando viu o homem ali, encarando-a. Ele passou correndo por Michelle e depois por Sean, desceu a escada aos saltos e saiu pela porta arrebentada. Michelle tremia tanto que Sean deixou de lado qualquer ideia de sair atrás do homem. Correu para Michelle e a abraçou. Quando ela finalmente se acalmou, ele a soltou e os dois se encararam, sem dúvida com a mesma pergunta em mente. Sean conseguiu formulá-la primeiro. Em um tom atordoado, exclamou: – Que diabo seu pai estava fazendo aqui?
O 747 PRESIDENCIAL ATERRISOU NA base aérea de Andrews, os quatro motores enviando sua força para trás à medida que os pilotos acionavam o modo reverso. O presidente estava na parte da frente do avião, em sua suíte com duas poltronas reclináveis, um banheiro e um aparelho de exercícios elíptico. Pouco depois, seu helicóptero pousou, seguindo o esquema-padrão de segurança. Era quase meia-noite quando enfim o presidente desceu no gramado da Casa Branca. Dan Cox saltou da aeronave esbanjando energia, pronto para começar o dia, em vez de encerrá-lo. Ele era assim quando se tratava de política: com frequência deixava seus assistentes, muito mais jovens, ofegantes e bebendo baldes de café enquanto saltavam de estado em estado atravessando o país. A competição parecia enchê-lo de adrenalina de tal modo que ele poderia permanecer eternamente na batalha. E havia ainda a euforia relacionada ao fato de ele ser o presidente do país, algo que nenhum outro cargo poderia oferecer. Era como ser uma lenda do rock, um grande astro do cinema, um ícone do esporte, um semideus – tudo isso ao mesmo tempo. Naquela noite, como sempre, o presidente seguiu seu caminho como se estivesse envolto numa bolha – formada pela equipe de altos funcionários que sempre o acompanhava, seguranças pessoais e alguns afortunados membros da imprensa. À medida que se aproximavam da mansão, os repórteres e grande parte dos funcionários foram agilmente sendo afastados, permanecendo com Dan Cox apenas uma funcionária sênior e o destacamento de segurança do Serviço Secreto. Todas as portas se abriram para o presidente e ele entrou a passos largos na Casa Branca, como se fosse seu dono (o que, extraoficialmente, era). Embora toda a estrutura fosse bancada pelos contribuintes, na verdade se tratava da casa dele, de seu helicóptero, de seu jato. Ninguém podia aparecer para uma visita na casa ou um passeio pelos ares sem a sua autorização. A funcionária sênior foi para seu escritório e o presidente seguiu adiante, para a área residencial, deixando o destacamento do Serviço Secreto para trás. Ali ele estava realmente dentro de uma bolha, tanto quanto era possível estar. Pela vontade do Serviço Secreto, ele só sairia ali de dentro quando encerrasse seu mandato. Mas ele era o presidente, o homem do povo. Assim, tinha que circular entre os cidadãos, enquanto úlceras cresciam silenciosamente na barriga dos que cuidavam de sua segurança. Dan Cox tirou o paletó e apertou um botão numa caixinha sobre uma mesa. Um garçom apareceu, o presidente fez seu pedido e, um minuto depois, recebeu seu gim-tônica com gelo e duas rodelas de limão. Aquela era uma das vantagens do cargo. O presidente podia pedir praticamente tudo o que quisesse, a qualquer instante. Depois que o garçom se foi, Cox relaxou ao lado da esposa, que estava sentada em um sofá lendo uma revista e tentando parecer despreocupada. – Viu os últimos números da pesquisa? – perguntou ele, satisfeito. Ela assentiu. – Mas ainda há um longo caminho pela frente. E os números costumam se aproximar depois. – Eu sei que ainda é cedo, mas sejamos honestos: os outros não têm chance. – Não seja confiante demais – ralhou ela. Ele levantou o copo de cristal lapidado. – Quer? – Não, obrigada. Ele comeu algumas amêndoas sem sal. – Você alguma vez me viu pecar por excesso de confiança ou perder uma eleição? Ela lhe deu um beijo no rosto. – Existe uma primeira vez para tudo. – Eles ainda querem três debates. Estou pensando em dois. – Você só deveria aceitar um.
– Por que só um? Graham não é assim tão bom em debates. – Você está sendo gentil demais, Danny. Graham não é apenas péssimo em debates, é medíocre em todos os níveis. O povo só precisará de um debate para se dar conta da incompetência dele. Portanto, para que perder seu tempo? E você não precisa oferecer a ele três oportunidades para tentar fazer alguém mudar de ideia, ou de chegar ao seu nível. E vamos admitir, querido: você é humano. E seres humanos cometem erros. Então, por que se submeter a tanta pressão? Com essa estratégia, ele tem tudo a ganhar, e você, tudo a perder. A oposição sabe que a melhor chance deles será daqui a quatro anos, quando você não puder se candidatar. Eles estão contando com a chance de até lá conseguirem encontrar um candidato jovem e inteligente que tenha um programa bem-feito, propostas concretas e um bom eleitorado básico que possam expandir, para realmente entrarem na disputa pela Casa Branca. Graham é apenas um tapa-buraco. Ele sorriu e ergueu seu drinque como quem presta uma homenagem. – Não sei por que tenho uma equipe de estratégia de campanha. Tudo de que preciso é a minha esposa. – Depois que a gente sobrevive a determinado número de batalhas, a tendência é aprender as lições. – Você sabe que eu não poderei me candidatar de novo, mas você poderia – disse ele em tom brincalhão. – Manter um Cox na Casa Branca por mais oito anos. – A Casa Branca é um lugar agradável, mas eu realmente não quero viver aqui. Ele pareceu se lembrar de alguma coisa. Descansou seu drinque, abraçou Jane e perguntou: – Alguma notícia de Willa? – Nenhuma. – O FBI inteiro no caso e nada? Vou ligar para o Munson amanhã cedinho. Isso é inaceitável! – Parece tão estranho que alguém tenha sequestrado Willa… Ele a abraçou mais forte.
– Jane, esperta como você é, sei que já pensou nisso. O motivo por que levaram Willa pode ter a ver conosco. Vão tentar nos atingir, e talvez ao país, usando aquela garotinha. Jane Cox agarrou o braço do marido. – E se pedirem alguma coisa? Alguma coisa em troca de Willa? Dan Cox largou a mulher, se levantou e começou a andar de um lado para outro. Ainda era um homem muito atraente. Enquanto o observava em seu percurso de ida e volta, ela admirou os ombros largos, as maçãs do rosto bem definidas e o brilho de seus olhos. Fisicamente, ele era uma mistura de JFK e Ronald Reagan, com uma dose intimidadora de Theodore Roosevelt. Apaixonara-se por ele à primeira vista, em um belo dia de outono, num campus de universidade. Ele era do terceiro ano e ela, uma caloura. Parecia fazer um milhão de anos, o que, sob diversos aspectos, era verdade. Aquela vida tinha acabado havia muito tempo. Tanta coisa importante acontecera desde então que Jane mal podia considerar aquele tempo parte de uma história. – Vai depender do que exatamente eles quiserem, Jane. Os códigos para as armas nucleares? Não posso dar. Os originais da Declaração de Independência ou da Constituição? Também não. De fato, com toda a sinceridade, o presidente dos Estados Unidos não pode ceder a uma chantagem. Abrir esse precedente seria um desastre para qualquer administração futura. Deixaria o cargo destituído de poder. – Então está dizendo que nunca mais veremos Willa? Ele se sentou ao lado dela e pôs a mão em seu joelho. – O que estou dizendo é que faremos tudo o que pudermos para trazer aquela menina de volta sã e salva. Temos apenas que continuar pensando positivo. Temos o poderio dos Estados Unidos ao nosso lado. Não é pouca coisa. – Você vai ao enterro amanhã? Ele assentiu. – É claro. Tenho um comício bem cedo em Michigan, mas estarei de volta a tempo. E em momentos como este, a família precisa ficar unida. E, sem querer parecer grosseiro, isto passará ao país a mensagem de que os Cox põem a família em primeiro lugar em momentos de crise. E é verdade.
Ela largou a revista. – Vejo que você ainda está em plena campanha. Está tarde, mas ainda não estou com sono. Gostaria de assistir a um filme na sala de projeção? A Warner Brothers acabou de mandar um de seus últimos lançamentos. Não creio que já tenha entrado em cartaz nos cinemas. Ele acabou seu drinque, se levantou e estendeu a mão para ela. – Nada de filme. Ando com saudades de você, amor da minha vida. Ele deu à esposa o mesmo sorriso de fazer parar o coração que lhe dera na universidade havia mais de 25 anos. Ela se levantou e o seguiu para o quarto. Dan fechou a porta depois que entraram, tirou a gravata e os sapatos e abriu o zíper das calças. Ela despiu o vestido e tirou o sutiã. Deitou-se na cama com ele por cima dela. O que se seguiu foi um momento privado e íntimo, um acontecimento extraordinariamente raro mesmo para aquele casal. Por vezes, enquanto Dan arquejava e se movia em cima da esposa e ela gemia em seu ouvido, Jane pensava que fazer amor com o marido era o único resquício de privacidade que eles ainda tinham. Na primeira vez que tinham feito amor naquela cama, Jane se desmanchara de rir. O presidente recém-empossado não havia achado graça, interpretando suas risadas como uma insinuação de que ele estava deixando a desejar. No entanto, quando ela lhe explicara por que estava rindo, ele acabara caindo na gargalhada também. O que ela lhe dissera fora: “Não acredito que estou sendo comida pelo presidente dos Estados Unidos.” Depois que acabou, ele se deixou cair para o lado, deu um último beijo na mulher e adormeceu. O avião presidencial estaria pronto para levá-lo bem cedo na manhã seguinte e mesmo o vigoroso Dan Cox precisava de algumas horas de descanso. Jane ficou deitada ali por meia hora antes de se levantar, tomar uma ducha, vestir-se e ir para o andar de baixo, o que surpreendeu os agentes do Serviço Secreto. Ela abriu a porta de seu escritório, fechou-a atrás de si, destrancou a escrivaninha e tirou a carta e a chave. Quando a receberia? O que diria? O que faria?
Consultou o relógio. Era tarde, mas ela era a primeira-dama. Fez a chamada. Sean King atendeu meio grogue. – Jane? – Desculpe por ligar tão tarde. Você vai ao enterro? Suas palavras não chegaram nem perto de ser uma pergunta. – Ironicamente, acabei de ir a um enterro. – O quê? – É uma longa história. Sim, estou planejando estar lá. – Tuck me disse que você tinha ligado. – Ele também contou a respeito de que falamos? – Aquilo foi um erro, Sean. Peço desculpas. Deveríamos ter sido francos com você desde o início. – É, deveriam. – Eu estava preocupada com... com... – O fato de seu irmão estar traindo a mulher? – completou ele. – Com que isso pudesse repercutir mal na campanha de reeleição. – Bem, isso é inaceitável, não é? – Por favor, não seja cínico. Não preciso disso agora. – Sua preocupação era justa. Mas me levou a fazer um desvio de que eu não precisava. Uma perda do tempo de que na verdade não dispomos. – Então você acha que não tem nada a ver com Willa? – Se posso dar certeza disso? Não. Mas meus instintos profissionais me dizem que não tem a ver. – E agora? – Fale-me de Willa. – Falar o quê? – Pam só teve dois filhos, ambos de cesariana. O sangue pareceu congelar no corpo de Jane. – Pam tinha três filhos, como você sabe muito bem.
– Está certo, mas ela não deu à luz os três. A autópsia confirmou isso. Falei com Tuck a respeito desse assunto. Pensei que ele houvesse contado a você. É claro que Tuck havia contado, mas ela não tinha intenção de revelar isso a Sean. – Então o que exatamente está dizendo? – Que uma das crianças não era de Pam. Era de Tuck com outra mulher? E a criança era Willa? – Não posso responder. – Não pode ou não quer? – Por que isso é relevante? Sean se sentou na cama de seu quarto de hotel. – Está falando sério? É relevante porque, se Willa não for filha de Pam, então a mãe e/ou o pai verdadeiros poderiam estar por trás do sequestro. – Willa tem 12 anos. Por que alguém esperaria todo esse tempo? – Também pensei nisso, mas o fato é que não tenho resposta. E estou convencido de que é necessário responder a essa pergunta se quisermos solucionar o caso e encontrar Willa. Portanto, pode me ajudar? – Eu não sei de nada a respeito disso. – Bem, se ela for filha de Pam, então sua cunhada precisaria ter estado grávida 12 anos atrás. Ela estava? – Eu... Ela... Agora me lembro: eles não estavam morando nos Estados Unidos na época. Estavam na Itália. Negócios de Tuck. Pensando bem, lembro que eles voltaram pouco depois do nascimento de Willa. Sean se recostou contra a cabeceira. – Bem, isso foi muito conveniente. Então não tem certeza de se ela ficou grávida? Nunca viu fotografias? Mamãe e recém-nascida no hospital? Chás de bebê? Não foi visitá-los na Itália? – Você está sendo cínico de novo – disse ela friamente. – Não. Na verdade, estou sondando de um jeito educado.
– Está bem, eu admito que não posso garantir que Willa seja filha de Pam. Sempre pensei que fosse. Veja bem: eu não tinha nenhum motivo para pensar o contrário. – Bem, se está escondendo alguma coisa de mim, saiba que em algum momento eu descobrirei a verdade e os resultados poderão não ser de seu agrado. – Isso é uma ameaça? – Ameaçar qualquer membro da família do presidente é crime, como sabe muito bem. E eu sou um dos mocinhos. Vejo a senhora no enterro, Sra. Cox. Ele desligou o telefone. Jane trancou a carta de volta na escrivaninha e quase correu para seus aposentos particulares. Enquanto se despia e se enfiava de novo na cama, ouviu os roncos suaves do marido. Ele nunca tivera dificuldade para dormir. Mesmo depois de trabalhar até de madrugada negociando alguma questão nacional importantíssima, era capaz de simplesmente pôr o fone no gancho, escovar os dentes e pegar no sono em cinco minutos. Ela, por outro lado, levava horas para adormecer – se e quando conseguia dormir. Deitada na cama olhando fixamente para a parede, ela imaginou o rostinho de Willa e a menina acenando para ela. Suplicando. Ajude-me, tia Jane. Me salve. Preciso de você.
– O QUE HOUVE, GABRIEL? PARECE que você não está se sentindo bem. Quarry avaliou o garoto do outro lado da pesada mesa da cozinha. – Não dormi muito bem nas últimas duas noites, seu Sam – respondeu ele tristemente. – Mas crianças costumam dormir bem. Está com algum problema ou preocupado com alguma coisa? Gabriel não conseguiu encará-lo quando respondeu: – Nada de importante. Vou ficar bem. – Tem aula hoje? – perguntou Quarry, observando o garoto atentamente. – Porque, se tiver, vai perder o ônibus. – Não. Hoje é dia do professor. Pensei em ajudar mamãe, trabalhar um pouco no campo e depois ler alguma coisa. – Preciso falar com sua mãe depois que for à cidade. – Sobre o quê? – Assunto pessoal. O rosto de Gabriel revelou sua preocupação. – Eu não fiz nada de errado, não é? Quarry sorriu. – Está pensando que o mundo gira em torno de você? Não, são apenas coisas de trabalho. Se puder, dê uma limpeza na bancada de ferramentas no celeiro. Seria muito bom. Livre-se de qualquer coisa que esteja muito enferrujada. E tenho mais um selo para você. Gabriel se esforçou para sorrir.
– Obrigado, seu Sam. Estou formando uma bela coleção. Procurei no computador da escola aquele selo que o senhor me deu. Olhei no eBay. – Que diabo é isso? – É um site onde se compram e vendem as coisas. Como se fosse uma porção de lojas na internet. Quarry pareceu ligeiramente interessado. – Prossiga. – Pois é, aquele selo vale 40 dólares! – Caramba! Você vai vender? Gabriel pareceu ficar ofendido. – Seu Sam, nunca vou vender nada que o senhor me deu. – Vou lhe dar um conselho, e de graça, rapazinho. Aquela coleção vai ajudar a pagar sua faculdade. Por que acha que tenho lhe dado os selos? E as moedas antigas também? Gabriel não conseguiu esconder a surpresa. – Acho que nunca tinha pensado nisso. – Está vendo, seu cérebro não é tão grande quanto imagina, não é? – Acho que não. Eles comeram mais um pouco e o menino disse: – O senhor tem ido muito de avião para a mina. Sam Quarry sorriu. – Estou tentando encontrar diamantes. – Diamantes na mina? – exclamou Gabriel. – Pensei que todas as minas de diamante ficassem na África. – É possível que tenhamos algumas aqui no Alabama. – Andei pensando se não poderia ir com o senhor. – Filho, você já rodou aquela mina inteira comigo. Continua igual: apenas terra dentro de um buraco grande. – Quis dizer no avião. Nós sempre fomos na picape. – Nós sempre fomos na picape porque você não gosta de andar de avião. Que diabo, você me disse que todas as vezes que me vê levantar voo tem vontade de se enfiar dentro da terra e nunca mais sair. Gabriel deu um sorriso fraco: – Estou tentando superar isso. Quero ver mais do mundo do que apenas o Alabama, então tenho que entrar em aviões, certo? Quarry sorriu, avaliando a lógica perfeita do menino. – Absolutamente certo. – Então é só me avisar quando for. Vou adiantar o serviço. – Faça isso. Gabriel pôs os pratos na pia e saiu apressado da cozinha. Enquanto seguia para o celeiro, Gabriel se concentrava profundamente. Pensava no que tinha ouvido seu Sam falar na noite anterior, quando estava bêbado na biblioteca. Tinha ouvido o nome Willow ou coisa parecida. E tinha entendido seu Sam dizer a palavra carvão, ou pelo menos parecera isso, o que fizera Gabriel pensar na mina. Não perguntaria direto a seu Sam porque não queria que o homem soubesse que ele o ouvira – afinal, havia descido apenas para buscar um livro. Seu Sam estava muito triste por causa de alguma coisa, disse Gabriel a si mesmo enquanto limpava a bancada das ferramentas no celeiro. Além disso, outro dia o menino tinha visto marcas de queimadura no braço do homem quando ele enrolara a camisa para ajudar a lavar a louça. Gabriel também ficara curioso com aquilo. E ouvira Daryl e Carlos conversarem na sala de munição durante a noite, enquanto limpavam seus rifles. Mas nada daquilo fizera sentido. Em certa ocasião, eles estavam falando de Kurt, quando Gabriel entrou no aposento, se calaram rapidamente e começaram a lhe ensinar a desmontar e montar uma pistola em menos de 50 segundos. E por que iam à mina todos os dias? E por que Carlos, e às vezes Daryl, passava a noite lá? Será que alguma coisa estava acontecendo por lá? Gabriel não achava que tivesse a ver com diamantes. Em mais de uma ocasião tinha saído da cama e visto seu Sam descer para o porão carregando aquele grande molho de chaves. Gabriel o seguira uma vez até lá embaixo, o coração batendo tão forte que tivera certeza de que seria flagrado. Tinha espiado enquanto o homem abria a porta que dava para um longo corredor com um cheiro medonho. A mãe dele certa vez havia lhe dito que ali era onde os Quarry prendiam os escravos rebeldes. Gabriel não acreditara nela e fora tirar a dúvida com seu Sam. Mas o homem confirmara a história. – Sua família tinha escravos, seu Sam? – perguntara a ele um dia, quando estavam andando pelo campo. – Antigamente a maioria das pessoas por aqui tinha escravos. Atlee tinha uma grande plantação de algodão. Precisava de gente para trabalhar. Muita gente. – Mas então por que não pagavam a eles, em vez de mantê-los como escravos? – Acho que por causa da cobiça. Se você não paga aos trabalhadores, ganha mais dinheiro. Isso e mais o fato de algumas pessoas acharem que há raças superiores a outras. Gabriel tinha enfiado as mãos nos bolsos da calça. – Mas isso é uma vergonha – desabafara o garoto. – Tem muita gente que acredita que pode fazer qualquer coisa, machucar as outras pessoas e se safar impunemente. Mas aquilo não explicava por que seu Sam descia para aquele porão fedorento onde antes se prendiam os escravos rebeldes. Havia coisas estranhas acontecendo em Atlee, com certeza. Mas aquela fazenda era o lar de Gabriel, o único que ele e a mãe tinham, de modo que, o que quer que estivesse acontecendo, não era da sua conta. Ele apenas continuaria cuidando do que lhe dizia respeito. Mas mesmo assim estava curioso. Muito curioso. Ele era assim.
SAM QUARRY ESTACIONOU A picape diante do trailer de Fred e buzinou. O índio saiu trazendo um cigarro em uma das mãos e um saco de papel na outra. Usava um velho chapéu de palha manchado de suor, casaco de veludo, calça jeans desbotada e botas surradas pela ação do sol e da chuva. O cabelo branco lhe descia até os ombros, limpo e sedoso. Quarry se inclinou para fora da janela. – Você se lembrou de trazer um documento de identidade? Fred embarcou na picape, puxou sua carteira – na verdade, duas tiras de couro seguras por elásticos – e mostrou a identidade. – É a maneira do homem branco de nos manter sob controle. Nós, os verdadeiros americanos. Quarry sorriu. – Tenho novidades para você, boiadeiro. O Tio Sam não está de olho apenas em gente como você. Ele está de olho em todos nós. Americanos de verdade, como você, e os que apenas alugam o espaço por aqui, como eu. Fred tirou uma garrafa de cerveja do saco de papel. – Droga, Fred, não pode esperar para beber depois que acabarmos? – disse Quarry. – Não quero nem pensar no estado em que anda o seu fígado – acrescentou. – Minha mãe viveu até os 98 – argumentou Fred, dando um longo gole e em seguida guardando a garrafa de volta no saco. – É mesmo? Bem, posso praticamente garantir que você não vai viver tanto. E você não tem seguro-saúde. Nem eu. Eles dizem que o hospital tem que atender todo mundo, só não dizem quando. Uma vez fui parar no hospital do condado. Cheguei de manhã, fiquei deitado no chão da sala de espera com febre, calafrios, enjoo e cólicas, passando tão mal que achei que ia morrer. Dois dias depois, um moleque de jaleco branco finalmente apareceu, pediu para eu mostrar a língua e quis saber onde doía. E eu ali, no chão, com as tripas saindo pelo rabo. Àquela altura, eu já tinha mais ou menos sobrevivido, mas algum remédio teria sido bom. – Eu nunca vou ao hospital – disse Fred em sua língua, e então prosseguiu falando mais depressa. Sam Quarry o interrompeu: – Fred, Gabriel não está aqui para me ajudar. Quando você começa a falar no seu idioma, fico perdido. Fred repetiu tudo no idioma de Quarry. – Agora, sim. Mas não vá ao hospital sem um cartão de seguro-saúde. Não importa em que língua estiver falando, vai estar ferrado. A picape seguia sacolejando. Fred apontou para um prédio ao longe. Era a casinha que Quarry tinha construído. – De vez em quando ficava olhando você trabalhar, fez um bom trabalho naquilo. – Obrigado. – Mas para quem construiu? – Alguém muito especial. – Quem? – Eu. É minha casa de veraneio. Eles seguiram no carro. Sam tirou um envelope volumoso do bolso e o passou para Fred. Quando o índio o abriu, suas mãos tremiam ligeiramente. Atordoado, ele se virou para Quarry, que observava por baixo das sobrancelhas espessas. – Tem mil dólares aí. – Para quê? – perguntou Fred, tossindo e cuspindo pela janela. – Por ter voltado para casa – respondeu sorrindo. – E para mais uma coisa também. – O quê? – É para isso que vai precisar da identidade. – E por que vou precisar da identidade? Você não disse.
– Você vai ser testemunha de uma coisa. Uma coisa importante. – Isto é dinheiro de mais para ser testemunha – disse Fred. – Não quer o dinheiro? – Eu não disse isso – respondeu o homem, as rugas profundas se acentuando em seu rosto enquanto falava. Quarry lhe deu uma cotovelada brincalhona no braço. – Que bom, porque eu não sou de dar esmola a índios. Trinta minutos depois eles chegaram à cidadezinha. Fred ainda olhava para o envelope cheio de notas de 20. – Isto não é roubado, é? – Nunca roubei coisa nenhuma na minha vida, – disse Sam, encarando Fred. – Sem contar as pessoas. Roubei algumas pessoas, sabe. Um longo momento se passou e então Quarry caiu na gargalhada e Fred também. – Recebi alguns títulos que meu pai deixou – explicou Sam Quarry. Ele estacionou em frente ao banco local, um prédio de tijolos com um só andar e porta de vidro. – Vamos. Quarry se encaminhou para a porta e Fred o seguiu. – Nunca fui a um banco – disse Fred. – Como é possível? – Nunca tive dinheiro. – Eu também não. Mas vou ao banco. – Para quê? – Que diabo, Fred! É onde o dinheiro fica. Quarry chamou um funcionário e explicou do que precisava. Mostrou-lhe o documento. – Trouxe meu amigo americano de verdade para ajudar e ser testemunha.
O homem, corpulento e de óculos, olhou para o franzino Fred e tentou dar um sorriso. – Tenho certeza de que não haverá problema, Sam. – Eu também tenho certeza de não há nenhum problema – disse Fred. Ele bateu no peito do casaco, onde estava o envelope cheio de dinheiro, e trocou um sorriso rápido com Sam Quarry. O bancário os levou para seu escritório, chamou outra testemunha e também a tabeliã do banco. Quarry assinou seu testamento diante de Fred e das outras três pessoas. Então Fred e a testemunha do banco assinaram. Em seguida, a tabeliã formalizou o procedimento. Depois de tudo acabado, o bancário fez uma cópia do papel. Quarry dobrou o original e o guardou no bolso do casaco. – Guarde isso em lugar seguro – advertiu o bancário. – Porque ter uma cópia não vai ser suficiente para fazer valer o testamento. Que tal alugar um cofre aqui? – Não se preocupe – disse Quarry. – Qualquer um que tentar arrombar minha casa terá a cabeça explodida. – Disso eu não duvido – comentou o homem um tanto nervosamente. – Também tenho certeza – reafirmou Quarry. Fred e Quarry fizeram uma parada no bar para tomar um drinque antes de pegar o caminho de volta. – Quer dizer que agora podemos beber, Sam? – perguntou Fred, levando a caneca de cerveja à boca. Quarry tomou alguns goles de uísque. – Já passa do meio-dia, certo? Tudo o que estou lhe dizendo, Fred, é para ser um pouco mais razoável. Eles voltaram para Atlee e Quarry deixou Fred no trailer. O índio subiu lentamente os degraus de concreto, parou na porta e se virou para Quarry, que ficara na velha picape. – Obrigado pelo dinheiro. – Obrigado por ser testemunha de meu testamento. – Você acha que vai morrer logo? Quarry sorriu.
– Se eu soubesse disso, provavelmente estaria no Havaí ou coisa assim, nadando no mar e comendo lulas. Não estaria dirigindo esta picape enferrujada neste fim de mundo do Alabama e conversando com você, Fred. – A propósito, meu nome não é Fred. – Eu sei. É só como eu o chamo. Qual é seu nome, então? O verdadeiro. Não vi sua identidade nem a sua assinatura no testamento. – Eugene. – Isso é um nome indígena? – Não, mas é o que minha mãe me deu. – Por quê? – Porque ela era branca. – E ela viveu mesmo até os 98? – Não. Morreu aos 50. Bebia demais. Até mais do que eu. – Posso continuar chamando você de Fred? – Pode. Gosto mais do que de Eugene. – Diga a verdade, Fred: quanto tempo mais lhe resta de vida? – Talvez um ano, se tiver sorte. – Sinto muito. – Eu também. Como sabia disso? – Já vi muita gente morrer. Essa tosse que você tem. E suas mãos são frias demais e sua pele por baixo do queimado do sol é pálida. – Você é um homem inteligente. – Sabe, todos nós vamos partir um dia. Mas agora você pode aproveitar o tempo que ainda lhe resta mil vezes melhor do que algumas horas atrás – disse Sam apontando para o amigo. – E não deixe nada para mim, Fred. Não vou precisar. Quarry se foi em meio a uma nuvem de poeira. Quando chegou de volta a sua casa, as primeiras gotas grossas de chuva de uma frente fria começavam a cair. Foi direto para a cozinha, porque foi onde ouviu movimento. Ruth Ann estava areando alguns panelões quando as botas de Quarry bateram no piso. Ela se virou e sorriu. – Gabriel estava procurando pelo senhor. – Eu disse a ele que ia à cidade com Fred. – Para que foi à cidade? – perguntou Ruth Ann enquanto trabalhava. Quarry sentou, tirou o documento do bolso do paletó e o desdobrou. – Era a respeito disso que queria conversar com você – disse, exibindo o papel. – Isto aqui é meu testamento. Assinei hoje. Agora é oficial. Ruth Ann largou a panela que estava areando e limpou as mãos num pano de prato. Seu cenho se franziu. – Seu testamento? O senhor não está doente, está? – Não, pelo menos não que eu saiba. Mas só um tolo espera até ficar doente para fazer um testamento. Venha aqui e dê uma olhada. Ruth Ann deu um passo hesitante na direção dele e depois rapidamente atravessou o aposento e se sentou. Ela pegou o papel, tirou do bolso da saia seus óculos comprados em farmácia e os pôs no rosto. – Eu não leio muito bem – disse, um tanto encabulada. – Na maioria das vezes peço a Gabriel para ler para mim. Ele espetou um dedo no papel. – A maior parte é conversa fiada de advogado, mas bem aqui está a parte que você tem que ler com atenção, Ruth Ann. Ela leu onde ele indicou, os lábios movendo-se lentamente enquanto decifrava as poucas palavras. Então olhou para ele, o papel tremendo em suas mãos. – Seu Sam, isso não está certo. – O que não está certo? – O senhor deixar tudo isto para mim e Gabriel. – Está certo. A propriedade é minha. Posso dar para quem eu bem entender.
– Mas o senhor tem família. O senhor tem o seu Daryl e a dona Tippi. E a outra filha também. – Confio em você para cuidar de Daryl, se ele ainda estiver por aqui. E de Tippi também. E Suzie, bem, duvido que vá querer alguma coisa de mim, já que nunca sequer me telefonou em mais de quatro anos. E você e Gabriel também são minha família. Portanto, quero cuidar de vocês. Essa é minha maneira de fazer isso. – O senhor tem certeza? – Claro que tenho certeza. Ela estendeu a mão sobre a mesa e segurou a dele. – O senhor é um homem bom, seu Sam. O senhor provavelmente vai viver mais que todos nós. Mas obrigada por tudo o que fez por mim e Gabriel. Vou cuidar de todo mundo, seu Sam. Vou cuidar muito bem, como o senhor cuidaria. – Ruth Ann, você pode fazer o que quiser com a propriedade, inclusive vender, se precisar do dinheiro. Ela pareceu horrorizada com a ideia. – Eu nunca vou vender este lugar, seu Sam. Aqui é a nossa casa. Um barulho veio da porta e os dois olharam naquela direção. Gabriel os observava. – Oi, Gabriel – disse Quarry. – Sua mãe e eu estávamos conversando a respeito de algumas coisas. – Que coisas, seu Sam? – perguntou o menino, antes de olhar para a mãe e ver as lágrimas escorrendo por suas faces magras. – Está tudo bem? – Venha até aqui – disse Ruth Ann, acenando com a mão. Ele correu para a mãe e ela o abraçou. Quarry deu uma palmadinha na cabeça de Gabriel, dobrou seu testamento, enfiou-o de volta no bolso e saiu da cozinha. Tinha que escrever outra carta. E precisava visitar Tippi. E depois iria até a mina. O fim estava próximo agora.
PELA SEGUNDA VEZ EM dois dias, Sean e Michelle ouviram um ministro religioso falar sobre entes queridos que partiram. Era uma tarde chuvosa e os guarda-chuvas pretos estavam abertos enquanto Pam Dutton encontrava seu repouso final em um cemitério a oito quilômetros de onde morrera. As crianças estavam na fileira da frente, sob um toldo, com o pai. A cabeça de Tuck estava enfaixada e o homem parecia ter tomado alguns coquetéis e um punhado de comprimidos. A irmã dele, a primeiradama, estava sentada a seu lado, com o braço protetor ao redor dos ombros dele e tendo Colleen Dutton, a sobrinha mais nova, no colo. John se apoiava no pai. Ao lado de Jane, sentava-se o marido, vestido de preto e com expressão muito solene e presidencial. Uma muralha de agentes da elite do Serviço Secreto cercava o local do enterro. As ruas ao redor tinham sido fechadas para o trânsito e todos os possíveis esconderijos nas vias que o cortejo de carros havia percorrido foram devidamente lacrados. O cemitério estava fechado para o público, exceto aquela família e seus amigos. Um batalhão de jornalistas e equipes de televisão esperava pouco além dos portões, na esperança de ter um vislumbre do presidente e da primeira-dama quando saíssem do cemitério. Michelle cutucou Sean e inclinou a cabeça para a esquerda. O agente Waters do FBI estava com o olhar cravado nos dois. – Ele não parece nada feliz – disse ela. – Aposto que nunca foi feliz. Eles tinham apanhado um voo de manhã bem cedo para voltar do Tennessee. Durante a viagem, haviam conversado sobre os acontecimentos da noite anterior. Quando voltaram para a casa de Frank Maxwell, o homem ainda não retornara. Michelle tinha tentado ligar para ele no celular, mas ninguém atendera. Eles estavam a ponto de chamar a polícia quando ele entrou, vindo da garagem.
– Pai? Frank Maxwell passou direto por ela, seguiu para seu quarto e fechou a porta. Quando Michelle tentou abri-la, descobriu que estava trancada. – Pai? – chamara junto à porta. – Pai! Ela havia começado a bater com insistência, mas alguém a segurara e impedira que continuasse. Era Sean. – Deixe-o. – Mas... – Há alguma coisa acontecendo por aqui que nós ainda não compreendemos, então é melhor não insistirmos agora. Sean tinha dormido no sofá e Michelle, em um dos quartos de hóspedes. Seus irmãos estavam na casa de Bobby, que ficava ali perto. Quando acordaram na manhã seguinte para pegar o avião, Frank Maxwell já tinha saído. Dessa vez Michelle nem tentou o seu celular. – Ele não vai atender – disse ela, enquanto tomava uma xícara de café no aeroporto. – O que você acha que ele estava fazendo na velha casa? – Talvez estivesse lá pelo mesmo motivo que eu. – E o que isso significa? – Significa que eu não sei exatamente – respondeu ela com tristeza. – Quer ficar aqui? Posso ir sozinho ao enterro. – Não. Acho que não há nada que eu possa fazer aqui agora. E ir a outro enterro não vai ser nem de longe tão deprimente quanto ficar e ver minha família ruir. Agora que a cerimônia fúnebre de Pam Dutton tinha acabado, as pessoas saíam, embora Sean reparasse que muita gente se esforçava para apertar a mão do presidente. E ele, justiça seja feita, satisfez a todos na medida do possível. – Não consegue desagradar um eleitor – disse Michelle com sarcasmo.
Jane saiu com o irmão e as crianças. Vários agentes os ladeavam, mas a maior parte do efetivo permaneceu com o presidente. Assistindo a essa cena, Sean não teve dúvidas de que a vida de Daniel Cox valia mais que todas as outras. Proteger a primeira-dama era vital para o Serviço Secreto, mas tão menos importante que resguardar a integridade física do presidente que, se fosse preciso optar, não seria uma decisão difícil. Michelle aparentemente leu seus pensamentos porque disse: – Você alguma vez teve dúvida sobre o que faria? Ele se virou para ela. – O que eu faria sobre o quê? – Se tivesse que escolher entre o presidente e a primeiradama? Qual dos dois salvaria? – Michelle, você sabe que, se existe uma regra que o Serviço Secreto realmente martela em seu cérebro é esta: a vida do presidente é a única de que jamais se pode abrir mão. – Mas digamos que ele esteja cometendo um crime. Ou que enlouqueça e ataque a primeira-dama. Que ele esteja prestes a matála. O que você faria? Mataria o presidente ou deixaria que ele a matasse? – Por que estamos falando disso? O fato de estarmos em um enterro já não é deprimente o bastante? – Só estava querendo saber. – Ótimo, então continue querendo saber, mas me deixe fora disso. – Era só uma hipótese. – Eu já ando tendo dificuldades de sobra com a realidade. – Você vai se encontrar com a primeira-dama? – Depois de minha última conversa com ela por telefone, não tenho certeza. Não tenho certeza nem se estamos do mesmo lado. – O que está querendo dizer com isso? Sean deixou escapar um longo suspiro. – Estou apenas falando coisas sem muito sentido – desabafou, antes de olhar para o homem que vinha na direção deles. – Este dia está ficando cada vez melhor.
Michelle seguiu o olhar do parceiro e viu o agente Waters se aproximando a passos largos. – Pensei que fosse claro para vocês dois que não deveriam sair da cidade. – Não, o que está claro para nós dois é que precisamos estar disponíveis para mais perguntas, se for o caso – rebateu Michelle. – Bem, aqui estamos. Totalmente disponíveis. – Por onde andaram? – perguntou ele. – Tennessee. – O que há no Tennessee? – perguntou ele, furioso. – Alguma pista que não nos informaram? – Não. Fomos a outro enterro. – De quem? – De minha mãe. Waters olhou para ela com muita atenção, talvez tentando avaliar se Michelle estava brincando com ele. Aparentemente se convenceu de que não, porque disse: – Sinto muito. Foi de repente? – Assassinato em geral é – disse Michelle, antes de sair andando em direção à fileira de carros estacionados. Waters lançou um olhar para Sean. – Ela está falando sério? – Receio que sim. – Que droga. – Precisava de nós para alguma coisa? – Não. Quero dizer, não imediatamente. – Ótimo. Nos vemos por aí. Ele alcançou Michelle e estavam a ponto de entrar no carro quando ouviram alguém chegar ofegante atrás deles. Tuck Dutton parecia ter corrido bastante. Seu rosto estava vermelho e o peito arfava. – Tuck, o que houve? – perguntou Sean, segurando-o pelo braço. – Você acabou de ter alta do hospital, caramba. Não deveria estar correndo por aí.
Tuck engoliu ar, apoiou-se no carro e balançou a cabeça na direção da limusine presidencial. Jane Cox estava embarcando nela junto com o marido, enquanto um círculo de agentes se mantinha ao redor do casal. – O homem que vi com Pam – disse ele, ofegante. – O que tem ele? – perguntou Michelle. – Ele está aqui. – O quê? Onde? – perguntou Sean, olhando ao redor. Tuck apontou na direção da limusine. – Qual deles? – O grandalhão perto do cotovelo do presidente. Sean olhou para o homem, depois para Tuck e então para Michelle. – Aaron Betack? – perguntou Sean no instante em que a chuva apertou.
HOUVE UMA RECEPÇÃO PARA as pessoas que tinham comparecido ao enterro. Não na Casa Branca, mas na Blair House, do outro lado da rua. Na verdade, tratava-se de quatro casas interligadas, e, com mais de 6,5 mil metros quadrados – maior que a Casa Branca. Normalmente a residência era usada para receber chefes de Estado e outros convidados importantes em visita ao presidente. Havia sido residência oficial de Harry Truman e sua família nos anos 1950, quando a Casa Branca sofrera uma grande reforma. Mas naquele dia ela seria um lugar para as pessoas se reunirem e recordarem Pam Dutton, enquanto tomavam alguns drinques e comiam petiscos preparados pelos magníficos chefs que atendiam o presidente. Sean e Michelle passaram pelo detector de metais, caminharam sob um longo toldo, seguiram para a revista manual com detector eletrônico à porta e só então entraram na casa. Ambos já tinham estado lá antes, quando faziam parte do Serviço Secreto. Contudo, aquela era a primeira vez que iam ao local sem estar de serviço. Pegaram drinques com um garçom e se retiraram para um canto, observando e esperando. O presidente chegou com Jane. Tuck e as crianças entraram logo a seguir. – Lá está ele – disse Michelle. Sean assentiu quando Aaron Betack entrou e percorreu o aposento de ponta a ponta com os olhos, como instintivamente fazia qualquer agente que algum dia houvesse trabalhado para o Serviço Secreto, estivesse ele na ativa ou aposentado. Era um hábito de que nunca se esquecia. Ou que nunca se conseguia deixar de lado. – Como você quer fazer? – perguntou ela. – Ele não pode nos demitir por o interrogarmos. – Mas devemos revelar que sabemos do encontro com Pam?
– Essa é a grande questão. Vamos rodeá-lo e ver se deixa escapulir alguma coisa. Eles esperaram até que Betack tivesse se afastado de outro grupo e entrado na sala adjacente. – Oi, Aaron – disse Sean, enquanto ele e Michelle entravam atrás dele. Betack os cumprimentou com um aceno de cabeça, mas não disse nada. Sean olhou para o copo na mão do homem. – Não está trabalhando hoje? – Vim apenas oferecer minhas condolências e prestar minha homenagem. – Dia triste – disse Michelle. Betack sacudiu as pedras de gelo em seu copo e aquiesceu, mastigando um salgadinho. – Horroroso em todos os sentidos – disse o agente. – Há mais que o enterro, quer dizer? – perguntou Sean. – Continuamos sem notícias da garota. A primeira-dama não está nada satisfeita. – Mas o FBI ainda está investigando. Acabamos de encontrar Waters. Ele não me parece ser homem que desista facilmente. Betack se aproximou mais. – Mesmo o melhor detetive do mundo precisa de pistas – disse. – Isso eu não posso negar. – Então não houve mais contatos dos sequestradores? – perguntou Michelle. – Nada desde a tigela e a colher. – Estranho – comentou Sean. – Tudo com relação a esse canalha é estranho – comentou Betack. – Mas também foi realmente bem planejado. Se Michelle e eu não tivéssemos aparecido na casa de surpresa, saberíamos ainda menos. Portanto, seria de esperar que eles mantivessem contato. Betack deu de ombros:
– Mas as coisas são como são. – Alguma informação sobre as letras nos braços de Pam? – Não que eu saiba. Sean lançou um olhar rápido para Michelle e disse: – Eu me lembro de quando conheci Pam. Ela era fantástica. Uma mãe maravilhosa. Você a conhecia? Sean disse isso em tom casual, mas avaliando atentamente o outro homem. – Nunca tive o prazer – respondeu Betack de forma descontraída. – Quando eu disse que tinha vindo oferecer minhas condolências e prestar minha homenagem, estava me referindo à primeira-dama. Sean olhou na direção da porta, por onde Jane Cox ia passando, seguida por vários de seus assistentes. – Ela é especial – comentou Sean. – E vocês? Conseguiram alguma coisa quanto ao caso? – perguntou Betack. Michelle falou primeiro. – Se tivéssemos conseguido, já teríamos passado a Waters. – O importante é recuperar Willa. Que se dane quem vai levar os créditos por isso – acrescentou Sean. – Bela filosofia – comentou Betack, tomando o restante de seu drinque. – E rara nesta cidade. – Mas isso depende de que todo mundo esteja disposto a contar tudo o que sabe – disse Michelle incisivamente, os olhos cravados em Betack. O homem percebeu isso e lançou um olhar para Sean e depois para ela. – Está querendo insinuar alguma coisa? Sean baixou a voz. – Tuck Dutton viu você com a mulher dele quando ele deveria estar fora da cidade. – Ele está enganado.
– Ele o descreveu muito detalhadamente. E o reconheceu no enterro. – Há muita gente por aí parecida comigo. Por que iria me encontrar com Pam Dutton? – Esperávamos que pudesse nos contar. – Não posso, porque isso nunca aconteceu. Sean o encarou por um longo tempo e então disse: – Certo, Tuck se enganou. – Exato. Ele se enganou. Com licença. Michelle se virou para Sean. – Quanto tempo você acha que ele vai levar para entrar em contato com a pessoa para quem está trabalhando? – Não muito. – Então só esperamos? Sean olhou ao redor pela sala e se deteve quando Tuck passou. – Para falar a verdade, estou cansado de só esperar.
WILLA TEMINOU DE LER o último de seus livros, recolocou-o na pilha, sentou de novo na cama. Enquanto estava lendo, conseguira se esquecer de onde estava. Depois de ter virado a última página, se deu conta mais uma vez do que era exatamente. Uma prisioneira. Nunca mais iria rever a sua família. Tinha certeza disso. Ouviu passadas se aproximarem e seu corpo se enrijeceu. Era o homem alto. O velho. Ela reconhecia seu andar. A porta se abriu em alguns segundos e lá estava ele. O sujeito a fechou depois de entrar e andou na direção da menina. – Está passando bem, Willa? Ele se sentou à mesa e descansou as mãos no colo. – Acabei todos os livros. Ele abriu a mochila que carregava, tirou mais exemplares e os colocou sobre a mesa. – Pronto, aqui tem mais. Ela olhou para a pilha. – Quer dizer que vou ficar aqui por muito tempo? – Não, não tanto tempo assim. – Então vou voltar para a minha família? Ele desviou o olhar. – Você gostou da mulher que conheceu aqui? Willa manteve os olhos cravados nele. – Ela está com medo. Eu também estou. – Creio que, de certo modo, todos nós estamos.
– Por que você estaria com medo? Eu não posso lhe fazer mal. – Espero que goste dos livros. – Há algum em que a criança morre no fim? Assim eu poderia me preparar. – Você não está agindo como de costume, Willa – respondeu ele, levantando-se. Ela também se levantou. Embora fosse menor que o homem mais de meio metro, encarou-o de igual para igual. – Você não me conhece. Pode ter descoberto coisas a meu respeito, mas não me conhece. Nem conhece minha família. Você fez mal a eles? Diga – exigiu. O olhar de Quarry passeou pelo aposento, olhando para tudo menos para a garota. – Vou deixá-la dormir um pouco. Parece que está precisando. – Apenas me deixe em paz – disse ela em voz alta e firme. – Não quero mais ver você. Quarry estava com a mão na porta. – Quer ver a mulher de novo? – Por quê? – Assim teria alguém com quem conversar, Willa. Além de mim. Eu entendo por que você não gosta de mim. No seu lugar, também não gostaria. Não fico feliz por ter que fazer o que estou fazendo. Se você soubesse toda a verdade, talvez compreendesse. Talvez não. – Está bem, vou ver a mulher – anunciou Willa, de má vontade, dando as costas para ele. – Ótimo – disse Quarry em voz baixa. As palavras seguintes da menina o imobilizaram. – Isso tem alguma coisa a ver com a sua filha? A que não pode mais ler? Ele se virou lentamente, o olhar agora incendiado. – Por que você disse isso? A voz saiu dura, furiosa. Ela o encarou:
– Porque eu também sou filha de alguém. Sim, você é, pensou Quarry. Só que não sabe de quem. Ele saiu e trancou a porta ao passar. Minutos se passaram e a porta se abriu de novo. A mulher estava ali, Quarry atrás dela. – Volto dentro de uma hora – disse. Ele fechou a porta e Diane Wohl avançou com cautela, sentando-se à mesa. Willa foi se juntar a ela e aumentou a luz da lanterna. – Como tem passado? – perguntou Willa delicadamente. – Estou tão apavorada que às vezes sinto dificuldade em respirar. – Eu também. – Você não parece assustada. Eu sou a adulta aqui, mas você é obviamente muito mais corajosa que eu. – Ele falou alguma coisa com você? O homem? – Na verdade, não. Apenas me disse para vir com ele e ver você. – Você queria vir? – É claro, querida. Quero dizer... É muito solitário ficar trancada naquele quarto. Ela olhou para os livros. Willa seguiu seu olhar. – Quer levar alguns livros? – ofereceu-lhe a menina. – Nunca fui muito de ler. Willa pegou vários exemplares e os passou para ela. – Agora seria um bom momento para começar. Diane passou os dedos na capa de um. – Ele é um sequestrador muito estranho – comentou a mulher. – É mesmo – concordou Willa. – Mas ainda assim temos que ter medo dele. – Isso não é nada difícil para mim. – Nós quase conseguimos fugir – disse Willa. – Puxa, estivemos tão perto de conseguir…
– Graças a você. Provavelmente foi por minha causa que não conseguimos. Não sou nada heroica. – Eu só queria voltar para a minha família. Diane estendeu a mão e apertou o braço da garota. – Willa, você é muito corajosa. Precisa continuar assim. Um soluço escapou da garganta da menina. – Eu só tenho 12 anos. Sou apenas uma criança. – Eu sei, querida, eu sei. Diane puxou a cadeira e passou os braços em volta dos ombros de Willa, de forma protetora. A garota começou a tremer e Diane a abraçou mais apertado. Sussurrou para ela, dizendo que tudo ficaria bem, que sua família sem dúvida estava bem e que ela com certeza voltaria a vê-la. Diane sabia que Willa nunca mais veria a mãe, porque o homem lhe contara que ela estava morta, mas mesmo assim teve que dizer aquilo para a menina abalada. Minha filhinha. Do lado de fora, Quarry se apoiou contra a parede da mina e esfregou uma moeda antiga que planejava dar a Gabriel. Não para o eBay, mas para pagar a universidade. Só que Quarry não estava realmente prestando atenção na moeda. Estava ouvindo Willa chorar copiosamente. Os soluços da garotinha ecoavam pelos túneis da mina, como décadas antes acontecera aos gemidos dos mineiros maltratados e, gerações antes deles, durante a Guerra Civil, aos gritos dos soldados doentes. Apesar disso, não conseguia imaginar um som que cortasse mais o coração do que aquele que estava ouvindo. Ele enfiou a moeda no bolso. Tinha posto todos os seus negócios em ordem. Tomara providências para que as pessoas de quem gostava ficassem protegidas. Além disso, nada mais estava em suas mãos. As pessoas o condenariam, é claro, mas que fizessem isso. Tinha suportado coisas muito piores. Mesmo assim, ficaria satisfeito quando aquilo estivesse acabado. Tinha que acabar logo.
Nenhum deles poderia suportar muito mais tempo. Sam Quarry sabia que ele não poderia. Mais tarde naquela noite, pegou a picape e foi visitar Tippi. Dessa vez foi sozinho. Leu para a filha e tocou a fita em que a mãe falava com ela. Olhou ao redor, para os pouco mais de 12 metros quadrados a que o mundo de Tippi se reduzira ao longo de todos aqueles anos. Ele havia memorizado cada equipamento necessário para mantê-la viva ali e enchera os funcionários de perguntas sobre eles. Ninguém fazia ideia da intenção por trás daquilo, mas não importava. Ele sabia. Quando afinal olhou para o rosto murcho da filha, seus membros atrofiados, seu torso esquelético, sentiu o próprio corpo pesar, como se a gravidade tivesse decidido exercer mais força sobre ele. Talvez fosse um castigo. Quarry não tinha problemas com castigos, desde que fossem justos e dados na medida certa. Só que nunca eram. Ele saiu do quarto e seguiu em direção ao posto de enfermagem. Precisava tomar algumas providências. Estava na hora de Tippi finalmente sair daquele lugar. Estava na hora de levar sua garotinha para casa.
– OLHE, KING, TEMOS ORDENS de manter todos eles aqui – disse o agente para Sean e Michelle. Eles estavam na entrada da Blair House. Fora decidido que Tuck e os filhos permaneceriam ali, pelo menos temporariamente, onde teriam proteção total do Serviço Secreto. – Só estou pedindo que informe a Tuck Dutton que estamos aqui. Se ele quiser nos receber, não há nada que possam fazer a respeito, não? Ele não é um criminoso, não está sob prisão preventiva. Ele está aqui voluntariamente e, se quiser sair, terão que deixar. – Ficaremos de olho nele – acrescentou Michelle. – Certo, e aí eu é que presto contas ao presidente se alguma coisa acontecer com o cunhado dele. – Se eu fosse você, teria mais medo da primeira-dama – aconselhou Sean. – Não vou chamar Dutton. Agora eu sugiro que… – Sean? Todos olharam para a porta da frente. Tuck segurava Colleen no colo com um braço e trazia uma xícara de café na outra mão. – Sr. Dutton, por favor, afaste-se da porta – advertiu o agente. Tuck botou Colleen no chão e disse à menina para ir ficar com John. Então pôs de lado a xícara e saiu da casa. – Sr. Dutton! O agente deu um passo na direção de Tuck, enquanto dois outros homens avançavam, saindo de seus postos. Tuck levantou a mão: – Eu sei, eu sei: vocês estão aqui para me proteger. Mas por que não vão proteger meus filhos? Eu vou ficar bem.
– Sr. Dutton… – o agente começou a falar de novo. – Olhe, companheiro, só estou aqui porque minha irmã falou que não teria problema. É ótimo e eu agradeço, mas o fato é que estamos em um país livre. Posso sair daqui com meus filhos na hora que bem entender e não há droga nenhuma que possam fazer para me impedir. Portanto, fiquem com meus filhos ou vão fumar um cigarro enquanto converso com estas pessoas, certo? – Terei que informar a primeira-dama a respeito – retrucou o agente. – Faça isso. E ela pode ser a primeira-dama para você, mas para mim é só minha irmã mais velha, a dona das calcinhas que eu roubava e cobrava um dólar para mostrar aos meus amigos. O rosto do agente enrubesceu. Ele olhou furiosamente para Sean e Michelle, então deu meia-volta e entrou na casa. – Tuck, essa é uma faceta sua que eu nunca tinha visto – exclamou Sean, enquanto eles desciam pela rua do lado oposto à Casa Branca. Tuck pôs na boca um cigarro que tirou do maço, colocou as mãos em concha para acendê-lo e tragou, exalando uma pequena nuvem de fumaça. – Esse negócio irrita, sabe? Não sei como Jane e Dan aturam. É como estar dentro da porcaria de um aquário. Na verdade, é como viver sob as lentes da merda do telescópio Hubble. – Todos os defeitos revelados – disse Michelle, enquanto seu olhar percorria ponto por ponto a área à frente, a lateral e também a retaguarda deles. Provavelmente estavam em um dos locais mais seguros da Terra, mas, como ela bem sabia, aquilo podia mudar em um único e explosivo instante. – Como estão as crianças? – Assustadas, nervosas, preocupadas, deprimidas. Sabem que Pam se foi, é claro. E isso já é devastador. Mas não saber o que aconteceu com Willa é duro demais. Está matando todos nós. Não dormi um segundo desde que pararam de me dar os remédios no hospital. Nem sei como estou de pé. Michelle relanceou os olhos para o cigarro.
– Eles agora só têm o pai, Tuck. Faça um favor a si mesmo e pare de fumar. Tuck jogou o cigarro na calçada e o apagou com a sola do sapato. – O que vocês querem comigo? – Uma coisa. Tuck levantou as mãos. – Olhem, se for aquela porcaria sobre Willa ser adotada... – Não, na verdade é sobre o sujeito que você viu com Pam. – Falaram com ele? Quem ele é? – É um agente do Serviço Secreto, um alto funcionário – disse Michelle. – O nome dele é Aaron Betack. Basicamente o que ele disse foi que você se enganou quando o identificou como o homem que viu com Pam. – Então está mentindo. Eu olhei bem para o cara através de uma vidraça transparente e limpa. Não estava a mais de três metros de distância. Era ele! Eu juraria com a mão sobre a Bíblia. – Nós acreditamos em você, Tuck – disse Michelle. – E poderia haver uma maneira melhor do que a mão na Bíblia – acrescentou Sean. – Como assim? Sean apontou para o outro lado da rua. – Ele está lá agora. Nós o vimos entrar. É por isso que estamos aqui. – Betack? – É. – Então o que querem que eu faça? – Que você ligue para sua irmã e peça que ela receba nós três. Quando entrarmos, pediremos que ela chame Betack e então o confrontaremos. Se ele quiser mentir na cara dela, que assim seja. Tuck subitamente não pareceu mais tão seguro de si. – Tenho certeza de que ela está muito ocupada agora.
Michelle o segurou pelo braço. – Tuck, você acabou de enterrar sua esposa. Sua filha mais velha foi sequestrada. Não creio que neste momento você deva se preocupar com o fato de sua irmã estar ocupada. Sean o encarou atentamente. – Então, o que vai ser? Tuck pegou o celular. – Daqui a cinco minutos? – Para nós, está bom – respondeu Sean.
NA ÉPOCA EM QUE Sean King trabalhava para o Serviço Secreto e fazia parte da equipe responsável pela proteção do presidente, chegara a ter acesso ao Gabinete de Gestão de Crise, um setor de segurança máxima no qual pouquíssimas pessoas eram autorizadas a entrar. Apesar disso, nunca tinha visto os aposentos particulares da família do presidente. Essa história estava prestes a mudar. Depois de subirem no elevador operado por um ascensorista, ele e Michelle olharam ao redor pela sala em que estavam. Era luxuosamente mobiliada, com molduras grossas e belos arranjos de flores. A atenção deles se voltou para a mulher que estava sentada no sofá em frente, segurando uma xícara de chá. Um fogo agradável crepitava na lareira. Do outro lado da rua, um grupo de manifestantes protestava contra alguma coisa no Lafayette Park. Jane obviamente também os ouvia. – Seria de esperar que eles se contivessem, depois de tudo o que aconteceu. – É preciso ter licença prévia para a manifestação – respondeu Michelle. – Eles têm que aproveitar a oportunidade. – É claro. Ela parece exausta, refletiu Sean. E obviamente não era só por causa da campanha. As pequenas rugas no rosto da primeira-dama estavam mais pronunciadas, as bolsas sob seus olhos, mais inchadas e o cabelo não tão meticulosamente penteado como de costume. Ela também parecia ter emagrecido. As roupas estavam ligeiramente folgadas. O olhar de Michelle cravou-se em Tuck. Ele sentou ao lado da irmã, dirigindo olhares nervosos pela sala. Tinha na mão um drinque trazido por um dos garçons da Casa Branca. Apertava o copo com tanta força que seus dedos estavam brancos. O sujeito provavelmente queria fumar, mas isso era proibido na Casa Branca – para grande desespero das muitas pessoas estressadas que trabalhavam lá. – Como estão John e Colleen? – perguntou Jane. – Não muito bem. – Podemos hospedá-los aqui, Tuck. – Não faria diferença, mana. Não é uma questão de lugar. – Eu sei. Tuck olhou ao redor, para a sala espaçosa. – E esta casa não me parece preparada para receber crianças. – Você se surpreenderia – disse Jane. – Lembre-se de que demos uma festa de aniversário para Dan Jr. na Sala de Jantar de Estado quando ele fez 16 anos. E muitas crianças pequenas já moraram aqui. A família de Teddy Roosevelt. A de JFK. – Está tudo bem, mana. Ela olhou rapidamente para Sean. – Obrigada por ter ido ao enterro. – Eu disse que estaríamos lá. – Nossa última conversa terminou de um jeito estranho. – Na verdade, pensei que tivesse sido bem claro. Os lábios dela se franziram. – Estou tentando abordar o assunto da maneira mais profissional possível, Sean. Ele chegou para a frente na cadeira, enquanto Tuck e Michelle o observavam nervosamente. – E nós estamos tentando encontrar Willa. Realmente não me importo se conseguiremos agir de forma profissional ou não, desde que a encontremos. Espero que isso não seja um problema – completou. Então olhou para Tuck: – Para nenhum de vocês. – Só quero minha filha de volta – disse Tuck rapidamente. – É claro – disse Jane. – É o que todos nós queremos. – Ótimo, fico satisfeito por termos esclarecido isso.
Sean fez um gesto de cabeça encorajando Tuck. O homem finalmente abrira a boca: – E... Dan está por aqui? Sean revirou os olhos e se recostou na cadeira, enquanto Michelle apenas encarava Tuck como se ele fosse o maior idiota que ela já vira. – Está trabalhando no gabinete dele. Vai para a Costa Oeste mais tarde. Eu deveria ir me encontrar com ele amanhã, mas meus planos estão suspensos no momento, como podem imaginar. Duvido que eu vá – concluiu ela. Olhou para Sean e perguntou: – Tem alguma coisa para me relatar? – Não, mas creio que seu irmão tem. De fato, é por isso que estamos aqui. Ela se voltou para Tuck. – O que é? Ele bebeu o resto de seu drinque tão depressa que quase engasgou. Quando se recuperou, não disse nada. Exasperada, Michelle tomou a palavra: – Tuck viu o agente Betack se encontrar com Pam cerca de um mês antes de ela ser morta. O agente nega que isso tenha acontecido. Gostaríamos que a senhora o chamasse aqui e esclarecesse a questão de uma vez por todas. Sabemos que ele está na Casa Branca porque o seguimos até aqui. O olhar de Tuck ficou colado nos sapatos, enquanto sua irmã olhava primeiro para Michelle e depois para Sean. – Isso não vai ser necessário. – Por que não? – perguntou Sean. – Porque o agente Betack de fato se encontrou com Pam. – Como sabe disso? – Porque eu pedi a ele que fizesse isso. Durante um minuto muito desagradável, os únicos sons na sala foram o crepitar da lareira e o barulho dos manifestantes ao longe. Surpreendentemente, foi Tuck Dutton quem quebrou o silêncio.
– Que diabo está havendo, mana? Ela pousou a xícara de chá. O olhar que dirigiu a cada um deles, finalmente detendo-se em Tuck, foi um dos mais estranhos que Sean jamais tinha visto, uma combinação de controle e desespero. E ele não imaginava como ela teria conseguido aquilo, mas conseguiu. – Não seja burro, Tuck. O tom, refletiu Sean, foi um tanto agressivo em se tratando de um irmão que acabara de enterrar a mulher. – De que forma estou sendo burro ao fazer esta pergunta? – Pam desconfiava de que você estivesse tendo um caso. Ela veio conversar comigo. Como sempre, tentei facilitar as coisas para você. – Você sabia que eu estava tendo um caso? – Depois que pedi ao agente Betack para examinar a questão, sim. Ele mandou segui-lo e me informou que de fato você andava pulando a cerca – disse ela. Então olhou para Sean e Michelle: – Não foi a primeira vez, é claro. Meu irmão parece ser incapaz de se manter dentro das calças, a menos que esteja junto da mulher. E não é apenas o meu irmão. Acho que é um mal que aflige todos os homens casados. Tão logo fazem os votos matrimoniais, um de seus cromossomos os informa de que está na hora de trair. Tuck parecia ter levado um murro no rosto. – Não acredito que você… – começou a falar. – Cale a boca, Tuck. Isso não tem a menor importância. Muito bem, refletiu Sean, aí está uma faceta desta mulher que eu nunca tinha visto e que não me agrada nem um pouco. – Então Betack estava falando com Pam sobre o que tinha descoberto? – perguntou Michelle. – Não exatamente. – Sobre o que exatamente? – Pedi ao agente Betack que informasse Pam de que Tuck não a estava traindo. Até Tuck pareceu indignado diante daquela informação, embora a mentira tivesse acobertado sua infidelidade. Talvez ele estivesse pensando na esposa morta, sozinha, no chão lamacento.
– Em outras palavras, suas ordens foram de que ele mentisse? – perguntou Michelle. – Tudo indica que meu marido será reeleito, exceto se houver algum desastre, inclusive pessoal. – Se o caso de Tuck viesse a público, a senhora temia que pudesse prejudicar as chances de seu marido? Foi por isso que mandou Betack mentir para Pam? – perguntou Sean, sem tentar esconder sua raiva crescente. – Mas a senhora não é a guardiã de seu irmão e tampouco o presidente – assinalou Michelle. – Tuck é adulto. Poderia haver um escândalo, mas não envolveria o presidente. – Às vezes é difícil determinar onde a família do presidente começa e termina – rebateu Jane. – E em todo caso, eu estava determinada a não permitir que a opinião pública fosse influenciada contra meu marido por causa de uma revelação desse tipo. No mínimo, daria munição à oposição, que até agora não tem nenhuma. Havia outro motivo, mas, por razões muito claras para a primeira-dama, ela preferiu não se deter nele. – Bem, não creio que Pam tenha acreditado em Betack – disse Sean. – Por quê? – Porque na noite em que foi morta, íamos nos encontrar com Pam a pedido dela. Sua cunhada não sabia que Tuck estaria em casa. Disse que tinha um assunto que queria que investigássemos. Posso lhe dar três tentativas para adivinhar qual poderia ser. – Percebi que ela ainda estava preocupada com aquilo na festa em Camp David – admitiu Jane. Tuck olhou para Sean e completou: – E quando eu apareci de repente em casa, naquela noite, ela ficou nervosa. Sean assentiu. – Ela pode até ter pensado em me ligar e cancelar, mas só tinha o número do escritório, não o do meu celular. E já estávamos a caminho quando Tuck apareceu. – Então vocês sabem de tudo – disse Jane. – Não, não tudo – disse uma quinta voz.
Todos se viraram e viram Aaron Betack parado na entrada da sala.
– O quê? – perguntou Sean. Betack entrou no aposento. – Não me lembro de ter lhe pedido que viesse, agente Betack – disse Jane, surpresa. – A senhora não pediu. Eu... eu decidi por mim mesmo. O agente veterano estava muito pálido. – Não tenho certeza de que compreenda como poderia fazer isso – disse ela asperamente. Betack olhou constrangido para os outros. – Uma das funcionárias que trabalham aqui, na cozinha, recebeu uma carta. Shirley Meyers. Jane se levantou. – Quero que o senhor se retire imediatamente, agente Betack. Neste instante. Sean também se levantou. – Que diabo está acontecendo? – Saia já daqui! – ordenou Jane. – Aaron, que carta? – perguntou Michelle. Antes que Betack pudesse responder, Jane agarrou o telefone. – Basta uma ligação, Betack. Ou você sai imediatamente ou sua carreira está acabada. – Talvez já esteja – argumentou Betack. – Mas o que é uma carreira se comparada com a vida de uma menina? A senhora já pensou nisso? – Como se atreve a falar comigo assim? Tuck se levantou. – Eu me atrevo. Se isso tiver alguma coisa a ver com a vida ou a morte da minha filha, com certeza me atrevo. Jane olhou para ele e depois para os outros, um por um. Sua confiança pareceu esmorecer sob os olhares deles. Para Sean, ela parecia um animal encurralado.
– Jane, se você recebeu uma carta que tem alguma coisa a ver com Willa, nós precisamos saber – disse Sean. – O FBI precisa saber. – Não será possível. Tuck agarrou o braço da irmã. – Não será possível coisa nenhuma. Betack instintivamente avançou para proteger a primeiradama. Mas Michelle já havia agarrado o braço de Tuck e o obrigara a soltá-la. Então o empurrou para o sofá. – Fique frio, Tuck. Isso não está ajudando. Ela é a primeiradama. – Estou pouco me importando com isso. Ela poderia ser o presidente e eu não daria a mínima. Se ela sabe de alguma coisa que possa ajudar a encontrar Willa, preciso saber o que é. Jane estava olhando com firmeza para Betack: – Como soube disso? – Nada acontece nesta casa sem que o Serviço Secreto saiba, Sra. Cox. – A carta era dos sequestradores? – perguntou Sean. Jane finalmente desviou o olhar de Betack. – Poderia ser. Para mim, é impossível ter certeza. Para qualquer um. – Foi examinada para ver se tinha digitais? – perguntou Michelle. – Uma vez que não foi enviada para cá e que passou por muitas mãos antes de vir parar nas minhas, creio que a resposta é não – disse ela friamente. – Onde está? – perguntou Sean. – Eu a destruí. Sean olhou contrariado para Betack. – Jane, isto é uma investigação federal – lembrou o investigador. – Se ficar comprovado que você intencionalmente ocultou e destruiu provas... – Isso poderia realmente ser o fim da eleição para seu marido – acrescentou Michelle.
– Mas por que esconder a carta? – quis saber Sean. Jane não fez contato visual com ele. – Foi um choque recebê-la da maneira como eu a recebi. Estava tentando avaliar as coisas antes de decidir o que fazer com ela. Pronto, agora ela se complicou toda, pensou Sean. – Creio que as autoridades precisam avaliar a carta – disse Betack. – Por favor, Sra. Cox, a senhora precisa compreender o que está fazendo e dizer às autoridades o que havia na carta. – Está bem, vou dizer a vocês. A carta dizia que eu iria receber outra, enviada para uma caixa postal numa agência de correio. Também me dava o endereço e a chave da caixa postal. Sean, Michelle e Betack trocaram olhares. Jane percebeu isso porque acrescentou: – E dizia que se qualquer pessoa que ao menos remotamente se parecesse com um agente da polícia ou do FBI se aproximasse da caixa, nós nunca mais veríamos Willa. – Foi por isso que não falou da carta para ninguém? – perguntou Tuck. – É claro. Você realmente acha que eu quero que aconteça alguma coisa com Willa? Eu a amo como se fosse minha filha. O modo como ela disse isso pareceu um tanto estranho a Sean. – Quando dizia que a outra carta iria chegar? – Não dizia. Mas avisava para eu checar regularmente. Hoje não havia nada lá. – Temos que informar o FBI – disse Betack. Sean e Michelle concordaram, mas Jane sacudiu a cabeça. – Se fizer isso, nunca mais veremos Willa. – Jane, os federais são bons nisso. – Sim, eles foram incríveis até o momento. Descobriram tudo, não é? Não posso imaginar por que fariam besteira agora. – Isso não é justo – disse Michelle. Jane Cox levantou a voz.
– O que você sabe de justiça? – Quando receber a carta, tem que nos deixar ver o que diz – disse Sean. Ela o encarou: – Eu tenho? – Você nos contratou para investigar este caso, Jane. E até agora só mentiu para nós, omitiu informações vitais e nos fez perder um tempo de que não dispúnhamos. Sim, você precisa permitir que nós e o FBI vejamos a carta quando ela chegar. Caso contrário, podemos nos retirar de uma vez e dar nossa participação por encerrada. – Jane, pelo amor de Deus, é de Willa que estamos falando – manifestou-se Tuck. – Você tem que permitir que eles ajudem. – Vou pensar no assunto. Tuck pareceu estarrecido ao ouvir isso, mas Sean disse: – Ótimo, pense no assunto e depois nos informe de sua decisão. Ele se levantou e fez um gesto para que Tuck e Michelle saíssem junto com ele. – Tuck, por que você não vem ficar aqui com as crianças? – perguntou Jane. Ele nem olhou para ela. – Não, obrigado. Tuck saiu do aposento pisando duro. Michelle e Sean o seguiram. Betack tinha se virado para acompanhá-los quando Jane disse: – Eu nunca me esquecerei desta traição, agente Betack. Nunca. O agente umedeceu os lábios, mas pareceu pensar melhor e decidir não responder. Apenas saiu. Quando iam deixando a Casa Branca, Sean puxou Betack para um lado. – Aaron, uma palavra.
– Está precisando de investigadores freelance? Imagino que minha carreira esteja prestes a sofrer uma mudança involuntária. – Preciso mesmo que você investigue uma coisa. – O quê? – A carta que a primeira-dama recebeu. – Ela disse que a destruiu. – Considerando que praticamente tudo o que aquela senhora disse era mentira, as possibilidades de que não tenha destruído são de 50%. – E você quer que eu a encontre? – Eu mesmo tentaria. Mas creio que vão perceber se eu começar a espionar por aqui. Pelo que sei, a segurança é muito boa. – Você se dá conta do que está pedindo que eu faça? – Claro. Estou pedindo que você ajude a salvar a vida de uma menina. – Qual é o prazer em me fazer sentir culpa? – Se eu não fizesse, você investigaria? Betack olhou para o vazio por um momento. Quando se virou e encarou Sean novamente, disse: – Vou ver o que posso fazer. Depois que eles deixaram Tuck na Blair House, o telefone de Sean tocou. Ele atendeu, ouviu, sorriu e desligou. – Acho que a maré está mudando. – Por quê? Quem era? – perguntou Michelle. – Meu amigo do departamento de linguística. Parece que eles têm alguma coisa para nos contar sobre as letras nos braços de Pam.
– NÓS ESGOTAMOS TODAS AS possibilidades em que conseguimos pensar – disse Phil Jenkins, amigo de Sean e professor da Universidade de Georgetown. – É claro que não era a língua yi, como você imaginou inicialmente, porque nem o alfabeto seria o correto. Mas professores universitários adoram desafios como este, de modo que pedi a colaboração de outros colegas de nosso grupo de estudos interdisciplinares. No mínimo é mais interessante que corrigir 50 provas. – Aposto que sim – disse Michelle, sentando-se na ponta da mesa de Jenkins no escritório atravancado. Ela teria preferido uma cadeira, mas as duas disponíveis na sala estavam empilhadas com toneladas de livros. – E o que descobriu? – perguntou Sean com impaciência. – Já ouviu falar de muscógui? – É uma cidade em Wisconsin ou talvez em Oklahoma? – A cidade é Muskogee. Não, estamos falando de um idioma indígena, uma língua nativa americana. Sem entrar em detalhes técnicos, na verdade é uma família de línguas. – Então os escritos que lhe demos estavam em muscógui? – perguntou Michelle. – A língua na verdade é koasati, mais conhecida como coushatta. Mas a origem é do muscógui. – Então o que dizia? – perguntou Sean. – O que lhe enviamos. Jenkins olhou para uma folha de papel com anotações de alto a baixo. – Foi um pouco difícil de descobrir, porque não usaram os sinais gráficos que indicam a pronúncia. Por exemplo, deveria ter havido um dois-pontos entre chaffa e kan. E as letras não estavam separadas em palavras. Isso dificultou bastante a compreensão.
– Parece que não queriam facilitar nosso trabalho – comentou Sean.
– E não facilitaram – observou Jenkins. – Portanto, até onde pudemos apurar, o que diz é o seguinte: chaffakan significa “uma”, tayyi significa “mulher” e hatka é “branca”. – Uma mulher branca? – perguntou Sean. – Uma mulher branca morta – corrigiu Michelle. Jenkins virou-se rapidamente para ela. – Morta? – É uma longa história, Phil – disse Sean. – O que pode nos dizer sobre essa história de koasati? – Consultei um professor especializado em línguas nativas americanas. Na verdade, foi ele quem decifrou isso. A tribo koasati vivia no que atualmente é o Alabama. Quando os europeus começaram a se instalar lá, e porque eles também estavam sob ataque de tribos rivais, os koasatis se mudaram para a Louisiana e depois para o Texas. Aparentemente, não existem mais membros dessas tribos no Alabama. A maioria das pessoas que ainda falam a língua, e são apenas algumas centenas, reside na paróquia de Allen, um pouco ao norte de Elton, na Louisiana. Embora aparentemente ainda haja alguns falantes em Livingston, no Texas. Michelle e Sean se entreolharam. – Texas e Louisiana – disse ela. – São lugares grandes onde procurar. – E se reduzirmos a cidades e a algumas centenas de pessoas? – Mas, para início de conversa, por que colocar essas palavras no braço de Pam? Tudo bem, eles dificultaram, mas não deixaram as coisas impossíveis – comentou Michelle. – Essas palavras estavam nos braços de uma mulher? – perguntou Jenkins. – E você disse alguma coisa sobre ela estar morta? – Não apenas morta, assassinada – disse Michelle. – Ah, meu Deus! – disse Jenkins e deixou a página cair sobre a mesa. – Fique tranquilo, Phil. Duvido que essa gente volte a nos dar uma demonstração do idioma. Obrigado pela ajuda.
Enquanto eles saíam do escritório, Sean sacudiu a cabeça: – Por que isso me parece uma tática para despistar a polícia? – E um bocado idiota, porque não precisavam fazer isso. – Concordo. – E agora? – Precisamos falar com Waters. Contar a ele o que sabemos. – Aquele nojento? Por quê? – Porque prometemos. E precisamos encontrar Willa o mais rápido possível. Portanto, vamos precisar dos federais para nos dar apoio. – Sei. Bem, eu não ficaria nada surpresa se, em vez de ajudar, eles caíssem em cima de nós.
SEAN LIGOU PARA WATERS e eles combinaram de se encontrar em um bar a poucos quarteirões da sede do FBI. – Não esperava receber uma ligação sua – disse Waters, enquanto se sentavam a uma mesa no fundo do salão. – Eu disse que entraríamos em contato se tivéssemos alguma informação. – Então diga. – Os escritos no braço de Pam Dutton foram feitos em uma língua nativa americana conhecida como koasati. Waters se empertigou na cadeira. – Você sabe o que quer dizer? – “Uma mulher branca” – respondeu Michelle. – Algo de que obviamente já sabíamos. – Não faz sentido – disse Waters. – Provavelmente foi uma tentativa desastrada de deixar uma pista falsa porque tinham feito besteira. – Besteira como? – O sujeito entrou em pânico, matou a mulher sem querer e depois resolveu escrever no braço dela para despistar – respondeu Sean. – Não creio que houvesse intenção de matar naquela noite. Tuck seria a ameaça mais clara e, mesmo assim, eles apenas o deixaram desacordado, quando poderiam facilmente tê-lo fuzilado. – Certo, então me fale sobre esses koasatis. Sean revelou o que Phil Jenkins tinha lhes contado sobre a tribo. – Bem, talvez isso diminua um pouco a área de busca – disse Waters em tom de dúvida. – Mas uma tribo indígena ter um problema tão grave com o presidente a ponto de sequestrar a sobrinha dele… Parece que é forçar demais a barra. – Segundo ponto – disse Sean. – Pam Dutton só deu à luz duas crianças. Acreditamos que Willa seja adotada. – Disso já sabíamos. A legista nos passou a informação depois que vocês falaram com ela. – Conversamos com Tuck e ele se recusa a revelar uma palavra sobre o assunto. Apenas nos chama de loucos. A primeiradama afirma ignorar o fato. Diz que os Dutton estavam morando na Itália quando Willa nasceu, ou quando se supõe que nasceu. – Talvez Willa não seja a criança adotada – disse Waters. – Os outros dois se parecem com os pais – assinalou Michelle. – Mas a legista disse que foram apenas dois partos, independentemente de qual seja a criança, portanto Tuck está mentindo de qualquer forma – disse Sean. – Talvez você possa pressioná-lo e descobrir a verdade. – Pressionar o cunhado do presidente não é nada fácil – observou Waters nervosamente. – Tem que haver registros em algum lugar que comprovem que Willa é adotada. Aqui ou na Itália. O FBI com certeza pode descobrir isso. – Você acha que o fato de ser filha adotiva tem alguma coisa a ver com ela ter sido sequestrada? – Como poderia não ter? – Mas vamos recuar um passo – disse Michelle. – E daí se Willa for adotada? Por que Tuck não admitiria isso? Adoção não é ilegal. – Poderia fazer diferença se a identidade da mãe de alguma forma for um problema – disse Sean lentamente. – Ou talvez a do pai – assinalou Michelle. Os três ficaram remoendo aquilo em silêncio por alguns minutos. Finalmente Waters falou: – E a primeira-dama não sabia nada a respeito disso? Tuck sendo irmão dela?
– Foi o que ela disse – respondeu Sean. Waters lhe deu um olhar incisivo. – Mas você não acredita nela? – Eu não disse isso. – Então você acredita nela? – Também não disse isso. Sean se recostou na cadeira e encarou o agente do FBI. – Alguma novidade no seu lado? A expressão no rosto de Waters mudou. – Me desculpe, não sabia que seria um toma lá dá cá. – Se trabalharmos juntos, teremos mais chances de conseguirmos encontrar Willa Dutton viva. Waters não pareceu convencido. – Olhe, eu já disse: não me importo quem leva os créditos – reforçou Sean – ou a glória. Só queremos encontrar a menina. – Não é possível que você tenha algo contra um acordo assim – disse Michelle. Waters acabou de tomar sua cerveja e olhou para ela com curiosidade: – Sua mãe foi mesmo assassinada? – Foi. – Alguma pista? – O principal suspeito é meu pai. – Jesus! – Não, o nome dele é Frank. – Você não deveria estar cuidando disso? – Eu sou mulher. – E isso significa…? – Significa que, ao contrário de homens, posso cuidar de mais de uma coisa ao mesmo tempo. Sean bateu de leve no braço de Waters. – E então, Chuck, como ficamos?
O agente fez um gesto para o garçom pedindo mais uma rodada, então disse: – Encontramos um fio de cabelo em Pam Dutton que não pertencia a ela nem a ninguém da família. – Pensei que o DNA que conseguimos não tivesse registro em nossa base de dados. – E não tem. Fizemos um teste diferente com o tal cabelo. Uma avaliação isotópica em busca de pistas geográficas. Sean e Michelle se entreolharam. – O que descobriram? – Que o dono do cabelo tem mantido uma dieta com alto teor de gordura animal há anos, mas também ingere muitos vegetais. – E o que se pode deduzir a partir disso? – Não muita coisa, embora os vegetais não sejam muito típicos da dieta do americano. – Os alimentos eram processados? – Creio que não. Mas os níveis de sódio também estavam altos. Sean olhou para Waters: – Talvez uma fazenda? Eles abatem os animais que consomem. É provável que mantenham a carne em sal. Comem na hora o que colhem ou então preparam conservas, mais uma vez com sal. – É possível – disse Waters. – Também descobrimos outra coisa no exame… Ele hesitou e Sean não se conteve: – Não faça suspense. – A água que a pessoa bebia. Isso também tem reflexos no isótopo do cabelo. O laboratório reduziu a origem da água a uma área de três estados. – Quais? – Geórgia, Alabama e Mississippi. – Isso combina com a triangulação dos pontos de envio da correspondência – observou Michelle.
– Três estados em linha reta – disse Sean, baixinho, olhando fixamente para seu drinque. – Os três enfileirados. – Aparentemente, tanto a água da chuva quanto a água dos rios e nascentes de lá têm alguns marcadores muito distintivos – disse Waters. – E eles foram mapeados de maneira detalhada ao longo de anos. É por isso que o laboratório está confiante quanto aos resultados. – Será que poderiam confirmar se era água de poço ou encanada? – De poço, porque não havia cloro nem qualquer outro produto químico – disse Waters. – De modo que significa que se trata de uma área rural? – Possivelmente, embora com certeza haja lugares nas cidades que usam água de poço por lá. Eu mesmo já morei numa região assim, antes de ser mandado para cá. – E se somarmos a isso a dieta rica em gorduras animais, legumes e verduras não processados…? – instigou Sean. – Tudo bem, muito provavelmente é uma área rural. Mas mesmo assim, ainda é uma área bastante grande. – Mas esses estados não batem com os dados dos koasatis – disse Michelle. – Era Texas ou Louisiana. – Só que os koasatis são originalmente do Alabama – assinalou Sean. – Originalmente, sim, mas agora não estão mais lá. – Será que você poderia pesquisar a questão dos koasatis? – Sean perguntou a Waters. O agente assentiu. – Mandarei que nossa equipe de lá comece a investigar imediatamente – garantiu. Então perscrutou os dois: – Isso é tudo o que descobriram? Sean terminou seu drinque e se levantou. – É tudo o que sabemos que valha a pena passar para vocês. Eles deixaram Waters tomando sua segunda cerveja e voltaram para o carro. No caminho, o telefone de Michelle tocou. Ela olhou para a tela.
– Quem é? – perguntou Sean. – O identificador de chamada diz que é Tammy Fitzgerald. – E quem é ela? – Alguém que eu não conheço. Ela guardou o telefone. Então se lembrou: – Você não mencionou para nosso amigo do FBI a carta que a primeira-dama recebeu. – É verdade, não mencionei. – Por que não? – Porque estou disposto a dar a ela a chance de recuperar o juízo, antes que precise entregá-la aos federais para ser acusada de obstrução da Justiça. Isso provavelmente também seria o fim da reeleição para o presidente. E ele tem feito um bom trabalho. – Você está brincando? Quem se importa com as consequências políticas? E se isso custar a vida de Willa? Não é o que importa, ter Willa de volta? Ou aquela história toda que você estava jogando para o Waters era conversa fiada? Sean parou de andar e se virou para ela. – Michelle, estou fazendo tudo o que posso, está bem? É complicado. É muito complicado. – Só é complicado se você tornar complicado. Gosto de manter as coisas bem simples: encontrar Willa, custe o que custar. Ele estava a ponto de dizer alguma coisa quando parou e olhou para além, por cima do ombro dela. Michelle se virou para ver o que ele estava olhando. Havia dois homens andando do outro lado da rua, ambos usando uniformes camuflados do exército. – Droga – disse Sean. Michelle se virou para ele. – O que foi? – Você disse que achava que o colete à prova de balas do sujeito que atirou em você com a MP5 era das Forças Armadas. – Exato. – Pois é, exato.
GABRIEL ESTAVA FAZENDO TUDO o que podia para nem sequer respirar. Segurava firme um grande molho de chaves e, antes de dar cada passo, parava para escutar qualquer som atentamente. Parte do garoto perguntava a si mesmo por que estava fazendo aquilo. Outra parte dele sabia muito bem o motivo: curiosidade. Sam Quarry dizia com frequência a Gabriel que era bom ser curioso, que significava que você estava realmente vivo e disposto a descobrir como o mundo funciona. Mas ele não achava que seu Sam pensaria assim agora que estava descendo às escondidas para o porão no meio da noite, tentando ver algo que o homem provavelmente não queria que nem ele nem ninguém descobrissem. O garoto passou pela antiga fornalha, que, no escuro, parecia um monstro de ferro disposto a engolir criancinhas. Então viu o velho cofre com seus números e riscas quase apagados; e uma maçaneta de bronze que era puxada para baixo para abrir a porta. Gabriel nunca tinha tentado abri-lo, mas muitas vezes pensara em fazê-lo. Que criança aventureira não pensaria? Ele seguiu silenciosamente pelo corredor, tentando não respirar o ar com cheiro de mofo. Era impossível viver em um lugar como Atlee sem desenvolver algum tipo de alergia a mofo: fazia parte do pacote. Contudo, cheio de coragem, ele se apressou. Chegou à porta grossa e olhou para a primeira das chaves. Examinou a fechadura e tentou determinar quais opções no molho poderiam se encaixar nela. Conseguiu eliminar cerca de três quartos das chaves, depois começou a inserir as restantes, uma após a outra, na velha fechadura. A terceira que tentou serviu. Houve um sonoro clique enquanto a tranca girava e se abria. Gabriel estacou, pensando que talvez tivesse ouvido passos pesados descendo a escada na direção dele. Mas, depois de um minuto prendendo a respiração e rezando para que não fosse seu Sam que tivesse acordado ao ouvi-lo andar pela casa, enfiou as chaves no bolso e empurrou a porta. Ela se abriu, girando nas dobradiças bem lubrificadas – seu Sam, ele sabia, era bom em manter tudo funcionando. Um dos motivos por que viera ali, talvez o principal, era ver onde os escravos ficavam presos por tentar fugir, como se qualquer um que vivesse acorrentado, branco ou negro, não fosse tentar fazer o mesmo. Quando fechou a porta às suas costas e acendeu a pequena lanterna que trazia consigo, a primeira coisa que viu foi a fileira de velhos arquivos muito gastos. O facho de luz iluminou a parede e seu queixo caiu: havia quadros cobertos de anotações, alfinetes, barbantes, fotos de pessoas e lugares e fichas de arquivo. Ele se aproximou franzindo a testa, ao mesmo tempo confuso e maravilhado. Enquanto girava a lanterna e sua luz iluminava as outras paredes, revelando mais daquilo, alguma coisa deu um puxão profundo no peito de Gabriel. Medo. Mas a curiosidade afinal venceu e ele avançou, concentrandose no que parecia ser o primeiro quadro da sequência, pelo menos a julgar pelas datas escritas em cada seção da parede. Nomes, lugares, acontecimentos, horários, detalhes aparentemente insignificantes ganhavam vida ali. Enquanto Gabriel seguia a história ao redor de um espaço onde, um século e meio antes, pessoas com a sua cor de pele eram esquecidas à morte, o medo lentamente começou a voltar. Gabriel tinha ótima memória, um dos motivos por que era tão bom aluno. Ele absorveu o máximo que pôde das informações nas paredes, mas mesmo sua mente jovem começou a ficar sobrecarregada. O garotinho ficou maravilhado, imaginando o cérebro que Sam Quarry deveria ter. Sempre soubera que o homem era inteligente, obstinado e mais independente do que qualquer pessoa que jamais conhecera. Além disso, não parecia haver muita coisa que Quarry não pudesse entender ou descobrir. Mesmo assim, o que o menino via agora elevava seu respeito – não, sua reverência – a um nível muito diferente. Mas ainda havia o medo, que agora se espalhava. Estava tão concentrado na história revelada nas paredes que não escutou a porta se abrir, nem ouviu o som de passos se aproximando às suas costas. Quando a mão caiu sobre o ombro do menino, seus joelhos se dobraram e foi preciso muito esforço para não gritar.
– Gabriel! Ele girou rapidamente e viu a mãe ali, vestindo um velho roupão. – O que está fazendo aqui? – Mamãe? Ela o sacudiu. – O que está fazendo aqui? – perguntou de novo, a voz ao mesmo tempo furiosa e assustada. – Procurei você por toda parte. Pensei que alguma coisa tivesse acontecido. Você quase me matou de susto, menino. – Desculpe, mamãe. – O que está fazendo aqui? – perguntou mais uma vez. – Diga agora mesmo! Ele apontou para as paredes. – Olhe. Os olhos de Ruth Ann percorreram lentamente o espaço, mas, ao contrário de seu filho, não havia nenhuma curiosidade neles. Ela se virou para o garoto: – Você não deveria estar aqui. Como foi que entrou? Ele mostrou o molho de chaves e ela o arrancou das mãos dele. – Mamãe, por favor, olhe – insistiu ele, apontando freneticamente para as paredes. – Não vou olhar para nada, vou é tratar de colocar você de volta na cama. – Olhe aquela fotografia. Eu vi essa garota na televisão da escola. A mulher lhe deu um tapa na cara. A incompreensão que se registrou no rosto de Gabriel deixou claro que aquilo nunca tinha acontecido antes. – Vou lhe dizer uma coisa – disse ela. – Seu Sam abriu as portas da casa dele para nós e nos deu toda esta terra e esta casa quando ele morrer. Tudo o que temos é graças a ele. De modo que é melhor não dizer nada contra ele, ou vou bater em você de novo e mais forte.
– Mas, mamãe... Ela levantou a mão e o menino se afastou. – Vou dizer outra coisa: conheço Sam Quarry há muito, muito tempo, desde quando você cabia na minha mão. Ele nos abrigou quando não tinha nenhum motivo para isso. Ele é um bom homem. Se está fazendo alguma coisa, é assunto dele – vociferou a mulher, antes de apontar ao redor e prosseguir: – Seja lá o que for, ele deve ter um bom motivo. Agora vamos, moleque. Ela agarrou Gabriel pelo braço, arrastou-o para fora e trancou a porta. Enquanto subiam as escadas, ele olhou mais uma vez para trás, antes de correr de volta para seu quarto, impelido por uma última palmada no traseiro dada pela mãe enfurecida.
JANE COX NÃO HAVIA confiado a ninguém de sua equipe a tarefa de checar a caixa postal no correio. Era importante demais. O problema era que, sendo a primeira-dama, era quase impossível ir a qualquer lugar sem estar acompanhada de uma enorme comitiva. Por lei, ela e o presidente não podiam andar desacompanhados. Ela desceu dos aposentos da família. Tinha duas horas livres – coisa rara –, de modo que havia informado ao chefe de sua equipe que queria sair para dar uma volta de carro. Vinha fazendo isso todos os dias desde que recebera a carta. Mas precisara ser insistente: não queria um monte de carros acompanhando-a. Bastavam uma limusine para levá-la e um carro seguindo-a. Não sairia no veículo oficial do presidente, uma monstruosidade de 4,5 toneladas e praticamente à prova de ataque nuclear, reservada ao presidente ou a ele e a esposa, quando viajavam juntos de carro. Na verdade, Jane detestava andar naquele carro. As janelas eram grossas como um catálogo telefônico e não se ouvia nenhum som vindo de fora. Era sufocante, como se você estivesse debaixo da água ou em outro planeta. Três agentes a acompanharam na limusine, seis outros no carro que foi atrás. Eles não gostavam nada daquilo, mas se consolavam ao pensar que ninguém nem sequer poderia imaginar que a primeira-dama estava dentro do veículo. Muitas limusines saíam da Casa Branca a toda hora e a programação divulgada para a primeira-dama naquele dia não incluía saídas de carro. Mesmo assim, eles se mantiveram vigilantes enquanto percorriam as ruas de Washington. Ao comando dela, o carro parou do outro lado da rua de uma loja comum, no sudoeste da cidade. Daquele ponto privilegiado, Jane enxergava através da vitrine da loja a fileira de caixas postais alinhadas numa parede. Ela cobriu a cabeça com um lenço, botou um chapéu e o puxou bem baixo sobre o rosto. Óculos cobriam seus olhos. Ela levantou a gola do sobretudo. – Senhora, por favor – disse o chefe de sua segurança. – Não fizemos a varredura da loja. – Vocês não fizeram isso em nenhum dos outros dias – argumentou ela, imperturbável. – E nada aconteceu. – Mas se alguma coisa acontecer... A voz dele se calou, a tensão visível em seus olhos. Se alguma coisa desse errado, seria o fim da carreira dele. O restante da equipe parecia igualmente ansioso. Ninguém queria destruir a carreira por causa daquilo. – Já falei que assumo toda a responsabilidade. – Mas isso poderia ser uma armadilha. – Eu assumo a responsabilidade. – É nossa obrigação protegê-la. – E é minha obrigação tomar decisões sobre minha família. Vocês podem ficar observando do carro, mas não devem sair do veículo de jeito nenhum. – Senhora, tenha certeza de que sairei deste veículo se a senhora estiver sob algum tipo de ameaça. – Ótimo. Tudo bem. Ela saltou do carro, e o agente soltou um “Merda!”. Todos os olhos nos dois carros, inclusive quatro pares usando binóculos de longo alcance, ficaram colados no vidro observando a primeira-dama atravessar a rua e entrar na loja. Sem que Jane Cox soubesse, já havia três agentes do Serviço Secreto dentro da loja, passando-se por clientes, e mais dois nos fundos, guardando a outra entrada. O Serviço Secreto estava bastante habituado a proteger familiares do presidente que se mostravam ousados, exigentes e de espírito independente demais. Jane foi direto para a caixa postal, usou sua chave para abrila e não encontrou nada. Voltou ao carro em menos de um minuto. – Vamos – disse ela e se recostou no banco de couro. – Sim, senhora – confirmou o chefe do destacamento. – Há alguma coisa que possamos fazer para ajudá-la?
– Ninguém pode me ajudar – respondeu ela em tom de hostilidade, mas sua voz falhou ligeiramente. O percurso de volta para a Casa Branca foi feito em silêncio. No momento em que a primeira-dama saiu da Casa Branca, Aaron Betack entrou em ação. Com a desculpa de fazer uma varredura eletrônica no corredor onde ficava o escritório dela, foi até lá e pediu que os funcionários de sua equipe saíssem enquanto o procedimento era realizado. Ele só levou um minuto para entrar no escritório particular da primeira-dama, destrancar uma gaveta, encontrar a carta, fazer uma cópia dela e devolver o original à escrivaninha. Ele examinou rapidamente o texto antes de enfiá-lo no bolso do paletó. Era a primeira vez em sua carreira que fazia algo semelhante. Na realidade, acabara de cometer um ato criminoso pelo qual teria que cumprir vários anos de prisão se fosse apanhado. De alguma forma, a pena parecia valer cada minuto.
SEAN E MICHELLE TINHAM passado a maior parte da noite e grande parte do dia seguinte descobrindo que havia dezenas de instalações militares situadas na Geórgia, no Mississippi e no Alabama, com centenas de milhares de militares servindo nelas. De fato, era gente de mais para ser de alguma utilidade na investigação deles. Estavam no escritório quando Sean teve uma ideia. Telefonou para Chuck Waters e deixou uma mensagem. Poucos minutos depois, o agente do FBI ligou de volta. – Sabe aquele exame isotópico que vocês fizeram na amostra de cabelo? – perguntou Sean. – O que tem ele? – Revelou mais alguma coisa? – Tipo o quê? – Sei que ele pode dizer qual tem sido a dieta da pessoa ao longo de anos, mas também seria possível mostrar anomalias nessa cadeia? – Anomalias? – Uma interrupção, uma dieta diferente, que tenha ocorrido por pelo menos um período. – Espere um pouco. Sean ouviu folhas de papel sendo viradas e o ranger de uma cadeira. – Não estou vendo nada assim aqui – disse Waters. – Nada fora do comum? Mais barulho de papel. – Bem, não sou cientista, mas lembra-se de que estávamos falando sobre como o criminoso provavelmente era de uma área rural, por causa das carnes e dos alimentos não industrializados e da água de poço? – Lembro. – Bem, também havia níveis elevados de sal, que faziam sentido se estivessem fazendo conservas com os alimentos, certo? – Certo. Já discutimos isso. – Bem, além disso, os níveis de sódio também estavam mais altos que o normal. – Mas, Chuck, sódio é sal. Isso viria das conservas e da carne. Já falamos disso. – Eu sei, Einstein! Mas existem novas tecnologias que permitem distinguir a origem de certos tipos de sódio. O que os testes mostram são níveis elevados de determinado produto com sódio que tem saída comercial, mas é de difícil acesso ao público. – Seria porque é fornecido a certo órgão do governo, como as Forças Armadas? Tipo o sódio da ração militar pronta para consumo? – Se você já sabia das rações militares, por que está me fazendo perder tempo? – perguntou Waters, zangado. – Eu desconfiava. Não tinha certeza até agora. E já que você sabia, teria sido bom se tivesse me dado a informação antes. – Estou conduzindo uma investigação, King, não prestando consultoria. – As rações militares estão disponíveis para venda, para gente que faz treinamento de sobrevivência. Tem certeza de que não é esse o tipo de sódio? – O nível de sódio das rações que vão para as Forças Armadas é mais alto do que os dos produtos que chegam ao comércio. Mas tudo bem, era ração militar, e daí? Isso nos abre um leque de milhões de pessoas. – Talvez sim, talvez não. – Como assim? – Se os criminosos são militares, você não pode usar o cabelo para comparar o DNA com os registros de alistamento do Pentágono? Eles agora recolhem amostras de DNA de todo mundo.
– Eu tentei, mas a droga do sistema deles está fora do ar e só volta daqui a duas semanas. Parece que lutar em duas guerras reduziu o orçamento para manutenção dos computadores. – Que ótimo. Sean desligou e olhou para Michelle. – Então, aonde as rações militares nos levaram? – perguntou ela. – Bem, agora sabemos que são muito altas as probabilidades de que o criminoso seja militar. Só que precisamos confirmar. Mas ainda temos um pequeno problema, que é encontrá-lo. Não parece que vamos conseguir um resultado de DNA tão cedo. – Mas seria estranho ele ainda estar nas Forças Armadas, não? – E tirar uma folga para realizar um sequestro? E depois voltar para a base com a cara toda arranhada e um hematoma no peito causado por uma bala? – Então é alguém que já deixou o serviço? – Creio que sim. Por vontade própria ou contra ela. Mas isso também não nos ajuda, porque existem milhões de ex-membros das Forças Armadas. Michelle estava olhando fixamente para o peito de Sean. Ele olhou para baixo. – Sujei de café? – perguntou. – Ele estava usando um colete à prova de balas. Com certeza é possível sair do serviço levando algum material do governo, mas um colete? – Talvez esteja disponível no comércio. – Talvez, ou quem sabe você possa simplesmente levá-lo no corpo. – Seria bem difícil de esconder se você fosse dispensado. – E se você saísse sem ser dispensado? – arriscou Michelle. – Sair sem permissão? – Isso reduziria aos milhares as pessoas que teríamos que checar. Conhece alguém que possa verificar para nós? – perguntou ela.
Sean pegou o telefone. – Sim, conheço. Um general que conheci quando era do Serviço Secreto. Talvez consiga convencê-lo oferecendo ingressos para o jogo dos Redskins. – Você tem entradas para o jogo dos Redskins? – Não. Mas por uma causa justa, posso comprar.
ISSO É ALTAMENTE IRREGULAR, Sr. Quarry – disse o médico de plantão. – Não, para mim não é – retrucou Sam. – Estou aqui para pegar minha filha e levá-la para casa. Nada mais normal que isso. – Mas ela depende dos aparelhos, não consegue respirar sozinha – disse o homem, como se falasse com uma criança. Quarry apresentou toda a papelada. – Já verifiquei com o pessoal da administração. Tenho os documentos que comprovam que sou o curador dela. Basicamente, posso levá-la para qualquer lugar e não há nada que o senhor possa fazer para me impedir. O médico leu os documentos que Quarry lhe apresentou. – Ela vai morrer se o senhor retirar os aparelhos. – Não, não vai. Já resolvi isso. – O que quer dizer com resolveu isso? – perguntou o médico, desconfiado. – Todos os equipamentos que vocês têm no quarto dela, que a mantêm respirando, eu também tenho. – Mas como? A aparelhagem é muito cara. E complicada. – Um galpão que armazenava equipamentos médicos pegou fogo há cerca de um ano. Eles ficaram com um monte de aparelhos que não foram danificados, mas que precisaram baixar o preço para vender, por causa de regulamentos das agências de saúde. Respirador com tubo para traqueia. Monitor cardíaco. Sonda para alimentação. Recipientes para descarte de lixo hospitalar. Chequei e tudo funciona muito bem. Na verdade, eu apostaria 100 paus que meu material funciona melhor que isso que vocês têm aqui. Aqui é tudo muito velho. Eu sei porque venho aqui há muitos anos e não creio que tenham trocado nada.
O médico deu uma risadinha forçada. – Ora, francamente, Sr. Quarry. Quarry o interrompeu. – Agora trate de aprontá-la para ir. Vou mandar a ambulância estacionar aqui na frente. – Ambulância? – É. Ou o senhor esperava que eu fosse lavá-la para casa na minha picape? Use a cabeça, homem. Contratei uma ambulância equipada com os aparelhos de que ela precisa. Está esperando lá fora – explicou ele, pegando de volta os documentos. – Agora cuide apenas de aprontá-la para ir. Sam Quarry lhe deu as costas e começou a sair. – Mas como o senhor vai conseguir cuidar dela? Quarry se virou para ele. – Eu conheço melhor a rotina dela do que você. Sei como alimentá-la, medicá-la, limpá-la, fazer os exercícios, virá-la e impedir as escaras, tudo. Você acha que venho aqui e fico olhando para a droga do piso? A propósito, o senhor alguma vez leu para ela? O homem pareceu ficar perplexo. – Ler para ela? Não. – Bem, pois eu leio. Li ao longo de todos esses anos. Provavelmente é a única coisa que de fato a mantém viva – vociferou, então apontou o indicador para o médico: – O senhor trate de prepará-la, porque minha menina finalmente vai sair daqui. Quarry assinou uma montanha de papéis isentando a clínica de qualquer responsabilidade e, finalmente, Tippi saiu de sua prisão. O sol ainda brilhava. Quarry estreitou os olhos por causa da claridade e observou enquanto os funcionários colocavam sua filha na ambulância. Ele entrou na velha picape, fez um gesto obsceno em direção à clínica e deu partida, passando na frente da ambulância para mostrar o caminho até Atlee. Quando chegaram em casa, estava tudo pronto. Carlos e Daryl ajudaram os enfermeiros a entrar com a maca. Gabriel e Ruth Ann, ela com lágrimas escorrendo pelo rosto, observaram a comitiva. Adulta, Tippi foi levada de volta para o mesmo quarto que ocupara quando jovem. Tudo o que pertencia àquele cômodo estava agora de  volta a ele. Sam Quarry e a esposa tinham mantido o espaço intocado desde que Tippi partira dali para procurar o rumo da própria vida – um período que se revelara breve demais: faculdade, contratação por uma empresa de marketing em Atlanta e então, aos 20 e poucos anos, passar a respirar com ajuda de um tubo em uma casa de saúde. Agora sua garotinha linda havia voltado para casa. A ambulância foi embora depois que uma enfermeira especializada se certificou de que o equipamento que Sam Quarry possuía era adequado e estava conectado corretamente. Depois disso, ele fechou a porta, sentou ao lado de Tippi e tomou a mão dela na sua: – Você está em casa, filhinha. Papai trouxe você para casa, Tippi. Ele levantou a mão da filha, apontando-a para vários objetos no quarto. – Lá está a medalha que você ganhou por escrever aquele poema. E ali está o vestido de formatura que sua mãe fez. Você ficou tão linda, Tippi. Eu não quis deixá-la sair de casa com ele. Não, senhora. Não queria que os rapazes vissem você daquele jeito, tão bonita. Ele apontou para uma foto numa pequena estante de livros. Mostrava a família inteira. Mãe, pai e os três filhos pequenos. Daryl ainda não era corpulento, apenas um menininho fofo. Suzie estava no meio, com seu olhar desafiador de sempre. E então vinha Tippi, usando um chapéu que tinha feito com jornal e uma tira de couro. Ele estava de lado na cabeça da menina e seus cabelos dourados caíam pelos ombros. Ela exibia aquele sorriso maravilhoso no rosto e uma expressão marota nos olhos. Não havia mais nada capaz de fazer Quarry chorar. Contudo, toda vez que olhava para aquela imagem da filha – com a vida inteira diante de si, um chapéu engraçado, aqueles olhos ardendo por mergulhar de cabeça no mundo, sem saber, sem nem sequer suspeitar do desespero, da perda devastadora que todos eles teriam que enfrentar –, as lágrimas lhe subiam aos olhos. Delicadamente ele pousou a mão dela ao lado do corpo e se levantou para olhar pela janela. Sua menina estava em casa. Ele se alegraria enquanto pudesse. E depois datilografaria a próxima carta.
Ele se virou para Tippi, ouvindo o subir e descer da máquina que mantinha seus pulmões e coração. Relanceou o olhar para a foto. Piscou depressa e, por um instante, conseguiu transferir a Tippi da foto para a da cama. Naquele mundo imaginário, sua filha estava apenas descansando. E, pelo menos em sua mente, ela acordaria, se levantaria, abraçaria o pai e seguiria com sua vida. Sam Quarry mergulhou numa cadeira, fechou os olhos e se deixou ficar naquele outro mundo por mais algum tempo.
O TELEFONE DE MICHELLE TOCOU novamente. Fazia dois dias que eles vinham esperando notícias do amigo de Sean no Exército, mas, aparentemente, ter acesso aos registros de militares que abandonavam o serviço sem permissão em três estados não era fácil. – Quem é? – perguntou Sean, recostando-se na cadeira. – O mesmo número que me ligou antes, mas não conheço a pessoa. – Não custa nada atender. De todo modo, estamos parados aqui. Michelle deu de ombros e apertou o botão. – Alô? – Michelle Maxwell? – Sim, quem fala? – Aqui é Nancy Drummond. Você me deixou um recado sobre sua mãe. Eu era amiga dela. – Mas o código de área de seu telefone não é de Nashville e o identificador de chamadas mostrou o nome Tammy Fitzgerald. – Ah, desculpe, não me lembrei disso. Estou usando o celular de minha filha. Fitzgerald é o sobrenome de casada dela. Ela mora em Memphis, mas está passando uns dias conosco. É mais barato usar o celular para chamadas de longa distância. Eu só tenho a linha fixa. – Ah, entendi. Por que não deixou recado? – Fico meio confusa com celulares e mensagens eletrônicas – acrescentou ela francamente. – Eu sou velha. – Não se preocupe, às vezes também fico confusa.
– Eu estava fora da cidade quando sua mãe morreu. Sinto muito a sua perda. – Obrigada – agradeceu. Michelle estava à sua mesa de trabalho, enquanto Sean desenhava em um bloco. – Eu lhe telefonei porque, bem, acho que a senhora soube que a morte de minha mãe não teve causas naturais. – Soube que alguém a tinha matado. – Quem lhe contou? – Donna Rothwell. – Certo. Olhe, Sra. Drummond... – Por favor, me chame de Nancy. – Tudo bem. Nancy, eu liguei porque queria saber se a senhora tem alguma ideia de quem poderia querer mal à minha mãe. Michelle esperava que a mulher lhe desse um “não” em tom chocado e assustado, mas não foi o que aconteceu. – Quando eu disse que lamentava a morte de sua mãe, estava sendo sincera, Michelle. Eu gostava dela. Mas, honestamente, não posso dizer que tenha ficado surpresa. Michelle se endireitou na cadeira e gesticulou para Sean, que parou de rabiscar o papel. Ela apertou um botão no celular, pondo-o no viva voz. – A senhora disse que não ficou surpresa por alguém ter matado minha mãe? Sean largou a caneta, foi até a mesa de Michelle e sentou no canto. – Por quê? – completou Michelle. A voz doce de Nancy Drummond encheu a sala. – Você conhecia bem a sua mãe? – Acho que não muito bem, na verdade. – Isso é difícil de dizer para a filha dela. – Sra... Nancy, não precisa tentar me poupar. Só quero descobrir quem fez isso.
– Eu também não conhecia muito bem o seu pai. Ele e sua mãe não saíam muito juntos. Mas Sally gostava do círculo social que tínhamos por aqui. Gostava muito. Michelle percebeu a ênfase nas últimas palavras. – Muito quanto? – Não gosto de falar da vida dos outros. – Escute, se minha mãe estava traindo meu pai, é muito importante saber disso, Nancy. Sabe com quem ela estava? – Na verdade, houve mais de um. Michelle afundou na cadeira. – Quantos mais? – De que eu tivesse conhecimento, três. Dois se mudaram daqui há pelo menos um mês. – Para onde? – Um foi para Seattle, o outro, para o exterior. – E quem era o terceiro? – Você não ouviu isso de mim, porque não é todo mundo que sabe. Sua mãe era muito discreta, devo reconhecer. E não sei se eles eram, sabe como é, íntimos. Talvez apenas saíssem juntos. Pode ser que só estivessem se sentindo sozinhos. – Quem? – perguntou Michelle calmamente, embora estivesse com vontade de disparar a arma pelo telefone para fazer com que a mulher respondesse sem mais rodeios. – Doug Reagan. – Doug Reagan, o namorado firme de Donna Rothwell? – Ele mesmo. Você o conhece? – Na verdade, não, mas acho que agora vou conhecer. Há quanto tempo eles tiveram um caso? – Bem, eu achava que ainda estavam tendo, quero dizer, até que sua mãe morreu. – Espere um minuto, como sabe disso? – Sua mãe me fazia confidências. Éramos muito amigas. – De modo que mais ninguém sabe o que a senhora sabe?
– Não sei se ela contou a mais alguém, mas nunca falei disso com nenhuma pessoa até agora. Segredo é segredo. Mas, agora que ela se foi, bem, achei que você tinha o direito de saber. Saber que minha mãe era uma mulher promíscua. Obrigada. – Alô? Está ouvindo, querida? Michelle respondeu depressa: – Sim, estou. A senhora estaria disposta a contar à polícia o que acabou de me dizer? – Eu tenho que contar? Sean pôs a mão no braço de Michelle e balançou a cabeça. – Talvez não – disse Michelle rapidamente. – Pelo menos não por enquanto – completou, fazendo uma pausa. – Hum, meu pai sabia dessas... coisas que minha mãe estava fazendo? – Como eu disse, não conhecia seu pai muito bem, mas ele sempre me pareceu um homem que faria alguma coisa se soubesse. – É, também acho. Obrigada, Nancy. Posso pedir que seja paciente e não conte isso a mais ninguém? – Está bem, querida. Como você quiser. – Agradeço muito a sua franqueza. – Eu tenho quatro filhas adultas, duas delas divorciadas. Sei que as coisas acontecem. A vida não é perfeita. Quero que saiba que, quando sua mãe me contou o que estava fazendo, eu a aconselhei seriamente a deixar de se encontrar com esses homens, a procurar o seu pai e tentar se acertar. Como eu disse, não o conhecia muito bem, mas sabia que era um homem bom. Ele não merecia o que estava acontecendo. – Nancy, você é um amor. – Não, sou apenas uma mãe que já viu de tudo. Michelle desligou e olhou para Sean. – Não é de espantar que eu seja tão problemática, é? – Na verdade, acho você bastante sã. – Por que você não quis que ela contasse à polícia? – Não sei. Foi uma intuição. – E o que fazemos agora?
– Até termos notícias do general, não há muito que possamos fazer no caso de Willa. Que tal uma viagem rápida até Nashville? Eles logo descobriram que o próximo voo direto para Nashville só partiria no dia seguinte. A alternativa era fazer uma escala em Chicago e depois em Denver, o que os faria gastar a maior parte do dia esperando em aeroportos ou aviões. – A pessoa precisa realmente amar viagens aéreas – comentou Sean, ao desligar o telefone depois de ouvir as informações. – Você é obrigado a voar para o norte ou para o oeste se quiser ir para o sul. – Que se danem. Que tal irmos de carro? – perguntou Michelle. – Com você, eu topo. Eles compraram alguns sanduíches e dois copos gigantes de café e partiram às oito da noite. No caminho, Michelle ligou para seu irmão Bill e soube que o restante da família tinha voltado para suas cidades, exceto Bobby, é claro, que morava lá. – Tenho uma boa notícia – disse Bill à irmã. – Qual? – Papai não é mais considerado suspeito. Pelo menos não tanto. – Por quê? – O legista disse que o golpe foi dado por alguém canhoto, e papai é destro. – Eles não sabiam disso antes? – A investigação anda devagar, maninha, mas mesmo assim a notícia é boa. – Por que vocês deixaram papai sozinho? – Na verdade, nós não deixamos. Ele nos deixou. – E o que exatamente isso quer dizer? – Quer dizer que ele nos disse para tratarmos de dar o fora da cidade, porque estava cansado de nos ver por lá. Gostaria que ele tivesse sido mais direto, sabe? Michelle quase pôde sentir o sorriso do irmão mais velho do outro lado da linha. – Vocês acham realmente que deveriam deixá-lo sozinho?
– Bobby está lá. E papai é adulto, sabe se cuidar. – Não é isso o que me incomoda. Antes que Bill pudesse perguntar o que a incomodava, ela já havia desligado. – Então a boa notícia é que seu pai foi inocentado – comentou Sean –, mas a má é que ele sabe que o assassino está livre e é possível que decida ele mesmo cuidar do assunto. – Meus irmãos são excelentes policiais, mas cegos como filhos. Eles nunca nem sequer pensariam na possibilidade de meu pai fazer uma coisa dessas. Ou de minha mãe tê-lo traído. – Mas você pensaria? Ela olhou para Sean e depois virou para o outro lado. – Sim. Michelle dirigiu com seu desrespeito habitual aos limites de velocidade e, parando apenas duas vezes para irem ao banheiro, estavam na casa do pai dela pouco depois das cinco da manhã, quatro horas antes do horário previsto para a chegada do voo direto. Ela deu uma olhada na garagem e sacudiu a cabeça. O Camry não estava lá. Usou sua chave para entrar na casa. Uma busca rápida revelou que não havia ninguém. – Seu pai tem um armário de armas em algum lugar? – Acho que apenas uma caixa com uma pistola. Provavelmente está no armário do quarto. Sean foi checar. Encontrou a caixa, mas não havia arma dentro dela. Eles sentaram na cama desfeita e se entreolharam. – Deveríamos ligar para Bobby? – perguntou Sean. – Levaria muito tempo para explicar tudo a ele. Talvez devêssemos ir atrás de Doug Reagan e perguntar por que se esqueceu de mencionar que andava transando com mamãe. – Você tem o endereço dele? – indagou Sean. – Deve ser fácil descobrir. Como todo mundo vive dizendo, é uma cidade pequena. Ou podemos checar com a gostosona da namorada dele, Donna.
– Bem, que tal primeiro tomar uma ducha e trocar de roupa? Há muito tempo que eu não virava a noite viajando de carro. Na verdade, a última vez foi com você. – Acho que é meu destino expandir seus horizontes. Michelle tomou banho primeiro, no banheiro do quarto de hóspedes. Quando acabou, abriu a porta do quarto e gritou para o corredor: – Sua vez, King. Quando Sean entrou, ela estava acabando de se enrolar numa toalha. Ele exibiu uma xícara de café fresco: – Quer? – ofereceu. – Sempre. Ela sentou na cama tomando o café e ele entrou no banheiro. – E a tal festa aqui ao lado? – disse Michelle bem alto. – Talvez devêssemos pedir uma lista dos convidados e começar a checar isso também. – Ou talvez possamos conseguir a lista com seu irmão – gritou ele em resposta. – Imagino que essa tenha sido uma das primeiras coisas que a polícia fez. Ela chegou mais perto da porta quando o chuveiro foi ligado. – Eu preferiria que nós mesmos fizéssemos isso. – O que você disse? – Acho melhor fazermos isso por conta própria – respondeu ela bem alto. – Tudo bem, seu desejo é uma ordem. – Quem me dera. Apesar da resposta de Michelle, o comentário dele a fez sorrir. Ela foi até o quarto do pai e olhou ao redor. O porta-retrato com a foto da mãe não estava no lugar. Ela checou a lata de lixo. Também não estava lá. Por algum motivo, olhou debaixo da cama. Lá estava ele. Pegou-o e o examinou bem de perto. O vidro fora quebrado e um caco havia rasgado a foto na horizontal, na direção do rosto de seus pais. Será que era a isso que se resumia um casamento de quase 50 anos? O pensamento seguinte foi igualmente devastador:
E para onde exatamente está seguindo a minha vida? Ela levou a fotografia para o quarto de hóspedes, deixou-se cair na cama e começou a tremer. – Droga! Levantou-se e andou até a porta do banheiro. Começou a tremer de novo e hesitou. Engoliu em seco, abriu a porta e entrou. Ainda tremia, os soluços subindo-lhe pela garganta. Sean a viu através do boxe: – Michelle? Ele a fitou interrogativamente, e os olhos dela pareciam prontos para se desfazerem em lágrimas. – O que você está fazendo? – perguntou ele. – Não sei. Eu não sei que diabos estou fazendo, Sean! Ele puxou uma toalha e se enrolou nela antes de sair do chuveiro. Conduziu a parceira para fora do banheiro e até a cama. Sentaram na beira, Michelle com a cabeça apoiada no peito de Sean. – Acho que estou ficando maluca – disse ela. – Você teve que enfrentar muita coisa. É natural se sentir desnorteada. – Meus pais viveram juntos uma vida inteira. Tiveram cinco filhos. Meus quatro irmãos e eu, a temporã, a vira-lata da lanterna. – Não creio que ninguém pense em você assim. Eu com certeza não penso. Ela se virou para encará-lo. – E como você pensa em mim? – Michelle, eu... Ela pegou a foto rasgada. – Quase 50 anos de casamento, cinco filhos e isto é o que resta? Isto? – Michelle, nós ainda não sabemos o que realmente está acontecendo por aqui. – Sinto como se tivesse desperdiçado uma parte enorme de minha vida.
– Campeã olímpica, agente do Serviço Secreto e agora minha sócia? – enumerou ele, arriscando um sorriso. – Acho que muita gente gostaria de trocar de lugar com você. Principalmente para ser minha sócia. Ela não riu. E não chorou. Apenas se inclinou e o beijou delicadamente nos lábios. Então sussurrou no ouvido dele: – Não quero perder mais tempo, Sean. Nem mais um segundo. Ela o beijou de novo e ele retribuiu. Ela encostou o corpo no dele. E então Sean recuou. Seus olhares se encontraram. – Você não me quer? – perguntou ela. – Não assim. Não desta maneira. Nem vo... Ela lhe deu um tapa na cara e saiu. – Michelle... – Me deixe em paz! Ela começou a correr, mas, de repente, foi como se batesse contra uma parede ao mesmo tempo quente e fria, que lhe inflamou os órgãos, mas gelou sua pele. Seus joelhos se dobraram e ela foi ao chão, soluçando alto, tão encolhida que parecia ter voltado a ser criança. Os dedos dela tatearam o piso, encontraram a fotografia e ela a apertou contra o peito. Um segundo depois, Sean erguia Michelle do chão e a carregava nos braços, a cabeça dela apoiada em seu peito. Ele falava com a parceira aflito, mas Michelle não respondia. Sean a deitou na cama, tirou a foto de suas mãos, cobriu-a com o lençol e sentou ao lado dela. Ele estendeu a mão e ela instintivamente a agarrou. À medida que os minutos foram se passando e o sol começou a nascer, os soluços dela começaram a silenciar. Ela foi soltando aos poucos a mão dele, até que adormeceu e a largou totalmente. Sean pôs o braço dela debaixo do lençol e se deitou ao lado dela, deslizando um dedo pelos fios molhados de seu cabelo. Ele ficou assim, velando o sono dela, até que os próprios olhos, exaustos, também se fecharam e ele adormeceu.
SAM QUARRY SAIU ANDANDO pela terra diante da pequena casa que construíra, com Carlos logo atrás. O homenzarrão se deteve e apontou para a passagem natural no relevo: – A transmissão da imagem da câmera vai direto para onde você vai estar. O monitor de TV já está montado e instalado. Eu testei, está tudo funcionando. Porém, é apenas uma imagem externa. Não havia como esconder a aparelhagem dentro da casa. – Entendido. Eles tinham repassado tudo várias vezes, mas Carlos já descobrira que a repetição era a regra que governava a vida de Sam Quarry. Bom piloto que era, a crença inabalável do homem era a de que aprender e relembrar um assunto eram a única maneira de minimizar possíveis erros. – A câmera está alinhada – acrescentou Quarry. – Mas vou checar até o último minuto. – Alguma chance de ela ser descoberta e desligada? – Considerando o espaço de tempo, é uma chance mínima. Mas se for, você terá que recorrer ao equipamento de reserva – explicou Quarry, tirando pesados binóculos da mochila e passandoos a Carlos. – Um par de olhos atentos e o bom e velho equipamento óptico. Preparei um lugar onde você vai poder ver sem ser visto. É só colocar a alavanca que lhe mostrei no bunker na posição aberta. Carlos assentiu, mostrando que entendera. – E a outra coisa? – perguntou ele, olhando para a casa, a linha de árvores e o terreno entre elas. Quarry sorriu. – Essa é a beleza da coisa, Carlos. Tudo é ativado quando você aperta aquele único botão – disse, sorrindo como um estudante que acabou de ganhar um prêmio. – Levei algum tempo para construir, foi um pouco complicado, mas consegui. E uma vez que você aperte o botão, meu amigo, não tem volta. – E como entro em contato com o senhor na mina? – Primeiro você vai me contatar para dizer se as coisas correram bem ou mal. Depois vai usar isto – explicou Quarry, entregando a ele um aparelho semelhante a uma caixa. – Funciona como um telefone via satélite. A chamada virá para mim, mesmo dentro da mina. Eu já testei. Mas a fenda dentro do buraco em que você vai ficar precisa estar aberta para o aparelho conseguir comunicação com o satélite. Você só vai precisar de alguns segundos para fazer a chamada. Nada de mensagens longas, apenas um sim ou um não. Carlos segurou o telefone. – Onde arranjou isto? – Eu mesmo fiz, com peças sobressalentes. – E o sinal do satélite? – Invadi um sistema. Fui à biblioteca e consegui as informações de que precisava no computador. Elas me mostraram exatamente o que fazer. É mais fácil do que parece, se você tiver cabeça para isso. Que diabo, Carlos, todo esse negócio que fiz aqui é mole, se compararmos com o que tivemos que improvisar no Vietnã. De modo que economizei um dinheirão que nem tenho. Carlos olhou para ele com visível admiração e respeito. – Não existe nada que o senhor não consiga fazer? – Existem muitas coisas que não consigo fazer. A maioria delas importantes. Sou apenas um homem trabalhador. Não sei nada de merda nenhuma. – E quando tudo vai acontecer? – Eu avisarei, mas não vai demorar. Carlos olhou para o pequeno monte. Quarry o observou atentamente. – Você vai estar escondido, mas ao mesmo tempo exposto – disse Quarry. – As coisas vão acontecer bem perto. – Eu sei disso – respondeu Carlos, cujo olhar se desviou para um abutre voando em círculos no céu.
– Só vai haver problemas se eles descobrirem. Caso contrário, você simplesmente vai embora depois. Carlos assentiu, mas continuou olhando para o abutre. – Se você quiser que a gente troque de lugar, não tem problema, Carlos. Mas só vou perguntar esta vez. O homem magro e musculoso sacudiu a cabeça. – Eu disse ao senhor que faria isto e vou fazer. Carlos deixou Quarry, destrancou a porta da casinha e entrou. Tudo estava pronto, exceto por uma peça que faltava. Mas esta logo chegaria. Uma hora depois, Quarry decolava em seu Cessna. O vento estava forte e o pequeno avião quase se arrastava pelo céu, mas aquilo não o incomodou. Já tinha voado em condições muito piores. Um pouco de turbulência não o mataria. Muitas outras coisas podiam matá-lo. E provavelmente o fariam. Ele tinha muito em que pensar e tentou se concentrar nisso enquanto voava. A alguns milhares de pés de altitude, sua mente parecia se desanuviar à medida que o ar ficava mais rarefeito. Na parte de trás do avião, havia uma caixa cheia de cabos e fios. Dela e de uma segunda caixa na mina, surgiria seu cenário de Juízo Final. Só a usaria se fosse obrigado – e esperava não ser. Os pensamentos de Quarry voltaram à última vez que Tippi tinha falado. Ele e a esposa correram para Atlanta quando foram avisados da gravidade do problema da filha. Sam nunca quisera que a menina se mudasse para a cidade grande, mas os filhos crescem e é preciso deixá-los ir. No hospital, quando o médico lhes contou o que tinha acontecido, nenhum dos dois conseguiu acreditar. Não a Tippi. Devia haver algum engano. Mas não houvera. Ela já havia entrado em coma por causa da perda de sangue. Contudo, as evidências médicas eram conclusivas. Cameron tinha saído do quarto para comprar um café e Quarry ficara apoiado contra a parede, com a calça jeans suja, a camisa manchada de suor resultante do longo percurso desde o Alabama, no calor do verão e sem ar-condicionado. Ele saíra direto do campo quando a esposa chegara correndo, gritando sobre o telefonema que acabara de receber. O ar parado e artificial de um hospital tão grande fora desagradável, sufocante para um homem habituado a espaços abertos. A polícia também viera e Quarry tivera que lidar com eles. Ficara tão enfurecido com a maneira com que eles os haviam interrogado que Cameron fora obrigada a fazê-lo sair do quarto. Ela era a única pessoa na Terra, além de Tippi, que tinha aquele poder sobre ele. Os policiais, afinal, fizeram seu trabalho e foram embora. Pelos olhares azedos que lhe lançaram ao sair, Sam Quarry teve pouca esperança de obter justiça. E assim, ele havia ficado sozinho com ela no quarto, só ele e sua filhinha. As máquinas continuaram funcionando, as bombas em movimento, o monitor dando seus guinchados que, para Quarry, pareciam tiros de artilharia. Nem mesmo os uivos do fogo antiaéreo disparado contra seu caça nos céus do Vietnã o haviam assustado tanto quanto o gemido daquela maldita máquina que registrava o estado triste e desesperador de sua garotinha. Era muitíssimo improvável que ela algum dia se recuperasse, disseram os médicos. Um deles, especialmente pessimista e sem o menor tato, lhes dissera: “Ela perdeu muito sangue. Houve dano cerebral. Parte da mente já morreu. Se isso lhe servir de consolo, ela não está sentindo dor. Já não é a sua filha que está aqui. Ela na verdade já se foi.” Aquilo não só não tinha feito Quarry se sentir melhor, como o havia levado a arrebentar os dentes da frente do médico e quase ser expulso do hospital. E então, enquanto estivera ali parado, Tippi tinha aberto os olhos e olhado para ele. Assim, sem mais nem menos. Ele se lembrou de cada momento daquela ocasião enquanto voava em seu Cessna. Ficara tão chocado que de início não soubera o que fazer. Piscara, achando estar com algum problema de visão ou alucinado, vendo o que queria ver em vez do que estava realmente ali. – Papai? Em um instante ele estava ao lado da filha, segurando-lhe a mão, o rosto a centímetros do dela. – Tippi? Querida, papai está aqui, bem aqui. A cabeça de Tippi começara a se virar de um lado para o outro e o monitor guinchara como nunca. Ele se sentira apavorado diante da possibilidade de perdê-la de novo para as sombras, para a parte de sua mente que não estava mais lá. Apertara a mão dela, delicadamente segurara seu queixo, parando o balanço da cabeça de modo que os olhos da filha focalizassem apenas ele. – Tippi, eu estou aqui. Sua mãe logo vai voltar. Mas não vá embora, Tippi! Não vá embora! Os olhos dela tinham se fechado, deixando-o em pânico. Ele olhara ao redor para chamar alguém, conseguir ajuda para manter sua filha ali, com eles. – Papai? Ele se virara de volta para ela. – Estou aqui, querida. Apesar de seu esforço para conter as lágrimas, elas tinham vindo ardentes e copiosas, escorrendo por seu rosto enrugado, um rosto que tinha envelhecido mais no espaço de um dia que nos últimos 10 anos. – Eu amo você. – Eu também amo você, querida. Ele pusera a mão no peito, tentando impedir que seu coração arrebentasse. – Tippi, você precisa me contar o que aconteceu. Precisa contar quem fez isso com você. Os olhos dela começaram a perder o foco de novo e então se fecharam. Em desespero, ele vasculhou sua mente em busca de algo que prendesse a atenção dela. – É uma verdade universalmente reconhecida que um homem solteiro, dono de uma boa fortuna, deve andar em busca de uma esposa – disse ele. Era a primeira linha de Orgulho e preconceito. Eles tinham lido aquele livro um para o outro ao longo dos anos. Tippi abriu os olhos e sorriu, e uma lufada de ar saiu do peito de Quarry, porque ele estava convencido de que Deus acabara de lhe devolver sua menina, apesar do que diziam os médicos.
– Me diga quem fez isso com você, Tippi. Diga para mim, querida – pedira no tom mais firme que pudera. Sem emitir um som, ela havia articulado quatro palavras, mas fora o suficiente. Ele as compreendera. – Obrigado, querida. Eu amo você demais – dissera. Então olhara para o teto e agradecera: – Obrigado, meu Jesus misericordioso. A porta do quarto se abrira. Quarry se virara. Era Cameron com dois cafés. Ele praticamente dera um salto que cobrira todo o espaço do quarto, segurando a esposa com tamanha violência que ela havia derramado os cafés. Ele a arrastara para o lado da cama. – Nossa menina está acordada, Cam. Ela voltou. Os olhos de Cameron Quarry tinham se arregalado tanto e seu sorriso ficara tão largo que quase não couberam em seu rosto. Quando ela fitara a cama, contudo, os olhos voltaram a ficar pequenos e o sorriso desapareceu. Quarry olhara para baixo também. Os olhos de Tippi estavam fechados. O sorriso tinha ido embora. Ela nunca mais voltaria a despertar, ele nunca mais ouviria sua voz. Tinha sido por causa daquele sorriso, o último que ganharia da filha, que Quarry tinha lido a obra de Jane Austen para ela ao longo de todos aqueles anos. Sentia estar prestando um tributo à autora pelo que ela lhe proporcionara: alguns preciosos e derradeiros minutos com a filha. As quatro palavras que Tippi lhe dissera naquele dia tinham ficado marcadas como uma queimadura em sua mente, mas ele não agira com base nelas na época, porque não indicavam claramente uma pessoa. E o mais enlouquecedor era que, apesar de Sam ter chamado o médico e contado sobre o despertar de Tippi, ele não acreditara. “Se ela de fato acordou, foi apenas uma anomalia”, dissera o clínico. Quarry tivera que se conter para não arrebentar os dentes dele também. Não, ele não agira com base naquelas palavras, e não sabia ao certo o porquê, mas, depois da morte de Cameron, já não tinha o que o detivesse e fora então que começara sua longa jornada em busca da verdade. Até chegar ao ponto em que se encontrava, com a justiça mais próxima dele e de Tippi do que jamais estivera.
Enquanto seguia voando, pensou que havia apenas uma coisa mais terrível que morrer sozinho: morrer incompleto. Ele não morreria incompleto.
– DESCULPE. Michelle estava vestida, sentada na beira da cama do quarto de hóspedes. Sean ainda estava acordando, a toalha ao redor da cintura, o travesseiro molhado pelo cabelo úmido. Ele massageou um músculo retesado no ombro e se virou para olhar para ela. – Não há motivo para se desculpar. Você passou por um verdadeiro inferno. Qualquer pessoa teria se descontrolado. – Você, não. Ele se sentou na cama e colocou o travesseiro atrás das costas: – Você poderia se surpreender comigo. Ele olhou para a janela. Estava escurecendo. Encarou Michelle, espantado: – Que horas são? – Quase sete da noite. – Eu dormi esse tempo todo? Por que não me acordou? – Também não faz muito tempo que acordei – argumentou. Então baixou o olhar: – Sean, eu disse alguma coisa? Quero dizer, enquanto estive fora de mim? Ele esfregou de leve o braço dela. – Michelle, ninguém consegue ser perfeito o tempo todo. Você fica se reprimindo, até que chega uma hora em que explode e se perde. Tem que parar de fazer isso. Ela se levantou e olhou pela janela. – Por falar nisso, nós perdemos o dia inteiro – disse, virando-se de volta para ele. – E se tiver chegado alguma notícia de Willa?
Obviamente, ela não queria falar sobre o que acontecera. Percebendo isso, Sean estendeu a mão para a mesinha de cabeceira, pegou o celular e examinou os recados e os e-mails. – Nada. Ainda temos que esperar até que uma das pistas que estivemos seguindo dê em alguma coisa. A menos que você tenha outra ideia. Ela tornou a sentar e balançou a cabeça. – Também não ajuda em nada o fato de Tuck e Jane Cox basicamente virem mentindo para nós desde o primeiro dia. – Não, isso não ajuda. Mas agora estamos aqui e talvez possamos conseguir fazer alguma coisa quanto ao caso de sua mãe. Como, por exemplo, encontrar Doug Reagan. – Tudo bem. O telefone da casa tocou. Era o irmão de Michelle, Bobby. – O que você está fazendo aí? – perguntou ele. – Chegamos esta madrugada. Apenas vim... vim ver como está o papai. – E como ele está? – Ele não está aqui. Michelle subitamente se imobilizou. Será que o pai estava na casa? Será que pensaria que ela e Sean tinham ido para a cama, na casa dele, logo depois da morte de sua mãe? – Espere um minuto, Bobby. Ela largou o telefone e correu para fora do quarto. Voltou um minuto depois e pegou o fone. – É, ele não está aqui. O carro não está na garagem. Por quê? – Eu estou no clube. – Você é sócio? – Não exatamente. Tiras não ganham o suficiente para isso. Mas jogo umas partidas aqui de vez em quando. – Está meio escuro para jogar. – É que há uma senhora aqui com quem estive conversando. – Que senhora?
– Uma senhora que estava passeando com o cachorro na noite em que mamãe foi morta. Ela não mora na vizinhança, por isso a polícia não a interrogou. – Ela viu alguma coisa? Se viu, por que não procurou a polícia? – Acho que ficou com medo. – E o que a fez mudar de ideia? – Uma amiga dela. Uma tal de Nancy Drummond a convenceu a se apresentar. Então ela ligou para mim. – Eu falei com Nancy. – Foi o que ela disse. Foi por isso que liguei. – O quê? Quer dizer que você estava atrás de mim? – Estava. – Bobby, por que não ligou para o meu celular? – Eu liguei umas seis vezes nas últimas quatro horas. Deixei quatro recados. Michelle olhou para a mesinha de cabeceira. Pegou o aparelho e viu a lista de chamadas recebidas. – Eu devo ter posto em modo silencioso sem querer. Desculpe. – Pensei que papai pudesse saber do seu paradeiro, mas assim matei dois coelhos com uma cajadada só. – Como assim? – O que quero dizer é que essa senhora só aceita falar comigo se você estiver presente. Parece que você causou uma forte impressão na amiga dela. Nancy lhe disse que pode confiar em você. – Mas você é da polícia, Bobby, ela deveria falar com você. – Ela é teimosa. E avó de 12 netos. Não creio que eu vá conseguir fazê-la mudar de ideia. Mas vou seguir o caminho mais simples. Ela conta para você na minha presença. E então nós pegamos o canalha que fez isso com mamãe. – Ela está no clube agora? – Está. O estômago vazio de Michelle roncou. – Eles servem jantar aí?
– É por minha conta. – Chegaremos em 20 minutos.
COM A AJUDA DE Daryl, Quarry passou os cabos em pontos estratégicos pelos túneis da mina, terminando na entrada. Enquanto trabalhavam, Daryl observou: – Está parecendo muito feliz. – Tippi está em casa, como poderia não estar feliz? – Ela não está realmente em casa, pai, ela... Daryl não conseguiu concluir a frase. Antes disso, o braço de seu pai o golpeou, pressionando sua traqueia. O rapaz sentiu o hálito quente e desagradável do pai: – Por que você não pensa direito no que vai dizer, moleque? E então mantém essa merda de boca fechada! Quarry empurrou o filho para longe. Daryl bateu na pedra dura e quicou. Mas, em vez de humildemente desistir, ele partiu para cima do pai e o empurrou contra a parede. Quarry encaixou um dos braços sob o pescoço largo do filho e, usando a parede como apoio, fez uma alavanca. Continuaram a luta pelo chão desnivelado da mina. Ambos arquejavam pelo esforço, o suor manchando suas camisas apesar do frio. Daryl tropeçou e cambaleou para trás, mas recuperou o equilíbrio. Avançou para um novo ataque, cerrando os braços ao redor do abdômen do pai, levantando-o do chão e batendo com ele contra a rocha. Todo o ar escapou dos pulmões de Quarry e, com o impacto, seus dentes da frente morderam o lábio inferior. Mas quando Daryl o deixou cair, ele encontrou forças para golpear a barriga do filho com o joelho, dando depois um poderoso cruzado no rosto em que botou toda a força de seu corpo. Daryl caiu sentado, a face cortada e a boca sangrando.
Quarry quase tombou para a frente com a força de seu golpe. Girou e se agachou na terra, tossindo e cuspindo sangue. – Você nunca seria capaz de me derrubar, mesmo que eu estivesse numa cadeira de rodas tomando mingau de canudo – berrou. Daryl olhou para a banana de dinamite conectada a um longo cabo estendido no chão da mina. – Vai me mandar pelos ares também, velho? – Vou mandar todos nós pelos ares se for preciso, merda! – Não vou passar minha vida inteira fazendo o que você manda! – Você não tem vida se não for comigo. O Exército veio procurar você e quem o salvou? Eu! E então você fez merda com a mulher. E continua fazendo. Eu deveria ter lhe metido uma bala naquela ocasião. – E por que não meteu, velho? Por quê? – gritou Daryl, enquanto cerrava os punhos e as lágrimas lhe escorriam pelo rosto, misturando-se com o sangue. – Eu matei Kurt. – E não tinha o direito de fazer isso! Fui eu que matei a mulher, não Kurt! – Devia ter matado você – disse Quarry, cuspindo sangue e pele do lábio ferido. – Então por que não matou, papai? Por que não me matou? Quarry agora não estava mais olhando para ele. Apoiou uma das mãos na parede para se firmar, a respiração ofegante e curta. – Porque eu preciso de você, foi por isso – disse ele numa voz mais calma. Inclinou-se e ofereceu a mão para levantar Daryl. Ele não aceitou. – Eu preciso de você, Daryl. Preciso de você, meu garoto. Quarry permaneceu inclinado para a frente, os pés cambaleando pelo solo da mina. Olhou para o filho e o imaginou ainda garoto, com os grandes olhos azuis cheios de adoração e um sorriso torto. Diga o que precisa ser feito, papai.
Quando seus olhos clarearam, tudo o que viu foi um homem grande, corpulento, furioso, lutando para se levantar. – Eu preciso de você, garoto – disse Quarry de novo, oferecendo a mão mais uma vez. – Por favor. Daryl passou por ele. – Vamos apenas terminar isso de uma vez – disse ele, limpando o sangue do rosto com uma das mãos imundas. – Quanto antes, melhor. Depois vou sumir daqui. Quarry destrancou a porta e entrou no aposento. A lanterna sobre a mesa fora regulada para um nível tão baixo que ele não podia vê-la. Mas sentiu sua presença. – Eu não queria abrir mão dela – disse Diane Wohl, surgindo das sombras. Quarry entrou no foco da luz. – Você está sangrando – disse Diane. – Não é nada – respondeu Quarry. Ele sentou à mesa e passou a mão pelo cabelo espesso e suado. Ainda ofegava um pouco por causa da briga com o filho. Malditos cigarros. Diane sentou de frente para ele. – Eu não queria desistir dela. Quarry respirou fundo e se recostou na cadeira, examinando-a por sob a massa revolta das sobrancelhas. – Entendi. – Você me deixa apavorada. Tudo em você me enche de terror. – Você também me assusta – disse ele. Diane pareceu pasma. – Como eu poderia assustá-lo? – Há muitas maneiras de sentir medo: fisicamente, só na imaginação, as duas juntas. – E de que maneira eu assusto você? Quarry juntou as mãos e se inclinou para a frente, a cabeça balançando sobre a mesa enquanto o sangue de seu lábio rachado pingava na madeira.
– Você me faz sentir medo de que este mundo nunca mais volte a ser bom. Para nenhum de nós. Ela se recostou, ofendida pelas palavras dele. – Eu sou uma pessoa boa! Nunca fiz mal a ninguém! – Você fez mal àquela garotinha, mesmo que ela não saiba disso. – Eu a dei para adoção, para que ela pudesse ter uma vida melhor. – Conversa fiada. Você a deu para não ter que lidar com as consequências. A mão dela voou sobre a mesa e o estapeou. Diane recuou, uma expressão de terror no rosto, olhando para a própria mão como se não lhe pertencesse. – Pelo menos você tem alguma coragem – disse Quarry, impassível apesar do tapa. – Então eu arruinei o mundo inteiro? – Não, você deixou que os outros fizessem isso. Pessoas como você deixam que cretinos pisem em cima delas. Mesmo quando eles estão errados. Mesmo quando você sabe que eles estão errados. Isso faz com que você seja tão má, tão perversa quanto eles. Pessoas como você não se levantam para lutar pelo que é certo, vocês apenas se arrastam na lama e se escondem. Vocês engolem tudo, a merda que lhes dão. Aceitam com um sorriso, dizem obrigado e “será que pode me dar mais um pouco de merda, por favor?”. Uma lágrima rolou do olho direito de Diane e caiu sobre a mesa, onde se misturou com o sangue de Quarry. – Você não me conhece. – Conheço. Conheço você e gente igual a você. Ela esfregou os olhos. – Então o que vai fazer? Vai me matar? – Não sei. Ainda não sei o que vou fazer com você. Ele se levantou lentamente, as costas quase matando-o de dor no local em que tinham batido na rocha. – Quer ver Willa de novo? – ofereceu. – Pode ser a última vez. As coisas estão chegando ao fim.
Os olhos de Diane se encheram de lágrimas. – Não, não posso – disse, balançando a cabeça de um lado para o outro, os dedos cerrados e tremendo. – Está se arrastando na lama de novo, mulher? Tentando se esconder? Você diz que tem medo de mim? Acabou de me dar um tapa. Mostre que tem sangue nessas veias. Você pode enfrentar o mundo, se quiser. Sabe essas pessoas que pensam que são fortes, que parecem que têm tudo, que são ricas e poderosas? Elas não têm nada. Se você as enfrenta, elas saem correndo, porque na verdade não são fortes nem duronas. Elas apenas têm coisas, apenas são cheias de orgulho com base em nada. Ele bateu o punho sobre a mesa com tanta força que derrubou a lanterna e a luz se apagou. Da escuridão repentina, ele disse: – Eu lhe perguntei se você queria ver sua filha. Qual é a resposta? – Quero.
O CLUBE ERA TRANQUILO E, embora a noite não estivesse fria, o fogo ardia na grande lareira de pedras no salão principal do restaurante. Sean e Michelle sentaram-se de um lado da mesa, enquanto Bobby e June Battle – um fiapo de mulher na casa dos 80 anos, com cabelos brancos como neve e bem curtos – ficaram diante deles. Tinham acabado de pedir a comida. Michelle disparou o primeiro tiro: – Fico feliz que a senhora tenha conversado com Nancy Drummond, porque realmente precisamos de sua ajuda. Em vez de responder, June metodicamente engoliu uma porção de comprimidos que tinha posto sobre a mesa, usando um grande copo de água para ajudar. Percebendo a crescente impaciência de Michelle, Sean discretamente enfiou a mão por baixo da mesa, apertou de leve a perna dela e balançou a cabeça de forma sutil. June acabou de tomar o último comprimido e olhou para eles. – Detesto remédios, mas são eles que me mantêm viva, portanto eu os tomo. – Então a senhora estava passeando com seu cachorro pela rua onde os Maxwell moram na noite em que Sally Maxwell foi morta? – perguntou Sean, em tom encorajador. – Eu não sabia que ela havia sido morta – disse June em tom casual. – Apenas saí para passear com Cedric, o meu cachorro. É um pequinês, um cãozinho bem pequeno. Eu tinha um grande, mas agora não aguento cachorros grandes. Mas ele é bonzinho. Cedric era o nome de meu irmão mais velho. Já morreu. Eu gostava mais dele que de meus outros irmãos, por isso dei o nome dele ao meu cachorro.
Michelle pigarreou bem alto, e Sean pressionou a coxa dela com mais força. Bobby falou: – Eu disse à minha irmã que a senhora só falaria na presença dela. – Não gosto de polícia – relatou. Então deu uma palmadinha na mão de Bobby. – Não me entenda mal. Eu sei que precisamos da polícia e tudo mais. O que quero dizer é que, quando a polícia aparece, é porque alguma coisa ruim aconteceu. – Como o assassinato da minha mãe? – perguntou Michelle, os olhos fixos em June. A velhinha finalmente a encarou. – Sinto muito a sua perda, minha filha. Já perdi dois filhos e um neto, mas foi doença, não crime. – A senhora viu alguma coisa naquela noite? – perguntou Sean. – Um homem. Sean e Michelle se inclinaram para a frente ao mesmo tempo, como se ligados por uma corda. – Pode descrevê-lo? – perguntou Michelle. – Estava escuro e meus olhos não são mais tão bons quanto antes, mas posso lhe dizer que ele era alto e não era gordo nem nada. Não estava de casaco, só de calça e suéter. – Velho? Jovem? – Mais velho. Acho que era grisalho, mas não tenho certeza. Lembro que a noite estava quente e que fiquei surpresa por ele estar de suéter. – Pois é, estavam até dando uma festa na piscina na casa ao lado. – Disso eu não sei, mas havia muitos carros estacionados na rua. – E que horas eram? – Sempre começo minha caminhada às 20h. Chego naquele lugar por volta das 20h20, a menos que Cedric faça o número dois e eu tenha que apanhar. Mas ele não fez o número dois naquela hora. – Então às 20h20 – disse Sean.
Ele, Michelle e Bobby se entreolharam. – O legista calculou a hora da morte entre 20h e 21h – recordou Bobby. – O que põe o sujeito no ponto – comentou Michelle. – Que ponto? – perguntou June, olhando curiosa para ela. – Na janela de oportunidade – explicou Sean. – Bem, o homem estava lá. O que ele estava fazendo? – Andando. Andando para longe de mim. Não tenho nem certeza de que tenha me visto. A rua estava bastante escura. Eu levo uma lanterna comigo, mas não estava ligada porque era uma noite clara e Cedric e eu andamos bem devagar. Nós dois temos artrite. – Então ele estava se afastando da senhora. Viu mais alguma coisa? De onde ele veio? – perguntou Michelle. – Bem, me pareceu que ele vinha do espaço entre as duas casas, a que estava com todos os carros parados em frente e a casa vizinha, do lado direito. – A casa de meus pais – disse Michelle. – Acho que sim, só que eu não os conhecia. – O que mais? – perguntou Sean. – Bem, houve uma coisa estranha – começou June. – Estranha? – perguntou Bobby. – Sim. Eu estava do outro lado da rua, do lado oposto ao dele, mas mesmo assim vi. – Viu o quê? – perguntou Michelle, a voz ligeiramente trêmula. – Ah, certo, eu ainda não contei. Foram pequenos clarões. – Clarões? – perguntaram Sean e Michelle juntos. – Sim. O homem foi andando pela rua, mas parava a cada carro estacionado. Aí ele levantava a mão e aparecia um pequeno clarão. – Ele estava ao lado dos carros quando fez isso, na frente ou atrás? – perguntou Michelle. – Atrás. E se inclinava um bocadinho para a frente a cada vez. Como eu disse, ele era alto. Michelle olhou para Sean.
– Ele estava fotografando as placas dos carros. – O clarão era o flash da câmera – acrescentou Sean, enquanto Bobby assentia. – E ele fez isso a cada carro? – perguntou Michelle. June concordou, mexendo a cabeça. – Foi o que pareceu. – Por que nosso criminoso estaria tirando fotografias? – perguntou Bobby. O rosto de June se iluminou. – Criminoso? Parece um daqueles episódios de Law & Order. Eu assisto religiosamente. Adorava Jerry Orbach, que Deus o tenha. E Sam Waterson, aquele que fez o papel de Lincoln. – A senhora viu mais alguma coisa? – perguntou Michelle. – Por exemplo, para onde ele foi? – Ah, sim. Ele acabou o que estava fazendo com os carros e então voltou andando na minha direção, só que do outro lado da rua. Ele conferiu em volta, provavelmente para se certificar de que ninguém estava olhando. Duvido que tenha me visto com Cedric. Tem uns arbustos grandes naquele trecho e estávamos um pouco atrás deles, porque Cedric estava fazendo pipi e fica encabulado quando alguém o vê fazendo suas necessidades. Então o homem virou no acesso para carros e entrou na casa. Michelle pareceu perplexa. – Casa? Que casa? – A casa vizinha à que estava com todos aqueles carros. Ele entrou pela porta da frente. Michelle, Bobby e Sean se entreolharam. O homem alto que estivera tirando fotografias tinha que ser Frank Maxwell.
DEPOIS QUE ACABARAM DE jantar, eles precisavam levar June Battle até a delegacia para prestar um depoimento formal. – Vocês dois vão com ela – disse Michelle. – O quê? – perguntou Sean, olhando para ela, surpreso. – Preciso de um tempo sozinha, Sean. Encontro você na casa de meu pai. – Michelle, não gosto da ideia de nos separarmos. – Posso acompanhar a Sra. Battle – disse Bobby. – Sem problema. – Sean, vá com eles. Vejo você mais tarde na casa do meu pai. – Tem certeza? Ela assentiu. – Absoluta. Enquanto os três saíam, Sean lançou um olhar para ela, mas Michelle não estava olhando para ele. Ela ficou sentada à mesa mais 10 minutos, antes de se levantar lentamente, abrir o casaco e examinar a Sig no coldre da cintura. Ele tinha que saber que a esposa estava morta, caída na garagem. E estava lá, do lado de fora, tirando fotos de placas de carros? Que canalha desalmado. O que estivera fazendo? Procurando alguém para incriminar pelo assassinato que acabara de cometer? Ele poderia facilmente ter golpeado a mãe dela pela esquerda, em vez de pela direita, para enganar a polícia. Era um homem forte: de qualquer maneira, teria matado Sally Maxwell. E ele estava lá fora, em algum lugar. O pai dela estava à solta e tinha uma arma.
Michelle se levantou e foi andando com determinação em direção à saída. No caminho, passou pela vitrine de troféus de golfe do clube. Ela mal olhou para a vitrine, mas um olhar rápido bastou. Seu rosto se virou rapidamente e ela chegou mais perto para ver. Era cheia de reluzentes troféus de metal, placas e outras parafernálias de premiação. Duas peças chamaram sua atenção – e ela nem jogava golfe. Ela se inclinou para ver melhor. A primeira peça era uma foto de três mulheres, com a do meio segurando um enorme troféu. Donna Rothwell ostentava um largo sorriso. Michelle leu a inscrição na parte inferior da placa: “Donna Rothwell, campeã amadora do clube.” Era daquele ano. Ao lado da foto estava um cartão laminado mostrando a pontuação que ela obtivera no torneio. Michelle não entendia muito de golfe, mas até ela sabia que aqueles resultados eram impressionantes. A segunda foto mostrava Donna prestes a dar uma tacada. A mulher parecia realmente saber o que estava fazendo. Enquanto Michelle estava ali, um homem de barba vestindo calça cáqui e camisa de golfe passou por ela: – Está admirando nossas lendas do golfe? – perguntou, com um sorriso. Michelle apontou para as fotos. – Especialmente estas. O homem olhou para onde ela indicava. – Ah, Donna Rothwell, é claro. Uma das melhores jogadoras que já vi. – Ela é tão boa assim? – Boa? Ela é a melhor jogadora de golfe acima de 50 anos de todo o condado, talvez do estado. Ela consegue derrotar até algumas jogadoras bastante boas de 30 e 40 anos. Foi atleta na universidade: tênis, golfe, atletismo, ela praticava de tudo. Ainda está em ótima forma. – Ela é dessas que acertam todas as tacadas? – Praticamente. Por quê? – Bem, se houvesse um torneio aqui, ela não teria dificuldade para se qualificar, não é?
O homem riu. – Dificuldade para se qualificar? Caramba, Donna venceu praticamente todos os torneios em que se inscreveu desde que consigo me lembrar. – O senhor conhecia Sally Maxwell? O homem concordou de cabeça. – Era uma bela mulher. Uma pena o que aconteceu. Você se parece um pouco com ela. – Era boa jogadora de golfe? – Ah, claro. Tinha um bom jogo. Era melhor nas tacadas de curta distância do que nas longas. – Mas não estava no mesmo nível que Donna Rothwell? – Nem de longe – disse, sorrindo. – Mas por que todas essas perguntas? Está interessada em enfrentar Donna e ganhar a competição? Você é muito mais moça, mas vai ter uma adversária difícil, eu garanto. – É possível que eu a enfrente, mas não num campo de golfe. Michelle deu as costas para o homem, que ficou olhando-a intrigado. Ela saiu para o estacionamento e foi andando em direção ao carro. Virou a cabeça de súbito: pensara ter ouvido algo. Com o polegar, abriu o suporte de couro do coldre. Segurou firme o punho da arma, preparada para apertar o gatilho. Mas chegou em segurança ao veículo e embarcou. Meia hora depois, estava passando em frente à casa. Seguiu adiante, estacionou numa rua lateral e saltou. A mansão de Donna Rothwell ficava recuada, afastada da rua. Havia um portão na frente e um caminho cheio de curvas que levava a uma área de estacionamento. Andando pela rua, Michelle encontrou um espaço na cerca viva. A casa estava às escuras, ou pelo menos a parte da frente estava, porque a construção era grande o suficiente para que quaisquer luzes acesas nos fundos não fossem visíveis dali. Michelle consultou o relógio. Eram quase 22h. Por que Donna havia mentido sobre algo aparentemente sem importância? A mulher dissera a Sean e a ela que Sally Maxwell tinha jogado com Doug Reagan em um torneio local porque ela mesma não era boa jogadora. Mas aparentemente ela era muito melhor golfista que a mãe de Michelle. Tinha sido uma mentira idiota. Michelle só podia presumir que Donna estivesse contando com o fato de que ela nunca descobrisse a verdade, por morar fora. Mas por que mentir, para começo de conversa? E daí que a mãe dela houvesse jogado com Doug? Michelle se deteve. O som de passos, de respiração, o roçar de pele contra metal. Metal de uma arma. Aquilo era estupidez. Ela não podia invadir a casa de Donna Rothwell e dar à mulher um motivo para mandar prendê-la. E não ia ficar ali fora esperando que alguém a descobrisse. Ela voltou para o carro, ligou para Sean e relatou o que havia descoberto sobre Donna Rothwell. – Bobby e eu encontraremos você na casa de seu pai – disse ele. – Espere por nós lá. Ela estacionou em frente à casa e olhou pela janela da garagem. O pai não estava. Pegou sua chave e abriu a porta. No instante em que a fechou, se deu conta da presença de alguém. Puxou a arma, mas havia demorado um segundo a mais. O golpe a acertou no braço. A SIG caiu ruidosamente, disparando ao bater no chão, e o tiro ricocheteou no piso de pedra. Michelle apertou o braço machucado e rolou, enquanto um objeto pesado caía bem perto dela. Sentiu alguma coisa bater com violência ao lado de sua cabeça. Levantou-se de um salto e deu um chute, mas não acertou nada. Alguém gritou e outro golpe acertou Michelle dolorosamente na perna. Ela xingou, correu em direção à sala de visitas e se atirou para trás por cima do sofá. Pelo menos conhecia a casa. Quando a pessoa a atacou de novo, ela estava pronta. Esquivou-se do golpe, se levantou e mandou um chute violento contra o abdômen do agressor, seguido por um murro na cabeça. Ela ouviu um grunhido alto, como se todo o ar tivesse saído dos pulmões da pessoa. Alguém foi ao chão. Michelle saltou adiante para aproveitar essa vantagem, mas naquele exato momento a pessoa lançou para cima dela o que quer que estivera segurando e a acertou no queixo. Era algo de metal e Michelle sentiu o gosto de sangue na boca. Moveu-se para a esquerda e tropeçou na mesinha de canto, caindo pesadamente. O braço e a perna agora doíam loucamente e seu queixo latejava. Ela se sentou.
Michelle notou a presença bem acima dela, sentiu o cheiro e o calor.
Merda, é a minha arma. Pegaram a minha arma. Ela mergulhou atrás da mesinha e se preparou para o tiro. O disparo soou, mas ela não sentiu nada. Houve um grito, estridente e aterrorizado. Alguma coisa caiu ruidosamente no chão e alguém tombou ao seu lado. As luzes foram acesas. Ela voltou a se sentar, piscando rapidamente. Quando o viu, deixou escapar um grito. Doug Reagan estava caído junto à porta com um ferimento à bala no peito. Ao lado dele estava Donna Rothwell, de joelhos, segurando a mão ensanguentada e chorando de dor. A pistola de Michelle estava ao lado da mulher. Michelle a apanhou rapidamente. Então se imobilizou de novo. Ele estava parado junto à porta da frente, ao lado de Doug, arma em punho e um fio de fumaça subindo do cano. Frank Maxwell avançou e estendeu a mão para ajudar a filha. – Você está bem, querida? – perguntou, aflito.
– EU TIREI AS FOTOS das placas dos carros porque sabia da festa na casa ao lado. Consegui uma lista dos convidados e a comparei com a dos donos dos carros que estavam na rua naquela noite. Frank Maxwell apoiou seu copo de café numa mesinha e se recostou na cadeira. Era a manhã do dia seguinte e eles estavam na delegacia. Donna Rothwell tinha sido presa pelo assassinato de Sally Maxwell e por tentativa de assassinato contra Michelle. Fora levada ao hospital para tratar do ferimento na mão onde Frank lhe acertara um tiro. Doug Reagan estava estável no hospital, com um buraco de bala no peito onde a arma de Michelle o acertara ao cair e disparar acidentalmente. Esperava-se que se recuperasse totalmente, para ser acusado com Donna. – Onde você conseguiu os registros dos carros? – perguntou Bobby Maxwell. – Tenho um amigo que trabalha no Departamento de Trânsito. – Você encontrou mamãe morta na garagem e simplesmente saiu tirando fotos? – perguntou Michelle com incredulidade. O olhar de Frank Maxwell se voltou para a filha caçula. – Ela havia acabado de ser morta. Não tinha pulso, as pupilas não respondiam. Não havia nada que eu pudesse fazer para trazê-la de volta. O corpo ainda estava quente, então o assassino tinha de estar por perto. Eu não estava no banho, estava na sala. Ouvi um barulho na garagem e depois uma porta bateu. – O senhor não contou isso aos policiais – assinalou Bobby. – Que diabo, não contou isso para mim. – Eu tinha os meus motivos. Poderia ligar para a polícia e sentar para chorar ao lado do corpo dela, mas sei como é importante começar a investigar um homicídio imediatamente e não planejava perder nem um segundo. Fui para a porta lateral da garagem e a abri. Não vi nem ouvi ninguém. Corri para cima e para baixo na rua, mas não vi nada. Mas também não ouvi nenhum carro sendo ligado, então calculei que o assassino estivesse a pé ou ainda não tivesse ido embora. Então percebi o barulho da festa na piscina na casa ao lado. Fiquei pensando se deveria ir até lá, contar a eles o que havia acontecido e ver se havia alguém lá que não deveria estar, mas optei por uma abordagem diferente. Eu não tinha muito tempo. Corri de volta para casa e peguei minha câmera. Depois fotografei as placas dos carros, voltei para casa e telefonei para a polícia. Isso tudo levou cerca de dois minutos. Então corri para fora, para ver se via alguém, mas não vi. Aí voltei para a garagem, para ficar com Sally. Ele disse esta última parte em voz suave, de cabeça baixa. – O senhor tem certeza de que não viu ninguém? – perguntou Sean, sentado em frente a Frank. – Se tivesse visto, teria feito alguma coisa. Mas, quando meu amigo checou a placa de um carro que estava estacionado bem no final da rua, descobriu que ele era de Doug Reagan. Eu não acreditava que ele tivesse sido chamado para a festa de aniversário de uma adolescente, então confirmei isso na lista de convidados. Era o único veículo sem motivo para estar lá. Todos os outros eram de moradores ou de pessoas que estavam na festa. – Belo trabalho de detetive – comentou Sean. – Mas por que o senhor não contou à polícia? – É, pai – acrescentou Bobby. – Por quê? Michelle estava olhando fixamente para o pai, com uma mescla de raiva e compaixão. Este último sentimento acabou por vencer. – Ele queria investigar melhor, para ter certeza de que estava certo e não fazer ninguém perder tempo – disse Michelle. Frank olhou para a filha. Michelle notou um traço de gratidão na expressão de seu rosto. – Então o senhor acreditava que Doug Reagan estava envolvido? Mas e Donna Rothwell? – perguntou ela. – Jamais gostei dela – admitiu ele. – Sempre achei que havia algo desagradável nela. Pode chamar isso de instinto de policial. Depois que Sally foi morta, comecei a investigar o casal. Descobri que em Ohio, há cerca de 20 anos, duas pessoas muito parecidas com Doug e Donna, mas de nomes diferentes, foram acusadas de usar uma procuração para dar um desfalque de milhões em um alto executivo aposentado. Então o velho foi encontrado morto na banheira logo depois que os filhos começaram a ficar desconfiados. O par sumiu da cidade e nunca mais se ouviu falar deles. Não creio que tenha sido a única vez que deram um golpe. Descobri alguns casos semelhantes em que acho que estiveram envolvidos, mas ninguém nunca conseguiu provas. Pessoas assim vivem disso, não mudam nunca. – Então a história que ela contava sobre o marido ter sido um executivo aposentado com quem ela levara uma vida de luxo era mentira? – perguntou Michelle. – É fácil inventar um passado, ainda mais nos dias de hoje – acrescentou Sean. – Ela aparece aqui dizendo que é uma viúva rica que viajou o mundo. Quem vai provar o contrário? – Portanto, seu namorado firme “recente”, Doug Reagan, na verdade já trabalhava com ela havia décadas, dando golpes em pessoas mais velhas e ricas – concluiu Bobby. – Creio que sim – respondeu-lhe o pai. – Mas eu não tinha nenhuma prova. – Mas por que escolher mamãe como alvo? – perguntou Michelle. – Vocês dois não nadam em dinheiro. Frank Maxwell pareceu incomodado. Mais uma vez ficou olhando para baixo fixamente, as mãos apertando o copo descartável. – Não creio que eles tivessem nos escolhido como alvos. Acho... acho que sua mãe gostava da companhia de Doug Reagan – disse. Fez uma pausa antes de prosseguir: – E que ele também gostava da companhia dela. Frank Maxwell ficou em silêncio e aparentemente ninguém quis interromper. Após alguns instantes ele voltou a falar: – Ele tinha estado em todos os lugares, feito de tudo, conhecia todo mundo, ou pelo menos era o que dizia. Eram coisas que não pertenciam à realidade de Sally. Ele era um homem bonito e rico que frequentava altos círculos. Era elegante. Tinha lábia e charme. Eu era apenas um policial, não podia competir com isso. Que diabo, até eu compreendia que ela se sentisse atraída e curiosa. Ele deu de ombros. Mas Michelle sabia que o pai na verdade não compreendia a paixonite da esposa.
– E Donna descobriu? – perguntou Sean. – Donna Rothwell não é o tipo de pessoa que você queira contrariar – constatou Frank. – Eu não a conhecia muito bem, mas conheço pessoas do tipo dela. Costumo reparar no que os outros não reparam. Deve ser coisa de policial também. Já havia observado como ela ficava às vezes, quando não era o centro das atenções ou quando seu namorado estava dando mais atenção a outra mulher do que a ela. Ela era obsessiva, controladora. E não admitiria não estar no controle. Isso a tornava perigosa. Mesmo no campo de golfe, ela era competitiva a um ponto que chegava a ser irracional. Ficava realmente furiosa se estivesse perdendo. – Deve ter sido por isso que inventou aquela mentira sobre deixar o namorado jogar o torneio de golfe com mamãe – disse Michelle. – Ela não queria admitir que ele tivesse feito isso sem a permissão dela. – Por isso foi tão taxativa ao afirmar que sua mãe não estava tendo caso com homem nenhum – complementou Sean. – E planejou matar mamãe porque ela estava tendo um caso com Doug – acrescentou Michelle. – Ela a convidou para jantar, obviamente sabendo da festa na piscina e do barulho que haveria. Entrou de mansinho na garagem e esperou até que mamãe saísse... – concluiu Michelle, antes de se calar por um momento. Então virou-se para Bobby, que tinha os olhos cheios de lágrimas: – O que ela usou para matar mamãe? – Um taco de golfe – suspirou ele. – Um putter. Isso explica o formato estranho do ferimento. A polícia o encontrou na mala do carro dela. Ainda tinha vestígios de sangue. Foi também o que ela usou ontem à noite contra você, mas o seu foi um ferro. Michelle esfregou o braço e a perna, onde os hematomas estavam grandes e roxos. – A mulher tem uma tacada poderosa – disse secamente. – Mas por que vir atrás de mim? Foi a vez do pai dela responder. – Doug Reagan estava no clube na noite passada. Eu sei porque também estava lá. Eu o estava seguindo. Ele viu você junto da vitrine de troféus. Ouviu sua conversa com aquele homem a respeito de Donna. Deve ter somado dois mais dois. Você reparou na foto?
– Se reparei que Donna era canhota? Reparei. – Então ele saiu de fininho, deu um telefonema, com certeza para a namorada, e se mandou. – Para a sua casa? – Disso eu não sabia, porque parei de segui-lo e comecei a seguir você – disse Frank. – Mas acabei aqui, porque era onde eles planejavam a emboscada. – Por quê? – Por quê? Porque você estava prestes a descobrir a verdade. – Não, eu quis dizer por que começou a me seguir? – Porque fiquei preocupado com você. Porque de jeito nenhum eu permitiria que aquela canalha a ferisse. Acho que falhei. Ela estendeu a mão e tocou no braço dele. – Pai, você salvou a minha vida. Se não fosse por você, eu estaria no necrotério. Essas palavras tiveram um efeito fora do comum sobre Frank Maxwell. Ele apoiou o rosto nas mãos e começou a chorar. Seus filhos se levantaram e foram se ajoelhar ao redor dele, abraçando-o. Sean se levantou, mas não se juntou aos três. Apenas saiu da sala e fechou a porta silenciosamente.
SAM QUARRY ESTAVA SENTADO na biblioteca em Atlee, contando o que lhe restava de dinheiro. Dois anos antes, fizera algo que nunca se imaginara fazendo: para ajudar a financiar seus planos, vendera algumas das relíquias de família a um negociante de antiguidades. Não obtivera um valor sequer próximo do que valiam, mas não estava em posição de negociar demais. Ele guardou o dinheiro, puxou sua máquina de escrever, enfiou as luvas, colocou o papel e começou a última carta que datilografaria nela. Como nas outras vezes, tinha planejado cada palavra. Aquela seria a última carta porque, depois dela, a comunicação seria mais direta. Acabou de escrevê-la e chamou Carlos. O homenzinho magro e musculoso estava na casa enquanto Daryl montava guarda na mina. Quarry tinha uma tarefa para Carlos. E depois de sua briga com Daryl, havia decidido manter o filho por perto. Conforme as instruções de Quarry, Carlos também usava luvas. Ele deveria pegar uma das picapes e seguir para o norte, saindo do estado, para postar aquela carta. O homem não fez perguntas: já sabia qual era sua tarefa. Quarry lhe deu o dinheiro para a viagem junto com o envelope lacrado e selado. Depois que Carlos saiu, Sam trancou a porta da biblioteca e acendeu a lareira. Pegou o atiçador e mergulhou nas chamas até que ficasse incandescente, depois enrolou a manga da camisa e acrescentou uma terceira marca ao braço. Foi um risco perpendicular à longa queimadura, mas do lado esquerdo dela. Enquanto a pele queimava e inchava ao toque do metal em brasa, Quarry se recostou na velha cadeira. Não mordeu o lábio para sufocar a dor, porque ainda estava machucado por causa da briga com Daryl. Abriu uma garrafa nova de uísque e, enquanto observava o subir e descer das chamas na lareira, fez uma careta quando o álcool queimou seus cortes.
Só lhe faltava mais uma linha na pele. Só mais uma. Saiu da biblioteca e subiu cambaleando a escada até o quarto de Tippi. Abriu a porta e olhou para o aposento às escuras. Ela estava na cama. Diabos, onde mais ela estaria?, perguntou a si mesmo. Ruth Ann rapidamente aprendera a atender às necessidades de Tippi e se adaptara à nova rotina, ajudando Quarry a cuidar dela. Sam pensou em entrar e ler para ela, mas estava cansado e sua boca doía. – Quer que eu leia para ela, seu Sam? Sam Quarry se virou lentamente e viu Gabriel parado no patamar da escada, a mãozinha no grosso corrimão que, dois séculos antes, o dono de centenas de escravos instalara ali. Quarry calculava que aquela madeira agora estivesse tão podre quanto o homem que a colocara ali, ou melhor, que usara o trabalho e o suor de seus escravos para isso. Ver aquela mãozinha negra sobre aquele pedaço de madeira podre era um conforto para Quarry. – Eu ficaria muito grato – disse ele, o lábio machucado movendo-se devagar. – Mamãe disse que o senhor caiu e machucou a boca. – Estou ficando velho demais para cuidar da fazenda. – O senhor quer que eu leia alguma parte especial? – Capítulo cinco. Gabriel o encarou com curiosidade. – Por que esse? – Não sei. O número cinco me veio à cabeça. – Seu Sam, o senhor acha que a dona Tippi gostaria que a gente lesse outros livros para ela? Quarry deu as costas ao menino para olhar para a filha na cama. – Não, meu filho, acho que o livro está bom. – Então é o que vou ler. Gabriel passou por ele e acendeu a lâmpada do teto. O clarão forte e repentino foi doloroso para Quarry, que virou a cabeça. Eu definitivamente me tornei uma criatura noturna, refletiu.
Ele não reparou em Gabriel, que o olhava fixamente, até que o menino disse: – Seu Sam, o senhor está bem? Precisa conversar sobre alguma coisa? Quarry se concentrou nele, enquanto o menino sentava ao lado de Tippi com o precioso romance de Jane Austen nas mãos. – Tenho muitas coisas que gostaria de conversar, Gabriel, mas nada que você pudesse achar interessante. – Talvez o senhor se surpreendesse comigo. – É, talvez – concordou Quarry. – Foi muito legal o que o senhor fez, deixar este lugar para mamãe. – E para você, Gabriel. E para você. – Obrigado. – Agora ande e leia. Capítulo cinco. Gabriel deu início à sua tarefa. Quarry ficou ouvindo por algum tempo e depois desceu, as botas fazendo barulho no piso de tábuas corridas. Sentou na varanda da frente por algum tempo e admirou a noite, que estava de um raro frescor ali no Sul. Um minuto depois, estava dirigindo sua velha picape. Quicou e sacolejou nas estradas de terra batida, sulcadas e irregulares. Finalmente chegou a seu destino, parou o carro e saltou. Suas passadas largas cobriram rapidamente a distância, mas ele se deteve a cerca de 10 metros da casinha que construíra, agachando-se sobre os calcanhares. Vinte metros quadrados de perfeição no meio de lugar nenhum. Suas pernas se cansaram e ele afinal se sentou na terra, mantendo o olhar na casa. Tirou um cigarro do maço, enfiou-o entre os lábios, mas não o acendeu. Deixou-o apenas pendurado ali, como um pedaço de palha. Uma coruja piou em algum lugar nas árvores. Um avião passou pelo céu piscando suas luzes. Lá no alto, ninguém o via no Alabama. O avião provavelmente rumava para a Flórida ou talvez Atlanta. Nunca faria escala ali. Não havia nada por aqueles cantos que merecesse uma parada, ele sabia. Mesmo assim, ergueu a mão e acenou lentamente para os passageiros, apesar de duvidar que alguém estivesse olhando pela janela.
Ele se levantou e andou até o ponto onde Carlos ficaria. Olhou de volta para a casa, fez uma estimativa aproximada de trajetória, provavelmente pela trigésima ou centésima vez. Não tinha mudado. Nem um milímetro. A câmera que geraria a imagem ao vivo para Carlos estava lá. O controle remoto que acionaria tudo. O telefone via satélite para Quarry na mina. A dinamite. Willa. Sua mãe verdadeira. Daryl. Kurt já morto na mina sul. Sua pistola semiautomática calibre 45 enterrada em sua desonra. Ruth Ann. Gabriel. E, finalmente, Tippi. Pois é, aquela era a parte mais difícil: Tippi. Ele deixou a pequena colina e andou decidido na direção da casa. Dessa vez, contudo, seguiu adiante e entrou na varanda. Não destrancou a porta, apenas sentou no piso de tábuas e apoiou as costas contra um pilar, o olhar cravado na porta. Aquela era a parte mais difícil. Ele inspirou um pouco do ar frio, então o cuspiu. Era como se seus pulmões não gostassem de frescor, da pureza. Ele tossiu. Estava ficando com uma tosse igual à de Fred. Por alguns segundos, Quarry fez o inimaginável, pelo menos para ele: realmente pensou em desistir. A carta já fora enviada, mas ele não era obrigado a cumpri-la. Podia voar até a mina no dia seguinte, buscar Diane e Willa e deixá-las em algum lugar seguro, onde fossem encontradas. Poderia apenas ficar ali com Tippi. Ele voltou para a picape e dirigiu em alta velocidade até Atlee. Correu para a biblioteca, trancou a porta, ignorou a garrafa de uísque que abrira ainda há pouco e deu um gole em outra, de alto teor alcoólico. Ficou sentado à escrivaninha, os olhos fixos na lareira vazia, sentindo a pele inchada do braço. Num rompante, derrubou tudo o que havia sobre a escrivaninha: as coisas caíram com um estrondo. – Que diabo estou fazendo! – gritou. Ficou parado ali, curvado para a frente, a respiração acelerada. Seus nervos estavam no limite da tensão. Saiu rapidamente e desceu a escada, puxando do bolso o molho de chaves. Chegou ao porão, correu pelo corredor, destrancou a porta e entrou no aposento. Acendeu a luz e olhou fixamente para as paredes. Suas paredes. Sua vida. Seu mapa para a justiça. Encarou cada um dos nomes, lugares, acontecimentos. As linhas de barbante que se cruzavam representavam anos de suor, de tenacidade, de um impulso incansável em descobrir tudo. Sua respiração se regularizou aos poucos e ele foi sentindo o corpo relaxar. Acendeu um cigarro, tragou, soltou a fumaça lentamente. Seu olhar se prendeu a uma foto de Tippi na extremidade mais distante de uma das paredes, o ponto em que tudo começara. As paredes tinham vencido. Ele iria até o fim. Apagou a luz, banindo-as para a escuridão, mas elas já haviam cumprido seu objetivo. Trancou a porta e subiu a escada. Gabriel acabara de ler para Tippi e tinha ido se deitar. Quarry deu uma olhada no menino quando passou por seu quarto: abriu uma fresta na porta e ouviu a respiração suave do garoto, vendo o subir e descer da manta que o cobria. Era um bom menino. Provavelmente se tornaria um homem de bem. E teria uma vida que o levaria para muito longe dali. Isso era bom. Aquele não era o lugar dele. Na exata medida em que Sam Quarry pertencia a Atlee, Gabriel não pertencia. Todo mundo escolhia o seu caminho. Gabriel ainda teria que tomar sua decisão, mas Sam Quarry já havia escolhido sua rota. Na estrada que percorria, não havia saída. Estava seguindo reto por ela a um milhão de quilômetros por hora. Consultou o relógio enquanto subia para se deitar. Dentro de mais algumas horas, Carlos estaria despachando a carta. Tinha que esperar uns dois dias, no máximo três, até que ela chegasse a seu destino. Ele já previra isso. Então aconteceria. Ele teria sua vez de falar. E eles o ouviriam, tinha certeza disso. Esclareceria tudo. E depois a decisão caberia a eles. Quarry imaginava qual seria essa decisão, mas as pessoas eram estranhas e às vezes era impossível prever como agiriam. No momento em que chegou a seu quarto, no último andar da casa, ele se deu conta de que era uma prova viva de quanto era impossível prever as ações das pessoas. Ele não acendeu a luz. Apenas arrancou as botas e as meias, desafivelou o cinto, abriu a calça e a deixou cair no chão. Foi até o sofá e pegou o vidro de analgésico. Então olhou para a cama.
Por que não? Deitou-se nela, largou o vidro e começou a sonhar com dias melhores. Aquilo, entretanto, era tudo o que lhe restaria: apenas um sonho.
MICHELLE E SEAN FICARAM observando enquanto Frank Maxwell punha o ramo de flores no túmulo da esposa, baixava a cabeça e murmurava algumas palavras. Ele ficou parado ali, o olhar perdido na distância, fixo em algo que nenhum dos dois sabia o que era. – Você acha que ele vai ficar bem? – murmurou Sean para a parceira. – Não sei. Não sei nem se eu vou ficar bem. – Como estão sua perna e seu braço? – Bem. Não é disso que estou falando. – Eu sei – disse ele em voz baixa. Ela se virou para ele. – Você tem problemas de família desse tipo? – Todas as famílias têm problemas. Por quê? – Só curiosidade. Eles ficaram em silêncio enquanto Frank caminhava na direção deles. Quando o homem chegou, Michelle pôs a mão em seu braço: – Você está bem? Ele deu de ombros, mas depois aquiesceu. Quando andavam de volta para o carro de Michelle, ele disse: – Acho que eu não deveria ter deixado Sally para ir investigar. Deveria ter ficado com ela. – Se tivesse feito isso, talvez não houvéssemos apanhado Doug e Donna – ressaltou Sean. Em casa, Michelle fez um café e Sean preparou sanduíches para o almoço. Ambos ergueram a cabeça quando a voz no pequeno televisor sobre o balcão da cozinha começou a falar.
Um momento depois, estavam olhando para a imagem de Willa na tela. A matéria não era muito esclarecedora: o FBI estava investigando, o presidente e a primeira-dama continuavam angustiados, o país inteiro procurava a menina. Eles sabiam de tudo isso. Mas a simples imagem da garota pareceu hipnotizá-los, levando-os a uma sensação mais intensa de urgência. Sean foi para o lado de fora e fez algumas ligações. Quando voltou, Michelle olhou para ele com uma expressão interrogativa. – Falei com a primeira-dama e Chuck Waters. – Alguma novidade? – Nada. Deixei mais um recado para meu amigo general. – Como Waters está se saindo na pesquisa sobre os koasatis? – Mandaram um monte de gente investigar aquela cidade na Louisiana. Até agora, nada, mas está todo mundo de olho. Eles ficaram em silêncio. Agora que o mistério da morte de Sally Maxwell fora solucionado, a prioridade era encontrar Willa. Viva. Mas eles precisavam de sorte, de uma pista, apenas uma pista. Mais tarde, enquanto comiam à mesa da cozinha, Frank limpou a boca com o guardanapo e pigarreou: – Fiquei surpreso por você ter voltado lá – disse ele. – Voltado onde? – rebateu ela. – Você sabe. – Também fiquei chocada de ver você lá. – Nós nunca fomos felizes lá, sabe? Sua mãe e eu. – Parece que não. – Você se lembra de alguma coisa? – perguntou ele, cautelosamente. – Você era tão pequena, pouco mais que um bebê. – Pai, eu não era um bebê, tinha 6 anos. Mas, não, não me lembro de muita coisa. – Mas você se lembrou de como chegar lá. – Isso foi o GPS – mentiu ela. Sean remexeu uma batata frita em seu prato enquanto tentava olhar para qualquer coisa, menos pai e filha.
– Volto já – disse ele, levantando-se e saindo antes que qualquer dos dois pudesse dizer alguma coisa. – Ele é um bom sujeito – disse Frank. Michelle concordou. – Provavelmente melhor do que eu mereço. – Então vocês estão juntos? Frank contemplou a filha. Ela mexeu na asa da xícara de café. – Estamos mais para sócios. O pai olhou pela janela. – Eu trabalhava demais naquela época. Deixava sua mãe muito sozinha. Era difícil. Hoje entendo isso. Minha carreira era minha vida. Seus irmãos sabem equilibrar as coisas muito melhor do que eu. – Eu nunca me senti ignorada, pai. E, até onde sei, eles também não. Eles adoravam você e mamãe. – Mas e você? A expressão nos olhos dele era suplicante. Ela sentiu a garganta apertar. – Eu o quê? – perguntou, mesmo sabendo a resposta. – Você nos adorava? A mim e a sua mãe? – Eu amava muito vocês dois. Sempre amei. – Certo, entendi. Ele retomou seu almoço, mastigando metodicamente o sanduíche e bebendo o café, as veias saltadas nas mãos fortes. Não olhou mais para ela e Michelle não conseguiu se obrigar a corrigir o que já dissera. Mais tarde, enquanto ela e Sean estavam tirando a mesa, alguém bateu à porta da frente. Ela foi atender e voltou um minuto depois, carregando uma grande caixa de papelão. Sean colocou a última xícara na máquina de lavar louça, fechou a porta e se virou para a parceira. – O que é isso? É para seu pai? – Não, é para você. – Para mim?!
Ela pôs a caixa sobre a mesa e leu os dados do remetente: – General Tom Holloway. Departamento de Defesa. – Meu amigo general. Parece que ele conseguiu alguma coisa. – Mas como isto veio parar aqui? – Mandei um e-mail para ele quando estávamos vindo para o Tennessee e deixei este endereço, para o caso de ele conseguir alguma coisa e ainda estarmos por aqui. Abra, rápido. Michelle pegou uma tesoura e abriu a caixa. Dentro havia pastas de plástico, mais de 30. Ela retirou algumas. Eram cópias de relatórios de investigações oficiais do Exército. – Sei que ele é seu amigo e tudo mais, mas por que o Exército daria este material a um civil? E com tanta rapidez? Sean pegou uma das pastas e começou a folhear. – Sean? Eu fiz uma pergunta. Ele ergueu os olhos na direção dela. – Bem, além das entradas para o jogo, eu talvez tenha deixado escapar o fato de que a Casa Branca estava por trás de nossa investigação e que qualquer ajuda despertaria uma enorme gratidão por parte do presidente e da primeira-dama. Conhecendo o Exército, tenho certeza de que eles checaram o fato e descobriram que era verdade. A primeira regra dos militares é nunca fazer nada que desagrade ao comandante em chefe. – Estou impressionada. – Acho que nasci para isso. – Então temos que examinar as pastas? – Página por página. Linha por linha. E pedir a Deus que tenham a pista de que precisamos. Uma porta bateu. Michelle se levantou e olhou pela janela a tempo de ver o pai entrar no carro e dar partida. – Para onde acha que ele vai? Michelle tornou a sentar. – Como posso saber? Não sou guarda-costas do cara. – O cara salvou sua vida. – E eu agradeci, não foi?
– Antes de seguirmos adiante, por acaso estou me aproximando daquele ponto em que você geralmente me manda para o inferno? – Perigosamente. – Foi o que pensei. Ele se virou de volta para a pasta. – Eu amo meu pai. E amava minha mãe. – Tenho certeza disso. Sei que essas coisas são complicadas. – Acho que “complicação” era o assunto principal de um livro que minha família escreveu. – Seus irmãos parecem bem normais. – Eu é que devo ser a problemática. – Por que você quis voltar àquela casa? – Já disse: não sei. – Nunca vi você fazer uma viagem sem motivo. – Há sempre uma primeira vez para tudo. – É assim que você quer deixar as coisas com seu pai? Ela encarou Sean. – Exatamente como estou deixando? – No ar. – Sean, minha mãe foi assassinada depois de aparentemente ter traído meu pai. A mulher que a matou quase me matou. Meu pai salvou minha vida, mas também temos problemas, entende? Na verdade, cheguei a pensar que o assassino fosse ele. De modo que, me perdoe, mas estou meio em conflito no momento. – Desculpe, Michelle, você tem razão. Ela largou a pasta que segurava e enterrou o rosto nas mãos. – Não, talvez você esteja certo. Mas não sei como lidar com isso, sinceramente, não sei. – Talvez deva começar simplesmente conversando com ele. Só vocês dois, mais ninguém. – Parece assustador – confessou ela. – Sei que sim. E você não é obrigada a fazer isso.
– Mas provavelmente tenho que fazer, se quiser superar. Ela se levantou. – Você pode ler o conteúdo dessas pastas? – pediu. – Vou tentar encontrar meu pai. – Alguma ideia de para onde possa ter ido? – Acho que sim.
JANE COX SEGUIU NA limusine ao voltar da loja onde checava a caixa postal. Sem seu conhecimento, o FBI tinha mandado rastrear a caixa do correio que ela vinha visitando todos os dias. Não haviam conseguido nada. Nome falso, pagamento em dinheiro por seis meses de aluguel e nenhum registro que deixasse um rastro. Tinham feito o gerente da loja passar por maus momentos por não ter seguido as regras. – É assim que atentados como o de 11 de setembro começam, seu cretino ignorante – dissera Chuck Waters rispidamente para o homem de meia-idade atrás do balcão. – Você permite que uma célula terrorista tenha uma caixa postal aqui sem nenhuma informação a respeito deles e assim ajuda os inimigos deste país a nos atacarem. É por isto que quer ser lembrado, por ser cúmplice de gente como Osama bin Laden? O homem ficara tão agoniado com aquelas acusações que seus olhos se encheram de lágrimas. Mas Waters não vira isso. Já tinha ido embora. Jane chegou à Casa Branca e saltou devagar do carro. Nos últimos dias não vinha aparecendo muito em público – o que, na verdade, era bom, porque ela estava visivelmente envelhecida, magra e abatida. As imagens das câmeras HD agora não teriam sido nada lisonjeiras. Até mesmo o presidente tinha reparado. Ela seguiu direto da limusine para seus aposentos particulares, onde o encontrara examinando documentos. – Você está bem, querida? – perguntou. Ele estava no meio de uma pequena brecha em sua programação de viagens de campanha. Ainda teria que discursar para um grupo de veteranos de guerra e depois receber o time universitário feminino campeão nacional de basquete.
– Estou bem, Danny. Só queria que as pessoas parassem de me perguntar isso. Daqui a pouco vou começar a pensar que realmente há alguma coisa errada comigo. – O FBI me informou sobre suas visitas à caixa postal. – E o Serviço Secreto, não? – retrucou ela de pronto. – Os espiões entre nós. Dan Cox suspirou. – Estão apenas fazendo o trabalho deles, Jane. Nós somos propriedade nacional. Tesouro nacional, pelo menos você – acrescentou ele com um sorriso fugaz, que geralmente fazia a mágica de reanimá-la. Geralmente, mas naquele dia não. – Você é o tesouro, Danny. Eu sou apenas a bagagem. – Jane, isso não... – Eu sinceramente não tenho tempo para perder com isso, nem você. Os sequestradores se comunicaram comigo por meio de uma carta, que trazia o número da caixa postal e a chave para abrila. Eles disseram que em determinado momento eu receberia outra mensagem e que deveria checar a caixa todos os dias. Tenho feito isso e, até agora, nada. – Mas por que usaram você? Por que não Tuck? – É, por que não Tuck? Eu não sei, Danny, porque aparentemente não penso como um sequestrador. – Claro, é claro, não foi isso que eu quis dizer. Então, talvez você estivesse certa. Eles vão me pedir para fazer alguma coisa para recuperarmos Willa. Não pode ser dinheiro, porque seu irmão tem mais do que eu. Que diabo, nós mal conseguimos pagar as compras de mercado aqui neste lugar. Deve ser alguma coisa ligada à Presidência. – E então se tornaria problemático, como você disse. Deixaria o cargo destituído de poder, creio que foram essas as suas palavras. – Jane, vamos fazer tudo o que pudermos para trazê-la de volta. – E se tudo o que pudermos fazer não for o suficiente? – retrucou ela, com raiva.
Ele a encarou com uma ligeira expressão de impotência nos olhos. O homem mais poderoso do mundo, pensou ela. Destituído de poder. Sua raiva passou tão rapidamente quanto tinha aparecido. – Só me abrace, Danny, me abrace. Ele se apressou em fazer isso, tomando-a nos braços e apertando-a contra si. – Você está tremendo. Está ficando doente? Também emagreceu. Ela se afastou dele. – Olhe, você precisa ir. Você tem que fazer seu discurso no Salão Leste. Automaticamente, ele consultou o relógio. – Vão ligar para cá quando estiver na hora. Ele a tomou nos braços de novo, mas ela se afastou, sentou-se e ficou olhando para o vazio. – Jane, eu sou o presidente dos Estados Unidos. Tenho alguma influência. Provavelmente posso ajudar. – Seria de pensar que sim, não é mesmo? O telefone tocou. Ele atendeu. – Sim, eu sei, vou descer em um minuto. Ele se abaixou e deu um beijo no rosto da esposa. – Volto para ver você mais tarde. – Depois do time feminino de basquete. – Tudo com que eu sempre sonhei – gracejou ele. – Um bando de mulheres de belas pernas compridas, todas muito mais altas do que eu. – Também tenho alguns compromissos. – Vou pedir a Cindy que os cancele. Você precisa de descanso. – Mas... – Apenas descanse. Quando ele começava a se afastar para sair, ela disse:
– Danny, em algum momento eu vou precisar de você. Vai estar ao meu lado para me ajudar? Ele se ajoelhou ao lado dela, passou um dos braços ao redor de seus ombros. – Eu sempre estarei ao seu lado e pronto para ajudá-la, como você sempre esteve ao meu. Agora trate de descansar. Vou mandar trazerem um café e alguma coisa para você comer. Não gosto de você magra desse jeito. Precisamos de mais carnes nessas suas curvas. Ele lhe deu um beijo e saiu. Eu sempre estive ao seu lado quando você precisou, Danny. Sempre.
MICHELLE DESLIGOU O CARRO e desceu. Seus sapatos tocaram a terra endurecida e ela olhou para a velha casa com seu carvalho moribundo, o balanço de pneu meio apodrecido e a carcaça da picape sobre os tijolos de cimento. Ela lançou um rápido olhar para o outro lado da rua, para a casa que um dia fora de uma senhora chamada Hazel Rose. A mulher era meticulosa no cuidado tanto da casa quanto do quintal. Agora a construção estava caindo aos pedaços, prestes a dar um último suspiro e desmoronar de vez. Contudo, alguém morava ali. Havia brinquedos espalhados pelo quintal e roupas balançando na corda do pátio lateral. Mesmo assim, era um cenário deprimente. Seu passado estava erodindo e desaparecendo diante de seus olhos, como sedimentos despencando do alto de uma montanha. Hazel Rose sempre tinha sido muito gentil com Michelle, mesmo depois que a garotinha parara de aparecer nos chás da tarde que oferecia às crianças vizinhas. Por que aquela lembrança aparecera em sua mente naquele instante, Michelle não sabia dizer. Ela se virou para a casa onde morara, sabendo que tinha que fazer o que decidira, mesmo que não quisesse. O palpite de Michelle estava certo: o carro estacionado logo na frente do seu era o do pai. A porta da casa estava aberta. Ela passou pelo carro dele e então pelos restos secos da antiga sebe de rosas. Era isto, agora se lembrava: uma sebe de rosas. Por que aquilo tinha surgido de repente em sua cabeça? Então se lembrou dos lírios no caixão da mãe e de ter dito a Sean que ela preferia rosas. E da dor que sentira na mão, como se um espinho a tivesse furado – só que não havia espinho, porque não havia rosa. Exatamente como agora. Nem uma única rosa. Ela seguiu adiante, perguntando-se o que diria a ele. Não precisou pensar muito.
– Eu estou aqui em cima – gritou ele. Ela olhou para o alto, usando a mão para proteger os olhos do sol. O pai estava em uma janela aberta no segundo andar. Michelle passou por cima da porta de tela caída e entrou na casa que, por um breve período da infância, havia sido seu lar. De certa maneira, sentia-se como se estivesse viajando no tempo. A cada passo se tornava mais jovem, menos confiante e menos capaz. Todos os seus anos de vida, suas experiências na universidade, no Serviço Secreto e como sócia de Sean estavam se dissolvendo. Voltava a ter 6 anos, a ser a criança que arrastava um taco de beisebol de plástico por onde ia, em busca de alguém com quem brincar. Examinou a velha escada. Quando pequena, tinha descido por ela deslizando num pedaço de papelão. A mãe realmente não gostara da ideia, mas Michelle se lembrava do pai rindo e abraçando-a quando a menina chegava lá em baixo. “Meu filho caçula”, ele às vezes a chamava, por causa de suas muitas travessuras. Ela subiu para o segundo andar. O pai a encontrou no patamar da escada. – Imaginei que talvez você viesse até aqui – disse ele. – Por quê? – Assuntos pendentes, talvez. Ela abriu a porta de seu antigo quarto, andou até a janela e sentou no peitoril, de costas para as vidraças imundas. O pai se apoiou contra a parede e pôs as mãos nos bolsos, preguiçosamente batendo de leve com a ponta do sapato no assoalho de madeira arranhado. – Você se lembra de muita coisa daqui, desta casa? – perguntou ele, o olhar fixo no sapato. – Eu me lembrei da sebe de rosas quando cheguei. Você a plantou para comemorar um aniversário de casamento, não foi? – Não, um aniversário de sua mãe. – E alguém a cortou e destruiu inteira numa noite. – É, foi. Michelle se virou para olhar pela janela. – Nunca descobrimos quem.
– Eu sinto falta dela. Realmente sinto falta dela – disse Frank Maxwell. Ela se virou e deparou com o pai observando-a. – Eu sei. Nunca vi o senhor chorar como no outro dia. – Eu estava chorando porque quase perdi você, querida. A resposta surpreendeu Michelle e ela se perguntou por quê. – Sei que mamãe amava o senhor, pai. Mesmo que... que nem sempre tenha demonstrado da maneira correta. – Vamos lá para fora, está ficando abafado aqui. Foram caminhar pelo quintal dos fundos. – Sua mãe e eu fomos namorados desde a época de escola. Ela esperou por mim enquanto servi no Vietnã. Nós nos casamos e então os filhos começaram a vir. – Quatro garotos em quatro anos. Como coelhos. – E depois veio a minha garotinha. Ela sorriu e o cutucou de leve no braço. – Acho que podemos dizer que foi um acidente. – Não, Michelle, não foi acidente. Nós planejamos ter você. Ela olhou para o pai, curiosa. – Acho que nunca cheguei a perguntar isso a nenhum de vocês, mas sempre presumi que eu tivesse sido um acidente. Foi porque vocês estavam tentando uma menina? Frank parou de andar. – Estávamos tentando... qualquer coisa. – Que pudesse unir vocês? – perguntou ela sem pressa. Ele recomeçou a andar, mas ela ficou onde estava. Ele parou e olhou para trás. – Vocês alguma vez pensaram em divórcio, pai? – Não era uma coisa tão simples para a nossa geração. – Nem sempre o divórcio é ruim. Se a pessoa não está feliz... Frank ergueu a mão. – Sua mãe não estava feliz. Eu, hum, eu estava tentando acertar as coisas, embora precise admitir que passava tempo demais no trabalho, longe dela. Ela fez um bom trabalho criando os filhos, mas fez isso sem muito apoio de minha parte. – Vida de policial. – Não, vida deste policial. – O senhor sabia sobre Doug Reagan, não sabia? – Eu percebi alguns sinais de que ela se sentia atraída por ele. Michelle não conseguia acreditar que faria a pergunta seguinte, mas precisava fazê-la. – O senhor teria se importado se soubesse que eles tinham dormido juntos? – Eu ainda era o marido dela. É claro que isso teria me magoado profundamente. – E teria posto fim ao caso? – Eu provavelmente teria dado uma surra em Reagan até quase matá-lo. – E a mamãe? – Eu feri sua mãe de muitas outras maneiras ao longo dos anos. E não foi culpa dela. – Não estando presente para apoiá-la? – De certa forma, isso é pior que traição. – O senhor acha? – O que é um caso rápido em comparação a décadas de indiferença? – Pai, o senhor não ficava fora o tempo todo. – Você ainda não era nascida quando os meninos eram pequenos. Acredite em mim: para todos os efeitos, sua mãe era uma mãe solteira. Esse tempo e essa confiança não são coisas que se consigam recuperar. Pelo menos eu não consegui. – O senhor também chorou por ela? Ele estendeu a mão para que a filha a tomasse. Ela aceitou. – A gente chora, querida. A gente sempre chora. – Não quero mais ficar aqui. – Então, vamos.
Michelle tinha quase chegado ao carro quando aconteceu. Do nada, seus pés se viraram na direção da casa e ela começou a correr. – Michelle! – gritou o pai. Ela já estava dentro da antiga construção, voando escada acima. O som de passadas correndo vinha atrás dela. Ela subiu os degraus, dois de cada vez, a respiração ofegante como se tivesse percorrido quilômetros em vez de metros. Ela chegou ao topo da escada. A porta de seu quarto estava fechada, mas não era para ali que ia. Ela correu para a porta no final do corredor e a abriu com um chute. – Michelle, não! – seu pai urrou às suas costas. Ela olhou fixamente para dentro do quarto. Sua mão procurou a arma e a soltou do coldre. A Sig foi empunhada, apontada para a frente. – Michelle! O som alto de passos ressoou bem próximo. – Fique longe da minha mãe! – gritou ela. Na mente de Michelle, a mãe olhava para ela aterrorizada. Ela estava de joelhos, com o vestido rasgado. Michelle via seu sutiã, a marca do decote fundo, e aquela nudez a apavorava. – Querida! – Sally Maxwell gritou para ela. – Volte lá para baixo. A mãe ainda estava jovem – jovem e viva. O longo cabelo branco fora substituído por fios castanhos. Ela era bonita. Perfeita, exceto pelo vestido rasgado, a expressão aterrorizada e o homem de uniforme do Exército em cima dela. – Saia de perto da minha mãe! Pare de machucá-la! – gritou Michelle, numa voz que só usava para dar ordem de prisão. – Querida, está tudo bem – disse-lhe a mãe. – Volte lá para baixo. O dedo de Michelle enganchou no gatilho. – Pare com isso. Pare! O homem se virou e olhou para ela. Ele provavelmente teria sorrido, como tinha feito em todas as outras noites. Só que agora sua própria arma estava apontada para ele, a mesma que a menina pegara no coldre que ele havia despreocupadamente largado na cadeira. Ninguém sorri quando tem uma arma apontada para si. Mesmo que seja uma criança de 6 anos a segurá-la. Ele fez um movimento na direção dela. Exatamente como tinha acontecido naquela noite, Michelle disparou um único tiro. A bala atravessou o quarto e foi se cravar na parede oposta. Uma mão enorme agarrou a pistola e a tirou de Michelle. Ela não relutou. A arma era tão pesada. Não conseguia mais empunhála. Olhou para o quarto. Viu a mãe gritando, desesperada pelo que a menina tinha feito. Pelo homem que estava morto no chão. Alguém apertou seu ombro. Michelle se virou para olhar. – Pai? A voz dela soou estranha. – Está tudo bem, querida – ele a reconfortou. – Eu estou aqui. Michelle apontou para o quarto. – Fui eu, eu fiz aquilo. – Eu sei. Estava protegendo sua mãe, só isso. Ela se agarrou ao ombro dele. – Precisamos tirá-lo daqui, mas não me deixe no carro, pai. Não desta vez. Senão vou ficar vendo o rosto dele. Você tem que se lembrar de cobrir o rosto dele. – Michelle! – Você tem que cobrir o rosto dele, pai. Se eu vir o rosto dele... A respiração dela estava acelerada. Mal conseguia inalar o ar antes de precisar fazê-lo mais uma vez. Frank Maxwell soltou a arma e abraçou a filha bem apertado, até que sua respiração se acalmou, até que Michelle olhou para o quarto e viu o que realmente havia ali. Nada. – Eu atirei nele, pai. Eu matei um homem. Ele se afastou um pouco, examinou-lhe o rosto. Ela o encarou, os olhos focados. – Você não fez nada de errado. Era apenas uma criança. Apenas uma menina apavorada protegendo a mãe.
– Mas, ela... Ele tinha vindo antes. Ele estava com ela, pai. – Se quiser culpar alguém, culpe a mim. Foi minha culpa. Só minha. As lágrimas lhe escorriam pelo rosto e Michelle sentiu suas próprias lágrimas começarem a cair. – Eu nunca vou fazer isso, nunca vou culpar o senhor. Ele apertou a mão da filha e a conduziu para a escada. – Precisamos sair daqui, Michelle. Precisamos sair daqui e nunca mais voltar. Isto é passado, e não podemos mais revivê-lo. Temos que seguir em frente, porque é a única maneira de conseguirmos viver. De outro modo, isso vai nos destruir. Do lado de fora, ele abriu a porta do carro de Michelle e ela embarcou. Antes de fechá-la, ele confirmou: – Tem certeza de que está bem? Ela respirou fundo e assentiu. – Não sei direito o que aconteceu lá dentro. – Acho que você sabe tudo o que precisa saber. Agora está na hora de esquecer. Ela olhou por sobre o ombro dele. – Foi o senhor que cortou as roseiras, não foi? Ele seguiu o olhar dela e então voltou a encará-la. – Sua mãe adorava aquelas rosas. Eu nunca deveria tê-las tirado dela. – Você provavelmente teve um bom motivo. – Os pais não são perfeitos, Michelle. E eu nunca tive realmente bons motivos para fazer uma porção de coisas. Ela olhou fixamente para a casa. – Nunca mais vou voltar aqui. – Não há nenhum motivo para que volte. Os olhos dela se fixaram mais uma vez nos dele. – Precisamos mudar as coisas, pai. Eu preciso mudar as coisas. Ele apertou a mão da filha e bateu a porta do carro.
Enquanto ele seguia de volta para o próprio veículo, Michelle olhou mais uma vez para a casa, contando as janelas até chegar àquele quarto. – Sinto muito, mãe. Sinto muitíssimo que a senhora esteja morta. Não queria ter arrependimentos, mas agora parece que é tudo o que me resta. As lágrimas jorravam com tanta força que ela apenas apoiou a cabeça no volante e soluçou, o peito sacudindo e batendo na direção. Levantou a cabeça e olhou para a frente a tempo de ver o pai enxugar as lágrimas do próprio rosto e entrar em seu carro. Pouco antes de dar a partida, Michelle disse: – Adeus, mamãe. Não... não me importa o que a senhora tenha feito. Sempre vou amá-la.
ENQUANTO SEAN LIA AS pastas, seu celular tocou. Era Aaron Betack. – Você não ouviu isto de mim – preveniu-o o agente do Serviço Secreto. – Encontrou a carta? – Foi uma boa sugestão de sua parte, Sean. Sim, estava na escrivaninha dela. Encontrei já há algum tempo. Desculpe ter demorado tanto para lhe contar. Se alguém souber que fiz isso, minha carreira estará acabada. Provavelmente vou para a cadeia. – Ninguém saberá por mim, posso lhe garantir. – Não contei nem ao FBI. Na verdade, não sei como contar sem explicar como consegui a carta. – Compreendo. Era datilografada, como a primeira? – Era. – O que dizia? – Não muito. O autor foi bastante econômico nas palavras, mas havia o suficiente no que disse. – O quê? – Há coisas de que já sabemos. Que ela tem que ficar indo checar aquela caixa postal no correio. Ela tem ido todos os dias. Waters mandou rastrear a caixa, mas não deu em nada. O plano é que, quando a carta chegar, o FBI a tome dela. – Vão tomar uma carta à força da primeira-dama? – Eu sei. Estou meio que prevendo um impasse entre o FBI e o Serviço Secreto. Não vai ser agradável. Mas a verdade é que vai acontecer nos bastidores. Com ou sem sobrinha, o homem não vai permitir que a eleição vá para o espaço por causa disso. – O que mais dizia a carta?
– Essa foi a parte mais perturbadora. – Perturbadora em que sentido? – perguntou Sean, desconfiado. – Não tenho certeza de que isso tenha a ver com os Dutton. Acho que é possível que seja algo ligado à primeira-dama. – Quer dizer que os sequestradores querem alguma coisa do presidente? – Não. A carta dizia que a próxima mensagem revelaria tudo e que, se ela deixasse alguma outra pessoa ler, seria o fim para ela e para todas as pessoas que ama. Que ela não teria saída, que sua única chance de sobreviver seria esconder a carta de todo mundo. – Dizia realmente isso? – Não com todas as palavras, mas o sentido claro era esse. Sean, você a conhece de outros tempos. Eu só me aproximei dela durante este governo. A que essa pessoa poderia estar se referindo? Alguma coisa no passado da Sra. Cox? Sean recordou a primeira vez que vira Jane Cox, no dia em que ele carregara seu marido, recém-eleito senador e totalmente bêbado, para a casa modesta onde viviam. Mas aquilo não dera em nada. – Sean? – Sim, estava apenas pensando. Não me vem nada à cabeça, Aaron. Ele ouviu o outro homem suspirar. – Parece que acabei de arriscar minha carreira por nada. – Creio que não tenha sido por nada. O que a carta diz muda as coisas, Aaron. Eu apenas não sei de que modo. – Bem, se isso de fato envolve a primeira-dama e jogar merda no ventilador bem no meio de uma campanha eleitoral, não quero estar nem a mil quilômetros disso quando a bomba estourar. – Talvez não tenhamos escolha. – E você? Descobriu alguma coisa? – Estou tentando seguir algumas pistas com Waters. – Como está Maxwell? Soube que a mãe dela morreu. – Ela está indo bem. Na medida do possível.
– Embora não valha muita coisa, acho que vocês dois não foram tratados como mereciam pelo Serviço Secreto. – Obrigado. Aaron desligou e Sean passou alguns minutos tentando se lembrar de qualquer coisa no passado de Jane Cox que explicasse a situação atual. Por fim, desistiu e voltou-se para as pastas. Alguns minutos depois, a porta se abriu e Michelle entrou. – Encontrou seu pai? – perguntou ele, levantando-se. – Encontrei, estava onde achei que estaria. – Na antiga casa de vocês? Ela olhou para ele com estranheza. – Sou detetive – disse Sean, em tom de brincadeira. – É o meu trabalho. – Às vezes eu gostaria que não fizesse isso tão bem, principalmente quando me diz respeito. Ele a observou mais cuidadosamente. – Estava chorando? – quis saber. – Chorar de vez em quando faz bem. Andei descobrindo isso ultimamente. – Vocês resolveram as coisas? – Resolvemos quase tudo. – Ele voltou com você? – Não, foi à casa de Bobby. Ela olhou para as pilhas de pastas. – Desculpe-me por ter deixado você sozinho. Encontrou alguma coisa? – Ainda não. Estou trabalhando nisso faz quatro horas, mas não encontrei nada. A julgar pelo número de investigações, parece que há um surto de desertores no Exército. Quem deu notícias foi Betack. Sean relatou a conversa que tivera com o agente do Serviço Secreto. Michelle fez um café fresco e serviu canecas para ela e Sean. Eles sentaram à mesa da cozinha.
– Isso explicaria por que ela tem andado tão tensa e se mostrado tão cautelosa. – Você quer dizer por que tem tentado obstruir a Justiça? – Isso também. Ela estendeu a mão: – Passe-me uma pasta e vamos encontrar aquela criança. Duas horas depois, eles estavam no mesmo lugar. – Faltam seis para acabar – disse Sean, espreguiçando-se e passando mais uma pasta para a parceira. Eles liam devagar, em busca de qualquer pista que talvez lhes permitisse entrar em ação. Ficavam concentrados como se estivessem fazendo uma prova final de faculdade. Não havia margem para erros. Se houvesse uma pista qualquer enterrada no meio daquele monte de pastas, eles sabiam que provavelmente seria algo sutil, que não poderiam deixar passar. – Que tal sairmos para jantar? – disse Sean finalmente. – Eu pago. E podemos continuar lendo. Eles foram a um restaurante local. – Então você acha que realmente está tudo bem com seu pai? Ela assentiu. – Acho que sim. Quero dizer, nós dois teremos que nos esforçar. Eu não tenho sido a filha mais carinhosa e atenciosa do mundo. – Nem a irmã – assinalou ele. – Obrigada por me recordar. Enquanto eles comiam, Michelle olhou para ele com nervosismo. – Sean, sobre o que aconteceu na casa de meu pai... – O quê? – Não vai acontecer de novo. – Mas se acontecer, saiba que estarei ao seu lado para apoiála. Existem poucas coisas garantidas na vida, mas esta é uma delas. – Eu faria o mesmo por você. Espero que saiba disso.
– É por isso que somos parceiros, sabe? Para resolver pequenos problemas, se surgirem. Está bem? E juntos. – Tudo bem. Ele passou uma pasta para ela. – Agora vamos voltar ao trabalho. Antes que ela abrisse a pasta, debruçou-se sobre a mesa e deu-lhe um beijo no rosto. – E por que mereci isso? – perguntou ele. – Por lidar tão bem com os problemas. E por não ter se aproveitado da dama quando teve oportunidade.
– POSSO VER A LUZ do dia? Quarry tinha vindo com seu avião para as minas e agora estava sentado no quarto de Willa, observando-a. – Por que você quer ver a luz do dia? – Porque já faz um bocado de tempo que não a vejo. Sinto falta da luz. Gosto do sol. – Não vai conseguir fugir e não há ninguém para quem possa gritar pedindo socorro. – Portanto, não há motivo para não me deixar fazer isso – respondeu ela, em tom cauteloso. – Sobre o que você e Diane ficaram conversando no outro dia? – Nada de mais. Eu gosto dela. – Você nunca a tinha visto antes, tinha? – Por que teria? – perguntou Willa, os olhos grandes cravados em Quarry. – Acho que ver a luz do dia não vai fazer mal. Vamos lá. – Agora? – Por que não? A menina o seguiu rumo à saída. Enquanto desciam pelo longo corredor, ela perguntou: – Diane também pode vir? – Acho que sim. Foram buscá-la e as duas seguiram Quarry em direção à saída. Os olhos de Willa dardejavam à esquerda e à direita, absorvendo o máximo de detalhes que conseguiam, enquanto Diane, desanimada, apenas andava junto, seu olhar fixo nas costas de Sam Quarry. Atrás delas vinha Daryl, o rosto ainda cheio de hematomas da briga com o pai. Seu humor parecia combinar com as manchas feias. Uma coisa que Willa logo percebeu foram os cabos que não se lembrava de ter visto antes, estendidos ao longo de alguns dos corredores. Não sabia para que serviam, mas intuitivamente concluiu que a presença deles ali não indicava nada de bom. Quarry destrancou a porta e os quatro saíram para o ar livre, piscando para se adaptarem à claridade. – Um dia bem bonito – disse Quarry, conduzindo o grupo para fora. E de fato estava, com um céu azul-claro e sem nuvens. A brisa soprava do oeste, cálida e suave. Eles sentaram em um grande pedregulho e olharam a paisagem ao redor. Willa parecia interessada; Diane Wohl, indiferente; e Daryl apenas ficou fazendo cara feia, com o olhar perdido na distância. – Onde você aprendeu a voar? – perguntou Willa, apontando para o pequeno Cessna parado na pista de grama. – No Vietnã. Nada como uma guerra para ensinar você a voar muito bem. Porque se você não voar muito bem numa guerra, seu problema não vai ser chegar atrasado, vai ser não chegar. – Eu já viajei de avião – disse Willa. – Fomos à Europa no verão passado, minha família e eu. E também voei para a Califórnia. Você já andou de avião? – perguntou ela a Diane. Ela respondeu nervosamente: – Sim, eu viajo muito a trabalho. Mas não em aviões como aquele – acrescentou, apontando para a aeronave de Quarry – Só nos grandes. – Que tipo de trabalho você faz? – perguntou Willa. – Olhe, Willa, não estou com humor muito bom para bater papo, está bem? – respondeu ela, olhando ressabiada para Quarry. – Tudo bem – disse a garota, aparentemente sem se perturbar com aquilo. – Posso andar até lá? – perguntou ela a Quarry, apontando a pista de grama. Quarry olhou para Daryl e balançou a cabeça em direção a Diane. – Claro, vamos lá.
Eles desceram pela pequena encosta, Quarry segurando a mão de Willa. Quando chegaram à parte plana, ele largou sua mão e os dois seguiram lado a lado. – Aquela montanha é sua? – perguntou ela, apontando para trás. – É mais uma colina que uma montanha, mas, sim, é minha. Ou pelo menos era de meu avô e eu a herdei. – Você avisou mesmo à minha família que estou bem? – Claro que avisei, por quê? – Diane disse que não achava que você tivesse entrado em contato com a mãe dela para dizer que ela estava bem. – É mesmo? Quarry olhou para trás, para Diane, que estava sentada num pedregulho parecendo tão infeliz quanto sem dúvida se sentia. – Não fique zangado com ela – disse Willa rapidamente. – Só estávamos conversando. A menina hesitou um instante e depois arriscou: – Mas você ligou para a mãe dela? Quarry não respondeu, apenas continuou a andar. Willa teve que se apressar para acompanhar suas passadas largas. – Como vai sua filha? Quarry estacou. – Por que todas essas perguntas, menina? – perguntou irritado. – Por que não? – Isso foi mais uma pergunta. Responda à minha. – Não tenho mais nada para fazer – disse Willa, com simplicidade. – Fico sozinha quase o tempo todo, já li todos os livros que você trouxe, Diane não fala muito quando estamos juntas, a maior parte do tempo só chora e me abraça, estou com saudade da minha família e esta é a primeira vez que vejo o sol desde que tentei fugir. Basicamente estou tentando manter minha sanidade mental. Você preferiria que eu gritasse e fizesse discursos e me esgoelasse de tanto chorar? Porque posso fazer isso, se quiser. Quarry começou a andar de novo e ela o acompanhou.
– Eu na verdade tenho duas filhas. Muito mais velhas que você. Já são mulheres feitas. – Eu estava me referindo à filha que não lê mais. Como ela está? – Não muito bem. – Posso fazer mais perguntas? Ou o senhor vai ficar zangado? Quarry parou, apanhou uma pedra no chão e a arremessou a alguns metros dali. – Claro, tudo bem. – Ela está muito doente? – Sabe o que é estado de coma? – Sei. – Bem, é assim que ela está. Está em coma há 13 anos, mais tempo do que você tem de vida. – Sinto muito. – Eu também sinto muito. – O que aconteceu com ela? – Uma pessoa a machucou. – Por que alguém faria isso? – Boa pergunta. Só o que sei é que algumas pessoas não se importam com quem elas machucam. – A pessoa foi pega? – Não. – Como é o nome de sua filha? – Tippi. – Pode me dizer o seu nome? – Sam. – O sobrenome eu sei que você não pode dizer. – É Quarry. Sam Quarry. Willa ficou visivelmente abalada. – O que houve? – perguntou ele.
– Você acabou de me dizer seu nome completo – constatou ela, trêmula. – E daí? Você perguntou. – Mas se me disse seu nome completo, eu poderia contar à polícia, mas só se o senhor estivesse planejando nos libertar. De modo que isso significa que o senhor não vai nos libertar. Ela disse a última parte em voz baixa. – Existe outra resposta possível. Por que você não pensa nisso um pouco mais? Você é inteligente, vai descobrir qual é. Willa o encarou com uma expressão estranha no rosto. Finalmente disse: – Talvez você não se importe que eu diga seu nome à polícia. – Caramba, eu espero é que uma porção de gente saiba o meu nome muito em breve. – Por quê? – Porque sim. Por falar em nomes, tem um garotinho negro que mora comigo chamado Gabriel. Tem quase a sua idade. E é tão inteligente quanto você. É realmente um bom menino. Bem-educado. – Posso conhecê-lo? – perguntou ela rapidamente. – Agora, não. Ele não sabe o que está acontecendo aqui e pretendo que continue assim. Mas quero que você se certifique de que as pessoas saibam que ele e a mãe dele, Ruth Ann, não tinham a menor noção a respeito disto. De nada, coisa nenhuma. Faria isso por mim, Willa? – É claro. – Obrigado. Porque é importante. – Ele é seu filho? – quis saber Willa, agora olhando para Daryl, lá atrás. – O que a faz pensar isso? – Vocês têm os mesmos olhos. Quarry encarou Daryl. – Sim, ele é meu filho. – Vocês brigaram? Eu ouvi umas coisas na mina e o rosto dele está todo machucado. E a sua boca também.
Quarry tocou no lábio ferido. – Às vezes as pessoas não concordam com relação a certas coisas. Mas mesmo assim eu o amo. Do mesmo modo que amo Tippi. – O senhor é um sequestrador muito estranho, Sr. Quarry – disse ela francamente. – Pode me chamar apenas de seu Sam, como Gabriel. – Isso ainda vai demorar muito? Tudo isso? Quarry respirou fundo e deixou o ar encher seus pulmões antes de expeli-lo. – Não vai demorar muito mais. – Acho que o senhor lamenta ter tido que fazer isso. – De certa maneira, sim, mas de outras, não. Era minha única saída. – Nós já temos que voltar lá para dentro, seu Sam? – Ainda não. Daqui a pouco. Mas ainda não. Eles sentaram na grama e apreciaram o calor do sol. Mais tarde, quando estavam dentro da mina, Quarry deixou que Diane e Willa passassem algum tempo juntas no quarto de Diane. – Por que você está sendo gentil com aquele sujeito? – perguntou Diane, assim que Quarry trancou a porta e se afastou. – Há alguma coisa estranha nele. – É claro que há, ele é um psicopata. – Não, não acho que ele seja um psicopata. Sou gentil com ele porque estou tentando agradar o lado bom do seu Sam. – Presumindo que ele tenha um. Deus, eu bem que queria um cigarro. – O cigarro mata. – Preferiria morrer pelas minhas próprias mãos – rebateu. Então apontou para a porta: – Em vez de pela dele – gritou. – Agora você está me deixando assustada. Willa recuou um pouco. Diane se acalmou e sentou à mesa.
– Desculpe, Willa. Sinto muito. Estamos todos muito estressados. Você sente falta de sua família, e eu, da minha. – Você me disse antes que não tinha família. Por quê? Diane olhou para ela de uma maneira estranha. – Eu quis me casar e ter filhos, mas não deu certo. – Você ainda é jovem. – Tenho 32. – Tem tempo de sobra. Você ainda pode ter uma família. – Quem disse que eu agora quero uma? – retrucou Diane com amargura. Willa ficou em silêncio enquanto observava a mulher esfregar as mãos nervosamente e olhar fixo para o tampo da mesa. – Nós nunca vamos sair daqui. Você sabe disso, não sabe? – disse Diane. – Eu acho que vamos, se as coisas correrem de acordo com o plano de seu Sam. Diane se levantou de um salto. – Pare de chamá-lo assim! Faz com que ele pareça ser o avô bonzinho de alguém e não um lunático. – Tudo bem – disse Willa, temerosa. – Tudo bem, eu paro. Diane se sentou de volta na cadeira. – Você sente saudades de sua mãe? – perguntou em voz baixa. Willa assentiu. – Sinto falta de todo mundo. Até de meu irmão. – Ele disse a você que todo mundo estava bem na sua família? – Disse. Ele... – Willa se interrompeu e olhou atenta para a mulher: – Por que está me perguntando isso? Ele disse outra coisa a você? Diane pareceu surpresa. – Não. Quero dizer, não falamos disso. Ele e eu... Eu não sei de nada. Willa se levantou, os olhos perscrutando o rosto da mulher, penetrando com facilidade o verniz fino das mentiras.
– Ele contou alguma coisa a você – disse ela em tom acusador. – Não, não contou nada. – A minha família está bem? Está? Todo mundo? – Willa, eu não sei. Eu... Ele... Olhe, não podemos acreditar em tudo o que ele diz. – Então ele disse alguma coisa a você. O que foi que ele disse? – Willa, não posso... – Diga o que foi. Diga! – berrou ela, então correu para junto de Diane e começou a estapeá-la. – Diga! Diga! Ouviu-se o som de passadas do lado de fora do quarto. Uma chave girou na tranca e a porta foi aberta bruscamente. Quarry correu para elas e ergueu Willa do chão. A menina se voltou contra ele, estapeando-lhe o rosto. – Diga que minha família está bem. Diga! – Willa gritou para Quarry. Quarry lançou um olhar furioso para Diane, que se encolheu contra a parede. – Willa, pare! – ordenou. Mas ela o estapeou na boca ferida. Continuou a socar, bater, estapear. Era impossível controlá-la. – Daryl! – urrou Quarry. Seu filho entrou correndo, trazendo uma seringa. Ele tirou a tampa e enfiou a agulha no braço de Willa. Dois segundos depois, ela arriou nos braços de Quarry. Ele a passou para Daryl. – Leve-a de volta para o quarto. Quando ficou sozinho com Diane, Quarry se voltou furioso contra ela: – Que diabo você lhe disse? – Nada. Eu juro. Ela me perguntou sobre a família dela. – E você contou que era a mãe dela? – Não, eu nunca faria isso. – Então, o que aconteceu? – Olhe, você matou a mãe dela.
– Não, eu não matei. – Bem, você me disse que ela estava morta. Está ou não está? Quarry olhou em direção à porta e então de volta para ela. – Foi um acidente. – Ah, com certeza! – respondeu ela com sarcasmo. – Você contou a ela que a mãe estava morta? – perguntou ele, a raiva crescendo. – Não, mas ela é uma menina esperta. Eu disse para não confiar no que você fala. Ela somou dois mais dois. E se você de fato nos libertar, ela vai descobrir. Quarry fez uma carranca, lançando um olhar raivoso para a mulher. – Você não deveria ter dito isso a ela. – É, sei, e você não deveria ter matado a mãe dela, por acidente ou não. E não deveria ter nos sequestrado, para começar. E agora eu estou pouco me importando se for me matar. Pode ir para o inferno, seu Sam. – Eu já estou no inferno, minha senhora. Vivo nele há muitos anos. Ele saiu batendo a porta.
JANE COX RESPIROU FUNDO enquanto olhava o interior da caixa postal. Todas as vezes em que a abrira antes, ela estivera vazia. Mas naquele dia havia um envelope branco dentro dela. Jane olhou ao redor, aproximou sua bolsa e deslizou o envelope para dentro dela. Tinha acabado de entrar na limusine quando ouviu uma batida de leve no vidro. Jane olhou para o chefe de sua equipe de segurança. – Vamos. Em vez de partirem, a porta da limusine se abriu, revelando o agente do FBI Chuck Waters. – Preciso da carta, Sra. Cox. – Desculpe, quem é o senhor? Waters apresentou seu distintivo. – FBI. Preciso da carta – repetiu ele. – Que carta? – A que a senhora acabou de tirar de dentro daquela caixa postal – disse ele, apontando para a loja. – Não sei do que o senhor está falando. Agora, por favor, me deixe em paz – desconversou, então olhou para o chefe de sua segurança. – Drew, peça a este homem que se afaste. Drew Fuller, um agente veterano do Serviço Secreto, olhou para ela nervosamente. – Sra. Cox, o FBI vem mantendo a senhora sob vigilância desde o primeiro dia. – O quê!? – exclamou ela.
Pela expressão resignada nos olhos de Fuller, ele parecia ter se dado conta de que logo seria transferido para uma função muito menos desejável. – Tenho uma ordem judicial aqui – disse Waters, exibindo uma folha de papel. – Para revistar sua bolsa e a senhora. – Não pode fazer isso. Não sou uma criminosa. – Se a senhora estiver de posse de provas relevantes para uma investigação de sequestro e as estiver escondendo conscientemente, então a senhora é uma criminosa. – Não consigo acreditar em seu atrevimento! – Estou apenas tentando trazer sua sobrinha de volta. Presumo que esse também seja o desejo da senhora. – Como se atreve?! Waters olhou para Fuller: – Podemos fazer isso da maneira fácil ou da maneira difícil. A escolha é dela. Fuller se pronunciou: – Sra. Cox, o Serviço Secreto foi informado das ações do FBI e a posição oficial é de que não temos o direito de impedi-los. É uma investigação federal. Os advogados da Casa Branca também estão de acordo com isso. – Então parece que todo mundo está de acordo, que todo mundo andou agindo contra mim pelas minhas costas. Isso também inclui meu marido? – Não posso falar a respeito – disparou Fuller apressadamente. – Bem, eu posso. E farei isso quando voltarmos à Casa Branca. – Com certeza é um direito seu, Sra. Cox. – Não, será minha missão! – A carta, Sra. Cox – pediu Waters. – O tempo é uma questão crucial. Ela abriu a bolsa lentamente e enfiou a mão dentro dela. – Minha senhora, se não se importar, eu mesmo pego a carta.
Ela lhe lançou um olhar do qual ele provavelmente se lembraria pelo resto da vida. – Primeiro o mandado judicial. Ele lhe entregou a folha de papel, que ela leu inteira, bem devagar. Depois estendeu ao homem a bolsa aberta. – Também tem batom, se quiser. Ele examinou o conteúdo da bolsa. – Só a carta basta. Ele puxou o envelope e ela fechou a bolsa, quase prendendo os dedos dele. – Vai perder seu distintivo por causa disso – disse Jane asperamente. Depois lançou um olhar furioso para Fuller: – Agora podemos ir? Ele imediatamente se virou para o motorista: – Vamos. De volta à Casa Branca, Jane subiu rapidamente para os aposentos da família. Tirou o casaco e os sapatos, entrou em seu quarto e trancou a porta. Então abriu a bolsa, enfiou a mão por trás do corte quase invisível no forro e retirou a carta. Estava endereçada a ela, as palavras datilografadas. Jane abriu o envelope. Havia uma única página, também datilografada. Ela soubera que estava sendo vigiada pelo FBI. Quando abrira a caixa postal e vira o envelope lá dentro, tinha aproximado sua bolsa e deslizado-o para dentro do corte que fizera no forro. A carta que ela deixara Waters levar era uma que ela própria havia redigido e que datilografara numa máquina de escrever encontrada em um depósito da Casa Branca. Tinha posto a carta falsa dentro da bolsa antes de ir checar a caixa postal. Que homem pensaria em olhar dentro do forro de uma bolsa, quando o que procurava parecia estar bem ali, ao lado de seus cosméticos? Só para deixar o homem mais sem graça, de modo que não demorasse examinando a bolsa, Jane ainda incluíra em seus pertences um frasco de remédios para menopausa. O envelope que havia recebido por intermédio do pessoal da cozinha da Casa Branca era branco, portanto ela presumira que o seguinte também seria. Sabia que quem a estivesse vigiando só conseguiria ver um pedacinho da carta enquanto ela ia da caixa postal para a bolsa. Também previra que seria interpelada logo depois desse momento. Tinha suas fontes na Casa Branca. Como o Serviço Secreto, não havia nada que acontecesse lá dentro de que ela não fosse avisada. Assim, o agente do FBI e o mandado não tinham sido surpresas. Ela havia enganado direitinho aquela orgulhosa agência. A sensação de triunfo, contudo, durou pouco. Com as mãos trêmulas, ela desdobrou a carta e começou a ler o texto. Ele lhe dava um número de telefone, data e hora para ligar para ele. Não seria possível rastrear a ligação, avisava. Mais importante, a carta dizia que tudo seria revelado durante aquela conversa e, se alguma outra pessoa a ouvisse, isso não apenas custaria a vida de Willa, mas também destruiria a vida de todos eles, irreversivelmente. Ela reparou naquela última palavra, “irreversivelmente”. Não apenas estava mal colocada no texto, mas parecia não caber ali. Será que havia um significado oculto nela? Jane não tinha como saber. Anotou o número em outro papel, correu para o banheiro, rasgou a carta, jogou-a na privada e deu descarga. Por um momento, imaginou agentes federais escondidos em algum lugar na Casa Branca interceptando a água de sua latrina e reconstruindo a carta. Mas isso seria impossível, era coisa de 1984, de George Orwell. Contudo, em alguns sentidos, morando na Casa Branca, ela já tinha visto a obra-prima da ficção de Orwell posta em prática de maneiras que a maioria das pessoas jamais poderia imaginar. Por via das dúvidas, deu a descarga mais uma vez. Saiu devagar do banheiro, fez uma ligação telefônica e cancelou todos os compromissos do dia. Em seus mais de três anos como primeiradama, nunca havia faltado a um evento, por mais trivial que fosse. Desde que Willa desaparecera, entretanto, ela os havia cancelado com regularidade. E não se arrependia. Já tinham tirado muito de seu suor. Ela havia servido bem ao país. O fato de o marido estar em campanha para conseguir mais quatro anos daquilo a deixava nauseada. Subitamente sentindo frio, encheu a banheira de água quente e tirou as roupas. Antes de entrar no banho, olhou-se nua no espelho. Ela de fato tinha emagrecido. Era algo que estivera planejando fazer, mas não daquela maneira. Os quilos a menos não a haviam deixado melhor. Parecia mais fraca, até mesmo mais velha. Não ficara nada bonita, concluiu. A pele estava flácida, os ossos proeminentes onde nenhuma mulher desejaria vê-los. Ela apagou a luz e se deitou na banheira. Enquanto ficava ali, precisava descobrir uma forma de fazer algo com que nenhum outro cidadão do país, exceto talvez seu marido, teria que se preocupar: uma ligação telefônica sem ninguém por perto e completamente privada. Não poderia telefonar dali. Se o FBI tinha um mandado de busca para sua bolsa, provavelmente também teria um para monitorar chamadas telefônicas, pelo menos as feitas por ela. E pelo que Jane sabia, todas as ligações recebidas ali ou originadas naquele prédio eram monitoradas, talvez pela Agência Nacional de Segurança. Eles pareciam ouvir as conversas de qualquer um que quisessem. E se Jane não podia telefonar dali, também não existia lugar nenhum onde não estivesse acompanhada: num avião ou num helicóptero, numa limusine, durante as refeições, em seu escritório, em um chá beneficente, em um hospital infantil que fora inaugurar, no lançamento de um navio, em uma visita a soldados feridos. Era o preço que se pagava por conquistar a Casa Branca. Contudo, ela pensaria numa solução. Acabaria por encontrar uma saída. Tinha enganado o FBI com a carta. Usara luvas, de modo que não houvesse impressões digitais, e redigira um texto vago, dizendo que o resgate custaria 10 milhões de dólares e que os sequestradores tornariam a entrar em contato, mais uma vez por carta. Aquela estratégia a fizera ganhar tempo, mas não muito. Jane precisaria fazer a ligação no dia seguinte, à noite. Não, realmente não havia muito tempo. Ela fechou os olhos. O “irreversivelmente” continuou a lhe voltar à cabeça. E então seus olhos se abriram quando ela se lembrou das palavras que vinham antes daquele termo inexplicável. Deitada na água quente no escuro, ela disse para si mesma: “Suas vidas serão irreversivelmente destruídas.” Não apenas a minha vida, mas suas vidas. Infelizmente, ela sabia a que aquelas palavras se referiam.
JANE TINHA ENCONTRADO UMA solução. Ela estava de saída, a caminho de Georgetown, para jantar em seu restaurante francês favorito. Ia com o irmão, Tuck, e dois outros amigos – além do destacamento habitual de agentes do Serviço Secreto. A equipe de segurança já havia vasculhado cada centímetro do restaurante. Um grupo tinha vigiado as cercanias até que a primeira-dama e seus convidados chegassem, para garantir que nenhum terrorista, nenhum maluco ou um fanático com uma bomba pudesse se instalar e esperar que seu alvo chegasse. A operação toda tinha sido organizada às pressas, porque a primeira-dama havia se decidido pelo jantar no último minuto. Por causa disso, o Serviço Secreto tivera que realmente rebolar para fazer seu trabalho, mas eles estavam habituados. Principalmente quando se tratava de Jane Cox, que, desde que sua sobrinha fora sequestrada, tinha aprontado todas no que dizia respeito a suas programações. A refeição foi servida, o vinho foi bebido. De tempos em tempos, Jane dava uma olhada no relógio. Tuck nem notava isso. Estava concentrado demais nos próprios problemas. Jane havia escolhido os outros convidados com base unicamente na incapacidade deles de observar qualquer coisa que não pertencesse ao reino da política. Depois da conversa obrigatória a respeito do que havia acontecido com a família de Tuck, eles falaram sobre o senador fulano e a congressista beltrana, sobre a campanha para a eleição e os últimos resultados das pesquisas. Jane apenas assentia ao longo da conversa e dava as respostas certas para manter o assunto fluindo. E continuava a consultar o relógio. Ela não havia escolhido aquele restaurante apenas por seu excelente cardápio e sua carta de vinhos. Havia outro motivo.
Faltando cinco minutos para as 23h, ela fez um sinal para o chefe de sua segurança, que estava sentado a uma mesa no canto. Ele falou em seu rádio de pulso. Um instante depois, uma agente feminina correu para o banheiro das mulheres, checou a área, deu o sinal de que estava tudo bem e então se postou diante da porta, barrando a entrada de quaisquer outras clientes, por mais que estivessem incomodadas por suas bexigas ou seus intestinos. A primeira-dama entrou no banheiro quando faltavam dois minutos para as 23h. Foi direto para os fundos do aposento e olhou para ele. Aquele era o motivo pelo qual escolhera o restaurante. Ele era o único que ela conhecia que ainda tinha um telefone público no banheiro feminino. Jane tinha levado um cartão telefônico. Não queria que houvesse registro daquela chamada em seu cartão de crédito. Discou o número. Tocou uma vez. Duas. Então alguém atendeu. Ela se preparou. – Alô? – disse a voz do homem. – Aqui é Jane Cox – anunciou ela tão claramente quanto pôde. Sam Quarry estava em sua biblioteca em Atlee, com a lareira rugindo. Deixaria aquele maldito atiçador em brasa. Ele estava usando o celular clonado que Daryl comprara de um conhecido que havia se especializado naquele ramo de negócios, ou seja, ilegal e impossível de rastrear. Ele tomou um gole de seu uísque favorito. Diante dele estavam fotos da esposa e de Tippi. O cenário estava montado. Ele levara anos planejando-o. Agora finalmente chegara a hora. – Eu sei quem é – disse ele lentamente. – Ligou na hora exata. – O que você quer? – perguntou ela asperamente. – Se machucou Willa... Ele a interrompeu. – Sei que você provavelmente tem um zilhão de pessoas ao seu redor querendo saber onde está, portanto deixe-me dizer o que preciso e assim poderemos acabar logo com isso. – Está bem.
– Sua sobrinha está bem. Também estou com a mãe dela. – A mãe dela está morta – retrucou Jane com estridência. – Você a matou. – Estou falando da mãe verdadeira. Você a conheceu como Diane Wright, mas agora ela se chama Diane Wohl. Ela casou, se mudou para outra cidade e começou uma vida nova. Eu não sabia se você tinha conhecimento disso. Ou se por acaso se importava. Jane ficou parada segurando o telefone, sentindo-se como se tivesse levado um tiro na cabeça. Apoiou a mão contra a parede de ladrilhos para se firmar. – Eu não sei o que... Ele a interrompeu de novo. – Vou lhe dizer o que vai ter que fazer se quiser ver Willa de novo e fora de um caixão. – Como posso ter certeza de que está realmente com ela? – Escute. Quarry pegou um gravador e o ligou, mantendo-o bem perto do fone. Levara o aparelho consigo ao visitar Willa e Diane e gravara em segredo as conversas que tiveram. – Primeiro, Willa – disse ele. A voz da menina soou tão claramente como se ela estivesse ali, conversando com Quarry sobre o motivo daquele sequestro. – Agora, Diane. Achei que você gostaria de ouvir nossa conversa sobre ela abrir mão da filha. Diane se fez ouvir, depois as palavras de Quarry explicando os resultados do exame de DNA. Sam Quarry desligou o gravador e voltou ao telefone: – Satisfeita? – Por que está fazendo isso? – perguntou Jane atordoada. – Justiça. – Justiça? Quem foi prejudicado pela adoção de Willa? Nós fizemos um bem a ela. A mulher não queria o bebê. Eu conhecia alguém que queria.
– Na verdade estou pouco me lixando para Diane Wohl. Também não me interesso se você fez seu irmão e a mulher dele felizes ao encontrar uma filha para eles. Eu precisava de Willa para atrair sua atenção. – Por quê? – disse ela, levantando a voz. – Sra. Cox? – chamou a agente lá fora. – Está tudo bem? – Estou apenas falando com uma pessoa – respondeu ela rapidamente. – No telefone – acrescentou. Ela se virou para o telefone e ouviu Quarry dizer: – O nome Tippi a faz recordar alguma coisa ou você simplesmente o apagou da memória? – Tippi? – Tippi Quarry. Atlanta – acrescentou ele em voz mais alta, seu olhar cravado na foto da filha. Um segundo, dois segundos, três segundos. – Ah, meu Deus! – Isso mesmo: ah, meu Deus! – Escute, por favor... – Não, escute você. Eu sei de tudo. Tenho datas, nomes e lugares. Agora vou lhe dizer o nome de um aeroporto. Tenho um mapa muito preciso dando as coordenadas de latitude e longitude que os levarão até onde têm que ir depois de chegarem lá. É só entregá-lo ao seu piloto. Ele vai entender direitinho. A maior parte é de números, portanto anote. Agora. Não há margem para erro. Jane revirou a bolsa em busca de papel e caneta. – Está bem – disse em voz trêmula. Ele lhe passou a localização do aeroporto e as coordenadas adicionais. – Você quer que eu vá a este lugar? – É claro que não! Eu quero que vocês dois venham. – Nós dois? Quando? Quarry olhou para o relógio. – Daqui a nove horas. Exatamente. Nem um minuto a mais, se quiser ver aquela menina ainda respirando.
Jane olhou para seu relógio. – É impossível. Ele está na cidade esta noite, mas parte para Nova York amanhã de manhã para fazer um discurso nas Nações Unidas. – Estou pouco me importando se ele tiver marcado uma reunião com Deus. Se não estiverem lá em exatamente nove horas a contar de agora, quando você vir Willa de novo ela não poderá ver você. E aqueles exames de DNA que mandei fazer serão distribuídos para a imprensa, junto com todo o resto. Tenho provas de tudo. Passei anos da minha vida fazendo apenas isso. Vocês nos jogaram na lama, madame, e seguiram adiante com suas vidas. Bem, está na hora da vingança. Chegou a hora de Tippi. Chegou a minha hora! – Por favor, se pelos menos puder nos dar... – Agora aqui vão as instruções sobre o que fazer ao chegar lá. É melhor segui-las ao pé da letra, porque, caso não faça isso, ou caso meta o FBI neste negócio, eu vou descobrir. Vou saber imediatamente e então Willa vai morrer e toda a verdade virá a público. E não vai haver reeleição para o querido Dan Cox, eu garanto. As lágrimas escorriam pelas faces de Jane. E as lágrimas também escorriam pelas faces de Quarry enquanto ele contemplava as duas mulheres mais importantes de sua vida, ambas perdidas para sempre – por causa da mulher com quem estava falando naquele momento. Por causa dela. E dele. – Ouviu bem? – perguntou ele em voz baixa. – Ouvi – arquejou ela. Ele lhe deu as instruções. – Se nós fizermos isso, Willa vai ser libertada? – balbuciou ela. – E você não... você não vai contar? – Eu lhe dou minha palavra. – Só isso? Como posso confiar em você? Eu nem sei quem você é. – Você me conhece. – Eu... conheço? – perguntou ela, hesitante. – É claro que conhece. Eu sou o seu pior pesadelo. E quer saber por quê?
Jane não respondeu. – Porque vocês dois foram meu pior pesadelo – disse ele. – Você é o pai dela? – perguntou Jane em tom fraco. – O tempo está correndo – disse Quarry. – É melhor tratar de se mexer. Você e o homem não podem simplesmente entrar num táxi. Não é realmente especial ter todo esse poder agora? Andem tão depressa quanto um raio. Ele desligou o telefone, arremessou o aparelho do outro lado da sala e se recostou, exausto. Então agarrou o atiçador, aqueceu a ponta no fogo até ficar em brasa, arregaçou a manga da camisa e queimou a última linha em seu braço. A marca agora estava completa. A dor foi horrível. Não era algo que se tornasse mais fácil a cada nova marca: tornava-se pior. Mesmo assim ele não deixou escapar um gemido, não fez uma careta, não chorou. Apenas olhou fixamente para a fotografia de Tippi. E não sentiu nada. Exatamente como sua filha. Nada. Por causa deles. Ele saiu rapidamente do aposento. Havia muita coisa a fazer antes que eles chegassem. A adrenalina circulava em seu corpo. Em Georgetown, Jane largou o telefone e saiu correndo do banheiro feminino. O tempo já estava correndo.
SEAN E MICHELLE TINHAM posto a bagagem no carro e estavam se despedindo do irmão e do pai dela. Ela os abraçou e disse: – Eu ligo para você, pai. E vou aparecer para passar uns dias. Nós podemos... – Tentar nos conhecer de novo? – É. Quando eles já estavam na porta, Frank disse: – Ah, quase esqueci: chegou uma encomenda para Sean hoje cedo. Eu botei na sala. Ele saiu e, um minuto depois, voltou com uma caixa de papelão. Quando Sean viu de quem era, exclamou: – Meu amigo general de novo! Mais pastas de desertores. – Pastas de desertores? – perguntou Bobby. – É um caso em que estamos trabalhando – explicou Michelle. Eles seguiram para o carro. – Posso ler as pastas enquanto você dirige, Sean. Vai nos poupar tempo, que já não temos. – Obrigado, Michelle – disse ele, satisfeito. – É muito gentil de sua parte. – Não tem nada a ver com gentileza. Você fica enjoado quando lê em viagens. Não quero que vomite no meu carro. Bobby sorriu. – Esta é a minha irmã. Eles saíram com o carro e seguiram em direção à estrada. Michelle abriu a caixa e puxou a primeira pasta.
– É bom que seu irmão more aqui. Ele pode fazer companhia ao seu pai – comentou Sean. –Também pretendo vir fazer companhia a ele. Se o que aconteceu me mostrou alguma coisa, foi que não se pode dar nada como certo. Hoje você está aqui, amanhã não está mais. – Vou parar para comprar um café antes de pegarmos a interestadual – disse Sean. – Parece que sempre começamos essas viagens tarde da noite. – Pegue um duplo para mim. Sean comprou o café e eles rumaram para o norte. Michelle leu mais cinco pastas e então alongou os braços. – Quer trocar? – ofereceu ele. – Eu consigo segurar o enjoo. – Não, já vou continuar. Mas o que vamos fazer se não encontrarmos nada aqui? – Reze para encontrarmos, porque não há alternativa. Sean consultou o relógio do painel, pegou o celular e digitou um número. – Para quem está ligando? – Chuck Waters. Talvez ele tenha alguma pista para nós. – Claro. E eu vou me inscrever no “Dança dos famosos”. O agente do FBI atendeu no segundo toque. Sean e ele conversaram por alguns minutos e Sean desligou. – Alguma novidade? – perguntou Michelle. – Jane recebeu a carta na caixa postal e Waters a confiscou. – O que dizia? – Alguma coisa sobre um resgate de 10 milhões de dólares. Só que Waters acha que ela passou a perna neles e entregou uma carta falsa. – Por que ele pensa assim? – Essa última carta não combina com a que foi enviada com a tigela e a colher. Máquinas de escrever diferentes, por exemplo. E ele disse que havia alguma coisa estranha no carimbo do correio. – Mas por que ela faria isso?
– Ela tem um interesse particular neste caso, Michelle. Pelo que Betack descobriu na segunda carta, essa história é uma questão pessoal para Jane Cox. Ela não queria que mais ninguém a lesse. – Você não está pensando que Willa é filha dela, está? Que talvez ela tenha traído o marido antes de ele ser presidente? Engravidou e deu o bebê para o irmão e a cunhada? – Eu poderia até pensar isso, só que estive com Jane Cox há cerca de 12 anos e ela não estava grávida. – Cerca de 12 anos? – O que quero dizer é que a vi várias vezes durante aquele período. Ela não poderia ser mãe de Willa, a menos que eles estejam mentindo sobre a idade da garota. Michelle sacudiu a cabeça e continuou a leitura. Meia hora depois, ela deu um grito: – Vire o carro! Sean quase bateu na mureta. – O que houve? – Vire o carro e volte! – Por quê? – Porque precisamos seguir para o sul. Sean ligou a seta e começou a jogar o carro para a direita. – Por que para o sul? Ela passou os olhos pelas páginas da pasta que tinha nas mãos, falando depressa: – Três desertores morando no mesmo endereço no Alabama, mas todos com sobrenomes diferentes. Kurt Stevens, Carlos Rivera e Daryl Quarry. Eles deveriam ter se apresentado à base para embarcar para o Iraque, só que nunca apareceram. O Exército foi checar. O lugar se chama Atlee, é uma daquelas velhas fazendas. O dono é Sam Quarry, veterano do Vietnã e pai de Daryl. O Exército não encontrou qualquer sinal dos três rapazes. – Tudo bem, eles são desertores do Exército e o Alabama é um dos estados que o exame isotópico apontou, mas nada disso é uma pista conclusiva, Michelle.
– O Exército falou com Sam Quarry, com uma tal de Ruth Ann Macon e com o filho dela, Gabriel. E com um sujeito chamado Eugene. – Sim, mas, de novo: e daí? – A gente precisa aplaudir o detalhismo desses caras do Exército. O relatório diz que Eugene se identificou como membro da tribo koasati. Sean atravessou as pistas cantando pneus, com as buzinas soando estridentes, e entrou no primeiro desvio. Dois minutos depois, estavam a caminho do Alabama.
PROVAVELMENTE NÃO EXISTE NO mundo um lugar mais formal e planejado para negociações do que o Salão Oval. Para ser recebida ali – fosse o primeiro-ministro de um país relativamente sem importância ou um grande doador de fundos para campanhas políticas –, a pessoa podia levar dias ou mesmo semanas negociando nos bastidores. O fato é que, para quem não lida com o presidente no dia a dia, é preciso lutar com doses iguais de ferocidade e delicadeza para conseguir um convite. Depois que se obtém acesso àquele recinto sagrado, o tratamento recebido – um aperto de mão, um tapinha nas costas ou uma foto autografada, em vez de simplesmente uma foto – é detalhadamente planejado e faz parte das transações. Não se pode dizer que o Salão Oval seja um ambiente que encoraje a espontaneidade. O Serviço Secreto, em particular, faz cara feia para qualquer coisa que sugira um movimento casual. Já era tarde, mas Dan Cox estava cuidando de alguns desses encontros obrigatórios antes de partir na manhã seguinte para Nova York, onde faria seu discurso na ONU. Tinha sido informado sobre quem eram as pessoas que receberia naquele dia: na maior parte, a elite dos financiadores de sua campanha, gente que tinha assinado cheques vultosos e, mais importante, induzido vários de seus amigos ricos a fazer o mesmo. Eles iam entrando um a um e o presidente os recebia usando seu modo automático de bom anfitrião: aperto de mão, um gesto de cabeça, um sorriso, um tapinha nas costas, algumas palavras e depois aceitar os agradecimentos bajuladores. Para os especiais, os pesos pesados, que sua equipe de assessores – que pairavam por toda parte como os abutres guardiões que eram – habilmente indicava, o presidente pegava algum tesouro nacional entre os objetos em sua escrivaninha e lhes falava a respeito. Uns poucos sortudos ganhavam uma pequena lembrança. E aqueles afortunados saíam dali com a impressão de terem criado laços pessoais com o chefe da nação, de que algo brilhante que tivessem dito havia levado seu líder político a lhes dar de presente uma bola de golfe assinada, ou uma caixa de abotoaduras, uma caneta com o selo presidencial, todos objetos que a Casa Branca estocava às toneladas exatamente para tais ocasiões. Esse processo cuidadosamente planejado foi posto abaixo quando a porta do Salão Oval foi violentamente aberta, uma tarefa nada fácil, considerando seu peso. Dan Cox ergueu os olhos e deu de cara com a esposa postada ali – não, melhor dizendo, se equilibrando ali em seus saltos altos, vestido chique, casaco às costas, olhos assustados e esgazeados e o cabelo, normalmente impecável, em desalinho. Bem ao lado dela estavam dois agentes do Serviço Secreto, visivelmente ansiosos. As expressões conflitantes em seus rostos eram claras. Apesar de a primeira-dama basicamente ter permissão para entrar no Salão Oval sempre que quisesse, naquela ocasião específica estava claro que os agentes não sabiam se deveriam ter permitido sua entrada ou mantido-a do lado de fora à força. – Jane? – disse o presidente espantado, deixando cair a bola de golfe que estava a ponto de entregar a um empreiteiro de Ohio que havia angariado caminhões de dinheiro para sua campanha. – Dan! – exclamou ela, ofegante. E de fato ela estava sem fôlego, pois a Casa Branca é um prédio bastante grande e ela havia corrido desde onde a limusine a deixara até ali. – Meu Deus, o que houve? Está se sentindo mal? Ela deu um passo adiante. Os agentes fizeram o mesmo, pondo-se delicadamente diante dela. Talvez tivessem pensado que ela de fato estivesse doente, ou que alguém houvesse lhe inoculado alguma substância venenosa, e era dever deles impedir que o chefe da nação fosse infectado. – Precisamos conversar. Agora! – anunciou ela. – Estou quase acabando aqui. Ele lançou um olhar para seu convidado, que havia apanhado a bola de golfe no chão. – Foi um longo dia para todo mundo – disse Cox, sorrindo e pegando a bola de volta. – Me deixe assiná-la para o senhor...
Em geral, o presidente tinha uma excelente memória para nomes, mas, por causa da interrupção, cometera aquele deslize tão humano. Jay, seu assistente pessoal, entrou em ação para salvá-lo. – Como conversamos, senhor presidente, nosso amigo Wally Garrett angariou mais fundos do que qualquer pessoa na região de Cincinnati para sua campanha de reeleição. – Bem, Wally, eu realmente fico grato por... Jamais se chegaria a saber pelo que o presidente estava realmente grato, porque Jane disparou como um raio, arrancou a bola de golfe da mão do marido e a arremessou do outro lado da sala, onde ela bateu em um retrato de Thomas Jefferson, um dos heróis pessoais de Dan Cox, deixando o terceiro presidente dos Estados Unidos com um buraco no local onde estivera seu olho esquerdo. Os agentes do Serviço Secreto avançaram correndo, mas Dan ergueu a mão, fazendo-os parar onde estavam. Ele fez um gesto de cabeça para seus assistentes e Garrett foi retirado às pressas da sala, sem a sua tão desejada bola de golfe. Mas nenhum político que tivesse alcançado a posição de Dan Cox jamais deixaria coisa alguma entregue ao acaso ou permitiria que um grande doador de fundos para sua campanha fosse embora insatisfeito. O homem de Ohio receberia uma foto assinada pelo presidente e convites VIPs para algum evento a ser realizado em breve, com a mensagem subentendida de que o que ele acabara de presenciar nunca se tornaria público. Dan Cox estendeu a mão para a mulher. – Jane, que diabo está... – Aqui não, lá em cima. Não confio neste lugar. Ela fuzilou os agentes e assistentes com o olhar, depois saiu do aposento tão rápido quanto tinha entrado. Assim que a grossa porta bateu, toda a equipe olhou dela para o presidente, sem ousar dizer uma palavra. Jamais verbalizariam na frente do chefe qualquer um dos pensamentos que pudessem ter acerca do que haviam acabado de assistir. Cox ficou parado ali por um momento. Realmente já vira de tudo. E enfrentara tudo. Entretanto, mesmo para um veterano como ele, aquela era uma situação sem precedentes. – Acho que é melhor eu ver o que ela quer – disse, finalmente.
O mar de corpos se abriu e o presidente saiu da sala. Larry Foster, chefe de seu destacamento de proteção pessoal, que havia sido chamado enquanto aquilo tudo estivera acontecendo, apareceu: – Senhor presidente, o senhor quer que o acompanhemos... – disse, a tensão em seu rosto enquanto se esforçava para concluir o raciocínio da maneira mais sensata possível – ...até o fim? O agente fez um gesto indicando além da porta dos aposentos privados da família do presidente, um setor em que a segurança nunca entrava, a menos que houvesse um pedido expresso. Cox pareceu considerar isso por um momento antes de responder: – Ah, não, não vai ser necessário, Larry – disse, mas, enquanto saía, acrescentou por cima do ombro: – Mas fiquem por perto, hum, para o caso de Jane precisar de alguma coisa. – É claro, senhor presidente. Podemos estar lá em segundos. Cox seguiu para o andar de cima para confrontar a mulher. O Serviço Secreto o seguiu e se posicionou a poucos metros do portal de entrada dos aposentos particulares deles, os ouvidos atentos a qualquer coisa que indicasse que o presidente estava em perigo. Sem dúvida, cada um deles se perguntava a mesma coisa. Eles tinham por obrigação proteger o presidente. Haviam sido treinados para sacrificar a própria vida em nome dele, se preciso. Contudo, não tinham sido exatamente preparados para a situação que poderia estar se materializando naquele instante a apenas alguns metros deles. E se a ameaça ao presidente fosse a própria esposa? Será que poderiam usar de força letal? Poderiam matá-la para salvá-lo? Aquilo não constava do manual do Serviço Secreto, mas cada agente estava pensando que a resposta mais provável seria “sim”. Se era possível acreditar nas histórias que contavam sobre os presidentes, aquilo tinha acontecido uma vez antes. A esposa de Warren G. Harding o flagrara com a amante. Os dois se esconderam em um closet na Casa Branca e a furiosa primeira-dama tentara arrebentar a porta, pelo que se dizia, com um machado de bombeiro. O Serviço Secreto tivera que, delicadamente, tomar-lhe a arma, e Harding sobreviveu. Mais tarde, sucumbira em um quarto de hotel de São Francisco, sob circunstâncias misteriosas. Alguns disseram que a Sra. Harding finalmente conseguira sua vingança por meio de um prato envenenado servido ao marido – o que nunca foi provado, já que a viúva não permitira que se realizasse uma autópsia e rapidamente mandara embalsamar o corpo do marido. Aquele era um belo exemplo de que às vezes a vontade de uma esposa traída supera o desejo de uma nação inteira. Não existiam mais machados de bombeiro na Casa Branca. E, embora houvesse uma pequena cozinha nos aposentos particulares destinados à família do presidente, as primeiras-damas não costumavam cozinhar. Ou, se cozinhassem, era pouco provável que um marido que soubesse como Harding havia morrido se arriscasse a comer. Larry Foster espremeu os miolos, tentando se lembrar se havia abridores de cartas nos aposentos pessoais que pudessem ser usados como arma. Ou um abajur pesado que pudesse fraturar o crânio do líder político do país. Ou quem sabe um atiçador de fogo da lareira capaz de pôr fim à vida do presidente durante seu turno de serviço. O agente podia sentir uma úlcera se formando no estômago enquanto ficava ali no hall, contemplando o fim de sua carreira. Embora estivesse longe de fazer calor dentro da Casa Branca, o suor começou a manchar suas axilas e formar gotículas em sua testa. Ele e a equipe chegavam um pouco mais perto à medida que suas frequências cardíacas aceleravam. Cada um dos agentes podia imaginar as manchetes garrafais dos jornais do dia seguinte: SERVIÇO SECRETO MATA PRIMEIRA-DAMA PARA SALVAR PRESIDENTE. Havia meia dúzia de agentes fortemente armados no hall, prontos para a ação, se necessário. E todos ficaram de coração na mão quase simultaneamente quando esse mesmo pensamento lhes ocorreu. Depois de 20 minutos de ansiedade, o telefone de Larry Foster tocou. Era o presidente. – Sim, senhor? – respondeu ele rapidamente. Ele ouviu atentamente, suas feições por fim se dissolvendo numa máscara de perplexidade. Mas o homem era o presidente, portanto Foster só podia dizer uma coisa:
– Imediatamente, senhor. Ele desligou e olhou para seu assistente: – Bruce, ligue para a base aérea de Andrews e mande preparar um avião. – Quer dizer o Força Aérea Um? – Qualquer avião em que o presidente viaje é o Força Aérea Um. – Mas q... – Eu entendi o que você quis dizer – retrucou Foster asperamente. – Não, não vamos levar o 747. Veja se um dos aviões de apoio está disponível. O 757 talvez, um avião sem emblemas. – O presidente vai para Nova York em um 757 não identificado? – perguntou Bruce, estarrecido. – Vamos para algum lugar, mas não creio que seja Nova York – respondeu Foster sombriamente. – Mas não mandamos uma equipe de segurança avaliar nenhum outro lugar. – Vamos viajar em segredo, como fazemos quando vamos ao Iraque e ao Afeganistão. – Mas sempre mandamos uma equipe na frente. Precisamos de no mínimo uma semana de logística para preparar uma viagem do presidente. – Bruce, me diga alguma coisa que eu não saiba. A questão é: nós não temos uma semana, só algumas horas. E eu nem sei para onde vamos. Portanto, ligue para a Andrews e me arrume um avião. Vou ligar para o diretor e ver como devo lidar com isso, porque vou lhe dizer: já vi muita coisa ao longo dos anos, mas esta situação aqui, para mim, é território desconhecido.
SAM QUARRY CHECOU OS equipamentos e os níveis de oxigênio que mantinham Tippi viva. Tudo estava funcionando bem, graças ao gerador ligado em plena carga. Estava escuro lá fora, ainda faltavam horas para que o sol nascesse. Enquanto ele tocava no rosto da filha, pensou em sua conversa telefônica com Jane Cox. Ele nunca tinha falado com uma primeira-dama antes. Pessoas como ele nunca tinham essa oportunidade. Ao longo de anos, lera a respeito da mulher, é claro, seguira a carreira do marido dela. Sam havia esperado mais de Jane Cox ao telefone, que se mostrasse a pessoa educada e refinada que era, mas também experiente em batalhas. Mas ela o desapontara. Havia parecido apenas humana ao telefone. Em outras palavras, assustada. Tão segura em sua torre durante aquele tempo todo, nem vira a merda que estava por vir. Bem, agora tinha visto. E muito brevemente veria ainda mais de perto. Ele respirou fundo. Havia chegado a hora. Até aquele momento, Quarry poderia ter recuado e desistido. Quase o fizera, mas as paredes do porão o trouxeram de volta aos planos. Tirou Orgulho e preconceito do bolso. À luz da velha lanterna de seu pai, leu o último capítulo do romance. Aquele seria realmente o último capítulo que algum dia leria para ela. Quarry fechou o livro e o colocou delicadamente sobre o peito de Tippi, então tomou uma de suas mãos e a apertou. Havia feito isso ao longo de anos, sempre na esperança de que respondesse apertando sua mão, mas isso nunca acontecera. Fazia muito tempo que havia desistido da ideia de que algum dia sentiria os dedos de Tippi se curvarem ao redor dos seus – o que mais uma vez não aconteceu. Pôs a mão dela de volta sobre o peito, embaixo das cobertas. Tirou o pequeno gravador do bolso, colocou-o sobre a cama e o ligou. Durante os minutos que se seguiram, ele e a filha ouviram Cameron Quarry dizer suas derradeiras palavras. Como sempre, Sam recitou a última frase junto com a esposa morta. – Eu amo você, Tippi querida. Mamãe ama você de todo o coração. Não posso esperar para poder abraçá-la novamente, minha menina, quando estivermos bem e saudáveis nos braços de Jesus. Ele desligou o gravador e o guardou no bolso. As lembranças o dominaram e se apoderaram dele, vindo em ondas. As coisas poderiam ter sido tão diferentes, deveriam ter sido tão diferentes. – Sua mãe vai ficar realmente muito feliz de ver você, Tippi. Eu gostaria de poder estar lá também. Ele se debruçou e deu um beijo na filha pela última vez. Deixou a porta aberta, se virou e olhou mais uma vez para o quarto. Mesmo no escuro, podia distinguir a silhueta de Tippi sob a iluminação dos aparelhos que a haviam mantido fora de uma sepultura durante todos aqueles anos. A equipe da clínica tinha tentado convencer os Quarry a desligar as máquinas muitas vezes. Estado vegetativo persistente. Atividade cerebral zero. Na verdade, morte cerebral, tinham dito, usando o jargão médico que Sam Quarry tinha certeza de que servia apenas para intimidar e confundir. Depois de ouvi-los falar sobre o destino irrevogável de sua filha, Sam invariavelmente repetia a mesma pergunta simples: “Se fosse sua filha, você a deixaria morrer?” Os rostos inescrutáveis e as línguas imóveis sempre foram toda a resposta de que precisava. Uma parte dele não queria abandonar a filha agora, mas realmente não tinha escolha. Saiu da varanda e olhou na direção da linha de árvores. No pequeno bunker que havia cavado e reforçado com madeira, estava Carlos, de controle remoto na mão. Um cabo saía do aparelho e ia até a parede da casinha, onde ficava embutido. O bunker era coberto com terra e relva e, por baixo de tudo isso, havia uma camada de chumbo que bloquearia raios X e outros sensores de imagem. Sabendo que os federais trariam equipamento especializado, Quarry fizera o revestimento com coletes de raios X que conseguira em um consultório dentário.
Olhando para aquele monte, mesmo a apenas alguns metros de distância, ninguém seria capaz de dizer que havia um homem de vigia. Além disso, as placas de chumbo bloqueariam quase que qualquer equipamento que os federais tivessem. Havia ainda outro cabo, que Sam Quarry passara pelo tronco de uma árvore e depois por baixo da terra até dentro do bunker, onde se ligava ao pequeno monitor de TV para o qual Carlos agora sem dúvida olhava. Por ali eram transmitidas ao vivo as imagens captadas pela câmera posta na árvore. Carlos deveria ficar dentro do bunker por tanto tempo quanto fosse necessário até que as coisas se acalmassem. O espaço era ventilado e ele dispunha de comida e água em abundância. O plano era que ele fugisse para o México e de lá continuasse rumando para o sul. Quarry esperava que conseguisse. Quarry se posicionou num ponto em que sabia que Carlos o veria na TV. Apontou os polegares para cima e bateu continência. Então foi embora para casa. Sam tinha escrito uma carta que deixara no porão. Não era endereçada a Ruth Ann ou a Gabriel, mas dizia respeito a eles. Queria que as pessoas soubessem a verdade. Aquilo era obra sua e de mais ninguém. Também tinha deixado ali seu testamento. Ele subiu de mansinho e espiou Ruth Ann, que dormia profundamente. Em seguida foi até o quarto de Gabriel e observou o garotinho em seu sono tranquilo. Tirou do bolso uma moeda de prata e a colocou sobre a mesinha de cabeceira. Em voz bem baixa, disse: – Entre para a universidade, Gabriel. Trate de cuidar de sua vida e de esquecer que algum dia me conheceu. Mas, se pensar em mim de vez em quando, espero que lembre que eu não era um homem de todo mau. Apenas recebi uma mão de cartas na vida que não soube como jogar. Mas fiz o melhor que pude. Ele andou pela casa até a biblioteca. O fogo da lareira agora estava apagado depois de levar um balde de água. Flexionou o braço para ver as queimaduras, a marca completa. Acendeu a luz, olhou para as paredes de livros por algum tempo, então a apagou e fechou a porta pela última vez. Meia hora depois, estacionou a picape ao lado do Cessna. Vinte minutos mais tarde, estava decolando. Enquanto ganhava altitude, olhou para baixo, para a casinha que construíra. Não acenou, não fez um gesto de cabeça, não indicou de modo algum que soubesse da presença dela. Tinha de se concentrar. O passado era passado. Ele agora precisava olhar para a frente. Daryl havia iluminado a pista usando tochas a intervalos de três metros. Sam pousou com um forte solavanco por causa dos ventos, taxiou, fez meia-volta, saltou e travou as rodas. Se as coisas corressem de acordo com o plano, ele e Daryl sairiam dali de avião rumo ao Texas. Tudo não deveria demorar mais que algumas horas. De lá, tinham planejado um caminho para atravessar a fronteira às escondidas e entrar no México. Era mais fácil atravessá-la indo para o sul do que para o norte. Uma vez em seu destino, Sam Quarry usaria um telefone celular roubado para ligar para o FBI e dar a eles a localização exata da mina, de modo que Willa e Diane pudessem ser resgatadas. Elas ficariam perfeitamente bem até então, com comida e água suficientes. Era um bom plano, mas só se funcionasse. Bem, ele teria essa resposta em poucas horas. Agarrou sua mochila e caminhou em direção à entrada da mina.
QUANDO SEAN E MICHELLE entraram na estrada de terra batida que levava a Atlee, o sol estava muito perto de subir no leste. – Meio sinistro – disse Michelle, enquanto avançavam pela estrada tortuosa e solitária. – Você deixou recado para Waters? – Deixei, mas não há como saber quando ele vai entrar em contato conosco. E isso aqui pode muito bem não dar em nada. – Meus instintos dizem o contrário. – Os meus também – admitiu ele. – Como você quer fazer? – Vamos primeiro examinar o terreno. Ver o que conseguimos. Rezar por um milagre, encontrar Willa. Michelle apontou para mais adiante. – Aquilo poderia ser Atlee. O lugar tinha surgido quando eles fizeram uma curva. Grandes pinheiros típicos do Sul se enfileiravam em ambos os lados da entrada para carros da velha mansão construída antes da Guerra Civil. Eles tornavam a escuridão ainda mais densa. – Não tem carros na frente da casa – disse Michelle, puxando a pistola do coldre. – Imagino que haja muitos lugares para estacionar por aqui. O toque do telefone os sobressaltou. Era Aaron Betack. Sean ficou ouvindo-o por uns dois minutos e então desligou e olhou para a parceira. – Parece que alguém jogou merda no ventilador na Casa Branca. Jane Cox voltou de um jantar invadindo o Salão Oval. Ela e o presidente subiram para seus aposentos particulares, tiveram uma conversa e minutos depois o presidente anunciou que pegariam um jato sem identificação da Presidência e voariam até um destino não revelado. – Mas que diabo está havendo? – Alguém fez contato com ela enquanto estava fora, no jantar, obviamente. – Mas por que um jato não identificado? – Não devem querer que ninguém saiba disso. Principalmente o público. – O pessoal do Serviço Secreto deve estar enlouquecido. Eles não vão ter tempo de mandar uma equipe de segurança para avaliar o local antes da chegada do presidente. – Exato. Eles estão fazendo o melhor que podem, mas quando você não sabe para onde está indo... – Você não contou a ele o que nós descobrimos. – Ele está atolado de serviço e isto aqui pode acabar não dando em nada. Mas se descobrirmos alguma coisa que esteja ligada ao presidente, avisaremos o mais rápido possível. – Apague os faróis e desligue o motor! – sibilou Michelle. O carro ficou às escuras e silencioso. – O que houve? – Alguém acabou de sair da casa – explicou, apontando para mais adiante. – Vamos seguir a pé. Eles saíram silenciosamente do carro e se esgueiraram em direção à casa. Michelle ergueu a mão. Tinha visto alguma coisa que Sean não notara. Como ele já percebera, a visão noturna da parceira era algo de sobre-humano. – Onde? – Sean sussurrou no ouvido de Michelle. – Ali, na varanda. Ele olhou fixamente naquela direção e viu uma silhueta pequenina aparentemente sentada na escada. – Acho que pode ser Gabriel, o garotinho que o Exército entrevistou – sussurrou Michelle. – De acordo com o relatório, ele na época tinha quase 9 anos. Agora teria 10 ou 11.
Eles esperaram para ver se alguém se juntaria a Gabriel, a escuridão ao redor começando a se desfazer rapidamente. De algum lugar, um galo cantou. – Faz tempo que não ouço isso – confessou Sean. – Precisamos fazer alguma coisa – disse ela. – Está ficando claro e daqui a pouco ele vai poder ver o carro. – Você pega a esquerda, eu vou pela direita. Eles se separaram. Um minuto depois, aproximavam-se da casa, cada um por um lado do vulto, que, na luz que começava a surgir, realmente se revelou ser um garoto. Um garoto que estava chorando. De fato, chorando tanto que nem percebeu Michelle se aproximar. Quando ela tocou seu ombro, contudo, o menino pulou e quase fugiu. Só não fez isso porque Sean estava do outro lado e conseguiu agarrar-lhe o braço antes que ele tivesse chance de correr. – Quem são vocês? – perguntou Gabriel, encarando-os com os olhos ainda cheios de lágrimas agora arregalados de susto. – Você é Gabriel? – perguntou Michelle, pondo a mão no outro braço do menino. – Como sabe meu nome? – Não vamos lhe fazer mal – disse Sean. – Estamos aqui apenas procurando uma pessoa. Uma garota chamada Willa. – Vocês são da polícia? – Por que acha que somos? – perguntou Michelle, a mão ao redor do braço de Gabriel pressionando ligeiramente. O menino fungou e inclinou o corpo para a frente, olhando para os pés descalços. – Não sei. – Você sabe onde Willa está? – Não conheço ninguém chamado Willa. – Não foi isso o que perguntamos – disse Sean. – Perguntamos se você sabia onde ela estava. – Não, eu não sei, está bem? Não sei. – Mas já ouviu falar dela? – perguntou Michelle.
Gabriel olhou para ela, as pálpebras pesadas, as feições carregadas de tristeza. – Eu não fiz nada de errado. Nem minha mãe. – Ninguém disse que tinha feito. Onde está sua mãe? – perguntou Michelle. – Dormindo. – Há mais alguém na casa? – Acho que seu Sam foi embora. – Sam Quarry? – perguntou Sean. – Conhece ele? – Ouvi falar. Por que você acha que ele saiu? – A picape não está aqui – respondeu o garoto com simplicidade. – Por que você estava chorando quando chegamos? – Só... só porque estava, só isso. – Deve haver um motivo – disse Michelle com delicadeza. – Você sempre tem um motivo para chorar? – perguntou Gabriel em tom de desafio. – Tenho. – Bem, eu não. Eu às vezes choro, só isso. – Então Sam saiu e sua mãe está dormindo. Tem mais alguém na casa? Gabriel começou a dizer alguma coisa, mas parou. – É realmente importante sabermos quem está aqui – acrescentou Sean. – Vocês são da polícia ou o quê? Michelle mostrou sua credencial de detetive particular. – Estamos trabalhando com o FBI e o Serviço Secreto no sequestro de Willa Dutton. Você conhece um índio koasati que se chama Eugene? – Não, mas tem outro. O nome dele é Fred. – Ele está na casa?
– Não, ele mora num velho trailer aqui na fazenda, fica mais para lá, naquela direção – disse, apontando para o oeste. – Então, quem mais está na casa? – A dona Tippi estava, mas agora não está mais. – Quem é Tippi? – A filha de seu Sam. Ele trouxe dona Tippi do hospital para casa não faz muito tempo. – Ela estava doente? – Ela ficou doente muito tempo atrás. Precisa de aparelhos para respirar e fazer tudo. Ficou muitos anos no hospital. Seu Sam e eu, a gente ia lá e lia para ela. Jane Austen, Orgulho e preconceito. Vocês já leram? – Por que ele a trouxe para casa? – perguntou Michelle. – Não sei. – Mas agora ela não está aqui? – Ela não está no quarto dela. Eu olhei. – Era por isso que você estava chorando? Porque pensou que alguma coisa tivesse acontecido com ela? Gabriel levantou a cabeça para olhar para Michelle. – Moça, seu Sam é um homem bom. Ele recebeu minha mãe e eu quando a gente não tinha para onde ir. Ele ajuda as pessoas. Não faria mal à dona Tippi. Ele sempre fez tudo para ela. – Mas você estava chorando. Deve haver um motivo para isso. – Por que eu devo contar a vocês? – Porque nós queremos ajudar – respondeu ela. – Isso é o que você diz, mas não sei se é o que quer de verdade. – Você é um rapazinho muito esperto – disse Sean. – Seu Sam disse para não confiar em ninguém antes de a pessoa dar um bom motivo para isso. – O que vocês estão fazendo aqui? – perguntou uma voz áspera. Eles se viraram para ver Ruth Ann parada ali, vestindo um roupão velho. Contudo, não foi o roupão que eles notaram. A atenção foi imediatamente atraída pela espingarda de um cano que ela lhes apontava.
ELES AFINAL SE DECIDIRAM por um Boeing 757 que a secretária de Estado havia usado em suas viagens até receber um modelo mais novo, um 767-300 versão estendida. O 757 continuara sendo mantido na base aérea de Andrews, junto com os outros aviões da frota presidencial. Todas as identificações haviam sido removidas dele, que agora era usado principalmente no transporte de agentes, assistentes e da imprensa, bem como de equipamentos. A secretária de Estado tivera um escritório e um quarto particular no avião e essa configuração não havia sido alterada. Era ali que o presidente e a Sra. Cox estavam acomodados quando decolaram da base aérea de Andrews apenas algumas horas depois de Jane Cox ter irrompido no Salão Oval e acertado uma bola de golfe no olho esquerdo de Thomas Jefferson. Além do casal, o avião levava um grupo do Serviço Secreto reunido às pressas, agentes que, mais que qualquer coisa, estavam perplexos diante dos acontecimentos. O presidente olhava para a esposa, que estava debruçada em seu assento olhando fixamente para o piso. Quando o piloto liberou, ele desafivelou seu cinto de segurança e olhou ao redor, para o aposento. – Belo escritório. Não é tão grande quanto o meu no Força Aérea Um, mas muito simpático. – Sinto muito, Dan. Lamento que não tenha podido viajar no seu brinquedo preferido. Os braços de Jane estavam cruzados sobre o peito e ela o encarava com uma expressão que ia do temor à impotência. – É nisto que você acha que tudo se resume? Brinquedos? – Não sei o que pensar neste momento. Não, na verdade acho que chegamos ao fundo do poço.
Ele tirou os sapatos, esfregou os pés e andou pela cabine. – Eu nem sequer me lembro. – Tenho certeza de que não. Mas eu me lembro. – Eu mudei. – Tudo bem. – Eu mudei, Jane. E você sabe muito bem disso. – Tudo bem, você mudou. Mas isso não ajuda nesta situação. Ele suspirou e foi sentar ao lado dela, massageando-lhe os ombros. – Eu sei que não ajuda. E sei que tem sido um inferno para você. Ela lentamente se virou para ele. – Ele levou Willa por causa disso. – Você me disse. Não, você me gritou. – Você falou que não poderia comprometer seu mandato por ela. – É verdade, Jane. Não posso. Mesmo se esta confusão não fosse minha responsabilidade, eu não poderia. – Nossa responsabilidade. – Jane... Ela tomou as mãos dele nas suas. – Nossa – repetiu ela bem baixinho. – Não entendo por que você continuou comigo. – Eu amo você. Às vezes não sei por que, mas amo. Liguei a estrela de meu destino à sua, Dan. Nós estamos juntos no céu. – E poderemos cair juntos. – É possível. – Ganhar ou perder esta eleição só depende de mim. Há muito tempo que não acontece algo assim neste país. Jane não disse nada. Daniel olhou para ela. – Você acha que ele vai cumprir a palavra? – perguntou o presidente. – Se fizermos o que ele pediu?
– Não sei, não o conheço. Tudo o que sei é que ele parecia ter pensado em todos os detalhes. Não apenas em nós, mas também no que ele quer. – O Serviço Secreto está muito preocupado. Jane pareceu prestes a rir. – Eu também. Independentemente de como esta história se desenrole, eles vão continuar tendo um trabalho. Não posso dizer o mesmo com relação a você. – A nós – ele a fez recordar. – Você só teria precisado de um pouquinho de autocontrole, sabe? – Era como uma doença. Você sabe disso. Para ser honesto, tenho que dizer que estou pasmo de que nada tenha vindo à tona antes. – Pasmo? É mesmo? Quando eu fiquei atrás de você o tempo todo limpando a sujeira? E você está pasmo? – Não foi nesse sentido que eu quis dizer. – Então em qual você quis dizer? – Agora não é o momento para nos dividirmos, Jane. Temos que ficar unidos se quisermos sobreviver. – Acho que ainda teremos muitos anos para brigar. – Se é o que você quer – respondeu ele friamente. – O que eu quero é não estar neste avião indo para onde estamos indo. – Que impressão você teve dele ao telefone? – Determinado. Cheio de raiva e ódio. Mas quem pode culpálo? – Você acha que ele estava falando a verdade? Quero dizer, parece uma coisa tão pequena para se fazer em troca, você sabe... – Você prefere que ele mate Willa? – desafiou ela em tom sombrio. – Não foi o que eu quis dizer! Não ponha palavras na minha boca. Uma batida à porta interrompeu a discussão.
Era Larry Foster, o chefe da equipe de proteção ao presidente. – Senhor, a tripulação informou que nossa chegada a Huntsville está prevista para daqui a cerca de uma hora e meia. Foi sorte nossa que eles tenham acabado de inaugurar uma pista de pouso com capacidade para um avião deste porte. – Ótimo, muito bem. – E então nós iremos para o outro local. – Vocês receberam as coordenadas. – Sim, senhor, recebemos. – Bem, algum problema? – Senhor, posso falar francamente? Cox lançou um olhar rápido para a mulher e então se virou de volta para Foster. – Prossiga – disse secamente. – O negócio inteiro é um problema. Nós não temos ideia de para onde estamos indo, nem do que encontraremos. Estou com uma equipe insuficiente e não tenho nem um quarto de nosso apoio e equipamento habituais. Minha recomendação é de que demos meiavolta e retornemos a Washington. – Isso é impossível. – Senhor, recomendamos seriamente que não levemos este plano adiante. – Eu sou o presidente e quis fazer uma viagem não planejada. Não é nada tão terrível ou importante assim. Foster pigarreou. Suas mãos cerradas revelavam a raiva que sentia e lutava para não demonstrar. – A outra questão é que não temos um comboio de carros, senhor. E o destino em questão fica 130 quilômetros a sudoeste do aeroporto de Huntsville. – Temos que chegar lá – Cox consultou o relógio – dentro de exatamente quatro horas e sete minutos. – Mandei um C-130 à nossa frente com dois helicópteros. Vai ser preciso algum tempo para descarregá-los e estarmos prontos para partir. – Você tem seu prazo. E não podemos perdê-lo.
– Senhor, será que não poderia me informar o que está acontecendo? Eu sei que o diretor falou com o senhor e que ele apoia minha posição, mas... Cox apontou um dedo para ele. – O diretor é nomeado por mim. Posso substituí-lo amanhã. E farei isso se me criar mais problemas. Quero que você apenas cumpra suas ordens. Eu sou o comandante em chefe. Se não quiser cumpri-las, vou mandar o Exército assumir esta missão. Eles não vão questionar minha autoridade. Foster se empertigou. – Senhor presidente, de acordo com a lei federal, nós somos os principais encarregados de sua proteção – argumentou. Então olhou para Jane e prosseguiu: – Da proteção de ambos. O que está acontecendo no momento é uma situação sem precedentes e potencialmente perigosa. Nós não tivemos oportunidade de checar o local para onde estamos indo. Não houve reconhecimento de terreno, nem avaliação de ameaças, nem... – Olhe, Larry – disse Cox em tom mais calmo. – Sei que tudo isso é confuso. Eu não queria agir assim – afirmou e gesticulou então para apontar a esposa. – Ela também não. Mas aqui estamos nós. – Isto tem a ver com a sua sobrinha? – Larry estava perguntando a Jane Cox. – Se tiver, creio que no mínimo o FBI deve ser informado do que estamos fazendo. – Não podemos fazer isso. – Mas... Cox pôs a mão no ombro do homem. – Eu confio em você para nos proteger, Larry. Você terá tempo para checar as coisas, tanto tempo quanto eu puder lhe dar. Eu não sou louco. Não vou me expor a uma situação em que eu possa morrer, muito menos a alguém que possa matar minha mulher. Vai correr tudo bem. – Está bem, senhor, mas se as coisas ficarem fora de controle, precisarei interromper tudo – respondeu Foster devagar. – Tenho essa prerrogativa, senhor. É uma autoridade assegurada por lei federal. – Vamos apenas ter esperança de que não cheguemos a isso. Depois que Foster saiu, Jane disse:
– E se Larry não deixar você fazer o que precisa? – Isso não vai acontecer, Jane. – Por que não? – Sou o presidente. Além disso, sempre tive sorte na vida. E a minha sorte ainda não acabou. Ainda não. Jane virou o rosto. – Não tenha tanta certeza – disse ela. Ele olhou furioso para a esposa. – Afinal, do lado de quem você está? – Estive pensando nisso a noite inteira. E ainda não cheguei a uma conclusão. Ela saiu da cabine. O presidente ficou sentado à escrivaninha e rezou para conseguir aguentar firme só mais uma vez.
– VOCÊ É RUTH ANN? – perguntou Michelle, os olhos agora cravados na mulher e não na arma. – Como sabe meu nome? – Mamãe, eles são do governo. Estão aqui por causa de seu Sam. – Quieto, menino, não fale de seu Sam. – Ruth Ann – disse Sean –, não queremos fazer mal a ninguém, mas achamos que o Sr. Quarry sequestrou uma garota chamada Willa Dutton. – Não mesmo! – exclamou, o dedo ficando mais firme no gatilho. – Mamãe, eu vi o nome dela lá embaixo, no porão. E o retrato. Ela apareceu na TV. – Calado, Gabriel. Não vou avisar de novo. – É a vida de uma criança que está em jogo – disse Michelle. – Uma garotinha pouco mais velha que Gabriel. – Seu Sam não machucaria ninguém. Ele não é assim. – A dona Tippi não está mais no quarto, mãe – disse Gabriel. O queixo de Ruth Ann caiu. – O quê? – Ela não está mais no quarto. Seu Sam levou dona Tippi embora. – Levou para onde? – Não sei. – Ruth Ann, se você nos deixar examinar a casa e não encontrarmos nada de errado, iremos embora – disse Sean. – Tudo o que queremos é encontrar Willa e levá-la de volta para sua família.
– Aquela garotinha cuja mãe foi morta? – perguntou Ruth Ann, seu punho na arma se afrouxando. – Ela mesma. – O que seu Sam tem a ver com aquilo? Diga! – Ele pode não ter nada a ver com aquilo. E se não tiver, nada vai acontecer com ele. É simples. Se não acredita que ele esteja envolvido, não deve ter problema em nos deixar dar uma olhada na casa – disse Michelle. – Por favor, mamãe, deixe. – Por que você quer tanto deixar eles fazerem isso, Gabriel? – Porque é a coisa certa. Seu Sam diria isso se estivesse aqui. Ruth Ann encarou o filho por um longo momento, então baixou a espingarda e deu um passo atrás. Sean e Michelle entraram rapidamente no vestíbulo de Atlee e olharam ao redor. – Parece que entramos num túnel do tempo – balbuciou Sean. Michelle mantinha-se focada na mulher, que tinha vindo atrás deles. – Ruth Ann, gostaria que largasse essa arma e se afastasse dela. Agora. Michelle estava com a mão na coronha da pistola. – Largue, mamãe! – pediu Gabriel com lágrimas nos olhos. Ruth Ann obedeceu e Michelle pegou a arma e retirou a munição. – Gabriel – chamou Sean –, onde é o porão de que você estava falando? Eles seguiram em bando pela escada que descia até a porta maciça. – Eu não tenho a chave. Está com seu Sam. – Para trás – ordenou Michelle com firmeza. Quando eles recuaram, ela fez pontaria e disparou dois tiros, um de cada lado da tranca. Então pôs a arma no coldre, deu um passo atrás no corredor, saltou e acertou um pesado pontapé no local em que a fechadura se conectava ao batente. A porta se abriu com um estrondo, enquanto Gabriel arregalava os olhos para a mulher. Ele olhou admirado para Sean, que deu de ombros e sorriu. – Ela sempre foi exibida – disse ele. Entraram rapidamente no aposento e Gabriel acendeu as luzes. Quando Sean e Michelle viram o que havia nas paredes, ficaram boquiabertos. Fotos, fichas de informações, anotações escritas com giz em quadros-negros, alfinetes, barbantes conectando dados. – Gabriel e Ruth Ann, vocês têm alguma ideia do que isto significa? – perguntou Sean. – Não, senhor – respondeu Ruth Ann. – Quem teria feito tudo isto? – perguntou. – Seu Sam – disse Gabriel. E acrescentou: – Eu desci aqui uma noite quando ele não estava em casa. Foi quando vi o retrato da garota bem ali. Ele apontou para uma seção da parede. Sean e Michelle avistaram uma foto de Willa. Depois que o olhar de Sean fez o circuito ao redor das paredes, ele se imobilizou em um ponto. – Ruth Ann, Gabriel, vocês precisam esperar lá fora. – O quê? – perguntou Gabriel. – Por quê? – Lá fora, agora mesmo! Ele os incitou a sair e então fechou a porta, voltando para olhar a fotografia da mulher. – Sean, o que foi? – Você se lembra do que lhe contei sobre como conheci Jane Cox? – Lembro, você levou o marido dela, o senador bêbado, para casa depois que o encontrou em um carro com outra mulher. Sean apontou para a fotografia. – Aquela é a mulher. Era uma fotografia de Diane Wohl mais jovem. Michelle cravou os olhos na foto. – Ela estava com Cox?
Sean assentiu. – O nome ao lado da foto diz Diane Wohl, mas não foi esse o nome que vi no documento naquela ocasião. Quero dizer, o nome acho que era Diane mesmo, mas não me lembro de Wohl. – Ela pode ter mudado de nome, ter se casado – ponderou Michelle. Então olhou para outro ponto, onde um barbante que saía do nome Wohl se encontrava com outro cartão. – Diane Wright? Deste você se lembra? – ela leu na ficha. – É isso! Era esse o nome dela! Ele apontou para um artigo de jornal recente recortado e preso com uma tachinha ao lado da foto. Relatava o desaparecimento e suposto sequestro de Diane Wohl, na Geórgia. – Ele também está com Diane Wright – concluiu Sean. Depois apontou para as paredes: – Isto aqui conta uma história, Michelle. Quarry reuniu e montou tudo isto. Michelle apontou para o lado esquerdo do aposento. – Acho que começa lá. Bem no começo daquela parede estava escrita uma data exata, de quase 14 anos antes. Michelle leu as quatro palavras ao lado da data. – “Ele me estuprou, papai.” Ao lado disso estava o nome Tippi Quarry e uma foto dela em sua cama de hospital com os aparelhos que a mantinham viva. Ela se virou para olhar para Sean. A expressão de pânico no rosto dela se refletiu na dele. – Sean, estou começando a ficar nauseada. – Aguente firme, Michelle. Temos que continuar. Eles começaram a seguir a história ao redor das paredes no porão de Atlee. Quando acabaram uma parede inteira, Michelle disse em voz baixa: – Ele a estuprou. Então tiveram que fazer um aborto desses de fundo de quintal. A primeira-dama estava envolvida. – Ela quase morreu de hemorragia e acabou em coma – acrescentou Sean, a voz sombria.
– Mas se Cox a estuprou, por que ela não deu queixa à polícia? – perguntou Sean. – Talvez alguém a tenha convencido a não dar. Alguém como Jane Cox. Ela é boa em controlar as pessoas. – Mas como Willa se encaixa em tudo isto? Eles foram para a parede onde estava a fotografia de Willa. Era aflitivo ver o rosto da garota desaparecida sorrindo ali, naquela sala, com uma história sórdida de sofrimento relatada tão claramente em giz e fichas. Enquanto eles seguiam a linha do trabalho de investigação de Quarry, Michelle disse: – Há quanto tempo aconteceu aquele incidente com Cox na Geórgia, Sean? Ele calculou de cabeça. – Cerca de 13 anos. – Willa acabou de fazer 12 – disse Michelle. – Acrescentando nove meses de gravidez... Sean, Willa é filha do presidente. Você o encontrou com a mulher depois de eles terem feito sexo. E ela engravidou. – Imagino que dessa vez eles tenham decidido que seria melhor que o irmão de Jane adotasse a criança, em vez de terem outro aborto seguido de coma por causa do trabalho de um açougueiro. – Mas você tem certeza de que ele não pegou Diane Wright à força? – Pareceu ser consensual. – Se Dan Cox abusou sexualmente de Tippi Quarry e mais tarde ela entrou em coma depois de um aborto malfeito, Sam Quarry está em busca de vingança. Sean pareceu confuso: – Sequestrando Willa? E matando a mãe dela? Como isso faz sentido? – Ao dar a ele poder de barganha. – Poder de barganha para quê?
– Eu não sei – admitiu ela. – Mas pode ter alguma coisa a ver com o lugar para onde o presidente e a esposa estão indo agora. Michelle olhou fixamente para as paredes. – Como você acha que ele conseguiu descobrir tudo? Isto deve ter levado anos. – Ele deve amar muito a filha – disse Sean. – Ele não desistiu. – Mas ele também é um assassino que está com Willa. Temos que resgatá-la. – Você ainda tem uma câmera no carro? Michelle correu para fora e voltou em dois minutos com sua Nikon. Ela tirou fotografias de todas as paredes, dando zooms nos textos escritos e nas fotos. Enquanto isso, Sean revistou os armários e retirou braçadas de pastas de arquivos que pretendia levar consigo. Então viu a carta que Quarry tinha deixado sobre a mesa, junto com o testamento. Ele os pegou e leu, antes de guardar os documentos no bolso. Ele e Michelle estavam violando praticamente todas as regras de preservação de cena do crime. Mas aquela não era uma cena do crime comum e ele tinha decidido seguir as próprias regras. Não sabia ao certo no que tudo aquilo iria dar, mas tinha certeza de como queria que se concluísse. – Tudo registrado – disse Michelle, ao tirar as últimas fotos. Sean entregou a ela alguns dos arquivos para carregar. – Michelle, por que ele traria Tippi do hospital para casa e então a levaria para outro lugar? – Não sei. Não faz sentido. Enquanto Michelle falava, Sean foi andando até o fundo do aposento. Ele dobrou uma quina e espiou atrás de uma velha divisória. – Que diabo é isto? – exclamou. Ela foi se juntar a ele enquanto Sean corria em direção aos cilindros de metal. Ele largou os arquivos que carregava e virou vários cilindros. Alguns continham oxigênio, outros não. – O que é? – perguntou Michelle.
Em vez de responder, Sean correu de volta para a porta e a abriu. Então trouxe Gabriel e Ruth Ann até onde estavam os cilindros. Ambos olharam sem compreender e sacudiram a cabeça quando Sean perguntou por que Quarry tinha aquilo. Sean examinou o restante do equipamento espalhado sobre uma bancada de trabalho: restos de uma câmera de vídeo destroçada, controles remotos velhos, cabos de vídeo, rolos de revestimento de metal. – Para que é tudo isto? – perguntou. Gabriel sacudiu a cabeça. – Não sei, mas seu Sam sabe construir tudo o que quiser. Conserta qualquer coisa mecânica. Eletrônica também. E é um excelente carpinteiro. – Ele tem uma cabeça boa para isso – concordou Ruth Ann. – Não tem nada que aquele homem não possa consertar ou construir. – Alguma ideia de para onde ele pode ter ido? Você disse que a picape não estava aqui? – É, mas ele também tem um avião – disse Gabriel. – Que tipo de avião? – perguntou Michelle rapidamente. – Um Cessna monomotor pequeno. – Para que ele precisaria de um avião? – Ele foi piloto no Vietnã – respondeu Ruth Ann. – E ele vai de avião para a antiga mina de vez em quando. – Que mina? Gabriel explicou sobre a mina de carvão. Ele concluiu dizendo: – Foi uma prisão dos confederados antigamente, seu Sam me contou. – Uma prisão – disse Sean, olhando com ansiedade para Michelle. – Você acha que ele pode ter ido para lá? – Se o avião tiver sumido, sim. É o único lugar para onde ele vai de avião. – Você acha que ele levou Tippi para lá? – Acho que não. Com o equipamento de que ela precisa, não acho que caberia tudo no avião. É bem pequeno.
– Onde você acha que ela está? Gabriel refletiu a respeito disso. – Seu Sam construiu uma casinha não muito longe daqui, numa terra que herdou da família. Não tem nada lá, nem eletricidade, então acho que dona Tippi não deve estar lá, porque ela precisa de eletricidade para os aparelhos. – Por que ele construiria um lugar assim? – perguntou Michelle. Gabriel deu de ombros. – Não sei. Ele construiu sozinho. Demorou um tempão. Sean olhou nervosamente para Michelle antes de se virar para Gabriel. – Você acha que conseguiria nos ensinar a chegar à mina? – Eu consigo, se for junto. – Gabriel! – exclamou a mãe. – Eu não sei explicar o caminho, mamãe. Mas se for junto, sei chegar lá. Ruth Ann olhou ansiosa para Sean: – Ele é muito bom conosco, o seu Sam. Se ele fez alguma coisa má, deve ser por um bom motivo, pode ter certeza. – Ele vai deixar esta casa e as terras para nós – disse Gabriel. – E deu a Fred mil dólares em dinheiro. Fred me contou – acrescentou Ruth Ann. – Vocês acham que ele acreditava que não iria mais estar por aqui por muito tempo? – perguntou Sean. – Quem sabe quanto tempo se vai viver? – retrucou a mulher. – Qualquer um de nós pode cair morto amanhã. É a vontade de Deus. – Quem mais está lá na mina? – perguntou Sean. – Talvez o Daryl, o filho dele – respondeu Gabriel. – Talvez o Carlos. – E um sujeito chamado Kurt Stevens? – Seu Sam disse que Kurt saiu da cidade, foi embora – disse Gabriel.
– Eles têm armas lá em cima na mina? – perguntou Michelle. – Seu Sam gosta de armas, Daryl também. Os dois conseguiriam arrancar as asas de uma abelha com um tiro. – Maravilha – disse Sean. – Gabriel, você pode vir conosco de carro até onde ele deixa o avião? E se não estiver lá, pode nos levar até a mina? Gabriel olhou para a mãe, que punha a mão protetora sobre seu ombro. – Mãe, acho que tenho que fazer isso. – Por que, menino? Por quê? Isso não é assunto seu. – Seu Sam não é um homem mau. Você mesma disse. Eu conheço ele quase minha vida inteira. Se puder ir lá e ajudar a dar um jeito nas coisas, então é o que quero fazer. É isso que quero fazer. Uma lágrima escorreu pelo rosto de sua mãe. – Vamos cuidar bem dele, Ruth Ann – garantiu Sean. – E vamos trazê-lo de volta. Eu prometo. Ruth Ann virou os olhos vermelhos para Sean. – É melhor tratar de trazer, com certeza, moço. Porque este menino é tudo o que eu tenho.
OS DOIS HELICÓPTEROS DECOLARAM e seguiram rumo sudoeste. No primeiro estavam o presidente e a esposa com um grupo de agentes do Serviço Secreto e tanto equipamento quanto conseguiram reunir às pressas. O segundo transportava mais agentes, os dois melhores cães farejadores de bombas do FBI, mais equipamentos e Chuck Waters, que fora avisado do que estava acontecendo por Larry Foster e, sem o conhecimento de Dan e Jane Cox, tinha embarcado na viagem. Ao lado dele ia Aaron Betack, que havia se juntado ao grupo também sem o conhecimento da primeira-dama. O céu clareava a cada minuto, os ventos estavam brandos e o sol nascente dissipava o frio da madrugada. O telefone de Betack tocou. – Alô? – Aaron, é Sean King. Precisamos conversar. – Estou meio ocupado. – Eu estou no Alabama. – O quê? Nós também. – Nós quem? Betack olhou para Waters e então disse ao telefone: – Como eu lhe contei antes, Dan e Jane Cox estão em movimento – disse. – O que você está fazendo no Alabama? – Se eu tivesse que arriscar um palpite, diria que estou seguindo a mesma trilha que vocês. Para onde exatamente estão indo? – Não sabemos, Sean, já lhe disse. – Eu sei, mas pensei que esse status agora já tivesse mudado. Você está com o presidente e não sabe para onde está indo?
– Está tudo errado. Estamos voando às cegas aqui, violando todos os protocolos do Serviço Secreto. Larry Foster é o chefe do destacamento e está à beira de um infarto. Depois do que houve no Salão Oval, só o que sabemos é que chegamos ao Alabama e pegamos um helicóptero para um lugar de que temos apenas as coordenadas no mapa. – Aaron, isso é loucura. Vocês poderiam estar seguindo direto para uma cilada. – Agora me conte uma novidade. Você acha que o Serviço Secreto está feliz com isso? Mas ele é o presidente, cara. – Está me dizendo que o diretor do Serviço Secreto autorizou isso? E os conselheiros do presidente? E o vice-presidente? – Você sabe que é tudo um número de malabarismo. Ele é o comandante em chefe e nós somos seus criados. Mas trabalhamos loucamente por trás dos bastidores, requisitamos apoio do FBI e dos militares e, dadas as péssimas circunstâncias, achamos que conseguimos montar um esquema de segurança ao menos decente. Waters olhou para Betack e fez um gesto para que ele lhe passasse o telefone. – King? Aqui é Chuck Waters. – Oi, Chuck, eu lhe deixei um recado. – Que diabo você está fazendo? – Se eu lhe contasse, Chuck, você não iria acreditar. Aaron me relatou o que está acontecendo por aí. Vocês podem estar seguindo para uma emboscada. – Eu sei, mas o que o presidente não sabe é que temos dois helicópteros cheios de equipes de resgate de reféns voando à nossa frente. Quando aterrissarmos e antes que o presidente ponha um pé fora de seu helicóptero, teremos feito o reconhecimento da área e estabelecido um perímetro de segurança que nem mesmo uma formiga poderia furar. Se, apesar disso, não gostarmos do que virmos, vamos cair fora, quer o presidente queira ou não. – E se dispararem contra vocês durante o voo? – Também nos preparamos para essa hipótese. Todos os helicópteros são equipados com os mais modernos sistemas de combate a ataques ar-ar e terra-ar. Além disso, temos aviões militares por todos os lados voando acima de nós. E um batalhão de aeronaves Apache em formação cerrada seguindo as coordenadas do marco que nos deram e buscando qualquer ameaça. E, cara, se você vir um Apache vindo para cima de você, as opções são se render ou borrar as calças. – Tudo bem, mas nós descobrimos uma coisa de que você precisa saber. Talvez seja um calcanhar de aquiles. Sean contou sobre os cilindros de metal. – Onde os encontrou? – Eu explico mais tarde. Espero que vocês tenham alguma coisa para neutralizá-los. – Vou ver o que posso fazer. Onde você está agora? – Seguindo para uma mina abandonada com um garotinho chamado Gabriel. – Gabriel? E por que uma mina? – Porque acho que é possível que a menina esteja lá. – Willa? – Estou rezando e esperando que sim, Chuck. Vamos mantendo contato. E boa sorte.
SAM QUARRY MANTINHA OS olhos tão cravados no telefone via satélite improvisado em sua mão que era como se o aparelho fosse uma cobra venenosa. Ainda não estava nem perto da hora de Carlos ligar, mas uma parte dele queria que a chamada já tivesse vindo. Ele queria ver aquilo acabado. Tinha checado com Daryl para se assegurar de que tudo estivesse pronto. Depois fora ao quarto de Willa. Diane e ela estavam juntas, sentadas à mesa, quando ele chegou. Havia decidido que as duas deviam ficar juntas naquele dia, o último dia. Elas ergueram o olhar para ele no momento em que entrou e fechou a porta. Ele se encostou em uma parede e acendeu um cigarro. – O que está acontecendo? – perguntou Willa, com a voz trêmula. Ela não era mais a mesma desde que descobrira que algo talvez tivesse acontecido à sua família. – Está acabando – disse Quarry. – Pelo menos espero que esteja. – Espera que esteja? – perguntou Diane, o rosto fatigado e a voz igualmente cansada. – Sim, espero que sim. Rezo para que sim. – E se as suas esperanças não se realizarem? – perguntou Willa. – É, diga-nos, senhor Sam– desafiou Diane friamente. – E então? Ele a ignorou e olhou para Willa. – Eu trouxe minha filha para casa. Minha filha doente. – Por que fez isso? Ele deu de ombros.
– Estava na hora. Também já fiz minhas despedidas e tudo mais. Está tudo certo. – Despedidas? – perguntou Willa, numa voz atemorizada. – Sabe, não importa como tudo isso termine, para mim as coisas estarão acabadas. Tudo feito. Não vou precisar mais ver ninguém. – O senhor vai se matar? – perguntou Diane, com um tom esperançoso na voz. Os lábios de Quarry se abriram num sorriso. – Não posso matar um homem que já está morto. Diane apenas virou o rosto, mas Willa perguntou: – Quem vai cuidar de sua filha se o senhor não puder? Diane se virou para ele com uma expressão curiosa. Era óbvio que não havia considerado aquela questão. Quarry deu de ombros. – Vai ficar tudo bem com ela. – Mas... Ele se encaminhou para a porta. – Vocês duas apenas tenham paciência. Ele saiu. Diane se aproximou. – Não vai ficar tudo bem, Willa. A menina olhava fixamente para a porta. – Willa, está me ouvindo? Aparentemente, a garota não a ouviu. Continuou olhando sem piscar para a porta. O avião não estava lá quando eles chegaram. Agora Michelle dirigia em alta velocidade. Gabriel estava ao lado dela dando as indicações do caminho e Sean ficara no banco de trás, olhando para o céu em busca de um helicóptero transportando um presidente e uma primeira-dama que tinham muitas contas a prestar. – Vire ali, à esquerda – disse Gabriel.
Michelle fez uma curva fechada à esquerda que atirou Sean do outro lado do banco do carro. – Se nós morrermos antes de chegar lá, vai ser realmente contraprodutivo – disse ele, aborrecido, ajeitando-se e afivelando o cinto de segurança. – Quanto ainda falta, Gabriel? – perguntou Michelle. – Mais uma hora – respondeu ele. – Seu Sam chega lá muito mais depressa de avião. Eu nunca andei de avião. Você já? Michelle estava avaliando a estrada à frente. Cada vez que alcançavam uma reta, ela pisava fundo no acelerador, mas, à medida que entravam no terreno de sopés, as estradas retas rapidamente desapareciam. – Já, já andei de avião. Ela fez um gesto com a cabeça na direção de Sean. – E ele já andou no Força Aérea Um com o presidente. Gabriel se virou para Sean com admiração. – Conheceu o presidente? Sean assentiu. – Mas lembre-se, ele é um ser humano, como você e eu. Só que é um ser humano que pode apertar um botão e explodir o mundo. Michelle se virou e lhe lançou um olhar tipo “porra, mas que diabo?”, antes de dizer: – Se um dia você quiser dar uma volta de avião, Gabriel, tenho certeza de que podemos dar um jeito. – Seria muito legal. Agora entre à direita na próxima estrada. – Que estrada? – perguntou Sean, no instante em que mais um enorme solavanco quase o tirava do assento. – Quer dizer esta pista de obstáculos em que estamos rodando faz quase 15 quilômetros? Ela fez a curva e a estrada se tornou mais íngreme. Acionou a tração nas quatro rodas e prosseguiram sacolejando. – Fale sobre a mina, Gabriel – pediu Michelle. – Tipo o quê?
– Tem uma entrada só ou mais de uma? – Só uma, que eu saiba. Tem uma pista de grama que seu Sam fez. Eu às vezes vinha aqui com ele na picape e a gente aparava a grama bem curta. – Conte mais – disse Michelle em tom encorajador. – Quanto mais soubermos, mais bem preparados estaremos. Ele explicou sobre os corredores e os quartos que Quarry construíra. – Por que ele fez tudo isso? – perguntou Sean. – Ele disse que o mundo estava para acabar e que nós iríamos ficar lá. Ele tem comida, água, lanternas, coisas desse tipo. – E armas – disse Michelle. – E armas – concordou Gabriel. – Provavelmente muitas. Sean sacou sua nove milímetros com os dois pentes de munição que sempre trazia. Duas pistolas, alguns pentes adicionais de munição, um garotinho, duas possíveis reféns, e uma mina escura onde o adversário estaria armado até os dentes e conhecia cada fenda – ao contrário dele. Sean encontrou os olhos de Michelle no espelho retrovisor. Era óbvio que ela estava pensando na mesma coisa, porque silenciosamente formou as palavras: – Eu sei. Os olhos de Sean se voltaram para a janela. O terreno estava se tornando cada vez mais íngreme. Mesmo com o sol cálido subindo no céu, parecia escuro e frio. Ele recordou o aposento subterrâneo de Atlee. A história narrada numa parede, que Sam Quarry provavelmente tinha levado anos para montar. Então recordou a noite na Geórgia em que, andando por uma rua, flagrara uma mocinha em cima do futuro presidente, depois quase caindo ao sair do carro com a calcinha ao redor dos tornozelos. O homem tinha uma esposa bonita e inteligente em casa esperando por ele. Acabara de ser eleito para o Senado. E estava transando com uma garota de 20 anos em um carro? Então sua mente se voltou para outra mulher. Tippi Quarry. Ele me estuprou, papai.
Um aborto malfeito. Um coma durante todos aqueles anos. Estado vegetativo persistente, Quarry havia escrito na parede, sublinhando cada palavra três vezes. Sean não tinha filhos. Mas se tivesse e algo semelhante acontecesse com sua filha, o que faria? A que limites chegaria? Que tipo de história construiria? Quantas pessoas seria capaz de matar? Ele enfiou a arma de volta no coldre. Encontrariam Sam Quarry na mina, disso ele tinha certeza. Encontrariam Willa e também a tal mulher chamada Diane. Se elas estariam vivas ou não, não tinha certeza. Mas o que ele e Michelle deveriam fazer a respeito daquilo tudo? Ele realmente não sabia.
UMA HORA ANTES DA aterrissagem dos dois helicópteros que transportavam o presidente e seu destacamento de segurança, outros dois grandes helicópteros com dezenas de equipamentos e mais de 20 homens da equipe de resgate de reféns pousaram a cerca de 100 metros da casinha construída por Quarry. Os homens desembarcaram e saíram, deslocando-se numa formação em leque, de armas em punho. O equipamento foi descarregado e montado. Foi feito um reconhecimento da área ao redor, mas nada foi encontrado. No bunker revestido de chumbo, Carlos, que tinha ouvido o helicóptero chegar, se agachou, sem contudo desviar os olhos do monitor à sua frente um minuto sequer. Ele fez o sinal da cruz e murmurou uma prece. Metade do esquadrão da equipe de resgate de reféns fechou um perímetro temporário, enquanto a outra metade descarregava mais equipamentos. Os mais importantes deles eram dois robôs móveis de quase 50 quilos cada um. Eles foram postos no chão e ligados e um membro da equipe, usando o que parecia um joystick sofisticado, pôs o primeiro robô em ação. A máquina rodou em círculos ao redor da casa, chegando mais perto a cada passada e finalmente entrando para fazer uma varredura. Se houvesse minas ou outros artefatos explosivos, os sensores infravermelhos do robô os detectariam antes que fossem detonados, de forma que os especialistas poderiam retirá-los em segurança. Nenhum explosivo foi detectado, de modo que eles enviaram o segundo robô. Este era ainda mais sofisticado que o primeiro. A equipe de resgate de reféns o havia batizado de Cão de Caça. Seu papel era detectar substâncias radiológicas, biológicas ou químicas em qualquer terreno por onde passasse. O membro do esquadrão usou sua perícia no joystick para controlar a máquina em suas buscas, chegando a fazê-la subir na varanda e entrar na casa. O Cão de Caça não “latiu” nem uma vez. O lugar estava limpo.
Só então os homens se aproximaram da casa e entraram. O que encontraram nela deixou atordoados até os mais experientes do grupo. O chefe do destacamento pegou o rádio e relatou: – Temos uma mulher caucasiana inconsciente, entre 30 e 40 anos de idade, numa cama hospitalar ligada ao que parece ser um complexo sistema de suporte à vida alimentado por um gerador. Revistamos o lugar em busca de armas e outras ameaças e não encontramos nada. Exceto por ela, não há nada aqui. O líder do esquadrão, que aguardava do lado de fora, ouviu o relatório e exclamou: – Que diabo você acabou de dizer? O homem repetiu. O outro, por sua vez, passou a informação via rádio para o helicóptero do presidente. Um dos homens se virou para o chefe do destacamento: – O que fazemos agora? – Vamos passar um pente-fino na casa e isolar toda a área. Não quero nenhum ser vivo além daquela mulher em coma num raio de um quilômetro. – Quem é ela? – Não tenho ideia e não preciso saber. Tudo o que sei é que o presidente está vindo e nada vai acontecer a ele enquanto eu estiver de serviço. Agora andem! Mais uma busca cuidadosa foi feita na área. Os homens da equipe de resgate de reféns passaram sobre e ao redor do bunker onde Carlos estava escondido. Também não encontraram a câmera na árvore, porque Quarry, detalhista, tinha cortado um buraco no carvalho, posto a câmera dentro dele e o recoberto, colando a casca da árvore de tal modo que apenas a lente ficasse exposta. Como estava bem alta, ficava coberta pela densa folhagem para quem olhasse do solo. Exceto pela linha de visão que Quarry havia cortado, estava praticamente invisível. Alguns dos homens da equipe de resgate de reféns tornaram a entrar na casa e usaram um pé de cabra para arrancar uma das tábuas do piso. Por baixo havia uma folha-padrão de compensado de 2,5 centímetros. Um membro da equipe de resgate de reféns deu um soco nela.
– Sólida como rocha. A fundação deve ser de concreto. – Verifique isso – ordenou o líder. Uma broca foi trazida e eles perfuraram o compensado até que a ponta da broca bateu em algo duro e não avançou mais. – Sólido. – Certo, tudo bem. Eles puseram a tábua do piso de volta e então repetiram o procedimento de perfuração em cada uma das quatro paredes. Depois de examinada e isolada a área, sem que nenhuma ameaça tivesse sido encontrada, e de estabelecerem um perímetro de segurança, o esquadrão da equipe de resgate esperou pacientemente que o presidente aterrissasse. Os homens não tinham ideia do que ele pretendia fazer. Tudo o que sabiam era que se uma ameaça aparecesse, eles a destruiriam com poder de fogo suficiente para derrotar um exército. Eles estacionaram o carro e saltaram. Não tiveram escolha, porque a estrada havia acabado num paredão de pedras desmoronadas. – Isto não estava aqui antes – disse Gabriel. – A gente ia de carro até a porta. – Isto provavelmente não seria uma opção para nós – disse Sean. Com Gabriel na dianteira, eles seguiram para a mina. Tiveram que escalar rochas e montes de terra escorregadia. Sean tropeçou e despencou num trecho, depois conseguiu se levantar. – É a idade – comentou, com uma expressão encabulada. – Ei, quando foi a última vez que você fez o curso de atualização em armas? – perguntou Michelle. – Se encontrarmos alguma coisa que precise levar um tiro, eu acerto um tiro. Mas conto com você para acertar antes. – Nossa! Vou tentar me lembrar disso. Eles continuaram avançando. – Não tenho a chave da porta da mina – disse Gabriel. – Não vai ser problema – respondeu Michelle. – Só precisamos que nos leve até lá.
Alguns minutos depois, eles ultrapassaram as rochas e viram a pista de grama. – O avião é aquele? – perguntou Sean, apontando para o pequeno Cessna. – É. Subitamente, ele apontou para a direita. – E aquele é seu Sam – sussurrou. Todos olharam naquela direção. Sam Quarry saía da mina carregando o que parecia ser uma pequena caixa preta. De onde estavam, Michelle fez mira com a pistola, mas, àquela distância, não poderia ter certeza de que o tiro seria letal. Ela olhou para Sean e sacudiu a cabeça. – Ele é mais velho do que eu imaginava – sussurrou Sean, observando o homem alto de cabeça branca. – Forte como um touro – disse Gabriel. – Já o vi derrubar um homem maior que ele e com metade da idade porque o sujeito xingou minha mãe. Ele é bom de briga. – Espero não precisar testar isso – observou Sean secamente. – Mas nós viemos aqui para ter certeza de que todo mundo está bem. Aquela garota e seu Sam, certo? Sean e Michelle trocaram outro olhar. – Certo. Mas olhe, Gabriel, isso cabe a ele. Se ele começar alguma coisa, então teremos que reagir, entendeu? – Eu vou falar com ele. Vai ficar tudo bem, ele não vai machucar ninguém. Eu conheço seu Sam. Michelle olhou para Sean. Nenhum dos dois parecia nem de longe tão confiante quanto Gabriel em relação a como as coisas transcorreriam.
OS DOIS HELICÓPTEROS POUSARAM suavemente. O presidente olhou através da janela e seu rosto ficou rubro. – Que diabo está acontecendo aqui? Quem são eles? – vociferou, apontando para o esquadrão da equipe de resgate de reféns. Antes que qualquer pessoa pudesse responder, Chuck Waters bateu no vidro. Um agente abriu a porta do helicóptero e puxou a escada para baixo. – Quem são eles? – perguntou o presidente de novo. – Equipe de resgate de reféns, senhor – respondeu Waters. – Vieram na frente para garantir a segurança da área. – Isto não foi autorizado por mim. – Não, senhor, mas foi autorizado pelo diretor do FBI. Cox não pareceu nada satisfeito com a resposta, mas o diretor do FBI era o único homem que não era nomeado por ele e sim empossado por um período fixo de tempo. Ele permanecia no cargo independentemente de eventuais mudanças na Casa Branca. Enquanto observavam, os dois cães farejadores que haviam chegado no outro helicóptero foram conduzidos por seus adestradores em direção à casa. Apesar de o robô já ter feito uma varredura da área, quando a questão era a segurança do presidente, a persistência era procedimento-padrão. Os cães patrulharam o perímetro e entraram na casa. Saíram alguns minutos depois e um dos adestradores sinalizou para avisar que estava tudo bem. No helicóptero, Waters prosseguiu: – Ele foi informado da situação pelo diretor do Serviço Secreto e concluiu que esta era a melhor linha de ação, caso o senhor insistisse em vir.
– Muito atencioso da parte dele. Vamos torcer para que minha sobrinha não esteja morta por causa dessa conclusão. – Então é por causa disso que estamos aqui? – perguntou Larry Foster. – Porque os sequestradores fizeram uma exigência? Todos olharam para Jane Cox. – Sabemos que a carta que tiramos da senhora, Sra. Cox, não era autêntica – disse Waters. – A verdadeira a instruiu a vir até aqui? – Não, ela me deu um número de telefone para o qual eu deveria ligar. Eu liguei e recebi instruções para vir aqui com o presidente se quisesse ter minha sobrinha de volta viva. – A pessoa no telefone disse à senhora o que fazer quando chegasse aqui? – Disse para entrar numa casa e ver a mulher na cama – respondeu ela. – Bem, o pessoal da equipe de resgate de reféns encontrou uma mulher numa cama naquela casa. As funções vitais dela são mantidas por aparelhos. Quem é ela? – Não sei – respondeu Jane com firmeza. – Estou aqui apenas para resgatar minha sobrinha. – A senhora não a conhece? – Waters perguntou, cético. – Tem certeza? – Como posso saber? Eu nem sequer a vi! – retrucou Jane, irritada. Foster pareceu confuso. – Certo, mas o que exatamente a senhora deve fazer lá dentro? De acordo com o pessoal da equipe de resgate, a mulher está inconsciente. Jane e o presidente se entreolharam. – Tudo o que posso lhe dizer é que recebi instruções de que o presidente e eu deveríamos entrar na casa e ver a mulher. – E devemos entrar sozinhos – acrescentou o presidente. – Pelo menos foi essa a instrução que Jane recebeu. Waters e Foster trocaram um olhar preocupado. – Senhor presidente, isso não me agrada nem um pouco – ressaltou Foster. – O único motivo por que alguém o traria até aqui é para lhe fazer mal. Nenhuma alternativa faz sentido. Aquela construção poderia ter um alvo pintado no teto. O melhor a fazer é pegar o helicóptero rumo a Huntsville e depois voltar para casa. Agora mesmo. – E aí minha sobrinha morre! – exclamou o presidente. – Você espera mesmo que eu simplesmente vá embora e deixe isso acontecer? – Senhor, eu compreendo o que deve estar passando. Mas o senhor não tem escolha. Nem eu. O senhor é o presidente. A sua segurança não pode ser posta em risco. Por uma questão de dever, no que me diz respeito, nenhuma vida é mais importante que a sua. Nem a de sua sobrinha. Foster lançou um olhar para Jane. – Nem mesmo a de sua esposa. É a lei. Também é a minha missão e pretendo cumpri-la. – Estou pouco me importando com a lei. Ou com a sua missão, Foster. Estamos falando da vida de uma menina. Eu não vou voltar. – Senhor, por favor, não me obrigue a fazer isso da maneira mais difícil. Eu lhe disse que tenho autoridade para obrigá-lo a voltar e estou disposto a exercer essa autoridade agora. – O seu pessoal não examinou este lugar? Aqueles homens da equipe de resgate não checaram tudo? Qual é o perigo? A mulher que está lá dentro vai pular em cima de mim e me matar? – Ela está com um respirador mecânico conectado à traqueia – respondeu Foster. – Então ela não é uma ameaça. Você trouxe os cães farejadores de bombas e eles não encontraram nada. Há um exército armado lá fora. Você me disse que tem aeronaves e helicópteros por toda parte no céu. Só um tanque, um avião ou um lançador de mísseis poderia atingir aquela casa a distância e eu realmente não creio que exista nada disso aqui, no grande estado do Alabama, que não nos pertença. Nós estamos sozinhos, não há mais ninguém neste lugar. O que poderia me fazer mal? O quê? – Senhor, se eu soubesse onde está o perigo, ele deixaria de ser perigoso. É o desconhecido que me preocupa.
– Desconhecido! – exclamou o presidente. – Deixe-me lhe falar sobre o que é conhecido, Larry. Se eu recuar e voltar para casa, se deixar minha sobrinha morrer, quando poderia tê-la salvado, e essa informação se tornar pública, eu perderei a eleição, pura e simplesmente. Compreendeu, amigo? Foster, Waters e os outros agentes no helicóptero trocaram olhares, não acreditando no que tinham acabado de ouvir. – Certo – começou Foster, devagar. – O senhor perderá a eleição. – Não era exatamente isso o que o presidente estava querendo dizer – interveio Jane rapidamente, ao entender os olhares abismados dos homens, que o marido sequer notou. – O presidente está muito transtornado com tudo isso, do mesmo modo que eu. Ele está terrivelmente preocupado com nossa sobrinha, do mesmo modo que eu. Mas ele trabalhou por muito tempo e muito duramente por este país. Não vamos permitir que um psicopata qualquer ou uma célula terrorista façam mal à nossa sobrinha ou mudem a história deste país ao negar a meu marido um segundo mandato. A vida de minha sobrinha é o mais importante, é claro, mas há muita coisa em jogo aqui. Muita, cavalheiros. Não nos enganemos. – Eu sinto muito, Sra. Cox – disse Foster sacudindo a cabeça. – Apesar de tudo isso, não vou permitir que nenhum dos senhores entrem naquela casa. Foster pôs a mão em seu fone de ouvido e contatou o piloto: – Jim, vamos nos preparar para voltar... Foster não concluiu o que ia dizer, porque naquele momento Dan Cox arrancou a pistola do agente que estava sentado a seu lado, soltou a trava de segurança e apontou a arma para a própria têmpora. – Deus do céu! – exclamou Foster. – Senhor presidente, não! – gritou Waters. – Calem a boca, todos os dois! – rugiu Cox. – Se alguém tentar nos deter, Larry, você poderá acompanhar meu corpo de volta a Washington e explicar ao mundo como tentou me proteger levandome à loucura a ponto de explodir meus miolos! Ele fez um gesto para Jane. – Salte, Jane.
Então voltou a olhar para Foster. – Eu vou entrar naquela casa com minha mulher. Nós não ficaremos lá mais do que alguns minutos. E não haverá vigilância eletrônica nem aparelhos de escuta dentro daquele prédio. O sequestrador foi muito claro quanto a isso. Quando tivermos acabado, sairemos, entraremos neste helicóptero e voltaremos. Então esperaremos que minha sobrinha seja libertada e cada um de vocês esqueça que tudo isto aconteceu. Está claro? Os homens não falaram, apenas continuaram com o olhar fixo no presidente com a pistola contra a cabeça. O silêncio finalmente foi quebrado por Waters. – Senhor, se insiste nisso, o senhor terá que fazer uma coisa. – Eu dou as ordens por aqui, não o FBI! Waters olhou para Jane. – Foi uma coisa que nos foi dita por Sean King, senhora. Uma coisa que ele descobriu. A senhora confia nele, certo? Ela assentiu lentamente. – Então precisam fazer exatamente o que vou dizer. Os dois compreendem isso? – Se significa que podemos entrar naquele prédio e acabar de uma vez com isso, sim! – disse o presidente. Alguns minutos depois, Jane, com um casaco comprido fechado envolvendo-lhe o corpo, e o presidente desembarcaram do helicóptero. Quando os homens da equipe de resgate de reféns viram o líder político do país com uma arma na mão, eles tiveram uma reação que normalmente não teriam: ficaram imobilizados. – Senhor presidente? – chamou o chefe do esquadrão, com um olhar interrogativo. – Saia da minha frente! – berrou Cox. O líder do grupo, um veterano de duas guerras e inúmeras batalhas contra traficantes de drogas e toda sorte de malucos com armas de grande calibre e sem nenhum respeito pela vida humana, deu um pulo de quase meio metro para sair do caminho. Com a passagem desimpedida, Cox segurou a mão da esposa e eles seguiram adiante. Ao chegar à pequena varanda, eles se entreolharam uma vez e então entraram.
DANIEL E JANE COX ficaram parados olhando para Tippi Quarry enquanto a máquina inflava seus pulmões, o oxigênio penetrava em seu nariz e um monitor registrava seus batimentos cardíacos e outros sinais vitais. – Ela está assim há mais de 13 anos – disse Jane. – Eu não tinha ideia. O presidente olhou bem para a mulher na cama. – Eu não me lembro dela, querida, juro que não. Ela tem um rosto bonito. Quando ele disse isso, a esposa se afastou ligeiramente. Ele não pareceu notar. – Tippi Quarry? – disse em tom interrogativo. – Sim. – Em Atlanta? – Exato. Da equipe de uma das empresas que cuidou do lançamento de sua campanha para o Senado. Ela havia acabado de se formar na faculdade. – Como você sabe de tudo isso? – Eu me dei o trabalho de descobrir. Eu me dei o trabalho de descobrir tudo a respeito das mulheres em que você parecia tão interessado naquela época. – Eu sei que fiz você viver um inferno. Ele olhou de volta para Tippi. – Não me lembro de ter tido nenhum contato com ela. – Sem dúvida é por isso que ninguém nunca fez ligação entre vocês dois. Mas você teve contato com ela, algo que até me surpreendeu. Flagrei vocês dois juntos em nosso quarto de hotel. Ela estava gritando para você sair de cima dela, mas era tarde demais.
Você já tinha feito. Precisei de horas para acalmá-la, enquanto você ficava caído em um canto, apagado por ter bebido gim de mais e tônica de menos. – Então por que ela não foi à polícia? Tem certeza de que não foi consensual? – Ela não ligou para a polícia porque eu a convenci de que seria uma grande confusão se o incidente se tornasse público. Seria a palavra dela contra a sua, ela estava em nosso quarto de hotel e eu não podia testemunhar contra meu marido. Você estava a caminho do Senado e possivelmente da Presidência. Ela era uma mulher jovem, com a vida inteira pela frente, uma vida que poderia ser arruinada se uma história como aquela viesse a público, se as pessoas pensassem que ela o havia instigado. Fui muito persuasiva, até disse a ela que aquilo era um tipo de doença que você tinha. Criei um cenário para despertar a simpatia dela. – Obrigado, Jane. Você me salvou, mais uma vez. – Eu odiei você naquele dia – respondeu a esposa friamente. – Odiei você pelo que fez com ela. E comigo. – Como você disse, era uma doença. Eu mudei. Superei aquilo. Você sabe disso. Nunca mais voltou a acontecer, não é? – Aconteceu mais uma vez. – Mas eu não obriguei aquela mulher. E depois, nunca mais. Eu me esforcei e lutei contra aquilo. Eu me corrigi. – Se corrigiu? Dan, aquilo não era o mesmo que ter o hábito de largar suas roupas sujas pelo chão. Você forçou a pobre mulher. – Mas eu nunca mais fiz aquilo. É isso que quero dizer. Eu mudei, evoluí. – Bem, ela com certeza não teve chance de evoluir. De repente, algo veio à cabeça de Daniel. Ele olhou apavorado ao redor do quartinho. – Você não acha que haja aparelhos de gravação aqui, não é? – Eu acho que o homem tem tudo de que precisa. Mesmo sem esta pobre mulher. – O que você quer dizer? – Quero dizer Willa. – O que tem Willa?
– Ela é sua filha. E ele sabe disso. Lívido, o presidente lentamente se virou para encarar a esposa. – Willa é minha filha? – Não seja burro, Dan. Qual é, você achou realmente que Diane Wright simplesmente iria embora quando viu que estava grávida? Cox pôs um braço na parede para se equilibrar. – Por que diabo você não me contou isso antes? – E o que você teria feito se eu tivesse contado? – Eu... bem... eu... – Exato. Nada, como sempre. Portanto, eu entrei em cena e limpei mais uma merda sua. – Por que ela não fez um aborto? – E acabar como ela? – perguntou Jane, gesticulando para Tippi. – Não é tão simples quanto você pensa, Danny. Eu entrei em contato com ela. Disse que ficaria tudo bem, que eu estava ciente do que havia acontecido e não a culpava. – E o que foi exatamente que aconteceu? – Aparentemente você a abordou, creio que em um bar. Deve ter sido extremamente sedutor para convencê-la tão rapidamente a fazer sexo. Ou talvez tenha mais a ver com o tipo de mulher por quem você se sentia atraído. Ele pôs a mão na testa. – Eu não me lembro de nada. Juro. – Então você não se lembra de Sean King levando você para casa? – King? Sean King? Ele sabe? – Ele encontrou você no carro com ela. E nunca disse uma palavra a respeito disso a ninguém. – Então foi por isso que você ficou amiga dele. – Esse foi um dos motivos, sim. Ele olhou atento para ela. – Houve outros?
– Não se atreva a perguntar. – Desculpe, Jane. Desculpe. – Diane Wright me telefonou cerca de um mês depois. A menstruação estava atrasada e ela não duvidava de que estivesse grávida. Mais do que isso: tinha certeza de que você era o pai. Ela não havia feito sexo com mais ninguém. Na verdade, pelo que me disse, você tinha sido o primeiro. Eu acreditei. Ela não queria dinheiro, só estava apavorada, não sabia o que fazer. De maneira muito semelhante a Tippi Quarry. Tuck e Pam estavam morando na Itália na época. Pam tinha engravidado, mas perdido o bebê. Não havia contado isso a ninguém, exceto a mim e a Tuck. E o fato era que o bebê de Diane era seu, mesmo que fosse com outra mulher. Eu não podia deixá-lo nas mãos de um desconhecido e sabia que Diane Wright não ficaria com ele. Mas era do seu sangue. Então fiz um acerto com a mulher e, oito meses depois, ela viajou para a Itália. Fui me encontrar com ela e, quando o bebê nasceu, eu o entreguei a Pam e Tuck. Quando eles voltaram para cá, tempos depois, todo mundo presumiu que a garotinha fosse deles. – Você escondeu tudo isso de mim? – Considerando o que você tentou esconder de mim ao longo de anos, eu diria que ainda fico muito atrás de você. – Mas por que tudo isso por... – Por um bebê que você gerou transando com outra? Como eu disse, ela tem o seu sangue. Ela é sua filha, Dan. Um de nós tinha que assumir a responsabilidade por isso. E fui eu, sempre fui eu. – Você nunca contou a eles? A Tuck e Pam? Que Willa era minha? – Como eu poderia chegar para ele e dizer: “Ah, a propósito, querido irmão, esta criança é a filha bastarda de Dan. Gostaria de ficar com ela?” E Diane Wright nunca se encontrou com Pam ou Tuck. Ela apenas presumiu que eu tivesse conseguido alguém para adotar o bebê. Eu também não quis que ela soubesse da nova identidade de Willa. Mas Sean King descobriu que Pam só deu à luz duas vezes. Foi por isso que tive que esconder as cartas do sequestrador de todo mundo e tentei encobrir as pistas. – Eu não compreendo. – Se descobrissem que Willa era adotada, as pessoas podiam começar a investigar o passado. Gente como seus inimigos políticos.
As pessoas poderiam localizar Diane Wright e talvez descobrir tudo. Ligar você ao fato de ter feito sexo com ela e eu, ao fato ter tomado as providências para que o bebê fosse adotado por meu irmão. Não haveria explicação possível que pudéssemos dar. Sua carreira estaria acabada. – Agora eu entendo. Gosto muito de Willa – disse o presidente. – Sempre gostei. Talvez eu tenha sentido minha ligação com ela. – Ela é inteligente, boa e meiga. Eu faria qualquer coisa para trazê-la de volta sã e salva. O presidente olhou para Tippi. – Mas nós não tivemos nada a ver com ela acabar assim. Jane enxugou os olhos com um lenço de papel. – Eu tive. Ela me ligou em pânico quando descobriu que estava grávida. Disse que não podia contar aos pais, que eles não compreenderiam. Ela também não queria ter o bebê. Eu não a culpei, ela havia sido violentada. O aborto era a única opção. Eu não podia mandá-la a um hospital procurar um médico de verdade. Algo poderia acabar fugindo do controle e os pais dela poderiam ser avisados. Precisávamos resolver tudo depressa e muito discretamente. Eu tinha ouvido falar de uma pessoa que fazia o procedimento. Eu até a levei de carro. Paguei pela operação e lhe dei dinheiro para voltar de táxi para casa. O idiota fez um serviço malfeito. Mas na verdade eu... eu nunca soube que havia acontecido isto. Nunca procurei saber como as coisas tinham corrido. Acho que nunca quis saber. Eu só queria esquecer. – Uma tragédia – disse o presidente, abatido, ainda olhando para Tippi. – Vamos fazer o que ele mandou – disse Jane. – E depois tratar de ir embora. E de pegar Willa de volta. – Querida, se Waters estiver certo sobre o que nos disse no helicóptero, não vamos pegar Willa de volta. – O que quer dizer? – Ele quer nos matar, esse tal de Quarry. É possível que tente quando sairmos daqui. – Como poderia? Estamos cercados por um exército. Nós sempre estamos cercados por um exército.
– Eu não sei, mas e se esta tiver sido a intenção dele desde o início? Ele, com certeza, vai tentar. – Então o que você está dizendo? – Que precisamos nos concentrar em sobreviver. Se houver uma tentativa de assassinato e ela falhar, ele vai saber. E vai matar Willa, se já não estiver morta. Ele também vai querer revelar o que aconteceu. Temos que estar preparados para isso. Temos que buscar uma alternativa. Sei que meu pessoal pode neutralizar quaisquer provas que ele tenha. Ele é apenas um homem. Eu tenho um exército de criadores de lorotas. – Ele pode ser apenas um homem, mas olhe o que fez até agora. – Isso não importa. A única coisa que importa é como acaba. Agora vamos fazer o que Quarry nos pediu e dar o fora daqui. Eles se postaram diante da cama e deram as mãos. Jane falou primeiro: – Eu sinto muito, Tippi. Nunca tive a intenção de que isso acontecesse. Sinceramente, sinto muito. O presidente pigarreou. – Espero que possa me desculpar pelo que fiz a você – disse ele. – Eu... Sei que dizer que não me lembro ou que estava fora de mim não é o bastante. Foi minha responsabilidade e eu terei que viver com isso pelo resto da vida. Eu também sinto muito, Tippi. Sinto muitíssimo, realmente sinto muitíssimo. Jane tocou de leve na mão de Tippi. O presidente ameaçou fazer o mesmo, mas mudou de ideia e afastou o braço. Eles se viraram para a porta. O pessoal da equipe de resgate de reféns estava a metros de distância, com Foster, Waters e o destacamento do Serviço Secreto logo atrás deles, todos de prontidão. Do bunker, Carlos viu o casal no monitor. Ele apertou o único botão do controle remoto e duas coisas aconteceram simultaneamente. Uma porta de metal de quase cinco centímetros de espessura surgiu de dentro do batente. Estava escondida na parede e avançou rapidamente graças a um sistema de propulsão hidráulico posto por trás do revestimento de chumbo. Com isso, o casal ficou isolado no aposento. Então um som sibilante invadiu o quarto. Por todo o cômodo, Quarry havia cuidadosamente feito buracos no forro de metal que ficava sob o piso. Fora isso, um segundo assoalho escondido numa cavidade da fundação, que parara a furadeira da equipe de resgate, não cimento. Dentro da cavidade havia uma série de cilindros interconectados contendo nitrogênio. Eles tinham sido ligados ao cabo duplo que Quarry havia passado por dentro do tubo de PVC na fundação e foram acionados pelo controle remoto. Os tanques estavam sob grande pressão e espalharam seu conteúdo com força. Logo o pequeno espaço estava cheio de nitrogênio. O nitrogênio é um gás comum na natureza, mas que consome oxigênio e, em certas circunstâncias, pode ser letal. Expostos a altos níveis desse gás, os seres humanos não sentem nenhuma dor, mas logo ficam inconscientes. Não percebem que o oxigênio de seus pulmões é aos poucos substituído pelo nitrogênio e que em pouquíssimos minutos morrerão asfixiados. Por esse motivo, o fato de funcionar tão rapidamente e de forma indolor, alguns países agora pensavam em usar o nitrogênio na câmara de gás. Eles teriam feito bem em estudar o modelo de Sam Quarry, uma vez que o homem do Alabama construíra a câmera de execução perfeita disfarçada sob a aparência de uma casinha. Entre os aparelhos que mantinham Tippi viva havia dois que, juntos, misturavam o oxigênio do ambiente com o de um tanque e o mandavam para o tubo do respirador mecânico preso à sua traqueia. A mistura era cuidadosamente calibrada, só que agora não havia nenhum oxigênio no aposento e a quantidade de oxigênio puro que saía do tanque não era nem de longe suficiente para compensar a diferença. Terrivelmente fragilizada, Tippi deu seu último suspiro quase imediatamente. O monitor de sinais vitais apitou, avisando sua morte. Seu inferno na Terra havia finalmente chegado ao fim. Do lado de fora, exceto por abrir fogo ou detonar uma bomba que poderia matar as pessoas na casinha, os homens da equipe de resgate de reféns e do Serviço Secreto estavam usando todas as ferramentas de que dispunham para tentar abrir aquela porta. Eles investiram contra ela e contra as paredes, apenas para descobrir que havia chapas metálicas sob a madeira. Homens fardados ou de terno subiram no telhado empunhando machados e serras elétricas, mas seus esforços foram frustrados pelas grossas telhas de madeira e chapas de metal aparafusadas em madeira maciça. A casinha era impenetrável. Contudo, eles não desistiram. Oito minutos depois, usando serras elétricas, marretas, um bate-estaca hidráulico, suor e músculos, conseguiram por fim derrubar a porta de metal. Cinco homens entraram e saíram imediatamente, arquejando por causa da falta de oxigênio. Outros agentes puseram máscaras de oxigênio e entraram correndo. Quando saíram, alguns segundos depois, Carlos, que acompanhava tudo pelo monitor, praguejou. O presidente e a primeira-dama estavam retirando suas máscaras de oxigênio equipadas com pequenos cilindros, que Jane havia levado debaixo do casaco. Tinham recebido o equipamento do agente Waters, agindo com base na dica que recebera de King, depois que este descobrira cilindros de nitrogênio no porão de Quarry e deduzira sua provável finalidade. Foster e seus homens correram para o casal e o escoltaram tão rapidamente de volta ao helicóptero que nem o homem nem a mulher pareceram tocar o chão. – O senhor está bem, presidente? – perguntou Foster ansiosamente, quando estavam em segurança a bordo do helicóptero. – Precisamos que o senhor e a primeira-dama passem por um exame médico. – Eu estou bem. Nós estamos bem – garantiu. Então olhou para Chuck Waters: – Boa dica. Nós pusemos as máscaras assim que o gás começou a sair. – Foi ideia de Sean King, senhor, não minha. Mesmo assim, não imaginei que houvesse gás na casa. Pensamos que estivesse tudo limpo. – Bem, terei que agradecer ao Sr. King – disse ele. E, olhando para a mulher: – Mais uma vez. – Se eu tivesse suspeitado por um segundo de que aquele lugar era uma armadilha, nunca teria permitido que o senhor entrasse – acrescentou Foster, pálido. Cox tirou a arma da cintura e a entregou a Foster. – Bem, eu não lhe dei opção, dei? Seja quem for, a pessoa que montou aquele sistema foi muito inteligente. Pela sofisticação dele, parece algo feito por uma organização terrorista muito bem provida de fundos. E minha atitude estúpida deixou você entre a cruz e a caldeirinha, Larry. Me perdoe. O rosto de Foster enrubesceu. Era raro um presidente pedir desculpas a quem quer que fosse, quanto mais a um agente do Serviço Secreto. – Desculpas aceitas, senhor. Os dois homens trocaram um aperto de mãos. Enquanto a porta do helicóptero era fechada com uma pancada, o presidente disse: – Precisamos voltar para Washington imediatamente. – Eu não poderia estar mais de acordo – concordou Foster, aliviado. – E sua sobrinha? – perguntou Waters. – Depois do que acabou de acontecer, parece haver pouca esperança de que ela ainda esteja viva. Se o objetivo deles era me matar, obviamente não pretendiam libertá-la. Jane Cox deixou escapar um soluço e cobriu o rosto. O presidente passou o braço em torno de seus ombros para consolá-la. – Mas vamos continuar a fazer tudo o que pudermos. Daniel Cox olhou ao redor dentro do helicóptero. – Não devemos perder a esperança. Mas também precisamos estar preparados para o pior. Tentaram matar a mim e a minha esposa hoje, mas fracassaram. A América não cederá a esse tipo de mal. Nunca. Podem continuar tentando, mas nunca permitirei que vençam. Não enquanto eu estiver no comando. Todos os agentes no helicóptero olharam para Dan Cox com imenso orgulho, esquecendo-se de que poucos minutos antes ele agira como um louco, apontando uma arma para a própria cabeça, mais preocupado em ser reeleito do que em resgatar a sobrinha. Ele havia entrado corajosamente no que se revelara ser uma armadilha para salvar Willa. E agora, tendo escapado por um fio da morte, estava sendo solidário com a esposa e levantando o moral da tropa. Aquele era um tipo de respeito que um presidente raramente conquistava. Antes que decolassem, ficou decidido que, diante das circunstâncias, os Cox não deveriam viajar no mesmo helicóptero.
Jane foi rapidamente transferida para o segundo aparelho, com seis agentes do Serviço Secreto e dois integrantes da equipe de resgate de reféns, enquanto a maior parte do poder de fogo e o agente Chuck Waters ficaram com o presidente. Dois agentes permaneceram em terra para cuidar da polícia local e do corpo de Tippi Quarry.
COM UM URRU DE raiva, Sam Quarry atirou no chão o telefone via satélite e correu de volta para dentro da mina. Observando da posição em que estavam escondidos, Sean disse: – Ele não parece nada satisfeito. – Acho que acabou de descobrir que o homem não morreu. – De que vocês estão falando? – perguntou Gabriel, que não deixava passar nada. – Que homem? – Gabriel, você conhece bem o interior da mina? Michelle o interrompeu: – Sean, não! – Michelle, não podemos entrar lá às cegas. – Ele é uma criança. – E também pode haver outra criança lá dentro. Gabriel tomou a palavra: – Eu vou entrar. Conheço a mina muito bem. Quero ir lá. Posso conversar com seu Sam. – Ele quer ir – disse Sean. Michelle olhou para o parceiro e depois para o rosto suplicante do menino. – Michelle, nós não temos mais muito tempo. Você viu Quarry entrar furioso. Eles escalaram mais alguns pedregulhos e correram até a entrada da mina. A porta não foi problema, porque Quarry não tinha se dado o trabalho de fechá-la. Correram para dentro da mina, de armas e lanternas em punho.
Em poucos instantes, desapareceram na escuridão. – Daryl! – gritou Quarry. – Daryl! Seu filho apareceu da escuridão. – O que foi? Quarry mal conseguia falar, mal conseguia pensar. Apertou uma das mãos sobre o ombro do filho. – Carlos ligou. Não funcionou. Eles escaparam. – Merda! Estamos ferrados! – Máscaras de oxigênio – resmungou Quarry. Daryl olhou furioso para o pai. – E agora, o que vamos fazer? Sam Quarry deu meia-volta e seguiu às pressas pelo corredor. Daryl foi atrás dele de má vontade. Quarry destrancou a porta do quarto de Willa e a abriu de supetão. Um olhar rápido para seu rosto enfurecido fez Diane Wohl recuar aos tropeções. – Não, por favor. Não. Por favor! – gritou ela, em pânico. Willa pareceu confusa. – O que está acontecendo? – Não nos mate! – berrou Diane. Willa se levantou de um salto e começou a recuar. Quarry e Daryl avançaram. O velho estava ofegante. – Eles estão vivos. Eles estão vivos! Inferno! – Quem está vivo? – exclamou Willa. Quarry derrubou a mesa e arremessou as cadeiras ao outro lado do quarto. Willa correu para junto de Diane, que se afastara o máximo que podia e estava a um canto nos fundos do cômodo. As duas gritaram quando Quarry as agarrou e começou a arrastá-las em direção à porta. – Vamos lá! – berrou ele – Daryl! Daryl agarrou Willa e a ergueu do chão. – Por favor, Sr. Sam, por favor – Willa chorava tanto que mal conseguia falar.
Diane largou o peso do corpo e Quarry acabou arrastando-a pelo chão. Quando chegaram ao corredor, ele parou e ouviu. Diane ainda estava gritando, o que o irritou ainda mais: – Cale a boca, mulher. Já! Ela não calou. Ele tirou uma pistola do cinto e a encostou na têmpora dela. – Agora – disse em tom muito firme. Diane emudeceu. Willa estava nos braços de Daryl. Quando Sam Quarry ergueu a cabeça, deu com ela de olhos cravados nele. – Você ouviu isso, Daryl? – perguntou Quarry. – Ouvi o quê? – Isso. Era som de passadas ecoando nas paredes da mina. – É a polícia – disse Quarry. – Eles estão aqui. Provavelmente a droga de um exército inteiro. Daryl olhou impassível para o pai. – E o que você quer fazer agora? – Eu quero lutar. Vamos levar tantos deles conosco quanto pudermos. Daryl passou Willa para Quarry. Pouco antes de o filho se afastar por um túnel lateral, Sam agarrou seu braço e disse: – Traga o dispositivo. Daryl sorriu maliciosamente. – A gente vai acabar com eles, papai. – Apenas traga. Mas me entregue. – Você continua dando ordens? Nós nunca vamos sair daqui vivos. Vamos ficar como o velho Kurt. Nada além de ossos. – De que ele está falando? – perguntou Willa, aos prantos. – Vá, ande! – ordenou Quarry com aspereza. – Pode deixar que eu vou. E depois volto. Mas do meu jeito, velho. Só desta vez. Desta última vez vai ser do meu jeito. – Daryl...
Mas o rapaz já tinha sumido na escuridão. Houve o som de mais passos vindo na direção deles. – Quem está aí? – rugiu Quarry. – Eu tenho reféns! – Seu Sam! – chamou uma voz. – Gabriel! – disse Quarry, atordoado. Michelle não tinha sido rápida o suficiente para impedir o menino de gritar chamando Quarry. Agora cobria-lhe a boca e fazia que não com a cabeça. – Gabriel! – gritou Quarry. – O que você está fazendo aqui? Silêncio. – Quem está com você? Quarry sabia que não havia maneira de o garotinho ter conseguido chegar ali sozinho. Eles estavam com ele. Tinham escapado da casinha. Tippi estava morta e eles estavam com Gabriel. E agora pensavam que podiam apanhar Sam Quarry. Bem, estavam enganados. Sua raiva aumentou. Todos aqueles anos, todo aquele trabalho. Para nada. – Quem é? – perguntou Willa, numa voz trêmula, seus braços ao redor do pescoço largo de Quarry. – Fique calada. – É aquele menino de quem me falou, Gabriel. – É. É ele. Mas tem alguém com ele. Quarry cutucou Diane com o pé. – Levante-se, depressa. Diane se pôs de pé e, com Quarry agarrando-lhe o braço, eles andaram rapidamente pelo corredor e dobraram numa quina. – Por favor, deixe-nos ir – suplicou Diane, chorando. – Por favor. – Cale a boca mulher ou eu juro que... Willa o interrompeu: – Não a machuque, ela está com medo. – Todos nós estamos. Eles não deveriam ter trazido Gabriel aqui.
– Sr. Quarry! Todos se imobilizaram ao som daquela nova voz. – Sr. Quarry, meu nome é Sean King. Estou aqui com minha parceira, Michelle Maxwell. O senhor está me ouvindo? Quarry permaneceu em silêncio e cutucou o quadril de Diane com o cano da arma para mantê-la em silêncio. – O senhor está me ouvindo? Nós fomos contratados para encontrar Willa Dutton. É só isso. Não somos da polícia. Somos investigadores particulares. Se o senhor estiver com Willa, por favor, liberte-a e nós iremos embora. Quarry continuou sem dizer nada. – Sr. Quarry? – Eu ouvi – gritou Quarry em resposta. – E você simplesmente vai embora se eu entregá-la? Por que tenho a sensação de que há um exército de policiais esperando do lado de fora? – Não tem ninguém lá fora. – Sei, você não tem motivos para mentir para mim, certo? Quarry empurrou Diane mais para o fundo do corredor. – Nós apenas queremos Willa, só isso. – Todos nós queremos uma porção de coisas, mas nem sempre conseguimos. As palavras seguintes de Sean fizeram o homem se imobilizar. – Nós estivemos na sua casa. Vimos a sala que montou no porão. Gabriel nos mostrou. Sabemos do que aconteceu com sua filha, sabemos de tudo. Se o senhor libertar Willa, nós faremos o que estiver ao nosso alcance para ajudar a trazer a verdade a público. – Por que você faria isso? – perguntou Quarry. – Porque o que aconteceu foi errado, Sr. Quarry. Nós sabemos disso e queremos ajudar. Mas primeiro precisamos ter Willa sã e salva. – Já não existe ajuda possível para mim. Não me resta mais nada. Você sabe o que tentei fazer. Não funcionou. Agora virão atrás de mim. – Mesmo assim, podemos ajudar.
Sean tinha baixado o volume de sua voz de modo que Quarry não percebesse que eles estavam em movimento, que estavam se aproximando. – O senhor não quer fazer mal à menina – arriscou Sean. – Sei que não quer. Se quisesse, já teria feito. Quarry pensou rapidamente. – Onde está o Gabriel? Quero falar com ele. Michelle fez que sim para o menino. – Seu Sam, sou eu. – O que você está fazendo aqui? – Vim ajudar. Não quero que o senhor se machuque, seu Sam. – Eu agradeço, Gabriel. Mas vocês aí, com o menino, escutem: ele e a mãe não tiveram nada a ver com isso. Foi tudo coisa minha. – Nós encontramos a carta que o senhor deixou – respondeu Sean. – Nós sabemos. Não vai haver nenhum problema para eles. – Seu Sam – chamou Gabriel. – Não quero que ninguém se machuque. Nem o senhor nem a garota. O senhor podia soltar a menina e então a gente poderia voltar para casa. Talvez de avião, como o senhor prometeu. Quarry sacudiu a cabeça lentamente. – É, seria muito bom, filho. Mas não vejo isso acontecendo. – Por que não? – Regras, Gabriel, regras. A questão é que elas não se aplicam a todo mundo. Algumas pessoas violam as regras e... – ele se calou. – Sr. Quarry, por favor, o senhor poderia libertar Willa? – pediu Sean. – E Diane Wohl também? Também está com ela, não está? O senhor não quer lhes fazer mal, sei que não. O senhor não é esse tipo de homem. Eles agora estavam mais perto. Sean e Michelle podiam sentir isso. Com um gesto, mandaram Gabriel ficar atrás deles. – Sr. Quarry! Quarry sentiu Willa abraçar com força o seu pescoço. Enquanto olhava para ela, subitamente pensou ver outra garotinha a quem amara de todo o coração e que entregara à morte numa casinha feita por ele. O sujeito estava certo: ele não era um homem daquele tipo. Pelo menos não queria ser. – Está bem. Está bem, vou libertá-las. Ele botou Willa no chão e se ajoelhou diante dela de modo que ficassem cara a cara. – Olhe, Willa, sinto muito pelo que fiz. Se eu pudesse, desfaria tudo, mas não posso. Sabe, perdi minha filhinha por causa do que umas pessoas fizeram. E aquilo me destruiu por dentro, me levou a ser uma coisa que eu nunca quis ser. Você compreende? Ela assentiu lentamente. – Acho que sim – respondeu baixinho. – Sim. – Quando você ama alguém, tem que estar preparada para odiar também. E às vezes o ódio vence. Mas me escute, Willa: mesmo que você tenha um motivo muito forte para odiar alguém, precisa se livrar do ódio. Porque, se não fizer isso, ele vai destruir a sua vida. E, ainda pior, não vai deixar nenhum espaço para que o amor entre. Antes que ela pudesse dizer qualquer coisa, ele a virou de costas e gritou: – Ela está seguindo na sua direção. Apenas ela. Ande, Willa. Apenas ande na direção das vozes. – Por aqui, Willa. – gritou Michelle. Willa olhou para Quarry. – Apenas vá, Willa. Vá, ande. Não olhe para trás. Ele sabia que, quando ela descobrisse o que acontecera com a mãe, sua vida inteira mudaria. Ela odiaria Quarry – e teria motivo para isso. Ele apenas esperava que a menina tivesse ouvido suas palavras e não permitisse que o ódio arruinasse sua vida. Como havia feito com a dele. Ela apressou o passo seguindo pelo corredor. – Como vocês me descobriram? – gritou Quarry. – Foi o que estava escrito nos braços da mulher? As palavras koasatis? Sean hesitou antes de responder. – Foi. Quarry sacudiu a cabeça. – Merda – disse baixinho.
– Agora Diane Wohl – gritou Sean, quando Willa os alcançou em segurança. Quarry olhou para a mulher e assentiu. – Pode ir. – Você não vai atirar em mim pelas costas? – perguntou ela, a voz trêmula. – Eu não atiro em pessoas pelas costas. Mas posso atirar na cara, se me derem motivo – disse, empurrando-a. – Vá! Ela correu pelo túnel da mina, mas se virou para gritar: – Seu canalha! Mas sua voz foi abafada por outro grito vindo na direção deles. Parecia o grito de soldados antes de atacarem o inimigo. – Cuidado! – alertou Michelle um segundo depois. – Daryl! – gritou Quarry, que tinha reconhecido a origem do grito de guerra. – Não, menino! NÃO! Gabriel está aqui. Daryl vinha correndo por um túnel com uma MP5 na mão e disparando sem parar. – Abaixem-se! – disse Michelle. Ela empurrou Willa atrás de si e abriu fogo. Sean se agachou enquanto uma chuva de balas voava acima de sua cabeça. Pega no caminho, Diane Wohl levou uma saraivada de balas no tronco, quase cortando-o ao meio. Enquanto caía, a mulher olhou para trás, na direção de Quarry, a boca meio aberta, os olhos arregalados em pânico. E acusadores. Ela caiu no chão duro banhada em sangue. Aquela mina seria seu túmulo. – Filhos da mãe! – rugiu Daryl. Ele havia deixado cair um carregador vazio e encaixado um novo, espalhando tiros para todos os lados, as balas ricocheteando nas paredes, no teto e no chão de rocha. Quarry saltou para a frente. – Daryl, pare! Pare! Gabriel... Se Daryl o escutou, não estava mais dando ouvidos ao pai. Aquilo parecia ser o que ele quisera dizer com “do seu jeito”.
Ele largou a MP5 superaquecida e empunhou duas pistolas semiautomáticas revestidas de níquel. Então avançou pelo túnel, lançando rajadas de balas à sua frente. Quando a munição acabou, ele enfiou pentes novos e continuou disparando. Assim que os gatilhos emitiram o clique de que a munição havia acabado, ele puxou uma espingarda de um coldre de couro preso às suas costas, empunhou-a e abriu fogo de novo. A arma de grande calibre explodiu nacos de rocha das paredes e enviou lascas mortais pelo ar. Instantes depois, Michelle saltou de seu abrigo, quando Daryl recarregava a calibre 10, e o acertou com uma rajada na altura do peito. – Merda! – exclamou ela ao ver que ele apenas cambaleara um pouco para trás depois de seu colete ter absorvido a maior parte do impacto. – Quando eu vou aprender a mirar na droga da cabeça? Sean também abriu fogo, tentando manter Daryl onde estava, mas o homem parecia não ter medo de morrer. Ele recarregou e disparou seguidamente a outra calibre 10, enquanto gargalhava e xingava. A certo ponto, gritou: – É isto o que precisa ser feito, papai? Seu filho está cuidando para você. Percebendo que simplesmente não tinham como enfrentar o poder de fogo que estava pela frente, Michelle pensou nas crianças: – Gabriel, Willa, corram! – gritou, apontando para trás de si. – Naquela direção. Gabriel agarrou a mão de Willa. – Vamos! Os dois saíram correndo. – Merda! – Sean gemeu de dor alguns segundos depois. Michelle ergueu os olhos da arma que estava recarregando e o viu dobrado para a frente, segurando o braço onde uma lasca de rocha havia aberto um talho. – Estou bem – disse ele, franzindo o rosto. Não podiam ver Daryl na escuridão, mas o rapaz agora segurava algo muito mais perigoso do que a MP5. Tinha na mão uma pequena caixa com um interruptor.
– Ei, vocês, federais, vamos todos encontrar Jesus – disse Daryl às gargalhadas. – Não! Quarry colidiu com o filho no instante em que ele girou o interruptor. O rapaz caiu pesadamente. O impulso de Quarry o levou para além de onde caíra o filho. Ele rolou adiante e depois sobre uma pilha de rochas. Houve um momento de silêncio e então a primeira carga explodiu. A força da explosão rugiu pelo túnel como um trem descontrolado, jorrando uma fumaça sufocante e jatos de pedra pelo ar. Daryl se levantou justamente a tempo de receber toda a violência do impacto. Um grande pedregulho veio voando e arrancou sua cabeça. Sam Quarry ficou mais protegido, caído atrás da pilha de pedras em que havia aterrissado. Ele se levantou momentos depois, tossindo e com as pernas trêmulas. Quarry mal olhou para o que restava do filho e então correu pelo túnel. Encontrou Sean e Michelle onde haviam sido derrubados pelo deslocamento de ar e os ajudou a se levantarem. – Corram – avisou. – A próxima explosão vai ser apenas a uns três metros daqui. Eles correram tão rápido quanto puderam. Quando a carga seguinte foi detonada, o teto da mina desabou bem atrás deles. Michelle tentou se levantar, mas gritou de dor e agarrou o tornozelo. Quarry se abaixou e, com sua força, ergueu a mulher do chão e a atirou sobre o ombro em um único movimento. Um segundo depois, um imenso pedaço de rocha desabou exatamente onde ela estivera caída. – Ande, ande – gritou ele para Sean, que estava um pouco adiante, segurando o braço ferido. – A próxima já vai explodir. Em meio a toda a confusão e a poeira, enquanto os três subiam a pilha de escombros apoiados nos pés e nas mãos, não viram Gabriel e Willa encolhidos mais abaixo, em um túnel secundário onde tinham se abrigado depois que o teto quase desabara sobre eles. Momentos depois, a terceira carga explodiu e a montanha deu mais um soluço. Mais partes do teto de rocha cederam, desabando com estrondo.
Finalmente, alcançaram a entrada e saíram por ela. Quarry pôs Michelle no chão e ficou curvado para a frente, arquejando como um maratonista exausto. Michelle segurou o tornozelo e olhou para o homem. Estava coberto de terra e poeira de carvão. O cabelo branco e o rosto marcado pelo sol faziam com que ele parecesse um sobrevivente de algum tipo de holocausto. E de certa maneira era. Todos eles eram. – Você salvou minha vida – Michelle conseguiu dizer, ofegante. Ele olhou para Sean e viu o sangue jorrando de seu braço. Rasgou a manga da camisa e improvisou um torniquete, amarrando acima do ferimento. Sean viu as linhas queimadas no braço de Quarry e olhou interrogativamente para Michelle. Ela também tinha visto. Sean subitamente ficou rígido como uma estátua. – Onde estão as crianças? Quarry e Michelle olharam ao redor. – Willa? Gabriel? – gritou ela. Quarry, contudo, já estava olhando para a entrada da mina. – Eles ainda estão lá dentro. Ele se virou, correu de volta e atravessou a porta no exato instante em que outra explosão sacudia a mina. Sean se levantou de um salto para segui-lo. – Sean, não! – gritou Michelle, agarrando o braço dele. – Não volte lá para dentro. A montanha inteira está prestes a desmoronar. Ele se soltou da mão dela. – Fui eu que mandei Gabriel entrar na mina. Prometi à mãe dele que o levaria de volta. As lágrimas escorriam pelo rosto sujo de Michelle. Ela tentou dizer alguma coisa, mas não conseguiu. Sean se virou e correu para a mina. Ela se pôs de pé e tentou ir atrás deles, mas caiu por causa do tornozelo fraturado. Quarry estava à frente de Sean, deslocando-se rapidamente, movido pelo pânico. Mas Sean correu como nunca e logo alcançou o homem mais velho.
– Gabriel! Willa! – gritaram ambos. Ouviram alguma coisa à esquerda. Entraram naquele túnel no instante em que uma carga destruía por completo outra parte da mina. Tudo rangia e estalava. Logo, mesmo sem mais explosões, tudo iria desabar. Eles os encontraram encolhidos ao lado de um monte de escombros do teto. Sean pegou Willa no colo, agarrou a mão de Gabriel e começou a correr de volta para a entrada da mina. Outra explosão, a não mais de 15 metros de distância, os derrubou no chão. Eles se sentaram tossindo e cuspindo terra, os ouvidos zumbindo, os corpos surrados por um quase colapso físico. Pondo-se de pé cambaleantes, de alguma forma conseguiram prosseguir. A entrada estava à vista. Podiam ver um raio de luz do dia. Subitamente, Sean correu com mais ímpeto do que jamais tivera, apertando Willa contra o peito. O coração dele parecia que ia explodir com o esforço. Quando os dois passaram pela entrada, Sean botou Willa no chão: – Corra, querida, corra para junto de Michelle. A garotinha disparou em direção à investigadora, que tinha conseguido se levantar, trôpega, apoiando-se numa protuberância de rocha. Dentro da mina, inacreditavelmente cansado, o sempre tão firme Quarry tropeçou e caiu num pedregulho. Gabriel parou e virou para trás. – Vá, Gabriel, corra! O menino não foi. Em vez disso, voltou e ajudou Quarry a se levantar. Eles correram direto para a porta. Direto para a luz do sol. O céu do Alabama estava bonito, o sol alto e quente. Sean estava voltando para dentro da mina quando os avistou. – Venham – gritou. – Vamos, venham! Ele agarrou a mão de Gabriel e puxou o menino. Michelle e Willa assistiam de fora. Na escuridão do túnel, podiam distinguir as imagens dos dois homens e do menino correndo o máximo que podiam.
– Venham! – gritou Willa. – Sean, corra! – acrescentou Michelle. Faltava pouco mais de meio metro. Depois alguns centímetros. Sean passou pela entrada. A última carga explodiu. Uma torrente de terra e fumaça jorrou para fora da montanha enquanto os túneis da mina desmoronavam por completo. Quando afinal a poeira assentou, Sean King estava esparramado no chão coberto de terra e pedras. Em cima dele estava Gabriel, ainda respirando. Contudo, não havia nenhum sinal de Sam Quarry. Ele ficara dentro da mina, debaixo de toneladas de rochas.
DAN COX ESTUDARA EM algumas das melhores escolas do país. Fora bem-sucedido em praticamente tudo o que tentara fazer. Como presidente, tinha um ótimo traquejo tanto ao resolver problemas internos do país quanto ao lidar com política externa. Quando se tratava de questões intelectuais, ele era praticamente impecável. Apesar de tudo isso, as pessoas que o conheciam bem, assim como à esposa dele, concordariam – pelo menos em caráter confidencial – que Jane Cox era provavelmente mais esperta que o marido. Ou, no mínimo, mais astuciosa. Enquanto sobrevoava o Alabama rural em um helicóptero, ela demonstrou o que motivava essa opinião. O plano de Dan Cox não iria funcionar, concluiu. Não poderiam simplesmente levar aquela questão na conversa ou atribuir a culpa a terroristas. Havia coisas que eles desconheciam e que simplesmente tinham que saber para poderem planejar o que fariam. Ela olhou pela janela do helicóptero e viu a grande casa abaixo. Estivera olhando pela janela o tempo todo e aquela era a primeira casa pela qual passavam. As probabilidades eram muito boas de que quem quer que fosse dono da propriedade também possuísse a casinha onde ela quase morrera. Ela apontou para a casa. – Quem é o dono daquela propriedade? Um jovem agente olhou pela janela. – Não sei. Aquela fora a outra coisa que Jane sutilmente havia orquestrado sem parecer fazê-lo. Larry Foster e Chuck Waters estavam voando na companhia de seu marido. Ela também banira o veterano Aaron Betack para o outro helicóptero. Tinha feito isso com apenas um olhar. O homem havia fugido para a segurança do Marine One. Fizera o mesmo com o agente Waters. Assim, o destacamento de segurança que a acompanhava era relativamente jovem. Os dois integrantes da equipe de resgate de reféns eram apenas atiradores. Ela sabia como lidar com eles. – Quero ir até aquela casa. – Como disse? – perguntou o agente, confuso. – Diga ao piloto para aterrissar na frente daquela casa. – Mas minhas ordens... – Acabo de passar por uma terrível provação. Quase fui morta. Não estou me sentindo muito bem e quero sair deste helicóptero antes que comece a vomitar. Fui clara? Porque, se não me entendeu, vou falar do assunto com o presidente quando chegarmos a Washington e com certeza informarei seus superiores. Os homens da equipe de resgate se entreolharam, mas não disseram nem uma palavra sequer. Os outros agentes posicionados ao redor da primeira-dama olharam fixamente para o piso do helicóptero, sem querer fazer contato visual com a mulher. – Walt, leve-nos até aquela casa – ordenou o agente ao lado de Jane. Aterrissaram um minuto depois e Jane saltou do helicóptero e andou em direção a Atlee. O jovem agente correu à frente dela. – Senhora, posso lhe perguntar aonde vai? – Vou entrar naquela casa, pedir um copo d’água e me deitar um pouco. Algum problema? – Não, senhora, é claro que não. Mas primeiro me deixe apenas fazer uma vistoria do lugar. Ela olhou para ele com desdém. – Você realmente acha que há criminosos ou terroristas escondidos dentro daquela casa velha? – Temos protocolos a seguir, senhora. Deixe que eu verifique as coisas. Jane simplesmente seguiu andando, sem lhe dar atenção, obrigando a equipe de agentes e atiradores a correr à sua frente e formar uma barreira improvisada ao seu redor.
A porta se abriu e Ruth Ann apareceu lá, com seu avental de cozinha. Quando viu quem tinha acabado de tocar a campainha, seu queixo caiu. – Será que eu poderia incomodá-la e pedir um pouco de água e um lugar para me deitar, senhora...? Quando Ruth Ann reencontrou sua voz, ela disse: – Eu sou Ruth Ann. A senhora pode entrar, por favor. Venha, entre. Vou buscar a água. Depois de pegar um copo de água, Ruth Ann ensaiou se retirar, mas Jane fez sinal para que ela ficasse na pequena saleta. Ruth Ann se sentou em frente a ela, parecendo tão nervosa quanto era possível estar sem desmaiar. – Vocês poderiam esperar no corredor? – disse Jane para o chefe da segurança. – Acho que estão deixando nossa amiga aqui nervosa. – Senhora... – começou a falar o agente. – Obrigada – disse ela, dando-lhe as costas. – Você mora aqui sozinha? – perguntou Jane, depois que o homem se retirou para o corredor. – Não, senhora. Moro aqui com meu filho e o seu Sam. Esta casa é dele. – Sam? – Sam Quarry. – Eu conheço este nome. Ele tem uma filha, não tem? Tippi? – Tem, sim, senhora. Ela não está aqui no momento. Não sei onde está. Ruth Ann parecia querer sair correndo dali, mas ficou sentada, remexendo no avental com seus dedos marcados e calejados pelo trabalho. – Alguém esteve visitando vocês recentemente? Ruth Ann olhou para baixo. – Eu... hum... Jane se inclinou para ela e pôs a mão com delicadeza sobre o ombro magro da mulher.
– Não vim até aqui por acaso, Ruth Ann. Eu sei das coisas, sabe? Sei do Sam. Eu queria vir aqui para tentar ajudá-lo. E ajudar você e seu filho. Ele está aqui? Ruth Ann balançou a cabeça. – Ele saiu com aquele pessoal. – Pessoal? Que pessoal? – Um homem e uma mulher. – Você os conhecia? – Não, eles apenas apareceram aqui bem cedinho hoje de manhã. – É mesmo? E você deixou seu filho sair com desconhecidos? – Eu... Ele quis ir. Eles são do governo, como a polícia. E Gabriel disse que queria ir ajudar seu Sam. E seu Sam, se ele fez alguma coisa errada, eu não sei nada do assunto. Nem o Gabriel. Uma lágrima bateu no avental manchado. – Tenho certeza que não, Ruth Ann. Tenho certeza. Então essas pessoas vieram aqui. Elas lhe disseram seus nomes? – O homem disse que o nome dele era... King. Isso mesmo: King. – Um homem alto, bonito? A mulher também era alta e morena? – A senhora conhece? – Na verdade, são amigos meus. O que eles queriam aqui? – Estavam procurando a sua sobrinha. Eu disse a eles que não sabíamos de nada a respeito disso. E juro por Deus: não sabemos. – Eu acredito em você – disse Jane em tom tranquilizador. – É claro que não sabia. – E então Gabriel quis mostrar a eles aquela sala. – Sala? – A do porão. Seu Sam tem um monte de coisas naquela sala. Coisas nas paredes. Fotografias e anotações, um monte de papel. E tinha o retrato da sua sobrinha lá. Gabriel me mostrou. Ela é uma menina bonita.
– E King e a amiga dele viram essa sala? – Ah, sim, viram. Ficaram lá uma porção de tempo. E ficaram muito animados. – Pode me mostrar a sala também? – Senhora? Jane se levantou. – Eu gostaria muito de vê-la. Ignorando os protestos do pessoal encarregado de sua segurança, Jane e Ruth Ann desceram até a sala. A porta estava destrancada. O chefe do destacamento insistiu em, no mínimo, certificar-se de que não havia ninguém de tocaia lá dentro. – Então vai ser apenas isso – disse ela em tom severo. – Nem acenda as luzes. Depois saia imediatamente. Foram necessários apenas alguns segundos para confirmar que a sala estava vazia. Jane se virou para Ruth Ann: – Importa-se se eu entrar sozinha? – Pode ir. Eu não quero entrar lá de novo. Jane fechou a porta depois de entrar, acendeu a luz e olhou ao redor. Ela começou numa extremidade do aposento e foi seguindo até chegar ao lado oposto. A cada foto, cada linha escrita, lembranças terríveis afloravam e se apoderavam dela. “Ele me estuprou, papai” leu em uma parede, quando voltou para o começo da sequência. Puxou uma cadeira para o meio da sala, sentou-se e continuou a olhar fixamente para aquela história. Para a sua história. Jane examinou as gavetas de arquivos, mas a maioria delas estava vazia. Só cedeu às lágrimas uma vez, quando viu a foto de Willa olhando para ela. Jane não tinha sido inteiramente sincera com o marido a respeito da menina. Tinha querido que ela ficasse na família porque aquele sempre seria um segredo que ela poderia usar para manipular Dan Cox. O marido dela era um homem bom, mas imprevisível. Tinha certeza de que chegaria uma fase no casamento deles, depois que deixassem a Casa Branca, em que ter aquele segredo nas mãos lhe seria útil. Era uma ideia inebriante saber que o presidente dos Estados Unidos na verdade era menos poderoso que sua mulher. Contudo, com o passar dos anos, ela acabara por amar Willa e se preocupar com ela. Jane a queria de volta. Precisava admitir que Sam Quarry era um homem de talento e tenacidade. Tinha realmente alcançado uma façanha espantosa. Depois do que ocorrera naquele dia, haveria uma investigação, é claro. Esse era o verdadeiro problema, mas não um problema insuperável. A boa sorte que sempre acompanhara seu marido se manteria. Jane sabia exatamente o que precisava fazer e, seguindo seu lado naturalmente prático, começou a fazê-lo. Seria apenas mais uma vez que ela teria que limpar a sujeira. Só mais uma vez. Ela olhou fixamente para a parede. O marido não seria lembrado desta maneira. Ele tinha mudado. Não merecia o que estava ali. Nem eu mereço. Quando se tinha lutado e aberto caminho até chegar ao nível que os Cox haviam atingido, perdia-se toda a individualidade. Você não era mais ele ou ela. Você era o povo. Cinco minutos depois, ela saiu e fechou a porta às suas costas. Olhou para o chefe de seu destacamento e anunciou: – Quero voltar para Washington imediatamente. Ela se virou para Ruth Ann: – Muito obrigada por sua hospitalidade. – De nada. Muito obrigada também. – Tudo vai ficar bem. Não se preocupe. Eles subiram a escada rapidamente e saíram de Atlee. O helicóptero levantou voo segundos depois. Seguiu rumo noroeste e o piloto imprimiu velocidade. Logo estava fora de vista. Ruth Ann fechou a porta da frente e voltou para a cozinha. Alguns minutos depois, sentiu um cheiro estranho. Foi andando de aposento em aposento, tentando descobrir o que era. Finalmente se aventurou a descer a escada, atravessou rapidamente o corredor e chegou à porta da sala no porão. Quando tocou a maçaneta, esta lhe pareceu quente. Confusa, ela a abriu.
Foi naquele momento que o fogo ateado por Jane Cox usando solvente, trapos e um fósforo atingiu os cilindros de oxigênio. A explosão sacudiu a velha casa de fazenda até as fundações. A bola de fogo que rugiu pela porta aberta engoliu Ruth Ann, incinerando-a. A mulher não teve tempo nem de gritar. Quando afinal o fogo foi visto, o alarme foi dado e pessoas foram chamadas para ajudar, era tarde demais. Na hora em que os bombeiros voluntários da região chegaram, já quase não restava nada de Atlee. Mais tarde, Sean, Michelle, Willa e Gabriel adentraram a longa entrada para carros. Quando viram o que estava acontecendo, Gabriel saltou com o veículo ainda em movimento e correu o restante do caminho. – Mamãe! Mamãe! Michelle acelerou e eles avançaram com velocidade. Gabriel corria tão depressa que chegou às ruínas da casa junto com eles. Enquanto desembarcavam do carro, o garotinho já tinha passado pelos bombeiros e estava entrando no que restava da casa. Sean foi correndo atrás dele. – Gabriel! Michelle correu para um dos bombeiros e mostrou sua identidade. – Vocês encontraram alguém? Uma senhora negra? O homem olhou para ela muito sério. – Encontramos... os restos mortais de alguém. Ele olhou para Gabriel, que escavava os escombros em busca da mãe. Michelle se virou e correu para junto dele, apoiando-se na perna boa. Ela parou no momento em que Gabriel sentou no chão, soluçando e segurando alguma coisa. Quando Michelle se aproximou mais um pouco, viu o que era. Um trapo queimado. Mais que isso: eram os restos de um avental. Enquanto Sean e Michelle tentavam acalmar o garoto, Willa se aproximou andando cuidadosamente em meio às pilhas de escombros molhados e ainda fumegantes, sentou ao lado dele no chão e o envolveu com os braços.
Ele olhou para ela. – Era... era da minha mãe. – Eu sinto muito – disse ela em voz baixa. – Sinto muito mesmo, Gabriel. Ele olhou para a menina, o rosto contorcido de angústia, mas balançou a cabeça em agradecimento. Depois começou a soluçar de novo. Willa o abraçou ainda mais forte. Sean olhou para Michelle. – Eu nunca pensei que fosse a mãe dele que estivesse em perigo – sussurrou. – Nós não tínhamos como saber. Você acha que isso foi algo que Quarry fez? Para destruir as provas? – Não sei. Sean e Michelle recuaram um pouco e observaram as duas crianças sentadas ali, uma consolando a outra. Pela expressão no rosto dos investigadores, era claro que estavam pensando na mesma coisa. Willa não sabia, mas iria vivenciar exatamente aquele luto e perda, mas nenhum dos dois teve coragem de dar a notícia a ela naquele momento. Bem antes que a última viga caísse por causa do incêndio e a casa ancestral dos Quarry deixasse de existir, Jane e Dan Cox estavam aterrissando na base aérea de Andrews. Jane tinha contado ao marido o que fizera. Ele elogiou a esposa pelo raciocínio rápido e lhe deu um beijo. A despeito da provável perda da sobrinha, o casal seguiu de volta para a Casa Branca mais animado do que andara ultimamente. Eles de fato haviam sobrevivido – mais uma vez.
O PAÍS INTEIRO SE ALEGROU Com o resgate de Willa Dutton sã e salva. Seu retorno foi ainda mais emocionante e doloroso, pelo fato de a mãe ter morrido. Willa agora era a mocinha corajosa da América, mas o público quase não a vira, porque a família estava protegendo a menina abalada do assédio da mídia. Visivelmente aliviados, Dan e Jane Cox citaram o nome da sobrinha regularmente durante a campanha e pediram ao público e à mídia que respeitassem a privacidade da criança enlutada. Se Willa era a matéria número um na imprensa, a segunda era a tentativa de assassinato de Dan Cox por pessoas ainda desconhecidas, embora houvesse uma investigação em curso. Ainda que ele mesmo só falasse rápida e modestamente sobre aquela provação, sua equipe se certificara de dar conhecimento ao público de quanto ele e a primeira-dama tinham sido corajosos e arriscado a vida para tentar resgatar a sobrinha, frustrando os planos dos prováveis terroristas – era no que a maioria da população acreditava – que haviam tentando matar o presidente. Ele estava tão à frente nas pesquisas de intenções de votos que agora até a oposição reconhecia abertamente a impossibilidade de vencer. Jane nunca fora tão popular. Ela aparecera nas capas de várias revistas e fizera participações em todos os principais jornais e programas de entrevistas. Para os que a conheciam bem – embora parecesse fisicamente a mesma, ainda radiante, apesar de mais magra –, havia algo diferente nela. Certa luz em seus olhos havia desaparecido. Sean King e Michelle Maxwell também tinham sido levados ao foco dos interesses nacionais, ainda que a contragosto. Depois de o presidente e o agente Waters terem mencionado o que eles tinham feito para frustrar a tentativa de assassinato, eles foram inundados de perguntas da imprensa, a tal ponto que ambos resolveram se mudar para locais não revelados.
Tinham relatado a Waters o que havia acontecido na mina e que Diane Wohl ficara lá, assim como Daryl e Sam Quarry. Houve tentativas de escavar a mina, mas estava se tornando claro que o que quer que pudesse estar lá dentro permaneceria onde estava. Quando Waters perguntou sobre a motivação de Quarry para fazer tudo aquilo, ambos afirmaram desconhecer a resposta. O braço de Sean estava sarando e Michelle pôde voltar a pisar com o pé no chão. Por isso, quando passou a usar a bota imobilizadora, não precisou mais das muletas. Como que por milagre, Gabriel não havia sofrido nenhum ferimento físico grave. Porém, perder a mãe representara um grande impacto emocional para ele. Sean e Michelle haviam conversado sobre o que fazer com o menino. – Não podemos simplesmente encaminhá-lo para o serviço social e a adoção – disse ela. – Também não quero isso. Quero encontrar um lar maravilhoso para ele, com uma família maravilhosa. – Não creio que nada vá ser maravilhoso para ele por muito tempo – disse Michelle. – Não importa que tipo de família ele acabe por encontrar. – Você acha que nós poderíamos cuidar dele por algum tempo? – sugeriu Sean, finalmente. – Nós? Nós moramos em casas separadas. Não somos casados. E com o nosso trabalho, passando a metade do tempo fora de casa, nunca nos dariam a guarda dele. – Podemos tentar. Michelle pensara a respeito e depois tinha apertado a mão de Sean com um sorriso nos lábios. – Podemos tentar. Pelo menos por algum tempo. Com a ajuda do FBI e da Casa Branca, Sean e Michelle rapidamente receberam a guarda temporária de Gabriel Macon, depois que ficou determinado que ele não tinha parentes vivos. Haveria obstáculos legais a transpor no futuro, mas por ora Gabriel tinha uma casa onde morar e gente para cuidar dele. Sean e Michelle viajaram até Atlee mais uma vez alguns dias depois de obterem a guarda de Gabriel. Não levaram o menino junto porque não havia mais nada para ele naquele lugar. Gabriel estava morando com Michelle e Sean numa casa fornecida pelo Serviço Secreto. O FBI ainda estava por lá, investigando o pouco que restara da antiga sede da fazenda e também do local onde Dan e Jane Cox quase haviam morrido – e onde Tippi Quarry tinha morrido. Mesmo não podendo alardear essa impressão, o FBI ficara maravilhado com a habilidade e a criatividade com que Sam Quarry arquitetara seu plano assassino. Sean e Michelle foram informados de que os agentes descobriram uma cavidade no solo perto da casinha onde o presidente e a primeira-dama quase morreram. Havia um monitor de TV dentro desse bunker, bem como binóculos, um controle remoto e outros equipamentos e provisões. Se alguém tinha estado ali dentro, ele ou ela já havia partido fazia tempo. Sean e Michelle desconfiavam de que fosse Carlos Rivera ou Kurt Stevens, mas não tinham nenhuma prova concreta. – Ele basicamente construiu uma câmara de gás para Dan e Jane Cox – disse Sean, enquanto olhavam para a casinha. – E matou a própria filha nela. – Foi eutanásia – respondeu Sean. – Depois de todos esses anos. A questão mais importante permanecia não resolvida para a dupla: o que fazer com relação ao que tinham descoberto no porão de Atlee. – Todo mundo está morto – disse Sean. – Sam Quarry, Tippi. Ruth Ann. – Talvez devamos apenas deixar as coisas como estão – disse Michelle. – Caso contrário, vamos arrastar Willa e Gabriel para dentro dessa história. – E dilacerar o país – acrescentou Sean. – Mas assim os Cox escapam impunes. – Eu sei. Talvez seja a melhor alternativa. Eles dirigiram de volta para as ruínas de Atlee. Um dos integrantes da equipe de resgate de reféns que protegia a área se aproximou:
– Li a respeito de vocês no jornal – disse ele. – Queria agradecer pelo que fizeram pelo presidente. – Tudo bem – disse Sean, sem muito entusiasmo, enquanto Michelle nem respondeu. Apesar de terem decidido não fazer nada a respeito do assunto, ambos agora pensavam no presidente sob outro prisma, muito diferente daquele que o homem enxergava. O homem fez um gesto com a cabeça indicando as ruínas. – Era um bocado diferente na primeira vez que estive aqui. – Você esteve antes de a casa ser destruída? – perguntou Michelle. Ele assentiu. – Eu estava num helicóptero com a primeira-dama quando ela nos fez aterrissar aqui. Disse que não estava se sentindo bem. Entrou e encontrou uma senhora negra. Acho que era a empregada. Elas conversaram um pouco e então a primeira-dama foi ao porão. Na verdade, ela insistiu em ir lá. E não nos deixou entrar. Ela entrou, ficou um pouco, depois saiu e nós fomos embora. Sean e Michelle olharam fixamente para os escombros. E depois Atlee ardeu até as fundações.
O CONVITE CHEGOU DOIS DIAS depois de eles terem voltado do Alabama. A Casa Branca estava bonita sob a luz suave de uma noite de fim de verão. Eles jantaram nos aposentos particulares da família do presidente. Ele mesmo não estava lá. Jane os havia convidado. Depois de terminada a refeição, foram sentar no salão de visitas e saborear o café servido pelo mordomo. Durante alguns minutos, ninguém falou nada. Sean e Michelle ficaram sentados ali, tensos, esperando que Jane fizesse contato visual. – Nós, sem dúvida, percorremos um longo caminho – disse ela por fim. – Como assim? – perguntou Sean. – Encontrar Willa, pôr as coisas de volta nos trilhos. Não tenho como lhes agradecer pelo que fizeram. Se não fosse por vocês, o presidente e eu estaríamos mortos. E Willa também. – Sam Quarry está morto. E o filho dele também. E Tippi Quarry. Mas já sabia disso. E um menino chamado Gabriel perdeu a mãe. E Diane Wohl? Nós a conhecemos como Diane Wright. Foi a mulher que transou com seu marido no carro em Atlanta, lembra-se? – Por favor, não seja rude, Sean. Não há necessidade disso. – Assim sendo, Willa perdeu as duas mães. Isso é uma verdadeira tragédia. – Você não tem provas de que Pam não fosse mãe dela. Ele tirou alguns documentos do bolso. – Na verdade, tenho. Estes são os resultados do teste de DNA. Mostram que Diane Wohl é ou era a mãe natural de Willa. Jane descansou a xícara, limpou os lábios com um guardanapo de linho e o encarou.
– Convidei vocês aqui para lhes propor que sigamos adiante, em vez de ficarmos presos ao passado. – Por que fazer isso? – perguntou ele, enquanto Michelle assistia em silêncio. – Porque sei que você entrou naquela casa. Sei que viu aquela sala. – Ah, quer dizer em Atlee? O lugar que queimou até as fundações depois que você saiu de lá? O mesmo incêndio que matou Ruth Ann? – Fiquei muito triste quando soube disso. – Você esteve com Ruth Ann, não esteve? – Rapidamente, sim. Ela me pareceu uma mulher simpática. Fico contente por termos ajudado vocês a obter a guarda temporária do filho dela. – O que houve, não conseguiu pensar em outra maneira de se livrar das provas, além de incendiar a casa e matar a mulher? Jane olhou para ele com uma expressão impassível. – Não tenho a menor ideia do que você está falando. Quando saí, a casa estava em perfeitas condições e ela também. Pode perguntar a qualquer um que estivesse comigo. E você está se aproximando perigosamente de um limite que não deveria ultrapassar, Sean. – Ora, isto é uma ameaça? Porque mesmo ameaças a gente sem importância como eu são passíveis de processo. – Gostaria de ouvir minha proposta? – Por que não? Já viemos até aqui. – O que aconteceu é lastimável. Em todos os sentidos. Sem entrar em detalhes, vou lhe confessar que tudo isso tem sido muito difícil, complicado. Tanto para mim quanto para o presidente. – É, mas que bom que foi tão simples para a família Quarry. Eles tiveram uma vida inteira de infelicidade por causa do que você e seu marido fizeram. Ela ignorou aquela interrupção. – Pelo bem do país, estou pedindo que não levantem questões que possam causar embaraços ao presidente. Ele é um bom homem. Serviu seu país com distinção. Tem sido um excelente pai.
– E por que deveríamos nos fingir de cegos? – Em troca, posso lhe garantir que não haverá ação contra você por ter arrombado o escritório de meu irmão e roubado seus arquivos. Arquivos confidenciais, alguns dos quais, pelo que soube, tratavam de questões de segurança nacional. É realmente uma ofensa muito séria. – Eu estava investigando um caso. A seu serviço. – Isso, é claro, seria uma questão a ser decidida pela Justiça. Mas eu nunca lhe sugeri que violasse a lei. Além disso, andei fazendo minhas investigações e tomei conhecimento de que você ameaçou Cassandra Mallory, creio que chantageando-a. Também me parece que a Srta. Mallory afirma que você lhe fez propostas sexuais impróprias quando esteve na casa dela, onde entrou sob falsos pretextos quando ela se encontrava despida. – A Srta. Mallory não me assusta nem um pouco, Jane. – Também soube que Aaron Betack aparentemente invadiu meu escritório e retirou algo de minha escrivaninha. E creio que fez isso a seu pedido. Não apenas a carreira do agente Betack no Serviço Secreto estará acabada, como vocês três poderiam ser presos. – Se puder provar isso, vá em frente. Mas, voltando à lista de feitos de seu maravilhoso marido, creio que você se esqueceu de um item. – Qual? – perguntou ela friamente. – O fato de ser um adúltero. Esse detalhe de algum modo se perdeu em sua lista? – E que tal ser um estuprador? – perguntou Michelle. Jane se levantou. – Vocês não têm prova de coisa nenhuma. Portanto, sugiro que guardem para si próprios essas acusações ridículas, a menos que queiram se ver em sérias dificuldades. Ele é o presidente dos Estados Unidos. Tenham um pouco mais de respeito. – Respeito por quê? – Não me interessa que mentiras vocês possam ter visto nas paredes daquela casa, vocês não têm o direito... Sean a interrompeu.
– O que nós vimos naquelas paredes era a verdade. Você também sabia e foi por isso que ateou fogo à casa. E nós temos todo o direito, minha senhora. – Minha senhora não, primeira-dama – disse ela. Sean também se levantou. – Quando foi que você deixou de se importar com a verdade, Jane? Depois do primeiro acobertamento? Do segundo? Foi convencendo a si mesma de que a culpa sempre era de alguma outra pessoa? Ou de que ele tomaria jeito um dia, tomaria algum remédio e tudo ficaria melhor? De que o passado, o sofrimento e os prejuízos causados aos outros, tudo seria apagado? Que a morte de um sujeito como Sam Quarry deixaria o acontecido para trás? Como todo mundo tinha feito? Porque seu marido era uma grande estrela em ascensão? Porque ele seria um presidente tão fantástico? – Você não sabe o que é viver aqui, nesta casa. Estar sempre no centro das atenções. Nunca, nem uma vez, poder baixar a guarda. Saber que o menor erro será noticiado no mundo inteiro. – Mas ninguém o obrigou a isso. Nem a você. – Eu trabalhei duro demais por isso! Ela se interrompeu e enxugou os olhos com um lenço. Sean a encarou. – Eu realmente pensei que a conhecesse. Eu respeitava você. Pensei que você fosse um ser humano de verdade. Era tudo mentira, não era? Tudo um truque com fumaça e espelhos. Puro teatro. Exatamente como esta cidade. Não há nada por trás da cortina. – Acho que está na hora de vocês saírem da minha casa. Michelle se postou ao lado de Sean. – Ótimo – disse ele. – Mas lembre-se apenas de uma coisa, Jane. Esta não é a sua casa. Ela pertence ao povo. Você e seu marido são apenas locatários.
O RAMO DOS JORNAIS ANDA péssimo, não é, Marty? – disse Sean em voz alta. – Ninguém mais quer esperar pelo jornal impresso. Está tudo on-line a qualquer momento, mesmo que seja invenção. Era meia-noite. Ele e Michelle estavam parados junto a uma coluna em um estacionamento subterrâneo no centro de Washington. O homem que vinha andando na direção deles parou e deu uma risadinha, enquanto Sean e Michelle avançavam para o foco das luzes adiante. Sean apertou a mão de Martin Determann e lhe apresentou sua parceira. – Qual é o negócio que não anda péssimo atualmente? – perguntou Determann, um sujeito baixo, com espessos cabelos pretos ficando grisalhos, voz alta e sonora e os olhos atentos que pareciam dançar por trás dos óculos finos. – E pedir às pessoas que dediquem algum tempo a ler e a pensar? Que heresia! Sean sorriu. – Ninguém gosta de chorões, Marty. – Então por que toda essa armação de clandestinidade? – perguntou, olhando ao redor, para a garagem vazia. – Tenho a sensação de estar dentro de uma cena de Todos os homens do presidente. – Você acha que o seu Garganta Profunda vai ajudá-lo a vender mais jornais? Determann deu uma risada. – Prefiro ganhar um prêmio Pulitzer, mas mantenho a mente aberta. Olhe, posso ser o ghost-writer de sua autobiografia. Com toda a publicidade que vocês dois receberam ultimamente, é bem provável que conseguíssemos vender a história a alguma editora por uma cifra de sete dígitos.
– Não estou brincado sobre ser um Garganta Profunda. Determann ficou sério. – Eu na verdade estava na esperança de que não estivesse. O que tem para mim? – Vamos. Isso vai demorar um pouco. Sean tinha alugado um quarto de motel um pouco ao norte. Eles seguiram para lá. – Então, como vocês se conheceram? – perguntou Michelle enquanto seguiam de carro pela George Washington Parkway, paralela ao rio Potomac. Determann deu uma palmada nas costas de Sean. – Este sujeito foi meu advogado no meu divórcio. Eu não sabia, mas minha ex-mulher era viciada em cocaína. Ela acabou com as minhas economias, me traiu com o entregador da UPS e teve a coragem de envenenar os peixinhos do meu aquário. E ainda quis levar metade de tudo o que eu tinha quando afinal descobri e entrei com a ação para tirá-la da minha vida. Quando Sean acabou com Úrsula, ela não levou coisa nenhuma. Eu fiquei até com o cachorro dela. O que foi bom, porque ele sempre gostou mais de mim. – Acho que Marty está exagerando meus feitos, mas, apesar de às vezes tomar certas liberdades quanto à verdade, é um excelente repórter. – Mas ainda estou à procura daquele primeiro Pulitzer. O repórter olhou para a grande pasta sanfonada que Sean tinha a seu lado no assento do carro. – Está aí dentro? – Logo você vai saber. Eles entraram no quarto. Sean fechou a porta, tirou o casaco e disse: – Vamos lá. Metodicamente, eles foram examinando todas as fotos que Michelle tinha tirado em Atlee e informando Determann do que haviam descoberto, desde os relatórios de deserção do Exército, passando pela história que Quarry tinha reconstituído nas paredes do porão até o momento em que, por muito pouco, escaparam da morte nas minas.
Quando chegaram à parte sobre a primeira-dama atear fogo à casa e matar Ruth Ann, Determann disse: – Vocês estão brincando! – Eu bem que gostaria. Sean mostrou a ele todas as pastas de arquivos que tinham retirado de Atlee, contendo parte dos detalhes da busca de Quarry por justiça. Determann fez muitas anotações e perguntas. Eles saíram para comprar café e beberam ao longo das horas. Quando o sol nasceu, eles saíram em busca de mais cafeína e de um bom café da manhã em um restaurante. Enquanto comiam, continuaram o relato, tendo o rio Potomac diante deles e jatos decolando de um aeroporto próximo. De volta ao quarto, Sean e Michelle se tornaram fumantes passivos dos cigarros que Marty levava à boca, um atrás do outro, enquanto os interrogava em detalhes tanto sobre o que tinham descoberto como sobre o que supunham. Quando afinal acabaram, o sol estava alto no céu e já tinha passado da hora do almoço. Determann se recostou e se espreguiçou. – Posso lhes afirmar com certeza que esta é a história mais espantosa que já ouvi. – Não puxe saco – disse Sean em tom de brincadeira. – Não fica bem. – Não, sinceramente, isto aqui faz Watergate e o escândalo com Monica Lewinsky parecerem piada. – Então acredita em nós? – perguntou Michelle. – Acreditar em vocês? Quem poderia ter inventado tudo isto? – disse, gesticulando em direção às fotos e páginas de anotações espalhadas sobre a mesa. – E não se pode dizer que estejam faltando provas. Ele acendeu outro cigarro. – Mas o que eu não compreendo é: por que sequestrar Willa? Quero dizer, ela é a sobrinha e tudo mais, mas como eles poderiam ter certeza de que o presidente faria o que queriam? Afinal, não era filha dele. Ninguém realmente poderia condená-lo se recusasse.
Sean apresentou outra pasta que tinha retirado dos arquivos de Quarry. Ele deliberadamente tinha suprimido aquela parte da história, esperando até que Determann fizesse a pergunta. – Estes são os exames de DNA que Quarry mandou fazer. Estes são do sangue de Pam e Willa Dutton. E este é do sangue de Diane Wright. Quarry escreveu os nomes à mão sob cada resultado. – Diane Wright, também conhecida com Diane Wohl – disse Determann, que demonstrara ter raciocínio rápido e já dominava plenamente a história e os nomes dos personagens principais. – Exato. – Mas por que um teste de DNA? – Para provar que a mãe biológica de Willa é Diane e não Pam. Determann pegou os papéis e os leu. – Pode me chamar de burro, mas não estou entendendo, Sean. Sean explicou o que havia acontecido naquela ruela na Geórgia quase 13 anos antes. Foi a primeira vez que contou aquilo a alguém além de Michelle. Sua lealdade a Jane Cox o levara a ficar em silêncio. Contudo, a lealdade tinha seus limites e ele havia chegado ao seu com a primeira-dama. Dissera a Sam Quarry, quando estavam naquela mina, que ajudaria a revelar a verdade se ele libertasse Willa. O homem cumprira sua parte no acordo e, embora Sean inicialmente tivesse decidido se manter em silêncio, depois que descobrira o que a primeira-dama tinha feito em Atlee, pretendia cumprir sua palavra. Determann se recostou na cadeira e tirou os óculos. – Então você pegou o senador Cox com Diane Wright? E Willa nasceu nove meses depois? E é filha dele? Cristo! E mais o que ele fez antes com Tippi Quarry... Que canalha! – Pois é, parece que ele não tinha controle sobre uma parte da sua anatomia – assinalou Michelle. Sean pegou uma foto que mostrava um homem de cerca de 40 anos e expressão azeda. – Quarry descobriu que foi Jane Cox quem indicou o açougueiro que fez o aborto em Tippi e que acabou cortando uma artéria da garota. A polícia a encontrou no porão de um prédio abandonado. Provavelmente o canalha a largou lá depois de se dar conta do que tinha feito. Ele tinha perdido a licença para exercer a medicina por causa de problemas com drogas e bebida, mas ainda “trabalhava” para os amigos. – E nada de médicos decentes ou hospital, porque Tippi poderia contar o que havia acontecido. Ou as pessoas poderiam começar a fazer perguntas inconvenientes. – Exato. Determann chegou para a frente na cadeira e examinou os papéis. – Mas ninguém checou o DNA do presidente? – Se fizessem um teste, o resultado seria positivo. – Bem, o governo tem o DNA dele nos arquivos. Talvez esta história faça com que peçam mais um exame. Ele começou a fazer anotações, mas parou quando Sean pôs a mão sobre a dele. Ele ergueu os olhos com uma expressão interrogativa. – Marty, posso pedir um favor? – Depois de me dar a matéria do século? Claro, acho que pode. – Não quero que escreva sobre essa parte da história, sobre Willa. – Como é? Michelle tomou a palavra. – Willa perdeu a mãe. A mulher que a concebeu também está morta. Nós achamos que seria uma carga pesada demais para ela, que não seria justo fazê-la passar por tudo isso. – E você tem mais do que o suficiente sem essa parte da história – acrescentou Sean. – Inclusive provas circunstanciais muito convincentes de que a primeira-dama incendiou uma casa e matou uma mulher inocente para esconder os desvios de conduta do marido. Mas você é o repórter, portanto, a decisão é sua. Não vamos obrigá-lo a nada. Determann pareceu pouco à vontade. – Vocês acham que Jane Cox pretendia matar Ruth Ann quando incendiou a casa?
– Esperamos que não. Mas acho que ninguém exceto ela mesma poderia responder a essa pergunta. Porém, sei que Willa já sofreu o suficiente. Determann assentiu e estendeu a mão para Sean. – Fechado. – Obrigado, Marty. – É uma matéria fantástica, Sean – comentou Determann. – Compreendo perfeitamente por que vocês querem que a verdade venha à tona. – Mas...? – perguntou Sean, desconfiado. – Mas isso vai abalar o país até a alma, cara. – Às vezes é preciso, Marty. Às vezes realmente é preciso.
WILLA ESTAVA SENTADA EM frente a Sean, Michelle e Gabriel, com as mãos no colo e de cabeça baixa. Eles estavam na casa que Tuck havia alugado, a cerca de um quilômetro e meio da antiga, que fora posta à venda. Nenhum deles queria voltar a morar lá. Tuck estava sentado ao lado da filha, com um braço protetor ao redor de seus ombros. – Sinto muito que sua mãe tenha morrido – disse Gabriel, sem olhar diretamente para Willa. Ele vestia uma camisa polo branca e calça jeans nova e segurava um boné de beisebol dos Atlanta Falcons, que Sean lhe comprara para substituir o que ele havia perdido no incêndio. Tinha uma das mãos no bolso, os dedos curvados ao redor de seu único pertence que sobrevivera ao incêndio: a moeda que Sam Quarry pusera em sua mesinha de cabeceira antes de deixar Atlee para sempre. – Também sinto muito pela sua mãe – disse Willa. – Você foi muito corajoso lá na mina. Acho que não teria sobrevivido se não fosse por você. Gabriel olhou de soslaio para Sean. – Foi ele quem me tirou de lá. Eu com certeza não teria saído sem o Sr. Sean. Willa correu os olhos por sua nova casa antes de voltar a encarar Gabriel. – Ele tinha uma filha. O nome dela era Tippi. – Tinha. Ela estava muito doente. Seu Sam me deixava ler para ela. – Jane Austen, ele me disse. – Ele falava muito dela? – perguntou Sean a Willa.
– Não muito, mas dava para ver que pensava muito nela. Era uma daquelas coisas que a gente sabe. Ela lançou um olhar rápido para o pai. – Eu tentei fugir uma vez. Quase caí da montanha, mas ele me salvou. Seu Sam me segurou no instante em que eu ia cair. Tuck se remexeu um pouco. – Isso agora é passado, Willa. Você não precisa mais pensar nisso, querida. Acabou. Ela brincou com os dedos. – Eu sei, pai. Mas parte de mim... – Willa começou a dizer, mas se interrompeu. Então se inclinou para a frente: – Ele perdeu a filha, não foi? Ele perdeu Tippi? Michelle e Sean trocaram um olhar breve. – Sim, perdeu – concordou Sean. – Mas creio que seu pai tem razão: talvez seja melhor você não pensar muito nisso. Tuck olhou para Gabriel. Era evidente que o homem não estava muito à vontade com o fato de alguém associado a Sam Quarry estar em sua casa e na companhia de Willa, mesmo que fosse um garotinho inocente. – Quer dizer que ele está morando com vocês? Como está funcionando? O tom dele insinuava claramente que achava que não iria funcionar. – Está tudo indo maravilhosamente – disse Michelle com firmeza. – Nós já o matriculamos na escola para o próximo ano. Ele fez um teste de nivelamento e tirou nota máxima em álgebra, apesar de estar indo apenas para o sétimo ano, e suas médias em língua estrangeira são incríveis – disse orgulhosa. – Espanhol e língua nativa americana – acrescentou Sean. – Bem, isso é ótimo – disse Tuck, fingindo. – É maravilhoso – confirmou Willa, olhando para Gabriel. – Você deve ser muito inteligente. Gabriel deu de ombros. – Sou normal. Tenho muito que aprender e tudo aqui é... – Diferente? – perguntou Willa. – Eu posso ajudar.
Tuck deu uma risada forçada. – Espere um minuto, querida. Você vai estar muito ocupada com as suas coisas. Tenho certeza de que o Sr. King pode cuidar do garoto. Michelle olhou para Willa. – Mas obrigada por oferecer, Willa. Foi muito gentil – disse. Então encarou o pai da menina. – E quem sabe vocês dois possam se tornar bons amigos? Mais tarde, Tuck puxou Sean e Michelle em um canto, enquanto Willa mostrava seu quarto a Gabriel. – Não tenho palavras para agradecer o que vocês fizeram. As coisas que Willa me contou que aconteceram. Meu Deus! É um milagre que ela tenha sobrevivido, que todos vocês tenham. – Você provavelmente não vai querer ouvir isto, mas foi Sam Quarry quem voltou à mina para salvar Willa. Se ele não tivesse feito isso, ela não estaria aqui. O rosto de Tuck enrubesceu. – Certo, bem, se o babaca não tivesse feito nada daquilo, Willa nunca teria estado naquela mina e Pam também ainda estaria aqui. – Você tem razão. Tem conversado com sua irmã? Tuck fez uma careta. – Não muito. Dan queria levar Willa aos comícios com ele, mas... – Mas você achou que parecia exploração demais? – perguntou Michelle. – É, algo assim. – Agora as crianças realmente precisam de você, Tuck. Talvez fosse bom deixar seu sócio comandar as coisas por um tempo – sugeriu Sean. Ele fez uma pausa e acrescentou: – E trate de ficar longe da mulher dele. Antes que Tuck, surpreso, pudesse dizer qualquer coisa, Sean pôs a mão no ombro do homem e disse: – E se ousar se aproximar de Cassandra Mallory, eu capo você, seu filho da mãe.
Tuck deu uma risadinha curta antes de perceber que Sean estava falando sério. Mais tarde, enquanto eles se encaminhavam para o carro, Willa saiu voando da casa e foi correndo até junto deles. Entregoulhes três envelopes. – O que é isto? – perguntou Michelle. – Cartas de agradecimento, por tudo o que fizeram por mim. – Querida, não precisava. – Minha mãe dizia que sempre se devem escrever cartas de agradecimento e, além disso, eu queria escrever. Gabriel segurou seu envelope como se fosse a coisa mais preciosa que já tivesse recebido. – Foi muito bacana. Obrigado, Willa. Ela olhou para eles, os olhos tão enormes que pareciam abarcar todo o rosto. – Eu odeio seu Sam pelo que ele fez com minha mãe. Gabriel imediatamente baixou o olhar e deu um passo atrás. – Eu entendo, querida – disse Michelle. – Não creio que fosse intenção dele feri-la, mas a culpa foi dele. – Pouco antes de me libertar, ele me disse que se você ama, também tem que estar preparada para odiar. Acho que ele estava dizendo que, se uma pessoa fere alguém que você ama, você vai odiar essa pessoa. Que isso é natural. – Acho que sim – disse Sean, meio incomodado, sem saber para onde a conversa seguiria. – Acho que seu Sam amava a filha dele. – Eu também acho – disse Michelle baixinho, esfregando o olho esquerdo. – Ele amava, sim – afirmou Gabriel. – Sem dúvida. – E porque alguém fez mal a ela, ele odiou essa pessoa. – Provavelmente isso está correto – disse Sean. – Mas depois ele disse que a gente precisa se libertar do ódio. Caso contrário, ele corrói você por dentro. E não deixa o amor entrar.
Ela olhou para Gabriel ao dizer isso. As duas crianças ficaram se encarando por um longo momento. – Acho que seu Sam estava certo, Willa. Isso vale para nós dois. Uma lágrima bateu na camisa nova de Gabriel, enquanto muitas outras escorriam pelas faces de Willa. Michelle virou o rosto enquanto Sean respirava fundo várias vezes e Willa os fitava com seus olhos enormes e tristes. – Então eu não vou mais odiá-lo. Michelle deixou escapar um soluço e recuou um passo, tentando se esconder atrás de Sean, cujos olhos também se encheram de lágrimas. – Muito bem, Willa – disse Sean com a voz rouca. – Provavelmente é uma boa ideia. Ela deu um abraço em cada um dos três e correu para dentro da casa. Sean, Michelle e Gabriel ficaram parados ali por um momento. Finalmente, o menino disse: – Ela é uma boa amiga. – Sim, é mesmo – concordou Michelle. – É mesmo. Ajudado por seu heroísmo e pelo retorno dramático da adorada sobrinha, Dan Cox foi reeleito para um segundo mandato na Casa Branca com uma das margens de votos mais altas jamais vistas nas eleições presidenciais americanas. Dois meses depois da posse, Martin Determann, que havia se dedicado dia e noite à grande matéria de sua vida, publicou seu trabalho de nove páginas no Washington Post. Determann sabiamente havia aproveitado todo o material colhido ao longo de anos por Sam Quarry, mas acrescentara o olhar de um jornalista investigativo profissional e, mais importante, provas sólidas. Sua história era fundamentada em fatos e fontes tão meticulosamente colhidos e catalogados que todos os outros órgãos de imprensa do mundo imediatamente reproduziram a matéria e conduziram suas próprias investigações, descobrindo mais segredos ocultos no passado de Dan Cox. E Determann foi indicado ao prêmio Pulitzer.
O resultado de tudo isso criou uma onda de fúria contra Dan e Jane Cox por toda a nação. Tanto que, em um dia sombrio de abril, desmoralizado e humilhado, Dan Cox fez um pronunciamento no Salão Oval e anunciou que deixaria a Presidência ao meio-dia do dia seguinte. E deixou.
UM MÊS DEPOIS DA renúncia de Cox, Sean e Michelle mais uma vez visitaram Atlee. Tippi Quarry tinha sido enterrada ao lado da mãe, no cemitério de uma igreja local. Com base nas provas que Sean e Michelle tinham apresentado em depoimento sobre a morte de Sam Quarry, seu patrimônio havia sido transferido para Ruth Ann Macon, de acordo com os termos do testamento que Sean havia encontrado no porão – uma vez que a morte de Quarry precedera a dela, se bem que por apenas uma hora. E isso significava que Gabriel, como seu único descendente vivo, herdara o patrimônio de Sam Quarry. Sean estava trabalhando na parte legal de tudo isso com um advogado do Alabama. Planejavam vender os 80 hectares de terra a um incorporador, que estava disposto a pagar um preço alto o suficiente para garantir que Gabriel não tivesse problemas em pagar seus estudos na universidade e ainda guardar uma boa quantia. Depois que saíram da reunião com o advogado e os representantes do incorporador, eles caminhavam de volta para o carro alugado quando uma voz os chamou. – Oi! Eles se viraram e viram um homem de pele morena, cabelos na altura dos ombros, chapéu de palha de aba larga e rosto muito enrugado. Estava parado no lugar onde outrora ficava a varanda da casa. – Oi – respondeu Sean. Eles chegaram mais perto. – Você é Fred? – perguntou Michelle. Fred assentiu, enquanto se aproximava mais deles. – Eu sou Michelle e este é meu sócio, Sean.
Eles trocaram apertos de mãos e examinaram a área onde outrora ficara a plantação. – Conheceu o Sam? – perguntou Fred. – Rapidamente. O senhor o conheceu? – Era um bom homem. Permitia que eu vivesse em sua terra. Me trazia cigarros e uísque. Vou sentir falta dele. Vou sentir falta de todos. Acho que agora sou o único que sabe que Gabriel não mora mais aqui. Eu tinha dois amigos índios que moravam comigo, mas eles foram embora. – Koasatis? – perguntou ela. – A tribo perdida, sim. Como sabia? – Palpite. – Soube que a fazenda está sendo vendida. Estão envolvidos nisso? Vi que se encontraram com um pessoal de fora. – Isso mesmo, mas Gabriel nos falou do senhor e incluímos uma cláusula que garante que o senhor e seu trailer ainda terão um lugar aqui. Fred deu um sorriso triste. – Duvido que vá importar. – Por quê? Ele tossiu. – O médico disse que só tenho mais alguns meses de vida. Doença nos pulmões. – Sinto muito – disse Sean. – Não se incomode. Eu sou velho. Está na minha hora. Ele pôs a mão pequenina na manga de Michelle. – Gostariam de ir até meu trailer e tomar uma cerveja? É perto daqui. E meu trailer nunca viu ninguém tão bonito quanto esta moça. Michelle sorriu. – Como recusar um convite como este? Eles sentaram dentro do pequeno trailer e beberam uma garrafa de cerveja cada. Fred os regalou com histórias sobre Sam e Gabriel e a vida em Atlee.
– Eu sempre soube que Sam era infeliz. Ele tentava não demonstrar, mas era. Sean tomou um gole de cerveja e assentiu. – Acho que tem razão. – Sam tinha um grande respeito pela nossa cultura. Sempre me fazia muitas perguntas sobre ela, nossos símbolos e rituais. Sean se empertigou na cadeira. – Fred, eu vi uma marca no braço de Sam. Na camada de poeira na mesa maltratada do trailer, Sean desenhou a marca. – Quatro linhas. Uma longa cortada por duas perpendiculares em cada extremidade, com uma curta no meio. Fred começou a balançar a cabeça antes que ele acabasse. – Eu contei a ele essa história. Sabe, na cultura nativa americana, essa é a marca da proteção espiritual. Não é koasati, mas outra língua indígena. Não sei ao certo qual. De qualquer maneira, a linha esquerda significa winyan, ou mulher. A direita significa wicasa, ou homem. A longa linha no centro representa wakanyeza, ou crianças inocentes. – Mas o que significa tudo junto? – perguntou Sean. – Significa a responsabilidade do pai de sempre proteger os filhos. Sean olhou para Michelle. – Obrigado, Fred. No caminho de volta para o aeroporto, Michelle disse: – Como pessoas como Jane e Dan Cox conseguem chegar tão longe? – Porque ela é forte e durona e está disposta a fazer tudo o que for preciso. E ele tem o dom de fazer as pessoas torcerem por ele, quererem ajudá-lo. É um homem que atrai as pessoas. – E isso basta? Deus nos ajude. – Mas tudo tem seu preço, Michelle. – É mesmo? Qual? – perguntou ela, com ceticismo. – Saber que um dia tudo pode ruir.
– Não me parece ser um preço alto o suficiente, desculpe. – Acredite, a renúncia foi apenas o começo. Eles têm algumas décadas de depoimentos e julgamentos pela frente. E terão muita sorte se não acabarem na cadeia. Eles seguiram em silêncio por alguns quilômetros até que Sean estendeu a mão para o banco de trás e tirou alguma coisa de sua maleta. Michelle, que estava dirigindo, olhou. – O que é isso? – A pasta que você jogou no lixo na noite em que arrombou o consultório de Horatio Barnes. – O quê? Como? – Eu dobrei a esquina a tempo de ver você jogá-la fora. Tirei-a de lá e a enxuguei. Eu não li o que tem dentro. Nunca faria isso. Mas achei que você poderia querer ficar com ela. Ela olhou para a pilha de papéis. – Obrigada, mas não preciso disso. Meu pai e eu já resolvemos o assunto. – Então você sabe o que tem aqui dentro. – Eu sei o suficiente, Sean. Sei o suficiente. Depois que eles aterrissaram em Washington, Michelle pegou seu carro no estacionamento do aeroporto. Trinta minutos depois, eles estavam no apartamento dela. Tinham decidido que Gabriel ficaria na casa dela dali por diante, mas Sean teria igual responsabilidade de cuidar do menino. Naquela noite, contudo, Gabriel estava dormindo nada mais nada menos que na casa de Chuck Waters. O agente do FBI tinha seis filhos, três dos quais na mesma faixa etária de Gabriel, e o veterano de cara azeda havia demonstrado ter um coração mole com crianças e simpatizara com Gabriel imediatamente. Waters morava em Manassas e ao longo dos últimos meses Gabriel tinha feito amizade com os filhos dele. Sean achava que secretamente Chuck estava recrutando o inteligentíssimo Gabriel para uma carreira no FBI depois que terminasse a faculdade. Sean, no entanto, já havia avisado Gabriel disso. “Você tem que querer ir mais alto que o FBI”, dissera a Gabriel, enquanto os dois e Michelle estavam jantando certa noite.
“Mais alto quanto?” “O Serviço Secreto, é claro”, respondera Michelle. Michelle largou as chaves do carro sobre o balcão da cozinha. – Pegue uma cerveja. Eu vou tomar uma ducha rápida e trocar de roupa. Depois talvez a gente possa sair para jantar. – Vou dar uma ligada para Waters e saber como Gabriel está – disse, com um sorriso. – Esse negócio de ser pai não é nada mau. – É, mas isso é porque você escapou das noites sem dormir e das fraldas sujas. Sean abriu um refrigerante, sentou no sofá e ligou para Waters. Gabriel estava bem, disse o agente. Quando Sean falou com o garoto, a alegria em sua voz confirmou isso. Ao desligar o telefone, Sean ouviu o chuveiro ser aberto no quarto de Michelle. Tentou assistir à televisão, mas a trama do filme policial era muito fraca se comparada aos acontecimentos que acabara de viver. Ficou sentado ali de olhos fechados, tentando esquecer o que havia acontecido nos últimos meses, pelo menos por alguns segundos. Quando abriu os olhos, percebeu que Michelle não havia voltado. Consultou o relógio. Haviam se passado 15 minutos. Não ouvia nenhum som vindo do quarto. – Michelle? Sem resposta. – Michelle! Ele resmungou um palavrão, levantou-se e olhou ao redor. Com todas as loucuras em que haviam se metido, quem poderia garantir? Sacou a pistola e lentamente seguiu pelo pequeno corredor. Acendeu a luz, empurrando o interruptor com o cotovelo. – Michelle! Ele abriu lentamente a porta do quarto. Uma tênue luz vinha do banheiro. Ele chamou em tom mais brando: – Michelle, está tudo bem? Você está passando mal? Ele ouviu o barulho do secador de cabelo e suspirou aliviado. Virou-se para sair do quarto, mas não saiu. Apenas ficou parado ali, olhando para a fenda de luz que passava por baixo da porta do banheiro. Alguns minutos depois, o secador foi desligado e ela saiu com o cabelo ainda úmido, vestindo um roupão grosso e comprido. Não era uma versão sexy como o que Cassandra Mallory havia usado. Michelle estava completamente vestida. Sem nem um vestígio de maquiagem. E, no entanto, para Sean, não havia comparação. A mulher para quem estava olhando era a pessoa mais bonita que já tinha visto. – Sean? – disse ela com surpresa. – Está tudo bem? – Vim ver se estava tudo bem com você. Fiquei preocupado. Ele baixou o olhar, encabulado. – Mas parece que você está bem. Quero dizer, está... fantástica. Ele se virou para sair. – Vou esperar na sala. Talvez um jantar... Antes que ele sequer pudesse chegar à porta, ela estava ao lado dele. Tomou-lhe a mão na sua e o puxou para dentro do quarto. – Michelle? Ela tirou sua arma e a colocou em cima da cômoda. – Vem cá. Eles se moveram para a cama e sentaram um ao lado do outro. Ela tirou o roupão e começou a desabotoar a camisa dele, enquanto ele lhe acariciava o quadril. – Tem certeza de que quer isso? – perguntou ele. Ela parou de desabotoar. – E você? Ele pôs a mão sobre os lábios dela e, com o dedo indicador, traçou seu contorno. – Na verdade tenho certeza há muito tempo. – Eu também. Michelle se deitou na cama e puxou Sean para junto dela.

 

 

                                                                  David Baldacci

 

 

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