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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


TRAMAS DO DESTINO / Patrícia Ryan
TRAMAS DO DESTINO / Patrícia Ryan

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio VT

 

 

 

 

Graeham Fox tem uma missão secreta: resgatar a filha ilegítima de seu lorde, libertando-a do domínio de um marido abusivo. Como pagamento por seu serviço, ele receberá a mão da irmã gêmea dela em casamento, e uma vasta propriedade, muito mais do que um simples soldado poderia almejar... Atacado em Londres, Graeham escapa por pouco de ser morto, e tem a oportunidade de se recuperar na humilde moradia de Joanna Chapman, a encantadora viúva de um mercador de sedas. As experiências do passado ensinaram Joanna a não confiar nos homens, muito menos em um atraente e misterioso como Graeham. Mas o forte magnetismo dele e seu toque sedutor desencadeiam em Joanna uma paixão avassaladora. Dividido entre a ambição e o desejo, Graeham vê seu futuro por um fio, e somente o amor de Joanna poderá salvá-lo...

 

 

 

 

Maio de 1165, Distrito West Cheap, Londres

Como se diz a um homem que você está ali para levar a mulher dele embora?, Graeham se perguntou ao bater à porta pintada de vermelho da residência de Rolf Le Fever na rua Milk.

Tinha pensado naquilo durante todo o trajeto tem­pestuoso da travessia do canal da Mancha e nos dois dias de viagem de Dover a Londres. Ainda assim, não encontrara uma resposta. A tarefa de levar uma mu­lher para longe do marido era uma questão delicada, uma que demandaria diplomacia... ou força bruta. Automaticamente levou a mão à adaga presa ao cinto, esperando não ter de colocá-la em uso.

Graeham ergueu a mão para segurar a argola de fer­ro presa à porta e voltar a bater quando ouviu passos se aproximando, acompanhados da voz de um homem.

— Onde diabos você se meteu, sua inútil? Não ouviu baterem?

A porta se abriu com um rangido de dobradiças enferrujadas. O loiro que a abriu parecia ter sua idade, embora Graeham soubesse que o outro estava perto dos trinta e cinco, dez anos a mais do que ele. Era mais alto que a média, mas não o alcançava. Pálido, de olhos azuis e estrutura delicada, vestido com uma túnica de seda verde amarrada por um cinto ornado de jóias, Rolf Le Fever estava mais para o retrato de um cortesão, ou o que ele imaginava que um cortesão deveria se parecer, do que de um mercador, por mais próspero que fosse.

Le Fever olhou Graeham de alto a baixo, com a ex­pressão de um homem que contempla um inseto. Era de se esperar; sujo e barbado, com a túnica e as perneiras de couro imundas da viagem e o cabelo solto, Graeham parecia mais um criado que estava ali para limpar o urinol.

— Rolf Le Fever? — Graeham perguntou, embora não houvesse motivos para duvidar quem estava diante dele.

— Comerciantes devem se dirigir para a porta dos fundos. — Le Fever retrocedeu e estava para fechar a porta quando foi impedido pela mão de Graeham.

— Fui enviado por Gui de Beauvais.

A menção do nome do sogro, Le Fever voltou a abrir a porta lentamente.

— Lorde Gui enviou você?

Graeham abriu a bolsa de couro que trazia, retirou um pergaminho selado com o brasão do barão e o entre­gou ao mercador.

— Eis a carta de apresentação de milorde.

Le Fever quebrou o lacre de cera, retirou a fita e abriu a carta. A boca movia-se silenciosamente enquanto ele decifrava as palavras.

Escolhendo ser diplomático, pelo menos naquele ins­tante, Graeham disse:

— Peço desculpas por minha aparência. Viajei boa parte da semana e acabei de chegar à cidade.

— Certo. — Le Fever voltou a fechar a carta. — Onde está sua montaria, nesse caso?

— Eu as deixei...

— Tem mais de uma?

— Duas. — Uma para mim e a outra para sua es­posa, completou mentalmente. — Eu as deixei na São Bartolomeu.

Seguira as instruções de lorde Gui ao se dirigir à hos­pedaria monástica localizada do lado de fora dos muros da cidade em vez de ir a uma das inúmeras estalagens populares. O barão tinha elogiado a hospitalidade do monastério, mas Graeham não se demorara o bastante para usufruí-la. Assim que chegara, havia acomodado os cavalos cansados no estábulo e se dirigira a pé para lá, passando por Aldersgate, um dos sete portões de acesso à Londres central, caminhando pelas ruas abarrotadas de West Cheap, ciente de sua missão. Ciente demais, talvez, pois quem sabe Le Fever se mostrasse mais re­ceptivo diante de um emissário limpo e bem vestido.

A verdade era que estava ansioso. Coisa fácil de en­tender, considerando-se a urgência de sua missão... E seu prêmio, caso fosse bem-sucedido.

— Posso entrar? — perguntou. — Tenho um assunto importante para discutir com o senhor.

O olhar translúcido de Le Fever avaliou Graeham ao dizer:

— Lorde Gui o descreve como um assistente. Isso não é muito específico.

— Sou um dos sargentos do barão.

— Ah... Um militar — Le Fever disse, como se isso explicasse a aparência de Graeham. Enfiou a carta no cinto e convidou: — Entre. — Virando-se, passou por um pequeno vestíbulo e subiu um lance de escadas até o segundo andar, sendo seguido por Graeham, que no­tou que as escadas continuavam até um terceiro andar.

— Você é inglês — Ele observou ao liderar o caminho até uma sala de bom tamanho, decorada com ostentação e muitas cortinas de seda.

— Sim, sou. — Graeham não pôde deixar de sorrir, satisfeito pelo fato de os onze anos vividos no conda­do franco de Beauvais não terem apagado por completo seu sotaque nativo.

Le Fever indicou ao visitante uma das cadeiras enta­lhadas diante da lareira acesa e depois se dirigiu a um armário pintado com leopardos e flores-de-lis.

— Qual seu nome, sargento?

— Graeham.

—Graeham de quê?

— Alguns na França me chamam de Graeham de Londres, pois nasci aqui. Porém também me chamam de Graeham Fox.

— Fox? Uma raposa... Devido à sua astúcia?

— Por causa de meu cabelo. — E também pela astú­cia, mas às vezes era melhor ser subestimado. — Sob a luz do sol, ele tem um brilho arruivado. — Desde que estivesse limpo, o que não era o caso, pois seu último banho tinha sido em Beauvais.

A expressão de Le Fever oscilou entre indiferença e desdém.

— Imagino que terei de acreditar na sua palavra... — Retirou uma jarra e uma taça de prata da prate­leira. — Aceita algo para refrescar a garganta?

— Cerveja se tiver. Sinto falta da cerveja inglesa.

— Criada! — Le Fever gritou. Depois de um instan­te de silêncio, aproximou-se da escada e exclamou: — Aethel! Onde diabos você se meteu?

Uma cadeira foi arrastada no andar de cima e passos apressados ecoaram na escada. Uma mulher rechonchuda apareceu, segurando um avental numa das mãos e uma colher na outra.

— Desculpe, senhor. Eu estava lá em cima alimen­tando a sra. Ada e não ouvi...

— Vá até a despensa e traga cerveja para nosso con­vidado. Depressa!

— Sim, senhor. — Aethel lançou um olhar curioso na direção de Graeham, mas se apressou em cumprir as ordens.

Le Fever ergueu a taça até os lábios e se sentou para saborear o vinho. Anéis tremeluziam nos dedos e, quando ele cruzou as pernas, Graeham reparou que debaixo da bainha da túnica havia cintas com bordados intricados prendendo as meias, que em vez de serem as usuais de lã eram de seda... Uma afetação compreensível, Graeham supôs, já que o homem não era apenas o comerciante de sedas mais proeminente de Londres, mas também o chefe da recém-fundada associação dos comerciantes de tecidos.

— Não consigo deixar de imaginar — Le Fever falou por sobre a borda da taça — qual assunto de grande importância levaria lorde Gui a enviar um soldado para a casa da filha.

— O barão sente falta da sra. Ada e quer vê-la. Por causa de sua idade avançada e da saúde precária, seria imprudente que se pusesse numa viagem tão longa. Ele me enviou para acompanhar a filha.

— Ele quer que a acompanhe até Beauvais?

— Até Paris. — Graeham respondeu com cautela. — Ele a encontrará lá.

— Sim, claro — Le Fever zombou. — Ada jamais colocou os pés no castelo do próprio pai, não é mesmo? Diga-me uma coisa... A baronesa faz idéia das gêmeas bastardas que o marido teve em Paris com uma prostituta?

— Não. E, pelo que sei, a mãe delas era modista.

— Elas se autodenominam de diversas maneiras... — Tomou um longo gole de vinho, depois limpou a boca com o dorso da mão. — Sinto dizer que sua viagem foi em vão. Não tenho intenção alguma de permitir que mi­nha esposa viaje na companhia de um completo estra­nho, ainda mais... — Seu olhar passeou pela figura de Graeham.

— Asseguro-lhe que ela estará a salvo comigo.

— Essa não é a questão. — Le Fever sorriu. — Não é costume que as mulheres viajem desacompanhadas dos maridos. Isso refletiria mal em mim. Sou um homem influente, apesar do que o barão possa imaginar.

Algo caiu no pavimento superior, mas o mercador nem desviou os olhos do visitante.

— Está ciente de que sua esposa manteve correspon­dência com o pai depois de se casar?

— E?

— Seis meses atrás, as cartas pararam de chegar.

Aethel reapareceu e serviu a cerveja; sorriu antes de voltar a subir as escadas. Momentos depois, um novo arrastar de cadeira e troca de palavras nas vozes femi­ninas abafadas no andar de cima.

Seguindo o olhar de Graeham para o teto, Le Fever disse:

— Minha esposa está doente desde a época do Natal. Depois que ela se recuperar, voltará a escrever para o pai. E por isso que ele quer vê-la, porque ela parou de escrever?

— Isso... — Ele ganhou alguns instantes ao tomar um gole de cerveja. Era amarga, mas parecia a bebida dos deuses. Era o gosto da Inglaterra. — E também por causa do que ela escreveu nas cartas.

Depositando a caneca numa mesinha ao lado da ca­deira, Graeham pegou um maço de cartas na bolsa de couro. Le Fever olhou desconfiado para os papéis.

— Seu casamento parece ter azedado poucos dias após a cerimônia — Graeham comentou.

Le Fever emitiu um som de desprezo.

— O casamento foi em Paris. Três dias mais tarde, enquanto cruzávamos o canal, Ada me contou o que o pai não teve coragem de mencionar antes das núpcias: que a filha cuja mão ele me oferecera era ilegítima. Ele nunca reconheceu Ada e Phillipa publicamente. Eu pen­sei ter negociado uma união com a filha de um barão, mas acabei ficando com uma esposa da qual não tenho coragem de falar, temeroso de que alguém me pergunte sua origem. Como tal casamento pode me trazer bene­fícios?

— Foi para proteger a sensibilidade da esposa que o barão escolheu agir de maneira circunspecta e...

— Ele escondeu as moças em Paris tal qual um se­gredo sórdido! E ainda é assim. — Ele sorveu o resto do vinho em um único gole.

— Pelo contrário. Depois que a mãe delas faleceu, ele designou o próprio irmão, o cânone da Notre Dame, como guardião e educador das meninas. Nunca lhes fal­tou nada, receberam educação e todas as oportunidades possíveis. Sempre as visitou.

— E nesse meio tempo — Le Fever disse, segurando a taça como se estivesse estrangulando alguém —, rezou para que ninguém em Beauvais descobrisse a respeito delas. Não é de se admirar que tenha resolvido casar Ada com um inglês. Quanto mais distante ela ficasse, melhor seria. Que Deus o condene ao fogo dos infernos por tamanha traição!

— Milorde sabe que... o iludiu.

— Ele mentiu para mim! Se não diretamente, com subentendidos. Redigiu o contrato de casamento da fi­lha bastarda como se não houvesse nada errado, rindo à minha custa. Diga-me uma coisa... Sabia do esquema do barão de se livrar da filha ludibriando um inglês?

— Não foi assim que aconteceram as coisas. Lorde Gui só estava tentando assegurar o futuro da filha ao entregá-la em casamento a um homem de recursos. — O barão tinha, de fato, escondido a origem da filha. Porém fizera isso na esperança de que, após a consumação do casamento, o noivo estivesse tão enamorado que perdo­asse esse deslize. Como ficara comprovado, ele se enga­nara. — De qualquer modo, não, eu não sabia de nada até duas semanas atrás quando lorde Gui me pediu para vir para cá.

Os olhos do barão tinham estado rasos e averme­lhados ao convocar Graeham ao seu cômodo particular. Com voz trêmula, dissera:

— Nunca revelei a ninguém em Beauvais o que estou para lhe contar...

Havia dezenove anos, ao visitar amigos em Paris, tivera um breve interlúdio com uma mulher chama­da Jeanne, que ele havia contratado para costurar ves­tidos novos para a baronesa. Nunca antes fora infiel à sua amada lady Christiana, mas não havia tido forças para resistir aos encantos de Jeanne. Nove meses mais tarde, recebera uma carta informando que a modista ti­nha dado à luz duas meninas. Depois de quatro anos, a jovem sucumbira à febre tifóide e lorde Gui entregara a meninas ao irmão, o cânone Lotulf. Phillipa ainda vivia com o tio em Paris, onde tinha muitos pretendentes, ain­da que os estudos consumissem sua total atenção. Ada tivera a mão concedida em casamento a Le Fever no ano anterior, um arranjo do qual o barão se arrependia amargamente.

— Milorde deve tê-lo em alta conta — Le Fever co­mentou —, já que lhe confiou tal segredo e pede que acompanhe a filha na viagem de volta a Paris.

O que poderia ter sido considerado um elogio na boca de outro homem, pareceu pura hipocrisia para Graeham.

— Suponho que ele estivesse apenas desesperado — Graeham mentiu, sempre ciente das vantagens de ser subestimado.

Na verdade, lorde Gui o considerava seu mais con­fiável sargento, com excelentes habilidades tanto em di­plomacia quanto em combate; portanto, a escolha óbvia para tirar a filha das mãos do marido, não importando por qual meio.

— Apesar das circunstâncias do nascimento de lady Ada, lorde Gui a ama demais, assim como a irmã gêmea e os filhos legítimos que teve com lady Christiana. Ele só deseja o melhor para os filhos. Se errou ao não reve­lar as circunstâncias do nascimento da moças, ele hoje lamenta profundamente.

— E claro que tem que lamentar! Ele arruinou a mi­nha vida!

Graeham levantou a carta do topo da pilha.

— Aparentemente o senhor ficou irado quando sua esposa contou a verdade.

— Faltou pouco para que eu a jogasse para fora do barco. Aposto como você faria o mesmo em meu lugar. Sabe o que me irrita mais nessa situação? O fato de eu não poder fazer nada... Não posso anular o casamen­to. E naturalmente não posso deixar escapar que mi­nha esposa é fruto de uma aventura nas ruas de Paris. Portanto, só me resta engolir meu orgulho e tocar a vida. Exatamente como lorde Gui supunha que eu faria.

Graeham se colocou no lugar do mercador e sentiu empatia, apenas por um instante.

— O futuro de Ada está garantido — Le Fever continuou — e a reputação dela permanecerá impecável, bem como o abençoado casamento de lorde Gui e lady Christiana. O único a sofrer sou eu.

— E sua esposa. — Pegando a segunda carta e dei­xando as demais na mesinha, Graeham a abriu e co­meçou a ler: — "Eu me preocupo, papai, com o que será de mim neste casamento. Sei suportar quando ele bate em mim. A maioria dos maridos disciplina as espo­sas, porém Rolf é bastante contido nesse aspecto. São os insultos intermináveis que me magoam. Ontem ele disse: 'Não é de se admirar que o grande barão Gui de Beauvais quisesse casá-la com alguém da classe mer­cante e a tenha enviado para a Inglaterra, sua bastarda de uma prostituta parisiense... Ele ficou feliz em se li­vrar de você! Ah, eu seria capaz de fazer o mesmo com tanta facilidade...” — Graeham levantou os olhos do papel e perguntou: — Com que freqüência ameaça se livrar dela, sr. Le Fever?

O mercador deu um sorriso afetado.

— É isso? O velho acredita que eu seja capaz de ma­chucar a preciosa filha?

Graeham voltou a dobrar a carta e a colocou na pilha.

— E o senhor é?

— Isso, sargento, não é da sua conta.

— O barão fez com que passasse a ser. Na melhor das hipóteses, sua esposa é infeliz no casamento. Na pior, o senhor tem real intenção de feri-la.

Le Fever se pôs de pé, os dentes arreganhados.

— Como tem a coragem de vir até minha casa a fim de me acusar de...

— Não o estou acusando de nada. Só estou partici­pando a preocupação de um pai em relação à segurança da filha.

— Não veio para acompanhá-la numa visita — Le Fever disse com falsa candura. — Veio para levá-la de vez.

Graeham não se deu ao trabalho de negar.

— Imaginei que o senhor ficaria satisfeito de se li­vrar dela, considerando como se sente em relação a esse casamento.

Os olhos do homem brilharam de raiva.

— Propõe tirar minha esposa de baixo de meu teto, e eu tenho que ficar satisfeito? O que acha que as pessoas vão dizer se minha mulher viaja e nunca mais volta?

— Ah, as aparências... — Graeham suspirou. — Milorde me autorizou a oferecer cinqüenta marcos se me deixar levá-la.

— Ele poderia me oferecer mil! Dez mil! Não vou deixá-la ir. Ela sabia no que estava se metendo quando aceitou se casar comigo. Deixe-a colher o que semeou.

— Senhor Rolf? — Uma voz surgiu na escada de serviço.

Le Fever se virou para encarar uma moça ruiva de não mais do que dezesseis anos, vestida numa túnica cinza e uma capa com capuz verde-escuro. Ela até po­deria ser considerada bonita se não estivesse tão ame­drontada.

— Olive! — Le Fever exclamou. — O que quer esgueirando-se em minha casa?

— E-eu... bati na porta dos fundos — ela respondeu, passando os olhos do mercador para o estranho e vice-versa —, mas ninguém atendeu. Seu criado está lá fora cuidando dos cavalos e disse que eu poderia entrar. — Ela estremeceu e mostrou um vidro azul. — Trouxe o tônico da sra. Ada.

— Muito bem, suba. — Ele fez um gesto em dire­ção às escadas e depois se virou para Graeham. — Volte para aquele maldito ardiloso e diga que ele não terá a filha de volta. Ela é minha! Vá embora daqui!

Com movimentos calculados, como se tivesse todo o tempo do mundo, Graeham pegou a quarta carta da pi­lha e a abriu.

— Não me ouviu? — Le Fever indagou, as mãos cer­radas ao lado do corpo. — Saia ou chamarei meu cria­do para expulsá-lo. Byram é muito bom com os punhos, posso garantir que...

— "Meu marido não tenta esconder seus inúmeros encontros com outras mulheres" — Graeham leu. — "De fato, ele se gaba de suas conquistas com o criado, Byram, mesmo quando posso ouvir."

Le Fever foi até a janela que dava para o estábulo e gritou:

— Byram! Guarde Ebony e venha até aqui. Preciso de sua ajuda.

— Estou indo, senhor.

Graeham continuou a ler:

— "Rolf parece se orgulhar de seus casos com as es­posas dos homens importantes cuja influência corteja com avidez. Talvez ao seduzir as mulheres desses ho­mens se sinta como eles. Há poucos dias o ouvi gabando-se com Byram de ter dormido com as esposas de qua­tro conselheiros, inclusive o do nosso próprio distrito." — Graeham levantou os olhos do papel e o encarou.

— Seria o conselheiro John Huxley, não? Lorde Gui o conheceu quando ele estudou em Paris... Sabia disso?

Duas manchas vermelhas surgiram nas faces de Le Fever.

Voltando a atenção para a carta, Graeham continuou:

— "Pelo que pude entender, Rolf foi ousado o bastan­te para cobiçar a esposa do administrador do rei. Por mais gélidas que sejam nossas relações, tremo ao pen­sar o que poderá acontecer ao meu marido caso se torne público que ele passou para trás homens tão importan­tes." — Graeham dobrou o papel. — Eu diria que esse é um ponto a ser considerado, não? Não seria uma pena se a correspondência de sua esposa acabasse em mãos erradas?

Le Fever se inclinou na janela e gritou: — Byram! Eu... eu não preciso mais de você. Volte ao trabalho. — Le Fever tinha uma expressão assassina no rosto ao se virar novamente. — Seu bastardo chantagis­ta. Deixe-me ver essas cartas.

— Acertou na parte do bastardo — Graeham disse ao entregar as cartas. — Quanto à parte da chantagem, não precisamos chegar a tanto.

— Ouso dizer que não precisamos mesmo. — Com um ar triunfante, o mercador atirou os papéis na larei­ra. — Parece que o chamam de Fox somente pela cor dos cabelos, no fim das contas. Fico feliz em saber que o julguei de maneira errônea.

— Ah, não julgou, não — Graeham rebateu com um sorriso. — Essas eram apenas cópias. Eu mesmo as es­crevi antes de partir de Beauvais. As originais estão a salvo nos aposentos particulares do barão.

Le Fever desmoronou na cadeira, o rosto lívido.

— A raposa tem uma armadilha própria, pelo visto. E isso, então... Se eu não deixar Ada partir, serei arruinado.

— Deixará de se sentir tão mal ao saber que lorde Gui me instruiu a entregar os cinqüenta marcos inde­pendentemente de sua cooperação? Eu disse a ele que estava sendo generoso demais.

— Eu estou no comércio há bastante tempo para saber que tamanha generosidade não vem sem uma condição.

— Estará proibido de mencionar lady Ada a qualquer pessoa. Mais especificamente, deverá manter em sigilo as circunstâncias acerca do nascimento dela.

— Garanto que não tenho intenção alguma de contar a ninguém. Entretanto cinqüenta é pouco.

— É tudo o que trouxe comigo, e é mais do que mere­ce. E pegar ou largar.

Um músculo se retesou no maxilar do mercador.

— Pode me dar, então.

— O dinheiro está guardado na São Bartolomeu. Será seu quando eu voltar para pegar a sra. Ada. — Graeham se levantou. — Voltarei à noite, na hora das Completas.

— Ela estará pronta. — Quando Le Fever se levan­tou, estreitou os olhos para algo num canto. Graeham se virou e viu a jovem da capa verde parada na escada de serviço. — Olive, há quanto tempo está aí?

— Perdão, senhor, mas mamãe ficará furiosa se eu voltar para a loja sem o pagamento do tônico.

Irado, Le Fever pegou dois centavos e jogou para a moça. Ela gritou e cobriu o rosto. As moedas saltaram no chão e rolaram.

— Desculpe — Olive murmurou, tirando as mãos do rosto e se abaixando para pegar as moedas. — Sou tão desastrada...

Ela encontrou uma das moedas debaixo de uma ca­deira; a outra Graeham pegou de perto de seus pés e entregou-lhe. A jovem balbuciou um agradecimento, ruborizando.

— Trabalha para o farmacêutico? — ele perguntou.

— Sou aprendiz da minha mãe.

— Se tivesse de preparar o tônico para uma semana, ele continuaria bom?

— Sim, desde que não esquente muito.

— Ótimo. — Graeham desamarrou a bolsa de moe­das e contou catorze centavos, depois juntou mais qua­tro como gratificação. Podia se dar ao luxo de ser gene­roso, visto que o barão tinha lhe dado dinheiro mais do que suficiente para completar sua missão. — Pegue um xelim e meio. E mais do que suficiente. Preciso do remé­dio até a hora das Completas.

— Sim, senhor, estará pronto. Passar bem.

— Até mais.

Depois que ela partiu, uma preocupação surgiu, e Graeham perguntou ao mercador:

— Sua esposa, como ela está? Está bem o bastante para viajar, não?

O homem o encarou com um ar de contentamento.

— A meu ver, isso é um problema inteiramente seu. A partir desta noite, lavo as minhas mãos.

 

O sol estava baixo no céu, dourando os telhados de sapé de Londres quando Graeham voltou a West Cheap no alazão com os alforjes pesados devido à prata des­tinada a Le Fever. Após considerar a questão, decidiu não levar a égua comprada para transportar a sra. Ada, pois, se ela estava adoentada, seria mais seguro levá-la na garupa de sua própria montaria. A alternativa seria uma liteira, porém não sabia onde poderia encontrar uma em tão pouco tempo.

Graeham não conseguia deixar de pensar na aparên­cia da jovem senhora. O barão tinha descrito as gêmeas somente como "beldades angelicais de excelente tempe­ramento". Era óbvio que a longa convalescença poderia ter lhe tirado o viço e, por isso, tinha se preparado para não ficar chocado se ela não parecesse tão bela. Afinal, não era noivo de Ada, mas de Phillipa.

Quase noivo. Nada estava oficializado até que acom­panhasse Ada sã e salva a Paris. Somente então recebe­ria a recompensa prometida por lorde Gui: a mão de lady Phillipa e uma generosa porção de terras. O melhor de tudo: terras inglesas, uma das melhores propriedades do barão; solo fértil e pastos verdejantes bem próximos a Oxford.

A princípio tinha ficado surpreso quando o barão lhe oferecera prêmio tão valioso, especialmente a mão da filha, mas soubera se conter e não questionar o julga­mento do nobre. Para um homem de passado tão modes­to quando o seu, aquela era a oportunidade de ouro de toda uma vida: terras e um bom casamento. Não se im­portava com a ilegitimidade de Phillipa, pois essa tam­bém era a sua sina. Quem sabe por terem os mesmos problemas não acabariam sendo compatíveis?

Ficava imaginando como seria, após uma vida intei­ra de solidão, ter casa e família próprias... Como seria, depois de anos de encontros fortuitos com criadas e lavadeiras, dormir noite após noite nos braços de uma mesma mulher, vê-la crescer com o peso de seu filho no ventre, vê-la envelhecer ao seu lado com o passar dos anos...

Logo teria a chance de descobrir. Só precisava devol­ver Ada ao pai. Nem mesmo o próprio demônio poderia detê-lo; portanto, Le Fever não tinha a mínima chance.

Virou o cavalo para entrar na rua Milk, atento às bre­chas entre os paralelepípedos do caminho. Lembrava-se um pouco da Londres de sua infância; sabia que aquela parte de West Cheap era o centro do comércio de seda, que atualmente era supervisionado por Le Fever. Ele era o homem mais importante daquela área, então não era estranho que possuísse a maior e mais opulenta casa. E, no entanto, as cores berrantes, o pórtico sustentado por pilares entalhados e as vigas ornamentadas davam-lhe a impressão de alguém que enriquecera rápido demais.

Ao espiar a janela iluminada, no terceiro andar, viu uma silhueta contra a luz amarelada da vela. Esperava que fosse a sra. Ada, pronta para partir. Dispunha de pouco tempo para levá-la a São Bartolomeu porque de­pois que as igrejas soassem os sinos, os portões da cida­de seriam fechados até o amanhecer.

Tinha sido bom seguir o conselho do barão e se hos­pedar lá, visto que além de receberem homens e mulhe­res, o local dispunha de uma ala hospitalar. Tinha espe­ranças de que a saúde da jovem senhora não estivesse tão mal, já que não via a hora de voltar a Paris.

Aproximando-se, notou um homem robusto e care­ca apoiado às pedras que cercavam a casa de Le Fever. Levantando os olhos, ele perguntou:

— É Graeham Fox?

— Sim. — Graeham parou o cavalo.

— Estava à sua espera. O sr. Le Fever pediu que desse a volta na casa para que ninguém o visse levar a mulher.

— Você é Byram?

— Isso mesmo. Por aqui. — Afastando-se do muro, fez um gesto para que Graeham o seguisse pelo beco que ladeava a casa. — É melhor desmontar. É bem aper­tado logo ali, antes de chegar ao quintal.

Embora sentisse os instintos de soldado eriçar os ca­belos na nuca, Graeham obedeceu e seguiu a pé pelo beco que ligava a rua Milk à Woods. A passagem estava escura por causa das construções em ambos os lados e cheia de sujeira.

Na metade do caminho, o lado direito do beco se abria no que parecia ser um terreno comum às diversas casas da rua Milk, dando acesso também ao estábulo de Rolf Le Fever através de um portãozinho na mureta. À exce­ção de umas poucas galinhas e porcos, o terreno de terra batida estava deserto. O beco, às sombras dos andares superiores das construções, estava cada vez mais escuro e estreito conforme se aproximavam da rua Woods.

— Aonde vai? — Graeham perguntou quando viu Byram passar o portão do estábulo.

Byram se virou e olhou para um ponto atrás do es­tábulo. Graeham deu um meio giro, já com a mão na adaga e viu dois homens, um deles imenso, saírem das sombras. O menor deles agarrou as rédeas do cavalo en­quanto o outro girava uma marreta de cabo longo na direção da cabeça de Graeham, que se abaixou bem a tempo. Rolando no chão e se levantando de súbito, se­gurou a barba entrelaçada do gigante para firmá-lo e cravou a adaga em seu estômago.

Sem nem mesmo titubear, o oponente deu um passo para trás e deu nova investida, atingindo as costelas de Graeham e jogando-o no solo imundo.

— Dougal! — Byram exclamou. — Você está bem? Dougal olhou para o cabo da adaga na barriga e deu de ombros.

Esforçando-se para se pôr de pé, Graeham viu o ca­valo sendo levado pelo beco até a rua Woods.

— Não! — Levou a mão para a bota onde estava sua outra arma, um punhal. Talvez aquilo não servisse para nada, já que estava em desvantagem e um deles, pelo menos, não se importava com alguns ferimentos.

Byram o segurou pelos cabelos e pressionou uma lâmina em seu pescoço.

— Diga olá para o Diabo por mim, Fox.

— Diga você mesmo. — Graeham mirou o punhal no pescoço de Byram, mas o tratante previu o golpe e se retraiu, levando o golpe na face.

O corte partiu da bochecha até o queixo, e Byram largou a faca, praguejando.

Segurando firme o punhal, Graeham tentou alcançar a faca, mas Dougal pisou em sua mão, imobilizando-o ao mesmo tempo em que esmagava seus dedos.

Graeham girou o corpo e deu um chute, acertando-o na virilha.

Urrando, Dougal atirou a marreta na canela esquer­da de Graeham. A dor foi instantânea e um grito reverberou pelo beco.

Graeham tentou respirar e se levantar, mas a perna esquerda tinha sido esmagada na parte inferior.

Byram, usando a manga da túnica para estancar o sangue, chutou-o nas costelas fraturadas, dizendo a Dougal:

— Acabe com ele e vamos sair daqui.

Dougal, com a adaga ainda enfiada na barriga, fixou o olhar em Graeham e levantou a marreta.

Com precisão, Graeham cravou o punhal no pescoço do gigante, que surpreso, abaixou a arma lentamente.

— Deus do céu, Dougal! — Byram exclamou ao ver o gigante tatear o punhal. — Passe isso para cá. — Pegou a marreta e a mirou no crânio de Graeham.

Graeham rolou para o lado e viu a arma atingir o solo a centímetros de distância. A faca estava ao seu alcance novamente e, então, ele a pegou. Gemendo, co­lou-se à parede e se levantou, sustentando o peso num pé ao mesmo tempo em que Byram erguia a marreta mais uma vez.

— Boa noite, senhores. — Graeham e seus dois ata­cantes se viraram e se depararam com um homem magro e loiro que caminhava na direção deles vindo da rua Woods, desembainhando uma espada. — Posso participar?

Byram e Dougal se entreolharam.

— A meu ver a luta está desigual. — Ele falava como um nobre, e a espada era espetacular, embora a rou­pa estivesse puída. — Dois contra um... Que tal se eu igualar a situação? — Olhando para a adaga cravada no estômago de Dougal, comentou: — Belo golpe... Mas já vi homens, com ferimentos iguais a esse, novos como antes em poucos dias...

Dougal olhou para a adaga com uma expressão de alívio no rosto.

— Essa aí no pescoço, porém... Se você a tirar, vai sangrar até morrer em questão de minutos. Achei me­lhor avisar...

O gigante o encarou assombrado.

— O lado bom é que a morte é bem rápida e indolor.

— Ele está mentindo! — Byram disse.

Dougal se virou e, cambaleando pelo beco, foi para a rua Milk, fazendo o sinal-da-cruz e murmurando preces.

— Volte! — Byram gritou. Virando-se para o des­conhecido, ameaçou: — Saia daqui ou explodo seus miolos!

Ignorando a ameaça, o homem levantou o queixo de Byram com a ponta de espada e observou a laceração:

— Espero que seja casado, pois nenhuma garota vai olhar para você com uma cicatriz dessas. — Para Graeham, perguntou: — Foi você quem fez isso?

Graeham assentiu, trêmulo ao tentar sustentar o peso contra a parede.

— Estava mirando no pescoço.

— É mesmo? Sempre achei que a melhor maneira de acertar um pescoço fosse firmar a lâmina bem aqui. — Pressionou a espada no pescoço de Byram e comple­tou: — E depois levantá-la assim. — Fez um movimento abrupto.

Byram gritou e largou a marreta. O desconhecido a chutou na direção de Graeham, que não tentou pegá-la, temendo desmaiar devido ao esforço.

— Mãos para cima.

Byram praguejou baixinho, mas obedeceu.

— Vou pedir que alguém chame o delegado para en­viá-lo para a cadeia — o desconhecido disse.

— Deixe-o ir — Graeham rebateu.

— Como? Por quê?

Tinha prometido a lorde Gui que agiria com a maior discrição, sem revelar a ninguém, exceto a Le Fever, os motivos que o haviam levado à cidade. Envolver a po­lícia abriria uma caixa de Pandora e exporia os segre­dos que o barão lutara tantos anos para manter. Além do quê, qualquer investigação a respeito do roubo seria inútil, pois tinha quase certeza de que Le Fever estava por trás de tudo aquilo. O mercador muito provavelmen­te jamais considerara libertar a esposa, pois temia por sua reputação, mas mesmo assim cobiçava as moedas.

Ele, porém, ainda pretendia levar a sra. Ada a Paris, visto que seu futuro dependia disso. Não importando seus ferimentos, tinha de encontrar um modo de execu­tar sua missão, isso sem a ajuda do delegado. Pensando rápido, respondeu:

— Esse vira-lata não vale todo esse trabalho. Te­ríamos de perder tempo prestando depoimentos, para quê? No fim, ele só levaria umas chibatadas e logo esta­ria de volta às ruas...

Graeham devia ter soado bem convincente, pois de­pois de um instante, o desconhecido deu um passo para trás e disse a Byram:

— Por que não vai atrás de seu amigo e o ajuda a tirar o punhal do pescoço?

Byram hesitou, olhando para Graeham como se te­messe deixar um assunto inacabado, mas se virou e cor­reu pelo beco.

Graeham colocou a faca do outro na cintura e depois caiu no chão, agarrando a perna e praguejando como um marinheiro. As tiras de couro que seguravam a per-neira estavam esticadas por cima da canela inchada que latejava de dor.

O desconhecido embainhou a espada e se abaixou. No lóbulo direito, tinha uma argola gravada com desenhos exóticos. Certo dia, Graeham vira um infiel de turbante com um brinco como aqueles.

— Está quebrada?

— Acho que sim, mas não posso ter certeza com a perna amarrada desse jeito.

— Não a solte. As tiras servirão de tala até que você veja um médico. Está machucado em algum outro lugar?

— Nas costelas. A cabeça, porém, estaria esmagada se você não tivesse aparecido. A propósito, meu nome é Graeham Fox e lhe devo muito. Obrigado.

— Hugh de Wexford. E sou eu quem deve agradecer. Não me divertia assim há um bom tempo.

— O grandalhão vai mesmo sangrar até a morte? Hugh riu e deu de ombros.

— Não faço a mínima idéia. Acabei de inventar aquilo.

— Pareceu bem convincente.

— Foi o que pensei. Venha. — Hugh se levantou e ergueu um Graeham completamente tonto. — Isso deve servir de bengala por enquanto. — Entregou a marreta.

— Vou levá-lo para dentro para que possa se deitar.

— Dentro? — Graeham perguntou ao ser ajudado.

— Esta é a casa da minha irmã. — Hugh apontou para a parede de adobe na qual Graeham estivera apoiado. — Vinha visitá-la quando vi um maltrapilho levando um belo cavalo pelo beco.

— Um belo cavalo com cinqüenta marcos nos alforjes — Graeham informou ao ser levado aos pulos para o outro lado da casa, uma das diversas construções enfileiradas que dava para a rua Woods. Debaixo de uma árvore havia uma cabana de pedras que provavelmente abrigava uma cozinha.

— Cinqüenta marcos! — Hugh assobiou baixinho. — Que falta de sorte cair nas mãos daqueles vagabundos.

Má sorte não tem nada a ver com isso, Graeham pensou, já que uma desses vagabundos é empregado de Le Fever.

Hugh bateu à porta de carvalho dos fundos da casa da irmã.

— Joanna! Sou eu, Hugh! Abra. — Puxou a corda do trinco que aparecia num buraco da porta e, do lado de dentro, ouviu-se um arranhado metálico do ferrolho sendo aberto. Empurrando a porta, voltou a chamar: — Joanna? — Sem obter uma resposta, disse: — Ela deve ter saído. Venha, mas cuidado com o degrau.

Hugh acompanhou Graeham pelo corredor que ter­minava numa saleta na qual havia uma escada para o pavimento superior. O junco que forrava o chão parecia fresco e no centro de uma mesa modesta flanqueada por dois bancos havia uma lamparina feita de banha. As duas pequenas janelas com grades do cômodo davam para o beco e de uma delas um gato os observava com descaso.

— Essa criatura arrogante é Petronilla — Hugh in­formou. — O irmão dela deve estar por perto, mas, como teme qualquer ser humano à exceção de Joanna, foi se esconder. Onde está sua mãe, Petronilla?

A gata se virou para olhar a rua.

— Joanna acendeu essa lamparina — Hugh obser­vou —, então não deve ter saído há muito tempo. O sol acabou de se pôr.

Por um vão em forma de arco, Graeham conseguia ver outra pequena sala, uma loja pelo visto, pois perto da porta que dava para a rua havia uma janela com uma enorme veneziana horizontal, ora fechada. Próximo à janela, havia uma moldura para bordados apoiada num cavalete, na qual uma seda azul, parcialmente bordada, estava esticada.

Notando a direção do olhar de Graeham, Hugh explicou:

— O marido de Joanna é mercador. Ele importa se­das, e eles as vendem na loja, ou melhor, ela vende, pois ele aprecia somente a compra.

Graeham acenou com educação, lutando por um mí­nimo de compostura.

— Mencionou um lugar para eu me deitar?

— Por aqui. — Hugh afastou uma cortina de couro e o ajudou a chegar a um quartinho nos fundos sem junco no chão batido. Na meia-luz do interior, Graeham con­seguiu divisar diversos baús e sacas, bem como rolos de tecidos e pequenas cestas nos bancos. Uma cama estreita estava encostada numa das paredes.

— Quem dorme aqui? — Graeham perguntou, repri­mindo um gemido ao ser abaixado até o colchão de pa­lha, procurando uma posição de menor desconforto.

— O marido dela, Prewitt Chapman. — Deixando a mochila no chão, Hugh ofereceu o odre de vinho. — Beba um pouco, vai ajudar a suportar a dor e aquecê-lo. Você está tremendo...

Graeham, agradecido, desatarraxou o odre e tomou uma golada. Estava tentado a perguntar por que o dono da casa dormia num quartinho que mais parecia um depósito, mas percebeu que aquele não seria o melhor modo de agradecer a acolhida.

— Seu cunhado não vai achar ruim que um estranho esteja deitado na cama dele?

— Prewitt só dorme aqui quando está na cidade. Ele passa muito tempo no exterior, comprando tecidos.

— E ele está viajando agora?

— Não tenho certeza. Faz mais de um ano que não vejo Joanna. — Hugh o cobriu com uma manta de lã. — Fique deitado. Vou procurar um médico.

Depois que Hugh saiu, Graeham se pôs a beber o vinho com o intuito de diminuir a dor, quiçá ficar to­talmente entorpecido até a chegada do médico. Por ter segurado vários homens enquanto eles tinham os ossos colocados novamente no lugar, sabia que seria melhor estar inconsciente quando passasse pela mesma expe­riência.

A noite caiu, e, assim que percebeu que o odre estava vazio, ouviu uma porta se abrir e fechar. O som vinha do outro lado da casa e, de onde estava, conseguia ver uma figura encapuzada se movendo pela loja. Já ia chamar por Hugh quando percebeu que a pessoa era menor que o homem e que usava saia.

A irmã de Hugh entrou na saleta, pendurou a capa e colocou um pacote sobre a mesa.

Bêbado como estava, tinha dificuldade de mantê-la em foco. Parecia alta, mais do que a média, vestia uma saia azul simples e o cabelo estava preso sob um lenço amarrado em volta do rosto. Chaves e outras ferramen­tas estavam penduradas num cinto bordado.

A gata desceu do parapeito e se juntou a um macho branco e preto que já se esfregava nos tornozelos da dona. Ela riu e disse:

— Já farejaram a enguia, não? Pois terão de esperar eu comer para terem direito às suas porções. — A voz soou jovem e tinha um timbre rouco e agradável.

Graeham sabia que precisava anunciar sua presen­ça. Apoiou-se num cotovelo, gemendo ao ver tudo girar ao redor. Ouviu um arfar.

A mulher ficou imóvel.

— Quem está aí? — perguntou com voz trêmula.

— Não tenha medo — Graeham pediu ao se deixar cair novamente, lutando contra uma onda de náusea. Ouviu os passos sobre a palha se aproximando.

— Saia.

Ele abriu os olhos e piscou diante do machado que ela segurava com as duas mãos e apontava para a sua cabeça.

— Ouviu o que eu disse? Saia de minha casa neste instante ou vou rachar a sua cabeça ao meio. — Era mais um bêbado vagabundo tentando encontrar refúgio em sua casa; precisava tomar mais cuidado e trancar melhor a casa ao sair.

— Eu posso explicar — o intruso disse com palavras arrastadas, uma das mãos erguida para se proteger.

— Saia! — Joanna repetiu. Sabia que não podia dei­xá-lo notar seu medo. O homem era grande, tinha o ros­to sujo e recendia a vinho. Seu estado de embriaguez só aumentaria sua violência. Se a atacasse, teria de se defender. A qualquer custo.

— Senhora... — ele começou.

— Levante! — ela ordenou, brandindo o machado.

— Vá embora! Que Deus me ajude, mas vou usar isto aqui!

Ele a avaliou com uma estranha calma, os olhos bri­lhando como o fogo na semiescuridão.

— Não vai, não — ele replicou com calma. — Não vai conseguir. Suas mãos estão tremendo. — Ergueu-se, apoiando-se no cotovelo.

Joanna retrocedeu um passo, segurando o machado como um talismã.

— Meu marido vai chegar a qualquer instante — mentiu e, avaliando o tamanho dele, acrescentou como precaução: — E meu irmão está com ele. Hugh é um excelente espadachim. Ele seria capaz de matá-lo se o encontrasse aqui.

Joanna viu divertimento nos olhos do intruso, e mais alguma coisa que, em circunstâncias diversas, poderia ser considerada compaixão.

— Na verdade foi Hugh quem me trouxe para cá.

— Mentiroso. Só diz isso para que eu abaixe a guar­da. Hugh nem está em Londres; está lutando na região do Reno.

— Se o seu irmão não está na cidade, como ele pode estar a caminho com seu marido?

Joanna se amaldiçoou mentalmente; nunca fora adepta a mentiras.

— Meu... meu marido está chegando.

— Não consigo acreditar. Se ele estivesse por perto, a senhora já teria saído e deixaria que ele lidasse comigo. Ele não está em Londres, não é mesmo? Está sozinha.

— Saia daqui! — Ela avançou na direção dele, man­tendo-se próxima aos pés da cama, para que ele não conseguisse alcançá-la.

— Senhora...

— Levante! Saia! — Movendo o machado nas mãos, ela acertou-lhe as pernas com o cabo.

— Droga! Inferno! — Ele se retorceu numa bola, se­gurando a perna. — Maldição!

Joanna foi para perto da porta, assustada com a rea­ção dele.

O homem continuou com uma série de imprecações antes de se deixar cair, pálido, no colchão.

— Pelo amor de Deus, por que fez isso?

— Se não sair imediatamente, volto a fazer — ela ameaçou.

— Se eu conseguisse andar, eu sairia — disse ele sem fôlego. — Minha perna está quebrada.

Ela estreitou os olhos e o encarou.

— Está mentindo.

— Minha perna esquerda. — Ele afastou as cobertas. — E uma ou duas costelas também.

Joanna buscou a lamparina improvisada do outro cômodo sem dar as costas ao convidado inesperado. Segurando o machado em uma das mãos e a lamparina na outra, aproximou-se e notou o inchaço na parte infe­rior da perna.

— Foi Hugh quem me deixou entrar. Ele saiu para buscar um cirurgião. Aquela é a mochila dele. — Indicou a bolsa de couro num dos cantos.

Levantando a lamparina, Joanna reconheceu a bolsa do irmão. Sentiu-se aliviada por saber que ele voltara a salvo de mais uma campanha militar.

— Como posso saber que não roubou isso dele? — Joanna perguntou. — Talvez ele tenha quebrado sua perna ao tentar se defender.

— Fui atacado no beco ali do lado. Levaram meu ca­valo e boa parte do dinheiro de meu senhor. Seu irmão me ajudou e me trouxe para cá. Disse que seu nome era Joanna. A senhora tem uma gata chamada... Pieretta? Não. Petronilla. E ela tem um irmão que é tímido, mas cujo nome não me recordo. Seu marido é um mercador de sedas e passa muito tempo no exterior. Ele dorme aqui em vez de... — Ele desviou o olhar, desconfortável. — Isso é tudo o que me lembro. Não sei de que outro modo posso convencê-la. Sei que está com medo e que não me quer aqui. Assim que seu irmão chegar, eu saio... Só não consigo fazer isso sozinho.

Joanna o olhou por um longo instante. Ele sustentou o olhar, apesar de parecer ter dificuldade em manter o foco. O rosto, debaixo da sujeira e da barba por fazer, era bem delineado e simétrico. Havia sinceridade nos olhos, apesar da evidente embriaguez. As roupas, em­bora imundas, pareciam de boa qualidade, bem como as botas e o cinto.

— Quem é você?

— Meu nome é Graeham Fox e sou inglês. Sirvo, po­rém, como sargento a um barão normando.

Joanna deixou o machado e a lamparina num banco e perguntou:

— O que o trouxe para cá?

Graeham virou a cabeça no travesseiro e passou os dedos pelo cabelo. Um anel de sinete reluziu no dedo indicador.

— Estava de passagem a caminho da casa de... parentes.

— Onde eles moram?

Depois de uma pausa, ele respondeu:

— Oxfordshire.

— E como veio parar em West Cheap? — Ela se apro­ximou da cama.

— Eu estava à procura de uma estalagem.

— A maioria fica do lado de fora dos muros.

— Não queria ter de me preocupar com o toque de recolher.

— Isso deve estar doendo — ela comentou, avaliando a perna torta.

— O vinho ajudou... por um instante. — Até ser atin­gido pelo cabo do machado.

— Desculpe.

— Parece saber se cuidar; fiquei impressionado. — Ele sorriu de modo irresistível.

Joanna não conseguiu deixar de retribuir o sorriso.

— Está com fome? Acabei de comprar enguia, e posso dividir, se quiser.

— Acho que não consigo me alimentar depois de be­ber tanto vinho. Obrigado mesmo assim.

A porta se abriu, e Joanna ouviu passos e vozes de homens no corredor. Ela se virou para receber o irmão.

— Joanna! — Hugh a levantou nos braços e a rodo­piou. — Senti sua falta.

— Eu também, que saudades! — Ela o beijou nas fa­ces e notou, de maneira condescendente, que ele ainda tinha o brinco no lóbulo da orelha. — Estava tão preocu­pada com você... Que bom que está em casa!

— Por um tempo — ele acrescentou. Ela se entristeceu de súbito.

— Sim, é claro, por enquanto. — Acenando na dire­ção de Graeham, que os observava, acrescentou: — Não perdeu o hábito de me trazer "animais abandonados", pelo visto.

Rindo, Hugh explicou a Graeham:

— Ela nunca conseguiu resistir a uma criatura que precisasse de ajuda. Como está se sentindo?

— Estou totalmente bêbado.

— Isso é bom.

Alguém pigarreou para chamar a atenção. Hugh deu um passo para o lado para permitir a passagem de um homenzarrão de idade avançada.

— Joanna, conhece o sr. Aldfrith?

— Por sua reputação, é claro.

Joanna tentou apresentar o cirurgião a Graeham, mas o homem a interrompeu, distribuindo ordens abruptas.

— Mais luz! Água limpa! E lençóis limpos, se os tiver. — Meneou a cabeça, desgostoso. — Gostaria de poder contar com meus assistentes, mas hoje é dia de paga­mento e já devem estar gastando tudo com bebida e mu­lheres. Vou ter de me arranjar com vocês dois.

Hugh acendeu uma lamparina e a colocou na viga para iluminar o cômodo enquanto Joanna buscava água no poço. Na volta, arranjou dois lençóis e os entregou ao cirurgião, lamentando arruiná-los, pois não sabia quan­do conseguiria repô-los.

Aldfrith mandou Hugh para a saleta para cortá-los em tiras e ordenou que Joanna despisse o paciente.

— Como disse?

— Botas, perneiras, túnica, camisa — Aldfrith expli­cou enquanto vestia um avental de couro. — Tire tudo, exceto as ceroulas. — Arqueou uma sobrancelha ante a hesitação. — Uma moça solteira poderia se envergo­nhar com tal tarefa, mas a senhora é casada, não?

O sargento a observava com grande interesse ao ver que ela corava cada vez mais.

— Posso fazer isso sozinho — Graeham disse e fez uma careta ao tentar se sentar.

— Permaneça deitado! — Aldfrith comandou ao dis­por os instrumentos cirúrgicos num dos baús. — Só vai piorar a situação caso se mexa.

— Ele tem razão — Joanna disse, sem saber por que tinha se acovardado. — Não deve se esforçar e não me custa nada.

Inclinou-se e desfez o laço da bota esquerda. Graeham prendeu o fôlego, embora ela tentasse agir com delica­deza. Depois foi a outra bota, e ela se pôs de lado para estudar as tiras de couro que prendiam as perneiras.

— Estão amarradas aqui em cima — Graeham le­vantou a túnica, expondo as perneiras, as coxas musculosas e a bainha das ceroulas de linho.

— Muito bem. — Joanna puxou as tiras, mas o nó parecia muito firme, talvez devido ao inchaço da perna machucada. Tentou inutilmente desfazê-lo, consciente de que as mãos roçavam os pelos da coxa e de que era observada.

— Talvez seja melhor cortá-las — Graeham sugeriu.

— Ah, sim. — Ela pegou uma faquinha e cortou as tiras. Com cuidado, retirou-as e depois as perneiras. Debaixo delas, Graeham vestia meias de lã, muito es­ticadas sobre a perna inchada, que também tiveram de ser cortadas. — Deus do céu — ela sussurrou quando viu a perna retorcida na altura da canela, a pele infla­mada e coberta de hematomas recentes.

— Hum, não está exposto... — Aldfrith avaliou a ex­tensão dos danos. — Pelo menos não vou precisar destes aqui. — Guardou uma série de facas aterrorizantes e uma serra.

O alívio no rosto de Graeham era aparente, e refletia o dela. Voltando ao trabalho, Joanna terminou de despi-lo. O torso estava inchado na parte baixa das costelas; a única imperfeição num peito, de outro modo, perfeito, a síntese da graciosidade e do poder masculinos. Os om­bros eram largos e musculosos, o abdômen magro e o quadril estreito. Quando ele ergueu uma das mãos para afastar os cabelos do rosto, os músculos dos braços se es­tenderam e flexionaram. Joanna mal conseguiu conter a admiração.

Hugh voltou com as tiras dos lençóis, e Aldfrith usou uma delas para amarrar as costelas fraturadas, num movimento rápido e que aparentemente não provocou dor. As demais foram colocadas na cama ao lado de Graeham, juntamente a duas tábuas grandes forradas com lã de ovelha.

— Quanto tempo vai levar para consertar a perna? — Joanna perguntou.

— Não muito para colocá-la no lugar — Aldfrith res­pondeu. — O que demora mais é segurar as talas. Preciso de alguém forte... — Apontou para Hugh. — Você. Terá de me ajudar a reposicionar o osso. Talvez haja alguns camaradas por perto para segurá-lo enquanto fazemos isso...

— Não preciso que ninguém me segure — Graeham disse. — Não vou me mexer.

— Diz isso agora, mas espere até que eu comece a ali­nhar esse osso. Vai se debater e gritar como se estivesse morrendo queimado.

— Ficarei bem, pode começar — insistiu ele.

— Admiro seu otimismo, sargento, mas não sabe o que...

— Comece.

Franzindo o cenho, Aldfrith pediu a Joanna que fosse para a cabeceira.

Lutando para se sentar, Graeham começou a formular um protesto:

— Eu disse que...

— Considere isso uma concessão. Algo para acalmar um cirurgião rabugento.

— Assim eu também poderei ajudar — Joanna inter­cedeu e o encarou com olhos suplicantes.

Sério, Graeham olhou para o teto e concordou. Sentando-se na cama, atrás da cabeça dele, ela pousou as mãos nos ombros que mais pareciam feitos de rocha sob suas palmas.

Aldfrith instruiu Hugh e depois levantou a perna de Graeham enquanto o outro colocava uma das talas debaixo dela. O paciente prendeu o fôlego com a movi­mentação.

Os dois homens se posicionaram, segurando com fir­meza acima e abaixo da fratura.

— Pronto? — o cirurgião perguntou.

Hugh assentiu, e Joanna pressionou os ombros dele o máximo que pôde.

— Agora.

Um gemido baixo e contido se formou na base da garganta de Graeham quando os dois começaram a pu­xar. Ele fechou os olhos, cerrou os dentes e arqueou as costas.

— Não vai demorar muito — Joanna prometeu com voz trêmula. Diminuiu a pressão quando viu que ele não se debateria, conforme prometido. Alisando uma mecha de cabelos da testa, disse: — Segure firme.

— Mais forte — Aldfrith ordenou.

Graeham blasfemou por entre os dentes e agarrou os pulsos de Joanna. Ela passou as mãos entre as dele e as apertou.

— Só mais um pouquinho.

O peito de Graeham arfava, e o rosto estava verme­lho. Inclinando-se, Joanna sussurrou-lhe no ouvido:

— E um homem muito valente. Está se saindo muito bem.

— Perfeito — anunciou Aldfrith. — Pegue a outra tala.

Hugh posicionou a outra tábua sobre a perna de Graeham e segurou as duas enquanto Aldfrith as amar­rava com as tiras em movimentos precisos. Graeham, deitado com os olhos fechados, estava pálido e coberto de suor. Continuava a segurar as mãos de Joanna com força.

— É isso — disse o cirurgião, por fim. — Nada mau, levando-se em conta que tive ajuda amadora. Já fez isso antes, não? — perguntou a Hugh.

— Algumas vezes no campo de batalha, mas duvido que os coitados tenham voltado a andar normalmente.

— Nosso destemido sargento voltará a andar direito — Aldfrith prometeu. — Desde que fique de resguardo por dois meses, na cama no começo e depois...

— Dois meses! — Graeham exclamou, soltando as mãos de Joanna e tentando se levantar.

— Deite-se! Quer arruinar meu trabalho?

— Não posso ficar sem andar por dois meses! Eu te­nho... assuntos importantes a resolver.

— Pode escrever para sua família em Oxfordshire — Joanna sugeriu.

— Não. — Ele gemeu. — Vocês não entendem. Não posso explicar.

— Eu ficaria feliz em escrever uma carta para o se­nhor — ela ofereceu com diplomacia.

— Eu sei escrever. Não é esse o problema. Mas que droga, dois meses...

— Talvez três — Aldfrith disse. — Tudo depende da rapidez com que esses ossos vão se juntar. Quanto maior o repouso, mais rápido o processo de recuperação. Não tire as talas — explicou ao guardar os instrumen­tos e fechar a maleta. — Volto para ver como está se re­cuperando e para trocá-las quando for oportuno. Trarei muletas.

— Não estarei aqui — Graeham informou. — Estou hospedado na São Bartolomeu.

— Isso é conveniente, já que eles têm o hospital lá. As irmãs saberão o que fazer.

— Não entendo — Joanna comentou. — Se já tem alojamento, por que procurava por uma hospedaria?

Graeham a olhou sem entender por um instante.

— Ah, bem... Foi como lhe disse. Gostaria de encon­trar acomodações dentro dos muros.

— Sim, claro. — Ele tinha mesmo dito aquilo, mas parecia estranho para um homem apenas de passagem se preocupar tanto com a hospedagem.

Batendo a poeira da túnica, Aldfrith disse a ninguém em especial:

— Cobro meio xelim por colocar a tala, mais três cen­tavos pela visita.

Hugh colocou a mão na bolsinha de moedas, mas Graeham o impediu dizendo:

— Guarde seu dinheiro, já fez muito por mim. — Apontou para a bolsa no chão ainda presa ao cinto. — Pegue as moedas dali.

Joanna pesou a bolsa de pelica nas mãos, estimando mais de meia libra. Ao abri-la, viu que as moedas eram centavos de prata. A única vez em que vira tal montante de dinheiro tinha sido quando o pai abrira o cofre em sua presença para contar a fortuna.

Claro que aquele dinheiro não pertencia ao sargento, mas ao seu senhor. A maioria dos soldados, à exceção dos cavaleiros, tinha somente o suficiente para pagar a próxima caneca de cerveja ou a próxima mulher.

Contou nove centavos e os entregou a Aldfrith, que conferiu antes de guardá-los e depois saiu.

Graeham bocejou.

— Está cansado depois de tanto esforço? — Hugh perguntou.

— Que esforço? — O sargento sorriu. — Foram vocês quem fizeram todo o trabalho; eu só fiquei aqui deitado... Mas agora estou com fome. — Sorriu para Joanna. — Eu aceitaria aquela enguia que me ofereceu antes, se não se importar.

Joanna o cobriu e respondeu:

— Já vou buscar.

Na saleta, encontrou os dois gatos se refestelando no pacote que tinham conseguido abrir.

— Manfrid! Petronilla! Xô!

Os dois desceram da mesa; Joanna viu com pesar os restos de seu precioso jantar. Tinha gastado os últimos centavos para alimentar as criaturas mal agradecidas. Estalando a língua, atraiu-os para o quintal, onde jogou o que restava das enguias, uma última extravagância que acabara se tornando comida de gato.

— Aproveitem enquanto podem, logo terão de se vi­rar sozinhos — disse, sem querer pensar no que ela te­ria de fazer para comer.

Voltando à cozinha, arrumou um jantar às pressas, o melhor que pôde dadas as magras provisões: pão de centeio com mel e um copo de leitelho, e voltou para o depósito.

Hugh levou o dedo aos lábios, indicando que o sar­gento tinha adormecido. Apagou a lamparina e seguiu para a saleta sendo acompanhado por Joanna, que cer­rou a passagem com a cortina.

— Leitelho? — ofereceu ao irmão ao se sentar no banco oposto.

— Vinho, se tiver. Graeham bebeu tudo o que eu tinha.

— Desculpe, não tenho. — Não tinha vinho fazia vá­rios meses, desde que a situação começara a se deteriorar. — Nem cerveja. Mas há uma taverna na esquina se quiser.

— Prefiro ficar aqui e conversar com você enquanto posso. Preciso cruzar a Ponte de Londres antes do to­que de recolher. Vou me acomodar do outro lado do rio, em Southwark. — Notando o ar de reprovação da irmã, completou: — Numa estalagem.

— Por que prefere dormir com mais dois numa cama infestada de pulgas numa hospedaria pública se pode ficar aqui?

Hugh lançou um sorriso torto, que ele sabia ser efi­ciente para derrubar suas defesas, e explicou:

— A dona da estalagem é uma... amiga especial há vários anos.

— Ah, bem. — Metade das mulheres de Londres, bem como do Império Bizantino e das Terras do Norte, eram amigas especiais do irmão. Joanna olhou na direção da cortina e disse: — Eu me sentiria melhor se ficasse aqui esta noite.

— Melhor? Quer dizer mais segura? Mas você dorme no andar de cima. Mesmo que Graeham tenha a inten­ção de molestá-la, e não acredito que ele seja desse tipo, você acha mesmo que ele teria condições de subir as escadas?

— É que... — Ela suspirou. — Parece estranho tê-lo aqui.

— Ele me parece um homem decente, Joanna. Estou certo de que é inofensivo. E só por esta noite, ama­nhã trarei uma carreta para levá-lo à hospedaria São Bartolomeu, e você nunca mais o verá. Podemos comer esse pão agora?

Ela o empurrou na direção dele, que avançou esfomeado.

— Imagino que Prewitt esteja na Itália.

— Ele está morto.

Hugh engasgou e teve de tomar um gole de leitelho. Apesar da careta de desgosto, a tosse cessou.

— Nossa, Joanna, quando foi que isso aconteceu?

— Em setembro passado. Recebi uma carta de um oficial do governo de Gênova. Prewitt foi esfaqueado... pelas mãos do marido de uma mulher com quem ele... Bem, a carta veio com um pacote contendo seus obje­tos pessoais: as chaves, o broche do manto, o canivete, a lâmina de barbear e algumas outras coisas. O anel de safira não estava incluído, tampouco dinheiro, claro, embora devesse haver algum, já que ele tinha partido para fazer compras.

— Joanna... Não posso fingir que lamento. — Esticou a mão para afagá-la. — Você está bem?

— Sim. É estranho. Cheguei a ficar de luto no prin­cípio, mas então percebi que não era por Prewitt, e sim pelo homem que eu acreditei que ele fosse quando nos casamos. E até por mim mesma...

— Verdade? Você não é afeita à autocomiseração, até onde sei.

— Foi um lapso temporário. Fiquei pensando em como ele me enganou, como eu era jovem e ingênua. Como ele me usou. Pior, como eu permiti que ele fizesse isso.

— Como acabou de dizer, você era ingênua. Só tinha quinze anos, pelo amor de Deus! Isso jamais aconteceria hoje em dia.

— Acredito que não. Aprendi algumas coisas a res­peito dos homens, e do pior jeito. Se temos alguma coisa que querem, eles tomam. Usam-nos pelo que podemos lhes oferecer, sem se importar com nossos sentimentos quando descobrimos o que eles cobiçam de fato... O cor­po, na maioria das vezes. Ou, no caso de Prewitt, posição social.

— Houve outros homens além de Prewitt? — Hugh franziu a testa.

— Não, nunca. Bem, eles ficam rondando, como cães famintos. Normalmente são casados, ou comprometidos. Tudo o que querem é saciar a luxúria e seguir em fren­te. Alguns são bem insistentes.

— E por isso que carrega, uma adaga?

— Já provou ser útil. — Joanna se lembrou de como Rolf Le Fever tinha ficado aterrorizado quando ela o ameaçara com a lâmina.

— Você deveria se mudar para o interior. Londres não é mais segura para você. Nunca foi na verdade, com Prewitt fora por tanto tempo; mas pelo menos as pes­soas sabiam que era casada, que havia um marido para se vingar caso abusassem de você de alguma maneira.

Um riso sardônico escapou dos lábios de Joanna.

— Não acredito que ele se desse a esse trabalho; não se importava comigo.

— As pessoas não sabiam disso. O casamento lhe oferecia alguma proteção. A maioria dos homens não é como Prewitt; evitam confusão com mulheres casadas.

Joanna sabia que isso era verdade, apesar das ex­ceções como Prewitt ou Le Fever. Por isso, mantinha a aliança de casamento, mesmo sendo viúva. No entan­to, o interesse demonstrado pelos homens aumentara quando a notícia da morte de Prewitt tinha se espalha­do, apesar de suas roupas conservadoras e atitudes re­servadas.

— Enquanto casada, você estava protegida. Agora isso mudou. Cidades são perigosas para as mulheres, Joanna.

Ela bem sabia daquilo, e as ruas barulhentas e su­jas da cidade grande havia muito tinham perdido seu charme. Cada vez mais, Joanna sonhava com os cam­pos verdejantes de sua juventude, mas o sonho de se assentar num chalé num lugar tranqüilo ficava cada vez mais distante. Se mal conseguia se sustentar em Londres, onde havia mercado para seus bordados, como conseguiria se manter no interior?

— Quanto tempo pretende ficar em Londres desta vez? — perguntou ela, mudando de assunto, já que não via solução para seu problema.

Percebendo a intenção da irmã, Hugh sorriu e respondeu:

— Tenho de voltar para a Saxônia no outono.

— Quer dizer que vai ficar todo esse tempo aqui? — Joanna sorriu.

— Preciso de distanciamento dos banhos de sangue.

— Mas vai acabar partindo... Precisa mesmo?

— Não posso ficar, Joanna — ele disse, repentina­mente melancólico. — E você sabe por quê.

— Papai sabe que está na Inglaterra?

— Acabei de chegar.

— Wexford fica a meio dia de viagem de Londres, Hugh. Não acha que deveria visitá-lo desta vez?

— Estranho você dizer isso, levando-se em, conta que não o vê há seis anos.

— Não foi escolha minha, como sabe. Você, entretan­to, pode escolher.

— Decidi ficar o mais longe possível daquele des­graçado enquanto estiver por aqui. — Foi a vez dele de mudar de assunto. — Como tem passado, Joanna? Diga a verdade.

Ela bem que gostaria de um ombro amigo. Todavia a reação do irmão ao saber de suas condições seria en­tregar-lhe todo o dinheiro que ganhara a muito custo no exterior. Já aceitara a ajuda dele uma vez, e jurara nunca mais aceitá-la. Sua situação precária era o resul­tado de suas próprias ações. Não tinha sido forçada a se casar com Prewitt. Fora uma decisão sua e, por isso, precisava encontrar uma saída por si só.

— Estou me virando bem — respondeu, cautelosa. — Eu... Não permitiram que eu fizesse parte da associa­ção dos comerciantes de tecidos, por isso não posso mais vender tecidos a metro.

— Ele lhe deixou algum dinheiro?

— Um pouco. — Desde a morte do marido, vivia o mais frugalmente possível, mas as reservas tinham acabado. Se não conseguisse reverter a situação logo, precisaria vender a loja, e acabaria sem ter onde morar.

— Tenho feito bordados para vender: laços, lenços, gargantilhas...

— E tem conseguido se manter dignamente com isso?

Joanna assentiu e abaixou o olhar ao levantar a ca­neca. Não queria encarar o irmão ao mentir.

— Não estou gostando disso. Detesto pensar em você sozinha aqui, trabalhando do amanhecer ao anoitecer só para sobreviver. Uma mulher como você não merece viver desse modo.

— Uma mulher como eu? Sou a viúva de um merca­dor de sedas. Um que nem era tão próspero. Estou acos­tumada a trabalhar; além disso, gosto de bordar.

— Você é a filha de um dos cavaleiros mais podero­sos da Inglaterra, Joanna. Deveria estar bordando por prazer, não para colocar comida à mesa. Deveria estar casada com um nobre, levando uma boa vida.

— Fiz a minha escolha há seis anos. Não escolhi um nobre, mas um comerciante. Agora tenho de arcar com as conseqüências.

— Você tem vinte e um anos. É jovem demais para se resignar à viuvez eterna. É uma mulher bela e ta­lentosa. Pode voltar a se casar, com um homem de seu nível desta vez... Alguém com um bom coração e que a ame. Não um belo demônio charmoso e sem honra que apenas queira usá-la.

As palavras "demônio charmoso" materializaram a imagem de Graeham Fox deitado seminu na cama de Prewitt, observando-a com olhos intensos. Prewitt tam­bém fora belo, e ela não conseguira resistir.

— Está tarde — Hugh observou ao se levantar. — Preciso ir. — Foi até o depósito pegar a mochila, e depois Joanna o acompanhou à porta. — Tranque tudo. Eu me preocupo com você... E espero que não tenha desistido de se casar. Quero dizer, se o homem certo aparecer e...

— Imagino que tenha alguém em mente.

— Talvez. — Cocou a barba por fazer, pensativo. — Lembra-se do segundo filho de lorde Suger, Robert? Éramos amigos quando jovens. O pai o incumbiu da pro­priedade em Ramswick.

— Sim, claro. — Sempre gostara de Robert. Até mes­mo flertara com a idéia de namorá-lo num determinado verão. — Mas ele é casado.

— Joan morreu afogada num acidente de barco no verão passado junto à filha mais velha. Ele me contou ontem. Passei por lá no caminho. Gillian só tinha dez anos, e ele a adorava. Foi ele quem tirou o corpo do rio. Robert chorou ao me contar a história.

— Meu Deus...

— Ele parece estar lidando bem com a situação. Disse que procura não pensar no acontecido, pois tem mais duas meninas para criar. Disse também que precisa de uma mãe para elas, uma do tipo certo.

— Então ele não se interessaria por mim.

— O "tipo certo" não significa uma herdeira mimada. Ele me disse que busca uma mulher de bom coração que cuide das meninas. Ele é um bom homem, Joanna, um pai devotado. Sei também que foi fiel a Joan. Talvez... eu deva trazê-lo para uma visita.

— Terá de trazer seu próprio vinho e precisa me avi­sar com antecedência para que eu possa tomar um ba­nho e... — Olhou para a saia puída com desgosto.

— Um conselho de irmão... Tire o véu quando eu o trouxer. Seus cabelos são seu melhor traço.

— Que tipo de viúva deixa a cabeça descoberta? Vou parecer uma meretriz.

— Vai ficar linda. — Hugh sorriu e a beijou no rosto. — Boa noite. Eu volto amanhã cedo.

— Não se esqueça da carroça! — ela gritou quando ele já se afastava.

— Deixe comigo. Graeham Fox logo sairá de sua vida.

— Ótimo — sussurrou ela, estremecendo.

Onde, diabos estou?, Graeham se perguntou ao abrir os olhos. Estava numa cama estreita em um quarto ilu­minado pelo luar vindo de duas janelinhas, uma do lado direito, outra atrás de si. A cabeça latejou ao virar de lado, a boca estava amarga. Estivera bebendo e por isso não sabia onde estava.

Viu rolos de seda amontoados numa prateleira, e as lembranças começaram a voltar... A esposa do mercador, o irmão dela, o cirurgião, a perna.

Sua perna. Estranho ela só começar a doer depois de se lembrar que ela estava quebrada. A dor era intensa, mas não conseguiu sobrepujar o motivo que o fizera des­pertar. Precisava se aliviar.

Sentou-se rápido demais, esquecendo-se das costelas machucadas, e teve de suprimir um gemido. No chão perto da cama havia um pote de barro com uma tampa. A mulher devia tê-lo colocado ali antes de ir dormir. Ela fora atenciosa, mas imaginar a adorável sra. Joanna esvaziar seu urinol não lhe parecia certo. Ela não era uma criada, e ele não era seu hóspede. Era um desco­nhecido que impusera sua presença. Ela não lhe devia nada, e mesmo assim o tratara com gentileza.

Segurara-lhe as mãos enquanto realinhavam seus ossos, sussurrando palavras de conforto com a voz enrouquecida. Ela não precisava ter feito aquilo.

Por isso, tinha de se levantar para ir até a latrina. Não devia ser um desafio tão grande, pois se lembrava de ter visto a casinha do lado de fora, bem ao lado da porta dos fundos.

A marreta que o ferira e que também lhe servira de muleta estava apoiada na parede ao seu lado. Esticou-se e, rangendo os dentes, ergueu-se lentamente; uma ta­refa um tanto complicada já que a tala ia do quadril ao tornozelo.

Sentia a perna em chamas àquela altura. A dor o perpassava, e ele se admirou por conseguir ficar de pé. Segurando a marreta com uma das mãos, apoiou-se à parede com a outra e prosseguiu aos poucos. A tontura da bebedeira só piorava a situação. Apoiou-se à porta para recuperar o fôlego, depois a destrancou e abriu. A luz do luar, viu a gata branca no telhado da cozinha. Trêmulo devido ao esforço, cambaleou até o reservado e conseguiu esvaziar a bexiga sem cair no buraco.

Voltou com esforço e conseguiu entrar sem tropeçar no degrau, mas quando ia fechar a porta atrás de si, a gata correu para dentro e colidiu com suas pernas, fazendo-o perder o equilíbrio. Caiu para a frente, levando as talas e a marreta consigo. Ali não havia palha para amortecer a queda, e a dor explodiu pelo seu corpo. Gritou injúrias ao bichano que se afastou sem se importar.

Deitado arfante no chão, esperou a dor diminuir an­tes de tentar se mexer. Então ouviu passos nas tábuas de madeira da escada.

— Sargento? Está tudo bem?

Ainda de frente para o chão, sustentou o corpo nos cotovelos, a dor provocando estremecimentos.

Deus, por favor, permita que minha perna não tenha ficado arruinada.

— Sargento?

Ouviu os passos abafados na palha e a cortina sendo afastada.

— Estou aqui — disse com esforço, deixando o corpo cair e desejando que ela não o encontrasse naque­le estado. — No corredor.

Os passos se aproximaram e depois a voz soou próxima.

— O que faz aqui atrás?

Não havia luz, e Joanna não passava de uma figura na escuridão.

— Caí — ele resmungou — ao voltar da latrina.

— Levantou-se e andou? Perdeu o juízo?

Graeham sentiu os dedos quentes avaliando sua po­sição, passando pelo rosto, ombro e braço. O toque era tão leve que ele pensou tê-lo imaginado.

Algo frio e macio o resvalou na lateral quando ela se pôs entre seu corpo caído e a parede. Seda. A camisola era de seda. Surpreendeu-se por um momento que uma mulher de condições modestas usasse roupas de dormir refinadas, mas logo recordou que ela era, afinal, a espo­sa de um mercador de sedas.

Fechou os olhos para desfrutar da sensação do toque dela, lembrando-se de que já fazia muito tempo desde a última vez em que estivera com uma mulher.

— Precisa voltar para a cama. Pode virar de costas? Coloque seu peso na perna boa.

Cerrando os dentes, Graeham virou de lado enquanto ela o ajudava com as talas. Sentiu um roçar macio no peito, que só podia ser dos cabelos dela.

— Consegue se sentar?

Bem que ele tentou, mas acabou caindo para trás no­vamente.

— Minhas costelas...

— Deixe-me ajudá-lo. — Ela se aproximou e colocou um braço ao redor de seu pescoço. Os cabelos longos o cobriram nos ombros e peito e o envolveram com uma fragrância doce que o fez se lembrar dos campos recém-plantados.

Graeham apoiou uma das mãos no chão e tentou pas­sar o outro braço em volta dela, mas calculando mal a distância, roçou numa elevação que devia ser um seio. Joanna prendeu a respiração e ficou imóvel. Ele reti­rou a mão, devagar, os dedos passando suavemente pela curva macia ao se afastarem. Sentiu o coração bater mais rápido. Imaginou se ela se levantaria e sairia, mas ela permaneceu ali. Perguntou-se se ela o expulsaria; não queria partir.

Em vez disso, ela tomou-lhe a mão e a pousou no ombro.

— Segure-se em mim. — Ele prendeu o fôlego quan­do ela o ajudou a se sentar. — Doeu?

Tudo doía.

— Está tudo bem. Só me dê um minuto. Graeham sentiu o calor do corpo feminino através da seda e percebeu que estavam no meio da noite, dois estranhos, abraçados na escuridão num lugar estreito, como amantes.

Talvez ela também tivesse percebido a mesma coisa, pois se afastou um pouco e se levantou.

— Vou ajudá-lo a se pôr de pé. — Segurando-o debai­xo dos braços, auxiliou-o. — Passe o braço pelos meus ombros e segure-se na parede com a outra mão.

Prosseguiram lentamente pelo corredor, Joanna incentivando-o com palavras de encorajamento. Ao chega­rem à cama, ela tremia pelo esforço de sustentá-lo.

Ele posicionou a perna imobilizada com as duas mãos e deixou-se cair sobre o travesseiro.

— Acha que se machucou mais na queda?

— Espero que não.

— Vou pegar a lamparina. Volto já.

Ao vê-la acender a lamparina, Graeham começou a juntar as peças do quebra-cabeça que era Joanna Chapman. Sua fala era refinada, mais adequada a uma nobre do que à esposa de um mercador. Ainda que agis­se de modo prático e competente, qualidades incomuns entre as bem-nascidas, ela se comportava de maneira que indicava uma boa educação. Sem mencionar o ir­mão, Hugh de Wexford, de conduta aristocrática e exce­lente domínio da espada.

Amparando a chama com a mão, ela voltou para o quartinho. Na luz amarelada, Graeham conseguiu vê-la com clareza pela primeira vez desde que ela descera as escadas. A visão o deixou hipnotizado.

Ela era... luminosa. De tirar o fôlego. Não eram ape­nas os cabelos, que de tão longos chegavam às coxas em douradas curvas sinuosas, tampouco o roupão de seda branca. Ela brilhava... O rosto, o pescoço, as mãos. Como alabastro iluminado por dentro.

Havia notado antes que era uma bela mulher, mes­mo com as roupas sérias e o lenço na cabeça. Ela tinha o tipo de rosto que fazia os homens se virarem para fitá-la. Os olhos castanhos eram profundos; as sobrancelhas, arqueadas de maneira dramática; os lábios, cheios e ro­sados. O queixo, assim como o do irmão, tinha uma leve covinha, como se um escultor tivesse tocado a argila, somente uma vez, de leve.

Sim, a havia considerado bonita, mas naquele mo­mento, envolta somente pela seda e com os cabelos sol­tos, era bela demais para se olhar. Se ele fosse Prewitt Chapman, trataria de ficar mais tempo em Londres.

Sentando-se na beirada da cama, ela deixou a lam­parina sobre um baú e recolheu os cabelos, sempre evi­tando fitá-lo. Sem graça, Graeham percebeu que a estivera encarando; abaixou o olhar quando ela se inclinou para avaliar a perna, o roupão de seda esticando-se na região dos seios de modo provocante. Não eram maiores do que a média, mas eram viçosos e arredondados, com os mamilos protuberantes.

Sentindo os primeiros sinais de excitação, ele fechou os olhos e, respirando fundo, recitou as declinações do latim, temeroso em mostrar uma ereção enquanto ela, zelosa, cuidava de seus ferimentos. Joanna Chapman não era uma das lavadeiras de lorde Gui. Era uma mu­lher casada. Acima de tudo, era uma pessoa que o rece­bera com gentileza e merecia ser tratada com conside­ração, não como um repositório de sua luxúria. Além do que, ele era um homem praticamente comprometido.

Seria melhor conter suas necessidades carnais até desposar Phillipa, o que aconteceria uma quinzena após seu retorno a Paris com Ada. Ela concordara com o casamento desde que pudesse prosseguir com os estudos, uma condição que nenhum de seus pretendentes parecera inclinado a aceitar, considerando lógica e filosofia incompatíveis com o sexo feminino.

Graeham, ciente do conselho de São Jerônimo de nunca olhar os dentes de um cavalo dado, não vira em­pecilhos e concordara de pronto. Em troca, lorde Gui de­cidira recompensá-lo com a propriedade em Oxfordshire, próxima à Universidade em formação de Oxford.

Em toda a sua vida, Graeham só quisera uma coisa, algo com o que até o mais simples aldeão tinha o direito de sonhar: um lar e uma família. Logo teria isso e muito mais: uma bela esposa, educada e agradável, e uma casa numa das regiões mais bucólicas de toda a Inglaterra. Depois de vinte e cinco anos considerando-se um intruso, um estranho tolerado, finalmente teria a sensação de pertencer a algum lugar, a alguém. Finalmente fica­ria contente, talvez feliz.

Nada poderia interferir no sucesso de sua missão. Nada.

— Está se sentindo bem, sargento?

Graeham abriu os olhos e viu que Joanna o encarava, com uma das mãos pousada na tala.

— Está com os punhos cerrados — ela observou ao cobri-lo com a manta.

Joanna voltou a atenção para as costelas, passando as mãos, longas e elegantes, com gentileza pelas ataduras. Graeham imaginou-as por baixo das cobertas, ten­tando desfazer o nó das ceroulas. Um gemido se formou em sua garganta.

— Estou machucando? — perguntou ela.

— De certa forma... — Uma ligeira risada vibrou no peito dele.

— Desculpe. — Ela pousou a mão no ombro forte. — Estou certa de que a queda não foi nada agradável, mas não acredito que tenha causado maiores danos, pois não vi nada de anormal.

— Isso é um alívio. Obrigado.

— Dormirá melhor se estiver no escuro.

Ela levantou-se para fechar a veneziana. O roupão se esticou com o movimento, contornando as curvas da cintura e do quadril, antes escondidas pela túnica azul.

Passando para a cabeceira da cama, fechou a janela que dava para o beco.

Quando se inclinou para apagar a chama sobre o baú, o roupão se abriu ligeiramente, revelando a curva do seio perolado. Estava claro que ela não vestia nada debaixo do roupão; ela devia dormir nua, ele pensou.

— Precisa de mais alguma coisa? — perguntou ela. Sim, meu Deus.

— Acho que não.

— Se precisar, é só chamar. — Fechou a cortina.

— Sra. Joanna?

Depois de uma pausa, a cortina voltou a se abrir.

— Pois não?

As palavras não costumavam lhe faltar, mas naquela noite...

— Obrigado. Foi... muita gentileza sua me aceitar aqui... Sei que estou lhe causando transtornos.

— De maneira alguma.

— Estaria no quinto sono se não fosse por mim. — Imaginou-a nua, os cabelos espalhados pelo travessei­ro e sentiu o desejo renovado. — A senhora é... muito altruísta.

— Não é nada difícil ser altruísta por apenas uma noite. Hugh o levará à hospedaria amanhã e então pas­sará a ser responsabilidade das freiras.

— Amanhã?

— Não foi o que pediu a Hugh? Pensei que...

— Sim — ele disse rapidamente. — Foi o que eu pedi. — Era o que deveria querer. Era o melhor a fazer.

— Há um hospital lá.

— Sim, eu sei. Fico contente em ir para lá.

— Boa noite, sargento.

— Boa noite, senhora.

 

— Sargento? — Joanna perguntou do outro lado da cortina na manhã seguinte. — Está acordado?

— Sim, pode entrar — Graeham respondeu.

Ela entrou, segurando uma bacia e um balde de água. Vestia uma roupa ainda mais disforme do que a do dia anterior e os cabelos tinham voltado para o esconderijo debaixo do lenço. Graeham achou que era triste uma mulher ter de esconder cabelos tão espetaculares sim­plesmente por ser casada.

— Achei que gostaria de se lavar antes de partir — disse ela.

— Obrigado, isso seria muito bom. — Ele se sentou devagar, com os dentes cerrados.

Ela depositou o balde no chão e a bacia no baú perto da cama. Dentro dela havia uma barra de sabonete e um pano. Depois de arrumar tudo, ofereceu sem encará-lo:

— Precisa de... ajuda... ou...

— Conseguirei me arranjar sozinho, obrigado. Joanna destrancou as janelas e as abriu, permitindo a entrada da luz da manhã.

— Está com fome? Fiz mingau de cereais. Não tenho cerveja para lhe oferecer, mas a água do poço é boa.

— Costumo comer somente ao meio-dia. Obrigado mesmo assim.

Ela assentiu sem olhá-lo, visivelmente desconcer­tada. Talvez o encontro noturno a tivesse incomodado tanto quanto a ele.

— Como está se sentindo hoje?

— Melhor. Só dói quando me mexo.

— Então tente não se mexer muito. Hugh vai trazer uma carreta para levá-lo; poderá ir deitado e...

— Uma carreta! Não vou chacoalhando pelas ruas de Londres numa carreta tal qual um condenado a cami­nho da forca.

— Não pode cavalgar.

— Diabos que... Perdão, senhora. É claro que consigo.

— É um homem irritante, sargento.

— Observação anotada. — Ele sorriu. — Porém não vou subir numa carreta.

— Pode discutir isso com Hugh quando ele chegar. — Joanna se virou para sair e seu olhar caiu sobre o urinol. — Isso precisa ser esvaziado?

— Não... Saí para usar a latrina há pouco...

— Saiu de novo? Depois do que aconteceu ontem à noite?

— Tomei cuidado.

— Como conseguiu? A marreta que usou para se apoiar ainda está perto da porta dos fundos.

— Usei aquela vassoura. — Ele apontou para um dos Cantos.

Joanna meneou a cabeça, a indignação transforman­do os olhos castanhos em dourados.

— Irritante e teimoso!

— Já me disseram isso também. Não se preocupe, não terá de me agüentar muito tempo mais.

Ela o encarou pela primeira vez naquela manhã, a expressão preocupada, talvez um pouco melancólica.

— Deus do céu! — A voz furiosa de um homem soou do lado de fora. — Ainda não o selou? Eu disse que es­cava atrasado!

Olhando pela janelinha de trás, Graeham viu Rolf Le Fever no quintal do estábulo, repreendendo um ruivo que colocava a sela num cavalo. Não conseguiu decidir o que parecia mais espalhafatoso: a túnica multicolorida de Le Fever ou a sela absurdamente adornada.

— Desculpe, senhor, mas...

— Termine logo para que eu possa sair daqui!

— Esse é o chefe da associação dos comerciantes de tecidos, Rolf Le Fever — informou Joanna. — Ele mora aqui atrás e, portanto, ouço suas ofensas diversas vezes ao dia, mesmo sem querer. Ainda bem que ele passa boa parte das manhãs nas lojas, assim tenho um pouco de paz.

— É para lá que ele vai agora?

— Não, ele costuma ir a pé até lá, pois fica bem perto.

Depois de selar o cavalo, o ruivo ajudou o amo a montar.

— Quem é o outro? — Graeham perguntou.

— O criado, o pobre Byram.

— Byram? A senhora tem certeza disso? — ele inda­gou, atônito.

— Claro. — Franziu a testa. — Por que pergunta?

— Nada, é que... — Ele se lembrou do encontro com o homem careca a noite anterior. — É possível que haja dois Byram trabalhando para Le Fever?

Joanna o encarou como se não tivesse ouvido bem.

— Dois Byram?

— Sim, sei que parece absurdo, mas...

— E é. Le Fever só tem um criado, além da cozinhei­ra e da arrumadeira. Por que acredita que possa haver outro Byram?

Graeham deu de ombros. Precisava tomar cuidado. Não queria que ela e o irmão suspeitassem que o ataque da noite anterior fosse outra coisa que não um assalto comum, já que não poderia expor o segredo do barão.

— Sim, é um absurdo, esqueça o que eu disse.

— Mas...

— Que casarão, não? — Graeham disse, tentando distraí-la.

À luz do dia, tinha ampla visão da casa. Pela janelinha, conseguia ver a cozinheira cantando na cozinha. As janelas do segundo andar eram mais amplas. A da esquerda era a do salão no qual estivera no dia anterior; na da direita, viu a criada, Aethel, afofar uma colcha; deviam ser os aposentos do dono da casa. As janelas do solário, no terceiro andar, estavam fechadas.

— É uma casa medonha — Joanna comentou. — No entanto, ele deve considerá-la maravilhosa. Ele tem... aspirações. Faz-se de nobre, mas acaba parecendo o bobo da corte.

Era por isso que ele se casara com Ada, para se ele­var socialmente. Não era de admirar que tivesse fica­do furioso ao descobrir o "segredo vergonhoso" de lorde Gui.

— Sabe se ele é casado? — Graeham perguntou com cautela.

— Sim, é, e a mulher é bem bonita.

Graeham mordeu a língua para conter a curiosidade. Seu casamento iminente com a gêmea de Ada estava atrelado a todo o resto, portanto, tinha que escondê-lo também.

— A senhora a conhece?

— De vista. Ela costumava trabalhar no jardim quando chegou de Paris no ano passado. Pelo que sei, ela vem apresentando defluxo desde o Natal. A filha da farmacêutica leva um tônico todos os dias, mas não parece estar surtindo efeito. Algumas pessoas são as­sim, ficam resfriadas o inverno inteiro e só melhoram na primavera.

— Já estamos na primavera — ele observou. — E o clima está bem ameno.

— Talvez ela apareça um dia desses. Já está na épo­ca de replantar o jardim.

Da janela que dava para o beco, Graeham ouviu um estalido se aproximando, sem dúvida o de um leproso. A pobre criatura, vestindo um manto de capuz e um chapéu de palha que disfarçava tanto a doença quan­to o sexo, apareceu com um bastão e as obrigatórias castanholas de madeira. Uma sacola quase vazia às costas devia conter todos os seus bens.

— Bom dia, Thomas. — Joanna se aproximou da janela.

O leproso parou e a olhou sorrindo.

— Bom dia, senhora. — A voz grossa era o único indicador de que aquela pessoa era um homem, visto que o rosto estava consumido pela doença. Um olho, completamente esbranquiçado, já não enxergava, e os lóbulos estavam todos ulcerados.

Contudo, o que mais desconcertou Graeham foi a total ausência de sobrancelhas. Já tinha visto muitas vítimas de doenças deformadoras e, mesmo assim, pre­cisou de muito esforço para não desviar o olhar.

— Procurei a senhora quando passei pela loja — Thomas informou. — Fiquei preocupado ao vê-la fe­chada. — Ele falava de maneira distinta, o que surpre­endeu Graeham.

— Estou um pouco atrasada hoje — ela explicou. O olhar dele caiu sobre Graeham.

— Vejo que está se aperfeiçoando na arte de cuidar dos necessitados...

O riso de Joanna tinha uma rouquidão desconcertante.

— Este é Graeham Fox, que se deparou com um pouco de má sorte ontem à noite. Sargento, deixe-me apresentá-lo Thomas, o harpista.

— Que já não toca mais a harpa — Thomas levantou as mãos disformes. — Por ter se deparado com um pouco de má sorte também... — Ele riu da própria piada. Graeham mais uma vez ficou sem saber o que dizer.

— Tenho mingau na cozinha — Joanna disse —, se é que já não queimou na panela. O sargento o recusou e os gatos não o comem. Vai acabar se perdendo se você não aceitar uma tigela.

Rindo e sacudindo a cabeça, Thomas soltou o sino que estava amarrado ao cinto e levantou a tigela, tam­bém presa. Para Graeham, disse:

— Ela tem um jeito de se expressar que nos faz acreditar que estamos lhe fazendo um favor, e não o contrário.

— E é verdade. Não estou em condições de desperdi­çar comida. Já vou encontrá-lo na cozinha.

— Muito obrigado, senhora. Tenha um bom dia, sargento.

— Bom dia — Graeham cumprimentou, vendo-o se afastar com dificuldade.

—Quantos anos acha que ele tem? — Joanna perguntou.

— Sessenta?

— Ele tem trinta e seis.

— Pobre homem. A senhora o alimenta todas as manhãs?

— Sim. E às vezes à tarde também quando as esmolas do dia não foram boas ou quando ele não consegue mais suportar as humilhações. Thomas é um homem orgulhoso. Era o harpista da Torre de Londres e tocava para o rei Henrique. Nunca mais voltará a tocar... Além de os dedos estarem deformados, ele não tem mais tato, nem nos pés. Um dia ele apareceu com o pé sangrando, pois tinha pisado em algo pontudo e nem mesmo tinha percebido. E no inverno passado, uma vela ateou fogo à túnica, mas ele só percebeu ao sentir o cheiro de queimado. Acabou com as costas cheias de bolhas.

— Não há nenhum leprosário no qual ele possa ficar?

— Há o São Egídio. Pelo que soube é um bom hospital, mesmo sendo destinado aos leprosos. Thomas, contudo, gosta de ser independente. Eu o entendo... — Suspirou. — Bem, ele está me esperando, tenho de ir. Precisa de mais alguma coisa antes que eu abra a loja?

Graeham cocou o queixo e disse:

— Uma navalha, se não for muito trabalho.

— Devo ter uma lá em cima, junto às coisas de meu marido. Posso pegá-la assim que alimentar Thomas.

Depois que ela fechou a cortina, Graeham se levan­tou com alguma dificuldade, tirou as ceroulas, ensaboou o pano e começou a se esfregar da cabeça aos pés. Um movimento chamou sua atenção: Joanna indo para a cozinha e depois voltando com uma concha cheia, colo­cando mingau na tigela de Thomas, que se sentara num barril perto da porta. Pelo visto, eles não conseguiam vê-lo; a janelinha era estreita e profunda, e seria difícil para alguém enxergá-lo da rua.

Viu que o pátio do estábulo de Le Fever estava de­serto. Na cozinha, a cozinheira rechonchuda continuava ocupada. A sala e o quarto do segundo andar estavam vazios, e as janelas do solário continuavam fechadas.

Então, o careca da noite anterior mentira sobre ser Byram. Ainda assim, era possível que ele e os compar­sas estivessem trabalhando a mando de Le Fever, pois o homem sabia seu nome e estava à sua espera. Só podia ser obra do mercador ambicioso que queria o dinheiro sem ter de libertar a esposa.

Ficou se perguntando se os ladrões tinham lhe en­tregado o dinheiro. Cinqüenta marcos era uma gran­de soma, tentação suficiente para fazê-los enfrentar a ira do patrão. Se fosse assim, eles desapareceriam, e Le Fever nunca descobriria que ele escapara da morte. Mesmo que tivessem entregado o dinheiro e admitido terem fracassado, o mercador poderia acreditar que ele fugira. Desde que ficasse escondido.

Graeham considerou a situação ao se enxugar. O destino, ao que parecia, o levara ao lugar perfeito para prosseguir com sua missão, mesmo estando ferido. Da janelinha do depósito, tinha ampla visão do que acon­tecia ao redor. Conseguia ver as janelas da casa de Le Fever e dos vizinhos sem nem sair da cama.

O mais prudente seria se recuperar ali mesmo. Na hospedaria, ficaria isolado do lado de fora dos muros da cidade. Ali, se agisse com astúcia, poderia até mesmo se certificar das condições de Ada e encontrar um modo de tirá-la da casa, apesar de seus ferimentos.

Sentando-se na beirada da cama e inclinando-se so­bre a bacia, despejou água nos cabelos e os ensaboou.

Escreveria a lorde Gui, narrando o acontecido. Deixaria claro que haveria atrasos, mas que cumpriria a missão. Mais do que tudo, tinha de assegurar ao barão que levaria a filha dele de volta a Paris assim que possí­vel. Falhar não era uma opção; tinha muito a perder.

 

Ajoelhando-se diante do grande baú aos pés da cama, Joanna o destrancou. Aquele era o baú de Prewitt, onde ele sempre mantivera seus pertences. Nunca tinha visto o conteúdo até receber a chave do emissário de Gênova. Depois de se recuperar do choque da notícia da morte do marido, juntara as roupas dele, lavara-as e as guardara ali.

Ao levantar a pesada tampa, sentiu o mesmo pesar e raiva que a haviam tomado fazia oito meses, da pri­meira vez que o abrira. O cheiro do marido, ou melhor, a mistura de ervas na qual ele se banhava, a assaltou, e ela sentiu lágrimas nos olhos.

Tinha adorado aquele aroma desde o primeiro encon­tro. Tudo em Prewitt chamara sua atenção: a aparência, o riso fácil, o charme, a consideração, os beijos e as pro­messas. Ele lançara um feitiço sobre ela. O fato de ele pertencer à classe mercante, e ela ser lady Joanna de Wexford não tinha importância. Nada mais importava além de se casarem e ficarem juntos para sempre.

Passou os dedos sobre o manto dobrado no topo.

Prewitt o usava no dia em que o vira pela primeira vez. Alguém tinha elogiado a peça, e ele explicara que o havia comprado na última viagem a Montpellier, para onde ia duas vezes ao ano a fim de comprar sedas da Sicília e de Bizâncio. Ela, que nunca saíra de Londres, ficara ad­mirada com os lugares que ele conhecia. Nunca estivera ao lado de um homem mais viajado, mais sofisticado, mais belo.

E ele queria se casar com ela.

Tantas vezes agradeceu a Deus por ter colocado Prewitt Chapman em sua vida, pelo menos no começo.

Retirou o manto e o colocou sobre a cama. No baú, havia túnicas, camisas, meias... Arrumou e separou al­gumas peças, e encontrou o espelho, a navalha, a pedra de amolar e um pente. Colocou esses itens ao lado das roupas que separara para Graeham e depois avistou a caixinha de madeira no fundo do baú.

A primeira vez em que abrira aquela caixa, oito me­ses atrás, fora como se tivesse levado um soco no estô­mago. Tinha chegado a pensar em jogá-la no Tâmisa, mas sua presença constante ao pé da cama serviria como um lembrete, a fim de que ela não se deixasse usar novamente. Abriu-a e viu, mais uma vez, os itens de uso feminino: meias, laços, brincos, batom, várias mechas de cabelos amarradas por fitas.

Uma das mechas era sua.

Fechou com força a caixa e colocou-a de volta no baú, junto com as outras roupas. Desceu as escadas e afastou a cortina do depósito.

— Trouxe algumas... — Parou no meio da frase, arfante.

Graeham estava na frente da cama, nu, exceto pela faixa no peito e as talas na perna, esfregando os cabelos com a toalha.

— Desculpe. — Fechou a cortina e voltou para a saleta. — Eu... eu... Não percebi que...

— Está tudo bem — ele disse. — Pronto, já me cobri, pode entrar.

Joanna encarou a cortina e apertou as roupas de en­contro ao peito. Fazia cinco anos que vira o corpo nu de Prewitt, mas o que se lembrava do marido estava bem longe do que acabara de ver no outro cômodo. Graeham Fox tinha o corpo de um soldado; era forte e vigoroso. Ele era um excelente exemplar masculino em todos os aspectos. Prewitt, embora muitos anos mais velho, teria parecido um adolescente em comparação.

— Senhora?

— Bem... Eu trouxe algumas roupas. Quero dizer, trouxe a navalha, como me pediu, mas também pensei que talvez... gostasse de...

Desistiu de tentar se explicar e afastou a cortina de novo. Graeham estava sentado na cama. A toalha mo­lhada cobria o quadril, a perna imobilizada estava esti­cada, e ele apoiava o pé no chão sobre o calcanhar.

Ela se aproximou e ofereceu a pilha de roupas.

Viu que ele tinha lavado os cabelos; as mechas ema­ranhadas cobriam-lhe a testa. O rosto, livre da sujeira do dia anterior, brilhava de vitalidade e havia algo qua­se aristocrático no nariz afilado e nos ossos proeminen­tes das faces. Ele parecia ainda mais jovem e belo.

Segurando as ceroulas, ele comentou:

— Perfeito, era disso que eu precisava para passar sobre as talas.

— Foi o que pensei.

Ele ainda parecia nu para ela, coberto apenas pela toalha. Joanna se policiava para olhá-lo no rosto. O pei­to parecia macio, e era coberto de músculos, as pernas mais longas que o normal. Ele se ajeitou na cama e a toalha desceu um pouco, revelando uma trilha de pelos que descia pelo abdômen.

— Preciso lhe pedir um favor. — Graeham depositou as roupas na cama e os outros itens sobre o baú. — Bem, na verdade seria mais uma proposta.

— Que tipo de proposta?

— Pelas coisas que me disse, imagino que esteja... numa situação delicada.

Aquele parecia um modo educado de perguntar se ela estava passando dificuldades. Joanna ergueu o quei­xo. Se não quisera partilhar seus problemas com Hugh, certamente não o faria com um estranho.

— De maneira alguma. Vivo de modo simples por escolha.

Graeham prendeu o seu olhar, revelando profundos olhos azuis.

— Posso ajudá-la. Tenho prata, como sabe. É claro que pertence ao meu senhor, mas ele me deu autoridade para gastá-la como fosse necessário. Parte dela pode ser sua. Naturalmente... precisarei de algo em troca.

Joanna o encarou, não acreditando no que ele estava sugerindo.

— Gostaria de ficar aqui — ele continuou quando ela permaneceu calada. — Morar aqui pelos próximos dois meses enquanto minha perna sara em vez de ir para a hospedaria.

— E só o que quer de mim? — Ela cruzou os braços sobre o peito.

— Bem... Não. Há outra coisa. Ela assentiu e empinou o queixo.

— Foi o que pensei.

— Como disse?

— Eu deveria ter usado o machado ontem à noite — disse ela com voz trêmula.

— O quê?

— Em vez disso, ofereci abrigo. E é assim que retri­bui? Insultando-me?

— Mas, como... — Graeham arregalou os olhos ao en­tender o que ela queria dizer. Levantou-se e a toalha caiu ao chão.

Joanna virou de costas e afastou a cortina.

— Não, não saia — ele disse rápido. — Sou um idio­ta... Não me expliquei direito. Jamais faria uma propos­ta dessas...

Joanna, ainda de costas, comentou:

— É um soldado. Não me diga que nunca pagou a uma mulher por seus favores antes.

Depois de uma ligeira pausa, ele disse:

— Nunca uma casada.

Ele não teria tais escrúpulos se soubesse que ela era viúva.

— Pode se virar, já me cobri.

Ela se virou e o encontrou com a toalha ao redor do quadril.

— O que quer, então?

Passando a mão pelos cabelos molhados, ele respondeu:

— Refeições, é claro, já que não poderei fazer nada além de ficar deitado. E talvez algumas pequenas ta­refas, embora não possa prever tudo de que precisarei. Prometo, porém, que tentarei não interferir em sua ro­tina e incomodá-la o mínimo possível.

Incomodá-la? A mera presença dele a incomodava. Vê-lo de pé, praticamente nu, em todo o seu esplendor masculino, fazia com que seu coração acelerasse em pâ­nico.

— Não sei, sargento. O que os vizinhos pensariam se soubesse que há um homem vivendo comigo?

Ele se sentou, acomodando a perna com uma careta de dor.

— Não posso acreditar que não haja mais mulheres casadas em Londres acolhendo hóspedes. Só em West Cheap deve haver uma centena.

E claro que havia; aquela era uma prática comum e muitas vezes a única fonte de renda.

— Sim, claro, mas tais arranjos levam a fofocas. Consegui manter uma reputação intocável todos esses anos, apesar das viagens freqüentes de meu marido. Não posso deixar de pensar que as pessoas comenta­riam, afinal é um homem jovem...

— Sou um jovem aleijado, ao menos pelos próximos meses. Talvez isso minimize as fofocas. Mas quem vai saber que estou aqui? Ficarei escondido na maior parte do tempo. Quero passar despercebido tanto quanto...

— Por quê? — ela o interrompeu. Ele desviou o olhar.

— Digamos que estou à procura de paz e solidão. Passei os últimos onze anos em alojamentos com outras centenas de homens, e antes disso no dormitório dos rapazes em Holy Trinity.

— Foi educado na Holy Trinity? — perguntou surpresa.

O monastério agostiniano, colado aos muros do lado norte da cidade, oferecia uma das melhores escolas da Inglaterra. Os cidadãos mais influentes mandavam os filhos para lá, mas eles não costumavam seguir a car­reira militar.

— Cresci lá, desde a primeira infância até os cator­ze anos, quando fui levado a Beauvais para servir a lorde Gui.

— Desde a infância! Eu... eu achei que fosse somente uma escola. Não sabia que aceitavam bebês.

— Normalmente não. — O olhar dele se anuviou. — Eu fui a exceção. Este — ele indicou o depósito com um gesto — é o primeiro quarto que tenho só para mim.

— Não é lá grande coisa — ela comentou.

— Mas seria só meu. A privacidade é rara e preciosa para mim.

— Se é privacidade o que procura, vai acabar se de­cepcionando. As pessoas passam pelo beco o tempo in­teiro e gostam de olhar pelas janelas.

— Posso fechá-las, se desejar. — Graeham levantou a bolsa de dinheiro e puxou o barbante que a fechava. — Pago quatro xelins pelos dois meses de casa e comida.

— Quatro xelins — Joanna sussurrou. — E muita coisa...

— Gui de Beauvais é um homem rico — ele disse ao colocar as moedas sobre o baú e começar a contá-las — e generoso. Ele haveria de querer que eu a recompensas­se bem. E, como disse, eu estaria pagando por serviços extras também.

— Sim... — Ela não conseguia desviar os olhos das moedas.

— Na verdade, preciso escrever uma carta ao barão para que ele saiba onde estou. Se puder providenciar pergaminho, tinta, pena e cera para selar a carta, eu ficaria muito grato.

— Sim, claro.

Ele pegou os centavos do topo do baú e os entregou a Joanna. Quatro xelins. Ela nunca tivera tanto dinheiro de uma só vez nas mãos. A maioria de suas vendas era na base da troca. Aquele montante a manteria por um bom tempo se soubesse economizar. Com ele, não teria mais de vender a loja, pelo menos num futuro próximo.

Ele a encarava com olhos límpidos, e ela deu um pas­so para a frente, estendendo as mãos. As moedas eram frias e pesadas e, de repente, não tinha como guardá-las. A bolsa, vazia obviamente, pendia em seu cinto, mas não conseguia abri-la com as mãos ocupadas.

— Deixe-me ajudá-la. — Graeham se esticou e co­locou os dedos dentro da bolsinha, abrindo-a. Parecia estranho e íntimo tê-lo tão perto. Talvez essa sensação se devesse a seu estado de seminudez.

Com cuidado para não deixá-las cair, Joanna colocou as moedas dentro da bolsa.

— Gostaria também de um canivete e cordão, por favor.

— Tem certeza de que precisa somente de um pergaminho? E a sua família? Não tem uma esposa em Beauvais?

A maioria dos militares era solteira, mas havia exce­ções. Porém, um homem casado continuaria a viver em alojamentos? A vida da esposa de um militar devia ser ainda mais difícil do que a da viúva de um mercador.

Graeham desviou os olhos e afastou os cabelos da testa mais uma vez. Pegando o pente de Prewitt, passou as unhas pelos dentes do objeto.

— Não sou casado... Sou... mais ou menos... Quero dizer, sou sozinho. Não tenho família.

— Nem uma namorada?

— Não.

— E os parentes em Oxfordshire? Disse que ia visitá-los.

— Eles não sabiam que eu estava a caminho. Não preciso lhes escrever.

— Muito bem, trarei o que me pede, mas antes tenho de abrir a loja.

— Sim, claro. — Quando ela abriu a cortina, ele cha­mou: — Senhora?

Ela se virou para encará-lo.

Graeham fez um gesto com o pente para os pertences de Prewitt.

— Tem certeza de que posso usar as coisas de seu marido? Ele não vai se importar? — O olhar dele era tão penetrante que ela teve de desviar o seu.

— Não — ela respondeu ao se virar para sair. — Estou certa de que ele não se importará.

Joanna abria as janelas da loja quando Hugh apare­ceu com uma carreta de duas rodas.

— Bom dia, irmãzinha.

— Hugh. — Joanna acenou distraída.

Ele freou as mulas atreladas à carreta, desceu e deu-lhe um beijo nas faces.

— Linda manhã, não? Não há uma nuvem no céu.

Ela murmurou algo ininteligível. Hugh segurou a ve­neziana superior enquanto a irmã a firmava com duas varas, refreando um bocejo.

— Espero que nosso novo amigo não tenha causado transtornos.

A moça, atarefada com a montagem da barraca, não respondeu. Hugh terminou de ajudá-la e a seguiu para dentro da loja.

— E então?

Joanna se abaixou para destrancar um dos baús e perguntou:

— Então o quê? — Ela pegou uma peça de seda bor­dada na barra e a estendeu no balcão.

— Ele causou problemas? — Tentando ser útil, Hugh pegou um emaranhado de fitas e as colocou sobre a seda.

Revirando os olhos, ela separou as fitas e as dispôs ordenadamente.

— Nada relevante.

O que deixava implícito que algo irrelevante tinha acontecido. Hugh, porém, bem sabia que de nada adian­tava tentar forçar o assunto.

— Já vou buscá-lo para tirá-lo de seu caminho.

Ela, contudo, o deteve, segurando-o pela túnica.

— Ele vai ficar. Foi perda de tempo trazer a carre­ta. Ele me ofereceu quatro xelins pelo aluguel do de­pósito pelos próximos dois meses e não pude recusar. — Desviando os olhos, completou: — Sinto muito.

Hugh se apoiou à parede, cocando o queixo.

— Não foi problema algum, mas fico me perguntan­do... Bem, vai viver sozinha com o homem por dois me­ses e nem o conhece direito.

— Foi você quem o trouxe para cá. — Ela se virou para encará-lo. — Não se lembra de que foi você quem me convenceu a deixá-lo ficar? Ele é um homem decente, você disse.

— Disse que ele parecia ser decente.

— Você disse que tinha certeza de que ele era inofen­sivo. Bem, agora esse homem inofensivo e decente me ofereceu quatro xelins para dormir no depósito, Hugh, e ao diabo com as convenções. Farei o que bem entender.

— Desde quando minha bem-educada irmã usa esse tipo de linguagem?

— Desde que deixei de ser uma dama e passei a ser a esposa, ou a viúva, de um mercador de seda. E um que nem...

— Era muito próspero, eu sei...

— Há outra coisa. O sargento acredita que Prewitt ainda esteja vivo. Agradeceria se você não desmentisse isso.

Hugh fechou os olhos e massageou a testa, que come-Içava a latejar.

— E por que, exatamente, ele acredita nisso?

— Porque eu não contei que ele tinha morrido, oras.

— E por que...

— Porque é mais sábio deixá-lo acreditar que sou uma mulher casada.

Hugh reabriu os olhos e a viu encarando-o, com as mãos nos quadris. Joanna relanceou o olhar para a cor­tina de couro que dava para os fundos e abaixou a voz.

— Lembra-se do que me disse na noite passada, so­bre como o casamento protege as mulheres contra avan­ços indesejáveis?

— Acredita que Graeham a importunaria com avan­ços indesejáveis se não achasse que é casada?

— Eu... não sei.

Ele a segurou pelo queixo e a forçou a enfrentá-lo.

— O que houve ontem à noite?

— Nada importante — ela respondeu resoluta.

— Ele tentou...

Ela se desvencilhou e rebateu.

— Não. Ele não fez nada. Só acho melhor ele não co­meçar a ter idéias. Ele... Ele não é o tipo de homem que eu deva encorajar.

Aquilo era verdade, e Hugh sentiu-se reconfortado em saber que a irmã tinha juízo. Graeham Fox, não im­portando seu caráter, era um soldado, sem bens nem fu­turo. Ele era o último tipo de homem com quem Joanna deveria se envolver, dada sua atual situação financeira. Era óbvio que ela estava sem dinheiro, por mais que negasse. Uma mulher que estivesse vivendo bem jamais acenderia lamparinas com banha, e teria vinho ou cer­veja para oferecer.

Sabia que ela não aceitaria mais ajuda sua, pois tinha deixado isso bem claro seis anos antes. Talvez não fosse má idéia alugar o quarto para o sargento. Os quatro xelins a manteriam com dignidade até que ele encontrasse o marido ideal para ela. Mesmo que Graeham fosse do tipo que gostava de tirar vantagem, o que ele duvidava, os ferimentos eram tão graves que o deixariam bem inofensivo.

Pelo menos por enquanto. E depois? Seria melhor ter uma boa conversa com o homem, para deixar as coisas claras.

— Muito bem — concordou —, vou fazer como me pede, já que é por uma boa causa. Só espero que você consiga manter a farsa; nunca foi uma boa mentirosa.

— Eu não estaria mentindo — disse ela indignada.

— Quero dizer, eu nunca afirmei que meu marido esta­va vivo, então...

— Continua sendo uma mentira, Joanna. — Deu um tapinha nas costas da irmã. — Pelo menos seja honesta consigo mesma.

Joanna abriu a boca para contestar, mas Hugh indi­cou a chegada de uma cliente, o que a fez se virar com um sorriso nos lábios.

Hugh foi para o fundo da casa e bateu no batente da porta do depósito.

— Não precisa ter medo, senhora — Graeham disse. — Desta vez não estou nu.

Depois de um instante de hesitação, Hugh afastou a cortina e entrou. Graeham, sentado na beira da cama, penteando os cabelos, pareceu confuso ao vê-lo.

— Hugh, pensei que fosse...

— Evidentemente.

A seu favor, Graeham não se pôs a explicar o comen­tário sobre a sua nudez.

— Trouxe a carreta?

— Sim. — Hugh virou um barril e se sentou diante de Graeham.

— Sua irmã já lhe disse que não preciso mais?

— Disse.

Graeham pegou a bolsa de dinheiro com cujo barbante Petronilla brincava e disse:

— Deixe-me pagar os gastos com o aluguel.

— Um amigo me emprestou.

Observando a expressão de Hugh, Graeham comentou:

— Desaprova minha permanência nesta casa?

— Não importa o que eu penso. Joanna é uma mu­lher independente. Sempre fez o que quis.

— Então desaprova de fato.

— A verdade é que me sinto dividido. Por um lado, estou preocupado com minha irmã, com a felicidade e a reputação dela. Por outro, não consigo enxergá-lo como alguém capaz de se aproveitar da confiança dela... E da minha. Já lutei ao lado de muitos homens e gosto de acreditar que consigo discernir o caráter das pessoas.

— Você é um mercenário, não?

— Um cavaleiro assalariado. Brando a minha espada para aquele que pagar melhor.

As sobrancelhas de Graeham se ergueram, e Hugh sabia o que ele estava pensando: como um cavalei­ro tinha uma irmã que vivia em cima de uma loja em West Cheap?

Notou que o sargento tinha se lavado e que usava outro tipo de roupa.

— Essas são as roupas de Prewitt?

— Sim, sua irmã é muito generosa.

— Joanna é uma mulher de bom coração. Sempre foi assim. Desde garota cuidava dos animais necessitados.

Graeham assentiu, os olhos fixos em algo além da cortina. Hugh viu que o sargento tinha plena visão da casa da irmã. Na realidade, pela janela da loja, conseguia ver a rua Woods até a farmácia, onde uma moça ruiva pesava pós numa balança. Não era a garota, contudo, que prendia a atenção de Graeham, Hugh sabia. Era Joanna, destacada pela luz da manhã, segurando uma fita para que a cliente a examinasse. Os movimentos graciosos mais se pareciam aos de uma dança no salão do castelo em Wexford.

O sargento ainda a examinava, com o pente esqueci­do nas mãos, quando comentou:

— Este não é o mundo dela.

— Não, ela não pertence a este lugar — o irmão concordou.

— Então, o que ela faz aqui?

— Ela se casou abaixo de sua condição social.

— Prewitt? — Diante da anuência do loiro, Graeham comentou: — Ela deve amá-lo muito.

Hugh refletiu que de nada adiantaria explicar que mais do que amor o que a conduzira ao casamento fora a ingenuidade e o desespero. Os muitos defeitos de Prewitt só tinham se revelado tarde demais, e a Joanna não interessava que o sargento soubesse da verdade.

Graeham ainda acreditava que Prewitt estivesse vivo e isso a protegeria, caso ele considerasse transpor certos limites. Essa proteção deixaria de existir se Hugh lhe contasse que o interesse que Prewitt um dia nutri­ra por Joanna desaparecera dias após as bodas. Mesmo que estivesse vivo, Hugh duvidava que o cunhado de­fendesse a honra da irmã caso necessário.

— Sim — Hugh concordou sem levantar o olhar. — Imagino que ela o ame muito.

— Então por que... — O olhar se desviou para a cama, obviamente questionando os motivos que leva­vam Prewitt a dormir naquele cômodo. — Não, não é da minha conta.

— Não, não é. — Fazendo uma careta, Hugh pegou a navalha de Prewitt e pôs-se a amolá-la.

Depois de um instante de silêncio, Graeham per­guntou:

— Ela trabalha sozinha na loja?

— Sim. Prewitt nunca gostou da parte da venda e, a bem da verdade, raramente está em casa. Joanna se saiu muito bem como lojista.

— Então por que ela está tão... — Graeham colocou o pente sobre o baú e passou os dedos pelos cabelos. — Desculpe. Pareço cheio de perguntas inoportunas hoje.

— Por que ela parece tão pobre? Imagino que seja porque a maioria das vendas seja na base da troca, por­tanto, é impossível guardar algum dinheiro. Além disso, Prewitt, bem... Ele está afastado há algum tempo.

Graeham molhou as mãos e começou a fazer espuma.

— Fiquei pensando por que ela não vende tecidos por metro. Imagino que esteja esperando o regresso do marido.

— Deve ser isso — Hugh disse sem encará-lo. Como a irmã, ele não era adepto a mentiras.

— Uma pena... — Graeham disse ao passar a espu­ma na barba crescida — para uma mulher ficar longe do marido por tanto tempo.

— Ela não está sozinha agora; eu estou aqui. — Hugh abaixou a pedra de amolar e passou o dedo pelo fio da navalha que, naquele momento, estava tão afiada quan­to a sua espada. — Se qualquer homem tentar tirar vantagem dela — prendeu o olhar de Graeham numa mensagem velada —, eu terei de capá-lo. — Estendeu a navalha para o sargento.

— Não precisa se preocupar comigo. — Ajustando o espelhinho, ele começou a se barbear com muita atenção.

— Não é nada pessoal. Eu até fui com a sua cara — Hugh disse.

— E eu com a sua. — Graeham limpou a navalha na toalha. — Salvou minha vida; eu jamais retribuiria denegrindo a reputação de sua irmã.

— Precisa entender minha preocupação. Viverão sob o mesmo teto por dois meses ou mais, e ela é uma bela mulher.

— Ela, é casada. Costumo ficar longe de mulheres assim. — Graeham contorceu o rosto para barbear o queixo.

Joanna estava certa em manter segredo sobre a morte de Prewitt, e Hugh teria de compactuar com a história, por mais desconfortável que se sentisse a esse respeito.

— Ora essa! — Uma voz feminina veio do beco. — Vejam só quem voltou!

Hugh olhou pela janela e viu uma prostituta de olhos amendoados, num vestido vermelho provocante, espiando por entre as grades.

— Leoda. — Hugh se levantou e se aproximou da janela. Ela ofereceu a face, que ele beijou, notando que ela ainda usava o mesmo perfume adocicado. Parecia ter envelhecido no último ano, ou talvez assim pensas­se por nunca tê-la visto à luz do dia. De qualquer for­ma, Leoda continuava sendo uma das meretrizes mais belas de Londres. — Não é muito cedo para você estar de pé?

— Passei a noite com um cliente. — Ela bocejou. — Quando acordei, ele tinha sumido sem nem ter me pagado... E ele se aproveitou de mim duas vezes, o mal­dito... Vou voltar para o meu quarto, mas antes quero ver se minha senhoria me cede um pouco de pão; estou morrendo de fome.

— Ainda está morando naquele sótão da rua Milk?

— Sim. — Com um olhar provocante, passou a mão pelas grades e o acariciou nos lábios. — Precisa me visi­tar um dia desses para que eu demonstre o quanto senti sua falta.

— E um convite tentador.

Desviando o olhar para Graeham, ela o avaliou enquanto ele limpava o rosto recém-barbeado com a toalha.

— E quem é esse? Um amigo seu? Que lindos olhos...

— Graeham está alugando este quarto de minha irmã, Joanna.

— Pode levá-lo com você, se quiser. A três nos diver­tiremos mais.

— Quem dera — Graeham disse. — Não creio que eu consiga chegar lá. — Levantou a perna da ceroula para mostrar a tala.

— Coitadinho... Bem, se não pode ir até Leoda, tem de deixar Leoda vir até você.

Graeham olhou para a frente da casa, e Hugh seguiu seu olhar. Lá estava Joanna, conversando com um tran­seunte sem parar o bordado.

— Aqui não, seria... — Graeham meneou a cabeça. — Não.

— Ah, a irmã. Você e ela...

— Não — disseram Graeham e Hugh ao mesmo tempo.

Leoda olhou de um para outro, parecendo se divertir.

— Bem, se mudar de idéia, passo por este beco todas as noites. Só precisa amarrar um pedaço de barbante na veneziana para que eu saiba. Ah, deixe o ferrolho da cozinha aberto; entrarei sem fazer barulho.

— Não acho que...

— Cobro dois centavos pelo de sempre, um extra se o seu pedido for especial. — Olhou-o de alto a baixo. — Sir Hugh, venha me ver. Precisamos recuperar o tem­po perdido.

Hugh curvou-se e disse:

— Mal posso esperar.

— Seu mentiroso... — Ela lançou um beijo e se afastou.

— Espere, Leoda! — Graeham a chamou.

Hugh o olhou curioso quando o viu pegar a bolsa de moedas. Leoda reapareceu na janela, com um sorriso de satisfação quando Graeham estendeu quatro moedas para que Hugh as entregasse.

— Já mudou de idéia?

— Quatro centavos... Não foi o que o homem desta noite ficou lhe devendo?

— Está pagando por ele? — perguntou curiosa. Graeham deu de ombros.

— Uma bela mulher como você não deveria mendi­gar o café da manhã.

Leoda o encarou surpresa e depois guardou, as moedas.

— Estarei esperando pelo barbante... Quando ela partiu, Hugh riu e meneou a cabeça.

— Agora terá de ir para a cama com ela, pois ela não o deixará em paz.

— Não pode estar falando sério.

— Sei que ela está um pouco madura, mas vem ga­nhando a vida desse modo há bastante tempo e sabe o que faz. Pelo modo como o olhou, ficará satisfeita em servi-lo da melhor maneira.

— Não é pela idade dela. — Graeham balançou a cabeça em descrença. — Ora, Hugh, num minuto está ameaçando me capar se eu tirar proveito da hospitali­dade de sua irmã; no instante seguinte sugere que eu convide uma prostituta para a casa dela.

— Faça isso tarde da noite, e Joanna jamais saberá.

— Seu senso de retidão é bem estranho...

— Veja bem... — Hugh voltou a se sentar. — Sei que prometeu manter distância de Joanna e me parece um homem de palavra, mas, por experiência própria, sei que abstinência prolongada, quando por força das cir­cunstâncias e não por livre escolha, tende a deixar os homens sem escrúpulos.

— Dê-me o benefício da dúvida quanto ao meu auto-controle.

— Não sou cego, vi como a observa.

Graeham sentiu um calor lhe subir às faces.

— A preocupação fraterna está fazendo com que veja coisas.

— Como é possível que um homem normal viva sob o mesmo teto que uma bela mulher e não se sinta tenta­do? Eu ficaria muito mais tranqüilo quanto às suas boas intenções se amarrasse um barbante na janela de vez em quando. Além do mais, não é saudável ficar tanto tempo sem se aliviar.

— Pensarei a respeito.

— Você só está dizendo isso para que eu pare de amolá-lo.

— Há alguma coisa que eu possa dizer que fará com que isso aconteça?

— Acho que não. Graeham sorriu, concluindo:

— Acho que esses dois meses serão bem longos...

— Serão mesmo se insistir em se comportar como um monge. Bem, vou fazer uma visitinha a Leoda hoje à tarde... Ela fica inspirada quando sente saudades — Hugh disse, sorrindo. — Posso pedir para que passe aqui hoje à noite.

— Não. Mas há algo que poderia fazer por mim quando tiver a oportunidade. Duas coisas, na verdade. Quando passar perto da São Bartolomeu, poderia pegar minhas coisas?

— Com prazer.

— E ainda vendem cavalos na Smithfield às sextas-feiras?

— Acredito que sim.

O mercado ao norte da cidade era o ponto alto da se­mana para a maioria das pessoas em Londres.

— Tenho uma égua no estábulo da São Bartolomeu. Se pudesse vendê-la para mim, eu agradeceria.

— Uma égua... — Joanna comentou da soleira da porta, segurando os artigos de papelaria pedidos ante­riormente. — Não me pareceu ser o tipo de homem que cavalga éguas, sargento.

Parecendo embaraçado, Graeham disse:

— E... uma longa história. Isso é para mim?

— Sim — concordou ela, dispondo os itens sobre o baú. — Este barbante não é o mais adequado para fe­char uma carta, mas foi o melhor que pude arranjar.

— Está perfeito, obrigado.

Ela encarou Graeham com uma intensidade que des­concertou Hugh.

— Parece diferente — disse ela.

— Eu me barbeei — ele respondeu, sem desprender os olhos.

Ela assentiu e notou a mudança de cor nos cabelos do sargento. Na noite anterior, pareciam escuros, porém depois de limpos revelavam-se castanhos com um bri­lho arruivado. Parecia pronta a fazer algum comentário, mas relanceou o olhar para a loja, onde viu duas mulheres.

— Tenho de ir lá ver o que elas precisam. Volto mais tarde para esvaziar a bacia e ver se aceita algo para comer.

Depois que ela saiu, Hugh disse:

— Também preciso ir, pois prometi devolver logo a carreta.

— Obrigado por sua ajuda, Hugh. Quanto ao seu con­selho no que se refere à Leoda... — Ele meneou a cabe­ça, sorrindo.

Usando o canivete, Hugh cortou um pedaço de bar­bante e o entregou a Graeham.

— Pense a respeito — disse e foi embora.

 

Graeham interrompeu a segunda leitura do romance de Wace, Roman de Brut, automaticamente desviando os olhos para a figura delgada de Joanna na bancada da loja, mostrando seus produtos a uma freguesa.

Uma semana havia se passado, e ele ainda não se cansara de observá-la ocupada em seus afazeres diá­rios. Gostava do modo como ela se movia, da elegância impensada de seus gestos. Apreciava a rouquidão da voz que conversava amigavelmente com os transeuntes, ainda que ela não parasse de bordar. E, mais do que tudo, se deliciava com o perfume primaveril que per­meava o cômodo toda vez que ali ela passava, o que não acontecia com a freqüência desejada.

Sua perna ainda doía, bem como as costelas, mas a dor já não era excruciante. O cirurgião o visitara no dia anterior para verificar as talas e aproveitara para lhe vender um par de muletas; uma melhora incrível da marreta e da vassoura que ele usava eventualmente. Contudo, como não podia mostrar-se na rua, as muletas continuavam apoiadas à parede na maior parte do tempo.

Usando o barbante que Hugh lhe entregara para con­vocar Leoda, marcou a página e fechou o livro. Deixou-o em cima dos outros volumes, uma mistura de história, poesia e narrativas épicas, comprados pelo amigo numa loja de usados.

Com exceção da ameaça de emasculação caso se apro­veitasse de Joanna, Hugh vinha se mostrando um bom companheiro. Durante o dia, quando não estava com a irmã, parecia mais do que contente em ajudá-lo em algu­ma tarefa. A noite ocupava-se como qualquer outro sol­dado de folga, farreando e entretendo-se na companhia de mulheres fáceis; ele e os amigos sempre estavam um passo à frente das tropas designadas a deixar as ruas londrinas vazias depois do toque de recolher. Graeham ouvia com inveja algumas das aventuras, pensando que, se não estivesse preso à cama, já teria participado de algumas delas.

Vozes exaltadas de uma casa vizinha chamaram sua atenção. Mais uma vez, o homem encorpado de aparên­cia abastada estava aos gritos com um jovem de cabelos escuros. As brigas eram diárias e, naquele dia, a mulher tentava apaziguar os ânimos do marido e do filho.

Graeham estava cansado de ouvi-los discutir. Não agüentava mais ouvir os gritos dos vendedores ambu­lantes na rua, nem o ruído das rodas das carroças ou o grunhir dos porcos. Não suportava mais ler os mesmos livros. Estava cansado de ficar deitado como um inváli­do enquanto sua missão o aguardava.

A única coisa que ainda gostava de fazer era obser­var Joanna. A sua fascinação não tinha nada a ver com o tédio. Voltou a olhá-la. Dessa vez, ela entregava um pacote a uma mulher que colocava um fardo, parecido a um monte de velas, em cima do balcão.

Além dos livros, havia pouco com que se distrair. Decidira se recuperar ali por causa da localização, mas, até o momento, suas observações da casa de Le Fever ti­nham sido de pouca ajuda. Byram, Aethel e a cozinheira pareciam executar bem suas funções, embora o patrão sempre encontrasse motivos para reclamar de alguma coisa. O mercador parecia especialmente incomodado quando via Byram flertar com a cozinheira, e Graeham se perguntava se o homem fazia idéia de que, assim que saía de casa, os dois escapavam para o estábulo, voltan­do mais tarde desgrenhados e cheios de palha.

Às tardes, Le Fever trabalhava em casa, recebendo homens, comerciantes provavelmente, e documentos e dinheiro trocavam de mãos.

A filha da farmacêutica, Olive, ia todos os dias à casa entregar o tônico de Ada. Naqueles momentos, Graeham costumava encostar as venezianas para que ela não o visse.

Joanna não exagerara ao dizer que as pessoas gos­tavam de espiar pelas janelas. Na maioria das vezes, ele não se importava com a intromissão. Na verdade, as conversas que mantinha com o leproso Thomas a respeito de história e literatura eram o ponto alto de seus dias. Até mesmo Leoda era uma distração quando parava para conversar. Não se importava que os dois soubessem de sua estada ali, pois eles não conheciam seus reais interesses. Olive, por outro lado, o vira na casa de Le Fever, e só Deus sabia o que ela tinha ouvido ou suposto. Não poderia ser visto pela ruivinha.

Ada Le Fever não aparecera, ainda que os últimos dias tivessem sido ensolarados e agradáveis, levando os moradores do quarteirão aos quintais para os primeiros plantios de ervas e hortaliças. As janelas do terceiro andar estavam sempre fechadas, e o único indício de que alguém ocupava aquele cômodo era a luz amarelada de uma vela no início da tarde, apagada ao som dos sinos da igreja mais próxima ao cair da noite.

O bater da porta de Le Fever na saída de Olive cha­mou a atenção de Graeham, que se encolheu um pouco na cama, embora a moça não tivesse por que olhar em sua direção.

— Olive — a voz de um jovem chamou no beco. Graeham vislumbrou duas silhuetas pelas frestas da veneziana.

— Damian, o que está fazendo aqui? — ela pergun­tou com suavidade.

— Estou esperando por você.

Petronilla, que tinha escolhido aquele momento para se aconchegar a Graeham, miou alto. Olive arfou, assustada.

— É só um gato — o rapaz garantiu. — Olive, preciso falar com você.

— Não deveria. E se o seu pai o vir?

Outro miado. Para silenciar a gata, Graeham come­çou a afagá-la.

— Não me importo com o que meu pai pensa.

— Então não passa de um tolo.

— Talvez eu seja. Mas o que ele exige de mim... Não importa. Nada me importa além de você.

— Eu não... — Ela respirou fundo e prosseguiu: — Não sou o que você acredita que eu seja. Há certas coi­sas a meu respeito que eu jamais poderia revelar.

— Tenho olhos e ouvidos, Olive. Não há nada que possa me dizer que eu já não tenha entendido.

— Oh, meu Deus... — ela murmurou, a voz emocionada.

— Eu te amo, mesmo assim. — A voz suave do jovem mal se podia ouvir.

— Deus, não... — Olive estava à beira das lágrimas. — Não pode... Eu não acredito.

— Olive, nada mais importa a não ser nós dois. Eu te amo.

— Não... não... Nunca poderemos ficar juntos. Não entende? — Ela soluçou. — Deixe-me em paz!

— Olive! Por favor, espere!

Passos rápidos desceram o beco na direção da rua Woods. Depois disso, um profundo suspiro e uma imprecação, seguidos de passos na direção oposta. Pela janela dos fundos, Graeham viu uma figura vestida num man­to escuro e chapéu de feltro seguindo para a rua Milk.

— Veja! — Joanna mostrou as velas que a freguesa lhe dera. Petronilla pulou da cama e foi se esfregar nos tornozelos da dona. — Vendi um lenço para a fabricante de velas, e ela me pagou em mercadoria. Muito melhor do que sebo para as lamparinas, não?

— Excelente — Graeham respondeu distraído, com o olhar perdido.

Joanna acompanhou a direção de seu olhar e se de­parou com a jovem que corria para a rua Woods. O ca­puz do manto verde caíra, revelando os cabelos ruivos.

— Aquela é Olive, a filha da farmacêutica. — Com um olhar repleto de significados, acrescentou: — E uma bela garota.

Graeham se desconcentrou e, olhando-a, perguntou:

— É mesmo?

— Não foi isso que o levou a encará-la?

— Na verdade, não. Ela... está triste. Eu a ouvi con­versando com um jovem no beco, um pretendente, pelo que pude entender. Ela o repeliu.

—É assim que passa seu tempo, sargento? Espionando a conversa das pessoas?

— É uma maneira de o tempo passar mais rápido... — Com a expressão séria, disse: — Ela fugiu chorando.

— Coitadinha. — Joanna se virou e olhou para a farmácia. — A vida dela não tem sido fácil nos últimos tempos. Acho melhor eu conversar com ela. Quem sabe amanhã antes da feira.

— Vai ao mercado?

— Sim, Hugh vai vender sua égua no mercado de Smithfield.

— Estou causando muito transtorno ao seu irmão...

— Ele não se importa. Hugh fica muito inquieto du­rante as folgas. — Lançou um sorriso conspiratório. — E os seus pedidos o afastam da bebida e das mulheres fáceis.

Graeham suspeitava que nada afastaria Hugh des­sas mulheres.

— Então vai à feira com Hugh? Achei que não pudes­se deixar a loja o dia inteiro.

— Uma semana atrás isso seria impensável, mas seu dinheiro facilitou as coisas por aqui. Hugh acredita que essa seja uma boa oportunidade para eu me distrair um pouco. — E para rever o velho amigo com o qual ele tem esperanças de que eu me comprometa, ela pensou.

— Farei com que Robert nos encontre na feira — Hugh dissera. — Não posso trazê-lo para cá já que o sar­gento acredita que você seja uma mulher casada. Vista algo bonito... E lembre-se de não cobrir a cabeça. — Teria de tomar banho naquela noite, mas a presença de Graeham complicaria as coisas. Seria melhor espe­rar que ele estivesse adormecido.

— Eu adorava ir a Smithfield — Graeham disse, sau­doso. — Nós, os garotos de Holy Trinity, costumávamos ir lá nas tardes de verão. Frei Simon dizia que precisá­vamos exercitar os corpos, além da mente e da alma, e organizava jogos de bola contra os garotos de outros co­légios. Aos domingos assistíamos às disputas de justa.

Ela sorriu, tentando imaginar o soldado viril como um menino. Ele devia ter sido magro e até desajeita­do. Os homens de seu porte costumavam atravessar pe­ríodos de crescimento repentino na juventude, antes de preencher a estrutura com músculos bem definidos.

Hoje em dia não havia nada de desajeitado nele, nem um vestígio do mau-caráter que parecia na noite em que o encontrara no depósito, sujo e embriagado. Barbeava-se todos os dias, talvez mais por falta do que fazer do que por obsessão com a aparência. O cabelo estava sem­pre bem penteado, o rosto limpo. Os olhos azuis eram os mais intensos que ela jamais vira em qualquer pessoa. A sua beleza masculina a afetava e, por isso, evitava en­cará-lo, temerosa de que ele percebesse a admiração em seu olhar.

Seus modos eram sempre educados e respeitosos. Embora imaginasse que seus dias fossem entediantes e percebesse que nos poucos momentos em que o via para levar comida ou arrumar o quarto ele gostaria que per­manecesse mais, ele jamais a importunava. No entan­to, ele a desconcertava, observando-a sempre, seguindo seus passos. Sim, era um cavalheiro, mas ela não deve­ria se acostumar com o olhar curioso e lânguido.

Todavia, Joanna não esquecia o toque fortuito na noi­te em que o ajudara a se levantar. O que começara com um contato acidental, parecera ter se tornado cheio de segundas intenções. Ainda sentia o calor dos dedos a lhe queimar a pele e isso a deixava agitada, repleta de sensações contraditórias.

— E eu tirava as roupas — ele dizia — e ficava à vontade, deixando a água me envolver. Era o paraíso. Ela piscou, saindo de um transe.

— Desculpe, eu...

— Eu estava lhe contando como eu fugia à noite para nadar no lago de Smithfield. — Ele riu. — Pelo visto, a história não foi muito interessante. — O sorriso pare­ceu tímido. — Só estou tentando detê-la para conversar comigo. Quando decidi permanecer aqui, não imaginei que ficaria tão entediado.

— Desculpe, eu...

— A culpa não é sua. Tem seus próprios afazeres. Não sou um convidado, apenas um pensionista. E já fez muito por mim.

— Tolice. Não me causa nenhum problema.

— Não sabe mentir muito bem... — Seu sorriso mos­trava descrença.

Joanna sentiu-se corar; por isso foi até a porta.

— Bem, preciso voltar.

— Ficará fora o dia inteiro amanhã?

— Até as Vésperas. Eu deixarei comida e bebida prontas.

— Obrigado.

Ela parou na soleira.

— Ficará ainda mais entediado... Lamento. Graeham deu de ombros.

— Não posso esperar que fique aqui só por minha causa.

Joanna se virou para sair, mas foi detida mais uma vez:

— A senhora é feliz?

Lentamente, ela girou. Ele estava sentado na beira da cama, o olhar penetrante provocando-lhe tremores pelo corpo.

— Essa é um pergunta impertinente — ele mesmo concluiu. — Parece que criei o hábito de fazê-las. Talvez seja fruto do tédio.

Ela assentiu como quem concordava.

— É ou não?

— Sargento, eu... eu não sei como responder a essa pergunta. — Relanceando o olhar para a loja, disse: — Bem, preciso mesmo ir.

— Eu gostaria de jantar com a senhora hoje à noite.

— Jantar? — repetiu.

— Sim. Gostaria de me sentar à mesa em vez de co­mer aqui. Na verdade, gostaria de ter a sua companhia em todas as refeições de agora em diante.

— Mas a sua perna...

— Vem melhorando a cada dia. — Pegando as mule­tas, ergueu-se e sorriu. A Joanna pareceu que os dentes estavam cerrados demais. — Conseguirei chegar até a mesa.

Apoiando-se nas muletas, ele avançou na direção de Joanna, que rapidamente retrocedeu.

— Deveria ficar na cama. O sr. Aldfrith disse que...

— Meu corpo vai definhar se eu ficar dois meses in­teiros na cama. Vamos lá... Deixe-me partilhar das re­feições com a senhora. — Com cuidado, acrescentou. — Prometo não perguntar se é feliz.

— A senhora é muito infeliz? — Graeham perguntou ao partir um bom pedaço de pão de cevada e mergulhá-lo no cozido de cordeiro.

Joanna o censurou com o olhar do outro lado da mesa.

— Pensei que não fosse me perguntar...

— Se é feliz. Nunca disse que não lhe perguntaria se é infeliz.

— O senhor é muito impertinente. — Ela voltou a encher as taças de vinho, um luxo como o cordeiro que ele insistia em ter e pelo qual pagava.

Ele a encarou e depois insistiu:

— E então?

— Pareço infeliz?

— Não, mas existem pessoas com o dom da perseve­rança. Estive observando-a.

Ela o encarou enquanto tomava um gole de vinho e depois abaixou os olhos. Parecia corada, ou talvez fosse somente o efeito da luz das velas. A cabeça estava coberta como de costume e vestia o seu vestido mais feio. A lã estava puída e havia um remendo perto do colarinho sobre o qual se via uma porção da túnica de linho. Sempre havia um toque de desalinho em sua pessoa, como se estivesse tão ocupada que mal tivesse tempo de se arrumar direito. Aquela noite não era diferente: o laço da túnica estava desamarrado e pendurado sobre o corpete do vestido. A túnica ligeiramente solta deixava entrever um pedacinho da curva de seu seio, e Graeham se esforçava para não deixar o olhar descer enquanto conversavam.

No momento em que ele terminava de comer, a inquietante Petronilla pulou para o banco ao seu lado para receber um afago. Ele a pegou pelo cangote e a colocou no chão. A presença dele à mesa fez Manfrid se esconder.

— Trabalha do amanhecer até o anoitecer, ou até mais. Muitas vezes ainda está bordando quando vou dormir. Sem falar dos afazeres domésticos. Tudo isso sem reclamar de nada, como se... — Ele hesitou, mas foi em frente. — Como se tivesse nascido para esta vida, como se este fosse o seu destino e não um motivo para se sentir infeliz.

— Foi Hugh quem lhe disse isso?

— Ele só me contou que a senhora se casou com al­guém abaixo de seu nível social... por amor.

Joanna empurrou a tigela com a metade da refeição e sorveu um gole de vinho.

— E que foi bem-sucedida na loja, apesar de seu ma­rido estar sempre no exterior. Deve se sentir solitária.

— Não me sinto.

Limpando as mãos ao terminar de comer, Graeham afirmou:

— Não é pecado se sentir só, eu mesmo...

— Não se sinto só.

Ela era orgulhosa demais para admitir tal fato, ele notou.

— Muito bem, não vou insistir.

— Então por que me interroga com tanta persistên­cia? Anda tão entediado assim?

— Talvez a senhora seja interessante. — Ele deu de ombros.

Uma risada sardônica escapou dos lábios dela.

— Sou uma lojista em West Cheap e nada mais.

— Foi muito mais, um tempo atrás — ele disse com calma. — Ainda é.

Ela o encarou envergonhada. Aproveitando-se da proximidade de Petronilla, estalou a língua e a chamou, desviando a atenção. Pegou um pedaço de carne e o ofe­receu à gata.

Atrás dela, Graeham viu uma figura passar. A pes­soa parou à janela. Era Leoda, pronta para o trabalho. Vendo-o com Joanna, soprou um beijo e sorriu. A prosti­tuta prendeu sua atenção por um tempo mais do que o adequado e, por isso, Joanna se virou.

— Boa noite, sra. Joanna — Leoda a cumprimentou. Joanna sorriu com cortesia.

— Se está procurando por meu irmão, Leoda, ele já foi embora. Lamento, mas não sei aonde foi.

— Ah, que pena — Leoda respondeu, embora Graeham tivesse quase certeza de que era ele o procurado, visto que costumavam conversar àquela hora. — Diga a sir Hugh que estive procurando por ele, por favor.

— Sim, claro.

— Obrigada. — Leoda se afastou sem falar com Graeham. Uma boa meretriz sabia que não deveria fa­lar com um homem acompanhado de outra mulher.

Graeham na verdade não se importava que o vissem falando com Leoda. Meretriz ou não, ela era uma boa pessoa e não sentia vergonha de ter se tornado seu amigo.

— Leoda é uma das mulheres... da vida daqui do bairro. — Joanna começou a recolher a louça. — Ela é uma das favoritas de Hugh.

— Fiquei imaginando como conhece... uma mulher do tipo dela pelo nome.

— Hugh poderia ter qualquer mulher que quisesse; no entanto, prefere as que não exigem nada dele além de algumas moedas. Será difícil alguém lhe colocar um cabresto.

— E por isso que ele escolheu ser um mercenário? Pela liberdade?

Joanna franziu o cenho ao refletir.

— Bem, ele gosta de liberdade, sem dúvida. Mais do que tudo, porém, detesta ter de viver às sombras das expectativas de outras pessoas. Tudo isso por causa do modo como foi criado... Como fomos criados. Há muitas exigências pairando sobre nós. — Limpando a mesa, mudou de expressão e lançou um sorriso cativante. — Fui à doçaria como me pediu. Eles tinham tortas de creme.

— Que ótimo. — Doces estavam sempre presentes à mesa de lorde Gui, e Graeham sentia falta deles. — Fico surpreso ao ouvi-la falar de exigências. Tive a impres­são de que foram criados num lar privilegiado.

— De certa forma era privilegiado. Wexford é um castelo...

— Castelo!

Joanna desempacotou a torta e a serviu, voltando a se sentar.

— William de Wexford é nosso pai. É um cavaleiro de renome com uma vasta propriedade mais ao sul. Nossa mãe morreu de uma febre depois de meu nascimento, mas ele ainda está vivo.

— Hugh é o herdeiro das terras?

— Não saberemos até que papai morra. Ele mantém Wexford por ordem de seu senhor supremo, que pode ou não escolher Hugh como herdeiro. — Ela provou a torta, sendo imitada por Graeham. O doce estava divino.

— Ele não fica incomodado por não saber se as terras lhe pertencerão?

— Nem sei se ele as quer. As lembranças de Hugh, assim como as minhas, daquele tempo não são muito agradáveis. Nosso pai é um homem seguro do que quer e nunca se fez de rogado sobre como conseguir isso. No dia em que Hugh completou quatro anos, ele o entre­gou ao chefe das tropas, um monstro chamado Regnaud, para que o transformasse no maior cavaleiro de todo o reino, uma honraria que se refletiria nele mesmo, é claro. Ele deu carta branca a Regnaud para disciplinar Hugh e... Bem, digamos que meu irmão não teve uma bela infância.

— E a senhora — Graeham perguntou com o cenho franzido —, também foi disciplinada?

— Não com o chicote. Era papai quem me castigava quando eu o desagradava. Nessas horas trancava Hugh na adega para que não interferisse. — Respirou fundo, sem encará-lo. — Acredito que eu desafiava seu parecer sobre como uma dama deveria se comportar... Eu costu­mava explorar a floresta quando me esperavam para as aulas... Esse tipo de coisa.

— Ele batia muito?

— Nunca apanhei no rosto. Ele não queria macular minha aparência já que planejava me casar com o filho do barão Gilbert de Montfichet e, assim, se alavancar na sociedade.

— Esteve comprometida com um filho de lorde Gilbert? — perguntou incrédulo.

Gilbert de Montfichet e o primo, Walter, eram os únicos detentores do baronato de Londres. Seus castelos, Montfichet e Baynard, fincados lado a lado no extremo oeste da cidade eram as únicas fortalezas além da Torre de Londres. Como únicos barões, eles eram detentores de grande poder e gozavam de influência junto ao rei.

— O mais jovem — Joanna esclareceu. — Ele tem, ou melhor, tinha dois. O mais velho, Geoffrey, morreu de sarampo dois anos atrás. Nicholas era o segundo. Nunca ficamos noivos oficialmente, mas quando com­pletei onze anos, papai me enviou para servir a barone­sa, lady Fayette, no castelo de Montfichet. Pelo que sei, negociariam o noivado se me considerassem à altura. Como deve imaginar, fiquei indignada por ser o peão nos planos de progresso social de meu pai, mas fiquei contente por sair de Wexford e vir para Londres.

Joanna quebrou mais um pedaço de crosta e lambeu os dedos lambuzados pelo creme. Uma onda de excitação tomou o corpo de Graeham.

— Gosta de Londres? — perguntou ele, tentando ig­norar a língua rosada que lambia os lábios sedutora­mente.

— Na época sim. Era grande e majestosa e todos pa­reciam refinados. Eu gostava muito de lady Fayette. Foi ela quem me ensinou a bordar.

— Ela deveria receber um prêmio, pois a senhora é muito talentosa.

— Obrigada — Joanna agradeceu tímida.

— Por que não se casou com o filho do barão? — Graeham terminou de comer o doce. — Os pais não a aprovaram?

— Não, eles pareciam me adorar, e Nicholas parecia disposto. Fui eu quem desistiu. O contrato foi escrito quando eu tinha catorze anos, mas eu... Eu não pude con­cordar. Protelei por quase um ano, tentando encontrar uma maneira de me esquivar.

— Detestava Nicholas tanto assim?

— Eu até gostava dele. E ele parecia gostar de mim... Até certo ponto. Nicholas é um daqueles homens que... preferem os encantos do próprio sexo. Todos sabiam dis­so. Eu não conseguia me conformar com tal união, mas ao mesmo tempo detestava a idéia de voltar a Wexford. Meu pai ameaçou me bater até a morte caso eu fosse mandada de volta.

Graeham, que tinha levantado o copo de vinho, o abai­xou e perguntou:

— Acredita que ele chegaria a tanto?

— E possível. Ele tinha um temperamento terrível. Havia pressão de todos os lados para que eu aceitasse; senti-me perdida, sem ter com quem me aconselhar.

— E quanto a Hugh?

— Hugh virou mercenário assim que se tornou cavaleiro aos dezoito anos, mais ou menos na mesma época em que fui enviada para cá. Ele me disse que sabia que eu não precisaria mais dele para me proteger já que eu ficaria longe de nosso pai. Disse também que enlouqueceria se tivesse de ficar em Wexford sob o jugo dele.

— Então, aos quinze anos estava só, aflita...

— Aterrorizada — corrigiu ela.

— Foi então que conheceu seu marido? Joanna olhou para baixo e remexeu na torta.

— Prewitt tinha ido a Montfichet para mostrar sedas a lady Fayette. Fiquei instantaneamente impressiona­da. Ele era mais velho, viajado, vestia-se como um cava­lheiro. Ele, me cortejou às escondidas. — Deu de ombros. — Nos casamos em duas semanas.

— Isso não deve ter agradado ao seu pai.

— Ele me baniu de Wexford. Não o vejo há seis anos.

— É uma pena.

— Não é, não. Ficarei feliz se nunca mais voltar a vê-lo.

— Ah, voltamos ao assunto da felicidade... — Graeham se inclinou para a frente, apoiando-se nos cotovelos. — Vai me contar se é feliz ou não?

Ela revirou os olhos e começou a arrumar os pratos.

— Vou levar a louça até a cozinha para lavá-la. Depois tenho que... tenho algumas coisas a fazer.

— Mais bordados?

Ela assentiu sem encará-lo.

— Vai acabar ficando cega se continuar a bordar à noite.

— Vou perder negócios se assim não o fizer.

— Seu marido logo deve voltar com mais tecidos para vender. Nesse meio tempo, tem meus quatro xelins para ajudá-la a se manter. Não deveria trabalhar em excesso.

Joanna se levantou e guardou a jarra de vinho.

— E um hábito difícil de romper. Graeham sentiu um repuxão na tala e, olhando para baixo, viu que Petronilla afiava as unhas na madeira. Ele a empurrou.

— Gatos são criaturas sem sentido para mim — ele comentou. — Sem querer ofender, mas não consigo en­tender como alguém se dá ao trabalho de manter um animal como esse.

Pegando uma bandeja de uma prateleira, Joanna voltou à mesa para pegar os pratos.

— Tem medo deles, sargento?

— Não, apenas prefiro a companhia de um bom cachorro. Gatos são criaturas inúteis, a não ser para ca­çar ratos.

— Manfrid nunca pega nada, mas Petronilla é uma boa caçadora.

Ele bebeu o último gole e entregou o copo.

— Pelo menos ela tem alguma serventia. Já o irmão, medroso como ele é... Para mim é um mistério por que se dá ao trabalho de mantê-lo.

— Ele tem medo dos homens. Acho que foi maltra­tado quando era filhote. Ele gosta quando só estou eu aqui. Fica sempre no meu colo quando não há mais nin­guém por perto.

— Cachorros também aquecem e podem ser treinados.

— Manfrid não existe para me servir — ela disse um tanto irritada. — Ele apenas é o que é. Gosto dele assim: grande e doce. Ele precisa ter alguma serventia para que eu goste de tê-lo por perto?

— No meu ponto de vista, sim.

— Quem sabe — disse ela com frieza ao ir para a cozinha — não seja isso o que nos torna tão diferentes? — Na soleira, parou e se virou. — Precisa de mais algu­ma coisa antes de dormir, sargento?

— Não, obrigado. — Levantando-se, apoiou-se nas muletas e se despediu: — Boa noite, senhora. — Boa noite.

Graeham acordou com o som da porta de trás se fe­chando. Imóvel no escuro, aguçou os ouvidos às passa­das abafadas no corredor ao lado do depósito. Alguém tinha entrado. Um intruso? Talvez.

Quem quer que fosse, estava claro que tentava pas­sar despercebido.

Joanna está lá em cima.

E ele estava impotente. Como poderia defendê-la naquele estado? Sentou-se, com o coração acelerado, e usou as duas mãos para abaixar a perna imobilizada. Erguendo-se com o auxílio das muletas, apanhou a faca que tinha tomado do ladrão na semana anterior. Ao coxear até a cortina, um pensamento lhe ocorreu: o intruso poderia ser Prewitt Chapman, de volta de sua última viagem. Como o mercador reagiria ao encontrar um desconhecido praticamente nu, já que costumava dormir somente com as ceroulas, abordando-o com uma faca em sua própria casa no meio da noite?

Que horas seriam? Lembrou-se de ter ouvido os sinos da igreja anunciando o toque de recolher enquanto lia antes de dormir. Prewitt não conseguiria entrar na cidade com os portões fechados; portanto, não deveria ser ele.

Tentando ser silencioso, afastou um pouco a cortina e espiou a saleta iluminada pela luz de velas.

Joanna, de perfil e com a trança sobre o ombro, re­tirava o vestido marrom. A peça caiu aos seus pés, dei­xando-a somente com a gasta túnica de linho sem man­gas, que só chegava até os joelhos. As pernas, muito bem formadas, estavam cobertas por meias escuras.

O laço da túnica ainda estava desamarrado e quando ela se inclinou para apanhar o vestido, a vestimenta es­corregou revelando um ombro.

As mãos de Graeham se retorceram; o desejo pulsou na virilha.

Joanna estava se preparando para um banho. A mesa fora desmontada: o tampo se achava encostado na pare­de e a base cilíndrica tinha sido virada, transforman­do-se numa tina ao lado da qual jaziam dois baldes de água quente. Os bancos, que normalmente flanqueavam a mesa, ladeavam a tina. Num deles estavam a camisola de seda, uma toalha, uma barra de sabonete, um pen­te de marfim e um frasquinho. No outro ela depositou o vestido dobrado, ao lado do cinto e do véu. Sentou-se nele e retirou os sapatos.

Graeham sabia que não devia espiá-la; era vergonhoso. Não havia desculpas para aquilo. Devia fechar a cortina e voltar para a cama.

Levantando a túnica até o meio da coxa, ela tirou a liga e começou a enrolar a meia até o tornozelo. A meia de seda brilhava na tênue luz. Havia algo de extraordi­nário nessa mulher simples com suas peças íntimas de luxo que só ela podia ver... E o marido, é claro, quando este se dignava a estar em casa.

Feche a cortina, seu idiota...

Não conseguiu despregar o olhar enquanto ela se desvencilhava de uma meia, depois da outra. A túnica desceu quando ela se abaixou para tirar as meias dos pés, expondo os seios até quase os mamilos. As pernas se separaram, mostrando a porção escura na junção das coxas, mas, num piscar de olhos, seus segredos íntimos voltaram a se esconder.

Graeham cerrou os olhos e trincou a mandíbula.

Ao olhar novamente, Joanna estava de pé, levantando um dos baldes, os braços trêmulos devido ao peso. Pelo barulho, já havia água na tina; provavelmente água fria do poço que ela agora misturava com a que fervera na cozinha. Depois de despejar o segundo balde, ela abriu o frasquinho e colocou duas gotas de um líquido viscoso: óleo para banho.

Inclinando-se sobre a tina, ela misturou a água com uma das mãos enquanto com a outra segurava a aber­tura da túnica. Ela fechou os olhos e sorriu ao sentir o vapor perfumado envolvê-la. Graeham inalou a fragrância e também sorriu. Era assim, então, que ela con­seguia recender a um bosque orvalhado mesmo no meio de Londres.

Graeham duvidava ter visto algo mais cativante do que a sensual Joanna Chapman naquele instante: os olhos fechados, o sorriso sonhador em antecipação. Endireitando-se, o sorriso dela perdeu a intensidade e o olhar ficou perdido, contemplando a água quente. Ficou parada por tanto tempo que Graeham se pôs a imaginar quais pensamentos a absorviam tanto.

Lentamente, a mão delicada desceu em direção ao seio, os dedos resvalando o contorno sobre a túnica. Distraída, como se estivesse hipnotizada, esfregou o dedo sobre o mamilo, enrijecendo-o.

Graeham pareceu ter criado raízes, o coração baten­do com força ao sentir a ereção se formando.

O semblante sonhador de Joanna não se alterou con­forme a mão descia passando pelo ventre e prosseguindo. As pálpebras se fecharam quando ela pousou a mão na junção das pernas. Ela não se acariciou, apenas ficou quieta, imóvel, perdida em pensamentos.

Quando ela voltou a abrir os olhos, Graeham notou que estavam úmidos. O belo rosto feminino se tornou triste, e ela sussurrou algo como "tola"...

Joanna passou os dedos pelos olhos e depois desa­marrou os cabelos, soltando-os da trança. Penteou as mechas douradas até formarem uma cortina tão longa quanto a túnica. Deixando o pente de lado, sacudiu a vestimenta, deixando-a cair numa poça ao chão.

Estava nua, gloriosamente nua, embora os cabelos a cobrissem, deixando expostas somente as pernas.

Graeham fechou a cortina com um suspiro de desgos­to com seu comportamento. Mal fazia uma semana que tinha prometido a Hugh jamais desonrá-la e lá estava ele, espiando pela fresta da cortina como um rapaz inex­periente e de pouco caráter.

Sempre se orgulhara de ser honrado, mas a absti­nência, como o próprio Hugh tinha apontado, podia rou­bar os escrúpulos de um homem.

Coxeando até a cama, deitou-se sem fazer barulho a fim de que Joanna não percebesse sua aventura. Deitado, ainda conseguia ouvir o som da água conforme ela se banhava. Imaginou-a recostada na tina, envolta naquele perfume delicioso, os cabelos molhados flutu­ando ao seu redor, as mãos ensaboadas sobre os seios e descendo...

— Deus do céu — sussurrou na escuridão, sentindo a ereção cada vez mais pungente. — Nunca conseguirei agüentar dois meses...

Respirou fundo e fechou os olhos, obrigando-se a relaxar... Tudo o que conseguiu, porém, foi visualizar Joanna, a cabeça pensa enquanto se entregava ao pra­zer que o marido não estava ali para dar. Ficava excitado só de imaginar uma mulher chegando ao ápice sozinha. Uma vez em Paris, convencera uma linda meretriz a fazer tal coisa enquanto ele somente observava. Aquela experiência tinha lhe custado quase metade do soldo.

Entretanto, por mais excitante que fosse imaginar uma mulher se autogratificando, não conseguia ceder ao seu próprio desejo, não importando a frustração que sentisse. Parte do motivo eram os sermões pregados pe­los freis durante sua juventude. A razão maior, contudo, era o fato de ter dormido em alojamentos a vida intei­ra... Se a ameaça do inferno não conseguia ensinar um homem a sublimar o desejo carnal, a falta de privacida­de certamente o fazia. Descobriu, então, que conseguia aplacar a luxúria praticando esportes como lutas e se envolvendo em torneios quando não havia nenhuma mulher disponível. Infelizmente, não dispunha dessa alternativa no momento.

Lembrou-se do conselho de Hugh sobre o barbante na janela e tentou se imaginar com Leoda, mas sem su­cesso. Talvez porque tivesse se tornado seu amigo ou talvez porque já estivesse farto de mulheres daquele tipo. Prostitutas e lavadeiras tinham bastado quando precisara de companhia, mas agora queria mais... Muito mais do que uma mulher como Leoda poderia oferecer.

Até setembro, no máximo, estaria casado com Phillipa e teria um lar em Oxfordshire. Então não passaria mais as noites acordado pensando em como aliviar a luxúria.

Notou novamente o barulho da água como uma mú­sica sensual e pensou ter ouvido um suspiro.

— Durma — murmurou para si mesmo — e sonhe com torneios.

Todavia não conseguiu sonhar com torneios. Sonhou estar de volta a Holy Trinity e acordar no meio da noite no dormitório.

— Sargento? —A voz suave parecia suplicante.

Mulheres não entravam no monastério.

Graeham se sentou na cama e viu que estava só.

Todas as outras camas, iluminadas pelo luar, esta­vam vazias. Havia um banco no meio do dormitório e algo branco jogado em cima dele... Uma camisola de seda. Sentiu o início de uma ereção e fechou os olhos, recitando as declinações do latim para se livrar da ten­tação como os freis tinham aconselhado. Ao abrir os olhos, viu que o banco desaparecera, bem como todas as outras camas. O dormitório estava inundado, como se fosse um lago.

A cama flutuava, balançando, e ele tentava se agar­rar ao colchão de palha para não afundar. Ouviu a voz chamando-o novamente.

— Está se afogando? — perguntou ele.

— Estou infeliz.

Precisava alcançá-la, salvá-la. Tirou a roupa e mer­gulhou. Esperava encontrar a água fria do lago, porém ela estava quente, como a de um banho.

— Onde você está? — chamou-a.

— Aqui.

Graeham se virou e viu uma sombra. Nadou naquela direção e estranhou a densidade da água. Parecia estar nadando em óleo.

— Joanna?

— Sim, sou eu. Vim para fazê-lo feliz.

Percebeu que as coisas tinham mudado. Agora era ela quem teria de salvá-lo da infelicidade. Os braços es­tavam esticados, à sua espera.

— Venha — ela o chamou.

Ele se esticou; ela estava tão próxima, mas ainda as­sim não conseguia tocá-la. De perto, viu que ela tinha os olhos fechados e os lábios entreabertos num convite.

Aquilo estava errado; ela era casada. Mesmo assim, inclinou-se para abraçá-la, sentiu os mamilos roçarem seu peito, as pernas se enroscando, mas, em seguida, ela desapareceu.

— Joanna. — Graeham acordou arfando. — Deus meu... — Pousou a mão na virilha e recitou as declinações do latim mais uma vez. Aguçou os ouvidos, mas nada ouviu. Ela já devia ter se deitado.

Seguiu pelo corredor e foi até a porta dos fundos, destrancando-a. De volta ao depósito, pegou o livro de cima do baú e retirou o barbante que fazia as vezes de marcador. Foi até a janela e amarrou-o no fecho.

Então deixou as muletas no chão e se deitou para esperar.

Joanna acordou com um ruído no andar de baixo. Reconheceu o ranger da porta que se abria. Graeham devia ter saído para ir até a latrina. Depois da noite em que ele caíra, preocupava-se com o fato de ele se recu­sar a usar o urinol, movimentando-se no escuro. Poderia perder o equilíbrio com facilidade, cair e só ser encon­trado no dia seguinte.

Decidiu ficar atenta para se certificar de que ele voltaria a salvo. Se em cinco minutos ele não entrasse, desceria para ver se estava tudo bem.

— Sargento? Outro sonho?

— Não... — Graeham resmungou. O primeiro já tinha sido de enlouquecer.

— Sargento, estou aqui. — Mãos suaves o acaricia­vam. — Acorde.

— Joanna? — Afagou-a na escuridão sem abrir os olhos. Mesmo sem vê-la, soube pelo perfume adocicado que não era ela. — Leoda.

— Gostaria de me chamar de Joanna? — A mulher estava sentada na beira da cama, acariciando-o por so­bre as ceroulas.

— Não.

De que adiantaria fingir? Joanna pertencia ao mari­do, e ele estava destinado a Phillipa. Tinha de parar de pensar nela, de sonhar com ela.

Fechou a mão sobre a de Leoda, que o acariciava intimamente.

— Está pronto... Vamos começar, então?

— Não. — Sustentando o peso do corpo no cotovelo, Graeham tentou pegar a bolsa de moedas.

— Meu pobrezinho, está preocupado com a per­na. Deixe comigo, não vou machucá-lo, posso ficar em cima e...

— Não é isso. — Não conseguiria sair a tempo se ela estivesse por cima. Leoda devia ser jovem o bastante para engravidar. Havia muito tempo, quando descobri­ra as circunstâncias de seu nascimento, prometera a si mesmo jamais ter um filho bastardo. Por isso, tirou três centavos da bolsa.

— Três centavos. Quer algo especial...

— Sim.

— O prazer será meu, sargento.

Inclinando-se, Leoda desfez o nó da ceroula.

Alguém arfou. Graeham olhou na direção da corti­na de couro e viu que lá estava Joanna, iluminada pela vela, as faces rubras ao ver o que Leoda fazia.

Graeham tentou se sentar, as costelas reclamando com o movimento súbito.

— Senhora...

A cortina se fechou, e ele ouviu passos rápidos e o ranger das tábuas na escada.

Por fim, Graeham se deitou, praguejando baixinho.

Joanna vestiu-se com primor na manhã seguinte, co­locando o melhor vestido e túnica, um conjunto de seda, presente de Prewitt de casamento, que usara somente naquela ocasião.

Olhou para o espelho e franziu o cenho, pois em vez de enxergar a própria imagem, viu Graeham Fox acompanhado de Leoda, que se ocupava em despi-lo. Reconheceu a dor que sentiu no peito, ciúme, e se repre­endeu por ainda ser capaz de tais sentimentos românti­cos e ingênuos em relação a qualquer homem.

Esforçando-se para mudar o curso dos pensamentos, tentou se concentrar nos últimos detalhes antes de sair. Aquele tinha de ser um dia de relaxamento e prazer, algo raro em sua vida, e não tinha intenção alguma de deixar os acontecimentos desagradáveis da noite estra­gar seu dia livre. Mais tarde lidaria com Graeham Fox.

Deixando o cinto elaborado que usara no dia do casamento de lado, inapropriado para uma viúva, passou uma faixa pelo quadril e dispensou a corrente de todos os dias; queria parecer uma princesa, não uma lojista.

Quanto ao cabelo, Hugh lhe dissera para não cobri-lo, mas não seria adequado. Decidindo que havia limi­tes que devia respeitar, penteou os cabelos, dividiu-os, amarrou-os com fitas e os cobriu com um lenço trans­parente, preso nas laterais, caindo em ondas sobre os ombros.

Depois de inspecionar a imagem refletida no espelho, notou que faltava alguma coisa. Brincos! Procurou o par remanescente, já que o restante tinha sido vendido.

Em seguida, desceu as escadas, surpresa por Hugh ainda não ter chegado. A cortina do corredor estava fechada, o que indicava que Graeham ainda dormia. O que não era de se estranhar, dadas as suas atividades noturnas. Tinha tempo, então, de dar uma passadinha na farmácia e conversar com Olive.

A pobre moça confiava nela para desabafar depois que a saúde da mãe começara a deteriorar no ano an­terior. Joanna detestava pensar em Elswyth como dese­quilibrada, pois passara diversos anos em sua compa­nhia. Ficava contente, porém, em poder ajudar a garota de algum modo, pois se lembrava claramente o que era ser jovem sem ter ninguém para conversar.

Atravessou a rua, tomando cuidado para não sujar a bainha do vestido. Pelo menos a terra estava seca, já que não chovia fazia vários dias. Bateu à porta da far­mácia que ainda estava fechada.

— Nós ainda não abrimos — gritou uma voz lá de dentro.

— Olive, sou eu, Joanna — respondeu ela sem levan­tar a voz para não acordar Elswyth.

A porta rangeu e um rosto jovem e bonito, envolto numa massa de cabelos soltos ruivos, surgiu. Ah, como era bom ser solteira...

— Sra. Joanna! O que a traz aqui tão cedo?

— Gostaria de conversar com você. Posso entrar?

— Sim, claro. — Olive deu passagem. — Como está elegante hoje!

— Obrigada.

— Há algo errado? — Olive perguntou, pois nor­malmente era ela quem procurava Joanna, e não o contrário.

— Talvez. Foi para descobrir isso que vim até aqui. — Joanna pegou um frasco azul de cima do balcão e viu que o brilho da manhã o iluminava como uma pedra preciosa. — Conversou com um jovem ontem à tarde no beco e ficou triste.

— Olive! — A cortina que separava a loja do resto da casa se abriu. Elswyth, ainda de camisola, encarou a filha com olhos determinados.

A mulher estava mais gorda e desarrumada do que quando Joanna a vira pela última vez, havia alguns me­ses. O cabelo ruivo, como o da filha, dava sinais de rápi­do envelhecimento.

— Mamãe, está acordada! — Olive retorcia as mãos.

— Sim, e a loja ainda está fechada. — O olhar de Elswyth pousou sobre Joanna.

— Bom dia, sra. Elswyth. — Joanna inclinou a cabeça num gesto cortês.

Elswyth apontou para o frasco nas mãos de Joanna, as unhas quebradas sujas de terra.

— Isso é meu.

Joanna voltou a colocá-lo no balcão junto aos outros.

— Sim, senhora, sei disso.

A mulher se virou para a filha com um olhar meio enlouquecido.

— Por que a loja não está aberta?

— Ainda é muito cedo, mamãe. Eu nunca a abro assim tão...

— Abra já! Ou quer apanhar?

— Sim, senhora — Olive suspirou e olhou desolada-mente para Joanna.

— Eu a ajudarei — Joanna ofereceu.

Ao abrirem a veneziana e arrumarem o balcão, Elswyth já tinha se retirado. Então Joanna segurou as mãos da moça.

— Venha me ver quando puder — disse baixinho. Olive apertou as mãos de Joanna, os olhos demons­trando perturbação.

— Obrigada, senhora.

 

— Há alguém em casa? — Hugh gritou do outro lado da cortina.

— Estou aqui — Graeham chamou, sentando-se. Hugh entrou no depósito parecendo-se menos com um soldado na túnica cinza com bordados pretos. Ainda trazia a espada, mas a maioria dos homens na posição dele carregava a arma, quer ela estivesse em uso ou não. O único traço que o distinguia de um jovem nobre era o brinco de ouro.

— Onde está Joanna? — perguntou ele.

— Não faço idéia; não a vi hoje. — Ela devia estar evitando-o, sem dúvida, Graeham pensou ao vestir as calças. — Ela não está aqui?

— Não.

— Dever ter dado uma saída rápida. Sei que ela vai à feira com você. Pode me passar aquela camisa que está no gancho, por favor?

Hugh jogou a camisa e depois esfregou a testa.

— Sabe onde ela guarda o vinho? Graeham passou a camisa sobre a cabeça.

— Está de ressaca?

— Passei a noite em White Hart e o que me resta hoje é uma dor de cabeça e o bolso vazio. Sabe onde está o vinho?

— Na prateleira da saleta.

Hugh voltou num minuto com a jarra e dois copos.

— Não me sirva. — Graeham decidiu que seria me­lhor estar sóbrio se quisesse se desculpar com Joanna por seu comportamento da noite anterior. — Ainda não comi nada; não gostaria de começar o dia bêbado.

— E por que não? — Hugh tomou um copo numa golada só.

Do beco, um estalido contínuo se fez ouvir.

— Deve ser Thomas Harper procurando pelo café da manhã. Você o conhece?

— Eu o conheci da última vez que vim a Londres, pobre homem.

— Não o deixe ouvir falar assim. — Graeham abriu a janela bem na hora em que Thomas apareceu. — Bom dia, amigo.

— Sargento! — Sorrindo, Thomas olhou de Graeham a Hugh. — Ei, eu o conheço. Você é o irmão.

— Isso mesmo. É um prazer voltar a vê-lo.

Rindo com ironia, Thomas apontou para o próprio rosto e comentou;

— Prazer em ver isto? — O olho bom pareceu focar o copo que Hugh segurava. — Onde há vinho, sir Hugh, há pouca sabedoria.

— Se o momento é para citações, prefiro In vino veritas — Hugh rebateu.

— Está procurando a sra. Joanna, Thomas? — Graeham perguntou.

— Sim, mas a loja ainda está fechada.

— Ela deve voltar logo.

— Vou esperar perto da cozinha, então. — Thomas se virou e começou a caminhar. — Ela deixa um barril para mim lá; preciso me sentar um instante.

Quando estavam sozinhos, Hugh perguntou com um sorriso:

— E então, gostou de Leoda? Ela esteve aqui ontem, não? — Apontou para o barbante preso à janela.

Graeham tinha se esquecido de retirá-lo. Claudicando, foi até a janela e deu um puxão.

— Fico feliz que tenha, finalmente, decidido seguir meu sábio conselho — Hugh comentou às suas costas. — Se prender esse barbante pelo menos uma vez por semana, será capaz de controlar seu humor.

Graeham resmungou, mas sabia que não teria outro uso para o barbante que não fosse o de marcador de livros. Quanto a controlar seu humor, a missão aborta­da da noite anterior o deixara num estado de agitação como nunca antes.

Estremeceu ao se lembrar de Joanna, contente ape­nas por ela ter entrado antes que Leoda tivesse a opor­tunidade de começar a trabalhar. Impassível diante da interrupção, a meretriz quisera prosseguir, mesmo de­pois que Joanna tinha se retirado. Graeham, contudo, amarrara as ceroulas e a mandara para casa.

Sentia vergonha por ter chamado Leoda. Tinha sido um ato irrefletido e desonroso, fruto de uma fome irre­freável. De fato, assim que a prostituta saíra, seus pen­samentos tinham se voltado para a mulher adormecida no andar de cima. Ficara imaginando como seria sentir as mãos de Joanna tocando-o, a boca em seu corpo, sen­ti-la se retorcendo sob seu peso enquanto saciava seu desejo. Mais uma vez se pusera a entoar as declinações latinas mentalmente.

— E então, gostou? — Hugh repetiu.

— Não sei.

— Como assim? Vocês não...

— Não. Sua irmã desceu e apareceu bem na hora...

— Deus do céu! — Divertimento e horror se mistu­raram nas feições de Hugh. — Ela não deve ter ficado muito contente. Ela expulsou Leoda?

— Não, eu mesmo a mandei embora.

— Antes ou depois de vocês... — Hugh perguntou, incrédulo.

— Nunca tive a intenção de ter relações com ela, não exatamente. Pedi que ela fizesse à maneira franca.

— Pedi isso a ela uma vez. — Hugh deu um sorriso malicioso. — Pena que não teve tempo de aproveitar aquela boca talentosa... — Abruptamente, pigarreou. — Bom dia, querida irmã.

Graeham se virou, dando de frente com Joanna que carregava uma bandeja com pão, queijo, duas jarras e um copo. Ela o encarava em silêncio mortal, com as fa­ces coradas.

Ele fechou os olhos e passou os dedos pelos cabelos. Ouviu o farfalhar da seda e, ao abrir os olhos, viu que ela depositava a bandeja no baú ao lado da cama. Ela estava mais estonteante do que nunca, em sua túnica dourada como os cabelos.

— Isto é para o senhor comer enquanto estivermos fora, sargento — ela informou.

Hugh ria como se tudo não passasse de uma grande piada. Graeham engoliu em seco, sabendo que precisava dizer alguma coisa.

— Senhora...

— Vamos embora, Hugh? — Joanna se virou e partiu, deixando o tentador perfume primaveril para trás.

— Nunca vi tantas pessoas juntas aqui — Hugh co­mentou, guiando Joanna pelo cotovelo em meio à cacofonia da multidão agrupada no mercado de Smithfield.

— Nem eu. Deve ser por causa do clima.

Um sortimento variado de londrinos, nobres, mer­cadores, padres, camponeses e grupos de alunos em seus hábitos monásticos se misturavam, no gramado, a estrangeiros falantes de diversas línguas como latim, francês continental e muitos outros dialetos nativos. A Torre de Babel devia ter sido muito parecida com aquilo.

Hugh conduziu Joanna a uma área destinada a ferramentas para fazendeiros e animais de criação. Apertando os olhos para enxergar melhor, parecia pro­curar alguém.

— Pensei que talvez fôssemos encontrar Robert por aqui. Ele tem muito interesse em agricultura.

— Quer dizer que não marcou um encontro com ele?

— Nunca fui muito bom em planejamento, Joanna, sabe disso. — Lançou um sorriso torto de garoto.

— Olhe para mim — ela disse. Levantou a saia da túnica de seda cuja barra já estava manchada. — Tive o trabalho de me deixar apresentável para ele. Até mes­mo fechei a loja. Para quê? Será uma completa perda de tempo.

— Está irritadiça desde hoje cedo. Isso tem alguma coisa a ver com... o acontecido ontem com Leoda?

Ela olhou para além do irmão, onde estavam os mu­ros da São Bartolomeu. Graeham Fox estaria convales­cendo ali se tivesse recusado os quatro xelins; talvez tivesse sido melhor.

Hugh pigarreou.

— Eles não chegaram a... bem...

— Sei disso. — Tinha ouvido Leoda sair assim que ela subira. — Isso não melhora a situação.

— Tem de entender que Graeham é jovem e saudá­vel, com desejos e necessidades como qualquer...

— Sei disso — ela o interrompeu. — O que não en­tendo é como ele teve a coragem de levar aquela mulher para a minha casa. O que deu nele? Isso só demonstra uma incrível falta de bom senso...

Hugh cocou o queixo como fazia quando estava envergonhado.

— Acho que sim, bem...

— Você está por trás disso, não é mesmo? Hugh corou.

— Está bem, fui eu quem o encorajou, mas só porque... Dois meses é tempo demais para ficar sem... sem se aliviar, Joanna.

— Se ele é escravo de seus... desejos carnais dessa forma, devia ter procurado outro lugar para ficar. Sou uma viúva respeitável. Não posso permitir a presença de mulheres fáceis em minha casa.

Virando-se, começou a andar em outra direção; Hugh a seguiu.

— Vai pedir que ele vá embora?

Ela franziu o cenho ao ver que tinha sujado o sapa­to dourado e esfregou-o na grama para limpá-lo. Devia mandá-lo embora, ainda que perdesse dinheiro com isso. A casa ficaria vazia sem a presença dele, mas esta­va acostumada à solidão. Havia coisas piores do que se sentir sozinha.

— Joanna? — Hugh insistiu em saber.

— Não sei — disse emburrada. — Talvez. Suspirando, Hugh ofereceu o braço e a levou na direção dos cavalos, passando ao largo dos homens que observavam as montarias. O cheiro dos eqüinos se misturava ao aroma de salsichas sendo grelhadas nas proximidades.

Um dos homens que inspecionava os cavalos olhou Joanna de alto a baixo com interesse.

— Meu Deus, é Rolf Le Fever. — Joanna se virou.

— Quem é ele?

— O homem cujo nariz quase cortei um dia.

— Aquele de vermelho e roxo? Pela aparência dele, você devia ter terminado o serviço.

— Às vezes penso que isso teria sido bom. Eu aca­baria na forca, mas, pelo menos, conseguiria ter me vingado.

— Vingado pelo quê? — ele perguntou trespassando Le Fever com o olhar, uma lembrança a Joanna de que seu amigável irmão tinha, no fundo, o coração e a alma de um guerreiro.

— Ele é o motivo pelo qual não posso mais vender tecidos a metro.

— Pensei que fosse por não poder se juntar à associa­ção dos comerciantes de tecidos.

— Pela qual ele é o responsável. Depois da morte de Prewitt, encontrei uma maneira de importar as sedas sem ter de viajar. Eu contrataria mercadores para com­prá-las por mim e depois as venderia no mercado. Ele tem um escritório lá, atrás das barracas. Eu contei a ele que pretendia requerer a licença para o comércio, e Le Fever informou que a decisão cabia a ele. A princípio pareceu bastante amigável, mas conforme conversáva­mos, foi se aproximando. Não gostei do modo como me olhava, era como se eu fosse um rato preso em uma ar­madilha. Ele disse que as mulheres podem se sair bem no comércio, desde que entendam que não passa de uma simples troca de uma coisa por outra, que não existe generosidade nos negócios.

— Naturalmente — Hugh disse por entre dentes.

— Ele não foi direto ao ponto a princípio, mas enten­di o que ele queria, pois já vinha me acuando quando Prewitt era vivo. Elogiava-me por minha beleza, dizia me admirar há anos. Então pediu que lhe mostrasse meus cabelos, pois queria saber a cor deles.

— E você mostrou?

— Claro que não, e isso pareceu inflamá-lo. Ele me imprensou à parede.

— Não pediu ajuda?

— Não havia ninguém por perto, mas consegui me livrar antes que ele fizesse alguma coisa. Quando ele colocou a mão em meu seio, eu coloquei minha adaga no nariz dele.

— Ah! — exclamou Hugh em aprovação. — Ótima escolha. Homens vaidosos como esse preferem ter os pa­íses baixos cortados ao rosto arranhado.

— Consegui sair inviolada do mercado aquele dia, mas ele conseguiu que não me dessem a licença.

— Nenhuma surpresa nisso... Veja, aquela é a égua que Graeham quer vender. — Hugh apontou para uma montaria delicada marrom.

— Por que será que ele montava uma égua?

— O cavalo dele era um garanhão.

— Por que tinha dois cavalos, então? — ela pergun­tou. — E um deles uma montaria de mulher?

— Não descobriremos isso, se tem a intenção de pe­dir que ele saia de sua casa. — Hugh se afastou para examinar os cavalos.

Joanna foi até o toco de uma árvore nas proximi­dades e se sentou. Tirou os sapatos e flexionou os pés. Pousando o queixo na mão, observou a égua beber no lago.

Lembrou-se do que Graeham dissera: Eu tirava as roupas e ficava à vontade, deixando a água me envolver. Era o paraíso.

Fechando os olhos, Joanna tentou imaginar o jovem Graeham nadando no lago no meio da noite. Em vez disso, o que viu foi o adulto, deitado na cama do depósito com Leoda inclinada sobre ele.

— Exatamente como Prewitt — sussurrou, abrindo os olhos. Uma moça que passava fitou-a com curiosida­de. Joanna voltou a fechar os olhos.

Dessa vez, não foi Graeham que viu ao lado da more­na, mas o marido. Não que ele tivesse ido para a cama com Leoda, mas tudo era possível, já que ele seduzira tantas outras.

Pela centésima vez, perguntou-se como pôde ter su­cumbido ao charme calculado de Prewitt Chapman. Era verdade que era jovem e estava aterrorizada com o fato de poder ser mandada de volta para casa por não acei­tar se casar com Nicholas. O pai dissera que a mataria, e ela não duvidava de que isso fosse possível.

Prewitt surgira no momento em que precisava de um salvador. Quando ele entrara em seu quarto, duas se­manas depois de terem se conhecido, implorando para que fugisse e se casasse com ele, tinha ficado eufórica. Pertenceria ao belo moreno de olhos penetrantes e de­clarações pungentes. Não tinha parado para pensar em como o casamento o beneficiaria.

Se Hugh estivesse em Londres naquela época, teria entendido tudo e a teria alertado sobre os motivos in­confessáveis de seu pretendente. Seu irmão, contudo, estava lutando na Irlanda e, ao voltar para Londres no verão seguinte, já a encontrou casada, vivendo sozinha no apartamento miserável de Prewitt, visto que o ma­rido tinha partido numa viagem de negócios dias após o casamento.

Hugh ficou ultrajado ao encontrar a irmãzinha casa­da, abandonada e vivendo na penúria. Intuitivamente soube quem era Prewitt e o que o levara a seduzi-la. Por trás da fachada elegante de mercador bem-sucedido, ele nada tinha, e procurara se elevar socialmente ao se unir a lady Joanna de Wexford, descobrindo somente tarde demais que o pai os esfolaria se pusesse a mão neles. O irmão tentou anular o casamento, mas a Igreja não permitiu.

Joanna, ainda acreditando amar o marido e não que­rendo crer que ele só a desposara para se alavancar so­cialmente, impediu o irmão de ir atrás de Prewitt para tirar satisfações. Hugh precisou voltar ao exterior, mas antes de partir comprou-lhe a casa na rua Woods para que vivesse num lugar decente e a loja, para que pu­desse se sustentar. Ela ficara mortificada ao receber a ajuda, e jurara nunca mais aceitar dinheiro seu.

Como uma idiota, continuava a ter o marido em alta estima, mesmo quando, ao regressar da Sicília, ele se tornou distante, impaciente e distraído. Joanna atri­buiu tal comportamento ao orgulho ferido do marido, que tivera de aceitar a ajuda do cunhado para manter a esposa com dignidade.

Pouco antes de uma nova viagem, ela voltou das com­pras uma tarde, pensando em encontrar a casa vazia, mas, ao entrar, ouviu-o gemer no quarto. Achando que ele estivesse machucado ou doente, deixou a galinha so­bre a mesa e apressou-se escada acima, com o coração acelerado.

Mesmo depois de quase cinco anos, o estômago de Joanna revirava com a lembrança de como o tinha en­contrado, como os tinha encontrado, Prewitt e a esposa do vendedor de aves.

Halfrida estava de quatro na cama, nua exceto pelas meias de lã. Joanna sempre a considerara robusta, mas, despida, ela era imensa; os seios pendurados balan­çavam no ritmo das investidas de Prewitt. Ele estava ajoelhado atrás dela, as calças abaixadas até as coxas, segurando-a pelas nádegas. Nenhum dos dois notou sua entrada. Ela permaneceu parada à soleira da porta, enojada ante tamanha traição.

Prewitt, entretanto, deve ter sentido a sua presença, pois ergueu a cabeça. Os olhos arregalados revelaram sua surpresa, mas nem assim ele perdeu o compasso.

— Joanna, vai ficar aí parada, olhando?

Halfrida também levantou a cabeça, e deu um gritinho ao vê-la, mas como Prewitt começou a rir, ela também relaxou e começou a se divertir à sua custa.

Joanna desceu as escadas correndo, saiu pela porta da frente e continuou andando sem rumo. Caminhou até chegar à Ponte de Londres, procurando alguma tranqüi­lidade às margens do rio. No meio da velha ponte de madeira, ela parou e se apoiou às grades, tremendo ao sentir a brisa úmida.

Centenas de embarcações estavam atracadas às margens do rio. Ao longe a silhueta da enorme Torre de Londres se erguia. Lorde Gilbert e lady Fayette a tinham levado lá no ano anterior quando Eleanor de Aquitania residia no palácio, apresentando-a à rainha como a futura nora deles. Joanna a presenteara com uma bolsinha bordada e a soberana a elogiara pelo belo trabalho. Sabia que nunca mais poria os pés na­quele lugar.

Hugh estivera certo o tempo todo. Prewitt não a amava; casara-se com ela somente por interesse. A ironia da situação era que o pai a tinha deserdado por causa do matrimônio. Agora Prewitt já não via serventia nela, a menos talvez como forma de se satisfazer sexualmente, tarefa que ela dividia com outras, pelo visto. Primeiro o pai tentara se aproveitar dela em benefício próprio, depois o marido. Parecia que ela existia apenas e tão somente para facilitar as aspirações dos homens. Sentia-se mortalmente envergonhada por ter sido tão ingênua.

Baixando o olhar para as águas frias do rio, imagi­nou se ele seria fundo o suficiente para que se afogasse, já que não sabia nadar. Imaginou um policial indo até a casa deles para comunicar a tragédia a Prewitt. Ele cobriria o rosto com as mãos ao receber as palavras de conforto do policial. Porém, sozinho, descobriria o rosto e sorriria...

Os sinos da igreja marcaram as horas, e Joanna refez seus passos pela ponte, seguindo o som reconfortante do santuário. Sentiu-se em paz entre as paredes de pe­dra. Lá dentro, ajoelhou-se diante do altar, implorando a Deus que lhe desse forças e um norte. Imaginou Deus perguntando-lhe o que buscava em sua vida.

Livrar-se de Prewitt. Era isso o que ela mais queria. Uma anulação seria impossível, mas quem sabe eles não poderiam viver separados? Detestava a ideia de deixar a casa, que, afinal, era dela. Hugh a colocara em seu nome. Porém, não poderia vendê-la sem o consenti­mento do marido, e Prewitt poderia exigi-la para si. Não concebia a ideia de vê-lo morando ali sozinho e, além do mais, para onde ela iria? Mesmo que quisesse se humi­lhar e pedir perdão ao pai, ele jamais a receberia. Nem lorde Gilbert, é claro.

Poderia tentar forçar Prewitt a deixar a casa, mas a lei estava do lado dele: se não quisesse partir, não era obrigado. Ele poderia morar lá para sempre, forçá-la a dividir a cama e até mesmo surrá-la, e ninguém diria nada. Mesmo que conseguisse expulsá-lo, não teria como se manter. O dinheiro que conseguiam com a venda das sedas era modesto, mas era melhor do que nada.

A vida seria tolerável se continuassem a viver juntos? Talvez. Afinal de contas, ele passava a maior parte do tempo no exterior. Não era de se admirar que a maioria das viúvas tivesse um ar de contentamento... Se os homens desconfiassem de como as esposas achavam atraente a ideia de uma vida sem eles, talvez ficassem apreensivos...

Joanna sorriu para o crucifixo sobre o altar quando uma possibilidade começou a se formar em sua mente. Mais do que uma possibilidade, uma resolução. Sussurrando uma prece de agradecimento pela orientação recebida, saiu da igreja e descobriu que já era noite. Ciente de sua decisão, passou num cuteleiro e gastou todo o seu dinheiro numa adaga que prendeu ao cinto.

Ao chegar em casa, encontrou Prewitt sentado à mesa somente de camisa e com um jarro de vinho dian­te dele. O marido a olhou por sobre o ombro.

— Já passou da hora do jantar. Onde esteve esse tempo todo?

— Ela foi embora?

— Sim. — Ele se virou e a encarou. Os olhos cas­tanhos que a tinham cativado a olhavam com malícia. — Antes de partir, porém, aguçou o meu apetite. — Com um gesto para a galinha abandonada sobre a mesa, or­denou: — Cozinhe isso e seja rápida.

No início Prewitt parecia adorá-la, depois passou a ignorá-la. A atual hostilidade eriçava os pelos da nuca de Joanna num mau presságio. Umedecendo os lábios, ela disse:

— Quando você me pediu em casamento, jurou fidelidade.

Prewitt sorriu como se estivesse diante de uma crian­ça com retardo mental.

— Tenho a tendência de dizer todo o tipo de coisa quando estou no auge da paixão.

— Nunca foi apaixonado por mim.

— Os homens não são dados aos mesmos tipos de paixão romântica que as mulheres. Temos necessidades mais... elementares. Se você não fosse tão jovem e mi­mada, saberia disso.

Joanna nunca tinha percebido os dezesseis anos de diferença entre eles com tanta intensidade; era, de fato, jovem e ingênua, até aquele momento. Forçou-se a se aproximar com o queixo erguido.

— Só se casou comigo por ambição. Não sou tão tola a ponto de não perceber isso,

— Vai fazer esse jantar ou não? — ele perguntou, servindo-se de mais vinho.

— Não vou mais preparar seu jantar, Prewitt. — Respirou fundo. — Nem seu desjejum, ou almoço.

— Ah, você vai sim! — Os olhos castanhos se arregalaram.

—Também não poderá mais dormir no quarto comigo — ela continuou, esforçando-se para manter a voz firme. — De hoje em diante, você dormirá no depósito.

— No depósito! — Ele gargalhou. — Sua insolente. Quem pensa que é para me expulsar de meu próprio quarto?

— Aquele é o meu quarto — disse, amaldiçoando o tremor na voz. — Esta casa é minha.

— Você é minha mulher — ele afirmou por entre os dentes. — Você me pertence. A lei diz que tem de me obedecer. Vou dormir no quarto se eu quiser e a farei se deitar comigo quando eu sentir vontade. Dia ou noite. E nesse meio tempo, se eu desejar, estarei com qualquer outra mulher, e você não poderá dizer nada!

— Esta é a minha casa — repetiu ela.

— Sobre a qual eu tenho completa autoridade. Eu posso, se quiser, expulsá-la e ficar aqui sozinho. Ou quem sabe eu a alugue? Afinal de contas, passo a maior par­te do tempo viajando. Tampouco preciso da loja. Posso voltar a vender no mercado. Não sei como não pensei nisso antes...

— Porque esta casa não é sua para alugar! — Ela deu um passo à frente. — É minha. Você tem algum controle sobre ela, mas não pode dispor dela sem o meu consenti­mento, nem pode me expulsar. Hugh me disse isso.

— Maridos dispõem dos bens das esposas o tempo inteiro sem o consentimento delas.

— Sim, mas quando eles morrem, a esposa pode reto­mar as propriedades. Essa é a lei.

— Sou jovem e saudável.

— Homens jovens e saudáveis sofrem acidentes o tempo todo.

— E você adoraria isso, não?

— Quem sabe?

— Sua vadia mimada! — Prewitt jogou o copo no chão e a segurou pela cintura, obrigando-a a se ajoelhar.

— Como ousa?

O rosto de Joanna virou para o lado com a força do tapa.

Não chore. Agüente firme.

Ela tentou se levantar, mas foi detida pelas mãos fortes em seus ombros. Prewitt a prendeu entre as pernas.

— Ainda se considera lady Joanna de Wexford, não é mesmo? Bem, milady, agora você é minha. — Prewitt arrancou o véu e a agarrou pelos cabelos. — Minha! — Apertou-lhe os seios com brutalidade.

Ainda segurando-a com força, começou a desatar o nó da calça. Joanna sabia o que ele queria. Um dia fize­ra o que ele tinha pedido, mas o fizera como um ato de amor.

Aquilo não seria um ato de amor.

— Você é minha para eu fazer o que bem entender — disse ele arfante, puxando-a para mais perto. Joanna sentiu o perfume almiscarado de Halfrida, e a bile subiu pela garganta. — E agora o que desejo é que ocupe sua boca com algo melhor do que ameaças.

Joanna desembainhou a adaga e a colocou junto à virilha do marido.

— Tire as mãos de cima de mim, Prewitt. — Encarando-o, completou: — Você não gostaria que um acidente acontecesse, não é mesmo?

Ele a soltou e se sentou, a ereção murchando instan­taneamente.

— Onde arranjou isso? Afaste-a de mim!

— Como quiser. — Joanna se levantou e levou a adaga à base da garganta do marido. — Quanto mais eu penso em ficar viúva, mais a idéia me agrada... — comentou.

De repente, o medo de Prewitt deu lugar à fúria, e ele a golpeou no estômago; a adaga saiu voando pelos ares. Por um instante, ela não conseguiu respirar, mas, então, sua determinação voltou e, lutando contra a náusea, ta­teou na palha do chão e encontrou a arma novamente. Ficando de pé, resfolegante e desgrenhada, abraçava o estômago dolorido.

Rindo diante da mão trêmula, Prewitt disse:

— Está muito enganada se acredita que isso a prote­gerá. Tenho o dobro do seu tamanho e sei me defender como qualquer outro homem.

— Acredito que sim. — Ela sorriu. — Quando está acordado.

Ele arregalou os olhou quando captou o sentido das palavras.

— Se pensar em me expulsar de minha própria casa outra vez, sugiro que passe a ter o sono leve.

No fim das contas, Prewitt abandonou a idéia de mandá-la embora e passou a dormir no depósito. Nos cinco anos seguintes, quando estava na cidade, eles di­vidiam o mesmo teto, mas não partilhavam as refeições e pouco se falavam. O relacionamento deles era pura­mente comercial: ele trazia seda, ela as vendia, e os dois viviam modestamente dessa fonte de renda.

Joanna poderia ter continuado a levar essa vida por muitos anos mais, contudo o pacote de seda vermelha chegou de Gênova com os pertences de Prewitt e a no­tícia da morte dele. Só Deus sabia que não sentiria a sua falta, mas lamentava ter perdido as sedas. Até a chegada de Graeham e de seus quatro xelins, vivia ator­mentada sem saber como manter a casa...

Até a chegada de Graeham.

Joanna recordou a cena sórdida e familiar da noite anterior quando desceu acreditando que ele precisava de ajuda. Ainda era jovem e ingênua, pelo menos no que se referia aos homens.

Ela odiava Graeham por lembrá-la de Prewitt, mas quando o assunto era sexo, parecia que os homens, a maioria deles, pelo menos, eram insaciáveis e sem cri­tério de escolha. Se uma mulher estava disponível e o homem achava que poderia se safar, não hesitava antes de usá-la em benefício próprio.

Usá-la... Nunca mais...

Hugh parecia acreditar que o casamento com o tipo certo de homem resolveria seus problemas. Ele tinha razão quanto a um homem de posses não a usar por causa de seu nome, como Prewitt. O irmão lhe dissera que Robert fora fiel à esposa. O marido certo a livraria da penúria e aplacaria sua solidão. O homem certo. Não um mercador de seda charmoso.

Nem um igualmente charmoso sargento de lindos olhos azuis e curiosidade incontrolável.

Não, ele não. De jeito nenhum.

 

— Hugh?

Hugh parou de admirar um alazão e viu que Robert de Ramswick sorria para ele.

— Rob!

Os homens se cumprimentaram com tapinhas nas costas. Em seu costume sóbrio, Robert parecia um jo­vem diácono. Ele nunca fora de ostentar a riqueza.

— Pensei que o encontraria diante dos cavalos de guerra... — Robert deu uma olhada ao redor. — Lady Joanna...

— Está bem ali. — Hugh apontou para a irmã senta­da com os olhos fechados e o queixo apoiado nas mãos. O véu de linho estava torto, e ela estava descalça.

Robert cobriu os olhos com a mão para poder enxer­gar na claridade. Rindo, comentou:

— Ela já era assim quando menina... Havia sempre alguma coisa desarrumada nela.

Tudo o que ele sabia a respeito de Joanna desde que a vira havia muitos anos era que tinha se casado com um mercador de seda já falecido. Dizia a si mesmo que não se importava com o fato de ela ter se casado com alguém de uma classe inferior. Sua maior preocupação era encontrar uma boa mãe para as filhas.

Era estranho pensar em Robert como um viúvo com duas meninas. Embora fosse três anos mais velho do que Hugh, tinha aparência mais jovem. O fato de não ser tão urbano ou viajado, a sua devoção à terra e seu profundo senso de retidão o tornavam o oposto completo de Hugh. Engraçado como dois homens tão diferentes conseguissem manter os laços de amizade.

— Pensei que traria as meninas... — Hugh comen­tou, olhando ao redor. — Onde elas estão?

— Por ali. — Robert apontou para umas barracas.

— Margaret está comprando doces para elas.

— Sua prima Margaret? — Hugh perguntou curioso.

— Sim, ela veio para Ramswick depois da morte de Joan para cuidar das meninas. Pensei que soubesse disso. Bem, vai ou não me reapresentar à sua adorável irmã?

Hugh o levou até Joanna e disse:

— Está acordada, irmãzinha?

— Não me amole... — respondeu ela sem abrir os olhos.

— Que pena que não deseja ser incomodada, milady — Robert disse.

Ela escancarou os olhos.

— Oh! L-lorde Robert?

Ele se curvou num cumprimento.

— É um prazer voltar a vê-la, lady Joanna.

Ela se pôs de pé apressada, alisando o vestido e ajus­tando o véu. Fingindo tentar ajudá-la, Hugh tirou o véu e o guardou na bolsa.

— Hugh!

— É um pecado cobrir cabelos bonitos como os seus.

— Um pecado mortal, milady — concordou Robert. Joanna olhou para o irmão por debaixo dos cílios en­quanto calçava os sapatos.

— Papai! Papai! — Uma loirinha de não mais do que cinco anos veio correndo e se atirou nos braços de Robert.

— Esta é minha filha Catherine — disse ele, sorrindo.

— Catherine, cumprimente sir Hugh e lady Joanna.

A criança escondeu o rosto no pescoço do pai, e Robert emitiu um som, misto de riso com um resmungo.

— O que é essa coisa grudenta em seu rosto?

— Torta de figos fritos — uma moça respondeu ao se aproximar com outra menina no colo.

Robert apresentou Margaret e Beatrix aos irmãos. Margaret era bela, de faces rosadas e olhos calorosos. A túnica de lã modesta a fazia parecer uma viúva, mas os cabelos estavam descobertos. Embora tivesse quase trinta anos, era uma donzela, pois recusara todas as propostas de casamento.

— Comeu torta de figos? — Robert perguntou à filha.

— Deixe-me ver. — Ela afastou o rosto. — Posso? — Ele lambeu a face rosada, e ela riu. — Hum... Que delícia!

A menina mais nova estendeu os bracinhos na di­reção dele. Robert colocou Catherine no chão e pegou Beatrix do colo da prima. O olhar se deteve no rosto de Margaret, e ele sorriu.

— Também andou comendo, não é? — Ajeitando a caçula no colo, estendeu a mão e limpou o lábio inferior da moça. Margaret o fitou e corou. Depressa, os dois des­viaram os olhos.

Joanna lançou um olhar de especulação para o irmão.

— Muito bem. — Hugh bateu as mãos numa demons­tração de alegria forçada. — Quem quer ver as corridas de cavalos?

— Ele a ama — Joanna comentou com Hugh confor­me passeavam perto das barracas abarrotadas de mer­cadorias de todas as partes do mundo. A feira era uma mistura de aromas que atiçavam a imaginação e faziam as pessoas pensarem em lugares remotos.

— Ele não a ama — Hugh rebateu.

— Não os viu esta tarde? As trocas de olhares e ges­tos? Olhe ali. Eles parecem uma família.

Robert e Margaret andavam mais à frente; Beatrix adormecida no colo do pai; Catherine, chupando dois de­dos, os acompanhava de mãos dadas com a moça. Já era o meio da tarde e as crianças estavam exaustas.

— Eles nunca poderão ser uma família; são primos de terceiro grau.

— Primos de terceiro grau casam-se o tempo inteiro — ela disse —, bem como os de segundo. — Apesar de a Igreja condenar casamento consanguíneos até o sétimo grau. — Robert é tão devoto assim?

— Os pais dele são, e ele é devotado aos pais.

— Mas se não fosse por eles — ela insistiu —, Robert teria se casado com Margaret?

— Estiveram apaixonados quando eram jovens. Está tudo terminado há muitos anos.

Joanna viu-o guiar a prima até uma barraca, a mão pousada nas costas dela.

— Eles moram sob o mesmo teto — comentou.

— Você e Graeham vivem sob o mesmo teto.

— Não é a mesma coisa. — Ela corou. — O sargento e eu... Nós... Isso nunca...

— Nem Robert e Margaret. Mesmo que ele a amasse, é um homem muito honrado para comprometê-la, sabendo que nunca poderia se casar com ela.

— Eles não podem conseguir o consentimento papal?

— Cerca de onze ou doze anos atrás ele fez uma peti­ção junto à cúria romana, mas o pedido foi negado. Ele e Margaret ficaram arrasados, mas depois superaram. Robert consentiu que os pais arranjassem o casamento com Joan, e ele foi um bom marido para ela.

— Ele devia ter se casado com Margaret sem o con­sentimento do Papa.

— Robert foi feliz ao lado de Joan.

— Existem pessoas com o dom da perseverança — disse ela, ecoando as palavras de Graeham —, que fa­zem o melhor que podem nas situações adversas. Mesmo assim, ele deveria ter se casado com Margaret.

— Talvez, mas isso ficou no passado. — Hugh segu­rou a irmã pelos ombros e a encarou. — Ele quer se casar novamente, Joanna. Esta pode ser uma oportuni­dade maravilhosa para você.

— Você me disse que ele quer se casar para dar uma mãe para as filhas, mas elas já têm Margaret e parecem adorá-la, assim como ele. Por que Robert sente-se obri­gado a substituí-la por uma esposa?

— Não sei. Ele é um homem, afinal de contas... Com necessidades. E o que isso importa? Ele quer uma es­posa e está disposto a considerá-la para tal. É um bom homem, nobre, com uma bela propriedade. Seria o ma­rido perfeito. Não o desencoraje porque acredita que ele esteja apaixonado pela prima. Isso é passado.

Mais adiante, Robert passou Beatrix para os braços de Margaret e deu algumas moedas ao vendedor, que pegou três tangerinas e as estendeu. Dando um passo para trás, Robert as jogou para o alto e começou a fazer malabarismos para a felicidade da prima, que ria con­tente. Robert sorriu, orgulhoso, em resposta à reação de Margaret, e nem olhou na direção de Joanna.

 

Graeham passou o dia refletindo sobre a idiotice da noite anterior enquanto mantinha um olhar atento na casa de Rolf Le Fever.

No fim da manhã, as janelas do terceiro andar se abri­ram. Ele se sentou na cama, as costelas doendo. As vene­zianas tinham permanecido fechadas desde que chega­ra, mas aquele era um dia bem quente. A criada, Aethel, passava um pano no parapeito e conversava com alguém no interior do quarto. Ela se afastou por um instante e tudo o que Graeham conseguiu ver foram os painéis de madeira da parede e o teto do aposento.

Quando Aethel reapareceu, meneou a cabeça e ges­ticulou para fora. Depois juntou as mãos como numa prece, sorrindo para a pessoa com quem conversava. Por fim, com uma expressão resignada, voltou a fechar a veneziana.

Graeham manteve a vigília, mas a janela não se abriu de novo. Mais tarde, encostou a janela que dava para o beco, pois era hora de Olive passar para entregar o tôni­co. Depois que a moça retornou à farmácia, ele reabriu a janela, precisando de ar fresco naquele dia tão extraordi­nariamente quente.

Por fim, acabou se deitando novamente. Nem Thomas, nem Leoda apareceram para conversar. Era muito prová­vel que a mulher tivesse ido à feira, ele pensou, sorrindo ao se lembrar de sua juventude. Ele e os outros garotos vagavam pela feira até o entardecer quando as prostitu­tas começavam a surgir. Elas eram facilmente identifi­cadas por causa da maquilagem e das roupas vistosas. Por vezes, notavam os olhares especulativos dos garotos e piscavam sedutoramente, fazendo-os fugir, assustados.

Graeham voltou a pensar nas conseqüências da visita noturna de Leoda. Quando o dia começou a escurecer, ti­nha se convencido de que Joanna o expulsaria da casa. E quem a condenaria por isso?

A sorte lhe sorrira quando Joanna permitira que se recuperasse ali, mas ele, como um tolo, tinha tratado o fato com descaso e agora teria de pagar o preço.

Deixaria os quatro xelins com ela; afinal, era culpa sua se as coisas não haviam caminhado bem. Joanna ti­nha mantido seu lado do trato, e de boa vontade.

Sentiria falta dela.

— Maldição!

— Essa palavra é feia.

Graeham olhou para o beco e se deparou com um rosto sujo encarando-o por entre as grades. Um menino, que não devia ter mais do que nove ou dez anos.

— É mesmo — Graeham admitiu —, mas eu não sabia que havia uma criança por perto.

O olhar do menino recaiu sobre a tala na perna.

— O que aconteceu com você?

— Deparei-me com uns homens maus. — Graeham se ajeitou na cama.

— Há muitos homens maus em Londres. E preciso fi­car atento para sobreviver. — Apesar da aparência, a fala não era rude como a das classes mais baixas.

— É verdade. Qual o seu nome, rapaz?

— Adam.

— Sou Graeham Fox.

— Fox... Por causa do cabelo?

— Por causa da minha astúcia. — Graeham sorriu.

— Minha mãe sempre me disse que a inteligência é melhor do que a beleza. — Tristeza se fez ver na expres­são de Adam.

— Sua mãe — Graeham começou a dizer baixinho —, ela está...

— Moramos em Shambles — Adam respondeu rápido. — Meu pai é açougueiro, mamãe também.

— Ah... — Pela aparência negligenciada, Graeham pensou que o menino fosse filho de um pedinte ou, no máximo, de um carreteiro.

— Você mora aqui? — Adam perguntou.

— Por enquanto. — Até Joanna voltar da feira, pensou.

— Parece confortável.

— E é.

Um barulho na porta da frente atraiu a atenção de Graeham. A porta foi aberta, e Joanna entrou na loja, sendo seguida pelo irmão. Um movimento e passos aba­fados o fizeram olhar de volta para o beco. Adam tinha sumido.

Os sussurros na porta da loja chamaram a sua aten­ção. Joanna e Hugh estavam muito próximos, trocando idéias sobre algum assunto, e Graeham se perguntou se esse assunto não seria ele. Hugh era quem mais falava enquanto Joanna olhava para um objeto colorido que trazia nas mãos. A voz do outro se elevou e Graham pare­ceu ouvir algo como "é uma boa combinação, Joanna".

— Shh! — Joanna olhou na direção de Graeham pela primeira vez, assim como o irmão. Ele a levou para fora da loja com um braço ao redor dos ombros e continuou com os conselhos misteriosos. Ela pareceu concordar a contragosto; ele insistiu, segurando-a pelos braços. — Está bem, pensarei a respeito — disse ela num tom que Graeham conseguiu ouvir mesmo estando longe.

Quando Hugh a afagou nos cabelos, Graeham notou que ela não usava o véu. Depois, o irmão a beijou no rosto e partiu. Joanna o observou se afastar; em seguida, voltou para dentro da loja e trancou a porta. Por um instante, seu olhar se encontrou com o de Graeham nos fundos da casa.

Ela começou a andar na direção dele, mas parou na saleta e pousou o que levava nas mãos no meio da mesa. Acendeu as velas, afastando a escuridão do entardecer.

Graeham pegou as muletas e se levantou.

— Sra. Joanna.

Ela o olhou, parecendo apreensiva. Estava linda e, se o ouro pudesse ter um matiz mais escuro sem perder o brilho, seria como o cabelo dela. O vestido era da mesma cor e, não fosse pela suavidade do rosto e das mãos, ela pareceria uma estátua de bronze.

Graeham claudicou até a porta e segurou no batente para se sustentar.

— Perdão — disse ele com suavidade. Ela o encarou com tamanha intensidade que ele teve de abaixar o olhar. — Eu... violei a sua hospitalidade. Não há descul­pas para meus atos. Lamento muito.

Quando levantou a cabeça, viu que ela examinava as pontas dos dedos ao dizer:

— Sei que sente falta de... de companhia feminina, mas este é o meu lar e...

— Eu errei — confessou com sinceridade e deu um passo à frente, prendendo o olhar dela. — Não importa por que aconteceu. Eu sabia de não devia ter feito isso, mas fiz mesmo assim e agora... Agora a senhora... Nós... bem. — Passou os dedos pelos cabelos, exasperado por seu talento com as palavras abandoná-lo na presença dela. Aproximou-se um pouco mais. — Diga-me o que preciso fazer para que tudo fique bem — implorou, envergonhado pelo tom de desespero na voz, pela opressão que sentia no peito. Ela o faria ir embora. Não queria partir; queria ficar ali, com ela. — O que posso lhe dizer?

Ela não o encarou.

— Joanna...

Ele nunca a chamara daquela maneira. Ela ergueu os olhos e procurou os dele. Graeham não tentou escon­der seus sentimentos, embora soubesse que seria me­lhor. Em vez disso, deixou que ela visse o vazio dentro dele, o vácuo terrível que o assolava.

Deus, por favor, não a deixe me expulsar.

Abaixando os olhos mais uma vez, ela apanhou a fruta do centro da mesa e disse, hesitante:

— Robert de Ramswick, um amigo de Hugh, me deu isto. Não como uma tangerina desde a época em Montfichet. — Um tanto tímida, ofereceu: — Gostaria de dividi-la comigo?

O ar saiu dos pulmões de Graeham com força; uma onda de alívio o percorreu. Ela não iria fazê-lo ir embora.

— Sim, sim... Eu adoraria.

Ela deu um sorriso tímido, e ele sorriu como um idio­ta. Nesse momento houve uma batida à porta.

— Sra. Joanna! Sou eu, Olive.

— Olive... Eu disse a ela que viesse me procurar. Deve ter visto que acabei de chegar. — Joanna colocou a fruta na mesa e se dirigiu para a porta.

Graeham pegou uma das velas e se virou para o quarto.

— Ela não pode me ver. Joanna parou e perguntou:

— Por que não?

Pensando rápido, Graeham arranjou uma desculpa:

— Muitas pessoas sabem que estou me hospedando aqui. Não é bom para a sua reputação.

— Há uma semana dizia que minha reputação não seria maculada, pois é um inválido e somente um pen­sionista. Repensou seus conceitos, sargento?

De modo oportuno, Olive voltou a bater à porta.

— Senhora, está em casa?

— E melhor deixá-la entrar — ele disse e fechou a cortina depois de entrar no quarto.

Conseguiu ouvir Joanna cumprimentando Olive, os passos das duas até a mesa e, depois, a conversa.

— Deixe-me pegar o seu manto, Olive. Sente-se. Gostaria de beber alguma coisa?

— Não, nada, obrigada. Eu... eu só... Bem, não quero impor a minha presença.

— Fui eu quem pediu para que você viesse, lembra?

— E que... Não consigo falar com a minha mãe. Ela piorou nos últimos tempos... E a senhora é tão gentil co­migo. Sempre tem tempo para mim e sabe o que dizer, o que fazer. Nunca vi uma mulher mais sábia do que a se­nhora. Gostaria tanto que minha mãe fosse assim tam­bém. Eu gostaria de ser assim, forte como a senhora.

— Você é forte, Olive.

— Não, eu jamais conseguiria superar tudo pelo que passou e manter meu queixo erguido. Ainda mais de­pois que descobriu que seu marido...

— Olive, nós... Nós não precisamos falar de mim.

— Eu falei alguma coisa errada?

— Claro que não. E que...

— Foi porque mencionei o sr. Prewitt? Não tive a intenção de remexer em lembranças tristes. Fiquei tão desolada quando soube o que aconteceu.

— Olive, por favor...

— Lá vou eu novamente. — A moça gemeu. — Eu e a minha boca enorme. Desculpe, senhora. Às vezes não sei refrear a língua.

— Olive, por que não me conta o que a vem perturbando?

— Há um homem — Olive disse tão baixo que Graeham quase não pôde ouvir —, mas não posso lhe dizer quem é. Haveria problemas se soubessem o que... o que aconteceu entre nós.

— O que aconteceu, Olive?

Quando a moça finalmente voltou a falar, o seu tom era choroso.

— Eu o amo, senhora, e... e... e ele me ama também.

— Isso não é motivo para lágrimas, querida.

— Não seria se... — Olive suspirou profundamente. — Se pudéssemos nos casar.

— Não podem se casar?

— Não! — A moça se desfez em lágrimas.

— Calma, querida... Vai ficar tudo bem — Joanna a confortou.

— Sei que eu deveria tentar esquecê-lo. E eu tento, mas toda vez que o vejo... É como se meu coração esti­vesse sendo esmagado. Sei que isso parece ridículo, mas não sei explicar de outro modo.

— Explicou muito bem. Sei exatamente como se sente.

— Sabe?

Dessa vez foi Joanna quem demorou a responder. Graeham olhou para a cortina, à espera da resposta.

— Sim, eu sei — disse ela baixinho.

— Preciso ir. — Olive fungou. — Mamãe não sabe que estou aqui. Obrigada, senhora.

— Não fiz nada.

— A senhora me ouviu.

— Mas não consegui ajudá-la...

— Não há ajuda para o meu caso — Olive disse mais calma —, a menos que eu o tire do pensamento. A se­nhora me deixou falar; se não fosse por isso, meus sen­timentos estariam me envenenando... Não sabe o que é não ter ninguém com quem contar.

— Sim, eu sei — Joanna confessou.

Graeham ouviu passos conforme Joanna acompa­nhava a moça até a porta. Ficou colado à parede até vê-la passar pela rua; depois pegou as muletas, levantou-se e seguiu para a saleta.

Joanna estava sentada à mesa, observando a tangerina.

— Não me lembro como se descasca. Imagino que eram os criados que faziam isso.

— Passe-a para cá. — Sentando-se do lado oposto, Graeham pegou a fruta e mordeu um pedaço da casca, depois foi descascando o resto com a ponta do dedão.

Joanna fechou os olhos e inalou a fragrância exótica emanada da fruta. Graeham se lembrou dela na noite anterior, hipnotizada pelo perfume do banho. Ficou ima­ginando se ela ficaria daquele modo ao fazer amor.

Cristo Santo, homem, esta é a última coisa na qual deveria pensar!

Seria melhor controlar seus desejos em rédea cur­ta enquanto permanecesse naquela casa. Havia muito tempo para deixá-los correr soltos depois de se casar com Phillipa.

— O nome do amor secreto de Olive é Damian — Graeham informou.

— Como sabe disso?

— Eu os ouvi conversarem no beco, lembra?

— O filho de Lionel Oxwyke, o cambista que mora na casa de pedra, se chama Damian. Já deve ter ouvido as brigas deles...

— As discussões deles costumam ser meu maior divertimento. — Terminando de descascar a fruta, Graeham pegou um gomo e o estendeu a Joanna.

Ela o segurou diante da chama da vela. Os tremeluzentes olhos castanhos roubavam o fôlego de Graeham.

— Parece uma jóia — ela comentou. Pare de encará-la, seu idiota.

— Lembro-me de Olive mencionar o pai do moço. Tive a impressão de que ele não aprovaria a união deles. — Graeham pegou um gomo para si.

— Estou certa disso. Talvez esse seja o motivo para tantas brigas. Essas discussões começaram há poucas semanas. — Joanna levou o gomo aos lábios, lambeu-o e depois o partiu ao meio com os dentes, o sumo descendo numa trilha.

Não encare!

Graeham olhou para b gomo nas mãos e viu que o tinha esmagado. Rapidamente enfiou-o na boca, tritu­rando as sementes com os dentes.

Joanna retirou uma semente da boca e a colocou com delicadeza na mesa.

— Damian é o único filho de Lionel e está prometido em casamento para a filha de outro cambista, mais in­fluente do que o pai. A menina só tem nove anos, então eles têm de esperar mais três antes que a Igreja permita a união.

— O noivado está formalizado?

— Até onde eu sei, Lionel ficaria furioso se o filho pro­pusesse casamento a outra moça. E ele não é um homem que se deva provocar, pois tem um gênio colérico. Dizem que ele sofre de excesso de bile amarela que lhe causa dores de estômago, sendo essa a causa de seu tempera­mento irritadiço. — Joanna mordeu a outra metade e lambeu os lábios.

Não encare, não encare...

— Deve ser por isso que não podem se casar. — Graeham pegou outro gomo e o estendeu, amaldi­çoando seu comportamento juvenil quando sentiu um estremecimento ao tocá-la. — Havia algo mais... Uma coisa de que ela não queria que ele tomasse conhecimen­to, mas que Damian disse já saber. Ela ficou muito per­turbada com isso.

— A loucura da mãe?

— A mãe dela é louca?

— Talvez não louca exatamente, mas anda muito me­lancólica... Privada de seus sentidos, parece.

— Ela sempre foi assim?

— Não, somente do ano passado para cá. Olive acre­dita que ela tenha sofrido alguma desilusão amorosa. Elswyth é uma mulher muito bonita. Ou era, antes de se deixar levar.

— Acredita que seja isso que Olive quer manter em segredo?

— Sei que ela não quer que ninguém saiba, pois quan­do me contou tudo, me fez jurar segredo. Ela é aprendiz, e só deveria auxiliar a mãe no preparo dos tônicos e elixires, mas há meses é a única responsável pela farmácia. A mãe perdeu o interesse, dorme até tarde, fica vagando pela horta, mesmo no meio do inverno quando não há nada para se fazer lá. Elas poderiam perder a loja caso isso fosse de conhecimento público. E claro que ela não deve querer que Damian saiba.

Graeham refletiu enquanto comia mais um gomo.

— Não foi isso o que eu entendi da conversa dela. Foi como se Olive não quisesse que ele soubesse de algo re­lacionado a ela.

— Se a mãe está ficando louca e é ela quem cuida dos negócios, acho que isso tem a ver com ela.

— Bem... Estou certo de que deve ter razão. — Ele estendeu outro gomo.

— Não está, não. — Ela sorriu e comeu a fruta.

Mais tarde, naquela mesma noite, Graeham lia antes de dormir quando ouviu uma batida na janela que dava para o beco.

— Sargento?

Ele abriu a veneziana.

— Boa noite, Leoda — disse baixinho, pois Joanna ainda estava acordada, bordando.

Ela sorriu; parecia mais bonita à noite, mais jovem.

— Senti sua falta hoje. Fui à feira. — Ela sorriu se­dutora. — Que tal um pouco de companhia mais tarde?

— Sinto muito, mas acho que isso não vai voltar a acontecer.

— Serei mais silenciosa. Ela nunca saberá que estive aqui.

Ele a pegou pela mão.

— Não é mais prudente que venha aqui.

— Mesmo durante o dia? — perguntou desconsolada. — Só para conversar?

— Mesmo assim. Lamento, Leoda, apreciei muito as nossas conversas.

— Não quer que ela me veja.

— Antes de ontem à noite, eu não teria me importa­do, mas agora... Eu me sentiria...

— Teme que ela o expulse se me vir. Estranhamente, aquilo não lhe ocorrera, ainda que pudesse ser verdade.

— Estou preocupado com os sentimentos dela, de fato.

— Os sentimentos dela... — A mulher deu um sorriso de quem entendia o que estava acontecendo.

Graeham sentiu um rubor nas faces.

— Não, não há nada assim entre nós. Ela é uma mulher casada.

Por um bom tempo, Leoda ficou contemplando as mãos dadas, a expressão mostrando um conflito interior, que gradualmente se transformou em determinação.

— Joanna Chapman não é uma mulher casada, sar­gento. Ela é viúva.

— Só acredita nisso porque o marido está sempre au­sente, viajando.

— Ele foi esfaqueado no verão passado por um italia­no com cuja esposa o mercador estava se relacionando... intimamente. Sir Hugh me contou no outro dia e pediu que não lhe dissesse nada.

Graeham a encarou e relembrou pedaços de con­versas... Fiquei tão desolada quando soube o que aconteceu.

Claro, era isso...

Leoda apertou sua mão e disse:

— Achei que você tinha o direito de saber. E estou certa de que ela tem seus motivos para esconder isso. Não fique bravo com ela.

— Obrigado. Eu não estou aborrecido — disse com sinceridade, pois não podia julgá-la se ele mesmo era culpado de erro semelhante.

Quantas vezes não mentira para esconder o verda­deiro motivo que o levara a Londres? A única falsidade de Joanna era relativamente benigna comparada com as suas.

— Prometi a sir Hugh não dizer nada — ela continuou. — Ele não virá mais me ver se souber que lhe contei.

— Eu não direi nada. Estaria sendo mal agradecido com você.

— Você é um bom homem, sargento, soube disso as­sim que o vi. — Ela o acariciou na face com a mão livre.

— Foi um prazer conhecê-lo.

— O prazer foi meu. — Ele a beijou na mão e a soltou.

Leoda se afastou rebolando e lançou um beijo no ar.

— Importa-se se eu lhe fizer companhia? — Graeham coxeou até a loja onde Joanna tinha se refugiado após o jantar, como de costume.

— Não, claro que não. — Havia uma lamparina pen­durada sobre o cavalete no qual uma seda intocada es­tava esticada. — Embora não haja um lugar no qual possa se sentar.

— Isto servirá. — Ele se sentou no tampo de um baú apoiado na porta da loja. Esticou a perna imobilizada para o lado e apoiou as costas na parede.

Nas três semanas em que vivia ali, raramente entra­va na loja. Durante o dia ficava preocupado em ser visto, especialmente por Olive, já que a farmácia ficava bem em frente. A noite tinha por hábito ficar lendo até a hora de dormir enquanto Joanna continuava trabalhando.

Hesitava em impor sua presença quando ela se ocu­pava com uma tarefa tão solitária e criativa. Ele mesmo nunca fora do tipo de depender da companhia de outros e até se gabava disso. Esse sentimento, entretanto, eva­porava diante de Joanna. Adorava a companhia dela, precisava dela. Naquela noite chegara ao ponto de se sentir sedento por estar perto daquela mulher.

Ao lado do cavalete, havia um cesto repleto de arti­gos para os bordados: agulhas, franjas, fios de seda... Joanna se inclinou e pegou uma pena de ganso e um pedaço de carvão. Apontando o carvão, colocou-o dentro da pena.

— Engenhoso — comentou Graeham.

— É um dos muitos truques de lady Fayette. — Com a caneta confeccionada, Joanna começou a traçar linhas e curvas na seda esticada.

Ele a observava de perfil, os cabelos soltos nas têm­poras e na nuca formando anéis. Ela estava sem o véu, pois achara que ficaria sozinha e ainda não tinha se dado conta do fato, concentrada como estava no tra­balho. O vestido daquele dia, embora simples como os outros, parecia se moldar mais ao quadril e ao busto, e Graeham contemplava a curva sensual de suas costas enquanto ela se inclinava sobre o cavalete.

Duas semanas tinham se passado desde a sexta-feira em que soubera de sua viuvez; uma quinzena de intermináveis dias e longas noites solitárias na cama estreita. Às vezes depois que Joanna subia, ele ficava deitado ouvindo os rangidos das tábuas do assoalho ou as cordas do estrado da cama se esticando conforme ela se remexia para encontrar uma posição confortável para dormir.

Depois de refletir bastante, decidira não mencionar o fato de saber a verdade, não só pelo bem de Leoda, mas também por entender os motivos que a tinham levado a mentir. Sem dúvida, a farsa a fazia se sentir melhor com a presença dele em sua casa; estando resguardada pelo matrimônio, ela poderia mantê-lo a uma distância segura e respeitável.

Curioso com os esforços empregados para manter o segredo, ele casualmente falava de Prewitt com Thomas, que sempre mudava de assunto. Ela certamente tinha pedido segredo ao harpista, assim como Hugh fizera com Leoda. Suspeitando de todos, Graeham havia até feito perguntas a Adam, que passara a visitá-lo vez por outra, mas o garoto não conhecia o marido.

Bem no fundo, o que Graeham mais queria era que ela lhe contasse a verdade, que o olhasse nos olhos e dis­sesse "sou viúva, não pertenço a nenhum homem". Seu coração clamava por essa declaração, mas ele tinha ida­de suficiente para saber que seria melhor não seguir os impulsos dos sentimentos. Sua mente sabia o que era o certo. Joanna recorrera àquele subterfúgio por um bom motivo. Ela era sábia ao mantê-lo à distância. Ele, um soldado sem bens, só faria piorar sua situação financei­ra. Quanto si mesmo, seria melhor se lembrar de que era, para todos os efeitos, um homem comprometido. Não era correto cultivar uma paixão por Joanna quan­do logo estaria casado com outra; uma união que ele não deveria pôr em risco, a menos que decidisse abdicar das terras que acompanhavam a mão de Phillipa.

Esforçando-se para não pensar em Joanna, Graeham vinha dedicando seus dias à vigilância constante da casa de Le Fever, um esforço que parecia cada vez mais infrutífero. O quarto de Ada permanecia fechado, ao passo que o marido ia e vinha ao bel-prazer. Uma noite ele até mesmo levara uma mulher para dentro, sem se importar em fechar a janela do quarto.

O desenho de Joanna começava a tomar forma, e ele perguntou:

— Uma árvore frutífera?

— Venho pensando em tangerinas ultimamente. — Joanna deu de ombros.

Ele sorriu; por algum motivo aquele simples comen­tário o alegrou.

— O que isso será quando estiver terminado?

— Um lenço.

— A senhora desenha muito bem — comentou ao se inclinar para observar melhor o trabalho.

Ela o olhou de relance sob os cílios espessos.

— Obrigada.

— Sempre cria seus desenhos de maneira tão livre?

— Não, geralmente uso modelos; tenho vários. Al­guns fui eu mesma quem fiz, outros lady Fayette me deu. Estão naquela caixa. — Ela mostrou. — Gostaria de escolher uma borda para este lenço?

— Eu?

— Sim, abra a caixa e dê uma olhada.

Graeham abriu a caixa e viu uma série de estênceis.

— As bordas estão no fundo — disse ela.

Ele encontrou vários pergaminhos. Cada um deles tinha um desenho: videiras, círculos concêntricos, nós entrelaçados...

Apontando para uma tapeçaria, Joanna disse:

— Isso lhe dará uma idéia de como as bordas ficam depois de prontas.

O pendão de seda marfim tinha uma porção de bor­dados em estilos e formatos diferentes, além de animais como um leão rampante, uma águia, e outros temas: an­jos, santos, um rei e uma rainha e, o mais interessante, uma mulher curvada sobre um cavalete de bordar.

— Por que fez isso? — ele perguntou.

— É uma amostra do meu trabalho — disse ela sem se parar de desenhar. — Se uma freguesa quer algo es­pecial, pode escolher um dos motivos, e eu o bordo.

— Aceita encomendas?

— Aceitei algumas vezes. Fiz punhos de camisa para o conselheiro Huxley e uma bolsa para a esposa no ano passado. A maioria dos fregueses só quer laços e ligas. Mesmo que estivessem interessados em algo mais, não teriam condições de pagar. Esse tipo de trabalho é mui­to demorado, e eu cobro o quanto vale.

— Então seria um trabalho lucrativo, mais do que a loja, se cultivasse o tipo certo de clientes.

Ela o encarou.

— Um tempo atrás me lembrei do dia em que fui à Torre de Londres. Havia bordados por todos os lados: em cortinas, estofados, almofadas... A rainha e as damas de companhia vestiam túnicas belamente decoradas com fios de ouro e pérolas. Todas elas tinham lindos cintos e bolsas.

— Senhoras como elas poderiam pagar por seu trabalho.

— Eu sei. Fiquei pensando em levar uma amostra de meu trabalho para as damas da Torre, mas... — Meneou a cabeça e franziu o cenho diante do desenho.

— Por que não faz isso? Viveria muito melhor do que se continuasse a vender um laço aqui e outro acolá.

— Não... Vai pensar que sou tola.

— Não vou, não.

Joanna gesticulou em direção ao pendão.

— Escolheu uma borda?

— Não pode mudar de assunto com tanta facilidade, mas sim, escolhi um. Aquele com os nós.

— Perfeito! — Ela sorriu, fazendo-o sentir uma ri­dícula onda de orgulho. — Poderia encontrar o estêncil dele, por favor?

Vasculhando os moldes, Graeham disse:

— Os seus bordados são dignos da própria rainha. Uma encomenda real a sustentaria por vários anos. Por que hesita em levar seu trabalho à corte?

Ela tirou o carvão da pena de ganso e os guardou; em seguida, começou a afiar a ponta de uma pena de corvo.

— É por causa da mudança na minha situação — afirmou sem encará-lo. — Aos catorze anos fui apresentada à corte e conheci a rainha. Voltar aos vinte e um como uma comerciante... — Balançou a cabeça. — Eu não deveria me sentir envergonhada, mas... Talvez eu só precise de mais um tempo para me encorajar, ou quem sabe, preciso estar numa situação desesperadora que não me dê alternativa...

Ele lhe entregou o molde e recolocou a caixa no chão.

— Permitir que o desespero assuma dificilmente é uma boa estratégia, não importando qual seja seu objetivo.

Joanna suspirou e abriu o frasco de tinta. Encheu a pena e começou a traçar as linhas demarcadas pelo carvão com rapidez, mas impecavelmente.

— Há outro problema. As damas da corte não se sa­tisfarão com simples bordados em seda. Elas apreciam ornamentos caros como pérolas e pedras preciosas apli­cados com fios de ouro. Não tenho dinheiro para com­prar tais coisas. Os fios de ouro também são muito cus­tosos, pois são feitos com ouro genuíno enrolado a fios de seda. A fiandeira ganha mais por gramas desse produto do que eu em um lenço como este.

— As damas da rainha necessitam mesmo de ouro e jóias?

Ela lhe lançou um olhar entristecido.

— Ouro e jóias são só o que elas conhecem, sargento. Elas são as filhas das famílias mais nobres do reino. A esposa de um mercador, ou mesmo de um conselhei­ro, poderia se contentar com fios de prata e lantejoulas, mas não aquelas mulheres.

— Lantejoulas?

— São pequenos ornamentos metálicos que, se bem aplicados, não fazem feio. Há também vidrilhos de Veneza vendidos no mercado de sexta-feira que substi­tuem bem as pedras preciosas.

— E as esposas dos mercadores consideram a troca aceitável? — Graeham perguntou, a semente de uma idéia germinando em sua mente.

— Elas não têm escolha. Ouro e jóias são inacessíveis para elas; mesmo que aspirem à nobreza, os maridos não teriam meios de bancar tais luxos.

Graeham se ajeitou sobre o baú, acreditando que sua idéia poderia funcionar.

— Já pensou em atender as esposas dos mercadores mais abastados?

— Já faço isso. — Joanna contemplou o trabalho com olhar crítico. — Se elas vêm à loja à procura de um ar­tigo em particular...

— Não, quero dizer ir até a casa delas com as amos­tras para que vejam do que é capaz. Se fosse até elas, como fazem as modistas, e conversasse com elas, sabe­ria do que elas precisam de fato e logo estaria com mais encomendas do que o necessário para se manter.

Ela pegou um espanador de penas e tirou pó de car­vão da seda, deixando o desenho com um traçado claro a tinta.

— Não teria de ir além da rua Milk — disse ele. — Há a esposa do cambista, aquele do temperamento ruim...

— A esposa de Lionel Oxwyke?

— Ela mesma. Eles conseguiriam pagar pelo seu trabalho. — Graeham refreou o entusiasmo da voz; ela não deveria suspeitar que aquele esquema o beneficia­ria de algum modo. — E a esposa do chefe da associação dos comerciantes de tecidos, aquela que está sempre doente?

— Ada Le Fever?

— Sim.

— De jeito nenhum. — Joanna se levantou e saiu pela porta de trás.

Graeham sussurrou uma imprecação e se largou na parede. Se conseguisse convencê-la a entrar na casa de Le Fever, acabaria sabendo das reais condições de saúde de Ada. Qualquer informação seria melhor do que tinha até o momento só de espiar pela janela.

Joanna seria seus olhos e ouvidos. O esquema tam­bém traria benefícios para ela, mas Graeham não se ilu­dia em pensar que sua proposta era altruísta. Sentia-se consumado pela sua missão e, se pudesse usar Joanna, quer ela soubesse disso ou não, era o que faria. Qualquer vantagem que ela obtivesse seria secundária.

Quando ela voltou, trazia um pano, uma esponja e uma bacia de água, que depositou na mesa de trabalho antes de voltar a se sentar.

— Farei o que propôs.

— Vai procurar Ada Le Fever?

— Ela não, mas procurarei Rose Oxwyke e tal­vez Elizabeth Huxley, a esposa do conselheiro. Com o aluguel que me pagou, poderei comprar fios de prata e lantejoulas e...

— Por que não vai procurar a sra. Ada? E por causa da doença dela?

— Por causa do marido. — Ela virou a moldura e expôs o reverso da seda no cavalete.

— Qual o problema com ele?

— Ele me roubou o direito de me manter porque eu não... — Ela se virou e o encarou.

— Roubou seu direito de se manter? Como?

— Eu o procurei em busca de um favor um dia. — Ela molhou a esponja e a espremeu.

— Que tipo de favor?

Joanna mordeu o lábio enquanto umedecia o tecido.

— Eu queria fazer parte da associação.

As peças começavam a se encaixar no quebra-cabeça.

— Seu marido já não é membro? — perguntou na esperança de que ela revelasse a verdade, mas sabendo que não devia querer tal coisa, pois isso só traria mais problemas.

Felizmente, ela tinha mais juízo do que ele.

— Sim — respondeu ao guardar a esponja e recolocar a tela no cavalete do lado certo. — Eu só queria fazer parte também porque... porque sim, oras. Le Fever, po­rém, tinha certas condições.

— Condições que a senhora se recusou a cumprir. — Verme maldito, Graeham pensou.

— Exatamente. — Ela pegou um pincel macio e, molhando-o na tinta, começou a fazer sombras no tronco da árvore.

Manfrid entrou na loja pela janela aberta e, ao ver Graeham, pulou no baú ao seu lado e se deitou, ofere­cendo a barriga com um olhar pidão.

— Pois não? — Graeham perguntou num tom baixo. — O que exatamente o senhor deseja?

Manfrid se esticou e se retorceu à espera de um afago.

— Pare de atormentar a pobre criatura e coce a barriga dele. — Joanna riu.

— Não quero que ele pense que estou sempre à dis­posição.

— E não está? Fiquei surpresa com o modo como ele se afeiçoou ao senhor. — Com um sorriso travesso, com­pletou: — E vice-versa. Não pensei que fosse se dar ao trabalho de ficar amigo de uma criatura inútil.

Graeham pousou a mão na barriga do felino, provo­cando um ronronar alto e ressonante.

Joanna sorriu enquanto acrescentava sombras ao tronco e aos frutos, fazendo com que o desenho ganhas­se profundidade.

— É um milagre o que consegue fazer. — Graeham afagava os pelos do gato que se abandonou aos carinhos.

— Tudo o que precisa é de um bom pincel de pelos de esquilo e uma mão firme.

— Não deveria subestimar seus talentos. É uma mu­lher incrível, extraordinária.

Ela não respondeu, parecendo absorta no trabalho, mas as faces ficaram coradas. Graeham quis chutar o próprio traseiro; deveria tentar convencê-la a ver Ada e não perder tempo elogiando-a como um namorado apai­xonado. Mudando de tática, disse:

— Além de talentosa, é uma mulher forte, determi­nada. Independente.

— Precisei ser assim.

Exatamente como ele. Talvez fosse isso o que o atraía nela: eles tinham passado pela mesma experiência de não ter ninguém com quem contar. Em meio às vanta­gens de viver independentemente de outros, havia a desvantagem da solidão. Graeham se perguntou se ela ficava acordada à noite, tentando ouvir os barulhos do andar de baixo.

— A senhora é forte, e é por isso que me surpreendo por se deixar acovardar por Rolf Le Fever.

— Acovardar! — Ela se virou para encará-lo, os olhos brilhantes de indignação, exatamente como ele sabia que ela reagiria. Ele e Joanna Chapman eram muito parecidos.

— Sim, se acovardar. Esse homem a intimida tanto que nem tenta abordar a mulher dele. Le Fever a aba­teu sem nem mesmo tentar, enquanto a senhora permi­te que isso aconteça.

Ela voltou a olhar para o tecido, mas a mão ficou imóvel. Graeham temeu, por um instante, que ela lhe perguntasse qual o seu interesse no assunto. Joanna, contudo, não sabia que ele já conhecia o mercador antes de ser atacado no beco ao lado de sua casa e presumia, portanto, que seu único interesse era ajudá-la. Graeham sentiu uma pontada de remorso.

— Tem razão. Ele está me coagindo sem nem saber, com a minha permissão. É que jurei nunca mais me relacionar com aquele homem... Ele tentou me usar do mesmo modo que os outros homens que conheci. Com exceção de Hugh. — Tímida, olhou-o de esguelha e com­pletou: — E do senhor, é claro.

O remorso dele aumentou.

— Obrigado, senhora.

Na tarde seguinte, Graeham observou pela janela quando Joanna bateu à porta de serviço da casa de Rolf Le Fever, carregando uma bolsa de couro com as amos­tras dos bordados e alguns itens prontos, como um cinto de contas, um lenço elaborado e uma bolsa de franjas.

A cozinheira abriu a porta, limpando as mãos no avental, acenou para Joanna e depois voltou para den­tro da casa. Um minuto mais tarde, Graeham a viu no andar de cima, onde Le Fever se reunia a alguns ho­mens. Ele falou com rispidez, e a cozinheira se retraiu, apontando para fora.

O mercador foi até a janela e se inclinou, franzin­do as sobrancelhas ao ver Joanna. Logo em seguida, ele apareceu na entrada. Apoiando-se ao batente, com os braços cruzados, falou com Joanna, olhando-a com cobiça.

Graeham cerrou os punhos. De súbito, percebeu que não tinha sido uma boa idéia incitá-la a ir lá.

Joanna estava de costas, mas, pela expressão impaciente de Le Fever, estava claro que ela tentava convencê-lo a deixá-la subir para falar com a esposa. Ele balançou a cabeça e retrocedeu um passo, a mão segurando a porta. Ela avançou um pouco e disse algo, apontando para a bolsa que carregava.

Le Fever ergueu uma das mãos, a expressão irada, a voz tão alta que Graeham conseguiu ouvi-lo, mesmo de longe. Ele dizia que a esposa não precisava dos "ar­tigos baratos" que ela ofereceria e que, caso se recusas­se a sair de boa vontade, mandaria que a expulsassem. Por fim, bateu a porta na cara dela.

Joanna ficou parada um momento, depois se dirigiu ao portão. Ao passar pela entrada, parou, a mão segu­rando a grade de ferro, a expressão meditativa. Em se­guida, seu rosto se iluminou.

Graeham achou que ela tentaria entrar às escondi­das; em vez disso, Joanna seguiu pelo beco. Curioso com o que ela tinha em mente, pegou as muletas e foi até a outra janela, mas ela já havia passado.

Mancando, foi até a saleta e viu pela janela da frente que ela entrava na farmácia. Ficou lá por tanto tempo que ele começou a sentir a perna latejar. Quando, por fim, ela saiu, vestia o manto verde de Olive. Antes de atravessar a rua, cobriu o rosto com o capuz. Além da bolsa de couro, carregava o vidro azul do tônico.

Graeham voltou para o depósito e viu quando ela en­trou no quintal dos fundos de Le Fever. Byram, que saía do estábulo naquele instante, a cumprimentou:

— Boa tarde, Olive. Pode entrar.

Joanna levantou a mão à guisa de cumprimento, abriu a porta e desapareceu no interior da casa.

— Garota inteligente! — Graeham sussurrou, deitando-se na cama.

Fechando a porta atrás de si, Joanna se viu num lon­go corredor. A direita, viu a entrada da cozinha, na qual a cozinheira cantarolava ao picar legumes. Uma porta de carvalho estava aberta do lado esquerdo e, ao lado dela, a escada de serviço.

Joanna subiu os degraus com rapidez, rezando para não ser descoberta antes de ter a chance de oferecer seus préstimos a Ada. Ao passar pelo segundo andar e ouvir as vozes dos homens, fez o sinal-da-cruz em busca de proteção.

Parada no terceiro andar, aguçou os ouvidos, tentan­do ouvir algum barulho do lado de dentro do quarto. Infelizmente, tudo parecia silencioso. Olive disse que ela encontraria a dona da casa ali, recuperando-se da gripe. Porém, se ela não estava lá, tinha perdido a viagem e teria de tentar novamente num outro dia. Numa última tentativa, bateu à porta.

— Aethel? — perguntou uma voz aguda. — Pensei que tivesse saído para fazer as compras.

Joanna entreabriu a porta. As janelas do quarto es­tavam fechadas, e ela levou uns instantes para vislum­brar a cama estreita sem cortinas do lado oposto. Uma mulher recostada sobre uma pilha de travesseiros a observava com espanto.

— Sou Joanna Chapman, senhora — ela se apresen­tou, entrando no quarto e fechando a porta. — Sou sua vizinha.

Joanna cruzou o aposento, sentindo-se uma intrusa por invadir o santuário da mulher. Começou a lamentar o fato de ter ido até lá, não pelo temor de ser descoberta, mas por estar violando a privacidade dessa desconheci­da, ainda por cima adoentada.

O quarto era simples. Sem quadros nem enfeites, a mobília era mínima. Não fosse a amplitude do cômodo, poderia passar pela cela de uma freira.

Ada apontou para o frasco azul na mão de Joanna.

— Esse é o meu tônico? — perguntou com voz fraca.

— Sim, Olive... me pediu que o trouxesse.

O certo seria dizer que tivera de convencer a moça a deixá-la levar o medicamento. A garota, hesitante a princípio, concordara em ajudá-la ao saber de suas in­tenções, desde que se comprometesse a fazer a mulher tomar o remédio na hora a fim de levar o frasco de volta para a farmácia, já que a mãe os contava duas vezes ao dia, temerosa de perder algum.

Joanna pousou a bolsa no chão e se sentou numa ca­deira ao lado da cama, tentando não encarar a doente. Ada era bem jovem, ou talvez fosse a doença que lhe emprestasse esse ar. O rosto estava muito pálido, acen­tuado pelos cabelos escuros bem penteados. Embaixo dos olhos, duas manchas escuras.

Joanna tentava conciliar a figura da enferma com a da moça cheia de vida que cuidara do jardim no ano an­terior. Naquele dia, a moça lhe parecera bela e delicada; hoje, só parecia muito doente.

— Se puder me ajudar a sentar, tomarei o tônico — Ada pediu. Ela falava no dialeto continental franco normando, em vez da versão anglicizada mais comum na Inglaterra, com um sotaque refinado que indicava bom berço.

Passando o braço ao redor dos ombros de Ada, Joanna a ajudou e depois abriu o frasco. O remédio tinha um aroma agradável de menta. Ela estendeu o frasco para a enferma, mas a jovem balançou a cabeça.

— Eu o deixarei cair se tentar segurá-lo. Minhas mãos nem sempre obedecem.

Joanna a ajudou segurando o frasco enquanto a moça tomava pequenos goles, com visível dificuldade. Depois voltou a deitá-la sobre os travesseiros.

— Isso fará com que se sinta melhor — Joanna asse­gurou, mudando para o francês ensinado pelos clérigos de seu pai.

— Sempre me sinto pior depois de tomá-lo — Ada comentou.

— Pior?

— Sinto calafrios, e a boca e a garganta ficam adormecidas. Às vezes tenho sangramentos no nariz. O sr. Aldfrith diz que é o remédio fazendo efeito.

— O cirurgião?

— Sim, meu marido mandou chamá-lo quando fiquei doente. Ele ainda vem me ver de tempos em tempos; às vezes traz o genro.

— O genro também é cirurgião?

— Não, é mercador, ou tem intenção de ser. O sogro está tentando inseri-lo na associação, mas Rolf diz que o rapaz é muito inexperiente.

Pelo visto, Ada precisava dos cuidados de um médico de verdade, não do cirurgião local.

— O que o sr. Aldfrith diz ser o seu problema?

— Um defluxo na cabeça. Ele diz que às vezes pode demorar a passar.

Joanna nunca vira ninguém definhar tanto por conta de uma gripe.

— Ele disse a Olive que tipo de tônico preciso tomar, e ela o traz todos os dias.

— Há quanto tempo a senhora o vem tomando?

— Desde a época do Natal... Quanto tempo se passou?

— Quase seis meses.

Ada se virou na direção da parede. Joanna se levantou e disse alegre:

— Sei do que precisa. — Foi até a janela. — Um pou­co de ar fresco e luz do sol.

— Não.

— Está muito escuro aqui dentro e abafado também. Não sei como consegue suportar. — Joanna abriu a ve­neziana e quando se virou, viu que Ada tinha coberto o rosto com o braço.

— Feche — Ada suplicou. — A luz fere meus olhos.

— Acabará se acost...

— Não, feche! Por favor.

Joanna a atendeu e depois voltou para o lado dela. Ada esfregava os olhos com mãos trêmulas. O corpo todo estremecia.

— Está com frio?

— Sim — Ada respondeu, deitando-se de lado e abra­çando as pernas.

Joanna a cobriu com uma manta dobrada aos pés da cama.

— Precisa de um médico.

— Rolf diz que isso não é necessário.

— Mesmo assim, acho que seria melhor pedir uma consulta com outro médico.

— Fiz isso da última vez em que Rolf veio me ver, na quaresma, mas ele disse que isso custaria caro e que eu não estou tão doente quanto pareço, que eu só... — Ada emitiu um suspiro de desalento. — Ele diz que só estou melancólica, que estou valorizando uma simples gripe. Ele e o sr. Aldfrith concordam nisso. — Ela balançou a cabeça. — Desculpe. A senhora não veio aqui ouvir esses lamentos.

— Eu não me importo. É verdade que se sente melancólica?

Ada fechou os olhos e assentiu.

— Acha que é esse o seu problema, além da gripe?

— Talvez. — Ada deu de ombros. — O sr. Aldfrith tentou me explicar, porém é tudo muito confuso. Tem a ver com os humores das estrelas e o equilíbrio da ter­ra, do fogo, do ar e da água. Minha irmã, Phillipa, te­ria entendido, ela é tão inteligente, mas eu não consigo. Aparentemente tudo é resultado do excesso de bile ne­gra; é isso o que causa a melancolia e é por isso que eu acredito estar mais doente do que estou de fato.

Joanna não podia desacreditar a teoria por completo. Se a alma estava doente, o corpo também sofreria...

— Rolf diz que não é nada disso, que eu estou à pro­cura de atenção... e piedade... e... — Balançou a cabeça mais uma vez. — Sei que não veio aqui para me ouvir falar sobre isso, mas só tenho minha criada com quem falar. Bem, se desejar sair...

— Não, não. — Muito menos tinha a intenção de abordar o assunto que a levara até ali. A jovem senhora estava doente demais para se preocupar com bordados. Levantando o livro da mesinha-de-cabeceira, viu que se tratava do Saltério.

— Foi meu tio quem me deu isso — Ada disse. — Ele é o cânone da Notre Dame.

— Ele é lindo — observou Joanna ao ver as letras e as bordas douradas. — Lê com freqüência?

— Meus olhos doem quando leio, mas eu o lia muito. Adoro os salmos.

— Gostaria que eu lesse para a senhora? — Joanna perguntou, sentando-se.

— Sabe ler?

— Sim.

Ada a encarou com um ar especulador.

— Não se parece com nenhuma esposa de mercador que eu já tenha conhecido.

— Nem a senhora. — Joanna sorriu. Ada retribuiu o sorriso.

— Eu adoraria ouvir. Muito obrigada.

Os sinos soavam as Vésperas quando Joanna deixou a casa dos Le Fever do mesmo modo como tinha entra­do: às escondidas. Antes de voltar para casa para prepa­rar o jantar, decidiu que ainda tinha tempo para visitar Rose Oxwyke.

No quintal dos fundos da casa havia um belo jardim com um caminho de ardósia que levava até a porta dos fundos. Joanna estava na metade do caminho quando o jovem Damian saiu pela porta, com o manto negro, o chapéu de feltro e os olhos cintilando.

— Bom dia — cumprimentou Joanna.

— Senhora — ele murmurou, batendo o portão ao sair.

Joanna se aproximou da porta, mas antes de bater, ouviu a voz irritada de Lionel:

— Ele está saindo às escondidas para encontrá-la! E nem se dá ao trabalho de negar!

A esposa disse algo em sua voz aguda que Joanna não conseguiu identificar.

— E claro que meu estômago está doendo — ele rebateu. — Sinto um fogo me consumindo, e é tudo cul­pa dele!

Rose mais uma vez tentou aplacar a ira do esposo, mas ele não queria saber disso.

— Maldito seja ele por seu desaforo!

Joanna girou sobre os calcanhares e saiu; aquela não era uma boa hora. Seria melhor tentar numa outra oportunidade quando o marido não estivesse em casa.

Se aquela tarde desperdiçada era um indicativo de como seria sua nova empreitada, poderia muito bem abandonar a idéia de pronto. Tinha deixado a loja fe­chada durante toda a tarde para o que parecia ser um empreendimento fracassado.

O que faria quando o aluguel de Graeham acabasse? Mulheres sem dinheiro não tinham futuro numa cidade como Londres. Não era de se admirar que tantas aca­bassem vivendo com o trabalho das ruas. Não sabia se teria coragem de chegar a tanto.

De acordo com Hugh, tudo o que precisava era se ca­sar com o homem certo. Quanto mais pensava no assun­to, mais sentido isso fazia. Talvez fosse melhor não dis­pensar Robert com tanta rapidez. Ele não a procurara desde o dia no mercado, porém Hugh afirmava que ele logo a visitaria. Ela dissera ao irmão que pensaria a res­peito só para agradá-lo; contudo, após muita reflexão, o plano tinha seu mérito. Se não fosse por Margaret.

Antes de voltar para casa, dirigiu-se à farmácia para devolver o manto e o frasco. A porta estava aberta, mas a loja estava deserta. Colocando o vidro e a bolsa so­bre o balcão, deu uma olhada no local; não era típico de Olive deixar a loja abandonada. Pendurou o manto da moça no gancho ao lado do corredor que dava para os fundos da casa. A cortina que separava a loja do res­to da construção estava entreaberta e, pela abertura, Joanna conseguiu ver Elswyth no jardim, cuidando das ervas. Virou-se para sair quando murmúrios do outro lado chamaram sua atenção. Olive sussurrava:

— Não... Por favor, não.

Joanna tirou a adaga do cinto e, respirando fundo, abriu a cortina.

Olive arfou surpresa. Ela estava encostada na pare­de, presa nos braços de um moreno: Damian.

— Sra. Joanna! — exclamou a moça.

— O que está acontecendo aqui? — Joanna perguntou.

— Nada. Por favor, guarde isso. Ele não está me fa­zendo mal.

— Fazendo mal? Oh, Deus. — Damian se virou e se afastou. — Não suporto mais tudo isso, Olive. Encontro às escondidas...

— Pare de me procurar, então — a moça implorou.

— Não posso, eu te amo.

— Damian, por favor...

— Venha comigo.

— É impossível, sabe disso.

— Por causa do meu pai? Do compromisso com aquela... aquela menina?

— Não é só isso.

O rapaz voltou a se aproximar e tomou o rosto da moça entre as mãos.

— Já disse isso antes — falou ele com candura —, e não me importo. Não foi culpa sua. Foi obrigada...

— Damian. — Olive fechou os olhos, as mãos segu­rando a saia com força. — Vá embora. — Abrindo os olhos, suplicou, afagando-o no rosto. — Por favor.

Uma lágrima correu pela face dela, e Damian a en­xugou com o polegar; beijou-a na testa e no rosto com gentileza.

— Não vou desistir, Olive — disse com suavidade e partiu.

Olive se apoiou na parede e fechou os olhos, as lágri­mas correndo soltas.

Joanna guardou a adaga e pegou um lenço, oferecendo-o à moça.

— Você está bem?

Olive assentiu e enxugou o rosto.

— E impossível. Ele só não quer aceitar o fato. Nada pode acontecer entre nós.

— Ele tentou tirar vantagem de você? Quer que seja a amante dele?

— Não, ele nunca tocou em mim. Ele quer se casar comigo. Mas eu não posso...

— O que ele quis dizer quando falou que não foi cul­pa sua?

— Algo que não pode ser desfeito, por mais que ele acredite que possa. — Dobrou o lenço e, suspirando, de­volveu-o. — Como está a sra. Ada?

Joanna aceitou mudar de assunto, sabendo que a moça se retrairia caso insistisse.

— Muito doente.

— Ela pegou uma gripe muito forte. — Ajeitando o cabelo, Olive voltou para a loja.

— Aquilo não me parece somente uma gripe.

— O sr. Aldfrith diz que ela sofre de melancolia, como minha mãe.

— Pode ser. Importa-se de me dizer o que há nesse tônico?

— Um remédio comum para gripes, uma infusão de mil-folhas, um pouco de menta e mel para acalmar a garganta. Vendemos muito dessa mistura no inverno passado.

— Mil-folhas? — Não havia nada mais benigno do que aquelas ervas. — Seria possível consumir essas er­vas em demasia ao ponto de ficarmos mais doentes?

— Isso pode acontecer com valeriana ou absinto, mas nunca com mil-folhas. Por quê?

— Foi o que pensei, bem... Eu devo ter me enganado.

— Não é o meu tônico que está deixando a sra. Ada doente, senhora. É o excesso de bile negra que faz isso.

— E possível... — Joanna disse. Mas se Aldfrith tinha tanta certeza do que causava a doença da mulher, por que não conseguia curá-la?

 

Sem querer parecer interessado demais, Graeham esperou até depois do jantar, quando Joanna se retirou para bordar, para perguntar sobre a visita a Ada Le Fever.

— Como foi hoje? — perguntou ao se sentar sobre o baú, com um copo de vinho nas mãos.

Ela suspirou, observando com olhar crítico a seda em que trabalhava.

— Nada bem.

Joanna tinha a cabeça coberta pelo véu naquela noite, pois ele cometera o erro de dizer que lhe faria companhia. Graeham sentia falta de admirar o brilho dos cabelos sedosos, mas mesmo com o véu, era uma luta se controlar para não ficar encarando-a como um jovem tolo.

— Não conseguiu nenhuma encomenda? — indagou, embora já tivesse adivinhado aquilo pela atitude com­penetrada com que ela voltara para casa. Joanna nem sorrira quando ele brincara, dizendo que ela tinha fu­turo como ladra, pela maneira esquiva com que havia entrado na casa dos Le Fever.

— Nenhuma. — Tirou o dedal da cesta e o colocou no dedo. — Nem consegui mostrar o meu trabalho.

— O que houve?

Começando o bordado, ela respondeu:

— A sra. Ada está doente demais para se interessar por tais coisas, e a sra. Eose estava ocupada tentando acalmar os ânimos do marido.

— Ada Le Fever está doente? — Ele levou o copo aos lábios.

— Está definhando, confinada no quarto, sofrendo com um defluxo e de excesso de bile negra, de acordo com Aldfrith. O marido acha que ela está apenas que­rendo atenção e piedade.

— Qual a senhora acredita que seja o problema? — Graeham sorveu mais um gole.

— A meu ver, se ela tem excesso de alguma coisa, é de exposição a Rolf Le Fever.

— Acha que ele está... causando algum mal a ela?

— Não, a menos que... — Ela franziu o cenho. — Não cabe a mim fazer especulações.

— Pode especular o quanto quiser. Ele a está machucando?

Joanna o encarou com curiosidade antes de retomar o trabalho.

— A mera presença daquele homem pode provocar melancolia em qualquer pessoa; contudo, não creio que ele a esteja maltratando. Não vi sinais de abuso, pelo menos. Ela me disse que faz mais de três meses que ele não a vê.

— Qual a aparência dela?

— Como disse, está muito doente. Pálida, magra, tem olheiras. Apesar disso tudo, é uma bela mulher, com lin­dos olhos castanhos e cabelos negros.

Graeham não a imaginara morena. Lorde Gui e a esposa eram loiros, bem como todos os filhos; por isso achara que a futura esposa era loira de olhos azuis.

— Ela é pequena e delicada — Joanna continuou. — Perto dela, pareço um boi.

Graeham riu com a idéia de Joanna se comparar a um animal pesado como aquele. Nunca, em toda a sua vida, encontrara outra mulher mais graciosa e feminina do que ela. Mais desejável. Mais inalcançável.

Não pense nela, pense em Phillipa.

Agora, graças a Joanna, conseguia formar a imagem da noiva em sua cabeça: era pequena, delicada e mo­rena. Embora muitos homens preferissem as loiras, as mulheres mais belas que conhecera tinham cabelos es­curos. Os olhos de Phillipa eram castanhos... Como os de Joanna.

Não, nenhuma mulher tinha os mesmos olhos de Joanna. Quando se casasse com Phillipa, teria de se es­quecer daqueles olhos. Ou tentar.

Voltando ao que lhe interessava no presente, perguntou:

— Acredita que ela esteja correndo algum perigo real com essa doença?

— Quer dizer, se eu acho que ela pode morrer? Acho que não, pelo menos por enquanto.

Ela conversou comigo normalmente — Joanna co­mentou, bordando. — E ela ainda come. Vi uma tigela de caldo ao lado da cama. E toma o remédio sem recla­mar, apesar de alegar se sentir pior depois.

— É mesmo? E o que será que há nesse tônico? — ele questionou, tomando o resto do vinho.

— De acordo com Olive, somente uma infusão de mil-folhas com mel e menta. — Ela o olhou de esguelha.

— Mil-folhas... Isso não deveria fazer mal. — Ele refletiu.

— Mas também não parece estar ajudando...

A seriedade da doença poderia ser um problema para ele.

— Ela sai da cama?

— Duvido.

— Mas e se ela... Digamos que ela precise fazer uma viagem...

— Viajar? Para onde?

— Não sei, para qualquer lugar... Acha que ela agüentaria?

— Naquela égua que comprou para ela?

— Hugh vendeu a égua, eu teria de... — Droga! Joanna enfiou a agulha na seda e o encarou, sem sor­rir. Graeham fechou os olhos e se encostou à parede.

— Acho que fui um tanto óbvio. — Ele abriu os olhos, e viu que ela continuava séria. — Tinha alguma suspei­ta antes de hoje à noite?

— Não, o senhor foi bem sutil. — Ela tirou a dedeira. — Alguns homens são bons enganadores, sargento. O senhor é um deles. Pensando bem, algumas coisas não se encaixavam bem, como a égua. Que soldado cavalga uma égua delicada como aquela? Lembro-me também de ter considerado estranho o fato de estar procuran­do uma estalagem quando já tinha acomodações na São Bartolomeu, e ainda por cima estava só de passagem... Aliás, não há parentes em Oxfordshire, há?

— Não. — Graeham passou os dedos pelos cabelos.

— Estava em West Cheap por causa de Ada Le Fever. Veio a Londres para buscá-la.

— Sim — ele concordou hesitante, não querendo revelar muito.

— Está apaixonado por ela?

— Não!

— Cruzou o canal para roubá-la do marido — ela disse impassível. — Ainda está procurando um meio de fazer isso... — Estreitou o olhar. — É por isso que queria ficar na minha casa e que me pagou quatro xelins. Precisava de um esconderijo conveniente enquanto formulava um plano para raptá-la. Esteve usando meu depósito como um lugar de tocaia! E isso, não? — ela exigiu furiosa.

— Diga a verdade pelo menos uma vez!

Graeham deu um profundo suspiro.

— Sim, é isso. Fiquei vigiando a casa, a fim de levar Ada Le Fever embora, mas não por estar apaixonado. Eu nunca a encontrei. — Ele esfregou a nuca e refletiu sobre o quanto poderia revelar. — Fui enviado para cá... por um parente dela. Alguém que está preocupado com seu bem-estar. Essa pessoa acredita que o marido a es­teja maltratando.

— Por quê?

— Ela parou de escrever há seis meses.

— Foi quando ela ficou doente — Joanna disse. — Estou certa de que ela não se sentia bem para escrever.

— Não haveria com o que se preocupar, se não fosse por Le Fever. Ele lamenta ter se casado com Ada e não tem feito nada além de abusar dela desde que chegaram a Londres.

— Que tipo de abuso? Ele bate nela?

— Aparentemente não, mas a insulta e ameaça.

— Ora bolas — Joanna disse com humor negro —, e o que o diferencia dos demais maridos?

— Sabe como ele é depravado. Ao que parece, tem inúmeras amantes e faz alarde de suas conquistas, mes­mo que ela consiga ouvir. Parece que ele sente um prazer especial em seduzir as esposas de homens influentes. Eu mesmo vi uma noite dessas quando ele levou uma mulher para o quarto dele. Pelo modo como a mulher se vestia, presumo que seja alguém da alta sociedade.

— Como era ela?

— O cabelo era muito loiro, quase branco, e ela ti­nha proporções generosas, além de marcas de varíola no rosto.

— Era Elizabeth Huxley, a esposa do conselheiro de nosso distrito. John Huxley não é o tipo de homem com que se possa brincar. Se ele souber disso...

— Acha que mataria Le Fever?

— Ou o castraria. Le Fever deve saber disso, não é nenhum tolo.

— Os homens tendem a perder a cabeça nos assun­tos do coração.

— As mulheres perdem a cabeça nos assuntos do co­ração — Joanna disse seca. — Os homens são escravos dos desejos de outro órgão.

Ele assentiu, mas tentou esconder o riso. Era melhor se conter ante o mau humor dela.

— Quem é o parente que o enviou para cá?

— Não tenho a liberdade de revelar isso. Joanna jogou o dedal no cesto, com o rosto fechado.

— Ele me pediu que a levasse de volta a Paris — Graeham explicou —, e tenho a intenção de encontrar um meio de fazer isso, apesar da minha fratura. Isso... isso é tudo o que precisa saber.

— E está em condições de determinar o que eu preci­so ou não saber a respeito dos planos arquitetados sob o meu teto?

— Não estou arquitetando nada; só estou tentando salvar uma mulher de um casamento infeliz.

— Por quê?

— Acabei de explicar — ele respondeu, impaciente. — O marido a maltrata e...

— Não. O que quero saber é por que está fazendo isso? Por que isso lhe é importante? O que tem a ganhar se levar Ada a Paris?

Graeham a encarou, desejando que ela não fosse tão inteligente. Deu de ombros, sem fitá-la.

— Preciso ganhar alguma coisa além da satisfação de saber que ajudei uma mulher em apuros?

— É tão nobre que está passando por tudo isso sem lucrar nada?

— Talvez eu seja.

Revelar o casamento iminente e a propriedade das terras comprometeria o anonimato de lorde Gui. Aquele não era o único motivo pelo qual hesitava em mencionar Phillipa, mas era a razão a que se atinha, aquela que repetia para si mesmo ser importante o bastante para justificar a teia de mentiras que ele tecia para si e para Joanna.

A mentira de Joanna sobre o falecimento do mari­do era justificável e benigna se comparada com a dele, mais profunda e resultado de interesse próprio. Havia uma grande diferença.

— Seus motivos podem ser altruístas, mas eu duvido — ela sentenciou. — Tem interesses pessoais nessa his­tória, ou não chegaria a ponto de sacrificar sua honra.

— Sacrificar a minha honra!

— Veio para a minha casa e me ludibriou. Pior ainda, me usou! Essa sua grande idéia de me fazer procurar encomendas junto às senhoras da região era parte do plano, a fim de que eu entrasse na casa de Le Fever e pudesse espionar em seu lugar, não?

Graeham lutava para encontrar as palavras certas.

— Fui a sua agente — continuou Joanna. — Seu peão insuspeito. Eu teria de avaliar a situação da casa e reportar minhas descobertas. Só que eu não sabia que esse era meu objetivo! Ouso dizer que se divertiu quan­do eu concordei com tanta facilidade.

— Não foi bem assim.

— Nega que me enviou para lá para ser seus olhos e seus ouvidos? Que me usou e me explorou, sem meu conhecimento ou permissão?

— Foi o único modo. — Frustrado, acrescentou: — Ainda é. Sei que me odeia por eu tê-la iludido.

— O senhor mentiu para mim!

— Por ter mentido — ele se corrigiu, desanimado por ela não ter negado que o odiava. — Não posso condená-la. Ainda assim, preciso que volte lá e...

— Não pode estar falando a sério! — Ela ficou de queixo caído.

— Não faça isso por mim, mas por Ada. Ajude-me a salvá-la daquele verme com o qual está casada.

— O senhor é muito persuasivo, sargento, mas não tanto assim. Primeiro mente para mim, depois tem a ousadia de dizer o que eu devo ou não saber. Agora real­mente espera que eu volte àquela casa...

— Não se importa com o que possa acontecer àquela mulher? — ele a interrompeu. — Le Fever lhe disse que gostaria de poder se livrar dela. Pelo pouco que sabe­mos, ele pode estar planejando algo.

— Por mais odioso que ele seja, não há motivos para pensar que pretenda ferir a esposa. Ela definha no quarto enquanto ele se diverte com outras mulheres. Se tivesse pensando em se casar com outra, eu o veria ten­tando fazer algo nesse sentido, mas do jeito que estão as coisas... — Deu de ombros. — Não, não vou voltar.

— Pense bem — ele suplicou —, por favor.

— Já pensei — Joanna se levantou —, e a resposta é não.

Graeham a segurou pela mão quando ela se virou.

— Senhora...

— Solte-me, sargento. — Ela tentou se desvencilhar, mas ele segurou as duas mãos, imobilizando-a.

— Só quero que reconsidere...

— E que me deixe ser usada? Estou farta de ser manipulada pela ambição dos homens. Solte-me!

Ele firmou o aperto, querendo que ela o olhasse nos olhos.

— Lamento ter mentido — disse ele, desejando não ter tanto do que se desculpar com essa mulher. Mais do que tudo, queria não ter de continuar a enganá-la.

— Estou certa de que lamenta agora, já que sabe que não conseguirá reaver a minha confiança. Será muito mais difícil me envolver em suas tramas ardilosas.

As mãos dela eram macias, exceto pelos pequenos calos nas pontas dos dedos, e quentes. Graeham encon­trou-se acariciando as palmas, os dedos, buscando o ca­lor e a irresistível suavidade feminina.

— Eu imploro — murmurou ele. — Preciso de você. Ela fechou os olhos, o peito acelerado movendo-se no ritmo do dele.

— Não fuja de mim — ele pediu com suavidade. — Cometi erros, talvez eu ainda os esteja cometendo... Não sei. Eu só... estou desesperado.

Ela abriu os olhos e balançou a cabeça.

— Preciso de você — ele repetiu com sinceridade.

— Eu não posso — a voz dela saiu entrecortada, trê­mula. — Não posso permitir que isso aconteça. Não vou permitir que me use, sargento. Não posso... Por favor, solte minhas mãos.

Graeham hesitou, sentindo um vazio no peito, um vazio que nunca tinha sido preenchido. Sim, precisava de Joanna, e não só por causa de Ada.

— Por favor — ela pediu baixinho —, deixe-me ir. Ele soltou suas mãos, e ela se virou para seguir até a saleta. Um instante depois, Joanna subia as escadas.

Graeham ficou acordado até muito depois da meia-noite, ouvindo os sons das cordas do estrado da cama de Joanna, que se virava sem parar, e pensando quando as coisas tinham ficado tão complicadas.

No dia seguinte, Graeham observava Joanna pela ja­nela de trás enquanto ela lavava roupa debaixo do sol causticante do meio-dia. Ela trocara os lençóis de sua cama, pegara as camisas e roupas de baixo e as juntara à própria roupa de molho numa das tinas da lavanderia improvisada no quintal.

Depois que ela voltou da missa dominical, enrolou as mangas, vestiu um avental e um lenço na cabeça e se pôs a esfregar, enxaguar e torcer; tarefa que durava, pelo que ele tinha observado nos domingos anteriores, a tarde toda.

Graeham se perguntou se ela sabia que era observada, ou se ela se importava com isso.

Joanna havia se distanciado dele, e Graeham sentia falta dos sorrisos, dos gestos nervosos, da tensão que os envolvia e que sempre o deixava tonto. Adorava aquela sensação.

Detestava aquela sensação.

— Que confusão... — ele sussurrou, vendo o suor bro­tar na fronte e no peito da mulher, escurecendo o lenço e formando uma mancha úmida entre os seios.

Naquele dia, ela usava o vestido violeta, aquele que melhor se assentava em suas curvas. O decote era ge­neroso e, quanto ela se inclinou sobre a tina, Graeham pôde ver a curva superior dos seios. Imaginou como se­ria colocar a mão sobre o tecido e sentir o peso do monte arredondado, o mamilo resvalando o centro de sua pal­ma, bem onde era mais sensível.

Imediatamente excitado, Graeham fechou os olhos e se deitou. Não podia imaginar tal coisa com Joanna, ainda mais sem ter como extravasar sua luxúria. Ela era inalcançável; nunca seria sua. E isso era bom.

Tentando controlar seu corpo temperamental, ele pegou o livro do momento e o abriu na página marca­da pelo barbante que desejava nunca ter visto. Releu os mesmos trechos inúmeras vezes, sem absorver nem uma palavra.

Desistindo, voltou a olhar pela janela. Enquanto Joanna torcia um lençol, uma mecha de cabelo desobediente escapou do lenço e se enrolou na testa, de manei­ra deliciosa. Graeham não conseguiu deixar de rir.

Atrás dela, vindo da rua Milk, o rosto de um jovem clérigo se iluminou ao vê-la. Graeham pensou que fosse um clérigo, mas a roupa era, na realidade, de um escarlate muito escuro e os cabelos, embora bem curtos, não tinham a coroa no centro. De fato, ele não parecia tão jovem quanto à primeira vista.

Parando na beira do quintal, ele enxugou a fronte e pousou as mãos no quadril para observar Joanna, que estava de costas para ele. O homem parecia se divertir e, certamente, estava muito interessado.

Graeham ficou alerta. Pegando as muletas, levantou-se bem na hora em que o desconhecido disse:

— Achei que domingo era dia de descanso. Joanna se virou, quase derrubando o lençol.

— Lorde Robert!

Ela o conhecia, e ele era um lorde. Robert. Joanna mencionara aquele nome ao voltar do passeio ao merca­do com o irmão. Ele lhe dera a tangerina.

— Parece precisar de ajuda, milady.

Milady? Graeham voltou a se sentar na cama, o olhar fixo no casal.

— Não — Joanna protestou quando ele se aproximou com a mão estendida para pegar o lençol. — Acabará molhando sua bela túnica.

— Isso me refrescará; está muito quente hoje. — Robert pegou o lençol das mãos dela, chacoalhou-o e pendurou-o no varal. — Não deveria trabalhar tanto, lady Joanna. Por que não manda a roupa para fora?

Ela secou as mãos no avental e arrumou a mecha de cabelo rebelde, que, um segundo depois, voltava a escapar, para deleite de Graeham.

— Não posso me dar a esse luxo.

Robert assentiu, parecendo espantado pelo fato de "lady" Joanna ser pobre demais para contar com uma lavadeira. Os dois se olharam em silêncio.

— Gostaria de um pouco de água? — ela ofereceu.

— Sim, obrigado.

Ela pegou uma concha na cozinha e encheu-a no poço, oferecendo-a a Robert, que a tomou num gole só.

Joanna sorriu, e ele retribuiu o sorriso. Graeham tinha os dentes tão travados que sentia a mandíbula doer.

— Milady — Robert disse, dando um passo à frente. — Não sei bem como proceder; pelos costumes, eu teria de falar com seu pai para negociar este assunto.

Os olhos de Joanna arregalaram, e ela olhou na di­reção da janela, encontrando os olhos de Graeham por apenas um instante antes de Robert segurá-la pelas mãos, prendendo sua atenção novamente.

— Sei, porém, de seu relacionamento com seu pai. Por isso, pedi a Hugh que cuidasse disso, mas ele riu, dizendo que eu viesse diretamente falar com a senhora. Portanto, aqui estou eu. Suponho que saiba o que eu quero lhe...

— Aqui não! — ela o interrompeu. — Vamos... Vamos dar uma volta. — Corada, ela brigou como nó do avental que não cedia.

Graeham condoeu-se com o nervosismo dela. Afinal como poderia receber um pretendente em casa, fazen­do-se passar por uma mulher casada? Ao mesmo tempo, algo dentro dele se revirava em angústia. Queria gritar que ela não poderia se casar com aquele homem, que ele não permitiria.

Idiota! Como se ele pudesse oferecer coisa melhor.

Devia ficar feliz por ela.

Viu-a se afastar ao lado de Robert, desenrolando as mangas.

Tinha de esquecer o que queria e não podia ter; o que achava que não poderia viver sem. Precisava colocar de lado os sonhos mais fervorosos e os desejos insaciáveis, menosprezar o vazio que sentia no peito e que somen­te Joanna poderia preencher. Precisava encontrar um modo de ficar feliz por ela.

Parada à margem do rio ao lado de Robert, Joanna observava duas meninas brincando na água rasa. Elas gargalhavam ao jogar água uma na outra.

— Gillian costumava brincar assim. — O sorriso de Robert foi levado pela tristeza. — Nos dias quentes, ela ficava no laguinho dos peixes somente com a roupa de baixo. A mãe ralhava, mas eu sempre fiquei do lado dela, pois eu também fazia o mesmo quando criança.

— Eu sinto tanto... — Joanna disse, tocando-o no braço. — Deve ter sido... Oh, eu lamento.

— Tento não pensar nisso. Nunca vou conseguir tê-la de volta.

Joanna achou curioso que ele se referisse somente à filha e não à esposa também, mas se lembrou de que o casamento fora por conveniência. Gillian era sua primo­gênita, sangue de seu sangue.

— Ainda tenho duas filhas em quem pensar. — Robert tomou a mão de Joanna na sua. — Elas precisam de uma mãe, milady. Eu ficaria muito honrado se consen­tisse em se casar comigo.

— Sou eu quem fica honrada com seu pedido, milorde... Ainda mais se considerarmos que nossas posições sociais se distanciaram nos últimos anos.

— Isso não significa nada para mim. A senhora é uma dama em tudo o que conta, muito mais do que as jovens que meus pais andam me empurrando, nenhuma delas com mais de catorze anos, nem o mínimo juízo. Não te­nho a intenção de deixar minhas filhas aos cuidados de outra criança.

Com cuidado, Joanna perguntou:

— E quanto a lady Margaret? Robert soltou-lhe a mão.

— O que há com ela?

— Ela é maravilhosa com as meninas, que pare­cem muito apegadas à sua prima. Fico imaginando... Se nós nos casássemos, Margaret permaneceria em Ramswick?

— Não. Isso não seria... — Disfarçando, ele desviou o olhar. — Não seria necessário.

Joanna suspeitava que ele estivera prestes a dizer que "não seria certo".

—As meninas a teriam, e não precisariam mais dela. Quando eu me casar, Margaret tomará os votos.

— Vai se tornar freira? Não achei que ela fosse tão religiosa...

— Será uma freira professora, assim poderá cuidar de crianças. — Robert não a fitou.

— Catherine e Beatrix sentirão falta dela — Joanna comentou.

— As crianças se adaptam com mais facilidade do que nós. — Sorrindo de um modo que parecia forçado, ele voltou a segurá-la pela mão. — Joanna, eu gostaria muito que se casasse comigo. Serei o melhor marido que puder. Eu nunca... — Fez uma pausa, desconfortável. — Hugh me contou sobre seu marido. Eu nunca a trata­ria dessa forma.

— Sei disso. Não seria capaz.

— Não precisa me responder hoje; sei que há muito no que pensar. Não estará se ligando somente a mim, mas às minhas filhas e a Ramswick também. Aquela é uma fazenda, e eu cuido dela com minhas próprias mãos. Visto roupas de trabalho como meus aldeões, e acho que sempre tenho um pouco de estrume nos pés.

Ela riu; aquilo parecia o paraíso depois de Prewitt.

— Eu jamais tentaria modificá-lo, se é isso o que o preocupa.

— Não achei que tentaria.

Talvez aquele fosse o motivo de ele tê-la escolhido em meio a tantas moças apontadas pelos pais. Não que ele menosprezasse a opinião deles, já que não ficava com Margaret, mas pelo menos tinha decidido escolher a noiva sozinho dessa vez.

Robert pegou a outra mão e a olhou de frente.

— Posso beijá-la?

Joanna assentiu, e ele se inclinou, pressionando os lábios no canto dos dela, quase sem tocá-los. Ela sen­tiu uma coceirinha morna, o resvalar do queixo e nada mais. O coração não bateu mais rápido, a respiração não acelerou. Ela não quis algo mais.

Graeham Fox nem precisava tocá-la para que ela an­siasse por mais. Bastava que estivessem próximos, e o ar entre eles ficava carregado como a atmosfera antes de uma tempestade. As poucas vezes em que tinham se tocado, ela sentira uma descarga elétrica atingin­do-a nos lugares mais secretos. Quando ele a olhava, a pele se arrepiava, e ela se sentia quente debaixo das roupas.

Robert de Ramswick, por mais belo e mais nobre que fosse, não tinha o poder de fazê-la estremecer em ante­cipação. Talvez aprendesse a amá-lo, pois gostava dele. No mínimo, sentiria afeto. Como poderia ser de outra forma, se ele era o homem mais perfeito que já conhe­cera? Ele jamais a usaria ou exploraria, exceto como mãe para as filhas, mas mesmo assim, tinha sido franco quanto às suas intenções. Não conseguia imaginá-lo le­vando outra mulher para a casa deles. Nunca mais teria de passar por tal humilhação.

— Vou trazer as crianças à cidade na véspera de São João daqui a dez dias. Esse tempo basta para que tome uma decisão?

— Sim, terá a sua resposta.

— Vai se juntar a nós para as festividades, não?

— Sim, eu adoraria.

— Que tal se nos encontrássemos às Nonas na cruz diante da igreja de São Miguel?

— Eu e Hugh estaremos lá.

 

— Vou às compras — Joanna anunciou na manhã se­guinte, o que era pura mentira. Se ele pode mentir com a cara deslavada, eu também posso, feia ponderou. Porém, mentir sempre a deixara desconfortável.

— E quanto à loja? — Graeham perguntou, limpando a navalha num pano.

Ela não entendia como ele conseguia permanecer diabolicamente belo mesmo com metade do rosto cober­to por espuma.

— Abrirei um pouco mais tarde do que de costume. Nunca tenho muitos fregueses no início da manhã mes­mo. A bem da verdade — ela acrescentou, remexendo nervosa a alça da sacola de compras —, agora que di­nheiro não é problema, pensei em abrir o negócio um pouco mais tarde, assim tenho mais tempo para meus afazeres domésticos.

— Faz sentido. — Ele se inclinou para espiar o reflexo no diminuto espelho, levantou o queixo e passou a navalha pelo pescoço.

— Só para que saiba onde estou — disse ainda, antes de retroceder. Fique quieta, pare de balbuciar...

Graeham a olhou pelo espelho, parando de se barbear, e prendeu seu olhar por apenas um segundo.

— Obrigado. Saindo pela porta da frente, Joanna fez um desvio pela cozinha, na frente da qual estava Thomas, com a tigela vazia no colo.

— Aceita mais, Thomas?

— Não, senhora. Foi mais do que suficiente. Só estou descansando um instante antes de levantar e fazer a minha ronda.

— Fique o tempo que precisar — ela disse, entrando na cozinha.

Pessoas como Thomas não tinham muitos lugares para sentar porque ninguém queria tocar em nada que tivesse sido tocado por um leproso antes, por isso, Joanna deixava o barril ao lado da entrada da cozinha para que ele descansasse.

Lá dentro, ela embrulhou um pedaço de pão e de queijo, colocando-os no fundo da sacola. Depois serviu um pouco de mingau numa tigela de ferro com tampa e também a guardou. Encheu um cantil com água fresca do poço e juntou aos demais itens.

— Para quem é essa comida? — Thomas perguntou, quando ela saiu da cozinha.

— Shh... — Joanna relanceou o olhar para o depósito, imaginado se Graeham a estava observando, mas era difícil enxergar alguma coisa de lá de fora. — Para uma amiga — sussurrou. — Não quero que o sargento saiba disso.

Thomas franziu o cenho, ou pelo menos ela imaginou que ele estivesse fazendo isso. Era muito difícil notar as mudanças de expressão do rosto desfigurado. Com candura, ele disse:

— Não gosto de esconder segredos dos amigos. Ainda mais quando é outro amigo que me pede isso. Segredos não passam de mentiras que alguém não tem coragem de dizer diretamente.

Joanna assentiu diante da reprimenda, mas feliz por ser considerada uma amiga.

— Eu sei e lamento muito. Não o colocarei nessa po­sição de novo.

O olho bom do homem se distanciou e, quando ele voltou a falar, a voz estava repleta de emoção.

— Há sete anos quando os primeiros sinais de mi­nha doença surgiram, enrolaram-me numa mortalha, leram os ritos fúnebres e me pronunciaram morto para o mundo. Nunca mais eu poderia entrar numa igreja, numa taverna... Em qualquer lugar freqüentado por pessoas saudáveis. Não posso me banhar nos rios, nem passar por vielas estreitas. Estou proibido pelo resto de minha triste vida de segurar uma criança no colo, de amar uma mulher.

Joanna ficou muda; Thomas nunca falara de sua sina com ela, exceto para zombar.

— O pior é não poder tocar ou ser tocado. O resto... a gente aprende a viver sem. É claro que mesmo que alguém me tocasse, eu nem sentiria. Nunca dei muito valor à proximidade com as pessoas quando eu era sau­dável. Tomava como coisa certa. Pode achar difícil de acreditar, mas houve uma época em que eu não tinha dificuldades em ter companhia feminina. Era a harpa... As mulheres sentiam-se atraídas pela música. Em to­dos os lugares em que eu tocava, as moças se digladia-vam para me conceder seus favores. Eu me apaixonei uma vez. O nome dela era Bertrada. Ela queria que eu ficasse em Arundel e me casasse com ela.

— O que houve?

— Eu era jovem e arrogante. Um tolo. Por mais que a amasse, decidi que não estava pronto para me assen­tar. Eu adorava viajar, tocar minha harpa em castelos e seduzir belas mulheres. Portanto, afastei-a por meio de mentiras e segredos, e fiquei um homem livre de novo. Senti falta dela imensamente, mas me convenci de que um dia estaria pronto e encontraria um novo amor. Quatro anos mais tarde, os primeiros sinais da doença aparecerem e eu morri para o mundo. Nunca mais eu poderia tocar numa mulher, a menos, é claro, que ela fosse minha esposa. Não há um dia sequer que eu não pense em Bertrada e deseje estar ao lado dela. À noite só consigo dormir imaginando estar nos braços dela. — Ele riu com desprezo. — Quem sabe se eu tivesse ficado em Arundel jamais teria adoecido.

— Sinto muito, Thomas.

— Não lhe contei isso para que sentisse pena de mim.

— Sei por que me contou, mas... É que comigo a si­tuação é... diferente. Complicada.

— Tudo sempre é complicado. — Ele sorriu. — E isso o que nos torna o que somos. — Apoiando o cajado no chão, levantou-se. — Preciso ir. Se eu ficar muito tempo sentado num só lugar, é provável que alguém cave um buraco e me enterre, pensando que estou morto.

Depois de se despedir de Thomas, Joanna seguiu pelo beco e passou pelo portão de Le Fever. A cozinheira atendeu à porta.

— Bom dia, eu gostaria de visitar a sra. Ada, por favor.

— Ela não pode receber visitas, está muito doente.

— Aethel, quem é? — Rolf Le Fever perguntou do interior da casa.

— Uma visita para a sra, Ada, senhor.

Joanna ouviu os passos na escada e, em seguida, Le Fever afastou a mulher.

— Você! Comerciantes devem se dirigir à porta dos fundos. Mas não precisa se incomodar, já que não preci­samos de seus produtos. — Ele bateu a porta.

Levantando a voz para que ele a ouvisse mesmo su­bindo os degraus, Joanna disse:

— Acho melhor, então, ir visitar o meu bom amigo, John Huxley.

Os passos cessaram, e logo voltaram a ecoar, pare­cendo mais próximos. A porta voltou a se abrir e o mer­cador a encarou.

— Não sabia que era amiga do conselheiro Huxley.

— Sim, de longa data — Joanna mentiu, orgulhosa e envergonhada de seu novo talento. — Conhecemo-nos quando eu estava a serviço de lady Fayette de Montfichet. — Isso era verdade, mas fazia tanto tempo que o homem nem devia se lembrar dela.

— Sabe que quando a vi no mercado em seu melhor vestido, pensei que talvez tivesse descoberto um modo mais proveitoso de ganhar a vida. É John Huxley quem a está mantendo ou algum outro?

— Não sou amante de ninguém.

Ele a encarou de um modo tão malicioso que Joanna sentiu arrepios pela espinha.

— Ora, ora... Uma moça tão bonita quanto você deve ter homens aos seus pés, implorando para embainhar a espada em sua doce bainha.

— Quando isso acontece, normalmente encontro um ponto adequado para encostar a minha adaga — ela o lembrou.

— Deveria tê-la deixado me cortar naquele dia — ele disse num tom suave carregado de ameaça. — Teria va­lido a pena perder o nariz para vê-la ser enforcada.

Joanna se empertigou, querendo que ele visse como ela não se sentia ameaçada por aquelas palavras.

— Gostaria de ver sua esposa agora, mas se ela esti­ver se sentindo tão indisposta que não possa me receber, irei à casa do conselheiro. Nós sempre temos tantos as­suntos para pôr em dia. — E sorriu.

O rosto pálido de Le Fever pareceu perder ainda mais a cor. Virando-se, ele disse:

— Vá em frente, suba. Ela é má companhia; acredito que vocês se entenderão bem.

Quando Joanna voltou para casa no fim da manhã, encontrou o sr. Aldfrith no depósito, trocando as talas de Graeham por outras mais curtas. Hugh também estava lá, auxiliando-o. Graeham vestia as ceroulas e nada mais; mesmo as bandagens das costelas tinham sido removidas.

Joanna, que não o via naquele estado de nudez fazia mais de três semanas, ficou nervosa. Mesmo estando inativo por tanto tempo, ele continuava forte; o corpo ainda era o de um soldado. E só de estar na presen­ça dele, daquele jeito, ela sentia falta de ar. Desviou os olhos, pois não queria que o sargento a visse babando sobre ele.

Graeham se levantou com o auxílio das muletas e flexionou o joelho.

— Está dolorido — comentou.

— Seus músculos estão assim por falta de uso, mas logo se recuperarão. Essa meia-tala dará maior mobi­lidade. Dentro de um mês, quem sabe, não a retiramos também?

— Assim poderá visitar seus parentes em Oxfordshire — Hugh comentou.

Joanna e Graeham se entreolharam; não tinham dis­cutido o que revelar a Hugh. Foi Joanna quem decidiu o que fazer.

— Ele não vai para Oxfordshire.

Diante do ar questionador de Hugh, Graeham explicou:

— Nunca tive a intenção de ir para lá. — Voltando a se sentar na cama, deu uma olhada no cirurgião que guardava os instrumentos. — Explicarei tudo daqui a pouco.

— Ele está sarando com rapidez, senhora. Logo, logo estará livre dele — Aldfrith disse.

— Ficou feliz que ele esteja melhorando. — Pelo can­to do olho, Joanna viu que Graeham a observava com um olhar penetrante. Ele parecia mais compenetrado desde a visita de Robert no dia anterior, e ela se pergun­tava se ele conseguira ouvir alguma coisa. Todavia, se esse fosse o caso, ele certamente não deixaria passar a oportunidade de confrontá-la por sua mentira.

Enquanto ele pagava o cirurgião, Joanna comentou:

— Fui ver Ada Le Fever um dia desses.

— É amiga dela?

— Sim — ela disse.

Hugh a olhou confuso, Graeham sorriu. O cirurgião meneou a cabeça e guardou as moedas.

— Pobre mulher, está indisposta desde a época do Natal quando o sr. Rolf me chamou, dizendo que ela es­tava com defluxo.

— Acredita que seja somente esse o problema? — Graeham perguntou.

— Ela espirrava e tossia quando a vi. — Aldfrith deu de ombros.

— Ela não está mais espirrando — Joanna comentou.

— Um excesso de bile negra está complicando o tra­tamento, mas o marido me assegura que é um defluxo — Aldfrith se defendeu.

— O sr. Rolf lhe assegura? Mas o cirurgião não é o senhor?

— Não posso questionar o parecer dele; afinal, ele é o marido! — Para Graeham, disse, rude: — Voltarei em um mês para tirar essa tala. Mande me chamar se tiver problemas.

Depois que ele partiu, Joanna comentou:

— Ele quer que o genro entre para a associação dos comerciantes, é por isso que age assim. Aposto como seria capaz de afirmar que Ada sofre de excesso de... de macacos na cabeça se isso garantisse o apoio de Le Fever!

— Macacos na cabeça? — comentou Graeham, sorrindo.

— Alguém pode me explicar o que está acontecendo? — Hugh pediu.

Joanna e Graeham contaram os últimos aconteci­mentos, apesar de ela não mencionar sua visita matinal à doente, tampouco a intenção de ir até lá todos os dias. Apesar do que afirmara a Graeham sobre Le Fever não ter motivos para ferir a esposa, considerava o mercador um tratante. Decidira levar comida e água a Ada pelo bem dela, e não para servir aos propósitos do sargento; não se prestaria ao papel de espiã depois do modo como fora tratada.

Hugh não gostou nem um pouco do logro de Graeham; porém, como não era de guardar mágoas, acabou deixando de lado, já que Joanna parecia ter superado o assunto.

— Fiquei preocupado quando vi a loja fechada hoje cedo — ele comentou.

— Eu... fui fazer compras — respondeu ela, assusta­da por sua teia de mentiras alcançar o próprio irmão.

— Não encontrou nada de que precisasse? — pergun­tou ele, apontando para a cesta vazia.

Graeham a encarava, o olhar perspicaz.

— Não. — Retrocedendo, ela disse: — Agora, se em derem licença, preciso abrir a loja.

 

— O que está fazendo?

Graeham levantou os olhos do livro e encon­trou o rosto poeirento de Adam pelas grades da janela que dava para o beco. O garoto aparecia de vez em quan­do para uns minutos de conversa e depois desaparecia.

— Estou lendo — Graeham respondeu.

— Sabe ler? É padre, por acaso?

— Estudei para me tornar um, mas acabei virando soldado.

— Eu queria saber ler.

— Você é jovem, ainda há tempo.

— Quem é que haveria de me ensinar? — Adam deu uma risada sardônica.

Aquela era uma excelente pergunta...

— Como costuma passar o tempo? — Graeham perguntou.

— Perambulando por aí. Faço uns bicos às vezes: remendo roupas, cuido de jardins...

— Sabe costurar? — Graeham ficou surpreso. Manchas rosadas coloriram as faces sujas do menino.

— Garotos também podem costurar, sabia?

— É possível — Graeham ponderou, mas sabia que havia pouquíssimos.

— Aquela mulher — Adam apontou para a frente da loja, onde Joanna atendia a um freguês. — Ela é sua esposa ou namorada?

— Não.

— Não tem namorada?

Graeham meneou a cabeça; nunca tinha encontrado Phillipa, não poderia considerá-la sua namorada. Adam o fitou com os olhos apertados.

— Gosta de garotos?

— O quê?

— Existem homens que gostam de garotos — Adam confidenciou num tom de quem conta algo surpreendente.

— Sei disso, mas asseguro que não sou desse tipo.

— Foi o que pensei — o menino disse sem ne­nhum vestígio de humor. — Não há muitos mesmo. A maioria dos homens maus vai atrás das meninas... Se ela não é sua esposa, nem sua namorada, por que você mora aqui?

Mais uma excelente pergunta, visto sua falta de pro­gressos. Outra semana tinha se passado e, por mais que tocasse no assunto, Joanna se recusava a ajudá-lo. O comportamento dela desde o sábado em que o acusara de tê-la usado tinha melhorado, mas ele sentia falta de como se relacionavam antes.

Na maioria dos dias, nem a via até o meio da manhã quando ela retornava de suas "compras" diárias, ape­sar de voltar de mãos vazias com bastante freqüência. Então era hora de abrir a loja e só se viam às refeições, pautadas com pouca conversa.

Não devia ansiar pela companhia dela, não devia se esforçar para espiá-la, nem ficar atento aos ruídos da cama sobre a sua tarde da noite. Ela estava compro­metida agora, ou logo estaria, e ele também. Aquilo era loucura.

— Como disse? — Graeham perguntou ao notar que Adam lhe fizera uma pergunta.

— Acha que a mulher da loja tem trabalho para mim?

— O nome dela é Joanna Chapman; e eu duvido. — Joanna fazia tudo sozinha.

— E você? — Adam perguntou. — Estou sem dinheiro.

— Isso depende. O que sabe fazer além de remendar roupas e cuidar de jardins?

— Posso entregar mensagens, pegar água do rio, cui­dar de galinhas, acender o fogo, cuidar de panelas, fazer compras...

— Não preciso disso, a sra. Joanna faz as compras todas as manhãs, ou pelo menos acho que sim. — Uma idéia se formou em sua cabeça. — Seria capaz de seguir alguém sem ser visto?

— Acho que sim. Mas vai lhe custar.

Sorrindo, Graeham pegou a bolsa de moedas, movendo-se com muito mais facilidade desde que trocara as talas. Pegou quatro centavos e os estendeu.

— Oba! — Os olhos do garoto se arregalaram. — Quem quer que eu siga?

— Quero que siga a sra. Joanna amanhã de manhã. — Graeham se sentou na ponta da cama. — Ela sai pela porta dos fundos bem cedo e segue pela rua Milk. Volta no meio da manhã. Quero que a siga sem que ela note e depois venha me contar para onde ela foi. Acha que consegue fazer isso? — Quanto mais pensava nas escapadelas matinais de Joanna, mais curioso ficava.

— Sem problemas. — Adam guardou as moedas. Olhando para a pilha de livros ao lado da cama, per­guntou: — Onde aprendeu a ler?

— Em Holy Trinity.

— Eu durmo lá às vezes, no estábulo — o menino disse sem pensar.

— Quando nos encontramos pela primeira vez, disse que seus pais eram açougueiros e que vocês moravam em Shambles. Na semana passada, mencionou ter de correr para a rua Fleet antes que os portões se fechas­sem, dizendo que vivia lá... Por que dorme no estábulo da Holy Trinity se tem uma casa, Adam?

O garoto se afastou da janela.

— Não fuja, Adam. — Graeham se levantou depressa. — Gosta de doces? Eu o tinha guardado para depois do jantar, mas já estou satisfeito. Pode ficar com ele se quiser.

Adam olhava para o doce com desejo, porém disse:

— Minha mãe me disse para nunca aceitar doces de homens.

— Não sou um desses homens, lembra?

Rápido como um esquilo, Adam passou a mão pela grade e apanhou o doce.

— Sua mãe me parece uma mulher muito sábia. — Graeham disse, apoiando-se nas muletas.

— Ela era. —Adam mordiscou o doce.

— Seu pai... Ele também já morreu? — Graeham perguntou.

Adam o encarou e depois assentiu, ainda mastigando.

— Por que não queria que eu soubesse? — Ele voltou a se sentar.

— Ninguém sabe, não é seguro.

Graeham assentiu como se entendesse, mas a verda­de era que estava atônito.

— Por que não começa do começo, Adam. De onde você veio?

O garoto o encarou com os olhos cheios de suspeita.

— Só quero ajudá-lo; precisa confiar em alguém, Adam.

— Meu pai era servo da Laystoke Manor, ao norte da­qui. Tinha seu pedacinho de terra na vila. Plantávamos muitas coisas, eu ajudava. Eu cuidava de meus irmãos também.

— O que o fez vir para cá?

— Éramos muitos — o menino deu uma nova dentada —, e a terra não era o bastante para nos sus­tentar. Eu era o mais velho, por isso fui escolhido para vir para cá e ser aprendiz da sra. Hertha, uma tecelã.

— Era aprendiz de tecelão? — Graeham estava sur­preso; aquilo era trabalho de mulher.

— Eu gostava, e a sra. Hertha era boa comigo. O marido nem tanto.

— Ele batia em você?

— Não, ele... olhava para mim. De um jeito estranho. Um dia, me pegou tomando banho e tentou me ajudar. Eu joguei sabão nos olhos dele e disse que meu pai era grande como um urso e viria para Londres se soubesse que algo me incomodava. Por isso, ele me deixou de lado, por um tempo.

— O que houve, então?

Adam terminou de comer o doce com uma expressão triste no rosto.

— A febre amarela chegou a Laystoke e matou a mi­nha família. Meu pai, minha mãe, meus seis irmãos e irmãs... Todos, exceto tio Oswin, porque ele é ruim de­mais para morrer.

— Sinto muito. — Graeham não sabia mais o que dizer. — E com você, o que aconteceu depois?

— O marido da sra. Hertha logo descobriu e imagi­nou que poderia fazer o que bem quisesse já que meu pai não poderia me defender. Mas eu não fiquei por perto. Fugi antes que ele tentasse qualquer coisa.

— E agora mora nas ruas. E dorme onde? Nos estábulos, nos becos?

— Não é tão ruim agora que já está mais quente. Sou pequeno, as pessoas nem me percebem.

— Por que não dorme nos abrigos? — Graeham perguntou.

— Estão cheios de pessoas ruins; não gosto de ficar lá. Há muitos homens maus em Londres. É preciso ficar atento para sobreviver, Adam dissera um dia.

— Foi esperta em se vestir como menino...

Adam, ou qualquer que fosse seu nome verdadeiro, parou de lamber os dedos de pronto.

— Como descobriu?

— Não foi só uma coisa, e, na verdade, até que é um menino bem convincente. Qual é seu verdadeiro nome?

— Alice.

— Lindo nome.

Alice sorriu de modo encantador. Encantador de­mais, revelando-se uma menina por baixo do disfarce. Logo um dos "homens maus" também a descobriria, e Graeham não queria pensar no que poderia acontecer.

— Não pode continuar a viver nas ruas desse jeito... Um movimento chamou a atenção de Graeham;

Joanna se aproximava com a cerveja que sempre lhe servia nesse horário. Ficou imaginando se ela se importaria em acolher mais um desabrigado. Alice po­deria dormir na saleta. Qualquer coisa era melhor do que as ruas.

— Ela não pode me ver, senão poderá me reconhecer amanhã.

— Não se preocupe com isso. — Graeham estava mais preocupado em afastar a menina das ruas do que em descobrir o segredo das andanças matinais de Joanna. — Quero lhe apresentar alguém, senhora.

— Quem? — Joanna perguntou, olhando ao redor. Quando Graeham se virou para a janela, Alice tinha sumido.

 

Abraçada a um galho da frondosa árvore acima da janela da cozinha de Joanna, Alice viu quando a dona da loja saiu pela porta dos fundos com a sacola de com­pras na mão. Estivera à espreita desde a aurora, teme­rosa de perdê-la de vista. Só depois que seu alvo virou a esquina, achou prudente descer.

Entrou no beco bem a tempo de ver Joanna virar à esquerda na rua Milk. A mulher deu uma olhada em sua direção e seguiu em frente. Alice esperava não ter sido notada. Chegando ao fim do beco, espiou e viu a mulher bater à porta da casa azul e vermelha e entrar em seguida. Como havia uma igreja bem em frente, ela achou que aquele seria um bom posto de vigília. A es­pera era a pior parte dessa tarefa. Conseguia seguir pessoas sem problemas, mas ficar esperando sem nada para fazer era excruciante.

Algum tempo depois, a porta voltou a se abrir e Joanna apareceu. Olhou para os lados e voltou pelo ca­minho de antes. Quando ela estava fora de vista, Alice se pôs a segui-la. Mal virou a esquina e Joanna a enca­rou, com as mãos no quadril.

— Por que está me seguindo?

Alice deu meia-volta, mas antes de conseguir fugir, sentiu as mãos da mulher em seus ombros.

— Não tão rápido...

— Solte-me, não fiz nada! — Não fora cuidadosa. O sargento ficaria desapontado, talvez até quisesse o di­nheiro de volta. Chutou com força para se soltar.

Joanna gritou e afrouxou o aperto. Alice se virou, mas as mãos voltaram a segurá-la e o movimento fez seu chapéu cair, revelando duas trancas compridas. Surpresa, Joanna quase a deixou escapar, mas se reco­brou a tempo e impediu a fuga da menina.

— Espere, precisamos ter uma conversinha — disse e levou-a arrastada pelo beco. — O sargento Fox me con­tou que havia uma garotinha chamada Alice andando por aí vestida como moleque. Presumo que seja você. — Joanna conduziu-a para casa, até o depósito, onde o sargento aguardava com expressão triste.

— Bom dia, Alice.

— Desculpe, sargento, ela me viu — Alice disse quan­do foi solta. — Posso lhe devolver três moedas, mas usei uma para comer.

Joana o encarou, e Graeham cerrou os olhos. Percebendo o que tinha acabado de fazer, Alice sentiu o estômago revirar e escondeu as trancas sob o chapéu que Joanna já lhe devolvera.

— Suas moedas, sargento? — perguntou Joanna em tom acusatório. — Presumo que a tenha pagado para me seguir.

Ele só suspirou em resposta.

— Foi o que imaginei.

— Eu precisava saber aonde vai todas as manhãs. E não me venha com a história sobre fazer compras, pois nunca traz nada para casa.

— Ela foi para a casa azul e vermelha! — Alice infor­mou, achando que assim pudesse manter o dinheiro.

— Foi o que pensei. — O sargento sorriu.

Joanna encarou Alice por um instante antes de se voltar para Graeham.

— Está testando minha paciência, sargento. — Ela não parecia zangada, mas como poderia não estar?

Alice engoliu em seco. Os dois estavam bravos um com o outro e com ela. Pensando melhor, pegou as moedas e estendeu a mão.

— Tome, fui pega, então...

— Pode ficar com elas, não as quero de volta. Aquilo fez com que ela se sentisse ainda pior.

— Poderia ter simplesmente me perguntado aonde eu ia — Joanna disse.

— Teria me contado a verdade? — Graeham inquiriu. Sem que fosse notada, Alice afastou a cortina.

— Esse não é o ponto. Vou continuar a visitar Ada, mas não por sua causa. Não espere que eu seja sua espiã.

— Eu entendo — Graeham disse com presunção. — Mas também sei que a senhora é uma pessoa hon­rada que não deixaria de fazer o que fosse necessário caso soubesse de algo que coloque a sra. Ada em perigo. Falaria comigo antes que fosse tarde.

Alice passou pela cortina e correu até a porta dos fundos.

— Alice! — Graeham chamou. A menina ouviu a mulher dizer que a seguiria, mas ela sabia que tinha uma boa dianteira e não seria pega.

— Alice, volte aqui! — O sargento gritava pela janela.

Alice sabia, entretanto, que jamais voltaria a vê-los. Já tinha causado muitos problemas. Não poderia voltar.

 

— Obrigada por me receber, senhor prior. — Joanna, que tinha ido ao monastério Holy Trinity naquela mesma tarde, estava diante do frei Simon de Cricklade.

— Não há de quê. — Ele deu a volta na escrivaninha e apontou para uma cadeira no canto da sala, sentando-se na da frente. — Quando soube que tinha sido envia­da por Graeham Fox, não pude deixar de atendê-la. Há onze anos não vejo aquele rapaz, embora imagine que ele não seja mais o rapaz de antes.

O prior era idoso e tinha um olhar astuto e generoso, que logo colocou Joanna à vontade.

— Lamento que ele não possa ter vindo. Uma perna quebrada, a senhora me disse?

— Exato, foi obra de uns ladrões. Mas ele disse que pretende vir visitá-lo antes de regressar a Beauvais no próximo mês.

— Eu adoraria isso.

— O motivo que me traz aqui, porém, é para pedir que me ajude a encontrar uma criança. É uma menina, que se veste de menino por segurança. Ela é órfã e não tem onde ficar; seu nome é Alice, mas já se apresentou como Adam.

Frei Simon ficou pensativo.

— Não vejo como ajudá-la. O nosso monastério é bem isolado da comunidade. Seria melhor notificar a patrulha.

— Foi o que fiz, mas há tantos garotos nas mesmas condições nas ruas. Vim até o senhor porque ela vem dormir em seus estábulos, às vezes.

Os olhos do ancião se iluminaram.

— Ah, os freis já me disseram que vez por outra alguns vêm dormir aqui; pedi para que não os incomodassem.

— Se eles encontrarem uma criança de cerca nove ou dez anos, peço que mande me chamar ou ao sargen­to Fox. Moro na rua Woods, na primeira casa depois do beco, próximo à esquina da Newgate.

— E quanto ao sargento Fox, onde posso encontrá-lo?

— Comigo. — Joanna sentiu uma onda de embaraço. — Isto é, ele está alugando meu depósito até se recuperar.

Frei Simon assentiu, quase sorrindo; Joanna sabia que ele suspeitava que o relacionamento entre eles fos­se além disso.

— Tenho dificuldades para imaginar Graeham como um soldado. Passei catorze anos tentando prepará-lo para uma vida no clero. Ele era um aluno brilhante, um dos mais inteligentes que tivemos aqui. Estava sempre procurando um livro novo na biblioteca.

— Ele ainda lê bastante.

— É um dos passatempos prediletos daqueles que buscam a solidão, ou que se resignaram a ela. Graeham nunca foi de depender dos outros, quer seja para compa­nhia ou qualquer outro motivo, um fato fora do comum num lugar como este, no qual as crianças costumam an­dar em bandos. Se ele precisava de algo, geralmente se arranjava sozinho. Se estava entediado, encontrava um modo de se entreter. — Um brilho lhe iluminou os olhos. — Há uma porta na muralha da cidade dentro de nossa propriedade, sabia disso?

— Não. — Joanna só sabia dos sete portões vigiados da cidade.

— Fica perto de um dos dormitórios. O judiciário nos permite mantê-lo porque nos dá acesso a um campo que mantemos do lado de fora dos muros, desde que nos comprometamos a fechá-lo à noite. Graeham descobriu um modo de destrancá-la e, nas noites quentes de verão, escapulia depois que todos estavam dormindo, andava até Smithfield e nadava na lagoa. Era o tipo de coisa que um grupo de rapazes faria como travessura, mas Graeham ia sozinho, e com certa regularidade.

— Ele me contou essa aventura, porém não creio que ele imagine que o senhor soubesse.

— Poucas coisas que aconteceram em Holy Trinity no último meio século me passaram despercebidas.

— Disse ter preparado Graeham para uma carrei­ra clerical. Ficou desapontado por ele ter seguido outro destino?

— Sempre desejei que ele tivesse feito votos; hou­ve uma época em que essa era a intenção dele. — Frei Simon deu de ombros e pousou a taça. — Eu devia ter desconfiado que ele encontraria outro caminho, pois nunca se sentiu parte de Holy Trinity. Os outros me­ninos o respeitavam, mas nunca o aceitaram comple­tamente como um deles. Credito isso ao fato de ele ter sempre vivido aqui e não ter outro lar. Os meninos não compreendiam muito bem a situação dele, achavam que gozava de privilégios, o que não era verdade, é claro, mas os rumores correram do mesmo modo.

— Ele me contou que veio para cá ainda bebê. Isso não é costumeiro, é?

— Não, mas dadas as circunstâncias... O pai vivia um dilema. Fez uma contribuição generosa em troca da educação do menino, porém não foi por isso que con­cordei. Bebês nascidos sob tais circunstâncias muitas vezes simplesmente... — o olhar do frei se tornou sério — desaparecem.

— Quais circunstâncias? Ele...

— A senhora não sabe? Eu pensei que... — O frei meneou a cabeça. — Me desculpe. Quanto mais velho fico, menos discreto me torno. Vivo dizendo aos meninos que grande parte da sabedoria é a discrição, mas essa pare­ce ser uma lição que preciso reaprender.

— Eu gostaria muito de saber, frei. — Joanna pren­deu o olhar do ancião.

— Então a senhora terá de perguntar a Graeham — ele respondeu.

No caminho de volta para casa, Joanna ficou se per­guntando se teria coragem de perguntar, e, caso o fizes­se, se Graeham responderia.

O relacionamento deles andava desgastado des­de a discussão do sábado anterior; vinha melhorando aos poucos, embora ela tentasse cultivar a raiva do princípio. Como o irmão, porém, ela não era de guardar mágoa.

Não conseguia nem ficar aborrecida por ele ter man­dado Alice segui-la. O que poderia esperar depois de mentir sobre suas escapadas matinais? Não poderia odiá-lo já que ela mesma estava sendo desonesta, men­tindo sobre Prewitt.

Desejava poder odiá-lo, entretanto. Seria muito me­lhor detestar Graeham Fox do que pensar nele... da ma­neira que vinha fazendo. Ele era uma distração com a qual não podia lidar, ainda mais quando tinha de pen­sar sobre a proposta de Robert. A véspera de São João seria dali a cinco dias apenas.

A chuva começou a cair quando ela virou a esquina da rua Woods; assim que entrou em casa tirou os sapa­tos encharcados e pendurou o manto no corredor. Achou que o sargento estaria no depósito, mas ao atravessar a saleta iluminada viu que ele estava na loja, próximo ao cavalete de bordados.

Ele parecia estar avaliando algo nas mãos, mas Joanna não conseguiu decifrar o que era daquela dis­tância. A palha estalou sob seus pés descalços, e mes­mo assim ele não pareceu notar sua presença. Somente quando entrou na loja, ele se virou.

Joanna olhou para a mão dele; Graeham tinha seu dedal de couro do dedo mindinho. Encabulado, ele o re­tirou e o devolveu à caixa de costura.

— Conseguiu falar com frei Simon?

— Sim, ele disse que nos ajudaria avisando assim que Alice aparecer.

Graeham assentiu de modo distraído e pegou a cane­ca de vinho que tinha depositado na mesa de trabalho dela. Levou-a aos lábios e sorveu o líquido, os gestos len­tos, o olhar fora de foco.

— Quanto já bebeu? — ela perguntou.

— Não o bastante. — Graeham passou por ela a ca­minho da saleta, onde voltou a encher a caneca.

Joanna não o vira bêbado desde a primeira noite quando ele se autoinduzira ao torpor para aliviar a dor. Curiosa, seguiu-o e perguntou:

— O que o atormenta, sargento?

Graeham tomou tudo de um gole só e seguiu para o depósito.

— Aparte o fato de que há uma garotinha sozinha nas ruas de Londres e de que não há nada que eu possa fazer?

— Falei com a patrulha, fui a Holy...

— Está chovendo, Deus do céu! — Ele sentou-se na cama e tentou apoiar a muleta na parede, mas ela caiu no chão.

Praguejando baixinho, ele se inclinou para pegá-la, mas Joanna já se abaixara para fazer o mesmo. Acabaram se tocando; o braço de Graeham resvalou no seio dela, o cabelo acariciou o rosto de Joanna.

Sem equilíbrio devido ao excesso de álcool, ele fechou os olhos e se segurou no ombro dela.

— Estou tonto.

— Não estou surpresa. — Joanna tentou controlar a voz a despeito do coração acelerado. O toque, a proximi­dade, o cheiro dele a tiravam do prumo. Tola. Pegou a muleta e a apoiou na parede. — Deveria se deitar.

Resmungando, deixou que ela o ajudasse. Os olhos azuis a encararam com tal intensidade que Joanna fi­cou sem fôlego.

— Descanse um pouco — ela disse bruscamente ao se endireitar. — Vou guardar isto. — Ela pegou o jarro e se virou, mas foi detida pela mão forte na faixa bordada que tinha à cintura. As chaves penduradas na corrente tilintaram.

— Não vá — ele pediu.

Ela o fitou com o peito arfante, o coração em descom­passo.

— Sente-se comigo — ele disse suavemente, a voz um pouco distorcida pela bebida. — Deixe isso de lado e sente-se aqui. Não vou mais beber, só quero... — Ele fechou os olhos, o punho cerrado ao redor da faixa, os nós dos dedos resvalando o seu quadril. — Por favor. — Ele deu um puxão no tecido.

Joanna pousou a jarra no baú e se sentou na beirada da cama. Ele não a soltou, como se acreditasse que ela fugiria se estivesse livre. Sentia-se nervosa por estar tão perto dele, na cama.

Do lado de fora, a chuva se intensificou, castigando a veneziana. Graeham olhou para a janela, as sobrance­lhas unidas. Ela sabia no que ele pensava.

— Ela vai encontrar um abrigo para passar a noite — Joanna tentou reconfortá-lo. — Alice conhece as ruas. Quem sabe ela não decida que esta é uma boa noite para dormir no estábulo de Holy Trinity? Nesse caso, teremos notícias em breve.

— Isso se os freis conseguirem apanhá-la. Maldita perna! Se eu não estivesse entrevado desta maneira, eu mesmo sairia pelas ruas à sua procura. Diabos, eu te­ria impedido que ela fugisse, isso sim! Detesto depender dos outros.

— Frei Simon disse isso a seu respeito. Que o senhor nunca foi de depender de outros. Disse que se precisava de alguma coisa, ia lá e resolvia o problema; se estava entediado, encontrava um modo de se distrair. — Ela sorriu. — Ele sabia sobre as escapadas à noite para na­dar no lago.

— Não! — Graeham riu. — Eu devia ter desconfiado...

— Estou feliz em ver que seu humor está melhorando. Graeham sorriu para ela daquele jeito preguiçoso que só ele sabia fazer.

— A senhora é a responsável por isso. Só de estar ao seu lado, fico... — A expressão dele tornou-se sóbria. Ainda segurando-a pela faixa, apoiou o braço livre sobre os olhos e suspirou. — Estou bêbado.

— Quem sabe não seria bom dormir um pouco?

— Não. Quero saber o que mais ele lhe contou sobre mim.

— Disse que era um rapaz muito inteligente e que, numa época, desejava se tornar frei, mas depois esco­lheu um caminho diverso. Falou também que o senhor costumava ficar só.

— Frei Simon lhe disse por quê? Joanna hesitou um instante.

— Ele disse que os outros meninos não o compreen­diam muito bem pelo fato de ter crescido no monastério desde bebê.

— Ele lhe contou o porquê disso? — Ele a prendeu com o olhar.

— Não exatamente. Ele... deu a entender que o senhor era... — Como poderia dizer aquilo de maneira gentil?

— Um bastardo. O bastardo de um homem rico, obviamente.

— Frei Simon disse que ele fez uma generosa contri­buição ao priorado para compensar pela sua criação.

— Doze marcos por ano, além do custo adicional de uma ama-seca nos dois primeiros.

— Doze marcos! — O pai de Graeham devia ser muito rico. — Quem... Não, isso não e da minha conta.

— Quem é meu pai? Não faço a menor idéia.

— Frei Simon nunca lhe revelou isso?

— Não, ele jurou manter segredo. Houve uma épo­ca, antes de eu parar de me importar com isso, que eu implorava para que ele me contasse. Só disse que fui concebido por um homem importante e por uma dama de boa família com a qual não era casado. Imagino que eu teria sido uma vergonha para todos os envolvidos. Devo me sentir grato por ter sido encaminhado para Holy Trinity. Teria sido muito mais fácil e barato me abandonar na floresta.

Joanna esfregou os braços, estremecendo ante a idéia horrenda.

Os dedos de Graeham subiram pela faixa, afagando-a no quadril por sobre a saia.

— Está tremendo...

— Fico triste ao pensar em bebês não desejados.

— Jurei que nunca... — Os olhos de Graeham se en­dureceram. — Jurei a mim mesmo que nunca teria um filho bastardo. Todas as crianças merecem pais que as queiram e um lar.

Joanna ficou pensando em como os homens poderiam evitar ter filhos. A resposta veio num pedaço de conversa ouvida atrás da porta: Eu pedi que ela fizesse à maneira franca. Havia outras formas de um homem se satisfazer sem arriscar uma gravidez, ela ponderou ao se lembrar das coisas que Prewitt a obrigava a fazer. Sem dúvida, o belo sargento de olhos azuis estava mais do que fami­liarizado com as variações mais pecaminosas do ato de amor. Num impulso travesso, ela comentou:

— Se tivesse escolhido o clero, como era desejo de frei Simon, esse não seria um problema.

— Essa solução não me agradava. Após catorze anos, soube que jamais poderia passar o resto de minha vida num monastério. Pensei em fazer parte da Ordem dos Frades Menores; os clérigos vivem sob certas restrições, mas ao menos têm maior contato com o mundo.

— E essas restrições costumam ser ignoradas — Joanna comentou lembrando-se das muitas histórias a respeito de diáconos que mantinham amantes. — O que houve quando completou catorze anos?

Graeham diminuiu a pressão sobre a faixa, passando o polegar sobre o bordado; o movimento gentil da mão como uma suave carícia em Joanna.

— Meu pai pediu a frei Simon que me mandasse para Beauvais a fim de que eu trabalhasse para seu ve­lho amigo lorde Gui como escrevente. Fiquei enfurecido. Eu esperava passar pela cerimônia da tonsura no verão seguinte e ir para Oxford estudar teologia e dialética, mas meu pai insistiu para que eu passasse dois anos trabalhando antes disso. Sem o dinheiro dele, eu não teria como pagar os professores; não tive escolha a não ser obedecer. Cheguei a Beauvais cheio de ressentimen­to e determinado a ser o pior funcionário de lorde Gui para que ele quisesse se livrar de mim o mais rápido possível.

— Todavia permaneceu por... Quantos anos?

— Onze. — Graeham sorriu, os dedos subindo e des­cendo pela faixa, resvalando no quadril de Joanna e provocando arrepios por onde passavam. — Lorde Gui se afeiçoou a mim, e eu a ele. Não consegui trabalhar porcamente, por isso me esforcei. Escrevia a correspon­dência e entregava mensagens, porém sempre que ele me concedia um tempo livre, eu corria para o campo de treinos e observava os soldados se exercitando. Posso imaginar como eu devia parecer para eles: um rapazola inexperiente num hábito escuro de olhos arregalados diante de homens empunhando espadas, machados e lutando sobre cavalos. Numa tarde lorde Gui me levou até seu comandante e pediu que ele me instruísse com as armas menores e que me ensinasse a me defender usando mãos e pés. Fiquei extasiado e meu entusiasmo me transformou num excelente aprendiz. Em um ano eu brandia espadas e arremessava lanças montado em cavalos. Lorde Gui encontrou um substituto para as mi­nhas funções.

— O que aconteceu quando o prazo de dois anos passou?

— Lorde Gui me ofereceu uma posição em seu corpo de soldados, e eu aceitei.

— Chegou a perguntar a ele sobre seu pai?

— Uma vez. — Graeham ficou sério. — Ele disse que meu pai o fez jurar segredo. Disse também que não gos­tava de manter esse segredo, mas que não tinha alter­nativa. Eu disse a mim mesmo que já não importava mais, por isso não voltei a tocar no assunto. Se ele não me quis... — Graeham virou o rosto para a parede, o queixo tenso.

Joanna o tocou na mão.

— Lamento muito.

Graeham soltou a faixa e segurou-a, levantando a mão ao rosto.

Joanna respirou fundo ao sentir os nós de seus de­dos na boca máscula. Por um átimo acreditou que ele a beijaria na mão, mas ele não fez isso. Fechando os olhos, ele murmurou:

— Adoro o seu cheiro. — Ele abriu a mão dela e a espalmou ao encontro de sua face.

Ela prendeu o fôlego ante a sensação erótica do início da barba por fazer arranhando-lhe a palma.

Pressionando a mão contra o rosto, Graeham disse:

— Deus, como eu gostaria...

— Sim? — ela sussurrou, o coração apertado no peito. Ele levantou as pálpebras e a encarou, o calor em seus olhos dando espaço à resignação.

— Eu gostaria de não ter ficado tão bêbado — disse, soltando-lhe a mão.

Joanna se levantou, tentando se recompor.

— Descanse, sargento. Garanto que se sentirá me­lhor pela manhã. Durma bem.

— Senhora? — Graeham se levantou sobre um cotovelo.

— Pois não?

Ele pareceu ter dificuldade para encontrar as palavras certas. Por fim, suspirando, voltou a se deitar e disse:

— Boa noite.

— Boa noite, sargento.

 

A rua Newgate estava tão abarrotada de pedestres para as festividades de São João que Joanna e Hugh levaram o dobro do tempo para chegar à igreja de São Miguel.

Fazendo sombra com a mão para ver sob o sol forte, Joanna esquadrinhava a multidão à procura de Robert e das filhas. A mistura de gente era maior até do que no mercado de sexta-feira e a maioria se vestia com a elegância dos dias santos. Sem querer repetir a roupa, Joanna escolhera o vestido menos puído, o azul-marinho, e o adornara com um cinto elegante e uma bela bol­sa. Cobrira os cabelos com um véu fino e o tinha prendi­do com uma fita bordada.

— Lá estão eles. — Hugh apontou para um grupo de pessoas em volta de dois malabaristas. No meio delas estavam Robert, as meninas... e Margaret.

Robert e Margaret se entreolhavam, rindo; Catherine chupava seus dois dedos prediletos e Beatrix se remexia nos braços do pai.

Hugh colocou as mãos ao redor da boca em forma de concha e gritou:

— Robert!

O loiro se virou e sorriu ao vê-los. Margaret também se virou, o sorriso falseando ao ver Joanna.

Ela sabe que Robert me pediu em casamento...

Margaret a olhou e deu um sorriso contido, e Joanna teve de admirá-la por isso. A mulher enfrentaria a situa­ção de cabeça erguida e sobreviveria com graciosidade.

Joanna se perguntou se agiria da mesma maneira se a situação fosse reversa, se o homem que amava estivesse se preparando para se casar com outra mu­lher. Imediatamente imaginou Graeham Fox ajoelhado diante do altar ao lado de uma mulher de rosto des­conhecido e sentiu um aperto nas entranhas, uma dor profunda na alma.

E ela nem mesmo o amava... Estava apenas... encan­tada. Fascinada. Obcecada.

Mas não apaixonada.

— Papai, veja! —A pequena Catherine apontou para um acrobata se equilibrando sobre uma vara segura por dois outros colegas, vestidos em roupas multicoloridas. A menina pulava e se remexia, buscando uma melhor visão.

— Venha cá. — Robert a ergueu sobre os ombros e a segurou pelas pernas. — Melhor assim?

— Sim! — Ela bateu palmas, gritando feliz. — Veja, Beatrix!

A irmãzinha estava no meio da soneca da tarde no colo de Margaret, braços e pernas soltos, a boca rosada entreaberta, sem se importar com o caos que a circun­dava.

As horas passavam rapidamente. O dia era dedica­do às festividades, os cidadãos mais influentes tinham organizado mesas repletas de doces e bebidas grátis. À noite, sendo o toque de recolher suspenso, aconteceria a tão aguardada Vigília do Meio do Verão, um desfile anual dos cidadãos mais proeminentes de Londres.

Joanna, ao lado de Hugh, encobriu os olhos para ver quais seriam as atrações seguintes, mas teve a atenção momentaneamente capturada por um lampejo verme­lho no meio da multidão. Imediatamente pensou em Alice e em seu chapéu esfarrapado. Cinco dias tinham se passado desde a manhã de seu desaparecimento e não houvera sinal dela desde então. Era como se ela ti­vesse evaporado no ar. Joanna suspeitava que a meni­na não seria encontrada a menos que quisesse e rezava todas as noites por sua segurança. Graeham ainda se lamentava e se culpava por tê-la assustado.

— O que foi? — Hugh perguntou.

— Nada. — Joanna meneou a cabeça.

Pouco mais tarde, quando um ilusionista fazia tru­ques, ela viu o lampejo vermelho de novo uns vinte metros mais adiante. Ele apareceu e desapareceu num piscar de olhos. Joanna ficou estática, os olhos presos no lugar onde tinha visto o chapéu. Hugh sorriu com indulgência.

— Nada de novo?

Robert, segurando Catherine pela mão, se aproximou e perguntou:

— Algo errado, milady?

Joanna balançou a cabeça, mas em seguida voltou a enxergar o chapéu vermelho. No instante seguinte, a ca­beça da criança se virou brevemente, porém por tempo suficiente para que ela pudesse distinguir as feições.

— Alice — Joanna sussurrou. Hugh e Robert trocaram um olhar.

— É Alice, Hugh. A menina de quem lhe falei a se­mana passada. Ali, veja, aquele chapéu vermelho. — Joanna suspendeu a saia e começou a se mover na dire­ção apontada. Se a chamasse, a menina fugiria. — Não consigo mais vê-la.

— Deixe comigo. — Hugh se afastou.

— Quem é ela? — Robert perguntou.

Joanna contou a ele e a Margaret o que sabia sobre a menina.

— Uma menininha sozinha nas ruas desta cidade, pobrezinha — Margaret comentou ainda segurando Beatrix adormecida e passando um braço protetor ao redor de Catherine.

Hugh reapareceu, segurando Alice, que se debatia, sob um braço.

— Solte-me, seu... seu maldito vira-lata!

— Se quer praguejar, posso ensinar algumas ofensas melhores do que essa — Hugh disse calmamente.

— Não faça isso, por favor — Joanna replicou.

A menina parou de lutar ao ouvir a voz conhecida e olhou para cima, o chapéu torto revelando uma longa trança.

— Sra. Joanna...

— Olá, Alice. Fiquei preocupada, pensei que não vol­taria a vê-la.

— Poderia dizer a esse... bastardo para me soltar?

— Bastardo? Já é uma melhora, mas estou certo de que pode fazer ainda melhor — Hugh caçoou.

— Este cavalheiro é meu irmão, Hugh de Wexford. Pode chamá-lo de sir Hugh. E estes são sir Robert e lady Margaret. Não tenho a mínima intenção de pedir que ele a solte até que você prometa não fugir.

— Eu dou a minha palavra — Alice respondeu rápido demais.

— Jure sobre isto — Hugh disse, colocando a mão da menina sobre o cristal no cabo de sua espada. — Há um pouco de palha da manjedoura de Belém nele. Um juramento sobre esta relíquia é sagrado — ele afir­mou, o tom tão sério que Joanna teve de se controlar para não rir. — Se quebrar tal juramento, Deus encon­trará um meio de puni-la. Então, jura diante de Deus-Todo-Poderoso e de todos os santos que ficará quieta se eu a soltar?

— O que fará se eu não jurar?

— Encontrarei uma corda e a amarrarei.

— Está bem, eu prometo.

Hugh a colocou no chão e sacudiu a poeira da roupa da menina. Ela se esquivou do toque e enfiou a trança embaixo do chapéu, a carranca exagerada desaparecen­do diante de Beatrix, que começava a acordar.

— Um bebê.

— Gosta de bebês? — Margaret sorriu. Alice assentiu, hipnotizada por Beatrix.

— Ela é minha irmã — Catherine informou orgulhosa.

— Ela é muito bonita. Você também. Quantos anos você tem?

Catherine mostrou os cinco dedos de uma mão.

— E você?

— Dez. Qual o seu nome?

— Catherine. E o seu?

— Alice.

Catherine pareceu confusa.

— Você não parece uma garota.

Alice hesitou, porém depois tirou o chapéu, soltando as trancas, e o prendeu no cinto.

— Por que se veste como menino? — Catherine riu. Alice franziu o cenho, sem saber como explicar sua si­tuação para uma menina tão nova como ela.

— Aposto como sei a resposta — Robert intercedeu, abaixando-se diante da filha. — Lembra como Gillian gostava de usar calças e camisas para cavalgar?

— Mamãe brigava com ela por causa disso, mas o se­nhor, não.

— Sim, mamãe e eu nem sempre concordamos quanto a Gillian, mas nós dois a amávamos muito. Gillian acha­va que era mais confortável vestir calças para cavalgar. — Robert olhou para Alice. — Talvez seja por isso que Alice se veste assim, por ser mais confortável.

Percebendo a dica, Alice concordou.

— Eu posso usar calças, papai? — Catherine perguntou.

Margaret arqueou uma sobrancelha de modo eloqüen­te como quem diz "viu o que você fez?"

— Quem sabe um dia? Quando você estiver pronta para longas cavalgadas.

— Você cavalga bastante? — Catherine perguntou a Alice.

— Eu costumava andar de mula quando morava em Laystoke. Eu tinha uma irmã da sua idade, e ela montava atrás de mim.

— Papai diz que eu sou nova demais para montar. — Catherine fez beicinho.

— Não quero acidentes — Robert disse. — Eu não quero que você... se machuque. — Pela expressão séria, Joanna sabia que ele pensava na esposa e na filha mortas.

— E se Alice for comigo? — a filha perguntou. Robert e Margaret trocaram um olhar.

— Eu não moro perto de você — Alice disse.

— Onde você mora?

Alice titubeou e depois respondeu:

— Aqui em Londres.

— Onde em Londres? Alice mordeu o lábio inferior.

Joanna pensava em um modo de distrair a atenção da pequena quando Robert perguntou:

— Quem quer bolinhos?

— Eu! — Catherine exclamou feliz. Beatrix bateu as mãozinhas imitando a irmã.

Alice ficou mais contente e ia dizer alguma coisa, mas logo se recompôs, incerta se o convite a incluía.

— Alice — Robert disse, tocando-a no ombro —, por que não leva Catherine até aquela barraca onde estão distribuindo os doces? Pegue três, um para cada uma de vocês.

— Sim, milorde.

Quando as duas meninas se afastaram de mãos da­das, Margaret se virou para o primo.

— Ela até se parece com Gillian, não é mesmo, Robert?

Robert assentiu e, sério, observou a menina.

— Um pouco.

 

— Posso lhe falar a sós, milady? — Robert perguntou a Joanna.

Aquele era o momento pelo qual Joanna esperara o dia inteiro. Com o sol se pondo e pintando o céu em tons de laranja, era evidente que era hora de uma resposta.

— Sim, milorde, é claro.

Hugh e Margaret os olharam de esguelha quando os dois começaram a se afastar. Hugh piscou em sua dire­ção, feliz por seu esquema estar funcionando. Margaret desviou o olhar, a expressão vazia.

Aquela rua estava mais escura e mais silenciosa e, depois que dois garotos passaram correndo, pratica­mente deserta. Os dois caminhavam em silêncio até Robert tocar em seu cotovelo. Eles se viraram de frente, e Robert respirou fundo:

— Pensou a respeito do meu pedido?

— Estou muito honrada que queira se casar comi­go, lorde Robert. Aprecio muito a sua companhia e suas filhas são maravilhosas. Contudo, não posso aceitar.

— Posso saber por quê?

A imagem de Graeham Fox se materializou na mente dela. A senhora é feliz?, ele perguntara. Aquilo, porém, não tinha nada a ver com o sargento. Não poderia ser. A questão era Margaret.

Joanna ergueu o olhar e o fitou.

— Por causa de sua prima.

Robert fechou os olhos por um breve instante.

— Margaret... Eu lhe disse, ela partirá de Ramswick depois que eu...

— Eu sei. — Joanna pousou uma das mãos no braço dele. — Ela vai fazer os votos sagrados. Mesmo assim, continuará a amá-la.

— Eu... — Robert balançou a cabeça. — Nada pode acontecer entre mim e Margaret. Ela é minha prima.

— Em terceiro grau. Sei que pretendeu se casar com ela no passado.

— A cúria romana negou santificar o matrimônio.

— Deveria ter se casado mesmo assim. Ainda há tempo.

O rosto dele revelava seu conflito interior.

— Meus pais... Eles morreriam de desgosto.

— Por algum motivo, duvido que isso possa acontecer.

— Não os conhece, milady. Eles são absurdamente devotos. Se eu desrespeitasse a autoridade da Igreja, eles acabariam morrendo de fato.

— Achei que meu pai fosse morrer quando me casei com Prewitt. Ele ficou com raiva, furioso, na verdade, mas continua vivo até hoje.

— E vocês não se falam até hoje... Perdão, milady. Isso não cabe a mim julgar.

Joanna segurou as duas mãos de Robert.

— Só porque meu pai me repudiou, não quer dizer que o mesmo vai lhe acontecer. William de Wexford é um homem amargo. Pelo que sei dos seus pais, eles pa­recem boas pessoas. Eles o perdoarão.

— Eles ficarão chocados, magoados... Furiosos.

— Está preocupado em ser deserdado?

— Só me importo com Ramswick, e meu pai me deu a propriedade há muito tempo; não pode tomá-la de mim.

— Então, deixe-os bravos. Eles o amam; acabarão su­perando tudo.

— E se não superarem?

— Nunca fez nada contra a vontade deles, nem quan­do era moço?

— Não, jamais.

— Então já está mais do que na hora. — Joanna riu. — Precisa fazer algo muito significativo para compen­sar essa falha. Eu diria que casar com Margaret é mais do que suficiente.

— Se eu me casasse com ela, seria uma traição para com meus pais — Robert rebateu.

— Prefere trair Margaret, então?

Ele empalideceu e soltou as mãos.

— Traí-la!

— Está traindo o amor que sente por ela, um amor que nunca acabará, não importa o quanto se esforce. Como acha que ela se sente agora, sabendo que pediu a minha mão?

— Ela aceita. Foi o que me disse.

— Assim como milorde aceitaria, caso a situação fosse inversa, imagino.

— Ela não vai se casar; vai se tornar freira.

— E se ela estivesse pensando em se casar, unir-se a outro homem, jurar fidelidade perante o altar, partilhar a cama com...

— Ela não está!

— Não ficaria tão satisfeito, posso apostar.

— Não estou satisfeito, pelo amor de Deus! — ele rebateu.

— Conformado, então — Joanna continuou, achando interessante o modo como o fleumático Robert começou a se exaltar, um nervo pulsando na lateral do pescoço.

— Não se importaria se ela aceitasse se casar com, di­gamos... Hugh?

— Hugh! — Robert exclamou, parecendo tão altera­do que Joanna se sentiu tentada, só por um instante, a assegurá-lo da verdade. Que Hugh era um espírito indo­mado demais para se prender aos laços do matrimônio.

Em vez disso, ela acabou dizendo:

— Eu não deveria ter mencionado nada. Esqueça o que...

— Hugh? — Robert a agarrou no braço chegando a machucá-la com a intensidade do aperto. Muito interes­sante... — Ele pediu a mão de Margaret?

— Não. Milorde, solte-me, acabará deixando marcas. Ele a soltou e deu um passo para trás, indignado.

— Ele tem a intenção?

— Eu não devia ter dito nada. Foi muito indiscreto da minha parte.

— Ele vai? — Os punhos de Robert se fecharam. Joanna esperava que ele e Hugh não acabassem às vias de fato por causa de suas artimanhas; mesmo as­sim, decidiu arriscar.

— Milorde, por favor — disse ela, retrocedendo. — Eu não deveria ter mencionado isso.

— Jesus Cristo... — ele murmurou, pressionando os punhos nas têmporas.

— Seria melhor voltarmos para junto dos outros — Joanna sugeriu.

Ele estava parado com as mãos no quadril, os olhos cerrados, o peito arfante.

— Vá na frente — ele disse depois de um minuto. — Vou daqui a pouco.

Virando-se, ela segurou a saia e se dirigiu de volta à rua Aldgate.

— Eles estão chegando! — Alice e Catherine grita­ram ao mesmo tempo ao ouvirem o distante rufar dos tambores, sinalizando a aproximação do desfile.

A procissão tinha começado do lado oeste da cidade, próximo à Catedral de São Paulo e terminaria no lado leste, diante de Holy Trinity.

Alice e Catherine tinham se tornado inseparáveis no decorrer do dia. Vendo como Alice interagia com a me­nina mais nova, brincando e conversando, Joanna per­cebeu o quanto ela devia sentir falta dos irmãos, e como devia gostar do papel de irmã mais velha.

Robert vinha se mostrando nervoso e distante desde a conversa com Joanna. Ele não parecia nem um pouco interessado nas festividades, mal despregando os olhos da prima.

— Robert não me parece muito feliz — Hugh comentou.

Eles estavam à espera do desfile ao lado de Margaret e das meninas. Robert, que dissera não estar interessa­do, sentou-se nos degraus da igreja de Santo André com a adormecida Beatrix no colo.

— Ele devia estar feliz... Afinal, você aceitou o pedido de casamento.

— Bem, quanto a isso... Eu...

— Joanna... — Hugh gemeu. — Ah, diabos!

— São eles: Gog e Magog! — Catherine apontou para a caricata representação dos gigantes que se apresenta­vam para a multidão com gritos conforme avançavam pelas ruas.

Em seguida vinham os cidadãos mais proeminentes, liderados pelos três homens que representavam os inte­resses do rei em Londres: o administrador judiciário e os dois barões: Gilbert de Montfichet e Walter, filho de Robert e neto de Richard, em seus mais belos costumes.

Joanna notou que lorde Gilbert tinha envelhecido desde que ela servira lady Fayette. Continuava belo e garboso, mas os cabelos negros haviam embranque­cido e o rosto estava mais marcado. O barão pareceu notá-la ao passar os penetrantes olhos azuis pela mul­tidão e, por um instante, eles demonstraram confusão.

Não tinham se falado desde que ela aceitara se casar com Prewitt, preterindo o filho mais novo dele. Ela ficou se perguntando se ele sabia alguma coisa sobre o rumo que sua vida tomara.

Inclinou a cabeça num leve cumprimento. Depois de uma ligeira hesitação, ele retribuiu a saudação e seguiu em frente.

Os dois delegados vieram depois deles e, em seguida numa única fila, as duas dúzias de conselheiros, seus porta-estandartes e sargentos. Por fim passaram os diretores das associações de comércio, agrupados de acordo com os diversos distritos. Lionel Oxwyke, a expressão mais azeda do que nunca, a reconheceu e fez um aceno com a cabeça. Rolf Le Fever a cobiçou como se ela estivesse nua na multidão. Joanna se empertigou e o enfrentou com o olhar. Ele cedeu, olhando para o outro lado.

Dançarinas e mais músicos fechavam o desfile. Conforme a multidão começava a dispersar, Joanna no­tou que Margaret não estava mais por perto. Olhando ao redor, viu que ela caminhava na direção de Robert. Ele ergueu o rosto com a aproximação dela, repentinamente animado pela primeira vez naquela noite. Sentando-se ao lado dele na escadaria da igreja, ela começou a falar.

— Está encarando — Hugh a repreendeu. Joanna se virou, recompondo-se.

— Alice, Catherine, fiquem perto de mim. Eu não quero que se percam na multidão.

Um minuto mais tarde, Margaret e Robert, agora com Beatrix apoiada no ombro, juntaram-se a eles.

— Papai, perdeu tudo! — Catherine exclamou.

— Vi Gog e Magog — ele replicou. — Você ficou assustada?

— Não, Alice me disse que eram de mentira.

— Obrigado, Alice — disse ele —, por cuidar de Catherine.

— Não quis que ela ficasse com medo. — Alice deu de ombros.

Margaret se abaixou diante dela para conversar frente a frente.

— Alice, é verdade que não tem parentes?

O sorriso de Alice se desfez e a menina relanceou o olhar apreensiva para os rostos dos adultos.

— Não vou para nenhum abrigo.

Temerosa de que a menina tentasse fugir novamente, Joanna colocou a mão no ombro dela.

— Ninguém vai fazer isso, Alice.

— Pensei que talvez você quisesse viver em Ramswick — Margaret comentou.

— Ramswick

— É a minha casa — Robert esclareceu. — Não passa de um punhado de terras.

— Uma fazenda? — Os olhos de Alice se iluminaram.

— Sim, várias pequenas fazendas compondo uma grande, na verdade.

— Você viveria na casa da fazenda e dormiria no quarto das meninas — Margaret disse e, olhando para Robert, completou: — Há uma cama perfeita para o seu tamanho, um colchão de penas e uma linda colcha cor-de-rosa.

— Diga sim! — Catherine implorou, puxando a manga de Alice.

Alice olhava para Robert e para Margaret, obvia­mente surpresa.

— Por quê?

— Nós gostamos de você, e Catherine a adora — Margaret explicou.

— Vou ser um tipo de criada, é isso?

— Não, será minha protegida — Robert disse. — Eu a educarei como se... — Respirou fundo, a voz demons­trando emoção. — Como se fosse uma filha.

— Terá belos vestidos e receberá educação. O cape­lão de lorde Robert a ensinará a ler e a fazer contas. Aprenderá a administrar uma casa e, quando tiver ida­de o suficiente, nós arranjaremos um homem de boa fa­mília para se casar, um que tenha uma casa e, assim, você terá seu próprio lar. Gostaria que isso acontecesse? — Margaret perguntou.

— Isso foi idéia sua? — Alice perguntou.

— Sim. — Margaret olhou para Joanna e pareceu perturbada por um instante. — Desculpe. Eu deveria tê-la consultado já que...

Então Robert ainda não contara a ela sobre a recusa do pedido.

— Não há por que me consultar — Joanna respondeu num tom que esperava esclarecesse a situação.

Margaret se levantou e olhou de Joanna para Robert, que assentiu com a cabeça. Eles se perderam nesse olhar por um longo momento.

— E então, Alice, acha que gostaria de viver em Ramswick? — Joanna perguntou.

— Tem certeza de que concorda com isso, senhor? — Alice perguntou a Robert.

— Eu ficarei muito feliz se vier conosco, Alice, bem como lady Margaret imaginou. — Com um olhar afetuo­so para a prima, completou: — Ela é uma mulher muito inteligente.

— Aceite. — Hugh deu um empurrãozinho na menina. Alice os olhou sorrindo, o queixo ligeiramente trêmulo.

— Sim.

Catherine emitiu um gritinho de contentamento.

— Obrigada, papai. Obrigada, tia Margaret. Vou ter uma irmã mais velha de novo!

— Onde está Robert? — Hugh perguntou ao notar o fim das festividades. — As crianças estão cansadas.

Joanna, em cujos ombros Beatrix dormia no momen­to, olhou ao redor e viu um casal perto da fogueira.

— Lá estão eles. — Ela apontou.

Robert falava e Margaret ouvia. Ele parecia muito envolvido na conversa; os gestos começaram a se am­pliar, a expressão se mostrou angustiada. Margaret le­vantou as mãos, e ele as tomou entre as suas, puxando-a para perto.

— Está encarando de novo — Hugh disse baixinho.

— E você, não?

Soltando uma das mãos, Robert fez uma carícia tími­da no rosto da moça, que fechou os olhos. Ele continuou a falar, e sua postura se mostrava determinada. Ela assentiu e abriu os olhos nos quais lágrimas brilhavam. Robert enxugou-as com os polegares e disse algo com expressão suplicante. Margaret assentiu e disse "sim". Joanna conseguiu ler os lábios dela ao aceitar o pedi­do de Robert. O rosto dele se iluminou de felicidade. Também tinha as faces úmidas com as próprias lágri­mas. Robert segurou o queixo de Margaret e o inclinou, abaixou a cabeça, tocou-a nos lábios e se afastou.

Pegando-a nos braços, voltou a abaixar a cabeça e a beijou. Um beijo de verdade, dessa vez. Ela pareceu mo­mentaneamente atordoada, mas em seguida, retribuiu o braço e o beijo. Um beijo que se prolongou até terem de se afastar para poder respirar.

Joanna sentiu uma alegria apertando-lhe o coração e umedecendo seus olhos.

Hugh pigarreou.

— Isso só pode ter o seu dedo — disse ele de modo acusatório.

Joanna se virou de frente para o irmão, contente por ver que ele também parecia emocionado.

— Não me parece indiferente a essa reviravolta nos fatos.

— Isto é por causa da fumaça das fogueiras — ele disse, enxugando os olhos.

— Ah, sim.

— Ele teria sido um excelente marido, Joanna. Espero que saiba o quanto é tola.

Ela suspirou e pensou em Graeham Fox.

— Lamento informar que sei disso já há algum tempo.

 

Algo no som dos passos no beco alertou os sentidos de Graeham; eram rápidos e leves.

De pronto, ele pensou em Alice e sentiu o peito aper­tado, porém logo se lembrou de que a menina já não vagava pelas ruas da cidade, nem dormia ao relento. Havia uma semana, ela passara a morar em Ramswick, sob a guarda de lorde Robert. Sentia-se imensamente grato que ela tivesse encontrado um lar tão bom. Era muito mais do que a própria Joanna poderia oferecer. Como tutelada de lorde Robert, Alice teria uma vida privilegiada e um futuro assegurado. Todas as noites Graeham agradecia a Deus por ter garantido a segu­rança daquela criança.

As passadas continuaram pelo beco até o pátio interno das casas. Pensando melhor, eram pesadas demais para pertencer a uma criança; deviam ser de uma mulher. Já passara muito do toque de recolher, e as únicas mulheres que andavam pelas ruas àquela hora eram as meretrizes. Porém, elas não costumavam correr, a menos que estivesse algo errado.

Graeham apagou a vela que usava para ler, destran­cou a veneziana e espiou na escuridão, imaginando se conseguiria ajudar a mulher, caso ela estivesse em apu­ros. Pelo pouco que conseguia ver, contudo, ela não pare­cia uma prostituta. Usava um manto escuro com capuz, e as meretrizes jamais cobriam os cabelos, normalmen­te seus melhores atributos. Em noites frias, o que não era o caso, usavam mantos em cores berrantes a fim de se destacar.

A mulher correu para o portão de Le Fever, abriu-o e foi em direção à casa.

Graeham se sentou na cama, imediatamente alerta. Pensou que ela bateria à porta; em vez disso, porém, ela se abaixou e pegou um seixo. Depois, afastou-se al­guns passos e atirou-o na janela do segundo andar. Após esperar um instante, ela jogou mais uma pedrinha na janela de Le Fever que, em seguida, abriu-a.

A mulher fez um gesto para que ele descesse. Ele assentiu e fechou a janela.

Apesar da luz de dentro do quarto que iluminou bre­vemente o quintal, Graeham não conseguiu divisar as feições da mulher.

Logo a porta se abriu e Le Fever apareceu. Havia tro­cado a roupa de dormir por uma túnica e calças de cores mais sóbrias que as costumeiras. A mulher disse algo e cobriu o rosto com as mãos. Ele a pegou pelo braço, cruzou o portão e levou-a até o beco.

Graeham ouviu os passos. Quando pararam, uma voz lamuriosa feminina disse:

— Rolf, eu não posso...

As palavras foram abruptamente interrompidas. Algum tempo depois a voz voltou, sem fôlego, mas ainda chorosa.

— Seus beijos não vão resolver a situação. O que es­tamos fazendo é errado, e o que você quer que eu faça é ainda... — Mais silêncio seguido por gemidos suaves e o farfalhar de tecido. — Aqui não, Rolf. — A voz dela estava rouca, como se tivesse chorado por horas; ela pa­recia ser jovem.

— Ninguém pode nos ver — ele disse. — Fique quieta, apenas deixe-me tocá-la... — A moça arfou. — E assim, gosta?

— Rolf, por favor... Aqui não...

Tentando persuadi-la, ele disse num tom manso: — Você adora quando eu faço isso, já está quase pron­ta. Preciso de você agora. Sinta isto; parece que eu vou conseguir esperar?

Tudo ficou quieto por mais alguns instantes. Quando romperam o beijo, os dois arfavam.

— Não com tanta força — ele reclamou. — Será que nunca vai aprender? Sim... Assim mesmo. Um pouco mais rápido. Mais. Pare!

A veneziana da janela sacudiu quando ele pressio­nou a moça com força contra ela.

— Erga as saias. Ponha suas pernas ao meu redor. Segure-se.

Ela ofegou e a veneziana começou a ranger no ritmo do movimento dos amantes. Depois de alguns minutos, Le Fever gemeu e a moça se pôs a chorar.

— De novo não, que inferno!

Graeham ouviu quando a moça voltou a colocar os pés no chão, e eles ajeitaram as roupas.

— Olive, você não seria tão má companhia se não chorasse tanto! — Le Fever reclamou.

Olive? Olive e Le Fever?

— Rolf, eu imploro, precisamos discutir isso. É assas­sinato, um pecado! Eu não posso...

— Pode e vai fazer.

— Rolf, ouça...

— Quero que cuide disso, entendeu? E logo. Está de­morando demais; você sabe o que deve ser feito, então faça!

— Oh, Deus, Rolf... Eu não posso...

Le Fever suspirou, demonstrando impaciência.

— Venha aqui... Calma, detesto quando chora, sabe disso, não? Tome, limpe o nariz... Acalme-se, querida. Desculpe se fui duro.

Cobra ardilosa, Graeham pensou.

— Consigo ser tão estúpido. Não sei por que você me agüenta.

— Eu... t-te... a-amo — ela gaguejou entre soluços.

— Eu também te amo, Olive. Do fundo do meu co­ração. Nosso futuro juntos significa tudo para mim, e é por isso que você não tem escolha. Precisa cuidar disso. Sei que entende, só está com um pouco de medo, o que é natural. Mas essa é a única maneira, não? — Depois de uma pausa, ele insistiu: — Não é, Olive?

— S-sim.

— Muito bem. Você tem tudo de que precisa na loja, todos os ingredientes?

— Só há dois e, sim, eu os tenho. Eu só queria não ter de fazer isso.

— E claro que não quer. Eu também detesto pensar nisso, mas não temos escolha, lembra? Quer ser minha esposa, não?

— Mais do que tudo.

— Vá, então. Prepare a mistura e faça o que tem de ser feito. Agora. Antes que perca a coragem.

— Sim, Rolf, vou cuidar de tudo. — Ela respirou fundo.

— Essa é a minha garota... Amanhã a esta hora, estará tudo terminado e você saberá que esse era o único caminho.

Graeham ouviu-os se beijar em despedida e, em se­guida, os passos dela seguiram em direção à rua Woods. Alguns instantes mais tarde, Le Fever se virou e voltou para casa.

Apoiando-se nas muletas, Graeham foi até a corti­na e parou. Só estava com a roupa de baixo, por causa do calor, mas Joanna sempre parecia um pouco agitada quando o via sem camisa. Por isso, pegou-a do gancho da parede e vestiu-a antes de seguir para a escada. Parou no primeiro degrau, desejando não ter de acordá-la e, acima de tudo, não ter de envolvê-la ainda mais em suas complicações. Praguejando baixinho, ele a chamou:

— Sra. Joanna? — Silêncio. — Senhora, acorde. Por favor, preciso de sua ajuda.

Graeham ouviu o rangido do estrado da cama e, em seguida, Joanna disse sonolenta:

— Sargento, está tudo bem?

— Sim, só preciso de sua ajuda.

Ele ouviu os passos nas tábuas do andar de cima e imaginou-a saindo da cama, nua. A imagem o excitou, a despeito da urgência da situação. Lembrou-se então de que, àquela altura, ela já devia estar noiva. E ele tam­bém tinha de pensar em Phillipa.

Aquilo, no entanto, não o impedia de desejar Joanna. Nunca deixaria de querê-la. Mesmo depois de estar estabelecido em Oxfordshire com Phillipa, sabia que ainda sonharia com Joanna, ainda ansiaria por ela. Lembraria dela, assim como o coração se lembrava de bater e os pulmões, de respirar.

Joanna desceu a escada apressada, o roupão de seda amarrado, e os cabelos dourados soltos. Estava com o rosto rosado pelo calor da cama.

O coração de Graeham parecia querer sair pela boca. Não a vira mais daquele modo desde a noite do banho fazia mais de um mês; ainda tinha gravado na memória cada detalhe, à custa das muitas noites insones, sozinho em sua cama estreita.

Ele passou os dedos pelos cabelos, tentando ignorar a latência na virilha e feliz por ter vestido a camisa e, assim, conseguir esconder a evidência de seu desejo.

— Me perdoe por tê-la acordado.

— O que aconteceu? — Ela olhou para a perna dele e fechou o roupão um pouco mais. A seda se moldou sobre os seios arredondados, delineando o contorno delicado.

— Talvez nada de mais, mas eu poderia apostar que algo muito grave está para acontecer. Ouvi um casal no beco agora há pouco. Rolf Le Fever e... Olive.

— Olive? Talvez ele tenha precisado de remédio para a esposa.

— Senhora, só há um motivo capaz de fazer um ho­mem e uma mulher se encontrarem no meio da noite.

— Olive e Le Fever? — Ela meneou a cabeça. — Não, só pode estar imaginando coisas.

— Ele teve relações com ela contra a parede.

— Não deve ter sido Olive — ela disse, ruborizada. — Talvez...

— Ouvi a voz dela. Não a reconheci de imediato porque ela chorava, mas depois que ele a chamou pelo nome, pude perceber que era ela de fato. Fiquei com a impressão de que... eles são íntimos há algum tempo.

— Oh, meu Deus! — Joanna sentou-se no banco ao lado da mesa, parecendo atordoada e triste. — E quanto a Damian? Ele a ama e... Bem, pensei que ela também o amasse.

— Talvez ela o ame. As questões amorosas não costu­mam ser simples. Normalmente são bem complicadas... Inexplicáveis.

Ela ergueu o rosto e o fitou. Graeham sentiu o peso das palavras não ditas entre eles, como uma nuvem car­regada à espera de um lampejo que a faça se libertar da chuva. Joanna foi a primeira a desviar o olhar.

— Disse que precisava de mim.

— E preciso. — Demais e por muitos motivos.

— O que quer?

Tentando se concentrar no problema imediato, ele respondeu:

— Eu gostaria que fosse até a farmácia. Olive está preparando uma poção e...

— Não. Parece ter se esquecido — ela disse, levantando-se — de que não vou espionar meus vizinhos em seu benefício.

— Senhora, lamento pelo que aconteceu antes, mas isto é importante. Pelo menos estou sendo honesto desta vez, em vez de pedir que vá até lá sob falsos pretextos.

— Imagino que isso seja um bom começo, mas pro­meti a mim mesma que jamais me deixaria usar por qualquer outro homem... para nada. Essa é uma pro­messa que pretendo cumprir. — Ela se virou na direção da escada. — Boa noite, sargento.

Ele claudicou e a segurou pela cintura enquanto ela colocava o pé no primeiro degrau.

— Sei que se importa com Ada ou não a visitaria to­das as manhãs.

Joanna abaixou o pé, ainda de costas para ele e segu­rando o corrimão. Graeham sentiu a tensão nas costas dela e apertou o braço na cintura delgada, dizendo a si mesmo que era para que ela não subisse. O ventre dela era quente e firme sob a seda deslizante; o perfume o inebriava. Ele queria trazê-la para junto do peito, en­terrar o rosto nos cabelos sedosos, pressionar-se contra ela, dentro dela.

Ele engoliu em seco, lutando para se controlar.

— Leva comida para Ada todos os dias. Sei que faz isso por temer que ela esteja sendo envenenada.

— Solte-me, sargento — Joanna exigiu com a respi­ração entrecortada.

Ele apertou o abraço, aproximando-se e sentindo os cabelos sedosos de encontro à sua face, a seda fria res­valando em suas coxas desnudas.

— Subira as escadas se eu a soltar.

— Prometo que não farei isso.

Graeham a soltou com relutância, abaixando a mão lentamente, deixando-a ficar um instante a mais na curva do quadril antes de retroceder. Era como se es­tivesse abraçando uma amante; nunca mais teria uma desculpa para segurá-la daquela forma.

Joanna se virou de frente, mas evitou olhá-lo.

— De fato, pensei em envenenamento no início. Achei que se ela comesse somente o que eu levasse, ela melho­raria, mas de nada adiantou.

— Também suspeitou do tônico, não?

— Sim, mas não passa de uma infusão de mil-folhas.

— Isso se Olive estiver lhe contando a verdade.

— Olive não é uma assassina — Joanna afirmou categoricamente, encarando-o.

— Ela é uma moça impressionável, e Le Fever não teria escrúpulos em usá-la em benefício próprio.

— E isso incluiria assassinato?

— Ouvi quando ela mencionou exatamente essa palavra.

— Conte-me tudo — ela pediu, voltando a sentar-se.

— Havia algo de que ele queria que ela "cuidasse" e logo. Olive falou que aquilo seria assassinato, mas concordou porque ele afirmou que apenas assim poderiam se casar.

— Ele nunca se casaria com ela. Le Fever escolheria alguém que o alavancasse socialmente e não uma moça humilde.

— Olive não sabe disso. Ela está iludida e pode estar preparando uma dose fatal do que quer que esteja ofere­cendo diariamente a Ada. Le Fever deve ter pedido que o processo fosse lento, simulando uma morte natural a fim de não levantar suspeitas, mas agora...

— Não pode ser, custo a acreditar.

— E, todavia — Graeham se sentou ao lado dela —, Le Fever mandou-a de volta à farmácia para "preparar a mistura" antes que perdesse a coragem. Ele disse que a esta altura, amanhã, estaria tudo acabado. Deduzi com isso que Olive entregará amanhã a dose fatal.

— O que quer que eu faça?

— Vá até a farmácia e veja o que ela está aprontando.

— Assim, no meio da noite?

— Diga que precisa de... de algo para dormir. Dê uma olhada, veja o que ela está fazendo. Faça perguntas, se puder, sem levantar suspeitas.

— Eu me sentiria uma traidora, enganando-a dessa maneira.

— Não posso ir eu mesmo — Graeham mostrou a perna. — Prefere que eu mande o delegado? — ele per­guntou, embora desejasse deixar as autoridades ao lar­go da situação a fim de não comprometer a discrição de sua missão.

— Ainda não. — Ela se levantou. — Se isso não for o que parece ser, prefiro não envolver a polícia. — Pegou o manto do gancho e colocou-o sobre o roupão.

Graeham a seguiu até a loja, onde a viu calçar os tamancos e sair. Deixou a porta entreaberta para espiar a rua. Joanna bateu à porta da farmácia e, instantes de­pois, Olive a atendeu, parecendo surpresa por vê-la tão tarde. Joanna disse-lhe algo e a moça deixou-a entrar.

Ele ficou de pé olhando para a farmácia fechada até sentir a perna latejar. A noite estava quente, e ele come­çou a suar, molhando a camisa.

Joanna estava demorando demais. Devia haver algo errado. Nunca deveria tê-la mandado para lá. Ela cor­ria perigo. Estavam planejando um assassinato, e ele a colocara no olho do furacão, sem considerar a seguran­ça dela. Tinha ficado despreocupado porque era apenas Olive, mas se a moça estava envenenando Ada, seria capaz de qualquer coisa.

Pensando assim, abriu mais a porta e pôs o pé na rua. Nesse instante, Joanna saiu da farmácia. Graeham se apressou a entrar na loja para não correr o risco de ser visto.

— Estava preocupado — disse com um suspiro quan­do ela entrou na loja.

— Não tanto, já que me mandou ir lá. — Ela tirou os tamancos e seguiu para a saleta.

Graeham a seguiu, sentou-se no banco e apoiou as muletas.

— Olive lhe disse algo?

— Não, ela parecia muito distraída. Preparou o re­médio para mim como se estivesse em transe. Eu teria medo de tomá-lo. Vai que ela se confundiu com os ingre­dientes... — Joanna jogou um pacote na mesa.

— O que ela fazia quando a senhora chegou lá?

— Moía ervas.

— A senhora as reconheceu?

— Não.

— E o senhor? — Tirando a mão debaixo do manto, ela estendeu dois punhados de ervas secas amarrados por um barbante.

— A senhora... as roubou?

— Sim. Se esses são mesmo os ingredientes de um veneno, pensei que seria melhor tomá-los de Olive antes que ela cometesse uma loucura.

Graeham pegou um punhado, cheirou-o e depois o outro. Não os reconheceu nem pela aparência nem pelo cheiro.

— Ela pode ter mais disso no estoque.

— Eu sei. — Joanna tirou o manto, pendurou-o e en­xugou o suor da testa. — Só pensei nisso depois. Quem sabe ela ao menos não reconsidera?

— Ou talvez ela vá até Le Fever amanhã e conte tudo; nesse caso ele pode decidir que a senhora é uma ameaça. — Graeham balançou a cabeça. — Não posso condená-la por pegar essas ervas; eu provavelmente te­ria feito o mesmo. Só espero que não tenha se colocado em risco.

Voltando para perto da mesa, Joanna pegou as ervas misteriosas mais uma vez e ponderou:

— Preocupo-me com Ada. Devíamos chamar o dele­gado logo de manhã.

Graeham suspirou pesaroso, mas concordou. Não tinha mais como evitar o envolvimento da polícia se queria manter Ada a salvo. Se não estivesse impossibi­litado, iria até a casa de Le Fever naquele instante e a arrancaria de lá, mas do jeito que estavam as coisas...

— Tem razão. Detesto isso, mas...

— Por quê? É responsabilidade da polícia investigar esse tipo de coisa. Por que hesitaria em chamá-la? — Ela o fitou, confusa, a luz da vela provocando centelhas douradas nos olhos castanhos.

— Quando fui enviado para cá para resgatar a sra. Ada, pediram-me que eu agisse com cautela e discrição.

Joanna arrancou uma das folhas e a esfregou nas mãos.

— Ah, isso faz parte das coisas que não tem "a liber­dade de revelar".

Graeham sentiu vergonha por esconder tanto, sendo que pedia a sua ajuda constantemente. Em todos os as­pectos, exceto o da mentira sobre o marido, Joanna mos­trava-se uma pessoa de inteira confiança. Mesmo esse ligeiro desvio era compreensível, uma mentira inocen­te. Não podia culpá-la por tentar manter distante um soldado solteiro, jovem e desconhecido. Podia culpar-se, contudo, por não revelar coisas que ela tinha o direito de saber, já que acabara se envolvendo por demais.

— Não tenho sido justo com a senhora — disse, por fim. — Conquistou o direito de saber mais, saber quem me enviou para cá.

Joanna ficou calada, colocou as ervas na mesa e se sentou. Não do lado oposto, como de costume, mas ao lado dele.

— Foi meu senhor supremo, o barão Gui de Beauvais.

— Por que eu não poderia saber disso?

— Porque — Graeham respirou fundo — Ada Le Fever é filha ilegítima dele. Ninguém sabe disso, além do tio que as criou em Paris e, claro, Rolf Le Fever. Ele descobriu logo após o casamento, e é por isso que a odeia tanto e faz ameaças. O casamento deveria lhe trazer benefícios, mas ele acabou ficando preso a um "segredo sórdido", como ele mesmo diz.

— Lorde Gui começou a se preocupar com as ameaças e os abusos e o convocou para resgatá-la. — Balançando a cabeça, Joanna completou: — Que falta de sorte ter sido atacado por aqueles ladrões antes de conseguir cumprir sua missão.

— Não creio que fossem meros ladrões. Naquela tar­de eu visitei Le Fever. Ele estava relutante em entregar a esposa, então o subornei com a promessa de cinqüen­ta marcos. Ele pediu que eu voltasse mais tarde, assim teria tempo de prepará-la para a viagem. Olive esta­va lá, e eu pedi que preparasse tônico em quantidade suficiente.

— Olive estava lá? Ela o viu e ficou sabendo que levaria Ada embora... E por isso que não queria que ela o visse?

— Isso mesmo. Eu voltei e acabei numa emboscada armada por um homem que se fez passar por Byram. Ele e seus dois comparsas levaram o dinheiro, meu cavalo e teriam me matado se Hugh não tivesse aparecido.

— Acredita que Le Fever seja o responsável pela emboscada?

— Sim, imagino que ele quisesse ficar com o dinheiro sem passar pela indignidade de entregar a esposa.

— Ele não deveria ficar contente em se ver livre dela?

— Não se esqueça de que ele a está envenenando desde a época do Natal, só esperando para o ataque fi­nal. Ele a queria morta para poder se casar novamente, e não de volta a Paris, o que levantaria perguntas sobre os motivos que levaram o pai a buscá-la.

— Desculpe pelo que vou dizer, sargento, mas me pa­rece que o barão agiu de má-fé ao entregá-la em casa­mento sem explicar a situação.

— Ele mesmo admite isso. Tenho de confessar que fiquei desapontado quando ele me disse o que havia feito. Sem falar no fato de ter escondido as duas filhas em Paris durante todo esse tempo. Fico me perguntando se todos os homens importantes têm filhos bastardos espalhados pelo mundo.

— Duas? Ah, sim, tinha me esquecido. Ada tem uma irmã chamada Phillipa, não?

O pânico apertou a garganta de Graeham ao ouvir o nome de sua futura esposa nos lábios de Joanna.

— Sim, elas são gêmeas — conseguiu dizer por fim.

— O marido de Phillipa sabe a verdade ou também foi mantido no escuro?

Aquela era sua chance de esclarecer tudo, de ser franco com Joanna como ela merecia. Graeham sentiu o coração bater mais forte ao tentar escolher as palavras mais adequadas... Phillipa ainda não se casou. Eu estou prometido para ela. Nós nos casaremos assim que eu le­var Ada de volta para a França.

— Sargento? — O ombro de Joanna resvalou no de Graeham quando ela se virou de frente para ele. Seda contra linho, texturas femininas e músculos torneados, calor...

Deus, que perfume delicioso... Tudo o que ele mais queria era se afundar nos cabelos dourados, mergulhar no corpo macio.

— Há algo errado? — Joanna insistiu.

Graeham pegou uma das ervas e a esmagou nos dedos.

— Phillipa ainda não se casou — disse ele com voz distante e vazia. — Eu estou... — Quando levantou o olhar e mergulhou nos olhos castanhos cintilantes de Joanna precisou se lembrar de respirar.

— Espero que lorde Gui seja mais franco com próxi­mo genro do que com o último.

— Eu estou... — Graeham meneou a cabeça, desgostoso consigo mesmo, com a situação em que se metera. — Eu estou certo de que ele será.

Ela o encarou atentamente de um modo que o deixava desconcertado.

— Lorde Gui deve tê-lo em alta estima para confiar-lhe tal segredo.

Graeham continuou esmagando as ervas, sem olhar para ela.

— Ele foi quase como um pai para mim durante a minha adolescência.

— Quase?

Ele pensou um minuto.

— Eu o respeitava. Ainda o respeito apesar de suas ações irrefletidas nesse assunto e da infidelidade. Sinto afeto por ele e gosto de pensar que a recíproca é verdadei­ra. Ele foi bom para mim, me deu oportunidades, mas... — Ele levantou o rosto e a fitou. — Ainda durmo no alo­jamento. Ainda vivo para cumprir as ordens dele como qualquer outro soldado. Não sou um filho... só uma espé­cie de agregado. Tento não me esquecer disso. Seu depó­sito é o único lugar no qual já tive alguma privacidade. Nunca tive um lar, tampouco algum tipo de família.

— Estou certa de que sentiu muita falta dessas coi­sas, mas ao crescer do modo como cresceu, teve certos benefícios. Tornou-se um homem independente, auto-confiante. Essas são qualidades admiráveis.

— Eu sei. Admiro-as na senhora.

Joanna abaixou os olhos, deixando a declaração pai­rar no ar.

— Nós somos muito parecidos — disse ele baixo, ciente da pressão do ombro dela contra o seu, da suave carícia da seda ao longo de sua perna. — Deve ter no­tado isso.

Ela assentiu, o olhar perdido nas mãos espalmadas no tampo da mesa.

— Sei que tivemos nossas diferenças — ele continuou, sentindo-se tonto como se estivesse caindo num abismo escuro e misterioso, levando-a consigo. — Quando con­versamos, porém, sinto como se estivesse com... um ami­go, alguém em sintonia comigo. Sei que sentiu a mesma solidão que eu, o mesmo isolamento.

Atrevido, ele pegou as mãos dela e, mesmo assim, Joanna não o olhou. Em meios aos cachos dourados que a cobriam, Graeham notou o peito arfante. Apertou a mão dela e disse:

— Desculpe-me pelas mentiras — pediu ele, referin­do-se em especial à omissão sobre o compromisso com Phillipa. — Lamento tudo o que fiz para afastá-la.

— Também não fui sincera. — Ela enroscou os dedos nos dele. — Preciso lhe contar algo, uma coisa que eu deveria ter dito desde o início.

— Senhora...

— Deixe-me falar, por favor. Sinto-me um tanto tola agora por ter escondido isso e... um pouco envergonha­da. Deixei-o pensar que sou uma mulher casada, mas não sou. Sou viúva. Meu marido morreu o ano passado em Gênova.

— Eu sei. Já há algum tempo.

— Desde quando? — ela perguntou num fio de voz.

— Desde o dia do mercado.

— Sabe desde aquele dia? — Uma ponta de raiva se uniu à descrença. — Isso foi há um mês!

— Senhora. — Graeham tentava acalmá-la, sentin­do-se como se tivesse acabado de fazer um movimento tolo numa partida de xadrez, o qual não poderia ser des­feito. — Eu entendi por que...

— Como pôde me deixar fingir quando já sabia de tudo? — perguntou ela com um tremor na voz. Os olhos estavam arregalados; as faces, rubras.

— Por favor, me escute. — Ele pressionou os dedos dela.

— Sinto-me tão tola. Não posso ficar aqui... — Ela libertou a mão e se levantou. — Boa noite, sargento.

— Não! — Graeham segurou-a pela cintura com as duas mãos. — Fique, por favor.

— Solte-me! — ela exclamou, tentando afastar as mãos fortes. — Já fui humilhada o bastante. Não me obrigue a ficar aqui e...

— Joanna...

— Deixe-me ir. — Bateu nos braços dele. Graeham a soltou e, colocando as mãos sobre o tampo, levantou-se.

— Joanna, fique. Eu só quero...

— Deixe-me em paz. — Ela se virou, e ele a segurou pelo braço. Tentando se desvencilhar, ela girou o cor­po. O movimento abrupto fez o roupão escorregar pelo ombro.

— Joanna! — A tala e a falta de espaço entre o banco e a mesa o desequilibraram, mas quando Joanna lhe deu as costas, ele se apoiou nos ombros dela. Um estava descoberto, e ele ficou desorientado ao sentir a maciez da pele sob sua palma.

Girando-se, ela o golpeou. Um punho o acertou no antebraço, o outro na lateral do ombro. Os socos não fo­ram fortes, mas conseguiram desequilibrá-lo. Graeham tombou para o lado, virando o banco e caindo por sobre ele. Praguejando ao sentir uma dor instantânea na per­na, ele rolou, saindo de cima do banco, e segurou a tala com as duas mãos.

— Graeham! — Joanna se ajoelhou ao seu lado, o cabelo resvalando-o como ondas conforme ela o tocava para verificar a perna imobilizada.

Apesar da situação constrangedora, Graeham sen­tiu-se gratificado por ouvi-la chamando pelo nome pela primeira vez.

— Deus meu! Eu sinto muito. Está se sentindo bem? Cerrando os dentes, ele assentiu. Esticando a perna, conseguiu se sentar.

— Graças a Deus! — ela exclamou. — Eu não quis machucá-lo... Nunca bati em ninguém... Eu só... — Ela começou a se levantar.

— Não. — Ele a pegou pela cintura e a fez cair no chão coberto de palha.

Com um grito de ultraje, Joanna tentou se sentar, apenas para ser empurrada de volta. Tentou se desvencilhar, mas Graeham a deteve, deitando-a e cobrindo-a com o próprio corpo para que ficasse quieta.

— Solte-me! — Ela se debatia e o empurrava. — Saia de cima de mim!

— Não. — Ele a prendeu pelos pulsos e segurou-os acima da cabeça.

O roupão cedeu conforme ela se debatia, expondo a parte superior do peito e um ombro. Graeham conse­guia ver a curva do seio; a aréola ainda coberta poderia ser revelada se Joanna continuasse a se remexer da­quela forma. O desejo, puro e selvagem, pulsava em sua virilha, mas ela, concentrada em se soltar, parecia não ter notado.

— Joanna, pare com isso — ele disse com o cabelo caindo no rosto enquanto tentava prendê-la com o olhar. — Pare...

— Por quê? — ela gritou. — Por que não me disse que sabia da verdade?

Com suavidade, ele a fitou nos olhos e respondeu:

— Eu estava esperando que me contasse.

Joanna fitou os luminosos olhos azuis de Graeham, sentindo o coração bater mais forte. As mãos dele eram como amarras de ferro em seus pulsos, o corpo, pesado e sólido, firmava-a no chão. A perna imobilizada dele prendia suas coxas e, através da seda fluida, ela sentia uma coluna de rocha quente pressionando-a no quadril. Fechou os olhos para fugir do olhar penetrante e da tempestade de emoções, mas isso só serviu para aumen­tar sua percepção do corpo dele... O suor másculo deli­cioso, o resvalar do linho da camisa dele em seu peito a cada respiração; respiração essa que a atingia no rosto, nos lábios, e que se aproximava, cada vez mais quente e convidativa.

Voltou a abrir os olhos e se perdeu no azul intenso. Ele estava perto... Não havia um caminho de volta.

Graeham a tocou nos lábios, e ela se sentiu despencar no calor e na inevitabilidade. O beijo não foi gentil; foi sombrio e áspero, carregado de desejo, e ela se rendeu. Cedeu aos lábios exigentes e à língua invasora.

Ele soltou-lhe os pulsos e entrelaçou os dedos nos dela, possessivamente. Joanna correspondeu.

Possua-me.

Graeham afastou-lhe as pernas com a sua. Beijando-a sem cessar, pressionou o corpo contra o dela.

Joanna arqueou-se, tornando o toque mais ínti­mo, aproximado suas partes macias da dureza viril de Graeham. Ela se sentia latejar onde os corpos se tocavam.

Ele interrompeu o beijo, ofegante e, com uma das mãos, desfez o nó das ceroulas num movimento apressa­do, os dedos atrapalhados, resvalando-a através da seda úmida numa carícia fugaz.

Ela sussurrou o nome dele numa súplica, revelando uma necessidade primordial; sentiu as mãos quentes e ásperas em sua pele no segundo que ele levou para afastar o roupão, apenas o suficiente para se aninhar no calor de suas coxas.

Então, Graeham a beijou novamente, segurando-a pelas mãos enquanto se preparava para torná-la sua. Joanna sentiu-se arder quando ele a penetrou. Fazia tanto tempo... Ela ficou tensa e um choramingo escapou de sua garganta.

Graeham interrompeu-se e, sustentando-se nos coto­velos, fitou-a com preocupação.

— Joanna? Você...

— Estou bem. — Ela apertou as mãos dele e arqueou o corpo. A necessidade de se sentir completa era tão gran­de que não se importava com o desconforto. Na verdade, recebia-o de boa vontade, pois era como se Graeham a estivesse declarando dele, tomando seu corpo como to­mara sua alma.

Ele recuou e voltou a investir em movimentos sua­ves. Cada estocada ia mais fundo, abrindo caminho, invadindo-a centímetro a centímetro.

A dor inicial foi substituída por outra sensação, um formigamento quente, um crescente contínuo que a deixava sem fôlego e que a fazia gemer e apertar as mãos de Graeham.

Os cabelos dele, soltos e úmidos, os envolviam; a res­piração entrecortada ficava cada vez mais frenética; os movimentos mostravam-se mais intensos e a palha sob eles estalava no mesmo ritmo.

Precisando dele em seu âmago, Joanna ergueu o qua­dril e o envolveu com as pernas.

— Oh, Deus... Joanna, não... — ele pediu, com o olhar fora de foco e o corpo trêmulo.

— Por quê? O que...

— É muito... Não consigo... Oh... — Ele enter­rou o rosto na curva de seu pescoço, gemendo com selvageria.

Joanna sentiu os tremores trespassando-o, e a fúria do prazer dele a inundou. Sentiu-se completa a ponto de querer chorar.

— Desculpe, Joanna — ele sussurrou, o corpo relaxa­do pesando sobre o dela, as mãos ainda entrelaçadas.

— Por quê?

— Porque eu... — Suspirou. Sustentando o peso do corpo nos cotovelos, desvencilhou as mãos para segurá-la pelo rosto. — Eu não queria terminar dentro de você. — Fitou-a com intensidade querendo que ela entendes­se seus motivos.

Jurei a mim mesmo que nunca teria um filho bastardo.

Joanna franziu o cenho ao perceber a extensão do que tinham feito.

— Foi minha culpa, não? — Ela desenrolou as pernas da cintura dele. — Foi porque eu...

— Eu adorei — ele a interrompeu com doçura, acarinhando-a na coxa e lançando-lhe um sorriso tranqui­lizador. — E essa é outra coisa que lamento: terminei cedo demais.

— Cedo demais? — ela indagou, surpresa. Como um homem podia terminar cedo demais? Terminava quan­do terminava, oras.

Graeham afastou uma mecha do cabelo molhado dela da face e beijou-a ali.

— Não esperei por você.

— Por mim? Quer dizer... — Confusa, Joanna refletiu sobre esse novo conceito de um amante que se preocu­passe com sua satisfação. Prewitt a tomara de todas as formas possíveis, mas nunca a tocara com a intenção de lhe dar prazer. Depois que ele adormecia, ela às vezes se tocava, a fim de chegar ao alívio de que tanto neces­sitava, para em seguida se sentir envergonhada e ainda mais solitária.

Sem sair de dentro do corpo macio, Graeham elevou-se um pouco e afastou o roupão, expondo-lhe os seios. Seus olhos se iluminaram quando ele a espalmou, acariciando-a de uma forma que a fez ronronar como um gato e enviou uma centelha de fogo ao ponto em que se uniam.

Graeham sentiu a reação imediata e respondeu com um movimento de quadril, embora sua ereção estivesse diminuindo. Continuou com os movimentos gentis en­quanto desfazia o nó do roupão. Abrindo-o por completo, fitou-a como olhar turvo de desejo com o qual ela já se habituara.

— Você é linda, Joanna.

— Deixe-me vê-lo também — ela pediu, puxando a camisa. — Tire isto.

Graeham conseguiu tirar a peça e enxugou o rosto antes de atirá-la longe. O peito e os ombros cintilando com uma camada de suor a enfeitiçaram. Joanna o aca­riciou como vinha desejando havia semanas, saboreando os contornos dos músculos definidos sob suas palmas.

Ele desceu uma das mãos pelo ventre dela, a cami­nho da porção de pelos que se misturavam aos seus, sempre se movendo num contínuo rítmico que ela não conseguia deixar de acompanhar. No começo o toque foi suave, enlouquecedora-mente fugaz.

Joanna o segurou pelos ombros, estremecendo sem notar. Somente quando ela implorou, Graeham inten­sificou a carícia íntima, sondando e atacando, mas re­cuando no último instante até que ela começasse a se debater e gemer. Joanna jogou a cabeça para trás.

— Oh, Graeham, por favor...

Com um gemido, ele se afundou nela, recuou e voltou a investir, sem cessar as carícias. Mesmo estando à bei­ra do precipício, alguma parte de seu ser notou que ele recuperara a ereção. Ele fazia amor com ela novamente sem ter deixado seu corpo após a primeira vez.

Joanna gritou quando chegou ao cume, perdendo-se no prazer que explodiu dentro dela. Quando seu êxtase arrefeceu, Graeham a beijou com avidez, movimentan­do-se num ritmo crescente; o suor os cobria, e as mãos impacientes a acariciavam nos cabelos, nos seios, nos quadris.

Ela se agarrou a ele no segundo clímax arrasador, os dedos enroscando-se nos cabelos, acariciando as costas fortes. A energia violenta do ato de amor a fazia se sen­tir perversa, bela e cheia de abandono.

Ao sentir que o prazer dela se acalmava, Graeham a agarrou pelos quadris, com o rosto afogueado, e um som, quase de dor, escapou de sua garganta. Prontamente, retrocedeu, deixando-a vazia. Ele investiu uma, duas vezes, depois ficou imóvel, tenso e trêmulo, segurando-a com tanta intensidade que ela mal conseguia respirar. Então ele deixou-se cair sobre ela, ofegante.

Alguns minutos mais tarde, depois de recuperar o fô­lego, Joanna disse, com um sorriso tímido:

— Eu não sabia que os homens conseguiam isso: fa­zer amor duas vezes seguidas...

Levantando o rosto da curva suave de seu pescoço, Graeham riu.

— Nem eu. — E beijou-a profundamente.

— Nunca fiquei numa cama tão grande — Graeham comentou mais tarde, naquela mesma noite.

O quarto dela era muito bonito: arejado, claro e con­vidativo. A cama era enorme, com um confortável col­chão de penas, cercada por cortinas brancas. As velas brilhavam através do tecido, lançando sombras nas cur­vas do corpo nu enrolado no seu. Graeham se comprazia com o peso leve do corpo feminino, com o frescor dos lençóis de linho e, mais do que tudo, com a intimidade e o companheirismo, sentimentos inéditos e maravilhosos para ele.

— Foi louco ao insistir em subir — ela murmurou de encontro ao peito largo. — Achei que nunca conseguiria.

Ele passou os dedos pelos longos fios sedosos.

— Eu queria dormir com você.

— A vontade devia ser grande. Fez caretas de dor em cada degrau.

Ainda havia alguns pedaços de palha no cabelo dela. Graeham os retirou com cuidado e os jogou no chão.

— Nunca dormi com ninguém antes...

— Nunca? — Ela se levantou sobre o cotovelo para fitá-lo.

Ele sacudiu a cabeça.

— Nem mesmo... — Ela desviou o olhar, pousando a cabeça no ombro forte. — Nem mesmo quando esteve com outra mulher?

— E claro que já tive relações numa cama. — E em muitos outros lugares, como atrás da lavanderia de lor­de Gui com as lavadeiras, na despensa com as criadas, em pórticos escuros nas ruas de Paris com prostitu­tas... Mas Joanna não ia querer saber desses detalhes. — Depois de terminar eu ia embora.

— Suas amantes nunca pediram que ficasse?

— Não eram amantes, Joanna. Eram apenas mulhe­res disponíveis.

— Prostitutas?

— Algumas vezes — ele respondeu, ciente de que ela devia estar pensando em Leoda. — Na maioria das ve­zes, não. Eram mulheres que se davam livremente, sem querer nada em troca. Elas nunca significaram nada para mim. O sexo era mais uma... necessidade física do que qualquer outra coisa. Não era como foi conosco lá embaixo. Aquilo foi...

— Mágico — ela completou.

Ele a abraçou e beijou-a nos cabelos.

— Sim. Você é uma feiticeira que me prendeu em al­gum encantamento. Uma feiticeira linda e devassa.

— Devassa! — Ela escondeu o rosto no peito dele. — Não!

Ele riu da tolice dela.

— Devassa de uma boa maneira. Você ficou tão... desenfreada em meus braços, e livre. E eu também me senti assim; você me fez sentir assim. Foi a primeira vez que deixei de me sentir à parte, só. Você me fez sentir como seu eu fosse um só com você, como se juntos fôsse­mos um. Isso faz algum sentido para você?

— Sim. Eu também me senti assim.

— Só lamento não ter sido mais gentil — ele acres­centou ao se lembrar da reação dela quando a penetrara pela primeira vez. Ela era tão apertada quanto uma vir­gem, ou com o que ele imaginava que uma virgem seria, já que nunca estivera com uma. Jamais estivera com uma mulher cujo corpo se ajustasse ao seu com tanta perfeição. Fora incrível, quente e sensual, mas também o deixara nervoso. — Eu a machuquei?

— Não.

Ele sabia que ela só dizia aquilo para não magoá-lo.

— Deve fazer tempo que não partilha a cama com um homem.

— Cinco anos. Peguei Prewitt em flagrante com a mulher do vendedor de aves e o expulsei para o depósito.

Graeham riu.

— Sempre imaginei o que ele tinha aprontado para merecer tal destino. Não houve mais ninguém desde en­tão? Ele ficava longe por meses a fio, e você ficou só?

— Eu era uma mulher casada.

— Só no papel.

— Mesmo assim seria adultério. Os homens se man­tinham longe porque eu era comprometida.

— Mas não continuaram longe quando enviuvou.

— Não, mas eu mantive a minha distância. A maio­ria dos homens só quer uma relação descomplicada com uma mulher experiente. Alguns são casados, noivos... Mas só me querem por causa do meu corpo. Desprezo a idéia de ser usada de tal forma; fico nauseada só de pensar nisso.

Graeham sentiu um nó de arrependimento se for­mar no estômago. Ele, para todos os efeitos, era noivo de Phillipa. Mas Joanna não estava noiva também? Pigarreando, disse:

— Sei a respeito de Robert de Ramswick.

— O que tem Robert?

Ele afastou uma mecha de cabelo dela, tentando falar num tom calmo. Afinal, o pecado dos dois não era o mesmo?

— Sei que ele a pediu em casamento.

— Aquele domingo, você ouviu...

— O bastante para entender quais eram as intenções dele. — Graeham a abraçou de modo possessivo e esfre­gou o nariz no cabelo perfumado. — Detesto imaginá-la esposa dele, de qualquer outro homem além... — Além de mim? Ele fechou os olhos ante a impossibilidade da situação deles e da dor que sabia ser inevitável. — Estou feliz por você se casar com um homem de posses. Isto é, eu quero ficar feliz por você. Estou tentando ficar feliz por você, mas...

— Não estou noiva, Graeham. — Ela rolou de lado, enroscando as pernas nas dele, com os seios sobre o pei­to largo, os olhos fixos nos dele. — Nem de Robert, nem de ninguém.

— Mas ele a pediu...

— E eu recusei.

— Mesmo? — Por melhor que fosse a novidade, tam­bém era surpreendente. Robert era jovem, rico, bonito e, a julgar pelo que fizera por Alice, um homem de cará­ter. Casando-se com ele, Joanna se livraria da penúria.

— Por que fez isso?

— Além do fato de eu não amá-lo?

— Isso não a deteria. — Uma coisa que Graeham aprendera a respeito de Joanna era que ela era uma mulher pragmática, que fazia o que tinha de ser feito. Aquela era uma das muitas qualidades que admirava nela.

— É verdade — ela admitiu —, mas o fato é que Robert ama a prima. Ele me fez o pedido porque pre­cisava de uma mãe para as filhas e achava que os pais morreriam de desgosto caso se casasse com Margaret. Fico feliz em dizer que ele, finalmente, recobrou o juízo. — Ela sorriu de um modo que a deixava com a aparên­cia de uma garotinha satisfeita. — Eles ficaram noivos formalmente em uma cerimônia na capela de Ramswick alguns dias atrás e se casarão no início de agosto.

— E os pais dele?

— Robert estava certo ao achar que se oporiam, mas Hugh me disse que eles foram à cerimônia e pareciam bem saudáveis... — Joanna franziu o cenho. — Como pôde pensar que eu estava noiva de Robert se eu... se nós...

— Imaginei que você tivesse se deixado levar pelo calor do momento.

Ela sorriu com sarcasmo.

— A meu ver, a paixão é algo que precisa de nossa permissão para nos deixar ensandecidos.

Ele balançou a cabeça, rindo.

— Às vezes chego a pensar que você é pragmática demais.

— Eu o quis hoje à noite. Eu o quero desde o dia que chegou.

— É mesmo? — Graeham indagou, absurdamente feliz por saber que a paixão que o atormentava nas últi­mas semanas não era um sentimento unilateral.

— Contudo, não importa o quanto eu o desejasse, eu nunca teria me deixado levar se tivesse aceitado a pro­posta de Robert. A infidelidade para com um noivo tam­bém é considerada adultério. A Igreja diz isso, e é assim que eu penso. É traição.

Graeham sentiu a culpa lhe morder as entranhas. Sempre abominara a idéia da infidelidade, não pela condenação na Igreja, mas por causa das circunstâncias de seu nascimento. Quando proferisse os votos no altar, honraria a mulher que estivesse com seu anel, esque­cendo-se de todas as outras.

Achava que seria fiel à noiva antes mesmo de ir para o altar. Era a coisa certa a fazer, e ele era um homem honrado. No entanto, nem pensara em Phillipa quando tirara o roupão de Joanna e a tomara no chão da saleta.

E claro que havia circunstâncias atenuantes. Nunca encontrara Phillipa. Não sentia nada por ela, não ha­via nenhum sentimento de devoção que o impedisse de ir para a cama com outra mulher. O compromisso deles não fora formalizado; não havia contrato assina­do, nenhuma cerimônia de noivado tinha sido realiza­da. Entretanto, aquelas não eram meras formalidades? Afinal, ele e Phillipa estavam prometidos um para o outro.

Fazer amor com Joanna era, de fato, uma forma de traição, de espírito se nada mais. Sentia uma ponta de culpa, mas não vergonha. Como poderia se arrepender de ter partilhado seu corpo e sua alma com uma mulher que amava tão profundamente, tão...

— Deus... — Não podia amá-la, não devia... Todavia, sim, a amava. Como poderia ser de outro modo? Uma parte sua se alegrava de ter encontrado sua alma gêmea; outra parte, aquela que ansiava por um lar, sentia-se aterrorizada com essa mudança no curso de sua vida.

Aquilo não poderia terminar bem para nenhum dos dois. Só poderia ficar com Joanna se desistisse de Phillipa e da propriedade em Oxfordshire, abandonas­se Beauvais e voltasse para a Inglaterra, tornando-se um soldado sem terras, sem emprego, sem futuro. Teria Joanna, pois uma mulher como ela estaria disposta a se estabelecer junto a um homem sem perspectiva, mas ele perderia toda a esperança, seus sonhos e anseios.

— O que aconteceu, Graeham? — Apoiada num coto­velo, Joanna o afagava no rosto, os seios encostados em seu peito.

Ele fechou os olhos, imensamente emocionado só por ouvir seu nome nos lábios dela.

— Não é nada — ele mentiu. — Continue me tocando e tudo terminará bem.

Ela mudou de posição, beijou-o e acariciou-o. Os mo­vimentos suaves de seus dedos lentamente reacende­ram o desejo. Ele enrijeceu, e Joanna se colocou sobre ele, guiando-o para sua entrada umedecida. Ela jogou a cabeça para trás e gemeu, conforme ele a invadia.

Joanna estava encantadora e provocante fazendo amor com ele daquela forma, mas era muito perigoso.

— Você tem de me deixar ficar por cima, ou não conseguirei me afastar a tempo.

— Deixe comigo — ela disse. — Só me diga quando...

— Que mulher habilidosa você é — ele disse pegando-a pelos cabelos e abaixando-a para beijá-la. — Como consegui viver sem você?

— Você é feliz? — ela perguntou, movendo-se sensu­almente, os longos cabelos formando uma cortina entre eles, o estrado da cama rangendo.

Um dia aquela tinha sido a sua "pergunta imperti­nente". Agora era a dela. Graeham sorriu e acariciou-a nas costas, nos quadris, nas nádegas arredondadas que subiam e desciam, levando-o para cada vez mais perto do prazer total.

— Sim. Delirantemente feliz.

— Seu eu pudesse ficar aqui para sempre, assim, com você, sem passado, nem futuro, só nós dois, acho que seria feliz para sempre.

— Eu também — Graeham disse, desejando do fundo do coração que isso fosse possível e perguntando-se, pela enésima vez, como tudo tinha ficado tão maravilhoso e aterrorizantemente complicado ao mesmo tempo.

 

— Gostaria de lhe perguntar uma coisa, Ada — Joanna disse ao pegar a última colherada do mingau que preparara para a nova amiga. — É a res­peito de seu marido. — Ela hesitava em contar o que sabia à enferma, já que ela pouco podia fazer por es­tar entrevada à cama. Um pouco antes da visita ma­tinal, tinha entregado uma moeda a um menino para que ele entregasse o bilhete de Graeham a respeito da suspeita de assassinato ao delegado mais próximo de West Cheap.

Ada engoliu com dificuldade, tossiu e disse:

— Não posso lhe dizer nada a respeito de Rolf, já que ele não vem me ver desde a quaresma.

— Sim, mas quando ele ainda a visitava, ele parecia estranho? Diferente?

— A meu ver Rolf sempre agiu de modo estranho. Por quê?

Joanna se ocupou em guardar os utensílios na cesta e respondeu com cautela:

— Só acho estranho que não veja seu marido há tantos meses. — Pensando em Graeham, acrescentou: — Eu detestaria essa situação.

Os dois tinham passado a noite acordados, conver­sando e fazendo amor. Muitas vezes haviam decidido dormir, mas um deles acabava comentando algo que levava a uma nova conversa e, enquanto falavam, ele a acariciava, e ela não conseguia deixar de retribuir. Como resultado, Joanna estava mais cansada e feliz do que em qualquer outra ocasião.

— Achei que você estivesse acostumada a ficar sem seu marido. A semana passada mesmo me disse que não sentia a falta dele. Eu sinto o mesmo por Rolf.

As duas se entreolharam e riram, mas o esforço foi demais para Ada, que acabou repousando a cabeça nos travesseiros. Joanna lamentava ver uma pessoa com a qual passara a se importar tanto definhar daquela forma.

— Quer água? — ofereceu.

— Não, é difícil de engolir. Eu gostaria que lesse para mim, se puder.

Joanna leu mais tempo do que de costume, apreen­siva em deixá-la só, mesmo que não estivesse correndo perigo imediato, já que o tônico só seria entregue mais tarde. Pouco depois a enferma fechou os olhos, mas an­tes de adormecer por completo disse:

— Houve um episódio... Na primavera, depois da Páscoa, mas antes de Pentecostes. Naquela tarde Aethel subiu e disse que Rolf a mandara me trocar para uma viagem e arrumar meus pertences, pois alguém viria me buscar.

Fora quando Graeham tinha chegado para levar Ada embora.

— Fiquei surpresa, mas depois imaginei que meu pai tinha ordenado a alguém que me apanhasse. Eu fiquei muito animada com a perspectiva de deixar esta casa, ainda que soubesse que uma viagem seria uma prova muito difícil em minhas condições. Sentei-me perto da janela, mas as horas passaram e ninguém apareceu.

Joanna sentiu-se tentada a contar todos os deta­lhes daquele dia, porém sabia que ainda não era hora. Sem falar que aquela revelação de Ada levantava novas dúvidas.

— Esperei até depois do toque de recolher — Ada continuou —, contudo Aethel subiu e me convenceu a me trocar e me deitar. Nunca descobri o que aconteceu.

Ada estava trêmula, com frio novamente. Joanna se levantou e cobriu-a com outra manta.

— Preciso ir agora, mas volto mais tarde.

— Vai voltar? — Ada parecia surpresa e contente ao mesmo tempo. A moça devia se sentir muito só.

— Sim. Agora, descanse. E lembre-se: não coma nada que lhe oferecerem, nem beba...

— Já disse isso mil vezes hoje — Ada replicou com um sorriso indulgente.

— Nem o tônico, mesmo que seja Aethel...

— Eu sei, eu sei. O que está acontecendo, Joanna?

— Explicarei mais tarde, quando tudo estiver resol­vido. Volto assim que puder.

Quando chegou em casa, Joanna encontrou Graeham conversando com um homem barbudo chamado Nyle Orlenge, o subdelegado enviado em resposta ao chamado.

— Bom dia, senhora. — Ele foi direto ao ponto. — Se o sargento estiver correto, parece que a vida de uma mulher corre perigo, e vocês acreditam que seja obra do marido e da amante?

— Detesto pensar que Olive esteja metida nisso — Joanna disse —, mas é o que tudo indica. Ela não é má pessoa, mas é jovem e impressionável.

— Ela parece estar dominada por Le Fever; ele a está forçando a fazer isso — Graeham completou.

— É possível — Joanna disse.

— Possível? — Nyle inquiriu enquanto Graeham a olhava surpreso. — O sargento parecia certo ao acusar o homem de tentativa de assassinato.

— Aconteceu alguma coisa que eu não sei? — Graeham perguntou.

Joanna relatou o que Ada acabara de lhe contar.

— Se ele tinha intenção de se livrar dela, por que mandou prepará-la para a viagem? As peças não se en­caixam — Graeham concluiu.

— Deixem que cuido disso — declarou o policial. — Porém, tenho de agir com cautela. Le Fever é um homem influente, e não podemos fazer acusações sem provas.

Graeham pegou as ervas de cima da mesa e comentou:

— Por certo algum outro farmacêutico saberá identi­ficar estas ervas.

— Sem dúvida. No entanto, mesmo que elas sejam venenosas, não há como provar que Le Fever esteja por trás de tudo. O que temos de fazer é atravessar a rua e interrogar essa Olive. Uma confissão facilitaria meu trabalho e, se ela implicar Le Fever, tanto melhor. — Nyle abriu a porta. — Vamos?

— Acha que consegue atravessar a rua? — Joanna perguntou a Graeham ao ver que ele tinha calçado a pesada bota pela primeira vez em seis semanas.

— Consegui subir as escadas, não consegui? — Olhando para a porta, viu que o policial estava de costas; por isso, inclinou-se e roubou um beijo rápido de Joanna. — Como frei Simon sempre dizia: querer é poder.

Graeham podia ser forte, mas até chegar à farmácia apoiado nas muletas e em Joanna, o subdelegado já in­terrogava Olive.

— Sra. Joanna! — a moça exclamou. — Este homem diz que poderá me prender. Sabe... — As palavras se perderam quando ela reconheceu Graeham.

— Lembra-se de mim? — ele perguntou.

— A-acho que sim. Não esteve na casa do sr. Le Fever há algum tempo? Ia levar a sra. Ada embora... O que está acontecendo? Não fiz nada.

— Sabemos que não queria, Olive — Joanna assegurou.

— Não queria o quê? — Olive perguntou. Nyle mostrou as ervas e perguntou:

— Reconhece isso?

— Deus meu! — Pálida, ela pôs a mão no estômago. — Estou ficando enjoada.

Joanna se aproximou e ajudou-a a se sentar.

— Abaixe a cabeça e respire fundo.

— Eu não queria, mas ele disse que não havia saída — Olive disse com a cabeça entre as mãos.

— Sabemos disso, Olive. — Joanna lhe dava tapinhas nas costas. — Ele a convenceu a fazer isso, o que será um atenuante. Talvez leve algumas chibatadas, mas acredito que se livrará da forca, já que ainda...

— Forca?! — Olive exclamou com os olhos lacrimejantes. — Não sabia que enforcavam as mulheres por isso. Não tive a intenção, eu não queria... Mas ele disse que se fôssemos adiante e tivéssemos o bebê, ele jamais poderia se casar comigo por causa do escândalo.

Joanna olhou para Graeham e Nyle, que pareciam tão confusos quanto ela. Ajoelhando-se diante da moça, perguntou:

— Está grávida de Le Fever?

Olive fechou os olhos e pôs a mão na boca, o rosto coberto por uma camada de suor.

Graeham passou uma bacia para Joanna, que a colo­cou ao alcance de Olive bem a tempo. Quando a moça co­meçou a se sentir melhor, limpou o rosto e perguntou:

— Não é por isso que querem me prender? Por que eu estava tentando abortar?

— Olive, conte-nos o que aconteceu — Joanna pe­diu. — Desde o começo. Você e Le Fever... Há quanto tempo?

— Desde a época do Natal, quando a esposa dele ado­eceu. Comecei a levar o tônico, e ele passou a... a me notar.

— Ele a seduziu? — Joanna perguntou com suavidade.

— Eu tentei resistir porque ele era casado e porque eu amava Damian. E eu não conseguia acreditar que um homem como ele pudesse ver algum atrativo em mim. Ele tem influência, dinheiro, é bonito. Rolf não desistiu, disse que me amava, que precisava de mim. Quando a mulher dele começou a piorar, acho que por causa da bile negra, Rolf disse que ela estava morrendo e que se casaria comigo. — Olive balançou a cabeça. — Eu per­miti que ele fizesse o que queria comigo. E agora carrego esse bebê em meu ventre e estou arruinada.

— Não entendo — Graeham comentou. — Ele disse que não poderia se casar se você tivesse o bebê?

— Sim. Um homem na posição dele jamais poderia se casar com uma moça com um filho fora do casamento, mesmo sendo dele. Rolf me fez jurar que eu usaria as ervas para me livrar da criança.

— Quer ter o bebê? — Joanna perguntou.

— Sim, mas se a senhora não tivesse aparecido no meio da noite, eu teria ido em frente. Quando vi que tinha levado as ervas embora, refleti e vi que assim era melhor. A senhora evitou que eu cometesse um terrível pecado. Depois que saiu, fiquei me perguntando o que a senhora faria em meu lugar. E tão sábia, sabe sempre o que fazer. Pensei que a senhora teria o bebê mesmo se não tivesse marido; levantaria a cabeça e daria o melhor de si. É isso o que eu vou fazer. — Olive se empertigou e encarou Joanna com um sorriso fraco. Joanna apertou a mão dela.

— Só que agora vou ser presa por querer me livrar do bebê... — Olive se lamentou.

— Isso não é motivo para condenar uma mulher — Joanna garantiu.

— Mas ele — Olive apontou para Nyle — me disse que veio aqui para me prender e está segurando as er­vas, então pensei que...

— Houve um engano. Todos nós nos enganamos — Joanna explicou.

O policial deu um passo à frente.

— Não necessariamente. Vocês dois parecem aceitar a palavra dela, mas em meu ofício aprendi a olhar tudo com ceticismo.

— Ela é inocente — Graeham a defendeu. — É um tanto impressionável, falta-lhe juízo, mas não passa de uma menina.

— É evidente que ela não é uma assassina — disse Joanna.

— Assassina! — Olive exclamou.

— Quando Le Fever lhe propôs adulterar o tônico da esposa? — Nyle a acuou. — Foi antes ou depois de se tornar amante dele?

— Estou passando mal de novo... — Olive fechou os olhos.

— Deixe-a em paz — Joanna intercedeu. — Ela não envenenou Ada.

— Talvez, mas pensem bem... Uma jovem grávida, desesperada para casar com o pai da criança. A moça é aprendiz na farmácia. A esposa está acamada. Só bas­tava temperar o tônico com algum ingrediente que a envenenasse gradualmente. Quando fosse o momento certo, bastaria dar uma dose letal e ninguém percebe­ria. Talvez nem Le Fever saiba disso. Quem sabe ela não armou esse plano sozinha?

— Como pode dizer tal coisa diante desta jovem trê­mula e desesperada? — Joanna perguntou.

— Senhora, duvidaria das coisas que vi nos meus vinte anos de carreira. Vi muitas pessoas jurarem ino­cência para em seguida voltarem a matar.

— Não fiz nada! Eu queria me casar com Rolf, mas jamais perderia minha alma cometendo um assassinato — Olive afirmou, levantando-se.

Mostrando as ervas, Nyle sentenciou:

— Se isto for mesmo o que diz que é, e não algum tipo de veneno, estará livre. Vou mandar analisá-las. Nesse meio tempo, será levada para a cadeia...

— Cadeia? — Joanna exclamou. — Não pode levá-la.

— Ela é suspeita num caso de tentativa de homicí­dio. — Nyle sacou as algemas.

— Não precisa disso — Graeham interferiu. — Ela o acompanhará sem se opor, não é, Olive?

— Sim, eu prometo. Por favor, não me algeme.

— Está bem, mas não tente nenhuma gracinha. Não hesitarei em usar de força.

— E quanto a Le Fever? — Graeham perguntou. — Não pode prender Olive e não fazer nada com ele.

— Vou interrogá-lo, fique certo disso. Ele mora na­quela casa azul e vermelha, não?

— Isso mesmo, mas a esta hora o encontrará no mer­cado de seda. Ele passa as manhãs lá.

— Irei para lá assim que deixar esta moça na cadeia.

Joanna abraçou Olive e garantiu:

— Tomarei providências para que saia de lá antes do anoitecer.

 

Depois que todos se foram, Elswyth afastou a cortina atrás da qual ouvira tudo e entrou na loja.

O local estava escuro, devido às janelas e porta fe­chadas, mas, pelas frestas das venezianas, fachos de luz entravam, destacando o pó em suspenso. Elswyth agi­tou as mãos, para frente e para trás, fazendo com que ele se movimentasse numa dança lenta.

Deteve o olhar nos frascos azuis vindos de Veneza, que tinham lhe custado uma fortuna, e lembrou-se do dia em que a viúva do mercador tentara roubar um. Ela, no entanto, havia sido mais esperta e detivera Joanna Chapman. Contou e recontou os frascos para se certifi­car que estavam todos lá. A ladra vadia nunca consegui­ria levar um para casa.

Olhou ao redor e viu que a loja estava limpa; Olive limpara até mesmo as cinzas sob o caldeirão. Pegou um dos frascos azuis e o atirou no fogo morto. Um atrás do outro, quebrou todos os frascos. Não importava o que pudesse acontecer, Joanna não ficaria com nenhum deles.

Elswyth ficou arfante porque destruir trinta e quatro frascos de vidro veneziano era uma tarefa extenuante, e não porque estivesse triste ou aborrecida. O tempo da ira passara. O ódio borbulhante que sentira no último ano era coisa do passado, tinha sido substituído pela certeza fria do que precisava ser feito. A decisão tinha se formado em sua cabeça ao ouvir a filha chorando por causa do maldito canalha que plantara sua semente na barriga dela.

Elswyth pegou uma folha e pena e se pôs a trabalhar. Molhando a ponta da pena na tinta, escreveu na bela letra cursiva da qual sempre se orgulhara:

Olive,

Ficará se perguntando por que fiz o que fiz. E por isso que estou escrevendo esta carta antes de agir...

Thomas Harper, sentado no barril diante da cozinha de Joanna, inalou o cheiro do mingau queimando e se perguntou onde ela estaria. Ela e o sargento, pois, quan­do espiou pelas frestas da veneziana do depósito, viu que o cômodo estava vazio pela primeira vez desde que o soldado passara a morar lá.

Quando os sinos da igreja soaram as Tércias, a porta de trás da casa azul e vermelha se abriu, a criada rechonchuda cumprimentou o criado que estava traba­lhando no estábulo e saiu pelo beco.

Já passava muito do horário costumeiro em que to­mava o desjejum, e a fome lhe corroía o estômago. Estava tentado a entrar na cozinha, pois sabia que a dona da casa não se importaria, sabendo que sua doença não era tão facilmente contraída como muitos imaginavam. Só o que o segurava eram os olhares atentos da esposa do cambista que cuidava do jardim. O fato de alguém vê-lo entrar ali o levaria à morte.

Uma lufada de riso reverberou por seu peito. Não deixava de ser patético que uma criatura como ele ainda temesse a morte. Vinha conseguindo se virar por conta própria, apesar das ulcerações em boa parte do corpo, mas o inevitável dava os primeiros sinais: estava fican­do cego do olho bom. Logo a escuridão o envolveria por completo, e ele ficaria totalmente dependente. Portanto, por que se importar com a morte?

Desgostoso com o momento de autopiedade, fechou os olhos e pintou na mente a imagem da amada de tan­tos anos atrás. A mulher que mesmo estando somente em sua imaginação conseguia confortá-lo.

— Thomas.

Abrindo os olhos, viu-se diante de Joanna Chapman e Graeham Fox.

— Senhora, Graeham — cumprimentou-os. — Acho que esta é a primeira vez que o vejo do lado de fora, sargento. Não tinha percebido como seu cabelo é aver­melhado.

— E lindo à luz do dia — Joanna disse, passando os dedos pelos cabelos de Graeham.

O sargento sorriu para ela de modo tão ardente que Thomas sentiu como se estivesse invadindo a intimida­de deles. Interessante.

— Como está se sentindo hoje, Thomas? — Graeham perguntou.

— Nunca estive melhor. Bem, talvez eu esteja exagerando...

Graeham deu um sorriso leve e bocejou. Joanna também.

Muito interessante.

— O mingau está começando a cheirar — Joanna comentou ao entrar na cozinha. — Terei de jogá-lo fora, mas seria uma pena desperdiçar a parte de cima. Gostaria de comer um pouco, Thomas?

Thomas olhou para o céu e riu. Ainda achava engra­çado o modo como ela fazia parecer a caridade dela um favor que ele lhe faria.

— Eu não me importaria em ajudá-la, senhora. Enquanto aguardava, viu que a porta da casa azul e vermelha voltou a se abrir. Dessa vez era o merca­dor que saía. Graeham se encolheu na soleira da porta quando o homem se aproximava da rua Milk.

— Não quer ser visto, sargento? — Thomas perguntou.

— Não por esse homem.

Algo na expressão séria do sargento evitou que Thomas fizesse mais perguntas.

Assim que o dono da casa se afastou, a porta se abriu mais uma vez, e a cozinheira saiu, tirando o avental e ajeitando os cabelos. Olhando para os lados para se cer­tificar de que o patrão já tinha ido, ela entrou no estábulo para se encontrar com Byram.

— Eles deveriam procurar um lugar mais discreto para se encontrar — Graeham disse. — Um dia desses vão acabar sendo pegos em flagrante.

— De acordo com Publilius Syrus — Thomas citou —, foi Deus que decretou que o amor e a sabedoria são opostos que não se atraem.

— E bem verdade. — Graeham soou melancólico.

— O que é verdade? — Joanna apareceu com o mingau.

Parecendo desconfortável por algum motivo, Graeham disse:

— Thomas disse que pareço cansado, e eu disse que era verdade.

— Deveria aproveitar para descansar. — Joanna bocejou de novo. — Eu faria o mesmo, mas prometi a Ada que iria vê-la de novo. — Tocou na mão de Graeham depois de servir o mingau. — Vá dormir um pouco.

Ele a acariciou com os nós dos dedos.

— Está tão cansada quanto eu.

— Vou dormir depois... — passou os olhos por Thomas e pela casa de Le Fever — que tudo estiver mais tranqüilo.

— Não gosto de vê-la naquela casa, sabendo como andam as coisas — Graeham disse.

— Le Fever nem está lá.

— Mesmo assim, fique atenta.

— Você se preocupa demais. — Joanna voltou para a cozinha para levar a concha e depois foi para a casa de Ada, entrando sem bater.

— Se eu não estivesse com tanta fome — Thomas disse antes de colocar uma colherada na boca —, eu teria um milhão de perguntas para lhe fazer.

— Então fico feliz que esteja com fome. — Com um sorriso e um aceno, Graeham se dirigiu para o interior da casa.

Thomas terminou de comer e, depois de beber água e lavar a tigela, recostou-se sem ter mais nada para fazer. O pior de sua doença era, talvez, não ter nada com que se ocupar. Por fim, estando cansado de descansar, pôs-se de pé e foi para a janela do depósito para se despedir de Graeham, mas ele já ressonava.

— Tenha doces sonhos, sargento. — Ele claudicou pelo pátio em direção ao beco, mas perdeu o equilíbrio quando uma mulher esbarrou nele.

O que mais temia, o contato humano, aconteceu, e ele ficou esperando que alguém desse o alarme. A mulher, no entanto, nem o notara. Caminhava com passos de­terminados, apesar da aparência descomposta: estava desgrenhada, descalça e parecia vestir somente uma camisola. E bem suja por sinal. Levava um odre de vinho atravessado pelo torso e empunhava uma vassoura de palha, de ponta cabeça, como se fosse um cetro.

Thomas viu quando ela cruzou o pátio em direção ao portão de Le Fever, entrou e parou, olhando ao redor, como se estivesse procurando por alguma coisa. O olhar se iluminou ao ver a porta do estábulo, e ela seguiu na­quela direção.

Palha. Precisava de palha.

Elswyth viu um punhado do lado de fora do estábulo e foi apanhar. Próximo à porta viu que havia palha mais fresca do lado de dentro, ao lado de um rastelo. Entrou e, ao ouvir um arfar, virou-se e viu a cozinheira e o cria­do de Le Fever se divertindo num monte de feno.

Imaginou Olive e Le Fever fazendo o mesmo, talvez ali mesmo, e sentiu-se tomada pelo ódio. Só por um áti­mo, pois se lembrou que o momento para a raiva havia passado. Agora era hora de agir.

Ao pegar o feno, ela esbarrou no rastelo, e o casal se sobressaltou com o barulho.

— Byram! Há alguém aqui!

Elswyth correu para a porta, saiu e trancou-a.

— Ei! — Byram chamou. — Volte aqui! O que pensa que está fazendo?

Elswyth levou a palha para a casa vermelha e azul e entrou, ciente de que havia duas pessoas observando seus passos: o leproso e a esposa do cambista.

A casa estava escura e deserta, o que era um ótimo presságio: ninguém a atrapalharia. Acendeu a palha da vassoura no fogão e a levantou como se fosse uma to­cha. Seguiu até a despensa, perto da escada de serviço, e despejou um pouco da palha que carregava, ateando fogo em seguida.

Depois foi para a frente da casa, subiu a outra escada e ouviu a voz de uma mulher. Joanna Chapman recita­va trechos de um salmo: "Ninguém que pratica o logro, permanecerá em minha casa; ninguém que pronuncia mentiras continuará em minha presença..."

Reconhecendo o salmo, Elswyth sorriu, contente em ver que refletia perfeitamente o que carregava em seu coração. Outro bom presságio!

Deixando cair o resto da palha na porta do terceiro andar, Elswyth ateou fogo novamente, assegurando as­sim que as duas saídas estivessem bloqueadas.

Em poucos minutos, o fogo consumiria todo o telha­do, a casa estaria tomada por fumaça, o sapé queimado cairia no solário do terceiro andar, as vigas cederiam; haveria gritos e pranto de dentro do cômodo. Elswyth lamentava não poder ficar para assistir, mas tinha um plano a seguir.

Saiu pela porta da frente, limpou as mãos e, ignoran­do os olhares, seguiu para a rua Newgate a caminho do mercado de seda.

Graeham estava sonhando. Era um sonho maravi­lhoso, pois nele Joanna era sua esposa e estava grávida. Nunca estivera mais contente em sua vida.

Parecia que moravam naquela mesma casa, mas pela janela, em vez da confusão da rua Woods, via os campos verdejantes da propriedade em Oxfordshire.

— Graeham! — Uma voz distante o chamava. Protegendo os olhos do sol, Graeham viu que era o barão Gui quem o chamava. O que fazia sentido, pois, no sonho, Joanna era filha dele. Casando-se com ela, ad­quirira a posse das terras. Era perfeito; não precisava se contentar com Phillipa, podia ter Joanna.

— Graeham, é a casa de Le Fever! — lorde Gui exclamava.

— Besteira, ela é minha. — Graeham se virou para admirar a casa da fazenda e ficou assombrado ao ver que estava pintada de azul e vermelho.

Saía fumaça pela chaminé, e Manfrid estava sentado no telhado, miando. Estranho, o gato nunca miava.

— Graeham! Venha rápido! — A voz insistente de lorde Gui parecia mais distante.

Ele, entretanto, não queria sair. Queria continuar na cama com Joanna, escondido pelas cortinas brancas. Ela o beijava e... Miaaau!

Manfrid pulou em seu peito e o cutucou com o focinho.

— Vá embora! — Ele entreabriu os olhos, pesaroso em despertar. Sentou-se e apanhou o gato pelo cangote, colocando-o no chão. — Pelo amor de...

— Miaaau! — Manfrid subiu na janela. Graeham passou os dedos pelos cabelos, zangado por ter o sonho interrompido na melhor parte. Esticou-se para fechar a janela e ficou estático.

Fumaça subia pelo teto da casa de Le Fever, e as chamas se espalhavam pela cobertura de sapé. Joanna estava lá!

— Não! — ele gritou.

Apanhando as muletas, saiu o mais rápido que pôde. Rose Oxwyke, parada no jardim, fitava a casa em cha­mas de boca aberta.

— Joanna! — Graeham gritou.

— Graeham! Graças a Deus! — Thomas, sujo de fu­ligem, saía da casa com um balde vazio. — Elas estão presas no terceiro andar — disse ao encher o balde no poço. — As escadas estão bloqueadas, e elas não podem sair pelas janelas.

— Joanna!

Ouviram murros na porta do estábulo.

— Deixem-nos sair!

Graeham apanhou o balde das mãos de Thomas e correu para a casa gritando:

— Abra a porta do estábulo. Byram pode nos ajudar.

— Não entre aí! — Rose gritou do jardim. — Não pode ajudá-las. Acabará morrendo também!

O pânico tomou conta de Graeham quando ele en­trou no corredor enfumaçado. A parte de trás parecia mais tomada pelo fogo e pela fumaça, então ele seguiu até a frente da casa.

As escadas da frente também estavam incendiadas, e ele tentou deter o fogo com a água. As labaredas cede­ram um instante, mas se reavivaram em segundos.

— Graeham! — Thomas gritou da parte de trás.

— Estou aqui na frente! — Apertando os olhos, ele viu uma cortina de couro. Agarrou-a e cobriu o fogo com ela, tentando abafar as chamas. — Onde está Byram?

— Ele não quis entrar, disse que seria suicídio.

— A outra escada está mais bloqueada, esta é a nos­sa única chance. — Graeham voltou para o cômodo do qual tinha arrancado a cortina e viu que era um depósi­to cheio de prateleiras com rolos de tecidos. Aquilo teria de servir.

— O que está fazendo? — Thomas perguntou en­quanto tentava abafar as chamas com os pés.

— Thomas, saia daí, suas pernas estão pegando fogo!

— Não sinto nada — o leproso disse numa voz dis­tante e controlada.

— Venha, me ajude. — Jogou uns rolos de tecidos nas escadas. Os rolos eram grossos o bastante para abafar as chamas.

Aos poucos, os dois homens começaram a subir, o fogo abafado pelos metros e metros de tecido. Graeham amaldiçoava a perna quebrada que o fazia avançar devagar. No último lance, os degraus estavam obstruídos por vigas caídas na diagonal.

— Joanna! — Graeham gritou entre acessos de tosse.

— Graeham? — Ele mal pôde ouvir a voz chaman­do-o através da porta fechada e do barulho da casa em chamas.

— Deus! — Ela estava viva!

— Graeham, vá embora! Não pode nos ajudar!

— Não vou deixá-la aqui. Estou subindo!

Outra viga caiu diante dele, espalhando faíscas. Graeham retrocedeu um passo por causa do calor e por saber o que estava prestes a enfrentar.

Tinha de limpar o caminho para chegar até a porta do quarto. Havia três vigas e o fogo que lambia as pare­des, o chão... Se conseguisse chegar até o quarto, teria queimaduras em todo o corpo.

— Você morrerá — Thomas disse.

— E provável. — Mas Joanna viveria, e Ada também. Graeham, contudo, fixava o pensamento em Joanna e num modo de conseguir salvá-la. Respirou fundo para criar coragem, o que provocou novo acesso de tosse.

— Nunca conseguirá chegar até lá. A dor vai detê-lo.

— Preciso tentar! Joanna está lá! — ele gritou.

— Sei disso. — Thomas tirou o chapéu de palha, ati­rou-o pela escada e cobriu a cabeça com o capuz com um olhar determinado.

Graeham agarrou o ombro do leproso.

— O que você...

— Eu não sinto dor, nem nas pernas, nem nos braços... Estou ficando cego, sargento — ele disse tão baixo que Graeham quase não o ouviu. — Deseje-me boa sorte.

— Boa sorte, amigo — ele disse, apertando o ombro de Thomas.

Thomas hesitou só um segundo antes de investir contra o fogo.

Graeham não conseguiu olhar; fechou os olhos e fez o sinal-da-cruz. Depois os abriu novamente e viu que Thomas já derrubara a primeira viga. Tal qual um fan­tasma envolto pela fumaça, ele avançava e, com as mãos sem proteção, agarrava a segunda viga. O manto come­çava a pegar fogo.

— Thomas!

As chamas subiam pelas pernas, espalhando-se pe­las ataduras que envolviam as chagas. Graeham mur­murou uma prece quando o leproso chegou ao último degrau e abriu a porta.

Thomas cambaleou para dentro do quarto, uma tocha humana. Ele retirou o manto, mas as roupas já pegavam fogo. Graeham viu em meio à fumaça duas figuras en­voltas em cobertas. Joanna se descobriu e tentou abafar as chamas que envolviam Thomas, caído no chão.

Graeham prendeu o fôlego e partiu escada acima, protegendo o rosto com os braços. Até chegar ao quarto, a camisa estava pegando fogo. Retirou-a apressado, con­tente por ter as calças intactas.

— Graeham, seu cabelo! — Joanna arrancou o véu e cobriu a cabeça dele, extinguindo o fogo.

Nesse instante, depois de um rugido, parte do telha­do caiu. Não havia tempo a perder. Olhando ao redor, Graeham viu que o colchão ainda estava intacto. Ele foi até o canto do quarto, agarrou o colchão e o atirou pelas escadas.

— Vamos! Depressa!

— Thomas não pode andar, nem Ada! — Joanna disse.

— Eu consigo andar, sim — afirmou a frágil, mas determinada, Ada.

— Joanna, ajude-a — Graeham disse ao tomar Thomas nos braços. — Eu cuido de Thomas.

— Deixe-me — o leproso gemeu, todo queimado.

— Não posso fazer isso, amigo. — Graeham incitou Ada e Joanna a seguirem em frente, passando pelo vão e sobre o colchão até os últimos degraus.

Atrás deles, o teto do quarto cedeu num baque en­surdecedor. Logo abaixo, ouviram vozes e barulho de água. Os vizinhos tinham se juntado e tentavam deter o incêndio.

Os homens os ajudaram a sair, levando-os para o meio da rua. Cambaleantes, respiraram fundo, à pro­cura de ar fresco. Ada, deitada de lado, tossia. Thomas, imóvel, seria considerado morto não fosse o peito que ainda se movimentava. No meio da confusão de homens com baldes, Graeham pegou Joanna nos braços, trêmulo com a emoção que apertava seu peito.

— Tive tanto medo — ele sussurrou ao encontro dos cabelos. — Pensei que...

Eu te amo. Eu te amo tanto...

Não podia lhe dizer isso. Ele sabia que não podia dar vazão aos sentimentos. Não tinha nada a oferecer, não podia prometer nada. Declarar seu amor naquelas circunstâncias seria uma crueldade que só lhes traria mais sofrimento.

Pesava-lhe na alma saber que tinha o dever de lhe contar sobre Phillipa e sobre a propriedade em Oxfordshire. Devia contar tudo, mas duvidava ter a co­ragem necessária. A escolha menos dolorosa, embora vergonhosa, seria escrever uma carta quando tivesse voltado para a Normandia.

Joanna sussurrou algo no seu ombro que ele mal con­seguiu ouvir na confusão em que estavam envoltos.

— Eu te amo.

Ela tinha mesmo pronunciado as palavras, ou fora um golpe de sua imaginação, algo que desejava ouvir, apesar de sua razão chamar aquilo de insensatez?

Graeham não respondeu, apenas a segurou, desejan­do poder nunca mais soltá-la.

Ao meio-dia, Rolf Le Fever, passeando pelos corredo­res vazios do mercado de seda, achou ter sentido cheiro de fumaça. Era um cheiro comum em Londres, visto que as moradias de tetos de sapé tão próximas, com o fogo do fogão aceso de contínuo, eram propícias a incêndios. Se o tempo estava seco, um simples incêndio podia se alastrar rapidamente, dizimando bairros inteiros.

Rolf tinha cinco anos de idade quando um incêndio dessa magnitude acabara com a casa dos pais e com o negócio de seda da família. Ficar reduzido a morar no porão intocado pelas chamas enquanto reconstruíam a vida tinha envergonhado os pais, e essa vergonha tam­bém o atingira. Enquanto garoto, sonhava com o dia em que teria uma vida de riqueza, luxo e conforto. Teria uma bela casa, lindas roupas e jóias e, mais importante, a mulher certa, uma moça de sangue azul.

Alcançara o sucesso, tendo tudo o que sempre havia desejado, exceto a esposa certa. E tudo por culpa de lor­de Gui e suas artimanhas.

Parou e respirou fundo. Não queria pensar naquilo. Aquele era o seu melhor momento no dia. Quando todos voltavam para casa para o almoço, ele ficava vagando em meio às diversas barracas, refestelando os sentidos em meio a tantas belezas. A barraca que mais apreciava era a de um mercador florentino que se especializara em comercializar sedas em tons de vermelho. Desde garoto tinha predileção pela beleza pungente da cor do sangue. Tocou nos tecidos, apreciando a textura.

— Rolf.

Ele se virou ao chamado e se viu diante de uma mu­lher. Surpreso, perguntou:

— Elswyth? — Não conseguia se lembrar da última vez em que a vira, mas... — O que faz aqui? Por que está vestida desse jeito?

Acenando com a cabeça e pegando o odre de vinho, ela respondeu:

— Vim fazer um brinde ao nosso futuro juntos.

— Nosso futuro? Do que está falando, mulher?

— Você e eu, juntos. — Ela estendeu o odre, os olhos estranhamente brilhantes.

— Elswyth, eu e você não temos um futuro em co­mum.

— Então por que disse que queria se casar comigo? Ele mal se lembrava daquilo, fazia tanto tempo... Às vezes dizia coisas para amansar as mulheres.

— Isso foi há muito tempo, Elswyth.

— Apenas um ano, Rolf... Disse que me queria. Eu me entreguei a você porque disse que me queria como esposa. Duas semanas mais tarde, você voltou de Paris com ela.

Ele riu com amargura.

— Acredite em mim, minha cara, não fiquei mais fe­liz do que você com o rumo que as coisas tomaram. Foi um erro e me arrependo do fundo do meu coração.

— E verdade? — Os olhos estranhos se iluminaram ainda mais.

— Lamento ter conhecido aquela mulher e, acima de tudo, ter me casado com ela.

— Ela o roubou de mim... Fiquei devastada. — Ela deu um passo para a frente, e ele retrocedeu, encostando-se nas sedas. — Ela era jovem e bela, mas inescrupulosa. Roubou o homem de outra mulher. Ela o tentou, e você não pôde resistir.

— Isso mesmo — Rolf concordou, aproveitando a des­culpa. — Fui tão vítima quanto você. Agora, se me der licença...

— Foi isso mesmo o que pensei e, por isso, tomei cer­tas medidas.

Ele hesitou, incerto se queria saber mais detalhes, mas acabou perguntando:

— Que medidas?

Elswyth sorriu como uma criança travessa.

— Não acreditou de fato que um defluxo pudesse du­rar seis meses, acreditou?

Ele a encarou e retrocedeu mais uns passos. Ela diminuiu a distância.

— O tônico não era uma simples infusão de mil-folhas — ele concluiu, impressionado e supresso.

— Era sim, foi a própria Olive quem preparou.

— Então, o que...

— Já ouviu falar em dorônico? — Ela riu com uma ponta de loucura. — Vem da raiz de uma planta chama­da acônito. Os antigos a chamavam de rainha-mãe dos venenos. Quer saber por quê?

Não podia ser verdade. Ele sempre pensara que Elswyth fosse uma mulher dócil, que o agradaria quan­do desejasse, esperando ser chamada novamente.

— Um pedacinho de dorônico, um bocadinho só, aju­da as pessoas a dormirem e tira a dor. Mas um tantinho a mais, pode deixar qualquer pessoa mais doente do que nunca e, na dose certa, é responsável por uma morte rá­pida e desagradável. Olive nem sabe que eu tenho essa erva no quintal. Não a guardo na loja. Quando preciso, vou até o jardim e cavo conforme a necessidade.

Ele olhou para as unhas sujas da mulher. A julgar pela aparência, Elswyth vinha precisando bastante dessa erva.

— No Natal, quando o sr. Aldfrith disse que ela preci­saria de uma dose diária de tônico, eu sempre arranjava uma desculpa para afastar Olive e "temperava" a infu­são. Olive nunca desconfiou.

— E Ada foi ficando cada vez mais doente.

— Não vê como era um plano perfeito? Quando che­gasse a hora, eu aumentaria a dose e ninguém jamais desconfiaria. Com a maldita cadela fora do caminho, você poderia se casar comigo.

— Por que está me contando tudo isso? — Estava convencido de que Elswyth não era uma tola. Por que, então, revelar tudo?

— Há seis semanas, Olive voltou para casa dizendo que um homem tinha ido à sua casa e que voltaria mais tarde para levar Ada de volta a Paris. — Os olhos dela tinham adquirido um brilho vidrado. — Um sargento chamado Graeham Fox. Naturalmente, eu não poderia permitir que isso acontecesse. Como você poderia se ca­sar comigo se sua esposa estivesse viva em Paris?

— Na verdade — disse, perturbado pelo olhar enlou­quecido da mulher —, ele nunca voltou.

— Por que eu dei um jeito nisso. Sabe, em West Cheap conseguimos encontrar homens capazes de tudo... Arranjei três malandros dispostos a partir o crânio do sargento ao meio em troca dos cinqüenta marcos.

Então era por isso que o bastardo nunca voltara... Seu respeito por Elswyth cresceu ainda mais.

— Foi o que fizeram? Mataram mesmo o homem?

— Ele não voltou, voltou? — Elswyth sorriu com a boca, mas não com os olhos.

— Deus do céu, mulher! — Ele gargalhou. — Chegou a esse ponto só para se casar comigo?

— Isso era muito importante para mim. Então pode imaginar o meu assombro quando descobri que andou com a minha filha.

A gargalhada perdeu a força, tornando-se um riso nervoso.

— Não sei do que está falando...

— Sei de tudo, Rolf, inclusive que ela está grávida. Ouvi dos lábios dela.

Ele deu de ombros, tentando formar um sorriso char­moso, ciente, porém de que nem quando moço fora bom nesse truque.

— O que posso dizer, minha cara? Sou um homem, e Olive...

— Ela o provocou.

— Isso mesmo. Ela me provocou e eu não consegui resis...

— Eu ainda o quero, Rolf.

— Ah! Que maravilha! — Jesus Cristo!

— Preciso de você. Preciso ficar sempre ao seu lado.

— Bem, infelizmente, ainda temos o pequeno proble­ma quanto à minha esposa.

— Ela não é mais um problema.

— Não? — Le Fever engoliu em seco.

— Cuidei dela. Sua esposa recebeu o que merecia.

— Ela está... — O ar deixou os pulmões dele. Seria verdade? Estaria livre do casamento que o envergonhava?

— Ela está morta. Você é um viúvo agora. Pode se ca­sar com quem quiser. — Ela estendeu o odre. — Venha, celebre comigo.

Le Fever retrocedeu ainda mais contra o abrigo das sedas, olhando com desconfiança para o odre.

— Como posso saber o que há aí dentro?

— Pensa que quero envenená-lo? — Levando o odre aos lábios, Elswyth deu uma bela golada antes de voltar a oferecer a bebida.

Sentindo-se mais seguro, Rolf deu um golinho. Era um vinho barato, doce demais, porém não parecia ter sido adulterado. Bebeu mais, querendo acalmar os nervos.

— Como foi que administrou a dose letal?

— Dose letal? Não, não... Não a envenenei. O mercador parou no meio de um gole.

— Não entendo. Disse que estava planejando...

— Meus planos sofreram uma leve modificação — ela disse de modo pragmático. — Precisei mudar, já que o delegado estava desconfiado. Tive de encontrar outro jeito.

A apreensão fez um calafrio subir pela espinha de Le Fever.

— O que quer dizer com isso? — perguntou sentindo a língua subitamente grossa. — Como a matou?

— Com fogo.

A fumaça. Rolf farejou o ar, ou tentou... Sentiu que a garganta, o nariz e a boca estavam amortecidos; não sentia o cheiro de nada. O odre escapou de seus dedos.

— Aquela casa era feia mesmo — ela disse com voz ébria, escorregando para o chão.

— Pôs fogo na minha casa? — A voz de Le Fever es­tava tão pastosa quanto a dela. Tentou agarrá-la, mas desequilibrou-se e segurou um punhado de tecido, le­vando-o para baixo e amortecendo sua queda. — Sua vadia! Incendiou a minha casa, minhas sedas! — Estava arruinado. Era a história de seu pai se repetindo.

Elswyth ria alucinada, mas por fim o riso se tornou uma série de engasgos. Ajoelhada, ela arfava e segurava o peito.

— O que há de errado com você? — ele perguntou ao mesmo tempo em que começou a sentir um aperto no peito e a visão embaçar.

— Um dos... motivos pelos quais... — Elswyth resfolegava — eles a chamam de rainha-mãe dos venenos... é que é difícil de detectar... — O corpo dela se retesou e caiu no chão.

— Não! — Le Fever sentia frio, um gelo correndo pe­las veias, os dentes batendo em agonia.

Precisava de ajuda, tinha de sair dali. Tentou se levantar, mas tudo o que conseguiu foi se enroscar no emaranhado de seda. Desequilibrando-se, arrancou os pendões expostos e caiu numa confusão de rubi, car­mina, rosa, vermelho-sangue.

Preciso de você. Preciso ficar sempre ao seu lado.

Os olhos de Elswyth estavam vazios, contemplando o futuro deles juntos.

Le Fever tinha, de fato, subestimado a antiga amante.

O mercado de seda parecia estranhamente vazio e si­lencioso quando o subdelegado Nyle Orlege chegou para interrogar Le Fever.

Passou pela entrada e seguiu por um corredor, onde divisou um aglomerado de pessoas.

— Alguém sabe onde posso encontrar Rolf Le Fever? — Nyle perguntou num tom que não admitia o silêncio como resposta.

As cabeças se voltaram, encarando-o com interesse. As algemas na cintura chamaram a atenção, e o grupo de homens abriu passagem.

A primeira coisa que Nyle notou foi uma barra­ca toda revolvida, os tecidos espalhados pelo chão. Provavelmente um ato de vandalismo de jovens que não tinham o que fazer. Olhando melhor, porém, viu dois pa­res de pernas enroscados em meio aos tons de verme­lho: pernas de homens envoltas em chamativas calças de seda e pernas de mulher, os pés descalços e sujos.

— Que inferno! — Nyle exclamou, já sentindo o início do cheiro de cadáveres em rápida putrefação no calor do verão.

 

— Como está a perna? — Joanna perguntou a Graeham ao destrancar a porta.

As talas tinham sido retiradas naquela manhã. Já estavam no fim da tarde, e o dia fora longo. Primeiro, o funeral de Thomas no leprosário São Egídio onde, depois de seis dias, ele finalmente sucumbira às queimaduras horrendas. Depois, à tarde, assistiram ao casamento de Olive e Damian Oxwyke, unidos numa cerimônia sim­ples na Igreja Maria Madalena na rua Milk.

— Não está tão ruim — Graeham respondeu, seguindo-a pelo corredor. Livre das talas, sua elegância na­tural ao caminhar dava os primeiros sinais, ainda que passasse a se mover com mais rigidez com o correr das horas.

Joanna sorriu ao pendurar o manto no gancho e reti­rar o véu da cabeça.

— Não precisa de massagem, então?

Quando o cirurgião removera as talas, tinha reco­mendado uma massagem firme para aliviar o descon­forto dos músculos tensos após tanto tempo em desuso, deixando um unguento próprio para esse fim.

Percebendo seu olhar, Graeham sorriu e rebateu:

— Sua raposa atrevida... — Aproximou-se dela por trás e espalmou as mãos nos seios cobertos pela túnica violeta, acariciando-os até deixá-la sem fôlego. — Mal posso esperar para ser massageado.

— Se não quiser, não precisa...

Ele a tomou nos braços num movimento fluido e a carregou até o depósito onde estava o unguento. O cô­modo estava fresco por ter ficado fechado o dia inteiro.

Colocando-a de pé, ele tirou o cinto e a túnica. Sentou-se na ponta da cama, onde já não dormia fazia mais de uma semana, e tirou as botas e calças, ficando apenas com a camisa e as ceroulas.

— Fiquei surpreso ao ver Lionel abraçar Olive depois da cerimônia — ele disse, deitando-se. — Ainda mais depois do quanto lhe custou para cancelar o contrato com a outra menina.

A carta de Elswyth para a filha, na qual confessa­va tudo o que fizera, não mencionava a gravidez de Olive, e muito menos o envolvimento dela com Le Fever. Damian, que sabia de tudo e não se importava com o fato de Olive ter se deitado com outro homem, assumira o bebê como seu, forçando o pai a aceitar sua união com a moça. Era o que a Igreja e os costumes mandavam.

— Aposto que sei o que o levou a aceitá-la — Joanna comentou, abrindo um pequeno pote de unguento. — Alguns dias atrás, ela me disse que fez um preparado para o estômago dele e, pelo visto, o remédio surtiu o efeito desejado.

— Viu o modo como Olive olhava para Damian du­rante os votos? — Graeham sorriu.

— E como ele retribuía. Le Fever será uma memória longínqua em pouco tempo. Quando o bebê nascer, eles já terão esquecido quem é o pai.

— O amor tem um estranho poder — ele refletiu. — Parece capaz de mudar até a natureza das coisas, como a alquimia. — Fitou-a, mas em seguida desviou o olhar.

Joanna lhe deu as costas, sentando-se nos pés da cama. Graeham não tinha falado de amor com ela. Não comentara nada após sua declaração, ao saírem da casa em chamas de Le Fever na semana anterior. Talvez não a tivesse ouvido. Ou talvez sim.

Decidiu que não a repetiria; não até ouvi-la na boca dele. Joanna sabia o que lhe ia no coração; a magia que os envolvia era poderosa demais para ser unilateral. Ele a amava. Tinha de amá-la.

Quem sabe o que o perturbava era o fato de ser um soldado sem terras? Talvez achasse que não tinha direi­to de se apaixonar ou que esse seria um ato desajuizado. Era desajuizado, Joanna bem o sabia, e mesmo assim ela não tinha uma resposta pronta para o futuro dos dois. Tudo o que sabia era que o amava e que não podia conviver com a idéia de não ter o sentimento correspon­dido.

Graeham abriria o coração quando estivesse pronto. Ela só esperava que isso acontecesse antes de ele partir. Ele planejava viajar levando Ada dali a quatro dias, no meio do mês, e escrevera a lorde Gui para que os re­cebesse em Paris até o dia vinte. Ada tinha passado a semana no hospital São Bartolomeu e, aos poucos, já se mostrava mais disposta, corada, praticamente recupe­rada do envenenamento gradual. Ela já não ficava mais deitada, Joanna soube ao visitá-la, e passava o tempo ajudando as freiras com os outros enfermos. Ainda que não fosse afeita à filosofia e à lógica como a irmã, dava sinais de gostar de medicina. Disse até mesmo que ten­taria convencer o pai a enviá-la a Salerno, para uma universidade em que aceitavam mulheres.

— Joanna? — Ela sentiu os dedos de Graeham em seu pescoço e fechou os olhos para desfrutar do toque. — Ficou tão calada. Há algo errado?

— Não sei — disse baixinho para em seguida se corrigir: — Não, não há nada errado. O dia foi longo e cansativo.

— Qualquer dia que comece com o enterro de um amigo será assim. — Ele acariciou as costas dela a fim de confortá-la.

Joanna assentiu. Tinha chorado sem cessar no enter­ro de Thomas; Graeham a segurara, sussurrando pala­vras de conforto.

— Ele morreu tentando salvar a mim e a Ada.

— Foi assim que ele quis morrer. Thomas não que­ria se transformar numa coisa, dizimado pela doença. Escolheu morrer como um homem, do melhor calibre. Ele haveria de querer que nos alegrássemos por ele, não que nos lamentássemos.

— Sei disso — Joanna se forçou a dizer. Esfregou as mãos com o óleo e pôs-se a massagear-lhe a perna. — Que tal?

— Pode ser mais firme.

Na noite anterior, ele tinha lhe sussurrado a mes­ma coisa sobre um tipo diferente de toque. Seu corpo se aqueceu com a lembrança. Conforme prosseguia com a massagem, sentiu os músculos da panturrilha dele co­meçarem a relaxar.

— Mais para cima — ele pediu.

Joanna pegou mais óleo e passou no joelho e na coxa. Graeham levantou a camisa e desatou o nó das ceroulas.

— Mais para cima? — Ele estava totalmente ereto. Tomou a mão dela e guiou-a para o membro pulsante.

Durante as noites infindáveis de amor, Joanna apren­dera como o corpo dele funcionava, assim como ele tinha tomado conhecimento das reações dela.

Graeham terminou de se despir, sentou-se atrás dela e perguntou baixinho, puxando o cordão que prendia a túnica:

— Onde, Joanna. Onde você sente dor?

Joanna ofegou. Ele escorregou a túnica pelos ombros dela, desnudando-a até a cintura. As trancas cobriam-lhe o torso, e Graeham as soltou, deixando o longo cabe­lo cair como uma cascata pelas costas.

O coração dela disparou ao vê-lo colocar os dedos no pote de unguento,

— Onde sente dor? — ele voltou a perguntar. Ela afundou as mãos nas coxas dele, desejando-o.

— Conte-me.

Ela sacudiu a cabeça, trêmula de desejo, mas reticente em verbalizar, mesmo depois de tantas noites partilhadas.

Passando o braço por ela, Graeham envolveu um seio, circundando a aréola com o dedo.

— Aqui?

Ela prendeu a respiração e assentiu.

Os lábios dele a acariciaram na nuca, fazendo uma trilha de beijos ao mesmo tempo em que a mão minis­trava carícias sem fim, apertando, beliscando, roçando... O outro seio recebeu o mesmo tratamento, e ela arqueou as costas, esfregando-se no peito dele sem resistir.

— Onde mais?

Ela gemeu e cravou as unhas nas coxas fortes. Graeham, depois de pegar mais óleo, mergulhou a mão dentro de sua túnica.

Joanna se esqueceu de respirar.

O primeiro toque, suave, incitou o fogo interior do corpo dela. O outro braço de Graeham a mantinha fir­me no lugar enquanto ele aprofundava a exploração. Pressionava-lhe o corpo, o sexo rígido resvalava a parte baixa das costas dela. Joanna se debateu, gemendo.

— Pare! — exclamou quando o prazer aumentou, pronto para desfazê-la em mil pedaços. — Espere...

— Não — ele murmurou em seu ouvido. — Quero vê-la se desmanchar em meus braços desse jeito. — E afundou os dedos, afagando-a com a palma inteira.

Joanna gritou ao ser assolada pelo clímax, um cho­que de prazer que se multiplicou com a carícia insisten­te. Os ouvidos reverberavam quando ela se deixou cair sobre ele. Num único movimento, ele a despiu, deixan­do-a apenas com as meias pretas.

Deitou-a de lado, ficando por trás, e passou um bra­ço por baixo dela, a mão se fechando sobre o seio ar­redondado. A outra resvalou o quadril quando ele se esticou para tocá-la, abrindo-a para recebê-lo. Numa única investida, preencheu-a com sua masculinidade. Inclinando-se sobre ela, sussurrou:

— Ah, como eu gostaria de poder ficar... — Beijou-a e continuou: — Por tudo o que há de mais sagrado, eu gostaria de não deixá-la.

— Você... você voltará? — Ela, por fim, fez a pergunta que vinha evitando havia tanto tempo.

A mão de Graeham a apertou uma fração de segundo. Joanna sentiu o peito dele inflar antes de responder:

— Eu voltarei à Inglaterra em algumas semanas.

— De vez?

Com certa hesitação, ele assentiu:

— Sim, de vez.

Joanna encheu-se de contentamento e se virou para encará-lo, mas Graeham tinha o rosto escondido em seus cabelos.

— Sentirei a sua falta — ele disse.

— Serão poucas semanas...

Graeham nada disse, e Joanna sentiu a ereção começar a murchar dentro de si.

— Eu também sentirei a sua falta, mas ainda temos quatro dias antes que você viaje. Precisamos aproveitar todo o tempo que nos resta. — Ela tomou a mão forte e a guiou para a parte em que os dois se uniam. Agitou-se com as carícias, excitada mais uma vez. Os movimentos ritmados de seu quadril o acenderam novamente e, em questão de minutos, ela gemia num novo espasmo de prazer.

Segurando-a pelo quadril, Graeham afundou-se no calor molhado.

— Deus do céu, Joanna... — Ele a rolou no colchão, com o rosto para baixo, e investiu com ímpeto, segurando-a pelos cabelos, gemendo de modo quase desesperador.

A Joanna pareceu que ele queria se livrar de algo que o torturava. Ele a tomava de um modo compulsivamente animalesco, como se a marcasse como sua.

De súbito soltou-a, virou-a de frente e caiu sobre ela, ofegante, com um gemido de angústia escapando da gar­ganta enquanto estremecia de prazer. Graeham levan­tou o rosto e a fitou. Havia algo estranho no olhar dele.

— Eu a machuquei?

Ela sorriu e pousou a palma no rosto áspero pela barba que começava a crescer.

— Você nunca poderia me machucar, Graeham.

Fechando os olhos, ele aninhou o rosto na curva suave do pescoço dela.

— Sim, eu poderia.

 

— Lindo este lugar, não? — Joanna comentou com Hugh ao saírem da capela de Ramswick, onde Robert e Margaret tinham, acabado de se casar.

— Você poderia ter sido a dona disto tudo. — Hugh fez um gesto amplo com as mãos que abarcava a propriedade.

Joanna não precisava que o irmão a lembrasse disso. Só conseguia pensar naquilo desde que haviam chegado para a cerimônia. Ramswick era sua idéia de paraíso: pastos, floresta, riachos, uma linda vila com pequenos chalés alinhados. Ali se sentia em paz, diferentemente do que na confusão de West Cheap.

Com um gesto de cabeça, ela indicou o casal logo adiante caminhando de mãos dadas e comentou:

— Olhe para eles. Foram feitos um para o outro.

— Assim como você e Graeham?

Hugh descobrira o relacionamento deles por aca­so, numa manhã em que aparecera muito cedo, vindo diretamente da farra. Ele havia encontrado Graeham descendo as escadas somente de ceroulas. A princípio, acusara o sargento de ter renegado a promessa de não macular a honra de Joanna e depois voltara a ameaçá-lo, dizendo que o faria comer as próprias partes pudicas. Sem dúvida, teria forçado o sargento a se casar com a irmã se ele não fosse um marido tão inadequado. Como sempre, porém, Hugh logo se acalmara, a ira evaporan­do diante da indignação da irmã.

Mesmo naquele momento, antes que ele recomeçasse o sermão, ela o lembrou:

— Tenho um amante, Hugh. Isso pode ser pecamino­so e não muito sábio, mas sou uma mulher adulta e sou livre para cometer meus próprios erros.

— Esse é o problema, irmãzinha. — Hugh falava baixo para que as pessoas que os cercavam não ou­vissem. — Sempre seguiu sua cabeça, e muitas vezes acabou se arrependendo. Só não quero que se machuque de novo.

— Graeham não é Prewitt, Hugh.

— Não de maneira óbvia. Eu gosto dele, sabe disso, mas pense bem... Como Prewitt, ele a cortejou e depois desapareceu.

— Graeham não desapareceu — ela o defendeu. — Ele foi acompanhar Ada a Paris. Foi isso o que o trouxe para cá em primeiro lugar. Ele voltará em poucas se­manas, já lhe disse.

— Sim, mas por quê? Ele diz que vai voltar de vez para a Inglaterra. Ele lhe contou por quê? Lorde Gui vai liberá-lo de suas obrigações? Graeham vai se em­pregar com outro lorde? Vai vender seus serviços no exterior, como eu?

— Não, estou certa de que ele não faria isso. — Joanna não saberia conviver com aquilo. Já basta­va ter de se preocupar com o irmão; não suportaria viver longe de Graeham, preocupando-se com o seu bem-estar.

— Por que ele vai voltar, Joanna? Por sua causa? Ele tem algum plano para...

— Eu não sei, maldição! — Algumas cabeças se vol­taram para encará-los. Joanna fitou a grama aos seus pés e sentiu as faces corarem.

Tinham se passado três semanas desde que Graeham acompanhara Ada através do canal da Mancha, e mais pareciam três anos. Sentia saudades, precisava vê-lo, segurá-lo, sussurrar a novidade eletrizante em seu ouvido.

— O que Graeham quis dizer com "algumas sema­nas"? — Hugh insistiu. — Quatro? Cinco?

— Eu não sei. — Mas como desejaria saber... — Hugh, realmente não quero falar sobre esse assunto.

— Eu sei, mas tenho a obrigação de ajudá-la a enxergar as coisas como elas são. Sou a única família que tem.

Aquilo era um fato. Lorde William de Wexford fora convidado para as núpcias, mas declinara o convite ao saber que a filha estaria ali. Joanna não podia mais con­tar com o pai, só com o irmão. E agora com Graeham.

— Como pode dar certo entre vocês dois?

— Encontraremos um modo. — Joanna pousou a mão no ventre. Logo adiante as mesas do banquete estavam dispostas. Um pouco de pão costumava acalmar o mal-estar matinal.

— Culpo-me por tê-lo levado à sua casa — Hugh con­fessou.

— Já me disse isso muitas vezes. Quanto a mim, sin­to-me grata que tenha trazido Graeham para a minha vida. — Ela o beijou no rosto. — Obrigada.

— Não irá me agradecer se o seu coração for partido.

— Isso não acontecerá.

— Ele disse que a ama?

— Já disse que não quero falar sobre isso.

— Ah... — Hugh concluiu com tristeza —, foi o que pensei.

— Eu sei que ele me ama. Só não quero falar a respeito.

Gritinhos animados se aproximavam. Catherine e Alice logo os ultrapassaram de mãos dadas, rindo de excitação. Alice estava irreconhecível num lindo vestido claro, com o cabelo loiro adornado com margaridas.

— Bom dia, senhora! Bom dia, sir Hugh! — ela os cumprimentou enquanto corria.

Joanna e Hugh retribuíram o cumprimento, mas as meninas já estavam longe.

— Alice está florescendo aqui — Joanna observou.

— Você também, se estivesse no lugar dela. Joanna tinha certeza disso. O que mais queria era viver no campo. Todas as noites sonhava com um chalé em algum lugar distante da cidade. E nesses sonhos, Graeham estaria ao seu lado, como seu marido.

Antes de chegarem às mesas, Hugh a virou de frente e disse:

— Você deveria vender a casa em West Cheap e com­prar outra no campo.

— Acha que já não pensei nisso? Não vai funcionar. Eu até conseguiria dinheiro suficiente para uma nova casa, mas não poderia comprar terras. Não desejo mo­rar apertada numa vila qualquer. Preciso de terras para cultivar, para chamar de minhas.

— Deixe-me ajudá-la. Posso comprar alguns acres para prover seu sustento se tiver dificuldades em ven­der seus bordados.

— Hugh, sabe que não posso permitir isso.

— Por que não? Está esperando Graeham voltar, ca­sar com você e tirá-la da cidade?

— Não... — Não exatamente.

— Tem esperanças? Desesperadamente.

— Não posso aceitar porque já comprou a casa em West Cheap. Prometi nunca mais aceitar a sua caridade.

— Não é caridade. Sou seu irmão, pelo amor de Deus! Tenho todo o direito de cuidar de você.

— Não preciso que cuide de mim. — Só tinha de es­perar Graeham voltar para depois decidirem juntos o que fazer.

Como se estivesse lendo seus pensamentos, Hugh disse:

— Quer estejam casados ou não, precisarão de outro lugar para morar. E improvável que ele consiga sustentá-la.

— Hugh, pare com isso. — Joanna estava angustiada em ver que a história se repetia. Libertou-se do abraço do irmão. — Estou aqui para comemorar um casamento e para me divertir. Não vou mais falar sobre Graeham.

E foi o que fez. Depois de comer um pouco, sentiu o estômago mais calmo. O clima estava agradável, a co­mida, deliciosa e a música, que a fez recordar Thomas, extraordinária. Robert e Margaret sentados ao lado das meninas e dos pais formavam um lindo casal.

Além dos nobres da vizinhança, a comemoração con­tava com a presença dos londrinos importantes, como os delegados e os barões, Gilbert e Walter.

Joanna cumprimentara lorde Gilbert e a esposa na capela, sentindo-se pouco à vontade depois de ter rejei­tado o filho caçula deles seis anos atrás. Mesmo assim, eles tinham sido extremamente corteses, especialmente lady Fayette, que tomara suas mãos e dissera o quanto sentira a sua falta.

Diversas vezes durante o banquete, Joanna sentira os olhos de lorde Gilbert na sua direção. Ainda assim, ficou surpresa quando ele se aproximou de sua mesa, deixando-a apreensiva com sua majestosa elegância. Ela soltou um suspiro de alívio quando tudo o que ele disse foi:

— Está encantadora hoje, milady.

— Obrigada, milorde. — Joanna fez um gesto para a mesa ora vazia. — Gostaria de se juntar a nós?

— Obrigado. — O lorde sentou-se no banco ao lado dela. — É bom vê-lo novamente, Hugh. Soube que anda lutando na região do Reno.

— Sim, voltarei no próximo mês.

Lorde Gilbert assentiu, pigarreou e ficou olhando de um para outro, tamborilando os dedos no tampo da mesa. Joanna e Hugh se entreolharam, sem saber o que dizer. Pigarreando novamente, o barão se voltou para Joanna.

— Lamento muito a morte de seu marido, lady Joanna.

— Obrigada, milorde. Sinto muito pelo ocorrido com Geoffrey — disse ela, referindo-se à morte do primogê­nito do barão.

Ele respirou fundo.

— Eu gostaria que soubesse que entendi... Bem, não há seis anos, somente mais tarde, porque se recusou a casar-se com Nicholas.

Surpresa com essa confissão, Joanna só conseguiu assentir.

Com o olhar preso nas mãos, o barão prosseguiu:

— Naquela época, confesso que não entendi seus mo­tivos. Eu sabia das predileções fora do normal dele, é claro, mas sempre acreditei que fosse uma coisa pas­sageira, própria da juventude. Foi ingenuidade minha, hoje sei disso, porém acreditava que uma bela jovem como a senhora pudesse... — Ele fez um gesto amplo com as mãos.

— Mudá-lo? — Hugh se prontificou, com um sorriso torto nos lábios, que indicava o que ele achava daquilo.

O barão suspirou e olhou tristonho para Joanna.

— Está claro que a senhora teve mais juízo. Tinha ra­zão em recusar o noivado. Acabamos casando Nicholas com a filha de lorde Alger, Mabila. Estão casados há cinco anos e não produziram nenhum herdeiro. Vivem infelizes, levando vidas praticamente separadas.

Hugh levou o cálice de vinho aos lábios, olhando para Joanna por sobre a borda, tentando entender onde aque­la conversa levaria. Estava intrigado com as revelações pessoais do barão.

— Com a morte de Geoffrey, Nicholas herdará o baronato e Montfichet. — Ele balançou a cabeça. — Nicholas não é um mau sujeito, apenas não é um barão adequa­do. Não é um líder, é apenas um rapaz que aprecia bom vinho, boa música e a companhia de outros jovens como ele. — Fechando os olhos, suspirou. — Se Geoffrey esti­vesse vivo...

— Deve ser devastador perder um filho — Hugh comentou —, mas tem outro e ele ainda pode surpreen­dê-lo. Dê tempo ao tempo; Nicholas ainda é jovem e...

— Outros dois — lorde Gilbert disse baixinho.

— Como disse?

— Tenho dois filhos: Nicholas e... e um filho bastardo que nunca reconheci. Envergonho-me de confessar que nunca o vi. — Virando-se para Joanna, disse:—Acredito que o conheça. O nome dele é Graeham Fox.

O ar escapou dos pulmões de Joanna numa rajada, e Hugh derramou o vinho na toalha de linho. Nesse ins­tante, os dois outros casais que estavam acomodados à mesa com eles voltaram rindo. De súbito se encontra­ram cercados por pessoas.

— O que acham de continuarmos nossa conversa ca­minhando? — Lorde Gilbert lançou um olhar significa­tivo para os recém-chegados.

Assentindo, Joanna se levantou e caminhou ao lado do irmão e do barão em direção ao riacho. Por fim, o lor­de retomou a conversa:

— Vinte e seis anos atrás, meu irmão Charles foi aba­tido numa batalha, deixando uma viúva, Constance. Ela era herdeira do castelo Kilthorpe. Ela era... — O barão se deteve à margem do riacho, perdido em pensamentos. — Os cabelos dela eram loiro-avermelhados, ela tinha olhos verdes e era encantadora. Inteligente. Sempre conseguia me fazer rir. Eu sempre... senti carinho por ela. Carinho demais, talvez. O sentimento era mútuo, mas ela era a esposa de meu irmão, e eu era casado... Bem, o castelo Kilthorpe era um ponto estratégico nas defesas do rei. Mal Charles caiu ao chão, o rei pensou em um marido substituto para Constance. Fui enviado para junto dela para negociar o contrato de casamento, embora ela não tivesse escolha, pois teria de aceitar o arranjo. Fui sozinho, lady Fayette ficou em casa. Isso não deveria ter acontecido... Constance estava de luto por Charles; eu a amparei e confortei. Foi... complicado. Ainda não consigo explicar como tudo aconteceu. Talvez a culpa tenha sido do vinho ou... Não sei. — Ele meneou a cabeça. — Aconteceu.

— Ela engravidou? — Hugh perguntou.

— Sim. Ela era a minha cunhada, a prometida do rei a um de seus mais importantes vassalos. Pobre garota, ela ficou fora de si quando descobriu a gravidez. Não havia maneira de fazer a criança passar por filho de meu irmão, pois Charles estivera ausente por muitos meses antes de morrer. Eu me consumi em vergonha e me preocupei com o futuro dela.

— O que fizeram, então? — Joanna perguntou.

— Disse ao rei e ao pretendente que Constance con­cordara com o casamento, mas que ainda estava mui­to triste com a morte do marido para voltar a se casar imediatamente. Lorde Brian poderia assumir o castelo, mas, em nome do decoro, ela viveria em outro lugar até a realização do casamento.

— Muito engenhoso — Hugh murmurou.

— Ela passou a gestação toda num convento, onde nosso filho nasceu em segredo. Arranjei com os freis de Holy Trinity para que o criassem lá. Constance ficou arrasada ao entregar o bebê; era seu primogênito, mas não havia alternativa. Depois de um tempo, voltou para o castelo e se casou com lorde Brian. Um ano mais tarde morreu no parto de gêmeos.

Lorde Gilbert olhava para o vazio com seus penetran­tes olhos azuis, tão parecidos com os de Graeham. Como não notar as semelhanças, agora que sabiam do paren­tesco? Graeham tinha o mesmo porte altivo do pai, o nariz aristocrático, os ossos da face proeminentes.

— Na maior parte do tempo, tentei esquecer que tinha um filho ilegítimo. As lembranças eram vergonhosas, tristes. Quando frei Simon, o prior de Holy Trinity...

— Eu o conheço. — Joanna e Graeham haviam feito uma visita antes que ele partisse.

— Quando ele me disse que Graeham tinha a intenção de fazer votos, senti a necessidade de intervir. Meu irmão mais novo fora obrigado a seguir carreira na Igreja e teve a vida arruinada. Ele não tinha vocação. Muitos jovens decidem seguir esse caminho sem saber do que estão abrindo mão, pois não veem alternativa. Refleti muito e cheguei à conclusão que Graeham ti­nha crescido sendo poupado em demasia. Era evidente que queria uma carreira no clero; era a única vida que conhecia.

— Foi então que o enviou a Beauvais — Joanna con­cluiu.

— Sim, lorde Gui é um bom amigo de longa data. Eu sabia que podia confiar nele para guiar os passos do garoto. Pedi que observasse para ver se Graeham tinha aptidão com as armas, e é claro que ele tem. O resto vocês sabem.

— Por que está nos contando tudo isso? — Joanna perguntou.

— Em vinte e três de junho recebi uma carta de lor­de Gui contando-me que havia enviado Graeham numa importante missão a Londres. A tarefa estava levando mais tempo do que Graeham antecipara, e ele encontra­ra abrigo em West Cheap, na casa de uma mulher cujo nome era, claro, familiar. O seu, Joanna. Gui implorou para que eu o visitasse, que me apresentasse como pai dele, contudo parecia loucura quebrar o silêncio depois de tantos anos. Então, quando a vi no desfile na Vigília de Verão, pensei que aquilo talvez fosse um sinal. Senti-me tentado a procurar Graeham, pois lorde Gui apenas o elogiava enquanto Nicholas é... bem, um desaponta­mento. Os homens gostam de pensar que procriaram herdeiros decentes, capazes de levar a linhagem adiante. Ainda assim, eu não estava de todo convencido. Então, alguns dias atrás, ao voltar de uma viagem, minha es­posa me aguardava na porta com uma carta de lorde Gui nas mãos. — Lorde Gilbert balançou a cabeça. — A parte mais estranha foi que ela não ficou brava com a minha infidelidade, mas por eu ter abandonado meu fi­lho. Ela disse que a única forma pela qual eu poderia me redimir seria seguindo os conselhos de lorde Gui e pro­curando Graeham. Ela estava bem determinada quanto a isso e, é claro, tinha toda a razão. Eu deveria tê-lo reconhecido desde o início. Então, eu havia decidido pro­curá-lo quando uma nova carta chegou, ontem mesmo, dizendo que Graeham completara sua missão e estaria partindo de Londres em quinze de julho.

— E verdade, milorde — Joanna disse. — O sargento Fox voltou à Normandia três semanas atrás.

— Então é para lá que devo ir. Já passou da hora de eu me entender com meu filho. Não conseguirei mais me ver no espelho... nem dormir com minha esposa — ele acrescentou tímido — se não encontrá-lo e reconhecê-lo publicamente.

Joanna sorriu.

— Sei que isso significará muito para ele.

— Meu único arrependimento é não ter tomado essa decisão a tempo de vê-lo se casar.

— Casar? — Hugh perguntou.

— Ah, vocês não sabiam — o barão disse, sorrindo. — Graeham casou-se com uma mulher de nome Phillipa em Paris há cerca de uma semana. Imagino que ela seja uma tutelada de lorde Gui ou algo do tipo.

Joanna sentiu o sangue ribombar nos ouvidos.

— Tem certeza? — Hugh quis saber.

— Lorde Gui me contou tudo nessa última carta. Já estava tudo acertado há algum tempo. Firmaram a data para dois de agosto quando Graeham disse que estava voltando.

— Jesus... — Joanna murmurou. O barão parecia não notar o estado em que ela estava.

— Eles vão morar na Inglaterra. Lorde Gui deu a Graeham uma propriedade em Oxfordshire. Pelo visto uma recompensa pela missão cumprida.

Joanna sentiu-se tonta, o estômago embrulhado.

É tão nobre que está passando por tudo isso sem nada a lucrar?

Talvez eu seja.

Ele mentira. E não pela primeira vez. Nem pela última.

Eu voltarei à Inglaterra em algumas semanas, ele dissera. Só se esquecera de mencionar o fato de que vol­taria casado. Será que ele imaginava que ela concorda­ria em ser apenas a amante?

Não era de admirar que ele nunca tivesse declarado seu amor. Ele a estivera usando o tempo todo, no início como informante, depois como amante. Como ela pude­ra permitir isso?

— Milady, está passando mal? — o barão perguntou. — Está tão pálida.

Joanna sentiu-se tonta; então, Hugh envolveu-a com o braço e guiou-a até um toco de árvore, fazendo-a se sentar e abaixar a cabeça.

As vozes dos dois homens soavam abafadas, como se viessem de muito longe. Hugh ordenava que respirasse fundo e explicava a lorde Gilbert que o estômago dela não andava muito bom.

Se aquela fosse a verdade... Mas não era. O que have­ria de fazer com seu futuro agora?

Lorde Gilbert acabou se despedindo, desejando me­lhoras.

— Espere! — Joanna levantou a cabeça.

— Sim, milady — o barão respondeu.

— Eu... eu gostaria de saber se poderia levar uma carta minha ao sargento Fox quando for à Normandia?

— Certamente. Imagino que queira expressar felici­dades pelo casamento.

— É... isso — ela disse. — Levarei a carta à sua casa amanhã.

— Não se preocupe. Mandarei um criado ir buscar em sua casa. Ao meio-dia seria conveniente? — ele perguntou.

— Sim, a carta estará pronta.

O barão se curvou numa saudação e se afastou. Hugh se ajoelhou diante dela, tomando-a pelas mãos.

— Joanna, eu...

— Não diga que sente muito — disse ela num tom distante. — Tentou me avisar, eu não dei ouvidos. É tudo culpa minha.

— Fui eu quem o levou à sua casa. — Hugh acari­ciou-a nas mãos. — Eu devia ter mais juízo, em vez de instalar um desconhecido em sua casa, só porque ele me pareceu um bom homem.

— Não se culpe, eu tenho um fraco por esse tipo de homem: belos, charmosos e inescrupulosos demônios.

— O que vai escrever na carta?

— Que vou me mudar para o interior e que não quero voltar a vê-lo.

— Graças a Deus! Isso quer dizer que vai aceitar a minha ajuda?

— Somente o suficiente para encontrar um bom lu­gar longe de Londres. Eu não queria fazer isso... Eu ti­nha esperanças de que Graeham voltasse e se casasse comigo, mas agora eu... Eu não tenho escolha, levando-se em conta que... Maldição!

— Praguejando novamente, irmãzinha? Devo aler­tá-la que o povo do interior não aprecia mulheres com maus modos.

— Estou grávida, Hugh.

Os olhos dele se arregalaram com o choque. Ele se pôs de pé, o rosto irado. Começou a andar de um lado para outro diante dela, com os punhos cerrados.

— Vou matá-lo. Vou encontrá-lo e esganá-lo.

— Pensei que a ameaça envolvia alimentá-lo com as partes...

— Isso vem antes. Eu o caparei e depois o estrangularei!

— Hugh — Joanna o chamou, tentando aparentar calma. — Sabe que nós estávamos dormindo juntos.

— Mas há modos de prevenir. — Ele fez um gesto indicando o ventre. — Coisas que os homens podem fa­zer para evitar... Deus, Joanna, ele deveria saber o que fazer!

— Ele sabia — ela disse, sentindo-se corar. — Exceto na primeira vez...

Um rugido escapou do peito de Hugh.

— Ele sabia antes de ir embora?

— Não. Eu mesma só fiquei sabendo depois. — No dia seguinte à partida dele, na verdade. Seu período menstrual nunca tinha se atrasado antes. Isso aliado ao enjôo e ao cansaço...

Hugh voltou ao seu lugar diante dela.

— Por que não me contou antes?

— Eu queria contar primeiro a Graeham quando ele voltasse. Eu tinha certeza de que ele se casaria comigo.

— Não acha melhor contar tudo nessa carta que vai escrever?

— Não, ele deixou claro que nunca quis ter um filho ilegítimo.

— Mas hoje ele o tem. Não seria melhor se ele sou­besse disso? Agora ele é um homem com posses, poderá ajudar financeiramente.

— Não entende, Hugh? Ele é um homem casado. Seria muita humilhação impor minha presença e a de nosso filho, sabendo que ele não se importa.

— Não mesmo?

Sentirei sua falta, ele tinha dito.

— Talvez um pouco. Não tenho como saber ao certo. Ele sempre foi tão convincente, tão charmoso... Tudo o que sei é que ele não se importava o bastante e que me usou. Eu estava disponível.

— E agora carrega um filho dele — Hugh completou.

— Não lamento por isso, Hugh. Apesar de tudo, que­ro esta criança. Não posso, porém, continuar na cidade.

— É verdade. Quando a barriga começar a aparecer, você será alvo de fofoca e estará arruinada.

— Não estou pensando na minha reputação. Só não quero criar uma criança na cidade. Também não su­porto mais ficar naquela casa, onde tudo me lembra Graeham.

— Tudo bem se quiser ignorar sua reputação, mas terá de me prometer uma coisa Joanna: quando se estabelecer novamente, deixará as pessoas pensarem que acabou de enviuvar e que o bebê é de seu marido. Não há por que dificultar as coisas.

— Está certo, mas terá de me prometer uma coisa também — ela pediu.

— O quê?

— Não irá atrás de Graeham e não o... mutilará. Hugh revirou os olhos e prometeu com a mão na espada.

— Prometo sobre a manjedoura do menino Jesus que não usarei minha espada em Graeham Fox.

— Nem a adaga — ela completou.

— Nem a adaga — ele concordou.

— Sei que está furioso com ele, mas o tempo cura tudo. Só não quero que faça algo de que venha a se arrepender.

— O tempo não terá impacto algum na minha ira em relação àquele maldito — Hugh prometeu com ex­pressão feroz.

— Tolice. Você nunca conseguiu ficar bravo com nin­guém por muito tempo.

— Ficarei irado com Graeham Fox até meu último suspiro — Hugh afirmou sério. — Espere e verá.

 

O ar frio do mês de outubro envolveu Joanna quan­do ela saiu do chalezinho no fim da tarde para alimen­tar as galinhas. As folhas amareladas do carvalho que cobriam o telhado tremeram com uma lufada vinda da floresta logo além de seu pequeno pasto.

Quem sabe um dia não poderia adquirir uma ou duas ovelhas para pastarem naquele trecho; a lã seria bem-vinda. Alguns porcos também, já que durante o verão eles comeriam na floresta e no inverno serviriam de alimento. Por enquanto, porém, tinha de se conten­tar com as galinhas, que a ajudavam a se manter com a venda dos ovos, e a cabra, que fornecia o leite de que tanto necessitava nos últimos meses.

Manfrid se aproximou a passos lentos enquanto ela cruzava o galinheiro com o saco de ração. Ele se jo­gou aos seus pés com a barriga para cima, implorando um carinho. Joanna se abaixou e o cocou, provocando o ronronar tão conhecido.

O gato havia sentido muito a falta de Graeham de­pois que ele partira. Nos primeiros dias, vagava pelo depósito, como se esperasse que o antigo inquilino se materializasse por encanto.

Para mim é um mistério por que se dá ao trabalho de mantê-lo, medroso como ele é, Graeham dissera um dia, todavia fizera amizade com o felino do mesmo modo, e o bichano acabara provando o seu valor. Quem ouvisse Graeham narrar os acontecimentos do dia do incêndio, acreditaria de fato que ele só acordara por causa do chamado insistente de Manfrid.

Joanna estava contente por ter conseguido trazer os gatos para o novo lar. Petronilla era uma excelente caçadora, deixando a casa livre de roedores, e Manfrid... Bem, Manfrid era Manfrid. Mantinha seu colo quente à noite e lhe fazia companhia. Os poucos vizinhos que tinha moravam longe e eram muito ocupados para visi­tarem com freqüência, sem falar em Hugh, que partira no mês anterior depois de se certificar que ela estava bem instalada.

Estava acostumada a viver sozinha; foram as se­manas ao lado de Graeham que a tinham deixado mi­mada. Que Deus a ajudasse, mas como sentia a falta dele, mesmo sabendo que hoje era um homem casado.

Pela primeira vez na vida, sentira como se fosse parte de alguém, não só desejada fisicamente, mas amada de verdade.

Tudo, porém, não passara de uma ilusão. Certificara-se de que Graeham Fox não voltaria a usá-la mudando-se para o interior, bem longe de seu antigo endereço. Ninguém em Londres sabia de seu paradeiro; era como se tivesse desaparecido da face da Terra. Graeham não a encontraria nem em um milhão de anos, mesmo que tentasse. Isso tanto a confortava quanto a deprimia.

Deu uma última coçadela em Manfrid e se levan­tou para prosseguir com seus afazeres. Então teve de lutar contra uma onda de tontura. Ainda bem que, es­tando no quarto mês, essas vertigens já não eram tão freqüentes. No início, além da fraqueza e dos enjôos, chegara a desmaiar algumas vezes, mas de acordo com a parteira das imediações eram ocorrências comuns no começo da gestação.

Manfrid ficou subitamente alerta e se pôs de pé. Se fosse Petronilla, Joanna arriscaria dizer que havia uma presa nos arredores, mas Manfrid não era de fa­zer aquilo. O gato seguiu pelo caminho que levava para o pasto e se sentou, o rabo abanando, olhando para a floresta.

Joanna ia se virando para o galinheiro quando um movimento no limite da floresta chamou sua atenção. Apertando os olhos contra o pôr-do-sol alaranjado, no­tou um homem vindo a cavalo.

Ficou imaginando quem seria, já que o pessoal local montava em mulas ou caminhava. Cavalos eram um luxo naquela região.

Tocou a adaga presa ao cinto, uma precaução necessária para uma mulher vivendo sozinha num lugar ermo como aquele. Só esperava que fosse um dos nobres locais ou um padre, e não...

Notou os cabelos avermelhados do homem na altura do colarinho da túnica de montaria. As pernas estavam cobertas por perneiras presas por tiras de couro cruzadas.

— Virgem Santa Maria.

O saco de ração caiu com um baque surdo no chão.

Era ele.

Graças a Deus, ele a encontrara.

Oh, Deus, por que ele tinha de encontrá-la?

Joanna pressionou a mão no ventre, censurando-se mentalmente por sua falta de compostura. Odiava Graeham Fox. Desprezava-o por tê-la usado e mentido, por tê-la engravidado, por se casar com outra.

Como ele a tinha encontrado, se Hugh era o único a saber do seu paradeiro?

Graeham diminuiu o passo do garanhão e se apro­ximou pelo caminho de terra batida. Os olhos azuis ainda tinham o poder de lhe tirar o fôlego. Havia algo diferente nele. O nariz estava inchado no meio e havia uma cicatriz fina no supercílio. Ele parou a montaria.

— Joanna, meu Deus, é você mesmo...

Ela envolveu a própria cintura com os braços num gesto de autodefesa e o encarou.

A expressão dele ficou mais séria. Graeham desmon­tou e prendeu o cavalo a uma árvore próxima. Manfrid já se esfregava nas pernas fortes; então ele se abaixou e o afagou.

— Pelo menos você sentiu a minha falta, não é mesmo, garoto?

Manfrid ronronou satisfeito. Graeham ergueu o rosto e a fitou.

— Senti tantas saudades. Achei que nunca mais voltaria a vê-la.

Ele se levantou e deu um passo à frente. Joanna retrocedeu, e ele parou.

— Sei que está zangada comigo.

— Não faz idéia do quanto. — A voz dela era baixa e trêmula.

— Você precisa me ouvir. — Ele mostrou as palmas como numa súplica, e se aproximou. — Por favor, me ouça.

— Vá para o inferno! — Joanna retrocedeu ainda mais conforme ele avançava. Graeham acabou prendendo-a de encontro à parede do galinheiro. Ela o em­purrou, mas era como lutar contra um muro.

— Não acredito... — ele disse, o olhar passeando por seus cabelos, olhos, boca, seios e se detendo sobre o ventre arredondado com os primeiro sinais da gesta­ção. Ele abaixou uma das mãos sobre a barriga dela, acariciando-a de leve, a expressão maravilhada.

Então ele sabia.

Olhando-a nos olhos novamente, ele murmurou:

— Está ainda mais bonita do que antes. Não pensei que isso fosse possível.

O rosto viril estava muito próximo. Graeham se in­clinava sobre ela, o olhar preso nos lábios rosados. Ela tentou negar num movimento de cabeça, que só serviu para que os lábios se roçassem.

Um gemido de saudade surgiu no peito de Joanna quando ele a beijou, os lábios tão quentes e ávidos. Ele a segurava pelo rosto e enroscava os dedos em seus cabelos. O mundo girou. Joanna o agarrou pela túnica, o coração aos pulos com a mistura de emoções que a assolava: amor e ódio, desejo, confusão.

Como ele conseguia fazer aquilo com ela? Que tipo de poder ele exercia sobre sua determinação? Ela se sentia drogada pela proximidade dele, pelo calor, pelo perfume tão familiar de que tanto sentira falta. Ele interrompeu o beijo e sussurrou:

— Eu te amo.

— Oh, não, mais mentiras! — Ela cobriu os ouvidos com as mãos. — Pare de mentir para mim, Graeham, é tudo o que peço.

Ele afastou-lhe as mãos dos ouvidos.

— É a pura verdade, Joanna, eu juro. Eu deveria ter lhe dito isso há muito tempo, mas fui um idiota. — Levando as mãos dela aos lábios, beijou-as. — Eu te amo, Joanna, eu...

— E quanto a Phillipa? Também a ama ou se casou com ela somente por causa das terras?

Soltando-lhe as mãos, Graeham a acariciou no rosto.

— Joanna...

— Veio me procurar para que eu seja sua amante? Acredita mesmo que eu estarei sempre à disposição para quando você sentir vontade?

— Não é nada disso, Joanna.

— Volte para sua esposa, Graeham. — Joanna o em­purrou com tanta força que ele deu um passo para trás, abrindo espaço bastante para que ela se esgueirasse.

Joanna andou rápido em direção ao chalé. Se con­seguisse chegar a tempo, entraria e trancaria a porta. Ele poderia esmurrar o quanto quisesse; não permiti­ria que ele entrasse. Entretanto, ao passar pelo saco de ração, automaticamente se abaixou para pegá-lo, ficando tonta ao se endireitar.

Por favor, Deus, agora não, ela pensou ao ser toma­da pela escuridão da vertigem.

— Joanna? — Antes que ela chegasse ao chão, sen­tiu os braços fortes de Graeham amparando-a.

Ela se aninhou no abraço, como se fosse um bebê de colo, e sentiu as passadas largas conforme ele a carre­gava quase sem sentidos.

Graeham chutou a porta, parou um instante e co­meçou a se mover novamente ao vislumbrar a cama. Abaixou-a com gentileza no colchão, afofando o traves­seiro sob sua cabeça. Acariciou seus cabelos, a testa e depois se afastou.

Sentindo-se subitamente desolada, Joanna entreabriu os olhos e o viu ao lado da pia, umedecendo um pano.

— O que está acontecendo, Joanna? — ele pergun­tou aflito, sentando-se ao seu lado e passando o pano em sua testa. — Está doente? Quer que eu chame um médico?

Ela balançou a cabeça devagar.

— O começo da gestação foi um pouco difícil, mas já está melhorando.

O olhar dele pousou em seu ventre. Ele colocou a mão ali com suavidade, de modo protetor.

— Há algo de errado? O bebê está bem?

— A parteira disse que está tudo bem.

— Você precisa de um médico, não de uma...

— Não há médicos por estas imediações, e Claennis é uma ótima parteira.

Ele passou a mão pela elevação na barriga, a ex­pressão perturbada.

— Tem sido duro para você. Detesto pensar no que passou desde que parti. — Olhando ao redor, para as paredes caiadas e os vasos de flores em todos os can­tos do pequeno cômodo, completou: — E mesmo assim, você conseguiu se arranjar. A sua força é uma das coi­sas que mais amo em você.

Ela arrancou o pano das mãos dele e o comprimiu na testa que latejava.

— Não diga isso.

— Isso o quê? — Ele se inclinou sobre ela, as mãos apoiadas na cama ao lado de sua cabeça. — Que te amo?

— Não quero ouvir.

— É a verdade, Joanna. Se eu tivesse algum juí­zo, teria lhe dito isso há muitos meses. Deixe-me dizer isso agora.

— Por quê? Para que você tente entrar embaixo de minhas saias mais uma vez?

— Lá vem você com essa conversa de novo.

— Eu posso ser uma tola, uma ingênua, extrema­mente influenciável por demônios bonitos e charmosos como você, mas...

— Eu sou bonito e charmoso? — ele perguntou com um sorriso satisfeito. — Você me ama também.

— Isso é a sua vaidade falando mais alto. Como eu poderia amar um homem que me usou de maneira tão vil?

— Eu a usei — ele admitiu. — Deixei que você se entregasse a mim sem esclarecer a minha situação com Phillipa. Eu não sabia o que fazer. Eu te amava com profundidade e te queria muito, mas não conse­guia desistir das terras em Oxfordshire. Como um cre­tino, sonhava em ter você e as terras, mas é claro, isso não era possível. Como um homem imperfeito, cometi muitos erros que a fizeram sofrer, e ainda assim você me ama. Senti isso quando me beijou.

— Foi você quem me beijou — ela corrigiu.

— Mas você correspondeu. Agora, diga que me ama.

— Não. Ele se inclinou um pouco mais, os olhos azuis derretendo-a.

— Ama sim, confesse.

— Posso não ter um pingo de juízo no que se refere a você, Graeham Fox, mas sei que não devo retribuir os carinhos de um homem casado.

— Admiro sua virtude, mas isso não é realmente necessário. Não sou casado.

Ela estreitou os olhos.

— É, sim. Lorde Gilbert me disse. Lorde Gui contou tudo para ele em uma carta.

— Lorde Gui escreveu dizendo que havia uma data para a cerimônia. Nunca me casei com Phillipa.

— Por que não? — perguntou ela, surpresa.

— Por que não a amo. Eu amo você. Só você. Ela o fitou, insegura, e depois devolveu o pano.

— Ajude-me a me sentar, por favor.

Deixando o pano de lado, ele a amparou e a ajudou a se sentar ao seu lado.

— O que aconteceu depois que partiu para a Normandia?

— Só consegui pensar em você no trajeto de Londres a Dover. Ada perguntava o que havia de errado e eu inventei que estava doente. De certo modo, não dei­xava de ser verdade: eu estava doente do coração pelo que tinha feito com você e pela perspectiva de perdê-la. Era um sentimento que me corroía. Foi ainda pior quando o barco começou a cruzar o canal. Enquanto nos afastávamos, só conseguia pensar que nunca mais a veria. Começou a chover e todos foram se abrigar. Eu fiquei debaixo da chuva, chorando. Eu não chorava desde criança...

Joanna se viu afagando-o nas mãos.

— Lorde Gui estava nos esperando na casa do irmão em Paris. Phillipa também estava lá. Naquela hora eu já sabia o que tinha de fazer. Levei Phillipa para um canto e contei que não poderia me casar com ela por­que amava outra mulher, sempre amaria. Confessei que seria um terrível marido se me casasse com qual­quer outra pessoa.

— Como ela recebeu a notícia?

— Pareceu desapontada no início porque estava an­siosa para estudar em Oxford. Lorde Gui não conse­guiu vê-la infeliz, então decidiu passar a propriedade diretamente para o nome dela, sem que precisasse se casar. Com isso, ela ficou radiante. O barão me cha­mou de tolo por recusar tamanha oferta, e eu respondi que eu era mais tolo ainda, pois queria pedir demissão para voltar para a Inglaterra.

— Meu Deus — Joanna sussurrou, atônita por ver o quanto ele sacrificara por ela.

— Lorde Gui me pediu que ficasse o tempo suficiente para acompanhar Phillipa a Oxfordshire em outubro. Ele precisaria desse tempo para ajeitar a casa e os cria­dos para recebê-la. Senti que devia isso a ele depois de tudo o que ele fez por mim em todos esses anos. Fiquei algumas semanas em Paris, ajudando-o nos negócios. Quando voltamos a Beauvais, encontramos lorde... — ele se interrompeu, a boca torta. — Encontramos meu pai esperando por nós.

— Deve ter sido um choque descobrir que é filho de Gilbert de Montfichet — Joanna comentou.

— Levou um tempo para que eu me habituasse a essa idéia. Pensando em retrospecto, eu deveria ter descon­fiado que era ele ou alguém do nível dele. Por que outro motivo lorde Gui estaria disposto a entregar a mão da filha a um sargento ilegítimo? Aos olhos dele eu era Graeham, filho de Gilbert, o barão de Montfichet.

— Imagino que o encontro tenha sido muito emocionante.

— E foi... Até ele me entregar a sua carta.

— Ah, a minha carta. — Ela apertou a mão dele.

— Você não disse para onde iria. Eu tinha de encon­trá-la. Voltei imediatamente a Londres. O homem que comprou a sua casa me disse que fazia poucos dias que você tinha se mudado e que ele não tinha idéia para onde você havia ido. Procurei Olive e Damian, Robert de Ramswick, frei Simon, todos os seus vizinhos, e nin­guém sabia de nada. Quase enlouqueci. Saí de Londres e passei duas semanas indo de vila em vila, pergun­tando por você.

— Ah, Graeham...

— Por fim voltei à Normandia para acompanhar Phillipa até Oxfordshire. Quando cheguei a Beauvais, descobri que o barão tinha um hóspede. Seu irmão.

— Hugh? — Joanna perguntou, com os olhos arregalados.

— Ele foi me procurar enquanto eu vasculhava a Inglaterra à sua procura.

— Mas ele prometeu que não o procuraria.

— Na verdade, o que ele prometeu, pelo que me contou, foi não me separar de minhas partes privadas. Asseguro-lhe que ele não tentou isso. Bem que tentou transformar meu rosto.

Ela esticou a mão e tocou as cicatrizes na bela face.

— Ele quebrou seu nariz.

— Retribuí o favor.

— Quebrou o nariz de Hugh?

— Não queria que eu apanhasse sem revidar, queria? — Graeham sorriu. — Ele até me agradeceu depois. Alegou ser bonito demais antes disso.

— Essas parecem palavras vindas do meu irmão. Suponho então que vocês se entenderam no final?

— Sim, depois que eu consegui me explicar. Ele logo ficou contente, me deu uns tapinhas nas costas e me deu seu endereço. Pouco depois partiu para o Reno. Joanna riu.

— Ele me disse que ficaria zangado com você até o último suspiro.

— Hugh disse isso? Ele é incapaz de ficar bravo por muito tempo.

— Eu sei.

Graeham passou os dedos longos e calejados no con­torno do rosto dela, nos lábios.

— É tão bom ver você sorrir de novo, Joanna. Senti falta do seu riso. Por favor, diga que não me odeia mais.

— Eu não te odeio mais. Acho que nunca odiei, por mais que tentasse.

Ele a perscrutou com o olhar penetrante, enxergan­do fundo na alma.

— Diga que me ama, por favor.

— Eu te amo — ela disse com um nó na garganta, os olhos úmidos. — Eu te amo, Graeham, muito.

Ele a agarrou e a beijou com paixão.

— Nunca quis que você fosse minha amante — ele sussurrou ao encontro dos lábios dela. — Sabe disso, não sabe?

Joanna assentiu.

— Quero que seja minha esposa.

Ela assentiu mais uma vez com as lágrimas rolando pelas faces. Ele as enxugou com os polegares.

— Eu não te mereço, não depois do que fiz você pas­sar. Sei que deve estar preocupada com o que posso oferecer; afinal, temos um bebê a caminho e...

— Podemos morar aqui — ela disse, envolvendo-o pelo pescoço e beijando-o. — Não me importo com o lugar em que moramos desde que eu esteja ao seu lado. Eu vendo os ovos e posso pegar roupa para lavar. Não importa, Graeham, eu te amo. Quero ser sua esposa.

— Mesmo que eu não tenha nada para oferecer? Ela tocou o ventre.

— Já me deu tanto. Não consigo imaginar nada me­lhor do que viver com você aqui, neste pequeno chalé, rodeada de filhos. E tudo o que eu quero, juro.

Graeham apoiou a testa na dela e sorriu.

— Devo supor então que quer que eu recuse as ter­ras que me pai me ofereceu?

Ela o encarou de olhos arregalados.

— Lorde Gilbert, ele...

— Ele disse que já passara da hora de agir ao meu favor e me deu a propriedade de Eastingham, perto de Londres. As terras são ótimas para o cultivo e há uma linda vila bem no meio. Há pomares, lagos, pastos para as ovelhas e vacas...

— isso tudo vai ser seu?

— Nosso. Já é, de fato. Eles me chamariam de lorde Graeham.

— Lorde Graeham — ela disse sem acreditar. — Graeham de Eastingham.

— E a senhora, milady, será Joanna de Eastingham assim que eu encontrar um padre para nos casar. O melhor de tudo é que há uma imensa casa de pedras com quartos para muito mais crianças do que cabe­riam aqui. Mas se preferir... Posso dizer a ele que não aceitamos.

— Não faça isso.

— Juro que é você quem manda. — Ele roçou o quei­xo na face macia. — Se quiser ficar aqui, basta dizer. Só quero agradá-la.

— Você quer mesmo me agradar, não quer? — Ela o beijou e abraçou.

— Sim... — Ele suspirou e trilhou a mão desde o pescoço até um seio escondido pelo vestido. — E só no que tenho pensando ultimamente... em te dar prazer.

— Sabe o que me daria prazer neste instante, milorde? — ela murmurou contra o ouvido dele.

— Deus, espero que sim! — ele disse, abaixando-a na cama.

E, por fim, foi o que Graeham fez.

 

 

                                                                  Patricia Ryan

 

 

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