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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


TRAINSPOTTING / Irvine Welsh
TRAINSPOTTING / Irvine Welsh

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

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A Turma da heroína, Jean-Claude Van Damme e a Madre Superiora
O Sick Boy tava jorrando suor; ele tava tremendo. Eu só tava sentado ali, concentrado na tevê, tentando não reparar no viado. Ele tava me deprimindo. Tentei manter minha atenção no vídeo do Jean-Claude Van Damme.
Como sempre acontece nesses filmes, eles começaram com uma obrigatória cena dramática de abertura. Daí acumulavam tensão na etapa seguinte, apresentando o vilão canalha e costurando uma trama toda esburacada. Mas quando menos se espera, o bom e velho Jean-Claude Van Damme tá pronto pra cair na porrada com tudo.
– Rents. Preciso ver a Madre Superiora – arfou o Sick Boy, sacudindo a cabeça.
– Tá – respondi. Eu queria que o maluco simplesmente sumisse da porra da minha frente, que fosse sozinho e me deixasse com o Jean-Claude. Por outro lado, não ia demorar muito pra eu também ficar na fissura, e se aquele viado fosse sozinho e comprasse a heroína, depois ia me deixar na mão. Não chamam ele de Sick Boy porque ele tá sempre torto de abstinência de heroína, e sim porque é mesmo um cara doente.
– Vamolá, porra – ele berrou, desesperado.
– Peraí um segundo – eu queria ver o Jean-Claude arrebentar um fiadaputa arrogante. Se a gente fosse agora, não ia dar mais pra assistir. Eu estaria detonado demais quando voltasse pra casa, e de qualquer modo isso provavelmente só ia acontecer daqui a alguns dias. Isso queria dizer que eu ia pagar uma porra duma multa na locadora por causa de um filme que eu nem tinha assistido.
– Tenho que ir nessa, cara! – ele grita, ficando em pé. Vai até a janela e se apoia por lá, com a respiração pesada, parecendo um animal acuado. Os olhos dele não demonstram nada além de fissura.
Desliguei a tevê com o controle. – Que porra de desperdício. É isso aí, uma porra dum desperdício – rosnei pro viado. Que canalha irritante.
Ele joga a cabeça pra trás e aponta os olhos pro teto. – Eu dou a grana pra cê devolver o filme. É só por isso que cê tá com essa porra dessa cara de bunda? Cinquenta miseráveis centavos de libra, que fortuna!
Esse viado tem um jeito especial de fazer cê se sentir mesquinho e pequeno.
– Não tem nada a ver com isso – respondi, sem muita convicção.
– Sei. A questão é que eu tô aqui, sofrendo pra caralho, e o cara que se diz meu amigo fica arrastando os pés de propósito, tirando prazer de cada segundo – os olhos dele tão do tamanho duma bola de futebol, e parecem hostis mas suplicantes ao mesmo tempo; evidências pungentes da minha suposta traição. Se eu conseguir viver o bastante pra ter um filho, espero que ele nunca me olhe do mesmo jeito que o Sick Boy. O viado é irresistível quando tá assim.
– Eu não tava... – protestei.
– Então enfia a porra dessa jaqueta!

 


 


Não havia táxis no largo da Walk. Eles só se juntavam ali quando ninguém precisava deles. Em tese era agosto, mas a porra das minhas bola tavam congelando lá fora. Ainda não tava passando mal, mas não ia demorar, isso era certo.

– Era pra ter um ponto aqui. Era pra ter uma porra dum ponto de táxi. Nunca se encontra um no verão. Tão levando aqueles viado gordo e rico que vêm pro festival, preguiçosos demais pra caminhar cem metros de uma igreja metida a besta até a outra, pra ver as porra de espetáculo deles. Motoristas de táxi. Canalhas achacadores de grana... – o Sick Boy resmungava sozinho, delirante e sem fôlego, com os olhos saltados e os tendões do pescoço tensionados enquanto esticava a cabeça pra observar a Leith Walk.

Enfim, apareceu um táxi. Um grupo de caras jovens vestindo abrigos esportivos e jaquetas de aviador tava ali em pé antes da gente. Duvido que o Sick Boy tenha sequer enxergado eles. Se jogou direto pro meio da Walk gritando: – TÁXI!

– Ei! Mas que porra é essa? – perguntou um cara de cabelo à escovinha, vestindo um abrigo preto, roxo e verde-água.

– Cai fora. A gente tava aqui primeiro – disse o Sick Boy, abrindo a porta do táxi. – Tem outro chegando – apontou pra um táxi preto que avançava pela Walk.

– Sorte de vocês. Fiadasputa.

– Vai se fuder, ô viadinho de merda! Vai arranjar mulher! – rosnou o Sick Boy quando nos enfiamos no táxi.

– Pra Tollcross, parceiro – falei pro motorista, enquanto um cuspe atingia a janela lateral.

– Vem pro mano a mano então, fiadaputa! Vamolá, seus covardes de merda! – gritou o cara do abrigo esportivo. O motorista do táxi não achou graça. Parecia ser um cara de bem. A maioria deles parece. Esses autônomos que pagam impostos são realmente a forma mais baixa de verme que existe no mundão de deus.

O táxi fez um retorno e acelerou pela Walk.

– Olha o que cê fez, falastrão. Na próxima vez que um de nós estiver voltando pra casa a pé, vai ter briga com esses louco aí – eu não tava nem um pouquinho feliz com o Sick Boy.

– Cê não tem medo daqueles bostinhas de merda, tem?

O viado tá realmente me tirando do sério. – Sim! Sim, tenho medo de estar na minha e ser cercado por um esquadrão inteiro de sujeitos de abrigo! Tá pensando que eu sou o Jean-Claude Van Damme? Um tremendo dum viado, é isso que cê é, Simon – chamei ele de “Simon”, ao invés de “Si” ou “Sick Boy”, pra enfatizar a seriedade do que tava dizendo.

– Quero ver a Madre Superiora e tô pouco me fudendo pra qualquer outro cara ou qualquer outra coisa. Sacou? – ele cutuca os lábios com o indicador, os olhos saltando na minha direção. – Simôn quer ver a Madre Superiora. Lê a porra dos meus lábios – então ele se vira e fica olhando pra nuca do motorista, mandando ele ir mais rápido enquanto batuca um ritmo sobre as coxas.

– Um daqueles viados era um McLean. O irmãozinho do Dandy e do Chancey – eu disse.

– Era nada – ele respondeu, mas sem conseguir disfarçar a ansiedade na voz. – Conheço os McLeans. O Chancey é legal.

– Não se cê avacalhar com o irmão dele – comentei.

Mas ele já não tava prestando atenção. Parei de incomodar, sabendo que só tava desperdiçando minha energia. O sofrimento silencioso dele, causado pela abstinência, parecia agora tão intenso que eu não teria como piorar aquele estado miserável.

A “Madre Superiora” era Johnny Cisne, também conhecido como Cisne Branco; um traficante que tinha base em Tollcross e cobria os loteamentos de Sighthill e Wester Hales. Eu preferia comprar do Cisnezinho ou de seu comparsa Raymie, ao invés do Seeker e da máfia de Moorhouse-Leith. Vendiam um produto de melhor qualidade, em geral. O Johnny Cisne já tinha sido um grande amigo meu, nos velhos tempos. Jogamos futebol juntos pelo Porty Thistle. Agora ele era traficante. Lembro que uma vez ele me disse: não existem amigos neste negócio. Apenas sócios.

Achei que ele tava sendo durão, petulante e exibido, até que entrei fundo na coisa. Agora sei exatamente o que o cara queria dizer.

Johnny era um viciado, além de traficante. Cê precisava subir um pouco mais alto na escala antes de encontrar um traficante que não fosse usuário. Chamávamos o Johnny de “Madre Superiora” por causa do tempo que ele era viciado.

Logo comecei a me sentir uma merda. Cãibras fortes começaram a me atacar enquanto subíamos a escada pro cafofo do Johnny. Eu pingava como uma esponja encharcada, cada passo extraindo outra golfada dos meus poros. O Sick Boy devia tá bem pior, mas o cara tava deixando de existir pra mim. Só percebi que ele se arrastou até parar na balaustrada à minha frente porque ele tava bloqueando meu caminho na direção do Johnny e da heroína. Tava recuperando o fôlego, agarrado com força ao corrimão, dando a impressão de que ia vomitar no poço da escada.

– Tudo bem, Si? – perguntei, irritado, puto da cara porque ele tava me bloqueando a passagem.

Ele me afastou com um aceno, chacoalhando a cabeça e comprimindo os olhos. Eu não disse mais nada. Quando cê se sente como ele tava se sentindo, não quer falar ou escutar ninguém falando. Cê não quer nenhum tipo de agitação. Eu também não queria. Às vezes acho que as pessoas viram viciadas só porque tão implorando, subconscientemente, por um pouquinho de silêncio.

Quando finalmente conseguimos chegar ao topo da escada, o Johnny tava completamente dopado. Tava rolando uma sessão de pico.

– Mas que porra é essa, cês tão com caganeira? – riu, alto como um foguete. Johnny costumava fungar um pouco de pó junto com a heroína, ou então preparava uma speedball, misturando a heroína com cocaína. Segundo sua avaliação, isso o deixava ligado, o impedia de ficar o dia todo sentado pelos cantos e olhando pras paredes. Um cara ligado é uma porra dum estorvo quando cê está se sentindo assim, porque fica ocupado demais aproveitando sua viagem pra perceber ou mesmo dar a mínima bola pro seu sofrimento. Enquanto o bebum no pub tenta fazer todos os outros caras ao seu redor ficarem tão chumbados quanto ele, o verdadeiro viciado (ao contrário do usuário casual, que quer ter um parceiro de crime) tá cagando e andando pra todos os outros.

Raymie e Alison tavam lá. Ali tava preparando uma dose. Tava prometendo.

O Johnny valsou até a Ali e fez uma serenata pra ela. – Hei-ei, bonitona, o quêêê cê tá cozinhando... – Ele se virou pro Raymie, que tava montando guarda na janela. Raymie podia detectar um homem da lei no meio de uma multidão do mesmo modo que os tubarões farejam algumas gotas de sangue no oceano. – Bota um som na caixa, Raymie. Tô de saco cheio daquele novo do Elvis Costello, mas não consigo parar de escutar essa porra. Magia pura, tô dizendo.

– Uma conexão em U ao sul de Waterloo – Raymie disse. O viado sempre vinha com essas merdas irrelevantes e sem sentido bem quando cê tava sofrendo e tentando comprar heroína dele. O fato de Raymie estar tão envolvido com a heroína sempre me deixou muito surpreso. Raymie era meio parecido com meu parceiro Spud; sempre achei que eles tinham a índole clássica de um usuário de LSD. O Sick Boy tinha uma teoria de que Raymie e Spud eram a mesma pessoa, ainda que a fuça de um fosse totalmente diferente da do outro, pelo simples fato de que eles nunca eram vistos juntos, embora frequentassem os mesmos círculos.

O canalha sem noção quebra a regra de ouro dos viciados colocando pra tocar “Heroin”, na versão do Rock n’ Roll Animal do Lou Reed, que tem a capacidade de ser ainda mais dolorosa de escutar quando se está na fissura do que a versão original do The Velvet Underground and Nico. Bem, pelo menos essa versão não tem o trecho com os guinchos de viola do John Cale. Isso eu não teria suportado.

– Ah, Raymie, vai se fuder! – grita Ali.

– Bomba na bota, seguro a levada, rebola aí mina, vadia, safada... na rua, na quebrada, carne branca fuzilada... se liga na parada – Raymie desbanca num rap improvisado, sacudindo a bunda e revirando os olhos.

Depois se curvou na frente do Sick Boy, que tinha se posicionado estrategicamente ao lado de Ali, sem nunca tirar os olhos do conteúdo da colher que ela tava esquentando por cima de uma vela. Raymie puxou a cara do Sick Boy contra si e deu um beijo forte na boca dele. Sick Boy empurrou ele longe, tremendo.

– Vai se fuder! Viadão!

Johnny e Ali riram alto. Eu também teria rido, se ao invés disso eu não estivesse sentindo que cada osso do meu corpo parecia simultaneamente esmagado e destrinchado com um serrote cego.

O Sick Boy aplicou um torniquete acima do cotovelo da Ali, obviamente marcando seu lugar na fila, e bateu uma veia no braço branco-acinzentado dela.

– Quer que eu faça? – perguntou.

Ela assentiu com a cabeça.

Ele deposita uma bolinha de algodão na colher e a assopra, antes de sugar uns 5 ml pela agulha pra dentro do cilindro da seringa. Conseguiu fazer saltar uma imensa veia azul que parece estar quase atravessando o braço de Ali. Perfura a carne e injeta lentamente um pouquinho, antes de sugar o sangue de volta pra dentro do cilindro. Os lábios dela tremulam por um ou dois segundos, enquanto dirige a ele um olhar suplicante. O rosto do Sick Boy fica distorcido, com um olhar reptiliano e atravessado, logo antes de enviar o coquetel em direção ao cérebro dela.

Ela puxa a cabeça pra trás, fecha os olhos e abre a boca, dando um gemido orgástico. Os olhos do Sick Boy agora parecem inocentes e maravilhados, a expressão dele é a de uma criança que encontrou uma pilha de presentes embalados embaixo da árvore numa manhã de Natal. Os dois parecem estranhamente belos e puros à luz tremulante da vela.

– Isso é melhor que qualquer injeção de carne... é melhor do que qualquer pau desse mundo... – suspira Ali, muito séria. Isso me deixa nervoso a ponto de apalpar meus próprios genitais por cima das calças pra ver se continuam ali. Mas ficar me tocando desse jeito me deixa constrangido.

Johnny alcança seus próprios apetrechos ao Sick Boy.

– Pode dar um pico, mas só se usar esse equipamento. Tamo fazendo joguinhos de confiança, hoje – sorriu, mas não tava brincando.

Sick Boy sacode a cabeça. – Não compartilho agulhas e seringas. Tenho meu próprio equipamento aqui.

– Isso não é nem um pouco sociável. Rents? Raymie? Ali? Que cês acham disso? Cê tá tentando insinuar que o Cisne Branco, a Madre Superiora, tem o sangue infectado pelo vírus humano da imunodeficiência? Meus sentimentos mais nobres estão feridos. Tudo que posso dizer é: não compartilha, não pica. – Dá um sorriso exagerado, expondo uma fileira de dentes malcuidados.

Pra mim, não era o Johnny Cisne que tava falando aquilo. Não era o Cisnezinho. De jeito nenhum. Algum demônio maligno tinha invadido o corpo dele, envenenado a mente do cara. Esse sujeito tava a milhões de quilômetros de distância do brincalhão inofensivo que eu conhecia como Johnny Cisne. Um carinha legal, todo mundo dizia, até minha própria mãe. Johnny Cisne, tão apaixonado por futebol, tão na paz, que sempre acabava tendo de lavar os uniformes depois dos jogos no Meadowbank e nunca, nunca reclamou.

Eu tava me cagando de medo, achando que não ia levar o meu pico. – Porra, Johnny, olha o que cê tá falando. Se liga. A gente tá com a porra da grana aqui – puxei algumas notas de dentro do bolso.

Seja pelo sentimento de culpa ou pela perspectiva de ganhar a grana, o velho Johnny ressurgiu na hora.

– Não me levem tão a sério. É só uma porra duma brincadeira, rapazes. Cês acham que o Cisne Branco ia negar bagulho pros camarada? Vão em frente, meus homens. Homens sensatos. Higiene é importante – declarou, pesaroso. – Cês conheciam o Goagsie? Ele tá com AIDS agora.

– Sério? – perguntei. Sempre havia boatos sobre quem era positivo e quem não era. Em geral, eu apenas ignorava todos eles. Mas o fato é que algumas pessoas andavam dizendo isso do Goagsie.

– Pode crê. Ele não tá com a AIDS total, tipo assim, mas o teste deu positivo. Mas, enfim, é como eu disse pra ele, não é o fim do mundo, Goagsie. Cê pode aprender a viver com o vírus. Um monte de caras consegue fazer isso sem problema nenhum. Pode levar anos até cê ficar doente, eu disse pra ele. Qualquer cara que não tenha o vírus pode sair de casa e acabar atropelado. É assim que cê tem que encarar isso. Não dá pra cancelar o show e pronto. O espetáculo tem que continuar.

É fácil dar uma de filósofo quando quem tá com merda ao invés de sangue correndo nas veia é outro cara.

Enfim, Johnny até ajudou o Sick Boy a preparar o pico e injetar. No momento em que o Sick Boy tava quase gritando de desespero ele espetou a veia, puxou um pouco de sangue pra dentro da seringa e mandou pra dentro o elixir que tira a vida pra depois devolver.

Sick Boy abraçou o Cisnezinho com força e depois foi se soltando, mantendo os braços ao redor dele. Tavam relaxados, como amantes num abraço depois da trepada. Agora era a vez do Sick Boy fazer serenata pro Johnny. – Cisnezinho, como eu te amo, como eu te amo, meu velho e querido Cisnezinho... – os inimigos de minutos atrás agora eram almas gêmeas.

Fui me picar. Levei décadas pra achar uma veia boa. Minhas filhinhas não vivem tão perto da superfície quanto as de outras pessoas. Quando uma apareceu, saboreei o pico. Ali tinha razão. Cê pega o seu melhor orgasmo, multiplica a sensação por vinte, e ainda fica a anos-luz de distância. Meus ossos secos e quebradiços são aliviados e liquefeitos pelas carícias ternas da minha heroína. A terra voltou a girar e continua assim.

A Alison tá me dizendo que eu devia visitar a Kelly; parece que ela anda bem deprimida desde que fez o aborto. Embora o tom dela não seja exatamente de crítica, fala como se eu tivesse algo a ver com a gravidez da Kelly e sua subsequente interrupção.

– Como assim, eu devia visitar ela? Não tem nada a ver comigo – respondi, na defensiva.

– Cê é amigo dela, não é?

Minha tentação é citar o Johnny, dizendo que agora somos todos apenas conhecidos. Soa bem na minha cabeça: “agora somos todos apenas conhecidos.” Parece ir além de nossa circunstância particular de viciados. Uma metáfora brilhante do nosso tempo. Resisto à tentação.

Em vez disso, me contento em argumentar que somos todos amigos da Kelly, e questiono por que justamente eu tinha de ser escolhido pro cargo de visitante.

– Porra, Mark. Cê sabe que ela te curte muito.

– A Kelly? Porra nenhuma! – digo, surpreso, intrigado e pouco à vontade. Se isso é verdade, sou um cuzão cego e idiota.

– Claro que ela sim. Ela me disse milhões de vezes. Vive falando de você. O Mark isso, o Mark aquilo.

Quase ninguém me chama de Mark. Em geral é Rents ou, pior ainda, Rent Boy. É horrível ser chamado assim. Tento não mostrar que me incomoda, porque isso só encoraja ainda mais os outros.

O Sick Boy tava escutando. Me viro pra ele. – Cê confirma isso? A Kelly tá na minha?

– Todo mundo na face da Terra sabe que ela tá na sua. Não é exatamente o que se pode chamar de um segredo bem guardado. Não consigo entender qual é a dela, que fique claro. Pra mim ela tá pedindo um exame na cabeça.

– Valeu por me contar, ô viado.

– Se cê escolhe ficar sentado em quartos escuros assistindo vídeos o dia inteiro, sem notar o que acontece ao seu redor, não cabe a mim ficar apontando as coisas pra você.

– Bem, pra mim ela nunca disse nada – resmungo, todo coitadinho.

– Que que cê quer, que ela coloque uma camiseta? Cê não manja muito de mulher, né, Mark? – disse a Alison. O Sick Boy força um risinho.

Me sinto ofendido por esse último comentário, mas tô determinado a tratar da questão com tranquilidade, pro caso de ser uma enrolação orquestrada (sem dúvida) pelo Sick Boy. O cara é o rei da brincadeira de mau gosto, e zanza pela vida deixando pra trás esse tipo de armadilha interpessoal pros amigos. Que porra de satisfação o maluco tira desse tipo de atividade é algo que me escapa.

Compro um pouco de heroína do Johnny.

– Puro como a neve ao vento, esse bagulho – ele me disse.

Isso queria dizer que não tinha sido muito misturada, e com nada tóxico demais.

Logo chegou a hora da gente ir. O Johnny tava enchendo meu ouvido com um monte de merda, coisas que eu não tava a fim de escutar. Papos sobre quem tinha roubado quem, histórias de vigias de loteamento fudendo com a vida de todo mundo com sua histeria antidrogas. Ele também tagarelava sobre sua própria vida dum jeito todo sentimental, despejando fantasias sobre como ele ia ficar careta e se mandar pra Tailândia, onde as mulheres sabiam como tratar um cara, onde cê podia viver como um rei se tivesse a pele branca e algumas notas de dez libras no bolso. Na verdade, ele disse coisas muito piores que essa, muito mais cínicas e agressivas. Eu disse pra mim mesmo, taí o espírito maligno falando de novo, não o Cisne Branco. Ou era ele? Quem sabe. Quem se importa, porra.

A Alison e o Sick Boy ficaram trocando frases curtas, com jeito de que tavam combinando outro esquema de heroína. Então levantaram e marcharam juntos pra fora da sala. Pareciam entediados e desapaixonados, mas quando não voltaram saquei na hora que tavam trepando no quarto. Pras mulheres, parecia que trepar era simplesmente uma coisa que se fazia com o Sick Boy, assim como se conversava ou se tomava chá com outros caras.

O Raymie tava desenhando com giz de cera na parede. Tava num mundo só dele, uma situação que agradava tanto a ele quanto ao resto dos caras.

Pensei sobre o que a Alison tinha dito. A Kelly tinha acabado de abortar, semana passada. Se eu fizesse uma visita, ficaria com nojo demais pra trepar, isso se ela estivesse a fim. É certo que ainda teria alguma coisa por lá, mucos, pedaços do negócio, talvez alguma ardência. Eu provavelmente tava sendo um babaca. A Alison tinha razão. Eu não sabia mesmo muita coisa sobre mulheres. Eu não sabia muita coisa sobre nada.

A Kelly mora no Inch; é difícil chegar lá de ônibus, e tô duro demais pra ir de táxi. Talvez desse pra chegar ao Inch pegando um ônibus daqui, mas não sei qual pegar. A verdade, na real, é que por causa da heroína eu tô com as bola murcha demais pra dar uma trepada, tô meio detonado demais até pra falar. Passa um da linha 10 e eu pulo dentro pra voltar pro Leith e pro Jean-Claude Van Damme. Durante a viagem, feliz, mal consigo esperar pra ver a surra que ele vai dar naquele espertinho.


Dilemas de um viciado Nº63

Só tô deixando ele fluir por cima de mim, ou me atravessar... me limpar de dentro pra fora.

Esse mar interno. O problema é que esse lindo oceano arrasta consigo montes venenosos de refugos e destroços de naufrágio. Esse veneno é diluído pelo mar, mas quando o oceano escorre pra fora, deixa a merda pra trás, dentro do meu corpo. Da mesma forma que dá, ele também tira, arrasta embora minhas endorfinas, meus centros de resistência à dor. E eles demoram muito tempo pra voltar.

O papel de parede é horroroso neste quarto que mais parece uma fossa. Ele me apavora. Algum velho pé na cova deve ter colado isso há anos... bem conveniente, porque é isso que sou, um pé na cova, e meus reflexos não estão melhorando nem um pouco... mas tá tudo aqui, tudo ao alcance das minhas mãos suadas. Seringa, agulha, colher, vela, isqueiro, pacotinho com o pó. Tudo tá bem, tudo é lindo. Mas temo que esse mar interno vá escorrer em breve, deixando a merda venenosa pra trás, encalhada no meu corpo.

Começo a preparar outro pico. Enquanto seguro, tremendo, a colher em cima da vela, esperando a heroína dissolver, penso: mais oceano de curta duração, mais veneno de longa duração. Porém, esse pensamento não chega nem perto de ser suficiente pra me impedir de fazer o que preciso fazer.


O primeiro dia do Festival de Edimburgo

Na terceira vez vai. É como o Sick Boy me disse: cê precisa saber como é tentar parar antes de fazer isso pra valer. Cê só aprende errando, e o que cê aprende é a importância da preparação. Pode ser que ele esteja certo. De qualquer modo, dessa vez eu me preparei. Um mês de aluguel adiantado desse enorme quarto vazio com vista pro Links. Canalhas demais conhecem meu endereço da Montgomery Street. Dinheiro na mão! Me despedir daquela heroína foi a parte mais difícil. A mais fácil foi o meu último pico, que dei no braço esquerdo hoje de manhã. Precisava de alguma coisa pra me ajudar a ir em frente durante esse período de preparação intensa. Aí voei como um foguete pro Kirkgate e fui zunindo pela minha lista de compras.

Dez latas de sopa de tomate da Heinz, oito latas de sopa de cogumelo (todas a serem consumidas frias), um pote grande de sorvete de creme (que derreterá e será bebido), duas garrafinhas de leite de magnésia, um frasco de paracetamol, uma cartela de pastilhas de xilocaína, uma embalagem de comprimidos multivitamínicos, cinco litros de água mineral, doze isotônicos e algumas revistas: pornografia leve, humor, futebol, música etc. O item mais importante já foi providenciado numa visita ao lar paterno: os comprimidos de valium da minha mãe, removidos de sua gaveta no banheiro. Não me sinto mal por isso. Ela nem os usa mais e, caso precise, o sexo e a idade dela facilitam que seu clínico geral prescreva mais comprimidos para fins tranquilizantes. Carinhosamente, faço uma marquinha em cada item da minha lista. Vai ser uma semana difícil.

Meu quarto é vazio e sem carpete. Tem um colchão no meio do piso com um saco de dormir por cima, um aquecedor elétrico e uma tevê em preto e branco em cima duma cadeirinha de madeira. Tenho três baldes de plástico marrons, cheios até a metade com um mistura de desinfetante e água; um pra minha merda, um pro meu vômito e outro pro meu mijo. Organizo uma fileira com minhas latas de sopa, bebidas e remédios, todas ao alcance imediato da minha cama improvisada.

Dei um último pico com o objetivo de enfrentar os horrores da sessão de compras. A droga que me resta será usada pra me ajudar a dormir e pra ir largando a heroína aos poucos. Vou tentar usar em doses pequenas e controladas. Preciso de um pouco, rápido. A grande derrocada se anuncia. Como sempre, começa com uma leve náusea na boca do estômago e um ataque de pânico irracional. Assim que percebo o enjoo tomando conta de mim, sem esforço nenhum ele pula do desconfortável pro insuportável. Uma dor terrível começa a se espalhar dos meus dentes pra mandíbula e pra cavidade dos olhos e depois pra todos os meus ossos, numa palpitação detestável, implacável e debilitante. O bom e velho suadouro chega no momento exato; não vamos esquecer dos calafrios, que cobrem minhas costas como uma fina camada de geada outonal sobre o teto de um carro. Hora de agir. Ainda não tô pronto pra cair deitado e levar a bomba, de jeito nenhum. Preciso do velho “banho-maria”, uma dose leve, pra ir me adaptando. A única coisa que pode fazer eu me mexer é a heroína. Só um picozinho pra desemaranhar os membros retorcidos e me botar no sono. Depois vou dizer adeus pra ela. O Cisnezinho desapareceu, o Seeker tá no xadrez. Só sobra o Raymie. Vou ao telefone público do saguão dar uma ligada pro viado.

Sinto que alguém roçou em mim enquanto tô discando. O ligeiro contato me faz estremecer, mas não tenho vontade de olhar e ver quem é. Tomara que eu não precise permanecer aqui tempo suficiente pra ter que conhecer os meus novos “companheiros de apartamento”. Os porras nem existem pra mim. Ninguém existe. Só o Raymie. A moeda cai. Uma voz de mina. – Alô? – ela funga. Tá com uma gripe de verão ou é a heroína?

– O Raymie taí? É o Mark – é evidente que o Raymie falou de mim, porque mesmo que eu não a conheça, ela certamente me conhece. A voz dela esfria. – O Raymie tá viajando – diz. – Londres.

– Londres? Porra... quando é que ele chega?

– Não sei.

– Ele não deixou nada pra mim, deixou? – uma ajudinha da porra do acaso não seria nada má.

– Humm, não...

Bato o fone no gancho, tremendo. Duas opções. Primeira: desistir e voltar pro quarto. Segunda: ligar praquele viado do Forrester e ir até Moorhouse, ser esculachado e roubado em troca dum bagulho de merda. Não tinha muita escolha. Em vinte minutos lá tava eu perguntando “vai pra Moorhouse, chefia?” pro motorista do ônibus 32 e enfiando meus quarenta e cinco centavos na caixa. Qualquer porto serve numa tempestade, e o mundo tá desabando aqui dentro da minha cabeça.

Uma velha podre me olha com cara feia quando passo por ela, entrando no ônibus. É certo que eu tô um lixo, completamente acabado. Isso não me incomoda. Não existe nada na minha vida, exceto eu mesmo, Michael Forrester e a distância nauseante que nos separa: uma distância que tá sendo gradualmente reduzida por esse ônibus.

Sento no banco do fundo, no andar de baixo. O ônibus tá quase vazio. Uma mina senta no lado oposto ao meu, escutando seu walkman Sony. Se ela é bonita? Quem se importa. Embora em tese aquilo seja um aparelho de som “pessoal”, consigo escutar muito claramente o que tá tocando. É uma do Bowie... “Golden Years”...

Don’t let me hear you say life’s taking you nowhere –

Angel...

Look at those skies, life’s begun, nights are warm and the days are young...1

Tenho todos os discos que o Bowie já gravou. A porra da coleção inteira. Toneladas de discos piratas, coisa e tal. Tô pouco me fudendo pra ele ou pras músicas dele. Tudo que me importa agora é Mike Forrester, um viado feio e sem talento que nunca gravou um disco. Nem mesmo um compacto. Mas o Mikezinho é o homem do momento. Como disse o Sick Boy uma vez, sem dúvida parafraseando algum outro otário: fora do momento, nada existe. (Acho que um maluco disse isso antes numa propaganda de chocolate.) Mas não consigo nem mesmo aprovar essas opiniões, porque são no máximo periféricas neste momento. O momento sou eu, o doente, e Mikey, a cura.

Uma velha qualquer, elas tão sempre nos ônibus nessa hora, tá enchendo o ouvido do motorista de merda; caga pela boca uma rajada de perguntas irrelevantes sobre números de ônibus, linhas e trajetos. Embarca de uma vez ou vai pra puta que pariu e morre, sua velha decrépita. Quase sufoquei de raiva com a mesquinharia egoísta da velha e com a indulgência patética do motorista em relação a ela. As pessoas ficam falando dos jovens e seu vandalismo, mas e que tal o vandalismo psicológico provocado por essas velhas desgraçadas? Quando finalmente sobe no ônibus, percebo que a velha ainda por cima tem uma boca que parece o cu de um gato.

Ela senta bem na minha frente. Cravo os olhos em sua nuca. Fico torcendo pra que ela tenha uma hemorragia cerebral ou um ataque cardíaco fulminante... não. Penso melhor. Se isso acontecesse, só acabaria me atrasando mais ainda. A morte dela precisa ser lenta e sofrida, pra me vingar da porra do sofrimento que ela me causou. Se ela morrer de repente, as pessoas vão ter chance de fazer uma comoção. Nunca deixam escapar uma chance dessas. Células cancerosas resolveriam o problema. Torço pra que um núcleo de células defeituosas se desenvolva e se multiplique no corpo dela. Posso sentir isso acontecendo... mas tá acontecendo é no meu corpo. Tô cansado demais pra continuar. Todo o ódio pela velhinha desaparece. Sinto apenas uma apatia total. Agora ela saiu do momento.

Minha cabeça tá caindo. Ela se agita tão de repente e com tanta violência, que tenho a sensação de que ela vai sair voando dos meus ombros pra cima do colo da velhota petulante na minha frente. Seguro a cabeça com força usando as duas mãos, apoiando os cotovelos nos joelhos. Vou acabar perdendo meu ponto. Não. Aproveito um surto de energia e desço na Pennywell Road, na frente do centro comercial. Atravesso a pista dupla e caminho pelo centro. Passo pelas lojas fechadas com portas de aço, que nunca foram alugadas, e atravesso o estacionamento onde carros nunca estacionaram. Nunca, desde que aquilo foi construído. Há mais de vinte anos.

O pequeno apartamento de dois pisos do Forrester fica num bloco maior que a maioria dos outros em Moorhouse. Quase todos têm dois andares, mas o dele tem cinco e por isso tem um elevador, que não funciona. Pra poupar minha energia, deslizo apoiado na parede durante minha jornada escada acima.

Para acompanhar as cãibras, as dores, os suores e a desintegração quase completa do meu sistema nervoso central, agora meus intestinos também tão começando a falhar. Sinto minhas tripas se desembrulhando, num degelo ameaçador depois de um longo período de prisão de ventre. Tento me recompor diante da porta do Forrester. Mas ele vai sacar que eu tô sofrendo. Um ex-negociante de heroína sempre sabe quando alguém tá passando mal por causa da droga. Só não quero que o canalha perceba o tamanho do meu desespero. Mesmo sabendo que eu engoliria qualquer merda, qualquer abuso do Forrester pra conseguir o que preciso, não vejo sentido em demonstrar isso na sua frente além do que for inevitável.

É certo que o Forrester consegue ver o reflexo do meu cabelo ruivo através da porta de vidro ondulado e coberto por uma grade. Demora milênios pra atender. O viado começou a fuder comigo antes mesmo de eu pisar na casa dele. Ele me cumprimenta sem nenhum traço de simpatia na voz. – Tudo bem, Rents – diz.

– Nada mal, Mike – ele me chama de “Rents” ao invés de “Mark”, eu chamo ele de “Mike” ao invés de “Forry”. Fica bem claro que ele tá dando as carta. Será que tentar ser amistoso com o cara é a melhor saída? No momento, talvez seja a única.

– Chega mais – ele diz, breve e indiferente, e eu o sigo, obediente.

Sento no sofá, quase ao lado de uma puta nojenta de perna quebrada. O membro engessado dela tá apoiado na mesinha de centro, e um pedaço repulsivo de carne branca e inchada aparece entre o gesso encardido e as bermudas cor de pêssego que ela tá usando. As tetas dela caem por cima de uma barriga de Guinness hipertrofiada, e sua camiseta marrom se esforça pra conter sua flacidez esbranquiçada. Seus cabelos ensebados e oxigenados têm uns dois centímetros de raiz castanho-acinzentada e opaca. Ela não se dá ao trabalho de notar a minha presença, mas solta uma constrangedora e horrenda risada de jumento diante dum comentário fútil qualquer que o Forrester faz, provavelmente a respeito da minha aparência, mas que eu não consigo entender. O Forrester senta em uma poltrona surrada na minha frente, com a cara redonda enfiada em cima de um corpo magro, quase careca aos vinte e cinco anos. Sua perda de cabelo nos últimos dois anos foi fenomenal, e fico pensando se ele pegou o vírus. Por algum motivo, duvido disso. Dizem que só os bons morrem cedo. Em outra situação eu faria um comentário engraçadinho, mas nesse momento e ocasião eu preferiria sacanear minha vó por causa de sua bolsa de colostomia. Afinal de contas, o Mikey é o meu homem.

Na outra cadeira, ao lado do Mikey, tá sentado um canalha com um visual sinistro; tá com os olhos em cima da porca gorda, ou talvez em cima do baseado mal fechado que ela tá fumando. Ela dá uma tragada exageradamente teatral antes de passar o baseado pro cara sinistro. Não tenho porra nenhuma contra caras com olhos de inseto morto cravados no meio de um rosto de roedor feroz. Nem todos são maus. São as roupas desse sujeito que entregam ele, denunciando que ele é uma figurinha das mais bizarras. É certo que esteve hospedado em algum dos hotéis que Sua Majestade oferece aos rufiões: Saughton, Bar L, Perth, Peterhead etc. E, ao que parece, passou um bom tempo por lá. Calça larga azul-escura, sapatos pretos, uma camisa polo mostarda com faixas azuis nos punhos e no colarinho, e um casacão (com essa porra de clima!) estendido no encosto da cadeira.

Ninguém se apresenta, mas isso seria incumbência do meu ídolo com cara de bola, Mike Forrester. É ele quem manda, e não existe dúvida que ele sabe disso. O canalha começa a fazer um discurso, falando sem parar, como uma criança tentando ficar acordada o mais tarde que conseguir. O sr. Moda, vamos chamá-lo de Johnny Saughton, não diz nada, mas dá sorrisos enigmáticos e às vezes revira os olhos num êxtase escarninho. Se alguém parece um predador, esse alguém é o Saughton. A Porca Gorda, por deus, como é grotesca, fica zurrando e eu me forço a soltar uma risadinha bajuladora nos momentos que julgo serem minimamente apropriados.

Depois de ficar escutando essa merda por um tempo, minha dor e náusea me obrigam a interferir. Como meus sinais não verbais são ignorados com desprezo, meto o pé na porta.

– Desculpa interromper aí, parceiro, mas preciso sair fora. Tá com a heroína aí?

A reação é exagerada, mesmo pros padrões da ceninha ridícula que o Forrester tá fazendo.

– Vê se cala a porra dessa boca! Cuzão. Quando eu mandar cê fala. Fica na sua e não fode. Se não tá gostando da companhia, se manda. E fim de papo.

– Não quis ofender, parceiro... – só me resta a rendição submissa. Afinal de contas, este homem é um deus pra mim. Eu engatinharia mil quilômetros em cima de vidro picado pra usar a merda do cara como pasta de dente, e nós dois sabemos disso. Sou apenas um peão no tabuleiro de um jogo chamado “O Marketing de Michael Forrester como um Cara Durão”. Pra todo mundo que o conhece, é um jogo baseado numa premissa ridícula. Além disso, a partida tá sendo obviamente dedicada ao Johnny Saughton, mas, caralho, é a casa do Mike, e eu pedi pra mastigar o pão do diabo quando disquei pro número dele.

Aguento mais humilhações grosseiras pelo que me parece ser uma eternidade. Mas suporto isso sem problema. Não amo nada (exceto a heroína), não odeio nada (exceto as forças que me impedem de arranjar um pouco dela) e não temo nada (exceto ficar sem um pico). Também sei que um cagalhão como esse Forrester nunca me submeteria a toda essa merda se estivesse pretendendo me deixar na mão.

Fico um pouco satisfeito ao lembrar por que ele me odeia. Uma vez, Mike ficou obcecado por uma mulher que o desprezava. Uma mulher que, em seguida, eu comi. Não tinha sido grande coisa nem pra mim nem pra mulher em questão, mas com certeza deixou o Mike injuriado. A maioria das pessoas tentaria aprender algo com essa experiência; cê sempre quer o que não pode ter, e as coisas que cê não dá a mínima vêm até você servidas num prato. A vida é assim, e por que o sexo seria diferente de qualquer outra parte dela? Eu mesmo passei por derrotas desse tipo no passado, e superei todas. Isso acontece com todo mundo. O problema é que esse merdinha gosta de cultivar mágoas sem importância, que é o que se espera de um pirado raquítico e sinistro como ele. Mas ainda assim, eu o amo. Preciso amar. É ele que tem o que eu preciso.

Mikey acaba cansando de seu joguinho de humilhação. Pra um sádico, fazer o que ele tá fazendo deve ser tão interessante quanto espetar alfinetes num boneco de plástico. Adoraria poder proporcionar um passatempo mais satisfatório pra ele, mas tô fudido demais pra reagir às suas zombarias sem graça. Aí, finalmente, ele pergunta: – Tá com a grana?

Tiro algumas notas amarrotadas do bolso e, com uma servilidade comovente, aliso elas sobre a mesinha de centro. Com um ar de reverência e respeito total ao status de Mike como O Cara, alcanço as notas pra ele. Pela primeira vez, percebo que tem uma flecha enorme desenhada com pincel atômico no gesso da Porca Gorda, no lado interno da coxa, apontando pro meio das pernas dela. As letras ao longo da flecha, em maiúsculas bem grossas, formam as palavras INSERIR CARALHO AQUI. Minhas tripas se embrulham de novo, e o desejo urgente de agarrar a heroína com toda a força da mão do Mike e cair fora daqui é quase esmagador. Mike passa a mão nas notas e, pra minha surpresa, surge com duas cápsulas brancas de dentro do bolso. Nunca vi nada parecido com elas. Eram duas coisinhas brancas e pequenas, em forma de bomba, cobertas com alguma coisa que parecia cera. Uma fúria poderosa tomou conta de mim, parecendo surgir do nada. Não, não foi do nada. Emoções fortes desse tipo só podem ser geradas pela heroína ou pela possibilidade de ser privado dela. – Que merda é essa, porra?

– Ópio. Supositórios de ópio – o tom de Mikey mudou. É cauteloso, quase de desculpas. Meu acesso de raiva esmigalhou nossa simbiose doentia.

– E que porra eu faço com isso? – pergunto, sem pensar, e um sorriso escapa da minha boca quando entendo tudo. Isso devolve a vantagem ao Mike.

– Quer mesmo que eu diga? – desdenha, recuperando um pouco do poder que havia perdido. Saughton sorri em silêncio, e a Porca Gorda zurra. Mas ele percebe que não tô achando graça e continua: – Cê não tá a fim de um pico, certo? Cê quer algo lento, pra aliviar a dor, pra ajudar a largar o vício, certo? Bem, esses aí são perfeitos. Especialmente projetados para as suas necessidades. Derretem no organismo, a carga vai acumulando e depois desaparece aos poucos. Eles usam essa porra nos hospitais, caralho.

– Cê garante esses troços, cara?

– Escute a voz da experiência – sorri, mais pro Saughton do que pra mim. A Porca Gorda joga sua cabeça sebenta pra trás, exibindo os dentes grandes e amarelados.

Sigo a recomendação. Escuto a voz da experiência. Peço licença, me retiro pro banheiro e os introduzo, com muito zelo, no meu rabo. Era a primeira vez que eu enfiava o dedo no meu próprio cu, e me bateu uma sensação parecida com um enjoo. Olho pra mim no espelho do banheiro. Cabelo ruivo emaranhado e suado, e um rosto branco cheio de espinhas nojentas. Duas belezinhas em particular mereciam mesmo ser classificadas de furúnculos. Uma na bochecha e outra no queixo. A Porca Gorda e eu daríamos um excelente casal, e concebo uma visão perversa de nós dois dentro duma gôndola, nos canais de Veneza. Volto pro andar de baixo, ainda enjoado, mas já na viagem do ópio.

– Vai durar um bom tempo – Forrester comenta, grosseiro, enquanto vagueio de volta pra sala de estar.

– Se cê tá dizendo. Me fizeram tão bem que eu até enfiaria eles no cu se fosse preciso – extraio de Johnny Saughton o primeiro sorriso pela minha desgraça. Quase consigo ver o sangue ao redor da boca torta dele. A Porca Gorda olha pra mim como se eu tivesse acabado de assassinar seu filho primogênito num ritual. A expressão dolorosa e incompreensível dela me dá vontade de mijar as calça de tanto rir. Mike exibe um olhar ferido de quem-faz-as-piadas-aqui-sou-eu, mas com um toque de resignação causado pela percepção de que seu poder sobre mim acabou. Terminou com o encerramento da transação. Agora, ele não era pra mim nada além de uma pilha de bosta de cachorro no centro comercial. Na verdade, era bem menos que isso. Fim de papo.

– Mas enfim, até outra hora, gente – aceno pro Saughton e pra Porca Gorda. Saughton, sorridente, me manda uma piscadela que parece varrer todo o ambiente. Até mesmo a Porca Gorda tenta forçar um sorriso. Interpreto seus gestos como novos indícios de que o equilíbrio de poder entre mim e Mike sofreu uma mudança fundamental. Como para confirmar isso, ele me seguiu pra fora do apartamento. – A gente se vê por aí, cara. Hã... desculpa aquela merda toda ali dentro e tal. Aquele viado daquele Donnelly... ele me dá nos nervos. Um arruaceiro de primeira ordem. Depois conto a história toda pra você. Mas sem rancores, hein, Mark?

– Vejo você mais tarde, Forry – respondo, esperando que minha voz se pareça o suficiente com uma ameaça pra deixar o viado meio desconfortável ou até mesmo preocupado pra valer. Mas uma parte de mim não quer queimar o cara. É um pensamento preocupante, mas posso precisar dele de novo. Mas não é assim que devo pensar. Se continuar pensando assim, toda a porra do meu esforço é inútil.

Quando chego ao fim da escadaria, esqueci todo o meu mal-estar; bem, quase todo. Consigo sentir a dor pelo meu corpo, mas agora ela não me incomoda mais. Sei que é ridículo tentar me convencer de que o lance já tá fazendo efeito, mas é certo que tá rolando um efeito placebo. Uma coisa que percebo é a fluidez nos meus intestinos. Parece que eu tô derretendo por dentro. Não cago há cinco ou seis dias, e agora parece que tá vindo. Dou um peido e não consigo me segurar; meu coração acelera quando sinto o barro molhado nas calças. Afundo o pé no freio, apertando os músculos do meu esfíncter o máximo possível. Mas o estrago tá feito, e vai ficar muito pior se eu não agir imediatamente. Penso em voltar pra casa do Forrester, mas não quero mais ver a cara daquele corno por um bom tempo. Lembro que a casa de apostas no centro comercial tem um banheiro nos fundos.

Entro na loja enfumaçada e vou direto pro sanitário. Que cena. Dois caras tão de pé na porta do banheiro, simplesmente mijando pra dentro; o chão tá coberto por uns dois ou três centímetros de urina fedorenta e estagnada. Estranhamente, aquilo me faz lembrar das piscininhas infantis dos clubes onde eu costumava ir. Os dois apostadores sacodem os paus no corredor e enfiam dentro da cueca com o mesmo cuidado que alguém meteria um lenço sujo dentro do bolso. Um deles olha pra mim desconfiado e bloqueia minha passagem pro banheiro.

– O sanitário tá interditado, parceiro. Cê não vai conseguir cagar naquilo – aponta pra privada sem assento, cheia de água marrom, papel higiênico e pedaços de merda boiando.

Olho pra ele, muito sério. – Porra, eu tenho que ir, parceiro.

– Cê não vai se injetar ali dentro, vai?

Bem o que eu precisava. O Charles Bronson de Moorhouse. Com a diferença de que esse viado faz o Charles Bronson parecer o Michael J. Fox. Na real ele parece um pouco o Elvis, o Elvis de hoje em dia; um ex-roqueiro dasantiga, robusto e em decomposição.

– Qualé, porra – minha indignação deve ter sido convincente, porque o maluco acaba se desculpando.

– Não quis ofender, meu chapa. É que uma molecada do loteamento tá tentando transformar isso aqui num ponto de viciado. A gente não gosta disso.

– São uns caradura – complementou o seu amigo.

– Tô bebendo sem parar há uns dois dias, parceiro. Porra, tô ficando louco com essa caganeira. Preciso cagar. Parece que tá terrível ali dentro, mas é isso ou as minhas cueca. Não tô escondendo nada. Já tô mal o suficiente por causa da cerveja, não preciso de mais nada.

O viado assente com a cabeça, como se entendesse do que eu tava falando, e sai do meu caminho. Sinto o mijo ensopar minhas calça ao pisar por cima da aresta da porta. Reflito sobre como foi ridículo dizer pros cara que eu não tava escondendo nada quando na verdade minhas cueca tavam cheia de merda. Percebo um sinal de sorte ao ver que a trava da porta tá intacta. Porra, considerando o estado atroz do sanitário aquilo era espantoso.

Baixo as calça e sento na porcelana fria e molhada, tentando me encostar o mínimo possível. Esvazio as tripas, sentindo como se tudo, vísceras, estômago, intestinos, baço, fígado, rins, coração, pulmão e até a porra do cérebro, estivesse escorregando pelo meu cu pra dentro da privada. Enquanto cago, as moscas ficam golpeando a minha cara, mandando calafrios pelo meu corpo todo. Agarro uma delas e, pra minha surpresa e euforia, sinto o bicho zumbindo dentro da minha mão. Aperto o suficiente pra deixar ela imobilizada. Abro o punho e vejo uma bandida duma varejeira, imensa, imunda, grande como uma groselha peluda.

Esmago a varejeira contra a parede na minha frente e desenho um “H”, depois um “I” e um “B” com meu indicador, usando sua carne, seus tecidos e seu sangue como tinta. Começo o “S”, mas meus suprimentos ficam escassos. Sem problema. Pego um pouco emprestado do “H”, que tem uma boa camada excedente, e completo o “S”. Sento o mais recuado que consigo, sem escorregar pra dentro do fosso de merda embaixo de mim, e contemplo meu artesanato. A varejeira repulsiva, que me incomodou tanto, foi transformada em uma obra de arte que tenho grande prazer em apreciar. Estou teorizando sobre isso como uma inegável metáfora pra outras coisas em minha vida, quando a compreensão do que acabo de fazer envia uma descarga de medo primitivo através do meu corpo. Fico sentado, imóvel, por um instante. Mas apenas um instante.

Caio da privada, meus joelhos chapinham no mijo do chão. Minha calça jeans gruda no piso e absorve a urina com voracidade, mas eu mal percebo. Enrolo a manga da minha camisa e hesito rapidamente, olhando pras marcas nos meus braços, cheias de cascas, algumas delas secretando líquidos, antes de enfiar as mãos e antebraços dentro da água marrom. Revolvo meticulosamente e recupero na hora uma das minhas bombinhas. Limpo um pouco da merda que tá presa no supositório; ele tá um pouco derretido, mas quase totalmente intacto. Largo ela na tampa da cisterna. A localização da outra exige uma série de longas dragagens na imundície e o esmiuçamento da merda de vários bons apostadores de Moorhouse e Pilton. Me engasgo uma vez, mas encontro minha outra pepita de ouro, surpreendentemente melhor conservada do que a primeira. A sensação da água em meus braços me enoja ainda mais do que a merda. Meu braço manchado de marrom lembra um clássico bronzeado de manga de camiseta. A linha passa da altura do meu cotovelo, já que precisei fazer um esforço imenso.

Apesar do desconforto causado pela sensação da água na minha pele, me parece apropriado passar os braços na água gelada da torneira da pia. Não se pode dizer que é a limpeza mais demorada e completa que já fiz, mas é tudo que posso suportar. Depois, limpo meu rabo com a parte limpa da calça e jogo minha cueca saturada de merda na privada, junto com o resto do lixo.

Escuto batidas na porta enquanto visto minha Levis encharcada. Mais uma vez, é a sensação de algo molhado nas pernas, e não o fedor, que me deixa um pouco tonto. As batidas se transformam em murros.

– Vamolá, seu viado, tô estourando aqui fora!

– Segura, peão.

Sinto a tentação de engolir os supositórios, mas rejeito essa ideia quase no mesmo instante em que passa pela minha cabeça. Foram projetados para a via anal, e ainda tinham o suficiente daquela coisa encerada por cima pra sugerir que não seriam fáceis de manter dentro do bucho. Como eu já tinha ejetado tudo pra fora das entranhas, meus filhinhos provavelmente estariam mais seguros no lugar de onde vieram. E é de volta pra casa que eles vão.

Fui alvo de uns olhares espantados quando saí da casa de apostas, não tanto da fila de mijões que foi largando uns “até que enfim” enquanto eu passava, mas de um ou dois apostadores que notaram minha aparência arruinada. Um maluco chegou a fazer uns comentários vagamente ameaçadores, mas a maioria tava absorta demais nas cartas ou nas corridas das telas. Notei que o Elvis /Bronson tava gesticulando desenfreadamente pra tevê enquanto eu saía.

No ponto de ônibus, percebi como o dia tinha ficado sufocante com o calor. Lembrei que alguém tinha dito que era o primeiro dia do Festival. Bom, é certo que tiveram o clima ideal pra isso. Sentei encostado na parede no ponto de ônibus, deixando o sol encharcar meu jeans molhado. Vi um 32 chegando mas não me mexi, por pura apatia. Quando o seguinte chegou, reuni as forças pra subir nele e voltei pro Leith Ensolarado. Chegou mesmo a hora de ficar limpo, pensei, enquanto subia as escadas do meu novo apartamento.


Forçando a marcha

Queria muito que meu camarada do reto esporreado, o Rent Boy, parasse de matraquear na porra do meu ouvido. Tô captando um CVC (contorno vísivel da calcinha) na garotinha à minha frente, e toda a minha concentração é exigida para assegurar a realização de um exame completo. Sim! Essa aí tá de bom tamanho! Tô forçando a marcha, forçando pra cacete. É um daqueles dias em que meus hormônios tão disparando pelo meu corpo como a bolinha de metal num fliperama, e um monte de luzes e sons imaginários ficam piscando na minha cabeça.

E o que o Rents tá propondo, nesta bela tarde de clima propício? O viado tem a porra da audácia de sugerir que a gente volte pro seu apartamento, que fede a álcool, porra seca e lixo que devia ter sido levado pra rua há semanas, pra assistir vídeos. Fechar as cortinas, bloquear a luz do sol, bloquear suas próprias ondas cerebrais e ficar vendo ele segurando um baseado, dando risadinhas de fumeta pra qualquer coisa que aparece na tevê. Bem, non, non, non, Monsieur Renton, Simôn não foi feito pra ficar sentado em quartos escuros com viciados e a ralé do Leith, falando merda a tarde toda. Cause ah wis made for lovin you bay-bee, you wir made for lovin me...2

... uma baranga gorda bamboleou na frente da mina com o CVC, bloqueando minha visão daquele traseiro sublime com a sua bunda obesa. Ela tem a cara de pau de usar uns leggings bem justos, totalmente indiferente à natureza delicada do estômago de Simôn!

– Isso é o que chamo de uma mina esbelta! – observo, sarcástico.

– Vai se fuder, seu viado preconceituoso – diz o Rent Boy.

Sou tentado a ignorar o canalha. Amigos são uma porra dum desperdício de tempo. Tão sempre prontos pra arrastar você pra baixo, até seu próprio nível de mediocridade social, sexual e intelectual. Mas prefiro repudiar o cara, pro caso dele estar achando que ganhou uma em cima de mim.

– O fato de cê usar o termo “viado” na mesma frase que “preconceituoso” demonstra que, a respeito desse assunto, cê tem o mesmo raciocínio atrapalhado e fudido que tem a respeito de qualquer outra coisa.

Isso cala a boca do viado. Ele ainda responde alguma mulherzice, numa tentativa patética de se livrar da situação. Rent Boy 0, Simôn 1. Nós dois sabemos isso. Renton, Renton, qualé que é...

As pontes tão infestadas de buceta. Uhh, uh la la, vamos dançar, uhh, uh la la, Simon dançando... tão presentes xotas de todas as raças, cores, credos e nacionalidades. Ô, seu viado! Vamo se mexendo. Tem duas de tipinho oriental consultando um mapa. Simôn declara que essas aí tão de bom tamanho. O Rents que se foda, ele é um panaca, totalmente afrescalhado.

– Posso ajudar? Pra onde vocês estão indo? – pergunto. A boa e velha hochpitalidade echcocesa, é, ninguém fach melhor, diz o jovem Sean Connery, o novo Bond, porque, garotas, o bonde agora é esse...

– Estamos procurando o Royal Mile – responde pra mim uma voz em inglês colonial elegante. Mas que coisinha mais enrabável. Fácil, diz Simon, segure os pés com as mãos...

É claro que o Rent Boy tá parecendo um caralho flácido num oceano de xotas. Às vezes eu acredito mesmo que esse cara ainda acha que uma ereção serve pra mijar por cima de muros altos.

– Sigam a gente. Vocês estão indo pra um espetáculo? – sim, nada melhor que o Festival pra atrair a mulherada.

– Sim – uma das bonequinhas (chinesas) me alcança um papel onde tá escrito Brecht: O Círculo de Giz Caucasiano pelo Grupo Teatral da Universidade de Nottingham. Sem dúvida uma reunião de punheteiros com voz de taquara rachada e a cara encrostada de espinhas levando a cabo uma frustrada pretensão artística, antes de se formarem para acabar trabalhando nas usinas de energia que provocam leucemia nas crianças da cidade ou em consultorias financeiras que fecham fábricas, jogando pessoas na pobreza e na rua da amargura. Ainda assim, vamos tirar essa coisa de teatro amador do caminho. São tudo uns porra duns otário, não concorda, Sean, meu velho companheiro, camarada do clube de ex-entregadores de leite? Chim, Cháimon, acho que vochê levantou uma quechtão importantche aí. O velho Sean e eu temos tanta coisa em comum. Dois rapazes de Edimburgo, dois ex-entregadores de leite da cooperativa. Eu fazia apenas a rota do Leith, enquanto o Sean, se você perguntar pra velharada, entregava o leite pra todas as residências da cidade. Acho que as leis de trabalho infantil eram mais frouxas naquela época. Um quesito onde somos diferentes é a aparência. Nesse departamento, o Sean é completamente ofuscado por Simôn.

Agora o Rents tá tagarelando sobre Galileu, Mãe Coragem, Baal e todas essas merda. As vadia parecem bastante impressionadas e tal. Porra, como sou insensível! O panaca tem lá suas utilidades, afinal de contas. É um mundo espantoso. Chim, Cháimon, quanto maich eu vecho, menoch acredito. Somoch doich, Sean.

As minas orientais vão embora pro espetáculo, mas aceitaram nos encontrar no Deacons na sequência, pra tomar alguma coisa. O Rents não pode ir. Buááá. Vou enfiar a cara no travesseiro e me debulhar em lágrimas. Ele tem um encontro com a sra. Mogadon, a adorável Hazel... vou ser obrigado a entreter as duas garotinhas... caso eu decida aparecer. Sou um homem ocupado. O dever em primeiro lugar, né, Sean? Echatamente, Cháimon.

Me livro do Rents; por mim ele pode cair fora e se matar com drogas. Que porra de amigos eu tenho. Spud, Segundo Lugar, Begbie, Matty, Tommy: esses caras têm uma placa escrito LIMITADO na testa. Uma companhia extremamente limitada. Bem, tô de saco cheio de perdedores, desesperançados, pinguços, vagabundos dos loteamentos, viciados e essa gentinha. Sou um jovem dinâmico, em trajetória ascendente, metendo, metendo, metendo...

... os socialistas ficam falando nos seus camaradas, sua classe, seu sindicato e a sociedade. Que se foda essa merda toda. Os conservadores ficam falando no seu patrão, seu país, sua família. Que isso se foda mais ainda. Sou eu, eu, apenas EU, Simon David Williamson, NUMERO FUCKING UNO, contra o mundo, e é uma briga de igual pra igual. É realmente tão fáchil... Que se fodam todos eles. Admiro cheu individualichmo echuberante, Cháimon. Vecho paraleloch comigo mechmo, quando era chovem. Fico felich em chaber dicho, Sean. Outroch chá ficheram comentárioch chemelhantech.

Ugh... um fiadaputa sardento com uma manta dos Hearts... sim, hoje os viados tão se sentindo em casa. Olha só pra ele. O maior dos manifestos antiestilo. Preferia ver minha irmã num bordel do que meu irmão usando uma manta dos Hearts, e tô falando sério... opa opa, outra mina gostosa adiante... mochileira, pele bronzeada... mmmm... fode, chupa, fode, chupa... vamos todos abaixo...

... pra onde ir... suar um pouco na academia do clube, agora eles têm uma sauna e uma cama de bronzeamento... tonificar os músculos... as crises de abstinência da heroína já não passam de uma lembrança desagradável. As chinesinhas, Marianne, Andrea, Ali... em qual das sortudas vou dar uma enfiada hoje? Quem é o melhor fodedor? Eu, é claro. Talvez eu possa encontrar algo no clube mesmo. A dinâmica é pura magia. Três grupos: mulheres, os caras hétero e os caras gays. Os gays ficam de olho nos héteros, que são os frequentadores ocasionais do clube, com seus bíceps enormes e barrigas de cerveja. Os heteros ficam de olho nas mulheres, que curtem as bichinhas malhadas e flexíveis. Nenhum otário consegue o que tá procurando. Echeto eu, não é, Sean? Echatamente, Cháimon.

Espero não encontrar a bicha que ficou me olhando na última vez em que estive lá. Na cafeteria, ele me disse que tinha HIV mas que tava legal, que não era nenhuma sentença de morte e que ele nunca tinha se sentido tão bem. Que tipo de cara diz isso prum estranho? Era papo furado, provavelmente.

Uma porra duma bichinha... isso me lembra, preciso comprar umas camisinhas... mas não existe chance de pegar HIV em Edimburgo comendo uma mina. Dizem que o Goagsie pegou assim, mas acho que ele deve ter andado se injetando ou levando umas no rabo. Se cê não pega o vírus se injetando com gente da laia do Renton, Spud, Cisnezinho ou Seeker, então cê tá limpo... mas ainda assim... por que provocar o destino... mas por que não?... pelo menos sei que ainda estou aqui, ainda vivo, porque enquanto existir a chance de me divertir com uma mulher e com a grana dela, é isso aí, não sei de mais nada, ZERO, que possa preencher esse grande BURACO NEGRO, como um punho cerrado bem no meio da porra do meu peito...


Amadurecendo em público

Apesar de perceber o ressentimento inequívoco que sua mãe sentia, Nina era incapaz de compreender o que fizera de errado. Os sinais eram confusos. Primeiro foi: Não atrapalhe. Depois: Não fique aí parada. Um grupo de parentes havia formado uma muralha humana ao redor de sua tia Alice. Na verdade, Nina não conseguia enxergar Alice do lugar onde estava sentada, mas a algazarra carinhosa que vinha do outro lado da sala lhe dizia que sua tia estava ali em algum lugar.

O olhar da sua mãe cruzou com o seu. Encarava Nina de longe, parecendo uma das cabeças de uma hidra. Entre as expressões de conforto e os ele-era-um-bom-homem, Nina viu sua mãe pronunciar a palavra: Chá.

Tentou ignorar o sinal, mas sua mãe sussurrou com insistência, mirando as palavras em Nina através da sala, como um bom avião de caça: – Prepare mais chá.

Nina arremessou seu exemplar da New Music Express no chão. Arrastou-se pra fora da poltrona e moveu-se até uma grande mesa de jantar, onde pegou uma bandeja sobre a qual havia um bule de chá e uma jarra de leite quase vazia.

Entrando na cozinha, estudou seu rosto no espelho, concentrando a atenção em uma espinha sobre seu lábio superior. Seus cabelos negros, cortados em forma de cuia, pareciam gordurosos, embora os tivesse lavado na noite anterior. Esfregou a barriga, sentindo-se inchada com a retenção de líquido. Chegara a hora de sua menstruação. Era um saco.

Nina não conseguia fazer parte deste estranho festival de luto. A coisa toda não era nada legal. O ar de despreocupada indiferença que demonstrava diante da morte de seu tio Andy não era totalmente simulado. Ele fora seu parente favorito quando ela era uma menininha, e a tinha feito rir bastante, ou pelo menos era o que todos diziam. E, de um certo modo, ela podia lembrar disso. Esses episódios tinham acontecido: as brincadeiras, as cócegas, os jogos, o suprimento generoso de sorvetes e doces. Mas ela não conseguia estabelecer uma ligação emocional entre o quem tinha sido e o quem era agora, e por isso não conseguia estabelecer uma ligação emocional com Andy. Contorcia-se de constrangimento ao escutar seus parentes recontando aqueles dias de infância e meninice. Parecia uma negação profunda de seu ser, do que ela era agora. E, pior ainda, não era nada legal.

Pelo menos estava vestida de luto, como todos ficavam lembrando o tempo todo. Achava seus parentes extremamente maçantes. Eram apegados à rotina de uma vida amarga, uma espécie melancólica de adesivo que os mantinha unidos.

– Aquela menina não veste nada além de preto. Na minha época, as meninas vestiam cores claras e bonitas, ao invés de tentarem parecer vampiros – o tio Bob, o gordo e imbecil do tio Bob, tinha dito isso. Os parentes riram. Todos eles. Uma risada idiota e mesquinha. O riso nervoso de crianças assustadas tentando continuar nas graças do aluno valentão do colégio, ao invés de adultos demonstrando que haviam escutado algo engraçado. Nina percebeu, pela primeira vez, que o riso se relacionava com outras coisas além do humor. Seu objetivo era reduzir a tensão, demonstrar solidariedade diante da foice da morte. A morte de Andy elevara aquele tópico a uma posição mais destacada na agenda íntima de cada um deles.

A chaleira tremeu. Nina preparou outro bule de chá e o serviu.

– Tá tudo bem, Alice. Tudo bem, querida. Aqui tá a Nina com o chá – disse sua tia Avril. Nina pensou que talvez estivessem depositando expectativas irreais nos saquinhos de chá. Seria possível esperar que compensassem a perda de uma relação de vinte e quatro anos?

– É uma coisa terrível ter problemas no coração – declarou seu tio Kenny. – Ainda assim, pelo menos ele não sofreu. Melhor do que o grande C, apodrecendo aos poucos em agonia. Nosso pai se foi por causa do coração, e tal. A maldição dos Fitzpatricks. Esse é o seu avô – olhou para Malcolm, primo de Nina, e sorriu. Embora Malcolm fosse sobrinho de Kenny, era apenas quatro anos mais jovem que o tio e parecia ser mais velho.

– Algum dia, toda essa coisa de coração e câncer e coisa e tal vai ser esquecida pra sempre – arriscou Malcolm.

– Ah, sim. A ciência médica. Como vai sua Elsa, falando nisso? – Kenny baixou a voz.

– Vai se operar de novo. Vão mexer nas trompas de Falópio. Parece que o que eles fazem é...

Nina se virou e saiu da sala. A única coisa sobre a qual Malcolm parecia querer falar eram as operações a que sua esposa se submetera para permitir que concebessem um filho. Os detalhes faziam doer as pontas de seus dedos. Por que as pessoas achavam que alguém queria ouvir esse tipo de coisa? Que tipo de mulher passaria por tudo aquilo só pra conceber um fedelho chorão? Que tipo de homem a encorajaria a fazer isso? Quando ela estava indo para o corredor, tocou a campainha. Era a tia Cathy e o tio Davie. Não tinham demorado para vir do Leith até Bonnyrigg.

Cathy abraçou Nina. – Oh, querida. Onde ela está? Onde está Alice? – Nina gostava de sua tia Cathy. Era a mais expansiva de suas tias, e a tratava como uma pessoa, ao invés de uma criança.

Cathy atravessou a sala e abraçou Alice, sua cunhada, e depois sua irmã Irene, mãe de Nina, e seus irmãos Kenny e Bob, nesta ordem. Nina achou que a ordem denotava bom gosto. Davie acenou austeramente com a cabeça para todo mundo.

– Cristo, cê não levou nem um segundo pra chegar aqui com aquela velha caminhonete, Davie – disse Bob.

– É. O segredo é o atalho. Cê pega ele logo depois de Portobellah e sai logo antes de Bonnyrigg – explicou Davie, com zelo.

A campainha tocou novamente. Desta vez era o doutor Sim, clínico geral da família. Sim era alerta e metódico na postura, mas tinha uma expressão sombria. Sua atitude tentava transmitir uma dose de compaixão ao mesmo tempo que mantinha uma reserva pragmática de modo a transmitir confiança à família. Sim achou que não estava indo nada mal.

Nina também achou isso. Uma horda de tias esbaforidas o cercaram ruidosamente como groupies ao redor de um astro de rock. Pouco tempo depois, Bob, Kenny, Cathy, Davie e Irene acompanharam o doutor Sim ao andar de cima.

Quando começaram a abandonar a sala, Nina percebeu que tinha menstruado. Seguiu atrás deles pela escada.

– Não atrapalha! – Irene sussurrou para a filha, olhando para trás.

– Só tô indo pro banheiro – retrucou Nina, indignada.

Tirou as roupas no lavabo, começando por suas luvas pretas de renda. Analisando o tamanho do estrago, notou que o sangramento atravessara sua calcinha mas não tinha chegado nas suas calças pretas.

– Merda – praguejou assim que pingos de sangue grosso e escuro caíram sobre o carpete do banheiro. Arrancou alguns pedaços de papel higiênico e os pressionou contra si para estancar o fluxo. Em seguida conferiu o armário do banheiro, mas não encontrou tampões ou absorventes. Será que Alice era velha demais para menstruar? Provavelmente.

Encharcando um pouco mais de papel higiênico com água, conseguiu tirar a maioria das manchas do carpete.

Nina entrou no chuveiro por um instante. Depois de passar um pouco d’água, fez uma outra almofadinha com papel higiênico e se vestiu apressadamente, deixando de fora apenas a calcinha, que lavou na pia, torceu e socou dentro do bolso da jaqueta. Espremeu a espinha sobre seu lábio inferior e sentiu-se bem melhor.

Nina escutou o séquito deixando o quarto e descendo as escadas. Aquele lugar era uma porra duma chatice, pensou, e sentiu vontade de ir embora. Tudo que estava esperando era um momento oportuno para pedir algum dinheiro à mãe. Devia estar indo a Edimburgo com a Shona e a Tracy pra ver uma banda no Calton Studios. Não gostava de sair quando estava menstruada, porque a Shona tinha dito que os garotos conseguem saber quando tá rolando, simplesmente farejam, não importa o que você faça. Shona sabia muito sobre garotos. Era um ano mais nova que Nina, mas já tinha feito aquilo duas vezes, uma vez com o Graeme Redpath e outra com um menino francês que conhecera em Aviemore.

Nina ainda não estivera com ninguém, nunca tinha feito aquilo. Quase todo mundo que conhecia dizia que era uma bosta. Os meninos eram estúpidos demais, rabugentos e ineptos, ou excitáveis demais. Gostava do efeito que causava neles, como ao ver as expressões congeladas e babonas na cara deles quando a observavam. Quando chegasse a hora dela, seria com alguém que sabia muito bem o que fazia. Alguém mais velho, mas não como o tio Kenny, que olhava pra ela como se fosse um cachorro, os olhos vermelhos e a língua correndo maliciosamente pelos lábios. Tinha a estranha sensação que o tio Kenny, apesar da idade, não seria muito diferente dos meninos ineptos com quem Shona e as outras tinham estado.

Apesar de suas restrições quanto a ir ao show, a alternativa era ficar ali dentro assistindo televisão. Para ser mais específico, isso significava assistir ao Bruce Forsyth’s Generation Game ao lado da mãe e do peidorreiro do irmão menor, que sempre ficava empolgado quando as coisas desciam pela esteira rolante e recitava rapidamente o nome dos itens com sua voz esganiçada e esquisita. Sua mãe nem mesmo a deixava fumar na sala de estar. Deixava o Dougie, seu amiguinho tapado, fumar na sala de estar. Nisso não havia problema algum, era motivo para comentários leves e bem-humorados, ao invés de ser uma causa de câncer e doenças do coração. Nina, por outro lado, precisava ir até o andar de cima para fumar um cigarro, e isso era um pé no saco. O quarto dela era frio, e no tempo que levava pra ligar o aquecedor e esquentar o ambiente ela poderia ter fumado vinte Marlboros. Que tudo se foda, pra variar um pouco. Esta noite, arriscaria suas chances no show.

Saindo do banheiro, Nina deu uma espiada no tio Andy. O cadáver estava deitado na cama, ainda debaixo dos cobertores. Devem ter fechado a boca dele, pensou. Era como se tivesse dado o último suspiro num estado de embriaguez e agressividade, congelado pela morte enquanto discutia futebol ou política. O corpo parecia magro e murcho, mas tio Andy sempre fora assim. Lembrou de ter recebido cócegas nas costelas daqueles dedos persistentes, onipresentes e ossudos. Talvez Andy estivesse morrendo desde sempre.

Nina decidiu vasculhar as gavetas para ver se Alice tinha alguma calcinha que valesse a pena tomar emprestada. As meias e cuecas de Andy estavam na seção superior de um baú de gavetas. A roupa de baixo de Alice estava na seção imediatamente abaixo. Nina ficou chocada com a variedade de peças íntimas que Alice possuía. Iam de peças exageradamente grandes, que Nina mediu contra o corpo e chegavam quase até os seus joelhos, a calcinhas de renda minúsculas, que nunca teria imaginado sendo usadas por sua tia. Uma delas era feita do mesmo material que as luvas pretas de renda que Nina tinha. Tirou as luvas para passar a mão nas calcinhas. Embora tivesse gostado daquela, acabou escolhendo uma outra, rosa com florzinhas, e voltou ao banheiro para vesti-la.

Quando voltou ao andar de baixo, percebeu que o álcool substituíra o chá como principal lubrificante social da reunião.O doutor Sim estava em pé, uísque em mãos, conversando com tio Kenny, tio Bob e Malcolm. Pensou consigo mesma se Malcolm não o estaria interrogando a respeito de trompas de Falópio. Todos os homens estavam bebendo com uma determinação estoica, como se fosse uma obrigação muito séria. Apesar do luto, era indisfarçável o sentimento de alívio no ar. Este fora o terceiro ataque cardíaco de Andy, e agora que ele finalmente tinha ido desta para a melhor, todos podiam seguir adiante com suas vidas sem dar saltos nervosos cada vez que ouviam a voz de Alice ao telefone.

Um outro primo, Geoff, irmão de Malky, tinha chegado. Lançou para Nina um olhar que tinha algo que ela achou muito parecido com ódio. Foi enervante e estranho. Mas ele era um babaca. Todos os primos de Nina eram babacas, ou pelo menos os que ela conhecia. Sua tia Cathy e o tio Davie (ele era de Glasgow, e protestante) tinham dois filhos: Billy, que acabara de sair do exército, e Mark, que, segundo diziam, estava envolvido com drogas. Não estavam presentes, pois mal conheciam Andy ou qualquer pessoa da turma de Bonnyrigg. Apareceriam no enterro, provavelmente. Talvez não. Cathy e Davie tiveram um terceiro filho, também chamado Davie, que morrera há quase um ano. Sofria de sérias deficiências físicas e mentais e passou a maior parte de sua vida em um hospital. Nina só o vira uma vez, sentado numa posição retorcida sobre uma cadeira de rodas, de boca aberta e olhos perdidos. Tentou imaginar o que Cathy e Davie teriam sentido quando ele morreu. Tristeza, mas talvez alívio também.

Merda. Geoff aproximava-se para conversar com ela. Certa vez ela o tinha mostrado ao longe para Shona, que disse que ele se parecia com o Marti do Wet Wet Wet. Nina odiava tanto o Marti quando os Wets e, de qualquer modo, achava que o Geoff não tinha nada a ver com ele.

– Tudo bem, Nina?

– Sim. Uma pena o que aconteceu com tio Andy.

– Sim, mas o que se pode dizer? – Geoff deu de ombros. Tinha vinte e um anos, e Nina o achava muito velho.

– E aí, quando cê termina a escola? – ele perguntou.

– Ano que vem. Queria sair agora, mas a mãe me forçou a ficar.

– Estudando pros exames-padrão?

– Sim.

– Quais?

– Inglês, matemática, aritmética, arte, contabilidade, física e estudos contemporâneos.

– Vai passar?

– Sim. Não é tão difícil. Menos matemática.

– E depois?

– Vou arranjar um emprego. Ou abrir um negócio.

– Não vai ficar pra fazer os exames superiores?

– Não.

– Cê devia. Cê podia ir pra universidade.

– Pra quê?

Geoff precisou pensar por alguns instantes. Formara-se recentemente em literatura inglesa, e estava desempregado. O mesmo podia ser dito sobre a maioria de seus colegas formandos. – A vida social é bem boa – disse.

Nina entendeu que o olhar que Geoff lhe dirigira não era de ódio, mas de desejo. Ele claramente estivera bebendo antes de chegar, e seu nível de inibição estava reduzido.

– Cê cresceu mesmo, Nina – disse.

– É – ela corou, consciente do que estava acontecendo, e odiando-se por isso.

– Tá a fim de dar o fora daqui? Quer dizer, cê pode entrar em pubs? A gente podia atravessar a rua pra tomar alguma coisa.

Nina avaliou a oferta. Mesmo que Geoff ficasse falando merdas de estudante, seria melhor do que permanecer ali. Seriam vistos no pub por alguém, e como aquilo era Bonnyrigg, alguém ia fofocar. Shona e Tracy descobririam e ficariam loucas para saber quem era o tal cara mais velho e misterioso. Era uma oportunidade boa demais para se perder.

Foi então que Nina lembrou-se das luvas. Com a cabeça voando, as esquecera sobre o baú de gavetas no quarto de Andy. Pediu licença a Geoff. – Tá certo, legal. Só vou dar um pulo no banheiro.

As luvas ainda estavam em cima do baú. Ela as recolheu e colocou dentro do bolso da jaqueta, mas como sua calcinha molhada ainda estava ali retirou as luvas e as colocou no outro bolso. Virou-se para olhar Andy. Havia algo diferente nele. Estava suando. Percebeu que ele se contorceu. Deus, tinha certeza de ter visto ele contorcer o rosto. Tocou sua mão. Estava quente.

Nina desceu as escadas correndo. – É o tio Andy! Acho... eu acho... cês deviam subir... é como se ele ainda estivesse lá...

Olharam pra ela com expressões incrédulas. Kenny foi o primeiro a reagir, disparando escada acima pulando de três em três degraus, seguido por Davie e o doutor Sim. Alice se contorceu nervosamente, de boca aberta, mas sem absorver a coisa por completo. – Era um bom homem... nunca levantou a mão pra mim... – resmungava, delirante. Algo dentro dela a fez seguir o rebanho até o andar de cima.

Kenny apalpou a testa suada e a mão de seu irmão.

– Ele está queimando! O Andy não tá morto! O ANDY NÃO TÁ MORTO!

Sim estava prestes a examinar a situação quando foi empurrado por Alice que, tendo se libertado de suas amarras, desabou sobre o corpo quente e vestido com um pijama.

– ANDY! ANDY! TÁ ME ESCUTANDO?

A cabeça de Andy balançou pro lado, sua expressão idiota e congelada permanecendo imutável, seu corpo permanecendo frouxo.

Nina deu risadinhas nervosas. Alice foi agarrada e imobilizada como uma psicótica perigosa. Homens e mulheres diziam palavras carinhosas e emitiam ruídos apaziguadores para ela enquanto o doutor Sim examinava Andy.

– Não. Lamento. O sr. Fitzpatrick está morto. Seu coração parou – Sim anunciou, gravemente. Afastou-se um pouco e pôs a mão sob os cobertores. Em seguida ajoelhou-se e retirou uma tomada da parede. Pegou um cabo flexível branco e puxou um interruptor que estava preso a ele, debaixo da cama.

– Alguém deixou o cobertor elétrico ligado. Isso explica o calor do corpo e o suor – declarou.

– Ai, meu Deus, Cristo todo-poderoso – riu Kenny. Sentiu os olhos de Geoff flamejando em sua direção. Para se justificar, disse: – Andy estaria se mijando de rir. Cês sacam o senso de humor que o Andy tinha – virou as palmas das mãos para a frente.

– Cê é um cuzão... olha a Alice, ali... – gaguejou Geoff, encolerizado, antes de se virar e disparar para fora do quarto.

– Geoff. Geoff. Peraí, parceiro... – implorou Kenny. Escutaram a porta da frente sendo batida.

Nina achou que ia mijar nas calças. As laterais de seu corpo doíam enquanto ela tentava reprimir os espasmos de riso que a sacudiam por dentro. Cathy colocou o braço ao redor dela.

– Tá tudo bem, querida. Pronto, garota, passou. Não se preocupe – disse, e Nina se deu conta de que estava chorando como um bebê. Chorando com uma força impiedosa e um abandono totalmente desinibido, conforme as tensões refluíam de seu corpo e ela amolecia entre os braços de Cathy. Lembranças, doces lembranças de infância, inundaram sua consciência. Memórias de Andy e de Alice, da felicidade e do amor que um dia viveram ali, na casa de seus tios.


Vitória no Ano-Novo

– Feliz Ano-Novo, seu viadinho! – Franco envolveu o braço ao redor da cabeça de Stevie. Rígido, calmo e consciente da situação, Stevie sentiu diversos músculos de seu pescoço arrebentarem enquanto tentava entrar na onda.

Devolveu a saudação com todo o entusiasmo que lhe foi possível. Seguiu-se uma rodada de votos de Feliz Ano-Novo. Suas mãos hesitantes foram esmagadas, suas costas tensas estapeadas, seus lábios rígidos e indiferentes beijados. Só conseguia pensar no telefone, em Londres e em Stella.

Ela não tinha ligado. Pior, ela não estava em casa quando ele ligou. Tampouco na casa de sua mãe. Stevie voltara para Edimburgo, deixando o caminho livre para Keith Millard. O canalha não desperdiçaria essa oportunidade. Deviam estar juntos neste exato momento, como provavelmente haviam estado na noite anterior. Millard era um escroto. Assim como Stevie. Assim como Stella. Era uma péssima combinação. Aos olhos de Stevie, Stella era também a pessoa mais maravilhosa do mundo. Isso a tornava menos escrota. Na verdade, nem um pouco escrota.

– Vamo relaxar, caralho! É a porra do Ano-Novo! – Franco mais ordenou do que sugeriu. Era o jeito dele. As pessoas eram forçadas a se divertir, se fosse necessário.

Geralmente não era necessário. Todos estavam assustadoramente chumbados. Era difícil, para Stevie, reconciliar este mundo com o que acabara de deixar para trás. Agora percebia os outros olhando para ele. Quem eram eles, essas pessoas? O que eles queriam? A resposta: eram seus amigos e o queriam.

Uma canção no toca-discos perfurou sua cabeça, aumentando o seu mal-estar.

I loved a lassie, a bonnie, bonnie lassie,

She’s as sweet as the heather in the glen,

She’s as sweet as the heather,

The bonnie purple heather,

Mary, ma Scots bluebell.3

Todos cantaram junto, animados. – Nada melhor que Harry Lauder. É Ano-Novo e tal – comentou Dawsie.

Em contraste com o prazer nos rostos a seu redor, Stevie podia ter uma medida de seu próprio sofrimento. O fosso da melancolia não tinha fundo e ele descia rápido, despencando para cada vez mais longe dos bons tempos. Esses tempos às vezes pareciam estar tentadoramente ao alcance. Podia enxergá-los circulando ao seu redor. Sua mente era como uma prisão cruel, dando à sua alma cativa um vislumbre da liberdade, mas nada além disso.

Stevie bebericou sua lata de Export e torceu para conseguir chegar até o fim da noite sem decepcionar muitas pessoas. O principal problema era Frank Begbie. Estavam em seu apartamento, e ele estava determinado a garantir que todos estivessem se divertindo.

– Comprei seu ingresso pro jogo hoje de noite, Stevie. Bora pra cima daqueles jambos viados – Renton disse para ele.

– Ninguém vai assistir no pub? Achei que ia passar na tevê paga e tal.

Sick Boy conversava com uma garota baixinha, de cabelos pretos, que Stevie não conhecia.

– Vai se fuder, Stevie. – disse, se virando. – Cê tá adquirindo uns péssimos hábitos lá em Londres, cara, vou te contar. Detesto assistir futebol pela tevê, porra. É como trepar usando camisinha. Essa porra de sexo seguro, essa porra de futebol seguro, essa porra de tudo seguro. Vamos todos construir um mundinho seguro ao redor de nós – zombou, fazendo uma careta. Stevie tinha esquecido das dimensões da indignação natural do Sick Boy.

Rents concordou com Sick Boy. Isso era incomum, pensou Stevie. Eles viviam avacalhando um com o outro. Em geral, se um dizia açúcar, o outro dizia merda. – Deviam proibir o futebol na tevê, pra obrigar esse bando de gordo preguiçoso a tirar a bunda da poltrona e ir pros estádios.

– Cês me convenceram – disse Stevie, num tom resignado.

A aliança entre Rents e Sick Boy não durou.

– Quem é você pra falar em tirar a bunda da poltrona? Cê é o porra do rei dos sofás encardidos. Larga a heroína por mais de dez minutos e talvez cê consiga ir a mais jogos nessa temporada que na última – caçoou Sick Boy.

– Que coragem a sua, seu viado... – Rents se virou para Stevie, e sacudiu o polegar desdenhosamente na direção do Sick Boy. – Andavam chamando esse viado de Mula, por causa das drogas que ele tava carregando.

Seguiram batendo boca. Em outros tempos, Stevie teria gostado disso. Agora, aquilo o estava deixando esgotado.

– Não esquece, Stevie, vou ficar um tempinho na sua casa em fevereiro – Rents anunciou. Stevie concordou com a cabeça, carrancudo. Esperava que Rents tivesse esquecido tudo a respeito disso, ou que tivesse desistido. Rents era um amigo, mas tinha problemas com drogas. Em Londres, cairia direto na heroína de novo, entrando pro time do Tony e do Nicksy. Eles viviam descolando endereços onde podiam conseguir crédito público. Rents parecia nunca trabalhar, mas ao mesmo tempo parecia sempre ter dinheiro. O mesmo podia ser dito de Sick Boy, mas ele tratava a grana de todo mundo como se fosse sua, e fazia o mesmo com sua própria grana.

– Festerê no Matty depois do jogo. Na casa nova dele, na Lorne Street. Tejam lá em ponto – Frank Begbie gritou pra eles.

Outra festa. Para Stevie, aquilo era quase como trabalhar. O Ano-Novo vai se estender. Só no dia quatro começará aos poucos a desaparecer, quando surgirem os primeiros intervalos entre as festas. Esses intervalos vão crescendo até se transformarem na semana normal, com as festas acontecendo no fim de semana.

Mais gente chegou. O pequeno apartamento estava lotado. Stevie nunca tinha visto Franco, o Mendigo, tão à vontade. Rab McLaughling, ou Segundo Lugar, como o chamam, nem mesmo foi agredido quando mijou atrás das cortinas do Begbie. Segundo Lugar já estava há semanas em um estado incoerente de embriaguez. O Ano-Novo era uma camuflagem conveniente para gente como ele. Sua namorada, Carol, tinha ficado possessa diante de seu comportamento. Pra começo de conversa, Segundo Lugar nem tinha percebido que ela estava lá.

Stevie foi para a cozinha, onde estava mais quieto e ele pelo menos teria a chance de escutar o telefone. Como um empresário yuppie, deixara com sua mãe uma lista dos números onde provavelmente estaria. Poderia passá-los a Stella, caso ela ligasse.

Stevie revelara seu sentimentos a Stella naquele celeiro velho de Kentish Town que chamam de pub, aquele onde nunca costumavam beber. Abriu seu coração. Stella dissera que precisava pensar sobre o que ele tinha dito, que ficara muito confusa e que tudo aquilo era complicado demais para lidar naquele momento. Disse que ligaria pra ele quando voltasse para a Escócia. E foi isso.

Saíram do pub e foram para lados opostos. Stevie foi em direção à estação de metrô para pegar o trem até Kings Cross, mochila esportiva sobre o ombro. Parou, virou e observou-a atravessando a ponte.

Seus longos cachos castanhos ondulavam selvagens ao vento enquanto ela caminhava coberta por sua jaqueta grossa, saia curta, meias-calças pretas e grossas, e botas Doc Martens de cano alto. Stevie ficou esperando ela olhar de volta. Ela nem se virou. Stevie comprou uma garrafa de uísque Bell’s na estação e já a tinha esvaziado quando o trem chegou em Waverley.

Seu humor não melhorara desde então. Sentou na mesinha de fórmica, contemplando os azulejos da cozinha. June, a namorada de Franco, entrou e sorriu para ele, buscando nervosamente algumas bebidas. June nunca falava, e muitas vezes parecia oprimida por eventos como aquele. Franco falava o suficiente pelos dois.

Quando June saiu, Nicola entrou, perseguida por Spud, que andava atrás dela como um cão fiel e salivante.

– Ei... Stevie... Tipo, hã, Feliz Ano-Novo... – Spud falou arrastadamente.

– A gente já se viu, Spud. A gente se encontrou no Tron ontem à noite, lembra?

– Ah... certo. Na boa, bichano – Spud concentrou-se em pegar uma garrafa cheia de sidra.

– Tudo bem, Stevie? Como está Londres? – Nicola perguntou.

Deus, não, pensou Stevie. É tão fácil conversar com a Nicola. Vou abrir meu coração... não, não vou... sim, vou.

Stevie começou a falar. Nicola escutou pacientemente. Spud acenou com a cabeça, compreensivo, indicando aqui e ali que a situação toda era “pesada pra caralho...”

Sentiu que estava se fazendo de otário, mas não conseguia parar de falar. Que tédio ele deveria ser para Nicola, e até mesmo para Spud. Mas não conseguia parar. Spud acabou indo embora, e foi substituído por Kelly. Linda se uniu ao grupo. Deviam ter começado a cantar músicas de futebol na sala.

Nicola administrou alguns conselhos práticos:

– Liga pra ela, espera ela ligar ou vai lá ver ela.

– STEVIE! VEM PRA CÁ, SEU VIADO! – rugiu Begbie. Dócil, Stevie deixou-se literalmente arrastar de volta à sala. – Dando em cima da porra das mina na porra da cozinha. Cê é pior ainda que aquele viado ordinário ali, o purista do jazz – fez um gesto na direção de Sick Boy, que estava aos beijos com a mulher com quem antes conversava. Há pouco, tinham escutado de longe Sick Boy se descrevendo como “basicamente, um purista do jazz”.

So wir aw off tae Dublin in the green – fuck the queen!

Whair the hel-mits glisten in the sun – fuck the huns!

And the bayonets slash, the aw-ring sash

To the echo of the Thomson gun.4

Deprimido, Stevie sentou. Seria impossível escutar o telefone com todo esse barulho.

– Calem a boca agora mesmo! – gritou Tommy. – Essa é minha canção favorita – os Wolfetones começaram a cantar “Banna Strand”. Tommy cantarolou junto com alguns outros.

oan the lo-ho-honley Ba-nna strand.5

Alguns olhos se umedeceram quando os Wolfetones cantaram “James Connolly”. – Um rebelde bom pra caralho, um socialista bom pra caralho, e um torcedor do Hibs bom pra caralho. A porra do James Connolly, seu viado – Gav disse para Renton, que concordou com a cabeça, sério.

Alguns cantaram junto, outros tentaram conversar por cima da música. Mas quando “The Boys of the Old Brigade” começou todos participaram. Até mesmo Sick Boy tirou uma folga da sua sessão de amassos.

Oh fa-thir why are you-hoo so-ho sad

oan this fine Ea-heas-ti-her morn.6

– Canta, ô viado! – disse Tommy, cotovelando as costelas de Stevie. Begbie enfiou outra lata de cerveja em sua mão e passou o braço por trás de seu pescoço.

Whe-hen I-rish men are prow-howd ah-hand glad

off the land where they-hey we-her born.7

Stevie ficou aflito com a cantoria. Ela tinha um toque de desespero. Era como se, cantando alto o suficiente, todos fossem se mesclar numa poderosa fraternidade. Como a própria canção dizia, era uma música de “convocação às armas”, e parecia ter pouca relação com a Escócia ou com o Ano-Novo. Era uma música de luta. Stevie não queria lutar contra ninguém. Mas também eram músicas bonitas.

As ressacas, ao mesmo tempo que eram empurradas para um segundo plano pela bebedeira, também estavam sendo abastecidas. Agora estavam elevados o suficiente para serem genuinamente temidos. Não parariam de beber até que precisassem arcar com as consequências, e isso só aconteceria quando o último resquício de adrenalina fosse consumido.

Aw-haun be-ing just a la-had li-hike you

I joined the I-hi-Ah-har-A – provishnil wing!8

O telefone tocou no corredor. June atendeu. Begbie arrancou o fone de sua mão, espantando-a para longe. Ela flutuou de volta para a sala, como um fantasma.

– Quem? QUEM? QUEM É? STEVIE? TÁ, GUENTA AÍ. AH, POR FALAR NISSO, FELIZ ANO-NOVO, BONECA... – Franco baixou o fone – ... seja lá quem você for... – Foi até a sala – Stevie. Tem uma gata na linha, quer falar com você. Ela fala como se tivesse umas bola dentro da boca e tal. Deve ser de Londres.

– Opa! Dá-lhe, comedor! – riu Tommy quando Stevie saltou do sofá. Estava precisando mijar havia meia hora, mas não confiava nas próprias pernas. Agora tinham funcionado perfeitamente.

– Steve? – ela sempre o chamava de “Steve”, ao invés de “Stevie”. Todos faziam isso em Londres. – Onde você esteve?

– Stella... onde eu estive... tentei ligar pra você ontem. Onde cê tá? O que cê tá fazendo? – quase perguntou com quem ela estava, mas se conteve.

– Eu estava na casa da Lynne – ela respondeu. É claro. Na irmã dela. Em Chingford, ou algum outro lugar igualmente abominável e maçante. Stevie sentiu um surto de euforia.

– Feliz Ano-Novo! – disse, aliviado e transbordante.

Os bipes soaram e mais moedas foram colocadas no aparelho. Stella não estava em casa. Onde estaria? Em um pub, com Millard?

– Feliz Ano-Novo, Steve. Estou em Kings Cross. Vou pegar o trem para Edimburgo em dez minutos. Você pode me encontrar na estação às dez e quarenta e cinco?

– Puta que pariu! Cê tá brincando... porra! Não vou estar em nenhum outro lugar do mundo às dez e quarenta e cinco. Cê ganhou meu Ano-Novo. Stella... as coisas que eu disse naquela noite... sinto elas mais do que nunca, cê sabe...

– Que bom, porque acho que estou apaixonada por você... tudo que fiz foi ficar pensando em você.

Stevie engoliu com força. Sentiu lágrimas vazarem de seus olhos. Uma delas escapou da nascente e desceu por sua bochecha.

– Steve... você está bem? – ela perguntou.

– Bem é pouco, Stella. Eu te amo. Sem dúvida, sem papo furado.

– Porra... o dinheiro tá acabando. Nunca pense em me embromar, Steve, isso não é uma porra de um jogo... vejo você às quinze pras onze... eu te amo...

– Eu te amo! EU TE AMO! – os bipes soaram e a linha caiu.

Stevie abraçou o fone com ternura, como se fosse outra coisa, alguma parte do corpo dela. Depois o colocou no gancho e foi dar aquela mijada. Nunca se sentira tão vivo. Enquanto observava seu mijo fétido espirrando na privada, seu cérebro deixou-se dominar por pensamentos deliciosos. Um poderoso amor pelo mundo instaurou-se nele. Era Ano-Novo. Adeus, Ano Velho. Amava todo mundo, especialmente Stella e seus amigos na festa. Seus comparsas. Rebeldes de coração terno; o sal da terra. Apesar disso, amava até mesmo os jambos. Eram gente boa. Estavam apenas dando apoio ao seu time. Ele seria o primeiro-passo de muitos deles este ano, independentemente do resultado do jogo. Stevie teria prazer em levar Stella a diversas festas pela cidade. Seria esplêndido. Times de futebol eram bobagens idiotas e irrelevantes, agindo contra os interesses da unidade da classe trabalhadora, garantindo que a hegemonia burguesa seguisse intocada. Stevie já tinha sacado tudo.

Seguiu direto para a sala e colocou “Sunshine on Leith”, do The Proclaimers, no toca-discos. Queria celebrar o fato de que, pra onde quer que fosse, esta era a sua casa, essa era a sua gente. Depois de alguns arranhados, soou um acorde. As vaias decorrentes da remoção do disco anterior foram caladas diante do entusiasmo de Stevie. Ele deu tapas vigorosos em Tommy, Rents e no Mendigo, cantou com força e valsou com Kelly, totalmente indiferente à impressão que os outros poderiam ter sobre a obviedade de sua metamorfose.

– Que bom que cê se juntou a nós – Gav disse a ele.

Ainda estava entusiasmado no decorrer da partida, ao passo que, para os outros, tudo deu drasticamente errado. Mais uma vez, ele se distanciou dos amigos. Primeiro, não conseguia sentir a mesma alegria que eles, e agora era incapaz de se identificar com o seu desespero. O Hibs estava perdendo para o Hearts. Os dois times estavam cavando uma quantidade ridícula de chances de ataque; era um jogo de várzea, mas pelo menos o Hearts estava dando um pouco de si. Sick Boy estava com as mãos cravadas na cabeça. Franco dirigia um olhar maligno aos torcedores do Hearts que dançavam do outro lado do campo. Rents gritou exigindo a demissão do treinador. Tommy e Shaun discutiam as deficiências da defesa, tentando determinar o culpado pelo gol. Gav xingou as inclinações maçônicas do juiz, enquanto Dawsy ainda lamentava os erros anteriores do Hibs. Spud (drogas) e Segundo Lugar (álcool) estavam fora de órbita, ainda no apartamento, com seus ingressos para a partida inutilizados, a não ser para fechar baseados. Nada disso importava no momento, no que dizia respeito a Stevie. Ele estava apaixonado.

Depois da partida, abandonou os outros para ir à estação encontrar Stella. O grosso da torcida dos Hearts também seguia naquela direção. Stevie estava alheio às vibrações negativas. Um cara gritou na sua cara. Os viados ganharam de quatro a um, pensou. O que mais eles queriam? Sangue? É óbvio.

Stevie sobreviveu a algumas provocações pouco imaginativas a caminho da estação. Com certeza, pensou, podiam fazer melhor do que “hibbie filhadaputa” ou “feniano de merda”. Um herói tentou derrubá-lo por trás, apoiado pelo latido dos amigos. Devia ter tirado a manta. Quem esperaria uma coisa dessas? Agora ele era um rapaz londrino, o que toda essa merda tinha a ver com sua vida atual? Não tinha vontade nem de tentar responder às próprias perguntas.

Na passagem da estação, um grupo marchou para cima dele. – Hibbie filhadaputa! – berrou um jovem.

– Vocês se enganaram, caras. Sou torcedor do Borussia Munchengladbach.

Sentiu um golpe no lado da boca e, em seguida, o gosto de sangue. Foi alvo de alguns chutes enquanto o grupo se afastava dele.

– Feliz Ano-Novo, caras! Paz e amor, meus irmãos jambos! – riu deles, e chupou seu lábio cortado e azedo.

– O cara é pirado – disse um dos caras. Achou que eles voltariam pra cima dele, mas desviaram a atenção para importunar uma mulher asiática com suas duas crianças pequenas.

– Vadia paquistanesa de merda!

– Volta pra porra do seu país.

Fizeram um coro de grunhidos e gestos primatas ao saírem da estação.

– Que jovens charmosos e sensíveis – Stevie disse para a mulher, que olhou para ele como um coelho olha para uma doninha. Enxergava apenas outro jovem branco que falava engolindo as palavras, sangrando e cheirando a álcool. Acima de tudo, enxergava outra manta de time de futebol, como a que era usada pelos jovens que a importunaram. De seu ponto de vista, não havia diferença entre as cores, e ela estava certa, percebeu Stevie com amarga tristeza. A probabilidade de que fossem os caras de verde que a tivessem atacado era a mesma. Toda torcida tinha seus cuzões.

O trem atrasou quase vinte minutos, um resultado excelente para os padrões da British Rail. Stevie se perguntou se ela estaria no trem. A paranoia tomou conta dele. Ondas de medo estremeceram seu corpo. Os riscos eram sérios, mais sérios do que nunca. Não conseguia enxergá-la, não conseguia sequer vê-la na imaginação. E de repente ela estava quase em cima dele, bem diferente da imagem que seus pensamentos faziam dela, mais real, até mais bonita. Foi o sorriso, o olhar de emoção recíproca. Correu a curta distância que ainda os separava e a envolveu em seus braços. Beijaram-se por um longo tempo. Quando pararam, a plataforma estava deserta e o trem estava a meio caminho de Dundee.


Não precisa nem dizer

Escuto os grito de dor vindo de fora da sala. Sick Boy, apagado no vão da janela do meu lado, entra em estado de alerta como um cachorro que escutou um assobio. Eu estremeço. O som parece cortar a gente ao meio.

Lesley entra na sala berrando. É horrível. Eu queria que ela parasse. Agora. Eu não podia lidar com aquilo. Nenhum de nós podia. Não agora. Nunca quis tanto uma coisa na minha vida quanto fazer ela parar de gritar.

– O nenê se foi... o nenê se foi... Dawn... ai, meu deus... porra, deus... – foi quase tudo que consegui discernir no meio daquele som horrível. Ela desmorona em cima do sofá surrado. Meus olhos grudam numa mancha marrom na parede, acima dela. De onde ela veio? Como foi parar ali?

Sick Boy estava em pé. Os olhos dele tavam saltados como os de um sapo. É isso que ele me lembrava, um sapo. Foi o jeito que ele meio que pulou e adquiriu mobilidade instantânea a partir de uma posição parada. Ele olha pra Lesley por alguns segundos e depois sai correndo pro quarto. Matty e Spud olham em volta, sem entender nada, mas mesmo por trás da névoa da heroína percebem que algo muito ruim aconteceu. Eu percebi. Cristo, eu sabia mesmo, porra. Eu disse o que sempre digo quando algo ruim acontece.

– Vou preparar um pico agorinha – digo pra eles. Os olhos do Matty me perfuram. Ele acena com a cabeça. Spud se levanta e caminha até o sofá, sentando perto da Lesley. Ela tá com as mãos na cabeça. Por um minuto, achei que o Spud ia tocar nela. Eu queria que ele tocasse. Torci pra que ele fizesse isso, mas ele só ficou olhando pra ela. Eu sabia, mesmo de longe, que ele tava prestando atenção no enorme sinal de nascença que ela tinha no pescoço.

– A culpa é minha... a culpa é minha – ela grita com as mãos na frente da boca.

– Hã, Les... tipo assim, o Mark tá preparando um pico, hã... cê sabe, tipo assim, hã... – Spud fala pra ela. São as primeiras palavras que ele pronuncia nos últimos dias, pelo que lembro. É claro que o viado deve ter falado durante esse tempo. Ele precisa ter falado, porra.

Sick Boy reaparece. O corpo dele tá esticado, aparentemente pelo pescoço, como se puxado por uma corda invisível. A voz dele tá terrível. Me lembrou da voz do demônio no filme O exorcista. Quase me fez cagar nas calça.

– Porra... que porra de vida, hein? Acontece um troço desses, e que cê vai fazer? Hein?

Nunca vi ele desse jeito antes, e eu conheço o filho da puta praticamente desde sempre. – O que foi, Si? O que tá pegando?

Ele vem na minha direção. Achei que ia me dar um chute. Somos melhores amigos, mas já batemos um no outro, bêbados, furiosos ou depois de um ter sacaneado o outro. Nada sério, só aqueles rompantes motivados pela raiva. Amigos fazem dessas. Mas não agora, não agora que tô começando a ficar enjoado. Se o cara tivesse feito isso, meus ossos se partiriam em milhões de fragmentos. Ele só ficou em pé na minha frente. Obrigado, porra. Oh, obrigado, Sick Boy, Simon.

– Esse lugar tá fudido. Tudo tá fudido, porra! – ele geme, num chiado agudo e desesperado. Parecia um cachorro que tivesse sido atropelado e só tivesse esperando alguém aparecer pra acabar com seu sofrimento.

Matty e Spud se esforçam pra ficar de pé e vão pro quarto. Vou atrás, passando pelo Sick Boy. Sinto a morte no quarto antes mesmo de ver o nenê. Tava deitado de bruços no berço. Ele, quer dizer, ela tava fria e morta, com um roxo em volta dos olhos. Nem precisei tocar nela pra saber. Deitadinha ali, parecendo uma boneca abandonada no fundo do armário de uma criança. Pequeninha. Tão pequena, porra. A pequeninha Dawn. Que desgraça, porra.

– A Dawn, a pequeninha... não posso acreditar nisso. Que pecado, cara... – disse o Matty, sacudindo a cabeça.

– Pesado pra caralho isso... hã, tipo assim, porra... – Spud fincou o queixo em cima do peito e expirou lentamente.

A cabeça do Matty ainda tá sacudindo. Parece que ele vai implodir. – Vou cair fora daqui, cara. Não consigo encarar isso.

– Se fode, Matty! Ninguém vai sair daqui agora! – grita o Sick Boy.

– Fica calmo, cara. Fica calmo – pede o Spud, que parece estar qualquer coisa menos calmo.

– A gente tem heroína estocada aqui, porra. Essa rua tem andado infestada de pelotão antidrogas há semanas. Se todo mundo sair agora, a gente vai em cana. Tem fiadaputa da polícia em cada centímetro lá fora – diz o Sick Boy, lutando pra se acalmar. Pensar sobre o envolvimento da polícia sempre ajudava a concentrar a mente. Na questão das drogas, éramos liberais clássicos, veementemente opostos a qualquer tipo de intervenção estatal.

– É, mas talvez a gente devesse cair fora daqui. A Lesley pode chamar a ambulância ou a polícia depois que a gente tiver arrumado o lugar e caído fora – eu ainda concordava com o Matty.

– Ei... talvez a gente devesse ficar junto com a Les e tal. Tipo assim, parceiros e tal. Tá ligado? – arrisca Spud. Esse tipo de solidariedade soa um pouco irreal naquelas circunstâncias. Matty sacode a cabeça de novo. Tinha acabado de passar seis meses em Saughton. Se fosse preso de novo, tava fudido pra valer. Mas lá fora os hômi tavam passeando por tudo; pelo menos essa era a sensação que se tinha. O quadro pintado pelo Sick Boy tinha me impressionado mais que a súplica do Spud pra gente ficar juntos. Mandar toda a heroína pela descarga simplesmente não era uma opção. Eu preferia ir em cana.

– Do jeito que eu vejo a coisa – disse Matty –, a filha era da Lesley, saca? Se ela tivesse cuidado direito, talvez a nenê não tivesse morrido. Por que a gente devia se envolver?

Sick Boy começa a hiperventilar.

– Odeio dizer isso, mas o que o Matty diz faz sentido – admito. Tô começando a sentir dores bem fortes. Só quero tomar uma última dose e cair fora.

O Sick Boy tá indeciso. Isso é estranho. Normalmente, o canalha fica gritando ordens pra todo mundo, mesmo que ninguém esteja notando.

O Spud diz: – A gente não pode, tipo assim, deixar a Les aqui sozinha, isso é, hã, quer dizer, tipo assim, porra. Saca o que eu tô dizendo?

Tô olhando pro Sick Boy. – Quem fez o filho nela? – pergunto. Sick Boy não diz nada.

– Jimmy McGilvary – diz o Matty.

– Porra nenhuma – Sick Boy constesta com desprezo.

– Não fica aí se fazendo de inocente – Matty se vira pra mim.

– Hein? Peralá, porra! Que cê tá querendo dizer? – respondo, honestamente perplexo pra caralho diante da acusação do filho da puta.

– Cê já comeu, Rents. Na festa do Bob Sullivan – insiste.

– Não, cara, eu nunca fiquei com a Lesley – estou dizendo a verdade, o que percebo ser um erro. Alguns tipo de companhia sempre acreditam no contrário do que cê diz pra elas, especialmente quando envolve sexo.

– E como é que cê tava dormindo com ela de manhã na festa do Sully, então?

– Eu tava acabado, cara. Fora de órbita. Não queria pegar um torcicolo usando um degrau de escada como travesseiro. Nem me lembro quando foi a última vez que comi alguém – minha explicação convence eles. Sabem do tempo que tenho me injetado pra valer e o que isso significa quando o assunto é trepar.

– Tipo, hã... alguém disse que era do... hã, do Seeker... – sugere Spud.

– Não foi o Seeker – Sick Boy sacode a cabeça. Encosta uma das mãos no rosto frio do bebê morto. As lágrimas tão enchendo os olhos dele. Vou começar a chorar, e tal. Tem um aperto massacrante no meu peito. Um mistério foi resolvido. O rosto da pequena Dawn é obviamente muito parecido com o do meu parceiro Simon Williamson.

Aí o Sick Boy puxa pra cima a manga da jaqueta, mostrando as feridas purulentas no braço. – Nunca mais vou tocar nessa merda. Tô careta a partir de agora, porra – assume aquela expressão de garanhão ferido que sempre usa quando quer que as pessoas abram a carteira ou as pernas pra ele. Eu quase acredito.

Matty olha pra ele. – Vamolá, Si. Não vai tirando conclusões erradas, porra. O que aconteceu com o bebê não tem a ver com a heroína. Não é culpa da Lesley também. Eu viajei quando disse aquilo. Ela foi uma boa mãe. Ela amava essa criança. Não é culpa de ninguém. Morte súbita e tal. Acontece o tempo todo.

– É, tipo assim, morte súbita, cara... tá ligado? – concordou Spud.

Sinto que amo todos eles. Matty, Spud, Sick Boy e Lesley. Quero dizer isso pra eles. Eu tento, mas o que sai é: – Tô preparando uma – olham pra mim, quietos. – Eu sou assim – levanto os ombros, me justificando. Volto pra sala.

Isso é assassinato. Lesley. Sou inútil diante dessas coisas. No meu estado, mais que inútil. De utilidade negativa. Lesley nem se mexeu. Sinto que talvez eu devesse dar um consolo, abraçar ela. Mas meus ossos parecem torcidos e lixados. Eu não seria capaz de tocar qualquer pessoa, agora. Só consigo balbuciar.

– Sinto muito, Les... mas não foi culpa de ninguém... morte súbita e tal... pequena Dawn... um nenezinho lindo... que desgraça, porra... uma porra dum pecado, cara, tô dizendo.

Lesley levanta a cabeça e olha pra mim. Seu rosto magro e branco parece uma caveira envolta por um filme plástico leitoso. Os olhos dela tão irritados, cercados por olheiras pretas.

– Cê tá preparando uma? Preciso de uma dose, Mark. Realmente preciso pra caralho de uma dose. Vamo, Mark, prepara uma dose pra mim...

Finalmente, posso prestar alguma ajuda prática. Tinha seringas e agulhas espalhadas por todo lado. Tentei lembrar qual material era meu. O Sick Boy disse que nunca, de jeito nenhum, compartilharia com alguém. Papo furado. Quando cê tá se sentindo como eu tô, a verdade é que cê não se importa muito. Pego o material mais próximo, que pelo menos não é o do Spud, já que ele tava sentado no lado oposto da sala. Se o Spud não é HIV positivo até agora, o governo devia mandar uma comissão de estatísticos pro Leith, porque as leis da probabilidade não tão funcionando direito por aqui.

Pego uma colher, isqueiro, bolinhas de algodão e um pouco dessa porra de Vim ou Ajax que o Seeker tem a audácia de chamar de heroína. Os outros se juntam a nós na sala.

– Saiam de cima da porra da minha luz, caras – reclamo, gesticulando com minha mão pra que eles recuem. Sei que tô fazendo o papel d’O Cara, e uma parte de mim se odeia por isso, porque é horrível quando fazem isso com você. Mas ninguém poderia um dia se ver nessa posição e depois negar a máxima de que o poder absoluto corrompe. Os caras dão alguns passos pra trás e observam em silêncio enquanto preparo a dose. Os filhos da puta vão ter que esperar. Lesley é a primeira, depois de mim. Nem precisa dizer.


Dilemas de um viciado Nº64

– Mark! Mark! Abre a porta! Eu sei que cê tá aí, filho! Sei que cê tá aí!

É a minha mãe. Faz um bom tempo que eu não vejo a mãe. Tô deitado aqui, a cerca de um metro da porta, que dá prum corredor estreito que leva a uma outra porta. Atrás daquela porta está a minha mãe.

– Mark! Por favor, filho, por favor! Abre a porta! É a sua mãe, Mark! Abre a porta!

Parece que a mãe tá chorando. Soou “po-oh-orta”. Amo a mãe, amo ela demais, mas de um jeito que acho complicado de definir, de um jeito que torna difícil, quase impossível, dizer isso pra ela um dia. Mas amo ela mesmo assim. Tanto que não desejo que ela tenha um filho como eu. Queria poder arranjar um substituto pra ela. Queria isso porque não acredito que a mudança seja uma opção pra mim.

Não posso me aproximar da porta. De jeito nenhum. Ao invés disso, decido preparar outra dose. Meus centros de dor informam que já tá na hora.

Já.

Cristo, a vida não dá trégua.

Essa heroína tem porcaria demais misturada. Dá pra ver pelo jeito que não dissolve bem. Que se foda aquele viado do Seeker!

Tenho que fazer uma visitinha pra velha e pro velho uma hora dessas. Ver como eles tão. Essa visita será uma das minhas prioridades. Depois de visitar aquele viado do Seeker, é claro.


O homem dela

É foda.

A gente só saiu pra tomar umas. Isso é loucura, porra.

– Cê viu aquilo? Não pode uma coisa dessas, porra – disse o Tommy.

– Que nada, cara, deixa assim. Não se envolve. Cê não sabe o que tá rolando – falei pra ele.

Mas eu vi. Mais claro, impossível. Ele bateu nela. Não foi um tapa ou algo parecido, mas um soco. Foi horrível.

Ainda bem que o Tommy é que tá sentado do lado deles, não eu.

– Porque eu mandei! Só por isso! – o cara tá gritando pra ela de novo. Ninguém liga. Um cara grandão no bar, com cabelo loiro encaracolado e comprido e um rosto avermelhado, dá uma olhada, sorri e se vira de novo pra assistir ao jogo de dardos. Nenhum dos caras que tão jogando dardos se vira.

– Quer mais? – aponto pro copo quase vazio do Tommy.

– Sim.

Quando chego ao bar, eles começam de novo. Consigo escutar. O barman e o cara de cabelo encaracolado também escutam.

– Vai. Faz de novo. Vai! – ela fica provocando. A voz dela parece a de um fantasma, estridente e tal, mas os lábios dela parece que não se mexem. Cê só sabe que é ela porque o som vem daquela direção. A porra do pub também tá quase vazio. A gente podia ter sentado em qualquer lugar. Tantos lugares pra sentar.

Ele dá um soco na cara dela, bem na boca. Escorre sangue.

– Bate de novo, valentão de merda. Vai!

Ele obedece. Ela deixa escapar um grito, depois começa a chorar e enfia as mãos na cara. Ele fica sentado a poucos centímetros dela, encarando, os olhos queimando, boca escancarada.

– Briga de amor não dói – sorri o cara de cabelo encaracolado, cruzando o olhar com o meu. Sorrio de volta. Não sei por quê. Parece que sinto que preciso de amigos, só isso. Nunca diria isso pra alguém, mas sei que tenho problemas com a bebida. Quando cê tá nessa situação, seus amigos tendem a sair de perto, a não ser que também tenham problema com a bebida.

Olho pro barman, um cara velho com cabelo grisalho e bigode. Ele sacode a cabeça e diz alguma coisa quase sem abrir a boca.

Levo os pints de volta pra mesa. Nunca, nunca bata numa mulher, meu pai vivia me dizendo. Só a escória mais baixa faz isso, dizia. Esse viado que tá batendo na mina se encaixa nessa descrição. Tem um cabelo preto seboso, uma cara branca magricela e um bigode preto. Um fiadaputa com uma carinha de furão.

Não quero estar aqui. Só saí pra tomar umas em paz. Só duas rodadas, prometi ao Tommy pra convencer ele a vir comigo. A bebedeira tá sob controle. Tipo, só pints, nada de doses. Mas esse tipo de coisa me dá vontade de pedir um uisquezinho. A Carol foi embora pra casa da mãe dela. Diz que não vai voltar. Vim pra tomar um pint, mas ainda posso acabar bêbado.

Sento e percebo que o Tommy tá com a respiração pesada; parece tenso.

– Porra, Secks, tô avisando... – diz, rangendo os dentes.

O olho da mina tá bem inchado, quase fechando. A mandíbula dela tá inchada e a boca ainda tá sangrando. É uma mina magrinha e dá a impressão de que vai quebrar em pedaços se ele der outro soco nela.

Mesmo assim, ela continua:

– Essa é a sua resposta. Essa é sempre a sua resposta – ela cospe entre gemidos, ao mesmo tempo com raiva e pena de si mesma.

– Quieta! Já falei! Cala a porra dessa boca! – ele tá quase sufocando de raiva.

– Que cê vai fazer?

– Porra, sua... – ele parece prestes a socar ela de novo.

– Já chega, parceiro. Deixa assim. Cê não tá regulando bem – Tommy diz pro cara.

– Não é problema seu, porra! Não se mete! – o cara aponta pro Tommy.

– Já chega, aí. Vamo parar com isso! – grita o barman. O cara de cabelo encaracolado sorri e alguns dos rapazes dos dardos ficam olhando.

– Tô me metendo no problema. Que cê vai fazer a respeito? Hein? – Tommy se inclina pra frente.

– Porra, Tommy. Calma, cara – seguro o braço dele sem muita convicção, pensando no barman. Ele tira o braço com uma sacudida rápida.

– Quer levar um soco na boca? – o cara diz.

– Cê acha que eu vou ficar aqui sentado e deixar você fazer isso? Valentão de merda! Pra rua, então. Vamo-lááá! – Tommy meio que canta, provocando.

O rapaz tá se cagando de medo. Ele tá certo. O Tommy é um cara bem forte.

– Não é problema seu – repete, já não soando tão durão.

Aí a mulher grita com o Tommy.

– Esse aí é o meu homem! É com a porra do meu homem que cê tá falando! – o Tommy tá chocado demais para reagir quando a mulher se inclina e enterra as unhas na cara dele.

Aconteceu de tudo depois daquilo. O Tommy se levantou e deu um soco na boca do cara, que caiu direto da cadeira pro chão. Eu me levantei e fui direto pro cara de cabelo encaracolado no bar. Dei uma bomba no queixo dele e agarrei o cara pela porra dos cachinhos, segurando a cabeça dele pra baixo e dando dois chutes na cara dele.

Acho que ele bloqueou um dos chutes com a mão; duvido que o outro tenha machucado o viado, porque eu tava usando tênis. Ele deu uma guinada com os braços e se livrou de mim. Aí recuou, confuso e com o rosto vermelho. Achei que o cara ia acabar comigo, podia ter feito isso facilmente, mas só ficou ali parado e estendeu as mãos.

– Qualé que é, porra?

– Cê acha que tudo é uma piada, né? – eu digo.

– Do que cê tá falando? – o cara parece sinceramente perplexo.

– Vou ligar pra polícia! Saiam daqui ou eu vou ligar pra polícia! – disse o barman, levantando o fone pra indicar que falava sério.

– Sem confusão aqui dentro, rapazes – disse ameaçadoramente um cara enorme e gordo que tava jogando dardos. Ainda tava com as setas na mão.

– Não tenho nada a ver com isso, parceiro – disse pra mim o cara do cabelo encaracolado.

– Talvez eu, tipo, tenha entendido mal – falei pra ele.

A mulher e o homem dela tão escapando pela porta; eles que provocaram a porra do problema, a gente só tinha saído pra tomar umas.

– Filhos da puta. Esse é o meu homem – grita pra nós enquanto os dois saem.

Sinto a mão do Tommy no meu ombro.

– Vamolá, Secks. Vambora daqui – diz.

O gordão do time de dardos, que tá usando uma camisa vermelha estampada com o nome do pub, uma insígnia de um alvo de jogo de dardos e o nome “Stu” embaixo, ainda tem muita coisa pra dizer.

– Não vem aqui pra causar problema, meu caro. Aqui não é seu lugar. Conheço a cara de vocês. Cês são amigos daquele viado ruivo e daquele rapazinho, o Williamson, o do rabo de cavalo. Esses viados são escória, traficantes de drogas. Não queremos esse tipo de lixo aqui.

– A gente não vende porra de droga nenhuma, meu caro – disse o Tommy.

– É. Nessa porra de pub aqui cês não vendem mesmo – o cara gordo falou.

– Deixa, Stu. Não é culpa dos rapazes. É aquele viado do Alan Venters e a mina dele. Tão mais metido com drogas do que qualquer outro por aqui. Cê sabe disso – disse um outro cara com cabelo ralo e claro.

– Deviam discutir daquele jeito em casa, não num pub – diz um outro cara.

– Discussão doméstica. É isso aí. Não deviam ficar incomodando gente que só saiu de casa pra beber um pouco – concorda o Cabelo-claro.

A pior parte é sair pra rua. Tô com medo que a gente seja seguido. Vou caminhando rápido, enquanto o Tommy vai ficando pra trás.

– Guenta aí – ele diz.

– Se fode. Vamo dar o fora daqui.

Vamos descendo a rua. Olho pra trás, mas ninguém saiu do pub. Enxergamos o casal louco na nossa frente.

– Quero ter uma conversinha com aquele viado – diz o Tommy, pronto pra sair correndo atrás deles. Vejo um ônibus chegando. Um 22. Esse nos serve.

– Que se foda, Tommy. Olha o ônibus. Vamolá – corremos pro ponto e subimos no ônibus. Vamo pros fundos do andar de cima, embora a gente só vá andar alguns pontos.

– Como é que tá a minha cara? – pergunta o Tommy quando sentamos.

– Mesma coisa de sempre. Um lixo só. Aquela mina até que deu uma melhorada nela.

Ele olha pro seu reflexo na janela do ônibus.

– Que vadia fiadaputa – pragueja.

– Que duplinha de fiadasputa – eu digo.

Foi excelente da parte do Tommy ter batido no cara e tal, ao invés da mina, mesmo que tenha sido ela que bateu nele. Da minha parte, já fiz muita coisa da qual não tenho orgulho nenhum, mas nunca bati numa mina. O que a Carol diz é bobagem. Fica dizendo que usei de violência, mas nunca bati nela. Só segurei ela pra gente poder conversar. Ela disse que imobilizar é a mesma coisa que bater, é violência igual. Não concordo com isso. Tudo que eu queria fazer era manter ela quieta pra gente conversar.

Quando contei isso pro Rents, ele disse que a Carol tava certa. Disse que ela tem o direito de ir e vir como bem entender. Mas isso é bobagem. A única coisa que eu queria era conversar. O Franco concordou comigo. É diferente quando cê tá num relacionamento, a gente disse pro Rents.

Me senti enjoado e nervoso no ônibus. O Tommy deve ter sentido a mesma coisa, porque a gente não falou mais nada. Mas amanhã a gente já vai tá num bar qualquer com o Rents, o Mendigo, o Spud, o Sick Boy e todo mundo, um contando mais vantagem que o outro.


Recrutamento à base de anfetaminas

1 – Preparação

Spud e Renton estavam sentados em um pub no Royal Mile. O pub tentava criar um clima de bar temático norte-americano, sem muito sucesso; era um hospício de quinquilharias sortidas.

– Mas é estranho pra caralho, tipo assim, cê e eu sendo indicados pro mesmo trampo, tá ligado? – disse Spud, estalando os lábios com sua Guinness.

– Uma porra dum desastre pra mim, parceiro. Nem quero a porra do emprego. Seria uma porra dum pesadelo. – Renton sacudiu a cabeça.

– É, eu tô, tipo assim, feliz de poder ficar só no rock n’ roll por enquanto, cara, saca?

– O problema, Spud, é que se cê não tentar, se cê estragar a entrevista de propósito, os viados contam pra previdência e os canalhas cancelam seu seguro-desemprego. Aconteceu comigo em Londres. Me deram o aviso final lá.

– É... eu também, cara. Tipo assim... que cê vai fazer?

– Bem, o que cê tem que fazer é ficar entusiasmado, mas fuder com a entrevista mesmo assim. Desde que cê demonstre disposição, eles não podem dizer porra nenhuma. Se a gente for nós mesmos, se for honesto, nunca vão dar o emprego pra gente. O problema é que se cê sentar lá e não disser nada pros cara, eles contam direto pro serviço social. Vão dizer: aquele cara não vale a pena.

– É difícil pra mim, cara... saca? É difícil me controlar desse jeito, tipo assim... saca? Eu fico meio, tipo, tímido pra caralho, saca?

– O Tommy conseguiu um pouco de anfetamina pra gente. Que hora é a sua entrevista, mesmo?

– Não antes das duas e meia e tal.

– Bem, a minha é à uma. Encontro você aqui às duas. Dou minha gravata pra cê usar, e também um pouco de anfetamina. Dá uma moral, ajuda a se vender, saca? Então, vamo dar uma olhada nessas inscrições.

Posicionaram os formulários de inscrição na mesa à sua frente. O de Renton já estava parcialmente preenchido. Alguns campos chamaram a atenção do Spud.

– Ei... tipo, mas que porra é essa? George Heriots... cê estudou no Leithy, cara...

– Todo mundo sabe que cê não tem chance nenhuma de arranjar alguma coisa nessa cidade a não ser que tenha estudado num colégio caro. Mas eles não vão dar um emprego num hotel prum ex-aluno do George Heriots, de jeito nenhum. Esse tipo de emprego é só pra ralé tipo a gente; coloca algo assim aí no seu. Se eles virem Augies ou Craigy no seu formulário, os caras vão te oferecer o emprego... porra, preciso ir. Seja lá o que cê vai fazer, não chega atrasado. Encontro você aqui de novo num minuto.

2 – Entrevista: sr. Renton (13:00)

O gerente júnior que me recebeu era um cara espinhento pra caralho, vestindo um paletó justo, com tanta caspa nos ombros que pareciam até pilhas de cocaína. Me deu vontade de botar uma nota de cinco enrolada na nariga do viado. As espinhas e a cara de coitadinho arruinavam completamente a imagem que o merdinha bajulador tava tentando passar. Nem nas minhas piores fases com a heroína eu tive um aspecto daqueles; pobre coitado. O cara é obviamente só um pau-mandado. O homem no comando é o gordo com olhar obstinado que tá no meio. À direita dele tem uma sapatona de sorriso frio, com uma aparência horrenda, metida num traje corporativo feminino e com uma camada grossa de base em cima da cara.

É uma formação bem barra-pesada pra uma porra de emprego de porteiro.

A manobra de abertura foi previsível. O cara gordo me dirigiu um olhar caloroso e disse: – Pela sua inscrição, vejo que você frequentou o George Heriots.

– Correto... ah, aqueles prósperos dias de escola. Parece tão distante, agora.

Posso ter mentido na inscrição, mas não na entrevista. Frequentei mesmo o George Heriots: quando eu era aprendiz de marceneiro em Gillsland, fomos contratados pra fazer uns trabalhos lá.

– O velho Fotheringham continua dando aula lá?

Porra. Selecione uma das duas alternativas. Um: Sim, ele continua. Dois: Não, ele se aposentou. Não. Arriscado demais. Melhor continuar sendo vago.

– Deus, você me obriga a voltar no tempo, agora... – dou um sorriso. O sujeito gordo parece ficar feliz com isso. É preocupante. Sinto que a entrevista terminou, e que esses viados vão mesmo me dar o emprego. Todas as perguntas seguintes são feitas com prazer e não trazem desafio algum. Minha hipótese foi pro espaço. Prefeririam dar um emprego de engenheiro nuclear a um velho aluno de escola mercante com graves danos mentais do que dar uma vaga de faxineiro de abatedouro a um morador de loteamento com doutorado. Preciso fazer alguma coisa aqui. Isso é apavorante. O baleia tá me vendo como um ex-estudante do George Heriots passando por uma fase difícil e quer me ajudar. Que erro de cálculo grotesco, Rents. Seu otário.

Mas agradeçamos ao cuzão espinhento. Uma suposição razoável, considerando que cada outra parte do corpo dele parece estar coberta de espinhas. Mesmo nervoso, ele consegue fazer uma pergunta: – Hã... hã... sr. Renton... hã... você pode, hã, explicar... hã, as lacunas entre seus empregos, hã...

Você pode explicar as lacunas entre as suas palavras, seu viadinho babaca?

– Sim. Tive um problema duradouro com vício em heroína. Venho tentando combater isso, mas minhas atividades profissionais sofreram restrições. Sinto que é importante ser honesto e mencionar isso para vocês, como potenciais futuros empregadores.

Um coup-de-mâitre sensacional. Eles se reacomodam nervosamente sobre os assentos.

– Bem, hã, obrigado por ser tão franco conosco, sr. Renton... hã, temos algumas outras pessoas para ver... então, obrigado novamente, entraremos em contato.

Magia. O gordão asqueroso baixa um muro de frieza e distância entre nós. Eles não podem dizer que não tentei...

3 – Entrevista: sr. Murphy (14:30)

Essa anfetamina é tipo el magnifico. Me sinto meio dinâmico, tá ligado, tipo assim, tô realmente ansioso por essa entrevista. O Rents disse: Vende seu peixe, Spud, e diz a verdade. Vamo nessa então, maninho, vamo começar...

– Pela sua inscrição, vejo que você frequentou o George Heriots. Os velhos ex-alunos do Heriots parecem estar saindo de suas tocas nesta tarde.

É isso aí, gordacho.

– Na verdade, cara, preciso abrir o jogo aqui. Estudei no Augie, tipo assim, o St. Augustine, e depois no Craigy, quer dizer, no Craigroyston, tá ligado? Só enfiei Heriots ali porque achei que tipo, me ajudaria a conseguir o trampo. Tipo assim, tem discriminação demais nessa cidade, cara, tá ligado? Assim que os engravatados veem um cara do Heriots ou do Daniel Stewarts ou da Edinburgh Academy, já ficam emocionados, tá ligado? Quer dizer, cê teria dito, tipo assim, pela sua inscrição vejo que você frequentou o Craigroyston?

– Bem, só estava puxando assunto, porque por coincidência também estudei no Heriots. O objetivo era deixar você à vontade. Mas pode ficar tranquilo no que diz respeito à discriminação. Isso faz parte do nosso estatuto de igualdade de oportunidades.

– Na boa, cara. Tô relaxado. É só que eu, tipo assim, quero muito esse emprego. Mas não consegui dormir ontem à noite. Preocupado que iria tipo, estragar tudo, tá ligado? É que quando os bichano leem “Craigroyston” no formulário eles pensam, bem, tipo assim, todo mundo que estudou no Craigie é vagabundo, saca? Mas hã, cês sabem o Scott Nisbet, tipo assim, o jogador de futebol? Ele joga no time principal do Huns... hã, do Rangers, segurando a onda do lado de todos os jogador internacional do Souness, tá ligado? Esse bichano, cara, tava um ano abaixo de mim no Craigie, saca.

– Bem, sr. Murphy, posso lhe garantir que estamos bem mais interessados nas qualificações que você adquiriu do que na escola que você, ou qualquer outro candidato, frequentou. Diz aqui que você tem notas de cinco exames-padrão...

– Opa. Tipo assim, vou ter que interromper aí, bichano. Esse negócio de exame-padrão era papo furado, tá ligado? Pensei que podia usar isso pra meter o pé na porta. Tipo assim, mostrar iniciativa. Tá ligado, cara? Quero muito esse emprego, saca?

– Olha aqui, sr. Murphy, você nos foi indicado pelo Centro de Vagas do Departamento de Empregos. Não há necessidade de mentir para colocar o pé na porta, como você diz.

– Ei... cê é que manda, cara. Cê é o cara, o governador, tipo assim, o homem na cadeira, como se diz e tal.

– Sim, bem, não estamos progredindo muito aqui. Por que não nos diz por que você deseja esse emprego tão desesperadamente, a ponto de estar preparado para mentir?

– Preciso dos pila, cara.

– Perdão? Os o quê?

– O tutu, tipo assim, hã... o cascalho, os cobre e tal. Tá ligado?

– Entendo. Mas o que, especificamente, atrai você na indústria do lazer?

– Bem, todo mundo gosta de ter bons momentos, de um pouco de prazer, tá ligado? Tipo assim, isso é o lazer pra mim. Gosto de ver os parceiro curtindo uma boa, tá ligado?

– Certo. Obrigado – diz a boneca maquiada. Eu podia meio que amar aquela gata... – Quais você diria que são os seus principais pontos fortes? – ela me pergunta.

– Hã... tipo assim, o senso de humor. Cê precisa disso, cara, tem que ter, simplesmente tem que ter, tá ligado? – preciso parar de ficar dizendo tanto “tá ligado”. Esses caras podem achar que eu sou meio ralé.

– E quanto às fraquezas? – pergunta o maninho do paletó, com uma voz esganiçada. Esse bichano é espinhento mesmo. O Renton não tava brincando quando falou das espinhas. O cara é um verdadeiro chokito.

– Cara, acho que sou meio que perfeccionista demais, tá ligado? Tipo assim, se as coisas ficam meio complicadas, eu nem esquento, saca? Mas tô sentindo boas vibrações nessa entrevista hoje, cara, tá ligado?

– Muito obrigado, sr. Murphy. Entraremos em contato.

– Não, cara, o prazer foi meu. Melhor entrevista que eu já tive, tá ligado? – levanto e sacudo a mão de cada um dos bichano.

4 – Balanço

Spud voltou para o pub e encontrou Renton.

– Como é que foi, Spud?

– Numa boa, bichano, foi numa boa. Talvez bem demais, tipo assim. Acho que os maluco podem acabar oferecendo o emprego pra mim. Más vibrações. Mas tem uma coisa, cara, cê tava certo sobre essa anfetamina. Eu meio que nunca consigo, tipo, me vender direito nessas entrevista. Foi na boa, compadre, na boa.

– Vamo tomar umas pra celebrar seu sucesso. Tá a fim de mais um pouco de anfetamina?

– Não posso negar, cara, tipo assim, não posso negar.


Voltando


A Escócia usa drogas como defesa psíquica

Eu não podia mencionar o show de Barrowland pra Lizzy. De jeito nenhum, cara, posso garantir. Comprei meu ingresso quando recebi o seguro-desemprego. Isso me deixou sem um tostão. Também era aniversário dela. Era o ingresso ou um presente pra ela. Não tinha nem graça. Tô falando de Iggy Pop. Achei que ela ia entender.

– Cê pode comprar ingressos pra ver a porra do Iggy Pop mas não pode me comprar uma porra dum presente de aniversário? – foi a resposta dela. Tá vendo a cruz que tô precisando carregar aqui, cara? Loucura mesmo, meu caro. Não me leva a mal. Dá pra sacar o ponto de vista dela. Mas a culpa é toda minha, como eu disse, culpa minha. Ingênuo mesmo, é isso que o Tommy aqui é. Velha mania de falar demais. Dou com a língua nos dente o tempo todo. Se eu fosse um pouco mais, como se diz?, falcatrua, não tinha falado nada sobre os ingressos. Mas eu me empolgo demais e simplesmente escancaro minha boca mais do que devia. Esse sou eu, a destemida metralhadora giratória. Cretino mesmo.

Então, desde aquele dia, não falei mais no show. Na véspera do evento a Lizzy me diz que tá louca mesmo pra ir no cinema ver aquele Acusados. Diz que aquela fulana do Taxi Driver tá nesse filme. Não tô muito interessado no filme; muito hype, muita publicidade. Mas isso tá realmente fora de questão, se cê tá me entendendo, porque tô sentado aqui com os ingressos pro Ig no bolso das calça. Aí sou forçado a mencionar Barrowland e o mestre.

– Hã, amanhã não posso. Tenho aquele show do Iggy Pop em Barrowland. Eu e o Mitch tamo indo.

– Então cê prefere ir num concerto com a porra do Davie Mitchell do que ir pro cinema comigo? – essa é mesmo a Lizzy. Pergunta retórica, a arma típica das minas e dos psicopatas.

A questão se transformou, tipo, num total plebiscito sobre o nosso relacionamento. Meu instinto seria abrir o jogo e dizer “sim”, mas isso provavelmente significaria mandar a Lizzy pro espaço, e tô viciado em fazer sexo com ela. Deus, eu adoro. Fazer por trás enquanto ela geme baixinho, a cabeça linda dela apoiada nas fronhas de seda amarela da minha casa. As fronhas que o Spud afanou pra mim das British Home Stores na Princes Street pra me presentear com um agradinho pro apê. Sei que não devia tá revelando detalhes da nossa vida, cara, mas a imagem dela na cama é tão forte que nem mesmo sua grossura social e sua indignação permanente são capazes de estragar. Eu só queria mesmo que a Lizzy pudesse ser sempre como ela é na cama.

Tento murmurar umas desculpas sedutoras, mas ela é muito severa e rancorosa; só é doce e linda na cama. Aquela expressão permanente de crueldade vai forçar a beleza dela a desaparecer muito antes do que deveria. Ela me cobre de todos os xingamentos da face da Terra e depois de mais alguns, só pra garantir. Pobre e velho Tommy Gun. Já nem é mais o maior soldado guerreiro; virou o maior soldado cagalhão.

Não é culpa do Iggy. Não dá mesmo pra botar a culpa no cara, saca? Como ele podia saber que, ao incluir Barrowland no seu itinerário, causaria todo esse tormento a uns caras que ele nem sabe que existem? É bizarro mesmo, quando cê para pra pensar. Mesmo assim, ele foi só a gota d’água. A Lizzy é mesmo a mulher de aço. Mas eu tô feliz. Até o Sick Boy tem inveja de mim. Ser namorado da Lizzy confere status mas, como dizem, a fama tem seu preço. Quando saio do pub, não tenho mais dúvidas quanto à minha falta de valor como ser humano.

Em casa, estico uma carreira de anfetamina e engulo meia garrafa de Merrydown. Fico sem sono mesmo, aí ligo pro Rents e pergunto se ele tá a fim de chegar aqui pra ver um vídeo do Chuck Norris. Rents vai pra Londres amanhã. Ele passa mais tempo lá embaixo do que aqui em cima. Tem algo a ver com o seguro-desemprego. O viado tá em algum tipo de quadrilha com esses caras que ele conheceu quando trabalhou na balsa que vai de Harwich pra Holanda, anos atrás. Ele vai ver o Ig no Town and Country enquanto estiver na terra da neblina. A gente deu uns pega numa erva e rimos até estourar vendo o Chuck chutar a bunda dum monte de anticristo comunista, sem tirar nunca aquela expressão estoica de prisão de ventre da cara. Com a cara limpa, isso é inassistível. Chapado é imperdível mesmo.

No dia seguinte acordo com umas aftas terríveis na boca. O Temps, Gav Temperley, que se mudou pro apartamento, diz que eu mereço elas. Estou me matando de tanta anfetamina, ele me diz. O Temps acha que com minhas qualificações, eu devia ter um emprego. Digo pro Temps que com esse papo ele tá parecendo mais com minha mãe do que qualquer amigo tem o direito de parecer. Mas dá pra entender o ponto de vista do Gav. Ele é o único que tá trabalhando, pra porra do seguro social, e vive recebendo facada do resto de nós. Pobre Temps. Acho que eu e o Rents também fizemos ele ficar acordado na noite passada. Como todos os trabalhadores, Temps se ofende com a diversão dos dependentes da caridade do serviço social. Ele se ofende mesmo com os pedidos de informação a respeito dos procedimentos de reivindicação do seguro que o Rents faz todo dia pra ele.

É pra casa da minha mãe que eu sigo, pra achacar uma grana pro show. Preciso de cascalho pra passagem de trem, e também pra bebida e pras drogas. A anfetamina é a minha droga, vai bem com a bebida e eu sempre gostei de beber. Tommy é mesmo o maníaco da anfetamina.

Minha mãe faz um discurso sobre o perigo das drogas, falando sobre a decepção que eu fui pra ela e pro meu pai, que, embora não diga muita coisa, tá muito preocupado comigo. Mais tarde, quando ele chega do trabalho e minha mãe tá no andar de cima, ele me diz que ela pode não dizer muita coisa, mas tá muito preocupada comigo. Francamente, diz, ele tá muito decepcionado com o meu comportamento. Espera que eu não esteja tomando drogas, analisando meu rosto como se pudesse deduzir alguma coisa. Engraçado, eu conheço viciados em heroína, maconheiros e gente que se liga em anfetamina, mas os caras drogados mais detonados que eu conheço são os bebuns, como o Secks. Tô falando do Rab McLaughlin, o Segundo Lugar. Esse não tem volta, cara.

Achaco a grana e encontro o Mitch no Hebs. O Mitch ainda tá com aquela mina, a Gail. Mas é óbvio que ele não tá comendo ela. Ele só precisa falar dez minutos pra pegar tudo nas entrelinhas mesmo. Ele tá num clima de beber mesmo, então achaco um pouco de grana dele. A gente vira quatro pints de cerveja escura e depois pegamos o trem. Meto quatro latas de Export e duas carreiras de anfetamina durante a viagem pra Glasgow. Tomamos mais algumas no Sammy Dow e depois pegamos um táxi pro Lynch. Depois de mais dois pints, que podem ter sido três, e mais uma carreira de anfetamina cada um no banheiro, cantamos um pot-pourri de canções do Iggy e vamos pro Saracen Head no Gallowgate, na frente do Barrowland. Bebemos sidra e vinho pra arrematar, enquanto damos uns tecos na anfetamina salgada do papel-alumínio.

Tudo que enxergo quando saímos do pub é uma placa de néon borrada. Aqui tá gelado mesmo, cara, não tô brincando, e nos mexemos na direção da luz, pra dentro da casa de shows. Vamos direto pro bar. Tomamos mais algumas bebidas por ali, embora dê pra escutar que o Iggy já tá no palco. Arranco fora minha camiseta rasgada. Mitch estica um pouco de anfetamina de Morningside e cocaína na mesa de fórmica.

Então alguma coisa muda. Ele me diz alguma coisa sobre dinheiro que não escuto muito bem, mas percebo que ele tá puto da cara. Temos uma discussão calorosa e embolada, trocando socos, não me lembro quem deu o primeiro golpe. Não conseguimos machucar um ao outro direito, nem ter força nos nossos punhos e corpos. Bêbados demais. Mas olha só, aumento a marcha quando vejo o sangue escorrendo do meu nariz pelo meu peito nu e sobre a mesa. Agarro o cabelo do Mitch e fico tentando esmagar a cabeça dele na parede, mas as minhas mãos tão muito amortecidas e pesadas. Alguém me puxa e me joga pra fora do bar, num corredor. Me levanto cantando e sigo a música até o salão apinhado de corpos suados, empurrando e acotovelando o caminho pra frente do palco.

Um cara me dá uma cabeçada mas eu passo direto, sem dar nenhuma atenção ao meu agressor, cavando meu caminho pra frente. Fico pulando mesmo na frente do palco, a poucos metros de distância d’O Mestre. Tão tocando “Neon Forest”. Alguém me dá um tapa nas costas e diz: – Cê é bem louco, parceiro – eu canto aos berros, sou uma massa de borracha pogando e se contorcendo.

O Iggy Pop olha bem pra mim quando canta: America takes drugs in psychic defence.9 Só que ele troca “América” por “Escócia” e, com uma única frase, define a gente com mais precisão do que qualquer um já tenha feito...

Paro de dançar e pular que nem louco e fico parado olhando pra ele, de queixo caído. Ele já tá olhando pra outra pessoa.


O copo

O problema do Begbie era que... bem, o Begbie tinha muitos problemas. Uma das coisas que mais me preocupava era que cê não conseguia relaxar na companhia dele, especialmente se ele tinha tomado umas. Sempre me pareceu que bastaria uma sutil mudança na percepção que o cara tinha de você pro seu status mudar de grande amigo pra vítima perseguida. O segredo era ser complacente com o maluco, mas sem exageros, pra não dar a impressão de ser um baba-ovo.

Apesar disso, qualquer manifestação de irreverência acontecia dentro de limites estritamente definidos. Essas fronteiras eram invisíveis pros de fora, mas cê logo adquiria um conhecimento intuitivo delas. Mesmo assim, as regras mudavam constantemente, dependendo do humor do cara. A amizade com o Begbie era a preparação ideal pra embarcar num relacionamento com uma mulher. Era uma lição de sensibilidade, de atenção às necessidades volúveis da outra pessoa. Quando eu tava com uma mina, eu costumava me comportar da mesma maneira, com uma complacência discreta. Pelo menos durante algum tempo.

O Begbie e eu tínhamos sido convidados pro aniversário de vinte e um anos do Gibbo. Era um esquema RSVP, com os amigos. Eu levei a Hazel e o Begbie levou a mina dele, a June. A June tava prenha, mas não dava pra sacar. Nos encontramos num pub da Rose Street, o que foi ideia do Begbie. Só cuzões, otários e turistas botam o pé na Rose Street.

Hazel e eu tínhamos uma relação estranha. A gente se via de vez em quando há cerca de quatro anos. Temos um tipo de acordo que determina que ela simplesmente desapareça quando eu tô usando heroína. A Hazel continua comigo porque é tão problemática quanto eu, mas ao invés de resolver as coisas, ela prefere negar. A raiz do problema dela é o sexo, e não as drogas. A Hazel e eu quase nunca fazemos sexo. Isso porque eu geralmente tô detonado demais pela heroína pra me dar ao trabalho; ela, de qualquer modo, é frígida. As pessoas dizem que não existem mulheres frígidas, só homens incompetentes. Isso é verdade até certo ponto, e eu seria o último cara na face da Terra a contar grandes vantagens nesse departamento – meu histórico pavoroso de consumo de heroína fala por si.

O lance é que a Hazel foi comida pelo pai quando era menininha. Uma vez ela me contou isso, quando tava fora de órbita. Não pude ajudar muito, porque também tava fora de órbita. Quando tentei fazer ela falar sobre isso mais tarde, ela não quis. Depois disso, todas as vezes foram um desastre. Nossa vida sexual sempre foi um desastre. Depois de ficar me dando chega pra lá por meses, acabou deixando que eu comesse ela. Ficou apertando o colchão e rangendo os dente, enquanto eu fazia o que tinha de fazer. Uma hora, a gente simplesmente parou. Era como dormir com uma prancha de surfe. Todas as preliminares do mundo eram insuficientes pra fazer a Hazel relaxar. Ela só ficava ainda mais tensa, quase passava mal fisicamente. Espero que um dia ela encontre alguém que resolva esse negócio. Enfim, eu e a Hazel tínhamos um pacto estranho. Usávamos um ao outro socialmente, esse é mesmo o único jeito de descrever, pra projetar esse verniz de normalidade. Um ótimo disfarce pra frigidez dela e pra minha impotência causada pela heroína. Minha mãe e meu pai adotaram a Hazel, vendo ela como uma nora em potencial. Ah, se eles soubessem. Mas enfim, eu tinha ligado pra Hazel pra ver se ela me acompanhava pra sair essa noite; dois fudidos andando juntos.

O Mendigo tinha bebido antes da gente se encontrar. Parecia debilitado e ameaçador metido num paletó, como parecem os bebuns, o nanquim escorrendo pras mãos e pro pescoço por baixo dos punhos e do colarinho. Tenho certeza que as tatuagens do Begbie se movem em busca da luz, ofendidas por terem sido cobertas.

– Como é que tá a porra do Rent Boy? – esbraveja. Conduta apropriada nunca foi o forte desse cara. – E aí, boneca? – diz pra Haze. – Cê parece bem. Tá vendo esse viado aqui? – aponta pra mim. – Estilo – declara, enigmático. Depois entra em detalhes. – Esse fiadaputa não vale nada. Mas ele tem estilo. Um homem sábio. Um homem de classe. Um homem não muito diferente da minha própria grande pessoa.

O Begbie sempre bolava qualidades imaginárias pros seus amigos e depois as reivindicava pra si próprio.

Hazel e June, que não se conheciam muito bem, sabiamente entabularam uma conversa, me abandonando com o Mendigo, o General Franco. Percebi que fazia muito tempo que eu não bebia sozinho com o Begbie, sem a companhia de outros amigos pra poder ter uma folga ocasional. Sozinho, era estressante.

Pra ganhar minha atenção, Begbie crava um cotovelo na minha costela com tanta força que pareceria uma agressão, se não fôssemos parceiros. Aí começa a me contar sobre algum vídeo de violência gratuita que ele andou assistindo. O Mendigo insiste em representar a porra do filme todo, demonstrando golpes de caratê, estrangulamentos, facadas etc. em mim. Sua explicação sobre o filme dura duas vezes mais que o filme em si. Amanhã vou acordar com algumas escoriações, e ainda nem me embebedei.

A gente tá bebendo no bar do mezanino quando nossa atenção é desviada por um grupelho de arruaceiros entrando no pub lotado, lá embaixo. Entram fanfarronando, barulhentos e intimidadores.

Odeio caras como esses. Caras como o Begbie. Caras que curtem baixar o taco de beisebol em qualquer fiadaputa diferente. Paquistaneses, bichas, seja o que for. Um bando de perdedores num país de perdedores. Não adianta culpar os ingleses por terem nos colonizado. Não odeio os ingleses. São só uns imbecis. Nós fomos colonizados por imbecis. Não podemos nem ao menos escolher uma cultura decente, vibrante e saudável pra nos colonizar. Não. Somos governados por cuzões degenerados. E no que isso nos transforma? Nos mais inferiores entre os inferiores, na escória da Terra. No lixo mais desprezível, servil, miserável e patético que já foi defecado na criação. Não odeio os ingleses. Eles só levam adiante a merda que têm. Eu odeio os escoceses.

O Begbie tá falando sobre a Julie Mathieson, por quem ele tinha uma queda. A Julie sempre odiou ele. Eu gostava muito da Julie, talvez por esse motivo. Era mesmo muito parceira. Teve um filho quando tava com HIV, mas graças a deus o filho é negativo. O hospital mandou a Julie e o bebê pra casa numa ambulância, com dois caras vestidos com umas roupas tipo antirradioativas – capacetes, a porra toda. Isso foi lá por 1985. O efeito foi previsível. Os vizinhos viram isso, ficaram apavorados e forçaram ela a sair da casa. Depois que cê pega o rótulo de aidético, cê tá fudido. Especialmente uma mina sozinha. Depois foi um abuso atrás do outro. Ela acabou tendo uma crise nervosa e, com seu sistema imunológico fragilizado, virou presa fácil pro ataque da AIDS.

Foi no Natal passado que a Julie morreu. Não consegui ir ao funeral. Tava deitado em cima do meu próprio vômito num colchão no apartamento do Spud, detonado demais pra me mexer. Foi uma pena, porque a Julie e eu éramos bons amigos. A gente nunca trepou ou nada parecido. Eu e ela achávamos que as coisas mudariam demais, como acontece com as amizades entre homem e mulher. Geralmente, o sexo ou transforma a amizade num relacionamento de verdade, ou acaba com ela. Depois de trepar cê avança ou recua, mas manter o status quo é difícil. A Julie tava muito bem quando começou com a heroína. A maioria das minas fica bem. A heroína parece trazer à tona o melhor delas. Ela sempre parece dar muito antes de tomar de volta, com juros.

O epitáfio de Begbie pra Julie é: – Uma porra dum desperdício duma bela duma buceta.

Luto contra o impulso de dizer que desperdício de uma bala de prata ele seria. Tento não demonstrar minha raiva. Não vai resultar em nada, a não ser numa boca arrebentada pra mim. Desço a escada pra buscar mais uma rodada.

Aqueles viados arruaceiros tão no bar, esbarrando uns nos outros e em qualquer outro fiadaputa. Conseguir que me atendam no balcão é um pesadelo. Um casco coberto por um mosaico de cicatrizes e tatuagens, presumo que haja alguém ali dentro, fica gritando: – VODCA DUPLA E UMA COCA! UMA POORRRA DUMA VODCA DUPLA E UMA COCA AGORA, SEU VIADO! – pro apavorado time de garçons. Fixo o olhar nas garrafas de uísque das prateleiras, fazendo tudo que posso pra evitar um contato visual com esse louco. É como se meus olhos tivessem vida própria, virando involuntariamente pro lado. Meu rosto fica vermelho e formigando, à espera de um soco ou uma garrafada. Esses caras são completamente pirados, encrenqueiros de primeira ordem.

Levo as bebidas de volta; primeiro as doses pras mulheres, depois os pints.

E então acontece.

Tudo que fiz foi colocar um pint de Export na frente do Begbie. Ele só toma um gole e depois arremessa o copo vazio do último pint dele por cima do mezanino, com um movimento negligente pra trás. É um daqueles canecos grossos e enfeitados, e enxergo ele girando no ar pelo canto do meu olho. Olho pro Begbie, que sorri, enquanto a Hazel e a June parecem desorientadas, seus rostos refletindo minha própria ansiedade paralisante.

O copo se espatifa em cima da cabeça de um dos arruaceiros, que se abre enquanto ele cai de joelhos. Os parceiros do cara assumem posição de luta e um deles se joga pra cima duma outra mesa e espanca um cara inocente. Outro desce o cacete num pobre rapaz que tava carregando uma bandeja de bebidas.

O Begbie se levanta e sai correndo escada abaixo. Fica bem no meio do salão.

– JOGARAM UM COPO NO CARA! NINGUÉM SAI DAQUI ATÉ EU DESCOBRIR QUEM JOGOU A PORRA DO COPO!

Late ordens pra casais inocentes e berra instruções pra equipe do bar. O mais foda é que os arruaceiros tão caindo nessa.

– Tudo bem, parceiro. A gente resolve isso sozinho! – diz o Vodca Dupla com Coca.

Não consigo escutar o que o Begbie diz, mas parece impressionar o Vodca Dupla. Então o Mendigo chega pro barman: – VOCÊ! LIGA PRA PORRA DA POLÍCIA!

– NÃO! NÃO! NADA DE POLÍCIA! – grita um dos psicopatas arruaceiros. Esses caras certamente têm um registro policial do tamanho do braço. O pobre sujeito atrás do balcão tá se cagando todo, sem saber o que fazer.

Begbie permanece ereto, os músculos do pescoço tensionados. Seu olhar faz uma varredura ao redor do bar e sobe pro mezanino.

– QUEM VIU ALGUMA COISA? VOCÊS, SEUS VIADOS, VIRAM ALGUMA COISA? – grita prum grupo de caras de escola mercante, uns típicos viados de Murrayfield que tão se cagando completamente.

– Não... – diz um dos caras, hesitante.

Resolvo descer, dizendo pra Hazel e pra June não arredarem pé do bar do mezanino. O Begbie parece um detetive psicopata saído de um mistério da Agatha Christie, cruzando os depoimentos de cada sujeito no recinto. Tá entregando o jogo; é tão óbvio, porra. Tô lá embaixo, enfiando uma porra duma toalha de mesa na cabeça aberta do arruaceiro, tentando estancar o sangue. O cara rosna pra mim, e não entendo se é o jeito dele de demonstrar gratidão ou se tá prestes a esmagar minhas bola, mas sigo em frente.

Um cara gordo do grupo de psicopatas caminha até um outro grupo de caras e enfia a testa num deles. O lugar explode. Minas gritam, os caras lançam ameaças, empurram uns aos outros e trocam golpes enquanto o som de vidro quebrado toma conta do ambiente.

A camisa branca do cara tá ensopada de sangue quando começo a abrir caminho pelo meio de alguns corpos pra voltar lá pra cima, onde tão a Hazel e a June. Um cara qualquer me acerta no lado da cara. Eu tinha entrevisto o golpe chegando pelo canto do olho e me esquivei a tempo, de modo que não me pegou com toda a força. Me viro e o cara tá ali, dizendo: – Vem cá, valentão. Vem cá.

– Porra nenhuma, ô maluco – respondo, sacudindo a cabeça. O louco tá pronto pra vir pra cima de mim, mas um amigo segura o braço dele, o que é excelente, porque esse aí eu não tô pronto pra encarar. O cara parece bem em forma, deve ter a mão pesada.

– Fica fora disso, Malky, caralho. Não tem porra nenhuma a ver com aquele cara – diz o amigo dele. Eu, esperto, sigo em frente. Haze e June descem a escada comigo. Malky, meu agressor, tá descendo o cacete em outro cara. Uma brecha se abriu no meio do recinto e conduzo a Haze e a June através dela em direção à porta.

– Cuidado com as mina, cara – digo pra dois caras que tão prestes a se pegar, e um deles mergulha pra cima do outro, abrindo passagem pra nós. Fora do bar, nos arredores da Rose Street, Begbie e um outro cara, o Vodca Dupla, tão cobrindo de chutes um pobre coitado caído no chão. – FRAAANK! – June dá um grito de coagular o sangue. A Hazel tá se afastando de mim, me rebocando pela mão.

– FRANCO! VAMOLÁ! – grito, segurando o braço dele. Ele para pra examinar seu trabalho, mas se solta da minha mão e se vira pra me olhar. Por um instante, acho que vai me cobrir de porrada. É como se não me enxergasse, não me reconhecesse. Aí ele diz: – Rents. Nenhum fiadaputa mexe com o YLT. Eles têm que aprender isso, Rents. Eles têm que aprender isso, porra.

– É isso aí, parceiro – diz o Vodca Dupla, cúmplice do Franco na chacina.

Franco sorri pra ele e enfia o pé nas bola do cara. Senti em mim.

– Vou mostrar o que é isso aí, seu viado! – desdenha, acertando o Vodca Dupla no rosto e o botando a nocaute. Um dente branco voa da boca do cara como uma bala de revólver e aterrissa alguns metros adiante, nas pedras do calçamento.

– Frank! O que cê tá fazendo? – berra June. Tamo puxando o cara pela rua quando sirenes de polícia preenchem o ar.

– Aquele viado, aquele viado e a porra dos amigo dele são os viado que esfaquearam meu irmão! – grita, indignado. June parecia abatida.

Era papo furado. Joe, o irmão do Mendigo, foi esfaqueado numa briga num pub de Niddrie anos atrás. A briga foi causada por ele mesmo, que não se feriu seriamente. Franco e Joe se odiavam. Mesmo assim, o episódio tinha fornecido ao Begbie a munição moral fraudulenta que precisava pra justificar mais uma de suas batalhas movidas a álcool e fúria contra a população local. Um dia ele levaria a dele. Nada era mais certo. Só não gostaria de tá por perto quando isso acontecesse.

Hazel e eu ficamos pra trás de Franco e June. Haze queria ir embora. – Tem algo errado com ele. Cê viu a cabeça daquele cara? Vamo sair daqui.

Acabei mentindo pra ela pra justificar o comportamento do Begbie. Foi horrível pra caralho. Simplesmente não consegui lidar com a indignação dela e com a incomodação que isso trazia. Era mais fácil mentir, como todos do nosso círculo faziam em relação ao Begbie. Toda uma mitologia do Begbie foi criada a partir das mentiras que contávamos uns pros outros e pra nós mesmos. Assim como a gente, o Begbie acreditava naquela merda toda. Tínhamos um papel importante em fazer do Begbie quem ele era.

Mito: Begbie tem um grande senso de humor.

Realidade: O senso de humor do Begbie é acionado somente diante dos infortúnios, derrotas e fraquezas das outras pessoas, geralmente seus amigos.

Mito: Begbie é “durão”.

Realidade: Pessoalmente, eu não daria uma nota tão alta pro Begbie numa briga mano a mano, desprovido de seu arsenal de facas, tacos de beisebol, socos-ingleses, copos de cerveja, agulhas de tricô afiadas etc. Outros caras, incluindo eu mesmo, são cagalhões demais pra testar essa teoria, mas a impressão persiste. Certa vez, o Tommy expôs algumas fraquezas do Begbie numa briga mano a mano. O Tom fez ele passar um bom trabalho. Mas se liguem, o Tommy é um cara forte e o Begbie, é preciso admitir, acabou se saindo melhor.

Mito: Os amigos do Begbie gostam dele.

Realidade: Eles têm medo dele.

Mito: Begbie nunca acabaria com a raça de nenhum amigo seu.

Realidade: Seus amigos, em geral, são cautelosos demais pra testar essa sugestão, e nas raras ocasiões em que o fizeram, tiveram sucesso em contradizê-la.

Mito: Begbie sempre ajuda seus amigos.

Realidade: Begbie desce o cacete em carinhas inocentes que, sem querer, derramam sua cerveja ou esbarram em você. Os psicopatas que aterrorizam os amigos do Begbie em geral o fazem impunemente, já que costumam ser mais próximos do Begbie do que os caras com quem ele anda. Ele conhece todos eles do reformatório, da prisão ou de trabalhos temporários, essas maçonarias de que os vagabundos são sócios.

Enfim, esses mitos servem de base pra resgatar a noite.

– Olha, Hazel, eu sei que o Franco é meio nervoso. Mas é que esses caras colocaram o Joe, o irmão dele, numa UTI. Eles são uma família muito unida.

O Begbie, como a heroína, é um vício. No meu primeiro dia no ensino fundamental, a professora me disse “você vai sentar ao lado de Francis Begbie”. Foi a mesma coisa no ensino médio. Só fui bem no colégio pra poder entrar numa turma especial e me afastar do Begbie. Quando o Begbie foi expulso e enviado pruma outra escola no caminho de Polmont, meu desempenho caiu e eu fui mandado de volta pro mundo dos sem certificado. Pelo menos, nada de Begbie.

Depois, quando fui aprendiz de carpinteiro com um construtor de Gorgie, fui também pro Telford College pra fazer meus módulos do certificado nacional de marcenaria. Sentei pra comer uma fritura na cafeteria quando me aparece ninguém menos que aquele viado do Begbie, com um par de outros psicopatas. Tavam fazendo um curso de especialização em trabalhos com metal pra adolescentes problemáticos. O curso parecia ensinar eles a fabricarem suas próprias armas de destruição com metal afiado, ao invés de precisarem comprar elas nas lojas Army & Navy.

Quando larguei meu trampo, fiz meus exames superiores e depois fui pra Universidade de Aberdeen. Meio que já tava esperando encontrar o Mendigo no baile dos calouros, moendo de pancada algum babaca quatro-olhos de classe média que ele achou que tava encarando.

O cara é mesmo um viado de primeira ordem. Não tenho dúvida. O grande problema é que ele é um amigo e tal. Que cê pode fazer?

Apressamos o passo e seguimos eles pela rua; quatro fudidos andando juntos.


Uma decepção

Eu respeitava o cara. Respeitava pra caralho. Achava ele um cara durão pra cacete na época do Craigie, saca? Ele andava com o Kev Stronach e aquela turma, porra. Umas porra duns vagabundo. Mas, tipo, não me leva a mal; eu achava o cara bem decente, porra. Mas lembro uma vez que uns cara perguntaram de que porra de lugar ele vinha. Um cara perguntou: – Jakey! (esse era o nome do cara e tal), cê é de Granton ou Royston? – O viado respondeu: – Granton é Royston. Royston é Granton – porra, o fiadaputa caiu lá embaixo no meu conceito depois dessa, saca? Isso foi época da porra do colégio, saca? Faz uma caralhada de tempo.

Mas, enfim, uma semana dessas eu tava lá na porra do Volley com o Tommy e o Secks, tá ligado, o Rab, o Segundo Lugar, saca? Aí esse cara, esse viado do Jakey, a porra do grande valentão do Craigie, entrou no pub. Nem fez que me viu, porra. Lembro de ter esmagado uma tonelada de caranguejo com pedras junto com aquele viado. Lá na porra do porto, saca? Ele nem me reconheceu, porra. Parecia que nunca tinha me visto... que viado.

Mas, enfim, o parceiro do cara, uma porra dum babaca com a cara cheia de pereba, foi botar a porra da grana dele na mesa pras bola. Pra sinuca, saca? Eu disse pra ele: – Aquele cara ali é o próximo – apontando prum carinha sardento. Aquele viadinho tava com a porra do nome dele no quadro, mas tipo, ele ia ter ficado sentado ali sem dizer porra nenhuma se eu não tivesse falado, porra.

Eu tava muito a fim duma briga. Se os cara tivessem vindo pra cima eu tipo, nem reclamava. Quer dizer, cê me conhece, não sou o tipo de cara que fica correndo atrás duma porra duma incomodação e tal, mas era eu que tava com o taco de sinuca na mão, e o cara das pereba podia levar tipo a ponta mais grossa do taco em cima do pus da cara dele, se quisesse. É claro que eu tava com a minha faca e tal. Pode apostar. Como eu disse, não saio correndo atrás de incomodação, mas se qualquer falastrão quiser começar, tô dentro. Daí o viadinho sardento enfiou a porra do dinheiro dele na mesa e tava arrumando as bola, saca? O cara das pereba fica sentado e não diz porra nenhuma. Fiquei de olho no durão, ou pelo menos ele era uma porra dum cara durão na escola, saca? O viado não disse nem uma palavra. Ficou com a porra da boca dele bem fechadinha. Viado.

O Tommy me disse: – Ei, Franco, aquele cara tá querendo problema? – cê conhece o Tommy, o cara não deixa por menos, porra. A porra dos viado escutaram ele, mas não disseram porra nenhuma de novo. O cara das pereba e o que era pra ser o durão. E ia ter sido dois contra dois, porque cê conhece o Segundo Lugar; não me leva a mal, eu curto o cara, mas ele não presta pra nada quando chega a hora da pancadaria. Tá com o melão encharcado de álcool e mal consegue segurar o taco de sinuca. E eu tô falando aqui de onze e meia de uma manhã de quarta-feira. Então teria sido uma porra dum mano a mano. Mas aqueles viado não disseram nada. Eu nem esperava nada do cara das pereba, mas fiquei decepcionado pra caralho com o suposto cara durão e tal. Ele não era um cara durão, porra. Era um cara cagalhão, se é pra falar a verdade, saca. Esse porra desse cara foi uma baita decepção pra mim, vou te contar.


Problemas no pau

Porra, é grotesco tentar encontrar um cano de entrada. Ontem precisei injetar no meu pau, que é onde fica a veia mais saliente do meu corpo. Não quero que isso vire um hábito. Por mais difícil de conceber que isso seja no momento, posso vir a arranjar outras utilidades pro órgão, além de mijar.

Agora a campainha tá tocando. Mas que inferno. Deve ser aquele merda de senhorio canalha com o cu cagado: o filho do Baxter. O velho Baxter, deus guarde a alma daquele velho gagá, nunca se importava muito com o cheque do aluguel. Velho punheteiro senil. Sempre que ele aparecia, eu era a pessoa mais encantadora do mundo pro velho. Tirava a jaqueta dele, oferecia um assento e dava uma lata de Export pra ele. A gente conversava sobre cavalos e o time dos anos 50 do Hibs, com o ataque dos “Cinco Famosos”: Smith, Johnstone, Reilly, Turnbull e Ormond. Eu não entendia nada de cavalos ou do time dos Hibs nos anos 50, mas como esses eram os únicos assuntos das conversas com o velho Baxter acabei me tornando especialista nas duas coisas. Depois eu vasculhava os bolsos da jaqueta do velho e me servia de um pouco de grana. Ele sempre carregava um maço gordo de cédulas por aí. Depois eu pagava ele com seu próprio dinheiro, ou dizia pro pobre coitado que eu já tinha acertado as conta com o cara.

A gente chegava até mesmo a ligar pro velho quando tava meio na necessidade. Como nas vezes que o Spud e o Sick Boy dormiam aqui e a gente falava pra ele que uma torneira tava vazando ou uma janela tava quebrada. Às vezes a gente mesmo quebrava as coisas, como quando o Sick Boy atirou a velha tevê em preto e branco pela janela, e fazia o velho dócil aparecer pra gente poder saquear ele. Tinha uma porra duma fortuna nos bolso daquele cara. Chegou num ponto que eu tinha medo de não roubar o velho, temendo que algum fiadaputa roubasse ele na rua.

Mas o velho Baxter já tinha ido bater na porta do céu, e foi substituído pelo canalha do filho mal-humorado dele. Um cara que esperava receber aluguel por essa espelunca.

– EEEI! – alguém tá gritando pelo buraco das carta.

– Rents!

Não é o senhorio. É o Tommy. Que porra esse cara quer numa hora dessa?

– Peralá, Tommy. Tô indo.

Injeto na minha pica pelo segundo dia consecutivo. Quando a agulha vai entrando, parece que tô realizando algum tipo terrível de experiência com uma cobra marinha feiosa. A situação fica mais doente a cada minuto. O fluxo não leva muito tempo pra bater na cachola. Sinto um barato quase mágico e depois parece que vou vomitar. Subestimei a pureza dessa merda e botei um pouco demais naquela dose. Respiro fundo e me controlo. Parece que uma leve corrente de ar tá entrando no meu corpo por um buraco de bala nas minhas costas. Não é um caso de overdose. Calma. Mantenha o velho respirador funcionando. É só não se afobar. Isso é bom.

Me ponho em pé e deixo o Tommy entrar. Isso não foi fácil.

O Tommy parece ofensivamente em forma. Bronzeado de Maiorca ainda intacto. Cabelo desbotado pelo sol, cortado curto e puxado pra trás com gel. Brinco dourado numa das orelhas. Olhos límpidos, cor azul do céu. Preciso admitir que o Tommy bronzeado fica um cara razoavelmente bonito. Traz o melhor dele à tona. Bonito, tranquilo, inteligente e bom de briga. O Tommy devia deixar você com inveja, mas de algum modo isso não acontece. Talvez seja porque o Tommy não tem autoconfiança pra reconhecer suas qualidades e tirar o máximo delas, e nem é vaidoso o bastante pra ficar usando elas pra encher o saco de todo mundo.

– Terminei com a Lizzy – ele me informa.

É difícil concluir se cumprimentos ou comiserações são cabíveis. A Lizzy é uma foda extraordinária, mas tem a língua de um marinheiro e um olhar castrador. Acho que o Tommy ainda tá tentando definir seus sentimentos. Posso ver que ele tá imerso em pensamentos, porque ainda não me chamou de viado imbecil porque tô me injetando; sequer mencionou o meu estadinho.

Me esforço pra demonstrar consideração por trás da minha apatia egoísta induzida pela heroína. O mundo exterior não significa porra nenhuma pra mim. – Cê tá chateado? – pergunto.

– Nem sei. Se é pra ser honesto, é do sexo que vou sentir mais falta. Isso e tipo, simplesmente ter alguém, saca?

O Tommy precisa de pessoas muito mais que a maioria de nós.

Minha lembrança mais persistente da Lizzy vem da escola. Eu, o Begbie e o Gary McVie távamos deitados no Links, embaixo da pista de corrida, longe dos olhos grandes e redondos daquele filho da puta do Vallance, o superior, um viado nazista do pior tipo. Assumimos aquele posto pra poder ver as minas correndo com seus shorts e blusinhas e acumular um bom material pra punheta.

A Lizzy fez uma boa corrida mas terminou em segundo, atrás dos passos largos e desengonçados da grande Morag “Sempre Livre” Henderson. A gente tava deitado de bruços, com as cabeças apoiadas nas mãos e cotovelos, observando a Lizzy se esforçar com a expressão de determinação feroz que caracterizava tudo que ela fazia. Tudo? Quando o Tommy tiver superado a perda, vou perguntar pra ele sobre o sexo. Não, nem vou... vou sim. Enfim, escutei uma respiração pesada, me virei e notei que o Begbie tava meio que rebolando bem devagar, olhando pras mina e dizendo: – Essa Lizziezinha MacIntosh... gostosinha total... meto nesse rabo quando ela quiser... que porra de rabo... que porra de peitos...

Aí ele deixou a cara desabar na grama. Naquela época, eu não era tão cauteloso em relação ao Begbie quanto sou agora. Ele não era o bonzão naqueles dias, só mais um concorrente, e também tinha um pouco de medo do meu irmão, o Billy. Até certo grau, ou em todos os graus, na verdade, por ser um cagalhão enrustido, eu me aproveitava cinicamente da reputação do Billy. Mas, enfim, virei o Begbie de costas e o pau dele ficou exposto, sujo de terra e pingando porra. Sem ninguém ver, o cara tinha escavado um buraco na grama macia com o canivete dele e tinha dado uma trepada com o chão. Eu me matei de rir. O Begbie também, e tal. O cara era mais tranquilo naquele tempo, antes de começar a acreditar na propaganda que ele mesmo fazia, e nós também, sobre ele ser um psicopata total.

– Cê é um porra dum sacana, Franco! – disse o Gary.

O Begbie guardou o pau, puxou o zíper, agarrou um punhado de porra e terra e esfregou no rosto do Gary.

Eu tava quase cagando de tanto rir quando o Gary ficou puto da cara, levantou e chutou a sola do tênis do Begbie. Depois se mandou, totalmente cocô. Parando pra pensar, essa história é mais sobre o Begbie do que sobre a Lizzy, embora tenha sido o esforçado desempenho dela contra a Sempre Livre que desencadeou tudo.

Enfim, quando o Tommy catou a Lizzy há uns dois anos, a maioria dos caras pensou: Que porra de fiadaputa sortudo. Nem mesmo o Sick Boy comeu a Lizzy.

É incrível, mas o Tommy ainda não mencionou a heroína. Mesmo com os meus utensílios espalhados por todo o lado, e ele provavelmente tá notando que eu tô bem detonado. Normalmente, nessas circunstâncias o Tommy já estaria fazendo uma péssima imitação da minha mãe; cê tá se matando / larga disso / cê pode viver a sua vida sem essa porcaria e outras merdas desse tipo.

Mas agora ele pergunta: – O que esse troço faz com você, Mark? – a voz dele tem um genuíno tom interrogativo.

Dou de ombros. Não tenho vontade de falar sobre isso. Tem uns cara com título e diploma na Royal Edinburgh e na City pagos pra dar toda essa merda de orientação psicológica pra mim. Não adiantou porra nenhuma. Mas o Tommy é persistente.

– Me diz, Mark. Quero saber.

Mas aí, pensando melhor, talvez os amigos, que ficaram ao seu lado nos piores e melhores momentos, principalmente nos piores, mereçam pelo menos uma tentativa de explicação, já que os orientadores / patrulha ideológica recebem a sua. Começo um discurso. Falando sobre o assunto, me sinto surpreendentemente bem, calmo e bem claro.

– Não sei muito bem, Tommy, não sei mesmo. É como se fizesse as coisas ficarem mais reais pra gente. A vida é entediante e fútil. A gente começa com altas expectativas, depois descarta todas elas. Percebemos que vamos todos morrer sem descobrir as grandes respostas. A gente desenvolve todas essas ideias enfadonhas e intermináveis que só interpretam a realidade das nossas vidas de diferentes maneiras, sem na verdade aumentar nosso conjunto de conhecimento válido sobre as coisas importantes, as coisas reais. Basicamente, a gente vive uma vida curta e decepcionante; depois a gente morre. A gente enche a vida de merda, de coisas como carreiras e relacionamentos, pra ficar livres da ideia de que tudo é inútil. A heroína é uma droga honesta, porque arranca fora essas ilusões. Com a heroína, quando cê se sente bem, cê se sente imortal. Quando cê se sente mal, ela intensifica a merda que já tá ali. É a única droga realmente honesta. Não altera a sua consciência. Só te dá um soco e uma sensação de bem-estar. Depois disso, cê vê a desgraça do mundo como ela é, e cê não consegue mais se anestesiar contra ela.

– Besteira – o Tommy diz. E depois: – Besteira mesmo. – Ele provavelmente tá certo e tal. Se ele me fizesse a mesma pergunta semana passada, eu provavelmente teria dito algo completamente diferente. Se ele me perguntar amanhã, vou dizer outra coisa. Mas a essa altura do campeonato eu vou defender a ideia de que a heroína resolve o problema quando tudo mais parece entediante e irrelevante.

O meu problema é que sempre que sinto a possibilidade, ou percebo o momento, de alcançar alguma coisa que eu achava que queria, seja uma namorada, um apartamento, um emprego, uma educação, dinheiro e por aí vai, ela simplesmente parece tão aborrecida e estéril que não consigo mais dar valor a ela. Mas a heroína é diferente. Cê não consegue dar as costas pra ela tão fácil. Ela não vai deixar. Tentar resolver um problema com a heroína é o desafio supremo. E também é um barato bom pra caralho.

– E também é um barato bom pra caralho.

Tommy olha pra mim. – Me dá uma prova. Me dá um pico.

– Vai se fuder, Tommy.

– Cê disse que é um barato bom. Eu quero mesmo experimentar.

– Cê não quer. Vamolá, Tommy, acredita em mim – isso parece só encorajar ainda mais o cara.

– Eu tenho a grana aqui. Vamolá. Me prepara uma dose.

– Tommy... puta que pariu, cara...

– Tô dizendo, vamolá. A gente não é amigo, seu viado? Me prepara uma dose. Posso lidar com isso. Uma porra duma dose não vai me machucar. Vamolá.

Dou de ombros e faço o que o Tommy tá pedindo. Dou uma boa limpada nos meus utensílios, preparo uma dose leve e ajudo ele a aplicar.

– Isso é magnífico pra caralho mesmo, Mark... É uma montanha-russa, cara... tô voando aqui... tô voando mesmo...

A reação dele tá me fazendo cagar de medo. Tem uns caras que são predispostos demais à heroína...

Mais tarde, quando o Tommy volta e tá pronto pra ir embora, eu digo pra ele: – Cê conseguiu, parceiro. Agora cê tomou de tudo. Maconha, ácido, anfetamina, ecstasy, cogu, Nembutal, Valium, heroína, a lista toda. Agora chega. Que essa seja a primeira e a última vez.

Falei isso porque tinha certeza que o viado ia pedir um pouco pra levar com ele. Não tenho o suficiente pra dividir. Nunca tenho o suficiente pra dividir.

– Pode crer, porra – ele diz, vestindo a jaqueta.

Quando o Tommy vai embora, percebo pela primeira vez que meu pau tá comichando pra caralho. Mas não posso coçar. Se eu começar a coçar, vou infeccionar o desgraçado. Aí sim, eu vou ter sérios problemas.


Tradicional café da manhã domingueiro

Ai, meu deus, onde é que eu tô, caralho. Onde, porra... simplesmente não reconheço esse quarto... pensa, Davie, pensa. Não consigo gerar saliva suficiente pra descolar a língua do meu céu da boca. Que cuzão. Que viado... que... nunca mais.

AH, PORRA... NÃO... por favor. Não, não, porra, NÃO...

Por favor.

Que isso não esteja acontecendo comigo. Por favor. Certo que não. Certo que sim.

Sim. Acordei numa cama estranha, num quarto estranho, coberto com a minha própria sujeira. Eu mijei na cama. Eu vomitei na cama. Eu caguei na cama. A porra da minha cabeça está girando, e um redemoinho de enjoo ocupa minhas entranhas. A cama está uma bagunça, uma porra duma verdadeira bagunça.

Pego o lençol, removo a colcha e enrolo os dois juntos; o coquetel tóxico e fedegoso fica bem no meio. Está embrulhado numa bola bem protegida, sem indícios de vazamento. Viro o colchão de lado pra esconder a mancha úmida e vou pro banheiro dar uma chuveirada na merda que cobre meu peito, minhas coxas e minha bunda. Agora sei onde estou: na casa da mãe da Gail.

Puta que o pariu.

Na casa da mãe da Gail. Como vim parar aqui? Quem me trouxe aqui? Voltando pro quarto, vejo que minhas roupas estão cuidadosamente dobradas. Ai, cristo.

Quem tirou minha roupa, caralho?

Vamos tentar voltar no tempo. Já é domingo. Ontem era sábado. A semifinal em Hampden. Fiquei num estado deplorável antes e depois da partida. Não temos chance, pensei, você nunca vence em Hampden contra alguém da Velha Escola, com o público e os juízes totalmente do lado dos clubes grandes. Aí, em vez de ficar puto da cara com isso, decidi levar na boa e fazer o dia valer a pena. Nem quero pensar no dia que eu fiz valer a pena. Não quero nem me lembrar se acabei indo ou não pro jogo. Subi no ônibus Marksman na Duke Street com o pessoal de Leith: Tommy, Rents e os amigos deles. Bando de encrenqueiros. Não lembro de porra nenhuma depois daquele pub em Rutherglen, antes do jogo. O space cake e a anfetamina, o ácido e a maconha, mas acima de tudo a bebida, a garrafa de vodca que eu virei antes da gente se encontrar no pub pra pegar o ônibus pra voltar pro pub...

Não tenho certeza de quando a Gail entrou em cena. Porra. Então eu volto pra cama, o colchão e o edredom parecem frios sem o lençol e a colcha. Poucas horas depois, a Gail bate na porta. A Gail e eu já estamos saindo há cinco semanas, mas ainda não fizemos sexo. Gail disse que não queria que o nosso relacionamento começasse direto no aspecto físico, porque aí seria nisso que acabaria se baseando dali em diante. Ela tinha lido isso na revista Nova e queria testar a teoria. Cinco semanas se passaram e eu estou com um par de bolas do tamanho de melancias. Deve ter uma boa quantidade de porra junto com todo aquele mijo, merda e vômito.

– Você estava num estadinho lamentável ontem à noite, David Mitchell – declarou, em tom de acusação. Será que estava braba mesmo ou só fingindo que estava braba? Difícil dizer. Então: – O que aconteceu com a roupa de cama? – braba mesmo.

– Hã... foi um pequeno acidente, Gail.

– Bem, deixa isso pra lá. Desce, vamos tomar o café da manhã.

Ela saiu do quarto e e eu me vesti arrastadamente; depois rastejei hesitante escada abaixo, querendo ser invisível. Levei o embrulho comigo, com a intenção de levar ele pra casa e lavar tudo.

Os pais da Gail estão sentados na mesa da cozinha. Os sons e cheiros de uma tradicional fritada de café da manhã domingueiro sendo preparada são nauseantes. Minhas entranhas dão uma rápida cambalhota.

– Bem, alguém aqui estava num estadinho lastimável ontem à noite – diz a mãe da Gail, mas, pro meu alívio, com deboche ao invés de raiva.

Mesmo assim, corei de vergonha. O sr. Houston, sentado na mesa da cozinha, tentou aliviar as coisas pro meu lado.

– Ah, tudo certo, faz bem se libertar de vez em quando – comentou, me dando apoio.

– Seria bom pra esse aí ficar amarrado de vez em quando – resmungou a Gail, cometendo um pequeno faux pas enquanto eu levantava as sobrancelhas pra ela, sem que os pais dela notassem. Um pouco de submissão não me faria mal. Até que podia ser bem bom pra caralho...

– Hã, sra. Houston – aponto pros lençóis embrulhados aos meus pés no chão da cozinha. – Fiz um pouco de estrago no lençol e na colcha. Vou levar tudo pra casa e lavar. Trago de volta amanhã.

– Ah, meu filho, não se preocupe com isso. Coloco eles na máquina de lavar e pronto. Senta e toma um café.

– Não, mas é que, hã... foi um estrago bem grave. Já estou envergonhado o bastante. Gostaria de levar eles pra casa.

– Que querido – o sr. Houston deu uma risada.

– Nada disso, meu filho, sente aí que eu cuido deles – a sra. Houston deslizou pelo chão na minha direção e agarrou o embrulho. A cozinha era o território dela, e não aceitaria ser desafiada. Puxei o embrulho na minha direção, contra o peito; mas a sra. Houston era rápida pra caralho e muito mais forte do que parecia. Segurou o embrulho com firmeza e o puxou pra longe de mim.

Os lençóis se abriram e uma chuveirada fedegosa de merda escorregadia, vômito ralo de bebida e mijo nojento se esparramou pelo chão. A sra. Houston ficou mortificada por alguns segundos e depois correu, se inclinando sobre a pia.

Manchas marrons de merda líquida atingiram os óculos, o rosto e a camisa branca do sr. Houston; espirrou sobre a mesa de linóleo e sobre a sua comida, como se ele tivesse feito uma sujeirada com molho de curry. A Gail também levou um pouco em sua blusa amarela.

Jesus.

– Pelamordedeus... pelamordedeus... – repetia o sr. Houston enquanto a sra. Houston vomitava e eu fazia um esforço patético pra recolher uma parte da porcaria de volta pros lençóis.

A Gail me disparou um olhar de ódio e nojo. Agora não consigo mais imaginar nosso relacionamento indo adiante. Nunca vou levar a Gail pra cama. Pela primeira vez, isso não me incomoda. Só quero sair daqui.


Dilemas de um viciado Nº65

De repente, ficou frio; frio pra caralho. A vela tá quase derretida. A única luz de verdade vem da tevê. Tem algo em preto e branco passando... mas a tevê é em preto e branco, então tinha mesmo que ser algo em preto e branco... com uma tevê colorida seria diferente... talvez.

Tá congelando, mas se mexer só faz cê sentir mais frio, fazendo lembrar que não tem porra nenhuma que cê pode fazer, porra nenhuma mesmo, pra se aquecer. Pelo menos se eu ficar parado posso fingir pra mim mesmo que tenho o poder de me aquecer, que bastaria ficar me mexendo ou ligar o fogo. O segredo é ficar o mais imóvel que der. É mais fácil do que se arrastar pelo chão pra ligar a porra do fogo.

Tem mais alguém na sala comigo. É o Spud, acho. É difícil dizer no escuro.

– Spud... Spud...

Ele não diz nada.

– Tá frio pra caralho mesmo, cara.

Spud, se é que é ele mesmo, ainda não diz nada. Pode ser que esteja morto, mas provavelmente não, porque acho que os olhos dele tão abertos. Mas isso não quer dizer porra nenhuma.


Luto e tristeza em Port Sunshine

Lenny olhou suas cartas e depois examinou com cuidado a expressão no rosto de seus amigos.

– De quem é a vez? Billy? Então vamolá, seu viado. – Billy mostrou sua mão para Lenny.

– Dois ases, caralho!

– Corno sortudo! Renton, seu viado sortudo de merda! – Lenny esmagou seu punho na palma da mão.

– Só me passa a mufunfa pra cá – disse Billy Renton, coletando a pilha de notas que estava no meio do chão.

– Naz. Me joga uma latinha aqui, então – pediu Lenny. Quando a lata foi arremessada, ele não conseguiu pegar e ela caiu no chão. Ele a abriu, e a maior parte de seu conteúdo espirrou em cima de Peasbo.

– Puta que o pariu, seu viado!

– Desculpa, Peasbo. A culpa é daquele cara. – Lenny riu, apontando para Naz. – Eu disse pra ele me jogar uma latinha, não pra arremessar ela na porra da minha cabeça.

Lenny levantou e foi até a janela.

– Nenhum sinal do cara, ainda? – perguntou Naz. – O jogo tá fudido sem a grana alta.

– Não. O papo desse cara é muito furado – disse Lenny.

– Dá uma ligada pro cara. Descobre qual é a porra da história que tá rolando – sugeriu Billy.

– Tá bom.

Lenny foi até o corredor e discou o número de Phil Grant. Estava irritado por ter que jogar com essas apostas de criança. A essa altura, ele estaria bem acordado caso o Granty já tivesse aparecido com a grana.

O telefone ficou tocando.

– Não tem ninguém em casa. Se tem, o viado não tá atendendo o telefone – disse aos outros.

– Espero que o fiadaputa não tenha dado no pé com a grana – riu Peasbo, mas foi uma risada desconfortável, o primeiro reconhecimento explícito de um medo secreto coletivo.

– É melhor que ele não tenha feito isso. Não tem perdão prum viado que rouba dos próprios amigos – resmungou Lenny.

– Mas parando pra pensar, a grana é do Granty. Ele pode gastar no que ele quiser – disse Jackie.

Os outros olharam para ele com agressiva incompreensão, até que Lenny disse:

– Lá vem você, porra...

– É que de algum jeito, o cara ganhou isso honestamente. Sei o que a gente combinou. Juntar um grande bolo com o dinheiro do clube pra dar uma apimentada nos jogo de carta. Depois repartir. Sei disso tudo. Só tô dizendo que, aos olhos da lei... – Jackie explicou sua posição.

– É a nossa própria grana! – irrompeu Lenny. – O Granty sabe qual é a jogada.

– Eu sei disso. A única coisa que eu quero dizer é que, aos olhos da lei...

– Cala essa merda de boca, seu viado espertinho – Billy se interpôs. – A gente não tá falando dos olhos da porra da lei aqui. Tamo falando de amizade. Se dependesse dos olhos da lei, cê não teria mobília nenhuma na sua casa, seu viado desempregado.

Lenny assentiu positivamente com a cabeça para Billy.

– A gente tá chegando a conclusões precipitadas aqui. Talvez tenha um motivo perfeitamente razoável pro viado não estar aqui. Talvez ele tenha sido preso – sugeriu Naz, seu rosto marcado de catapora firme e tenso.

– Talvez alguém tenha assaltado o cara e levado a grana – disse Jackie.

– Ninguém tentaria assaltar o Granty. Ele é o tipo de cara que assalta os outros, não o que é assaltado por eles. Se ele aparecer aqui tentando lançar uma história dessa pra cima da gente, cê vai ver pra onde eu vou mandar ele. – Lenny estava um tanto ansioso. Estavam falando sobre o dinheiro do clube.

– Só tô dizendo que é burrice ficar carregando essa quantidade de grana por aí. Só tô dizendo isso – declarou Jackie. Ele tinha um pouco de medo de Lenny.

Em seis anos, Granty não tinha perdido uma única sessão de carteado na quinta à noite, a não ser que estivesse de férias. Era a espinha dorsal de confiança do grupo. Tanto Lenny quanto Jackie tiveram períodos de afastamento por cumprirem penas por, respectivamente, assalto e invasão de propriedade.

O dinheiro do clube, o dinheiro de férias, era um remanescente da época em que todos foram juntos a Loret de Mar nas férias, na adolescência. Agora, mais velhos, costumavam ir em grupos menores, ou com esposas e namoradas. A estranha mistura do dinheiro das cartas com o dinheiro do clube ocorrera há uns dois anos, quando estavam bêbados. Peasbo, na época o tesoureiro, fez piada e jogou um maço de notas do dinheiro do clube como aposta. Jogaram com o dinheiro, só de brincadeira. Gostaram da sensação de jogar com todo aquele dinheiro, curtiram tanto que dividiram a soma toda e passaram a jogar partidas falsas com ela. Sempre que decidiam que precisavam levar as economias a sério, paravam de jogar cartas com “dinheiro de verdade” e passavam a jogar com o “dinheiro do clube”. Era como jogar com dinheiro do Banco Imobiliário.

Havia vezes, em especial quando alguém “ganhava” o bolo inteiro, como fizera Granty na semana anterior, em que a natureza extravagante e perigosa de suas ações passava por suas cabeças. Mas eles eram amigos, e havia um consenso geral de que nunca passariam a perna um no outro. Contudo, além da lealdade, a lógica também sustentava esse consenso. Todos possuíam relações na região e nunca poderiam partir em definitivo, ao menos nunca apenas pelas duas mil libras do bolo. Abandonar a região seria a consequência para quem roubasse dos outros. Disseram isso uns aos outros centenas de vezes. O verdadeiro temor era o assalto. O dinheiro estaria mais seguro em um banco. Era um prazer bobo que desembocara em uma loucura, uma insanidade coletiva.

Na manhã seguinte ainda não havia sinal de Granty, e Lenny se atrasou para bater o ponto.

– Senhor Lister. Você mora na esquina deste escritório e você só precisa bater o ponto uma vez a cada duas semanas. Não é que se pode chamar de exigir demais – disse a ele Gavin Temperley, o balconista, em tom solene.

– Entendo a posição da porra do seu escritório, senhor Temperley. Mas tenho certeza que cê levará em consideração o fato de que sou uma porra dum homem ocupado, com diversos negócios prósperos pra cuidar.

– Que merda, Lenny. Um viado preguiçoso, isso que cê é. Esteja lá antes das doze.

– Tá. Mas cê vai ter que me dar uma gorjeta, Gav. Tô completamente duro até que aquele cheque do aluguel beije a lona amanhã.

– Sem problema.

Lenny foi até o pub e sentou no bar com seu Daily Record e um pint. Cogitou acender um cigarro, mas desistiu da ideia. Era 11:04 e ele já tinha fumado catorze. Era sempre assim quando ele era forçado a levantar de manhã. Fumava demais. Como podia reduzir a quantidade permanecendo na cama, não costumava se levantar antes das duas da tarde. Ao obrigá-lo a levantar tão cedo, pensou ele, esses viados do governo estavam determinados a arruinar tanto a sua saúde quanto as suas finanças.

As últimas páginas do Record estavam cheias de merda sobre o Rangers e o Celtic, como sempre. O Souness espiona algum filho da puta na segunda divisão inglesa, McNeill afirma que a confiança dos Celts está retornando. Nada sobre o Hearts. Não. Alguma coisinha sobre Jimmy Sandison, com a mesma citação repetida duas vezes, um trecho curto cortado no meio de uma frase. Há também uma materinha sobre por que o Miller do Hibs ainda pensa que é o homem certo para o trabalho quando o time só marcou três gols nos últimos trinta jogos, ou algo assim.

Lenny foi até a página três. Preferia as mulheres escassamente vestidas que apareciam no Record do que as de topless que apareciam no Sun. Você precisava ter um pouco de imaginação.

Pelo canto do olho, avistou Colin Dalglish.

– Coke – disse, sem levantar os olhos do jornal.

Coke empurrou um banco pro lado de Lenny. Pediu um pint de cerveja forte. – Ficou sabendo? Que tristeza, hein?

– Hein?

– O Granty... cê não ficou sabendo?... – Coke olhou direto para Lenny.

– Não. O qu...

– Morto. Foi pro saco.

– Cê tá brincando, é? Nem vem com essa, seu viado...

– É sério. Ontem e tal.

– Que porra que aconteceu...

– Coração. Bum. – Coke estalou os dedos. – Coração fraco, aparentemente. Ninguém sabia de nada. O coitado do Granty tava trabalhando com o Pete Gilleghan, fazendo um bico, tipo assim. Era bem umas cinco horas e o Granty tava ajudando o Pete a arrumar as coisa, pronto pra sair fora, coisa e tal, quando botou a mão no peito e foi pro chão. O Gitty chamou uma ambulância e levaram o pobre coitado pro hospital, mas ele morreu algumas horas depois. Coitado do Granty. Um cara gente boa e tal. Cê joga carta com o cara, né?

– Hã... sim... um dos cara mais legal que cê podia conhecer. – Isso me deu um nó na garganta.

Algumas horas depois o nó na garganta de Lenny não o tinha impedido de tomar litros de cerveja. Achacou vinte libras do Gav Temperley com a única intenção de encher a cara. Quando Peasbo entrou no pub, no final da tarde, Lenny estava balbuciando no ouvido de uma garçonete compreensiva e de um cara constrangido, que parecia sóbrio e vestia um macacão com um logotipo da Tennent’s Lager.

– ... um dos cara mais legal que cê podia conhecer...

– Certo, Lenny. Fiquei sabendo. – Peasbo agarrou com força um dos ombros largos de Lenny. Uma pegada firme, pra garantir que um dos seus amigos ainda estava ali, e pra fazer uma estimativa parcial do seu nível de embriaguez.

– Peasbo. É. Ainda não tô acreditando nisso... um dos cara mais legal que cê podia conhecer e tal... – virou-se novamente, devagar, para a garçonete e focalizou nela seu olhar. Com o polegar despontando de um punho cerrado, apontou então por cima do ombro para Peasbo. – ... esse cara aqui pode dizer... né, Peasbo? Sabe o Granty? Um dos cara mais legal que cê podia conhecer... né, Peasbo? O Granty? Né?

– Sim, é um verdadeiro choque. Ainda não tô acreditando, cara.

– É isso! Um dia o cara tá aqui, e agora a gente nunca mais vai poder ver o pobre coitado... vinte e sete anos de idade. Esse jogo não é justo, vou te contar, porra. Esse jogo não é justo... com certeza não é, porra...

– O Granty tinha vinte e nove, não tinha? – questionou Peasbo.

– Vinte e sete, vinte e nove... quem se importa, caralho? Era um cara jovem e só. É da mina dele e daquele filhinho que eu sinto mais pena... cê pega esses cara mais velho... – Lenny gesticulou irritado para um grupo de idosos jogando dominó no lado oposto do pub. – ... Já tiveram a vida deles! Tudo que fazem é ficar gemendo, caralho! O Granty nunca reclamava de porra nenhuma. Um dos cara mais legal que cê podia conhecer.

Em seguida percebeu três sujeitos mais jovens, conhecidos como Spud, Tommy e Segundo Lugar, sentados no outro canto do pub.

– E essas porra de amigo viciado do irmão do Billy. Esses viado tão tudo morrendo de AIDS, porra. Se matando. Esses viado merecem isso. O Granty valorizava a porra da vida dele. Esses viado tão jogando a deles fora! – Lenny os fitou furiosamente, mas estavam imersos demais em sua própria conversa para notar.

– Agora vamo nessa, Lenny. Cabeça no lugar. Ninguém tá falando nada de ninguém. Esses garotos são do bem. Aquele é o Danny Murphy. Um cara inofensivo. Tommy Laurence, cê conhece o Tommy, e aquele cara, o Rab, Rab McLaughlin, já foi um grande jogador de futebol. Foi pro Manchester United. Os garotos são bacanas. Porra, eles são amigos daquele parceiro seu, o rapaz que trabalha pro serviço social. Qual o nome dele, Gav?

– Sim... mas esses velho, porra... – se rendendo ao argumento, Lenny desviou sua atenção de volta para o outro lado do recinto.

– Ah, vamolá, Lenny, deixa pra lá. Uns cara inofensivo, não tão fazendo mal pra ninguém. Vira esse pint aí, e vamos lá pro Naz. Vou ligar pro Billy e pro Jackie.

O clima estava sombrio no apartamento de Naz, na Buchanan Street. Tinham virado as costas para o incidente da morte do Granty e se voltado para o assunto da fabulosa soma de dinheiro.

– Sexta-feira anterior ao dia da partilha da grana, e o cara bate as bota. Mil e oitocentos, ele tava guardando. Dividido por seis, isso dá trezentos pra cada – resmungou Billy.

– A gente não pode fazer muita coisa – arriscou Jackie.

– Não pode porra nenhuma. Aquela bolada é dividida toda porra de ano, com duas semanas de antecedência. Fiz reservas em Benidorm contando com isso. Sem isso, tô completamente duro. A Sheila vai usar minhas bola pra jogar sinuca se eu cancelar. De jeito nenhum, cara – declarou Naz.

– Pode crer, porra. Sinto muito pela Fiona, pelo filho e tal, é claro. Qualquer um sentiria. Não precisa nem dizer e tal. Mas o que interessa é que a grana é nossa, não dela – disse Billy.

– A culpa é só nossa. Eu sabia que algo assim ia acabar acontecendo. – Jackie encolheu os ombros.

A campainha tocou. Lenny e Peasbo entraram.

– Pra você tá tudo bem, seu viado. Cê tá cheio da grana – provocou Naz.

Jackie não respondeu. Pegou uma lata de Lager da pilha que Peasbo havia largado sobre o chão.

– Uma porra duma péssima notícia, hein, rapazes? – disse Peasbo, enquanto Lenny bebia da sua latinha, mal-humorado.

– Um dos cara mais legal que cê podia conhecer – disse Lenny.

Naz ficou grato pela intervenção de Lenny. Estava pronto para começar a se lamentar pelo dinheiro, quando percebeu que Peasbo estivera se referindo ao Granty.

– Sei que não se deve ser egoísta num momento desses, mas tem a questão da grana pra resolver. O dia da partilha é na semana que vem. Tenho que programar um feriado. Preciso do dinheiro – disse Billy.

– Cê é um viado mesmo, hein, Billy? Será que a gente não pode esperar o pobre coitado esfriar antes de começar com essa merda? – disse Lenny, com desprezo.

– A Fiona pode gastar a bolada inteira! Ela não vai saber que o dinheiro é nosso se ninguém disser pra ela! Ela vai mexer nas coisas dele e de repente ora, ora, o que temos aqui? Quase dois mil paus. Ótimo. Daí ela vai se mandar pra porra do Caribe ou algo assim enquanto a gente fica sentado de férias na porra do Links com algumas garrafas de sidra.

– O que cê tá dizendo é abominável, Billy – Lenny disse a ele.

Peasbo olhou seriamente para Lenny, que podia sentir uma traição se aproximando.

– Odeio dizer isso, Lenny, mas o Billy não tá totalmente errado. O Granty não mantinha a Fiona exatamente num berço de ouro, por mais que fosse um grande cara e tal. Quer dizer, não me entende mal, nunca ouvi uma palavra sendo dita contra ela, mas quando cê encontra dois paus em casa, cê gasta primeiro e faz perguntas depois. Cê faria isso. Tenho certeza de que eu faria. Qualquer um faria, pra dizer a verdade.

– Ah, é? Então quem vai pedir o dinheiro pra ela? Eu não vou, nem fudendo – rangeu Lenny.

– Todos nós vamos. É nossa própria grana – disse Billy.

– Certo. Depois do enterro. Na terça – sugeriu Naz.

– Tá certo – concordou Peasbo.

– Tá – Jackie deu de ombros.

Lenny deu um aceno submisso e cansado com a cabeça. Afinal de contas, o dinheiro era mesmo deles...

A terça-feira foi embora tão rápido quanto veio. Ninguém conseguiu juntar coragem para dizer coisa alguma durante o enterro. Todos ficaram bêbados e dedicaram mais lamentos ao Granty. A questão do dinheiro não foi mencionada até mais tarde. Encontraram-se na tarde seguinte, com ressacas infernais, e foram até a casa de Fiona.

Ninguém atendeu a porta.

– Deve estar na casa da mãe dela – disse Lenny.

A mulher do apartamento em frente à escada, uma senhora de cabelos grisalhos com um vestido de estampa azul, apareceu.

– A Fiona foi embora hoje de manhã, rapazes. Ilhas Canárias. Deixou o filho na casa da mãe – parecia sentir prazer em dar as boas-novas.

– Ótimo – resmungou Billy.

– Então já era – disse Jackie, dando de ombros com uma indiferença que pareceu demasiada para a maioria de seus amigos. – Não tem muita coisa que a gente possa fazer.

Então foi surpreendido por um golpe no lado do rosto, desferido por Billy, que o derrubou no chão e o fez rolar escada abaixo. Conseguiu interromper a queda se agarrando no corrimão e, da curva da escada, olhou aterrorizado para Billy.

Diante da atitude de Billy, o restante deles estava tão chocado quanto Jackie.

– Calma, Billy. – Lenny segurou o braço de Billy, mas manteve o olhar fixo em seu rosto. Estava ansioso e intrigado por descobrir o motivo de sua fúria. – Não é por aí. Não é culpa do Jackie.

– Ah, não é? Fiquei com a porra da minha boca fechada, mas esse espertinho já nos levou longe demais – apontou para a figura ainda humilhada de Jackie, cujo rosto, que inchava rapidamente, adquiria um novo toque de dissimulação.

– Qualé a porra da parada aqui? – perguntou Naz.

Billy o ignorou e olhou direto para Jackie.

– Há quanto tempo tá rolando, Jackie?

– Do que esse viado tá falando? – disse Jackie, mas sua voz aguada carecia de convicção.

– Ilhas Canárias é o meu rabo. Onde cê vai encontrar a Fiona?

– Cê tá viajando, Billy. Cê ouviu o que a mulher disse – Jackie sacudiu a cabeça.

– A Fiona é irmã da minha Sharon, porra. Cê acha que eu ando por aí com os ouvidos tapados? Há quanto tempo cê tá metendo nela, Jackie?

– Isso é uma porra de...

A fúria de Billy preencheu a escada, e ele podia senti-la crescendo, inchando no peito dos outros. Ficou por cima de Jackie como um deus estrondoso do Velho Testamento, julgando-o com desprezo.

– Uma porra de porra nenhuma! E quem garante que o Granty não sabia, porra? Quem garante que não foi isso que matou ele? O melhor amigo dele, como diziam que cê era, comendo a mina dele!

Lenny olhou para Jackie, tremendo de raiva. Depois olhou para os outros, seus olhos queimando. Um contrato velado foi assinado entre eles em um milésimo de segundo.

Os gritos de Jackie reverberaram pela escada enquanto os outros o chutavam e arrastavam de degrau em degrau. Tentou se proteger em vão e, por trás da sua dor e do seu medo, torceu para que sobrasse alguma coisa dele que pudesse abandonar o Leith depois que o suplício terminasse.


Largando de novo


Trem de merda

Ah, mas que caralho! Minha cabeça tá doendo muito hoje, vou te contar. Vou direto pra porra da geladeira. É isso aí! Duas garrafas de Beck. Dá pra começar. Bebo as duas sem piscar e fico melhor direto. Tenho que me ligar no horário.

Ela ainda tá dormindo quando eu volto pra porra do quarto. Olha só essa puta gorda e preguiçosa. Só porque tá esperando um filho acha que tem direito de ficar deitada o dia inteiro... tá, mas isso é outra história. Aí eu começo a me arrumar... é melhor que essa puta tenha lavado minha calça... a 501... cadê a porra da 501?... ah, tá ali. Bom pra ela.

Ela tá acordando. – Frank... que cê tá fazendo? Aonde é que cê vai? – pergunta pra mim.

– Tô saindo fora. E voando – respondo, sem olhar pra trás. Cadê a porra das meia?... – Tudo demora mais quando tô de ressaca, e bem que eu podia ficar sem essa puta me enchendo a cabeça de merda.

– Aonde cê vai? Aonde?

– Já disse que preciso sair e rápido. Eu e o Lexo fechamo um esquema. Não vou falar mais porra nenhuma sobre isso, mas é melhor que eu suma por um tempo. Se a polícia bater na porta, cê diz que não me vê há um tempão. Cê acha que eu tô trabalhando nas plataforma, tá? Não me vê faz tempo, entendeu?

– Mas pra onde cê vai, Frank? Pra onde cê tá indo, porra?

– Isso só eu sei, cê vai ter que ficar curiosa. O que cê não sabe eles não têm como arrancar de você, porra – eu digo.

Aí a porra da mina se levanta e começa a gritar na minha cara dizendo que eu não posso ir embora desse jeito e coisa e tal. Dou um soco na porra da boca dela e chuto a buceta dela e a puta cai no chão gemendo. A culpa é dela, já avisei essa puta que é isso que acontece quando alguém fala desse jeito comigo. São as regra do jogo, é pegar ou largar.

– A CRIANÇA! A CRIANÇA!... – ela grita.

Berro de volta: – A CRIANÇA! A CRIANÇA! Para de falar dessa porra de criança! – e ela fica deitada no chão, berrando que nem uma tevê ligada.

Enfim, esse filho nem deve ser meu. E eu já tive outros filhos com outras minas. Tô ligado nisso tudo. Ela acha que vai ser uma maravilha quando o pirralho nascer, mas ela mal sabe o que vem pela frente. Sei tudo sobre essas merda de filho. São uma porra dum pé no saco.

Os esquema de fazer barba. Era o que eu tava procurando. Sabia que faltava alguma coisa.

Ela ainda tá reclamando que tá doendo e que é pra eu chamar a porra do médico e o caralho. Não tenho tempo pra essas merda e já tô atrasado por causa dessa puta. Tenho que sair correndo.

– FRRRAAAANNNK! – ela grita quando eu saio pela porta. Fico pensando que é que nem a porra da propaganda da Harp: “Hora da escapadinha!”; é isso aí.

O pub tava apinhado, aberto desde cedo e o caralho. Renton, o viado ruivo, encaçapa a bola preta e vence o Matty.

– Rab! Bota meu nome nessa porra de sinuca. O que cês querem beber? Tô indo pro balcão.

O Rab, que a gente chama de Segundo Lugar, tá com um puta olho roxo. Alguém andou tomando umas liberdade com ele.

– Ei, Rab. Quem fez isso com você, caralho?

– Ah, uns caras lá de Lochend, saca? Eu tava bebum – o viado olha pra mim, todo cagalhão.

– Sabe o nome deles?

– Nem sei, mas tudo bem, vou pegar os cara, tá tudo arranjado.

– Acho bom pegar, mesmo. Cê conhece eles?

– Não, tipo, só assim de vista.

– Quando eu e o Rents voltar de Londres vamo lá pra essa merda de Lochend. O Dawsy também andou levando uns cascudo por lá. Esses merda andam precisando explicar muita coisa, precisam mesmo.

Me viro pro Rents: – Tudo certo, meu velho?

– Vamo nessa, Franco.

Começo a jogar e humilho o desgraçado. Só falta duas bola pra eu ganhar. – Cê pode ganhar de gente como o Matty e o Secks, mas quando o Franco Furacão chega na mesa tu tá perdido, ruivo de merda – digo pra ele.

– Sinuca é coisa de cuzão, cara – ele responde. É um bosta, mesmo. Tudo que esse viado ruivo não sabe fazer direito é coisa de cuzão, na opinião dele.

Temos que sair, não tem mais por que ficar nesse jogo. Olho pro Matty e mostro uma pilha de grana. – Ô Matty, sabe o que é isso aqui? – e abano as nota pro viado.

– Ahn... sei... – ele responde.

Aponto pro bar: – Sabe o que é aquilo ali?

– Ahn... sei... é o balcão – o viado tá lerdo. Lerdo pra cacete. E eu sei por quê.

– Sabe o que é isso aqui? – e aponto pro meu copo.

– Ahn... sei...

– Então não me faz soletrar, seu viadinho. Me traz logo um pint de Special e um Jack Daniels com coca, porra!

Ele chega perto e me diz: – Pô, Frank, eu tô meio duro, saca...

Claro que eu saco. – Então tá na hora de amolecer – aviso. O viado entende a mensagem e vai pro balcão. Tá usando droga de novo; isso se chegou a parar, pra começo de conversa. Quando eu voltar de Londres vou trocar outra ideia com esse viado. Esses viciado de merda. Desperdício de espaço. O Rent ainda tá careta. Dá pra ver só pelo jeito que ele tá bebendo.

Mal posso esperar por essa folga em Londres. Rent conseguiu o apartamento de um parceiro dele, o tal de Tony que mora com aquela putinha. Dá pra ficar lá por umas duas semanas, eles tão de férias em algum lugar. Conheci uns cara de lá na cadeia; vou atrás deles, pelos velhos tempos.

A tal de Lorraine tá atendendo o Matty. É uma gostosinha. Vou pro balcão.

– Oi, Lorraine! Chega mais – afasto os cabelo da cara dela e coloco meus dedo atrás da orelha dela. As mina curtem isso. Zona erógena e o caralho. – Dá pra saber se alguém andou trepando só de tocar atrás da orelha. Fica quente, saca? – explico.

Ela ri. O Matty também.

– Ei, essa porra é científica e o caralho, saca? Cês não sabem de nada.

– Tá, e a Lorraine trepou ontem? – o Matty pergunta. O viadinho tá com uma cara horrível, parece que vai morrer a qualquer momento.

– Isso é um segredinho meu e dela, né, gata? – digo pra ela. Acho que ela me curte, porque sempre fica desse jeito quietinho e tímido quando falo com ela. Quando voltar de Londres vou botar uma pressão nela, tá garantido, pode escrever.

Nem fudendo que vou continuar com aquela June de merda depois que o pirralho nascer. E aquela puta vai morrer se me fez machucar a merda do pirralho. Desde que embuchou, a mina ficou achando que pode berrar comigo e o caralho. Ninguém berra comigo, prenha ou não. Ela sabe disso e mesmo assim fica berrando. Olha, se aconteceu alguma coisa com a merda do pirralho...

– Ô Franco – diz o Rent –, é melhor a gente ir. Temos que organizar nossa merenda, lembra?

– Tá, beleza. Que cê vai levar?

– Uma garrafa de vodca e umas latinha.

Podia ter adivinhado. Esse ruivinho viado adora uma vodca.

– Vou levar uma garrafa de Jack e oito latas de Export. De repente peço pra Lorraine encher uns garrafão com cerva, e tal.

– Vai ter dois garrafão se enchendo bastante lá no trem – ele diz. Às vezes eu não entendo o senso de humor desse merda. Eu e o Rents somos amigos há um tempão, mas ele andou mudando; não tô falando só da droga e dessas porra. É tipo assim, ele tem o jeito dele e eu tenho o meu. Mas ainda é um grande cara, o viadinho ruivo.

Daí eu pego os garrafão de cerveja, um cheio de Special pra mim e outro cheio de Lager pro viadinho ruivo. Pegamo a merenda, cruzamo a cidade num táxi e bebemo uns pint no pub da estação. Tiro uma onda dum cara no bar. O garoto é de Fife, conheci o irmão dele em Saughton. Não é um mau sujeito, pelo que lembro. Tipo assim, um cara inofensivo.

A merda do trem pra Londres tá lotado pra cacete. Isso enche meu saco. Porra, cê paga aquele dinheirão por uma passagem, esses viados do British Rail metem a faca, e aí não tem lugar pra sentar, caralho! Vão tomar no cu.

A gente fica se fudendo com as lata e as garrafa. Minha merenda tá quase explodindo na porra da sacola. Esse monte de viado com mochila e bagagem... e essas merda de carrinho de nenê. Não deviam deixar pirralho entrar na porra do trem.

– Lotado pra cacete, velho – diz o Rent.

– O problema é o seguinte, porra. Esse monte de cuzão com lugar reservado. Não teria tanto problema reservar lugar pra ir de Edimburgo até Londres, são duas capital, mas esses merda reservam lugar em Berwick e sei lá eu onde mais. O trem não devia parar nesses cu de mundo, devia ir direto de Edimburgo pra Londres e fim de papo, caralho. Se eu tivesse no comando é assim que ia ser, pode apostar. – Uns viadinho ficam olhando pra gente. Eu falo o que eu penso, não tô nem aí.

Esse monte de lugar reservado. Um abuso, é isso que é. Quem chega primeiro fica com os lugar, é assim que devia ser. Essa palhaçada de lugar reservado... vou mostrar o que é reserva presses otário...

Rent senta do lado de duas mina bem ajeitadinha. Se deu bem, o ruivinho viado.

– Esses lugar tão livre até Darlington – ele diz.

Pego os cartão de reserva e coloco no meu bolso de trás. – Agora tão livre a viagem toda. Lugar reservado o caralho – eu digo, rindo pra uma das mina. Não tô fazendo nada de errado. Paguei quarenta libras pela porra da passagem. Esses merda do British Rail sabem meter a faca, vou te contar. O Rent não fala nada. O viado tá usando aquele boné verde de merda. Se ele pegar no sono eu atiro essa merda pela janela, isso é certo.

O Rents tá enxugando a vodca, e quando a gente chega perto de Portbelly o viado já deu uma boa esvaziada na garrafa. Adora uma vodca, o ruivo viadinho. Bem, se é assim que ele quer... pego o Jack e dou uns gole.

– Lá vou eu, lá vou eu, lá vou eu... – digo. O viado só ri. Fica olhando pras mina, que parecem assim meio americana. O problema desse ruivo viadinho é que ele não tem a manha com as mina, mesmo sendo meio estiloso. Não é tipo eu ou o Sick Boy. Deve ser porque ele cresceu com uns irmão em vez de irmã, aí não consegue sacar as mina. Se eu for esperar esse viado tomar alguma iniciativa, vou esperar até morrer. Vou mostrar presse ruivo viadinho como é que se faz.

– Esses viados do British Rail metem a faca, hein? – eu digo, cutucando a mina do meu lado.

– Perdão? – ela me diz, com um sotaque todo esquisito.

– Dondé que cês são, na real?

– Sinto muito, não consigo entender o que você está dizendo.... – esses estrangeiro de merda têm problema com o inglês real, saca? A gente tem que falar mais alto, mais devagar, parecendo afrescalhado, pra que eles entendam o que a gente tá falando.

– DE... ONDE... VOCÊS... SÃO?

Isso resolve tudo. Uns viadinho metido nos lugar da frente olham pra trás. Eu encaro eles. Alguém vai perder os dente antes do fim da viagem, pode anotar.

– Hã... Somos de Toronto, no Canadá.

– Tontonto! É o parceiro do Zorro, né? – eu digo, e as mina só ficam me olhando. Tem gente que não entende mesmo o senso de humor escocês.

– E de onde vocês são? – pergunta a outra mina. Duas puta dumas gostosa. Esse viado desse ruivo acertou em cheio sentando aqui, pode crer.

– Edimburgo – responde o Rents, soando todo metido a besta, saca? Que oportunista, esse ruivo viadinho. Agora que Franco já quebrou o gelo ele tá pronto pra entrar no jogo, todo metido a galã.

As mina ficam largando uma letra pra gente sobre como Edimburgo é linda pra cacete, e como a porra do castelo na colina em cima dos jardins é adorável, essas merda toda. Mas os turista só conhecem isso, o castelo, a Princes Street e a High Street. Como naquela vez que a tia da Monny veio daquele vilarejo numa ilha da costa oeste da Irlanda, trazendo todos os pirralho dela.

Então a tiazinha foi pedir uma casa pro governo. Aí o governo pergunta pra ela, tipo, onde caralho ela quer ficar. A mulher diz que quer uma casa na Princes Street, com vista pro castelo. Tipo assim, a tia tá completamente perdida, fala aquela merda de gaélico, nem sabe inglês direito. A coitadinha só curtiu o visual da rua quando saiu do trem e achou que a porra do lugar inteiro era daquele jeito. Os puto do governo só riram e enfiaram a vaca numa daquelas espelunca em West Granton, que ninguém mais quer. Em vez de vista pro castelo, ela tem vista pras usina de gás. A coisa é assim na vida real, se você não é um viado rico com uma puta duma casa e grana de sobra.

Enfim, as mina bebem um pouco com a gente e tá na cara que o Rents já tá chumbado, porque a bebida tá pegando em mim e eu sou muito melhor de copo que esse ruivinho viado. Se bem que ontem de noite eu enchi a cara com o Lexo, depois que descolamos aquele esquema nas joalheria de Corstorphine. Isso explica por que me sinto tão bebum agora. Mas o que eu realmente queria, agora, era um bom carteado.

– Pega as carta, Rents.

– Nem trouxe elas – ele responde. Não acredito nesse viado! A última merda que eu disse pra ele ontem de noite foi: Não esquece a porra das carta.

– Eu disse pra você lembrar da porra das carta, ô cuzão! Qual foi a última merda que eu disse pra você ontem de noite? Hein? Não esquece da porra das carta!

– Esqueci, só isso – o viado responde. Aposto que esse ruivo viado esqueceu a porra das carta de propósito. Sem as carta, tudo fica chato rapidinho.

O viadinho sem graça começa a ler uma porra dum livro. Que falta de educação. Então ele começa a conversar com uma das mina canadense sobre todos os livro que já leram. Os dois são meio que estudante e tal. Tá me enchendo o saco. Era pra gente tá aqui pela diversão, não pra conversar sobre essas porra de livro e essas merda toda. Olha, por mim eu pegava tudo que é livro, fazia uma puta duma pilha com eles e tacava fogo em tudo. Livro só serve pros espertinho ficarem se exibindo com todas as merda que já leram. Tudo que cê precisa saber tá na tevê e nos jornal. Bando de viado metido a besta. Vou mostrar pra eles o que é um livro...

Paramos em Darlington e chegam uns viado que ficam conferindo os bilhete na nossa frente. Se querem sentar, se fuderam, porque o trem ainda tá atrolhado.

– Com licença, esses assentos são nossos. Nós os reservamos – diz um dos viado, metendo o bilhete na minha cara.

– Perdão, mas creio que deve ter ocorrido algum equívoco – diz Rents. O viado do ruivo consegue ter estilo, é preciso admitir. Ele tem estilo. – Não havia cartões indicando reserva de assentos quando embarcamos no trem em Edimburgo.

– Mas temos os bilhetes de reserva conosco – diz o viado que usa uns óculos tipo os do John Lennon.

– Bem, só posso sugerir que vocês encaminhem sua reclamação a um funcionário da British Rail. Eu e meu amigo tomamos estes assentos sem má-fé alguma. Temo que não possamos ser responsabilizados por um eventual equívoco da British Rail. Obrigado, e boa-noite – termina, começando a dar sua risada de viado ruivo. Tipo, eu tava ocupado demais me divertindo com a performance do cara pra mandar os viado caírem fora. Detesto confusão, mas esse viadinho à la John Lennon não se entrega.

– Temos os bilhetes aqui. Isso prova que os assentos são nossos – diz o viado. Pronto, agora chega.

– Ei, cara! – eu digo. – É, cê mesmo, o viado que não sabe a hora de calar a boca! – ele se vira pra mim. Eu fico de pé. – Cê ouviu o que o cara disse. Vai procurar sua turma, quatro-olho de merda. Vamolá... anda! – e aponto pro fundo do trem.

– Vamos, Clive – diz o amigo dele. Os viados se mandam. Bom pra eles. Aí eu achei que o caso tava encerrado, mas não, os viados me voltam com um bilheteiro.

Dá pra ver que o bilheteiro não tá nem aí, o pobre coitado só tá fazendo o trabalho dele, e começa a explicar que os lugar são dos viado, mas eu dou a real de uma vez por todas.

– Tô cagando e andando pro que tem no bilhete desses viado, ô parceiro. Não tinha porra nenhuma de aviso de reserva na porra dos lugar quando a gente sentou neles, porra. Agora a gente não sai, e fim de papo. Cês cobram bastante por uma merda duma passagem, tratem de colocar um aviso na próxima vez.

– Alguém deve ter tirado o aviso – ele diz. Esse cara não vai fazer porra nenhuma.

– Talvez sim, talvez não. A porra do problema não é meu. Como eu disse, os lugar tavam livres e eu peguei. A porra do assunto tá encerrado.

O garoto dos bilhete começa a discutir com os viado depois de dizer pra eles que não pode fazer porra nenhuma. Boa sorte pra eles. Tão ameaçando dar queixa do garoto, a coisa tá ficando feia.

Um dos viado no lugar da frente tá esticando o olho pra trás de novo.

– Algum problema, parceiro? – grito pra ele. O viado fica vermelho e se vira de volta. Cagalhão.

O Rents cai no sono. O viadinho ruivo tá com o melão encharcado de álcool. O garrafão dele tá pela metade e a maioria das latinha já foi. Levo o garrafão dele junto comigo pro banheiro, esvazio um pouco e completo até o mesmo nível com o meu mijo. É isso que acontece com quem esquece de levar a porra das carta. Tem duas parte de ceva pra uma de mijo ali dentro.

Volto e coloco o garrafão no mesmo lugar de antes. O viado tá dormindo que nem uma pedra, e uma das mina também. A outra tá com a cara enfiada no livro. Duas gostosa. Não sei se eu preferia comer a porra da loirona ou a de cabelo preto.

Acordo o ruivo viado em Peterborough. – Vamolá, Rents, tá dando mole pra porra da cerveja. Um porra dum velocista, é isso que cê é. Um velocista nunca consegue acompanhar o ritmo de um maratonista.

– Sem problema... – ele diz, dando uma bela golada no garrafão. Torce a cara toda. Quase me mijo de rir.

– A cerveja tá sacudida. Ficou choca, tá ligado? Tá com gosto de mijo, essa merda.

Me seguro como posso pra não abrir o jogo. – Para de dar desculpa esfarrapada, seu viado cagalhão.

– Mas, tipo assim, ainda vou beber – tento olhar pra fora pela janela enquanto o otário vira tudo.

Quando chegamos a Kings Cross, já tô completamente de porre. As mina caíram fora. Achei que a gente ia se dar bem ali, e tal, e meio que me perdi do Rents quando saí do trem. Até peguei a sacola do viadinho ruivo no lugar da minha. É bom que ele tenha pegado a minha. Nem sei a porra do endereço... mas aí eu vejo o ruivo de merda no lado de fora da entrada do metrô, conversando com um viadinho com um copo de plástico na mão. Rents tá com a minha sacola. Bom pra ele.

– Tem algum trocado pro garoto, Franco? – pergunta o Rents, e um viadinho com cara de idiota estica uma porra de copo, me encarando de um jeito todo retardado.

– Cai fora, ô pivete! – eu digo, derrubando o copo da mão dele, e quase mijo nas calça de tanto rir vendo o viadinho retardado rastejar no piso, pelo meio das perna de todos aqueles cara, só pra juntar as porra das moeda.

– Onde fica a porra do apartamento, mesmo? – pergunto pro Rents.

– Perto daqui – ele responde, me olhando como se eu fosse... o jeito que esse viado encara os outros, às vezes... ele vai sair com a cara quebrada uma hora dessas, não interessa se esse porra é meu amigo ou não. Aí ele simplesmente se vira e eu sigo atrás dele até a linha Victoria.


Na Na e uns nazis

O largo da Leith Walk tá assim, lotadaço, cara. Tá quente demais prum sujeito branquelo e tal, saca? Tem bichanos que gostam de calor, mas quem é tipo eu não aguenta, tá ligado? É demais pra nós, cara.

Outra coisa muito foda é não ter grana. É tipo assim, uma bosta total, cara. Cê só fica andando de um lado pro outro e olhando pras pessoas, saca. De começo fica todo mundo assim, todo simpático e tal, mas depois que sacam que cê tá sem um puto no bolso eles meio que desaparecem nas sombras...

Encontro o Franco na estátua da rainha Chicória, falando com um cara grandalhão, um hombre de cara feia chamado Lexo; é só um conhecido, saca o que eu tô dizendo? É tipo assim, engraçado pacas isso de todos os malucos se conhecerem, tá ligado? Essas uniões são blasfemas, cara, são blasfemas mesmo...

– Spud! E aí, seu viado! Como é que tá? – o Mendigo é um bichano barulhento.

– Hã, tipo assim, não tô mal não, Franco... E você?

– Tô beleza – responde, se virando praquela montanha quadrada atrás dele. – Cê conhece o Lexo – não é uma pergunta, é uma afirmação. Mexo a cabeça e tal, saca, e o hombre grandalhão me olha por um segundo e depois se vira e fala de novo com o Franco.

Dá pra sacar que esses felinos tão pensando em rasgar uns sacos de lixo, fuçar em umas lixeiras, essas coisas. Aí eu digo: – Hã.... preciso sair fora e tal, a gente se fala depois.

– Peraí, parceiro. Tá com grana? – Franco pergunta.

– Hã, cara, tô basicamente assim, totalmente falido – tenho trinta e dois centavos no bolso e uma libra na minha conta do Abbey National. Não é bem o tipo de carteira de investimentos que faria os caras de Charlotte Square perderem o sono e tal.

Franco me dá duas nota de dez. Boa, Mendiguito.

– Nada de heroína dessa vez, seu escroto sem noção! – ele me passa um pito, mas tipo assim, de um jeito gentil. – Me liga no fim de semana, ou aparece direto lá em casa.

Já falei alguma coisa contra meu grande parceiro Franco? Bem, tipo... ele não é um mau sujeito. É um felino selvagem, saca, mas até os felinos selvagens às vezes se aquietam e ficam tipo assim dando uma ronronada, geralmente depois de devorar alguém e tal. Meio que não consigo deixar de tentar imaginar quem foi que o Franco e o Lexo devoraram, tipo assim. O Frankie tava lá em Londres com o Rents, se escondendo dos hômi. O que o garoto andou fazendo? Às vezes é melhor nem saber. Na real, é sempre melhor não saber e tal.

Corto caminho pela Woolies, que tá cheia, tipo assim, cheia mesmo. O segurança tá ocupado em bater papo com uma gostosinha perto da saída, aí eu encho meus bolso com umas fita virgem... meu coração começa a bater bem forte e tal, mas vai parando... é uma sensação boa, tipo assim, é bom mesmo... talvez seja a segunda melhor coisa depois de injetar heroína e de gozar com uma mina. É tão bom que toda aquela adrenalina me dá vontade de tipo assim, ir até a cidade pra sair roubando tudo e tal.

O calor, cara, é... quente. É a única maneira de descrever direito, saca? Vou pra perto da praia e sento num banco bem do lado do posto da previdência. Os vintão alegram meu bolso, tipo assim, me abrem mais portas, saca? Aí fico olhando pro rio. Tem um baita cisne no rio, tá ligado? Isso me faz pensar no Johnny Cisne e em heroína. Mas esse cisne é tipo assim, bonito pra caralho. Queria ter um pouco de pão e tal, pra dar de comer pro bicho.

O Gav trabalha no posto. Talvez eu pegue o cara no intervalo do almoço, faça ele me pagar uns pints e tal. Paguei vários pra ele nos últimos tempos. Vejo o Ricky Monaghan saindo do posto. É um sujeito na dele, saca.

– Ricky...

– E aí, Spud. Que tá pegando?

– Hã, não tô fazendo nada de mais, bichano. Só isso aqui que cê tá vendo e tal.

– Tá mal assim?

– Pior, bichano, pior.

– Ainda tá sem drogas?

– Quatro semanas e dois dias desde minha última vez lá em Salisbury Crag, saca? Tô contando cada segundo, cara, cada segundo. É tipo assim tique-taque, tique-taque, tá ligado?

– Cê tá se sentindo melhor assim?

É só aí que eu percebo que tô; tá, eu tô entediado pra caralho e tal, mas fisicamente, saca... tô melhor. As primeiras duas semanas foram de morte, cara, intermináveis... mas agora, tipo assim, posso até sair atrás de um sexo melado com uma princesa judia ou uma garotinha católica completa, até com as meinhas brancas, mas tem que ser completa, com as meinhas brancas. Tá ligado?

– ... Só... Eu tipo me sinto melhor e tal.

– Vai pra Easter Road no sábado?

– Hã, nem vou... Já faz um tempão que não vou pro estádio, saca – mas talvez acabe indo. Com o Rents... mas o Rents tá em Londres agora... ou então com o Sick Boy. Vou com o Gav, pago uns pints pra ele... vejo o pessoal de novo. – ... é, talvez. Tem que ver o que rola e tal. Cê vai?

– Nem. Ano passado eu disse que não voltava até que se livrassem do Miller. A gente precisa de um técnico novo.

– É... Miller... a gente precisa de um cara novo pra ser técnico... – eu nem tinha ideia de quem era o técnico, tipo, não saberia nem dizer o nome dos caras do time e tal. Tinha o Kano... mas acho que o Kano já mudou de time. Durie! Gordon Durie!

– O Durie ainda tá no time?

Monny olha pra mim e meio que balança a cabeça.

– Não, o Durie saiu há um tempão, Spud. Em oitenta e seis. Foi pro Chelsea.

– Tá certo, cara. Durie. Lembro quando esse bichano fez um golaço no Celtic. Ou foi no Rangers? No fim dá no mesmo, cara, quando cê para pra pensar... são tipo lados diferentes da mesma moeda, saca?

Ele dá de ombros. Acho que não convenci esse bichano.

Aí o Ricky me dispensa, ou eu dispenso ele e tal... ah, quem se importa com quem dispensa quem nesses dias de merda, tá ligado? Alguém dispensa alguém e lá tô eu de volta, rumo ao largo da Walk. A vida pode ser um saco sem a heroína. O Rents tá em Londres; o Sick Boy tá cheirando na cidade o tempo todo, hoje em dia o velho porto não parece mais legal o bastante praquele sujeito; Rab, o Segundo Lugar, desapareceu totalmente; e o Tommy parece que tá na pior desde que se separou daquela mina, a Lizzy. Só me sobra o Franco e tal... que vida de merda, cara, vou te contar.

Ricky, Monny, Richard Monaghan, companheiro de luta feniana, boto fé, boto fé, larga fora e vai se encontrar com uma gatinha na cidade. Isso deixa este sujeito aqui totalmente sozinho e tal. Resolvo visitar a Na Na no asilo ali do final da Easter Road. A Na Na odeia o asilo, mesmo que seja tipo um lugar legal pacas pra ficar e tal. Eu queria morar num lugar daqueles, saca. É elegante, isso aí, elegante, mas é só pra caras mais velhos e tal. É só puxar um cordão que toca um alarme e uma atendente aparece pra resolver qualquer problema, saca. Eu ia gostar muito disso, cara, ainda mais se a filha do Frank Zappa, aquela mina doida, a garota do Vale, Moon Unit Zappa, fosse atendente do lugar e tal. Ia ser totalmente demais, tipo, pode apostar, bichano!

As pernas da Na Na tão totalmente fudidas e tal, e o médico charlatão disse que ela foi louca de ficar subindo as escada até o último andar do prédio onde ela morava na Lorne Strasse. Tá mais que certo, senhor curandeirão. Se tirarem as varizes das pernas de Na Na, tipo, não sobra perna nenhuma, nada pra manter ela em pé, saca? As veia dos meus braço são melhor do que as que ela tem naquelas pernas destruída. Ainda assim ela deu trabalho pro doutor e tal; gatos velhos marcam seu território por um tempão e acabam ficando tipo assim, apegados. Não tem erro não, os merdinha se negam a simplesmente ir embora sem brigar. Botam as garras pra fora e aí é pelo pra todo lado, cara. A Na Na é assim... a srta. Mouskouri, como eu chamo ela, saca?

A ala da Na Na tem tipo assim uma área comum que ela nunca usa, a menos que esteja tentando chegar naquele sr. Bryce. A família do velhote reclamou pra direção que ela tava tipo assediando ele sexualmente e tal. Uma mulherzinha da direção tentou mediar um encontro entre minha mãe e a filha do sr. Bryce, mas a Na Na fez a filha do sujeito se desmanchar em lágrimas fazendo comentários escrotos sobre a marca de nascença feia pra cacete que ela tinha na cara. Parece uma daquelas manchas de vinho, saca? Tipo assim, a Na Na se prevalece das fraquezas das outras pessoas, especialmente das outras mulheres, e usa isso contra elas, saca?

Um monte de trancas diferentes são abertas e Na Na sorri pra mim e acena pra eu entrar. Sou muito bem recebido e tudo, mas sei que minha mãe e minha irmã são tratadas como se fossem, bem, tipo assim, nada. As duas fazem tudo pela Na Na e tudo o mais. Mas a Na Na adora caras e odeia minas. Ela teve sei lá, tipo uns oito filhos de cinco homens diferentes, tá ligado? Isso contando só os que a gente conhece.

– Oi... Calum... Willie... Patrick... Kevin... Desmond... – ela faz uma lista de nomes de netos mas ainda assim esquece do meu e tal. Isso nem me incomoda nem nada; me chamam tanto de Spud, até minha mãe me chama assim, que de vez em quando até eu esqueço do meu nome.

– Danny.

– Danny. Danny, Danny, Danny. E vivo chamando o Kevin de Danny. Como pude esquecer do Danny Boy?

Bem, tipo assim, como ela pôde... Danny Boy e Roses of Picardy são as únicas músicas que ela conhece e tal. Saca? Canta as duas a todo vapor; é uma barulheira ofegante e desafinada, e ainda levanta os braços pra dar um efeito especial, tá ligado?

– O George tá aqui.

Dou uma olhada na curva da sala em forma de L e saco meu tio Dode, ajoujado numa cadeira, tomando uma latinha de Tennent’s Lager.

– Dode – digo.

– Spud! Beleza, chefe? Como é que anda?

– Maravilha, bichano, maravilha. Hã, e você e tal?

– Não posso reclamar. E sua mãe?

– Hum, ainda tá pegando no meu pé, como sempre, saca?

– Ei! Cê tá falando de sua mãe! A melhor amiga que cê sempre vai ter. Não tô certo, mãe? – pergunta pra Na Na.

– Mas pode apostar que sim, filho!

“Pode apostar” é uma das coisas que a Na Na mais gosta de falar e tal, junto com “mijo”. Ninguém fala “mijo” que nem a Na Na. Ela faz o jota ficar bem comprido, tipo assim, mijjjjjjjo, dá até pra ver a fumacinha saindo do jato amarelo antes de bater no branco da louça, saca?

O tio Dode abre um sorrisão complacente. O Dode é assim meio mestiço e tal, é filho de um marinheiro das Índias Ocidentais, tá ligado, ele é o produto de um sêmen indiano ocidental! Tá ligado? O coroa do Dode passeou por Leith por tempo suficiente pra dar uma tota com a Na Na. Depois voltou pros sete mares. Parece boa a vida de um marinheiro, tipo assim, esse negócio de ter uma mina em cada porto e tal.

O Dode é o filho mais novo da Na Na.

Ela casou primeiro com meu vô e tal, um vaqueiro sortudo de County Wexford. O coroa pegava minha mãe no colo e cantava pra ela, músicas de rebelde irlandês e tal. Ele tinha um monte de pelo saindo do nariz e ela achava que ele era muito velho, como é normal acontecer com pirralhos. Tipo, o cara tinha no máximo uns trinta e poucos. Enfim, esse cara acabou se dando mal, tipo assim, caiu da janela do último andar de um bloco. Tava comendo outra mulher na época, nem era a Na Na e tal. Ninguém conseguiu descobrir se foi bebedeira, suicídio ou tipo... as duas coisas. Enfim, isso deixou ela sozinha com três filhos, incluindo minha mãe.

O homem seguinte da Na Na (tô falando de maridos) foi um cara de voz esganiçada que trampava em andaimes, saca. O velho ainda tá por aí, em Leith. Uma vez, num pub, disse pra gente que trampar em andaimes agora era considerado um ofício e tal. O Rents, que era ajudante de carpinteiro naquela época, disse pro velho que ele tava falando merda, que isso era só um biscate, e o velho ficou todo cocô e tal. Às vezes ainda vejo ele lá pelo Volley. Não é um mau sujeito, o velhote. Durou um ano com a Na Na, mas gerou um filho e deixou outro a caminho e tal.

O pequeno Alec, um vendedor de seguros de uma cooperativa que tinha acabado de ficar viúvo foi a, hã, vítima seguinte de Na Na. Dizem que o Alec achava que o filho que a Na Na tava esperando era dele e tal. Esse durou três anos e deu outro filho pra ela antes de, coitado do cara, pegar a Na Na trepando com outro sujeito dentro de casa.

Tipo, ele ficou esperando o outro cara nas escadas com uma garrafa na mão, pelo menos é o que dizem e tal. O sujeito implorou piedade. O Alec largou a garrafa, dizendo que tipo não precisava de arma pra lidar com gente daquela laia. A expressão do cara mudou na hora e ele chutou o infeliz do Alec escada abaixo; depois arrastou o pobre coitado pela Walk, todo zonzo e coberto de sangue e tal, antes de jogar ele em cima de uma pilha de lixo do lado de fora de uma mercearia.

Minha mãe sempre diz que o Alec era tipo assim um carinha decente. Era meio que o único homem de Leith que não sabia em que time a Na Na jogava, tá ligado?

O penúltimo filho da Na Na é um baita mistério e tal. É minha tia Rita, que tem quase a mesma idade que eu. Acho que sempre fui meio a fim da Rita, uma mina legal, um tipinho bem anos 60, tá ligado? Ninguém conseguiu descobrir quem é o pai da Rita, e depois veio o Dode, que nasceu quando a Na Na já tinha passado dos quarenta, saca?

Quando eu era pirralho o Dode parecia um cara muito bizarro. Tipo, cê ia pra casa da Na Na num sábado, pra tomar chá, e dava de cara com aquele gatinho preto e malvado que encarava todo mundo e depois saía engatinhando pelo piso, sempre meio colado no rodapé e tal. Todo mundo dizia que o Dode era meio desconfiado e eu meio que não entendia o motivo até que comecei a ver o tipo de sacanagem que faziam com o cara na escola, na rua e em tudo que é canto. Ninguém tinha nada que se meter naquilo, cara, vou te contar. Meio que dou risada sempre que alguém vem com o papo de que racismo é coisa de inglês e que aqui todo mundo é escocês da gema, todo mundo unido... essa merda é puro papo furado, saca, esses cara tão tudo pensando com o cu.

Minha família tem uma tradição forte de ladroagem, tá ligado? Todos os meus tios já passaram pelo xadrez. E tipo assim, o Dode sempre pagava as piores penas pelos crimes mais banais, tá ligado? Uma baita duma sacanagem, cara. O Rents disse uma vez que não tem nada melhor que uma pele escura pra aumentar a vigilância da polícia e dos juízes; tá mais que certo.

Enfim, eu e o Dode resolvemos chegar no Percy pra tomar uns pints. O pub tá meio estranho; o Percy geralmente é um pub calmo, bem família, mas hoje tá cheio de uns Oranges que vieram do oeste selvagem até aqui pro seu desfile anual no Links. Admito que esses bichanos nunca encheram meu saco, mas realmente não aguento os cara. Tipo assim, é puro ódio, saca. Ficar celebrando batalhas antigas me parece um troço assim, bem idiota. Saca?

Enxergo o coroa do Rents com seus irmãos e sobrinhos. Billy, o irmão do Rents, também tá ali. O coroa do Rents é um sebento e um Broa de Paris, mas na verdade nem tá mais metido com esse tipo de coisa. Mas os parentes dele de Glasgow ainda levam tudo muito a sério, e o pai do Rents parece se importar bastante com os parentes. O Rents nunca sai com esses caras; meio que odeia eles e tal. Não gosta nem de falar nos cara. Já o Billy é outro papo. É bem chegado nesse troço Orange, nesses negócios meio jambo/hun. Me cumprimenta do outro lado do balcão, mas nem acho que realmente vá com minha cara e tal.

– Tudo certo, Danny? – diz o sr. R.

– Hã... acho que tudo beleza, Davie. Alguma notícia do Mark?

– Nada. Ele deve tá bem. Aquele ali só aparece quando precisa de alguma coisa – fala meio sério, e os sobrinhos ficam olhando pra gente de um jeito estraaanho, aí a gente senta numa mesa de canto perto da porta.

Que cagada...

Ficamo do lado de uns bichanos meio sinistros. Alguns são skinheads, outros não. Alguns têm sotaque escocês, outros inglês, outros de Belfast. Um dos cara tá usando uma camiseta do Skrewdriver10 e um outro tá com uma camiseta onde tá escrito O Ulster É Britânico e tal. Começam a cantar uma música sobre o Bobby Sands, tipo sacaneando ele. Não entendo muito de política, mas pra mim o Sands parece um cara corajoso, um cara que nunca matou ninguém e tal. Tipo, o cara precisa ser corajoso pra morrer daquele jeito, saca?

Aí um dos cara, o da camiseta do Skrewdriver, fica tentando nos encarar de tudo que é jeito, por mais que a gente fique evitando olhar nos olho deles. A coisa fica difícil quando eles começam a cantar “Aint no Black in the Union Jack”.11 A gente fica frio, mas o felino não desiste. Tá com as garras de fora. Ele grita pro Dode.

– Oi! Tá olhando o quê, crioulo de merda?

– Vai se fuder – o Dode responde. Esse bichano já passou por isso mais de uma vez. Mas eu não. Pra mim isso é, tipo, assustador pra caralho.

Escuto alguns dos garotos de Glasgow dizendo que aqueles caras não são homens de Orange de verdade, que são nazistas e tal, mas a maioria dos viados de Orange que tão no pub ficam atiçando os filhos da puta, tipo encorajando eles.

Todos começam a berrar: – Crioulo de bosta! Crioulo de bosta!

Dode levanta e vai até a mesa deles. Vejo direitinho quando a expressão torta e zombeteira do sujeito do Skrewdriver muda quando ele percebe, na mesma hora que eu, que o Dode tá segurando um cinzeiro de vidro pesado pra caralho... isso é violência... isso é um mau sinal...

... ele destroça a cara do Skrewdriver com o cinzeiro, e o melão do sujeito meio que se abre em dois enquanto ele desaba do banquinho pro chão. Fico tremendo de medo, de puro medo, cara, e aí um sujeito cai em cima do Dode, derrubam ele, e aí eu preciso me meter. Pego um copo e dou no queixo do Mão Vermelha do Ulster, que bota as mãos na cabeça mesmo que o copo nem tenha quebrado e tal, mas aí um viado me dá um soco nas tripa com tanta força que parece que tomei uma facada, cara...

– Matem esse corno feniano! – berra algum filho da puta, e eles me encostam na parede e tal... começo a dar soco e chute sem parar, sem sentir porra nenhuma... e tô meio que me divertindo, cara, porque isso não é tipo a violência de verdade que se vê quando alguém tipo o Begbie fica puto da cara, não, isso é tipo desenho animado... nem sei brigar e tal, mas também não acho que esses caras tenham a manha... parecem que tão todos caindo um por cima do outro...

Não sei direito o que aconteceu. Davie Renton, o pai do Rents, e Billy, o irmão dele, devem ter afastado os caras da gente, porque de uma hora pra outra eu tô arrastando o Dode, que parece bem fudido, pra fora do bar. Escuto o Billy dizendo: – Tira ele daqui, Spud. Leva ele pra rua, porra – agora meu corpo todo tá bem dolorido e tô meio que chorando de raiva, medo e mais que tudo, frustração.

– Isso é... tipo... caralho... isso é, isso é...

O Dode tá nocauteado. Carrego ele pela rua. Escuto gente gritando atrás de nós. Me concentro na porta da Na Na, nem me arrisco a olhar pra trás. Carrego o Dode pela escada. Tá sangrando na altura das costela e no braço.

Ligo pruma ambulância e a Na Na bota a cabeça dele no colo e diz: – Ainda tão fazendo isso com você, meu filho... quando é que vão deixar você em paz, meu garotinho... desde que ele tava na escola, desde que ele tava na escola era assim...

Levo o Dode pro hospital. Tipo, os machucados dele nem são tão graves quanto pareciam. Enxergo ele numa maca depois que fizeram os curativos e tal.

– Tá tudo bem, Danny. Já passei por coisa pior no passado e vou passar por coisa ainda bem pior no futuro.

– Não diz isso, cara. Não diz isso, saca?

Ele olha pra mim como se eu nunca pudesse entender, e acho que deve ter razão.


A primeira trepada em séculos

Passaram quase o dia todo se chapando até cansarem. Agora estão enchendo a cara em um matadouro de última, coberto de metal e néon. O bar faz questão de cobrar preços exorbitantes pelas bebidas, mas está longe de alcançar a sofisticação de lugar refinado que parece almejar.

As pessoas vêm até este lugar por um motivo, um único motivo. Mas, de certo modo, a noite ainda é uma criança; a camuflagem de bebidas, conversas e música não começou a ficar óbvia demais.

A droga e o álcool alimentaram de forma extraordinária as libidos pós-heroína de Spud e Renton. Para eles, todas as mulheres do recinto parecem terrivelmente sensuais. Até mesmo alguns dos homens. Percebem que é impossível manter sua atenção em uma só pessoa que pode se tornar um alvo em potencial, porque seu olhar acaba sempre escapando para outro alguém. Só o fato de estarem ali faz os dois lembrarem do tempo que estão sem dar uma trepada.

– Se o cara não consegue uma xereca nesse lugar, é melhor desistir de vez – pondera Sick Boy, sacudindo a cabeça de leve no ritmo da música. Sick Boy pode se dar ao luxo de ficar fazendo especulações distanciadas, falando de uma posição superior, como geralmente costuma fazer nesse tipo de situação. Os círculos negros que circundam seus olhos atestam que ele passou a maior parte do dia trepando com as duas americanas que estão hospedadas no hotel Minto. Não há chance de Spud, Renton ou Begbie participarem da brincadeira. As duas voltarão ao hotel acompanhadas de Sick Boy, e apenas de Sicky Boy. Ele está apenas concedendo às duas a graça de sua presença.

– Elas têm um pó excelente, cara. Nunca provei nada parecido – sorri.

– Anfetamina de manhã, cara – comenta Spud.

– Cocaína... que lixo. Merda de yuppies – embora esteja sem usar nada há algumas semanas, Renton mantém o desprezo do usuário de heroína por qualquer outra droga.

– Minhas damas estão voltando. Terei de deixá-los, cavalheiros, perdidos em suas atividadezinhas sórdidas. – Sick Boy sacode a cabeça com desdém, e depois dá uma boa olhada no bar com uma expressão arrogante e superior no rosto. – A diversão das classes trabalhadoras – resmunga, petulante. Spud e Renton fazem caretas.

A inveja sexual é um ingrediente inseparável da amizade com Sick Boy.

Tentam imaginar todas as sacanagens movidas a cocaína a que ele se dedicaria com as “engole-pinto no Minto”, como se refere às americanas. Imaginar é tudo que podem fazer. Sick Boy nunca fornece detalhe algum de suas aventuras sexuais. Essa discrição, entretanto, é mantida apenas para atormentar seus amigos menos sexualmente ativos, e não como sinal de respeito para com as mulheres com quem se envolve. Spud e Renton percebem que situações de ménage à trois com turistas ricas e cocaína são patrimônio exclusivo de aristocratas sexuais como Sick Boy. Este bar vagabundo é para o nível deles.

Renton contrai o rosto ao observar Sick Boy de longe, pensando sobre as bobagens que inevitavelmente devem estar saindo de sua boca.

No caso de Sick Boy, aquilo já era esperado. Renton e Spud ficam aterrorizados ao perceber que Begbie também se deu bem. Está conversando com uma mulher de rosto bonito, de acordo com Spud; mas que tem uma bunda gorda, completa Renton, sendo escroto. Algumas mulheres, reflete Renton com certa inveja destrutiva, sentem-se atraídas por psicopatas. Geralmente pagam um preço alto por essa falha de caráter, levando vidas terríveis. De imediato, cita como exemplo June, a namorada de Begbie, que naquele momento está no hospital dando à luz um filho dele. Orgulhoso de não precisar dizer mais nada para provar que está correto, toma um gole de sua Becks, pensando: caso encerrado.

Renton, contudo, está passando por uma de suas costumeiras fases autoanalíticas, e toda essa presunção autocomplacente evapora rápido. Na verdade, a bunda da mulher nem é tão gorda, pensa. Percebe que está novamente acionando seu mecanismo de autoengano. Parte de si acredita que ele é de longe a pessoa mais atraente naquele bar. Isso acontece porque ele sempre consegue encontrar alguma coisa odiosa no mais atraente dos indivíduos. Concentrando-se apenas naquela parte desagradável, consegue anular mentalmente qualquer traço de beleza. Por outro lado, suas próprias ilhas de feiura não o incomodam, porque já está acostumado a elas e, acima de tudo, não pode enxergá-las.

De qualquer modo, agora está com inveja de Frank Begbie. Certamente, reflete, não há como ir mais fundo no poço. Begbie e seu novo amor conversam com Sick Boy e as americanas. Aquelas mulheres parecem bem espertas, ou ao menos é o que indica sua embalagem de bronzeado-e-roupas-caras. Renton fica nauseado ao ver Begbie e Sick Boy fazendo o papel de grandes amigos, quando na verdade passam o tempo todo implicando um com o outro. Percebe a prontidão deprimente com que os bem-sucedidos, acima de tudo na esfera sexual, segregam-se dos fracassados.

– Sobramos eu e você, Spud – comenta.

– Tipo, hã, é... parece que sim, bichano.

Renton gosta quando Spud chama os outros de “bichano”, mas odeia ser chamado assim. Gatos o repugnam.

– Sabe, Spud, às vezes tenho vontade de voltar a usar heroína – Renton declara, basicamente para chocar Spud, para tentar extrair uma reação daquele rosto disforme e chapado de haxixe. Assim que termina a frase, contudo, percebe que realmente está sentindo aquilo.

– Ei, cara, tipo, nada a ver... saca? – Spud luta para empurrar essas palavras para fora de sua boca crispada.

É então que Renton começa a perceber que a anfetamina que tomaram no banheiro, a mesma que ele decretara ser uma merda, começava a fazer efeito. O problema de não usar mais heroína, decide Renton, é que você se torna um imbecil estúpido e irresponsável, usando qualquer porcaria que cai em suas mãos. Com a heroína, ao menos, não sobra espaço para mais nada.

Sente uma forte vontade de conversar. A anfetamina toma a dianteira em seu organismo, ultrapassando o fumo e o álcool.

– Negócio é o seguinte, Spud. Quando cê usa heroína, para por aí. Só precisa se preocupar com isso. Saca meu irmão Billy? O cara acaba de se inscrever pra voltar pra porra do exército. O imbecil vai pra Belfast. Sempre soube que aquele babaca tinha merda na cabeça. Lacaio imperialista de merda. Saca o que o retardado me falou? Disse bem assim: não consigo aguentar essa vida de civil. Ser do exército é que nem ser viciado. A única diferença é que não é tão comum levar tiros por ser viciado. Além disso, a única coisa que machuca você é a agulha.

– Cara, hã, isso aí parece meio, tipo assim, nada a ver pra caralho. Saca?

– Não, cara, escuta só. Pensa nisso. No exército, fazem tudo por esses retardados. Dão comida pra eles, enchem eles de bebida barata em clubinhos vagabundos do exército pra evitar que invadam as cidades e baixem o nível, incomodando os moradores e tal. Quando voltam a ser civis, precisam fazer tudo sozinhos.

– Sim, cara, mas tipo, é diferente, porque... – Spud tenta interromper, mas Renton está a toda. Só uma garrafada na cara o faria ficar quieto agora, e mesmo assim por não mais que alguns segundos.

– Peraí, peraí... espera um pouco, parceiro. Me escuta. Ouve o que tenho pra dizer... que é que eu tava falando mesmo... ah! Tá. Quando cê usa heroína, só se preocupa com isso. Sem heroína, cê precisa se preocupar com um monte de coisas. Se tá sem grana, não pode encher a cara. Se tem grana, bebe de mais. Se não consegue uma mina, não come ninguém. Se consegue uma mina, só se incomoda, não consegue nem respirar sem que ela se meta. Ou isso, ou manda tudo à merda e depois fica se sentindo culpado. Se preocupa com contas, comida, cobradores, com esses viado jambo nazista nos enchendo de porrada, com todas essas coisas pra que cê caga e anda quando tá realmente envolvido com heroína. Cê só tem uma coisa pra se preocupar. É a mais pura simplicidade. Tá ligado? – Renton se aquieta para trincar os dentes mais uma vez.

– Só, cara, mas é tipo assim uma vida de merda. Nem é vida, saca? Tipo quando cê tá mal, cara... é o fundo do poço... a dor nos osso... é veneno, cara, é puro veneno... Nem me fala que cê quer tudo isso de novo, porque cê ia tá falando merda e tal – esse comentário é um pouco agressivo, especialmente para os padrões gentis e largados de Spud. Renton percebe que tocou em um ponto delicado.

– Só. Tô mesmo falando um monte de merda. É culpa do Lou Reed.

Spud abre para Renton o tipo de sorriso que faria tias velhas quererem adotá-lo como a um gatinho abandonado.

Avistam Sick Boy se preparando para ir embora na companhia de Annabel e Louise, as duas americanas. Já passara meia hora reforçando o ego do Mendigo. Renton percebe que essa é a única função de qualquer amigo de Begbie. Pensa na insanidade de ser amigo de uma pessoa com quem obviamente antipatiza. Puro costume, pura prática. Begbie, como a heroína, era um vício. Um vício igualmente perigoso. Estatisticamente, reflete, você tem mais chances de ser assassinado por um membro de sua própria família ou por um amigo próximo do que por qualquer outra pessoa. Alguns sujeitos se rodeiam de amigos psicopatas achando que isso vai deixá-los mais fortes, menos suscetíveis a serem feridos por nosso mundo cruel, mas a verdade é obviamente oposta.

A caminho da porta com as americanas, Sick Boy olha para trás, erguendo uma sobrancelha para Renton, no estilo de Roger Moore, enquanto deixa o bar. Um surto de paranoia induzido pela anfetamina toma conta de Renton. Começa a pensar que talvez o sucesso de Sick Boy com as mulheres se deva à sua habilidade de erguer apenas uma sobrancelha. Renton sabe o quanto isso é difícil. Passou muitas noites praticando esse truque na frente do espelho, mas as duas sobrancelhas insistiam em se erguer ao mesmo tempo.

A quantidade de álcool ingerida e a passagem do tempo conspiram para deixar a mente concentrada. Quando falta uma hora para o bar fechar, uma pessoa com quem você não pensaria em sair dali subitamente torna-se aceitável. Quando falta meia hora, torna-se bastante desejável.

Os olhos ansiosos de Renton param por várias vezes sobre uma garota magra, com cabelos castanhos lisos e compridos, curvados levemente para cima nas pontas. Tem um belo bronzeado, e suas feições delicadas estão habilmente enfatizadas pela maquiagem. Veste uma miniblusa marrom e calças brancas. Renton sente o sangue escapar de sua barriga quando a mulher coloca as mãos nos bolsos e consegue enxergar o contorno da calcinha. Chegara sua hora.

A mulher e sua amiga estão sendo abordadas por um sujeito de rosto redondo e inchado, com uma camisa aberta que fica estufada em sua pança. Renton, que não se esforça nem um pouco para disfarçar seu divertido preconceito contra pessoas acima do peso, aproveita a oportunidade para praticá-lo.

– Ô Spud, saca aquele balofão. Guloso de merda. Não levo fé em todo esse papo de que é uma coisa de glândulas ou metabolismo. Não se vê nenhum gordacho nas imagens da Etiópia que aparecem na tevê. Por acaso eles não têm glândulas por lá? Ah, para com isso. – Spud responde aos comentários com um sorriso chapado.

Renton decide que a garota tem bom gosto, porque dispensa o gordo. Gosta do jeito como ela faz isso. Segura e digna, sem sacanear o cara, mas sem deixar dúvidas de que não está interessada. O cara sorri, estende as mãos e inclina a cabeça de lado, e é recebido por uma saraivada de risadas zombeteiras de seus amigos. Esse incidente deixa Renton ainda mais determinado a falar com aquela mulher.

Renton acena para que Spud o acompanhe. Como odeia tomar a iniciativa, alegra-se quando Spud começa a falar com a amiga da garota, até porque Spud não costuma fazer aquele tipo de coisa. A anfetamina certamente está ajudando, mas Renton fica um tanto perturbado ao escutar que Spud está tagarelando sem parar sobre Frank Zappa.

Renton tenta se aproximar de uma maneira que considera descontraída mas interessada, sincera mas tranquila:

– Desculpe por me meter em sua conversa. Só queria dizer que admirei o excelente gosto que cê demonstrou ao chutar aquele gordacho agora há pouco. Achei que cê podia ser uma pessoa legal pra conversar. Se cê me mandar ir pro mesmo lugar que o gordacho, não vou ficar magoado. Meu nome é Mark, a propósito.

A mulher sorri de um maneira levemente confusa e condescendente, mas para Renton aquilo é infinitamente superior a um “vai se fuder”. Enquanto conversam, Renton começa a ficar preocupado com sua aparência. Os efeitos da anfetamina estão diminuindo aos poucos. Teme que seu cabelo, pintado de preto, pareça ridículo, e que suas sardas alaranjadas, a maldição de todo filho da puta ruivo, estejam muito evidentes. Antigamente se achava parecido com o Bowie da era Ziggy Stardust. Alguns anos atrás, contudo, uma mulher disse que ele era a cara de Alec McLeish, jogador de futebol do Aberdeen e da seleção escocesa. Desde então, o rótulo permaneceu. Quando Alec McLeish pendurou as chuteiras, Renton decidiu viajar até Aberdeen para assistir à sua despedida, como sinal de gratidão. Lembrava de uma vez em que Sick Boy sacudiu a cabeça em desalento, perguntando como um cara que se parecia com Alec McLeish podia esperar ser atraente para as mulheres.

Assim, Renton pintou seu cabelo de preto e o arrepiou para tentar apagar a imagem de McLeish. Agora, teme que alguma mulher com quem saia morra de rir quando ele tirar as roupas e revelar seus pentelhos alaranjados. Pintou também as sobrancelhas e pensou em pintar seus pelos pubianos. Em um acesso de estupidez, pediu a opinião de sua mãe.

– Não seja idiota, Mark – ela respondeu, atiçada pelo desequilíbrio hormonal da fase da vida pela qual passava.

A mulher chama-se Dianne. Renton acha que acha ela bonita. É um julgamento necessário, pois suas experiências anteriores o ensinaram a nunca acreditar inteiramente em sua opinião quando substâncias químicas estão zanzando por seu corpo e seu cérebro. Começam a conversar sobre música. Quando Dianne informa a Renton que gosta de Simple Minds, têm sua primeira discussão moderada. Renton não gosta de Simple Minds.

– Simple Minds virou uma bosta completa desde que se meteram com essa tendência imbecil de rock engajado inventada pelo U2. Nunca mais levei fé neles desde que abandonaram suas raízes progressivo-farofa e começaram com esse negócio hipócrita de politicagenzinhas. Gosto muito do material antigo, mas desde New Gold Dream eles são um lixo. Todo esse negócio de Mandela é muito constrangedor, porra – resmunga.

Dianne diz acreditar que o apoio dos Simple Minds a Mandela e a uma África do Sul multirracial é muito sincero.

Renton sacode a cabeça com certa intensidade, tentando ficar tranquilo, mas continua nervoso por causa da anfetamina e da opinião de Dianne. – Tenho umas New Musical Express antigas, a partir de 1979, bem, eu tinha mas joguei fora anos atrás, mas lembro de entrevistas em que o Kerr desprezava o engajamento político de outras bandas, dizendo que os Minds só se importavam com a música, cara.

– As pessoas têm direito de mudar – responde Dianne.

Renton fica desarmado com a pureza e a simplicidade dessa afirmação. Isso faz com que a admire ainda mais. Encolhe os ombros e admite esse argumento, embora sua mente não pare de tagarelar que Kerr sempre esteve a um passo atrás de seu guru Peter Gabriel e que desde o Live Aid ser visto como bom moço virou moda para qualquer rockstar. Ainda assim, fica quieto e decide tentar ser menos dogmático a respeito de suas opiniões sobre música dali para a frente. Em uma perspectiva mais ampla, reflete, isso tudo não quer dizer porra nenhuma.

Depois de um tempo, Dianne e sua amiga vão até o banheiro para discutir sua avaliação de Renton e Spud. Dianne não consegue se decidir a respeito de Renton. Acha que ele é meio imbecil, mas o lugar está cheio de imbecis e ele parece um pouco diferente. Não diferente o bastante para ser levado a sério, ainda assim. Mas estava ficando tarde...

Spud diz alguma coisa para Renton, que não consegue escutá-lo por causa de uma música do The Farm, que, segundo Renton, como todas as outras músicas da banda, só é tolerável se você tomou uma tonelada de ecstasy, e se você tomou uma tonelada de ecstasy seria um desperdício ficar ouvindo The Farm, já que estaria bem melhor em alguma rave se sacudindo loucamente ao som de bate-estacas techno. Mesmo que tivesse escutado Spud, seu cérebro está fodido demais para responder, aproveitando um descanso merecido depois de todo o esforço feito para conversar com Dianne.

Renton começa então a falar bobagens íntimas para um sujeito de Liverpool que está passando as férias por lá, só porque o sotaque e a aparência do cara o fazem lembrar de seu amigo Davo. Logo percebe que o cara não tem nada a ver com Davo e que foi bobagem ter revelado aquelas coisas particulares. Tenta voltar para o balcão, mas não consegue encontrar Spud e acaba percebendo que está totalmente dopado. Dianne vira uma lembrança distante, uma intenção vaga perdida em meio ao seu estupor drogado.

Sai do bar para respirar um pouco de ar fresco e enxerga Dianne prestes a entrar sozinha em um táxi. Com certa angústia invejosa, pensa que aquilo pode significar que Spud foi embora com sua amiga. A possibilidade de ser o único a não pegar ninguém o apavora, e é o mais puro desespero que o incita a seguir diretamente na direção dela.

– Dianne. Posso dividir esse táxi?

Dianne parece indecisa. – Vou pra Forrester Park.

– Beleza. Também vou pra esses lados – mente Renton, pensando “bem, agora vou mesmo”.

Conversaram no táxi. Dianne discutiu com Lisa, sua amiga, e decidiu voltar para casa. Pelo que ela sabia, Lisa estava pulando na pista de dança com Spud e algum outro cretino, colocando um contra o outro. Renton apostou todas as suas fichas no outro cretino.

O rosto de Dianne assumiu uma expressão caricatural de desprezo enquanto dizia a Renton como Lisa era uma pessoa horrível, fazendo uma lista de todas as suas sacanagens; ele as achou mesquinhas o bastante, dotadas de certa maldade que pareceu um tanto perturbadora. Submetia-se, obediente, concordando que Lisa era a coisa mais egoísta da face da Terra. Mudou de assunto quando percebeu que Dianne parecia estar ficando indisposta, o que para ele não era nada bom. Contou histórias engraçadas sobre Spud e Begbie, amenizando as partes mais grotescas. Renton não mencionou Sick Boy, porque as mulheres gostavam tanto dele que Renton sentia a necessidade de manter todas as mulheres que conhecia longe de Sick Boy, até mesmo em conversas.

Quando Dianne parecia mais alegre, Renton perguntou se ela se importaria com um beijo. Ela deu de ombros, deixando que ele decidisse se aquilo demonstrava indiferença ou alguma indecisão. Ainda assim, refletiu, a indiferença era melhor que uma rejeição imediata.

Agarraram-se por um tempo. Renton ficou excitado com seu perfume. Dianne o achou muito magro e ossudo, mas beijava bem.

Quando saíram do carro, Renton confessou que não morava nem perto de Forrester Park e que só dissera aquilo para passar mais tempo na companhia dela. Dianne sentiu-se lisonjeada.

– Quer subir para tomar um café? – perguntou.

– Seria ótimo. – Renton tentou soar casualmente satisfeito, ao invés de loucamente empolgado.

– É só um café, mesmo – completou Dianne, de um jeito que fez Renton esforçar-se por decifrar o que ela realmente queria dizer. Dissera aquilo de um jeito malicioso o bastante para sugerir a possibilidade de sexo, mas ao mesmo tempo soara decidida o bastante para querer dizer exatamente o que dissera. Renton apenas assentiu com a cabeça, como se fosse um retardado confuso.

– Não podemos fazer nenhum barulho. Tem gente dormindo – disse Dianne. Isso parecia menos promissor, pensou Renton, visualizando um bebê no apartamento, acompanhado por uma babá. Deu-se conta de que nunca fizera aquilo com alguém que já tivera um filho. Essa ideia deu-lhe uma sensação estranha.

Percebia a presença de outras pessoas no apartamento, mas não conseguiu sentir o cheiro de mijo, vômito e talco característico dos bebês.

Começou a falar. – Dian...

– Ssh! Eles tão dormindo – cortou Dianne. – Não acorde eles, ou vamos ter problemas.

– Quem tá dormindo? – sussurrou, nervoso.

– Ssh!

Aquilo deixou Renton desnorteado. Sua mente começou a repassar horrores vividos por ele mesmo ou relatados por outras pessoas. Folheou silenciosamente um registro lúgubre que continha todo tipo de horrores, de vegans a cafetões psicóticos.

Dianne o acompanhou até um quarto e o fez sentar em uma cama de solteiro. Depois sumiu, voltando poucos minutos depois com duas canecas de café. O dele tinha açúcar, coisa que odiava, mas não estava sentindo muito bem gosto algum.

– Vamos pra cama? – sussurrou Dianne com uma intensidade estranhamente familiar, erguendo as sobrancelhas.

– Hã... Seria legal... – respondeu, quase cuspindo um pouco do café. Seu coração começou a bater muito rápido e ele ficou nervoso, sentindo-se desajeitado e virginal, preocupado com os possíveis efeitos do coquetel de álcool e drogas em sua ereção.

– Não podemos mesmo fazer barulho – ela repetiu. Ele assentiu com a cabeça.

Apressado, Renton arrancou seu pulôver e sua camiseta, e depois seus tênis, suas meias e seu jeans. Constrangido com seus pentelhos alaranjados, foi para baixo dos lençóis antes de tirar a cueca.

Sentiu alívio ao ficar duro enquanto observava Dianne tirar as roupas. Ao contrário dele, ela se despiu lentamente e não parecia nada constrangida. Renton achou seu corpo muito bonito. Não conseguiu deixar de repetir em silêncio um mantra futebolístico de “lá vamos nós”.

– Quero ficar por cima – anunciou Dianne, puxando os lençóis e desvelando os pentelhos alaranjados de Renton. Felizmente, pareceu não ter percebido nada de errado. Renton estava satisfeito com seu caralho. Parecia bem maior que o normal. Logo se deu conta que isso provavelmente devia-se ao fato de estar acostumado a vê-lo apenas em repouso. Dianne ficou menos impressionada. Já vira piores, e isso era tudo.

Começaram a se acariciar. Dianne estava gostando das preliminares. O entusiasmo demonstrado por Renton era um diferencial agradável em relação à maioria dos outros sujeitos com quem estivera. Quando sentiu os dedos dele tomando o rumo de sua vagina, interrompeu-o e puxou sua mão.

– Já estou bem lubrificada – informou. Isso fez Renton sentir-se um pouco zonzo; parecia frio e mecânico demais. Começou até a temer estar perdendo a ereção, mas nada disso, Dianne estava sentando em seu pau e, milagre dos milagres, ele continuava rígido.

Gemeu suavemente quando ela o envolveu por completo. Começaram a se mexer juntos, vagarosos, penetrando mais fundo. Renton sentiu a língua de Dianne em sua boca, e acariciava levemente sua bunda. Não fazia aquilo há tanto tempo que parecia correr o risco de gozar imediatamente. Dianne percebeu sua excitação extrema. Por favor, que ele não seja só mais um inútil, por favor, pensou consigo mesma.

Renton tirou as mãos dela e tentou imaginar que estava trepando com Margaret Thatcher, Paul Daniels, Wallace Mercer, Jimmy Savile e outras pessoas broxantes, para conseguir se controlar.

Dianne aproveitou a oportunidade e cavalgou-o até atingir o orgasmo, como se Renton, deitado ali, fosse um vibrador preso a um skate enorme. Quando Renton enxergou a imagem de Dianne mordendo o indicador, tentando reprimir os guinchos estranhos que produzia ao gozar, com a outra mão apoiada sobre seu peito, acabou gozando também. Nem mesmo pensar que estava lambendo o cu de Wallace Mercer conseguiu detê-lo naquele momento. Quando começou a gozar, era como se não fosse parar nunca mais. Seu caralho jorrava como uma pistola d’água nas mãos de uma criança insistente e travessa. A abstinência aumentara sua contagem de espermatozoides até quase o infinito.

Foi uma coisa próxima o bastante de um orgasmo simultâneo para que ele tivesse o direito de descrevê-lo assim, caso fosse um sujeito dado a esse tipo de confidência. Mas nunca fazia isso, pois percebera que sua credibilidade como garanhão aumentava quando dava de ombros e sorria de forma enigmática, ao invés de narrar tudo nos mínimos detalhes para a diversão de uns vagabundos. Aprendera isso com Sick Boy. Dessa forma, até mesmo sua postura contrária ao sexismo confundia-se com seu egoísmo sexista. Como os homens são patéticos, pensou consigo mesmo.

Logo que Dianne desmontou, Renton começou a se abandonar a um sono delicioso, decidido a acordar no meio da noite para fazer mais um pouco de sexo. Estaria mais tranquilo, mas também mais ativo, e mostraria a ela tudo que podia fazer, agora que saíra da seca. Comparava-se a um atacante que acabara de encerrar um longo jejum de gols e que agora mal podia esperar pela próxima partida.

Assim, foi um golpe terrível quando Dianne disse: – Cê precisa sair.

Antes que ele conseguisse perguntar qualquer coisa, ela saiu da cama. Colocou a calcinha para recolher a porra espessa que já começava a abandoná-la, escorrendo pelo interior de suas coxas. Pela primeira vez, Renton começou a pensar em sexo penetrativo sem proteção e nos riscos do HIV. Fizera um teste depois da última vez que compartilhara seringas, e sabia que estava negativo. Ficou preocupado com ela, contudo; imaginou que alguém que dormiria com ele, dormiria com qualquer um. A intenção demonstrada por Dianne de expulsá-lo dali destroçara seu frágil ego sexual, transformando-o rapidamente até demais de garanhão descolado a pateta indesejado. Comentou para si mesmo que seria típico de sua sorte pegar AIDS em uma única trepada depois de passar anos compartilhando seringas, ainda que nunca tivesse apelado para as enormes seringas comunitárias tão benquistas nas sessões de pico.

– Mas não posso ficar aqui? – sua voz saiu frágil como a de um mulherzinha, de um modo que inspiraria um deboche cruel de parte de Sick Boy, caso ele estivesse ali. Dianne o encarou e sacudiu a cabeça. – Não. Cê pode dormir no sofá. Se não fizer barulho. Caso encontre alguém, lembre que nada aconteceu entre a gente. Vista alguma coisa.

Como estava novamente preocupado com a inconveniência de seus pentelhos alaranjados, atendeu ao pedido com alegria.

Dianne acompanhou Renton até o sofá da sala. Deixou-o tremendo, só de cuecas, até voltar com suas roupas e um saco de dormir.

– Desculpa – sussurrou Dianne, beijando-o. Agarraram-se por um tempo e Renton começou a ficar de pau duro novamente. Quando tentou colocar a mão dentro da camisola de Dianne, ela o deteve.

– Preciso ir – anunciou, decidida.

Saiu, deixando Renton confuso e com uma sensação de vazio. Sentou no sofá, envolveu-se com o saco de dormir e puxou o zíper. Ficou deitado na escuridão, sem sono algum, tentando distinguir o conteúdo da sala.

Renton imaginou que as pessoas que moravam com Dianne deveriam ser uns pentelhos de merda que não gostavam que ela trouxesse pessoas para casa. Ou talvez, pensou, ela não quisesse que achassem que ela traria um cara desconhecido para casa e fodesse com ele daquele jeito. Reforçou seu ego convencendo a si mesmo de que fora sua graça espirituosa e sua beleza única, apesar de imperfeita, que venceram a resistência de Dianne. Quase acreditou nisso.

Acabou caindo em um sono intermitente, cheio de sonhos esquisitos. Mesmo que estivesse acostumado a ter sonhos bizarros, ficou perturbado com aqueles por serem particularmente vívidos e surpreendentemente fáceis de lembrar. Estava acorrentado a uma parede em uma sala branca iluminada por néon azul, observando Yoko Ono e Gordon Hunter, o zagueiro do Hibs, devorarem a carne e roerem os ossos de corpos humanos depositados aos pedaços sobre enormes mesas de fórmica. Lançavam-lhe insultos terríveis, com sangue escorrendo de suas bocas enquanto arrancavam tiras de carne, e mastigavam animados enquanto praguejavam. Renton sabia que seria o próximo a ir para aquelas mesas. Tentou implorar um pouco para “Geebsie” Hunter, afirmando ser um grande fã, mas o zagueiro de Easter Road fez jus à fama de inflexível e apenas riu de sua cara. Foi um alívio quando o sonho se transformou e Renton percebeu que estava nu, coberto de caganeira, comendo ovos, tomates e pão frito na companhia de Sick Boy, completamente vestido, ao lado do rio Water of Leith. Depois sonhou que estava sendo seduzido por uma bela mulher que trajava apenas um biquíni feito de papel-alumínio. A mulher era na verdade um homem, e ambos fodiam vagarosamente buracos diversos de seus corpos, dos quais gotejava uma substância parecida com espuma de barbear.

Acordou com o som de talheres tilintando e o cheiro de bacon sendo frito. Enxergou de relance as costas de uma mulher, que não era Dianne, sumindo para dentro de uma pequena cozinha que ficava bem ao lado da sala. Em seguida sentiu um espasmo de medo ao escutar uma voz masculina. A última coisa que Renton queria ouvir, de ressaca, em um lugar estranho, era uma voz masculina. Fingiu que estava dormindo.

Dissimuladamente, de olhos semicerrados, avistou um sujeito de sua altura, talvez menor, aproximando-se da cozinha. Embora conversassem em voz baixa, ele ainda conseguia escutá-los.

– Então a Dianne apareceu com outro amigo – disse o homem. Renton não gostou da entonação levemente zombeteira que ele dera ao termo “amigo”.

– Sim. Mas fique quieto. Não comece a ficar desagradável e a tirar conclusões apressadas de novo.

Escutou os dois entrando na sala e saindo em seguida. Às pressas, enfiou sua camiseta e seu pulôver. Depois abriu o saco de dormir, jogou as pernas para fora do sofá e meteu-se no jeans, quase em um só movimento. Dobrando o saco de dormir com cuidado, arrumou as almofadas tortas do sofá até ficarem organizadas. Colocando as meias e calçando os tênis, percebeu que fediam. Torceu para que ninguém tivesse sentido aquilo, mas sabia que essa esperança era vã.

Renton estava nervoso demais para sentir-se acabado. Ainda assim, estava consciente da ressaca; ela pairava nas sombras de sua psique como um assaltante infinitamente paciente, apenas esperando o momento certo de cair sobre ele.

– Olá – a mulher que não era Dianne reapareceu na sala.

Era bonita, com olhos grandes e um queixo fino e delicado. Renton achou que conhecia aquele rosto de algum lugar.

– Opa. Meu nome é Mark, a propósito – respondeu. Ela não se apresentou. Ao invés disso, tentou obter mais informações a respeito dele.

– Então você é amigo de Dianne? – o tom de sua voz era levemente agressivo. Renton decidiu pegar leve e contar alguma mentira que não parecesse muito óbvia, e que por isso pudesse ser contada com alguma convicção. O problema era que desenvolvera a habilidade dos viciados de mentir sem convicção alguma, e agora parecia mais convincente ao mentir do que ao falar a verdade. Hesitou, pensando consigo mesmo que primeiro você se livra da heroína, e só depois da personalidade de viciado.

– Bem, eu diria que ela é mais a amiga de uma amiga. Conhece a Lisa?

A mulher assentiu com a cabeça. Renton prosseguiu, acalentando suas mentiras, sentindo o ritmo confortante do embuste.

– Bem, isso na verdade é um pouco constrangedor. Ontem era meu aniversário, e confesso que fiquei bastante bêbado. Consegui perder as chaves do meu apartamento, e o cara que mora comigo tá de férias na Grécia. Isso me deixou mal. Podia ter voltado pra casa e arrombado a casa, mas no estado que eu tava não conseguia nem pensar direito. Ia acabar sendo preso por invadir minha própria casa! Tive sorte de encontrar a Dianne, que foi gentil e me convidou pra dormir no sofá. Cê mora com ela, né?

– Ah... sim, por que não? – respondeu a mulher, sorrindo de um modo estranho. Renton tentava de todas as formas perceber o que estava acontecendo; alguma coisa estava errada.

O homem se aproximou e juntou-se a eles. Cumprimentou Renton com um rápido aceno de cabeça, que foi respondido por um sorriso tênue.

– Este é o Mark – informou a mulher.

– Certo – respondeu o sujeito, sem transparecer coisa alguma.

Renton calculou que os dois deveriam ser da mesma idade que ele, talvez um pouco mais velhos, mas não era muito bom em avaliar idades. Dianne era obviamente mais nova que todos eles. Talvez, permitiu-se especular, os dois sentissem algum tipo perverso de sentimento paternal por ela. Já percebera que isso acontecia com algumas pessoas mais velhas. Geralmente tentavam controlar pessoas mais jovens, mais populares e animadas. Geralmente faziam isso movidos por inveja das qualidades que essas pessoas mais jovens possuíam, e que lhes faltavam. Essa fraqueza costumava ser disfarçada com uma atitude benevolente e protetora. Percebeu isso naqueles dois e começou a sentir alguma hostilidade por eles.

Então Renton foi atingido por uma onda de choque que ameaçou colocá-lo a nocaute. Uma garota entrou na sala. Olhando para ela, começou a gelar. Era uma sósia de Dianne, mas mal parecia ter idade suficiente para estar no ensino médio.

Precisou de alguns segundos para perceber que era Dianne. Renton imediatamente entendeu por que as mulheres, quando se referem à retirada de sua maquiagem, costumam falar em “tirar o rosto”. Dianne parecia ter dez anos de idade. Ela reparou na sua expressão chocada.

Renton olhou para o casal. Sua atitude para com Dianne era paternal porque eram os pais dela. Mesmo em meio à sua ansiedade, Renton ainda sentiu-se um tolo por não ter notado isso antes. Dianne parecia-se muito com sua mãe.

Sentaram-se para tomar o café da manhã, e um Renton atônito começou a ser sabatinado pelos pais de Dianne.

– E então, Mark, o que você faz? – perguntou a mãe.

Não fazia nada, ao menos em se tratando de trabalho. Fazia parte de uma quadrilha que operava um sistema de fraudes do seguro-desemprego, e recebia benefícios em cinco endereços diferentes; um em Edimburgo, outro em Livingston e outro em Glasgow, além de dois em Londres, em Shepherd’s Bush e Hackney. Fraudar o governo daquela forma sempre fazia Renton sentir-se muito virtuoso, e era difícil manter a discrição sobre seus feitos. Mas sabia que isso era necessário, pois estava rodeado por todos os lados de sujeitos hipócritas, intrometidos e metidos a santinhos, só à espera de uma chance para denunciá-lo às autoridades. Renton achava que merecia aquele direito, já que as habilidades gerenciais necessárias a manter aquela operação funcionando eram bastante abrangentes, especialmente para alguém tentando se livrar de um vício em heroína. Precisava se inscrever em diversas partes do país, reunir-se com outros membros da quadrilha nos endereços de entrega dos cheques do seguro-desemprego e, quando menos esperava, descer até Londres para ser entrevistado quando Tony, Caroline ou Nicksy ligavam para avisar. Seu esquema de Shepherd’s Bush corria algum risco no momento, porque declinara da empolgante oportunidade profissional de trabalhar no Burger King de Notting Hill Gate.

– Trabalho como curador no departamento museológico da Secretaria Municipal de Cultura e Lazer. Cuido da coleção de história social, cuja maior parte está no Museu de História Popular da High Street – mentiu Renton, vasculhando seu catálogo de falsas identidades profissionais.

Os pais de Dianne pareceram impressionados, até um pouco atônitos, o que era exatamente a reação que Renton desejara causar. Encorajado, tentou melhorar sua imagem de bom moço apresentando-se como um sujeito modesto, que não se leva muito a sério. Completou, autodepreciando-se: – Fuço no lixo das pessoas atrás de coisas que foram deixadas de lado e depois as apresento como artefatos históricos autênticos da vida cotidiana das classes trabalhadoras. Cuido também para que nada desabe quando está sendo exposto.

– Cê precisa de cérebro pra fazer isso – disse o pai, dirigindo-se a Renton mas olhando para Dianne. Renton não conseguia encará-la nos olhos. Sabia que essa atitude poderia causar mais suspeitas do que qualquer outra coisa, mas simplesmente não conseguia.

– Eu não diria isso – amenizou Renton, dando de ombros.

– Pode ser que não, mas cê precisa ao menos ser um profissional qualificado.

– É, bem, sou bacharel em história pela Universidade de Aberdeen – de fato, isso era quase verdade. Renton ingressara na Universidade de Aberdeen e achara o curso bem fácil, mas foi forçado a sair na metade do primeiro ano depois de gastar todo o dinheiro das mensalidades em drogas e prostitutas. Isso lhe deu a impressão de que se tornara o primeiro estudante da história da Universidade de Aberdeen a foder uma não estudante. Ponderou que era melhor fazer história a estudá-la.

– Educação é importante. É o que sempre dizemos pra esta aqui – disse o pai, novamente aproveitando a oportunidade para implicar com Dianne. Renton não gostou daquilo, e gostou ainda menos de estar colaborando tacitamente. Sentia-se uma espécie de tio pervertido de Dianne.

Bem quando estava pensando: Por favor, que ela esteja fazendo os exames especiais, a mãe de Dianne estraçalhou a esperança de uma minimização de danos.

– Ano que vem a Dianne vai fazer as provas do exame-padrão de história – completou, sorrindo –, e também de francês, inglês, artes, matemática e aritmética – encerrou, orgulhosa.

Renton estremeceu por dentro pela milésima vez.

– Mark não está interessado nisso – disse Dianne, tentando soar superior e madura. Repreendeu seus pais do jeito que as crianças privadas de poder costumam agir quando se tornam o “assunto” de uma conversa. Do mesmo jeito, ponderou Renton, vacilante, que ele agia sempre que seus coroas faziam esse tipo de coisa. O problema era que Dianne soara tão petulante, tão infantil, que obteve um resultado oposto ao esperado.

A mente de Renton trabalhava sem parar. É a famosa chave de cadeia. Cê pode ser preso por isso. Eles têm direito de fazer isso e jogar a chave fora. Vão me chamar de maníaco sexual; vão me arrebentar a cara todo dia lá em Saughton. Maníaco Sexual. Estuprador de Crianças. Pedófilo. Anormal. Já escutava as vozes dos detentos psicopatas; gente, refletiu, parecida com Begbie: – Disseram que a garotinha tinha só seis anos; – Falaram que foi estrupo; – Podia ter sido minha filha ou a de qualquer um de vocês – me fudi, pensou Renton, sentindo calafrios.

Sentia nojo do bacon que estava comendo. Era vegetariano há muitos anos. Isso não tinha nada a ver com política ou alguma escolha moral; apenas odiava o gosto da carne. Mesmo assim não disse nada, esforçado que estava para se manter aprovado pelos pais de Dianne. Não ousou tocar na salsicha, contudo, pois imaginava que aquelas coisas eram cheias de venenos. Lembrando de toda a heroína que injetara, comentou sardonicamente para si mesmo: É bom tomar cuidado com o que você coloca para dentro do corpo. Imaginou se Dianne gostaria daquilo, e começou a dar risinhos irrefreáveis, quase nervosos, por conta de sua própria piada de duplo sentido.

Sem muito sucesso, tentou disfarçar sacudindo a cabeça e contando uma mentira, ou melhor, mais uma. – Deus do céu, como sou idiota. Fiquei num estadinho ontem à noite. Não sou muito acostumado a beber. Mas tudo bem, acho que você só tem vinte e dois anos uma vez na vida.

Os pais de Dianne pareceram tão descrentes da última frase quanto Renton, que tinha vinte e cinco anos e parecia ainda mais velho. Mesmo assim continuaram ouvindo, educados. – Perdi minha jaqueta e minhas chaves. Agradeço a Deus por Dianne e por vocês dois. Foi realmente uma atitude hospitaleira me deixar passar a noite aqui e me preparar este belo café. Estou triste por não poder comer essa salsicha. É que já estou cheio demais. Não estou acostumado a comer tanto no café da manhã.

– Você é magro demais, esse é seu problema – comentou a mãe.

– É o resultado de morar em apartamentos. Oriente é oriente, ocidente é ocidente, mas uma casa é que é o quente – declarou o pai. Um silêncio nervoso seguiu-se a esse comentário debiloide. Constrangido, prosseguiu: – Bem, ao menos é o que dizem – aproveitou a oportunidade para mudar de assunto. – E agora, como você vai entrar no apartamento?

Esse tipo de gente sempre deixava Renton totalmente apavorado. Encaram-no como se nunca tivessem feito nada de errado em todas as suas vidas. Não era de se estranhar que Dianne fosse daquele jeito, que desse para caras desconhecidos que conhecia em bares. Aquele casal lhe parecia tão saudável que chegava a ser obsceno. Os cabelos do pai começavam a escassear, a mãe tinha alguns leves pés de galinha, mas qualquer pessoa os colocaria na mesma faixa etária de Renton, e ainda os descreveria como mais saudáveis.

– Acho que vou precisar mesmo forçar a porta. É só um cadeado. Tolice, eu sei. Faz muito tempo que estou pensando em colocar uma fechadura de tranca. Agora fico feliz por não ter feito isso. Tem um interfone na escada, os vizinhos vão me deixar entrar.

– Posso ajudar você com isso. Sou carpinteiro. Onde você mora? – perguntou o pai. Renton ficou um pouco assustado, mas feliz por perceber que haviam engolido sua conversa fiada.

– Não precisa se incomodar. Fui ajudante de carpinteiro antes de ir pra faculdade. Agradeço mesmo assim – isso também era verdade. Era estranho falar a verdade depois de se acostumar com o engodo. Fazia Renton sentir-se real, e por isso vulnerável.

– Fui aprendiz de Gillsland em Gorgie – completou, estimulado pelas sobrancelhas erguidas do pai.

– Conheço Ralphy Gillsland. Sujeitinho desgraçado – bufou o pai, em um tom de voz mais relaxado. Agora tinham um ponto de contato.

– É um dos motivos pelos quais abandonei o ofício.

Renton gelou ao sentir a perna de Dianne esfregando-se contra a sua por baixo da mesa. Tomou rapidamente os últimos goles de seu chá.

– Bem, acho que vou indo. Mais uma vez, obrigado por tudo.

– Espera, vou me arrumar e depois saio com você. – Dianne saiu da sala antes que ele pudesse protestar.

Renton ajudou a tirar a mesa sem muito entusiasmo, e em seguida o pai pediu que sentasse no sofá enquanto a mãe se ocupava na cozinha. Prendeu a respiração, temendo escutar algo do tipo saquei-qual-é-a-sua-seu-merda, assim que ficassem sozinhos. Mas não era nada disso. Conversaram sobre Ralphy Gillsland e seu irmão Colin que, para a alegria de Renton, cometera suicídio, e sobre outros sujeitos que conheciam de trabalhos diversos.

Conversaram sobre futebol, e o pai revelou-se um torcedor dos Hearts. Renton torcia para os Hibs, que mais uma vez não haviam feito uma campanha muito boa contra seus rivais locais; não fizeram uma boa campanha contra ninguém, o que o pai não perdeu tempo em relembrar.

– Os Hibbies não se deram muito bem nos enfrentando, não é?

Renton sorriu, pela primeira vez satisfeito, por motivos extra-sexuais, por ter comido a filha daquele homem. Era impressionante, registrou, como coisas como sexo e os Hibs, que não queriam dizer nada quando usava heroína, haviam se tornado tão importantes de repente. Pensou consigo mesmo se os seus problemas com drogas não tinham alguma relação com os péssimos resultados dos Hibs no decorrer dos anos 80.

Dianne estava pronta. Com menos maquiagem que na noite anterior, parecia ter por volta de dezesseis anos, dois anos mais velha que sua verdadeira idade. Quando saíram à rua, Renton sentiu alívio por deixar a casa, mas continuava um pouco constrangido por ser visto com ela. Tinha alguns conhecidos naquela região, drogados e traficantes em sua maioria. Se o vissem agora, imaginou, achariam que ele se tornara cafetão.

Pegaram um trem de South Gyle até Haymarket. Dianne segurou a mão de Renton no trajeto e falou sem parar. Estava aliviada por ter se livrado da influência inibidora de seus pais. Queria saber mais detalhes sobre Renton. Ele podia ser um canal de fumo.

Renton relembrou a noite anterior e, entre calafrios, tentou imaginar o que Dianne fizera, e com quantas pessoas, para ganhar tamanha experiência, tamanha confiança sexual. Sentia-se com cinquenta e cinco anos ao invés de vinte e cinco, e tinha certeza de que todos olhavam para eles.

Renton parecia sujo, suado e amassado com as roupas da noite anterior. Dianne usava leggings pretas, tão finas que mais pareciam meias-calças, por baixo de uma minissaia branca. Qualquer uma das peças, ponderou Renton, teria se bastado sozinha. Um sujeito ficou olhando para ela na estação Haymarket enquanto ela aguardava que Renton comprasse um Scotsman e um Daily Record. Ao perceber isso, ele foi tomado por uma fúria estranha e surpreendeu-se encarando o sujeito de forma agressiva. Talvez estivesse projetando sua baixa autoestima, pensou.

Entraram em uma loja de discos da Dalry Road e olharam algumas capas de vinis. Renton estava bem nervoso, porque sua ressaca aumentava a cada segundo. Dianne continuava a lhe passar capas de discos para que examinasse, declarando que uma era “brilhante” e que outra era “soberba”. Renton achou a maioria delas uma porcaria, mas estava se sentindo mal demais para discutir.

– E aí, Rents! Como é que tá, cara? – alguém encostou a mão em seu ombro. Sentiu seu esqueleto e seu sistema nervoso central sendo arrancados de uma vez só, como um fio atravessando massinha de modelar, e em seguida sendo colocados de volta. Virou-se e enxergou Deek Cisne, irmão de Johnny Cisne.

– Nada mal, Deek. E você, como anda? – respondeu, com um ar casual que camuflava seus batimentos cardíacos acelerados.

– Também não vou mal, chefe, não vou nada mal. – Deek percebeu que Renton estava acompanhado, e lançou-lhe um olhar malicioso. – Tenho que me largar e tal. A gente se vê. Se encontrar o Sick Boy, pede pra ele me ligar. O corno me deve vinte conto, porra.

– Pra mim também, amigo.

– A lábia desse cara é foda. Enfim, a gente se vê por aí, Mark – disse, e depois virou-se para Dianne. – A gente se vê, boneca. Seu homem é grosso demais pra nos apresentar. Deve ser amor. Se liga nesse carinha – enquanto Deek se afastava, os dois sorriram, desconfortáveis, a essa primeira avaliação exterior.

Renton percebeu que precisava ficar sozinho. Sua ressaca estava ficando terrível, e não aguentava mais.

– Hã, Dianne, olha só... preciso me largar. Tenho que encontrar uns parceiros em Leith. Futebol e tal.

Dianne o encarou de forma oblíqua, com um olhar quase condescendente, e acompanhou esse gesto com ruídos feitos com a língua, que Renton achou meio estranhos. Estava aborrecida por ele estar indo embora antes que ela tivesse a chance de perguntar algo sobre haxixe.

– Qual é seu endereço? – tirou uma caneta e um pedaço de papel da bolsa. – Não o de Forrester Park – completou, sorrindo. Renton anotou seu endereço verdadeiro, na Montgomery Street, simplesmente porque sentia-se mal demais para inventar outro.

Quando Dianne se afastou, ele começou a sentir uma grande aversão por si mesmo. Não sabia se era causada por ter feito sexo com ela, ou pela consciência de que não faria aquilo novamente.

Naquela noite, contudo, a campainha soou. Renton estava tão sem grana que ficara em casa na noite de sábado, assistindo a um vídeo de Braddock 3. Abriu a porta e deu de cara com Dianne. Produzida, recuperara totalmente a aparência desejável da noite anterior.

– Entra – disse Renton, tentando imaginar se teria alguma dificuldade para se acostumar com a rotina de um presídio.

Dianne achou ter sentido cheiro de haxixe. Esperava não estar enganada.


Passeando pelos prados

Os pubs tão tipo lotadaços, cheios de malucos daqui e de figuras que vieram pro festival, dando uma cheiradinha antes de irem pro próximo espetáculo. Tem uns desses espetáculos que até prestam... mas tipo assim, pegam um pouco pesado demais na gritaria.

O Begbie mijou nos jeans...

– Mijou nas cueca, Franco? – o Rents pergunta, apontando pra uma mancha molhada no brim desbotado.

– Mijei porra nenhuma! É só água, porra. Tava lavando minhas mão, caralho. Não que cê entenda disso, viadinho ruivo de merda. Esse viado aqui é alérgico a água, especialmente se tem sabão misturado.

O Sick Boy tá vasculhando o bar atrás de mulher... esse cara é louco por minas. Parece que depois de um tempo ele cansa da companhia de homem. De repente é por isso que o Sick Boy é tão bom com a mulherada; ele meio que precisa ser e tal. É, deve ser isso. O Matty tá cochichando sozinho, balançando a cabeça. Tem tipo alguma coisa errada com o Matty... não é só a heroína. É alguma coisa na cabeça do Matty, tipo uma baita depressão e tal.

O Renton e o Begbie tão discutindo. É melhor o Rents ficar ligado no que tá fazendo e tal. Esse Begbie, cara, tipo... é assim um felino selvagem. A gente é só uns felino vagabundo. Tipo assim, gatos de casa.

– Aqueles viado tinham grana. Cê é o corno que tá sempre falando de matar os rico e toda essas merda de anarquia. Aí cê vem e fica aí, todo cagalhão! – Begbie faz uma careta pro Rents, e é tipo assim uma careta bem feia e tal; aquelas sobrancelha bem preta em cima dos olho também preto, aquele cabelo preto um pouquinho mais comprido que de um skinhead.

– Não é uma questão de tá cagando, Franco. Só não tô a fim. A coisa tá legal por aqui. A gente tem anfetamina, tem ecstasy. Acho melhor ficar na nossa, curtindo a viagem, e depois ir pruma rave em vez de ficar zanzando à noite pela porra dos Meadows. Tão com uma porra duma tenda de teatro enorme por lá, uma porra duma feira de diversões. Vai tá cheio de polícia. É muita incomodação, cara.

– Eu não vou pra porra nenhuma de rave. Cê mesmo já disse que isso é coisa de pirralho de merda.

– É, mas isso foi antes de eu ir numa.

– Bem, eu não vou pressa merda. Vamos então passar de pub em pub e atacar algum viado na porra dos banheiro.

– Nem. Não posso ser pego.

– Mas que porra de viado cagalhão! Cê ainda tá cagando nas cueca de medo por causa daquele fim de semana no Bull and Bush.

– Não, não tô. Só achei desnecessária, só isso. Aquela porra toda.

Begbie deu uma encarada no Rents e ficou tipo, bem tenso na cadeira. Se inclinou assim pra frente e eu achei que o cara tava prestes a acabar com a raça do Rent Boy e tal, tá ligado?

– Hein? Hah! Eu te mostro o que é desnecessário, seu viado de merda!

– Tá bom, Franco. Fica calmo, cara – diz o Sick Boy.

O Begbie parece entender que aquilo tá meio exagerado até mesmo pra ele e tal. Guarda essas unha, bichano. Mostra uma patinha macia pro mundo. É um felino malvado, uma enorme pantera malvada.

– A gente acabou com um ianque de merda. O que ele é pra você? O espertinho de merda mereceu aquilo tudo! E tem mais, eu não vi cê saindo fora quando a gente tava lá na porra do Barley dividindo a merda da grana.

– O cara foi parar no hospital, desmaiado, perdeu um monte de sangue, porra. Apareceu até no jornal...

– Mas agora o cara já tá bom! Tá tudo bem! Ninguém saiu perdendo nessa porra. E se alguém tivesse se fudido, grandes merda! Um escroto dum americano rico de merda que nem devia tá por aqui, pra começar. Seu viado, cê mesmo já quebrou uns cara de porrada outras vezes, tipo o Eck Wilson, na escola; então nem me vem com esse papinho de fazer pose de sensível.

Isso meio que calou a boca do Rents, porque ele tipo odeia falar nisso, mas é que aconteceu e tal, saca? Ele meteu as unha num bichano que tava arranhando ele e tal, não foi tipo a mesma coisa que planejar acabar com a raça de alguém. Mas o Mendigo não consegue ver a diferença e tal. Mas foi bem feio, tipo foda de ver e tal... o ianque, o garoto, não queria dar a carteira de jeito nenhum, nem quando o Begbie mostrou a faca e tal... as últimas palavras que eu vi o cara dizer foram: você não vai usar isso.

O Begbie ficou totalmente louco com aquela faca, tipo descontrolado mesmo, e a gente quase esqueceu da carteira e tal. Eu meti a mão nos bolso do cara e peguei ela enquanto o Begbie chutava a cara dele. Jorrava sangue na privada, se misturando com o mijo e tal. Foi horrível, horrível, horrível e tal, cara, saca? Ainda tremo todo só de lembrar. Sinto uns calafrio quando tô deitado na cama. Toda vez que enxergo um sujeito meio que parecido com o nosso bichano, Richard Hauser de Des Moines, Iowa, Estados Unidos da América, fico paralisado. Sempre que escuto uma voz ianque na rua, levo um susto. Violência é um troço horrível, cara. O Mendigo, o bom e velho Franco, meio que nos estuprou e tal, estuprou a gente naquela noite, meio que meteu no nosso cu e depois nos deu uma grana, como se a gente fosse umas puta, cara, saca como é? Mendigo, bichano malvado. Um gato selvagem, muito selvagem.

– Quem vem comigo? Spud? – o Begbie tá falando comigo, mordendo o beiço de baixo.

– Hã, tipo... hã... esse negócio de violência... não é bem o meu tipo de lance... acho que eu vou ficar por aqui e me detonar... tipo assim, tá ligado?

– Outro cagalhão escroto – ele diz, se afastando de mim... não parece decepcionado, como se não esperasse nada de mim nesse tipo de lance e tal... o que talvez seja bom e talvez não seja tão bom, mas tipo assim, quem é que sabe a real sobre qualquer coisa hoje em dia?

O Sick Boy diz alguma coisa sobre ser um amante e não um guerreiro, e quando o Bebgie tá quase dizendo alguma coisa o Matty fala: – Tô nessa.

Isso desvia a atenção do Bebgie pra longe do Sick Boy. O Mendiguito começa a elogiar o Matty e tal, dizendo que a gente é os maior cagalhão da face da Terra; mas pra mim o Matty que é o cagalhão e tal, porque ele é o puxa-saco que sempre vai atrás de tudo que o Franco diz... nunca gostei muito do Matty... é um cara todo errado. É comum que os amigo fiquem se xingando de vez em quando e tal, mas quando o Matty critica você, tipo, dá pra sentir alguma coisa a mais, dá pra sacar... é tipo assim... ódio, saca? Só porque alguém tá feliz. Esse é o maior crime que cê pode cometer quando o Matty tá por perto. Ele não pode ver uma cara feliz e tal.

Me dou conta que nunca vejo o Matty sozinho e tal. Tipo assim, às vezes é eu e o Rents... ou eu e o Tommy... ou eu e o Rab... ou eu e o Sick Boy... ou até mesmo eu e o Generalíssimo Franco... mas nunca eu e o Matty. Isso meio que quer dizer alguma coisa e tal.

Os gato malvado saem da cesta pra ir atrás da presa deles e o clima fica tipo... excelente. O Sick Boy aparece com um pouco de ecstasy. Pomba branca, acho. Coisa de louco. Quase nenhum ecstasy tem MDMA mais, o efeito é quase sempre tipo meio anfetamina, meio ácido e tal... mas o troço que eu tomei parece tipo só pura anfetamina, saca? É um negócio puro, loucura total, totalmente zappaesco, cara... tô pensando no Frank Zappa no Joe’s Garage, neve amarela, princesas judias e garotas católicas, acho que seria do caralho ter uma mina... pra amar e tal... tipo, nada de fodelança, quer dizer, não só fodelança... mas pra amar, porque eu tipo tô sentindo vontade de amar todo mundo, sem nada de sexo... só ter alguém pra amar... mas tipo o Rents tem aquela Hazel e o Sick Boy... bem, o Sick Boy tem um milhão de minas... mas esses gatunos não parecem muito mais felizes que moi...

– A grama do vizinho é sempre mais verde, o sol sempre brilha mais do outro lado da cerca... – eu tô cantando, porra, eu nunca canto... eu tomei esse negócio e agora tô cantando... tô pensando na filha do Frank Zappa e tal, a Moon... ela já tava de bom tamanho... andar com o coroa dela... no estúdio de gravação... só pra curtir o processo criativo e tal, tipo assim, o processo criativo...

– Que coisa demente... preciso me mexer ou vou ficar louco... – o Sick Boy tá com as mão na cabeça.

A camisa do Renton tá desabotoada e ele tá beliscando os mamilo e tal...

– Spud... olha meus mamilo... eles tão estranho, cara... ninguém tem uns mamilo que nem os meu...

Fico falando de amor pra ele, e o Rents diz que amor não existe, é que nem religião, e que tipo assim, o Estado quer que cê acredite nessas merda pra poder controlar todo mundo, fuder com a cabeça do pessoal... tem uns bichano que não consegue nem se divertir sem falar de política, saca... mas ele não me desanima nem nada... porque tipo assim, nem ele mesmo acredita nisso... porque.... porque a gente ri de tudo que tá vendo... o maluco no bar com as veia estourando na cara... a mina inglesa com cara esnobe de frequentadora de Festival, pela expressão naquela cara parece que alguém acabou de peidar bem no nariz dela...

O Sick Boy diz: – Vamo pros Meadows rir do Begbie e do Matty... aqueles viados caretas, chatos, aqueles schemies esponjas de birita!

– É arriscaaado, bichano, é arriscaaado... o cara é totalmente louco e tal... – eu digo.

– Tudo pela torcida – diz o Rents. Ele e o Sick Boy tiraram isso de um folheto de propaganda dos Hibs que anunciava o torneio de pré-temporada na ilha de Man. Tinha uma foto do Alex Miller, astro dos Hibs, com uma baita cara de chapado, e a legenda dizia tipo assim “Tudo pela Torcida”. Sempre que rola alguma droga... eles dizem isso.

A gente meio que flutua pra fora do pub e caminha até os Meadows. Começamos a cantar, meio que nem o Sinatra, exagerando um sotaque americano de Nova York:

Yoo en I, were justa like-a kapil aff taahts

strollin acrass the Meadows

pickin up laahts aff farget-me-naahts.12

Tem tipo duas mina vindo na nossa direção... a gente dá uma sacada... é a Roseanna e a Jill... duas gatinha manhosa daquela escola afrescalhada, Gillespie ou Mary Erskine, como é mesmo o nome?... elas dão umas volta pela zona sul por causa do som, das droga, das experiência...

... o Sick Boy escancara os braço e agarra a Jill num abraço de urso, e o Rents faz tipo a mesma coisa com a Roseanna... eu fico meio que olhando pras nuvem e tal, como se eu fosse o Sr. Pica Reserva numa convenção de vagabunda.

Eles ficam se agarrando. Isso é cruel, cara, é cruel. O Rents se afasta primeiro, mas não tira o braço da Roseanna. Isso é meio que uma maldição pro Rents... tá ligado... aquela garotinha com quem o Rents foi pra casa depois do Donovan também era meio novinha. Como era mesmo o nome dela, era Dianne? Rents, felino malvado. O Sick Boy? Bem, o Sick Boy meio que prensou a Jill numa árvore.

– Como é que cê tá, gata? Que cê tá fazendo? – ele pergunta.

– Indo pra zona sul – ela diz, meio chapada... uma princesinha chapada, será que é judia? Não tem nenhuma marca no rosto... uau, essas minas tentam ser descoladas, mas ficam bem nervosas perto do Rents e do Sick Boy. Elas deixariam esses vagabundo, esses superstars viciados, fazer qualquer coisa com elas e tal. Minas descoladas de verdade dariam tipo um soco na boca deles e fariam os otário cair estatelado no chão. Essas garotinhas tão só se fazendo... tão passando pela fase irritando-papai-e-mamãe-afrescalhados... não que o Rents fosse se aproveitar de uma coisa dessas, tá ligado, mas com o Sick Boy a história já é bem diferente. Ele já enfiou as mão dentro da calça da Jill...

– Sei tudo sobre vocês, garotas, é aí que vocês escondem as drogas...

– Simon! Não tô com nada em cima! Simon! Siiimoon!...

Percebendo que ia rolar um escândalo, ele meio que libera a mina. Todo mundo meio que dá um riso nervoso, tentando fingir que era tudo uma brincadeira mesmo, e então elas vão embora.

– Talvez a gente se encontre mais tarde, gatinhas! – grita o Sick Boy.

– Só... – grita de volta a Jill, caminhando de costas pro Southern.

O Sick Boy meio que dá um tapa na coxa. – Devia ter levado essas putinhas pra casa e fudido elas até caírem mortas. Elas tavam ficando a fim – ele meio que diz isso pra si mesmo, e não pra mim e pro Rents.

O Rents começa a gritar e apontar o dedo.

– Si! Tem um porra dum esquilo bem no seu pé! Mata esse escroto!

O Sick Boy tá mais perto do bichinho e tenta atrair ele pra mais perto, mas ele se afasta um pouco, de um jeito bem esquisito, meio que arqueando o corpo todo e tal. Essas coisinha cinza-prateado são mágicas... saca?

O Rents pega uma pedra e joga em cima do esquilo. Eu me sinto meio mal e meu coração quase para quando a pedra passa zumbindo perto do bichinho. Quando o Rents vai pegar outra pedra, rindo que nem louco, eu impeço ele.

– Deixa ele, cara. Tipo assim, o esquilo não tá incomodando ninguém e tal! – eu odeio essa mania que o Mark tem de machucar bichos... isso é errado, cara. Cê não pode amar a si mesmo quando tem vontade de machucar os bichinhos desse jeito... tipo... que negócio é esse? O esquilo é um amor, porra. Ele tá na dele. É livre. Acho que é isso que o Rents não suporta. O esquilo é livre, cara.

O Rents continua dando risada enquanto eu seguro ele. Duas tias velhas meio afrescalhadas passam e ficam encarando a gente. Parecem meio com nojo e tal. O olho do Rents brilha.

– AGARRA ESSE ESCROTO! – grita pro Sick Boy, mas de um jeito que sabe que as tias vão escutar. – ENROLA COM CELOFANE PRO BICHO NÃO ARREBENTAR AO MEIO QUANDO CÊ METER A PICA NELE!

O esquilo continua fugindo do Sick Boy, meio que dançando, mas as tias velhas olham pra trás e parecem mesmo sentir desprezo pela gente, como se a gente e merda fosse a mesma coisa, saca? Eu também começo a dar risada e tal, mas não largo o Rents.

– Pra quem aquela puta horrorenda tá olhando? Mas que monstrengo de merda! – diz o Rents, alto o bastante pra que as donas escutem.

Elas se viram e começam a andar mais rápido. O Sick Boy grita: – VÃO SE FUDER, BUCETAS DO DESERTO DE GOBI! – depois se vira pra mim e diz: – Não saquei por que essas velhotas tavam chegando na gente. Ninguém comeria aquelas duas, nem mesmo por aqui e a essa hora. Prefiro meter o pau no meio de duas lixa de vidro.

– Vai se fuder! Cê comeria uma nenê de colo se ela tivesse pentelho – diz o Rents.

Acho que ele meio que se arrependeu logo depois de dizer isso e tal, por causa da Dawn, a garotinha da Lesley, que morreu daquele jeito escroto e tal, e todo mundo meio que sabia que o Sick Boy é que tinha embuchado ela...

Mas tudo que o Sick Boy responde é: – Vai se fuder, boqueteiro. Cê que é o São Jorge por aqui. Todas as minas que eu comi, e foram muuuitas, valeram a pena ser comidas.

Lembro na hora de uma mina de Stenhouse que uma vez o Sick Boy levou pra casa quando tava bêbado... não dá pra dizer que ela era grande coisa... acho que todo mundo tem seu calcanhar de aquiles, saca.

– Ei, lembra daquela mina de Stenhouse, hã, como era mesmo o nome dela?

– Pode parar por aí! Cê é um que não conseguiria uma trepada nem que entrasse num bordel com o pau ensanduichado entre dois cartões de crédito diferentes.

A gente começa a pegar no pé um do outro, depois caminhamos mais um pouco e eu começo a pensar na pequena Dawn, na garotinha, e naquele esquilo, livre, sem incomodar ninguém... e eles iam matar o bicho, sem mais nem menos, saca, e a troco de quê? Isso me deixa muito mal, e triste, e irritado...

Vou me afastar dessa gente. Me viro e caminho pra longe. O Rents vem atrás de mim. – Qualé, Spud... que porra é essa, cara?

– Cês iam matar o esquilo.

– É só uma porra dum esquilo, Spud. É uma praga... – ele diz, me abraçando pelos ombro.

– Talvez ele seja tipo assim, tão praga quanto eu ou você... aquelas tias afrescalhadas acham que gente como nós é uma praga e tal, isso dá direito delas matarem a gente? – digo.

– Desculpa, Danny... é só um esquilo. Desculpa, parceiro. Eu sei que cê curte bichos. Eu só, tipo... cê saca o que eu tô querendo dizer, Danny, tipo... que merda, saca, eu tô todo errado, Danny. Sei lá. O Begbie e tudo o mais... a heroína. Não sei o que eu tô fazendo com a minha vida... tá tudo fudido, Danny. Não sei mais o que tá rolando. Desculpa, cara.

Fazia muito tempo que o Rents não me chamava de “Danny”; agora ele não para de me chamar assim. Ele parece mesmo bem perturbado e tal.

– Ei... pega leve, bichano... são só tipo assim, bichos e tal... não se preocupa com essa merda, não... eu só tava pensando em coisinhas inocentes, tipo a garotinha Dawn, saca... não dá pra machucar essas coisas e tal...

Ele meio que me agarra e me dá um abraço. – Cê é um dos melhor, cara. Lembra disso. Isso não é conversa de bêbado nem de drogado, sou eu mesmo quem tá falando. É que se cê não tá detonado e diz pra outro cara o que acha dele acaba sendo chamado de maior viado da face da Terra... – Dou um tapinha nas costa dele, é tipo como se eu quisesse dizer a mesma coisa, mas ia meio que soar como se eu tivesse falando aquilo só porque ele falou primeiro. Mas eu acabo falando assim mesmo.

Escutamos a voz do Sick Boy atrás da gente. – Mas que casal de bichinhas. Ou entrem logo no meio do mato e se comam ou venham comigo e me ajudem a encontrar o Mendigo e o Matty.

Paramos de nos abraçar e damos risada. Nós dois sabemos que esse bichano, que esse Sick Boy, com todo seu desejo de sair rasgando tudo que é lixeira da cidade, também é um dos melhores e tudo o mais.


Cagando tudo


Desastre na Corte

A expressão do magistrado parece oscilar entre a pena e o desprezo, enquanto encara a mim e ao Spud no banco dos réus.

– Os senhores roubaram os livros da livraria Waterstone com a intenção de vendê-los – declara. Vender livros de merda. No cu, papagaio.

– Não – digo.

– Sim – diz o Spud, ao mesmo tempo. Nos viramos e olhamos um pro outro. Gastamos um tempão pra combinar nossa conversa e o cara não leva nem dois minutos pra estragar tudo.

O magistrado dá um suspiro brusco. O trabalho desse merda não é grande coisa, quando se para pra pensar. Deve ser muito cansativo ter que lidar com vagabundo o dia todo. Ainda assim, aposto que a grana é muito boa, e além de tudo ninguém forçou o cara a aceitar o emprego. Ele devia tentar ser um pouquinho mais profissional, um pouco mais pragmático, ao invés de ficar se esforçando tanto pra demonstrar que tá entediado.

– Sr. Renton, o senhor não tinha a intenção de vender os livros?

– Nem. Quer dizer, hã, não, Excelência. Eu pretendia lê-los.

– Então o senhor lê Kierkegaard. Fale um pouco sobre ele, sr. Renton – pede o viado arrogante.

– Eu me interesso por seus conceitos de subjetividade e verdade, particularmente por suas ideias a respeito de escolhas; a noção de que as escolhas genuínas surgem da dúvida e da incerteza, sem recurso à experiência ou aos conselhos de outros. Poderíamos dizer, com certa propriedade, que é uma filosofia existencial primariamente burguesa, e que assim busca minar a sabedoria coletiva da sociedade. Entretanto, é também uma filosofia liberadora, pois quando tal sabedoria coletiva da sociedade é negada, as bases que justificariam o controle social sobre o indivíduo são fragilizadas e... mas estou me alongando – calo minha boca. Esses caras odeiam espertinhos. É bem fácil acabar pegando uma fiança maior, ou até mesmo uma porra de uma sentença mais longa. Demonstre respeito, Renton, demonstre respeito.

O magistrado bufa, com desprezo. É um homem instruído, e tenho certeza de que conhece mais a respeito dos grandes filósofos do que um simplório como eu. O cara tem que ser inteligente pra cacete pra ser um porra de um juiz. Não é qualquer merda que pode fazer esse trabalho. Quase consigo escutar Begbie dizendo isso pro Sick Boy nas galerias.

– E o senhor, sr. Murphy, tinha a intenção de vender os livros, como vende todas as coisas que rouba, para custear seu vício em heroína?

– É bem por aí, cara... hã... cê sacou tudo e tal – diz Spud, balançando a cabeça com uma expressão que de pensativa logo se torna confusa.

– O senhor, sr. Murphy, é um ladrão reincidente. – Spud encolhe os ombros, como se quisesse dizer que a culpa não era dele. – Os relatórios indicam que o senhor ainda é viciado em heroína. O senhor também é viciado no ato de roubar, sr. Murphy. As pessoas precisam trabalhar duro para produzir os bens que o senhor rouba repetidamente. Outras pessoas precisam trabalhar duro para ganhar o dinheiro necessário para comprar esses bens. Até agora, as inúmeras tentativas de convencê-lo a abandonar esses crimes menores, mas persistentes, provaram-se inúteis. Por isso, o senhor está condenado a uma sentença de dez meses de detenção.

– Valeu... hã, quero dizer... tudo bem e tal...

O viado me encara. Puta que o pariu.

– Já o senhor, sr. Renton, é um caso diferente. Os relatórios dizem que o senhor também é viciado em heroína, mas que está tentando controlar seus problemas com a droga. O senhor alega que seu comportamento origina-se da depressão causada pela abstinência da droga. Estou disposto a aceitar isso. Também estou disposto a aceitar sua alegação de que queria apenas afastar o sr. Rhodes com um empurrão, para que ele parasse de atacá-lo, ao invés de fazer com que ele caísse. Sendo assim, vou liberá-lo de uma sentença de seis meses na condição de que o senhor continue a buscar um tratamento apropriado para seu vício. Assistentes sociais acompanharão seu progresso. Posso aceitar que a cannabis que o senhor trazia consigo destinava-se ao uso pessoal, mas não posso perdoar o uso de uma droga ilegal; mesmo que o senhor alegue que a utilize para combater a depressão que sofre por conta da abstinência de heroína. A posse dessa substância controlada lhe custará cem libras. Sugiro que, no futuro, o senhor encontre outras maneiras de combater a depressão. Se a exemplo de seu amigo Daniel Murphy, o senhor falhar em aproveitar essa oportunidade que lhe está sendo concedida e for novamente julgado neste tribunal, não hesitarei em recomendar uma pena de detenção. Fui claro?

Claro como água limpa, seu viado manipulável de merda. Eu amo você, seu cabeça de bosta.

– Muito obrigado, vossa excelência. Tenho plena consciência da frustração que venho causando à minha família e aos meus amigos, e que estou desperdiçando o tempo valioso deste tribunal. Entretanto, um dos elementos-chave da reabilitação é a capacidade de reconhecer que o problema existe. Tenho frequentado a clínica regularmente, e estou passando por uma terapia preventiva na qual me foram receitados metadona e temazepan. Não estou mais me dedicando ao autoengano. Com a ajuda de Deus, vencerei esta doença. Novamente, muito obrigado.

O magistrado me encara com atenção, pra ver se enxerga algum traço de zombaria no meu rosto. Nunca que ele vai conseguir. Ter que lidar com o Begbie me tornou especialista em ser cara de pau. É melhor ser cara de pau do que tomar um pau. Convencido de que não estou falando por falar, o retardado encerra as atividades. Caminho pra liberdade; o coitado do velho Spud vai pra trás das grades.

Um policial pede que ele se retire.

– Desculpa, parceiro – eu digo, me sentindo um babaca.

– Tudo bem, cara... Vou ficar livre da heroína, e é fácil conseguir haxixe em Saughton; mas vai ser meio que uma merda e tal... – diz, enquanto se afasta acompanhado por um homem da lei com cara de cu.

No saguão do lado de fora da sala do tribunal, minha mãe vem logo me abraçando. Parece cansada pra cacete, com os olhos rodeados por umas manchas pretas.

– Ah, meu garotinho, meu garotinho, o que vou fazer com você? – diz.

– Imbecil sem noção. Essa merda vai matar você – diz meu irmão Billy, sacudindo a cabeça.

Eu ia dizer alguma coisa pro viado. Ninguém convidou aquele merda pra aparecer no tribunal, e seus comentários idiotas são igualmente indesejáveis. Mas o Frank Begbie chegou perto bem quando eu tava prestes a abrir a boca.

– Rents! Boa, meu velho! Se deu muito bem, hein? Coitado do Spud, mas ele também se deu melhor do que a gente imaginava. Nem vai cumprir dez meses. Com bom comportamento ele sai com uns seis meses. Até menos, porra.

Sick Boy, parecendo um diretor de marketing, envolve a mim e a minha mãe em seus braços e sorri com um ar desprezível.

– Isso merece uma porra duma comemoração. Vamos pro Deacon? – sugere Franco. Como viciados, aceitamos sua sugestão, um por um. Ninguém tinha motivação alguma pra fazer qualquer outra coisa, e o trago vence por falta de adversários.

– Se você soubesse o que fez com seu pai... – minha mãe me encara, séria pra cacete.

– Idiota de merda. – Billy faz uma careta. – Que negócio é esse de roubar livros? – esse babaca tava me tirando do sério.

– Já faz mais de seis anos que eu venho roubando livros. Tenho quatro mil libras em livros na casa da mãe e no meu apartamento. Cê acha que eu comprei algum deles? Lucrei quatro mil roubando livros, seu imbecil.

– Ah, Mark, não pode ser, não todos aqueles livros... – o coração de minha mãe parecia ter quebrado em caquinhos.

– Mas agora já parei com isso, mãe. Eu sempre disse que quando me pegassem pela primeira vez, eu largava tudo. Depois disso, não dá mais pra correr o risco. É hora de pendurar as chuteira. Finito. Fim de papo – eu tava falando sério. Minha mãe deve ter percebido, porque mudou de assunto.

– E fale direito. Você também – diz, virando-se para Billy. – Não sei onde vocês aprenderam a falar desse jeito. Lá em casa é que não foi.

Billy ergue as sobrancelhas e me olha de um jeito estranho; devolvo a mesma expressão, em uma rara demonstração de fraternidade entre nós.

Todo mundo fica meio bêbado bem rápido. Minha mãe constrange a mim e a Billy, falando sobre sua menstruação. Só porque tem quarenta e sete anos e ainda menstrua, acha que precisa fazer com que todos saibam disso.

– Era uma enchente. Absorventes internos não me servem pra nada. É como tentar tapar um cano furado com uma edição do Evening News – disse, gargalhando alto e jogando a cabeça pra trás daquele jeito repugnante e indecente que eu conhecia tão bem, no estilo exagerei-nas-Carlsberg-Specials-lá-no-Leith-Dockers-Club. Percebo que minha mãe andou bebendo naquela manhã. Provavelmente misturou o álcool com o valium.

– Certo, mãe – eu digo.

– Não vá me dizer que sua velha mãe está constrangendo você – ela pinça minha bochecha fina entre seu polegar e seu indicador. – Só estou feliz por eles não terem tirado meu garotinho de mim. Ele odeia ser chamado assim. Vocês sempre vão ser meus garotinhos, os dois. Lembram quando eu cantava suas músicas prediletas quando vocês eram só umas coisinhas em carrinhos de bebê?

Cerrei os dentes com força, sentindo minha garganta secar e o sangue sumir de meu rosto. Claro que não lembro de porra nenhuma.

– O nenezinho da mamãe adora pão, pão, pão, o nenezinho da mamãe adora pão de manteiga... – começa a cantar, desafinada. O Sick Boy começa a acompanhá-la, alegre. Senti vontade de ter sido preso no lugar daquele sortudo do Spud.

– O nenezinho da mamãe quer outro pint? – pergunta o Begbie.

– É, fiquem cantando, desgraçados. Fiquem cantando, seus merdas! – a mãe do Spud entra no pub.

– Sinto muito por Danny, sra. Murphy... – começo.

– Sente muito? Eu mostro pra você o que é sentir muito! Se não fosse você e esse bando de inúteis desgraçados, meu Danny não estaria na porra da cadeia agora!

– Espere aí, Colleen querida. Entendo que você esteja aborrecida, mas isso não é justo – minha mãe fica de pé.

– Eu digo pra você o que é justo! Foi esse aí! – aponta pra mim, maldosa. – Foi esse aí que fez meu Danny se viciar naquela coisa. Agora o desgraçado fica lá, falando um monte de bobagem no tribunal. Foi esse aí e aquela duplinha desgraçada – pro meu alívio, o Sick Boy e o Beggars são incluídos em sua raiva.

Sick Boy não diz nada, mas ajeita aos poucos sua postura na cadeira com uma expressão de eu-nunca-fui-tão-insultado-em-toda-a-minha-vida, seguida por um sacudir de cabeça triste e superior.

– Essa porra não tá certa! – grita o Begbie, furioso. Não existem vacas sagradas pra esse viado, nem mesmo que tenham vindo de Leith e que seus filhos tenham acabado de ser mandados pra cadeia. – Nunca encostei nessa merda, e disse pro Rents e pro Spu... pro Mark e pro Danny que eles tavam loucos de ficar usando aquilo! O Sick... o Simon tá careta há meses, porra. – Begbie se levanta, encorajado por sua própria indignação. Começa a socar seu próprio peito com o punho fechado, como se quisesse impedir a si mesmo de esmurrar a sra. Murphy, e grita na cara dela: – PORRA, EU SOU O CARA QUE TAVA TENTANDO FAZER ELES PARAREM COM ESSA MERDA!

A sra. Murphy saiu correndo pra fora do pub. Vi a expressão em seu rosto; era de derrota total. Não apenas perdera seu filho pra prisão, mas a imagem que fazia dele sofreu um golpe. Senti pena daquela mulher e me irritei com o Franco.

– É, essa aí tá sempre atrás de confusão – comenta minha mãe, mas completa, pensativa: – Mas tenho pena dela. O filho acabou de ir pra cadeia – olha pra mim, balançando a cabeça. – Mesmo com todo o trabalho que dão, não dá pra viver sem eles. Como tá sua cria, Frank? – pergunta pro Begbie.

Senti um arrepio de desprezo ao perceber como pessoas como minha mãe são enganadas com facilidade por gente como o Franco.

– Tá ótimo, sra. Renton. Crescendo pra cacete.

– Me chame de Cathy, não me venha com isso de sra. Renton! Assim eu me sinto uma anciã!

– Você é – eu comento. Ela me ignora por completo e ninguém ri, nem mesmo Billy. Begbie e Sick Boy chegam a me encarar daquele jeito que os tios usam pra encarar um pirralho que tá sendo inconveniente, mas que não cabe a eles reprovar.

– É um garotinho, não é, Frank? – minha mãe pergunta ao seu colega de paternidade.

– É, isso aí. Eu disse pra Ju, eu disse, se nascer uma mina eu boto ela de volta lá pra dentro.

Naquela hora eu podia enxergar a “Ju” na minha frente, com aquela pele cinzenta e cor de mingau, o cabelo ensebado e o corpo magro com a carne flácida ainda dependurada, com o rosto congelado em uma expressão neutra e morta; incapaz até mesmo de sorrir ou de franzir o cenho. O valium cuidando de seus nervos enquanto o pirralho manda ver mais uma série de gritos apavorantes. Ela vai amar aquela criança na mesma medida em que o Franco vai ser indiferente ao pobre merdinha. Será um amor sufocante, complacente, incondicional e permissivo, que garantirá que o pirralho fique igualzinho ao seu papai. O nome do pirralho já tava na lista da Prisão Real de Saughton mesmo quando ele ainda tava no útero de June, do mesmo modo que o feto de um ricaço de merda está destinado a uma escola afrescalhada tipo a Eton. Enquanto o processo se desenvolve, o papai Franco estará onde está agora: enchendo a cara.

– E eu vou ser vovó logo, logo! – Deus, é inacreditável. Minha mãe olha pro Billy com veneração e orgulho. Ele dá um sorriso tímido, todo orgulhoso. Desde que fisgou a Sharon com seu caniço, virou o menino de ouro do meu pai e da minha mãe. Esqueceram o fato de que o viado levou a polícia mais vezes lá pra casa do que eu; ao menos tive a decência de nunca cagar na minha própria porta. Agora isso não quer mais dizer porra nenhuma. Só porque ele voltou pra porra do exército, agora por seis malditos anos, e embuchou uma vadia qualquer. Minha mãe e meu pai deviam é estar intimando o viado a dizer o que está fazendo com a própria vida. Mas não. Ele ganha sorrisos orgulhosos.

– Se nascer uma mina, Billy, faz ela devolver – repete o Begbie, dessa vez enrolando a língua. Já tá ficando bebum. Esse é outro que tá na bebedeira sabe-se lá desde quando.

– Esse é o espírito, Franco – o Sick Boy dá um tapinha nas costas do Begbie, tentando encorajar o maluco, com a intenção de que isso acabe fazendo ele cometer mais algumas das tosquices clássicas do Begbie. Nós colecionamos todas as citações mais estúpidas, sexistas e violentas pra melhorar as imitações que fazemos dele quando não tá por perto. A gente quase se mata de tanto rir sem parar. A brincadeira tem uma moral: tentar descobrir como ele reagiria se descobrisse. O Sick Boy começou até a fazer caretas pelas costas dele. Algum dia um de nós, ou nós dois, iremos longe demais e vamos acabar marcados por socos ou garrafadas ou submetidos à “disciplina do taco de beisebol”. (Uma de nossas citações de Begbie prediletas.)

Pegamos um táxi até Leith. O Begbie começou a resmungar sobre os “preços da cidade” e insistiu numa defesa totalmente irracional de Leith como centro de entretenimento. Billy concordou, querendo ficar mais perto de casa, imaginando que sua mina grávida ia ser mais fácil de acalmar se ele ligasse de um pub mais próximo.

O Sick Boy teria metido o pau em Leith com muito gosto, se eu não tivesse feito isso antes dele. Sendo assim, o viado adorou ligar pro táxi. Entramos num pub no largo da Walk; um pub do qual eu nunca gostei, mas onde sempre acabamos parando. O gordo Malcolm, do outro lado do balcão, me serviu uma vodca dupla por conta da casa.

– Ouvi falar que cê se deu bem. Muito bem, cara.

Dei de ombros. Uns caras mais velhos tavam tratando o Begbie como se ele fosse um astro de Hollywood, escutando sem reclamar uma de suas histórias que nem mesmo era muito engraçada e que ainda por cima provavelmente já tinham ouvido muitas outras vezes.

O Sick Boy pagou uma rodada, fazendo um baita esporro, sacudindo a grana de forma acintosa.

– BILLY! CERVEJA? SRA. RENTON... Ô CATHY! QUE CÊ QUER? GIM COM BÍTER E LIMÃO? – grita do balcão direto pra mesa do canto.

Percebi que o Bebgie, agora entretido em uma conversa suspeita com um babaca muito feio e cabeçudo, do tipo que se deve evitar a todo custo, passara o dinheiro pro Sick Boy comprar a bebida.

O Billy tava discutindo com a Sharon ao telefone.

– A porra do meu irmão se livrou de entrar em cana! Depois de roubar livros, atacar um funcionário da loja e de ser preso com posse de drogas. O espertinho de merda se deu bem. Até minha mãe tá aqui! Eu tenho direito de festejar, caralho...

Ele devia tá mesmo desesperado pra apelar pra saída do amor fraternal.

– Aquele ali é o Planeta dos Macacos – Sick Boy cochicha pra gente, mostrando com o queixo um sujeito que tava bebendo no pub. Parecia um figurante do filme. Como sempre, tava podre de bêbado e tentando se enturmar. Pro meu azar, fizemos contato visual e ele se aproximou.

– Interessado em cavalos? – pergunta.

– Não.

– Interessado em futebol? – gagueja.

– Não.

– Rúgbi? – agora parece desesperado.

– Não – respondo. Não dava pra saber se ele tava ali pra pegar mulher ou se só queria companhia. Não sei nem se ele próprio sabia. O otário acabou perdendo o interesse por mim e se virou pro Sick Boy.

– Interessado em cavalos?

– Não. Odeio futebol, rúgbi e essa merda toda. Mas eu gosto de filmes. Especialmente aquele Planeta dos macacos. Já viu esse? Eu curto pacas.

– Sim! Eu lembro desse! Planeta dos macacos. O porra do Charlton Heston. Roddy Mc... qual é mesmo o nome do garoto? Um tampinha. Cê sabe de quem eu tô falando. Ele sabe de quem eu tô falando! – diz o Planeta dos Macacos, virando pra nós.

– McDowall.

– Esse mesmo! – sorri, triunfante. Vira de novo pro Sick Boy. – Cadê tua gatinha hoje?

– Hein? De quem cê tá falando? – pergunta o Sick Boy, totalmente perdido.

– Aquela loirinha que tava com você outra noite.

– Ah, tá, essa aí.

– Uma bela duma bucetinha... se cê não se importa que eu diga isso e tal. Não quero ofender, velhinho.

– Certo, parceiro, não tem problema. É toda sua por cinquenta conto, e não tô brincando. – Sick Boy começa a falar mais baixo.

– Tá falando sério?

– Sim. Nada de esquisitice, só uma trepada normal. Custa cinquenta conto.

Eu não conseguia acreditar no que tava ouvindo. O Sick Boy não tava brincando. Tava dando uma de cafetão pra cima do Planeta dos Macacos, querendo ganhar grana em cima da Maria Anderson, uma viciada que ele comia de vez em quando nos últimos meses. O cara tava querendo prostituir a mina. Me senti mal pelo que ele tinha virado, pelo que todos nós tínhamos virado, e mais uma vez fiquei com inveja do Spud.

Puxo ele de lado. – Que é que tá pegando?

– Tá pegando que eu tô cuidando do numero uno. Qual é seu problema? Quando cê começou a trabalhar de assistente social?

– Isso é diferente, porra. Não tô sacando que porra tá acontecendo com você, amigo, não tô sacando mesmo.

– Ah, então agora cê vai dar uma de santinho, é?

– Não é isso, só que também não quero fuder com a vida de ninguém.

– Ah, não me vem com essa. Vai dizer que não foi você que fez o Tommy andar com o Seeker e aquela turma toda? – seu olhar era cristalino e traiçoeiro, sem traço algum de consciência ou compaixão. Se afastou e voltou pra perto do Planeta dos Macacos.

Eu ia dizer que o Tommy pôde fazer sua escolha, e a pequena Maria não. Tudo isso terminaria numa discussão sobre os limites de uma escolha, onde ela começava e onde terminava. Quantos picos alguém tem que levar antes do conceito de escolha se tornar obsoleto? Queria mesmo saber isso. Queria mesmo saber qualquer coisa, porra.

Como se a gente tivesse combinado, o Tommy entra no pub, acompanhado pelo Segundo Lugar, que tá acabado. O Tommy começou a se picar. Nunca tinha feito isso antes. A culpa é provavelmente nossa; provavelmente minha. A droga do Tommy sempre foi a anfetamina. Ele perdeu a cabeça depois da Lizzy. Tá ali, terrivelmente quieto, terrivelmente anestesiado. O Segundo Lugar não.

– O Rent Boy se deu bem! Mas que viado! – grita, esmagando minha mão.

Um coro de “só existe um Mark Renton” ecoa pelo pub. Willie Shane, velho e desdentado, grita muito alto, junto com o vô perneta do Mendigo, outro velho simpático. O Mendigo e dois de seus amigos psicóticos que eu nem conheço também tão cantando, junto com Sick Boy, Billy e até mesmo minha mãe.

O Tommy me dá um tapa nas costas. – Boa, cara – diz, e logo completa: – Tem heroína?

Digo a ele que pode esquecer, que saia dessa enquanto pode. Ele me diz, todo convencido, que consegue lidar com a droga. Já ouvi aquilo muitas vezes. Eu mesmo já disse isso, e provavelmente vou dizer de novo.

Estou cercado das pessoas que me são mais próximas, mas nunca me senti tão sozinho. Nunca, em toda a minha vida.

O Planeta dos Macacos acabou se enturmando com a gente. Pensar nesse cara comendo a pequena Maria Anderson não é nada agradável esteticamente. Se ele tentar falar com minha mãe, quebro um copo na cara de pus desse primata de merda.

O Andy Logan entra no pub. É um cara todo animado, que fede a pequenas infrações e cadeia. Conheci o Loags uns anos atrás, quando trabalhávamos de manobrista num campo de golfe da prefeitura, ganhando uma boa grana. Foi o cara que conferia os bilhetes na viatura do parque que nos ligou no esquema. Foi uma época lucrativa; eu nunca precisava gastar meu salário. Gosto do Loags, mas nossa amizade nunca foi adiante. Ele só consegue falar daquela época.

Todo mundo está nesse jogo de lembranças. Qualquer conversa começa com “lembra quando...”, mesmo agora que estávamos falando do coitado do Spud velho de guerra.

O Flocksy entrou no boteco e me chamou pro bar com um gesto. Perguntou se eu tinha heroína. Estou me desintoxicando. Que coisa louca. Foi irônico eu ter sido preso por roubar livros ao mesmo tempo que estou tentando me endireitar. Mas essa porra de metadona é foda. A gente fica todo nervosinho. Me pegou de jeito lá na livraria, quando aquele escroto com cara de cu tentou dar uma de herói.

Digo pro Flocksy que tô tentando ficar careta e ele sai fora sem dizer mais coisa alguma.

O Bill me vê falando com ele e segue o cara até o lado de fora, mas eu corro até ele e puxo seu braço.

– Eu vou quebrar a cara daquele escroto... – sussurra, entre os dentes.

– Deixa ele, o cara tá na boa – o Flocksy tá seguindo seu caminho pela rua, sem perceber nada disso, sem perceber nada além de algum sinal de que pode conseguir heroína.

– Escroto de merda. Cê merece tudo que aconteceu contigo por andar com esse tipo de gente.

Ele volta pro bar e senta de novo, mas só porque enxergou Sharon e June caminhando pela rua.

Quando o Begbie enxerga a June no pub, olha feio pra ela.

– Cadê o pirralho?

– Tá na casa da minha irmã – June responde, tímida.

Begbie desvia dela seus olhos belicosos, sua boca aberta e sua expressão fixa, tentando absorver essa informação e decidir como se sente a respeito; bem, mal ou indiferente. No fim das contas ele se vira pro Tommy e, afetuosamente, diz que ele é um baita viado.

O que eu tenho aqui? A fúria reacionária do Billy, um intrometido de merda. A Sharon me olhando como se eu tivesse duas cabeças. Minha mãe, bêbada e parecendo uma vadia, o Sick Boy... sendo escroto. Spud na cadeia. O Matty tá no hospital e ninguém se prestou a visitar ele, ninguém nem fala no cara, é como se ele não existisse. O Begbie... caralho, o Begbie encarando com ódio a June, que parece um esqueleto desarranjado dentro de um abrigo esportivo tenebroso, que até poderia ser um figurino razoável em outra pessoa, mas que nela apenas acentua suas formas desajeitadas.

Vou pro banheiro e quando termino de mijar percebo que não posso mais voltar e enfrentar toda aquela merda. Saio de fininho pela porta lateral. Ainda faltam catorze horas e quinze minutos pra eu poder receber minha próxima dose. Vício sustentado pelo Estado: ao invés de heroína, metadona, três cápsulas enjoativas por dia no lugar do pico. A maioria dos viciados da desintoxicação toma as três cápsulas de uma vez e depois sai atrás de um pico. Preciso esperar até a manhã seguinte. Decido que não posso esperar tanto. Vou pro Johnny Cisne tomar UM pico, só UMA MERDA DE PICO pra me ajudar a enfrentar o resto desse dia comprido e difícil.


Dilemas de um viciado Nº66

Se mexer é um desafio: mas não devia ser. Eu consigo me mexer. Já fiz isso antes. Tipo, nós humanos somos, por definição, matéria em movimento. Por que se mexer, afinal, quando cê tem tudo que precisa aqui mesmo? Mas logo eu vou ter que me mexer. Vou me mexer quando estiver mal o bastante; também sei disso por experiência própria. Mas é que eu simplesmente não consigo me imaginar passando mal o suficiente a ponto de querer me mexer. Isso me assusta, porque logo eu vou precisar me mexer.

Eu vou ser capaz disso, com certeza; com toda a certeza, porra.


Cachorros mortos

Ah... o inimigo ichtá à vichta, como teria dito o velho Bond, e olha a porra do visual do cara, ainda por cima. Corte de cabelo skinhead, jaqueta de aviador verde, botas Doc Martens de cano alto. O estereótipo do babaca. E logo atrás vem o au-au, seguindo fielmente seu dono. Pit bull, pit bosta, pit bunda... uma porra dum par de mandíbulas sobre quatro patas. Ah, ele tá mijando numa árvore. Aqui, totó, aqui.

A vantagem de morar em cima de um parque. Encaixo o animal em minha mira telescópica. Pode ser só imaginação minha, mas ela parece estar um pouquinho desajustada ultimamente, puxando pra direita. Ainda assim, Simôn é um atirador bom o suficiente pra compensar essa falha funcional do seu artefato tecnológico de confiança, esse velho rifle de pressão calibre 22. Conduzo a arma na direção do skinhead, mirando em seu rosto. Percorro seu corpo de cima a baixo, de cima a baixo... calma, baby... só mais um pouquinho... ninguém nunca deu tanta atenção a esse desgraçado, tanto carinho, tanto... sim, amor, em toda a sua vida. É uma sensação ótima, saber que você tem o poder de infligir tanta dor da janela da sua sala. Me chame de achachino invichível, Chenhora Moneypenny.

Mas é o pit bull que me interessa. Quero fazer ele se voltar contra o seu mestre, romper de uma só vez a tocante relação homem-animal e os testículos de seu dono. Espero que o pit bosta tenha mais colhões do que o rottweiler idiota no qual atirei outro dia. Acertei o grandalhão no lado do rosto. Tá achando que o filho da puta se voltou contra o panaca de seu mestre de abrigo esportivo? Coisíssima nenhuma, como diriam a Vera e a Ivy no Coronation Street. O palerma só ficou ganindo.

Eles me chamam de Sick Boy, a escória do loteamento, o mais sem noção dos mortos-vivos. Essa é pra você, Rex, ou Maguila, ou Rambo, ou Tyson ou seja lá a porra que seu dono imbecil e cabeça de merda usou pra te batizar. Isso é por todos os bebês que você chacinou, pelos rostos que desfigurou e por toda a merda que depositou em nossas ruas. Acima de tudo, é pela merda que largou nos parques, merda que sempre acaba encontrando um caminho até o corpo de Simôn quando ele dá um carrinho em sua posição de meio-campo do Abbeyhill Athletic na Liga Amadora Dominical de Lothian.

Agora eles estão um ao lado do outro, homem e animal. Aperto o gatilho e recuo um passo.

Excelente! O cachorro late e pula pra cima do skinhead, encaixando suas mandíbulas no braço do cara. Belo tiro, Cháimon. Ora, Sean, obrigado.

– SHANE! SHANE! SEU VIADO! EU VOU TE MATAR, PORRA! SHAAAAANNE! – o rapaz está gritando e chutando o cachorro, mas suas botas são inúteis contra esse monstro. Ele se grampeou ao braço, e esses bichos não soltam. O único atrativo pelo qual os babacas querem ter um deles é a sua ferocidade. O rapaz está enlouquecendo mesmo, primeiro se debatendo, depois tentando permanecer imóvel porque debater-se dói demais, alternando entre ameaças e súplicas à sua impiedosa máquina de matar. Um velho se aproxima pra tentar ajudar, mas recua assim que o cachorro gira os olhos ao redor e rosna pelo nariz, como quem diz “Cê é o próximo, ô viado”.

Desço as escadas em velocidade máxima, empunhando o taco de beisebol de alumínio. É isso que eu estava esperando, esse era o objetivo final. Chamem o caçador. Minha boca está seca de expectativa. É o safári do Sick Boy. Tem um probleminha pra vochê recholver, Cháimon. Acho que posso dar um jeito na questão, Sean.

– ME AJUDA! ME AJUDA! – o skinhead está guinchando. Ele é mais jovem do que eu pensava.

– Tá tudo bem, amigo. Fica calmo – digo pra ele. Não tema, Simôn está aqui.

Me aproximo do cachorro por trás, sorrateiramente. Não quero que o desgraçado solte a mordida e venha pra cima de mim, embora a chance de que isso aconteça seja mínima. O sangue está escorrendo do braço do cara e da boca do cachorro, encharcando a lateral da jaqueta do rapaz. O cara acha que vou esmagar a cabeça do cachorro com o taco, mas isso seria como enviar o Renton ou o Spud pra satisfazer sexualmente a Laura McEwan.

Ao invés disso, levanto a coleira do cachorro gentilmente e enfio o cabo do taco por baixo dela. Eu torço, e torço... Torcendo e gritando... Mesmo assim, o viado resiste. O skinhead está caindo de joelhos, prestes a apagar com a dor. Apenas continuo torcendo, e posso sentir os músculos grossos do pescoço do cachorro começando a ceder, a relaxar. Continuo torcendo. Let’s twist again, like wi did last suhmah.13

O cachorro deixa escapar uma série de engasgos horrendos pelo nariz e pelas mandíbulas cerradas, conforme vou estrangulando ele até a morte. Mesmo durante seus espasmos finais e depois, quando já está inerte como um pacote de batatas fritas, ele mantém a mordida. Retiro o taco da coleira pra ajudar a alavancar e abrir sua mandíbula, libertando o braço do cara. A essa altura a polícia já chegou e eu enrolei o braço do rapaz com o que sobrou da sua jaqueta.

O skinhead fica me cobrindo de elogios pra polícia e pros enfermeiros da ambulância. Está chateado com Shane, ainda não entende o que transformou esse querido animal de estimação que “nunca machucou uma mosca”, o cara disse isso mesmo, largou esse clichê tenebroso, em um monstro descontrolado. Echach bechtach podem che tranchformar a qualquer chegundo.

Enquanto o colocavam na ambulância, o jovem policial sacudiu a cabeça. – Que estupidez. Esses bichos são assassinos. Ter um desses faz bem pro ego desses babacas, mas cedo ou tarde eles sempre se tornam agressivos.

O policial mais velho me interroga educadamente sobre minha necessidade de possuir um taco de beisebol, e digo pra ele que é segurança doméstica, já que houve muitas invasões de domicílio na área. Não que Simôn, explico, pudesse um dia sonhar em fazer lei com as próprias mãos, mas, enfim, isso ajuda a dar uma certa tranquilidade. Me pergunto se alguma vez alguém desse lado do Atlântico comprou um taco de beisebol com a intenção de jogar beisebol.

– Posso compreender isso – diz o policial velho. Aposto que compreende, seu otário. Och achentech polichiaich chão um tanto palermach, não é, Sean? Elech não imprechionam muito não, Cháimon.

Os caras estão me dizendo que sou um sujeito corajoso, e que vão me recomendar para uma menção de honra. Que é icho, obrigado, polichial, mach não foi nada.

O Sick Boy vai dar um pulinho na Marianne essa noite pra um pouco de diversão doentia. Posição cachorrinho certamente estará no cardápio, ainda que apenas como uma homenagem a Shane.

Estou voando alto como uma pipa e excitado como um estábulo cheio de garanhões. Está sendo uma porra dum dia magnífico.


Em busca do homem interior

Nunca fui preso por causa de heroína. No entanto, uma porrada de caras fizeram suas tentativas de me reabilitar. Reabilitação é besteira. Às vezes eu acho que preferiria ir pra trás das grades. Reabilitação significa a negação do eu.

Já fui encaminhado a diversos orientadores, com formações variando da psiquiatria pura à assistência social, passando pela psicologia. Doutor Forbes, o psiquiatra, usava técnicas de orientação não diretivas, baseando sua abordagem em maior parte na psicanálise freudiana. Isso envolvia me fazer falar sobre minha vida pregressa e focar nos meus conflitos não resolvidos, provavelmente supondo que a identificação e resolução de tais conflitos removeriam a raiva que alimenta meu comportamento autodestrutivo, comportamento esse que se manifesta no meu uso de drogas pesadas.

Uma conversa típica:

Dr. Forbes: Você mencionou seu irmão, o que tinha a, hã, deficiência. Aquele que morreu. Podemos falar sobre ele?

(pausa)

Eu: Por quê?

(pausa)

Dr. Forbes: Você reluta em falar sobre o seu irmão?

Eu: Não. Só não entendo qual a relevância disso em relação à minha dependência de heroína.

Dr. Forbes: Parece que você iniciou o consumo pesado mais ou menos na época da morte do seu irmão.

Eu: Muita coisa aconteceu por aquela época. Realmente não tenho certeza da relevância de isolar a morte do meu irmão de todo o resto. Fui pra Aberdeen na ocasião. Pra universidade. Odiei. Aí comecei a trabalhar nas balsas que cruzam o canal, pra Holanda. Acesso a qualquer tipo de bagulho que se possa desejar.

(pausa)

Dr. Forbes: Gostaria de retornar para Aberdeen. Então você odiava Aberdeen?

Eu: É.

Dr. Forbes: O que você odiava em Aberdeen?

Eu: A universidade. Os funcionários, os alunos e tudo isso. Eu achava que eles eram uns chato de classe média.

Dr. Forbes: Entendo. Você foi incapaz de estabelecer relacionamentos com as pessoas de lá.

Eu: Não foi tanto uma incapacidade, mas sim falta de vontade, embora eu ache que, pros seus propósitos, dá na mesma (sorriso descompromissado do doutor Forbes)... eu não tinha nenhum interesse em qualquer filha da puta de lá.

(pausa)

Quer dizer, eu não conseguia mesmo ver o sentido daquilo. Sabia que não ia permanecer lá por muito tempo. Se eu quisesse jogar conversa fora, ia prum pub. Se eu quisesse trepar, ia numa prostituta.

Dr. Forbes: Você se envolveu com prostitutas?

Eu: Sim.

Dr. Forbes: Isso aconteceu porque lhe faltou confiança na sua habilidade para formar laços sociais e sexuais com as mulheres da universidade?

(pausa)

Eu: Não, eu cheguei a conhecer algumas minas.

Dr. Forbes: O que aconteceu?

Eu: Eu só tava interessado em sexo, e não num relacionamento. Não tinha motivação suficiente pra disfarçar esse fato. Eu via essas mulheres somente como meios de satisfazer meus anseios sexuais. Decidi que era mais honesto ir numa prostituta ao invés de fazer um jogo de enganação. Eu era um filho da puta cheio de moral naquela época. Então torrei o dinheiro da minha bolsa em prostitutas e roubei comida e livros. Foi isso que deu início aos roubos. Não foi a heroína, na verdade, embora ela não tenha ajudado.

Dr. Forbes: Mmmm. Podemos voltar ao seu irmão, aquele com a deficiência? Como você se sentia em relação a ele?

Eu: Não tenho muita certeza... olha, o cara simplesmente era fora de órbita. Ele não estava ali. Totalmente paralisado. Tudo que fazia era ficar sentado na cadeira com a cabeça inclinada pro lado. Só conseguia piscar e engolir. Às vezes fazia uns barulhinhos... era mais um objeto do que uma pessoa.

(pausa)

Acho que eu tinha ressentimentos em relação a ele quando era mais jovem. Quer dizer, minha mãe levava ele pra rua num carrinho de bebê. Tipo, aquela coisa grande, hipertrofiada, dentro de um carrinho de bebê. Eu e meu irmão mais velho, o Billy, sofríamos gozação dos outros meninos. A gente tinha que ouvir “seu irmão é mongoloide”, “seu irmão é um zumbi” e esse tipo de merda. Eram só crianças, eu sei, mas não era isso que parecia na época. E como eu era alto e desajeitado quando pequeno, comecei a acreditar que tinha algo errado comigo e tal, que eu era um pouco como o Davie...

(longa pausa)

Dr. Forbes: Então você sentia ressentimento em relação ao seu irmão.

Eu: Sim, tipo, quando era menino, criança pequena. Daí ele foi pro hospital. Acho que foi, tipo assim, problema resolvido, saca. Meio que fora de vista, fora do pensamento. Eu visitava ele às vezes, mas não parecia haver sentido algum. Nada de interação, tá ligado? Eu via aquilo somente como uma peça cruel que a vida tinha pregado. O pobre Davie recebeu as piores cartas possíveis. Triste pra caralho, mas cê não pode ficar se lamentando disso pelo resto da vida. Ele tava no melhor lugar pra ele, recebendo bons cuidados. Quando ele morreu, me senti culpado pelo ressentimento, culpado por talvez ter me esforçado menos do que podia. Mas o que se pode fazer?

(pausa)

Dr. Forbes: Você já tinha falado alguma vez sobre estes sentimentos?

Eu: Não... bem, talvez eu tenha mencionado pra minha mãe e pro meu pai...

Era assim que a coisa ia. Um monte de assuntos trazidos à tona. Alguns banais, alguns pesados, alguns chatos, alguns interessantes. Às vezes eu dizia a verdade, às vezes eu mentia. Quando mentia, às vezes dizia as coisas que achava que ele queria ouvir, e às vezes dizia coisas que achava que poderiam provocar ou confundir o cara.

Mas que porra de conexão podia ter entre qualquer coisa daquelas e meu consumo de heroína, isso eu não sabia.

Mesmo assim, aprendi algumas coisas com base nas revelações de Forbes e nas minhas próprias pesquisas sobre a psicanálise e sobre como meu comportamento devia ser interpretado. Tenho um relacionamento não resolvido com meu irmão falecido, Davie, já que fui incapaz de expressar ou lidar com meus sentimentos em relação à sua vida catatônica e morte subsequente. Nutro sentimentos edipianos em relação à minha mãe e uma consequente inveja não resolvida em relação ao meu pai. Meu vício é anal em conceito, visando atenção, sim, mas ao invés de reter as fezes pra me rebelar contra a autoridade paterna eu tô entupindo meu corpo de heroína pra declarar meu poder sobre ele vis-à-vis a sociedade em geral. Loucurada, hein?

Tudo isso pode ou não ser verdade. Refleti sobre boa parte dessas coisas e estou disposto a explorá-las. Não fico na defensiva diante de nada disso. Contudo, sinto que isso é no máximo periférico no que diz respeito ao meu vício. Falar exaustivamente a respeito com certeza não resultou em porra nenhuma. Acho que o Forbes está tão perdido quanto eu.

Molly Greaves, a psicóloga clínica, preferia dar atenção ao meu comportamento e às maneiras de modificá-lo, ao invés de investigar suas causas. Era como se Forbes tivesse feito a sua parte, e agora era o momento de me consertar. Foi então que comecei o programa de redução de uso, que simplesmente não funcionou, e depois o tratamento com metadona, que me deixou pior.

Tom Curzon, o orientador da agência de drogas, um cara com antecedentes de trabalho social ao invés de medicina, curtia a orientação rogeriana centrada na pessoa. Fui à Biblioteca Central e li o Tornar-se pessoa, de Carl Rogers. Achei o livro uma merda, mas devo admitir que Tom pareceu me conduzir a um lugar mais próximo de onde eu achava que a verdade podia estar. Eu desprezava a mim mesmo e ao mundo porque falhava ao enfrentar minhas próprias limitações, bem como as da vida.

A aceitação de limitações autodestrutivas parecia então constituir a saúde mental, ou o comportamento não desviante.

Sucesso e fracasso significam simplesmente a satisfação e a frustração do desejo. O desejo pode ser predominantemente intrínseco, baseado em nossos próprios anseios individuais, ou extrínseco, estimulado principalmente pela publicidade ou por modelos de comportamento social tais como nos são apresentados pela mídia e pela cultura popular. Tom suspeita que meu conceito de sucesso e fracasso opera somente num nível individual, ao invés de num nível individual e social. Devido a essa incapacidade de reconhecer a recompensa social, o sucesso (e o fracasso) são sempre experiências efêmeras pra mim, uma vez que não podem ser sustentadas pelo sistema socialmente amparado de compensações da riqueza, poder, status etc., e tampouco, no caso de fracasso, pelo estigma ou reprovação. Portanto, de acordo com Tom, não adianta nada me dizer que eu fui bem nas provas, ou consegui um bom emprego, ou arranjei uma mina gata. Esse tipo de aclamação não significa nada pra mim. É claro que eu gosto dessas coisas no momento, ou por si mesmas, mas seu valor não pode ser sustentado porque não há reconhecimento da sociedade que lhes dá o valor. O que o Tom está tentando dizer, acho, é que tô pouco me fudendo. Por quê?

Então voltamos pra minha alienação da sociedade. O problema é que Tom se recusa a aceitar minha visão de que a sociedade não pode ser transformada a ponto de se tornar significativamente melhor, ou de que eu não posso me transformar pra me encaixar nela. Tal estado de coisas induz uma depressão em mim, toda a raiva é direcionada pra dentro. Isso que é a depressão, dizem. Contudo, a depressão também resulta em desmotivação. Um vazio cresce dentro de você. A heroína preenche o vazio, e também ajuda a satisfazer minha necessidade de me destruir, mais um jeito de direcionar a raiva pra dentro.

Portanto, nisso eu basicamente concordo com o Tom. O que nos separa é que ele se recusa a enxergar esse quadro em sua total desolação. Ele acredita que sofro de uma autoestima baixa, e que estou me recusando a aceitar isso ao projetar a culpa na sociedade. Ele acha que minha maneira de emascular as recompensas e elogios (e, de modo oposto, a condenação) que a sociedade me dispõe não é uma rejeição desses valores em si, mas um sinal de que eu não me sinto bem o suficiente (ou mal o suficiente) comigo mesmo pra aceitá-los. Ao invés de sair e dizer “eu acho que não possuo estas qualidades” (ou “eu acho que sou melhor do que isso”), eu digo: “É tudo um monte de merda, de qualquer jeito.”

Logo antes de dizer que não queria mais me ver quando comecei a me drogar pela enésima vez, a Hazel me disse: – Você só quer se acabar nas drogas pra que todo mundo veja como você é profundo e complexo. Isso é patético e entediante pra caralho.

De certa forma, prefiro a visão da Hazel. Há um elemento de ego ali. A Hazel compreende as necessidades do ego. Ela veste manequins na vitrine de uma loja de departamentos, mas descreve a si mesma como uma “artista de mostruários ao consumidor” ou algo parecido. Por que eu deveria rejeitar o mundo, me considerar melhor que ele? Porque sim, é por isso. Porque eu sou melhor, e pronto.

O desfecho dessa atitude é que fui enviado a essa merda de terapia/orientação. Eu não queria tudo isso. Era isso ou a cadeia. Tô começando a achar que o Spud levou a melhor. Essa merda turva a água pra mim, confunde as questões ao invés de esclarecer. Basicamente, tudo que eu peço é que esses viados cuidem de sua própria vida, que vou fazer a mesma coisa. Por que será que, só porque você usa drogas pesadas, qualquer babaca se sente no direito de analisar e dissecar você?

A partir do momento que você aceita que eles têm esse direito, embarca a seu lado numa busca pelo cálice sagrado, essa coisa que nos faz seguir adiante. Então você vai acatar o que eles dizem, deixando-se enganar por qualquer teoria comportamental autopiedosa que escolham pra encaixar em você. Aí você passa a pertencer a eles, não mais a você mesmo. A dependência se transfere da droga pra eles.

A sociedade inventa uma intrincada lógica falsa pra absorver e mudar as pessoas que têm um comportamento fora do normal. Suponhamos que eu conheça todos os prós e contras, que saiba que terei uma vida curta, que tenha uma cabeça no lugar etc. etc., mas que ainda assim queira usar heroína. Eles não vão deixar. Não vão deixar porque isso é visto como um sinal de seu próprio fracasso. O fato de você simplesmente escolher rejeitar o que eles oferecem. Nos escolha. Escolha a vida. Escolha pagamentos de hipoteca. Escolha máquinas de lavar. Escolha carros. Escolha ficar sentado num sofá assistindo a programas de auditório que atrofiam a mente e esmagam o espírito, enfiando uma merda de junk food goela abaixo. Escolha apodrecer mijando e se cagando em casa, um constrangimento total pros pirralhos egoístas e fudidos que você gerou. Escolha a vida.

Bem, eu escolho não escolher a vida. Se os viados não conseguem lidar com isso, a porra do problema é deles. Como diz Harry Lauder, eu só quero seguir em frente até o fim da estrada...


Prisão domiciliar

A cama me é familiar, ou pelo menos a parede diante dela é. Paddy Stanton, a lenda dos Hibs, tá olhando pra mim com suas costeletas estilo anos 70. O Iggy Pop tá ali, esmagando uma pilha de discos com um martelo. Meu velho quarto no lar paterno. Minha cabeça luta para reconstituir o modo como vim parar aqui. Consigo me lembrar da casa do Johnny Cisne, e depois de me sentir como se estivesse morrendo. Então tudo volta: Cisnezinho e Alison me levam escada abaixo, me colocam num táxi e sou levado às pressas pra enfermaria.

O engraçado é que, logo antes disso, lembro de ter me gabado que nunca tinha sofrido uma overdose na vida. Tem uma primeira vez pra tudo. Foi culpa do Cisnezinho. O bagulho dele normalmente é misturado, então você sempre bota aquele chorinho na colher pra compensar. Então o que é que o viado faz? Me vende uma pura. Tira seu fôlego, literalmente. Como bom retardado que é, o Cisnezinho deve ter dado o endereço da minha mãe pra eles. Portanto, aqui estou eu, depois de alguns dias no hospital estabilizando minha respiração.

Aqui estou eu no limbo do vício; enjoado demais pra dormir, cansado demais pra ficar acordado. Um mundo além da imaginação onde nada é real pros meus sentidos, exceto a onipresença do sofrimento e da dor esmagadora no meu corpo e na minha mente. Percebo, assustado, que minha mãe tá ali, sentada na minha cama, me encarando em silêncio.

Assim que percebo isso, sinto um desconforto tão grande que ela bem que poderia estar sentada em cima do meu peito.

Ela coloca a mão na minha testa suada. O toque dela me dá uma sensação horrível, arrepiante, violadora.

– Cê tá fervendo, rapazinho – diz, suavemente, sacudindo a cabeça, preocupação estampada no rosto.

Tiro a mão de baixo dos cobertores pra afastar a mão dela pro lado. Interpretando mal o meu gesto, ela segura minha mão entre as suas duas e aperta com força, impedindo qualquer movimento. Tenho vontade de gritar.

– Vou ajudar você, filho. Vou ajudar você a lutar contra essa doença. Cê vai ficar aqui comigo e com seu pai até melhorar. A gente vai vencer essa, meu filho, vai vencer!

Seus olhos emitem um olhar intenso e vidrado, e a sua voz tem um fervor quase religioso.

Pode crer, mamãe, pode crer.

– Mas cê vai conseguir superar isso, filho. O doutor Mathews disse que na verdade é como se fosse uma gripe das boas, essa abstinência – ela me diz.

Quando foi a última vez que o velho Mathews teve uma síndrome de abstinência? Gostaria de trancar aquele velho louco e perigoso numa cela acolchoada por duas semanas e dar pra ele um par de injeções de diamorfina por dia, depois abandonar o viado por alguns dias. Ele ia ficar implorando por mais depois disso. Eu só ia sacudir a cabeça e dizer: Vai com calma, parceiro. Qual é a porra do problema? É como se fosse uma gripe das boas.

– Ele me deu temazepan? – eu pergunto.

– Não! Eu disse pra ele, nada dessas porcarias. Cê ficou pior ainda quando parou de tomar aquilo do que com a heroína. Cãibras, enjoo, diarreia... cê ficou num estado infernal. Chega de drogas.

– Quem sabe eu poderia voltar pra clínica, mãe – sugiro, cheio de esperança.

– Não! Nada de clínicas. Nada de metadona. Aquilo deixou você pior ainda, filho, cê mesmo disse. Cê mentiu pra gente, filho. Pros seus próprios pais! Cê tomava a metadona e ainda assim saía pra se picar. A partir de agora, filho, a interrupção vai ser total. Cê vai ficar aqui, onde posso estar de olho em você. Já perdi um menino, não vou perder outro! – Lágrimas inundaram os olhos dela.

Coitada da mãe, ainda se culpando por aquele gene fudido que fez meu irmão Davie nascer parecido com um repolho. A culpa que ela sentia, depois de lutar ao lado dele por anos, por ter colocado o cara no hospital. A desolação com a morte dele, ano passado. A mãe sabe o que todo mundo pensa dela, os vizinhos e tal. Acham ela excêntrica e insolente por causa do cabelo tingido de loiro, das roupas jovens demais pra idade dela e de seu consumo livre de Carlsberg Special. Acham que ela e o meu pai usaram a deficiência grave do Davie pra sair do Fort e descolar esse belo apartamento à beira do rio na Associação de Moradia, e depois, cinicamente, despejaram o pobre coitado numa pensão protegida.

Fodam-se os fatos, essas coisas banais, as pequenas invejas se tornam parte da mitologia num lugar como o Leith, um lugar cheio de viados intrometidos incapazes de cuidar da própria vida. Um lugar de brancos fudidos e despossuídos num país fudido cheio de brancos fudidos e despossuídos. Alguns dizem que os irlandeses são o lixo da Europa. Isso é besteira. São os escoceses. Os irlandeses tiveram peito pra ganhar o seu país de volta, ou pelo menos a maior parte dele. Lembro de ter ficado mordido quando o irmão do Nicksy, lá em Londres, descreveu os escoceses como “negões com cara de mingau”. Agora percebo que a única coisa ofensiva naquele comentário era o racismo contra o povo negro. Fora isso, acerta em cheio. Qualquer um pode dizer isso. Os escoceses dão bons soldados. Como meu irmão, Billy.

Também suspeitam do meu velho. De seu sotaque de Glasgow, do fato de que, desde que se tornou supérfluo para a Parson’s, ele tem arriscado a sorte nos mercados de Ingliston e East Fortune, ao invés de ficar sentado no balcão do Strathie resmungando contra tudo.

Eles são pessoas boas, e também são bons comigo, mas não existe jeito nesse mundo deles poderem avaliar o que eu sinto, o que eu preciso.

Me proteja daqueles que desejam me ajudar.

– Mãe... agradeço o que cê tá tentando fazer, mas só preciso de uma dose, pra me livrar aos poucos da droga. Tipo, só a última... – eu imploro.

– Esquece, filho – meu velho entrou no quarto sem eu ouvir. A velha nem tem oportunidade de falar. – Acabou o seu barato. É melhor cê entrar na linha, meu chapa, tô avisando.

Seu rosto parece petrificado, o queixo se projetando pra frente, os braços pendendo ao lado do corpo como se estivesse preparado pra sair na porrada comigo.

– Tá... certo – murmuro sofridamente de baixo do acolchoado. A mãe coloca uma mão protetora no meu ombro. Nós dois regredimos.

– Desperdiçou tudo – ele recrimina, e então lista as acusações: – Curso de aprendiz. Universidade. Aquela menina legal com quem cê andava saindo. Cê teve tantas oportunidades, Mark, e estragou todas.

Ele nem precisa falar sobre como ele mesmo nunca teve oportunidades crescendo em Govan, abandonando a escola aos quinze e se tornando um aprendiz. Isso está implícito. Mas quando cê para pra pensar, não é muito diferente de crescer no Leith, abandonar a escola aos dezesseis e se tornar um aprendiz. Principalmente porque ele não cresceu numa época de desemprego em massa. Apesar disso, não estou em condições de discutir e, mesmo que estivesse, isso é inútil contra os weedjies. Nunca conheci um weedjie que não pensasse que eles são os únicos proletários sofredores da Escócia, da Europa ocidental, do mundo. A experiência dos weedjies com a adversidade é a única experiência relevante que existe. Tento outra sugestão.

– Hã, talvez eu possa voltar pra Londres. Tipo, arranjar um emprego – tô quase delirando. Imagino que o Matty está no quarto. – Matty... – acho que falei em voz alta. A porra da dor tá começando, também.

– Cê acha que tá no mundo do bem-bom, filho. Cê não vai pra lugar nenhum. Se cê cagar nas calça, quero ficar sabendo.

Não tinha muita chance disso acontecer. A rocha que se compactou nas minhas tripas teria que ser removida cirurgicamente. Eu precisaria ficar me forçando a engolir leite de magnésia por dias e dias até conseguir algum resultado.

Quando o velho deu no pé, consegui persuadir minha mãe a me dar uns valiuns dela. Ela ficou viciada neles por seis meses depois que o Davie morreu. O lance é que, depois de se livrar do valium, ela se acha uma especialista em reabilitação de usuários de drogas. Pelamordedeus, mamãe querida, tamos falando de heroína.

Tô condenado à prisão domiciliar.

A manhã não foi fácil, mas foi brincadeira de criança comparada com a tarde. O velho retornou de sua missão em busca de informação. Bibliotecas, estabelecimentos de saúde e escritórios de serviço social foram visitados. Pesquisas foram levadas a cabo, conselhos foram recolhidos, panfletos foram obtidos.

Ele queria me levar pra fazer um teste de HIV. Não quero passar por toda aquela merda de novo.

Levanto pro chá, fraco, curvado e fragilizado ao descer pelas escadas. Cada movimento faz meu sangue decolar pra minha cabeça palpitante. Chegou um ponto em que achei que ela simplesmente ia arrebentar e se abrir, como um balão, fazendo sangue, fragmentos de crânio e massa cinzenta espirrarem no papel de parede cor de creme da mãe.

A velha me enfia na poltrona macia ao lado da lareira, de frente pra tevê, e coloca uma bandeja no meu colo. Estou me contorcendo por dentro, de qualquer modo, mas o picadinho parece tenebroso.

– Eu já disse que não como carne, mãe – reclamo.

– Cê sempre gostou do seu picadinho com batatas. Foi nisso que cê errou, filho, não comendo as coisas certas. Cê precisa de carne.

Aparentemente, agora existe um nexo causal entre o vício em heroína e o vegetarianismo.

– É um bom picadinho de bife. Cê vai comer – diz o meu pai. Isso é ridículo, porra.

Naquele exato momento, pensei em correr até a porta, mesmo vestindo abrigo e chinelos. Como se tivesse lido a minha mente, o velho mostra um molho de chaves.

– A porta fica trancada. Tô colocando uma tranca no seu quarto, também.

– Isso é fascismo, porra – protesto, com os sentimentos feridos.

– Não me venha com as suas merdas. Pode chorar como quiser. Se isso é o necessário, é isso que cê vai ter. E olha o jeito que cê fala em casa.

A mãe explode num discurso apaixonado: – Eu e o seu pai, filho, não é que a gente queira isso. Tipo assim, não é nada disso. É porque a gente ama você, filho, cê é tudo que a gente tem, você e o Billy. – A mão do meu pai cai sobre a dela.

Não consigo engolir minha comida. O velho não tá preparado pra chegar ao ponto de me alimentar à força, portanto se vê obrigado a aceitar o fato de que um bom picadinho de bife vai pro lixo. Não exatamente pro lixo, porque ele acaba comendo o meu. Ao invés disso, tomo um pouco de sopa de tomate Heinz gelada, que é a única coisa que aguento quando estou mal. Parece que abandonei o meu corpo por algum tempo, enquanto assistia um programa de auditório na tevê. Conseguia escutar meus coroas conversando, mas não conseguia tirar os olhos do apresentador feioso do programa e virar minha cabeça para encarar meus pais. A voz do pai quase parecia estar saindo do aparelho.

– ... diz aqui que a Escócia tem oito por cento da população do Reino Unido, mas dezesseis por cento dos casos de HIV... Quais são os placares, senhorita Ford?... Edimburgo tem oito por cento da população da Escócia, mas mais de sessenta por cento dos casos escoceses de infecção do HIV, de longe o maior índice da Grã-Bretanha... Daphne e John marcaram onze pontos, mas Lucy e Chris têm quinze!... diz que eles descobriram esses caras que tavam fazendo exame de sangue pra alguma outra coisa em Moorhouse, hepatite ou algo assim, e descobriram a escala do problema... oooh... oooh... má sorte para os perdedores com espírito esportivo, vamos dar uma mãozinha a eles então, vamos dar uma mãozinha... os trastes que fizeram isso com o garoto, se eu descobrir o nome deles, vou juntar uma turma e dar um jeito neles com minhas próprias mãos, a polícia obviamente não tá nem aí, deixando eles venderem essa porcaria nas ruas... não vai embora de mãos vazias... mesmo que ele tenha o HIV, não é uma sentença de morte automática. É só isso que tô dizendo, Cathy, não é uma sentença de morte automática... Tom e Sylvia Heath de Leek, em Staffordshire... ele diz que não andou compartilhando agulhas, mas ele já demonstrou ser um mentiroso antes... aqui diz, Sylvia querida, que você conheceu Tom quando ele estava dando uma olhada dentro do seu capô, oooh... só tamos falando em “se” agora, Cathy... ele estava consertando seu carro que tinha ido pra oficina, oh, entendo... espero que ele tenha tido mais bom senso... o primeiro jogo se chama “Atire pra Matar”... mas não é uma sentença de morte automática... e quem melhor pra nos mostrar as cordas do que meu velho amigo da Sociedade Real de Arco e Flecha da Grã-Bretanha, o primeiro e único Len Holmes!... é só isso que tô dizendo, Cathy...

Comecei a sentir uma náusea paralisante e a sala começou a girar. Caí da cadeira e vomitei sopa de tomate por todo o tapete da lareira. Não me lembro de ter sido carregado pra cama. Lá vai o meu primeiro amor uh-hu...

Meu corpo tava sendo torcido e esmagado. Parecia que eu tinha desmaiado na rua e uma caçamba tivesse sido largada em cima de mim, e um grupo de trabalhadores malignos estivesse enchendo ela com materiais pesados de construção ao mesmo tempo em que enfiavam varas por baixo pra espetar meu corpo. Com o cara que eu costumava...

Que horas são, porra? Mas que porra que será 7:28. Não consigo esquecer ela...

Hazel

Meu coração está quebrando uh-hu quando vejo ela...

Atiro pra baixo o acolchoado pesado e olho pro Paddy Stanton. Paddy. Que é que eu vou fazer? Gordon Durie, o grande Juke Box. Que é que tá rolando aqui? Por que cê nos abandonou, Juke Box, seu viado? Iggy... cê já passou por isso. Me ajuda, cara. ME AJUDA.

O que cê disse sobre tudo isso?

CÊ NÃO TÁ AJUDANDO NADA, SEU VIADO... AJUDANDO PORRA NENHUMA...

Sangue escorre no meu travesseiro. Mordi minha língua. Um corte feio, pelo jeito. Cada célula do meu corpo quer abandonar o navio, cada célula tá doente, dolorida, totalmente de molho numa porra de veneno...

câncer

morte

mal-estar mal-estar mal-estar

morte morte morte

AIDS AIDS que se foda todo o mundo VIADOS DE MERDA SE FODAM TODOS VOCÊS

PESSOAS COM CÂNCER POR OPÇÃO – SEM ESCOLHA

PRA ELES MERECEM

CULPA DELES SENTENÇA DE MORTE AUTOMÁTICA

JOGANDO A VIDA FORA NÃO PRECISA SER

UMA SENTENÇA DE MORTE AUTOMÁTICA DESTRUIR

REABILITAR

FASCISMO

BOA ESPOSA

BONS FILHOS

BOA CASA

BOM EMPREGO

BOM

BOM VER VOCÊ, VER VOCÊ...

BOM BOM BOM TRANSTORNO CEREBRAL

DEMÊNCIA

HERPES AFTA PNEUMONIA

A VIDA TODA PELA FRENTE CÊ CONHECE UMA MENINA LEGAL E SE AQUIETA...

Ela ainda é meu primeiro amor

CÊ FEZ ISSO CONSIGO MESMO.

Sono.

Mais terrores. Tô dormindo ou acordado? Quem sabe, porra, quem se importa? Eu não. A dor ainda tá aqui. Sei de uma coisa. Se eu me mexer, vou engolir a língua. Um belo pedaço de língua. É por isso que não posso esperar que a minha mãe me dê de comer, como nos velhos tempos. Salada de língua. Envenene seus filhos.

Cê vai comer essa língua. É um bom e gostoso pedaço de língua que cê tem aí, filho.

CÊ VAI COMER ESSA LÍNGUA.

Se eu não me mexer, minha língua vai descer pela minha goela de qualquer jeito. Sinto ela se mexendo. Eu sento, consumido por um pânico cego, e forço o vômito, mas não vem nada. Meu coração tá arrebentando no peito, o suor jorra do meu corpo raquítico.

Será que estou doooorrrmmmiiiinnnndddooo.

Ai, merda. Tem alguma coisa dentro desse quarto comigo, e tá saindo da porra do teto em cima da cama.

É um nenê. É a pequena Dawn, engatinhando pelo teto. Chorando. Mas agora ela tá olhando pra mim aqui embaixo.

– Cês me deixaram morreeeeer, porra – ela diz. Não é a Dawn. Não é o nenezinho.

Não, quer dizer, caralho, isso é loucura.

O nenê tem dentes afiados de vampiro, escorrendo sangue. Tá coberto por uma gosma nojenta amarelo-esverdeada. Os olhos dele são os olhos de todos os psicopatas que já conheci.

– Cêsmemataramporra medeixarammorrer comaporradacabeçaentupidadeheroína olhandoprasporradasparedes seu viciadinhobabaca vourasgaraporradesseseucorpo e comeraporradasuacarnecinzaedoente começandopeloseupauviciadoporqueeumorriumaporradumavirgemenuncavoudarumatrepadaenuncavouusarumaporrademaquiagemnemroupasdescoladasenuncavousernadaporquecêsnuncaforamvercomoeutavaseusviciadosdemerdacêsmedeixarammorrerporramedeixaramsufocaratéamortecêssabemqualéasensaçãoseusviadosporqueeutenhoumaporradumaalmaeeuaindapossosentirdorevocêsseusviciadosegoístasfilhosdaputacomaporradaheroínadevocêstiraramelademimeporissoeuvouarrancarcomosdentesaporradoseupaufudidoQUERUMAPORRADUMBOQUETEQUERUMAPORRADUMBOQUETEQUERUMAPOOOOORRAAAAA

O nenê se atira do teto pra cima de mim. Meus dedos rasgam e despedaçam a carne macia e maleável e a gosma melequenta mas a voz continua gritando e zombando e eu me sacudo e me contorço e sinto como se a cama tivesse saltado pra posição vertical e tô atravessando a porra do chão...

Será que estou doooorrrmmmiiiinnnndddooo.

Lá se vai meu primeiro amor.

Aí eu tô de volta na cama, ainda segurando o nenê, embalando ele com cuidado. A pequena Dawn. Que lástima, porra.

É só o meu travesseiro. Tem sangue no meu travesseiro. Talvez tenha vindo da minha língua; talvez a pequena Dawn tenha estado aqui.

A vida não pode ser só isso.

Mais dor, e depois mais sono/dor.

Quando recupero a consciência, percebo que um período de tempo se passou. Quanto durou, não sei. O relógio anuncia: 2:21.

Sick Boy tá sentado na cadeira olhando pra mim. Tá com uma expressão de leve preocupação, coberta de um desprezo benigno e condescendente. Enquanto bebe da sua xícara de chá e mastiga um biscoito com cobertura de chocolate, percebo que minha mãe e meu pai também estão no quarto.

Que merda é essa que tá rolando?

A merda é...

– O Simon tá aqui – anuncia a mãe, confirmando que não estou tendo alucinações a não ser que a miragem tenha conteúdo auditivo além do visual. Como a Dawn. Morro a cada amanhecer.

Sorrio pra ele. O papai da Dawn. – E aí, Si.

O filho da puta é o charme em pessoa. Bate um papo jocoso e amigável sobre futebol com o meu velho, que é um hun, e chega pra cima da minha coroa como se fosse um velho médico amigo da família.

– Esse é um jogo em que só existem perdedores, sra. Renton. Não quero dizer que não tenho nenhuma culpa no cartório, longe disso, mas chega um momento que você simplesmente tem de virar as costas pra essa bobagem e dizer não.

Só dizer não. É fácil. Escolha a vida. Mim quer heroína.

Meus pais acham impossível acreditar que o “Jovem Simon” (que é só quatro meses mais velho que eu, e eles nunca me chamam de “Jovem Mark”) possa ter qualquer coisa a ver com drogas além do ocasional flerte experimental da juventude. Aos seus olhos, o Jovem Simon é identificado com o sucesso absoluto. Tem as namoradas do Jovem Simon, as roupas espertas do Jovem Simon, o bronzeado do Jovem Simon, o apartamento do Jovem Simon na cidade. Até mesmo os pulinhos que o Jovem Simon dá em Londres são vistos como capítulos coloridos adicionais nas aventuras badaladas e fanfarronas do adorável cavalheiro dos Bannanay Flats do Leith, enquanto as minhas viagens ao sul motivam associações desagradáveis e insalubres aos seus olhos. Mas o Jovem Simon não pode errar nunca. Eles enxergam o cara como uma espécie de Oor Wullie da geração videogame.

A Dawn se infiltra nos sonhos do Sick Boy? Não.

Embora nunca tenham admitido abertamente, minha mãe e meu pai suspeitam que meus problemas com drogas se devem à minha convivência com “o rapazinho Murphy”. Isso porque o Spud é um fiadaputa preguiçoso e sujo, que vive naturalmente meio no mundo da lua e parece estar sob efeito de drogas mesmo quando tá careta. O Spud é incapaz de incomodar uma amante rejeitada que esteja com uma forte ressaca. Por outro lado, o Begbie, o Mendigo totalmente louco e psicopata, é visto como um modelo arquetípico de masculinidade escocesa. Sim, pode ser que uns infelizes tenham que ficar catando pedacinhos de vidro em seus rostos quando o Franco perde o controle, mas o rapazinho trabalha duro etc. etc.

Depois de eu ser tratado como um simplório por todos os presentes por cerca de uma hora, meus pais saem do quarto convencidos que o Sick Boy tá totalmente livre das drogas e não pretende passar um pouco de heroína por baixo do pano para o seu rebento, o que eu acho uma pena.

– Aqui em cima é como nos velhos tempos, hein? – ele comenta, olhando pros meus pôsteres ao redor do quarto.

– Peraí, vou ali pegar o futebol de botão e as revistinhas de sacanagem – a gente costumava bater punheta com revistas pornô quando era pequeno. Como hoje em dia é um garanhão, o Sick Boy detesta ser lembrado de seu desenvolvimento sexual pubescente. Como de costume, ele muda de assunto.

– Tá se dando bem, hein? – ele diz. Que diabos o viado espera, nessas circunstâncias?

– É, caralho, tô mesmo. Tô passando mal aqui, Si. Cê precisa me descolar um bagulho.

– Sem chance. Tô me mantendo careta, Mark. Se eu começar a andar junto com perdedores como o Spud, o Cisnezinho e tal, volto a usar num piscar de olhos. No way, José – ele assopra entre os lábios contraídos e sacode a cabeça.

– Valeu, parceiro. Cê tem muita consideração.

– Para de choramingar, caralho. Eu sei como é ruim. Passei por isso algumas vezes e lembro bem. Cê tá quase terminando a pior parte. Sei que é fudido, mas se cê começar a se injetar agora, a casa cai. Continua tomando os valiuns. Eu descolo um pouco de haxixe pro fim de semana.

– Haxixe? Haxixe! Cê é um humorista, porra. Quem sabe cê também não tenta combater a fome no terceiro mundo com um pacotinho de ervilhas congeladas?

– Não, cara, ouve o que eu tô dizendo. Depois que a dor vai embora, é aí que a porra da batalha começa de verdade. Depressão. Tédio. Tô dizendo, cara, cê vai se sentir tão pra baixo que vai tentar passar por cima de si mesmo. Cê precisa de algo pra ir em frente. Comecei a beber pra caralho quando larguei a heroína. Tava virando uma garrafa de tequila por dia, num certo ponto. O Segundo Lugar ficava constrangido na minha presença! Agora eu larguei do trago e tô saindo com umas mina.

Ele me alcançou uma fotografia. Mostrava o Sick Boy com uma menina deslumbrante.

– Fabienne. Francesa e tal. Tá aqui de férias. Essa foi tirada lá no Monumento do Walter Scott. Vou passar um tempo na casa dela em Paris, mês que vem. Depois vamos pra Córsega. Os amigos dela têm um lugarzinho lá. A situação anda sublime, cara. Escutar uma mulher falando em francês quando cê tá comendo ela é excitante pra cacete.

– Sim, mas o que ela tá dizendo? Aposto que é algo como: Seu pao é tao, comã se dis, pequenô, cê já começô?... Aposto que é isso que ela diz em francês.

Ele me deu aquele sorriso paciente e condescendente de “já terminou?”.

– Sobre este assunto em particular, andei conversando com a Laura McEwan na semana passada. Ela me comunicou que cê teve problemas nesta mesmíssima área. Disse que cê não conseguiu levantar nem os beiço pra sorrir na última vez que ela teve com você.

Abro um sorriso e encolho os ombros. Achei que ia sair ileso daquele desastre.

– Disse que cê não poderia satisfazer nem a si mesmo com esse dedal que cê tem a cara de pau de chamar de pênis, que dirá qualquer outra pessoa.

Não tem muito que eu possa dizer ao Sick Boy no quesito tamanho de pau. O dele é maior, sem dúvida. Quando a gente era menor, costumava tirar foto da nossa pica na cabine de fotos de passaporte na estação Waverley. Depois a gente enfiava as fotos por trás dos painéis de vidro das antigas paradas de ônibus verdes, pras pessoas olharem. A gente costumava chamar isso de nossas exposições públicas de arte. Consciente do fato de que o pau do Sick Boy era maior, eu aproximava o meu da lente da câmara o máximo possível. Infelizmente, o viado me desmascarou rapidinho e começou a fazer o mesmo.

Sobre o assunto do meu desastre com Laura McEwan, em particular, havia ainda menos pra dizer. A Laura é uma louquinha. No mínimo, é intimidadora. Ganhei mais cicatrizes no corpo depois de uma noite com ela do que em toda a minha carreira de usuário de agulhas. Já tinha dado todas as desculpas que podia acerca daquele episódio. É muito deprimente quando as pessoas não deixam as coisas ficarem pra trás. O Sick Boy tava determinado a garantir que todo fiadaputa soubesse como eu trepava mal.

– Tá bom, eu admito, foi uma bosta de desempenho. Mas eu tava chapado e podre de bêbado, e foi ela quem me arrastou pro quarto, não o contrário. Que porra ela tava esperando?

Ele deu um risinho abafado. O desgraçado sempre dava a impressão que possuía ainda mais munição para chacotas, que estava guardando pra outra ocasião.

– Bem, meu caro, só pensa no que cê tá perdendo. Eu tava farejando pelos parques um dia desses. Colegiais por toda parte. Cê acende um baseado e elas aparecem como moscas ao redor da merda. Tá sobrando vagabunda. Tem buceta estrangeira por tudo que é lado, algumas delas implorando pra levar pica. Vi umas gostosinhas até mesmo no Leith, caralho. E falando de gostosinhas, o Mickey Weir mandou muito bem sábado em Easter Road. Todo mundo tava perguntando por onde cê andava. Tem shows do Iggy Pop e dos Pogues logo, logo, tá ligado? Já tá mais que na hora de cê tomar jeito e começar a viver a porra da sua vida. Cê não pode ficar se escondendo em quartos escuros até o fim dos seus dias.

Eu não tava muito interessado nas merdas desse viado.

– Só preciso mesmo de mais uma dose, Si, pra largar mais fácil. Até mesmo um gole de metadona...

– Se cê se comportar, pode ser que ganhe um pouco de cerveja Tartan Special diluída. Sua mãe tava dizendo que talvez leve você pro Docker’s Club na sexta de noite, se cê for um bom menino.

Quando o fiadaputa desdenhoso foi embora, senti falta dele. Ele quase me fez sair de mim mesmo. Foi como nos velhos tempos, mas, de certo modo, isso só me serviu pra lembrar de como as coisas tinham mudado. Algo tinha acontecido. A heroína tinha acontecido. Fosse eu viver com ela, morrer com ela ou viver sem ela, sabia que nada voltaria a ser como era antes. Preciso sair do Leith, sair da Escócia. Pra sempre. Agora mesmo, não apenas passar seis meses em Londres. As limitações e a feiura desse lugar tinham sido expostas pra mim, e eu nunca mais o veria com os mesmos olhos.

Nos dias que se seguiram, a dor diminuiu levemente. Até comecei a cozinhar um pouco. Qualquer cara acha que sua mãe é a melhor cozinheira que existe. Era o que eu achava, até morar sozinho. Com isso percebi que minha mãe não cozinhava porra nenhuma. Aí comecei a preparar o chá. Meu coroa tira sarro da “comida de coelho”, mas acho que, secretamente, ele gosta dos meus chilis, curries e ensopados de forno. A coroa parece vagamente ressentida com a minha incursão na cozinha, que ela entende como seu território, e fica se lamuriando sobre a importância da carne em uma dieta; mas acho que ela curte o rango e tal.

Mas a dor tá sendo trocada por uma horrível, absoluta e sombria depressão. Nunca passei por tamanha sensação de completa e total desesperança, quebrada apenas por surtos de dolorosa ansiedade. Ela me imobiliza ao ponto de estar sentado numa cadeira odiando um programa de tevê, e ainda assim temer que algo terrível possa acontecer se eu tentar trocar de canal. Fico sentado, com a bexiga quase estourando, mas amedrontado demais pra subir até o banheiro porque pode ter algo à espreita na escada. O Sick Boy tinha me alertado a esse respeito, e eu já passei por essa situação no passado, mas nenhuma quantidade de avisos adiantados ou experiência anterior podem preparar você pra isso. Isso aqui faz a pior das ressacas de álcool parecer um idílico sonho molhado.

Meu coração está se partindo uh-hu. O apertar de uma tecla. Deus seja louvado pelo controle remoto. Cê pode transitar entre diferentes mundos ao toque de um botão. Quando vejo ela segurando Reposição de equipamentos esportivos desgastados o cara diz algo sobre uma falta gritante de medidas de entrada e saída abrangentes e detalhadas, que possam ser agregadas de modo a possibilitar que os benefícios sejam avaliados e validados, em nível local, dentro de um critério de sua eficiência e efetividade, e isso é algo que o contribuinte, que como sempre terá que pagar a conta, irá...

– Café, Mark? Cê tá a fim de um café? – a mãe pergunta.

Não consigo responder. Sim, por favor. Não, obrigado. Quero e não quero. Dizer nada. Deixar a mãe decidir se devo ou não tomar um café. Transferir ou delegar a ela esse nível de poder, ou de tomada de decisões. Poder delegado é poder mantido.

– Comprei um vestidinho lindo pra filhinha da Angela – a mãe diz, segurando o que de fato só poderia ser descrito como um vestidinho lindo. A mãe parece não perceber que eu não sei quem é Angela, muito menos a criança que será a anunciada beneficiária deste vestidinho lindo. Apenas confirmo com a cabeça e sorrio. A vida da mãe e a minha dispararam em tangentes diferentes há anos. O ponto de contato é forte, mas obscuro. Eu poderia dizer: Comprei uma linda dosezinha de heroína de um amigo do Seeker, o cara dentuço cujo nome me escapa. É isso: a mãe compra vestidos pra pessoas que eu não conheço, eu compro heroína de pessoas que ela não conhece.

O pai tá deixando crescer um bigode. Com seu cabelo cortado rente, vai ficar parecendo um homossexual assumido, um clone. Freddie Mercury. Ele não entende essa cultura. Explico pra ele, mas ele desdenha.

No dia seguinte, porém, o bigode se foi. Agora o pai “não tem mais paciência” pra deixar ele crescer. Claire Grogan tá cantando “Don’t Talk To Me About Love” na Radio Forth e a mãe tá fazendo sopa de lentilha na cozinha. Passei o dia todo cantando “She’s Lost Control” do Joy Division na minha cabeça. Ian Curtis. Matty. Penso nos dois como se fossem unidos de alguma forma, mas a única coisa que têm em comum é um desejo de morrer.

Isso é tudo que vale a pena mencionar sobre aquele dia.

Chega o fim de semana e a coisa não tá mais tão ruim assim. O Si tinha me conseguido um pouco de fumo, mas era o haxixe comum de Edimburgo, que em geral é uma bosta. Uso ele pra fazer um pouco de space cake, e melhora bastante. Até fico viajando um pouco no meu quarto, à tarde. Mas ainda não me animo a sair pra rua, especialmente pra porra do Docker’s Club com a minha mãe e o meu pai, mas decidi fazer o esforço por eles porque os dois tão precisando dar um tempo. A mãe e o pai quase nunca perdiam uma noite de sábado no clube.

Caminho envergonhado pela Great Junction Street; o velho não tira os olhos de mim por um instante, temendo que eu decida sair correndo. Dou de cara com o Mally no largo da Walk e a gente troca uma ideia por um tempo. O velho intervém, me induzindo a ir com ele e olhando pro Mally como se quisesse quebrar as pernas de um traficante maligno. Logo o coitado do Mally, que não encostaria a mão nem num baseado. O Lloyd Beattie, que era um bom amigo meu anos atrás, antes que todo mundo descobrisse que andava comendo a própria irmã, me cumprimentou mansamente com a cabeça.

No clube, as pessoas abrem enormes sorrisos pros coroas, e forçam alguns pra mim. Enquanto pegávamos nossa mesa, captei alguns cochichos e acenos de cabeça, seguidos de silêncio. O pai me acerta um tapa nas costas e pisca pra mim, e a mãe, com uma compreensão sufocante, me dá um sorriso com uma ternura de arrasar o coração. Não tenho dúvida que eles não são uns coroas nem um pouco ruins. Eu amo os desgraçados, pra dizer a verdade.

Penso sobre o que devem sentir a respeito de eu ter me tornado o que sou. Que lástima. Mas pelo menos eu tô aqui. A pobre Lesley nunca vai ver a Dawn crescer. A Les e o Sick trepam e dizem que agora a Lesley tá no Hospital Geral Sul em Glasgow, mantida viva por aparelhos. Abuso de paracetamol. Foi pra Glasgow fugindo da cena da heroína em Moorhouse e acabou se mudando pra Possil com o Skreel e o Garbo. Tem uns fiadaputa que não têm jeito. A melhor opção pra Les seria um haraquiri.

O Cisnezinho demonstrou sua sensibilidade costumeira: – Esses weedjies fiadasputa ficam com todo o melhor bagulho, ultimamente. Usam aquela merda farmacêutica purinha enquanto a gente fica condenado a esmagar qualquer porra de ecstasy que cai na mão. O bagulho bom é desperdiçado com esses viado, que nem injetam. Fumar e cheirar heroína, que desperdício – riu, com desprezo. – E aquela porra daquela Lesley, ela bem que podia tá passando aquele bagulho de lá pro Cisne Branco. Cê acha que ela já me arranjou um pouco daquilo? Não. Só fica lá, sentada o dia todo, com pena de si mesma por causa do nenê. Uma desgraça aquilo, tá ligado, não me entenda mal. Mas o negócio é que existem oportunidades e tal. Ela tá livre da responsabilidade de ser uma mãe solteira, essas coisas. Era de se esperar que fosse aproveitar a chance pra abrir as asinhas.

Livre da responsabilidade. Parece uma boa. Eu gostaria de ficar livre da responsabilidade de estar sentado nessa porra de clube.

O Jocky Linton se aproxima pra me fazer companhia. O formato da cara do Jocky parece um ovo deitado. Ele tem cabelos pretos grossos, salpicados de grisalho. Veste uma camisa azul de manga curta, que deixa expostas suas tatuagens. Num dos braços ele tem “Jocky & Elaine – O Verdadeiro Amor Nunca Vai Morrer”, e no outro “Escócia” com o leão rampante. Infelizmente, o amor verdadeiro foi sim comer capim pela raiz e a Elaine largou fora há tempos. Agora o Jocky tá morando com a Margaret, que obviamente odeia a tatuagem, mas toda vez que ele vai fazer outra por cima acaba voltando atrás, dando desculpas sobre ter medo de pegar HIV com as agulhas. É uma mentira escancarada, uma desculpa débil pra esconder que ele ainda tem uma coisinha pela Elaine. O que eu mais me lembro sobre o Jocky é a cantoria dele nas festas. Sempre cantava “My Sweet Lord” do George Harrison, era o número de festa dele. Mas o Jocky nunca chegou a dominar muito a letra da música. Só sabia o título e I really want to see you Lord, e o resto era da-da-da-da-da-da-da.

– Da-vie. Ca-thy. Cê-tá-lin-da-es-sa-noi-te-bo-ne-ca. Não-vi-ra-as-cos-tas-Ren-ton-ou-eu-fu-jo-com-e-la! Glas-gow-nem-é-tão-lon-ge – o Jocky cuspia suas sílabas no estilo de uma Kalashnikov.

Minha coroa tenta parecer envergonhada, e a expressão dela me constrange por dentro. Eu me contento em ficar escondido atrás de um pint de Lager e pela primeira vez na vida sinto prazer em observar o silêncio total imposto pelo jogo de bingo do clube. Minha irritação costumeira por ter cada palavra que digo vigiada por retardados agora é substituída por um sentimento de felicidade absoluta.

Eu devia ter gritado bingo, mas não queria falar nem atrair qualquer espécie de atenção pra mim mesmo. Mas parecia que o destino – ou o Jocky – tava determinado a contrariar meu desejo de anonimato. O viado estica o olho pra minha cartela.

– BINGO! Man-dou-vê-Mark. E-le-com-ple-tô-a-car-te-la. A-QUI! Nem-ia-gri-tar. Va-mo-lá-meu-fi-lho. Se-li-ga.

Sorrio bondosamente pro Jocky, desejando uma morte imediata e violenta pro intrometido.

A cerveja se assemelha ao conteúdo de uma latrina entupida com gás carbônico adicionado. Depois de um gole, sou acometido de um espasmo violento e vergonhoso. O pai dá uns tapas nas minhas costas. Não consigo mais tocar na bebida depois disso, mas o Jocky e meu velho seguem firmes virando um atrás do outro. A Margaret chega e, não muito depois, ela e a minha velha tão fazendo progressos consideráveis nas vodcas com tônica e nas Carlsberg Specials. A banda começa a tocar, o que eu inicialmente saúdo como um pretexto pra não ter que falar.

Meus coroas se levantam pra dançar ao som de “Sultans of Swing”.

– Gosto desses Dire Straits – Margaret comenta. – Eles são mais pros jovens, mas gente de toda idade gosta.

Quase não resisto à tentação de refutar vigorosamente esta afirmação cretina. Porém, me contento em falar de futebol com o Jocky.

– O-Rox-burgh-quer-mais-a-ta-que. Essa-é-a-pi-or-se-le-ção-es-co-ce-sa-que-eu-já-vi – declara o Jocky, projetando a mandíbula pra frente.

– A culpa não é toda dele. Cê só pode mijar com o pau que tem. Quem mais sobra?

– É, tá-cer-to... mas-eu-que-ria-ver-o-John-Ro-bert-son-mais-em-cam-po. E-le-me-re-ce. Fi-na-li-za-dor-mais-con-sis-ten-te-da-Es-có-cia.

Continuamos nossa discussão ritualística enquanto tento encontrar ao menos um resquício de paixão que possa dar alguma vida a ela, mas falho miseravelmente.

Percebo que Jocky e Margaret foram instruídos a garantir que eu não tente escapar. Todos ficaram cuidando de mim em turnos, e os quatro nunca foram dançar ao mesmo tempo. Jocky e minha mãe ao som de “The Wanderer”, Margaret e meu pai ao som de “Jolene”, a mãe e o pai de novo ao som de “Rolling Down the River”, Margaret e Jocky ao som de “Save the Last Dance for Me”.

Quando o cantor gordo começa “Song Sung Blue”, minha velha me puxa pra pista de dança como se eu fosse uma boneca de pano. O suor brota de mim debaixo das luzes enquanto minha mãe exibe seu gingado e eu me contorço timidamente. A humilhação se intensifica quando percebo que os viados tão fazendo um medley do Neil Diamond. Preciso enfrentar “Forever in Blue Jeans”, “Love on the Rocks” e “Beautiful Noise”. Quando começa “Sweet Caroline”, estou à beira de um colapso. A coroa me força a imitar o resto dos malucos no lugar agitando minhas mão pra cima enquanto eles cantam:

– MÃÃÃÃOS... TOCANDO AS MÃÃOS... ALCANÇANDO... TOCANDO VOCÊ... ME TOCANDO...

Dou uma olhadinha pra mesa de trás, e Jocky está completamente à vontade, um Al Jolson do Leith.

Depois dessa provação, segue-se outra. O velho me passa uma nota de dez e me diz pra buscar uma rodada. Desenvolvimento de habilidades sociais e treinamento pra ganho de confiança estão obviamente no programa dessa noite. Levo a bandeja comigo até o bar e entro na fila. Olho pra porta, sentindo a nota enrolada na minha mão. Vale uns grãozinhos. Poderia ir até o Seeker ou ao Johnny Cisne, a Madre Superiora, em meia hora. E aí era só me injetar pra fora desse pesadelo. Então registro meu coroa parado perto da porta, olhando pra mim como se fosse um leão de chácara e eu fosse um arruaceiro em potencial. Só que o papel dele era evitar que eu saísse, ao invés de me chutar pra rua.

É uma situação perversa.

Me viro de novo pra fila e vejo uma mina que foi minha colega no colégio, a Tricia McKinlay. Preferia não ter que falar com ninguém, mas não posso mais ignorar; ela agora me reconheceu e seu sorriso está se abrindo.

– Tudo bem, Tricia?

– Ah, olá, Mark. Quanto tempo. Como cê tá?

– Não muito mal. E você?

– De tudo um pouco. Esse é o Gerry. Gerry, esse é o Mark, ele era da minha turma no colégio. Parece que faz tanto tempo, né?

Ela me apresenta a um gorila suado e rabugento que grunhe na minha direção. Eu cumprimento com a cabeça.

– Parece mesmo, com certeza.

– Ainda fala com o Simon? – tudo que é buceta tá sempre atrás do Sick Boy. Isso me deixa doente.

– Sim. Ele teve lá em casa hoje. Vai pra Paris logo mais. Depois pra Córsega.

Tricia sorri e o gorila lança um olhar de desaprovação. O cara tem um rosto que desaprova o mundo como um todo e parece pronto pra sair na porrada com ele. Tenho certeza que ele é um dos Sutherlands. A Tricia certamente podia ter arranjado algo melhor pra ela. Uma porrada de caras do colégio gostavam dela. Eu costumava andar perto dela na esperança de que as pessoas achassem que eu tava saindo com ela, na esperança de que eu saísse mesmo com ela, por alguma espécie de osmose. Uma vez, quando a gente tava na linha de trem desativada, comecei a acreditar na minha própria propaganda e recebi um saudável tapa na cara quando tentei enfiar a mão por baixo da camiseta dela. Mas o Sick Boy comeu ela, o viado.

– Ele sempre tava metido em todas, o nosso Simon – ela comenta, com um sorriso nostálgico.

Papai Simôn.

– Tava mesmo. Molestando crianças, dando de cafetão, traficando drogas, extorquindo dinheiro das pessoas. Esse é o nosso Simon – a amargura da minha voz me surpreendeu. O Sick Boy era meu melhor amigo, bem, o Sick Boy e o Spud... e talvez o Tommy. Por que tô avacalhando tanto com o cara? Seria somente devido à sua negligência quanto aos deveres paternos, ou aliás, sua ausência de conhecimento da condição de paternidade? O motivo mais provável é que eu sinto inveja do viado. Ele não tá nem aí. E como ele não tá nem aí, não pode ser atingido. Nunca.

Seja lá por qual motivo, isso deixou a Tricia assustada.

– Hã... bem, é isso aí, hã, a gente se vê, Mark.

Eles vão embora rapidinho, Tricia carregando a bandeja com bebidas e o gorila Sutherland (ou pelo menos eu acho que é um Sutherland) virando a cabeça pra olhar pra mim, os nós dos dedos dele quase raspando o verniz da pista de dança.

Fiz mal em esculhambar o Sick Boy daquele jeito. É que eu simplesmente odeio quando o cara se safa ileso e eu levo a pecha de grande vilão do pedaço. Imagino que isso seja apenas a minha percepção das coisas. O Sick Boy tem suas ansiedades, sua dor pessoal. Ele também tem provavelmente mais inimigos do que eu. Tem mesmo, é certo. Mesmo assim, que merda.

Levo as bebidas pra mesa.

– Tudo bem, filho? – a mãe me pergunta.

– Novo em folha, mãe, novo em folha – respondo, tentando soar como Jimmy Cagney e falhando pateticamente. Como faço com a maioria das coisas. Ainda assim, derrota, sucesso, que porra é essa? Quem se importa? Tudo mundo vive e depois morre, num espaço bastante curto de tempo. É isso; encerrada a porra do assunto.


Sem cerimônia

É um dia lindo. Isso parece significar

Concentre-se. No assunto em pauta. Meu primeiro enterro. Alguém diz: – Vamolá, Mark – uma voz suave. Dou um passo à frente e seguro uma parte da corda.

Ajudo meu pai e meus tios, Charlie e Dougie, a descer os restos mortais de meu irmão pra dentro da terra. O exército arranjou a grana pra essa função. Deixe isso conosco, disse pra minha mãe o oficial de bem-estar social do exército, com voz suave. Deixe isso conosco.

Sim, esse é o primeiro enterro a que compareço. Hoje em dia a cremação é mais comum. Fico pensando no que tá dentro do caixão. Não sobrou muito do Billy, isso é certo. Lanço um olhar pra minha mãe e pra Sharon, a mina do Billy, que tão sendo consoladas por um sortimento de tias. Lenny, Peasbo e Naz, amigos do Billy, tão aqui junto com alguns amigos do pelotão.

Billy Boy, Billy Boy. Alô, alô, nós somos os. Não tem nada a ver com...

Fico pensando naquela velha canção dos Walker Brothers, aquela que o Midge Ure gravou: não há arrependimentos, nem lágrimas de adeus, não quero você de volta etc. etc.

Não consigo sentir tristeza, apenas raiva e desprezo. Meu sangue ferveu quando vi aquela porra de bandeira britânica no caixão dele, e fiquei observando aquele viado daquele oficial molenga e bajulador, que tava numa situação obviamente delicada aqui, tentando conversar com a minha mãe. Pior ainda é que esses viados de Glasgow, a turma do meu coroa, compareceram em massa. Tão falando um monte de merda sobre como ele morreu a serviço do país e toda aquela besteira servil típica dos huns. O Billy foi pura e simplesmente um palerma. Não um herói, não um mártir, só um idiota.

Um ataque de riso me ataca, ameaçando me dominar completamente. Eu tava quase superando a vontade de rir histericamente quando o irmão do meu pai, Charlie, agarrou meu braço. Parecia hostil, mas esse cara é sempre assim. Effie, a esposa dele, puxou o filho da puta pra longe, dizendo: – O garoto tá chateado. É só o jeito dele, Chick. O garoto tá chateado.

Vão tomar banho, seus weedjies fedidos, bando de viado sebento.

Billy Boy. É assim que esses viado chamavam ele quando era um menino. Era assim: como vai essa força, Billy Boy? Comigo, escondido atrás do sofá, era só um resmungo: E aí, garoto.

Billy Boy, Billy Boy. Lembro quando cê sentava em cima de mim. Eu prensado contra o chão, indefeso. A traqueia apertada até ficar com a grossura de um canudo. Rezando, enquanto o oxigênio abandonava meu pulmão e meu cérebro, pra que minha mãe voltasse da Presto antes que cê espremesse a vida pra fora do meu corpo franzino. O cheiro de mijo da sua genitália, uma mancha úmida na sua calça curta. Era mesmo tão divertido, Billy Boy? Espero que sim. Agora não consigo guardar muito rancor de você. Cê sempre teve um problema nesse sentido. Aquelas descargas inapropriadas de fezes e urina que costumavam enlouquecer a mãe. Qual é o melhor time, cê me perguntava, esmagando, apertando e torcendo mais forte. Nenhuma trégua pra mim até que eu dissesse: Hearts. Mesmo depois que a gente meteu um sete a zero na bunda de vocês no Ano-Novo em Tynecastle, cê ainda me forçava a dizer Hearts. Acho que eu devia me sentir lisonjeado por uma declaração minha ter mais valor do que o resultado de fato.

Meu amado irmão estava a serviço de Sua Majestade, em patrulha perto da base deles em Crossmaglen, na Irlanda, na parte sob domínio britânico. Eles tinham saído do veículo pra examinar um bloqueio na estrada quando PUM! ZAP! BANG! ZUM!, deixaram de existir. Só três semanas antes do fim do período de serviço.

Morreu como um herói, eles dizem. Lembro daquela música: “Billy não seja um herói”. Na verdade, ele morreu como um babaca reservista metido num uniforme, caminhando por uma estrada do interior com um rifle na mão. Morreu como uma vítima ignorante do imperialismo, sem entender porra nenhuma das circunstâncias que levaram à sua morte. Esse foi o maior crime, ele não entendia nada a esse respeito. Tudo que tinha pra servir de guia por essa grande aventura na Irlanda, que resultou na sua morte, eram alguns vagos sentimentos sectários. O viado morreu do jeito que viveu: completamente por fora.

A morte dele foi boa pra mim. Ele apareceu no Noticiário das Dez. Em termos warholianos, o viado teve quinze minutos de fama póstumos. As pessoas foram solidárias e, embora fosse pelos motivos errados, de qualquer forma era uma coisa boa de receber. Cê não pode desapontar os seus.

Algum viado da classe dominante, um subministro ou algo assim, declarou com sua voz de Oxbridge como o Billy foi um jovem corajoso. Ele era exatamente o tipo de cara que eles teriam rotulado de bandido covarde se estivesse nas ruas como civil ao invés de a serviço de Sua Majestade. Esse maldito aborto ambulante afirma que os assassinos dele serão caçados sem misericórdia. É isso mesmo que eles deviam fazer, porra. Até chegar à porra das Casas do Parlamento.

Saborear pequenas vitórias contra esse branco pé-rapado que virou instrumento dos ricos que não não não...

Billy sendo atormentado pelos irmãos Sutherland e seu séquito, que certamente fizeram ele tremer e rir de nervoso enquanto dançavam a seu redor cantando SEU IRMÃO É UM MONGOLOIDE, um dos grandes sucessos das ruas do Leith nos anos 70, geralmente executado quando as pernas tinham ficado cansadas demais pra dar continuidade ao jogo de futebol com vinte e dois de cada lado. Tavam falando sobre o Davie, quem sabe até mesmo sobre mim. Não interessava. Eles não me viam na ponte olhando tudo que acontecia lá embaixo. Billy ficava de cabeça baixa. Impotência. Qual é a sensação, Billy Boy? Não é nada boa. Eu sei porque...

É estranho o que acontece ao redor do túmulo. O Spud tá por aqui em algum canto, careta, recém-saído de Saughton. O Tommy e tal. É muito louco, o Spud parecendo saudável e o Tommy com uma cara de morte requentada. Troca total de papéis. Davie Mitchell, um grande amigo do Tommy, um cara com quem trabalhei num lugar como aprendiz de carpinteiro, deu as caras. O Davie pegou HIV duma mina. Coragem dele aparecer. Isso é coragem pra caralho, mesmo. O Begbie, bem na ocasião em que eu podia fazer bom uso de sua presença diabólica e de sua capacidade de provocar o caos, tá de férias em Benidorm. Não me importaria em ter seu apoio imoral vis-à-vis meus conhecidos weedjies. O Sick Boy ainda tá na França, realizando suas fantasias.

Billy Boy. Me lembro de dividir aquele quarto. Como é que aguentei aquilo por tantos anos é algo que está além...

O sol tem um poder. Cê consegue entender por que as pessoas o veneram. Ele tá ali, nós conhecemos o sol, podemos vê-lo, precisamos dele.

Era você quem mandava no quarto, Billy. Quinze meses mais velho que eu. A lei do mais forte. Cê trazia umas meninas com rosto de esqueleto, olhos depravados e boca mascando chiclete pra fuder em casa, ou pelo menos dar uns amassos pesados. Elas me olhavam com o desprezo de um androide enquanto você me bania pra sala, junto com a pessoa que estivesse comigo e o futebol de botão. Lembro em particular da destruição desnecessária de um jogador do Liverpool e dois do Sheffield Wednesday debaixo do teu calcanhar. Desnecessária, mas, por outro lado, a dominação total exige um certo simbolismo, não é mesmo, Billy Boy?

Minha prima Nina tá extremamente comível. Tem cabelos compridos e escuros e tá usando um casaco preto que vai até os tornozelos. Parece meio gótica. Notando que alguns amigos soldadinhos do Billy e meus tios weedjies estão se dando bem, começo a assobiar “The Foggy Dew”.14 Um soldadinho com dentes da frente grandes e pronunciados entende a mensagem e me olha com surpresa, seguida de raiva; mando um beijo pro viado. Ele me encara por um tempo e depois vira a cara, acovardado. Ótimo. Tempolada de taça ao toelho.

Billy Boy, eu era seu outro irmão mongoloide, o que nunca tinha comido ninguém, como cê contou pro seu amigo Lenny. O Lenny ria e ria como se estivesse quase tendo um ataque de asma. Aquilo não foi muito legal, não, seu filho da puta.

Dou uma piscadinha escancarada pra Nina e ela sorri, constrangida. Meu pai tava de olho nisso e veio pra cima de mim.

– Se me vier com qualquer uma das suas merdas, a coisa vai pegar. Certo?

Os olhos dele tavam cansados, enterrados bem no fundo das órbitas. Algo nele demonstrava uma tristeza e uma vulnerabilidade que eu nunca tinha visto antes. Eu queria dizer muita coisa pra esse homem, mas tava brabo com ele por permitir que esse circo fosse encenado.

– Vejo você lá em casa, pai. Vou ver a mãe.

Conversa ocorrida na cozinha e escutada a distância, sei lá quando. O pai: – Tem algo errado com esse menino, Cathy. Sempre quieto. Não é natural. Quer dizer, olha o Billy.

A mãe responde: – O menino só é diferente, Davie, só isso.

Diferente do Billy. Não um Billy Boy. Você nunca o perceberia por seu barulho, mas por seu silêncio. Quando ele se aproximar de você, não chegará gritando e anunciando suas intenções, mas simplesmente se aproximará. Olá, olá. Adeus.

Pego uma carona com o Tommy, o Spud e o Mitch. Eles não quiseram entrar, e vão embora rápido. Vejo a minha coroa, delirando, saindo do táxi com a ajuda de sua irmã Irene e de sua cunhada Alice. As titias weedjies tão cacarejando ao fundo; consigo escutar aquele sotaque horrível. Já é ruim o suficiente num homem, numa mulher é revoltante. Essas bruacas com cara ossuda não parecem à vontade. Obviamente sentem-se mais adequadas no funeral de algum parente idoso, onde há bons peixes pra fisgar.

A mãe agarra o braço da Sharon, mina do Billy, que já tá com um barrigão. Por que caralho as pessoas ficam agarrando os braços umas das outras nos funerais?

– Ele ia fazer de você uma mulher honesta, querida. Cê sempre foi a mulher pra ele – do jeito que falou, parecia estar tentando convencer tanto a si mesma quanto a Sharon. Pobre da mãe. Dois anos atrás ela tinha três filhos, agora só tem um, que é um viciado. Esse jogo não tá limpo.

– Cê acha que o exército vai me dar alguma coisa? – ouvi a Sharon perguntar pra minha tia Effie quando a gente tava entrando em casa. – Tô com o filho dele na barriga... é o bebê do Billy... – implora.

– Cê acha que a lua é feita de queijinho da cabeça do meu pau? – comento.

Felizmente, todo mundo parece perdido demais nos próprios pensamentos pra escutar.

Que nem o Billy. Ele começou a me ignorar quando me tornei invisível.

Billy, meu desprezo por você só cresceu com o passar dos anos. Ocupou o lugar do medo, espremeu ele pra fora como o pus de uma espinha. Claro, tem a faca. Uma ótima niveladora, muito boa para neutralizar dotes físicos, como Eck Wilson descobriu da pior maneira, no segundo ano. Cê me amou por ter feito aquilo, depois de ter superado o choque. Me respeitou e amou como um irmão pela primeira vez. Eu desprezei você mais do que nunca.

Cê sabia que sua força se tornou supérflua depois que eu descobri a faca. Cê sabia disso, seu filho da puta cagalhão. A faca e a bomba. Igualzinho a Não. Não a porra da bomba. Não...

Meu constrangimento e meu desconforto crescem. As pessoas enchem seus copos e dizem que o Billy era um grande cara. Como não consigo pensar em nada de realmente bom pra dizer sobre ele, fecho o bico. Infelizmente, um dos amigos soldadinhos dele, o cara com dente de coelho pra quem eu tinha mandado um beijo, vem andando de lado na minha direção. – Cê era irmão dele – diz, os dentes pendurados pra secar.

Eu devia ter adivinhado. Outro weedjie protestante fanático. Não surpreende que tenha largado essa quando o pai tava por perto. Me bota no centro das atenções. Viro o foco do olhar de cada um dos presentes. Que toelho malvado.

– De fato, eu era irmão dele, como você diz – concordo jocosamente. Posso sentir o ressentimento se acumulando contra mim. Preciso agradar à plateia.

A melhor maneira que eu conhecia de causar alguma impressão, sem me aliar demais à hipocrisia enojante e perversamente disfarçada de decência que preenchia o recinto, era ser fiel aos clichês. As pessoas os adoram em momentos como esse, porque se tornam reais e acabam mesmo significando alguma coisa.

– Billy e eu nunca concordamos em muita coisa...

– Ah, bem, vive le difference... – disse Kenny, um tio por parte da minha mãe, tentando colaborar.

– ... mas uma coisa que a gente tinha em comum é que nós dois gostávamos de uma boa cervejinha e de uma boa piada. Se ele consegue ver a gente agora, deve estar caindo na gargalhada de ver todo mundo emburrado aqui embaixo. Estaria dizendo se divirtam, pelamordedeus! Tem amigos e familiares meus por aqui. A gente não se vê há décadas.

Uma troca de cartões:

Para Billy

Feliz Natal e um Próspero Ano-Novo

(exceto entre 3 e 4:40 do dia primeiro)

Do Mark

Mark

Feliz Natal e um Próspero Ano-Novo

Billy

HMFC OK

Para Billy,

Feliz Aniversário

Do Mark

Depois o Billy e a Sharon são assim:

Mark

Feliz Aniversário

De Billy e Sharon

Na letra de mão da Sharon, que é como...

A ralé weedjie que compõe a família do meu pai sempre aparecia pra caminhada protestante, todo mês de julho, e ocasionalmente quando os Rangers jogavam em Easter Road ou Tynecastle. Gostaria que os viados ficassem em Drumchapel. Mas eles recebem a minha pequena e tocante homenagem ao Billy bem o suficiente, e todos concordam solenemente com a cabeça. Todos exceto o Charlie, que conseguiu enxergar o verdadeiro humor que estava por trás de mim.

– É tudo uma porra dum jogo procê, né, filho?

– Se você quer mesmo saber, é sim.

– Tenho pena de você – sacudiu a cabeça.

– Não, cê não tem – respondi pra ele, que se afasta, ainda sacudindo a cabeça.

O que vem em seguida é mais McEwan’s Export e uísque. Tia Effie começa a cantar um lamento anasalado em estilo country. Chego perto da Nina.

– Cê realmente desabrochou numa gracinha de menina, sabia disso? – quase babo em cima dela, podre de bêbado. Ela me olha dum jeito de quem já ouviu isso antes. Eu ia sugerir que a gente escapulisse pro Fox, ou de volta pro meu apartamento na Montgomery Street. É contra a lei comer a própria prima? Provavelmente. Eles têm leis pra evitar que cê faça qualquer coisa.

– Sinto muito pelo Billy – ela diz. Percebo que ela acha que sou um imbecil completo. Claro, ela tá completamente certa. Eu achava que não valia a pena conversar com qualquer pessoa com mais de vinte anos, até que fiz vinte anos. Quanto mais coisas eu vejo, mais acho que eu estava certo. Depois dessa idade, tudo se torna apenas uma concessão hedionda, uma rendição tímida, passo a passo, até a morte.

Infelizmente, o Charlie, ou Chick-chicy-chic-chicky-chicky, percebe a natureza solícita de minha conversa e se aproxima pra proteger a virtude de Nina. Não que ela precise da ajuda de um gordo sebento.

O canalha tenta me afastar com um gesto. Como ignoro, ele agarra meu braço. Ele tá bem chumbado. O sussurro dele é forte, e posso sentir o uísque no bafo dele.

– Escuta aqui, filho, se cê não picar a mula eu vou te dar uma no queixo. Se o seu pai não estivesse ali, já teria feito isso há muito tempo. Não gosto de você, filho. Nunca gostei. Seu irmão era dez vezes o homem que cê poderá ser um dia, seu viciado de merda. Se cê soubesse o sofrimento que causou pra sua mãe e seu pai...

– Pode falar francamente – interrompo, com a raiva pulsando no peito, mas contida mesmo assim por uma deliciosa exultação proveniente da consciência de que irritei o cara. Ficar na boa. É o único jeito de fuder com um hipócrita filho da puta.

– Ah, sim, pode crer que vou falar francamente, sr. universitário metido a besta. Vou arremessar você pra cima da porra daquela parede – o punho dele, maciço e tatuado, tava a poucos centímetros do meu rosto. Minha mão apertou com mais força o copo de uísque que eu tava segurando. Eu não ia deixar esse viado encostar a porra das mãos em mim. Se ele viesse pra cima, ia levar esse copo na cara.

Empurrei pra longe sua mão erguida.

– Se cê me desse uma surra, ia tá me fazendo um favor. Depois eu ia poder bater uma punheta pensando nisso. Nós, universitários desertores viciados em heroína e metidos a espertinhos, somos assim meio pervertidos. Porque cê não vale nada mais que isso, seu lixo de merda. Cê também tá dando a coisa como certa demais. Se quer ir pra rua, é só dizer.

Apontei pra porta. A sala pareceu encolher até ficar do tamanho do caixão do Billy e permanecer ocupada apenas por mim e pelo Chick. Mas havia outros. As pessoas estavam olhando pra gente.

O viado me empurrou de leve no peito.

– A gente já teve um enterro na família por hoje, ninguém tá a fim de mais um.

Meu tio Kenny veio e nos separou.

– Ignora esses canalhas protestantes. Vamolá, Mark, olha a sua mãe. Ela ia morrer se cê se metesse em encrenca aqui, é o funeral do Billy. Lembra onde cê tá, caralho.

O Kenny era legal, bem, pra falar a verdade ele era meio chato pra caralho, mas apesar dos defeitos dele eu preferia um irlandês do que um sebento. Venho de uma linhagem que vou te contar. Canalhas papistas irlandeses no lado da minha mãe, protestantes sebentos no do meu pai.

Dei um gole no uísque, desfrutando do gosto azedo e ardido na minha garganta e no meu peito, e estremecendo quando atingiu meu estômago debilitado. Fui até o banheiro.

Sharon, a mina do Billy, tava saindo. Barrei o caminho dela. Sharon e eu devemos ter trocado talvez uma dúzia de frases. Tava bêbada e tonta, seu rosto vermelho e inchado de álcool e gravidez.

– Pera aí um pouquinho, Sharon. Cê e eu temos que ter uma conversinha, tipo assim. É um assunto bem particular – conduzo ela pra dentro do banheiro e tranco a porta atrás de nós.

Começo a passar a mão nela enquanto resmungo um monte de besteiras sobre como a gente tem que permanecer juntos numa hora dessas. Passo a mão na protuberância dela e fico falando sobre o senso de responsabilidade que eu sinto pelo meu sobrinho ou sobrinha que ainda não nasceu. Começamos a nos beijar e eu desço a minha mão, sentindo os contornos da calcinha dela através do algodão do vestido de grávida que ela tá usando. Em pouco tempo eu tava com os dedo na buceta dela e ela tinha tirado meu pau pra fora das calça. Continuo falando merda, dizendo que sempre tinha admirado ela como pessoa e como mulher, coisa que ela não precisa escutar porque tá se abaixando pra me chupar, mas de qualquer jeito é reconfortante dizer. Ela coloca minha semiereção dentro da boca e eu fico duro rapidinho. Sem dúvida nenhuma, ela paga um bom boquete. Penso nela fazendo isso com o meu irmão e imagino o que a explosão deve ter feito com o caralho dele.

Ah, se o Billy pudesse ver a gente agora, fico pensando, mas, pra minha surpresa, de um jeito reverente. Imagino se ele pode fazer isso, e torço pra que sim. Foram os primeiros pensamentos bons que tive a respeito dele. Tiro o pau pouco antes de gozar e guio a Sharon pra posição cachorrinho. Levanto o vestido dela e abaixo as calcinha. A barriga pesada dela despenca na direção do chão. Tento colocar primeiro no cu dela, mas é apertado demais e meu pau dói quando eu forço.

– Não desse jeito, não desse jeito – ela diz, aí eu paro de procurar algum lubrificante e enfio os dedos na buceta dela. Ela tem um cheiro forte de bacalhau. Por outro lado, meu pau também tá com um cheiro odioso e flocos de queijinho estão visíveis no meu cabeção. Nunca fui muito fã de higiene pessoal. Deve ser a porção sebenta dentro de mim, ou a porção viciada.

Atendo os desejos de Sharon e fodo a buceta dela. É quase como meter uma linguiça numa cerca viva, mas acabo achando o ritmo e ela contrai os músculos. Lembro de como ela tá perto da hora de parir e de como eu tô fundo dentro dela, e posso me ver metendo na boca do feto. Uma ideia e tanto, uma foda e um boquete ao mesmo tempo. Isso me dá uma agonia. Dizem que dar uma trepada faz bem prum nenê em gestação, a circulação do sangue é boa pra eles, alguma merda assim. O mínimo que posso fazer é demonstrar interesse pelo bem-estar da criança.

Uma batida na porta, seguida da voz anasalada da Effie.

– O que tá acontecendo aí dentro?

– Tá tudo bem, a Sharon tava enjoada. Cerveja demais pra quem tá na situação dela – gemi.

– Cê tá cuidando dela, filho?

– Sim... tô cuidando dela... – arquejei, enquanto os gemidos da Sharon ficavam mais altos.

– Então tá bom.

Largo minha porra e tiro fora. Deito ela delicadamente, faço ela virar de lado e tiro seus enormes peitos cheios de leite pra fora do vestido. Me aconchego neles como um bebê. Me sinto maravilhosamente bem, numa paz tremenda.

– Isso foi bom pra caralho – suspiro, satisfeito.

– A gente vai continuar se vendo agora? – ela pergunta. – Hein? – tem um fundo de desespero e súplica na voz dela. Que mina louca.

Sentei e beijei o rosto dela, que parecia uma fruta inchada e madura além do ponto. Não queria me comprometer demais ali. A verdade é que agora ela me dava nojo. Essa maluca acha que basta uma trepada pra substituir um irmão pelo outro. O pior é que, provavelmente, ela nem tá tão errada.

– A gente tem que se levantar, Sharon, tipo, se limpar e tal. Eles não iam entender se nos pegassem. Eles não sabem de nada. Sei que cê é uma boa garota, Sharon, mas eles não entendem porra nenhuma.

– Sei que cê é um rapaz legal – ela diz em minha defesa, mas sem muita convicção. Com certeza ela era boa demais pro Billy, mas até mesmo a Myra Hindley ou a Margaret Thatcher seriam boas demais pra ele. Ela foi influenciada por essa merda de arranje-um-marido, um-filho, uma-casa que socam pra dentro das mulheres e não tinha muito como se autodefinir fora dessas referências miolo mole.

Uma outra batida soou na porta.

– Se cê não abrir essa porta eu vou derrubar – era o filho de Charlie, Cammy. Uma porra dum jovem policial que parecia a Taça Escocesa: grandes orelhas de alça de jarro, nada de queixo, pescoço delgado. O viado certamente achou que eu tava dando um pico. Bem, eu tava, mas não no sentido que ele imaginou.

– Tô bem... a gente já tá saindo – a Sharon se limpa, levanta as calcinhas e ajeita as coisas. Fico fascinado com a rapidez com que ela se move pra uma mina em gravidez avançada. Não conseguia acreditar que tinha acabado de comer ela. Eu ia me sentir mal por isso pela manhã, mas, como o Sick Boy vive dizendo, a manhã sabe cuidar de si mesma. Não há constrangimento nesse mundo que não possa ser apagado com um pouco de conversa furada e algumas cervejas.

Abro a porta.

– Calma lá, Dixon do Dock Green. Nunca viu uma mina prenha? – sua expressão desnorteada e boquiaberta despertou instantaneamente o meu desprezo.

Não curti o clima, então levei a Sharon pro meu apartamento. A gente só conversou. Ela me contou um monte de coisa que eu queria ouvir, coisas que minha mãe e meu pai nunca souberam e odiariam saber. Como o Billy era um merda com ela. Como batia nela ocasionalmente, a humilhava e a tratava em geral como um lixo excepcionalmente nojento.

– Por que cê continuou com ele?

– Ele era meu companheiro. Cê sempre acha que vai ser diferente, que cê pode mudar o cara, que cê pode fazer diferença.

Entendi aquilo. Mas é errado. Os únicos filhos da puta que chegaram a fazer alguma diferença pro Billy foram os Provos, e eles também eram uns merdas. Não me iludo com essa imagem de guerreiros da liberdade. Os canalhas transformaram meu irmão numa pilha de comida pra gato. Mas eles só apertaram o botão. A morte dele foi planejada por esses viados protestantes, cumprindo a ladainha todo mês de julho com suas faixas e flautas, enchendo a cabeça idiota do Billy com besteira sobre a Coroa, o país e toda essa merda. Eles vão voltar pra casa com a sensação de dever cumprido. Vão poder dizer pra todos os amigos que um membro da sua família morreu assassinado pelo IRA defendendo o Ulster. Isso vai alimentar a raiva sem sentido deles, fazer com que paguem cervejas pra eles nos pubs e sedimentar sua credibilidade imbecil diante de outros cuzões sectários.

Não quero ninguém se metendo com o meu irmão. Foram essas as palavras que o Billy falou pro Pops Graham e pro Dougie Hood quando eles entraram no pub pra me agredir, determinados a me fazer pagar pelas minhas drogas. As palavras do Billy. Que beleza. Enunciadas com tanta clareza e convicção que iam além da ameaça. Meus agressores só olharam um pro outro e caíram fora do pub. Dei uma risadinha abafada, o Spud também. A gente tava dopado, sem ligar pra porra nenhuma. O Billy Boy me ridicularizou, dizendo algo como “cê é um otário”; depois se juntou a alguns amigos seus, que pareciam decepcionados com a saída do Pops e do Dougie, o que os privara de uma desculpa pruma briga. Continuei rindo. Obrigado, rapazes, tem sido...

O Billy Boy me disse que eu tava arruinando minha vida com aquela merda. Ele me disse isso em diversas ocasiões. Tem sido real...

Merda. Merda. Merda. Mas que porra é essa, afinal? Hein, Billy? Ah, mas que merda. Eu não...

A Sharon tava certa. É difícil mudar as pessoas.

Mas toda causa precisa dos seus mártires. Então agora só quero que ela desapareça daqui pra que eu possa pegar meus troços, preparar uma dose e me picar em nome da causa do esquecimento.


Dilemas de um viciado Nº67

A privação é uma coisa relativa. A cada segundo milhares de bebês morrem de fome, que nem moscas. O fato de que isso tá acontecendo em outro lugar não nega essa verdade fundamental. No tempo que eu levo pra esmigalhar esses comprimidos, cozinhar eles e injetar, milhares de bebês em outros países, e quem sabe alguns por aqui mesmo, estarão mortos. No tempo que eu levo pra fazer isso, milhares de filhos da puta ricos estarão milhares de libras mais ricos, conforme seus investimentos prosperam.

Esmigalhando comprimidos: que imbecil de merda. Eu realmente devia deixar o ecstasy pro estômago. O cérebro e as veia são frágeis demais pra receber essa coisa direto.

Que nem o Dennis Ross.

O Dennis teve um barato do caralho com aquele uísque que injetou em si mesmo. Aí os olhos dele começaram a virar pra trás, escorreu sangue de suas narinas, e lá se foi o Denny. Quando cê vê o sangue do seu nariz cair no chão naquela quantidade... acabou a festa. Macheza de viciado? Que nada. Necessidade de viciado.

É claro que eu tô com medo, tô cagando nas calça, mas o eu que tá se cagando é um eu diferente daquele que tá esmigalhando os comprimidos. O eu que tá esmigalhando os comprimidos diz que a morte não pode ser pior do que não fazer nada pra interromper esse declínio persistente. Esse eu sempre vence as discussões.

Nunca existem verdadeiros dilemas com o vício. Eles só aparecem quando cê fica sem nada.


Exílio


Rastejando em Londres

Nem fudendo. Aonde é que esses viado foram, porra? A culpa é minha, caralho. Devia ter ligado pra dizer que vinha. Bem, eu é que ganhei a surpresa. Não tem nenhum fiadaputa em casa. A frieza da porta negra, de sua superfície carrancuda e mórbida, parece me dizer que eles saíram há muito tempo e vão demorar mais ainda pra voltar, se é que vão. Dou uma espiada pela caixa de correio, mas não consigo ver se tem algum envelope no pé da porta.

Chuto a porta só de frustração. A mulher da outra ponta do patamar, se bem me lembro era uma puta linguaruda, abre a porta e enfia a cabeça pra fora. Olha pra mim como se estivesse prestes a me fazer uma pergunta. Ignoro.

– Eles não tão. Não tão em casa há uns dias – ela me avisa, olhando desconfiada pra minha mochila esportiva como se tivesse cheia de explosivos.

– Essa é boa – resmungo irritado, virando minha cabeça pro teto, impaciente, torcendo pra que essa demonstração de desespero encoraje a mulher a dizer algo como: Eu conheço você. Você costumava ficar aqui. Deve estar exausto por ter viajado lá da Escócia até aqui. Entre, tome uma boa xícara de chá e espere seus amigos.

Mas o que ela diz é: – Naah... não vejo eles há pelo menos dois dias.

Buceta. Porra. Caralho. Merda.

Eles podiam estar em qualquer lugar. Podiam não estar em lugar nenhum. Podiam voltar a qualquer momento. Podiam não aparecer nunca mais.

Caminho pela Hammersmith Broadway. Londres parece estranha e alienígena depois de uma ausência de somente três meses, como acontece com os lugares familiares depois de que cê se afasta. É como se tudo fosse uma cópia do que cê conhecia antes, similar porém carente das qualidades usuais, meio como são as coisas num sonho. Dizem que cê precisa morar num lugar pra conhecer ele direito, mas na verdade cê tem que chegar nele virgem pra realmente enxergar. Lembro de caminhar pela Princes Street com o Spud, a gente odiou caminhar naquela rua horrenda, amortecida pelos turistas e consumidores, as maldições gêmeas do capitalismo moderno. Olhei pro castelo e pensei que pra gente era só mais uma construção. Fica registrado na nossa cabeça do mesmo jeito que as British Home Stores ou a Virgin Records. A gente tava indo pra esses lugares com a intenção de fazer uma orgia de furtos. Mas quando cê volta pra estação Waverley depois de ficar um tempo afastado, cê pensa: olha só, isso não é nada mau.

Tudo na rua parece estar meio fora de foco hoje. Isso provavelmente é falta de sono e de drogas.

A placa do pub é nova, mas a inscrição é velha. A Grã-Bretanha. A Grã-Bretanha Comanda. Nunca me senti britânico, porque não sou. É feio e artificial. Porém, também nunca me senti escocês. Escócia, a valente? Porra nenhuma. Escócia, a cagalhona. A gente estrangularia um ao outro até a morte pelo privilégio de lamber um cagalhão saindo pelo cu de algum aristocrata inglês. Nunca senti porra nenhuma por países, a não ser nojo. Deviam abolir a existência de todos eles. Matar cada político parasita filho da puta que subisse em algum lugar e gritasse mentiras e banalidades fascistas usando um terno e um sorriso bajulador.

O quadro me informa que tem uma noite skinhead gay no bar dos fundos. Cultos e subculturas se segmentam e se cruzam num lugar como esse. Cê pode ser mais livre aqui, não porque é Londres, mas porque não é o Leith. Somos todos vadias em férias.

Entro no bar aberto e procuro por um rosto familiar. A disposição interna e a decoração do local mudaram radicalmente, pra pior. O que antes era um lugar bom e fuleiro onde cê podia jogar cerveja na cabeça dos amigos e ser chupado no banheiro dos homens ou das mulheres virou um buraco assustadoramente asséptico. Alguns fregueses locais, com roupas baratas e rostos duros e preocupados, se agarravam a um canto do bar como se fossem sobreviventes de um naufrágio lutando por uma tábua de salvação, enquanto uns yuppies falavam merda alto. Ainda trabalhando, sempre no escritório, mas com álcool ao invés de telefones. Agora esse lugar tá equipado pra oferecer refeições a qualquer hora do dia pros funcionários dos escritórios que continuam a invadir a vizinhança. Davo e Suzy não viriam beber num toalete sem alma como este.

Um dos atendentes do bar, contudo, parece vagamente familiar.

– O Paul Davies ainda bebe aqui? – pergunto pra ele.

– Quem cê tá procurando, escocês? O fulano de cor que joga no Arsenal? – ele ri.

– Um cara grandão, de Liverpool. Cabelo escuro e arrepiado, um nariz que parece uma porra duma rampa de esqui. Impossível não notar o cara.

– Certo... sim, conheço o fulano. Davo. Anda por aí com aquela mina, uma garota baixinha, de cabelo preto curto. Ih, faz um tempão que não vejo esse pessoal por aqui. Nem sei se continuam pela área.

Bebo um pint do que parece mijo gasoso e troco uma ideia com o cara sobre os novos fregueses.

– O negócio, escocês, é que a maioria desses fulanos nem são yuppies genuínos – gesticula desdenhosamente prum grupo vestido de terno no canto. – Na maior parte, são uns porras duns balconistas de bunda lisinha, ou vendedores de seguro que dependem de comissão e recebem um punhado de libras por semana como salário. Essa porra toda é só imagem, né? Esses viados tão afundados até a porra do pescoço em dívidas. Ficam se pavoneando pela cidade usando ternos caros e fingindo que ganham cinquenta paus por ano. A maioria nem tem um salário de cinco dígitos, sabe.

Tinha muita coisa certa no que o cara disse, apesar de todo o rancor. Certamente tinha mais grana rolando aqui do que nas redondezas, mas uma coisa que os viados daqui tinham engolido é que bastava adotar o visual certo que tudo ia cair na mão deles, o que era uma mentira do caralho. Conheci alguns viciados dos loteamentos de Edimburgo com uma relação entre posses/dívidas mais saudável que a de alguns casais ganhando dois salários e cobertos de financiamento por aqui. Um dia vai dar merda, e das grandes. Tem sacolas inteiras de pedidos de reintegração de posse nos correios.

Volto pro apartamento. Nenhum sinal dos caras, ainda.

A mulher da porta em frente sai de novo. – Você não vai encontrar eles em casa – a voz dela é carregada de presunção e prazer com o sofrimento alheio. Essa velha podre é uma vadia de primeira ordem. Um gato preto serpenteia por ela e sai pro patamar da escada.

– Chita! Chita! Vem cá, sua danadinha de... – ela pega a gata e a abraça contra o peito, protetora, como se fosse um bebê, me lançando um olhar amargo como se eu pretendesse machucar de alguma forma aquele saco de merda.

Odeio essas porras de gatos, quase tanto quanto odeio cachorros. Defendo o banimento do uso de animais como bichos de estimação e o extermínio de todos os cães, com a exceção de uns poucos que poderiam ser exibidos em um zoológico. Essa é umas poucas coisas sobre as quais eu e o Sick Boy concordamos.

Viados. Onde eles tão, porra?

Volto ao pub e tomo mais dois pints. É de apertar a alma, o que os desgraçados fizeram com esse lugar. Que noites a gente costumava passar aqui. É como se o passado tivesse sido erradicado junto com a velha decoração.

Sem pensar muito, saí do pub e agora tô caminhando de volta pro lugar de onde vim, em direção à estação Victoria. Paro num telefone público; pego uns trocados espalhados pelos bolsos e minha agenda de endereços esfarrapada. Hora de procurar pousadas alternativas. Pode ser complicado. Eu me desentendi com o Stevie e a Stella, não seria mais bem-vindo por lá de jeito nenhum. O Andreas tá na Grécia, a Caroline tá de férias na Espanha, o Tony, aquele imbecil de merda do Tony, tá com o Sick Boy, que já voltou da França pra porra de Edimburgo. Esqueci de pegar as chaves do cara, e o desgraçado esqueceu de me lembrar.

Charlene Hill. Ela mora em Brixton. Primeira opção. Talvez até consiga uma trepada, se jogar bem com as carta. Uma trepada não faria mal nenhum... é isso que estar careta, bem careta, faz com você... tortura.

– Alô? – é a voz de outra mulher.

– Oi. Posso falar com a Charlene?

– Charlene? Ela não mora mais aqui. Não sei onde ela anda agora, acho que Stockwell... não tenho o endereço... peraí... MICK! MICK! CÊ TEM O ENDEREÇO DA CHARLENE?... CHARLEEENE! Não. Lamento. Não tenho.

Não é meu dia, porra. Vai ter que ser o Nicksy.

– Não. Não. Não Brian Nixon. Embora. Embora – uma voz asiática.

– Tem o endereço dele, parceiro?

– Não. Embora. Embora. Não Brian Nixon.

– Mas, tipo assim, ondé quele tá morando agora?

– Quê? Quê? Não posso entender você...

– Onde-está-morando-agora-meu-amigo-Bri-an-Nicks-on?

– Não Brian Nixon. Não drogas. Vai. Vai – o viado bate o telefone na minha cara.

Tá ficando tarde, e essa cidade me trancou do lado de fora. Um bêbado com sotaque de Glasgow me achaca vinte centavos.

– Cê é um garoto bom pra caralho, te digo isso, meu filho... – grunhe.

– Na boa, escocês – digo pra ele, no meu melhor sotaque cockney. Outros escoceses em Londres são um pé no saco. Principalmente os weedjies, que na maioria das vezes me irritam com seu jeito intrometido de falar, que fingem ser cordialidade. A última coisa que eu quero agora é ficar preso com um sebento desses na minha cola.

Penso em pegar o 38 ou o 55 até Hackney e apelar pra Mel em Dalston. Se a Mel não estiver em casa, porque o telefone ela já não atende, aí queimei mesmo todos os meus cartuchos.

Ao invés disso, acabo pagando pra entrar no cinema noturno de Victoria. Ele exibe filmes pornô noite adentro, até as cinco da manhã. É um saco de dormir pra todos os miseráveis do planeta. Bebuns, dependentes de heroína, vagabundos, viciados em sexo, psicopatas, todos convergem pra cá à noite. Jurei pra mim mesmo que nunca mais passaria uma noite aqui, depois da última vez.

Uns anos atrás eu tava aqui com o Nicksy e um sujeito foi esfaqueado. A polícia veio e simplesmente prendeu todo mundo em quem conseguiu botar as mãos, incluindo eu. Eu tava com um tijolo de haxixe comigo e precisei engolir o troço inteiro. Quando chegou a hora deles me entrevistarem na delegacia, eu não conseguia nem falar. Nos mantiveram nas celas durante a noite. No dia seguinte, levaram a gente pro tribunal de polícia da Bow Street, que fica bem do lado do xadrez, e lascaram uma multa por perturbação da ordem pública em todo mundo que tava incoerente demais pra prestar depoimento. O Nicksy e eu levamos uma alfinetada de trinta paus cada um. Isso quando trinta paus valiam trinta paus.

No entanto, aqui tô eu de novo. Se existe algo a se dizer, é que o lugar decaiu violentamente desde minha última visita. Todos os filmes são pornográficos, exceto um documentário horrivelmente violento no qual diferentes animais se rasgam em pedaços em locais exóticos. Seu teor explícito o distancia milhões de quilômetros dos trabalhos de David Attenborough.

– Seus negões de merda! Malditos negões de merda! – ruge uma voz com sotaque escocês enquanto um grupo de nativos arremessa lanças nas costelas de uma grande criatura parecida com um bisão.

Um escocês racista amante dos animais. Tem boa chance de ser um hun.

– Malditos selvagens imundos – acrescenta uma solidária voz cockney.

Que merda de lugar pra se estar. Tento me concentrar no filme pra desviar a atenção dos gritos e respirações pesadas que ressoam ao meu redor.

O melhor filme é alemão, dublado em inglês americano. A trama não tem muitas surpresas. É sobre uma mina bem novinha vestida com roupas da Bavária, que é fudida de tudo que é jeito e em todos os buracos por quase todos os homens e algumas mulheres da fazenda. Mas os cenários são bem inspiradores, e começo a entrar na onda. Essas imagens são obviamente o mais próximo de sexo que a maioria dos caras que frequenta essa espelunca são capazes de chegar; mesmo assim, pelos barulhos ao meu redor dá pra sacar que tem alguns casais trepando por perto, homens com mulheres, homens com homens. Percebo que tô de pau duro e fico quase tentado a bater uma punheta, mas o filme seguinte esmaga minha ereção.

Só podia ser britânico. Se passa num escritório londrino durante a temporada de festas de fim de ano e tem o título inspirado de: Festa no escritório. No elenco está Mike Baldwin, ou o ator Johnny Briggs, que faz o papel daquele cara em Coronation Street. É como um filme trash com menos humor e mais sexo. Mike acaba comendo alguém, mas nem merece, depois de ficar parecendo um cafajestezinho arrogante durante a maior parte do filme.

Fico o tempo todo caindo num sono delirante e acordando num sobressalto, minha cabeça saltando pra trás como se fosse se destacar dos ombros.

Pelo canto do olho, enxergo um cara pulando cadeiras pra sentar do meu lado. Ele bota a mão na minha coxa. Empurro a mão dele pra fora.

– Se manda. Tá querendo que eu arranque sua cabeça pra fazer embaixadinha, ô viado?

– Desculpa. Desculpa – diz, com sotaque europeu. É um velho e tal. A voz dele é muito patética e ele tem uma carinha murcha. Acabo ficando com pena dele.

– Não sou bicha, meu chapa – digo pra ele, que parece confuso. – Não sou homossexual – aponto pra mim mesmo, me sentindo meio ridículo. Que coisa imbecil de se dizer.

– Desculpa. Desculpa.

Isso meio que me faz pensar. Como é que eu sei que não sou homossexual se nunca trepei com outro cara, porra? Quer dizer, como é que eu posso ter certeza? Sempre pensei em mandar ver com outro cara, pra ver como é que é. Quero dizer, cê tem que tentar de tudo pelo menos uma vez. Isso posto, eu teria que ficar no assento do motorista. Não suportaria o cacete de um outro cara no meu rabo. Uma vez eu peguei uma bicha linda e bem novinha no London Apprentice. Levei ele pro velho apartamento em Poplar. Tony e Caroline entraram de repente e me pegaram fazendo um boquete no cara. Foi um constrangimento total. Chupando o pau dum cara que tava de camisinha. Foi como chupar um vibrador de plástico. Eu tava entediado pra caralho, mas o rapaz tinha me chupado primeiro e aí achei que tinha que rolar alguma reciprocidade. Ele me pagou um bom boquete, tecnicamente falando. Mas eu ficava brochando e tendo ataques de riso com a expressão no rosto dele. Ele parecia uma mina de quem eu tinha gostado há milênios; assim, com um pouco de concentração eu consegui, pra minha surpresa, esporrear dentro da borracha.

Tive que aguentar muita tiração de sarro do Tony devido a este episódio, mas a Caroline achou legal e confessou pra mim que ficou com uma baita inveja. Tinha achado o cara um gatinho.

Enfim, eu não me importaria de fazer de tudo com um cara, se me sentisse à vontade. Só pela experiência. O problema é que eu só curto mesmo mulher. Homens simplesmente não são sexies. A questão é puramente estética, não tem porra nenhuma a ver com moralidade.

O velho não dava exatamente a impressão de que merecia um lugar destacado na lista de candidatos com quem perder a virgindade homossexual. Mesmo assim, ele me diz que tem um lugar na Stoke Newington e pergunta se eu não gostaria de passar a noite por lá. Bem, Stoke não fica longe do endereço da Mel em Dalston, então pensei: Que se foda.

O velho é italiano e se chama Gi, que eu acho que é abreviação de Giovanni. Conta que tá trabalhando num restaurante e que tem mulher e filhos lá na Itália. Sinto que isso não é lá muito verdade. Uma das coisas realmente boas em ser viciado em heroína é que você topa com toneladas de mentirosos. Cê mesmo acaba desenvolvendo uma especialidade nessa área, além dum faro afiado pra sacar mentiras.

Pegamos um ônibus noturno de Victoria pra Stoke. Tem uma penca de jovens no ônibus; chapados, bêbados, indo a festas, voltando delas. Queria pra caralho estar com um destes grupos ao invés de com esse velho. Mas.

O apartamento de subsolo do Gi fica nas imediações da Church Street. Depois dali eu me perco, mas sei que não andamos a ponto de chegar a Newington Green. É escuro pra caralho lá dentro. Tem um velho aparador, um armarinho de gavetas e uma cama de metal enorme no meio de um cômodo fedorento e embolorado com saídas pra uma cozinha e um banheiro.

Lembrando minha impressão anterior a respeito desse cara, me impressiono ao ver fotos de uma mulher e filhos por todo o lugar.

– É sua família, cara?

– Sim, essa é minha família. Em breve eles vêm pra cá comigo.

Isso ainda não soava muito plausível pra mim. Talvez eu tenha ficado tão acostumado com mentiras que a verdade me soa indecentemente falsa. Mas mesmo assim.

– Deve sentir falta deles.

– Sim. Oh, sim – fala, e depois diz: – Deite na cama, meu amigo. Você pode dormir. Eu gosto de você. Você pode ficar aqui um pouco.

Lanço um olhar ameaçador pro tampinha. Ele não representa uma ameaça física, pensei; então que se foda, eu tô à deriva, e subi na cama. Tive uma centelha de dúvida ao me lembrar de Dennis Nilsen. Aposto que teve uns caras que acharam que ele não representava uma ameaça física antes que ele os estrangulasse, decapitasse e depois fervesse suas cabeças numa panela enorme. Nilsen trabalhava no mesmo Escritório de Empregos em Cricklewood em que trabalhava um cara de Greenock que eu conhecia. O cara de Greenock me disse que num certo Natal o Nilsen trouxe pro pessoal do escritório um curry que ele tinha preparado. Talvez seja mentira, mas nunca se sabe. De qualquer modo, tô tão fudido que fecho os olhos, sucumbindo ao meu cansaço. Fiquei um pouco tenso quando senti o velho se deitando do meu lado na cama, mas logo relaxei porque ele não fez gesto nenhum pra me tocar e nós dois estávamos completamente vestidos. Me senti deslizar pra dentro de um sono enfermo e desorientado.

Acordei sem fazer a mínima ideia de quanto tempo tinha dormido, com a boca ressecada e uma estranha sensação de umidade no rosto. Toquei a lateral da minha bochecha. Fios de um fluido grosso, pegajoso e branco como um ovo escorreram da minha mão. Me virei e vi o velho deitado do meu lado, agora nu, com porra pingando de seu pau pequeno e gordo.

– Seu velho safado de merda!... socou uma bronha em cima de mim enquanto eu tava dormindo... maldito velho bêbado filho da puta! – fui tomado pela fúria; acertei o carinha na boca e empurrei ele pra fora da cama. Parecia um gnomo gordo e repulsivo, com sua barriga inchada e sua cabeça redonda. Dei alguns chutes enquanto ele se encolhia no piso, e aí parei quando percebi que ele tava fungando.

– Puta que pariu. Carinha safado. Corno... – marchei pelo quarto, de um lado pro outro. O choro dele era perturbador. Puxei um roupão de uma das pontas de metal da beira da cama e cobri aquela nudez horrenda.

– Maria. Antonio – ele não para de chorar. Quando me dou conta, tô com o braço ao redor dele, confortando o carinha.

– Tudo bem, parceiro. Tudo bem. Desculpa. Não queria machucar você, só que, tipo assim, ninguém tinha batido uma em cima de mim antes.

Isso era definitivamente verdade.

– Você é muito gentil... o que posso fazer? Maria. Minha Maria... – o cara tava uivando. Sua boca chamava a atenção, parecendo um imenso buraco negro no crepúsculo. Ele fedia a bebida rançosa, suor e porra.

– Ei, vamolá, vamos descer pruma cafeteria. Papear um pouco. Te pago um café. Por minha conta. Tem um lugar legal na Ridley Road, perto do mercado, sabe? Já deve tá aberto a essa hora.

Minha sugestão foi motivada por doses iguais de interesse pessoal e altruísmo. Isso me levaria pra mais perto da casa de Mel em Dalston, e eu queria cair fora desse depressivo quarto de subsolo.

Ele se vestiu e saímos. Fomos a pé pela Stoke High Street e Kingsland Road, até o mercado. A cafeteria estava surpreendentemente cheia, mas conseguimos uma mesa. Pedi um bagel de queijo e tomate e o velho pediu uma daquelas horrorosas carnes pretas cozidas, aquele troço que os judeus de Stamford Hill parecem curtir.

O cara começa a tagarelar sobre a Itália. Ele foi casado por anos com essa tal de Maria. A família descobriu que ele e Antonio, irmão mais novo da Maria, tavam se comendo. Na verdade eu não devia usar essas palavras; o mais correto seria dizer que eles eram amantes. Acho que ele amava o cara, mas também amava a Maria e tal. Achei que as drogas me causavam problemas, mas tem uns caras que conseguem realmente bagunçar a própria vida com o amor. Nem vale a pena pensar nisso.

Mas enfim, tinha dois outros irmãos, machões, católicos e, de acordo com Gi, envolvidos com a Camorra napolitana. Os caras não puderam tolerar a situação. Pegaram o Gi de jeito, na frente do restaurante da família. Desceram o cacete de todas as formas possíveis em cima do pobrezinho. O Antonio recebeu o mesmo tratamento mais tarde.

Depois disso, o Antonio deu cabo da própria vida. O Gi me contou que na cultura dele ser desonrado daquela maneira é uma coisa muito séria. Fico pensando comigo mesmo que isso é bem sério em qualquer porra de cultura. Aí o Gi me conta que o Antonio se jogou na frente de um trem. Decidi que talvez seja mesmo ainda mais sério na cultura dele, no fim das contas. O Gi se mandou pra Inglaterra, onde passou a trabalhar em diversos restaurantes italianos, morar em espeluncas caindo aos pedaços, beber demais e explorar e ser explorado pelos jovens rapazes e tias velhas que cata por aí. Parece uma vida um tanto desgraçada.

Meu ânimo decolou quando cheguei perto da casa da Mel; escutei reggae escapando pra rua e enxerguei as luzes acesas. A pontinha do que devia ter sido uma festa considerável ainda tava acesa.

Foi bom me ver em meio a rostos conhecidos. Tava todo mundo lá, todos os caras, Davo, Suzy, Nicksy (completamente fora de órbita) e Charlene. Tinha corpos atirados por todo canto. Duas minas tavam dançando juntas, e a Char tava dançando com um cara. O Paul e o Nicksy tavam fumando. Ópio, não haxixe. A maioria dos ingleses viciados que conheço fumam a heroína, ao invés de injetar. Agulhas parecem ser uma coisa mais escocesa, mais de Edimburgo. Peço um pega pros caras, de qualquer modo.

– Ducaralho ver você de novo, meu filho! – o Nicksy me dá um tapa nas costas. Ao ver o Gi, cochicha: – Mas quem é esse velho, hein? – eu tinha trazido o carinha junto comigo. Não tive coragem de abandonar o cara depois de ouvir seus relatos de infortúnio.

– Massa, parceiro. Bom ver você. Esse aqui é o Gi. Grande parceiro meu. Mora na Stoke – bato nas costas do Gi. O pobrezinho faz uma expressão como a que se veria num coelho encostado nas grades de sua gaiola, pedindo um pouco de alface.

Vou dar uma volta e deixo o Gi conversando com o Paul e o Nicksy sobre Napoli, Liverpool e West Ham, na linguagem masculina internacional do futebol. Às vezes eu entro nessa conversa, outras vezes o tédio sem sentido dela me deprime até eu ter vontade de morrer.

Na cozinha, dois caras tão discutindo sobre a carga tributária. Um dos rapazes é esclarecido, o outro é uma porra dum invertebrado imbecil, devoto do Partido Trabalhista/Tóri.

– Cê é um babaca por dois motivos. Primeiro, cê acha que o Partido Trabalhista tem alguma chance de ganhar de novo neste século, e segundo, cê acha que faria alguma porra de diferença, por mínima que fosse, caso eles conseguissem – meto o pé na porta e digo pro viado. Ele fica parado, de boca aberta, enquanto o outro cara sorri.

– É exatamente isso que eu tava tentando dizer pro desgraçado – diz, com um sotaque de Birmingham.

Caio fora, deixando o invertebrado ainda sem saber o que dizer. Entro num quarto onde um cara tá caindo de boca numa mina a cerca de um metro do local onde uns viciados tão se dopando. Olho pra eles. Caralho, tão usando o equipamento completo, injetando e tudo o mais. Lá se vão minhas teorias.

– Quer tirar uma foto, parceiro? – pergunta um magrelinho encrenqueiro metido a gótico que tá esquentando a colher.

– Quer ficar com a boca arrebentada, seu viado? – respondo à pergunta dele com outra pergunta. Ele desvia o olhar e continua com o que tá fazendo. Mantenho o olhar fixo no topo da cabeça dele por um tempo. Percebendo que o viado se cagou todo, me dou por satisfeito e esfrio a cabeça. Parece que adquiro esse tipo de comportamento sempre que desço pro sul. Desaparece depois duns dias. Acho que sei por que isso me acontece, mas levaria muito tempo pra explicar e soaria patético demais. Ao sair do quarto, escuto a mina gemendo na cama e o cara dizendo: – Que bucetinha mais doce cê tem, gata...

Saio de fininho pela porta com aquela voz calma e lenta ressoando no meu ouvido: – Que bucetinha mais doce cê tem, gata... – e ela de repente torna bem óbvio pra mim exatamente o que eu andava procurando.

Não seria muito exato dizer que há um excesso de opções por aqui. No quesito de fodas em potencial, o cenário tá desanimador. A essa altura da manhã, as mulheres mais desejáveis ou já deram a banda, ou já deram a bunda. A Charlene tá na mira, bem como a mulher que o Sick Boy comeu no aniversário de vinte e um anos anos dela. Até mesmo a mina com olhos que lembram os do Marty Feldman e uns cabelos parecidos com pentelhos tem lá sua chance.

É a história da porra da minha vida. Chegar cedo demais, ficar bebum ou chapado demais por causa do tédio e estragar tudo, ou chegar tarde demais.

O pequeno Gi tá em pé ao lado da lareira, bebendo uma latinha de cerveja. Parece assustado e perdido. Penso comigo mesmo que ainda posso acabar metendo no sujo do cara e era isso.

Essa ideia me deixa deprimido pra caralho. Mas enfim, somos todos vadias em férias.


Sangue ruim

Conheci Alan Venters no grupo de autoajuda “HIV e Positivo”, embora ele não tenha participado daquele grupo por muito tempo. Venters não cuidava muito bem de si mesmo, e logo contraiu uma das várias infecções oportunistas a que estamos sujeitos. Sempre acho engraçado o termo “infecção oportunista”. Em nossa cultura, parece invocar alguma qualidade admirável. Penso no “oportunismo” do empreendedor que identifica uma brecha no mercado, ou no do atacante dentro da grande área. Umas pentelhas traiçoeiras, essas infecções oportunistas.

Os membros do grupo, em termos gerais, estavam todos em uma situação médica similar. Todos nós éramos positivos para anticorpos, mas em maioria assintomáticos. Em nossos encontros, a paranoia nunca estava muito distante da superfície; todo mundo parecia estar avaliando discretamente as glândulas linfáticas dos outros em busca de sinais de inchaço. Era desconcertante sentir os olhos das pessoas se desviando para o lado da sua cabeça durante uma conversa.

Esse tipo de comportamento aumentava ainda mais o sentimento de irrealidade que se abatia sobre mim naquela época. Eu realmente não conseguia assimilar o que acontecera comigo. Em um primeiro momento, os resultados do teste pareceram simplesmente inacreditáveis, totalmente incongruentes com o que eu sentia e com minha aparência saudável. Uma parte de mim continuava convencida de que algum erro devia ter sido cometido, apesar de eu ter feito o teste três vezes. Minha autoilusão deveria ter sido despedaçada quando a Donna se recusou a me ver, mas ela continuava presente, em segundo plano, com uma insistência implacável. Parece que a gente sempre acredita no que quer acreditar.

Parei de comparecer às reuniões do grupo depois que internaram o Alan Venters. Isso simplesmente me deprimiu e, de qualquer modo, eu queria usar meu tempo visitando o cara. O Tom, meu responsável e um dos orientadores do grupo, aceitou minha decisão com relutância.

– Olha, Dave, acho que você ir visitar o Alan no hospital é muito bom; pra ele. Porém, no momento, estou mais preocupado com você. Você está em um ótimo estado de saúde, e o objetivo do grupo é nos encorajar a aproveitar as coisas ao máximo. Não paramos de viver apenas porque somos HIV positivo...

Pobre Tom. Sua primeira gafe do dia. – Que “nós” é esse, Tom? Quando você for HIV positivo, não deixe de me contar.

As bochechas saudáveis e rosadas de Tom coraram. Isso ele não conseguia evitar. Anos de prática em habilidades interpessoais intensivas tinham lhe ensinado a esconder os sinais visuais e verbais que pudessem delatar nervosismo. Em face ao constrangimento, não se poderia esperar dele nenhum contato visual evasivo ou voz trêmula. Não do velho Tom. Infelizmente, Tom não pode fazer nada em relação às manchas vermelhas incandescentes que tomam conta dos lados de seu rosto em tais ocasiões.

– Me desculpe. – Tom se retratou, assertivamente. Tinha o direito de cometer erros. Sempre dizia que as pessoas tinham esse direito. Tente dizer isso ao meu sistema imunológico defeituoso.

– Só estou preocupado com a sua escolha de passar seu tempo com Alan. Observar ele definhando não vai ser bom para você e, além disso, o Alan estava longe de ser o membro mais positivo do grupo.

– Ele era certamente o membro mais HIV positivo.

Tom optou por ignorar meu comentário. Tinha o direito de não responder ao comportamento negativo alheio. Todos tínhamos esse direito, ele nos dizia. Eu gostava do Tom. Ele arrastava seu arado, abrindo na terra um sulco solitário, sempre tentando ser positivo. Eu achava que o meu emprego, que tratava de observar corpos inanimados sendo abertos pelo bisturi de Howison, era deprimente e alienante. Mas aquilo era um verdadeiro piquenique perto de observar almas se dobrando de sofrimento. Era isso que Tom precisava enfrentar nas reuniões do grupo.

A maioria dos membros do “HIV e Positivo” era usuária de drogas intravenosas. Pegaram o HIV nas galerias de drogados que floresciam na cidade em meados dos anos 80, depois que os fornecedores de material cirúrgico da Bread Street foram fechados. Isso interrompeu o fluxo de seringas e agulhas novas. Em seguida, restaram apenas as seringas coletivas e o compartilhamento sem restrições. Tenho um amigo chamado Tommy que começou a usar heroína por viver andando com uns caras do Leith. Um deles eu conheço, um cara chamado Mark Renton, com quem trabalhei nos meus tempos de carpinteiro. É irônico que o Mark esteja usando heroína há anos e ainda não tenha, até onde sei, se infectado com o HIV, enquanto eu jamais toquei nisso em minha vida. Contudo, havia viciados o suficiente presentes no grupo pra você se dar conta de que ele podia ser a exceção, e não a regra.

Reuniões em grupo costumavam ser um negócio tenso. Os viciados nutriam algum rancor pelos dois homossexuais do grupo. Acreditavam que o HIV começou a se espalhar na comunidade usuária de drogas da cidade através de um proprietário de imóvel bicha e explorador que trepava com seus inquilinos viciados e doentes em troca do aluguel. Eu e duas mulheres, uma das quais era a parceira não usuária de um viciado em heroína, nutríamos rancor por todos, uma vez que não éramos nem homossexuais nem viciados. No início, como todo mundo, eu acreditava que tinha sido “inocentemente” infectado. Era fácil demais culpar os viciados em heroína ou as bichas naquele momento. Contudo, eu tinha visto os cartazes e lido os folhetos. Lembro da época do punk, os Sex Pistols dizendo que “ninguém é inocente”. Nada mais verdadeiro. O que também precisa ser dito, entretanto, é que alguns são mais culpados do que outros. Isso me faz voltar ao Venters.

Dei uma chance a ele. Uma chance de demonstrar arrependimento. Era muito mais do que o canalha merecia. Em uma sessão em grupo, contei a primeira de diversas mentiras, cujo rastro me levaria à posse da alma de Alan Venters.

Contei ao grupo que tinha feito sexo com penetração com outras pessoas sem estar protegido, sabendo perfeitamente bem que tinha o HIV, e que agora me arrependia disso. A sala toda caiu em um silêncio mortal.

As pessoas se remexeram nervosamente nas cadeiras. Então uma mulher chamada Linda começou a chorar, sacudindo a cabeça. Tom perguntou se ela queria abandonar a reunião. Ela disse que não, que esperaria pra escutar o que as pessoas tinham para dizer, dirigindo sua resposta maldosamente na minha direção. Mas eu mal tomava conhecimento da raiva dela; não tirei meus olhos de Alan Venters por um instante sequer. Ele tinha uma característica expressão perpétua de tédio no rosto. Tive certeza de que um leve sorriso passou rapidamente pelos lábios dele.

– Isso foi algo muito valente a se dizer, Davie. Tenho certeza de que exigiu muita coragem – disse Tom com solenidade.

Nem tanto, seu babaca de merda, foi uma porra duma mentira. Dei de ombros.

– Tenho certeza de que um tremendo fardo de culpa foi tirado de cima de você – continuou Tom, levantando as sobrancelhas, me convidando a dizer alguma coisa. Dessa vez, aceitei a oportunidade.

– Sim, Tom. Só ter a chance de dividir isso com todos vocês. É horrível... não espero que as pessoas me perdoem...

A outra mulher do grupo, Marjory, me dirigiu um insulto escarnecedor que não consegui captar bem, enquanto Linda seguia chorando. Nenhuma reação surgia do cara que estava sentado na cadeira em frente à minha. Seu egoísmo e falta de decência me enojavam. Sentia vontade de acabar com a vida dele usando minhas mãos, ali mesmo, naquela hora. Lutei para controlar meus impulsos, saboreando a riqueza de meu plano para destruí-lo. A doença podia levar o corpo dele; esta era sua vitória, não importa que força maligna fosse. A minha seria maior, mais esmagadora. Eu queria o espírito dele. Tinha planos de talhar feridas mortais em sua alma supostamente imortal. Amém.

Tom olhou ao redor do círculo: – Alguém se solidariza com Davie? Como vocês se sentem em relação a isso?

Depois de uma rodada de silêncio, durante a qual meus olhos permaneceram apontados para a figura impassiva de Venters, o Pequeno Goagsie, um dos viciados do grupo, começou a resmungar nervosamente. Então, desembuchou numa arenga terrível, coisa que eu estava esperando do Venters.

– Acho bom que o Davie tenha dito isso... eu fiz a mesma coisa... fiz a mesma porra... uma mina inocente que nunca tinha feito porra nenhuma contra ninguém... eu odiava o mundo... quero dizer... eu pensei, por que caralho eu devia me importar? O que foi que me sobrou dessa vida... tenho vinte e três e nunca tive nada, nem um emprego... por que me importar... quando contei pra mina, ela perdeu o controle... – ele chorava como uma criança. Em seguida, levantou os olhos pra mim e abriu, por trás das lágrimas, o sorriso mais lindo que eu já tinha visto em qualquer pessoa, em toda a minha vida. – ... mas ficou tudo bem. Ela fez o teste. Três vezes durante seis meses. Nada. Ela não foi infectada...

Marjory, que foi infectada nas mesmas circunstâncias, soltou um ruído de desaprovação na minha direção. E então aconteceu. Aquele viado do Venters revirou os olhos e sorriu pra mim. Foi o suficiente. Aquele era o momento. A raiva ainda estava lá, mas misturada a uma grande calma, uma profunda clareza. Devolvi o sorriso a ele, me sentindo como um crocodilo semissubmerso de olho em um animal macio e peludo bebendo água na beira do rio.

– Nah... – o Pequeno Goagsie gemeu de um jeito lamentável para Marjory –, não foi assim... esperar os testes dela foi pior do que esperar os meus... cês não entendem... eu não... quer dizer, eu não... não como se...

Tom veio para socorrer a massa trêmula e desarticulada na qual ele havia se transformado.

– Não vamos esquecer da tremenda raiva, ressentimento e amargura que todos vocês sentiram quando souberam que eram positivos para anticorpos.

Essa foi a deixa para que uma de nossas costumeiras e intermináveis discussões entrasse com tudo. Tom enxergava isso como “lidar com a raiva” através de um “confronto com a realidade”. O processo devia ser supostamente terapêutico, e de fato parecia mesmo ser para muitos no grupo, mas eu o achava cansativo e deprimente. Talvez fosse assim porque, naquela época, meus planos pessoais eram diferentes.

No decorrer desse debate sobre responsabilidade pessoal, Venters, como era normal em tais ocasiões, fez sua costumeira contribuição construtiva e iluminadora. – Merda pura – ele exclamava sempre que alguém argumentava algo com paixão. Como sempre fazia, Tom perguntava por que ele achava isso.

– Só acho – Venters respondia, dando de ombros. Tom perguntava se ele podia explicar por quê.

– É simplesmente um conflito de visões pessoais.

Tom respondia perguntando qual seria a visão dele. Alan ou dizia: – Não tô a fim – ou: – Tô pouco me fudendo – esqueci as palavras exatas que ele usava.

Então Tom perguntava por que ele estava lá. Venters dizia: – Então vou embora – ele saía, e a atmosfera melhorava instantaneamente. Era como se alguém que tivesse soltado um peido repulsivo e odioso de algum modo o sugasse de volta pra dentro de seu cu.

Mas ele voltava, como sempre, ostentando aquela expressão maligna e zombeteira. Era como se o Venters acreditasse que fosse o único imortal. Sentia prazer em ver os outros tentando ser positivos, para depois cortar o barato deles. Nunca tão abertamente a ponto de ser mandado embora do grupo, mas o suficiente para reduzir o moral dele em um grau significativo. A doença que atormentava seu corpo era um docinho de coco comparada à doença mais obscura que tomava conta de sua mente abjeta.

Ironicamente, Venters me enxergava como um espírito cúmplice, ignorando que minha única razão para comparecer aos encontros era a possibilidade de examiná-lo. Eu nunca falava no grupo, e aperfeiçoei um olhar cínico para usar quando qualquer outro o fizesse. Tal comportamento forneceu a base a partir da qual pude me enturmar com Alan Venters.

Tinha sido fácil fazer amizade com esse cara. Ninguém mais queria conhecer ele. Fiquei amigo dele simplesmente por falta de alternativas. Começamos a beber juntos. Ele compulsivamente, eu com cautela. Comecei a aprender sobre a vida dele, em um acúmulo constante, profundo e sistemático de conhecimento. Eu tinha me formado em química na Strathclyde University, mas nunca dediquei a meus estudos dessa matéria um rigor ou entusiasmo vagamente comparáveis aos que dediquei a meu estudo de Venters.

Como a maioria das pessoas em Edimburgo, Venters tinha contraído a infecção de HIV no compartilhamento de agulhas ao usar heroína. Ironicamente, antes de ser diagnosticado como HIV positivo ele havia largado o vício, mas se tornara um bêbado incorrigível. O modo indiscriminado como ele bebia, ocasionalmente enfiando um pãozinho de bar ou torrada goela abaixo durante maratonas de bebedeira, significava que seu organismo enfraquecido era presa fácil para todo tipo de infecção potencialmente mortal. Durante o período em que manteve relações sociais comigo, profetizei com segurança que ele duraria pouco tempo.

E foi isso mesmo que aconteceu; logo uma série de infecções estava circulando em seu corpo. Isso não fez diferença nenhuma pra ele. Venters continuou se comportando como sempre. Começou a comparecer ao hospital para doentes terminais, ou à unidade, como chamam. Primeiro como paciente de ambulatório, depois com um leito só pra ele.

Parecia estar sempre chovendo quando eu fazia aquela jornada até o hospital. Uma chuva penetrante, gelada e persistente, com ventos que atravessavam todas as suas camadas de roupa como um raios X. Calafrios significam resfriado, e resfriados podem significar morte, mas isso não queria dizer muita coisa pra mim naquela hora. Agora, é claro, eu me cuido. Na ocasião, porém, eu tinha uma missão exaustiva: havia trabalho a ser feito.

O prédio do hospital não é desprovido de atrativos. Cobriram os blocos cinzentos com um belo padrão de tijolos amarelos. Mas aquele lugar não tinha nada a ver com a terra encantada de Oz.

Cada visita a Alan Venters tornava a última delas, bem como minha vingança final, um pouco mais próxima. Logo chegou o ponto em que não havia tempo de sobra para tentar extrair desculpas sinceras dele. Em um determinado estágio, pensei desejar mais o arrependimento de Venters do que uma revanche pessoal. Se eu tivesse conseguido, teria morrido acreditando na bondade fundamental do espírito humano.

O receptáculo enrugado de pele e osso que continha a força vital de Venters dava impressão de ser um lar inadequado para qualquer tipo de espírito, e especialmente para um no qual se pudessem investir suas esperanças pela humanidade. Um corpo fraco e decadente, porém, deveria trazer o espírito para mais perto da superfície, tornando-o mais aparente para nós, mortais. Foi isso que a Gillian, do hospital onde eu trabalhava, me contou. A Gillian é muito religiosa, e acreditar nisso é bem a cara dela. Todos nós enxergamos o que queremos enxergar.

O que eu realmente queria? Quem sabe sempre tenha sido vingança, ao invés de arrependimento. Venters poderia ter matraqueado por perdão como um bebê com cara de choro. Talvez não fosse o suficiente para me impedir de fazer o que planejava fazer.

Essa conversação interna deriva de toda a orientação psicológica que recebi do Tom. Ele enfatizava verdades básicas: você ainda não está morrendo, você tem sua vida a viver até sua hora chegar. Sustentando essas verdades, estava a crença de que a amarga realidade da morte iminente pode ser afastada ao tentarmos investir na realidade presente da vida. Eu não acreditava nisso na época, mas agora acredito. Por definição, deve-se viver até morrer. Melhor fazer dessa vida uma experiência tão agradável e completa quanto for possível, para o caso da morte ser mesmo uma bosta, o que suspeito que será.

A enfermeira do hospital parecia um pouco com a Gail, uma mulher com quem saí por uns tempos; com resultados bem desastrosos, por sinal. Tinha a mesma expressão serena no rosto. No caso da enfermeira havia boas razões, pois a reconheci como tendo fins profissionais. No caso da Gail tal desapego era, creio eu, inadequado. Essa enfermeira olhou para mim de um jeito tenso, sério e indulgente.

– Alan está muito fraco. Não se demore muito, por favor.

– Compreendo – sorri, afável e melancólico. Já que ela estava fazendo o papel de profissional dedicada, julguei melhor fazer o papel de amigo compadecido. Acho que eu não estava me saindo nada mal.

– Ele tem muita sorte de ter um amigo tão bom – disse, obviamente perplexa com o fato de que uma abominação miserável como aquela pudesse ter qualquer amigo. Balbuciei alguma coisa sem sentido e entrei no quartinho. Alan estava com um aspecto horrível. Fiquei muito preocupado; temia seriamente que aquele canalha não durasse mais uma semana, que pudesse escapar do destino terrível que eu havia montado para ele. O tempo precisava ser bem calculado.

No início, testemunhar a grande agonia física de Venters me dava um grande prazer. Nunca vou me permitir chegar a um estado como aquele quando adoecer. Nem fudendo. Vou deixar o motor ligado e me fechar na garagem. Venters, sendo o cagalhão que é, não teve colhões para partir desta para a melhor por iniciativa própria. Resistiria até o amargo fim, nem que fosse apenas para criar o máximo de inconveniências para todos.

– Tudo bem, Al? – perguntei para ele. Um pergunta boba, na verdade. As convenções sempre nos impõem sua insensatez em momentos inadequados como esse.

– Nada mal... – ofegou.

Tem mesmo certeza, Alan, meu bom menino? Nada errado? Você parece um pouquinho doente. Deve ser apenas um soprinho desse vírus que anda espalhado por aí. Já pra cama com uma aspirina e você vai estar novinho em folha amanhã.

– Alguma dor? – pergunto, esperançoso.

– Nah... eles têm uns remédio... é só minha respiração... – segurei a mão dele e senti uma pontada de satisfação quando os seus dedos raquíticos e patéticos apertaram com força. Pensei que ia acabar rindo na sua cara esquelética enquanto os seus olhos cansados insistiam em fechar.

Alan, pobre Alan. Eu conhecia ele, enfermeira. Ele era um babaca, uma peste infinita. Sufocando o riso, observei enquanto ele batalhava por fôlego.

– Tudo bem, parceiro, eu tô aqui – eu disse.

– Você é um sujeito bom, Davie... – ele balbuciou. – ... pena que a gente nunca se conheceu antes disso... – abriu os olhos e os fechou de novo.

– Foi uma pena mesmo, seu viadinho com cara de merda... – sussurrei diante de seus olhos fechados.

– O quê?... o que foi isso... – a fadiga e os remédios o estavam fazendo delirar.

Seu viado preguiçoso. Fica tempo demais deitado nessa cama. Devia sair desse buraco pra fazer um pouco de exercício. Uma corridinha ao redor do parque. Cinquenta apoios. Duas dúzias de agachamentos.

– Eu disse que é uma pena que a gente tenha se conhecido em circunstâncias assim.

Ele gemeu satisfeito e caiu no sono. Extraí seus dedos descarnados da minha mão.

Tenha sonhos desagradáveis, viado.

A enfermeira entrou para conferir meu camarada. – Muito antissocial. Longe de ser o modo ideal pra se tratar um convidado – sorri, olhando para o quase cadáver inerte que Venters se tornara. Ela forçou uma risada nervosa, provavelmente pensando se tratar de humor negro de homossexuais, ou de viciados, ou de hemofílicos ou de seja lá o que ela imaginava que eu era. Estou pouco me lixando pra ideia que ela fazia de mim. Vejo a mim mesmo como o anjo vingador.

Matar esse saco de merda seria apenas um grande favor para ele. Esse era o problema, mas consegui resolvê-lo. Como você atinge um homem que vai morrer em breve, sabe disso e não está nem aí? Ao conversar, mas, principalmente, ao escutar Venters, descobri como. Você fere ele através dos vivos, através das pessoas de que eles gostam.

A canção diz que “todo mundo acaba amando alguém”, mas Venters parecia desafiar essa generalização. O sujeito simplesmente não gostava de pessoas, e elas mais do que correspondiam. Venters via a si mesmo num papel de adversário de outros homens. Conhecidos antigos eram descritos com desprezo: “um comerciante ladrão”, ou com escárnio: “um baita dum otário”. A descrição empregada dependia de quem tinha ofendido, explorado ou manipulado quem no caso em questão.

As mulheres caíam em duas categorias confusas. Ou elas tinham “uma buça pra chupar” ou “uma buça pra meter”. Era evidente que Venters não enxergava muita coisa em uma mulher além do que ele chamava de “buraco peludo”. Até mesmo alguns comentários depreciativos acerca de seus peitos ou bundas poderiam ser considerados como um alargamento de horizontes. Como esse canalha poderia amar alguém? Dei chance ao tempo, contudo, e a paciência colheu sua recompensa.

Embora fosse um merda desprezível, Venters gostava de uma pessoa. Não havia como não reparar na mudança de seu tom de conversa quando empregava a expressão “o pequerrucho”. Discretamente, bombeei dele informações a respeito do filho de cinco anos, chamado Kevin, que ele tinha com uma mulher de Wester Hailes, uma “vaca” que não o deixava ver a criança. Parte de mim já amava essa mulher.

A criança me mostrou de que maneira Venters poderia ser atingido. Em contraste com seu comportamento normal, ele era atingido pela dor e levado à incoerência pelos sentimentos quando contava como nunca pudera ver o seu filho crescer, sobre o quanto amava “o gurizinho”. Era por isso que Venters não temia a morte. Acreditava realmente que continuaria vivo, de algum modo, através de seu filho.

Não tinha sido difícil me insinuar na vida de Frances, a ex-namorada de Venters. Ela detestava Venters com uma virulência que a tornou benquista a meus olhos, embora eu não me sentisse atraído por ela de nenhum outro modo.

Depois de tê-la investigado, cruzei com ela acidentalmente-de-propósito em uma boate ordinária na qual interpretei o papel de pretendente encantador e atencioso. Dinheiro não foi problema, é claro. Ela se envolveu rapidinho, pois obviamente nunca tinha sido tratada decentemente por um homem em sua vida e não estava acostumada à grana, vivendo com o dinheiro do pão e um filho para criar.

A pior parte foi quando chegou no sexo. Insisti, é claro, em usar uma camisinha. Antes de chegarmos a esse estágio, ela tinha me falado sobre o Venters. Com um tom nobre, disse que confiava nela e estaria preparado para fazer amor sem uma camisinha, mas queria remover o elemento de incerteza de sua mente e, pra ser honesto, já estivera com um número de pessoas diferentes. Dada sua experiência anterior com Venters, dúvidas desse tipo deveriam estar presentes. Quando ela começou a chorar, achei que tinha arruinado tudo. Mas suas lágrimas eram de gratidão.

– Você é uma pessoa muito legal, Davie, sabia disso? – disse. Se soubesse o que eu ia fazer, não teria cultivado uma opinião tão elevada. Me senti mal com isso, mas era só pensar em Venters que a sensação desaparecia. Eu iria até o fim, pode crer.

Calculei meu cortejo de Frances para coincidir com o declínio de Venters a um estado grave de doença e, com isso, à sua condição de incapacidade no hospital. Uma série de doenças estava em campo para acabar com Venters, sendo que a líder em campo era a pneumonia. Venters, em consonância com muitos caras infectados com o HIV que pegaram a estrada da heroína, escapou dos horríveis cânceres de pele que prevalecem entre os gays. As principais rivais de sua pneumonia eram as numerosas úlceras que surgiram em sua garganta e estômago. As úlceras não eram as primeiras coisas a ter vontade de sufocar o canalha até a morte, mas se eu não agisse rápido poderiam ser as últimas. Seu declínio foi muito rápido, rápido demais para o meu gosto num certo estágio. Achei que o viado ia bater as botas antes que eu pudesse executar meu plano.

Acabou acontecendo da minha oportunidade surgir no momento exato. No fim, provavelmente foi metade sorte, metade planejamento. Venters estava se acabando, não passava de um pacote amarrotado de pele e ossos. O médico dissera: será a qualquer momento, agora.

Eu tinha conseguido convencer a Frances a confiar em mim como babá de seu filho. Encorajei-a a sair com os amigos. Ela planejava sair para comer um curry sábado à noite, me deixando sozinho no apartamento com a criança. Eu aproveitaria a oportunidade que se oferecia a mim. Na quarta-feira anterior ao grande dia, decidi visitar meus pais. Tinha pensado em revelar a eles minha condição médica, e sabia que provavelmente seria minha última visita.

A casa de meus pais era um apartamento em Oxgangs. O lugar sempre me pareceu muito moderno quando eu era criança. Agora parecia estranho, uma favela remanescente de uma era remota. A minha velha atendeu a porta. Pareceu hesitar por um segundo. Então se deu conta de que era eu, e não meu irmão menor, de modo que a bolsa podia continuar guardada entre as naftalinas. Ela me deu boas-vindas, com um entusiasmo resultante do alívio. – O-lá, desconhecido – cantou, me fazendo entrar com afobação.

Notei o motivo da pressa; estava passando Coronation Street. Aparentemente, Mike Baldwin tinha chegado a um ponto em que precisava confrontar sua amante-que-mora-junto Alma Sedgewick e revelar que na verdade estava a fim da viúva rica Jackie Ingram. Mike não podia evitar. Era um prisioneiro do amor, uma força externa a ele que o forçava a se comportar daquela maneira. Eu podia, como Tom teria dito, simpatizar com ele. Eu era um prisioneiro do ódio, uma força que era uma delegadora de tarefas igualmente exigente. Sentei no sofá.

– Olá, desconhecido – meu velho repetiu, sem desviar os olhos de seu jornal. – E aí, o que tem feito? – perguntou, esforçado.

– Nada de mais.

Nada mesmo, pai. Ah, já mencionei que sou positivo para anticorpos? Está muito na moda agora, sabe. Hoje em dia, você não pode ficar sem um sistema imunológico defeituoso.

– Dois milhões de chinas. Dois milhões dos pentelhos. É isso que vamos ter por aqui quando Hong Kong voltar pras mãos da China – deixou escapar um longo suspiro. – Dois milhões de amarelos de pau pequeno – ponderou.

Eu não disse nada, me recusando a morder a isca. Desde que fui pra universidade, me ligando ao que meus pais costumavam descrever como “um bom negócio”, o velho se transformara em um reacionário linha-dura, em oposição ao estudante revolucionário que eu me tornara. No início tinha sido uma brincadeira, mas com o passar dos anos eu larguei o meu papel enquanto ele abraçou o dele com firmeza cada vez maior.

– Você é um fascista. Tudo tem relação com tamanho de pênis inadequado – respondi, em tom de brincadeira. O domínio de Coronation Street sobre a psique da minha mãe, forte como um vício, foi quebrado por um instante quando ela se virou pra nós com um sorrisinho de reconhecimento.

– Não fala uma bobagem dessas. Já provei a minha masculinidade, filho – retrucou, agressivo, explorando o fato de que eu consegui chegar à idade de vinte e cinco sem obter uma esposa ou gerar filhos. Por um segundo, cheguei a pensar que ele ia tirar o pau pra fora para provar que eu estava errado. Ao invés disso, ignorou meu comentário e retornou ao tema que escolhera. – O que você ia achar de ter dois milhões de chinas na sua rua? – pensei no termo “china” e visualizei montanhas de embalagens de alumínio com sobras de comida espalhadas pela minha rua. Era uma imagem fácil de trazer à imaginação, como se fosse uma cena que eu presenciasse todo domingo de manhã.

– Às vezes parece que eu já tenho – pensei alto.

– Então, é isso aí – ele disse, como se eu tivesse aberto mão de uma opinião. – Mais dois milhões estão a caminho. O que acha disso?

– Presume-se que todos os dois milhões não vão se mudar pra Caledonian Place. Quer dizer, as condições já estão limitadas demais no gueto de Dalry do jeito que está.

– Pode rir, se quiser. E os empregos? Já tem dois milhões no seguro. Casas? Todos aqueles pentelhos morando numa cidade de papelão. – Céus, como ele estava me dando nos nervos. Felizmente, a poderosa mamãe, guardiã do televisor, interveio.

– Calem a boca, tá? Tô tentando assistir à tevê!

Desculpa, mãe. Sei que é um capricho egoísta da parte de seu filho aidético buscar a sua atenção quando Mike Baldwin está fazendo uma importante escolha que determinará o seu futuro. Que vadia velha e grotesca nosso enrugado galã da menopausa decidirá comer? Fiquem ligados.

Decido não mencionar meu HIV. Meus pais não têm uma visão muito progressista sobre este assunto. Ou talvez possuam. Quem pode dizer? De qualquer modo, não me pareceu correto. Tom vive dizendo para ficarmos atentos a nossos sentimentos. Meus sentimentos dizem que meus pais se casaram aos dezoito anos e já tinham gerado quatro pirralhos berradores quando tinham a idade que tenho agora. Eles já acham que sou “delicado”. Trazer a AIDS para dentro do cenário só vai confirmar esta suspeita.

Ao invés disso, bebi uma lata de Export e conversei tranquilamente sobre futebol com o velho. Ele não vai a um jogo desde 1970. A televisão colorida tinha atacado as suas pernas. Vinte anos mais tarde, veio o satélite e fodeu com elas de vez. Mesmo assim, ele ainda se considerava um especialista no jogo. As opiniões dos outros não valiam nada. Em todo caso, era uma perda de tempo tentar contestá-las. Como em relação à política, ele acabava saltando para o ponto de vista contrário ao que tinha defendido anteriormente e o expressava com a mesma estridência. Tudo que você precisava fazer era não oferecer uma posição rígida contra a qual ele pudesse argumentar, e assim ele gradualmente convenceria a si mesmo a concordar com o seu modo de pensar.

Permaneci sentado por algum tempo, concordando com a cabeça. Depois dei alguma desculpa banal e fui embora.

Voltei para casa e conferi minha caixa de ferramentas. Uma coleção de diversos instrumentos afiados de um ex-carpinteiro. No sábado, levei-a até o apartamento da Frances em Wester Hailes. Tinha alguns consertinhos pra fazer. Ela não sabia nada a respeito de um deles.

Fran esperou com ansiedade a refeição que faria com seus amigos. Enquanto se arrumava, falou sem parar. Tentei dar respostas que fossem além de uma série de grunhidos baixinhos que soavam como “sim” e “claro”, mas minha mente girava com os pensamentos do que precisava fazer. Sentei na cama, curvado e tenso, levantando com frequência para espiar pela janela enquanto ela escondia o rosto debaixo da maquiagem.

Depois do que pareceu uma eternidade, escutei o som de um motor deslizando pelo estacionamento deserto e dilapidado. Pulei para a janela e anunciei com entusiasmo: – O táxi chegou!

Frances me deixou com a custódia de seu filho adormecido.

A operação toda correu sem sobressaltos. Depois eu me senti horrível. O que me fazia melhor do que Venters? O pequeno Kevin. Passamos alguns bons momentos juntos. Eu já o tinha levado aos espetáculos do festival dos Meadows, ao Kirkcaldy para um empate pela Taça da Liga e ao Museu da Infância. Embora não pareça grande coisa, é bem mais do que seu pai jamais fez pelo coitadinho. Foi isso que a Frances me disse.

Por pior que eu tenha me sentido na ocasião, aquilo foi apenas um aperitivo para o horror que me atingiu quando revelei as fotografias. Enquanto as imagens ganhavam clareza, eu tremia de medo e remorso. Coloquei elas no secador e preparei um café que usei para engolir dois valiuns. Depois peguei as ampliações e fui até o hospital para visitar o Venters.

Fisicamente, não sobrava muita coisa dele. Temi o pior quando fitei seus olhos apagados. Algumas pessoas com AIDS andavam desenvolvendo demência pré-senil. Esta doença podia levar o corpo dele. Se tivesse também levado sua mente, me privaria de minha vingança.

Felizmente, Venters logo registrou minha presença, de modo que sua ausência inicial de resposta era provavelmente um efeito colateral da medicação que estava tomando. Logo seus olhos fixaram a visão em mim, adquirindo o olhar furtivo e esquivo que eu associava a ele. Podia sentir seu desprezo por mim emanando de seu sorriso doentio. Ele achava que tinha encontrado um otário para paparicá-lo até o fim. Sentei com ele, segurando a sua mão. Tive vontade de destacar seus dedos esqueléticos e enfiá-los em seus orifícios. Eu o culpei pelo que precisei fazer com Kevin, bem como por todos os demais acontecimentos.

– Você é um cara legal, Davie. Que pena que não nos conhecemos em outras circunstâncias... – ele suspirou, repetindo aquela frase gasta que usava em todas as minhas visitas. Segurei sua mão com mais força. Ele me olhou sem compreender. Bom. O canalha ainda podia sentir dor física. Não era esse tipo de dor que o atingiria, mas era um bom extra. Falei de maneira clara e calculada:

– Eu disse que me contaminei injetando, Al. Bem, eu menti. Menti pra você sobre muitas coisas.

– Do que cê tá falando, Davie?

– Só escuta por um minuto, Al. Me contaminei através de uma mina que eu andava vendo. Ela não sabia que tinha o HIV. Ela foi contaminada por um filho da puta que ela conheceu uma noite em um pub. Tava um pouco bêbada e era meio ingênua, essa garotinha. Sabe? O viado disse que tinha um pouco de erva no apartamento dele. Então ela foi junto com ele. Pro apartamento dele. O desgraçado estuprou ela. Sabe o que ele fez, Al?

– Davie... o que é isso...

– Vou contar pra você, porra. Ameaçou ela com uma porra duma faca. Amarrou ela. Comeu a buceta dela, comeu o cu dela, forçou ela a chupar ele. A garotinha tava apavorada, além de ferida. Isso soa familiar, seu viado?

– Não sei... não sei de que merda cê tá falando, Davie...

– Nem-co-me-ça. Cê lembra da Donna. Cê lembra do Southern Bar.

– Eu tava viajando, cara... lembra o que cê disse...

– Aquilo era mentira. Papo furado. Eu nunca conseguiria ficar de pau duro se soubesse que tinha essa merda na minha porra. Não conseguiria levantar nem a boca pra abrir uma porra dum sorriso.

– O Pequeno Goagsie... lembra dele?

– Cala essa porra de boca. O Pequeno Goagsie se arriscou. Cê ficou ali sentado como um boneco quando teve sua chance – interrompi, observando gotas do meu cuspe se dissolverem no filme de suor que cobria seu rosto encolhido. Me recompus, continuando minha história.

– A garota passou por maus bocados. Mas ela tinha força de vontade. Isso teria acabado com muitas mulheres, mas Donna tentou superar. Por que deixar um viado chupador de caralho arruinar sua vida? É mais fácil falar do que fazer, mas ela conseguiu. O que ela não sabia é que o filho da puta em questão era HIV positivo. Aí ela conheceu um outro cara. Eles começam a se ver. Ele gosta dela, mas sabe que ela tem problemas com homens e sexo. Não é de surpreender, né? – senti vontade de estrangular o corpo do viado até expulsar para fora a força perversa que dentro dele se passava por vida. Ainda não, disse a mim mesmo. Ainda não, seu grande filho da puta. Respirei profundamente e continuei minha história, revivendo todo o seu horror.

– Eles superaram tudo isso, a garota e esse outro cara. As coisas foram legais por um tempo. Aí ela descobriu que o estuprador canalha era aidético. Depois descobriu que ela também era. Mas o que foi pior pra essa pessoa, uma pessoa de verdade, uma pessoa com malditos princípios, foi descobrir que seu carinha novo também era. Tudo por sua causa, seu viado estuprador. Eu era o novo carinha. Eu. O grande otário aqui. – Apontei pra mim mesmo.

– Davie... lamento, cara... o que posso dizer?... cê tem sido um grande parceiro... é essa doença... é uma doença horrível, Davie. Ela mata inocentes, Davie... ela mata inocentes...

– É tarde demais pra essa merda agora. Cê teve a sua chance na hora certa. Como o Pequeno Goagsie.

Ele riu na minha cara. Era um som profundo e ofegante.

– E o que cê... o que cê vai fazer a respeito?... Vai me matar? Vai em frente... cê taria me fazendo um favor... tô pouco me fudendo... – sua máscara mortuária encarquilhada pareceu se tornar mais animada, se preencher com uma energia estranha e maligna. Isso não era um ser humano. É claro que acreditar nisso era oportuno pra mim, tornava mais fácil fazer o que eu precisava fazer, mas mesmo pensando friamente eu ainda acredito nisso. Chegara a hora de mostrar minhas cartas. Tirei as fotografias do meu bolso interno, calmamente.

– Não é tanto o que eu vou fazer a respeito, e mais o que eu já fiz a respeito – sorri, bebendo da expressão perplexa de medo que se moldou no rosto dele.

– O que é isso... o que cê quer dizer? – me senti maravilhosamente bem. Ondas de choque correram por cima dele, sua cabeça esquelética oscilava enquanto sua mente lutava contra seus maiores temores. Olhou aterrorizado para as fotografias, incapaz de adivinhar o que elas mostravam, imaginando que segredos abomináveis elas guardavam.

– Pensa na pior coisa possível que eu poderia fazer pra te deixar puto, Al. Depois multiplica isso por mil... e cê ainda nem chegou perto – sacudi a cabeça, pesaroso.

Mostrei a ele uma fotografia de mim com a Frances. Posávamos confiantes, exibindo casualmente a arrogância dos amantes em seu ímpeto inicial.

– Que porra é essa? – ele balbuciou, fazendo um esforço patético para erguer seu organismo esquelético da cama. Enfiei minha mão em seu peito e o devolvi sem esforço ao lugar de onde viera. Fiz isso lentamente, saboreando meu poder e a impotência dele naquele único e grandioso movimento.

– Relaxa, Al. Relaxa. Não esquenta. Pega um pouco mais leve. Fica numa boa. Não esquece o que os médicos e enfermeiras dizem. Cê precisa descansar – passei a primeira foto para trás, expondo a ele a imagem seguinte. – Foi o Kevin quem tirou aquela outra foto. Ele fotografa bem para um menino pequeno, não é? Aqui está ele, o pequerrucho. – A foto seguinte mostrava Kevin sobre os meus ombros, vestido com o uniforme da seleção escocesa.

– Que porra que cê fez... – era mais um som do que uma voz. Não parecia sair de sua boca, mas de alguma parte indistinta de seu corpo em decadência. Sua imaterialidade me atingiu, mas me esforcei para continuar soando impassível.

– Basicamente, isso – exibi a terceira foto. Mostrava Kevin amarrado a uma cadeira de cozinha. Sua cabeça estava caída pesadamente para um lado, e seus olhos estavam fechados. Se Venters tivesse prestado atenção nos detalhes, teria notado uma coloração azulada nas pálpebras e nos lábios de seu filho, e a brancura quase teatral de sua face. É quase certo que tudo o que Venters notou foram as feridas escuras em sua cabeça, peito e joelhos e o sangue que escorria delas e cobria seu corpo, tornando difícil perceber, à primeira vista, que ele estava nu.

Havia sangue por todos os lados. Cobria o piso de linóleo, em uma poça escura abaixo da cadeira de Kevin. Um pouco espirrou pelo chão da cozinha, deixando trilhas respingadas. Uma variedade de ferramentas pesadas, incluindo uma furadeira Bosch e uma lixadora Black and Decker, além de diversas facas e chaves de fenda afiadas, estavam dispostas aos pés do corpo erguido. – Não... não... Kevin... pelo amor de deus não... ele não fez nada... ele não machucou ninguém... não... – ele ficou gemendo, um som desagradável e reclamante desprovido de qualquer esperança ou humanidade. Agarrei seus cabelos finos com brutalidade e arranquei sua cabeça do travesseiro. Observei com um fascínio perverso como a caveira ossuda parecia escorregar para baixo por trás da pele solta. Enfiei a foto na cara dele.

– Achei que o pequeno Kev devia ser igualzinho ao papai dele. Então, quando me cansei de fuder sua antiga namorada, decidi dar algo ao Kevin pela sua... hã... porta dos fundos. Pensei comigo mesmo que se o HIV era uma boa pro papai, seria uma boa pro moleque também.

– Kevin... Kevin... – ele continuou gemendo.

– Infelizmente, o cu dele era meio apertado demais pra mim, então tive que alargar um pouquinho com a furadeira de construção. Infelizmente, me empolguei um pouco e comecei a fazer buracos por toda parte. É que ele me lembrava tanto você, Al. Adoraria dizer que foi indolor, mas não posso. Pelo menos, foi relativamente rápido. Mais rápido do que ficar apodrecendo em uma cama. Ele levou uns vinte minutos pra morrer. Vinte minutos de gritos e sofrimento. Pobre Kev. Como cê disse, Al, é uma doença que mata inocentes.

Lágrimas correram por suas bochechas. Ele continuou dizendo “não” sem parar, em soluços baixos e sufocados. Sua cabeça se agitava em minha mão. Temendo que a enfermeira aparecesse, puxei um dos travesseiros que estavam por trás dele.

– A última palavra que o pequeno Kev disse foi “papai”. Essas foram as últimas palavras de seu filho, Al. Lamento, meu chapa. Papai foi embora. É isso que eu disse pra ele. Papai foi embora. – Olhei direto dentro de seus olhos, só pupilas, apenas um vácuo negro de medo e derrota completa.

Empurrei sua cabeça de volta para baixo e coloquei o travesseiro sobre seu rosto, abafando assim os gemidos enojantes. Segurei com força e pressionei minha cabeça sobre ele, ao mesmo tempo sussurando e cantando a letra parafraseada de uma velha canção de Boney M: “Papai, Papai Bacana, Papai, Papai Bacana... você foi um tremendo sacana, tchau, tchau, Papai Bacana...”

Cantei alegremente até que a débil resistência de Venters cedesse.

Mantendo o travesseiro firme sobre seu rosto, puxei uma revista Penthouse pra fora de seu armário. O canalha andava fraco demais até mesmo pra virar as páginas, que dirá bater uma bronha. Contudo, sua homofobia era tão forte que ele provavelmente a manteve bem à vista para fazer algum atestado absurdo de sua sexualidade. Mesmo apodrecendo, sua maior preocupação era a de que ninguém pensasse que ele era uma bicha. Deitei a revista sobre o travesseiro e virei as páginas descontraidamente com o polegar, até o fim, antes de tomar o pulso de Venters. Nada. Ele tinha batido as botas. E, o que era mais importante, isso acontecera num estado de sofrimento angustiado e torturante.

Ao tirar o travesseiro de cima do cadáver, puxei sua cabeça frágil para a frente e depois a deixei cair para trás. Por alguns momentos, contemplei o que estava diante de mim. Os olhos estavam abertos, assim como a boca. Tinha um aspecto idiota, a caricatura doentia de um ser humano. Acho que é isso que são os cadáveres. Mas veja bem, isso é o que Venters sempre foi.

Meu intenso escárnio logo deu lugar a um surto de tristeza. Eu não conseguia determinar exatamente por que aquilo deveria ter acontecido. Desviei o olhar do corpo. Depois de permanecer sentado por mais alguns minutos, fui contar à enfermeira que Venters partira desta para a melhor.

Compareci ao funeral de Venters no Crematório de Seafield com Frances. Foi um período emotivo pra ela, e me senti na obrigação de prestar apoio. Não era um evento destinado a quebrar recordes de comparecimento. A mãe e a irmã dele apareceram, bem como Tom, acompanhado de alguns caras do “HIV e Positivo”.

O pastor encontrou pouquíssimas coisas decentes para dizer a respeito de Venters e, crédito seja dado, não ficou enrolando. Foi um desempenho curto e agradável. Alan cometera muitos erros na vida, declarou. Ninguém o contradisse. Alan seria, como todos nós, julgado por Deus, que lhe concederia a salvação. É uma ideia interessante, mas se aquele canalha foi aceito no céu acho que alguém molhou a mão do velhote lá de cima. Se ele foi mesmo aceito, acho que vou arriscar minha sorte no outro lugar, muito obrigado.

Do lado de fora, conferi as coroas de flores. Venters tinha apenas uma. “Alan. Com amor, mamãe e Sylvia.” Até onde sei, elas nunca foram visitar ele no hospital. Muito sábio da parte delas. É mais fácil amar certas pessoas quando não se precisa estar perto delas. Apertei a mão de Tom e dos outros e depois levei a Fran e o Kev pra tomar um sorvete fino no Lucas, em Musselburgh.

Obviamente, eu tinha enganado Venters a respeito das coisas que fiz com Kevin. Ao contrário dele, não sou um maldito animal. Estou longe de ter orgulho do que eu realmente fiz. Coloquei o bem-estar daquela criança em grande risco. Por trabalhar no ambiente de operações de um hospital, sei tudo sobre o papel crucial do anestesista. São eles os sujeitos que mantêm você vivo, não os porcos sádicos filhos da puta como o Howison. Depois que a agulha te derruba, você é mantido inconsciente pelo anestesista e colocado em um sistema de suporte vital. Todos os seus sinais vitais são monitorados sob condições altamente controladas. Eles tomam cuidado.

O clorofórmio é um instrumento bem mais grosseiro e muito perigoso. Ainda estremeço quando penso no risco a que submeti o pequeno. Felizmente, Kevin acordou com apenas uma dor de cabeça e alguns pesadelos como sobras de sua viagem à cozinha.

Uma loja de brincadeiras de mau gosto e algumas tintas esmaltadas forneceram as feridas. Fiz milagres com os cosméticos e o talco da Fran para compor a máscara mortuária de Kev. Minha maior sacada, porém, foram os três sacos de cerca de meio litro de sangue que tirei da geladeira do laboratório de patologia do hospital. Fiquei paranoico quando aquele cuzão do Howison me olhou feio no momento em que passava por ele no corredor. Mas ele sempre me olha assim. Acho que é porque uma vez me dirigi a ele como “doutor” ao invés de “senhor”. Ele é um cara esquisito. Como a maioria dos cirurgiões. É preciso ser esquisito para fazer aquele trabalho. Como o trabalho do Tom, eu acho.

Derrubar o Kevin acabou sendo fácil. O maior problema que tive foi preparar e desmontar a cena toda dentro de meia hora. A parte mais difícil foi limpar o garoto antes de colocá-lo de volta na cama. Tive de usar aguarrás, além de água. Passei o resto da noite limpando a cozinha antes que a Frances voltasse. Porém, o esforço valeu. As fotos pareciam autênticas. Autênticas o suficiente pra fuder com o Venters.

Desde que ajudei o Venters a encontrar seu caminho para o mundo do além, a vida tem sido muito boa. Frances e eu fomos cada um para seu lado. Nunca fomos muito compatíveis, na verdade. Ela me via mesmo como uma babá e uma carteira. Para mim, é óbvio, a relação se tornou quase totalmente supérflua após a morte de Venters. É do Kev que sinto mais falta. Me faz ter vontade de ter um filho. Agora isso nunca acontecerá. Uma coisa que a Fran disse foi que eu ressuscitei sua fé nos homens, depois do Venters. Ironicamente, é como se eu tivesse encontrado meu papel nessa vida – limpar os dejetos emocionais daquele cretino.

Minha saúde, batam na madeira, tem ido bem. Ainda estou assintomático. Tenho medo de resfriados e fico obsessivo de tempos em tempos, mas me cuido. Com exceção de uma latinha de cerveja aqui e ali, nunca bebo. Presto atenção no que como e tenho um programa diário de exercícios leves. Faço testes de sangue regularmente e observo meu nível de T4. Ainda está bem acima da marca crucial de 800; na verdade, não reduziu nem um pouco.

Agora estou de novo com a Donna, que agiu inadvertidamente como o conduto do HIV entre mim e Venters. Encontramos algo que provavelmente não teríamos obtido um do outro em circunstâncias diferentes. Ou talvez sim. De qualquer modo, não ficamos analisando isso, privados do luxo do tempo. Contudo, preciso dar ao velho Tom do grupo o que ele merece. Ele disse que eu precisaria superar a minha raiva, e ele estava certo. Mas eu peguei o caminho mais rápido, mandando Venters pro espaço. Agora tudo que tenho é um pouco de culpa, mas posso lidar com isso.

Acabei falando pros meus pais sobre minha condição de HIV positivo. Minha mãe só chorou e me abraçou. Meu velho não disse nada. Toda cor desapareceu do rosto dele quando ele sentou e ficou assistindo Em Matéria de Esporte. Quando foi pressionado a falar por sua esposa em prantos, disse apenas: – Bem, não tem o que dizer – ficou repetindo essa frase. Não me olhou nos olhos uma só vez.

Naquela noite, de volta ao meu apartamento, escutei a campainha tocar. Supondo que era a Donna, que tinha saído, abri as portas das escadas e da casa. Alguns minutos depois, meu velho estava parado na porta com lágrimas nos olhos. Era a primeira vez que ele ia ao meu apartamento. Ele se aproximou de mim e me envolveu num abraço esmagador, soluçando e repetindo: – Meu menino – me senti consideravelmente melhor do que com: “Bem, não tem o que dizer.”

Chorei alto e sem vergonha alguma. Como fizera com Donna, agora com minha família. Encontramos uma intimidade que, de outra forma, poderia nos ter escapado. Gostaria de não ter aguardado tanto tempo para me tornar um ser humano. Porém, antes tarde do que nunca, acredite em mim.

Tem algumas crianças brincando nos fundos, a faixa de grama incandescendo em um verde elétrico pela luz brilhante do sol. O céu está um azul-claro delicioso. A vida é linda. Vou aproveitá-la, e terei uma vida longa. Vou ser o que o pessoal médico chama de um sobrevivente a longo prazo. Simplesmente sei que vou.


Há uma luz que nunca se apaga

Emergem da escada rumo à escuridão da rua deserta. Alguns deles se movem de um jeito gingado e maníaco; exuberante e ruidoso. Outros deslizam silenciosos, como fantasmas; sofrendo por dentro, e ainda assim temerosos da iminência de uma dor e um desconforto ainda maiores.

Seu destino é um pub que parece sustentar o peso de um prédio residencial em estado de deterioração situado numa rua lateral entre Easter Road e Leith Walk. Essa rua foi deixada de lado no processo de limpeza de prédios que agraciou suas vizinhas, e a construção tem a cor preta fuliginosa do pulmão de um fumante de dois maços. A noite está tão escura que fica difícil divisar o contorno do prédio contra o céu. Ele só pode ser identificado através da luz isolada que brilha em uma janela do último andar, ou do reluzente poste de rua que se projeta de sua lateral.

A fachada do pub é pintada de um azul-escuro grosso e brilhante, e sua placa exibe o design utilizado no início dos anos 70 por sua cadeia de cervejarias, época em que o paradigma ditava que todos os bares deveriam possuir um visual padronizado, maquiando qualquer característica individual que pudessem ter. Como o prédio residencial acima e ao redor dele, o pub não foi brindado com nada além da mais superficial manutenção durante quase vinte anos.

São 5:06 da manhã e as luzes amarelas do albergue estão acesas, um refúgio nas ruas escuras, úmidas e sem vida. Já faz alguns dias que ele não vê a luz, reflete Spud. Eram como vampiros, levando uma existência em sua maior parte noturna, completamente fora de sincronia com a maioria das outras pessoas que habitavam os prédios e viviam sob uma rotina de trabalho e sono. Era bom ser diferente.

Apesar de suas portas terem estado abertas por apenas alguns minutos, o pub está movimentado. Dentro dele há um balcão comprido, com tampo de fórmica e diversas bombas e torneiras. Mesas surradas no mesmo estilo de fórmica mal se equilibram sobre o linóleo encardido. Atrás do balcão, ergue-se um poial de adega de uma grandiosidade incongruente, cuidadosamente esculpido em madeira. A débil luz amarela de lâmpadas expostas reflete-se violentamente nas paredes manchadas de nicotina.

O pub contém autênticos trabalhadores da cervejaria e do hospital, e não há nada de errado com a situação, dado o propósito declarado da licença para funcionamento neste horário adiantado. Contudo, há também uma pincelada dos mais desesperados: aqueles que estão aqui porque precisam estar.

O grupo que entra no pub também é impelido pela necessidade. A necessidade de mais álcool para manter o barato, ou para recuperá-lo, e lutar contra o ataque de ressacas amargas e depressivas. Também são impelidos por uma necessidade maior, a necessidade de pertencer um ao outro, de se agarrar à força, seja qual for, que os unificou durante os últimos dias de festa.

Sua entrada no pub é observada por um bêbado de idade indeterminada que está apoiado contra o bar. O rosto do homem foi destruído pelo consumo de álcool vagabundo e pela superexposição ao vento congelante que vem em rajadas cruéis do mar do Norte. Parece que cada um de seus vasos sanguíneos arrebentou por baixo da pele, deixando-o parecido com as salsichas reforçadas e malcozidas que são servidas nas cafeterias locais. Seus olhos são de um azul-claro contrastante, embora os brancos tenham a mesma cor das paredes do pub. Seu rosto se tensiona em vago reconhecimento enquanto o grupo barulhento vai em direção ao bar. Um dos jovens é seu filho; talvez mais que um, pensa, sarcástico. Numa certa época, quando um certo tipo de mulher o achava atraente, ele fora responsável por trazer um bom número deles ao mundo. Isso antes da bebida destruir sua aparência e transformar o som emitido por sua língua cruel e afiada em um grunhido incompreensível. Ele olha para o jovem em questão e pensa em dizer algo, antes de decidir que não tem nada a lhe dizer. Nunca teve. O jovem sequer o vê; sua atenção está voltada às bebidas que estão por vir. O velho bêbado percebe que o jovem aprecia sua companhia e sua bebida. Recorda-se de quando ele próprio estava naquela posição. O prazer e a companhia se dissiparam, mas a bebida não. Na verdade, ela se expandiu para preencher o vazio deixado pela partida dos demais.

A última coisa que Spud quer é mais um pint. Antes de saírem, examinara seu rosto no espelho do banheiro, lá no apartamento do Dawsy. Estava pálido, porém marcado por manchas e com pálpebras pesadas e contraídas que pareciam tentar fechar as cortinas para a realidade. Este rosto era encimado por tufos sebosos de cabelos ruivos. Pode ser uma boa ideia, considera, tratar seu estômago dolorido com um suco de tomate, ou tomar uma limonada ou suco de laranja fresquinho para combater sua desidratação, antes de beber álcool novamente.

A inevitabilidade da situação se confirma quando aceita sem resistência a cerveja que Frank Begbie, o primeiro no bar, havia buscado.

– Valeu, Franco.

– Guinness pra mim, Franco – pede Renton. Acabou de retornar de Londres. Sente-se tão bem por estar de volta quanto se sentiu antes, ao ir embora.

– A Guinness é uma merda aqui – alerta Gav Temperley.

– Mesmo assim.

Dawsy está levantando as sobrancelhas e cantando para a garçonete.

– Yeah, yeah, yeah, você é uma linda amante.

Tinham feito uma competição de pior música e Dawsy não tinha parado de cantar sua indicação vitoriosa.

– Cala essa porra de boca, Dawsy. – Alison dá uma cotovelada em suas costelas. – Quer que a gente seja expulso?

Tanto faz, pois a garçonete o ignora. Ele se vira para cantar para Renton. Renton devolve um sorriso cansado. Pensa que o problema do Dawsy é que, se você o incentivar, ele fode a situação até o talo. Há uns dois dias isso tinha sido razoavelmente divertido mas, de qualquer modo, acha que nem de longe tinha sido tão engraçado, quanto sua própria versão de “Escape (The Pina Cola-da Song)”, de Rupert Holmes.

– Eu me lembro daquela noite em que nos conhecemos no Rio... essa Guinness tá choca, porra. Cê é louco de pedir Guinness aqui, Mark.

– Eu avisei – diz Gav, triunfante.

– Mesmo assim – responde Renton, um sorriso preguiçoso ainda no rosto. Sente-se bêbado. Sente a mão da Kelly por baixo de sua camiseta, beliscando seu mamilo. Ela tinha feito isso a noite inteira, dizendo que realmente adorava peitos lisos e sem pelos. A sensação de ter seus mamilos tocados é boa. Pela Kelly, é mais do que boa.

– Vodca e tônica – ela diz para o Begbie, que faz um gesto pra ela do balcão. – Gim e limonada pra Ali. Ela acabou de sair pro banheiro.

Spud e Gav continuam conversando no balcão enquanto o resto toma alguns assentos no canto.

– Como vai a June? – Kelly pergunta a Franco Begbie, referindo-se à sua namorada; suspeita-se que ela está novamente grávida, pouco depois de ter dado à luz.

– Quem? – Franco se esquiva, agressivo. Conversa encerrada.

Renton levanta a cabeça para assistir ao programa do início da manhã na televisão.

– Essa Anne Diamond.

– Hein? – Kelly olha para ele.

– Comia ela facinho – Begbie declara.

Alison e Kelly levantam as sobrancelhas e olham para o teto.

– Ah, é, mas aquele filho dela teve morte súbita. Como o nenê da Lesley. A Dawn.

– Aquilo foi mesmo uma pena – diz Kelly.

– Mas teve um lado bom. A garotinha teria morrido dessa porra de AIDS se não tivesse morrido de morte súbita. Uma morte bem mais leve pra caralho prum nenê – declara Begbie.

– A Lesley não estava infectada com o HIV! A Dawn era um bebê perfeitamente saudável! – Alison protesta, enfurecida. Embora ele mesmo esteja chateado, Renton não pode deixar de perceber que Alison sempre fala direito quando está com raiva. Sente um vago acesso de culpa por ser tão fútil. Begbie está sorrindo.

– Mas quem pode garantir? – Dawsy emenda, por puxa-saquismo. Renton o fita com um olhar duro e desafiador que jamais ousaria dirigir ao Begbie. Agressão depositada onde não será correspondida.

– Só tô dizendo que ninguém pode saber com certeza – Dawsy recua, dócil.

No balcão, Spud e Gav conversam de forma atropelada.

– Será que o Rents vai dar um trato na Kelly? – pergunta Gav.

– Num sei. Ela terminou com aquele tal de Des, tipo assim, e o Rents não tá saindo com a Hazel agora. Tipo assim, radicais livres, saca.

– Aquele viado daquele Des. Detesto aquele babaca.

– ... não conheço esse bichano, tipo assim... saca.

– Conhece sim, caralho! É a porra do seu primo, Spud. Des! Des Feeney!

– ... tá certo, cara... aquele Des. Mesmo assim não conheço muito o sujeito. Só dei de testa com o maluco, tipo assim, umas pouca vez desde que a gente era uns pirralho, tá ligado? Mas é chato, a Hazel na festa com aquele outro cara, tipo, e o Rents com a Kelly, saca... chato.

– Aquela Hazel é mesmo uma vaca com cara de cu. Nunca vi aquela mina com um sorriso na cara. Não me espanta, se liga, que ela tenha ficado um tempo com o Rents. Não pode ser muito divertido andar por aí com um viado que tá sempre fora da casinha.

– É, tipo assim... é chato demais... – Spud considera brevemente se Gav está ou não lhe dando uma indireta ao discorrer sobre pessoas que vivem detonadas, antes de decidir que se trata de um comentário inocente. O Gav era legal.

O cérebro desorientado de Spud volta-se para o sexo. Parecia que todo mundo tinha esvaziado as bolas na festa; todo mundo, exceto ele. Ele curte muito uma trepada. Seu problema é ser tímido demais, quando está careta ou sóbrio, e incoerente demais, quando está chapado ou bêbado, para atrair a atenção das mulheres. No momento, sente uma quedinha por Nicola Hanlon, que ele acha um pouco parecida com Kylie Minogue.

Há alguns meses, Nicola conversou com ele ao saírem de uma festa em Sighthill para outra em Wester Hailes. Estavam entretidos no papo, começando a se separar do restante do grupo. Ela estava muito receptiva e Spud falava livremente, ligado de anfetamina. Na verdade, ela parecia estar se agarrando a cada palavra dele. Spud gostaria de nunca ter ido àquela festa, desejando que pudessem simplesmente continuar caminhando e conversando. Desceram para a passagem subterrânea e Spud achou que devia tentar pôr seu braço ao redor de Nicola. Então, um trecho de uma canção dos Smiths, uma de que ele sempre gostou, chamada “There Is a Light That Never Goes Out”,15 veio à sua mente:

and in the darkened underpass

I thought Oh God my chance has come at last

but then a strange fear gripped me

and I just couldn’t ask

A voz triste de Morrissey resumia seus sentimentos. Não colocou o braço ao redor de Nicola, e depois disso suas tentativas de sustentar a conversa com ela foram um fracasso. Ao invés disso, ele se enfiou num quarto junto com Rents e Matty, saboreando a deliciosa liberdade de estar livre da expectativa de saber se ficaria ou não com ela.

Em geral, o sexo só acontecia na vida de Spud quando ele estava possuído por uma força de vontade mais contundente. Mesmo nessas ocasiões, o desastre parecia nunca estar muito distante. Uma noite, Laura McEwan, uma garota com reputação sexual espantosa, o agarrou em um pub de Grassmarket e o levou para casa.

– Quero que você tire a minha virgindade anal – ela disse.

– Hein? – Spud não podia acreditar.

– Coma o meu cu. Nunca fodi desse jeito.

– Hã, tá, isso me parece... bem legal, hã tipo assim, hã... tá certo...

Spud sentiu-se O Escolhido. Sabia que Sick Boy, Renton e Matty haviam todos estado com Laura, que costumava se infiltrar em uma turma, trepar com todos os caras e depois partir para outra. Mas o que importava era que eles nunca tinham feito o que ele estava prestes a fazer.

Contudo, Laura queria fazer algumas coisinhas com Spud antes. Amarrou seus pulsos e depois seus tornozelos com fita adesiva.

– Tô fazendo isso porque não quero que cê me machuque. Cê entende? Vamos fazer de lado. No instante em que eu começar a sentir dor, essa porra acaba. Certo? Porque ninguém me machuca. Nenhum carinha de merda jamais me machuca. Cê tá me entendendo? – ela falava num tom áspero e agressivo.

– Sim... tá na boa, tipo assim, na boa... – disse Spud. Não queria machucar ninguém. Ficou chocado com essa sugestão.

Laura se afastou para admirar sua obra.

– Caralho, isso tá lindo – disse, esfregando a mão entre as pernas enquanto Spud, nu, estava deitado e enfaixado na cama. Spud sentiu-se vulnerável e estranhamente envergonhado. Nunca tinha sido amarrado antes, tampouco chamado de lindo. Então Laura agarrou o pau fino e comprido de Spud e começou a chupar.

Com uma maestria parte intuição, parte experiência, parou logo antes que o extático Spud gozasse. Então saiu do quarto. Spud começou a se sentir paranoico com as amarras. Todo mundo dizia que Laura era uma maluca. Vivia dando pra todo mundo desde que conseguiu internar seu namorado de longa data, um cara chamado Roy, em um hospital psiquiátrico, farta da sua impotência, incontinência e depressão. Principalmente da primeira.

– Ele já não me fodia direito há séculos – Laura dissera a Spud, como se isso fosse uma justificativa para trancá-lo em um hospício. Contudo, ponderou Spud, sua crueldade impiedosa fazia parte de seus atrativos. Sick Boy se referia a ela como “A Deusa do Sexo”.

Ela retornou pro quarto e olhou para ele, amarrado e à sua mercê.

– Quero que cê coma o meu cu agora. Mas primeiro vou passar um monte de vaselina no seu pau, pra não me machucar quando cê enfiar lá dentro. Meus músculos vão tá apertados, porque isso é novidade pra mim, mas vou tentar relaxar – anunciou, dando uma tragada forte em um baseado.

Laura não estava sendo rigorosamente exata. Não encontrara vaselina alguma no armário do banheiro. Porém, encontrou outra coisa que poderia usar como lubrificante. Era grudenta e molenga. Ela a aplicou generosamente no pau de Spud. Era Vick.

Quando aquilo começou a queimar, ele gritou em agonia insuportável. Retorceu-se espasmodicamente contra suas amarras, sentindo como se a ponta de seu pau tivesse sido guilhotinada.

– Porra. Foi mal, Spud – disse Laura, boquiaberta.

Ajudou Spud a sair da cama e o acompanhou até o banheiro. Ele saltitou ao lado dela, cegado por lágrimas de dor. Ela encheu a pia com água e saiu do recinto para buscar uma faca e cortar as amarras em seus pulsos e tornozelos.

Em equilíbrio precário, Spud colocou o pau na água. A dor ficou ainda mais violenta e o choque o forçou a se encolher. Ao cair para trás, sua cabeça bateu contra a privada e se abriu acima do olho. Quando Laura voltou, Spud estava inconsciente e um sangue grosso e escuro se espalhava sobre o piso.

Laura chamou a ambulância e Spud acordou no hospital com seis pontos no supercílio, em estado de choque.

Nunca chegou a comer o cu dela. O boato foi de que, em seguida aos acontecimentos, uma Laura frustrada telefonou para Sick Boy, que compareceu para substituir seu amigo.

Pouco tempo depois desse desastre, Spud voltou sua atenção para Nicola Hanlon.

– Hã... fiquei supreso que a Nicky não tava na festa, tipo assim... a Nicky, tipo, tá ligado? – disse para Gav.

– Sim. É uma putinha suja. Leva em tudo que é buraco – Gav disse despreocupadamente.

– É?

Notando, e saboreando, a trepidação e a preocupação mal disfarçadas no rosto de Spud, Gav segue em frente, regozijando por dentro, mas falando de um modo rígido, ligeiro e formal. – Ah, sim. Meti nela algumas vezes. Tipo, não é uma trepadinha das piores. O Sick Boy já traçou. E o Rents. Acho que o Tommy também. Tenho certeza que ele andou ciscando em volta dela por uns tempo.

– É?... hã, certo... – Spud se sente diminuído e otimista ao mesmo tempo. Precisa tentar se manter mais na linha, conclui, pensando que vive passando ao largo de tudo que está acontecendo bem debaixo de seu nariz.

Na mesa, Begbie dá indícios de que está necessitando de um alimento mais substancioso. – Tô com um buraco no estômago. Bora arranjar um rango e depois emendar uma porra dum trago decente – lança um olhar severo ao redor do balcão cavernoso e manchado de nicotina, como se fosse um aristocrata esnobe metido em circunstâncias degradantes. Na verdade, acabou de enxergar o velho bebum no balcão.

Ainda está escuro quando eles deixam o pub e vão até uma cafeteria na Portland Street.

– Café da manhã completo pra todos. – Begbie olha para os outros, entusiasmado.

Todos aprovam com a cabeça, exceto Renton.

– Não. Não vou querer carne – diz.

– Então vou ficar com a porra do seu bacon com linguiça e com a porra do chouriço – sugere Begbie.

– Tá, vai fundo – diz Renton, sarcástico.

– Daí eu passo pra você a porra do meu ovo com feijão e o tomate, seu viado!

– Tá bom – começa Renton, e então se vira para a garçonete. – Cês usam óleo vegetal ou gordura pra fritar?

– Gordura – responde a garçonete, olhando para ele como se fosse um retardado.

– Que se foda, Rents. Não faz diferença – diz Gav.

– Quem decide o que o Mark come é ele mesmo – diz Kelly, em apoio. Alison concorda. Renton se sente como um cafetão orgulhoso.

– Tá conseguindo estragar o lance pra todo mundo, Rents – rosna o Begbie.

– Estragando como? Quero pão com queijo e salada – ele se vira para a garçonete.

– Tava todo mundo concordando. Café da manhã completo pra todos – declara Begbie.

Renton não consegue acreditar nisso. Quer mandar Begbie tomar no cu. Ao invés disso, combate seu instinto e sacode a cabeça lentamente. – Eu não como carne, Franco.

– Essa porra de vegetarianismo. Que monte de merda. As pessoas precisam de carne. Um viciado de merda se preocupando com o que bota no corpo! Só pode ser uma porra duma piada!

– Só não gosto de carne – insiste Renton, sentindo-se ridículo enquanto todos dão risadinhas.

– Não vem me dizer que cê odeia que matem as porra dos animal. Lembra daqueles gato e daqueles cachorro que a gente costumava atirar com os rifles de pressão? E a porra dos pombo que a gente costumava tocar fogo. Esse viado usava fita adesiva pra prender cabeça de negro, tipo aquelas bombinha, em camundongo.

– Não me importo com a morte de animais. Só não gosto de comer eles. – Renton dá de ombros, envergonhado por estas crueldades adolescentes terem sido expostas para a Kelly.

– Como vocês são cruéis, seus desgraçados. Não sabia que alguém seria capaz de atirar num cachorro – diz Alison com desprezo, sacudindo a cabeça.

– Bem, eu não sabia que agora qualquer um seria capaz de matar e comer um porco – Renton aponta para o bacon e a salsicha no prato dela.

– Não é a mesma coisa.

Spud olha ao seu redor: – É que hã, tipo assim... o Renton tá fazendo a coisa certa, mas pelos motivo errado. A gente nunca vai, tipo assim, aprender a amar um ao outro antes de aprender a cuidar das coisa mais fraca, tipo os animais e tal... mas é bom que o Rents seja vegetariano... tipo assim, se cê consegue manter... tipo assim...

Begbie começa a tremer o corpo de um jeito amolecido e faz o sinal da paz para o Spud. Os outros riem. Renton, em consideração à tentativa de Spud de dar-lhe apoio, entra em cena para rechaçar a zombaria para longe de seu aliado.

– Manter não é o problema. Eu odeio carne mesmo. Me faz vomitar. Ponto final.

– Bom, porra, eu ainda digo que cê tá estragando a porra toda pra todo mundo.

– Por quê?

– Porque eu tô dizendo, porra, é isso! – Begbie protesta, apontando para si mesmo.

Renton dá de ombros mais uma vez. Não fazia muito sentido prosseguir com a discussão.

Terminam logo a refeição, com exceção de Kelly, que fica brincando com sua comida, ignorando os olhares vorazes dos demais. Até que, enfim, ela varre alguns restos para os pratos vazios de Franco e Gav.

São convidados a se retirar, depois de cantar Ooooh, ohh ser, oooh ser um Hibby! no momento em que um cara parecendo nervoso e pouco à vontade entra para buscar um pedido usando uma jaqueta esportiva dos Hearts. Isso dá início a um medley de músicas pop ruins e hinos de futebol. A mulher na caixa registradora ameaça chamar a polícia, mas eles abandonam o recinto de boa vontade.

Fazem uma parada em outro pub. Renton e Kelly ficam para uma bebida e depois se mandam juntos. Gav, Dawsy, Begbie, Spud e Alison continuam bebendo em ritmo forçado. Dawsy, que estava cambaleando há algum tempo, desmaia. Begbie se junta a um par de psicopatas conhecidos no balcão e Gav passa um braço possessivo ao redor de Alison.

Spud escuta “China in Your Hand”, de T’Pau, começando a tocar, e imediatamente se dá conta de que Begbie está no jukebox. Ele parecia sempre colocar essa música ou “Take My Breath Away” do Berlim, ou “Don’t You Want Me”, do Human League, ou alguma do Rod Stewart.

Quando Gav se precipita para o banheiro, Alison se vira para Spud: – Spu... Danny. Vambora daqui. Quero ir pra casa.

– Hã... tá... tipo assim.

– Não quero ir pra casa sozinha, Danny. Vem comigo.

– Hã, sim... casa, certo... hã... certo.

Eles se esgueiram para fora do bar enfumaçado tão discretamente quanto seus corpos arrasados o permitem.

– Vem pra minha casa, Danny, fica um pouco comigo. Sem drogas, sem nada assim. Não quero ficar sem ninguém comigo agora, Danny. Entende o que eu tô dizendo? – tensa, Alison olha para ele, às lágrimas, enquanto seguem pela rua.

Spud confirma com o queixo. Acha que entende o que ela está dizendo, porque também não quer ficar sozinho. Mas ele nunca pode ter certeza, nunca, jamais, ter certeza total.


Enfim livres

A Alison tá realmente ficando terrível. Tô aqui sentada com ela no café, tentando tirar algum sentido das bobagens que ela tá dizendo. Ela tá falando mal do Mark, o que é muito justo, mas isso tá começando a me incomodar. Sei que ela não tá fazendo por mal, mas onde ficam ela e o Simon, que simplesmente aparece e usa ela sempre que não tem mais ninguém pra comer? Ela não tá exatamente com essa bola toda.

– Não me entenda mal, Kelly. Eu gosto do Mark. Mas é que ele tem problemas demais. Ele não é o que você precisa agora.

A Ali tá bancando a superprotetora porque eu me fodi bonito com o Des, o aborto e aquela coisa toda. Ainda assim é um saco. Ela tinha que ouvir as coisas que tá falando. Tá tentando se livrar da heroína e se acha com moral pra dizer como todos os outros têm que viver suas vidas.

– Ah, sim. E é do Simon que cê precisa?

– Não tô dizendo isso, Kelly. Isso não tem nada a ver com o assunto. O Simon pelo menos tá tentando se manter longe da heroína, já o Mark não tá nem aí.

– O Mark não é um viciado, ele só usa de vez em quando.

– Claro, claro. Em que porra de planeta cê vive, Kelly? Foi assim que aquela garota, a Hazel, se deu mal. Ele não consegue se livrar da heroína sozinho. Cê parece uma viciada falando. Continue pensando assim que logo, logo cê também vai tá usando.

Não vou discutir com ela. Já tá mesmo na hora do compromisso dela no Departamento da Habitação.

A Ali tá indo explicar os atrasos no pagamento do aluguel. Tá bem enlouquecida, tipo assim, toda errada e tensa; o cara do outro lado da mesa tá bem tranquilo. A Ali explica que tá longe da heroína e que já fez algumas entrevistas de trabalho. Tudo corre bem. Ela consegue parcelar tudo pra pagar um pouquinho a cada semana.

Percebo que a Ali ainda tá nervosa pelo jeito que ela reage quando uns caras, uns obreiros, assobiam pra gente do lado de fora da agência do correio.

– Tudo em cima, gostosa? – grita um deles.

A Ali, sendo a vaca louca de merda que é, se vira pro cara.

– Cê tem namorada? Acho difícil, porque cê é um gordo escroto e feioso. Que tal ir pro banheiro com uma revistinha pornô e trepar com a única pessoa louca o bastante pra te tocar... você mesmo!

O cara olha pra ela com puro ódio, mas ele já tava olhando daquele jeito mesmo. É que agora ele meio que tem um motivo pra odiar ela, além do simples fato dela ser mulher.

Os amigos do cara começam a gritar: – Ooooopa! Ooooopa! – meio que atiçando o cara, e ele continua ali parado, tremendo de raiva. Um dos obreiros se pendura no andaime que nem um macaco. É isso mesmo que eles parecem, uns primatas inferiores. Coisa de louco!

– Se fode, baranga! – ele rosna.

A Ali não se rende. É constrangedor, mas também um pouco divertido e tal, porque algumas pessoas pararam pra ficar olhando a confusão. Duas outras mulheres, meio que estudantes, com mochilas nas costas, param do nosso lado. Isso faz eu me sentir muito, muito bem. Que loucura!

A Ali, deus do céu, a mulher é doente, diz: – Quando cê tava nos enchendo o saco um minuto atrás eu era gostosa. Agora que eu mandei cê se fuder eu virei baranga. Tudo bem, cê continua sendo um escroto gordo e feioso, meu filho, e vai continuar assim pra sempre.

– E a gente assina embaixo – diz uma das mulheres com mochila, em sotaque australiano.

– Suas sapatão de merda! – grita outro cara. Eu fico puta da vida com isso de ser chamada de sapata só porque não gosto de ser assediada por uns cornos ignorantes e asquerosos.

– Se todos os caras fossem nojentos que nem você, pode apostar que eu teria um baita orgulho de ser lésbica, meu filho! – grito de volta. Eu falei isso mesmo? Coisa de louco!

– Caras, vocês obviamente têm problemas. Por que não começam logo a trepar entre si? – diz a outra australiana.

Já tem uma multidão reunida, e duas tias velhas ficam escutando.

– É terrível ver as garotas falando desse jeito com os rapazes – diz uma delas.

– Não tem nada de terrível. Esses aí são umas pragas. É bom ver essas garotinhas se defendendo. Queria que isso tivesse acontecido no meu tempo.

– Estou falando dos termos que elas estão usando, Hilda, dos termos – responde a outra tia velha, torcendo os beiços e meio que tremendo.

– Sim, mas e os termos que eles usam? – eu digo pra ela.

Os caras parecem constrangidos, encagaçados de verdade com a multidão que se juntou. O negócio foi meio que crescendo sozinho. Que loucura! Aí aparece um mestre de obras, todo metido a Rambo.

– Você não pode controlar esses animais? – pergunta uma das australianas. – Eles não têm que trabalhar ao invés de ficarem incomodando as pessoas?

– Já pra dentro, vocês todos! – grita o mestre de obras, afastando os caras pra longe com um gesto. A gente meio que dá um grito de alegria. Foi maravilhoso. Que loucura!

Eu e a Ali continuamos caminhando até o café Rio com as australianas, e as duas tias vieram junto também. As “australianas” eram na verdade neozelandesas, e eram lésbicas, mas isso não tinha porra nenhuma a ver com o assunto. Tavam só viajando juntas pelo mundo. Mas que coisa de louco! Eu adoraria fazer um esquema parecido. Eu e a Ali; seria uma loucura. Mas imagine aparecer na Escócia logo em novembro. Isso é realmente o que eu chamo de coisa de louco. Nós todas ficamos tagarelando por um tempão sobre tudo que é coisa, e até mesmo a Ali não parecia mais tão desnorteada.

Depois de um tempo decidimos voltar pra minha casa pra fumar um haxixe e tomar mais um pouco de chá. Tentamos convencer as tias a vir com a gente, mas elas tinham que ir pra casa e preparar o chá dos maridos, mesmo que a gente tenha ficado dizendo pra elas deixarem os merdas fazerem sua própria comida.

Uma delas ficou realmente tentada: – Queria ter a idade de vocês de novo, querida, eu faria tudo diferente, pode apostar.

Tô me sentindo maravilhosa, tipo assim, livre mesmo. Todas nós estamos. É mágico! Ali, Veronica e Jane (as neozelandesas) e eu nos chapamos bastante na minha casa. Ficamos xingando os homens e decidimos que são mesmo criaturas estúpidas, incompetentes e inferiores. Nunca me senti tão próxima de outras mulheres, e senti mesmo vontade de ser lésbica. Às vezes eu penso que homens só prestam mesmo pra dar uma trepada de vez em quando. Pra qualquer outra coisa, esses merdas só incomodam. Talvez isso pareça loucura, mas quando cê para e pensa percebe que é verdade. Nosso problema é que a gente nunca pensa muito nisso e fica só aceitando as merdas que esses escrotos fazem com a gente.

Toca a campainha; é o Mark. Não consigo deixar de rir na cara dele. Ele entra e parece completamente perdido quando a gente se desmonta de tanto rir dele, chapadas até não mais poder. Talvez seja o fumo, mas é que ele parece tão estranho; os homens parecem tão estranhos, com esses corpos engraçados e achatados e essas cabeças estranhas. É como disse a Jane, eles são coisas de aparência bisonha que carregam seus órgãos reprodutores do lado de fora do corpo. Loucura total!

– E aí, gostoso! – grita a Ali, fingindo uma voz de obreiro.

– Pega ele! – ri a Veronica.

– Já comi. Pelo que lembro, não é uma trepada das piores. Mas é meio pequeno e tal! – digo, apontando pra ele, imitando a voz do Franco. Frank Begbie, o sonho de toda mulher, arrã, pode crer; eu e a Ali já tiramos muito com a cara dele.

Ele não reage mal, pobre Mark, isso eu admito. Só balança a cabeça e dá risada.

– Tá bem claro que cheguei numa hora errada. Apareço de novo de manhã – diz.

– Oh... coitadinho do Mark... a gente tá só metendo pau em tudo, coisa de mulher... cê sabe como é... – diz a Ali, meio culpada. Dou uma baita risada quando escuto o que ela disse.

– Qual de nós tá metendo o pau em quem? – pergunto. Todas nós começamos a rir sem parar. Eu e a Ali devíamos ter nascido homens, a gente vê sexo em tudo. Especialmente quando tamos chapadas.

– Tá certo. Até mais – ele diz e vira pra sair, mas antes pisca pra mim.

– Acho que alguns deles são legais – diz a Jane, depois que a gente consegue parar com as risadas.

– É, quando eles tão em minoria eles sempre são legais – respondo, e na mesma hora tento descobrir por que falei isso de um jeito tão agressivo, mas logo decido que não quero descobrir tanto assim.


Sr. Hunt, o evasivo

Kelly está trabalhando como atendente de balcão em um pub do South Side. Como é um estabelecimento popular, ela está sempre ocupada. É uma tarde de domingo e o lugar está especialmente lotado quando Renton, Spud e Gav pedem suas bebidas.

Sick Boy, ao telefone de um outro pub da mesma rua, liga para o balcão.

– Já atendo você, Mark – diz Kelly, quando Renton se aproxima para buscar as bebidas. Ela atende o telefone. – Balcão do Rutherford – diz, quase cantando.

– Olá – diz Sick Boy, disfarçando sua voz com um estilo de falar polido e conservador. – Há algum Mark Hunt no bar?

– Tem um Mark Renton – Kelly responde. Por um momento, Sick Boy acha que foi descoberto. Mesmo assim, segue adiante.

– Não, estou procurando por Mark Hunt – reafirma, com voz gentil.

– MARK HUNT! – grita Kelly, do balcão. Os clientes, quase todos homens, viram-se para olhar para ela, com sorrisos nascendo nos rostos. – ALGUÉM VIU MARK HUNT?16 – alguns sujeitos sentados no balcão começam a dar risadas.

– Não vi, mas bem que gostaria! – diz um deles.

Kelly ainda não se dá conta. Com uma expressão confusa por conta das reações que obteve, diz: – O cara no telefone diz que tá procurando alguém chamado Mark Hunt... – então sua voz começa a morrer, seus olhos se arregalam e ela coloca a mão na boca, finalmente entendendo tudo.

– Ele não é o único – sorri Renton, enquanto Sick Boy adentra o pub.

Os dois começam a rir tanto que praticamente precisam se apoiar um no outro.

Kelly joga o conteúdo de um jarro d’água pela metade em cima deles, mas os dois mal percebem. Para eles pode ser apenas um motivo de risadas, mas ela sente-se humilhada. Sente-se mal por sentir-se mal, por não ser capaz de lidar com uma brincadeira.

Finalmente ela entende que não é a brincadeira que a incomoda, mas a reação dos homens ali presentes. Atrás do balcão, ela sente-se como um animal engaiolado em um zoológico, que acaba de divertir os visitantes fazendo alguma gracinha. Observa seus rostos vermelhos, distorcidos, boquiabertos e terrivelmente comuns. A mulher, pensa, a garotinha boba do outro lado do balcão, é motivo de piadas mais uma vez.

Renton olha para ela e percebe sua dor e sua raiva. Isso o pega de jeito, o deixa confuso. Kelly tem um grande senso de humor. O que há de errado com ela? O veredicto automático – deve estar naqueles dias – está se formando em sua cabeça no momento em que olha ao seu redor e escuta com mais atenção o tom das gargalhadas que preenchem o bar. Não são gargalhadas divertidas.

São as gargalhadas de um esquadrão de linchamento.

Como eu poderia saber?, pensa. Como eu poderia saber, porra?


Lar


Dinheiro fácil para os profissionais

Aquilo era uma bosta, uma bosta total, mas tipo assim, o Begbie é um filho da puta, cara; pode crer e tal.

– Não diz porra nenhuma pra ninguém, tá ligado? Nada pra ninguém – ele me diz.

– Hã, tipo assim, tô entendendo muito bem, cara, tipo perfeitamente. Se acalma, Franco velho, se acalma. A gente meio que se deu bem e tal, tá ligado.

– É, mas não diz nada pra ninguém. Nem mesmo pro merda do Rents e tal. Tá ligado?

Não tem como falar racionalmente com alguns caras. Cê diz “razão” e eles entendem “traição”. Saca?

– E nada de drogas, porra. Guarda a merda da bufunfa por um tempo – continua. Agora o cara tá me dizendo como gastar a grana e tal.

É meio que uma cena bisonha. Cada um de nós vai ficar com alguns mil depois que dermos a grana pro garoto e tal, mas esse felino aqui ainda tá com os pelo em pé. O Mendiguito não é o tipo de felino que se presta a ficar todo enrolado numa cesta quentinha, ronronaaaaaaando...

Bebemos mais um pint e chamamos um táxi. Essas sacolas que a gente tá carregando, cara, deviam ter escrito GRANA do lado de fora, ao invés de ADIDAS ou outra dessas marca. Dois mil, porra. Putz! Don’t you-ho be te-heh-heh-rified, it’s just a token of my extreme... como diria o outro Franco, o senhor Zappa.

O táxi leva a gente pra casa do Begbie. A June tá lá, com o pirralho do Begbie no colo.

– O menino acordou – ela diz pro Franco, tipo como se estivesse explicando. O Franco olha pra ela como se quisesse matar os dois.

– Mas que caralho. Vamo pra porra do quarto, Spud. Não dá pra ter um pouco de paz nem na porra da minha própria casa! – ele meio que aponta pra porta.

– O que é isso tudo? – a June pergunta.

– Nem me vem com pergunta. Fica na sua e cuida desse pirralho de merda – grita o Begbie. Ele meio que fala dum jeito como se o pirralho tipo nem fosse dele e tal, tá ligado? Acho que de algum jeito ele até que tá meio certo e tal; o Franco não é bem o que eu chamaria de alguém que nasceu pra ser pai, saca... hã, pra que foi que o Franco nasceu mesmo?

Mas foi bonito, cara. Sem violência, sem incomodação, saca. Pegamos umas cópia das chave e simplesmente entramos e tal. Aí achamos o piso falso atrás do balcão, bem embaixo da registradora, e tava lá um sacão cheio de dinheiro. Maravilha! Aquele monte de nota e moeda, coisa linda. Meu passaporte pra dias melhores, cara, meu passaporte pra dias melhores.

A campainha toca. Eu e o Franco meio que ficamos com medo que sejam os hômi, mas é só o garoto vindo buscar a parte dele. Ainda bem, tipo assim, porque eu e o Franco tamo com moeda e nota espalhada por tudo que é canto da cama; tamo tipo nadando nelas, saca?

– Cês pegaram? – pergunta o garotinho, esbugalhando os olho ao ver tudo aquilo em cima da cama.

– Senta, porra! Fica de bico calado sobre essa porra toda, certo? – rosna o Franco. O garoto meio que se caga de medo e tal.

Tenho vontade de pedir pro Franco pegar leve com o garoto, saca? Tipo, foi por causa desse bichano que a gente conseguiu toda essa grana. Foi ele que nos contou a história, quem nos conseguiu as chave pra fazer cópia e tal. Eu nem digo nada, mas o Begbie meio que consegue ler meus pensamento.

– Esse merdinha vai voltar direto pra porra da escola mostrando a grana pra todo mundo pra impressionar os parceiro e as menininha tudo.

– Não vou não – diz o garoto.

– Calaboca! – rosna o Begbie. O carinha fica com medo de novo. O Begbie se vira pra mim. – É certo que fazia isso, se fosse eu.

Ele levanta e atira três dardo no alvo da parede, com muita força, um troço bem violento, cara. O garoto parece que tá ficando preocupado.

– Só tem uma coisa pior que um caguete – diz o Begbie, arrancando os dardo do alvo e atirando de novo com a mesma força maligna. – Um falastrão. O escroto que resolve abrir a boca quando não deve sempre causa mais problema que a caguetagem. É esse escroto que dá munição pra caguetagem. A caguetagem dá munição pra porra da polícia. Aí todo mundo se fode.

Ele atira um dardo bem no meio da cara do garoto. Eu tomo um susto e o garoto dá um grito e começa a ficar histérico, tremendo todo, como se tivesse tendo tipo um ataque.

Me ligo que o Begbie atirou só o cabinho de plástico; antes de jogar o dardo, tinha tirado a ponta de metal sem que a gente visse. O carinha ainda tá meio que tremendo, meio que em choque e tal.

– É só a porra do cabo, pirralho burro! Só um pedacinho de plástico! – o Franco dá uma risada de desdém e começa a separar um monte de nota pro garoto, mas na real pega quase só as moeda. – Se a polícia te parar, cê diz que ganhou a grana nos esquema do Porty ou num bingo. Se cê falar qualquer coisa pra qualquer viado, torce pra que a polícia pegue você e mande pra porra de Polmont antes que eu encontre você por aí, tá entendendo?

– Sim... – o garoto ainda tá tremendo e tal.

– Agora cai fora daqui, volta lá pra merda do seu empreguinho de fim de semana na loja de ferragens. Não esquece, se eu ficar sabendo que cê ficou mostrando a porra da grana por aí, te pego antes que cê possa sacar o que tá acontecendo.

O garoto pega a grana dele e vai embora. O coitado não levou quase nada, tipo só umas centena de libra de um total de tipo uns cinco mil. Mesmo assim é uma boa grana prum bichano daquela idade, se cê me entende. Mas vê lá, ainda acho que o Franco foi meio duro demais com o pirralho.

– Ei, cara, o garoto fez a gente ganhar umas duas mil libra e pouco por cabeça, cara... hã, só tô meio que dizendo o seguinte, Franco, tipo assim, talvez cê tenha sido meio duro com o pirralho e tal, saca?

– Não quero que aquele porrinha fique se gabando por aí, mostrando grana por tudo que é lado. Fazer qualquer coisa com pirralho tipo esse é o negócio mais arriscado que tem. Esses merda não são discreto, saca? É por isso que eu curto roubar loja e casa com você, Spud. Cê é um profissional de verdade, tipo eu, e cê nunca fala porra nenhuma pra ninguém. Eu respeito essa porra de profissionalismo, Spud. Quando cê trabalha com profissionais de verdade, nunca tem problema nenhum, seu viado.

– Só... tipo assim, tá certo, cara – eu digo. O que mais eu posso dizer e tal, saca? Profissionais de verdade. Gosto de como isso soa no meu ouvido; soa mesmo muito bem.


Um presente

Resolvi que não podia mais ficar na casa da minha coroa; é muita dor de cabeça. Então o Gav tá me recebendo enquanto rola o funeral do Matty. Não aconteceu nada de mais na viagem de trem; bem como eu queria. Umas fitas do The Fall no walkman, quatro latas de cerva e meu livro do H. P. Lovecraft. O velho H. P. era um nazi de merda, mas sabia contar uma boa história. Assumo uma cara de não-me-perturbe-ou-senão-já-sabe toda vez que algum imbecil sorridente se espreme no lugar ao meu lado. Como é uma viagem agradável, passa rápido.

A nova casa do Gav fica na McDonald Road; decido ir a pé. Quando chego lá, ele não tá num clima muito alegre. Já quase começo a ficar paranoico, como se tivesse tirando proveito dele, quando ele me indica a origem de seu sofrimento.

– Tô falando, Rents, saca aquele escroto do Segundo Lugar? – diz, balançando a cabeça com desgosto e apontando pra um quarto vazio. – Dei uma grana pra ele arrumar a casa; passar gesso, pintar, essas coisas. Hoje de manhã ele me diz que ia estar lá no B&Q. Não vi mais o cara desde então.

Penso na hora em dizer pro Gav que, pra começar, ele foi louco de chamar o Segundo Lugar pra fazer esse trabalho. Pior ainda foi ter dado a grana antes do serviço estar pronto; isso foi uma cagada sem tamanho. Mas eu saco que ele não tá a fim de ouvir essas coisas agora, e além de tudo eu sou hóspede do cara. Jogo minha sacola no quarto vago e vou com ele até o pub.

Quero saber do Matty, ficar por dentro do que aconteceu com o cara. É claro que fiquei chocado com a notícia, mas não dá pra dizer que me pegou de surpresa.

– O Matty nem ficou sabendo que tinha AIDS – diz o Gav. – Ele já tinha há um bom tempo, provavelmente.

– Foi tipo pneumonia ou câncer? – pergunto.

– Que nada. Foi hã, toxoplasmose. Um derrame, saca.

– Hein? Não tô entendendo nada.

– Triste pra caralho. Só podia ter acontecido com o Matty. – Gav sacode a cabeça. – Ele queria ver a garotinha dele, a Lisa, filha da Shirley, saca? A Shirley não deixava ele chegar nem perto da casa. Lembrando do estado dele, até dá pra entender. Enfim, sabe a Nicola Hanlon?

– Só, a Nicky, só.

– A gata dela teve filhotes, e o Matty pegou um pra ele. A ideia dele era levar o gatinho pra casa da Shirley, pra dar pra pirralha, saca? Aí ele leva o bicho até Wester Hailes, pra dar pra Lisa; um presente pra ela, saca?

Não consigo entender a relação entre o gatinho e o derrame do Matty, mas tudo parece uma típica história do Matty. Sacudo a cabeça. – Isso resume o Matty. Consegue um gatinho e depois dá pra outra pessoa cuidar. Aposto que a Shirley cortou a dele na hora.

– Exatamente. Era um cara sem noção, mesmo – o sorriso de Gav não tira a tristeza de seu rosto. – Ela disse assim: Não quero ter que cuidar de um gato, leva ele embora, vai à merda. Aí o Matty ficou com a porra do gato. Cê pode imaginar o que rolou. O bicho foi deixado de lado; a caixa de areia nunca tinha areia, só um mar de mijo; a casa inteira tava cheia de merda. O Matty ficava deitado pelos cantos, todo detonado de heroína ou anfetamina ou só de depressão mesmo; cê sabe como ele ficou. Como eu disse, ele nem sabia que tinha AIDS. Não sabia que cê pode pegar toxoplasmose de bosta de gato.

– Eu também não sabia – digo. – Que porra é essa?

– Ah, é um troço horrível, cara. São tipo uns abscessos no cérebro, saca?

Me arrepio todo e sinto um peso no meu peito, pensando no coitado do Matty. Tive um abscesso na pica uma vez. Imagina só ter um troço daqueles na porra do cérebro, lá dentro; a cabeça toda cheia de pus. Puta que o pariu. Matty. Que merda. – E aí, o que aconteceu?

– Ele começou a ter dores de cabeça, e aí usou ainda mais heroína; pra se livrar da dor, saca? Aí ele teve tipo um derrame. Um garoto de vinte e cinco anos. Uma porra dum derrame; nem parece verdade. Eu não reconhecia mais o cara depois daquilo. Quase passava reto por ele na rua; lá perto da Walk, saca? Ele parecia velho pra caralho. Tava todo torto pra um lado, se arrastando feito um aleijado, com a cara toda errada. Ficou assim só por umas três semanas; depois teve mais um derrame e morreu. Morreu em casa. O pobre coitado ficou lá dentro por séculos até que os vizinhos começaram a reclamar dos miados do gato e do fedor que saía lá de dentro. A polícia arrombou a porta. O Matty tava morto, deitado de cara numa poça de vômito seco. O gatinho tava na boa.

Lembrei do prédio invadido de Shepherd’s Bush em que eu e o Matty moramos; foi a época que ele foi mais feliz. Ele adorava todo o esquema punk. Eles amavam ele por lá. Ele trepou com toda as mina do lugar, até com uma garotinha de Manchester que eu passei eras tentando comer, o sacana. Tudo começou a dar errado pro infeliz quando a gente voltou pra cá. As coisas nunca mais se ajeitaram depois disso. Coitado do Matty.

– Puta merda – o Gav resmunga –, aquele escroto do James Perfume. Tudo que a gente precisava.

Dou uma olhada e enxergo o sorriso escancarado do James Perfume chegando perto da gente. Tava com a valise dele e tudo.

– Como é que tá, James?

– Nada mal, garotos, nada mal. Onde é que cê andou se escondendo, Mark?

– Em Londres – respondo. O James Perfume é um pé no saco; tá sempre tentando vender perfume pra todo mundo.

– Anda envolvido romanticamente com alguém, Mark?

– Nem tô – informo, com enorme prazer.

O James Perfume franze o cenho e torce os lábios: – Gav, como vai sua patroa?

– Tá bem – murmura o Gav.

– Se não estou enganado, na última vez que encontrei vocês dois por aqui ela tava usando Nina Ricci, tô errado?

– Não quero perfume nenhum – declara o Gav, em tom de quem quer encerrar o assunto.

O James Perfume inclina a cabeça pra um lado e estende as mãos. – Azar é seu. Posso garantir que não tem jeito melhor de impressionar uma garota do que dar perfumes. Flores são temporárias demais, e nesses tempos de preocupação com a boa forma é melhor esquecer dos chocolates. Mas tudo bem, isso não me incomoda – sorri o James Perfume, abrindo a valise como se a simples visão daquelas garrafas de mijo fosse nos fazer mudar de ideia. – Hoje me dei bem, não posso reclamar. Por sinal, foi graças ao seu parceiro, o Segundo Lugar. Encontrei ele no Shrub tipo uma hora atrás. Tava bem bêbado. Ele disse: Me dá uns perfumes desses aí, tô indo pra casa da Carol. Tratei ela que nem merda, agora é hora de mimar um pouco. Comprou uma caixa inteira, tô falando.

A boca do Gav literalmente se escancara. Fecha as duas mãos com força e balança a cabeça com ódio, resignado. O James Perfume caminha até o lounge em busca de outra vítima.

Tomo um gole do meu pint. – Vamos ver se a gente acha o Segundo Lugar antes que o cara beba todo o seu dinheiro. Quanto cê deu?

– Duzentão – diz o Gav.

– Mas que anta – digo, sorrindo. Não consegui evitar, foi automático.

– Alguém precisa examinar minha cabeça – Gav admite, mas não consegue forçar um sorriso. Acho que quando tudo já foi dito, quando tudo já foi feito, não sobra mais muita coisa pra rir.


Lembranças do Matty

1

– Beleza, Nelly? Fazia tempo pra caralho que não via você, seu viadão. – Franco sorri para Nelly, que parece fora d’água vestindo um terno, com uma tatuagem de uma cobra subindo pelo pescoço e outra de uma ilha deserta com palmeiras e ondas cravada bem no meio da testa.

– Que pena que teve de ser desse jeito e tal – Nelly responde, sério. Renton, que está conversando com Spud, Alison e Stevie, permite-se um sorriso ao escutar o primeiro clichê de funeral do dia.

Percebendo a deixa, Spud diz: – Coitado do Matty. Que notícia de merda, tipo assim, saca?

– Pra mim chega. Vou ficar careta – disse Alison, tremendo, apesar de estar envolvendo o próprio corpo com seus braços.

– É certo que a gente vai acabar assim se não resolver tomar vergonha na cara – Renton admite. – Já fez o teste, Spud? – pergunta.

– Ei... qualé, cara, não é hora de falar nisso... é o funeral do Matty e tal.

– E quando é hora? – Renton pergunta.

– Cê tem que fazer, Danny, cê tem que fazer – Alison implora.

– De repente é melhor nem saber. Tipo assim, como é que foi a vida do Matty depois que ele descobriu que tava com AIDS?

– O Matty era assim. Como é que era a vida dele antes de saber que tava com AIDS? – Alison responde. Spud e Renton assentem sua concordância com esse argumento.

No interior da capelinha adjacente ao crematório, o sacerdote faz um breve discurso a respeito de Matty. Ele tinha muitas cremações para conduzir naquela manhã e não tinha tempo a perder. Alguns comentários, uns dois hinos religiosos, umas orações e um clique de um interruptor para enviar o cadáver até o incinerador. Mais alguns desses e seu trabalho do dia estaria terminado.

– Para nós que hoje estamos aqui reunidos, Matthew Connell representou diferentes papéis em nossas vidas. Matthew foi um filho, um irmão, um pai e um amigo. Os últimos dias da vida breve de Michael foram frios e cheios de sofrimento. Ainda assim, devemos guardar na memória o verdadeiro Matthew, o jovem adorável que tinha uma grande paixão pela vida. Um músico habilidoso, Matthew adorava entreter os amigos tocando sua guitarra...

Renton não conseguiu encarar Spud, que estava ao seu lado no banco da capela, quando foi tomado por um acesso de riso nervoso. Matty fora o pior guitarrista que conhecera, e só conseguia tocar direito “Roadhouse Blues”, dos Doors, e mais algumas músicas do Clash e do Status Quo. Esforçara-se muito para aprender o riff de “Clash City Rockers”, mas nunca conseguiu. Ainda assim, Matty amava sua Fender Strat. Foi a última coisa que ele vendeu; ficou com ela mesmo depois que o amplificador foi negociado para que ele pudesse encher suas veias com merda. Coitado do Matty, pensou Renton. Será que algum de nós o conhecia bem? Será que alguém pode realmente conhecer bem outra pessoa?

Stevie desejava estar a seiscentos e cinquenta quilômetros dali, no apartamento de Holloway que dividia com Stella. Era a primeira vez que se separavam desde que foram morar juntos. Sentia-se desconfortável. Por mais que tentasse, não conseguia fixar a imagem de Matty em sua cabeça. Matty sempre acabava virando Stella.

Spud pensava que devia ser uma bosta morar na Austrália, com o calor, os insetos e todos aqueles subúrbios entediantes que apareciam nos seriados australianos da tevê. A Austrália parecia não ter pubs de verdade; o lugar parecia uma versão quente de Baberton Mains, Buckstone ou East Craigs. Parecia tão enfadonho, tão cu do mundo. Tentou imaginar como seria a vida nas partes mais antigas de Melbourne e Sydney e se haveria loteamentos por lá, como em Edimburgo, Glasgow ou até mesmo Nova York; e, se havia, por que nunca eram mostrados na tevê. Tentou também imaginar por que fizera uma relação entre a Austrália e Matty. Talvez porque sempre que apareciam por lá, ele estava deitado no colchão, detonado, assistindo a um seriado australiano.

Alison lembrava da vez que fez sexo com Matty. Acontecera há séculos, antes mesmo de ela começar a usar heroína. Ela devia ter dezoito anos. Tentou lembrar do pau de Matty, de suas dimensões, mas não conseguia visualizá-lo. Mas o corpo de Matty apareceu em sua mente. Era esbelto e firme, embora não fosse particularmente musculoso. Magro, tinha boa aparência e olhos penetrantes e nervosos, que denunciavam sua personalidade inquieta. Sua lembrança mais vívida, contudo, era do que Matty lhe dissera quando foram para a cama daquela vez. Ele disse: – Vou comer você como ninguém nunca comeu antes. – Tinha razão. Ela nunca foi tão malcomida quanto daquela vez; nem antes nem depois. Matty gozou em poucos segundos, enchendo ela de porra e rolando para o lado, ofegando sem parar.

Ela nem tentou esconder sua decepção. – Que merda foi essa – disse, saindo da cama, tensa e ansiosa, excitada mas insatisfeita, com vontade de gritar de frustração. Ele não disse nada e nem ao menos se mexeu, mas ela tinha certeza de ter visto lágrimas correndo dos olhos dele quando foi embora. Guardou essa imagem consigo enquanto olhava para o caixão de madeira, e desejou ter sido mais gentil.

Franco Begbie sentia-se furioso e confuso. Para ele, qualquer dano cometido a um amigo era recebido como insulto pessoal. Tinha orgulho de cuidar de seus parceiros. A morte de um deles forçava-o a confrontar-se com sua própria impotência. Franco resolveu esse problema direcionando sua fúria a Matty. Lembrou da vez que o Matty se borrou de medo do Gypo e do Mikey Forrester em Lothian Road, e ele precisou tomar conta sozinho dos dois escrotos. Não que isso tenha sido difícil. O que incomodava era o princípio por trás daquela atitude. Você precisava tomar conta dos seus amigos. Cuidou para que Matty pagasse por sua covardia: tanto fisicamente, com surras, quanto psicologicamente, com intermináveis humilhações públicas. Agora percebia que não fizera o escroto pagar o suficiente.

A sra. Connell pensava em Matty quando era garotinho. Todos os meninos eram sujos, mas Matty era especialmente problemático. Não gostava de usar sapatos e transformava suas roupas em trapos em tempo recorde. Por isso, ela não estranhou quando ele tornou-se punk ao atingir a adolescência. Parecia apenas a transformação de um fato em uma vantagem. Matty sempre fora um punk. Lembrou de um episódio em particular. Quando criança, ele a acompanhara até o dentista quando foi colocar sua dentadura. No ônibus, voltando para casa, sentia-se constrangida. Matty insistia em contar para todos os passageiros que sua mamãe tinha colocado uma dentadura. Era uma criança particularmente adorável. Você acaba perdendo os filhos, reflete. Depois que fazem sete anos, não são mais seus. Então, bem quando você se acostuma, tudo acontece de novo quando eles fazem catorze. Alguma coisa acontece. Quando você coloca heroína no meio, então, eles não são mais nem deles próprios. Quanto mais heroína, menos restava de Matty.

Soluçava suave e cadenciosamente; controlado pelo valium, seu pesar manifestava-se em breves e nauseantes rajadas que tentavam dissipar a ira do furacão de angústia e desespero em estado bruto que tomava seu interior, buscando mantê-lo sobre controle.

Anthony, o irmão mais novo de Matty, tinha ideias de vingança. Vingança contra todos os vagabundos que fizeram aquilo com seu irmão. Conhecia todos eles; alguns até haviam tido coragem de aparecer ali naquele dia. Murphy, Renton e Williamson. Uns idiotas patéticos que andavam por aí como se cagassem pétalas de rosas, como se soubessem de algo que ninguém mais tinha ideia, mas não passavam de lixo, de viciados. Não só eles, mas também as figuras ainda mais sinistras por trás deles. Seu irmão, o merda do seu irmão fraco e estúpido, fora influenciado por aquela corja.

A mente de Anthony recuou até o episódio que Deek Sutherland lhe dera uma tremenda surra no pátio da estação de trens abandonada. Quando Matty descobriu, foi atrás de Deek Sutherland, que tinha a mesma idade de Anthony e era dois anos mais novo que ele. Anthony relembrou de sua ansiedade por testemunhar a humilhação completa de Deek Sutherland nas mãos de seu irmão. Na verdade, foi Anthony quem saiu novamente humilhado, desta vez por tabela. Foi quase tão terrível quanto o que acontecera consigo mesmo; observou seu velho adversário derrotar seu irmão quase sem esforço algum, dando-lhe uma sova inesquecível. Naquele dia, Matty o decepcionou. Dali em diante, decepcionou a todos.

A pequena Lisa Connell estava triste por seu papai estar dentro daquela caixa, mas sabia que agora ele tinha asas de anjo e estava indo direto para o céu. Sua vovó chorou quando Lisa sugeriu que isso podia acontecer. Ele parecia estar dormindo dentro da caixa. Sua vovó disse que a caixa ia embora direto para o céu. Lisa achava que os anjos ganhavam asas e voavam até lá. Ficou um tanto preocupada porque ele não poderia voar se não o tirassem daquela caixa. Ainda assim, eles provavelmente sabiam o que estavam fazendo. O céu parecia um lugar legal. Um dia ela também iria para lá e encontraria seu papai. Quando ele aparecia para visitá-la em Wester Hailes, geralmente não estava muito bem, e por isso não deixavam que ela conversasse com ele. Seria legal ir para o céu para brincar com ele, como faziam quando ela ainda era bem pequenininha. No céu ele estaria bem de novo. O céu seria diferente de Wester Hailes.

Shirley segurava com força a mão da filha, e brincava com seus cachos. Lisa parecia o único indício de que a vida de Matty não fora inútil. Mesmo assim, vendo aquela criança, ninguém podia negar que se tratava de um indício e tanto. Matty, contudo, não fora um verdadeiro pai. O sacerdote irritara Shirley por descrevê-lo como tal. Ela era pai e mãe. Matty fornecera o esperma e aparecera algumas vezes para brincar com Lisa antes de se envolver mais seriamente com a heroína. Foram suas únicas contribuições.

Sempre tivera uma espécie de fraqueza, uma incapacidade de assumir suas responsabilidades e de encarar a força de suas emoções. A maioria dos viciados que ela conhecera eram românticos dissimulados. Matty era um deles. Shirley apaixonara-se por isso, pelo fato de Matty ser tão franco, delicado, carinhoso e cheio de vida. Não durou muito. Mesmo antes da heroína, ele foi tomado por rudeza e amargura. Antes, escrevia poemas de amor para ela. Eram belos; talvez não em um sentido literário, mas na pureza maravilhosa das incríveis emoções que causavam nela. Certa vez, depois de ler, ele ateou fogo a versos particularmente adoráveis que escrevera para ela. Tomada por lágrimas, perguntou a ele o porquê daquilo, pois aquelas chamas pareciam muito simbólicas. Foi o momento mais doloroso da vida de Shirley.

Ele virou o rosto e esquadrinhou a imundície do apartamento. – Olha pra isso. Cê não pode sonhar em viver desse jeito. Cê tá só se sabotando, se torturando.

Seus olhos estavam negros e impenetráveis. Seu cinismo e desespero contagiantes arrancaram de Shirley qualquer esperança de uma vida melhor. Chegou inclusive a quase arrancar dela a própria vida, antes que ela, corajosa, dissesse: Chega.

2

– Cavalheiros, por favor, não façam barulho – pediu o barman de aparência preocupada para o bando ensandecido de bêbados insaciáveis que se transformara o grupo de amigos de luto. Depois de horas de bebedeira estoica e nostalgia melancólica, finalmente começaram a cantar. Sentiam-se bem cantando. Toda a tensão os abandonava. O barman foi ignorado.

Shame on ye, Seamus O’Brien,

All the young girls in Dublin are cryin,

They’re tired o’ your cheatin and lyin,

So shame on ye, Seamus O’Brien! 17

– POR FAVOR! Podiam ficar quietos? – gritou. O pequeno hotel na região metida a besta de Leith Links não estava acostumado àquele tipo de comportamento, muito menos em um dia de semana.

– Mas que porra aquele escroto tá falando? Não se pode mais homenagear um amigo? – Begbie encarou o barman com olhos de predador.

– Oi, Franco – percebendo o perigo, Renton agarrou o ombro de Begbie para tentar acalmá-lo o mais rápido possível. – Lembra quando eu, você e o Matty fomos até Aintree ver as corridas de cavalo do Grand National ?

– Só! Claro que lembro, porra! Eu mandei aquele merda que aparece na tevê tomar no cu dele. Como era mesmo o nome daquele viado?

– Keith Chegwin. Cheggers.

– Isso, é esse porra aí. Cheggers.

– O cara que aparece na tevê? Cheggers Plays Pop? Saca? – pergunta Gav.

– Esse mesmo – disse Renton, enquanto Franco força um sorriso para encorajá-lo a contar o resto da história. – A gente tava vendo os cavalinhos no Grand National, certo? Esse viado do Cheggers tava fazendo umas entrevista pra uma rádio de Liverpool, só falando merda com uns caras do público, saca? Aí ele chegou perto da gente, e ninguém queria falar com ele, mas cê sabe como era o Matty, ele ficou achando que aquilo era algum tipo de chance de ficar famoso e começou a falar como é maravilhoso estar aqui em Liverpool, Keith, a gente tá se divertindo pra caramba e essas merda toda. Aí essa anta, esse Cheggers de merda ou sei lá como cê chama o cara, enfiou o microfone bem na cara do Franco. – Renton aponta para Begbie. – Aí esse escroto diz: Sai fora e vai tomar no seu cu, viado de merda! O Cheggers ficou quase roxo. É pra poder cortar esse tipo de coisa que eles têm aquele atraso de três segundos no que chamam de transmissão ao vivo de rádio.

Enquanto todos riam, Begbie tentou justificar suas atitudes.

– A gente tava lá pra ver a porra da corrida, não pra falar com um viadinho do rádio – a expressão em seu rosto era de um homem sério, incomodado pelo assédio da mídia.

Franco, contudo, sempre consegue arranjar um motivo para se irritar.

– O merda do Sick Boy devia ter aparecido. O Matty era parceiro dele, porra – declarou.

– Hã, mas ele tá na França... com aquela mina e tal. Não deve ter dado, cara, saca... tipo assim... França e tal – comentou um Spud bêbado.

– Não faz diferença nenhuma, cacete. O Rents e o Stevie vieram de Londres. Se o Rents e o Stevie puderam vir lá de Londres, caralho, o Sick Boy podia ter vindo da porra da França.

A bebida embotara perigosamente os sentidos de Spud. Ele cometeu a estupidez de tentar continuar argumentando. – Sim, mas, hã... a França é mais longe... tamo falando do sul da França e tal, saca?

Begbie olha para Spud, incrédulo. Obviamente, sua mensagem não foi compreendida. Falou mais lentamente, em tom mais alto, rosnando até sua boca cruel assumir uma forma estranha sob seus olhos flamejantes.

– SE O RENTS E O STEVIE PUDERAM VIR LÁ DE LONDRES, CARALHO, O SICK BOY PODIA TER VINDO DA PORRA DA FRANÇA!

– Só... tá certo. Devia ter se esforçado. É o funeral de um amigo e tal, saca. – Spud pensou consigo mesmo que o Partido Conservador da Escócia podia se beneficiar da presença de alguns Begbies. O problema nunca é a mensagem, mas a forma como ela é transmitida. O Begbie é bom em transmitir mensagens.

Stevie não estava se sentindo muito bem. Perdera a prática para aquele tipo de coisa. Franco abraçou-o com um braço e estendeu o outro ao redor de Renton.

– É bom pra caralho ver vocês de novo, seus viados. Vocês dois. Stevie, quero que cê cuide desse escroto aqui lá em Londres – virando-se para Renton, continuou: – Se cê acabar que nem o Matty, eu vou até lá pra ajeitar você, seu viado. Escuta o que o Franco tá dizendo, porra.

– Se eu acabar que nem o Matty, não vai sobrar ninguém pra ajeitar.

– Não leve tanta fé. Eu cavo atrás do seu corpo e vou chutar o presunto até a porra da Leith Walk. Tá entendido?

– Bom saber que cê se importa, Frank.

– Claro que me importo, caralho. Cê tem que cuidar dos amigo. Não é isso, Nelly?

– Hein? – Nelly virou-se lentamente, bêbado.

– Tô dizendo presse viado aqui que cê tem que cuidar dos amigo.

– Claro que tem, ora porra.

Spud e Alison conversavam. Renton afastou-se de Franco para juntar-se a eles. Franco continuava prendendo Stevie, segurando-o como a um troféu e dizendo a Nelly como aquele ali era um grande sujeito.

Spud virou-se para Renton. – Tava dizendo pra Ali que isso é pesado pra cacete, tipo assim, tudo isso e tal, cara. Já fui pra muitos funerais de gente da minha idade e tal. Fico pensando em quem vai ser o próximo.

Renton deu de ombros. – Pelo menos a gente tá preparado, seja lá que porra isso queira dizer. Se o luto contasse pra algum currículo de estudos, agora eu já teria uma porra dum doutorado.

Quando o bar fechou todos saíram aos poucos para a noite fria, com bebidas na mão, rumo à casa de Begbie. Já haviam passado doze horas bebendo e justificando a vida e as motivações de Matty. Na verdade, como perceberam os mais introspectivos, todos aqueles insights, reunidos e processados, pouco fizeram para elucidar alguma coisa daquele quebra-cabeça cruel.

Ainda eram os mesmos.


Dilemas de um careta Nº1

– Para com isso, fuma um pouco, não tem problema – ela diz, me estendendo o baseado. Como é que eu vim parar aqui? Eu devia ter ido pra casa, trocado de roupa e depois assistido tevê ou ido pro Princess Diana. É tudo culpa do Mick, dele e sua rapidinha-pós-trabalho.

Agora eu tô deslocado aqui, ainda de terno e gravata, sentado nesse apartamento desconfortável no meio de caras de jeans e camiseta que se acham mais vagabundos do que são. Pirados de fim de semana são um pé no saco.

– Deixa ele em paz, Paula – diz a mulher que conheci no pub. Parece bem a fim de trepar comigo, e demonstra isso de forma óbvia e desesperada, como é norma nesses ambientes londrinos. Provavelmente vai conseguir, mesmo que toda vez que eu entre no banheiro e tente lembrar como ela é eu não consiga nem chegar perto de enxergar alguma coisa. Esse tipo de vadia é irritante; parecem feitas de plástico. Tudo que se pode fazer com elas é comer, sair de cima e depois ir embora. Elas chegam a dar a impressão de que ficariam decepcionadas se cê tentasse agir de modo diferente. Pensar essas coisas faz eu parecer o Sick Boy, mas esse jeito dele tem hora e lugar certos pra fazer sentido: aqui e agora.

– Que nada. Para com isso, senhor Terno e Gravata. Aposto que cê nunca experimentou algo assim na vida.

Dou mais um gole na minha vodca e fico observando a garota. Tem um belo bronzeado e cuida bem do cabelo, mas ao invés de esconder, isso parece chamar a atenção pra aparência levemente acabada e doentia do restante. Enxergo tudo com meu sonar: mais uma criatura estúpida querendo ficar com moral nas ruas. Os cemitérios estão cheios delas.

Pego o baseado, aspiro o cheiro e devolvo pra ela. – É maconha com um pouco de ópio, não é? – pergunto. O cheiro é parecido com o de heroína boa.

– Só... – ela responde, já meio fora de si.

Olho de novo pro baseado aceso na mão dela. Tento sentir alguma coisa. Qualquer coisa. O que estou realmente procurando é o demônio, o escroto filho de uma puta, o louco que vive dentro de mim e desliga meu cérebro, que empurra a mão até o baseado, o baseado até os lábios e traga e traga como um aspirador de pó. Mas ele não tá a fim de aparecer. Talvez nem more mais por aqui. Tudo que resta é esse certinho com emprego de tempo integral.

– Acho que vou recusar sua gentil oferta. Me chame de cuzão se quiser, mas sempre fico um pouco nervoso quando tem drogas por perto. Conheço algumas pessoas que começaram a usar drogas e passaram por dificuldades.

Ela olha pra mim, muito séria, parecendo entender que o mais importante é o que eu deixei de falar. Claramente se sente meio idiota, levanta e sai de perto de mim.

– Cê é louco, é louco sim – a mulher que eu conheci no pub, como é mesmo a porra do nome dela, ri alto demais. Sinto falta de Kelly, que voltou pra Escócia. Kelly tinha uma risada legal.

A verdade é que essa história de drogas agora me parece um tédio, mesmo que hoje eu leve uma vida bem mais entediante do que quando usava heroína. O negócio é que esse tipo de tédio é uma coisa nova pra mim, e por isso não é tão entediante quanto parece. Acho que vou aproveitar um pouquinho. Só um pouquinho.


Comendo fora

Ai, deus, já dá pra ver que vai ser mais uma noite daquelas. Gosto mais quando tá cheio; quando tá morto desse jeito, o tempo se arrasta. Não ganho nada de gorjeta, também. Merda!

Não tem quase ninguém no bar. O Andy tá sentado com cara de tédio, lendo o Evening News. O Graham tá na cozinha, preparando comida que ele espera que alguém coma. Eu tenho um ensaio pra entregar de manhã, pra aula de filosofia. É sobre a moral; se é relativa ou absoluta, em quais circunstâncias etc. etc. Fico deprimida só de pensar nisso. Depois que sair do trabalho vou ficar acordada a noite toda, escrevendo. Coisa de louco.

Não sinto saudades de Londres, mas sinto falta do Mark... só um pouquinho. Bem, talvez seja mais que um pouquinho, mas não é tanto quanto eu imaginava que ia ser. Ele disse que se eu queria ir pra universidade, podia fazer isso tão facilmente em Londres quanto por aqui. Quando disse pra ele que viver com uma bolsa de estudos já era difícil em qualquer lugar, mas em Londres era impossível, aritmeticamente impossível, ele disse que tava ganhando um bom dinheiro e que a gente conseguiria se virar. Quando eu disse pra ele que não queria ser sustentada, como se ele fosse o grande cafetão e eu a puta intelectual, ele respondeu que as coisas não seriam desse jeito. Enfim, eu voltei, ele ficou, e não acho que nenhum de nós esteja arrependido. O Mark pode ser muito amoroso, mas não acho que ele precise realmente de outras pessoas. Morei seis meses com ele e ainda assim não acho que posso dizer que o conheço bem. Às vezes eu penso que eu tava com expectativas altas demais, e que na verdade ele tem muito menos a oferecer do que parece à primeira vista.

Quatro caras entram no restaurante, claramente bêbados. Que loucura. Um deles parece vagamente familiar. Acho que já vi ele na universidade.

– O que desejam? – o Andy pergunta.

– Duas garrafas do mijo menos fedorento que você tiver por aqui... e uma mesa pra quatro... – responde o cara, com a fala arrastada. Pelo sotaque, pelas roupas e pelas atitudes dá pra saber que são ingleses de classe média ou média-alta. A cidade tá cheia desses colonizadores, penso eu, que acabo de voltar de Londres! Antes a universidade era cheia de bundinhas afetados de todos os cantos da Inglaterra, mas agora é um parque de diversões de sujeitos que não conseguiram entrar em Oxford ou Cambridge, com alguns poucos caras de Edimburgo, alunos de escolas de comércio, representando a Escócia.

Sorrio pra eles. Preciso deixar de lado esses preconceitos e aprender a tratar as pessoas como pessoas normais. É tudo influência do Mark, os preconceitos daquele bosta são contagiosos. Eles sentam.

Um deles diz: – Como se chama uma garota bonita na Escócia?

Outro responde: – Uma turista! – eles falam muito alto. Uns grossos.

Um deles diz, apontando pra mim: – Sei não. Aquela ali eu não botava pra fora da cama.

Seu viado. Seu viado desgraçado.

Estou fervendo por dentro, tentando fingir que não escutei o comentário. Não posso me dar ao luxo de perder esse trabalho. Preciso do dinheiro. Sem dinheiro, nada de universidade, nada de diploma. E é isso que eu quero mais do que qualquer outra coisa.

Enquanto analisam o cardápio, um dos caras, um magrelo de cabelo escuro com uma franja comprida, sorri pra mim de um jeito sacana. – Tudo bom, querida? – pergunta, num sotaque cockney afetado. Isso parece uma coisa que os riquinhos acreditam cair bem de vez em quando. Céus, como eu quero mandar esse idiota se fuder. Não preciso aguentar essa merda... preciso sim.

– Ri pra gente, mocinha! – diz um cara mais gordo, com uma voz estrondosa e intrometida. Tem toda a ignorância arrogante da riqueza que não conhece limites, intocada por sensibilidade ou intelecto. Tento sorrir com alguma complacência, mas os músculos do meu rosto estão congelados. Ainda bem, porra.

Anotar o pedido é um pesadelo. Eles não param de conversar sobre possíveis carreiras; comércio, relações-públicas e direito privado parecem ser as mais populares. No meio-tempo, tentam me humilhar me tratando de forma arrogante. O magrelo idiota chega até a me perguntar a que horas eu saio, mas eu ignoro a pergunta enquanto os outros gritam e batucam na mesa. Quando todos fazem seus pedidos, eu volto pra cozinha, me sentindo exausta e humilhada.

Estou tremendo de raiva, tentando imaginar por quanto tempo vou conseguir controlar isso, desejando que Louise ou Marise também estivessem trabalhando naquela noite, seria bom ter outra mulher pra conversar.

– Não dá pra mandar esses idiotas pra rua? – pergunto pro Graham.

– Isso aqui é um negócio. O cliente sempre tem razão, mesmo que ele seja um filho da puta.

Lembro de quando o Mark me contou do tempo que trabalhou nos torneios de equitação em Wembley, trabalhando nos bufês com o Sick Boy durante o verão. Ele disse que os garçons têm o poder; nunca se meta com um garçom. Está certo, claro. Agora chegou minha hora de usar esse poder.

Tô bem no meio de uma menstruação forte, sentindo aquelas coceiras, como se eu tivesse vazando. Vou pro banheiro e troco de OB; o usado, que tá cheio de sangue, eu enrolo em um pouco de papel higiênico.

Uns daqueles cornos ricos e imperialistas pediram sopa; tomate com laranja, tá sempre na moda. Enquanto o Graham tá ocupado preparando os pratos principais, eu pego o OB usado e enfio devagar, como se fosse um saquinho de chá, dentro da tigela de sopa. Depois espremo aquela imundície toda com a ajuda de um garfo. Uns pedacinhos finos e negros de forro uterino flutuam na sopa, antes que eu os dissolva com uma boa mexida.

Levo as duas entradas de patê e as duas sopas pra mesa, e asseguro que o magricelo de merda fique com a temperada. Um dos caras, com uma barba castanha e uns dentes horríveis, tortos e salientes, está falando pro resto da mesa como o Havaí é horrível.

– É quente demais. Eu não me importo com o calor, mas o de lá não é aquele calor forte e constante do sul da Califórnia. O lugar é tão úmido que você passa o tempo todo suando como um porco. Além disso, toda hora você é incomodado pela ralé, que fica tentando vender suas bugigangas ridículas.

– Mais vinho! – grita o escroto gordo, de cabelo claro.

Volto pro banheiro e encho um pires com minha urina. Sempre tive problemas com cistite, especialmente quando tô menstruada. Meu mijo fica com aquela aparência turva, de água parada, que geralmente indica uma infecção urinária.

Diluo meu mijo na jarra de vinho, que fica um pouco turvo; os caras tão bêbados demais pra perceber. Jogo um quarto do vinho no ralo, enchendo o resto do jarro com meu ingrediente secreto.

Coloco um pouco do meu mijo no peixe. A cor e a consistência são as mesmas dos molhos que se usam pra marinar. Que loucura!

Os caras comem e bebem tudo e não se dão conta de nada.

É difícil cagar num pedaço de jornal lá no banheiro; o espaço é pouco e fica difícil se agachar. O Graham fica gritando alguma coisa. Consigo dar à luz um toletinho meio gosmento, que eu pego e misturo com um pouco de nata no liquidificador. Junto o resultado com a calda de chocolate e esquento numa panela. Derramo tudo em cima dos profiteroles. Parece bem gostoso. Coisa doida!

Me sinto cheia de um enorme poder, e chego até a gostar das ofensas deles. Agora é muito mais fácil ficar sorrindo. Mas o gordo se deu mal; o sorvete dele tá temperado com veneno de rato moído. Espero que o Graham não tenha problemas. Espero que não fechem o restaurante.

Quando escrevo meu ensaio, me sinto forçada a dizer que, em algumas ocasiões, a moral é relativa. Isso se eu estivesse sendo honesta comigo mesma. Mas essa não é a visão do dr. Lamont, então é melhor falar bem dos absolutos pra não ter problemas e conseguir boas notas.

É uma loucura.


Esperando os trens na estação central de Leith

A cidade parece sinistra e estranha enquanto me afasto da estação de Waverley. Dois caras tão gritando um com o outro debaixo dos arcos da Carlton Road, perto da agência dos correios. Se não é isso, tão gritando comigo. Isso lá é hora e lugar de se meter em briga? Mas será que existe hora e lugar pra isso? Apresso meu passo – o que não é muito fácil com essa mala pesada – e entro na Leith Street. Mas que porra é essa? São uns merdas. Eu vou é...

Eu vou é continuar andando. E rápido. Quando eu chego à Playhouse, a barulheira daqueles dois otários é substituída pela conversa animada de uns cornos de classe média reunidos em torno do lado de fora da ópera Carmen. Alguns deles tão indo pros restaurantes no fim da Walk, onde fizeram reserva. Eu continuo andando. Agora é seguir até o fim.

Passo pela minha velha casa da Montgomery Street e depois pela antiga área de viciados da Albert Street, agora toda reformada e arrumadinha. Um carro de polícia liga uma sirene histérica enquanto abre caminho pelo meio da Walk. Três caras saem tropeçando de um pub e entram num restaurante chinês. Um dos caras tá fazendo de tudo pra que a gente se encare. Tem uns otários metidos a durões que se agarram com as duas mãos em qualquer pretexto pra quebrar a cara de alguém, por mais babaca que seja. Sigo na velha tática de caminhar ainda mais rápido.

Pensando nas probabilidades, quanto mais eu avançar na Walk a essa hora da noite, maior minha chance de acabar sem dentes. Mas eu acabo me sentindo mais seguro a cada metro que avanço. É Leith, porra. Acho que pra mim isso é a mesma coisa que um lar.

Escuto uns barulhos de engasgo e olho pra um beco que leva pra um terreno em obras. Encontro o Segundo Lugar vomitando tudo que tem na barriga. Espero discretamente que ele fique melhor e só aí falo com ele.

– Rab. Tá tudo certo, cara?

Ele se vira pra trás e vacila um pouco, tentando me enxergar direito; tudo que os olhos dele querem é se fechar, como as portas de ferro da loja dos asiáticos do outro lado da rua.

O Segundo Lugar fala alguma coisa que pra mim soa como: – E aí, Rents – mas não dá pra entender direito. – Seu viado... – aí o rosto dele muda um pouco e ele diz: – Seu viado de merda... eu vou te pegar, seu viado... – ele se inclina pra frente e tenta me dar um soco. Mesmo com a mala, eu consigo me afastar com velocidade suficiente e o imbecil dá de cara na parede e depois cai pra trás, de bunda no chão.

Eu ajudo ele a se levantar e ele continua falando um monte de merda que eu não consigo entender, mas pelo menos agora tá mais calmo.

Assim que eu boto meu braço ao redor dele pra ajudar a caminhar, o corno desaba que nem um castelo de cartas, com aquela sabedoria inconsciente dos bêbados crônicos, enquanto se abandona em cima de mim. Preciso largar minha sacola de viagem pra apoiar o filho da puta, pra impedir que ele caia de boca na calçada. Isso não tem cabimento.

Um táxi passa pela Walk e eu faço um sinal e enfio o Segundo Lugar dentro dele. O motorista não parece muito feliz com aquilo, mas eu dou cincão pra ele e digo: – Larga ele lá no Bowtow, cara. Hawthornvale. A partir de lá ele encontra o caminho de casa. – Tá na época de festas e tudo o mais. Gente tipo o Segundo Lugar simplesmente se mistura com o ambiente nessa época do ano.

Senti vontade de entrar no táxi com o Segundão e descer na casa da minha mãe, mas o pub do Tommy Younger era uma tentação grande demais. O Begbie tá lá dentro, rodeado por uns valentão; um deles parece familiar.

– Rents! Como é que cê tá, seu viado? Cê tá de volta de Londres?

– Isso – eu aperto a mão dele e sou puxado em sua direção. Ele me dá tapões nas costas. – Acabei de meter o Segundo Lugar dentro de um táxi – conto.

– Aquele viado. Mandei ele se fuder. Duas cagadas numa só noite. O cara é um problema, porra. Aquilo ali é até pior que um viciado de merda, sabe? Se não fosse Natal e tudo o mais, eu mesmo tinha quebrado a cara do viado. Minha história com ele acabou. Já era.

O Begbie me apresenta aos caras que tão com ele. Não quero nem saber o que o Segundo Lugar fez pra ser expulso daquela turma. Um dos caras é o tal de Donnely, o Garoto de Saughton, um maluco que o Mikey Forrester costumava paparicar. Parece que um dia o cara cansou do Forrester e quebrou a cara dele. Foi até parar no hospital. Taí um cara que não merecia isso.

O Begbie me puxa prum canto e fala baixo:

– Tá sabendo que o Tommy tá doente?

– Só. Ouvi falar.

– Vai lá visitar o cara quando puder.

– Só. Eu pretendo fazer isso.

– Acho bom, porra. Você e todo mundo deviam ir. Não tô culpando você, Rents; eu disse isso pro merda do Segundo Lugar, não tô culpando o Rents pelo que aconteceu com o Tommy. Cada um cuida da sua vida, caralho. Eu disse isso pro merda do Segundo Lugar.

Aí o Begbie começa a falar sobre como eu sou um sujeito do caralho, esperando que eu diga a mesma coisa, o que eu obviamente faço.

Sirvo de escada por um tempo pra costumeira sessão de massagem de ego do Begbie, fazendo meu papel de imparcial e contando pra todo mundo algumas clássicas histórias do Begbie, onde o cara aparece como duro na queda e grande garanhão. Sempre parece mais verdadeiro quando é outra pessoa que tá falando. Nós dois saímos juntos do pub e começamos a caminhar pela Walk. Tudo que eu quero é chegar logo na casa da minha mãe, mas o Mendigo insiste pra que eu vá pra casa dele beber mais um pouco.

Caminhar com o Begbie pela Walk faz eu me sentir um predador, ao invés de uma vítima, e começo a procurar alguém pra encarar, até que me dou conta que estou sendo um imbecil patético.

Paramos pra dar uma mijada na velha estação central no largo da Walk, que agora não passa de um galpão vazio e abandonado, que em breve será demolido e substituído por um supermercado e um centro de natação. De algum jeito isso me deixa triste, mesmo que eu seja jovem demais pra lembrar dos trens que um dia paravam por ali.

– Como era grande essa porra de estação. Dizem que aqui dava pra pegar um trem pra qualquer lugar, a qualquer hora – digo, olhando a fumacinha do meu mijo quente caindo na calçada fria.

– Se ainda tivesse algum trem nessa merda, eu entrava agora mesmo num deles pra cair fora desse lugar fudido – responde Begbie. Era estranho ver ele falando de Leith desse jeito. Ele costumava ter uma visão romântica do lugar.

Um velho bêbado que o Begbie tava encarando chega perto da gente com uma garrafa de vinho na mão. Um monte deles usa a estação pra encher a cara e dormir.

– Que cês tão fazendo, garotos? Esperando os trens, é? – diz, dando risadas incontroláveis, parecendo admirado com a própria esperteza.

– Só. É isso aí – o Begbie responde. Bem baixinho, completa: – Velho de merda.

– Ah, certo, não vou incomodar vocês. Nunca parem de esperar os trens! – diz o velho, e sai tropeçando, suas gargalhadas bêbadas e irritantes tomando conta do galpão desolado. Percebo que o Begbie parece estranhamente derrotado e desconfortável. Ele vira de costas pra mim.

Só aí eu percebo que o velho bebum é o pai do Begbie.

Ficamos quietos, caminhando até a casa do Begbie, até encontrarmos um cara na Duke Street. O Begbie deu um soco na cara dele e o cara caiu no chão. O sujeito deu uma olhada pra gente antes de tentar ficar em posição fetal. Tudo que o Begbie diz antes de começar a dar chutes no corpo caído é “valentão”. A expressão do cara quando olhou pro Begbie era mais de resignação do que de medo. O garoto entendia o que tava acontecendo.

Nem cheguei a pensar em me meter, mesmo que de forma simbólica. No fim das contas o Begbie olhou pra mim e mostrou com a cabeça a direção pra gente seguir. Deixamos o cara desabado na calçada e continuamos a caminhar em silêncio; nenhum de nós olhou pra trás.


Nas coxas

Foi a primeira vez que vi o Johnny depois da amputação. Eu não sabia em que estado ia encontrar o cara. Na última vez em que eu tinha visto ele, tava coberto de postemas e continuava falando merda sobre ir pra Bangcoc.

Pra minha surpresa, o cara tava entusiasmado até demais pra alguém que tinha acabado de perder uma perna. – Rents! Meu garoto! Como é que tá?

– Nada mal, Johnny. Olha, uma pena isso da sua perna, cara.

Ele deu risada da minha preocupação. – Meu futuro como jogador de futebol já era. Se bem que isso nunca impediu o Gary Mackay de jogar, né?

Dou um sorriso.

– O Cisne Branco não vai ficar muito tempo trancado. Assim que eu conseguir me virar com essa porra de muleta, volto direto pras rua. Cê tá vendo um pássaro com asas que não dá pra cortar. Podem tirar minhas perna, mas não podem tirar minhas asa – estendeu um braço por cima de um ombro pra dar um tapinha onde as asas dele ficariam, se tivesse mesmo alguma. E eu acho que ele pensa que tem mesmo. – Neste mundo que não se pode mudaa-a-a-ar... – cantarolou. Comecei a me perguntar o que ele tinha tomado.

Como se tivesse lido minha mente, ele disse: – Cê tem que experimentar essa tal de ciclozina. Sozinha é uma bosta, mas quando cê mistura com metadona... caralho, tem que ver! A maior viagem que eu já tive na vida. Isso inclui aquela merda colombiana que a gente experimentou em oitenta e quatro. Sei que agora cê tá careta, mas se for usar alguma coisa, experimenta esse coquetel.

– Pode apostar.

– Essa porra é a melhor. Cê sabe que pode confiar na Madre Superiora, Rents. Quando o assunto é droga, eu acredito no livre mercado, mas nesse caso tenho que respeitar o trampo do sistema nacional de saúde. Depois que eu tirei os pinos e fui pra fisioterapia comecei a acreditar que o estado pode mesmo competir com a iniciativa privada, pelo menos no nosso ramo; são capazes de produzir um produto satisfatório a um baixo custo pro consumidor. Metadona e ciclozina, combinadas, vou te contar, o negócio me mata. Agora eu só preciso ir até a clínica pegar minhas pílulas e depois encontrar um dos caras que tenha receita pra ciclozina. Eles dão pros coitados que têm câncer, AIDS, esses troços. A gente faz uma troca e todo mundo fica feliz.

O Johnny já tava sem veias, e por isso começou a se picar nas artérias. Não precisou de mais do que alguns picos pra que ele tivesse gangrena. Adeus, perna. Ele percebe que eu tô olhando pro toco enfaixado; não consigo evitar.

– Sei o que cê tá pensando, seu viado. Mas não esquenta, ninguém tirou a terceira perna do Cisne Branco!

– Eu nem tava... – protesto, mas ele já começou a tirar o pau pra fora das bermudas.

– Não que me sirva pra muita coisa – gargalha.

Percebo que o pau tá coberto de cascas secas, o que indica que está ficando bom. – Parece que tão secando, hein, Johnny, as perebas e tal.

– É. Tenho tentado ficar só com a metadona e a ciclozina, quero parar de me picar. Quando vi o toco da perna, achei que era uma oportunidade nova, outro ponto de acesso, mas o cara do hospital disse: Nem pensa nisso. Enfia uma agulha aí e cê tá fudido. Mas a fisioterapia não é ruim. A estratégia do Cisne Branco é aprender a se movimentar por aí, ficar careta e aí começar a traficar direito, só pra ganhar grana, sem usar nada. Ele puxa o elástico da bermuda e enfia a pica cheia de cascas pra dentro.

– É melhor cê largar isso de vez cara – sugiro. Mas ele não tá ouvindo nada do que eu digo.

– Que nada, o objetivo é engordar minha conta no banco pra que eu possa me mandar pra Bangcoc.

A perna pode ter sido cortada, mas a fantasia de fugir pra Tailândia continua intacta.

– Mas se liga – continua –, eu não quero esperar até chegar na Tailândia pra dar uma boa trepada. É isso que essa dosagem reduzida faz com você. Fiquei com o pau meio duro dia desses, quando a enfermeira veio me vestir. É uma velha e tudo, mas de repente tô ali eu enxergando um bracinho de criança com uma maçã bem vermelha na ponta.

– Assim que cê conseguir andar direito, Johnny – tento encorajar.

– Porra nenhuma. Quem vai querer dar pra um perneta? Vou ter que pagar. Que decadência pro Cisne Branco. Mas é melhor mesmo pagar quando o assunto é mulher. Isso mantém o relacionamento em um plano estritamente comercial. – Johnny parece amargo. – Ainda tá comendo a Kelly?

– Não, ela voltou pra cá – não gostei do jeito que ele fez a pergunta, e não gostei do jeito que respondi.

– Aquela Alison apareceu aqui dia desses – diz, revelando a fonte de seu rancor. A Ali é a melhor amiga da Kelly.

– Ah, é?

– Veio dar uma olhada na aberração – aponta com o queixo pro toco enfaixado.

– Para com isso, Johnny, a Ali nunca pensaria assim.

Ele dá outra risada, apanha uma coca diet descafeinada, abre a lata e toma um gole. – Tem mais na geladeira – oferece, apontando pra cozinha. Faço que não quero com a cabeça.

– É, ela teve por aqui dia desses. Acho que já faz mais de uma semana. Aí eu peço uma chupada, saca? Pelos velhos tempos e tal. Enfim, é o mínimo que ela podia fazer pela Madre Superiora, o Cisne Branco, que já cuidou dela tantas vezes. A vadia sem coração me desprezou – sacode a cabeça de desgosto. – Nunca trepei com aquela putinha, saca? Nunca mesmo. Nem quando ela tava querendo. Uma vez ela já teve a ponto de me deixar comer ela de tudo que é jeito só pra ganhar um pico.

– Não duvido – admiti. Seria ou não verdade? Sempre rolou um certo antagonismo silencioso entre mim e a Ali. Nunca entendi o motivo. Seja qual for, torna mais fácil acreditar que ela é capaz de qualquer coisa, por pior que pareça.

– Mas o Cisne Branco nunca se aproveitaria de uma donzela em apuros – sorri.

– Ah, claro – digo, nem um pouco convencido.

– Nunca que eu faria isso – insiste, quase gritando. – Eu não comi ela, não é? Pois então, caralho. Tá mais que provado.

– Que nada, só não comeu porque tinha injetado heroína nas bolas.

– Opa, opa, opa – começa, encostando a lata de coca no peito. – O Cisne Branco não sacaneia os amigos. Essa é a regra de ouro, a mais importante de todas. Nem por heroína nem por coisa nenhuma. Nunca duvide da integridade do Cisne Branco nesse assunto, Rents. Eu nem tava injetando nas bola na época. Eu podia ter comido aquela buceta com torradas, se eu quisesse. Mesmo quando tava com o problema nas bola eu podia ter sido cafetão dela. Carne fácil. Podia ter mandado a putinha descer a Easter Road de sainha sem nada por baixo; podia ter dado um soco pra aquietar ela e depois ter jogado ela no chão do banheiro aqui de trás. Podia ter chamado todo mundo pra fazer fila pra meter nela, com o Cisne Branco do lado de fora cobrando cincão por cabeça. Ia dar uma grana literalmente do caralho. Depois mandava ela pra Tyney na outra semana pros jambos de merda cheios de AIDS sentirem o gostinho dela depois da nossa garotada ter cansado.

É incrível que o Johnny ainda seja HIV negativo, mesmo depois de ter se metido em mais sessões de pico que se pode imaginar. Ele tem uma teoria bizarra segundo a qual só os jambos pegam AIDS e os hibbies são imunes. – Eu ia ter feito minha vida. Podia me aposentar. Só umas semanas disso e eu já podia ir pra Tailândia e me encher de rabo oriental. Mas não fiz nada, porque ninguém pode sacanear os amigos.

– É difícil ser um homem de princípios, Johnny – sorrio. Quero ir embora. Não tô a fim de encarar mais uma sessão de aventuras orientais imaginárias do Johnny.

– É mesmo, porra. Meu problema é que eu perdoo todo mundo. Negócios são negócios, e quando chega a hora da verdade todo mundo é só conhecido. Mas não, o Cisne Branco é um bosta de coração mole que deixa a amizade se misturar com os negócios. E como é que a vadiazinha egoísta me agradece? Só pedi um boquete, só isso. Ela até ia me chupar e tal, por pena da perna, saca? Cheguei até a convencer ela a botar mais maquiagem e mais batom, pra ficar tipo bem vagaba, saca? Aí eu tirei o pau pra fora. Ela dá uma olhada nas feridas e desiste. Eu digo não se preocupa, saliva é um antisséptico natural.

– É o que dizem, pelo menos – reconheço. Tá chegando a hora.

– Só. E vou dizer um negócio, Rents, a gente teve a ideia certa em setenta e sete. Aquele monte de cuspe que a gente deu. Tem que afogar a porra do mundo inteiro em saliva.

– Pena que a gente acabou seco – digo, levantando pra sair.

– É, tá certo – diz o Johnny Cisne, agora mais quieto.

Já passou da hora de eu ter saído daqui.


Inverno em West Granton

O Tommy parece bem. É assustador. Ele vai morrer. Em algum ponto do futuro, seja na semana que vem ou daqui a quinze anos, o Tommy não vai mais existir. Comigo vai acontecer a mesma coisa. A diferença é que no caso do Tommy isso já está anunciado.

– Tudo certo, Tommy? – pergunto. Ele parece tão bem.

– Tudo bom – ele diz. Está sentado em uma poltrona gasta. O ar tá com um cheiro úmido de lixo que já devia ter sido jogado fora há um bom tempo.

– Como cê tá se sentindo?

– Nada mal.

– Quer conversar sobre isso? – eu preciso perguntar.

– Não, na verdade – responde, mas parece dizer o contrário.

Meio desajeitado, sento em uma poltrona idêntica. É meio dura, e consigo sentir as molas. Há muitos e muitos anos, essa foi a poltrona de algum cara rico. Mas já passou umas boas décadas, no mínimo duas, em casas pobres. Acabou vindo parar com o Tommy.

Percebo agora que o Tommy não parece tão bem. Tem alguma coisa faltando, alguma parte dele; como se ele fosse um quebra-cabeça incompleto. É algo mais que choque ou depressão. É como se um pouco do Tommy já tivesse morrido e eu estivesse lamentando por isso. Percebo também que a morte é mais um processo do que um acontecimento. As pessoas geralmente morrem aos poucos, de forma gradual. Apodrecem lentamente dentro de casas, hospitais ou lugares como esse.

O Tommy não pode sair de West Granton. Ele pegou pesado com a mãe dele. Esse aqui é um daqueles apartamentos com varizes, que ganharam esse nome porque são cheios de rachaduras cobertas de gesso. O Tommy conseguiu o lugar pelo esquema de emergência da prefeitura. Nenhuma das mil e quinhentas pessoas da lista de espera quis vir pra cá. É uma prisão. A culpa não é da prefeitura, na verdade; o governo fez com que eles vendessem todas as casas boas, e as bostas que sobraram ficam pra gente como o Tommy. Politicamente, faz muito sentido. Ninguém vota no governo por aqui, então por que se preocupar em fazer alguma coisa por gente que não vai te ajudar? De um ponto de vista moral, a coisa é diferente. Mas o que política tem a ver com a moralidade? Só o dinheiro importa.

– Como tão as coisas em Londres? – ele pergunta.

– Nada mal, Tommy. É a mesma coisa que aqui, saca?

– Aposto que sim – responde, sarcástico.

Alguém escreveu PESTILENTO com letras pretas e grossas na porta reforçada com compensado. Também escreveram AIDÉTICO e VICIADO. Adolescentes bêbados incomodam qualquer um. Ninguém ainda disse nada na cara do Tommy. Tommy é um sujeito comportado, que acredita no que o Begbie chama de disciplina do taco de beisebol. Também tem amigos durões, como o próprio Mendigo, e outros nem tanto, como eu. Ainda assim, o Tommy vai ficar cada vez mais vulnerável a esse tipo de perseguição. Os amigos dele vão diminuir de número na medida em que as necessidades dele vão aumentar. É a inversa, ou perversa, matemática da vida.

– Cê fez o teste? – ele pergunta.

– Fiz.

– Negativo?

– Isso.

O Tommy me encara. É como se estivesse ao mesmo tempo furioso comigo e me implorando alguma coisa.

– Cê usou heroína bem mais que eu. Cê também dividiu seringa com os outros. Com o Sick Boy, o Keezbo, o Raymie, o Spud, o Cisne... cê dividiu seringa até com o Matty, caralho. Vai me dizer agora que nunca usou a mesma seringa do Matty?

– Nunca dividi seringa com ninguém, Tommy. Todo mundo fala isso, mas eu nunca usei mesmo, pelo menos não nas galerias – digo. Engraçado, eu tinha esquecido do Keezbo. Já faz uns dois anos que está preso. Faz um tempão que eu pensava em visitar o cara; sei que na verdade isso nunca vai nem chegar perto de acontecer.

– Mentira! Seu viado! Claro que cê dividiu! – o Tommy se curva pra frente. Tá começando a chorar. Lembro de ter pensado que se isso acontecesse, eu também ia acabar chorando. Mas tudo que sinto é o engasgo de uma raiva terrível.

– Nunca dividi – repito, balançando a cabeça.

Ele se recosta na poltrona e ri sozinho; nem olha pra mim enquanto fala, pensativo, agora sem nenhum sinal de amargura.

– As coisas são engraçadas, né? Você, o Spud, o Sick Boy, o Cisnezinho e o resto me fizeram usar heroína. Antes eu sentava tomando cerveja com o Segundo Lugar e o Franco e ficava rindo de vocês, chamando vocês dos maiores imbecis da face da Terra. Daí eu me separei da Lizzy, lembra? Fui atrás de você. Pedi um pico. Que se foda, eu pensei, tenho que experimentar tudo pelo menos uma vez. Desde aquele dia, nunca mais parei de experimentar.

Lembro disso, deus do céu, faz poucos meses. Alguns coitados têm mais tendência do que outros a se viciar em alguma droga. Tipo o Segundo Lugar e a bebida. O Tommy se apegou à heroína na mesma hora. Ninguém consegue controlar isso direito, mas conheço alguns caras, como eu, que até se viram. Já larguei algumas vezes. Largar e voltar a usar é como ir pra cadeia. Toda vez que cê é preso, diminuem as chances de se livrar desse tipo de vida. Com heroína é a mesma coisa. Cê diminui a chance de um dia ser capaz de se livrar de vez. Será que fui eu que encorajei o Tommy a tomar o primeiro pico, só porque tava com o lance em cima? É bem possível. É bem provável. O quanto isso me faz culpado? Acho que o bastante.

– Desculpa mesmo, Tommy.

– Não sei que merda eu vou fazer, Mark. O que eu vou fazer?

Fico ali sentado, com a cabeça meio baixa. Quero dizer pro Tommy: Continua com sua vida. É tudo que cê pode fazer. Olha o Davie Mitchell. O Davie é um dos melhores amigos do Tommy. Ele tem AIDS e nunca usou heroína na vida. Mas o Davie tá legal. Leva uma vida normal, tão normal quanto a de qualquer cara que eu conheça.

Mas eu sei que o Tommy não tem grana pra botar aquecimento nessa casa. Ele não é um Davie Mitchell, muito menos um Derek Jarman. Não pode se colocar dentro de uma bolha, viver num lugar aquecido, comer comida decente e saudável, manter a mente estimulada com novos desafios. Ele não vai viver mais cinco, ou dez, ou quinze anos antes de ser derrotado pela pneumonia ou pelo câncer.

O Tommy não vai sobreviver ao próximo inverno em West Granton.

– Desculpa, cara. Desculpa mesmo – fico repetindo.

– Tem alguma coisa em cima? – ele pergunta, levantando a cabeça e me encarando.

– Eu tô careta, Tommy – quando digo isso, ele nem faz menção de sorrir.

– Dá uma grana então, parceiro. Tô esperando um cheque de aluguel.

Enfio a mão nos bolsos e tiro duas notas de cinco, amassadas. Penso no funeral do Matty. A chance do próximo ser o do Tommy é grande, e ninguém pode fazer porra nenhuma a respeito. Muito menos eu.

Ele pega o dinheiro. Nossos olhos se encontram e alguma coisa nos atravessa. É algo que não consigo definir, mas é muito bom. Não dura mais que um segundo; depois some.


Um soldado escocês

Johnny Cisne examina sua cabeça recém-raspada no espelho do banheiro. Seu cabelo comprido e sujo foi tosado há algumas semanas. Agora ele precisa se livrar desses pelos no queixo. É complicado se barbear quando você só tem uma perna, e o Johnny ainda não consegue se equilibrar direito. Mesmo assim, depois de algumas tentativas, consegue um resultado razoável. Está determinado a nunca mais voltar para a cadeira de rodas, e está falando sério.

– De volta à vadiagem – diz para si mesmo, enquanto analisa seu rosto no espelho. Johnny parece limpo. Não é uma sensação boa, e todo o processo o deixou bastante desconfortável, mas as pessoas têm certas expectativas em relação a um antigo soldado. Começa a assobiar a canção “Um soldado escocês”; para se divertir ainda mais, bate uma continência rígida e belicosa para seu reflexo.

O curativo no toco de sua perna amputada deixa Johnny um tanto preocupado. Parece imundo. A sra. Harvey, uma enfermeira voluntária, virá trocá-lo hoje, e sem dúvida se fará acompanhar por alguns conselhos sobre higiene pessoal.

Observa sua perna restante. Nunca fora a melhor das duas. O joelho era um pouco falho, graças a um incidente futebolístico de muitos anos atrás. Vai ficar ainda mais falho agora que se tornou o apoio solitário do peso de todo o corpo. Johnny pensa que deveria ter injetado heroína na artéria dessa perna; ela é que deveria ter gangrenado para depois ser cortada fora pelo cirurgião. É a maldição de ser destro, pondera.

Já do lado de fora, nas ruas frias, ele segue aos tropeços até a estação Waverley. Cada passo é um sofrimento. A dor não surge do toco, mas parece se espalhar por todo seu corpo; contudo, as duas cápsulas de metadona e os barbitúricos que engoliu resolvem o problema. Johnny escolhe como seu ponto a saída para a Market Street. Em sua cartolina está escrito, em letras negras:

VETERANO DAS MALVINAS – PERDI MINHA PERNA POR MEU PAÍS. AJUDE, POR FAVOR.

Um viciado chamado Silver, cujo nome verdadeiro Johnny ignora, aproxima-se em câmera lenta.

– Tem heroína, Cisnezinho? – pergunta.

– Tá tudo devagar, parceiro. Ouvi falar que sábado o Raymie vai aparecer com alguma coisa.

– Sábado não adianta – responde Silver, ofegante. – Tem um monstro faminto dentro de mim, e ele quer comer agora.

– O Cisne Branco é um homem de negócios, Silver – Johnny aponta para si mesmo. – Se ele tivesse mercadoria para oferecer, ofereceria na hora.

Silver parece frustrado. Um sobretudo negro e imundo pende frouxamente de sua carne cinzenta e cadavérica. – Já gastei todas as minhas receitas de metadona – explica, sem esperar nenhuma simpatia em troca. De repente, um brilho momentâneo surge em seus olhos mortos. – Ei, Cisnezinho, cê ganha alguma grana com isso aí?

– Quando uma porta se fecha, outra se abre – sorri Johnny, mostrando sua placa de dentes apodrecidos. – Lucro mais com isso do que com apostas. Agora, Silver, dá licença que eu preciso ganhar a vida por aqui, porra. Um soldado decente como eu não pode ser visto falando com viciados. A gente se vê.

Silver nem chega a registrar os comentários, e muito menos a se ofender. – Acho que vou lá pra clínica, então. De repente alguém me vende uma cápsula.

– Au revoir – Johnny grita quando ele continua seu caminho.

Os negócios vão bem. Algumas pessoas, discretas, colocam moedas em seu chapéu. Outras, incomodadas com a intrusão da desgraça alheia em suas próprias vidas, viram o rosto ou olham para a frente, sem desviar a atenção. Mulheres dão mais dinheiro que os homens; jovens, mais que os mais velhos; pessoas com aparência mais humilde são mais generosas que os que parecem bem de vida.

Uma nota de cinco aterrissa no chapéu. – Deus lhe abençoe – agradece Johnny.

– O que é isso – responde um homem de meia-idade. – Eu tenho uma dívida com vocês, rapazes. Deve ser terrível ser tão jovem e sofrer uma perda como essa.

– Não me arrependo de nada. Cê não pode se deixar ficar amargo, amigo. Essa é minha filosofia. Eu amo meu país; faria tudo de novo. Além disso, me considero um dos sortudos; eu voltei. Posso dizer que perdi bons amigos naquela confusão de Goose Green. – Johnny deixou seus olhos assumirem uma aparência vidrada e distante; chegou quase a acreditar no que dizia. Olhou novamente para o homem: – Mas quando encontro pessoas como você, que lembram, que se importam, isso faz tudo ter valido a pena.

– Boa sorte – diz o homem, gentilmente, antes de continuar seu caminho subindo os degraus até a Market Street.

– Filho de uma puta – Johnny resmunga para si mesmo, sacudindo a cabeça baixa no ritmo dos espasmos causados por suas gargalhadas contidas.

Depois de algumas horas, já acumulou £26,78. As coisas não vão nada mal, e o trabalho é simples. Johnny é bom em esperar; nem mesmo um dia ruim da British Rail seria capaz de arruinar seu carma de viciado. Entretanto, a abstinência começa a sinalizar suas intenções cruéis com um calafrio terrível que acelera sua pulsação e faz seus poros expelirem um suor grosso e tóxico. Está prestes a arrumar suas coisas e ir embora quando uma mulher magra e frágil se aproxima.

– Você era um Royal Scot, meu filho? Meu Brian era um Royal Scot. Brian Laidlaw.

– Hã, eu era fuzileiro, minha senhora – Johnny dá de ombros.

– Brian nunca voltou, que deus o tenha. Vinte e um, ele tinha. Meu garotinho. Um garoto bom e tudo o mais – os olhos da mulher se inundam de lágrimas. Seu tom de voz fica cada vez mais baixo até se tornar um ruído sibilante, tornado ainda mais comovente pela impotência que simboliza. – Sabe, meu filho, vou odiar aquela Thatcher até o dia em que morrer. Não passa um dia sem que eu amaldiçoe ela.

Ela pega sua bolsa, de onde retira uma nota de vinte libras que enfia na mão de Johnny. – Tome, meu filho, tome. É tudo que eu tenho, mas eu quero que fique com você – começa a chorar e se afasta quase cambaleando; parece ter sido esfaqueada.

– Deus lhe abençoe – grita Johnny enquanto ela se afasta. – Deus abençoe os Royal Jocks – bate palmas, ansioso com a ideia de misturar um pouco de ciclozina à metadona que já tomou. Psicometacoquetel: sua passagem para dias melhores, aquele exclusivo paraíso particular que os não iniciados deploram, mas cujos deleites nunca poderiam conceber. Albo tem uma boa quantidade de ciclozina, receitada para seu câncer. Johnny visitará seu amigo doente nesta tarde. Uma coincidência mútua de necessidades. Sim, deus abençoe os Royal Jocks, deus abençoe o sistema público de saúde.


Saída


De estação em estação

É uma noite terrível, sombria. Nuvens carregadas pairam lentamente; aguardam o momento de vomitar sua carga obscura sobre os cidadãos confusos, pela enésima vez desde que raiou o dia. O acesso à rodoviária parece um escritório de auxílio-desemprego, revirado do avesso e coberto de óleo. Muitos jovens, vivendo de grandes sonhos e pequenos orçamentos, alinham-se tristemente em uma fila para Londres. A única maneira mais barata que essa para descer até lá é usar o polegar.

O ônibus veio de Aberdeen e fez uma parada em Dundee. Begbie checa metodicamente os cartões de reserva de assentos e fuzila os outros passageiros com os olhos. Dando-lhes as costas, volta a olhar para a sacola de viagem da Adidas que repousa aos seus pés.

Renton, fora do alcance dos ouvidos de Begbie, vira-se para Spud e acena com a cabeça para seu amigo sempre tenso. – O desgraçado tá rezando pra que alguém pegue nossos lugar; isso dá uma desculpa pra ele fazer tumulto.

Spud sorri e ergue as sobrancelhas. Olhando para ele, Renton pondera, nunca se descobriria o quanto está sendo posto em risco. Este é o grande negócio, o maior de todos, ninguém pode duvidar. Precisou tomar um pico para controlar os nervos. Foi o primeiro em meses.

Begbie vira-se para trás, com os nervos tinindo, e faz uma carranca furiosa, quase como se pudesse farejar sua falta de respeito. – Cadê o porra do Sick Boy?

– Hã, tipo, nem sei. – Spud dá de ombros.

– Ele vai aparecer – Renton afirma, acenando para a sacola Adidas. – Cê tá com vinte por cento do material dele na mão.

O comentário detona um ataque de paranoia. – Vê se fala baixo, seu merda! – Begbie alerta Renton, sibilando. Depois olha ao seu redor, encarando os outros passageiros, sentindo uma necessidade terrível de que um deles, só um, olhe em seus olhos, para que tenha um alvo para liberar a fúria que toma conta de seu interior e ameaça dominá-lo; fodam-se as consequências.

Não. Precisa manter o autocontrole. Há muito em risco. Tudo está em risco.

Ninguém está olhando para Begbie. Quem não ignora sua presença percebe a natureza das vibrações que ele emite. Os passageiros fazem uso de um talento especial que as pessoas têm: fazer de conta que os psicopatas são invisíveis. Nem mesmo seus companheiros o encaram. Renton puxou a aba de seu boné verde por cima dos olhos. Spud, usando uma camisa da seleção da Irlanda, está de olho em uma mochileira de cabelo loiro que acaba de tirar as mochilas das costas, fornecendo-lhe uma visão de sua bunda dentro dos jeans justos. Segundo Lugar, um pouco longe dos outros, bebe sem parar, vigiando o considerável estoque de bebidas contido em duas sacolas de plástico branco.

Do outro lado do acesso, encostado no balcão que chamam de pub, Sick Boy conversa com uma garota chamada Molly. Ela é prostituta e HIV positivo. Em algumas noites zanza pela rodoviária à procura de clientes. Molly apaixonou-se por Sick Boy desde que se agarraram em uma discoteca vagabunda em Leith, há algumas semanas. Sick Boy, bêbado, afirmara alguma coisa sobre a transmissão do HIV, e para provar seu argumento passou a maior parte da noite beijando-a. Mais tarde, teve um ataque de nervos terrível e escovou os dentes meia dúzia de vezes antes de mergulhar em uma noite insone e cheia de ansiedade.

Sick Boy observa seus amigos do balcão do pub. Vai deixar os malditos esperando. Quer ter certeza de que nenhum homem da lei aparecerá de repente antes que eles entrem no ônibus. Se isso acontecer, eles que se danem sozinhos.

– Me consegue dez, gata – pede, sem esquecer que está com três mil e quinhentos em risco na forma de parte do conteúdo da sacola Adidas. Trata-se de bens, contudo. Agora está lidando com capital de giro, o que é sempre um problema.

– Toma – a maneira direta com que Molly vasculha sua bolsa chega quase a comover Sick Boy. Então, com alguma amargura, ele percebe a quantidade de notas dentro daquela bolsa, e se amaldiçoa em silêncio por não ter pedido vinte.

– Valeu, doçura... bem, melhor eu deixar você com seus clientes. A terra da neblina me chama. – Ele brinca com o cabelo castanho dela e lhe dá um beijo; desta vez, contudo, não passa de uma ridícula bitoca na bochecha.

– Ligue quando voltar, Simon – ela grita, observando o corpo delgado mas firme de Sick Boy afastar-se. Ele se vira.

– Cê só quer me atrasar, doçura, cê só quer me atrasar. Toma cuidado agora – ele pisca o olho e abre um enorme e aparentemente carinhoso sorriso antes de voltar a caminhar.

– Vadia de merda – resmunga quase sem abrir a boca, seu rosto congelado em uma careta de desprezo. Molly era uma amadora, nem de longe cínica o bastante para o jogo em que estava envolvida. Uma vítima completa, pensa, com uma mistura incomum de compaixão e desdém. Vira a esquina e toma o rumo dos outros, com a cabeça voando de um lado para outro, tentando detectar a presença da polícia.

Não gosta nada do que encontra quando se preparam para embarcar no ônibus. Begbie o xinga por seu atraso. É sempre uma boa ideia tomar cuidado com esse maluco, mas quando se está correndo um risco tão grande era de se esperar que ele estivesse ainda mais tenso do que o normal. Lembrou dos bizarros planos de emergência que Begbie inventara na festa improvisada da noite anterior. Seu temperamento poderia fazer com que todos passassem o resto da vida na cadeia. Segundo Lugar já estava em um estado avançado de embriaguez, como era de se esperar. Por outro lado, sabe-se lá que tipo de conversa de bêbado sua língua enrolada não pronunciou antes que ele chegasse ali. Se ele não consegue nem ao menos lembrar quem é, como alguém poderia esperar que lembrasse tudo que diz? Essa merda toda é um golpe muito arriscado, pondera, deixando que um calafrio de ansiedade lhe sacuda o corpo.

O que mais incomoda Sick Boy, contudo, é o estado de Spud e Renton. É mais do que óbvio que ambos estão completamente dopados de heroína. Era típico daqueles desgraçados pôr tudo a perder. Renton, que estava careta há muito tempo, antes mesmo de largar seu trabalho em Londres e voltar para a Escócia, não pôde resistir ao material colombiano que Seeker fornecera. Era a coisa genuína, argumentou, uma oportunidade única para um viciado de Edimburgo acostumado com a heroína vagabunda do Paquistão. Spud, como sempre, seguiu o rumo da maré.

Spud era assim. Sua habilidade quase involuntária de transformar a brincadeira mais inocente em atividade criminosa sempre surpreendia Sick Boy. Nem quando estava no útero de sua mãe Spud poderia ser definido como um feto; seria mais correto chamá-lo de um conjunto de problemas com drogas e transtornos de personalidade em animação suspensa. Provavelmente acabaria atraindo a polícia para cima deles jogando um saleiro pela janela de uma lanchonete de beira de estrada. Melhor esquecer o Begbie, decide, amargo; se alguém vai estragar tudo, certamente será o Spud.

Sick Boy olha com raiva para Segundo Lugar; esse apelido veio dos resultados desastrosos de sua ilusão alcoólica de ser capaz de lutar. O esporte de Segundo Lugar não era o boxe, mas o futebol. Quando estudante, foi um jogador sub-17 de habilidade extraordinária, que acabou se transferindo para o Manchester United com dezesseis anos. Naquela altura, já carregava dentro de si a semente de um problema com a bebida. Um dos milagres mais subestimados da história do futebol foi a capacidade de Segundo Lugar conseguir se manter por dois anos no clube antes de ser chutado de volta para a Escócia. Todos diziam que Segundo Lugar desperdiçara um grande talento. Sick Boy, contudo, entendia a realidade mais cruel. Segundo Lugar não passava de uma massa-bruta de desespero. Considerando sua vida como um todo, era mais fácil ver sua habilidade futebolística como um desvio insignificante do que considerar seu alcoolismo uma maldição cruel.

Seguem em fila para dentro do ônibus, com Renton e Spud movendo-se na câmera lenta característica de quem está sob efeito de heroína. A droga não os desorienta mais que o restante da situação. Ali estavam eles, prestes a dar o grande golpe para em seguida dar um tempo em Paris. Tudo que precisam é converter a heroína em dinheiro vivo, o que já fora arranjado por Andreas em Londres. Ainda assim, Sick Boy os cumprimentou com uma cara de poucos amigos. Estava claramente mal-humorado, e Sick Boy sempre acreditou que as coisas ruins da vida existem para ser compartilhadas.

Quando está entrando no ônibus, Sick Boy escuta alguém lhe chamar.

– Simon.

– De novo aquela vadia? – amaldiçoa em voz baixa, antes de enxergar uma garota mais jovem. Grita: – Franco, guarda meu lugar que eu já volto.

Sentando em seu lugar, Begbie sente raiva e mais do que algumas pitadas de inveja ao ver Sick Boy de mãos dadas com uma garota com uma capa de chuva azul.

– Esse corno não pode ver uma buceta, vai acabar fudendo a gente! – rosna para Renton, que responde com um olhar confuso.

Begbie tenta enxergar as formas da garota através da capa de chuva. Não é a primeira vez que a vê. Começa a construir fantasias sobre o que gostaria de fazer com ela. Percebe que seu rosto é ainda mais bonito quando ela está sem maquiagem. É difícil prestar atenção em Sick Boy, mas Begbie enxerga sua boca virada para baixo e seus olhos arregalados, um claro sinal de falsa franqueza. Begbie fica cada vez mais ansioso, até estar prestes a levantar e arrastar Sick Boy para dentro do ônibus. Quando se prepara para levantar, enxerga Sick Boy entrando de volta no veículo e olhando através das janelas com ódio.

Sentam no fundo do ônibus, ao lado do banheiro químico que já está fedendo a mijo. Segundo Lugar garantiu o assento do canto para si e suas sacolas de bebida. Spud e Renton sentam à sua frente, com Begbie e Sick Boy nos lugares seguintes.

– Ei, Sick Boy, aquela era a filha do Tam McGregor, né? – o sorriso idiota no rosto de Renton pode ser visto pela fresta entre os assentos.

– Isso.

– Ele ainda tá te enchendo o saco? – Begbie pergunta.

– Esse viado fica todo puto da cara porque eu tô comendo a vadiazinha da filha dele. Enquanto isso, ele fica passando a vara em tudo que é garotinha que bebe naquele lugar fudido que ele é dono. Hipócrita de merda.

– Fiquei sabendo que ele te jogou pra fora lá da porra do Fiddlers. Me disseram que cê se cagou todo – zomba Begbie.

– Porra nenhuma! Quem disse isso? O viado veio com um papo de: se cê encostar um dedo nela... eu só respondi: encostar um dedo? Eu já tô comendo ali faz meses, seu viado!

Renton sorri de leve e Segundo Lugar, que na verdade não escutou coisa alguma, dá uma gargalhada. Ele ainda não está bêbado o bastante para se sentir no direito de deixar de lado os princípios básicos do contato social. Spud não diz nada, mas faz uma careta ao sentir o punho cerrado da abstinência esmagar com força seus ossos delicados.

Begbie não está convencido de que Sick Boy teria coragem de enfrentar McGregor.

– No cu. Nunca que cê ia se meter com aquele cara.

– Vai se fuder. O Jimmy Busby tava comigo. Aquele porra do McGregor se caga de medo do Buzz-Bomb. Se caga de medo de todos os Cashies. A última coisa que ele quer é que uma turma da Família apareça na boate dele.

– Jimmy Busby? Ele não é um cara foda... é um cagalhão. Quebrei ele no Dean. Lembra dessa vez, Renton, lembra? Lembra quando eu amassei a cara desse Busby? – Begbie dá uma olhada para trás em busca do apoio de Renton, mas ele está começando a sentir-se como Spud. Um calafrio se enrosca em seu corpo e em seguida ele é atingido em cheio por uma náusea terrível. Tudo que consegue fazer é assentir com a cabeça, sem muita ênfase, o que é bem menos do que Begbie gostaria.

– Faz muitos anos. Cê não faria isso agora – retruca Sick Boy.

– Quem não faria isso agora? Hein? Cê acha que eu não faria? Cê tá louco, seu merda! – Begbie desafia, agressivo.

– Enfim, isso é tudo uma merda sem tamanho – Sick Boy responde, obediente, lançando mão de uma de suas estratégias clássicas. Se você não consegue vencer uma discussão através de seus detalhes, despreze o contexto.

– Aquele merda sabe com quem não deve se meter – diz Begbie, em um grunhido. Sick Boy não responde; entende que isso foi um aviso por tabela, dirigido a ele por meio do ausente Busby. Percebe que já brincou demais com a sorte.

O rosto de Spud Murphy está esmagado contra o vidro da janela. Sentado, sofre em silêncio, suando em bicas enquanto seus ossos parecem triturar uns aos outros. Sick Boy vira-se para Begbie, aproveitando a oportunidade de uma possível aliança.

– Esses viados aí, Franco – aponta para trás com o queixo –, disseram que iam ficar caretas. Mentirosos de merda. Vão nos fuder – o tom de sua voz é um misto de desprezo e autopiedade, como se estivesse resignado com o fato de que todas as jogadas de sua vida acabam sabotadas pela tolice dos fracos que um dia ele teve o azar de chamar de amigos.

Sick Boy fracassa em sua tentativa de empatia com Begbie, que gosta ainda menos de sua atitude do que do comportamento de Renton e Spud.

– Para de reclamar. Cê também já fez muito disso.

– Já parei faz tempo. Esses imbecis não crescem nunca.

– Então acho que cê não vai querer um pouco de anfetamina. – Begbie provoca, acariciando alguns grãos esbranquiçados sobre um pedaço de papel-alumínio.

Sick Boy realmente gostaria de um pouco de anfetamina para encurtar a viagem. Se tentar conseguir com Begbie, está fodido. Fica sentado, olhando para o nada, balançando levemente a cabeça e resmungando baixinho; a ansiedade que revira suas entranhas empurra sua mente de uma pendenga não resolvida a outra. De repente, salta do assento e vai pegar uma lata de McEwan’s Export do estoque de Segundo Lugar.

– Eu disse que cê tinha que trazer seu próprio estoque! – o rosto de Segundo Lugar lembra o de um pássaro horrendo cujos ovos estão ameaçados por um predador à espreita.

– Dá só uma lata, sovina! Caralho! – irritado, Sick Boy dá um tapa na própria testa. Relutante, Segundo Lugar estende uma lata, que no fim das contas Sick Boy não consegue beber. Está sem comer há algum tempo e o líquido pesa em sua barriga vazia, deixando-o enjoado.

Atrás dele, Renton segue adiante no sofrimento da abstinência. Sabe como tem de agir. Isso significa esconder coisas de Spud. Negócios são negócios, e esse é um negócio onde particularmente a compaixão não tem vez. Virando-se para o amigo, diz: – Cara, tô com uma pedra no meu rabo. Preciso dar um tempo na privada.

Spud volta à vida por um segundo. – Cê não tá com nada em cima, tá?

– Claro que não – Renton responde, de forma convincente. Spud vira e, sofrendo, desmancha-se novamente contra a janela.

Renton entra no banheiro e tranca a porta. Enxuga os pingos de mijo que cobrem a tampa de alumínio da privada. Não está preocupado com higiene, quer apenas evitar sentir algo úmido em sua pele arrepiada.

Sobre a pequena pia, coloca sua colher, sua seringa, sua agulha e seus tufos de algodão. Tirando um pacotinho de pó marrom-esbranquiçado do bolso, deposita cuidadosamente um pouco do conteúdo em seu precioso talher. Coloca 5 ml de água para dentro da seringa, que depois borrifa lentamente na colher, tomando cuidado para não derramar os grãos para fora. O tremor de sua mão cessa de imediato, com a concentração que só o ato de preparar um pico de heroína consegue proporcionar. Passando a chama do isqueiro plástico por sob a colher, mexe os torrõezinhos mais teimosos com a ponta da agulha até produzir uma solução injetável.

O ônibus dá uma guinada brusca, mas ele acompanha o movimento; seu senso de equilíbrio de viciado está a toda, como um radar, atento para cada ondulação da autoestrada. Nem uma só gota preciosa é desperdiçada quando ele encosta o tufo de algodão na colher.

Enfiando a agulha no algodão, puxa o líquido cor de ferrugem para dentro do tambor da seringa. Começa a tirar o cinto, praguejando quando as tachas engancham em seu jeans. Arranca-o fora com violência, enquanto sente suas entranhas se revirarem. Apertando o cinto ao redor de seu braço, pouco abaixo de seu bíceps insignificante, crava os dentes amarelados no couro para segurá-lo no lugar. Os tendões de seu pescoço esticam-se enquanto ele se mantém firme, usando tapinhas pacientes para fazer aparecer uma relutante veia saudável.

Uma breve centelha de hesitação brilha em um canto de sua mente, mas é logo apagada cruelmente por um espasmo que contorce todo seu corpo enfraquecido. Ele enfia a agulha, observando a carne macia cedendo espaço para a penetração do aço. Empurra o êmbolo até parte do caminho, por meio segundo, antes de puxá-lo novamente para que o tambor se encha de sangue. Então para de apertar o cinto e injeta todo o conteúdo para dentro de sua veia. Levanta a cabeça, aproveitando o pico. Fica sentado por um período de tempo que poderia ser contado em minutos ou horas, antes de levantar e olhar-se no espelho.

– Cê é lindo – comenta, beijando seu reflexo e sentindo o vidro frio em seus lábios quentes. Vira-se e encosta a bochecha no vidro, que depois cobre de lambidas. Em seguida, recua e força uma expressão de sofrimento. Spud vai estar de olho nele assim que a porta se abrir. Precisa conseguir dar a impressão de que está passando mal, o que não será fácil.

Segundo Lugar já bebeu o suficiente para se livrar de uma ressaca terrível, e está passando pelo que se poderia chamar de segunda fase caso seu constante estado de embriaguez e abstinência não tornasse desnecessária tal expressão. Begbie, percebendo que já seguiam seu caminho sem ter sido interceptados pela polícia rodoviária, relaxa um pouco. A vitória estava próxima. Spud dorme um sono inquieto de viciado. Renton está mais bem-disposto. Até mesmo Sick Boy nota que as coisas estão indo bem, e se tranquiliza.

A frágil harmonia é rompida quando Sick Boy e Renton começam a discutir os méritos dos feitos musicais de Lou Reed antes e depois do Velvet Underground. Sick Boy aceita calado, o que é incomum, um massacre verbal de Renton.

– Que nada, que nada... – sacode a cabeça levemente, sem inspiração para responder aos argumentos de Renton, que veste o manto da indignação geralmente usado por Sick Boy nessas situações.

Saboreando a rendição de seu adversário, Renton joga a cabeça para trás de forma presunçosa; depois cruza os braços em um gesto de beligerância triunfante, como vira Mussolini fazer em um antigo documentário.

Sick Boy se contenta em observar os outros passageiros. Tem duas tias velhas à sua frente, que não pararam de olhar para trás com expressões de desaprovação e de cacarejar baixinho sobre os “modos”. Ambas, percebe, têm o típico odor de mijo e suor das tias velhas, parcialmente encoberto por camadas de talco fedorento.

Do lado oposto a ele está um casal de gorduchos vestidos com abrigos esportivos. Cornos de abrigo são uma espécie à parte, pensa, ácido. Alguém devia estudar esses porras. Sick Boy ficou impressionado ao saber que Begbie não tinha um abrigo esportivo no guarda-roupa. Assim que ganharem a grana, pensa em comprar um para o desgraçado, só para dar umas risadas. Resolve também presentar Begbie com um filhote de pit bull americano. Mesmo se Begbie não cuidasse dele, o animal não passaria fome; não com uma criança em casa.

Havia contudo uma rosa em meio aos espinhos do ônibus. Os olhos de Sick Boy abandonam a análise crítica de seus companheiros de viagem ao avistarem a mochileira com mechas loiras. Está sentada sozinha, na frente do casal de abrigo.

Renton, cheio de maldade, tira do bolso o isqueiro de plástico e começa a queimar o rabo de cavalo de Sick Boy. Fios de cabelo crepitam e mais um odor desagradável se mistura aos outros já presentes no fundo do ônibus. Sick Boy, ao se dar conta do que está acontecendo, vira-se de um salto em seu assento. – Vai se fuder! – rosna, espancando os punhos erguidos de Renton. – Imaturos de merda! – grita, enquanto o som das gargalhadas zombeteiras de Begbie, Segundo Lugar e Renton ricocheteiam pelo ônibus.

A intervenção de Renton dá a Sick Boy a desculpa que ele pouco precisava para abandoná-los e sentar ao lado da mochileira. Tira sua camiseta Italianos Mandam Bem, expondo seu abdômen rijo e bronzeado. A mãe de Sick Boy é italiana, mas demonstrar orgulho de suas origens não é uma motivação tão forte quanto incomodar os outros com sua pretensão; é por isso que ele usa a camiseta. Pega sua sacola de viagem e revira seu conteúdo. Encontra uma camiseta Dia de Nelson Mandela, que é politicamente forte e bastante rocker, mas por outro lado é muito convencional, muito batida. Pior; é datada. Pensou consigo mesmo que Mandela se provaria mais um velho entediante assim que todos se acostumassem com ele fora da cadeia. Olhou rapidamente para a que dizia Hibernian FC – Batalhando a Europa antes de rejeitá-la de imediato. Os sandinistas também já eram passé. Decidiu-se por uma camiseta do The Fall, que ao menos tinha a virtude de ser branca e faria um bom trabalho ao mostrar o bronzeado que conseguiu na Córsega. Depois de vesti-la, caminhou um pouco e sentou-se ao lado da mulher.

– Perdão. Desculpe, mas vou precisar sentar ao seu lado. O comportamento de meus companheiros de viagem é um tanto imaturo para meu gosto.

Com um misto de admiração e repúdio, Renton observa a metamorfose de Sick Boy de vagabundo a homem ideal daquela mulher. A modulação da voz e o sotaque mudam sutilmente. Uma expressão interessada e sincera surge em seu rosto enquanto ele dispara perguntas sem fim sobre sua nova companheira de viagem. Renton faz uma careta quando escuta Sick Boy dizendo: – É, quando o assunto é jazz eu sou bastante purista.

– O Sick Boy se deu bem – admite, virando-se para Begbie.

– Tô é feliz pelo viado – responde Begbie, amargo. – Pelo menos assim a gente tira aquela cara de cu da nossa frente. Vagabundo de merda que não fez porra nenhuma além de reclamar desde que entrou no ônibus... viado.

– Tá todo mundo meio nervoso, Franco. Tem muita coisa em risco. Ontem a gente ainda tomou aquele monte de anfetamina. É normal que todo mundo teja meio paranoico.

– Não fica defendendo aquele viado. Esse cagalhão precisa é de uma boa lição de boas maneiras. Logo, logo alguém vai acabar dando isso pra ele. Não custa nada ser educado.

Renton, percebendo que não há como aquele assunto terminar bem, fica quieto em seu lugar, deixando o motor massageá-lo, desfazendo os nós e alisando as rugas. Sim, um tratamento de primeira.

A amargura de Begbie em relação a Sick Boy não é especialmente alimentada pela inveja, mas sim pelo fato de ele ter deixado seu lugar; sente falta de alguém ao seu lado. A anfetamina acaba de bater. Sua mente começa a pular de uma ideia para outra, que Begbie julga boas demais para não serem compartilhadas. Precisa de alguém para ouvi-lo. Renton percebe os sinais de perigo. Atrás dele, Segundo Lugar ronca alto. Begbie não tiraria proveito dele.

Renton puxa a aba de seu boné para cima dos olhos, ao mesmo tempo em que acorda Spud com um cutucão.

– Tá dormindo, Rents? – Begbie pergunta.

– Mmmmm... – Renton murmura em resposta.

– Que foi? – pergunta Spud, irritado.

Foi um erro. Begbie se vira no assento; de joelhos, projeta-se sobre Spud e dá início a uma história que já foi contada mil vezes.

– ... aí eu tô em cima dela, saca, quase metendo e tal, mandando ver e ela fica gritando e eu penso mas que porra, essa vaca tá curtindo e tal, mas ela fica me empurrando, saca, e tá saindo sangue da buceta dela, saca, como se tivesse naqueles dias, e eu já tô quase dizendo que pra mim não tem problema, ainda mais com o aço que tava minha pica, se liga. Mas aí no fim parece que a mina tava abortando e tal.

– Só.

– É, e eu vou te contar o seguinte; já contei da vez que eu e o Shaun pegamos aquelas duas vadias no Oblomov?

– Só... – Spud resmunga, fraco, seu rosto parecendo um tubo de raios catódicos implodindo em câmera lenta.

O ônibus faz uma parada de manutenção. Spud fica feliz pela trégua mais que bem-vinda, mas Segundo Lugar não fica nada feliz. Está dormindo há instantes quando as luzes ofuscantes do ônibus são ligadas, arrancando-o cruelmente de seu confortável abandono. Acorda, desorientado, ainda em estupor alcoólico; seus olhos confusos parecem desfocados, seus ouvidos ficam tinindo por conta da cacofonia de vozes indistintas, sua boca mole e seca não consegue se fechar. Seu instinto faz com que estenda o braço em busca de uma lata roxa de Tennent’s Super Lager, usando a cerveja enjoativa como substituta da saliva.

Caminham sem pressa pela passarela da rodovia, molestados pelo frio, pelo cansaço e pelas drogas em seus organismos. A exceção é Sick Boy, que caminha a passos largos, confiante, ao lado da mochileira.

Na espalhafatosa lanchonete de beira de estrada, Begbie agarra Sick Boy pelo braço e puxa-o para fora da fila.

– Não vai me roubar aquela mina, hein. A gente não quer a polícia vindo atrás de nós por causa de cento e poucos pila da grana de férias de uma estudante de merda. Principalmente quando a gente tá com dezoito mil libras de heroína em cima.

– Cê acha que eu sou louco, porra? – responde Sick Boy, indignado, mas ao mesmo tempo admitindo para si mesmo que o alerta de Begbie chegara em boa hora. Enquanto agarrava a mulher, seus olhos salientes de camaleão já procuravam freneticamente pelo lugar onde ela deveria estar guardando seu dinheiro. Essa parada na lanchonete era sua chance. Mas Begbie estava certo; não era hora desse tipo de coisa. Nem sempre se pode confiar nos próprios instintos, Sick Boy pondera.

Afasta-se de Begbie com uma expressão ofendida e volta à companhia de sua nova namorada na fila.

Depois disso, Sick Boy começa a se desinteressar pela mulher. Está achando difícil manter um nível aceitável de concentração nas histórias que ela conta sobre passar oito meses na Espanha antes de começar a estudar direito na universidade de Southampton. Anota o endereço do hotel onde ela está ficando em Londres, percebendo com algum desgosto que parece ser um pulgueiro de Kings Cross e não um estabelecimento mais respeitável em West End, onde ele gostaria de passar um ou dois dias. Tinha certeza absoluta de que arranjaria uma trepada com aquela mulher assim que resolvessem os negócios com Andreas.

O ônibus começa a avançar pelos subúrbios entijolados de Londres. Nostálgico, Sick Boy olha pela janela enquanto passam pelo Swiss Cottage, tentando imaginar se uma mulher que conhecia ainda trabalharia por lá. Certamente não, pondera. Seis meses é o bastante para se trabalhar no balcão de qualquer pub londrino. Mesmo que ainda seja de manhã cedo, o ônibus quase para ao chegar perto do centro de Londres, e leva um tempo longo e deprimente para chegar até a rodoviária de Victoria.

Quando desembarcam, parecem cacos de cerâmica sendo atirados para fora de uma caixa de papelão. Começam a discutir se devem ir direto para a estação ferroviária para apanhar um metrô até o Finsbury Park ou se é melhor pegar logo um táxi. Decidem que é melhor tomar um táxi do que ficar zanzando por Londres carregados de heroína.

Espremem-se dentro do táxi de Hackney, dizendo para o motorista conversador que estão indo para um show dos Pogues que acontecerá em uma tenda no Finsbury Park. Era o álibi ideal, já que todos planejavam ir mesmo ao show, aliando negócios com diversão, antes de passar um tempo em Paris. O motorista praticamente refaz na direção inversa o caminho tomado pelo ônibus, até que para no hotel de Andreas, bem na frente do parque.

Andreas, nascido em uma família meio londrina, meio grega, herdara o hotel depois da morte de seu pai. Sob a direção do velho, o hotel abrigara principalmente famílias de refugiados. Os governos locais se incumbiam de encontrar hospedagem temporária para pessoas nessas circunstâncias, e como o distrito do Finsbury Park divide-se entre três bairros, Hackney, Harringey e Islington, os negócios correram bem. Quando Andreas assumiu o hotel, contudo, percebeu que poderia aumentar ainda mais os lucros transformando-o em um motel informal para executivos londrinos. Mesmo nunca tendo atingido o topo do mercado, como desejava, forneceu um abrigo seguro para um pequeno número de prostitutas. Seus clientes suspeitos apreciavam a discrição, a limpeza e o clima seguro do estabelecimento.

Sick Boy e Andreas se conheceram quando saíam com a mesma mulher, que estava obcecada por ambos. Se entrosaram de imediato e arquitetaram diversos golpes em dupla, envolvendo principalmente pequenas fraudes em seguros e clonagem de cartões bancários. Quando assumiu o hotel, Andreas começou a se afastar de Sick Boy, convencendo a si mesmo de que havia subido de nível. Sick Boy, contudo, o abordou acerca de uma carga de heroína de primeira qualidade que conseguira. Andreas era amaldiçoado por uma fantasia perigosa e incansável: achava que podia andar na companhia de bandidos para satisfazer seu ego, sem ter que pagar o preço da entrada. O preço que Andreas pagou foi colocar Pete Gilbert em contato com o pessoal de Edimburgo.

Gilbert era um profissional; trabalhava no tráfico havia bastante tempo. Comprava e vendia todo tipo de coisas. Para ele, eram apenas negócios, e recusava-se a tratar do assunto como se não fosse uma atividade empresarial perfeitamente comum. A intervenção do Estado, sob a forma de polícia e tribunais, constituía apenas mais um dos riscos do mercado. Era, contudo, um risco que valia a pena correr, por conta da imensa margem de lucro. Gilbert era um intermediário clássico, capaz de, graças às suas relações e seu capital de risco, obter drogas, armazená-las, misturá-las e vendê-las para distribuidores de menor escala.

De cara, Gilbert percebe que aqueles escoceses são vagabundos de meia-tigela que, sem querer, colocaram as mãos em uma bela oportunidade de negócios. Contudo, fica impressionado com a qualidade de seu material. Oferece quinze mil libras, preparado para elevar a oferta até dezessete. Eles querem vinte mil, e estão preparados para baixar até dezoito. Fecham negócio em dezesseis. Gilbert vai lucrar no mínimo sessenta assim que a droga seja malhada e distribuída.

A negociação com um bando de perdedores incuráveis vindos do cu do mundo lhe parece cansativa. Preferia estar lidando com a pessoa que vendeu aquele material para eles. Se esse fornecedor fora desesperado o bastante para largar um material de tamanha qualidade nas mãos daquele esquadrão de fracassados, não podia entender grande coisa daquele ramo de negócios. Gilbert podia ter lucrado muito dinheiro.

Mais do que cansativa, a negociação era perigosa. Mesmo que tenham garantido o contrário, constatou que qualquer tipo de discrição seria impossível para aquele bando de escoceses durangos. Era bem possível que a polícia já estivesse de olho neles. Por esse motivo, deixara dois de seus homens mais experientes no carro, do lado de fora do hotel, vigiando tudo que acontecesse. Apesar de todas essas reservas, tratou bem seus novos parceiros de negócios. Alguém desesperado o bastante para vender-lhes aquele tipo de material uma vez poderia ser tonto o bastante para fazê-lo novamente.

Negócio fechado, Spud e Segundo Lugar seguem direto ao Soho para comemorar. Típicos marinheiros de primeira viagem na cidade, sentem-se atraídos por aquela célebre região da cidade como garotos por uma loja de brinquedos. Sick Boy e Begbie se enturmam com dois irlandeses no Sir George Robery e jogam o que se prova uma partida disputada de sinuca. Acostumados com Londres, desprezam a fascinação de seus amigos por Soho.

– Só o que tem lá é capacete policial de plástico, bandeiras da Grã-Bretanha, placas da Carnaby Street e cerveja ruim e cara – zomba Sick Boy.

– Podiam é dar uma bela trepada barata lá no hotel do seu parceiro, como é que é mesmo o nome dele, a porra do grego?

– Andreas. Mas isso é a última coisa que esses caras querem fazer – diz Sick Boy, arrumando as bolas. – E isso inclui aquele bosta do Rents. É a milésima vez que ele tenta largar a heroína. O imbecil largou o trabalho decente e o apartamento legal que tinha por aqui. Acho que depois de hoje a gente vai se separar.

– Mas ele tá fazendo uma coisa legal lá no hotel. Alguém tem que cuidar da porra do dinheiro. Eu não confiaria no Segundo Lugar ou no Spud pruma coisa dessas.

– Verdade – Sick Boy responde, pensando em como dispensar Begbie e sair à cata de companhia feminina. Tenta decidir para quem ligar, ou se o melhor seria ir atrás da mochileira. Seja qual for a decisão, não vai demorar.

No hotel de Andreas, Renton está se sentindo mal, mas não tão mal quanto fez os outros acreditarem. Olha para o jardim dos fundos do hotel e enxerga Andreas passeando com Sarah, sua namorada.

Olha novamente para a sacola Adidas, lotada de dinheiro; é a primeira vez que Begbie a deixa sozinha. Esparrama seu conteúdo sobre a cama. Renton nunca viu tanto dinheiro. Quase sem pensar, esvazia a sacola de roupas de Begbie e coloca todo seu conteúdo na sacola Adidas vazia. Enfia o dinheiro na outra sacola e cobre tudo com suas próprias roupas.

Olha de relance pela janela. Andreas está com a mão enfiada dentro da calcinha roxa de Sarah, que dá risadas e gritos estridentes: – Para, Andreas... para... – Agarrando a sacola de roupas com firmeza, Renton dá as costas à janela e deixa o quarto rapidamente, tomando cuidado para não ser visto nas escadas ou no corredor. Olha para trás mais uma vez antes de sair pela porta, a passos largos. Se encontrar Begbie agora, está perdido. Assim que deixa esse pensamento se formar em sua consciência, quase desaba de medo. Mas não há ninguém na rua. Ele atravessa.

Escuta uma cantoria e fica imediatamente imóvel. Um grupo de rapazes com camisetas do Celtic, obviamente a caminho do show dos Pogues que acontecerá mais tarde, tropeça em sua direção, cheio de álcool na cabeça. Passa por eles, tenso; eles não lhe dão atenção e, aliviado, avista um ônibus da linha 253 se aproximando. Entra no veículo e começa a se afastar de Finsbury Park.

Ao descer em Hackney para pegar um ônibus rumo à Liverpool Street, Renton está no piloto automático. Ainda assim, sente-se paranoico e pouco à vontade por causa da sacola cheia de dinheiro. Todas as pessoas na rua lhe parecem assaltantes ou punguistas em potencial. Sempre que enxerga uma jaqueta de couro negro igual à de Begbie, seu sangue congela. Chega até a pensar em voltar quando já está dentro do ônibus para Liverpool Street, mas enfia a mão na sacola e acaricia os maços de notas. Chegando a seu destino, entra em uma agência do Abbey National e deposita nove mil libras em dinheiro vivo, que se somam às vinte sete libras e trinta e dois centavos já presentes em sua conta. O caixa nem ao menos pisca. Está na cidade grande, afinal de contas.

Sentindo-se melhor carregando apenas sete mil libras, Renton vai até a estação da Liverpool Street e compra uma passagem de ida e volta para Amsterdã, mas pretende que a viagem seja apenas de ida. Observa o condado de Essex transmutando-se de concreto e tijolos em verde exuberante, enquanto avança na direção de Harwich. Fica uma hora esperando em Parkston Quay antes que a embarcação siga até os Países Baixos. Não tem problema. Viciados são especialistas em esperar. Há alguns anos, trabalhou de comissário nesta mesma balsa. Torce para que ninguém daquela época o reconheça.

A paranóia de Renton se aquieta assim que ele embarca, mas é substituída pelos primeiros sinais verdadeiros de culpa. Pensa em Sick Boy e em todos os bons momentos que viveram juntos. Passaram por bons e maus bocados, mas sempre estiveram juntos. Sick Boy não se importaria tanto com o dinheiro, sendo um explorador nato. O problema seria a traição. Era capaz de enxergar a expressão de Sick Boy, mais de mágoa que de raiva. Mas ambos já vinham se separando há alguns anos. Seu antagonismo mútuo, que de início era apenas uma piada, algo que faziam para divertir os outros, acabou se tornando uma realidade rotineira, de tanto ser ritualizada. Foi melhor assim, pensou Renton. De algum modo, Sick Boy entenderia e talvez até nutrisse alguma admiração relutante pelo que fizera. Ficaria mais irritado consigo mesmo, por não ter tido a presença de espírito de fazer aquilo primeiro.

Não foi preciso muito esforço para entender que havia feito um favor a Segundo Lugar. Sentiu pena ao lembrar que ele usou o dinheiro de sua indenização para pagar sua parte no negócio. Ainda assim, Segundo Lugar estava tão ocupado se autodestruindo que mal perceberia se alguém tentasse ajudá-lo. Você poderia dar a ele uma garrafa de herbicida ou três mil libras, dava no mesmo. Seria apenas uma maneira mais rápida e, no fim das contas, mais dolorosa de matá-lo. Alguns, imaginou, diriam que essa escolha cabia a Segundo Lugar, mas não seria correto dizer que a natureza de sua doença destruía qualquer capacidade de fazer uma escolha racional? Força um sorriso ao perceber a ironia de seu raciocínio; logo ele, um viciado que acabara de sacanear seus melhores amigos. Seria ele um viciado? Sim, usara heroína mais uma vez, mas os intervalos entre cada pico estavam ficando cada vez maiores. Não conseguia responder a essa pergunta agora, contudo. Só o tempo traria a resposta.

O sentimento de culpa de Renton centrava-se em Spud. Ele amava Spud. Spud nunca machucara ninguém, excetuando-se talvez um pouco de aflição mental causada por sua tendência a aliviar o conteúdo dos bolsos, bolsas e lares das pessoas. As pessoas tendem a ficar muito ansiosas por causa de seus bens. Investem emoção demais em objetos. Spud não poderia ser responsabilizado pelo materialismo da sociedade, por sua tendência ao fetiche de mercadorias. Nunca algo funcionou para Spud. O mundo inteiro cagara em sua cabeça, e agora seu parceiro fez a mesma coisa. Se havia uma só pessoa que Renton tentaria indenizar, esse alguém era Spud.

Sobrava Begbie. Não conseguia sentir pena alguma daquele filho da puta. Um psicopata que levava agulhas de tricô com pontas afiadas consigo quando ia resolver algum assunto com um pobre-diabo. Com elas era mais difícil pegar alguma costela, gabava-se. Renton lembrou da vez em que Begbie deu uma garrafada em Roy Sneddon, no The Vine, sem motivo algum. O cara só tinha uma voz irritante e Begbie estava de ressaca. Foi uma coisa terrível, doente e fútil. Mais terrível do que o fato em si foi a maneira com que todos, incluindo Renton, colaboraram com aquilo, chegando ao ponto de criar justificativas fictícias. Era apenas mais uma maneira de sedimentar o status de Begbie como o de alguém com quem você não deveria se meter, bem como servia para dar-lhes a mesma fama por serem seus amigos. Agora percebia a extensão da covardia moral daquilo tudo. Comparado com isso, seu crime de sacanear Begbie era quase um ato virtuoso.

Ironicamente, Begbie foi a chave de tudo. Sacanear um amigo era a maior ofensa que ele podia imaginar, e exigiria em troca a punição máxima. Renton usou Begbie; usou-o para queimar todos os seus cartuchos de forma irrevogável. Foi Begbie que assegurou que ele nunca mais poderia voltar. Fez o que queria fazer. Agora não poderia mais voltar para Leith, para Edimburgo, nem mesmo para a Escócia, nunca mais. Lá, ele não podia ser nada além de quem era. Agora, livre de tudo aquilo para sempre, podia ser quem queria. Venceria ou fracassaria sozinho. Essa ideia o enchia de medo e excitação enquanto imaginava a vida em Amsterdã.

 

 


Notas

 

1) Literalmente, “Não venha me dizer que a vida não está te levando a lugar nenhum — Anjo... / Olha este céu, a vida começou, as noites são quentes e os dias são jovens...” (N. dos T.)
2) “I Was Made for Loving You”, do Kiss. Literalmente: “Porque fui feito pra amar você, baby, você foi feita pra me amar.” (N. dos T.)
3) “I Loved a Lassie”, canção tradicional escocesa. Em tradução livre: “Eu amava uma bela, bela garota, / Ela é tão doce quanto as flores do vale, / Ela é tão doce quanto as flores, / As belas flores roxas, / Mary, minha campânula da Escócia.” (N. dos T.)
4) “Off to Dublin in the Green”, escrita em 1916 pelo garoto irlandês Dominic Behan. Trata-se de uma paródia de uma canção inglesa, patriótica e militarista, chamada “The Merry Plough boy”. Em tradução livre: “Então partimos para Dublin pelos campos – foda-se a rainha! / Onde os capacetes brilham ao sol – fodam-se os protestantes! / E as baionetas cortam os cintos laranja / Ao som da metralhadora Thomson.” (N. dos T.)
5) “Banna Strand”, canção tradicional irlandesa. Em tradução livre: “Na solitária praia de Banna.” (N. dos T.)
6) Em tradução livre: “Oh, pai, por que você está tão triste / nesta bela manhã de Páscoa.” (N. dos T.)
7) “Quando os irlandeses sentem orgulho / da terra onde nasceram.” (N. dos T.)
8) “Quando era só um rapaz, como você / Entrei para o ramo provisório do IRA!” (N. dos T.)
9) “A América usa drogas como defesa psíquica.” (N. dos T.)
10) Uma das mais antigas e famosas bandas white power ainda em atividade, conhecida por suas letras racistas e agressivas. (N. dos T.)
11) Notório hino racista britânico, referente à ausência da cor negra na bandeira da Grã-Bretanha, implicando que os negros não fazem parte da nação. Em tradução livre: “Não tem negrão na bandeira da união.” (N. dos T.)
12) “Eu e você parecemos duas crianças / passeando pelos prados / colhendo buquês de miosótis.” (N. dos T.)
13) Let’s Twist Again”, de Chubby Checker. Em tradução literal: “Vamos dançar o twist de novo, como fizemos no verão passa do.” Twist é o nome do estilo de dança surgido nos EUA no início dos anos 60, mas como verbo significa torcer, girar. (N. dos T.)
14) Canção sobre a Revolta da Páscoa (1916), um levante arma do de nacionalistas irlandeses contra o domínio da Grã-Bretanha sobre a Irlanda. (N. dos T.)
15) “There Is a Light That Never Goes Out”, dos Smiths, que empresta o título a este capítulo. Em tradução livre: “e na escuridão da passagem subterrânea / pensei Oh Deus, minha chance finalmente chegou / mas então um medo estranho tomou conta de mim / e simplesmente fui incapaz de pedir”. (N. dos T.)
16) “Mark Hunt” tem pronúncia semelhante a “my cunt”, ou “ minha buceta”. (N. dos T.)
17) “Que vergonha, Seamus O’Brien / Todas as garotas de Dublin estão chorando / Estão cansadas de suas trapaças e mentiras / Mas que vergonha, Seamus O’Brien!” (N. dos T.)natal.

 

 

                                                    Irvine Welsh         

 

 

 

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