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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


TRATAMENTO SILENCIOSO - P.2 / Michael Palmer
TRATAMENTO SILENCIOSO - P.2 / Michael Palmer

                                                                                                                                                  

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

TRATAMENTO SILENCIOSO

Segunda Parte

 

Albert Dickinson, cujo fato amarrotado estava a precisar desesperadamente de uma limpeza a seco, apagou um Pali Mall e preparou-se para acender outro. O cinzeiro estava a abarrotar. O pequeno gabinete de interrogatórios tresandava a tabaco, a café e a odor corporal. Harry mexeu-se desconfortavelmente na cadeira com encosto de ripas e perguntou a si próprio se deveria dizer mais alguma coisa sem telefonar a Mel Wetstone. Mas a verdade é que não fizera nada de mal. E, à parte o seu envolvimento íntimo no crime de Central Park, na noite anterior, não tinha nada a esconder. Mesmo assim, os seus problemas aumentavam rapidamente. E agora, um jovem de que ele tanto gostava, estava morto.

 

Cerca de vinte minutos depois de Harry ter saído do quarto 505, um servente foi encontrar Andrew Barlow deitado tranquilamente, sem pulsação nem respiração. Uma breve tentativa de reanimação foi rejeitada quer pelas enfermeiras quer pelos internos, visto que o doente tinha as pupilas fixas e dilatadas e o electrocardiograma era uma linha recta. Embora a manhã fosse o período mais atarefado e mais fervilhante do dia no hospital, em que técnicos, médicos, estudantes, pessoal da manutenção, serventes e enfermeiros entravam e saíam, nenhum elemento do pessoal do Alexander 5 vira alguém entrar ou sair do quarto de Barlow depois de Harry.

 

Após receber a notícia, Harry cancelou as marcações que ainda tinha e voltou ao hospital, atordoado e distante. Andy Barlow jazia, de costas, na semiobscuridade, com um lençol que o tapava até ao queixo. O seu rosto reflectia já os primeiros sinais da morte. Harry teve vontade de gritar, de berrar como um animal ferido. Apetecia-lhe destruir o quarto, arrancar os tubos da parede, pegar numa cadeira e atirá-la pela janela. Mas sentou-se junto da cama, sozinho, com a mão de Andy Barlow na sua, e desatou a chorar.

 

Antes de sair do quarto, fez três telefonemas. O primeiro foi para informar Owen Erdman que voltaria a telefonar mais tarde para marcar uma reunião logo que possível. O segundo foi para a família de Andy, e o terceiro foi para Albert Dickinson.

 

- Se julga que, por ser você a notificar-me, eu o retiro da minha lista, está doido - disse Dickinson.

O homem pensou um pouco e depois acrescentou:

- Mas essa é a realidade, não é?

- O quê?

 

- Que você está doido,

 

Dickinson não podia acusá-lo de nenhum crime até a autópsia provar que a morte de Andy não fora provocada por causas naturais. Mas mesmo uma autópsia com resultados negativos deixaria várias perguntas sem resposta. Afinal, o jovem arquitecto constava da lista de doentes sujeitos a cuidados especiais do hospital, e as enfermeiras com quem Dickinson falara testemunharam que o falso alarme de Harry contribuíra para aumentar o stress de uma situação já de si difícil.

 

- Não foi um falso alarme - afirmou Harry, com uma paciência exagerada. - A responsável do meu consultório ouviu a chamada.

 

- Deixe-me corrigi-lo. Ela ouviu o telefone a tocar. Até um estúpido de um polícia como eu sabe qual é a diferença entre ouvir um telefone a tocar e escutar uma conversa.

 

- Bem, também lá estava um dos meus doentes. Ele ouviu uma parte da conversa. Metade.

 

- Bem, acho que isso me convence.

 

- Não seja cínico.

 

- Então não me impinja histórias ridículas como se eu fosse um atrasado mental.

 

- O homem chamava-se Concepcion. Walter Concepcion. Harry contou o pouco que soubera do seu novo doente:

 

que fora detective particular, que estava desempregado, que fora viciado em cocaína, que sofria de dores de cabeça crônicas e que tinha um tique nervoso. Exactamente o tipo de testemunha que Dickinson esperava que ele apresentasse, alguém que ficasse bem ao lado de uma alcoólica como Maura Hughes. Paliativos.

 

- Dê-me a morada desse tal Walter, ou lá como é que ele se chama, que eu vou falar com ele - disse Dickinson.

 

- Ouça, diga-me só uma coisa - respondeu Harry. O que ganharia eu por inventar um telefonema? Porque o faria?

 

- Deixe-me pensar... Porque é que você inventaria um telefonema do homem que, segundo você diz, matou a sua mulher, a anunciar que resolvera, sem qualquer motivo, eliminar um desgraçado que ia morrer de qualquer maneira? Bolas, isso ultrapassa-me.

 

- Eu não matei a minha mulher. Eu não inventei o telefonema. Acredita em mim?

 

- Sabe, pode ser que esse tipo tenha morrido com um ataque cardíaco ou outra coisa do género - disse Dickinson, desapertando a gravata. - Se eu estivesse ali, sujeito a uma vigilância especial, com sida e pneumonia, e o meu médico entrasse pelo quarto a gritar que alguém estava a tentar matar-me, acho que também marava.

 

Harry suspirou.

 

- Olhe, tenente. Eu telefonei-lhe e contei-lhe o que se passou com a morte do Andy. Esperei, enquanto você e o seu homem interrogavam toda a gente do piso. Vim aqui à esquadra sem sequer telefonar a um advogado. Estou aqui sentado, há hora e meia, a responder a perguntas a que já respondi duas e três vezes. Ouvi os seus insultos, as suas insinuações e as suas acusações, e não lhe causei problemas. Neste momento, sinto-me terrivelmente mal com o que aconteceu a Andy Barlow. Gostava mesmo dele e estava a fazer tudo para que ele vencesse a pneumonia. Acho que ele foi assassinado pelo mesmo homem que matou a Evie. Mas esse homem não sou eu. Se tem mais perguntas a fazer, faça-as. De outro modo, quero ir para casa.

- Se a autópsia for positiva, você está no papo - disse Dickinson.

 

- Óptimo.

 

- E se for negativa, também está no papo.

 

- O problema é seu.

 

Dickinson fez menção de apagar um Pall Mall meio fumado, apercebeu-se disso e agitou o cigarro na direcção de Harry, antes de puxar outra fumaça. Harry pegou no casaco que estava nas costas da cadeira e dirigiu-se para a porta.

 

- Você não me prendeu pelo assassínio da Evie porque não conseguiu encontrar um delegado do Ministério Público que julgasse que você tinha um bom caso. E eles têm razão. Não fui eu.

 

- Vá dizer isso aos jurados, doutor. Aposto uma semana de ordenado que eles vão cair em cima de si como uma tonelada de tijolos.

 

- Você sabe onde pode encontrar-me - respondeu Harry.

 

Já passava das três horas quando Harry voltou ao consultório. A sala de espera estava vazia. Do outro lado do vidro da recepção, Mary Tobin parecia desesperada.

 

- Já cancelámos e voltámos a marcar a consulta de Mistress Gonsalves e dos miúdos Silverman - disse ela. - Dora Gonsalves reagiu bem, mas Mistress Silverman ficou aborrecida. Telefonou há pouco a pedir que as fichas da família fossem enviadas para o doutor Lorello.

 

- O Marv é bom tipo. Cuidará bem deles.

 

- Não está aborrecido?

 

- Claro que estou aborrecido, Mary. Mas o que hei-de fazer?

 

- Não sei. Oh, meu Deus, desculpe, doutor Corbett. Acho que tudo isto começa a afectar-me.

 

- Também a mim.

 

- É terrível o que aconteceu ao Andy Barlow. Harry pegou num formulário em branco e amachucou-o.

 

- O patife que o matou há-de pagar. Juro - asseverou ele, atirando a bola de papel para o cesto e falhando por sessenta centímetros. - Tive de telefonar à família do Andy, em Delaware, a dar-lhe a notícia. Detesto sempre essa parte do meu trabalho, mas ainda detesto mais que seja pelo telefone.

 

Mary levantou-se e abraçou o patrão. A sua família já tinha o seu quinhão de tragédia, e ela sabia consolar e confortar. Havia uma ternura especial na sua cintura larga que fazia lembrar a mãe de Harry, antes das tromboses recorrentes e de ter perdido trinta e cinco ou quarenta quilos de peso. Harry prolongou o abraço por mais uns segundos.

 

- Tenho outra má notícia. A Sara despediu-se - disse ela, quando Harry se afastou.

 

Harry sentiu-se desfalecer. Há mais de quatro anos que a enfermeira estagiava no seu consultório. Era inteligente, amiga de aprender e capaz de lidar com quase todos os problemas médicos da mesma maneira que ele teria lidado. Os doentes adoravam-na, e o dinheiro que ela atraía para o consultório ultrapassava um pouco o seu salário. Harry olhou para o corredor e viu que o gabinete dela estava às escuras.

 

- O que aconteceu? - perguntou ele.

 

- Tudo isto a tem afectado. Creio que o marido também anda a pressioná-la. Hoje foi para casa doente, mas disse que ficaria até ao fim da semana. Duas semanas, se o senhor quiser.

 

- Uma chega - respondeu Harry, distraído. - Amanhã falo com ela.

 

”Outra baixa.”

 

- Mary, voltou a marcar consulta para o Walter Concepcion?

 

- Para a semana. Quarta-feira, suponho. Ele tentou explicar-me que ouvira essa chamada... desse homem. Creio que estava envergonhado e aborrecido por não ter dado meia volta e não se ter afastado.

 

- Até fico satisfeito com isso. Temos o número do telefone dele?

 

- Temos. Ele não o incluiu no questionário, mas deixou-o mais tarde. Acho que é o telefone de uma pensão qualquer.

 

- Arranje-me um cartão com o telefone e com a morada dele, por favor. Talvez eu entre em contacto com ele.

 

Nesse momento, o telefone directo do gabinete das traseiras começou a tocar. Harry ficou tenso.

 

- Depressa, Mary - pediu, em voz baixa, embora não houvesse mais ninguém a ouvi-los. - Venha atrás de mim no caso de ser ele.

 

Correram para o gabinete. Harry fez sinal a Mary para que se sentasse num sítio donde pudesse ouvir o auscultador. Ao quarto toque, atendeu.

 

- Doutor Corbett - disse.

 

- Olá, Harry, ainda bem que o encontro. É o Doug. Harry tapou o bocal.

 

- É o Doug Atwater - proferiu, visivelmente desapontado.

 

- O assassino ainda não cometeu erros. Acho que seria irrealista esperar que cometesse um agora.

 

Harry esperou que Mary saísse e depois tirou a mão do bocal.

 

- Olá, Doug.

 

Atwater era quase a única pessoa ligada ao hospital de quem ele poderia esperar notícias naquela fase.

- Harry, recebi um telefonema do Owen, a saber se eu tenho falado consigo. Contou-me o que se passou com aquele infeliz no Alexander Cinco. É terrível. Terrível. E eu sei que você não é o responsável.

 

- Doug, há um louco à solta no hospital. Ele matou a Evie e agora está a tentar atingir-me como pode.

 

- O Owen contou-me a sua versão do que se está a passar.

 

- É o que se está a passar.

 

- Ouça, não é preciso zangar-se comigo. É a primeira vez que você me fala de um louco à solta no hospital.

 

- Desculpe.

 

- Harry, as enfermeiras têm andado a chatear o Owen, dizendo-lhe que você devia ter telefonado a demitir-se. É verdade?

 

- Não, não é. Doug, levei vinte anos a construir a minha carreira de médico. Não vou abandoná-la agora. Além disso, se não andar por aí e não lutar, eles nunca descobrirão o tipo que anda a fazer isto. No pé em que as coisas estão, encontrá-lo é a minha única oportunidade.

 

Fica aí e luta. Harry lembrou-se da manhã em que, há algumas semanas, se queixara a Phil de que não tinha desafios na vida.

 

- Pode vir falar com o Owen acerca disto? - perguntou Atwater.

 

- Posso. Era o que eu ia fazer há duas horas, mas fiquei preso por um dos detectives. Oh, você conhece-o, o Dickinson, o mesmo que apareceu quando a Evie morreu.

 

- Oh, não. Esse tipo é um idiota. Ele também o considera responsável pela morte deste homem?

 

- Evidentemente.

 

- Oh, merda. Harry. Desculpe. Ouça, posso fazer alguma coisa?

 

- Quem me dera que sim.

 

- Você não sabe quem é que lhe anda a fazer isto?

 

- Não faço ideia.

Seguiu-se um silêncio incómodo.

 

- Sabe, Harry - disse Atwater por fim. - Talvez fosse preferível você pensar em afastar-se do hospital por uns tempos. Pelo menos até este assunto arrefecer, até a poeira assentar. Tenho-o apoiado a cem por cento neste caso, como bem sabe. Mas com as enfermeiras no caminho e o Owen a ceder, a situação começa a ser difícil. Muito difícil.

 

- Você também não acredita em mim, pois não? Percebo-o pelo seu tom de voz.

 

- Harry, você tem de ser razoável. Este caso tem diversas vertentes.

 

- Obrigado pelo seu telefonema, Doug. Você estaria pronto a expulsar-me, mas eu não me demito.

 

Harry desligou o telefone sem esperar pela resposta e enterrou-se na cadeira. O seu amigo de longa data e talvez o seu último aliado no hospital afastara-se. Atwater não tinha autoridade para o demitir do hospital, mas podia suspendê-lo como prestador de cuidados de saúde da Manhattan Health. Os doentes da Manhattan Health correspondiam talvez a 40 ou a 50 por cento do total dos doentes de Harry. Sem eles, era duvidoso que conseguisse continuar a trabalhar durante muito tempo.

 

Mary Tobin apareceu à porta e anunciou que fizera tudo o que pudera e que ia sair para dar umas voltas e já não voltava nesse dia. Harry agradeceu-lhe, disse-lhe, com pouca convicção, que não se preocupasse, e viu-a sair do consultório. No dia seguinte, falar-lhe-ia do golpe que Atwater parecia disposto a desferir. Não queria preocupá-la mais nesse dia.

 

Procurou na secretária e no chão à volta algumas fichas para ditar. Não havia nenhuma. Telefonou para o apartamento de Maura e depois para o seu, mas de ambos lhe responderam os atendedores de chamadas.

 

Harry disse a cada uma das máquinas que estaria em casa às quatro horas. Em seguida, telefonou a Owen Erdman e marcou outra reunião para discutir o seu futuro no Manhattan Medical Center. Por fim, arrumou a secretária, apoiou os pés a um canto, fechou os olhos e tentou desesperadamente pensar nalguma coisa, em qualquer coisa, que pusesse fim à loucura que estava a asfixiá-lo. O som do telefone quase o fez cair da cadeira. Mais uma vez, era o da linha particular. Harry levantou o auscultador, mas não disse nada. No breve silêncio que se seguiu, Harry percebeu. O assassino estava de volta. De volta para se regozijar.

 

- A autópsia do seu doente será negativa - disse a voz inconfundível.

 

- Como é que sabe?

 

- Tenho acesso a uma neurotoxina tão forte e de efeito tão rápido que, no momento em que mata, já começou a desaparecer do corpo. O metabolismo final do veneno ocorre depois da morte. Aqui, temos a mania de chamar selvagens aos índios da bacia do Amazonas. Garanto-lhe que, quando se trata de matar, eles são autênticos virtuosos.

 

Harry sentiu a arrogância e o ego enorme do assassino. Como testemunhara as consequências indizíveis da sua irritação, escolheu as palavras com cuidado.

 

- O que pretende de mim?

 

- Que encerre este caso. Mais nada. A mesma coisa de sempre. Preferia que escrevesse um bilhete. De preferência um bilhete em que admitisse que administrou por engano... O que é que você usou?... Ah, sim, Aramine. Que deu Aramine à sua mulher, por engano. Você ficará em paz. E eu verei este caso encerrado.

 

- Eu não constituo qualquer ameaça para si - contrapôs Harry. - Ninguém constitui. Nem sequer consigo convencer ninguém da sua existência.

 

Nem sequer consigo convencer ninguém da sua existência.

 

De súbito, Harry começou a pensar mais depressa. O homem era louco, é verdade, mas também era esperto. Porque se arriscava daquela maneira, telefonando para o consultório de Harry quando alguém podia ouvir a sua confissão? Harry só precisava de um aliado digno de confiança, com conhecimento em primeira mão, só um. O homem sabia da existência da linha particular e, aparentemente, também sabia que Harry não podia fazer sinal a alguém do consultório para ligar uma extensão. Mas como é que sabia que não estava ali ninguém ao pé dele, à escuta, como Mary Tobin, quando Doug Atwater telefonara? Era atrevido e arrogante, mas não devia ser imprudente. Porque é que ele arriscava? Harry tentou compreender. De repente, percebeu. O patife estava a espiar o consultório! Naquele momento, algures ali perto, ele estava à espreitar Mais nenhuma explicação fazia sentido.

 

- Espere aí, que vem um mensageiro a descer dos outros andares e eu tenho de entregar-lhe um embrulho - disse Harry. - Se tem mais alguma coisa a dizer-me, espere aí, que eu já volto.

 

Harry pôs o auscultador em cima da secretária e correu para o átrio da porta principal. Havia um telefone público do outro lado da rua, dois prédios mais abaixo. O seu carrasco tinha de lá estar!

 

Harry saiu do edifício, a correr, entrou na atmosfera crepuscular e ia chocando com um táxi amarelo ao atravessar a rua. A cabina telefónica estava deserta. Mas não estivera. O auscultador balouçava de um lado para o outro, como um pêndulo. O lenço branco que se encontrava no pequeno balcão metálico garantia que não havia impressões digitais. Harry correu para a Quinta Avenida, para a esquina mais próxima. Os peões eram muitos. Harry examinou a rua, à procura de alguém que parecesse deslocado ou interessado nele. Nada. Carla De Jesus, a proprietária idosa de uma pequena loja de bugigangas, que varria o passeio em frente do estabelecimento, interrompeu o que estava a fazer e acenou-lhe. Harry correspondeu, aproximou-se e perguntou-lhe se ela não vira um desconhecido ou alguém a correr pela rua. Ela respondeu que não vira ninguém.

 

Harry teve vontade de gritar, de destruir alguma coisa. Mas a sua sanidade mental já estava em causa em demasiados quadrantes.

 

- Hei-de encontrar-te, patife - murmurou em voz baixa, continuando à procura de qualquer coisa fora do vulgar. - Seja quando for, hei-de encontrar-te.

 

Regressou ao consultório para fechar a porta. Seguindo um impulso, tentou de novo falar para casa. Maura respondeu ao primeiro toque. Só quando ouviu a sua voz é que Harry percebeu quanto ela o preocupara.

 

- Maura, olá, é o Harry - disse ele.

 

- Como está, senhor doutor?

 

A sua fala era demasiado fluida, demasiado cantada. A disposição de Harry, que já não era brilhante, ficou ainda pior.

 

- Maura, está a beber? - perguntou ele.

 

A pausa que se seguiu bastou como resposta.

 

- Não tanto que tenha importância - respondeu ela, impassível.

 

- Maura, por favor - disse ele, tentando não denunciar o seu medo nem a sua irritação. - Por favor, pare. Pare imediatamente. Preciso de si. O assassino da Evie julga que eu paguei a alguém para nos seguir ontem à noite. Julga que eu sou o responsável pela morte do homem. Para se vingar, há umas horas, matou um dos meus doentes, um tipo com trinta e três anos. Conseguiu entrar no quarto dele e matou-o. Depois, telefonou-me para aqui a gabar-se do que fez...

 

Harry foi obrigado a calar-se para se recompor. Maura não disse nada.

 

- Ouça, você... Você é a única amiga que eu tenho neste momento. Nem sequer sei o que hei-de fazer. O patife disse que ia continuar a atormentar-me, e aos meus doentes, até eu... Até eu me matar.

 

Durante dez segundos, não se ouviu nada.

 

- Harry, porque não vem para casa? - perguntou ela.

 

- O que vai fazer?

 

- Bem, para começar, vou tomar um duche. Harry deu graças em silêncio.

 

- Bem frio - aconselhou.

 

Harry lidara com demasiados alcoólicos para saber que nenhuma promessa - em especial a de não beber mais -, tinha grande significado. Apanhou um táxi, esperando o pior. Em relação a ele, Maura tinha uma certa responsabilidade por ter recomeçado a beber. Mas, na sua opinião, ela saíra prematuramente do hospital na sequência da operação no MMC - não pela operação, nem mesmo pelo delirium tremens, mas pelo seu problema de alcoolismo. Precisava de estar hospitalizada mais tempo, de alguém que lhe delineasse um plano de tratamento realista. Teria beneficiado da intervenção dos serviços sociais, de psicoterapia, talvez de uma ou duas visitas de alguém dos AA e muito possivelmente de uma estada numa unidade de alcoólicos, destinada a doentes internados. Noutros tempos, era assim que se faria. Mas agora, mesmo que o médico soubesse que esse método seria o mais aconselhável para a sua recuperação, a companhia de seguros ditava outras leis.

 

Na base de dados da companhia havia códigos para todas as doenças, ferimentos e situações, para tudo, desde a lepra até à febre da água negra. Havia códigos que estabeleciam limites para as permanências no hospital, para os métodos de tratamento e para o esquema de pagamentos. Mas não havia um código que tivesse em consideração a complexidade de um indivíduo ou a sua reacção à doença - não havia nenhum código ”Maura Hughes” ou ”Harry Corbett”. O admirável mundo novo da medicina.

 

Harry pagou ao motorista, lembrou-se de comprar outra caixa de bombons - talvez ela precisasse de açúcar -, mas depois encolheu os ombros e atravessou a rua na direcção do seu prédio. Sentia-se derrotado e ferido. A luta que se travava no seu íntimo era alimentada pela raiva e pela frustração. Andy Barlow não queria morrer. No tempo que lhe sobrava, queria fazer projectos de edifícios, ir a concertos e estar com os amigos. Se Maura Hughes queria autodestruir-se, beber até estoirar o fígado, o estômago ou o cérebro, Harry Corbett não podia fazer nada por isso, nem ninguém. Nada de doces.

 

Maura esperava-o do lado de dentro da porta. Tinha uma maleta aos pés.

 

- Resolvi ir para casa - disse ela. Harry ficou irritado.

 

- Porquê? - perguntou. - Porque bebeu? Ou porque lhe apetece beber mais?

 

- Pelos dois motivos, talvez. Harry, não discutamos, está bem? Eu não faço bem a nenhum de nós e não percebo porque é que mais alguns copos vão alterar a situação.

 

- Mas vão.

 

Harry tinha vontade de gritar. Lembrar-lhe rudemente que ela controlava coisas que Andy Barlow não controlava. Mas respirou fundo e pegou-lhe nos braços. O olhar de Maura ainda estava límpido e focado. Era quase certo que não bebera mais nada desde que falara com ele ao telefone. Ainda havia uma hipótese remota de ficar por ali.

 

- Vamos entrar e conversar - disse ele. - Só um bocadinho.

 

- Harry, por favor. Não estou a brincar consigo, não estou com pena de mim própria e não estou a induzi-lo a suplicar-me que não beba.

 

- Nem eu pensei que estivesse. Ouça, estamos ambos a passar um mau bocado. Eu sei que você se sente mal por não se lembrar do aspecto daquele patife. Quem me dera que você se lembrasse, também. Mas se não consegue, não consegue. Não é assim tão importante. O que importa é que você é a única pessoa que sabe a verdade acerca de mim e da Evie. Conto consigo para me ajudar a não perder o controlo. E acho que posso fazer o mesmo por si. Agora, por favor, entre.

 

Durante alguns segundos, ela observou-o, em silêncio. Por fim, disse:

 

- Já alguém lhe disse que é parecido com o Gene Hackman?

 

Harry ficou estarrecido. Depois, reparou no seu olhar travesso.

- Bem, agora que fala nisso...

 

Sentaram-se no sofá do escritório, a beber café e a tentar dar sentido aos acontecimentos que fustigavam as suas vidas. Tinham chegado a muito poucas conclusões quando, uma hora depois, o pager de Harry o avisou de que deveria entrar em contacto com o serviço de recepção de chamadas. Maura reconhecera que não era muito eficiente a gerir o seu alcoolismo, mas não reconhecera a necessidade de ser internada numa unidade de reabilitação durante duas semanas ou mais, sobretudo se fosse Harry a pagar a conta, como ele se oferecera para fazer.

 

- Outra coisa qualquer. Tudo excepto o internamento - avisou ela.

 

Harry propôs-lhe que falasse com Murphy Gates, o pianista da orquestra do C. C.’s Cellar. Gates, que em tempos fora um alcoólico inveterado e um viciado em heroína, estava limpo e sóbrio há mais de dez anos, embora fosse raro falar do assunto.

 

- Terei todo o prazer em falar com o seu amigo - disse Maura. - E o que ele me disser para fazer, eu farei... excepto ser internada numa enfermaria de doidos.

 

- Talvez ele esteja no clube - disse Harry.

 

- Agora?

 

- Só abre daqui a duas horas, mas estarão lá muitos músicos, a tocar ou só a assistir. Por sinal, é a hora de que eu mais gosto. Está escuro, sossegado e... bem, parece um ventre materno. Lembrei-me agora mesmo que, uma vez, o Andy Barlow foi lá para me ouvir tocar...

 

Os pensamentos de Harry entraram outra vez no quarto escuro do Alexander 5 e concentraram-se no rosto magro que olhava, sem vida, para o tecto. Quando ouvira a fala entaramelada de Maura ao telefone, ficara preso por fios. Agora, sentia que os fios estalavam e que ele começava a escorregar por uma parede de vidro inclinada.

 

- O louco admitiu o que fez, Maura - disse ele, a andar de um lado para o outro. - Telefonou e admitiu que tinha matado o Andy como... se admitisse que tinha roubado o jornal da manhã da banca em frente da minha casa. E eu não pude fazer nada. Absolutamente nada. O que hei-de fazer? Sou uma espécie de brinquedo para ele. Salta, Harry. Cai no chão. Faz de morto. Como é que eu vou acabar com isto? Quem se seguirá?

 

- Harry, vamos embora - pediu Maura, de repente, pegando-lhe na mão. - Vamos sair daqui imediatamente. Talvez lhe faça bem ir ao clube, também.

 

- Não sei - respondeu. - Ouça, deixe-me ver que mensagem é esta. Depois podemos resolver o que nos apetece fazer.

 

Harry ligou para o serviço de atendimento. A chamada fora de alguém que não fazia parte do grupo de pessoas que o contactavam habitualmente. A operadora, em geral conversadora e entusiástica, mostrou-se formal e fria. Aparentemente, juntara-se àqueles que tinham a certeza da culpa de Harry no assassínio da mulher. Era como se a opinião a seu respeito se espalhasse como uma nuvem tóxica.

 

- Doutor Corbett, recebeu um telefonema de Mister Walter Concepcion - anunciou, sem fazer qualquer esforço para pronunciar o nome à espanhola. - Ele disse que é seu doente, mas que não se trata de um problema médico. Disse que só o senhor o pode ajudar.

 

Harry tomou nota do número, verificou que era o mesmo que Mary lhe dera no consultório, e fez a ligação. Ao quinto toque, respondeu uma mulher.

 

- Diga?

 

- Buenas tardes - disse Harry. - Está Walter Concepcion, por favor?

 

Depois de dois anos de actividade nas imediações do Spanish Harlem, a sua fluência na língua equivalia à segunda classe, embora o sotaque estivesse mais próximo da pré-primária.

 

- Un momento.

 

Ouviu-a pousar o telefone e imaginou uma mulher de vestido de fantasia a aproximar-se do fundo de um lanço de escadas com degraus de madeira carcomida.

 

- Oye, Walter! - gritou ela, como se estivesse a representar. - Walter Concepcion! Telefono!

 

Desta vez, Harry imaginou o seu novo doente, esquelético e tenso, a calçar umas pantufas puídas, a abrir uma das portas do segundo andar numa pensão deprimente, e a descer as escadas.

 

- Hola - disse ele, quase no momento em que Harry esperava.

 

- Mister Concepcion, fala o doutor Corbett.

 

- Oh, olá, obrigado por falar tão depressa, doutor - disse ele. - A empregada do seu consultório contou-me o que aconteceu depois daquele telefonema. Lamento que tenha tantos problemas. Eu... eu telefonei para saber se posso falar consigo acerca disso.

 

- De facto, eu ia telefonar-lhe.

 

Harry olhou para Maura e fez-lhe sinal que não se demoraria. Queria conhecer melhor Walter Concepcion antes de dar o seu número de telefone a Albert Dickinson. Também queria preparar o homem para o tipo de interrogatório degradante que poderia esperar do detective. Mas lembrou-se de outra coisa. Concepcion orgulhava-se de ter afastado o vício do álcool e da droga. A avaliar pelo aspecto, não era exactamente um símbolo de abstinência. Mas era inteligente e parecia tomar a sério a sua recuperação. Se Murphy Gates não estivesse no clube, Concepcion poderia ser outra voz de esperança para Maura.

 

- Está livre dentro de, digamos, uma hora? - perguntou Harry, calculando que o ex-detective estivesse quase sempre livre.

 

- Diga onde, doutor, e eu lá estarei.

 

Harry hesitou por instantes e depois deu-lhe o endereço do clube.

 

O C.C.’s Cellar era um estabelecimento pequeno e despretensioso, de 120 lugares, situado na Rua 56, a oeste da Nona Avenida. As paredes de tijolo riscadas estavam cobertas de fotografias assinadas, com molduras pretas, de nomes grandes do jazz, muitos dos quais tinham passado a vida inteira na penumbra, enredados num círculo vicioso de pobreza, vício e sofrimento. C.C., Cari Cataldo, morrera há uns anos, e deixara o clube à sobrinha, Jackie. Tanto quanto Harry sabia, com excepção de algumas fotografias nas paredes e de um sistema de altifalantes que era o último grito da tecnologia, pouco mudara no local, desde que Cari o abrira, há várias décadas.

 

Havia quatro pessoas na sala principal pouco iluminada, quando ele e Maura chegaram. Jackie, expansiva, de avental branco, estava atrás do balcão. Um velho empregado da limpeza, curtido pelo tempo, que estava no clube desde o primeiro dia, varria a pequena sala privada. Dois músicos, ambos guitarristas, improvisavam à vez, no palco. Um deles chamou Harry

 

- O doutor, e se viesses para aqui tocar contrabaixo connosco?

 

- Talvez mais tarde, Billy.

 

- Quando quiseres, pá.

 

- Sabes onde pára o Murphy?

 

O homem abanou a cabeça e depois tocou alguns trechos espantosamente melódicos de Remember You. À parte lamentarem a perda sofrida por Harry, ninguém no clube dera a entender, quer por palavras quer por modos, que estava aborrecido com a publicidade que o envolvia. Confiavam na sua música, confiavam nele. Era tão simples como isso. E, numa cidade com oito milhões de habitantes, este era o único sítio onde ele se sentia verdadeiramente seguro e aceite.

 

- Vá tocar, se lhe apetece - disse Maura bebendo soda. Eu fico bem.

 

- Obrigado, mas não me parece. Julguei que me apetecia quando saí de casa, mas agora só quero estar aqui consigo e... Maura, ele passou por toda a gente no Alexander Cinco, entrou no quarto do Andy e voltou a sair. Como é que pode ter feito uma coisa dessas sem ninguém o ter visto? Ninguém.

 

- Como é que ele entrou no nosso quarto na noite em que matou a Evie? Ele sabe mover-se nos hospitais. É o que é. Se você fosse suficientemente mau e se dispusesse a isso, conseguiria fazer o mesmo. Há tanto stress e tanta tensão nos hospitais que aposto que a maior parte das pessoas que lá trabalham se concentra totalmente em não cometer erros. Em certas alturas, talvez você conseguisse introduzir um elefante lá dentro sem que ninguém reparasse. O tipo sabe o que faz.

 

- Calculo que sim.

 

- Harry, quem me dera poder dizer alguma coisa para o ajudar. Quem me dera.

 

- Você pode, com os diabos. Pode dizer que não volta a tocar em álcool.

 

Os olhos de Maura cintilaram ante a rudeza de Harry. Era a primeira vez que ele lhe falava assim.

 

- Farei o possível. Que tal? - perguntou ela.

 

- Por agora serve.

 

Maura olhou fixamente para o copo.

 

- Então, fale-me desse tipo que vai encontrar-se connosco aqui - disse ela, entusiasmada. - Você disse que ele é detective particular?

 

- Foi. Meteu-se em sarilhos por causa da bebida e da cocaína. Não sei o que é que ele fez para perder a licença, mas agora anda a tentar recuperá-la.

 

- Bem, deve ser ele que está ali.

 

Walter Concepcion estava a beber uma soda servida por Jackie, que lhes acenou. O homem trazia um casaco desportivo leve e tinha um ar mais profissional do que no consultório de Harry. Harry examinou-o quando ele se aproximou da mesa, perguntando a si próprio qual a impressão que ele causaria a Albert Dickinson. Mexia-se bem e dava a entender que em tempos tivera certos dotes atléticos. Mas, apesar de estar bem vestido, tinha um ar destroçado e doente. Dickinson nunca acreditaria que ele abandonara o crack há anos. Harry apresentou-o a Maura.

 

- Três sodas em pleno antro da cerveja - disse Concepcion, apontando para os três copos. - Será possível que eu não seja o único passageiro da carruagem?

 

Harry ficou impressionado.

 

- Eu não disse nada. Você ouviu toda a conversa - disse ele a Maura.

 

- O Harry está apenas a proteger-nos. Eu sou a alcoólica.

 

- Nesse caso, aos alcoólicos.

 

- Este tipo agrada-me - confessou Maura, juntando-se ao brinde.

 

Após cinco minutos de conversa, Harry percebeu que a sua avaliação do homem no consultório não fora acertada. Apesar do aspecto amarelado e do tique ao canto da boca, Concepcion era insinuante e inteligente. Nascera e crescera em Nova Iorque, mas viajara muito em serviço e depois à sua custa.

 

Falou com facilidade e até com humor do tempo em que bebia e da sua dependência terrível da cocaína. Mas a intensidade do seu olhar não deixava dúvidas de que se tratava de um assunto sério para ele. No auge da sua carreira, cobrava mil dólares por dia e era alvo de uma procura constante. O seu declínio profissional ocorreu quando ele trocou a sua arma por uma certa quantidade de crack, vendido por um polícia infiltrado. Nessa altura, não se importou - nada lhe importava excepto a dose seguinte. Mas a recuperação alterara tudo.

- Vou sobretudo aos NA - explicou Concepcion a Maura, quando lhe pareceu adequado ventilar o assunto. - Os Narcóticos Anónimos, como sabe. Mas terei muito gosto em acompanhá-la a uma reunião dos Alcoólicos Anónimos. NA, AA, Hershey Bars Anonymous, para mim é tudo o mesmo.

 

- Quanto mais depressa, melhor, acho eu - disse Maura. Jackie trouxe uns aperitivos e mais três sodas. Aos dois guitarristas juntara-se Hal Jewell, um baterista a tempo inteiro, que fazia lembrar Buddy Rich a Harry, e um saxofonista chamado Brisby, que era sócio de uma das firmas de advogados negros mais bem sucedidas da cidade. Tocavam uma balada clássica em dó maior, que Harry nunca ouvira. Tinham-se passado três quartos de hora e, entre a música e a agradável surpresa que Walter Concepcion constituíra, conseguira afastar um pouco o sofrimento que o dilacerava.

 

A balada era cativante, sobretudo com a acústica da sala quase vazia. Escutaram-na em silêncio até à última nota melancólica de Brisby. Depois, Concepcion pigarreou e virou-se para Harry.

 

- Doutor Corbett, eu... Hum... Há uma coisa que eu preciso de lhe dizer. Tenho dores de cabeça, como lhe disse no consultório... São fortes e ninguém conseguiu aliviar-me. Mas esse foi apenas um dos motivos que me levou a ir ter consigo.

 

- Ah, sim?

 

- Espero que não se zangue. Se se zangar, acho que compreendo.

 

- Continue.

 

- Eu ia dizer-lhe isto no consultório, mas o senhor recebeu aquele telefonema e saiu a correr antes que eu pudesse falar. Doutor, tenho lido nos jornais os artigos a seu respeito. De facto, tenho lido tudo o que me tem chegado às mãos acerca do que lhe aconteceu, e à sua mulher, no hospital. Deixei-me fascinar por isso. Até falei com a irmã de uma amiga, que é enfermeira lá. Ela... ah... falou-me da discussão que o senhor teve com aquele cirurgião. Como é que ele se chama?

 

Por instantes, Harry admitiu a hipótese de acabar com a conversa naquele momento. Mas, durante a última hora, Concepcion revelara-se um caso sério. E agora não havia nada de ameaçador ou de obsessivo no seu tom ou na sua expressão.

 

- Sidonis. Caspar Sidonis - respondeu.

 

- Sim, esse. Eu... - Concepcion olhou para as mãos. Eu até sei da sua existência, Maura, partindo do princípio que você é a mesma Maura que estava no quarto de Mistress Corbett. Não é muito, realmente. Mas é suficiente para perceber que não são muitas as pessoas do hospital que acreditam em si.

 

- Walter, talvez seja melhor ir direito ao assunto - disse Harry.

 

- O assunto é que eu preciso de trabalho. Sei que não parece, mas sou bom naquilo que estava habituado a fazer. Muito bom. O senhor diz que não matou a sua mulher. A Maura afirma que esteve mais alguém no quarto depois de si. Eu quero ajudar a descobrir quem era essa pessoa. Se eu o ajudar, paga-me. Se eu não o ajudar, desembolsa apenas o dinheiro das despesas.

 

Harry olhou de frente para ele. Nunca se lembrara de contratar ninguém para o ajudar. Reconhecia agora que a ideia tinha mérito. Mas Walter Concepcion não lhe parecia a escolha ideal. Teve pena do homem quando o imaginou na sua pensão, procurando no seu pequeno roupeiro o melhor fato, na esperança de conseguir trabalho.

 

- Não sei - respondeu.

 

- Walter, diga-me uma coisa. Depois daquilo que leu, o que pensa de tudo isto? - perguntou Maura.

 

Pensativo, Concepcion cofiou a barba curta do queixo.

 

- Bem, não estamos a falar de um marido ciumento ou até de um amador - disse ele. - Tenho a certeza disso. Estamos a lidar com um assassino profissional, um psicopata, um sociopata, um homem sem escrúpulos. Por isso, creio que a coisa mais importante que tenho a dizer é que não creio que o doutor Corbett tenha esse perfil. E portanto não acredito que tenha sido ele.

 

- Tem razão nesse ponto - disse Harry.

 

- Também não acredito que o senhor tenha contratado o homem que o fez.

 

- Acertou outra vez. Walter, não fui.

 

Harry sentia-se atraído pela experiência de Concepcion e pelo seu conhecimento da gente da rua, já para não falar da importância de ter mais alguém empenhado em provar que ele não era um assassino. Mas tinha relutância em fazer um acordo com um homem que conhecia tão mal. Maura livrou-o de embaraços.

 

- Está combinado - confirmou ela.

 

- O quê?

 

- Harry, você quer dizer que sim e bem o sabe. Estamos num impasse. Nem sequer sabemos o que havemos de fazer a seguir. O Walter pode ajudar-nos. Sinto-o na minha carne.

 

- Acho que posso, doutor Corbett.

 

Harry levou mais quinze segundos a responder, só para manter as aparências.

 

- Se vai trabalhar para mim, então também me pode tratar por Harry.

 

- Não vai arrepender-se. Prometo - disse Concepcion. O homem estendeu o braço e apertou a mão a Harry. Os dedos eram ossudos e nodosos, mas o aperto de mão era espantosamente firme.

 

Durante meia hora, Harry contou-lhe o seu caso em pormenor. Concepcion ouvia-o atentamente e interrompia-o de vez em quando para esclarecer um ou outro ponto.

 

”Esse técnico que tirou as impressões digitais sabia alguma coisa?”... ”Alguma vez você desconfiou que a sua mulher tinha um caso amoroso?”... ”Descobriu alguma coisa acerca dos dois nomes que viu na agenda dela?”... ”Calcula para quem trabalhava a sua mulher?”

 

Quando Harry acabou, estavam no clube há mais de duas horas. Os primeiros clientes tinham começado a entrar.

 

- Bem, o que acha? - perguntou ele.

 

Concepcion virou a pequena aliança de ouro que usava no dedo do meio da mão direita.

 

- Creio que temos de fazer o que pudermos para descobrir para quem trabalhava essa tal Desiree. É por aí que vou começar.

 

- Boa sorte - disse Harry, verdadeiramente impressionado com a lógica da ideia. - O que podemos fazer entretanto?

 

- Precisamos de chegar a esse rosto que a Maura tem algures fechado no seu cérebro.

 

- Refere-se à hipnose?

 

- É uma hipótese. Harry esfregou os olhos.

 

- Maura, sinto-me muito estúpido por não ter feito esta sugestão.

 

- Você tem várias coisas na cabeça - retorquiu ela. Ouça, Harry. Eu tentarei tudo. Talvez possamos gastar mais uns dólares e talvez quem me hipnotizar consiga convencer o meu subconsciente de que o Southern Comfort sabe a borscht ou a Diet Dr. Pepper, ou a outra coisa qualquer. Conhece alguém?

 

- Conheço - respondeu Harry. - Muito bem. Chama-se Pavel Nemec. Talvez tenha ouvido falar dele. Chamam-lhe... o Húngaro.

 

- O último recurso dos fumadores - exclamou Maura. Ouvi dizer que tem uma lista de espera de seis meses.

 

- Uma vez tratei-lhe do filho. Tenho o número do telefone de casa dele no apartamento. Se for humanamente possível, ele recebe-nos amanhã.

 

Concepcion assobiou.

 

- Você deve ter feito algo muito especial pelo miúdo dele.

 

- Nem por isso, mas ele acha que sim. Harry virou-se para Concepcion.

 

- Muito bem, Walter, temos acordo.

 

- Hum, quase. - Concepcion olhou para ele com um ar cansado. - Vou precisar de algum dinheiro para as minhas despesas e também para comprar informações, quando for preciso. Não se preocupe, que eu farei a contabilidade e guardarei os recibos.

 

- De quanto é que estamos a falar?

 

- Para despesas, talvez de quinhentos.

 

- E para as informações?

 

- Não sei. Talvez de mil.

 

- Mil e quinhentos dólares? - exclamou Harry. - Julguei que você tinha dito que, se não houvesse resultados, não seria pago.

 

- Eu disse-lhe, Harry. Sou um profissional. Sei o que custa obter informações. Quanto é que julga que esse tipo recebeu para matar a sua mulher?

 

- Está bem, está bem. É ponto assente. Passe pelo meu consultório amanhã de manhã, que eu dou-lhe o dinheiro.

 

- Óptimo. Não se vai arrepender.

 

- Já me disse isso.

 

Concepcion levantou-se e apertou as mãos a ambos.

 

- Maura, marcaremos uma reunião amanhã ou depois, prometo.

 

- Óptimo. Estou pronta.

 

Concepcion deu meia volta, mas depois voltou atrás.

 

- Harry?

 

- O que há?

 

- Se puder, avança-me algum desse dinheiro das despesas?

 

Harry deu-lhe uma nota de vinte dólares, e depois outra.

 

- Porque tenho a sensação de que estou a nadar para um remoinho?

 

Conncepcion limitou-se a sorrir com o seu ar atraente e afastou-se.

 

- Fui mau? - perguntou Harry. Maura abanou a cabeça.

 

- Não. Você tem levado a vida demasiado protegida - disse ela. - Toda a gente tem de comer. Eu confio nele. Além disso, já apresentou duas boas ideias que nós não tivemos.

 

- Eu acabaria por me lembrar do hipnotizador - resmungou Harry.

 

Aguardando com impaciência a reunião da Roundtable, Kevin Loomis estava deitado de barriga para baixo na cama enorme do seu quarto nas Suites Garfield. Já há uma semana que soubera do assassínio de Evelyn Della-Rosa. Pensara várias vezes em tentar seguir Sir Gawain, para ver se o homem reconhecera que ela era Desiree. Mas, se alguém do grupo o apanhasse a tentar descobrir a identidade de outro cavaleiro, era provável que estivesse tudo acabado para ele. Para já, o seu plano consistia em manter o silêncio acerca do assunto e esperar que Gawain o abordasse.

 

A jovem beldade chamada Kelly ajoelhou-se junto das nádegas de Kevin, massajando-o para anular a tensão concentrada na parte inferior das costas. O seu vestido de seda oriental

- vermelho e com enfeites de lamé dourado nessa noite -, estava em cima da cadeira, junto das calcinhas de renda preta. Kevin viu o reflexo da rapariga no espelho do outro lado do quarto, os seios empinados e firmes, os mamilos pequenos e escuros, as curvas perfeitas das ancas e do rabo. ”Kelly. Mais um nome sem significado”, pensou. Tal como Lancelote, Merlim, Desiree e os outros - nomes sombras sem substância, criados apenas para esconder segredos. Nomes que desapareciam à luz do dia.

 

- O seu verdadeiro nome é mesmo Kelly? - perguntou ele. Viu-lhe o sorriso no espelho e sentiu-se ridículo ao pensar

 

que não devia ter sido o primeiro a fazer aquela pergunta.

 

- Se você quiser que seja, é - respondeu ela em voz baixa, com paciência.

 

Kevin fechou os olhos, sentindo-se um pouco nauseado. A massajá-lo estava esta mulher deslumbrante, pronta, se ele quisesse, para o puxar para dentro dela, das formas mais íntimas que se podia imaginar, mas proibida de partilhar sequer o seu nome próprio com ele. Seria repórter? Ou estudante de Física Nuclear em Columbia? Ou seria apenas uma prostituta? Kelly, Tristão, Desiree, Galaaz, Gawain. Nomes sombras.

 

”O que diria Nancy se soubesse?”, perguntou a si próprio. Acreditaria que ele fazia parte daquilo tudo? E ele, acreditava?

 

- Vou tomar um duche - explicou, virando-se.

 

Kelly inclinou-se e beijou-lhe o pénis, que começou logo a endurecer.

 

- Quer que eu vá consigo?

 

- Não - respondeu ele com rispidez. ”Quero que me digas o que estás aqui a fazer.” - Vista-se e encomende qualquer coisa para o jantar... Não me interessa o que é, desde que seja o prato mais caro da ementa.

 

- Lombo meio passado - disse ela. - Eu lembro-me.

 

Assim que Kevin entrou na Suite Stuyvesant, deu de caras com Gawain. A avaliar pela maneira de se vestir e pelos modos do homem, Loomis sempre julgara que ele frequentara o liceu e depois talvez a Ivy League. Nessa noite, parecia irritado e o seu sorriso um pouco tenso.

 

As sete cadeiras de espaldar alto que rodeavam a mesa estavam afastadas entre si cerca de um metro e vinte. A placa de latão com o nome de Tristão encontrava-se no sítio habitual, entre Kay e Lancellote. Gawain dirigiu-se para o seu lugar, que ficava quase em frente do de Kevin.

 

Kevin olhou para ele, cumprimentou-o de longe e depois aproximou-se.

 

- Como está? - perguntou.

 

- Não me posso queixar - respondeu Gawain.

 

- Desta vez, o Lancelote mandou-me uma rapariga chinesa. Onze numa escala de dez, diz ele. Talvez tenha razão. Acho que ele está a tentar desculpar-se daquele fiasco com a Desiree.

 

- Sim, talvez.

 

Gawain sorriu, pouco à vontade, e puxou a cadeira.

 

Antes que Kevin conseguisse pô-lo à prova mais uma vez, a reunião começou, presidida por Merlim.

 

”Talvez ele não saiba nada de Evelyn Della-Rosa”, pensou Kevin. ”Talvez nem sequer tenha visto as fotografias dela.”

 

O relatório financeiro de Galaaz mostrava que as contribuições do grupo tinham permitido que o capital circulante tivesse atingido de novo os seiscentos mil dólares acordados. Kevin ignorava como é que eles tinham chegado àquele número, e como é que as suas regras tinham sido adoptadas. Nunca se guardavam minutas, nem o registo das votações, nem documentos de qualquer espécie. Mas todos pareciam saberem exactamente em que pé se encontravam os projectos e o que se esperava de cada um deles.

 

Kay foi o primeiro a falar, sobre um dos três grandes projectos novos que seriam debatidos nessa noite. Apressou-se a dizer que estavam prestes a realizar-se as votações destinadas a aprovar a legislação que permitia às empresas submeter a exames genéticos todos os seus potenciais empregados. Primeiro, exames e perfis psicológicos formais, depois análises da sida e, por fim, testes genéticos. Todos sabiam que o pacote final podia não contribuir com um único elemento positivo para as companhias envolvidas. Mas permitiria que essas companhias de seguros de saúde poupassem dezenas ou mesmo centenas de milhões de dólares.

 

- Surgirão as habituais objecções legais - explicou Kay.

- Mas creio que conseguiremos controlar essa parte. Entre a aprovação, as objecções e os apoios, passar-se-á um ano, talvez mais, se os sindicatos arranjarem advogados decentes. Mas nós vamos ganhar.

 

- Quanto mais depressa melhor - disse Lancelote. - Na minha opinião, temos de exigir que se façam testes genéticos obrigatórios para entrar nos jardins-de-infância. Há mutantes por toda a parte.

 

Ouviu-se uma gargalhada à volta da mesa. Loomis fingiu que se ria e reparou que o sorriso de Gawain parecia mecânico.

 

Kay foi contemplado com uma ronda de aplausos pelo seu trabalho. Persival bateu as palmas com força. Dezenas de milhões em lucros acrescidos para a indústria, talvez mais. Tristão pensou no número que Burt Dreiser lhe apontara, na manhã em que se encontrara com ele no barco. Dezanove milhões de dólares. Fora o que a companhia do ex-cavaleiro perdera num ano, por não ter sido autorizada a substituí-lo na Roundtable. Dezanove milhões de dólares. Partindo do princípio de que a Crown Health beneficiaria do seu trabalho na mesma proporção, o bónus de Tristão seria um por cento disso: cento e noventa mil dólares, além do seu salário base.

 

Se mais ninguém falasse em Desiree, não seria ele quem quebraria o gelo. Estava decidido.

 

Gawain foi chamado a seguir para pôr o grupo ao corrente do seu esforço mais recente: legislação que permitiria que as companhias de seguros de saúde decidissem qual o tratamento que era ou não apropriado para doentes com doenças terminais. Kevin continuou a observá-lo atentamente, notando que ele remexia os papéis e agitava a caneta enquanto falava. O Senhor Respeitável estava invulgarmente nervoso. Não havia dúvidas.

 

- Reparem que me refiro a doentes com doenças terminais e não a doentes na fase terminal da doença. Quando formos autorizados a definir quais as doenças que podem ser consideradas terminais, tencionamos virar-nos para outro lado e determinar quando é que o tratamento dessas situações deixa de gerar custos. Precisamos de ter o direito de recusar a cobertura a esses doentes, que ocupam camas de hospital e exigem cuidados dispendiosos de especialistas, quando já não há esperança para eles. É claro que, quanto mais depressa nos conseguirmos envolver nesse processo, melhor será. O clima legislativo é excelente, neste momento. O Tristão conseguiu trazer de novo o agente para o grupo, portanto ele não será problema. Há anos que andamos de volta disto: convencer os legisladores e o público de que, já que somos nós a pagar as contas, devemos ser nós a tomar as decisões quanto aos tratamentos. Agora, parece que estamos prontos a comer uma fatia muito maior. Lancelote, quer continuar com a sua parte?

 

Lancelote pôs de lado o seu charuto meio fumado e pigarreou. Nunca acendia um charuto durante uma sessão da Roundtable, mas era raro andar sem ele. Fez um sorriso travesso a Gawain e um sinal de assentimento. Tristão reparou que Gawain quase não reagiu.

 

- A parte hábil deste programa - explicou Lancelote - é uma rede de infra-estruturas a que chamamos centros paliativos, CPs. São locais para os quais os doentes que consideramos em fase terminal podem ser enviados e onde lhes serão prestados cuidados de saúde não dispendiosos. Uma espécie de hospícios... Algo na senda do hospital e do lar, mas cuja gestão é muito menos dispendiosa. Nada de tratamentos, nada de soros, nada de terapias de qualquer espécie. Só analgésicos, administrados vinte e quatro horas por dia, tudo dentro da maior humanidade. E a melhor parte é que vamos avançar com a criação destes CPs e constituir até as empresas que virão a geri-los. Em certos casos, estamos a comprar as instalações que um dia os acolherão.

 

Seguiu-se meia hora de discussão sobre os centros paliativos, e depois Merlim tomou a palavra.

 

- Esta reunião tem sido formidável - disse ele, alegremente. - Uma reunião formidável. Bem, tenho o prazer de anunciar que as minhas notícias também são boas. Implementámos o programa de mudança de emprego numa base limitada, e esta noite estou pronto para apresentar os resultados e as projecções dos primeiros dez casos. Em todos eles os segurados perderam o emprego. Uns encontraram novos empregos em empresas que colaboravam com outras seguradoras não pertencentes à Roundtable. Outros, conforme a lei permite, continuam a pagar os seus prémios durante dezoito meses. Outros, ainda, recorrem à Medicald. Mas, na maior parte dos casos, já estamos fora da jogada como seus seguradores. Já largámos o anzol, por assim dizer.

 

Loomis não se lembrava de nada com o nome de ”programa de mudança de emprego”. Aparentemente, Merlim servia-se do dinheiro e da influência da Roundtable para forçar o despedimento dos segurados que ficavam mais caros à companhia. Se assim fosse, era a primeira vez que esses indivíduos constituíam o alvo do grupo. Kevin leu o seu exemplar da folha impressa que Merlim distribuíra à volta da mesa. Qualificações” - os factores utilizados pelo computador para seleccionar os casos. Por baixo, viam-se dez nomes, e ao lado de cada um figurava uma seguradora, um diagnóstico e uma quantia em dólares. A quantia mais pequena era de duzentos mil dólares e a maior de um milhão e setecentos mil dólares. O quarto dos dez nomes era um subscritor da Crown Health and Casualty.

 

       Subscritor Doente Seguradora Diagnóstico

       Importância

  1. DeSenza Ryan Elizabeth

       Crown

       Lesão cerebral

       300 000 dólares

 

Kevin olhou para o nome, fazendo um esforço para se manter impassível. Beth DeSenza trabalhava na linha de produção de uma grande fábrica de confecções à saída da cidade.

O filho, Ryan, sofrera uma paragem cardíaca e o seu cérebro fora afectado depois de ter sido atingido no peito com uma bola de basebol. Graças à ampla cobertura da sua companhia de seguros, Ryan estava internado no centro de reabilitação mais conceituado - e mais caro - da zona, especializado em lesões cerebrais. Kevin fora responsável pela realização do acordo de cobertura com o sindicato. Beth fora a única segurada que, desde que Kevin trabalhava na Crown, se dera ao trabalho de descobrir o seu nome e de lhe agradecer o papel que ele tivera na prestação de cuidados de saúde ao seu filho. Incluíra uma fotografia de Ryan antes do acidente, em pose de morcego, com um sorriso acanhado e um boné de basebol que parecia duas vezes maior do que ele.

 

Obrigada, Mister Loomis, escrevera ela. Obrigado a si e à Crown por terem possibilitado o tratamento do Ryan.

 

Nancy levara o bilhete e mandara emoldurá-lo. Agora, a cobertura do filho de Beth, pelo menos ao nível assegurado pela Crown, acabara. O prémio da apólice individual era extremamente caro - decerto demasiado caro para que ela continuasse a pagar a cobertura, mesmo durante o tempo permitido por lei. Tristão ficou desolado.

 

- ... pelas primeiras indicações - dizia Merlim -, desde que o programa não seja demasiado utilizado, assim que aumentarmos o nosso ritmo, as nossas companhias poderão gerar poupanças confortáveis de três a seis milhões de dólares por mês. Não é exactamente uma mina de ouro, mas também não é comida para pombos.

 

Em sinal de apreço, os presentes bateram com as canetas na ponta da mesa.

 

- Não percebo porque é que as companhias detentoras dessas apólices não foram consultadas acerca dessas pessoas antes de elas serem despedidas.

 

Fez-se um silêncio mortal na sala.

 

- Tristão, creio que não percebi o que você disse - respondeu Merlim, por fim.

 

O seu tom e a sua expressão eram acrílicos, mas Kevin sentiu o sangue a pulsar nos ouvidos. Tudo parecia estar a acontecer instantaneamente. Os seis rostos fixos nele pareciam máscaras de cera... com expressão mas sem vida.

 

Depois, de repente, o olhar de Kevin foi atraído por um movimento. Gawain, sentado à sua frente, abanava a cabeça quase imperceptivelmente. Os seus olhos, colados aos de Kevin, faiscavam. Loomis viu os seus lábios mexerem-se e ouviu a palavra não pronunciada, como se esta lhe tivesse sido gritada ao ouvido.

 

Não!

 

Com a atenção dos outros concentrada nele, Loomis tinha a certeza que fora o único a aperceber-se do aviso.

 

- Hum... Desculpem - proferiu. - O que eu quis saber foi por que motivo é que você não pediu mais nomes a cada um de nós.

 

- Ah, compreendo - respondeu Merlim. - Obrigado pelo seu esclarecimento. Eu percebi mal.

 

- Talvez eu possa responder à sua pergunta, Tristão, porque fui eu que criei o programa para seleccionar os clientes - disse Kay. - As decisões, do ponto de vista empresarial, são tomadas por computador, para que sejam o mais racionais e desapaixonadas possível. Como pode ver pela lista de factores considerados, muitos dos elementos são avaliados antes de ser feita uma selecção. Milhares e milhares de segurados são sujeitos a triagem, de cada vez. Seria impossível para todos nós utilizar este método regularmente, e decerto não com o mesmo rigor de um computador.

 

A atenção dos cavaleiros tinha-se desviado para Kay, com excepção de Gawain, que continuava de olhos fixos em Kevin. O seu rosto estava tenso e pálido. O aviso não verbalizado continuava a faiscar no seu olhar.

 

- Compreendo - disse Tristão, forçando um sorriso. Compreendo perfeitamente.

 

A reunião da Roundtable terminou sem mais incidentes. Os cavaleiros saíram da Suite Stuyvesant pela ordem inversa da sua chegada. Kevin pensou em interceptar Gawain e exigir uma explicação. Mas não sabia o número do quarto do homem, e o perigo de ser descoberto tão próximo da sala de reuniões era demasiado grande. Optou por voltar para o quarto, vexado.

 

Kelly, só de calcinhas, estava deitada na cama a ver um filme e a comer uvas que tinham sobrado do jantar. Parecia totalmente descontraída.

 

Kevin atirou-lhe o vestido.

 

- Vá-se embora - disse ele.

 

- Mas você tem direito a ficar comigo até de manhã. Kevin tirou uma nota de cinquenta dólares da carteira e enfiou-lha na mão.

 

- Eu não direi a ninguém e quero que você faça o mesmo. Tenha cuidado ao sair. Até à próxima.

 

Kelly atirou o vestido para o lado, pôs-se em bicos de pés e beijou-o avidamente. Kevin apalpou-lhe o seio. O mamilo inchou instantaneamente. O corpo macio e elegante da jovem misturou-se com o seu.

 

- Eu desejo-te - segredou ela.

 

Durante um minuto, os pensamentos de Kevin foram só para ela. Ainda não cedera e não fizera amor com ela. Mas sabia que, quanto mais tempo passasse na sua companhia, mais depressa chegaria esse momento. Talvez fosse aquilo de que precisava verdadeiramente, pensou. Não encarar os demónios que, de repente, o atormentavam, mas, antes, fugir-lhes.

 

- Eu desejo-te - gemeu ela outra vez.

 

Ainda em bicos de pés, a rapariga pegou no pénis entumescido de Kevin e meteu-o entre as suas coxas.

 

- Quero tanto que me penetres.

 

Kevin pegou-lhe pelos ombros e empurrou-a. A rapariga fazia parte deles, era uma extensão da Roundtable. Um dos nomes-sombra. O que ela estava prestes a tirar-lhe ainda o ligaria mais à sociedade. Talvez ela fosse recompensada por conseguir obrigá-lo a fodê-la.

 

Vê, Tristão? Você é capaz, dir-lhe-ia a Roundtable. Você é capaz de tudo!

 

- Saia. Já - ordenou ele.

 

A rapariga mostrou-se verdadeiramente ofendida. Kevin teve vontade de dar uma gargalhada ao ver como ela era hábil. Enfiou o vestido pela cabeça e virou-se de costas, para Kevin lhe puxar o fecho.

 

- Para a próxima? - perguntou ela.

 

- Veremos. Agora saia, por favor.

 

Kevin esperou que a porta se fechasse, depois deitou um pouco de bourbon num copo e bebeu-o de um trago. Até ver o nome de Beth DeSenza na folha de Merlim, nenhum dos programas da Roundtable lhe criara qualquer dilema moral. Mas eram programas que envolviam leis e as pessoas que as faziam. O chefe do departamento de seguros era um patife, um vaidoso, cheio de motivações políticas: nascera para aquilo, na opinião de Kevin. A sabotagem das empresas fazia todo o sentido, dado o clima de canibalismo vigente no ramo segurador. Mas este caso era diferente. Tratava-se de uma pessoa de carne e osso. Kevin aguentava ficar atrás das linhas de fogo, a fustigar o inimigo. Mas este era um combate corpo a corpo. E, de repente, o inimigo tinha um rosto.

 

Kevin estava desorientado. Agora percebia tudo. E não podia fazer nada, excepto adaptar-se. O preço daquela viagem era uma casa com doze divisões e o futuro assegurado para ele e para a família. Tinha pago o bilhete. Agora não. Não tinha alternativa, excepto aguentar e tirar o melhor partido da situação. Quando Kelly voltasse a fazer-lhe a pergunta, ele estaria pronto fosse... para o que fosse.

 

Deitara mais dois dedos de bourbon no copo quando o telefone começou a tocar.

 

- Tristão - disse ele.

 

- É o Gawain - disse o cavaleiro em voz baixa. - Pode falar?

 

- Posso, estou sozinho.

 

- Mandou a sua rapariga para casa?

 

- Mandei.

 

- Meu Deus. Você está a arranjar sarilhos. A minha está no outro quarto.

 

- O que se passa? Porque é que me mandou calar na reunião?

 

- Eu sei o seu nome. Você sabe o meu?

 

- Não.

 

- Stallings. Jim Stallings. Sou vice-presidente da Interstate Health Care, em Manhattan.

 

Kevin conhecia bem a gigantesca empresa de cuidados de saúde. Uma vez comparecera a uma entrevista para se candidatar a um lugar no departamento de vendas.

 

- Continue - pediu ele.

 

- Loomis, temos de falar. Amanhã, ao meio-dia em ponto. Pode aparecer?

 

- Posso, mas...

 

- Em Battery Park. Nos bancos do lado do Hudson. Certifique-se de que não é seguido.

 

- Mas...

 

- Por favor, Loomis. Espere até amanhã ao meio-dia e tenha cuidado.

 

- Uma coisa - disse Kevin, à pressa. - Viu a fotografia daquela mulher, a Della-Rosa?

 

- Claro que vi.

 

- E acha que ela é a Desiree?

 

- Nunca tive dúvidas acerca disso. Você é que tinha. Eu não tinha a certeza se você era como eles ou não. Mas, depois desta noite, quero dar-lhe a oportunidade de você ser um intruso, como eu. Na realidade, estou apostado nisso.

 

Durante alguns segundos, Kevin ficou à escuta do sinal de desligado. Depois, pousou o auscultador e aproximou-se da janela. Catorze andares mais abaixo, o trânsito da madrugada fluía lentamente pelas ruas quase desertas. Um táxi parou mesmo por baixo da sua janela. Uma mulher de vestido vermelho justo e reluzente saiu do hotel e entrou no automóvel. A mulher sem nome.

 

O táxi aproximou-se da esquina e depois virou, na direcção do centro da cidade. Kevin teve a sensação de que vira a rapariga, a quem acariciara o corpo rijo e magnífico, pela última vez. Olhou para o relógio. Onze horas. Faltavam onze horas para Battery Park.

 

Às três e meia da manhã, Maura desistiu de tentar dormir, saiu do pequeno quarto de hóspedes em bicos de pés e foi para o escritório. Pela porta entreaberta, viu Harry a dormir no seu quarto. Depois de voltarem do C.C.’s Cellar, admitira que ele lhe pedisse para dormirem juntos. Harry gostava dela. Isso era óbvio. Mas havia razões - muitas razões - para que ele quisesse manter uma certa distância entre ambos. Uma das principais era o facto de ela ter cedido à sua frustração e aos seus fantasmas e ter bebido nessa tarde.

 

Tanto lhe fazia, pensou. Também ela não estava preparada para um envolvimento emocional. Mesmo assim, já não se lembrava da última vez em que um homem olhara para ela. E, o que era mais importante, Harry era um dos homens mais simpáticos e decentes que ela conhecia. Seria agradável enroscar-se nos seus braços só por uma noite e deixar correr as coisas.

 

Acendeu a luz do escritório e passou os dedos pelos livros da estante, à procura de qualquer coisa leve, muito leve. Depois pensou que talvez fosse preferível um livro pesado. Tirou um livro de poemas de bolso de Lorde Byron. Evelyn DeliaRosa, lia-se no interior da capa, numa caligrafia perfeita. Evie era, evidentemente, outra razão válida para que Harry mantivesse a distância entre ambos. Maura fechou o livro e voltou a arrumá-lo. Harry e ela tinham passado por tantas vicissitudes desde a morte da mulher, que custava a crer que esta tivesse ocorrido apenas há algumas semanas.

 

Maura examinou as prateleiras mais uma vez e por fim decidiu-se por um livro sobre a Irlanda. Dentro de seis horas, ela e Harry iriam encontrar-se com Pavel Nemec. Maura desejava ardentemente que a sessão resultasse. Se conseguisse lembrar-se do rosto que estava fechado no seu subconsciente, isso compensaria a humilhação que sentia por ter cedido ao seu vício. Nunca fora hipnotizada e não fazia ideia se o facto de não ter dormido na noite anterior seria uma vantagem ou uma desvantagem. Por outro lado, se o lendário húngaro fosse tão bom como a reputação de que gozava, isso talvez não fosse importante.

 

Tal como Harry previra, assim que Nemec ouviu o seu pedido, arranjou logo tempo para os receber.

 

- O que é que você fez exactamente pelo filho dele? perguntou Maura, depois de Harry lhe ter falado da marcação.

 

- Pelo Ricard? Nada, verdadeiramente. Fiz-lhe apenas um exame físico para ingressar num encontro de músicos. Ele toca trompa.

 

- E?

 

- E descobri um pequeno inchaço de que não gostei, debaixo do braço.

 

- Era cancro?

 

- A doença de Hodgkin. Graças a Deus, estava numa fase inicial. Já vai fazer seis anos, portanto o rapaz foi dado como curado.

 

Harry disse isto com a mesma naturalidade com que Maura podia falar de misturar tintas. Mas Maura sabia bem como eram as inspecções das escolas e dos encontros. Conhecia-os o suficiente para saber que a maioria dos médicos se limitava a auscultar o coração dos jovens. Mas Harry não tratara o filho de Pavel Nemec de uma forma tão apressada. Harry portara-se como... Harry.

 

Maura reflectiu no que ele lhe contara acerca do drama que o envolvia no hospital: o telefonema do amigo Atwater a pedir-lhe que se demitisse; a audição que estava a ser preparada para decidir se ele seria ou não autorizado a exercer medicina naquele local.

 

Harry Corbett não merecia aquele tipo de tratamento, pensou, irritada. Passou os dedos pelo seu novo cabelo penugento e pelos extremos ainda sensíveis da cicatriz da craniotomia. Ele também não merecia o tratamento que ela lhe dera. Voltar a beber, fora petulante, imaturo e estúpido. Tinha sorte por ele não ter pegado numa garrafa e não a ter posto na rua.

 

- Mais nada - disse ela entre dentes, sabendo que já faltara muitas vezes àquela promessa. - É isso, minha senhora. Nem mais uma gota.

 

Folheou algumas páginas sobre a paisagem rural irlandesa e sentiu as pálpebras pesadas. Perguntou a si própria o que sentiria ao ser hipnotizada, se seria igual a tantas outras coisas. A Torre de O’Brien no cimo dos rochedos de Moher, em County Clare, começou a ficar turva, e depois desapareceu.

 

Mais nada. As palavras ecoaram na sua mente. Nem mais uma gota...

 

O aroma de café acabado de fazer foi direito à sua consciência. Maura entreabriu os olhos.

 

A luz pálida da manhã entrou no escritório, filtrada pelos prédios. Harry estava sentado na poltrona ao lado do sofá. Tinha umas calças de algodão e uma toalha ao pescoço, e era óbvio que acabara de fazer alguns exercícios. Os seus cabelos pretos brilhavam com a transpiração e a cor na face tornava-o mais atraente, apesar do seu aspecto abatido.

 

Sonolenta, Maura estendeu o braço e apertou-lhe a mão.

 

- Que horas são? - perguntou.

 

- Passa das sete. Ainda temos tempo, se você quiser dormir mais um bocadinho. Estou a ser egoísta ao acordá-la desta maneira.

 

- Então eu vou ser ainda mais egoísta e ficar acordada.

 

- Como se sente?

 

- Sóbria.

 

Maura sabia que esta era a única palavra que ele queria ouvir.

 

- Está pronta para que o seu cérebro seja sondado pelo húngaro?

 

- Estou. O melhor que ele tem a fazer é atrever-se a chegar onde mais nenhum homem chegou.

 

- Ele é um feiticeiro, pelo menos é o que me têm dito. Ouça. A máquina de café de trezentos dólares comprada pela Evie está na cozinha a trabalhar arduamente. A primeira coisa que ela fez depois do casamento foi desfazer-se da minha Mr. Coffee. A dela vai comprar o café sozinha, consegue a mistura perfeita, mói-a, fá-la e serve-a.

 

- Com esse aparato, sou toda papilas gustativas.

 

- Como é que o toma?

 

- Depois de ontem ainda pergunta? Harry sorriu.

 

- Simples - disse.

 

Maura nunca dera muita atenção ao seu aspecto. Um ex-amante afirmara que era assim porque ela nunca fora obrigada a isso. Mas, nesse dia, levou mais tempo a arranjar-se do que era costume: um pouco de maquilhagem, os brincos de esmalte de que Harry gostava e um vestido de algodão, em vez das calças de ganga de marca.

 

Sentia-se entusiasmada com o que a esperava - com medo de que a sessão fosse um fiasco, mas igualmente apreensiva com outras hipóteses. Ao longo dos dois anos e meio da sua espiral descendente, bebera a sério, sem se preocupar com os locais que frequentava nem com as companhias. Agora, perguntava a si própria até que ponto Pavel Nemec seria selectivo ao desatar-lhe a memória. Quase tudo o que estava escondido no seu subconsciente podia muito bem ficar onde estava.

 

Nemec vivia e trabalhava em Upper East Side. Antes de se dirigirem para lá, Harry e ela apanharam um táxi para o consultório, passaram por casa dela para trazer um bloco de papel para desenho, alguns lápis e alguns pastéis, e pelo banco de Harry, onde este levantou mil e quinhentos dólares.

 

- Cancelei outra vez meio dia no consultório e arranjei um substituto para me fazer as rondas no hospital - explicou ele. - Quase todos os meus doentes são bastante fiéis, creio eu. Mas começo a pôr alguns à prova.

 

Maura fez um gesto de compreensão.

 

- Este é o dia - avisou ela. - Este é o dia em que tudo começa a dar uma volta. Confie em mim. Por falar em volta, volte-se para cá um bocadinho. Quero experimentar uma coisa.

 

Harry obedeceu e, passados dois quarteirões, Maura fizera um razoável esboço dele. Quando chegaram ao consultório, o desenho estava bastante bom.

 

- É espantoso - disse ele.

 

- Sei fazer melhor. Mas pelo menos este indica-me que sou capaz. Há uns tempos que não pinto. Por sinal, uma vez passei o Verão em Itália a fazer esboços e caricaturas para os turistas na Piazza Navona.

 

Walter Concepcion já estava na sala de espera, a conversar com a recepcionista, que Maura soube tratar-se de Mary Tobin. Maura ficou satisfeita ao vê-lo outra vez. Nesse dia levava uma T-shirt preta, e ela reparou que os braços dele eram fortes e mais musculosos do que esperava. Walter tinha uma tatuagem no deltóide esquerdo, muito bem feita, que representava uma caveira com uma serpente a sair de um olho.

 

- Telefonaram do gabinete do doutor Erdman no hospital

- disse Mary. - A reunião está marcada para amanhã, às dez horas, na sala de reuniões ao lado do gabinete dele.

 

Harry suspirou.

 

- Acho que vai ter de telefonar aos meus doentes da manhã e cancelar de novo as marcações.

 

- Já o fiz.

 

- Isto é ridículo. Sabe, talvez seja melhor fecharmos o consultório por uns tempos.

 

Os olhos da mulher faiscaram.

 

- Faça isso, e vai ver se eu não arranjo uma dessas bengalas de bambu. Daquelas que tiram a carne à segunda vergastada...

 

- Está bem, está bem. Veremos o que acontece amanhã.

 

- Óptimo. Telefonei ao seu advogado, a informá-lo da hora da reunião. Ele ainda lhe telefona hoje, mas confirmou que lá estará amanhã.

 

- Não havia de estar, a trezentos e cinquenta dólares por hora.

 

- O quê?

 

- Nada, Mary. Nada. Sou eu que estou irritável. Isto passa.

 

- Ainda bem - respondeu.

 

Harry entregou a Concepcion o dinheiro num envelope. Era óbvio para Maura que Harry ainda tinha dúvidas acerca do homem. Mas ela não tinha nenhumas. Walter já lhes fornecera um ponto de partida: já lhes indicara os primeiros passos de um contra-ataque.

 

- Muito bem, estamos combinados - disse Concepcion, guardando o envelope no bolso. - E não se preocupe, Harry. Todo o dinheiro que for gasto terá justificativos, recibos e tudo. Já avançámos desde a noite de ontem. Depois de chegar a casa, telefonei para cerca de quarenta serviços de acompanhantes. Disse-lhes que uma mulher chamada Desiree me tinha proporcionado a noite da minha vida quando fui à cidade, há seis meses. Infelizmente para mim, foi um amigo que me tratou de tudo e eu não consegui apanhá-lo para ele me dar o nome do serviço de acompanhantes. O dinheiro não era problema, mas só se fosse a Desiree. Pareceu-me que três dos serviços a conheciam. Disseram que tentariam entrar em contacto com ela e que eu voltasse a telefonar. Um quarto serviço, Elegance, disse que ela já não trabalhava para lá. É a esse que eu me vou agarrar.

 

- Porquê esse? - perguntou Maura.

 

- Porque a mulher com quem falei começou por me dar respostas vagas acerca de Desiree. Pediu-me o número do telefone e disse que eu seria contactado. Cerca de uma hora depois, telefonou outra mulher. Disse que se chamava Page. Creio que ela é a dona. Brincámos ao gato e ao rato durante um certo tempo. Eu falava em dinheiro sempre que podia. Ela dizia que não conhecia nenhuma mulher chamada Desiree sempre que podia. Por fim, eu disse-lhe que sabia que a Desiree tinha morrido e que eu só queria umas informações a respeito dela. Ofereci-lhe quinhentos dólares só para falar comigo pessoalmente, durante meia hora. Nem mais um minuto. E ela não era obrigada a responder a perguntas sobre a Desiree, se não quisesse. Eu tinha a certeza que ela ia recusar. Mas, quando ela voltou a dizer que não conhecia a Desiree, eu percebi que não era verdade. Encontramo-nos amanhã de manhã.

 

- Isso parece prometedor - disse Maura.

 

- O que me parece é que vamos ficar sem quinhentos dólares.

 

- Confie em mim, patrão - respondeu Walter, cujo tique ao canto da boca disparou várias vezes. - Talvez ainda não saiba, mas este que está aqui à sua frente é o detective com maior capacidade negocial do século. Vamos estando em contacto. Talvez possamos encontrar-nos amanhã à noite para comparar dados. A propósito, Maura, vou saber quando é que há uma reunião dos AA para lá irmos, se você ainda estiver pelos ajustes.

 

- Estou pronta.

 

- Você tem o número de telefone da minha casa - notou Harry. - Fale-me assim que souber alguma coisa.

 

Hesitou e depois acrescentou:

 

- Walter, desculpe estar a fazê-lo passar um mau bocado. Tentarei evitar que tal aconteça.

 

Concepcion deu um beliscão no próprio braço.

 

- Ouça, isto é pele de cão, homem - disse ele. - Além disso, ainda não fiz nada, excepto pedir-lhe dinheiro. Quando produzir alguma coisa, e hei-de produzir, espero que me deixe em paz.

 

Walter apertou a mão a ambos, disse adeus a Mary Tobin e saiu.

 

- Venha. Podemos apanhar um táxi na Quinta Avenida - alvitrou Harry.

 

- Está bem - disse Maura, refreando um súbito e inexplicável ataque de nervos. - Vamos a isso.

 

Encaminhou-se para a porta e depois virou-se para trás, dizendo:

 

- Faça figas, Mary. Vamos a casa do feiticeiro.

 

Numa placa de latão discreta, por baixo da campainha, lia-se:

 

  1. NEMEC ALTERAÇÕES DO COMPORTAMENTO !

 

Pavel Nemec recebeu-os calorosamente e serviu-lhes chá e bolos na sala de espera vitoriana, forrada de madeira, do seu consultório. Harry e ele passaram algum tempo a falar do que acontecera à família de um e do outro durante aqueles anos, desde a última vez que se tinham encontrado. Nemec tinha sessenta e poucos anos, pelos cálculos de Maura, o cabelo grisalho e era muito débil, mas capaz. Maura achou-o encantador e despretensioso.

 

Mesmo assim, a ansiedade que começara a apoderar-se dela no consultório de Harry agravou-se. Esforçara-se tanto por se lembrar da cara do homem de bata branca! Mas quanto mais tentava, mais difusas se tornavam as suas recordações. Naquele momento, perguntava a si própria se, depois do delirium tremens, da operação, e dos medicamentos que tanto tinham distorcido a realidade, o homem existira de facto.

 

As mãos tremiam-lhe um pouco. Desistiu de tentar pegar na chávena e ficou tranquilamente a ouvir Harry explicar a situação em que se encontravam. Nemec também ouviu com toda a atenção. Mas, a meio do relato de Harry, levantou-se e começou a passear lentamente atrás da cadeira dela, parando uma ou duas vezes e pondo-lhe as mãos nos ombros.

 

- Não tem motivo para se assustar, Maurie - começou ele em voz baixa. - Nenhum.

 

Maura ficou espantada. Maurie, não Maura. Não havia dúvidas de que fora o que ele dissera. Só o pai a tratara por Maurie. E só até aos dez anos.

 

Harry calou-se. Maura apercebeu-se nitidamente dos ruídos do trânsito que vinham da rua. Estava a acontecer, concluiu ela. Nem divã, nem pêndulo, nem música New Age, nem utensílios de prestidigitação. Pavel Nemec estava a trabalhar, naquele preciso momento.

 

Deu a volta para ficar de frente para ela e pôs-lhe as pontas dos dedos nas têmporas. Maura tinha os olhos fechados, mas a sua mente estava a discorrer. Imagens e rostos sucediam-se em catadupa, atravessando-lhe o pensamento como um vídeo em busca rápida. Rostos da sua infância: de professores, colegas de escola, Tom, a mãe... casas e salas, cenas rurais e ruas citadinas. Maura associou-as facilmente a alguns quadros, e não a outros... Depois, de repente, uma cena começou a repetir-se. Era o pai, com um copo cheio na mão, a virar-se para ela. Os olhos ramelosos eram frios e desdenhosos. A sua fala era grossa e entaramelada. Cuspia saliva quando avançou para ela.

 

Tu não prestas, Maurie... Não tens emenda e não prestas...

 

Não consegues fazer nada de jeito a não ser dares-me dores de cabeça. Tal como a tua mãe...

 

Depois do meu casamento com ela, foste o pior erro que eu cometi... De facto, se não fosses tu, eu nem teria sido obrigado a casar com ela...

 

- Calma, Maurie - disse Nemec com uma firmeza suave.

- Ele nunca mais voltará a falar consigo assim... Ele estava doente. Mais nada... Você nunca mereceu que lhe falassem desta maneira. Ele não conseguiu controlar-se.

 

Nemec pôs-lhe as mãos tranquilizadoras atrás dos ouvidos.

 

- Você fez tudo para lhe ser agradável... Ele detestava-se demasiado a si próprio para mostrar amor por alguém... Ele nunca pensou no que estava a fazer-lhe... Deixe isso, Maura... Deixe isso para sempre.

 

O turbilhão de imagens começou a dissipar-se. Maura sabia que tinha os olhos fechados, mas via o misticismo que se libertava da camisola cinzenta de Nemec, que andava de um lado para o outro à sua frente. A sua preocupação desaparecera: o manto de repulsa por si própria, que cobrira a sua vida durante tanto tempo, fora retirado, legando-lhe uma incrível sensação de tranquilidade. O pai sempre a ferira no seu orgulho, sempre a vexara. Nem a notícia da sua morte destruíra as terríveis sementes que ele lançara. Ao longo da vida, sempre que o êxito estivera ao seu alcance, a insegurança patológica de Maura levara-a a arranjar maneira de o sabotar e destruir.

 

Não prestas para nada... Que idade teria quando ele começou a dizer-lhe aquilo? Sete? Oito anos?

 

Agora, finalmente, saberia que nunca fora ela própria.

 

Nem uma só vez. Nunca merecera o que Arthur Hughes lhe fizera. E, tal como Pavel afirmava, ele nunca mais poderia voltar a ofendê-la.

 

Ainda de olhos fechados, viu Nemec aproximar-se da mesa e pegar no seu bloco de desenho e no lápis de carvão. Depois, sentiu que ele lhos pousava no regaço.

 

Temos trabalho para fazer. Maura ouviu a sua própria voz, mas sabia que não falara. Agora és livre, Maura, livre para veres o que precisa de ser visto...

 

Mais tarde, Harry dir-lhe-ia que ela nunca abrira os olhos, senão quando acabara o desenho. Descreveu o modo estranho como o lápis se movia no papel e o processo desconexo, mas absolutamente unificado, através do qual o rosto do homem ganhou forma. Falou-lhe no momento em que ele próprio o reconheceu, enquanto ela concluía o sombreado com o lápis a carvão e com o dedo.

 

Maura espreguiçou-se e relaxou o pescoço. Sentia-se descontraída e renovada, como se tivesse acabado de sair de uma fonte de água mineral quente. Sabia que fizera um desenho do homem que matara Evelyn Della-Rosa. Também sabia que Pavel Nemec a ajudara como nenhum terapeuta ou conselheiro o teria feito. Havia deficiências na percepção de si própria hiatos pelos quais ela nunca fora responsável, que continuavam a alimentar o seu comportamento autodestruidor, que a tinham obrigado, de vez em quando, a faltar às promessas que fazia a si mesma.

 

Mais nada... Nem mais uma gota...

 

Abriu os olhos e olhou para o esboço. Depois desenhou o alfinete de gravata do homem e pintou-o de verde com laivos dourados. Atrás da sua cadeira, Pavel Nemec bebia chá.

 

- Como é que consegue? - perguntou ela. Ele sorriu-lhe ternamente e encolheu os ombros.

 

- Os meus encontros com os clientes nem sempre são assim tão bem sucedidos. Há dias em que é como se eu atravessasse um denso nevoeiro. Noutros, como hoje, vejo com uma nitidez incrível. Creio que estava à minha espera há algum tempo, Maura. Talvez há anos.

 

- Fez alguma coisa pelo meu vício da bebida, não fez?

 

- Não, mas você fez. E com muita força, devo acrescentar. Maura mostrou o desenho a Harry. Tinha os olhos marejados de lágrimas.

 

- Consegui - disse ela.

 

- Eu sei que conseguiu. Está extraordinariamente parecido.

 

- Como é que sabe?

 

- Porque o vi. Exactamente o homem que você desenhou. Ele esteve sempre à porta do quarto enquanto eu estive lá dentro, à espera de uma oportunidade para acabar o que tinha começado quando pediu o IV para a Evie.

 

- À porta do quarto?

 

- A limpar o chão, a ouvir um Walkman. O tipo de pessoa para a qual olhamos vezes sem conta sem a vermos verdadeiramente. As enfermeiras não o viram entrar no piso, depois de eu sair, porque ele não entrou. Já lá estava. Saiu antes de eu voltar.

 

- Tem a certeza? - perguntou Maura.

 

Harry examinou o desenho durante mais alguns segundos.

 

- Nunca estive tão certo na minha vida - afirmou. - Vocês dois fazem cá uma equipa!

 

Maura aproximou-se do homenzinho discreto e beijou-o na face.

 

- E você nem sabe da missa a metade - disse ela.

 

O dia estava quente em Nova Iorque. Ao fim da manhã, ondas de ar saturado de humidade elevavam-se do pavimento e as crianças abriam as bocas de incêndio. Kevin Loomis saiu do seu gabinete, com ar condicionado, às dez e meia para uma viagem até Battery Park, um oásis à beira-rio na ponta mais meridional da ilha, na confluência do Hudson e de East River. Para corresponder ao conselho de James Stallings e certificar-se de que não era seguido, planeara cuidadosamente todos os seus passos.

 

Logo de manhã, tivera uma reunião de quarenta e cinco minutos com os oito executivos que constituíam a equipa de planeamento do Burt Dreiser. E, embora não tivesse acontecido nada de especial durante a sessão, Kevin sentira-se permanentemente desconfiado e detectara duplas intenções naquilo que Dreiser dizia ou fazia. Quando saiu com Brenda Wallace daquela reunião marcada há tanto tempo e foi almoçar, transpirava por motivos que não tinham qualquer relação com o tempo.

 

Evelyn Della-Rosa fora assassinada, e James Stallings, o outro cavaleiro que ela conhecera, estava aterrado.

 

Eu não tinha a certeza se você era como eles ou não... O que diabo queria Stallings dizer com aquilo?

 

Loomis atravessou a rua contra a luz, evitando uma série de motoristas de táxi enfurecidos. Depois entrou numa pequena camisaria. Era raro haver mais de um ou dois clientes na loja, de cada vez, e, naquele momento, só o dono lá estava. Desde que fazia parte da Roundtable que Kevin lá ia regularmente. Os gabinetes de provas ficavam nas traseiras, junto de uma porta que dava para uma rua estreita. Kevin encomendou uma camisa de cento e cinquenta dólares, deixou que lhe tirassem as medidas e depois deu uma desculpa para sair pela porta de trás. Em seguida, apanhou um táxi para East Side e percorreu vários quarteirões a pé até chegar a uma estação de metropolitano, escondendo-se com frequência nos umbrais das portas para espreitar a rua atrás de si. A paragem de Battery Park ficava no fim da linha. Kevin chegou com dez minutos de avanço.

 

Ainda nervoso com a hipótese de estar a ser seguido ou vigiado, aproximou-se de um parque infantil, parando de vez em quando junto da vedação alta. Havia vinte ou mais crianças a andar de balouço, a subir às barras, a andar nos balancés, a rir e a gritar, deliciadas. Kevin pensou nos seus próprios filhos e na vida em que estavam prestes a entrar: uma casa fabulosa com um quarto para cada um e terreno suficiente para um enorme conjunto de balouços e talvez mesmo para uma piscina, numa comunidade suburbana impecável, com escolas de primeira categoria e um futuro sem limites.

 

A luz do Sol projectava-se na água. A sul, a Estátua da Liberdade erguia-se na atmosfera abafada. Kevin olhou outra vez à sua volta e seguiu para norte, na direcção da avenida arrelvada. Era meio-dia em ponto. Com o casaco no braço, passou por meia dúzia de bancos, todos ocupados. Os empregados de escritório saboreavam o seu almoço; uma mendiga dormia em cima de uma almofada feita de jornais; duas jovens mães embalavam os filhos adormecidos nos carrinhos; pares de adolescentes abraçavam-se, esquecidos de tudo excepto um do outro. Tão normal.

 

- Loomis. Aqui.

 

Stallings, também com o casaco no braço, fez-lhe sinal da sombra de um bordo centenário. Tinha a pasta no chão, entre os pés. A tensão de que Kevin se apercebera no homem, durante a reunião da Roundtable, era ainda mais visível nesse dia. Olhava à sua volta, nervoso, e estava constantemente a humedecer os lábios com a língua.

 

- Tem a certeza de que não foi seguido? - perguntou ele.

 

- Tenho. O que o preocupa?

 

- Qualquer deles: o Lancelote, o Kay, o Galaaz, o Merlim. Ou alguém que eles tenham contratado. Merda, Loomis, não sei o que hei-de fazer. Não posso acreditar que isto esteja a acontecer.

 

A apreensão do homem era contagiosa. Ainda sem saber o que estava a passar-se, Loomis sentiu o pulso mais acelerado.

 

- Você tem de se acalmar. Apetece-lhe andar?

 

- Não. Não, este é um bom sítio. Vamo-nos sentar aqui mesmo. Encoste-se à árvore e mantenha-se de olho alerta em alguém que nos preste uma atenção exagerada.

 

Stallings tinha olheiras fundas e a pele descorada estava coberta por uma camada de suor. Parecia um animal acossado.

 

- O Lancelote veio ter comigo há dois dias - disse ele, assim que ambos se sentaram na relva, junto da árvore. Chama-se Pat Harper. Conhece-o fora da Roundtable?

 

- É da Northeast Life. Joguei golfe com ele uma vez.

 

- Bem, ele veio ter comigo depois do trabalho e fomos até ao Connecticut. Ele tem um Rolls.

 

- Isso condiz com ele. Não sei nada a seu respeito, mas os charutos agoniam-me e ele joga golfe muito melhor do que eu. Além disso, não sei mais nada acerca dos cavaleiros.

 

- Nem eu. O segredo é o objectivo. Eles não se importam que saibamos quem eles são, mas querem dar-se ares de muito importantes. Estão envolvidos nessa mística.

 

- Você continua a dizer ”eles”. A que se refere?

 

- A todos, mesmo ao Persival, creio eu. Eles estão de um lado da vedação. Você e eu estamos doutro. Durante algum tempo, julguei que era só eu, que, apesar de ter entrado depois de mim, você era um deles. Sempre me pareceu tão confiante, tão sintonizado com tudo o que estava a acontecer. Mas ao ver como eles o apertaram por causa da Desiree, comecei a perceber que você também era um intruso. Depois, ao ouvi-lo ontem à noite, tive a certeza.

 

- Tudo o que posso dizer-lhe é que os únicos contactos que tenho tido com a Roundtable ou com os cavaleiros têm sido nas nossas reuniões. Falo com o meu patrão, evidentemente. Foi ele que me escolheu para lhe suceder. Mas mais nada. E nunca falamos da Roundtable em serviço: só no barco dele.

 

Stallings olhou para o rio e suspirou, devagar. Era como se estivesse pronto a atirar-se de um rochedo.

 

- O seu patrão já alguma vez lhe disse que eles estão a matar gente? - perguntou ele, de repente.

 

Kevin recuou e olhou para o homem, esperando que ele estivesse a brincar.

 

- Ouça, calma, Jim - disse ele, tentando manter uma voz tranquila. - Tenho a certeza de que não é o que você julga.

 

Stallings soltou uma gargalhada sem alegria.

 

- É exactamente o que eu penso. O Lancelote começou por me dizer que estavam todos muito satisfeitos com o trabalho que eu estava a fazer, sobretudo com a legislação que eu criei sobre o projecto dos cuidados terminais. Disse que, como a actividade da Roundtable era muito pouco ortodoxa... Foi o termo que ele usou: muito pouco ortodoxa... Todos os membros tinham de passar por um período experimental. Agora o meu terminara, e eu estava em condições de beneficiar muito a minha companhia, e eu próprio.

 

Stallings voltou a deitar um olhar furtivo à sua volta. Em seguida, abriu a pasta, retirou uma folha de computador e deu-a a Kevin. Era uma lista de ”qualificações” muito semelhante à que Merlim apresentara na reunião - os factores que tinham levado a que Beth DeSenza fosse escolhida pelo microchip e perdesse o emprego. Só que esta lista de critérios tinha o título de Hospitalizados Actualmente.

 

- Você sabe das análises previsionais, não sabe? - perguntou Stallings.

 

- É aquilo que o Merlim anda a falar, a estimativa do que uma doença custa à empresa durante a sua vida inteira.

 

- Exactamente. Bem, este programa tem um custo futuro mínimo de quinhentos mil dólares. O Lancelote quer que eu verifique os nossos bancos de dados todas as semanas e descubra dois ou três nomes. Sida, cancro, problemas cardíacos crónicos, doenças mentais, traumas múltiplos, doenças de sangue, fibrose cística, e até bebés nascidos com menos de um certo peso.

 

- Decerto não faltam situações que custem meio milhão de dólares ao longo do tempo.

 

- Muito mais do que isso, por sinal. Um milhão, ou mesmo dois. Coisas como substituição de medula óssea e transplantes de fígado. Um doente mental de vinte e cinco anos que precise de estar internado num hospital atinge o milhão antes de chegar aos trinta e cinco anos. E a sua esperança de vida não é muito diferente do normal.

 

- O que acontece aos nomes que você descobre? Stallings mordeu o lábio inferior.

 

- Devo entregá-los em mão a cada um dos outros cavaleiros, excepto você, ao que parece. Creio que você ainda se encontra no período experimental. Depois, transfiro para um banco suíço o equivalente a vinte e cinco por cento do total que os cuidados de saúde do doente custariam à minha companhia. O Lancelote explicou que os fundos que eu transfiro vêm de pagamentos feitos a doentes que não existem. Pareceu-me que ele estava muito orgulhoso do sistema, que, segundo ele, foi testado, é seguro e é incontornável. Foram estas as palavras dele: Testado, seguro e incontornável.

 

- Então o que acontece aos doentes?

 

Sir Gawain encolheu os ombros, desanimado.

 

- Morrem - respondeu.

 

- Quer dizer que são assassinados no hospital?

 

- O Lancelote nunca usou essa palavra. A minha companhia geraria poupanças líquidas... é exactamente como ele diz: ”poupanças líquidas”... de cerca de um milhão e meio a dois milhões de dólares por mês.

 

- Oh, não acredito nisso. Deve haver outra explicação.

 

- Então tente arranjar-me outra. Eu tentei. De que outra maneira é que esse dinheiro seria poupado?

 

- E todos os outros fazem o mesmo?

 

- Tanto quanto eu sei.

 

- Isso é uma loucura. Como é que eles podem fazer uma coisa dessas? Como é que eles conseguem safar-se sempre?

 

Stallings guardou a folha na pasta e fechou-a, ligando o dispositivo de segurança.

 

- Não sei. Mas continuo a pensar na Della-Rosa. Acho que quem lhe injectou aquela substância deve ter sido...

 

A voz falhou-lhe. Stallings olhou para um cargueiro ao longe. Perto do sítio onde eles estavam sentados, uma adolescente de calções justos e de top, estava de mão dada com um rapaz alto e desajeitado. Tão normal.

 

- Fez alguma pergunta ao Lancelote sobre a Della-Rosa?

 

- Falei-lhe nela. Mas ele afirmou que, se ela e Desiree fossem a mesma pessoa, ele teria sabido. Perguntei-lhe quem é que tratava dessas coisas nos hospitais e como é que faziam. Ele limitou-se a responder que isso não era do seu departamento.

 

- Deve haver qualquer coisa que você percebeu mal.

 

- Kevin, eles não lhe prometeram um bónus adicional de um por cento de tudo o que a sua companhia poupe, graças ao seu trabalho na Roundtable?

 

- Prometeram.

 

- Também a mim. Bem, o Lancelote esforçou-se particularmente por indicar o que corresponde a um por cento de um milhão ou de dois milhões de dólares por mês. Também disse coisas que todos nós sabemos: que o custo em tratar de doentes com doenças críticas e com doenças terminais entrou numa espiral descontrolada, que todas as nossas companhias estão a ser fustigadas como nunca foram, e que a reforma dos cuidados de saúde, com a redução dos prémios e isso tudo, só está a piorar a situação. Disse que o dinheiro poupado, graças aos nossos esforços, significava mais postos de trabalho e melhores serviços em todo o sector. A dada altura, apresentou uma lista de situações como a sida, cancro metastático e distrofia muscular. ”Verdadeiramente, neste momento, para todos os efeitos, considerando que os médicos não têm tratamentos que permitam curar qualquer destas doenças, quando o diagnóstico é feito, é como se essas pessoas estivessem mortas. Certo?”, disse ele.

 

”E você quer saber o pior, Loomis? O pior é que, à medida que ele falava, eu dava comigo a aceitar aquilo tudo! Dólares e cêntimes, lucros e perdas, contenção de custos, pelo amor de Deus! Deixei de pensar na qualidade de vida dessa gente. Comecei a concordar com tudo o que ele dizia. Diagnóstico, prognóstico. Era assim. Era só o que interessava. Até comecei a pensar como é que mais quinze mil dólares por mês modificariam a nossa vida. Depois, no último momento, antes de assinar, comecei a lembrar-me que ele estava a falar de pessoas. E julguei que era nisso que você estava a pensar quando começou a fazer perguntas ao Merlim sobre o programa, ontem à noite.

 

- Eu conhecia uma das mulheres da lista dele. Stallings fez um sinal afirmativo.

 

- Por isso é que eu lhe fiz sinal para você se calar. Kevin, essa gente significa negócio. Quando voltávamos para a cidade, perguntei ao Lancelote o que aconteceria se eu resolvesse não participar neste programa. Ele disse que não acreditava que acontecesse nada. Explicou que só um cavaleiro se recusara a participar: Sir Lionel. Foi o que sucedeu há cerca de um ano. Mas antes de a Roundtable decidir se ele seria autorizado a continuar, o homem teve uma espécie de envenenamento alimentar e morreu.

 

- Oh, meu Deus! - gemeu Kevin. - Eu sei tudo acerca desse tipo. Quando ele morreu, a companhia dele perdeu o lugar na Roundtable. É provável que lho tenham dado a si. O meu patrão serviu-se dele para ilustrar o que eu custaria à companhia e a mim próprio, se fosse afastado e não fosse substituído. Mas, Jim, o Lionel não morreu de um envenenamento alimentar. Morreu de um acidente coronário após o envenenamento alimentar. Morreu no hospital, tal como...

 

- Continue, diga. Tal como a Evelyn Della-Rosa e sabe Deus quantos mais doentes com doenças caras.

 

Kevin sentiu-se mal.

 

- O Lancelote deu a entender que a morte do Lionel tinha sido arquitectada por eles? Ou seja, disse-o como se fizesse uma ameaça?

 

- Não tenho a certeza. Ele tem aquele sorriso que é indecifrável.

 

Kevin fez um sinal afirmativo. Vivera a mesma experiência com Pat Harper.

 

- Ele não deixou de sorrir quando me contava a história do Lionel. Eu não sabia o que havia de pensar, mas fiquei aterrado. Não sabia o que havia de lhe dizer.

 

- E como é que as coisas ficaram? Stallings voltou a desviar o olhar.

 

- Até amanhã à noite, tenho de apresentar o primeiro conjunto de nomes e transferir os fundos.

 

- Oh, não! E quem é que recebe o dinheiro? Os cavaleiros? O tipo que... que faz isso?

 

- Não sei. Mas se você multiplicar os meus dois ou três clientes por dois ou por três para cada um dos outros, é muito dinheiro.

 

- E todas essas pessoas... morrem?

 

- Estão todas muito doentes. E há tantos hospitais e tantos doentes na cidade que, aparentemente, ninguém repara que está a passar-se qualquer coisa de anormal... Loomis, o que vamos fazer?

 

- Ouça, talvez tudo isto seja uma espécie de teste de fidelidade - respondeu Kevin, em desespero de causa.

 

- Você sabe que não acredita nisso.

 

- Jim, eu não sei nada. Porque é que você não faz uma denúncia?

 

- De quê? De quem? Não tenho provas de nada. Nem sequer o nome de um doente. Além disso, se a Roundtable se expuser, eu sou arrastado. E a minha família? Os meus filhos?

 

- E depois? Apareça na reunião e implore-lhes que parem com isso.

 

- É uma hipótese.

 

- E Sir Lionel e o seu envenenamento alimentar?

 

- Por isso é que eu resolvi arriscar-me a contar-lhe isto tudo. Se formos dois, creio que, enquanto estivermos unidos, poderemos convencer os outros a parar.

 

- Preciso de pensar.

 

- Não demore muito. Amanhã tenho de lhes entregar os nomes e... e não creio que consiga.

 

Stallings olhou para o relógio.

 

- Ouça, tenho de estar no escritório daqui a uns minutos. Por favor, Loomis, por favor. Não diga nada a ninguém até voltarmos a falar. Está bem?

 

- Prometo.

 

- Nem ao seu patrão, nem à sua mulher, nem a ninguém. Stallings estava verdadeiramente assustado. E, se tivesse razão quanto à Roundtable, Kevin percebia muito bem porquê.

 

- Telefono-lhe antes da noite de amanhã - disse Stallings. Trocaram cartões-de-visita e cada um escreveu o número do telefone de casa no verso do seu.

 

- E, Kevin, por favor, espere cinco ou dez minutos depois de eu sair daqui.

 

- Estarei em contacto consigo.

 

Sir Gawain pegou na pasta e dirigiu-se para a estação do metropolitano. Kevin ficou ali, atordoado e sem ver nada. A sua mente recusava-se a analisar o que lhe havia sido contado, reconhecendo apenas que as possibilidades que se abriam a ambos eram inaceitáveis, se a situação fosse aquilo que Stallings julgava.

 

- Senhor! Senhor!

 

Kevin voltou-se, sobressaltado. Dois jovens de calções e de bonés dos Yankees estavam no passeio. Tinham cerca de dez anos, a idade do seu filho Nicky. Cada um calçava uma luva de basebol.

 

- Sim, o que é?

 

- A nossa bola, senhor. Está mesmo junto do seu pé. Pode atirá-la?

 

Kevin pegou na bola gasta e manchada e atirou-a. O miúdo mais alto apanhou-a facilmente. Kevin já vira Nicky apanhar milhares de lances como aquele.

 

- Obrigado, senhor. Belo braço. Belo braço - gritou o miúdo.

 

A noite estava quente e extremamente húmida, o tipo de noite que suscitava invariavelmente versões ainda mais vívidas do sonho. Ray jazia, de barriga para baixo, em cima de um lençol que já estava ensopado. Tinha os pulsos fortemente amarrados e todos os seus músculos estavam tensos. A um certo nível, sabia que tudo aquilo se situava no seu passado, que ele estava apenas a reviver a experiência terrível da sua mente.

 

Mas, como sempre, não conseguia acordar.

 

”... O hiconidol corresponde quase, átomo por átomo, à substância química dos neurotransmissores responsáveis pela dor. Isso significa que eu posso estimular esses nervos todos ao mesmo tempo e quando quiser. Todos. Pense nisso, Mister Santana. Nada de feridas... Nada de espalhafato... Nada de sangue. Apenas dor. Dor, pura e simplesmente. O hiconidol não tem qualquer valor do ponto de vista clínico, excepto para o trabalho que eu faço. Mas, se alguma vez o comercializarmos, pensei que um nome adequado para ele seria Agonil. É um produto incrível, se me é permitido dizer isto. Uma pequena injecção? Uma picadinha. Uma grande? Bem, tenho a certeza que você percebe.”

 

A boca de Ray está seca como um deserto. No seu peito, o coração bate-lhe com tal força que ele tem a certeza que o Doutor está a vê-lo.

 

Por favor, não faça isso, grita ele em silêncio. Por favor...

 

O polegar de Perchek carrega no êmbolo.

 

- Acho que vamos começar por qualquer coisa mais modesta - diz ele. - O equivalente, talvez, a uma pequena brisa fresca nas cavidades dos seus dentes. Estamos interessados na identidade dos agentes mexicanos infiltrados, Mister Santana.

 

Mister Orsino tomará nota dos nomes que o senhor quiser dar. E aviso-o. Alguns nomes que queremos que nos dê já são do nosso conhecimento. Seria muito desagradável para si se o apanhássemos a tentar qualquer espécie de evasiva ou de engano.

 

- Vão-se lixar. E que tal uma evasiva ou um engano? O Doutor limita-se a sorrir.

 

A última voz que Ray ouve é a de Joe Dash.

 

Há três maneiras que um homem pode escolher para morrer...

 

O êmbolo da seringa comprime-se um pouco.

 

Em menos de meio minuto, Ray sente uma pequena vibração em todo o corpo, como se alguém lhe tivesse ligado uma corrente de baixa intensidade. O couro cabeludo contrai-se. Os músculos da face retesam-se. Ray esfrega as pontas dos dedos umas nas outras, tentando libertá-las de um torpor desagradável. Entretanto, Perchek tirou um cronómetro da mala.

 

- Espero que esta dose minúscula dure um minuto e vinte segundos - diz ele. - Uma dose maior dura mais tempo. Embora nesta situação, para si, o tempo se vá tornar bastante relativo. Alguns segundos parecer-lhe-ão uma hora. Um minuto poderá durar uma vida. Tem alguns nomes para nós?

 

- Gary Grant, Mick Jagger, Marilyn Monroe...

 

Perchek encolhe os ombros e carrega mais uma vez no êmbolo. A sensação redobra de intensidade e quadriplica o mal-estar. Dessa vez, a dor é mais cauterizante do que eléctrica. Facas quentes dilaceram as mãos e os pés de Ray, chegam-lhe ao abdómen, às virilhas e à parte inferior das costas. O suor inunda-o com a rapidez de uma tempestade de Verão, picando-lhe os olhos, ensopando-lhe a T-shirt.

 

- Uma dose um pouco maior e mantê-la-emos a esse nível durante algum tempo - continua Perchek, verificando a tensão arterial e a pulsação de Ray. - Não temos grande pressa, pois não, Mister Orsino?

 

Lá de fora, de cima e do outro lado das paredes, Ray ouve a orgia da Fiesta de Nogales. O fogo-de-artifício e a música. A celebração ruidosa vai durar toda a noite. Não é certo que ele ainda esteja vivo quando ela terminar.

 

O Doutor tem razão. Para Santana, a hora que se segue é uma eternidade. Por duas vezes, desmaia de dor. De cada vez, Perchek usa uma injecção diferente e aumenta a infusão intravenosa para o despertar para a série seguinte de injecções.

 

Ray habitua-se ao som dos seus próprios gritos. A dada altura, urina-se. Nos intervalos das injecções, os músculos sofrem espasmos incontroláveis. Várias vezes, Ray pronuncia nomes, entre os gemidos. Perchek olha para Orsino, que abana a cabeça. O castigo de Ray por mentir é o aumento da dosagem. A sua resposta, mais gritos.

 

... Há três maneiras que um homem pode escolher para morrer... três maneiras... três maneiras... três maneiras...

 

Ray deixa cair a cabeça para trás. A visão tolda-se-lhe. Olhar para a luz que vem da lâmpada por cima da sua cabeça já não o incomoda. É como se a dor horrível lhe tivesse obscurecido a visão. O suor continua a brotar-lhe do corpo. O seu sistema nervoso está desfeito, a sua mente pronta a estalar. Tem de lhes dar um nome que eles possam verificar, qualquer coisa, qualquer coisa que impeça o violento ataque químico de Perchek, mesmo que seja por pouco tempo. Ray fez o possível por superar as duas primeiras fases de Joe Dash. Agora, a sua resistência desapareceu. Tem de lhes dar qualquer coisa que faça parar a dor.

 

- Patife! - grita ele, quando a dose é de novo aumentada. - Patife! Está bem. Está bem. Mais, não. Eu...

 

É interrompido pela porta do túnel atrás de si a abrir-se. Através de uma névoa densa, ouve a voz ofegante de um homem.

 

- Anton, há tropas governamentais lá fora! - exclama o homem num inglês perfeito. - Dúzias delas. Acho que têm o Alacante. Os agentes também atacaram a casa do Arizona. A entrada do túnel ainda está fechada, mas não tarda que eles a encontrem. Andam atrás de si, Anton. Não sei como é que descobriram, mas eles sabem que você está aqui.

 

A voz. Ray esforça-se para reunir os seus pensamentos dispersos. Conhece aquela voz.

 

- Orsino, há outra maneira de sair daqui? - pergunta Perchek.

 

- Por aquela porta, Doutor. Há um pequeno túnel que vai dar a uma casa do outro lado da rua. Foi o Alacante que o mandou construir.

 

- Ouça - diz a voz. - Tenho de voltar para trás antes que eles descubram o túnel principal comigo lá dentro.

 

- Obrigado por me avisar, meu amigo.

 

- Você sabe como pode encontrar-me. Se eu puder fazer alguma coisa.

 

A porta do túnel fecha-se. Durante alguns segundos, ouve-se o eco dos passos e depois faz-se silêncio. Mas, nesses momentos, a mente enevoada de Ray identifica a voz.

 

Sean Garvey.

 

- Garvey, patife!... Filho da mãe! - grita ele, lembrando-se do momento em que ele e o chefe tinham sido apanhados pelos homens de Alacante.

 

”Já houvera dezenas de indícios de que existia qualquer coisa de estranho em relação a Garvey”, pensa ele. ”Que imprudência não se terem apercebido deles. Que estupidez!”

 

- Mister Santana, parece que o nosso caso vai ter um fim prematuro - diz Perchek.

 

Algures no andar de cima ouve-se uma porta a ser arrombada. Segue-se um tiroteio.

 

- Doutor, acho que devíamos ir-nos embora - diz Orsino.

 

- Tem razão, Mister Orsino - responde Perchek. - Mas só até certo ponto.

 

De costas, Perchek pega na mala. Quando se volta, empunha um revólver. Antes que Orsino possa reagir, é atingido no alvo que é a sua boca entreaberta. A cabeça cai-lhe para trás. O homem descreve uma volta completa fazendo uma pirueta desairosa e em seguida cai no chão poeirento.

 

No andar de cima, o tiroteio acabou. Os passos estão agora mais próximos e ouvem-se vozes. O Doutor aponta a arma automática ao meio da testa de Santana. Ray cerra os dentes e tenta manter os olhos abertos até ao último momento. Depois, perante o sorriso de medo e de repugnância de Ray, Perchek baixa o revólver, avança e esvazia a seringa quase cheia no tubo intravenoso.

 

- Não se preocupe - diz ele. - Morrerá desta dose muito antes de sentir totalmente o seu efeito.

 

Dá meia volta, passa por cima do corpo de Orsino e corre para o túnel.

 

- Garvey, - grita Santana, concentrando a sua fúria final não no louco mas no amigo que o traiu. - Garvey, hás-de apodrecer no inferno por causa disto.

 

Pouco depois, o seu sistema nervoso explode num vulcão de dor. Santana grita sem parar. Sacode a cabeça violentamente. Morde o lábio e rebola-se no chão. A agonia, em todos os nervos, em todas as fibras, intensifica-se.

 

- Garveeey.

 

Ensopado em suor, Walter Concepcion senta-se na cama. Mais de sete anos depois, já quase se acostumara ao pesadelo. Mas algumas viagens de regresso às sessões na cave, com o Doutor, eram piores do que outras. E esta - a primeira desde que chegara a Manhattan, vindo da sua terra natal no Tennessee - fora horrível.

 

A dor é que suscitara o regresso ao passado. Em geral era assim. A dor no nervo, que fazia parte da sua vida há sete anos, desde que o Doutor lhe esvaziara a seringa no corpo. Ray limpou a testa e a cara com o lençol e procurou na gaveta da mesa-de-cabeceira a Bíblia que esvaziara para guardar os Percodans. Suportava que lhe roubassem tudo o que tinha no quarto alugado, até a sua arma. Mas não os seus Percodans. O médico da sua terra compreendia. Após vários anos de consultas neurológicas, de psicoterapia, de reuniões nos AA e nos NA, e de hospitalizações, o homem desistira de tentar alcançar a cura e agora limitava-se a passar as receitas. O farmacêutico local também compreendia e limitava-se a aviá-las. Para esses homens e para os outros que conheciam toda a sua história, o homem era uma lenda. O homem que capturara Anton Perchek.

 

Santana trouxera comprimidos suficientes para um mês, desde que a dor crónica não piorasse. Não lhe apetecia andar pelas ruas à procura de drogas, mas fá-lo-ia se fosse obrigado a isso. Anton Perchek estava vivo e fazia o seu miserável negócio em Nova Iorque. Ray não sairia da cidade senão quando o homem estivesse morto.

 

Harry dissera-lhe que a sessão no hipnotizador fora um êxito. Em seguida, Maura encontrar-se-ia com o criminologista que o irmão conhecia. Juntos, desenvolveriam diversas versões em computador do desenho dela, com vários disfarces. Esses desenhos seriam distribuídos pelos hospitais de toda a cidade. O plano de Santana era simples. Continuar a desgastar o Doutor. Irritá-lo o suficiente e, mais tarde ou mais cedo, levá-lo a cometer uma imprudência. Mais tarde ou mais cedo, ele cometeria um erro.

 

Walter atirou dois Percodans para o fundo da garganta e bebeu um copo de água. Em seguida, vestiu-se para o seu encontro com Page. Levava o casaco de desporto para esconder o coldre e a arma de calibre 38. Não esperava sarilhos, mas precavia-se. Desde que fora traído e capturado em Nogales, precavia-se sempre.

 

Meteu a mão debaixo da almofada, tirou a pistola e retirou o silenciador. Este era volumoso e, embora tivesse funcionado bem naquela noite em Central Park, afectava o rigor do disparo. Além disso, quando se encontrasse finalmente cara a cara com Anton Perchek, quando lhe apontasse a sua arma de calibre 38 ao meio dos olhos e puxasse o gatilho, queria que o Doutor ouvisse o som da detonação.

 

- Esta audição não vai ser agradável - disse Mel Wetstone a Harry, quando se dirigiam para o hospital. - Mas prometo-lhe que não permitiremos que essa gente nos engane.

 

Mel fora buscar Harry no Mercedes que Philip lhe vendera, aquele que, na opinião de Phil, o definia como advogado. As quatro portas e o porta-bagagens fechavam-se electronicamente, e o banco traseiro tinha encostos reclináveis. Era reconfortante verificar que Mel era suficientemente bem sucedido para se dar ao luxo de se fazer transportar daquela maneira. Mas, nesse dia, o Mercedes chocara-se com as sensações de inadaptação de Harry. O ar condicionado suave inchava-os como carros alegóricos do Dia de Acção de Graças. Felizmente, estavam quase a chegar.

 

- O Sam Rennick disse-lhe para que é que eles lá vão? perguntou Harry.

 

- O Sam é muito reservado, mas é óbvio que não quer reconhecer a importância de qualquer dos elementos que lhe apresentámos: nem do esboço de Miss Hughes, nem da teoria do empregado da limpeza, nem do telefonema do assassino para o seu consultório. Eles querem que você se afaste até o caso estar resolvido.

 

- E podem fazê-lo?

 

- Talvez. Há algumas passagens no regulamento do hospital cuja linguagem é vaga quanto a quem pode fazer o quê, propositadamente vaga, segundo cremos. Na pior das hipóteses, se eles votarem a favor do seu afastamento... e acredite que ainda temos algumas cartas para jogar... podemos tentar pedir uma interdição. Mas teremos de encontrar um juiz compreensivo. O melhor seria derrotá-los agora mesmo. É o que eu tenciono fazer.

 

Harry examinou a paisagem que passava através dos vidros fumados. Não tencionava ser afastado do MMC. Por um lado, os doentes eram a sua razão de ser, quer em termos emocionais quer em termos financeiros; por outro, se lhe fosse vedada a prática clínica no hospital, seria muito mais difícil exercer qualquer pressão sobre o assassino. E já tinham feito muitos progressos desde que conheciam Walter Concepcion, o que lhes permitia esperar que, dentro de pouco tempo, essa estratégia resultasse e a pressão aumentasse.

 

Maura ia encontrar-se com o amigo do irmão, Lonnie Sims. Dweeb tivera acesso aos mais recentes programas informáticos de gráficos destinados a ajudar as testemunhas a fazer desenhos dos suspeitos. Juntos, aperfeiçoariam o desenho de Maura e a qualidade fotográfica, a cor e o pormenor. O resultado seria, essencialmente, um retrato-robô de frente e de lado. Em seguida, mediante várias adições, subtracções e misturas, obteriam fotografias semelhantes do homem com o aspecto alterado.

 

Quando Harry e o advogado entraram na sala de reuniões pela segunda vez desde a morte de Evie, o ambiente era visivelmente mais formal, e mais ameaçador. Tinham sido colocados microfones em vários locais à volta da mesa enorme. Os actores da primeira peça já lá estavam todos, a par de recém-chegados notáveis, entre os quais os administradores do hospital, os chefes de departamento que integravam a comissão executiva, as enfermeiras-chefes do Alexander 9 e do Alexander 5, Caspar Sidonis e uma estenógrafa. Também lá se encontrava um homem sentado ao lado do advogado do hospital, que Harry não conhecia, um homem de fato azul mal confeccionado.

 

Steve Josephson apertou a mão de Harry ao passar por ele. Doug Atwater sorriu, embaraçado, e aproximou-se.

 

- Harry - disse ele em voz baixa. - Ainda bem que tenho esta oportunidade de falar consigo. Espero que compreenda que, no outro dia, eu estava apenas a sugerir o que julgava ser melhor para si. Como é óbvio, aborreci-o, e peço-lhe desculpa por isso. Queria que soubesse que estou cem por cento consigo neste caso.

 

Pela mente de Harry passaram meia dúzia de respostas cínicas. Mas Harry não verbalizou nenhuma. Atwater não a merecia. Ao longo dos anos, sempre apoiara Harry e a sua luta para que a medicina de família fosse uma opção respeitada. Sugerir que Harry se afastasse voluntariamente do hospital fora a única hipótese de que ele se lembrara para impedir a audição que estava prestes a realizar-se, uma audição na qual Harry parecia destinado a ser humilhado e, em último caso, posto de lado.

 

- Compreendo, Doug - respondeu. - Mas não fiz nada de mal. Portanto, não posso deixar-me abater.

 

- Nesse caso, dê-lhes luta, Harry - afirmou Atwater, sorrindo.

 

Sam Rennick recordou os pontos essenciais que tinham sido acordados entre ele e Mel Wetstone.

 

As testemunhas fariam uma declaração e responderiam a perguntas, primeiro de Rennick e depois de Wetstone. Harry seria autorizado a falar depois de cada testemunha, mas só para responder a perguntas do seu advogado e não para se dirigir directamente a nenhuma das testemunhas. Quando a audição acabasse, as comissões executivas, formadas pelos administradores e pelos médicos do hospital, decidiriam, por voto secreto, se as prerrogativas de Harry lhe seriam ou não retiradas.

 

- Antes de começar, Mister Rennick, gostaria que ficasse registado que a Manhattan Health Cooperative se orientará pelos resultados desta audição - disse Doug Atwater.

 

Atwater olhou para Harry.

 

- O estatuto do doutor Corbett manter-se-á intacto enquanto as suas prerrogativas neste hospital se mantiverem.

 

Considerando que o plano de saúde estava vinculado apenas às suas próprias leis, que permitiam admitir e afastar os médicos prestadores de cuidados de saúde, a declaração de Atwater equivalia a um endosso. A sua companhia podia ignorar os resultados da audição, limitando-se a afastar Harry da sua lista de médicos. Era uma decisão que Harry receava que eles pudessem tomar. Agora, sentia-se duplamente satisfeito por se ter refreado perante Doug.

 

A enfermeira-chefe do Alexander 9 começou por ler depoimentos das enfermeiras que estavam de serviço na noite em que Evie morrera. Nenhuma delas duvidava que Harry fora a última pessoa a ver a mulher antes da ruptura fatal do aneurisma. Sue Jilson voltou a contar, com pormenores, que Harry saíra para ir comprar um batido de leite e que depois voltara. O advogado do hospital serviu-se das suas perguntas para obter uma resposta conclusiva da enfermeira sobre o sistema de segurança existente naquele piso. Depois, concentrou-se no estado clínico de Maura Hughes.

 

- Ela era o caso mais clássico de delirium tremens que eu vi - disse a mulher. - Estava inquieta e agressiva, a suar muito e quase sempre desorientada. Quando não acusava o pessoal de a ignorar, afastava insectos que não existiam. Esteve quase sempre medicada enquanto permaneceu no nosso serviço e, apesar disso, foi uma das doentes mais desestabilizadoras que tivemos nos últimos tempos.

 

Harry e Mel Wetstone olharam um para o outro. O advogado do hospital sabia que o esboço de Maura ia ser apresentado e que o facto de ter sido traçado um retrato tão pouco abonatório da doente destruía a sua credibilidade. Por isso é que Harry se opusera a que fosse a própria Maura a apresentar o esboço na audição. Mel avisara-o do que ela poderia ouvir.

 

Wetstone pigarreou, bebeu lentamente um pequeno gole de água e contemplou a enfermeira com um sorriso gélido.

 

- Lamento que Miss Hughes se tenha revelado tão desestabilizadora para o seu piso neurocirúrgico - respondeu ele.

 

- Obrigada - respondeu a enfermeira, sem se aperceber do sarcasmo de Wetstone.

 

- Não parece gostar muito de alcoólicos, pois não?

 

- Alguém gosta?

 

Wetstone esperou trinta segundos que a resposta produzisse o seu efeito na sala.

 

- Por sinal, há quem goste - disse ele, com brandura. A Associação Médica Americana classificou formalmente o alcoolismo como uma doença. A Associação Psiquiátrica Americana também. Espero que a senhora não tenha preconceitos para com muitas outras doenças, também. Não tenho mais perguntas a fazer-lhe.

 

A enfermeira-chefe, vermelha como um pimentão, folheou os seus apontamentos e olhou para um local que a impedia de ver fosse quem fosse. Se o impacte do seu testemunho não fora totalmente neutralizado, decerto fora reduzido. Wetstone virou-se para Harry.

 

- Doutor Corbett, esteve em contacto com a Maura Hughes desde que ela teve alta?

 

- Estive.

 

- E como está ela?

 

- Muito bem, por sinal. Não bebeu desde que foi operada e recomeçou a pintar.

 

Na véspera, tinham chegado a acordo sobre a mentira inofensiva.

 

- Ah, sim, ela é uma artista realizada e conceituada, não é verdade? Tem em seu poder algum desenho feito por ela?

 

- Tenho uma fotocópia. Miss Hughes teve dificuldade em lembrar-se dos pormenores do rosto do homem, por isso recorremos a um hipnotizador.

 

- Seria o doutor Pavel Nemec?

 

O murmúrio em toda a sala mostrou que o húngaro era conhecido da maioria dos presentes.

 

- Não sei ao certo se ele é médico - respondeu Harry. Mas não teve dificuldade em ajudá-la a unir, de novo, as suas recordações. Uma sessão de quinze ou vinte minutos foi quanto bastou.

 

- Mister Rennick - disse Wetstone. - Temos aqui uma declaração de Pavel Nemec, reconhecida notarialmente, na qual ele afirma que o esboço que o senhor vai ver representa o rosto que Maura Hughes recordou: o homem que entrou no quarto novecentos e vinte e oito depois de o doutor Corbett ter ido comprar um batido de leite para a mulher.

 

Wetstone esperou que fossem distribuídos exemplares por todas as pessoas envolvidas e depois perguntou:

 

- Doutor Corbett, já alguma vez viu o homem representado no esboço de Miss Hughes?

 

- Já. Tinha uma bata do pessoal de manutenção do hospital e estava a puxar o lustro ao chão junto à porta do quarto novecentos e vinte e oito, quando eu cheguei. Quando voltei, ele tinha desaparecido.

 

- Tem a certeza?

 

- Absoluta. Trata-se de um retrato muito fiel. A Maura Hughes retém os pormenores com uma facilidade incrível. Ela diz que desconfia que a gravata era postiça porque o nó estava demasiado perfeito.

 

Várias pessoas soltaram uma gargalhada.

 

- Isto é ridículo - murmurou Caspar Sidonis entre dentes, embora suficientemente alto para toda a gente ouvir.

 

- Então está a dizer-nos, doutor Corbett, que este homem... - Wetstone apontou para o esboço com ênfase.

 

Que este homem esperou pelo momento oportuno para vestir uma bata de médico que tirou da sua enceradora, se atreveu a entrar no quarto novecentos e vinte e oito e injectou na sua mulher uma dose letal de Aramine?

 

- Creio que foi precisamente o que ele fez.

 

Muitos dos rostos das pessoas que se encontravam na sala eram inexpressivos. Mas Harry apostava que a maioria ainda tinha fortes dúvidas a seu respeito.

 

Sem mais comentários, Wetstone indicou que terminara a sua intervenção. Como o ónus da prova recaía, pelo menos em teoria, sobre o hospital, Harry não seria interrogado pelo advogado do hospital. Era um dos vários pontos processuais que Wetstone ganhara.

 

Em seguida, Sam Rennick apresentou o homem de fato azul mal confeccionado, Willard McDevitt, o chefe da manutenção do hospital. McDevitt, um homem de cinquenta e tal anos, muito corado e cujo nariz parecia ter sofrido uma ou duas fracturas, falou com a convicção de alguém que se julgava incapaz de se enganar acerca fosse do que fosse. Harry lembrou-se de Bumpy Giannetti, o gigante desajeitado que o perseguia à saída do liceu e lhe tinha batido com uma regularidade biológica entre o sétimo e o décimo anos. Perguntou a si próprio se Bumpy o respeitaria agora, quando era o principal suspeito de dois assassínios.

 

- Mister McDevitt, reconhece o homem que está representado naquele desenho? - perguntou Rennick, depois de verificar as credenciais do homem.

 

- Não. Nunca o vi na minha vida - respondeu ele, deitando um olhar altivo a Harry.

 

- E quanto àquela enceradora industrial, aquela que, segundo o doutor Corbett, o assassino usava naquela noite?

 

- Bem, em primeiro lugar, deixem-me que lhes diga que, se havia alguma enceradora no Alexander Nove nessa noite, era a minha. E, se era a minha, era um dos meus homens que estava a trabalhar com ela.

 

- Alguém poderia ter trazido outra para o hospital?

 

- Tudo é possível. Mas essas meninas pesam cerca de duzentos e cinquenta quilos e são maiores que um secador de roupa. É difícil imaginar alguém a introduzir uma no hospital à socapa.

 

- Seria possível terem roubado uma do seu departamento?

 

- Não, a menos que fosse à força. Nós temos um controlo de saída que eu próprio criei, para evitar que alguém não autorizado se sirva do nosso equipamento. Até a saída de uma chave de porcas tem de ser justificada. Não creio que perdêssemos o rasto a uma enceradora de duzentos e cinquenta quilos.

 

- Obrigado, Mister McDevitt.

 

Rennick fez um aceno de cabeça a Wetstone, sem olhar verdadeiramente para ele. Harry viu o gesto e reflectiu cinicamente numa profissão na qual a mímica era aceite, ensaiada e fazia até parte da actividade. Depois, reparou que Caspar Sidonis trocava comentários em voz baixa com o administrador que estava sentado a seu lado, apontando para Harry ao mesmo tempo. A mímica, em medicina, podia ser mais subtil que em direito, mas era igualmente repugnante.

 

- Mister McDevitt, onde são guardadas essas enceradoras? - perguntou Mel.

 

- Estão fechadas numa arrecadação da subcave. Bem fechadas, por sinal. Só eu e o Gus Gustavson, o chefe da manutenção do soalho, é que temos a chave. Todas as enceradoras que saem da arrecadação precisam da minha autorização escrita ou da dele.

 

- Compreendo. Mister McDevitt, gostaria de lhe perguntar outra vez se alguém que não pertencesse ao seu pessoal poderia servir-se de uma dessas máquinas.

 

- Isso é impossível.

 

”Outra vez aquele olhar.” Harry enfrentou o olhar do homem como nunca fizera com Bumpy Giannetti, manteve-o e conseguiu até esboçar um sorriso débil. Se Mel Wetstone tivesse partilhado com ele a parte seguinte da sua estratégia, o seu sorriso teria sido muito mais aberto. Wetstone levantou-se, dirigiu-se para a porta, abriu-a e recuou. Durante alguns segundos reinou um estranho silêncio, que depois foi quebrado pelo ruído de uma máquina. Um homem alto e louro, envergando um fato-macaco da manutenção do MMC, entrou na sala. Trazia um distintivo de identificação com fotografia e puxava lustro aos mosaicos que rodeavam a felpuda carpete oriental com uma enceradora industrial. De lado, lia-se a letras vermelhas:

 

       PROPRIEDADE DO MMC.

 

- O que é isto? - exclamou Willard McDevitt. Wetstone fez sinal ao homem, que desligou a máquina.

 

- Mister McDevitt, conhece este homem?

 

- Não.

 

- Mister Crawford, trabalha para este hospital?

- Não.

 

- Mister Crawford, onde arranjou esse aparelho?

 

- Na arrecadação da manutenção do soalho, na subcave.

 

- E foi difícil tirá-la de lá? O homem louro sorriu.

 

- Foi canja - respondeu ele. - Vou devolvê-la agora, se for possível.

 

O homem fez girar a máquina e saiu da sala. No mesmo instante, era como se toda a gente falasse e gesticulasse ao mesmo tempo. Harry reparou que vários membros do corpo clínico se riam. Willard McDevitt parecia que ia atirar-se a Mel Wetstone. Mas escutou qualquer coisa que o advogado do hospital lhe disse em voz baixa, empurrou a cadeira para trás e saiu. Pela sua parte, Wetstone teve o cuidado de não se mostrar exultante, nem sequer satisfeito. Pela primeira vez, Harry sentiu que a emoção reinante na sala poderia virar-se a seu favor. Se Rennick e a sua testemunha podiam enganar-se tanto acerca da enceradora, seria de admitir que talvez se enganassem também acerca de outras coisas.

 

- Esperem. Esperem um bocadinho!

 

Era óbvio que Caspar Sidonis atingira o seu limite de resistência. Levantou-se e encaminhou-se a passos largos para a cabeceira da mesa. Owen Erdman, o presidente do hospital, afastou a cadeira para ele passar.

 

- Este homem é um impostor. Um vendedor traiçoeiro - disse Sidonis, apontando para Wetstone. - Está a servir-se de truques para vos impedir de se concentrarem no ponto que é importante neste caso. E, Sam, lamento que tudo o que você fez só lhe tenha facilitado a vida. Isto não é uma sala de audiências, é um hospital. Não estamos aqui para debater as subtilezas da lei. Estamos aqui para garantir que os nossos milhares de doentes, doentes que poderiam dirigir-se a qualquer outro hospital, tenham confiança no Manhattan Medical Center e continuem a vir aqui. Estamos aqui reunidos para impedir que o nosso hospital se transforme no alvo da chacota da cidade. Estamos aqui para garantir que os licenciados em Medicina, entre todos os hospitais do país, tenham por este a consideração suficiente para o escolherem e nele se instalarem.

 

O homem era bom, muito bom, reconheceu Harry. Aquilo era o resultado da vingança pela morte de Evie e a recompensa pela humilhação sofrida no anfiteatro. E, acima de tudo, a sua força e a sua eficácia provinham do ódio que nutria por Harry e da sua convicção de que ele era o culpado. Fez-se de novo um silêncio. A situação já não se revelava tão prometedora. Mel Wetstone parecia prestes a objectar à tirada de Sidonis, mas pensou melhor e afundou-se na cadeira. Tentar impedir o chefe do serviço de cirurgia cardíaca de exprimir a sua opinião poderia ofender os presentes.

 

- Não me envergonho de dizer que a Evie Della-Rosa e eu estávamos apaixonados - continuou Sidonis. - Durante anos, ela e o Harry Corbett mantiveram um casamento que era apenas uma fachada. Na véspera de ela dar entrada neste hospital, na véspera de ser assassinada, contou ao marido o que havia entre nós. Tenho a certeza. Isso dá-lhe um motivo. Uma apólice de seguro de duzentos e cinquenta mil dólares dá-lhe outro. As enfermeiras já testemunharam que ele teve a sua oportunidade. E, evidentemente, o método escolhido foi aquele que só um médico poderia saber. Existe uma hipótese remota de o doutor Corbett estar inocente, tal como ele afirma. Existe uma hipótese remota de qualquer explicação alternativa e tresloucada que ele apresente corresponder à verdade. Mas nem mesmo a sua inocência altera o facto de dois dos nossos doentes com fortes ligações a ele terem morrido. Os jornais estão a viver à custa do hospital. A confiança pública que tanto trabalho nos deu a conquistar está a desaparecer.

 

”O Harry Corbett deve a este hospital respeito e consideração suficientes para se afastar do corpo clínico até que todo este assunto esteja resolvido de uma maneira ou de outra. Como se recusou a honrar essa responsabilidade, este grupo tem de entrar em acção. Prometo, aqui e agora, que não continuarei a exercer numa instituição que não seja capaz de resistir pelos seus próprios meios nem de fazer o que deve pelo seu pessoal e pelos seus doentes. Obrigado.

 

Aparentemente esgotado, Sidonis regressou ao seu lugar apoiando-se nos espaldares das cadeiras. Mel Wetstone respirou fundo e depois suspirou. Harry sentiu-se corado e constrangido. Sidonis ameaçara o hospital e a administração com um golpe aplicado nas suas duas áreas mais vulneráveis: a reputação e os recursos financeiros. Cirurgião Cardíaco de Renome Mundial Abandona Hospital Devido ao Descrédito Lançado pela Acusação de Um Médico. Harry imaginava os títulos no Daily News. Inclinou-se para o seu advogado.

 

Ouviu-se um burburinho no exterior da sala. As portas abriram-se de rompante e a secretária circunspecta de Owen Erdman entrou.

 

- Desculpe, doutor Erdman - disse ela, sem fôlego. Tentei explicar-lhes, mas eles não me deram ouvidos. A Sandy telefonou para a segurança. Eles vêm a caminho.

 

A mulher desviou-se e uma pequena multidão entrou na sala. À frente vinha Mary Tobin, e, logo atrás, Marv Lorello. Seguiam-se todos os outros membros do Departamento de Medicina Familiar e vários doentes de Harry, alguns com crianças pela mão. Duas dúzias de pessoas ao todo, calculou Harry. Não, talvez três. Entre elas reconheceu Clayton Miller, o homem cujo grave edema pulmonar ele e Steve Josephson tinham tratado com uma enorme transfusão de sangue. O grupo concentrou-se numa extremidade da sala de conferências. Depois, várias pessoas afastaram-se e Mabel Espinoza, uma doente de Harry, avançou. Dois dos seus netos agarravam-se-lhe à saia.

 

- Chamo-me Mabel Espinoza - disse ela. O seu sotaque latino era forte, mas ninguém tinha dificuldade em entendê-la. Enfrentou os presentes com a dignidade firme que sempre fizera dela uma das doentes preferidas de Harry. - Tenho oitenta e um anos. Há vinte anos que o doutor Corbett trata de mim e da minha família. Se hoje estou viva é porque ele é um médico extraordinário. Muitas outras pessoas poderiam dizer a mesma coisa. Quando estou muito doente, ele vai ver-me a casa. Quando alguém não pode pagar, ele tem paciência. Eu assinei a petição. Em menos de um dia, ela foi assinada por mais de duzentas pessoas. Obrigada.

 

- Isto foi uma ideia da sua Mary - segredou Wetstone a Harry. - Nunca julguei que ela conseguisse desencadear uma coisa destas.

 

Avançou outra mulher, que se apresentou como Doris Cummings, uma professora primária de Harlem. Leu a petição, assinada por 203 doentes de Harry e enumerou os motivos pelos quais Harry era essencial ao seu bem-estar e ao das suas famílias.

 

- ... Se o doutor Corbett for afastado do corpo clínico do Manhattan Medical Center sem justa causa, nós, abaixo assinados, tencionamos mudar-nos para outro hospital. Se for necessário e possível, abandonaremos também a Manhattan Health. Este homem tem sido uma parte importante das nossas vidas. Não queremos perdê-lo - disse ela, concluindo a leitura da petição.

 

Marv Lorello segredou ao ouvido de Cummings e apontou para Owen Erdman. Cummings contornou a mesa e colocou a petição em frente do presidente do hospital. Diante de Harry, uma mulher distinta chamada Holden, que fora presidente do conselho de administração, enxugou uma lágrima. A seu lado, Mary Tobin rejubilava como uma mãe com a licenciatura de um filho.

 

Em seguida, Marv Lorello falou em nome do Departamento de Medicina Familiar, considerando Harry um amigo inestimável e um exemplo para todo o departamento, especialmente para os recém-chegados à prática da medicina. Leu uma declaração assinada por todos os membros do departamento, que, na realidade, ameaçavam transferir os seus serviços para outra unidade, se Harry fosse afastado do corpo clínico do hospital sem uma prova absoluta e legalmente vinculativa da sua conduta imprópria. Marv Lorello colocou o documento em cima da petição, em frente de Owen Erdman. Depois, o grupo saiu da sala.

 

Não houve mais discussão. A votação foi uma formalidade, embora dois dos doze votantes se tivessem pronunciado a favor do afastamento de Harry. Caspar Sidonis saiu da sala assim que o resultado foi comunicado.

 

- Doutor Corbett, esta foi uma impressionante manifestação de consideração por si - disse Erdman friamente. - Seria trágico saber que essa lealdade não era merecida. Tem mais alguma coisa a acrescentar?

 

- Só que agradeço a votação. Estou inocente e tenciono prová-lo e descobrir esse homem. Espero começar, afixando este retrato em todo o hospital.

 

- De modo nenhum! - vociferou Erdman. - O meu pessoal distribuirá discretamente este documento aos nossos chefes de departamento. Mas não nos arriscaremos a que o público admita que um assassino pode entrar no nosso hospital, disfarçar-se de empregado de limpeza e assassinar os nossos doentes. Exijo a sua promessa de colaboração nesta matéria.

 

Harry olhou para Mel Wetstone, que se limitou a encolher os ombros e a fazer um sinal afirmativo.

 

- Tem a minha palavra - disse Harry.

 

- Nesse caso, tem a nossa aprovação para continuar com o seu trabalho - concluiu Erdman.

 

- Vai para casa? - perguntou Wetstone, quando saíam do hospital.

 

- Não, vou para o consultório. Acho que a Mary merece um almoço.

 

- Um jantar no Ritz seria mais apropriado.

 

O termómetro montado na parede exterior da estação de metropolitano de Battery Park estava directamente exposto ao sol. Mesmo assim, trinta e cinco graus eram trinta e cinco graus. Quando James Stallings entrou na estação húmida e desconfortável, com a pasta numa mão e o casaco enrolado na outra, amaldiçoou a sua tendência para as camisas escuras. Gostava muito de se ver com elas e do efeito que surtiam nos seus colegas de camisas brancas. Mas, num dia como aquele, vestir-se de azul-marinho era um disparate.

 

Porém, mais uma vez, cometera uma série de disparates nos últimos tempos.

 

A estação estava apinhada. Os turistas de Ellis Island e da Estátua da Liberdade acotovelavam-se com os passageiros que saíam do ferry de Staten Island e com uma multidão de adolescentes envergando T-shirts de Camp Cityside. Quase toda a gente falava do calor. Stallings passou pela cruzeta giratória atrás de duas raparigas de Cityside, que se riam de um rapaz que não fora autorizado a participar na viagem. Apanhado na conversa, Stallings tentou perceber o que fizera o rapaz e para onde é que todos eles se dirigiam. Mas as adolescentes juntaram-se a mais doze campistas e desceram a escadaria larga como uma legião de tagarelas.

 

Havia um comboio à espera na gare. Battery Park era o início da linha, portanto havia quase sempre lugares sentados, mesmo às horas de ponta. Mas, naquele dia, só havia lugares de pé. Através dos fragmentos de conversas irritadas à sua volta, Stallings depreendeu que houvera um atraso qualquer. E, é claro, se as carruagens tinham ar condicionado, as gares não tinham. O ar denso e húmido entrava com os passageiros e sobrepunha-se ao sistema de refrigeração. A camisa de Stallings estava ensopada nas axilas. Pela janela, Stallings via a multidão que continuava a descer as escadas e a atravessar a gare de cimento. Loomis deveria esperar dez minutos antes de regressar à Crown. Talvez já pouco faltasse. Não era que fosse importante se eles acabassem por ir no mesmo comboio. Sobretudo em carruagens diferentes. Mas Stallings, que nunca fora nervoso nem paranóico, estava assustado - irracionalmente assustado, como não deixava de tentar convencer-se.

 

Sir Lionel lançara uma espécie de ameaça sobre a Roundtable e morrera de repente, envolvido em mistério. Um ano e tal depois, Evelyn Della-Rosa fora assassinada na sua cama de hospital. Também ela se cruzara com a sociedade. A droga utilizada para a matar fora descoberta, mas quase por acaso. As duas mortes seriam uma coincidência? ”Era possível, mas duvidoso” pensou Stallings. Agora, dentro de vinte e quatro horas, também ele teria de apresentar uma lista de doentes terminais hospitalizados, ou transformar-se numa ameaça potencial para a Roundtable.

 

Fizera bem em encontrar-se com Kevin Loomis, concluiu. Loomis parecia um tipo honesto e decente. Apesar de ainda não ter colaborado e talvez até de não estar convencido, assim que tivesse oportunidade de perceber tudo, aproximar-se-ia. E, juntos, descobririam alguma coisa. Era forçoso. Stallings limpou o suor da testa com a manga da camisa. A carruagem estava quase cheia. O calor era opressivo. Era só uma questão de tempo até alguém sair.

 

- Eia, cuidado! - exclamou um dos passageiros.

 

- Vá-se lixar! - retorquiu outro, com a resposta pronta.

 

Uma velha de pele engelhada, com uma corcunda acentuada e um saco de compras a abarrotar abriu caminho entre ele e os bancos e parou com um dos saltos dos sapatos bem assente no dedo do pé de Stallings. Este desculpou-se e libertou o pé. A velha deitou-lhe um olhar furibundo, com os olhos vermelhos, e resmungou qualquer coisa que Stallings deu graças por não perceber.

 

As portas fecharam-se e, por instantes, era como se todos tivessem sido condenados a uma nova tortura. Mas devagar, quase com relutância, o comboio começou a andar. Stallings era mais alto do que a maioria dos outros passageiros. Agarrado à pasta e com o casaco irremediavelmente amarrotado na mão esquerda, conseguia equilibrar-se em parte, quer agarrando-se ao varão por cima da cabeça da velha, quer pela força das pessoas que se comprimiam à sua volta. Descia em Upper East Side para trocar de comboio e era um passageiro inveterado e extremamente tolerante. Mas não se lembrava de uma viagem tão desagradável. Para piorar a situação, o comboio balouçava sem dó nem piedade, talvez correspondendo ao esforço do condutor para recuperar o tempo perdido.

 

Um minuto depois de o comboio sair da estação, tinha outra vez o salto da velha em cima do seu pé. Dessa vez, Stallings afastou-a, ganhando mais um olhar furibundo e mais um epíteto. Pouco depois, um safanão particularmente forte atirou uma série de pessoas para cima dele. Stallings sentiu uma picada no lado direito, mesmo por cima do cinto. Seria uma abelha? Uma aranha? Com a mão direita esfregou a pele nesse sítio. A sensação de picada já quase desaparecera. A camisa continuava colada ao corpo. Ainda tinha a mão no varão quando uma curva pronunciada o fez cair sobre os passageiros que iam atrás dele.

 

- Agarre-se a qualquer coisa, pelo amor de Deus - gritou alguém quando ele se endireitou.

 

- Idiota - acrescentou mais alguém.

 

- Desculpe - disse Stallings entre dentes, ainda a tentar perceber o motivo da picada. Já fora picado várias vezes, por abelhas e aranhas. Não era alérgico a esses animais. Mas desta vez fora mordido através da camisa.

 

O comboio abrandou ao entrar na estação de City Hall. O aperto aumentou quando alguém tentou abrir caminho na direcção das portas.

 

- Desculpe - proferiu uma mulher, tentando passar à frente de Stallings. - Por favor?

 

Stallings não conseguiu responder. O coração começara a bater-lhe de uma forma desordenada. A pulsação ecoava-lhe nos ouvidos como fogo de artilharia. Stallings sentiu uma náusea terrível e teve uma tontura. O suor escorria-lhe pela face. As luzes toldaram-se e depois começaram a girar, cada vez mais depressa, Stallings sentiu um vazio no peito, como se os pulmões e o coração tivessem rebentado. Precisava desesperadamente de se deitar.

 

- Ouça, o que é que você está a fazer? - perguntou alguém.

 

A mão escorregou-lhe do varão.

 

- Eia, pá...

 

Stallings sentiu os joelhos a dobrarem-se. A cabeça caiu-lhe para trás.

 

- Afastem-se, afastem-se! Ele está a morrer!

 

Stallings sabia que estava no chão, com os braços e as pernas a mexerem-se de uma forma incontrolável. Sentia no seu corpo os pés das pessoas que tentavam recuar. Mordeu o lábio mas não sentiu qualquer dor. Uma avalancha de palavras chegou até ele, como se estas fossem ecos distantes que atravessassem um longo tubo metálico.

 

- Ele está com convulsões... - Metam-lhe qualquer coisa na boca...

 

- Virem-no! Virem-no para o lado!

 

- Eu sou paramédico.

 

- Afastem-se, todos. Mais para lá...

 

- Façam qualquer coisa.

 

- Sou, minha senhora, chegue-se para trás.

 

- Chamem a Polícia...

 

As palavras tornaram-se mais desconexas, mais deturpadas. Stallings sentiu que as pessoas se ajoelhavam à sua volta e que lhe tocavam, mas ele não conseguia reagir. Sabia que estava a perder a consciência. O sangue do lábio caiu-lhe na camisa azul-marinho. Sentiu a bexiga a ceder. As imagens toldadas deram lugar à escuridão. As vozes e os sons desapareceram...

 

Todas as atenções se concentravam em Stallings, com uma excepção. Um homem de aspecto vulgar, com uma camisa de fantasia, esgueirou-se entre dois candidatos a socorristas e pegou na mala de Stallings. Depois, muito devagar, libertou-se da multidão. Sorriu intimamente ao imaginar Sir Gawain a utilizar sucessivas tácticas evasivas para não ser seguido até Battery Park, sem saber que os microfones sofisticados que Galaaz colocava nos quartos de todos os cavalheiros tornava essa prática desnecessária.

 

As portas das carruagens abriram-se naquele momento e as pessoas acotovelaram-se para sair para a gare. O homem com a pasta de Stallings acompanhou tranquilamente a multidão. A seringa que tinha na algibeira seria atirada para uma sargeta no quarteirão seguinte. A cardiotoxina que ele esvaziara no corpo de Stallings era uma das suas armas favoritas - uma droga praticamente desconhecida no exterior do Baixo Amazonas, tão potente que o veneno que ficara no êmbolo da seringa talvez fosse suficiente para matar alguém. A agulha inserida na seringa era tão fina que cabia num poro e a sua picada era invisível. E mesmo que a injecção tivesse produzido uma gotícula de sangue, a camisa azul-escura do homem disfarçá-la-ia. Mais outro número para a estatística, mais outra morte atribuída ao calor. Maravilhoso, simplesmente maravilhoso.

 

Anton Perchek saiu da estação no preciso momento em que dois polícias iam a entrar.

 

- Tenham calma, senhores - disse ele em voz baixa. Acreditem que não há motivo para pressas.

 

No apartamento de Harry, a disposição era decididamente a melhor. Walter Concepcion e Maura chegaram com alguns minutos de intervalo, ambos com boas notícias.

 

Harry bem precisava delas. Depois da audição, quando ia a sair do Mercedes de Mel Wetstone, tivera outra dor no peito

- mais aguda do que duradoura ou do que um simples aperto, que lhe vinha de dentro das costas e lhe chegava ao meio do esterno. Não durou muito, talvez três ou quatro minutos. E não fora muito forte. Mas fora a pior dos últimos tempos. Quando Harry dera a Mary Tobin um beijo rápido de gratidão e correra para o armário dos medicamentos para ir tomar um comprimido de nitroglicerina, já a dor estava a passar. Se fosse angina, não era um caso típico dos manuais, disse ele com os seus botões.

 

Mesmo assim, Maura cumpriria a sua parte do acordo e iria a uma reunião dos AA com Concepcion. O mínimo que ele podia fazer era marcar um electrocardiograma com prova de esforço. Voltou para a secretária, marcou o número de um cardiologista seu amigo e deixou o telefone tocar uma vez antes de desligar. Traria a nitroglicerina no bolso e tomá-la-ia ao primeiro sinal de dor. Se resultasse, se a dor cedesse, talvez houvesse uma boa hipótese de que o problema fosse do coração. Depois telefonaria ao cardiologista. Entretanto, o exame com prova de esforço podia esperar.

 

Harry fez a Maura e a Concepcion um relato vivo da audição no hospital, sobretudo do discurso quase catastrófico de Caspar Sidonis e da actuação notável de Mel Wetstone e de Mary Tobin.

 

- Esse Sidonis sabia da investigação que a sua mulher andava a fazer? - perguntou Concepcion quando ele acabou.

 

- Não creio. Não contei a ninguém o que sei acerca da outra vida dela, a não ser à Polícia. Não serviria de nada contar ao Sidonis. Duvido que ele acreditasse, aliás.

 

- Ele pode tornar-se um inimigo perigoso. Recomendo-lhe que se afaste o mais possível dele. Ele vai insistir na ameaça de se despedir?

 

- Duvido, mas nunca se sabe. Ele dá a entender que sairia do MMC e encontraria logo um lugar noutro hospital. Mas ele possui um grande laboratório de investigação, e quando a categoria é muito elevada, como eu julgo ser a dele, as coisas não são assim tão simples. Não há nenhum hospital na cidade cujo serviço de cirurgia cardíaca não tenha um chefe. E duvido que qualquer deles gostasse que o velho Caspar resolvesse invadir o seu território.

 

A seguir, Maura contou que Lonnie Sims a ajudara a produzir uma série de imagens quase fotográficas do homem que ela vira. Além do original, havia três outras imagens de frente e de lado: uma com óculos e barba, outra com bigode e cabelo louro e uma terceira com olhos azuis e cabelos castanhos compridos. Sims reduzira-as todas e colocara-as em cima de uma folha de tamanho normal, junto de uma caixa vazia destinada a outras informações. Depois, arranjara-lhe dez cópias.

 

- Devia ter feito uma com ele disfarçado de mulher - disse Concepcion, examinando as imagens.

 

- O quê?

 

- Nada. Estava a brincar. Até parece que este tipo consegue atravessar as paredes dos hospitais. Estava a pensar como seria ele disfarçado de enfermeira.

 

- Por acaso, o Lonnie tentou uma série de cabeleiras femininas e vários tipos de maquilhagem. Isso abria dúzias de combinações e de hipóteses. Mas as imagens ficariam muito pequenas se tivéssemos tentado imprimir uma grande quantidade. Além disso, ele achou que seria muito confuso alguém concentrar-se numa imagem retirada de uma série de quinze ou vinte.

 

- Boa - disse Concepcion. - Vamos tirar uma série de fotocópias a cores e afixamo-las em todos os andares do hospital. Talvez até noutros hospitais, também.

 

- Não podemos - avisou Harry.

 

Harry contou a sua discussão com Owen Erdman e disse-lhes que dera o seu acordo para que Erdman fosse o único a controlar a distribuição dos desenhos, que só seriam entregues particularmente aos chefes de departamento.

 

- Isso não vai resultar - advertiu Concepcion, mais agitado do que nunca.

 

- O que quer dizer com isso?

 

- Não é muito provável que alguém olhe para esses cartazes e diga: ”Ah, ah! Cá está o nosso homem.” Às vezes acontece, mas é raro. O que estamos a tentar fazer é aborrecer o... Doutor, aborrecê-lo ao ponto de ele cometer um descuido... desafiá-lo até que a única coisa que ele deseje seja ajustar contas consigo.

 

- Você fala como se o conhecesse - disse Harry.

 

O tique ao canto da boca de Concepcion disparou várias vezes.

 

- Não o conheço especificamente, Harry - afirmou ele. Mas conheço os psicopatas. É mais provável que ele tropece no seu próprio ego do que nós o encontremos. Mas, para isso, temos de arranjar maneira de o irritar.

 

- Desculpe, mas não posso fazer isso, Walter. Dei a minha palavra ao presidente do hospital. A minha situação é demasiado periclitante naquele local para eu abusar da sorte com ele. O Erdman é conhecido pelo seu mau feitio. Dentro de uma semana, podemos tentar sondá-lo de novo. Mas não agora.

 

- Como queira, doutor.

 

Concepcion examinou um dos cartazes durante alguns segundos.

 

- Maura, esta é espantosa - disse ele, guardando-a numa pasta de cabedal já gasta.

 

Maura olhou-o com curiosidade.

 

- Como é que sabe?

 

- Posso ser um pouco tosco, mas sei reconhecer uma obra de arte quando a vejo - retorquiu ele alegremente.

 

- Obrigada - disse ela, afastando a sua preocupação momentânea. - Veremos até que ponto o desenho é parecido quando o tipo olhar para nós do outro lado das grades.

 

Se ele viver até lá. Por instantes, Concepcion teve receio de ter falado em voz alta.

 

Maura teve a sensação de que o rosto de Concepcion se toldara, como se, de repente, ele se tivesse afastado para um local distante. Concepcion bebeu uma boa parte da limonada que Harry preparara para eles. Quando pousou o copo, a sombra desaparecera. O seu sorriso era aberto e atraente.

 

- Bem, mis amigos - começou. - Chegou a minha vez de vos falar de Elegance, o serviço de acompanhantes para cavalheiros bem-pensantes. A mulher que o dirige chama-se Page. Não me disse mais do que isso. Encontrei-me com ela naquele bar escuro de East Side, que não tem janelas. Nem uma. Parece que as minhas suspeitas tinham razão de ser. A Desiree trabalhava por conta própria para a Elegance, por períodos de quatro ou cinco meses. Bem... Desculpe dizer isto, Harry, mas aparentemente ela era muito requestada.

 

- Óptimo.

 

- Ouça, você não se importa de ouvir esta conversa? Harry encolheu os ombros.

 

- Continue.

 

- Muito bem. De qualquer modo, essa tal Page está muito zangada porque uns tipos muito ricos e poderosos denunciaram o contrato feito com ela quando descobriram que a Desiree era repórter. O que aconteceu é que a Desiree tentou entrevistar algumas das raparigas e uma delas denunciou-a. A Page julgou que, ao despedir a Desiree, seria recompensada. Mas a colaboração entre a Elegance e ela cessou. A Page acabou por perder muito dinheiro. Pareceu-me suficientemente irritada para falar dos homens envolvidos, mas também me pareceu verdadeiramente assustada com eles. Parece que dois deles a foram visitar e lhe fizeram um interrogatório cerrado acerca da Desiree. A princípio, não consegui que ela me dissesse nada deles. Continuei a passar-lhe a mão pelo pêlo e ela falou... Harry, eu... Ah... Os quinhentos dólares já voaram.

 

- Todos?

 

- Foi uma espécie de pegar ou largar. Ela tinha uns copos no bucho e estava muito nervosa. Percebi que, se não lhe acenasse com uma boa oferta, poderia perdê-la para sempre.

 

- Bem, esses quinhentos dólares foram para si - disse Harry.

 

- Harry! - exclamou Maura.

 

- Desculpe, desculpe. Continue, Walter. Eu confio em si. A sério.

 

- Ela não sabia os nomes dos homens, excepto o de um que se chamava Lance. Acho que é o apelido. Ele pagava-lhe em dinheiro e avisava-a sempre que uma rapariga não satisfazia, fosse pelo que fosse. As raparigas eram sete, do melhor, que havia. Iam ao Hotel Camelot duas vezes por mês e passavam lá a noite. A Page não sabia ao certo o que eles iam lá fazer, mas, por coisas que as raparigas contavam de vez em quando, calcula que alguns deles pertencessem ao ramo dos seguros.

 

- Dos seguros?

 

- Foi o que ela disse. Não é grande coisa, mas despertou-me a atenção. Estava a pensar em sondar algumas das criadas do Camelot. As criadas dos hotéis sabem tudo, e nesta cidade metade delas são latinas. Talvez eu consiga saber quem são os tipos e possamos partir daí.

 

Eles reúnem-se de quinze em quinze dias no Hotel Camelot...

 

- Não me parece que seja necessário - disse Harry, lembrando-se de uma das poucas linhas do texto manuscrito de Desiree que tivera oportunidade de ler. - Creio que a Evie nos deixou os nomes de dois deles.

 

Harry copiara os dois nomes que encontrara na agenda de Evie e guardara a cópia na carteira. O original estava enfiado na ponta de um velho par de ténis, no armário da entrada. Harry alisou o papel em cima da mesa, telefonou para as informações e depois para a Biblioteca Pública de Nova Iorque. Perguntou por uma bibliotecária chamada Stephanie Barnes, que fora uma das suas primeiras assistentes, e uma das poucas que deixaram o consultório para voltar para a faculdade em vez de ter bebés ou de ir ganhar mais dinheiro do que ele podia pagar. Harry pagara-lhe um belo bónus pela ajuda que ela lhe dera no primeiro ano. Agora, com um casamento feliz e um mestrado em Ciências Documentais, tinha bebés e mais dinheiro do que ele podia pagar.

 

Ao longo de vários anos de amizade mútua, Stephanie ensinara a Harry uma coisa de que ele já desconfiava há muito: uma bibliotecária expedita e imaginativa podia descobrir quase tudo.

 

- Stephanie, tenho dois nomes com endereços e até com os números da Segurança Social - disse ele, depois de aceitar as condolências pela morte de Evie e de lhe garantir que não tinha nada com a morte dela. - Creio que os dois homens estão envolvidos nos seguros. Quero todas as informações que você conseguir acerca deles, sobretudo onde trabalham e o que fazem. Se você estiver muito ocupada, pode ficar para amanhã, mas eu preferia que fosse daqui a uma hora, mais ou menos.

 

Stephanie disse-lhe que não ficasse à espera de nada, mas daí a meia hora telefonou.

 

- Uau! - exclamou Harry depois de receber as informações. - Walter, você acertou outra vez. James Stallings, vice-presidente da Interstate Health Care. Kevin Loomis, primeiro vice-presidente da Crown Health and Casualty. Parece que ambos são estrelas em ascensão, também. O Loomis andou dois anos numa universidade pública de Nova Jérsia e ainda há dois anos era um simples vendedor. Agora é um tipo importante. Não sei porque vive em Queens, com o dinheiro que deve ganhar. O Stallings frequentou sempre faculdades privadas: Saint Stephen’s, em Dartmouth, e a Wharton Business School. Ganhou uma série de prémios pelo seu desempenho na companhia e na indústria.

 

- Quer que eu procure os números de telefone das companhias? - perguntou Maura.

 

Harry apontou para a folha onde tomara os seus apontamentos.

 

- Vê-se mesmo que vocês não conhecem pessoas como a minha amiga Stephanie. Tenho aqui os números do telefone de casa e da companhia de ambos.

 

- Qual deles quer tentar primeiro? Harry olhou para Concepcion.

 

- O executivo que ganhou os prémios, evidentemente - respondeu Walter. - Vale a pena dizer-lhe como é que se há-de dirigir?

 

- Acho que é preferível improvisar - lembrou Harry. Harry ligou para o escritório de Manhattan da Interstate

 

Health Care e pediu para falar com James Stallings. Pouco depois, a secretária apareceu na linha.

 

- Fala do gabinete de Mister Stallings.

 

- Boa tarde - disse Harry. - Estou a tentar localizar o Jim Stallings. Chamo-me Collins, Harrison Collins. Fui colega do Jim em Dartmouth. Faço parte da comissão de finalistas do próximo ano. O nome do Jim foi escolhido para um prémio e eu preciso de combinar alguns pormenores com ele.

 

Harry foi contemplado pelo seu escasso público com dois polegares erguidos. Seguiu-se uma pausa invulgarmente longa antes de a secretária responder.

 

- Desculpe, Mister Collins. Mister Stallings não pode atender o seu telefonema - explicou ela.

 

- Quando é que devo voltar a telefonar? Mais um intervalo longo e desagradável.

 

- Pode dizer-me outra vez do que se trata?

 

- De um prémio. Dartmouth vai conceder um prémio a Mister Stallings.

 

- Mister Collins, Mister Stallings está muito doente. Muito doente. Ele está na Unidade de Cuidados Intensivos do Hospital Memorial.

 

- Oh, isso é horrível. Qual é o estado dele?

 

- Não lhe posso dizer mais nada sem autorização. Desculpe. Harry relatou a conversa a Maura e a Concepcion, e depois serviu-se do seu título e do seu conhecimento das normas hospitalares para entrar em contacto com a UCI do Hospital Memorial. A sua conversa com a mulher durou apenas um minuto. Harry pousou lentamente o auscultador.

 

- O Stallings teve uma paragem cardíaca no metropolitano, esta tarde - disse ele. - Está ligado a um ventilador e cerebralmente morto. Ela não conseguiu dizer-me mais nada.

 

- Que idade tinha ele? - perguntou Maura. Harry olhou para os seus apontamentos.

 

- Quarenta e dois anos.

 

- Não é exactamente a idade indicada para uma paragem cardíaca - afirmou Concepcion.

 

- O que acha?

 

- Não me agrada. Não me agrada nada. Acho que você devia telefonar ao outro. Como se chama ele?

 

Harry já estava a ligar para a Crown Health and Casualty.

 

- Loomis - disse ele. - Kevin Loomis.

 

Harry alterou a história que contou à secretária de Loomis. Harrison Collins fazia parte da ”Comissão do Executivo do Ano” da American Insurance Association. Loomis era um dos três nomeados para o prémio do ano. Harry sabia que se tratava de uma boa mentira. Pouco depois, Loomis respondeu-lhe do outro lado da linha.

 

- Em que posso ser-lhe útil, Mister Collins? - perguntou ele.

 

- O senhor é a única pessoa na linha? - perguntou Harry.

 

- O quê?

 

- Pode falar à vontade?

 

- Claro que posso. O que se passa?

 

- Mister Loomis, o meu nome não é Collins, é Corbett. Doutor Harry Corbett. Sabe quem sou?

 

- Eu leio os jornais.

 

- Trata-se da minha mulher, Mister Loomis. Da minha falecida mulher, Evelyn.

 

- Porque me telefona?

 

- Mister Loomis, ao tentar libertar-me das acusações de ter assassinado a minha mulher, tenho andado a investigar a vida dela. Soube que ela trabalhou para o serviço de acompanhantes de nome Elegance. Sei que o senhor e James Stallings foram clientes dela no Hotel Camelot.

 

- Isso é um absurdo. Nunca fui ao Hotel Camelot e não conheço a sua mulher nem ninguém chamado Stallings. Agora, estou muito ocupado e...

 

- O seu nome, a sua morada e o seu número de Segurança Social estavam na posse da minha mulher quando ela morreu. Assim como os de Stallings. Calculo que ela os tenha tirado das vossas cartas de condução. Agora, pode falar comigo ou com a Polícia.

 

- Doutor Corbett, não gosto de ameaças. Não o conheço nem conheço a sua mulher. Vou desligar. Não volte a contactar-me.

 

- Mister Loomis, acabo de falar com uma enfermeira da UCI do Hospital Memorial. O James Stallings teve uma espécie de paragem cardíaca, hoje. Está inconsciente e ligado a um ventilador, mas nunca mais voltará a acordar. Está cerebralmente morto. Morte cerebral irreversível.

 

O silêncio prolongado foi uma resposta positiva.

 

- Eu não conheço o Stallings e não tenho mais nada a dizer-lhe.

 

- O meu número é oito, sete, zero, três, quatro, zero, zero, em Manhattan. Telefone-me quando quiser, mas depressa. Tenho a sensação de que precisamos de conversar.

 

Kevin Loomis desligou sem dar resposta.

 

- Ele vai verificar o que eu lhe disse do Stallings - disse Harry aos outros. - Depois, acho que terei notícias dele.

 

- De uma maneira ou de outra - respondeu Maura, cautelosa. - Por tudo o que sabemos, talvez tenha sido ele quem contratou o assassino da Evie.

 

Cada doente estava autorizado a receber duas visitas na UCI do Hospital Memorial. Quando Kevin Loomis lá chegou, às dez para as três da tarde seguinte, James Stallings já recebera o seu quinhão. Foi encaminhado para uma pequena sala familiar cheia de bugigangas, com uma selecção de material de leitura inspiradora e religiosa, e um televisor ligado ao canal de desenhos animados.

 

As visitas eram do meio-dia às oito horas da noite, mas esta fora a primeira oportunidade de Kevin para se dirigir ao hospital, desde que recebera a chamada de Harry Corbett. Assim que ele desligara, Kevin telefonara para o Hospital Memorial. Disseram-lhe apenas que James Stallings se encontrava na UCI, e que o seu estado era crítico. Kevin ligou para o gabinete de Stallings na Interstate Health, na esperança de saber mais alguma coisa, mas desligou assim que a secretária lhe perguntou o nome. Muito abalado, conseguiu aguentar uma reunião de uma hora no escritório, uma reunião na qual Burt Dreiser estava sentado precisamente do outro lado da mesa, a sorrir-lhe com um ar benevolente.

 

Burt, você conhece Sir Gawain, aquele tipo alto e bem-parecido que ingressou na Roundtable seis ou sete meses antes de mim? Por acaso não sabe porque é que ele se encontra em estado crítico na UCI do Memorial Hospital, pois não?

 

Depois da reunião, Kevin mal teve tempo para o recital de dança de Julie. Teria preferido o jogo da Little League de Nicky, mas o seu acordo com Nancy era que ambos alternariam. Agora que o pequeno Brian iria começar a ter lições, assim que estivessem instalados em Port Chester, a fórmula teria de ser alterada.

 

Quando se encontrou com Nancy eram quase nove horas. As crianças já estavam todas nos seus quartos. Kevin passara a noite anterior nas Suites Garfield e já há um dia e meio que Nancy e ele não trocavam mais de meia dúzia de palavras. A mulher apercebera-se da sua tensão invulgar e perguntara-lhe qual a causa. Ele não tentara negar. O trabalho fora particularmente duro, dissera. Quando ela lhe perguntou como é que se saíra no jogo de póquer, ele mentiu dizendo que ganhara ”alguns dólares”. Em seguida, Nancy contou-lhe as novidades de dois dias da família e começou a namoriscar com ele, acariciando-lhe o interior da coxa. Há duas semanas que não faziam amor... desde a reunião da Roundtable, por sinal. Mas também não o fariam nessa noite. Kevin desculpou-se, alegando uma dor de cabeça lancinante, cansaço e um telefonema que tinha de fazer a Burt. Não quis ver como ela ficaria ferida e preocupada e foi para o seu escritório da cave. Aí, telefonou de novo para o Hospital Memorial. UCI, estado crítico.

 

- Desculpe.

 

- Como disse?

 

Kevin estivera a olhar, sem ver, para um clássico de Bugs Bunny. À porta da sala estava uma mulher. Era alta e magra, de cabelo louro e curto. O seu rosto esguio era atraente e talvez fosse belo se não fossem as olheiras.

 

- Veio ver o Jim Stallings?

 

- Vim.

 

A mulher avançou e estendeu-lhe a mão.

 

- Sou Vicky Stallings. A mulher do Jim. Kevin apresentou-se.

 

- Kevin Loomis. Trabalho na Crown Health. Eu... Eu jogo às cartas com o Jim.

 

- Oh, então viu-o na noite antes... Antes disto acontecer. Ele pareceu-lhe bem?

 

- Perfeitamente normal.

 

- Ele ia no metropolitano quando desmaiou - disse ela, falando tanto consigo própria como com Kevin. - Na estação de City Hall. A secretária disse que ele tinha um compromisso qualquer lá em baixo, mas não sabia do que se tratava. Como é que disse que conheceu o Jim?

 

- Eu... Bem... Eu jogo às cartas no grupo dele.

 

- Oh, sim. O senhor já me disse isso, não é verdade? Não consigo reter nada na cabeça. Creio que ele voltou a perder disse ela, desesperadamente distraída, mas tentando ser educada. - O Jim nunca se interessou muito por jogos de cartas, nem era muito bom nisso, tanto quanto posso afirmar. Mas nunca perderia esse jogo. Suponho que a situação tinha mais a ver com a companhia do que com o póquer.

 

Kevin teve uma sensação de estranheza ao ouvir a mentira na boca da mulher de outro homem.

 

- Lamento muito o que aconteceu - começou. - Pelas informações do hospital, só soube que o estado dele era crítico. Ele... Ele...

 

Vicky Stallings abanou a cabeça e depois, de súbito, descontrolou-se. Kevin ficou a seu lado, sem saber o que fazer, até que ela se recompôs. Deixou de soluçar. Embaraçada, pediu desculpa. Ele disse-lhe que não tinha motivos para se desculpar.

 

- A minha irmã saiu agora mesmo daqui - murmurou ela, a custo. - Porque não entra sozinho? Eu fico aqui um pouco. O Jim não me falou de si, mas guardava esse jogo de póquer muito para ele. Foi muito amável ter vindo.

 

- Lamento que isto tenha acontecido - disse Kevin outra vez.

 

Kevin sempre tivera uma forte aversão a hospitais. E as unidades de cuidados intensivos desagradavam-lhe ainda mais. Dirigiu-se à enfermeira da recepção e foi encaminhado para o cubículo 3, uma cabina envidraçada com cortinas que tapavam parcialmente as janelas. O doente que estava lá dentro pouco se parecia com o executivo elegante que se sentava à sua frente há cerca de cinco meses nas reuniões da Roundtable. Tinha tubos no nariz e na boca, presos à face penugenta com adesivo. Ao lado da cama, um grande ventilador assobiava e zumbia, e o seu ecrã reluzia como um jogo electrónico obsceno. Os lábios de Stallings - o que Kevin conseguia ver deles estavam inchados, gretados e feridos. Os olhos estavam tapados com adesivo. De vez em quando, todos os músculos do seu corpo parecia contorcerem-se num espasmo, e os braços rígidos viravam-se para dentro até as palmas das mãos se afastarem do corpo. Por cima, o ecrã do monitor mostrava um ritmo cardíaco bastante regular. Kevin sabia como aquele padrão inocente era enganador.

 

Cerebralmente morto. Fora o que o Dr. Corbett dissera. Cerebralmente morto.

 

Kevin imaginou Evelyn Della-Rosa tal como aparecera nos jornais e ele a recordava. Uma mulher com um aspecto notável, tão espantosamente clássico. Também fora assim que ela acabara? Com tubos a saírem-lhe de todos os orifícios do corpo? Ofegante e cerebralmente morta, com respiração artificial, viva só até que algum médico passasse por lá e desligasse o aparelho? Era isto o que esperava também Kevin Loomis?

 

Kevin aproximou-se mais da cama.

 

A paragem cardíaca de Stallings no metropolitano poderia ter sido uma coincidência? O homem andava extraordinariamente tenso por causa da Roundtable. Estavam quase quarenta graus na gare, e a temperatura não era melhor no interior das carruagens. E se ele tivesse tido o azar de entrar numa daquelas mais antigas, que não tinham ar condicionado? Talvez alguma situação já existente tivesse provocado o colapso do seu coração. Por outro lado, talvez eles tivessem sido observados quando se encontravam em Battery Park. Talvez Stallings tivesse reconhecido alguém da Roundtable no metropolitano. Talvez eles lhe tivessem feito alguma coisa.

 

”Bolas, James, o que aconteceu? O que devo fazer?”, pensou Kevin.

 

- Agradeço-lhe a sua paciência, Mister Loomis.

 

Vicky Stallings lavara a cara e maquilhara-se um pouco.

 

- Trate-me por Kevin - pediu. - Isto é tão triste. Os médicos dele imaginam o que poderá ter acontecido?

 

- Gostava de falar consigo, Kevin - disse ela em voz baixa. - Mas preferia que fosse na sala. Duvido que o Jim ouça, mas há sempre essa possibilidade.

 

- Compreendo.

 

Regressaram à pequena sala. O coiote atirava-se a um grande foguetão, enquanto Bip-Bip passava por ele a correr. Kevin desligou o aparelho.

 

- Não é obrigada a falar-me nisso se for muito doloroso para si - disse ele.

 

- Não há muito a dizer, na verdade. Os médicos disseram que não há esperança. Calculam que o coração dele tenha parado durante oito ou nove minutos. Tentaram a reanimação, mas acho que não foi suficiente. Por fim, a equipa de primeiros socorros conseguiu que o coração voltasse a bater.

 

- Ele tinha problemas cardíacos?

 

Kevin sentiu que esperava ardentemente uma resposta positiva. ...

 

- Kevin, o Jim fez a Maratona de Nova Iorque em três horas e meia, no ano passado. Há cerca de seis meses, fez um seguro de vulto. Eles exigiram-lhe uma prova de esforço. O Jim disse que se saiu tão bem que o médico que o fez lhe interrompeu o exame para atender o doente seguinte.

 

”Um seguro de vulto.” Pensativo, Kevin lembrou-se da sua própria apólice. Quando ingressara na Roundtable aumentara-a. ”Dois milhões e meio e mais meio milhão por morte acidental.”

 

- Ele sempre me pareceu em forma - confirmou Kevin.

 

- Os médicos dizem que talvez ele tenha tido uma quebra do nível de potássio devido ao calor e à transpiração. Parece que o coração é muito sensível ao potássio. Depende do que ele fez uma hora antes...

 

A voz de Vicky Stallings embargou-se de novo. Kevin percebeu que ela estava outra vez prestes a descontrolar-se. Ele próprio se sentia assim. A morte de Stallings não era uma coincidência, tal como a de Evelyn Della-Rosa ou a do cavaleiro chamado Sir Lionel não tinham sido. Eles tinham seguido Stallings, ou talvez mesmo Kevin, até Battery Park. Depois, tinham-no atingido. Agora, Stallings era um vegetal. O inatingível Sir Gawain. Kevin perguntou a si próprio se Stallings também se mudara e comprara uma nova casa quando a sua nomeação para a Roundtable se tornara realidade.

 

Kevin teve vontade de gritar. Fingiu que olhava para o relógio. Vicky Stallings salvou-o do embaraço.

 

- Muito obrigada por ter vindo, Kevin - agradeceu ela, estendendo-lhe de novo a mão. - E, quem sabe? Será preciso um milagre, mas já houve outros. Muitos.

 

- Rezarei por ele - disse Kevin, saindo da sala. Sentia a cabeça muito leve e apetecia-lhe muito uma bebida.

 

Kevin parou no primeiro bar por onde passou, bebeu duas vodcas com água tónica e depois regressou à Crown. Brenda Wallace tinha umas cartas para ele assinar e uma lista de telefonemas para ele fazer. Kevin observou-a enquanto ela andava de um lado para o outro no seu gabinete, bronzeada, com um corpo flexível e muito sensual. Burt Dreiser tinha o gabinete do canto, o iate e Brenda Wallace. Quando é que concluíra que podia gerir o que a Roundtable pretendia dele? Participara na concepção de todo aquele programa? E, o mais importante, por que razão é que Kevin não conseguia ser como ele?

 

Kevin acabou o trabalho e manteve-se sentado durante algum tempo, a admirar a cidade. Depois pegou no telefone e ligou a George Illych, o agente que lhe tratava de todas as apólices na Crown.

 

- George, daqui fala Kevin Loomis. Como está?

 

- Bem, Kevin. Em que posso ajudá-lo?

 

Kevin imaginou George Illych, recostado na cadeira, a contemplar ansiosamente os seus queridos Winstons. Illych, um jogador de bilhar e de golfe, jovial e pesado, era um dos maiores riscos para as companhias de seguros que Kevin conhecia.

 

- Eu e a Nancy comprámos uma casa em Port Chester.

 

- Óptimo, isso é óptimo. Primeiro a grande promoção e depois a grande casa.

 

- Depois o grande seguro. George, resolvi que, com a nova casa e um rendimento de trezentos mil dólares incluindo bónus, quero aumentar o valor do seguro.

 

- Não há problema. Qual foi o aumento mais recente que lhe fizemos?

 

- Um milhão. Há quatro meses. Os meus exames ainda estão válidos, não é verdade?

 

- Durante seis meses. Qual é o total que pretente?

 

- Três milhões e meio.

 

”Mais quinhentos mil por morte acidental”, pensou Kevin, sem o dizer.

 

- Tudo para a Nancy?

 

- Sim.

 

- Não há problema, pá. Daqui a dois dias, dou-lhe os papéis para assinar.

 

- Perfeito. Obrigado, George.

 

- E que tal irmos jogar uma partida de bilhar um destes dias, depois do trabalho?

 

- Jogar bilhar consigo? Não posso dar-me a esse luxo, George.

 

- Espere aí. Você acaba de tornar-se o homem dos três milhões e meio.

 

- Isso é só se eu morrer, George.

 

- Oh, sim. Boa resposta.

 

Meia hora depois, Brenda Wallace entrou para se despedir. Apressado, Kevin empilhou os papéis em que estivera a trabalhar e guardou-os na gaveta da secretária. Não havia mais nada, disse a Brenda. Ela contemplou-o com um dos seus sorrisos mais espantosos antes de ir para casa.

 

Kevin abriu a pasta e tirou um recorte de jornal com uma notícia acerca de Evelyn Della-Rosa. Estava a olhar para a fotografia dela quando ligou para Harry Corbett.

 

- Corbett, você telefonou-me hoje - disse Kevin, falando para o atendedor automático de Harry. - Quero falar consigo. Esteja em casa amanhã às nove horas. Telefonarei a essa hora.

 

Kevin voltou a guardar os artigos de jornal na pasta e tapou-os com os desenhos que estivera a fazer. Era uma série de diagramas e de esboços da cave da sua casa em Queens, que realçavam sobretudo a posição da máquina de lavar roupa, do secador, da entrada e em especial do quadro eléctrico.

 

Era quase meia-noite quando Harry ouviu Maura a bater levemente na porta entreaberta do seu quarto. Estava deitado de costas, acordado, e esforçava-se por adormecer. Mas ainda se sentia muito alterado. A situação continuava a evoluir favoravelmente desde que Maura o convencera a contratar Walter Concepcion. Agora o executivo de seguros Kevin Loomis deixara-lhe uma mensagem no atendedor. Queria falar-lhe. Telefonar-lhe-ia de manhã. A pouco e pouco, o círculo estava a fechar-se. A pouco e pouco, aproximavam-se do assassino de Evie e de Andy Barlow.

 

- Entre, estou acordado - disse ele.

 

- Só queria saber se você quer beber um chá e fazer-me um pouco de companhia.

 

Maura, com umas cuecas de algodão e uma camisola curta, estava à porta, enquadrada pela luz que vinha de trás. Se o seu objectivo naquele momento era mostrar-se atraente e incrivelmente sensual, conseguira alcançá-lo de uma forma admirável. Harry levantou-se e fez-lhe sinal para que se sentasse na cama, a uma distância razoável dele.

 

- Não quero chá, obrigado, mas a companhia é bem-vinda.

 

Um pouco de companhia. Harry sentira-se atraído por Maura pouco depois de a ter visto em casa dela, e a atracção aumentara firmemente. Era um disparate, bem o sabia. Um disparate e um perigo. Ambos eram frágeis e vulneráveis. A mulher de Harry morrera apenas há umas semanas. Maura podia recomeçar a beber. E tinham um assunto a resolver: um louco que queria ver ambos mortos.

 

- Harry, resolvi ir para casa amanhã - disse ela, de repente.

 

Harry tentou disfarçar a surpresa e a mágoa.

 

- Não é obrigada a fazê-lo.

 

- Eu sei. Mas, mais tarde ou mais cedo, terá de ser. Não é que eu queira ir-me embora daqui. Espero que saiba isso. É que, de repente, tenho a cabeça cheia de coisas que quero pintar. Atravessam-me a cabeça como cometas.

 

- Isso é fantástico. Mas creio que ainda não é seguro fazer uma coisa dessas.

 

- Por causa do assassino. Concordo. Mas estar aqui também é perigoso. O perigo está em toda a parte até apanharmos o homem. Do que eu já me livrei foi do álcool. Isso é que me preocupava mais... Era ainda mais perigoso do que o assassino. A reunião dos AA a que fui ontem à noite deu-me ainda mais segurança. Não tenho certezas e vou continuar a ir às reuniões, mas sei que isto vai correr bem. No meio de todas as coisas terríveis que aconteceram, é uma coisa boa.

 

Maura sorriu-lhe.

 

- Mas agora sinto que tenho de estar só, e você precisa de espaço.

 

Maura estava sentada de pernas cruzadas. A sua silhueta era realçada pela luz do corredor. Harry tentou lembrar-se da última vez que abraçara Evie... da última vez que tinham tido relações sexuais. Da última vez que se interessara verdadeiramente por ela. Sentiu um formigueiro no corpo. Nos últimos dias, conseguira superá-lo. E naquele momento? Estendeu o braço e pegou na mão de Maura.

 

- Eu não preciso de espaço e não quero que você se vá embora - disse ele.

 

Maura aproximou-se. Harry sentiu-lhe o perfume e percebeu que a sua capacidade de resistência se desvanecera.

 

- Você não me conhece, Harry - advertiu. - Eu sou resistente. Sou conhecida por comer homens simpáticos e ternos como você ao pequeno-almoço e por cuspir os caroços.

 

Harry afastou-se e observou-a.

 

- Isso parece-me qualquer coisa que você ouviu num filme.

 

- E é, de facto. Deve ter sido a Garbo. Mas eu sempre quis tentar a minha sorte no mundo do espectáculo. Infelizmente é verdade. Não me lembro do último amante que tive senão na medida em que ele serviu para provar que eu valia a pena.

 

- Você vale a pena e é terrivelmente sensual - disse ele.

 

- Mesmo sem cabelo?

 

- Você tem muito cabelo. Além disso, essa coifa minimalista permite que eu me concentre mais no resto.

 

Harry puxou-a para si e acariciou-lhe o seio. Ela soltou um gemido suave, pôs a mão sobre a dele e apertou-a, encostando a cabeça ao seu peito.

 

- Harry, quis que você me desejasse desde que o vi a subir as escadas da minha casa pela primeira vez. Agora estou assustada. Temos passado por tanta coisa, estamos tão magoados.

 

- Maura, não é obrigatório fazermos amor. Podemos deitar-nos apenas e ficar abraçados.

 

Maura meteu a mão no interior dos calções dele.

 

- Não se deixe levar pelo que eu digo - disse ela. Encostado à cabeceira da cama, Harry beijou-a ao de leve na boca, no pescoço e na garganta. Ela ajoelhou-se a seu lado e despiu-lhe a T-shirt. Depois, com a boca dele a alguns milímetros dos seus seios, despiu a camisa e atirou-a para o lado. No mesmo instante, a boca dele colou-se ao seu corpo, sugando-o, acariciando-lhe o mamilo com a língua.

 

- Será uma experiência extraordinária para mim fazer amor sóbria.

 

- Não é obrigatório fazermos amor esta noite.

 

- Schiu... Harry, ouça. Não me parece acertado fazer amor consigo, a menos que seja seguro. Há muito tempo que o não faço, creio. Mas você sabe como os alcoólicos são.

 

- Não se preocupe. A Evie era a rainha do preservativo. A última caixa está na gaveta da mesa-de-cabeceira. Está lá há meses. Creio que nem sequer foi aberta.

 

- Bem, mas vai ser.

 

Beijaram-se docemente, com ansiedade. Harry meteu-lhe a mão nas calças, acariciou-lhe as nádegas e avançou, até sentir-lhe o sexo húmido. No mesmo instante, Maura ficou ensopada. Deixou que ele a acariciasse até conseguir suportar a situação. Depois, escorregou para debaixo dele, tirou-lhe as cuecas e percorreu o corpo dele com a boca e a língua, vezes sem conta.

 

- Devagar, Maura - pediu ele. - Estou destreinado e quero que isto dure.

 

- Quem é que disse que esta será a única vez? - disse ela em voz baixa, aproximando a sua boca da dele e ajudando-o a despir as cuecas.

 

Completamente nua, com uma pele maravilhosamente branca e uma penugem macia na cabeça, Maura era a mulher mais sensual que Harry conhecia. Naquele momento, estava deitada de barriga para baixo, com os dedos dos pés esticados. Ele ajoelhou-se a seu lado e passou-lhe a mão pelo corpo longo e sedoso, acariciando-lhe as nádegas repetidamente. Depois, rolou docemente para cima dela, massajando-lhe os músculos das costas e abrindo-lhe as pernas com os joelhos. Estava tão excitado, tão erecto, que se sentia dorido. Beijou-lhe o interior das coxas e acariciou-a entre as pernas. Ela estava pronta, também... incrivelmente pronta.

 

- Por favor, Harry - gemeu ela. - Assim, não. Quero olhar para ti desta vez. Quero ver o teu rosto. Quero ver o teu rosto maravilhoso.

 

Harry beijou-lhe a nuca e ajudou-a a voltar-se. Maura encolheu as pernas e pegou-lhe no sexo. Durante alguns segundos mágicos, ficaram assim, de olhos fixos um no outro.

 

- Continua a olhar para mim - segredou Maura, ajudando-o a entrar dentro dela. - Querido, por favor, não feches os olhos. Só mais um bocadinho. Mantém os olhos abertos e vê como estou feliz. Vê como eu gosto de fazer isto contigo.

 

A luz da manhã entrava pelos intervalos das persianas quando o telefone começou a tocar. Harry nem se lembrava quando ambos tinham adormecido, mas sabia que não fora há muito tempo. Tinham feito amor, depois descansaram. Em seguida, fizeram amor, tomaram um duche, comeram e fizeram amor outra vez.

 

- Se és assim aos cinquenta anos, ainda bem que não te conheci quando tinhas vinte e cinco - disse Maura, ofegante, em determinado momento.

 

- Tu terias onze - respondeu ele.

 

- Aí é que está.

 

Uma hora depois, quando ela estava deitada a seu lado, tocou-lhe nas cicatrizes que lhe cobriam as costas. Ele já lhe falara de Nha-trang.

 

- Agora podes contar-me a verdadeira história - disse ela. - Tenho a certeza que compreenderei. Como se chamava ela?

 

O telefone continuava a tocar. Harry passou o braço por cima de Maura quando esta começou a mexer-se. No relógio digital do rádio eram dez para as oito.

 

- Está?

 

- Harry?

 

- Sim.

 

- Harry, é o Doug. Desculpe acordá-lo.

 

- Já estou levantado há muito tempo.

 

Maura, já quase acordada, meteu a mão debaixo do lençol para lhe tocar. Harry empurrou-lhe a mão e abafou o riso.

 

- Harry, o que diabo se passa? - perguntou Atwater. Pela voz tensa do Doug, era óbvio que ele não se referia ao que se passava naquele momento no quarto de Harry.

 

- Com quê?

 

- Com aqueles cartazes, raios. Harry, por favor, nós somos amigos. Não brinque comigo.

 

Harry estava agora totalmente acordado e sentado. Maura, apercebendo-se de que havia problemas, levantou-se também.

 

- Doug, você tem de acreditar em mim. Não sei do que está a falar.

 

- Há cartazes em todos os placards do hospital e pelo menos em dois outros hospitais, tanto quanto sabemos. Cartazes com oito versões do esboço daquele homem que você julga que matou a sua mulher. O Owen está furioso, Harry.

 

Harry soltou um gemido e tapou o bocal.

 

- Há cartazes em todo o hospital, com os diabos. Só pode ter sido o Concepcion. - Virou-se de novo para o bocal. Doug, aposto que foi um tipo que eu contratei para me ajudar que fez uma coisa dessas. Eu disse-lhe que não o fizesse, mas parece que ele desobedeceu. São só as imagens? O cartaz tem alguma coisa escrita?

 

- Claro que tem, Harry. Ouça, eu não sou parvo. Não me trate como...

 

- Por favor, Doug, o que é que eles dizem?

 

Harry ouviu o suspiro de Doug, que tentou manter a compostura.

 

- Dizem que esse homem é procurado pelo assassínio de Evelyn Della-Rosa e que qualquer pessoa que tenha informações a respeito dele deverá contactá-lo por este número. Há uma recompensa de cinquenta mil dólares para quem prestar informações que conduzam à detenção e à acusação do homem.

 

- Quanto?

 

- Cinquenta mil.

 

- Cinquenta mil?

 

- Harry, o Owen está furioso com isto.

 

- Diga-lhe que lhe peço desculpa. Vou telefonar-lhe a explicar o que se passou e vou arrancar os cartazes todos.

 

- Não é só neste hospital, Harry. Também telefonaram do Hospital Universitário e do Saint Bart’s. Desconfio que haja outros.

 

- Eu vou tratar disso, Doug. Eu vou tratar disso tudo.

 

- Quem é que fez isto?

 

- Ninguém que você conheça. Obrigado, Doug. Obrigado por me ter telefonado.

 

Harry desligou.

 

- Nem que eu conheça - disse ele entre dentes. - Maura, podes entrar em contacto com o teu irmão?

 

- Acho que sim.

 

- Quero saber se há algum detective licenciado em Nova Iorque que se chame Walter Concepcion.

 

A chamada de Kevin Loomis chegou pontualmente, às nove horas. A esta hora, Harry já recebera mais três telefonemas. Um era de um empregado da manutenção do MMC, outro do Hospital Universitário e o terceiro era de Bellevue. Todas as pessoas que tinham telefonado afirmavam ter visto o homem do cartaz. Duas queriam um adiantamento sobre a recompensa, antes de prestar quaisquer informações. Harry foi buscar um bloco de apontamentos ao escritório e começou a tomar notas. Ligou também o atendedor de chamadas.

 

- Maldito Concepcion - resmungava, depois de cada telefonema. - Maldito Concepcion.

 

Loomis, que falou de um telefone público, disse apenas que queria encontrar-se com ele. Pareceu-lhe tenso mas não em demasia.

 

- Esteja na esquina sudeste do cruzamento da Terceira Avenida com a Rua Cinquenta e Um, hoje, às onze horas da noite - disse ele. - Leve um boné de basebol na cabeça. Eu vou buscá-lo.

 

Desligou antes de Harry lhe fazer quaisquer perguntas.

 

Durante a meia hora seguinte, houve mais dois telefonemas com palpites e perguntas acerca da recompensa. Maura é que os atendeu. Nenhum parecia muito prometedor.

 

- Vamos criar um sistema para avaliar estas chamadas lembrou ela. - Devíamos dizer que, se a pessoa que telefonar conseguir indicar-nos o homem, estamos interessados. De outro modo, não, obrigado.

 

- Maura, eu não tenho cinquenta mil dólares.

 

- Ouve, uma coisa de cada vez - disse ela. - Não te lembras que o orador disse o mesmo na reunião dos AA, ontem à noite?

 

- Meu Deus, criei um monstro.

 

O terceiro telefonema era de tom Hughes. Continuava a procurar mas, tanto quanto podia afirmar, nunca houvera um detective privado licenciado em Manhattan nem em qualquer cidade do estado de Nova Iorque que se chamasse Walter Concepcion. Harry desligou o telefone bruscamente e depois ligou para a pensão de Concepcion. Foi o próprio Walter que atendeu.

 

- Concepcion, quero saber quem diabo é você e por que motivo é que me apunhalou pelas costas desta maneira.

 

Durante quinze segundos, fez-se um silêncio.

 

- Em sua casa ou na minha... - respondeu por fim Concepcion.

 

- ... não consegui ver a cara do homem por causa do modo como estava amarrado, mas, apesar das drogas e das dores, reconheci-lhe a voz. Era o meu chefe, o Sean Garvey. Ele era aquilo a que nós chamávamos um agente infiltrado: em parte pertencia à CIA, em parte à DEA e em parte a tudo. Competia-lhe coordenar a nossa actividade clandestina no Norte do México. Mas ele traiu-me e pôs o seu amigo Perchek a tratar-me da saúde...

 

Quando o homem que Harry conhecera como Walter Concepcion chegou ao apartamento, Harry descontrolou-se imediatamente. Sem esperar por uma explicação, encostou Concepcion à parede do corredor e preparava-se para o agredir quando Maura o impediu. Naquele momento, Maura e ele estavam sentados no sofá da sala e escutavam em silêncio Ray Santana, que lhes contava os três anos da sua vida em que fora agente infiltrado da Drug Enforcement Agency, no México, fora capturado e depois torturado às mãos de Anton Perchek.

 

- ... Depois de o Garvey sair da cave, Orsino, um dos ajudantes do senhor da droga, disse ao Perchek que havia um túnel de fuga que ia dar a uma casa do outro lado da rua. Como havia festa em Nogales e milhares de pessoas em toda a cidade, eles teriam uma oportunidade perfeita de escapar à Polícia mexicana. Era óbvio que o pobre Orsino não sabia com quem estava a lidar. Não era por acaso que não havia fotografias nem descrições fidedignas do Doutor. O Perchek tirou uma pistola da mala e, com toda a calma, atingiu-o a tiro na boca. Depois, apontou-me a arma. Mas estava furioso comigo porque eu não cedera. Isso era o pior dos insultos para ele. Queria que eu morresse, mas não depressa. Em vez de me dar um tiro, despejou-me no corpo o conteúdo de uma seringa cheia de hiconidol.

 

- Oh, meu Deus - disse Maura. Santana estremeceu.

 

- Foi horrível. Um horror indescritível. Mas também foi um erro. Eu não morri...

 

Fascinado, Harry observava o homem enquanto este falava. Havia entusiasmo na voz de Santana, mas os seus olhos estavam vazios, estranhos e distantes. Contava a sua história, mas intimamente estava a vivê-la, concluiu Harry.

 

- ... por amor de Deus, Ray. Vá lá.

 

Uma voz masculina, insistente, intromete-se na consciência de Santana. Ray tenta manter-se na escuridão. Mas, por fim, geme, entreabre os olhos e tenta concentrar-se no rosto que está por detrás das palavras. É como se o tivessem sovado com um taco de basebol. Está deitado de costas na cave soturna, com uma espécie de almofada debaixo da cabeça.

 

- Ray, sou eu, o Vargas. Ray, onde está ele? Onde está o Perchek? Vá lá, Ray. Perdemos muito tempo.

 

O rosto ganha contornos. Joaquin Vargas. Um dos tenentes mais dignos de confiança de Alacante. Um dos homens que Ray se preparava para prender. Vargas, que sempre fora um agente infiltrado mexicano!

 

- Vargas... Nunca julguei que você...

 

- Isso não interessa. Onde está o Perchek?

 

Com um grande esforço, Ray consegue levantar-se. A sua mente desanuvia-se depressa. Parece que o Doutor não conhece a sua droga dolorosa tão bem como julga. Ou talvez não conheça Ray Santana.

 

- Há quanto tempo é que você está aqui ao pé de mim?

- pergunta Santana.

 

- Há meia hora. Talvez há um pouco mais. Você tem estado inconsciente como um peixe no gelo. A princípio, julgámos que estava morto.

 

- Ele saiu por um túnel que há ali algures. Vai dar à casa do outro lado da rua.

 

- O túnel! - ordena Vargas.

 

No mesmo instante, três polícias fardados correm nessa direcção.

 

- Eles não o conhecem - diz Ray. - Eu conheço-o. Preciso de uma arma.

 

- Ray, você está demasiado...

 

- Estou bem, Joaquin. Não imagina o que aquele patife me fez. Por favor. Dê-me a sua arma.

 

Relutante, Vargas entrega-lhe o revólver, uma Smith & Wesson de nove milímetros. Ray afaga a arma e dá uma palmada no braço do mexicano.

 

- Você enganou-me bem - afirma ele.

 

Sem esperar pela resposta, Ray sobe as escadas a correr. Se as ruas estão como Garvey disse que estavam, cheias de polícias e de estrangeiros, ainda há uma hipótese de Perchek não ter conseguido safar-se.

 

São quase seis horas da tarde. Enormes sombras crepusculares estendem-se ao longo da rua principal, onde um pequeno cortejo se dirige para a praça. A multidão que se encontra nos passeios é escassa; é provável que faça um intervalo entre as festividades da tarde e as da noite. Mas vários foliões usam fantasias... e máscaras. Talvez Perchek esteja atrás de um deles, no meio do cortejo. Ou talvez vá a sair da cidade, nesse momento. Mas há polícias em toda a parte, a bater às portas, a verificar os becos e a bloquear as principais saídas da cidade. Ainda há uma hipótese.

 

Ray está mais trémulo, devido ao que passou, do que gostaria de admitir. Mas cada passo é mais seguro que o anterior. E ele sabe que, se e quando precisar de força, ela lá estará. Começa a seguir o cortejo. Mas, pouco depois, um dos homens de Vargas chama-o. O polícia aproxima-se dele com um homem magro e agitado, que gesticula desenfreadamente e que fala sem parar. O homem está quase nu e veste apenas umas cuecas sumárias de seda vermelha.

 

- Mister Santana, encontrámos este homem amarrado e amordaçado com adesivo num beco, a dois quarteirões daqui, naquela direcção - diz o agente. - Ele diz que ainda há dez minutos um gringo lhe apontou uma arma à cabeça, lhe despiu a máscara e o amarrou. Procuramos um palhaço com um fato vermelho, uma máscara e cabelos cor de laranja-vivo. Pela descrição deste tipo, duvido que ele seja difícil de encontrar. Foi apenas há dez minutos. Ele não pode escapar-nos. Vamos fechar a praça.

 

Ray manifesta a sua aprovação, mas sente que alguma coisa está errada. Anton Perchek matara Orsino sem hesitar. Um dos seus aliados. Então porque poupara a vida ao homem vestido de palhaço que lhe vira a cara?

 

Põe a Smith & Wesson no cinto, afasta-se da praça e encaminha-se para o beco onde o palhaço foi encontrado. Um rolo de adesivo emaranhado indica-lhe o local exacto. O beco está deserto. Com o estralejar constante dos foguetes, ninguém daria por um tiro. Contudo, o homem está vivo.

 

Sem saber ao certo o que procura, Santana dá a volta ao quarteirão enfeitado com espalhafato. Depois, contorna o seguinte, rapidamente. E mais outro. Está tudo coberto de lixo da fiesta. Na soleira das portas ou entre bidões de lixo, vêem-se vários foliões profundamente mergulhados numa sesta induzida pelo álcool. Um deles, um pouco afastado dos outros, atrai a atenção de Santana. É uma jovem de rosto bonito, talvez com vinte e poucos anos. Dorme, encostada a um prédio, coberta até ao pescoço por um cobertor mexicano esfarrapado. Ray aproxima-se. Mas, a cinco metros de distância, percebe que ela está morta.

 

Afasta o cobertor. A jovem tem apenas umas cuecas de algodão branco vestidas e está grávida, talvez de sete meses, talvez de oito. Um único orifício de bala contempla-o, obsceno, de cima do mamilo esquerdo, inchado. O sangue derramado já secou. Santana aposta que o Doutor escondeu as roupas da mulher ainda antes de vestir as de palhaço.

 

Impulsionado por um jacto de adrenalina, Santana sente que as suas pernas reagem de repente. Pega no revólver e desata a correr pela rua principal. Um ilusionista mascarado de esqueleto entretém um grupo de cinquenta e tal pessoas. Protegido pela esquina de um prédio, Ray examina a multidão e depois concentra-se na rua. Todos parece estarem envolvidos na conversa, no comércio com os vendedores ambulantes ou a ver o ilusionista.

 

Então, de súbito, Ray avista-a. Do outro lado da rua, um quarteirão mais abaixo. Caminha lentamente, tranquilamente, afastando-se da multidão, afastando-se dele. Mas o que chama a atenção de Ray é a calma dela. Vai descalça, com a cabeça coberta por um xaile. Um peão incaracterístico numa cena que chama a atenção. Incaracterístico. O atributo mais valioso do Doutor.

 

Santana avança, deixando que a multidão o mantenha separado da mulher. Se for o Perchek, não será fácil apanhá-lo. À volta, há dezenas de reféns e de vítimas potenciais se se desencadear o tiroteio. Um movimento. É tudo o que ele tem. Se estiver enganado, haverá uma mulher atacada, ferida. Mas cerca de quinze anos de actividade policial dizem-lhe que não está enganado. Um movimento.

 

Ray mantém-se na sombra do prédio enquanto pode. Depois, atravessa a rua a correr e precipita-se para a mulher, por trás. No último momento, ela sente o movimento e começa a virar-se. Mas Ray, de arma apontada, já está em acção. O seu ombro atinge-a nas costas e ela estatela-se no pavimento sujo e rugoso. No momento em que choca com ela - no instante em que sente o volume e os músculos retesados - Ray sabe que se trata de Perchek.

 

Gritando em russo, o Doutor vira-se para trás e tenta apontar a arma que leva na mão direita. Mas o vestido largo atrasa-o e Santana está pronto a saltar. Agarra no punho de Perchek com a mão esquerda e simultaneamente encosta-lhe a Smith & Wesson à carne macia debaixo do queixo.

 

- Mãos ao ar! - ruge ele. - Mãos ao ar ou ficas sem cabeça, Perchek. Estou a falar a sério!

 

Os olhos azuis do Doutor trespassam-no. A boca do homem retorce-se num esgar de ódio. Depois, lentamente, Anton Perchek larga a arma e deixa-a cair da mão...

 

Harry virou a cabeça e apercebeu-se de que não se mexera durante algum tempo. Na sua frente, Ray curvou-se, visivelmente cansado de contar a proeza que lhe poderia ter custado a vida. Sem falar, Maura foi à cozinha e trouxe café. Ninguém falou até ela encher três chávenas.

 

- Pode contar-nos o que aconteceu depois? - perguntou Harry.

 

- Nada de bom. A injecção do Perchek não me matou, mas durante estes últimos sete anos desejei que isso tivesse acontecido. Sucedeu algo irreversível às fibras responsáveis pela dor do meu sistema nervoso. Elas disparam sem motivo. Umas vezes não custa. Outras, é um inferno.

 

- Presumo que tenha consultado vários médicos.

 

- Sem a substância química que o Perchek utilizou, os médicos nem sequer sabiam por onde começar. Quase todos julgaram que eu estava doido. Você sabe como os médicos reagem às coisas que não leram nos manuais. Julgaram que eu procurava drogas ou uma pensão do Governo. Por fim, consegui reformar-me com cem por cento de incapacidade. Vou aos Alcoólicos Anónimos e aos Narcóticos Anónimos de vez em quando, mas a dor está lá. Felizmente, tenho um médico e um farmacêutico da minha terra, no Tennessee, que compreendem a situação. Por isso não me é difícil conseguir receitas de Percodan.

 

- E a sua família? - perguntou Maura. Santana encolheu os ombros tristemente.

 

- A minha mulher, a Eliza, tentou compreender o que me acontecera e o que eu estava a passar. Mas, como não foi encorajada nem esclarecida pelos médicos, acabou por desistir. No ano passado, casou com um professor de Knoxville.

 

- E o seu filho?

 

- Anda na universidade. De vez em quando, sempre que pode, telefona. Não o vejo há uns tempos.

 

- Que tristeza - disse Maura.

 

- Eu estava a conseguir... Pelo menos até há umas semanas. Cerca de um ano depois de o Perchek estar preso na penitenciária federal mexicana, mesmo à saída de Tampico, foi-me dito que ele morrera na queda de um helicóptero durante uma tentativa de fuga. Não confiei no que me disseram. No México, se alguém tiver dinheiro, pode fazer com que tudo aconteça, ou simular qualquer acontecimento. Dera-se uma explosão quando sobrevoavam o mar. O helicóptero explodiu e houve várias testemunhas fidedignas. O que recuperaram no Atlântico foi identificado como sendo os restos do Perchek pelas radiografias aos dentes.

 

- Você não parece muito convencido.

 

- Digamos que aquilo em que eu quis acreditar e aquilo em que acreditei não era uma e a mesma coisa.

 

- Mas como veio aqui parar? - perguntou Harry.

 

- Recebi um telefonema de um velho amigo do Departamento de Medicina Forense. Esse seu perito, Mister Sims, tinha enviado para baixo uma série de impressões digitais para identificar. Uma delas, a impressão de um polegar, coincidia com a do Perchek em noventa e cinco por cento. Não fiquei admirado, sobretudo quando soube que ela provinha do quarto de uma mulher que fora assassinada num hospital. Vim para cá e comecei a fazer planos para me aproximar de si. O meu amigo prometeu dar-me um pouco mais de tempo antes de entregar o resultado da identificação ao Sims.

 

- Mas porque não nos disse quem era?

 

- Bem, a verdade é que eu não tinha a certeza de que lado estava você. Pensei que tivesse contratado o Perchek para matar a sua mulher. Nem mesmo depois daquela noite em Central Park eu tive a certeza.

 

Harry gemeu.

 

- Foi você. Você é que matou aquele homem.

 

- Parece aborrecido.

 

- Estou aborrecido.

 

- Salvei a vida da Maura. Talvez a sua, também.

 

- Se tivesse apanhado aqueles homens em vez de matar um deles, o Andy Barlow ainda poderia estar vivo.

 

Foi a vez de Santana perder a paciência.

 

- Harry, não seja burro. Estamos a lidar com assassinos, aqui. Não com professores universitários nem com trabalhadores sociais. Trata-se de assassinos. Percebeu? Essa gente não se aproxima para permitir que alguém os acompanhe à Polícia. Essa gente mata. Foi uma pena o que aconteceu ao Barlow. Ele não devia ter morrido. Mas meta na cabeça que a culpa não foi minha.

 

- Você é perigoso, Santana - afirmou Harry, de chofre. É um pedaço de dinamite ambulante com um pequeno rastilho. Você não se importa com quem é eliminado, desde que o Anton Perchek esteja envolvido.

 

- Tem razão, irmão.

 

- Bem, eu podia ter sido despedido do hospital por causa do que você fez, irmão.

 

- Vá lá, Harry - disse Santana. - Você pode ser repreendido mas não será despedido. O seu advogado é muito bom. Ouça, vamos retirar esses cartazes. Já lá passaram a maior parte da noite, o que significa que já conseguiram irritar o Perchek, e isso é exactamente o que eu queria que eles fizessem.

 

- Irritar o Perchek. Você é mesmo uma ave rara - retorquiu Harry, não muito bem-disposto. - Quantas vezes é que o maldito telefone tocou desde que você cá chegou? Em Manhattan há cada vez mais idiotas, todos convencidos de que podem ganhar cinquenta mil dólares. Irritar o Perchek. Santana, ponha-se a andar daqui para fora. Já tenho problemas suficientes com os meus inimigos. Não preciso de outros, criados por aqueles que se dizem meus amigos.

 

Maura já estava farta do que ouvira.

 

- Ouçam, vocês os dois - disse ela. - Sentem-se e calem-se por um instante. Não me interessa o que sentem um pelo outro, mas nenhum de vocês, sozinho, tem grandes hipóteses de apanhar esse Perchek. Harry, tu és médico, não és polícia. Ray, você não pode entrar nos hospitais, e é lá que está o seu homem. Vocês precisam um do outro. Admitam-no.

 

Harry deitou um olhar furioso a Santana. Maura atravessou a sala e pôs-se em frente dele, de mãos nas ancas.

 

- Querem que eu vos obrigue a apertar as mãos como era costume fazermos no liceu, depois das discussões? Muito bem. Mantemo-nos juntos e tentamos esclarecer a situação uns com os outros antes de discutirmos. De acordo?

 

- Combinado - responderam os dois homens entre dentes.

 

- Bem, então venham daí - interpôs Maura, antes de eles recomeçarem a conversa. - Temos vários cartazes para arrancar.

 

Uma pequena multidão aglomerava-se junto do placard à saída do bloco operatório do MMC. Viam-se enfermeiras, técnicos e médicos, incluindo um anestesista, um especialista e Caspar Sidonis. Parecia que todos falavam ao mesmo tempo dos cartazes que tinham aparecido durante a noite em todo o hospital.

 

- Sabem? Eu acho que já vi este tipo - alvitrou uma das enfermeiras, apontando para o esboço de Perchek com barba.

 

- Janine, desde que despachaste o Billy, o ano passado, já viste quase todos os indivíduos da cidade.

 

- Não tem graça nenhuma - disse Janine.

 

- Concordo, Janine - apoiou Sidonis. - E esta... Esta última humilhação para o nosso hospital também não tem graça nenhuma.

 

Ao ouvirem as primeiras palavras do cardiocirurgião, todos os outros se calaram.

 

- Toda a gente no hospital sabe que o Harry Corbett matou a mulher. Não conseguiu suportar a sua perda e matou-a. É tão simples como isto. Esses esboços são apenas uma cortina de fumo, uma manobra de diversão. O homem é absolutamente imputável, tal como a mulher que fez estes desenhos. Eles são o produto de uma mente distorcida pelo álcool, e nada mais. Vocês verão. Já estou farto do Corbett e do modo como ele manipula toda a gente aqui. Uma recompensa de cinquenta mil dólares, francamente!

 

Embaraçada com a explosão do cirurgião e com as histórias que todos sabiam acerca do seu envolvimento com a mulher assassinada, a multidão dispersou rapidamente. Quando Sidonis se virou, por pouco não chocou com um homem que vestia uma bata de laboratório, e cujo distintivo o identificava como sendo Heinrich Hauser, um professor e investigador do Departamento de Endocrinologia.

 

- Concordo totalmente consigo, doutor - disse Hauser com um forte sotaque alemão. - Esse Corbett arranja sarilhos a toda a gente.

 

- Obrigado, doutor - respondeu Sidonis.

 

Olhou para o homem, que era cerca de dez centímetros mais baixo do que ele, de cabelos grisalhos e bem aparados, óculos grossos e dentes amarelados. Os dentes não agradaram a Sidonis, que recuou instintivamente, receando uma baforada de mau hálito. Não se lembrava de ter visto aquele homem, mas era raro reparar em alguém com quem não tivesse um assunto importante a tratar.

 

- Desejo-lhe um bom dia - disse Hauser.

 

- Sim. Também para si.

 

Sidonis parou e olhou para o homem mais uma vez.

 

- Já nos conhecemos? - perguntou.

 

O sorriso de ocre do outro homem obrigou Sidonis a virar a cara.

 

- Não me parece, doutor - respondeu ele. - Mas talvez venhamos a encontrar-nos outra vez.

 

Ao anoitecer, os três dias de calor tinham dado lugar a uma agradável chuva de Verão. Harry saiu de casa às dez e meia e apanhou um táxi para East Side. Seguindo as instruções recebidas, levava um boné de basebol na cabeça, o único que conseguira encontrar em casa. Era de Evie, do tempo em que ela vivia em Washington, azul-marinho e com umas letras bordadas a ouro mesmo por cima da pala, onde se lia ”U. S. Senate”. Depois de ler a introdução do livro de Desiree, Em Vale de Lençóis, não podia deixar de perguntar a si próprio se o boné seria um trofeu.

 

Harry fora repreendido em voz alta por Owen Erdman por ter quebrado o acordo e pendurado os cartazes. Mas, tal como Santana previra, não corria o risco de perder os seus privilégios desde que os cartazes fossem retirados prontamente. Harry encarregar-se-ia do MMC. Santana e o homem que ele contratara para o ajudar tratariam dos outros seis hospitais em que já tinham afixado cartazes.

 

Quando saíram do apartamento de Harry, ainda reinava uma certa tensão entre ambos. Harry sentia que já não podia confiar mais em Ray Santana, que só agia no seu próprio interesse. Santana teve o mérito de não contestar este ponto. Mas continuava a afirmar que qualquer sacrifício, fosse de quem fosse, do qual resultasse a morte do Doutor teria valido a pena.

 

Consideraram a hipótese de convencer Albert Dickinson a acelerar o andamento do caso. Mas nenhum foi a favor desta opção. As hipóteses de que ele os ajudasse eram significativamente menores das que ele lhes criasse mais problemas. Perchek era arrogante e destemido, mas não era parvo. Era mais que certo que Dickinson acabaria por arrastá-lo para o secretismo... talvez o pior que poderia acontecer. Como ainda não se sabia o que o Doutor fazia em Manhattan nem o motivo que o levara a matar Evie, era impossível prever durante quanto tempo é-que ele andaria por ali.

 

Harry e Santana saíram para retirar os cartazes, e Maura ficou no apartamento para atender os telefonemas, que choviam a uma média de dois ou três por hora. Quase todos eram enganosos, mas alguns pareciam interessantes. Maura tomou nota de todos e prometeu dar uma resposta.

 

Como ainda faltava um quarto de hora para o seu encontro com Kevin, Harry saiu do táxi junto do parque e da Rua 51 e percorreu a pé os restantes quarteirões. Embora não o preocupasse especialmente o facto de ser seguido, não se esquecera da experiência vivida no apartamento de Desiree. Atravessou a Rua 49 duas vezes, parando junto de várias portas para examinar a rua. Nada. Era noite de recolha de lixo, e a chuva miúda pouco contribuía para afastar o cheiro nauseabundo que vinha das montanhas de sacos de plástico que aguardavam a recolha. Já se passara bastante tempo desde a última greve prolongada do lixo em Manhattan. Em noites de Verão como aquela, Harry percebia por que motivo é que a resolução do conflito raramente se arrastava.

 

O trânsito era escasso e o cruzamento da Rua 51 com a Terceira Avenida estava quase deserto. Com o boné de Evie bem puxado para os olhos, Harry encostou-se a um candeeiro e ficou à espera. Exactamente às onze e cinco, um táxi amarelo parou junto dele. A porta do passageiro da frente abriu-se.

 

- Entre, doutor - disse o motorista, cuja voz parecia lixa número trinta e seis.

 

- Você é o Loomis? - perguntou Harry, quando o táxi arrancou.

 

- Não.

 

O motorista não disse mais nada até se aproximarem do cruzamento da Quinta Avenida com a Rua 57.

 

- Assim que eu atravessar a avenida, saia do carro e corra para a esquina da Rua 60. Apanhá-lo-ão aí. Já me pagaram, por isso saia depressa.

 

O homem abrandou até o semáforo ficar vermelho e depois atravessou o cruzamento à pressa, parando mesmo à frente do trânsito que vinha da Quinta Avenida. A manobra provocou uma série de buzinadelas indignadas, mas garantiu que nenhum automóvel viria atrás deles. Harry subiu a Quinta Avenida a correr, na direcção da Rua 60. Assim que chegou à esquina, um Lexus preto aproximou-se. A porta abriu-se e Harry saltou lá para dentro com o carro em andamento. O homem que ia ao volante, bem-parecido e com cerca de quarenta anos, virou para a zona sul de Central Park e acelerou.

 

- Kevin Loomis - disse ele. - Desculpe o aparato. Nem sequer tenho a certeza se isto serviu para alguma coisa. Eu e o Stallings tomámos todas as precauções quando nos encontrámos em Battery Park, mas eles conseguiram seguir um de nós, ou ambos. O Stallings regressava ao escritório quando sofreu a paragem cardíaca.

 

- Quem são eles? - perguntou Harry.

 

- Eles são as pessoas que eu considero responsáveis pela morte da sua mulher. Por isso é que resolvi encontrar-me consigo esta noite. São gente dos seguros de saúde. Auto-intitulam-se Roundtable.

 

- Como a Million Dollar Roundtable.

 

- Eu diria antes como a Hundred Million Dollar Roundtable... Eu faço parte dela.

 

Viraram para a auto-estrada de West Side e continuaram em frente. Harry quase nem queria acreditar quando Kevin Loomis descreveu a sociedade secreta e o seu envolvimento recente. Harry gostou logo do homem: o tom crítico do seu discurso, a dureza e a esperteza subjacentes aos modos de executivo recém-adquiridos. Se a Roundtable era uma elite exclusivista como Loomis a descrevia, era um pouco difícil imaginá-lo lá dentro.

 

Houve duas coisas que impressionaram Harry quase desde o princípio. A primeira foi o secretismo e a desconfiança, o pouco que Loomis sabia dos outros cavaleiros. Mais parecia uma operação secreta do Governo do que um clube de colegas de profissão. A segunda foi algo de que se apercebeu no homem. Era óbvio que Loomis estava triste com o que acontecera a Evie e a James Stallings. Mas não era palavroso nem volúvel, nem lhe pareceu perturbado ou desesperado, nem tão-pouco assustado. Parecia mais calmo naquela noite do que quando tinham falado ao telefone pela primeira vez. Calmo e indiferente.

 

- Quanto à sua mulher, aposto o que deve ter acontecido - disse Loomis. - Presumo que você não teve nada a ver com a morte dela.

 

- O nosso casamento estava por um fio, tal como os jornais disseram. Mas eu nunca seria capaz de lhe fazer mal.

 

- Os tipos da Roundtable são terrivelmente paranóicos. Temiam que a Desiree andasse a investigá-los.

 

- Não andava - disse ele. - Andava a escrever um livro e a preparar uma reportagem televisiva sobre o poder do sexo nos negócios e na política.

 

Harry passou em revista a noite que estivera no apartamento de Desiree, sem nunca mencionar o Doutor.

 

- O envolvimento dela no seu grupo era essencialmente uma questão de investigação - prosseguiu Harry. - Talvez ela vos tenha revistado as carteiras, se teve oportunidade para isso. Descobriu que vocês pertenciam ao ramo dos seguros, mas não sabia mais nada. Não creio que ela desconfiasse sequer do objectivo das vossas reuniões.

 

- Bem, parece que a Roundtable não engoliu isso. Eu estive presente na discussão, e ninguém desconfiou que eles tencionavam encontrá-la e matá-la. Mas agora tenho a certeza de que o fizeram. Não sei quem é que lhe injectou a tal substância química. Imagino que tenha sido o mesmo tipo que se encarrega de matar os segurados que custam muito dinheiro às nossas companhias. Com os diabos, pelo que sei, talvez seja mais do que um.

 

Harry resolveu saber mais um pouco de Loomis e das suas motivações, antes de partilhar com ele as informações acerca de Anton Perchek. Entraram no Bronx por Henry Hudson Parkway e continuaram a afastar-se de Manhattan, na direcção de Van Cortland Park. Harry continuava a sentir-se inquieto quanto às intenções de Loomis, e perguntou a si próprio se o homem estaria a mentir ou a esconder alguma coisa.

 

- Kevin, porque resolveu contar-me tudo isto? - perguntou Harry. - Você faz parte da Roundtable. Se ela for destruída, há uma boa hipótese de você também sofrer com isso.

 

- Há vários motivos, de facto. Tenho lido muita coisa a seu respeito, e não me agrada o que estão a fazer-lhe: a destruir a sua vida. Você ganhou uma medalha por ter sido alvejado no Vietname. Era muito novo para combater, mas o meu irmão mais velho, o Michael, perdeu lá uma perna. Além disso, estou a ficar farto desta situação. Mas não me interprete mal. Não sou nenhum anjo. Longe disso. Seria capaz de fazer quase tudo o que a Roundtable queria sem pestanejar. Mas paro quando está em causa a morte doutras pessoas, por muito doentes que elas estejam e por muito dinheiro que nos custem. Tenciono arranjar provas e fazer uma espécie de acordo com a DA... Isto se alguma vez conseguir arranjar provas.

 

- O que quer dizer com isso?

 

- Não há nada no papel. Absolutamente nada. O Stallings era o único que podia ajudar-me. De qualquer modo, irei em frente. Contarei a mesma história que acabo de lhe contar e direi os nomes que puder. Mas desconfio que os advogados dos outros cavaleiros me cortarão aos pedaços.

 

- Talvez não. Sabe? Sempre tive uma teoria para explicar o facto de a pessoa que matou Evie aparentemente se ter afastado sem me molestar. Descobri que isso acontecia porque eu era o tipo indicado para ser acusado. Para que se veriam livres de mim? Agora percebo que talvez tivesse razão. Se todos os indícios apontam para mim, não era provável que fosse você e o Stallings a desafiar a Roundtable.

 

- Exactamente. Você disse que o assassino da sua mulher tem tentado induzi-lo a matar-se. Essa seria a prova concludente. Não sei como reagiria o Stallings, mas eu deixaria imediatamente de desconfiar da Roundtable.

 

Harry virou-se para Loomis.

 

- O que você está a fazer exige uma grande coragem - disse ele. - Quando for ter com as autoridades, lá estarei consigo, se isso o conforta.

 

- Obrigado, mas, por aquilo que tenho lido nos jornais, não estou certo de que isso constituísse um benefício. Os polícias odeiam-no.

 

Harry sorriu.

 

- Entendido. Kevin, ouça, estou a pensar numa coisa que poderia ajudar-nos. Lembra-se dos critérios que constavam dessa folha que o Stallings lhe deu?

 

- Melhor do que isso.

 

Kevin entregou-lhe a folha de papel com o programa de Merlim, os critérios que tinham custado o emprego a Beth DeSenza. Em seguida, virou para Mosholu Parkway e seguiu por Major Deegan Expressway, na direcção da cidade.

 

- Quantas são as companhias envolvidas? - perguntou Harry.

 

- Talvez cinco, sem contar com a minha e com a do Stallings. Conheço bem duas delas; a Comprehensive Neighborhood Health e a Northeast Life and Casualty. Ainda não sei quais as companhias que os outros três representam, mas posso descobrir se trabalhar nisso.

 

- Não faça nada que irrite ninguém. É óbvio que esses tipos não têm muita paciência com quem os incomoda.

 

Harry examinou os critérios.

 

- Os custos mínimos para alguém se candidatar a morrer são quanto? Meio milhão?

 

- Exactamente.

 

Harry enrolou a folha de papel e fê-la tamborilar no pulso. A sua ideia começava a ganhar forma.

 

- Kevin, gostei que me tivesse contactado antes de ir ao DA - disse ele. - Agora sou eu que tenho uma coisa para lhe mostrar.

 

Estendeu-lhe um exemplar do cartaz. Kevin olhou para ele, depois estacionou na faixa de resguardo e acendeu a luz interior.

 

- Nunca o vi - retorquiu, trinta segundos depois.

 

- Foi ele que matou a Evie. Temos provas. Vi-o a sair do quarto dela pouco antes da injecção. A companheira de quarto da Evie viu-o dentro do quarto. E ele deixou uma impressão digital que foi identificada pelo laboratório do FBI. Chama-se Anton Perchek. É doutor, Kevin. De medicina. É conhecido em todo o mundo como mestre da tortura e por manter as vítimas vivas e acordadas durante as torturas. Julgava-se que ele tivesse morrido num acidente de helicóptero, quando fugiu da prisão, há seis anos.

 

- E acha que ele está envolvido com a Roundtable?

 

- Acho. Acho que é ele que leva a cabo essas... Essas mortes.

 

Kevin devolveu-lhe o cartaz e reentrou na auto-estrada. Durante algum tempo, reinou o silêncio.

 

- Você tem de apanhar esse tipo - proferiu Kevin.

 

Você tem de apanhar? Harry olhou para ele com curiosidade, mas não fez comentários. Kevin continuava de olhos fixos na estrada.

 

- Tive uma ideia - disse Harry. - Você disse que duas das companhias envolvidas eram a Comprehensive Neighborhood Health e a Northeast Life and Casualty. Não tenho muitos doentes da Comprehensive, mas tenho bastantes cobertos pela Northeast Life. Suponha que eu admitia um no meu hospital e inventava um diagnóstico que integraria na lista dos candidatos à morte, segundo esse protocolo.

 

- Conseguiria fazer uma coisa dessas?

 

- Acho que sim. A verdadeira questão é saber se o seu cavaleiro da Northeast Casualty morderia o isco. Como se chama ele?

 

- Pat Harper. É o Lancelote, aquele que convidou o Stallings para se juntar ao círculo mais restrito.

 

- Portanto, se alguém estivesse activamente envolvido nisto, seria ele. Óptimo.

 

- Mas você sugere que seleccionemos um doente e o exponhamos a esse tal Anton Perchek? Quem faria uma coisa dessas?

 

- Na verdade, estou a lembrar-me de alguém que teria o maior prazer nisso. Mas não é meu doente. Pode levar-me ao meu consultório? Fica na Rua Cento e Dezasseis, junto da Quinta Avenida.

 

- Com certeza. Eu sabia que faria bem em contactá-lo. Mais uma vez, as palavras de Loomis e o modo como ele as pronunciou deixaram Harry inquieto. Loomis não falara uma só vez nas implicações do que ele estava a fazer para si próprio e para a família. A verdade é que nem sequer falara da família. Optara por contactar Harry antes de se dirigir à DA. Porquê? Você tem de apanhar esse tipo. Porque não nós?

 

De repente, Harry percebeu. O que o preocupava no homem era o facto de ele parecer distante, como se os acontecimentos que descrevia estivessem relacionados com outra pessoa. Loomis optara por falar com Harry antes de procurar a DA, porque não tinha qualquer intenção de ir ao encontro das autoridades. De facto, não tinha qualquer intenção de levar aquilo até ao fim. De repente, toda aquela estranha viagem fazia sentido. A calma de Loomis. A sua ausência de medo. Loomis era um executivo de uma seguradora. Harry desconfiava que a sua morte deixaria a família numa boa situação económica.

 

- Sente-se bem? - perguntou Harry, quando se aproximaram das luzes da cidade.

 

- O quê? Sim, evidentemente. Continuo preocupado com o que vai acontecer. Mas sinto-me muito mais optimista depois de ter falado consigo.

 

- Ainda bem. Nós podemos acabar com a Roundtable, sabe?

 

- Eu sei.

 

Naquele momento, a tristeza na voz de Loomis era inconfundível.

 

- Kevin, você disse que sabia o que passei na guerra.

 

- O que li nos jornais.

 

- O meu pelotão caiu numa emboscada. Fomos apanhados num tiroteio terrível, com morteiros a cair em cima de nós vindos de um monte próximo. Quase todos os nossos camaradas foram mortos ou ficaram gravemente feridos. Eu consegui arrastar três dos deles para a faca. Por isso é que fui condecorado... como se eu soubesse o que estava a fazer nesse momento. Depois, um morteiro explodiu mesmo atrás de mim. Julguei que ele tinha atingido uma mina porque parecia que metade da selva fora pelos ares. Não faço ideia de quem me tirou dali. Levei cerca de uma semana a acordar. Eles tiraram o metal e todos os resíduos que puderam das minhas costas, além de uma parte de um rim. Passei meses a recuperar no hospital. As dores eram muitas e durante muito tempo julguei que não conseguia andar.

 

- Mas conseguiu.

 

- Aí é que está. Ao fim de três meses de recuperação, resolvi que não podia aguentar aquilo. Saí na minha cadeira de rodas, com um revólver enfiado debaixo do lençol. Durante meia hora... oh, com os diabos, nem sequer sei quanto tempo durou... estive na floresta com essa arma metida na boca e o dedo no gatilho.

 

- Porque não o puxou? Harry encolheu os ombros.

 

- Acho que concluí que não me competia fazê-lo. Tinham atravessado o rio na direcção da cidade e dirigiam-se para o consultório de Harry.

 

- Ainda bem para si.

 

- ”Desesperado” é um termo relativo, Kevin. A situação de James Stallings é muito mais desesperada. A sua, não. Pense nisso, promete?

 

Por instantes, pareceu-lhe que Kevin ia dizer qualquer coisa, mas este limitou-se a fazer um sinal afirmativo e concentrou-se na estrada. Harry sentiu que fora até onde pudera, ao aconselhar um homem que não conhecia. Pelo menos fora esse o seu objectivo. Rodaram em silêncio até que Loomis parou à porta do consultório de Harry.

 

- Há mais alguma coisa que eu deva saber antes de criar uma minhoca para Sir Lancelote morder?

 

- Limite-se a seguir o protocolo - disse Loomis. - Desejo-lhe sorte.

 

Harry saiu do automóvel. A chuva tinha parado, mas a percentagem de humidade rondava os cem por cento.

 

- Dê-me uma semana antes de ir à DA - pediu Harry. Se desencadearmos uma coisa destas, a publicidade será dolorosa.

 

- Não há problema. Eu falo consigo primeiro, de qualquer modo.

 

- Obrigado. E, Kevin...

 

- Sim?

 

- Faça um favor a todos e leve isto até ao fim. Loomis virou-se para ele sem que os olhos de ambos se cruzassem.

 

- Sim, com certeza. Obrigado - disse ele.

 

De madrugada, Harry encontrou o que procurava: um doente do sexo masculino, entre os trinta e cinco e os cinquenta e cinco anos de idade, cuja seguradora era a Northeast Life and Casualty. Max Garabedian, de quarenta e oito anos, director de uma escola. Garabedian, muito melindroso com o seu trabalho e o seu corpo, era um pouco hipocondríaco. Mas era uma pessoa essencialmente saudável. E era isso que Harry precisava de saber. Só havia uma forma de o seu plano resultar, mas eram inúmeras as situações que poderiam frustrá-lo. Contudo, provocar um acidente estranho e permitir que Max Garabedian se apresentasse num hospital qualquer quando já frequentava o MMC não seria uma delas.

 

Harry pensou em telefonar a Garabedian para lhe explicar o que tencionava fazer. Porém, se o homem concordasse, poderia ser acusado de fraude pela companhia de seguros. Não, resolveu Harry. Max Garabedian teria de ser hospitalizado para tratar a sua doença dispendiosa e potencialmente fatal sem o seu consentimento. Harry copiou todos os dados pertinentes que o departamento de admissões do hospital precisaria de saber.

 

Agora, só havia dois problemas: inventar uma situação terrível e convencer Ray Santana a servir de isco.

 

Harry saiu do elevador no Grey 2 e encaminhou-se logo para a prateleira onde se encontravam as fichas clínicas, ao lado do posto das enfermeiras. Tentava não dar nas vistas, mas sabia exactamente que todas as enfermeiras, todos os serventes e todas as secretárias daquele piso se tinham apercebido da sua chegada. Também tentava parecer despreocupado, embora cada vez mais se sentisse como se fizesse a patrulha nocturna na selva. Era o terceiro dia que ia visitar o doente do quarto 218, um homem registado com o nome de Max Garabedian. Para evitar cometer um crime grave, estava talvez a cometer voluntariamente vários outros. O facto de esta charada estar a durar tanto tempo era uma homenagem a uma preparação meticulosa e a uma sorte incrível. Mas o tempo continuava a passar.

 

Tinham sido necessários dois dias de trabalho intenso para Harry conseguir admitir Ray Santana no Manhattan Medical Center. O diagnóstico que ele escolhera fora uma leucemia linfocítica, agravada por um baixo nível de glóbulos brancos e por uma endocardite bacteriana -, uma infecção grave e potencialmente letal das válvulas cardíacas. Para aumentar a parada da companhia de seguros de Sir Lancelote, Harry acrescentara um código e uma nota especial, onde se lia que se admitia a hipótese de submeter todo o corpo de Garabedian a radiações e a um transplante de medula óssea.

 

Para pôr o caso à prova, Kevin Loomis verificara os dados existentes nos computadores da Crown Health and Casualty. O custo estimado para tratar as doenças de Max Garabedian durante pouco mais de dois anos - o tempo que lhe restaria de vida - era de 697 000 dólares. Um transplante de medula óssea custaria mais 226 000 dólares, em parte porque aumentaria a sua esperança de vida para treze anos e meio. Se Lancelote usasse o programa de selecção da Roundtable, Max Garabedian acender-se-ia nos computadores da Northeast Life como um farol.

 

Harry abriu o dossier de Garabedian e reviu os apontamentos e os relatórios laboratoriais que lá inserira, incluindo umas instruções que ele próprio dera, servindo-se do nome do chefe da hematologia. Ele próprio assinara a nota e interceptara a cópia quando esta fora colocada no gabinete do hematologista. Estas manobras eram necessárias para não despertar as suspeitas das enfermeiras e de quem examinava as fichas. Mas todos os movimentos eram acompanhados do perigo da descoberta, e Harry sentia definitivamente essa pressão. Dormia apenas quatro ou cinco horas por noite, não tinha apetite e desenvolvera uma tosse desagradável e seca que sabia ser apenas uma questão nervosa.

 

E, para aumentar a tensão, nem a Roundtable nem o Doutor davam sinais de morder o isco.

 

Harry escreveu uma nota extensa e orientada para o problema do doente na ficha clínica. Como era habitual nos dois primeiros dias de rondas, ninguém lhe falava a menos que ele se lhes dirigisse directamente. Assim é que estava certo. Quanto menos perguntas lhe fizessem, menos ele seria obrigado a mentir. E Harry nunca mentira com facilidade.

 

Para dissuadir o pessoal do hospital de entrar no quarto de Max, Harry acrescentara ”tuberculose provável” à mistura; tudo somado, a patologia era suficiente para afastar até o mais intrépido prestador de cuidados de saúde. Devido ao aspecto esquelético, à pele amarelada e à melancolia crónica de Ray Santana, Harry sabia que o pessoal do hospital não teria dificuldade em conotá-lo com o seu diagnóstico assustador.

 

Crime.

 

Garabedian, que Harry rotulara de ”negociante bem sucedido” no historial de admissão, foi instalado num quarto isolado. Durante o período de hospitalização, seria tratado pelas suas próprias enfermeiras especiais. A ”enfermeira” do turno da noite era uma detective particular chamada Paula Underbill. Os turnos de dia eram assegurados por Maura, que usava óculos e uma cabeleira escura. Como o estado de Garabedian exigia precauções, ambas as ”enfermeiras” tinham de usar máscaras e batas. É claro que Anton Perchek também usaria máscara e bata. Mas tanto Maura como Santana sentiam que seriam capazes de o reconhecer. E Paula Underbill, uma mulher rija de Brooklyn, cinturão negro em karaté Kenpo, estava ansiosa por tentar.

 

Crime.

 

O facto de o doente ter enfermeiras especiais também ajudava a resolver um dos problemas mais bicudos para Harry: os exames laboratoriais. Prescrevia análises diárias ao sangue, mas nenhuma delas incluía a contagem de glóbulos brancos, cujo resultado seria normal. No entanto, como Garabedian tinha as suas próprias enfermeiras, as daquele piso seguiriam os seus exames laboratoriais com menos atenção. O truque consistira em arranjar um doente que desse muito trabalho, e depois em contemplar o pessoal regular com uma enfermeira particular, à guisa de salvação. Harry inseriu contagens de glóbulos fabricadas, que trazia do consultório, na ficha do doente, e resolveu improvisar e produzir mais testes laboratoriais consoante o que ouvia do pessoal. Não ouvia nada.

 

Quase todos os outros pormenores eram simples de burilar, pelo menos em teoria. O tubo intravenoso seria preso à pele de Ray com adesivo e envolvido em gaze. Os medicamentos administrados por via intravenosa escorreriam para a gaze ou para o lavatório. Os medicamentos administrados por via oral seriam suprimidos imediatamente ou mantidos debaixo da língua de Ray enquanto fosse possível. E, evidentemente, o Percodan e o Demerol seriam receitados de três em três ou de quatro em quatro horas, para aliviar as dores.

 

Crime.

 

O obstáculo final foi a insistência categórica de Ray em manter a arma ao alcance da mão. Quer a detective privada, que tinha a sua própria arma, quer Maura, que não tinha nenhuma, concordaram em ajudá-lo a esconder a arma, se fosse necessário.

 

Crime. Crime. Crime.

 

Harry concluiu a sua nota indicando que o estado de Garabedian estava a melhorar um pouco, mas que seriam necessários mais dez ou catorze dias de internamento. O seu objectivo consistia em fabricar o maior número possível de complicações. A Northeast Life and Casualty, tal como a maioria das seguradoras do admirável mundo da medicina, tinha uma equipa de inspectores que examinavam as fichas dos doentes hospitalizados, e estava disposta a pôr fim aos benefícios se a base de dados indicasse que chegara o momento de o ”diagnóstico” ser tratado em casa.

 

À porta do quarto 218 estava um carrinho de aço inoxidável com as luvas, as batas e as máscaras necessárias para lidar com os doentes cujas doenças infecciosas exigiam o isolamento. Harry preparou-se e entrou no quarto, fechando bem a porta atrás de si. Maura estava sentada numa cadeira, a desenhar. Ray estava na cama a ver Regis and Kathie Lee.

 

- Há algum problema? - perguntou Harry.

 

- Ele quer que eu lhe dê banho na cama - disse Maura.

 

- Da última vez que estive hospitalizado, as enfermeiras davam-me banho duas vezes por dia - lamentou-se Ray. Lá porque não estou doente, não há razão para que não seja tratado com carinho.

 

- Nada de banhos na cama, mas vou dar ordens para lhe fazerem três clisteres por dia.

 

- Até tinha vergonha de pedir só um.

 

- Creio que não tem aparecido ninguém.

 

- Nem sequer uma enfermeira. É como se julgassem que a peste grassa aqui.

 

- E julgam. Maura, precisas de alguma coisa?

 

- Arranja maneira de aquela pessoa que nós sabemos vir até cá.

 

Harry apontou para a almofada de Ray.

 

- Não há problema em manter isso escondido?

 

- Não, desde que aqui a minha enfermeira continue a oferecer-se para fazer coisas que os de lá de fora não terão de fazer. Já lhe agradeci tantas vezes que não me admiraria se eles lhe fizessem uma colecta. Alguns progressos no mundo exterior?

 

- Os telefonemas abrandaram, mas continuam a chegar. Um técnico de laboratório do Good Samaritan jura que o nosso homem era um interno calvo da Polónia. Uma enfermeira do Hospital Universitário tem a certeza de que ele é um dos serventes, só que tem cabelo escuro e usa um brinco.

 

- Talvez ele seja ambos - disse Santana. - Se pudéssemos saber quais os dias em que ele foi localizado nesses hospitais, aposto que descobriríamos uma ou duas mortes em doentes seguros pelas companhias da Roundtable.

 

- Bem, se o que estamos aqui a fazer não der resultado, prometo que o ajudo a afixar de novo os cartazes. Nessa altura, não terei nada a perder.

 

- Isso é verdade. Mas se alguma coisa correr mal aqui e formos apanhados, ficaria admirado se o deixassem voltar a este hospital mesmo na qualidade de doente.

 

- Mas, amigo, nós criámos um sistema perfeito - disse Harry, com um ar cómico de desafio. - O que diabo havia de correr mal?

 

Durante todo o dia, Ray Santana teve mais dores do que era costume, sobretudo atrás dos olhos e nas pontas dos dedos das mãos. Tomara um Percodan às dez da manhã e precisara de levar uma injecção de Demerol cinco horas depois. Por fim, um quarto de hora depois da injecção, mergulhou num sono inquieto. Um forte antibiótico, destinado a tratar a infecção das suas válvulas cardíacas, gotejava de um frasco de plástico para a espessa tira de gaze que lhe envolvia o braço.

 

Maura lavou a cara, preparando-se para o seu sexto turno de oito horas em três dias, o segundo consecutivo. Sentia-se cansada, mas estimulada. A armadilha que tinham montado parecia condenada ao fracasso desde o início. Mas ainda não ruíra.

 

A respiração de Santana tornou-se mais profunda e regular quando Maura se sentou na cadeira a ler a última People. A seguir ao álcool, as revistas eram aquilo de que mais dependia. E, tal como sucedia com a bebida, era muito fácil mantê-las à distância, desde que não começasse a lê-las. A porta do quarto estava quase fechada. Lá fora, Maura ouviu os passos e as conversas múltiplas de um grupo que se aproximava. Em seguida, ouviu-se a voz de um homem.

 

- ... O hospital tem três quartos com a ventilação reversa necessária para o isolamento adequado de doenças infecciosas

- dizia ele. - A nova ala ficará ligada a este piso e contará com mais três, o que fará deste hospital o número um da cidade, na eventualidade de uma epidemia infecciosa...

 

Maura, cuja atenção se repartia entre a revista e a conversa, não se apercebeu de que Santana acordara de repente, se apoiara num cotovelo e esfregava os olhos.

 

- Maura, consegue vê-lo? - perguntou ele com uma voz rouca.

 

- Consigo ver quem?

 

- O homem, com os diabos! O homem que está a falar! Santana tinha um olhar alucinado, por causa das drogas, e a boca seca como algodão em rama.

 

- ... Mas você diz que o custo diário destes quartos é agora mais do dobro de um quarto normal? - perguntava uma segunda voz.

 

- Sim, mas comparado com o que é cobrado nos centros médicos, continua a ser uma pechincha. Agora, se quiserem vir atrás de mim, vou mostrar-lhes o mais recente em...

 

Naquele momento, Santana estava sentado com as costas bem direitas e a almofada no regaço, para proteger a arma. Em pânico, Maura atirou a revista para o lado. Ray, a transpirar profusamente, tentava libertar-se da roupa da cama e do tubo intravenoso ao mesmo tempo.

 

- Abra a porta! - exigiu ele num sussurro rouco. Abra-a já!

 

- Por favor, diga-me o que se passa.

 

- Raios, Maura, despache-se! Abra a maldita porta! Santana levantara-se e continuava a proteger a pistola.

 

Maura abriu a porta. A cerca de dez metros, no corredor, entre a habitual multidão do meio-dia, constituída por enfermeiras, doentes e visitantes, um grupo de dez ou onze homens e mulheres bem vestidos afastava-se lentamente dela.

 

- Desculpem - gritou-lhes Maura. - Desculpem, por favor.

 

O homem que falava calou-se e todos os elementos do grupo se viraram ao mesmo tempo. Durante alguns segundos, ficaram ali enquanto Santana os espreitava da cama. Maura também examinou o grupo. Mas, de longe, não conseguia perceber qual deles... ou se algum era Anton Perchek.

 

- Filho da mãe! - gritou Santana, de repente, erguendo a arma. - Filho da mãe!

 

No mesmo instante, ouviram-se gritos e o caos instalou-se no corredor, quando os empresários e talvez mais uma dúzia de pessoas se baixaram para se proteger ou desatarem a correr.

 

O tubo intravenoso soltou-se do frasco de plástico quando Santana se precipitou para a porta. O suporte portátil no qual ele estava pendurado caiu ao chão. Santana saltou-lhe por cima e chocou com Maura, atingindo-a num joelho e desequilibrando-se momentaneamente, ao mesmo tempo.

 

- Seu filho da mãe! - ululou ele outra vez.

 

Com o tubo intravenoso pendurado no braço, Santana encostou-se à ombreira da porta, apontou a pistola e disparou para o fundo do corredor. O tiro ecoou como um disparo de canhão. Todos os que ainda estavam de pé se atiraram ao chão. Os gritos intensificaram-se. A cambalear atrás de Santana, Maura viu o vidro que cobria uma grande gravura floral no extremo do corredor estilhaçar-se com o impacte da bala. Vários metros à direita do quadro, três dos empresários saíram do corredor e precipitaram-se para a escada. Agitando furiosamente a arma, com o tubo intravenoso a estalar como um chicote, Santana, descalço, desatou a correr atrás dos homens, passando por um grupo de visitantes, pessoal e doentes, que gritavam, aterrados.

 

- Chamem a segurança! - gritou alguém.

 

- Apanhem-no! - gritou mais alguém.

 

Vários homens levantaram-se e desataram a correr - embora com um certo cuidado -, atrás de Ray, que chegara ao fundo do corredor e se dirigira para as escadas. Ouviu-se outro tiro no Grey 2 e depois mais um.

 

Maura tirou a bata e a máscara. O seu único pensamento era sair dali antes que alguém se lembrasse de começar a fazer-lhe perguntas. Vestia uma bata de enfermeira comprada num armazém e usava uma cabeleira postiça até aos ombros. Enquanto a acção e as atenções se concentravam no fundo do corredor, ela tomou o sentido oposto, encaminhando-se para as escadas ao lado dos elevadores. Já nas escadas, desceu ao primeiro andar, depois respirou fundo e entrou no corredor principal do hospital. Ainda não percorrera três metros quando dois vigilantes fardados passaram por ela, na direcção das escadas. Pouco depois, dois agentes da polícia, um deles a gritar para um rádio, passaram por ela a correr, encaminhando-se para o extremo do hospital.

 

A reacção à crise foi rápida e bem coordenada. Maura tinha a certeza de que não faltava muito para Ray Santana ser preso... ou pior do que isso. Esperava que ele, antes de ser preso, ou morto, desse pelo menos um bom tiro no Doutor.

 

Esforçando-se por manter a compostura, atravessou o átrio principal, que estava cheio de gente. Havia uma electricidade crescente no ar, a par de um êxodo urgente pelas portas principais, quando se espalhou a notícia de que um homem armado, tresloucado, andava à solta no hospital.

 

- Outra vez, não - ouviu ela dizer a alguém, quando saiu, arrastada pela aglomeração de gente, para a atmosfera luminosa da tarde. - Parece que, sempre que te viras, há um celerado qualquer que desata aos tiros num posto dos correios ou num hospital.

 

Ouvindo as sirenes da Polícia, Maura afastou-se do hospital. Quando chegou ao quarteirão seguinte, já tinham passado por ela meia dúzia de carros-patrulha; a fazer barulho. Os altifalantes atroavam os ares e vários polícias fardados corriam para as ruas que circundavam o MMC.

 

A dois quarteirões do hospital, sentiu-se finalmente em segurança para parar e telefonar a Harry. Ligou primeiro para o consultório. Mary Tobin estava lá, mas Harry, que já não tinha mais doentes, saíra há meia hora e fora para casa. Dissera-lhe que estaria no hospital às cinco, para visitar dois dos seus doentes.

 

- Mary, houve problemas no hospital - avisou Maura. Agora não posso explicar, mas desconfio que não tardará a saber pormenores se ouvir os noticiários. Acho que devia fechar o consultório o mais depressa possível e ir para casa.

 

Mary era demasiado sensata e passara demasiado nas últimas semanas para pedir esclarecimentos.

 

- Como queira, minha filha - respondeu.

 

- Obrigada pela sua compreensão - disse Maura. Agora tenho de telefonar ao Harry. Oh, a propósito, o Max Garabedian de que ouvirá falar nos noticiários é o Ray Santana.

 

- Quem?

 

- O Ray... O Walter Concepcion. Voltaremos a contactá-la assim que pudermos, Mary. Por favor, vá para casa. Saia daí agora.

 

Maura tirou outra moeda de vinte e cinco cêntimes e ligou para o apartamento. Respondeu-lhe a máquina.

 

- Harry, por favor, sou eu, a Maura. Harry, se estás a ouvir, atende, por favor... Harry?...

 

Maura ia a desligar quando ele apareceu na linha.

 

- Maura, olá. Desculpa fazer-te isto. Continuo a seleccionar as chamadas. Mas, ouve, tivemos um golpe de sorte. Talvez dos grandes. Vou já para o hospital e depois conto-te tudo, a ti e ao Ray.

 

- Harry, se eu estivesse no teu lugar, não o faria... murmurou ela.

 

Quando Maura chegou ao apartamento, as notícias acerca do pistoleiro tresloucado do Manhattan Medical Center já estavam no ar. Max J. Garabedian, um corretor de quarenta e oito anos, saíra de repente do seu quarto de hospital e desatara aos tiros no corredor. Os pormenores eram esquemáticos, mas, até ao momento, desconhecia-se a existência de feridos. E Garabedian, que, na altura, vestia um pijama azul e ia descalço, continuava à solta.

 

Furioso com Santana, e mais perto do pânico do que nunca, Harry andava de um lado para o outro, falando mais consigo próprio do que com Maura.

 

- Eu não devia ter confiado nele. Assim que ele afixou aqueles malditos cartazes, eu devia tê-lo afastado como... Como... Espero que ele esteja bem. Mas neste momento apetece-me torcer-lhe o pescoço. Apetece-me mesmo torcer-lhe o pescoço... Devia ser o Perchek que estava lá fora e que o perturbou tanto. Mas porque é que tu não o viste?... A Polícia pode aparecer aqui a qualquer momento, Maura. Fraude, tentativa de assassínio... Quem sabe o que mais?... O Dickinson vai exultar com isto... O que diabo hei-de fazer agora?

 

O fiasco no hospital não era o único problema grave que Harry tinha de resolver. Restava-lhe pouco tempo para tomar uma decisão que lhe custaria vinte e cinco mil dólares, quase todas as suas economias. O fracasso de Santana deixara-o encurralado. A Polícia não tardaria a chegar ao apartamento. Se ele aceitasse o acordo proposto por um desconhecido ao telefone, tinha de fazer preparativos e sair antes que eles chegassem.

 

- Senta-te, por favor. Só por dois minutos. Senta-te e tenta descontrair-te um pouco - disse Maura.

 

Maura ligou para o Canal 11. Os noticiários variavam muito de estação para estação, mas quase todas continuavam a enviar equipas para o hospital. Mas o Canal de uma outra estação já tinham anunciado que o médico de Garabedian era o Dr. Harry Corbett, que continuava a ser o principal suspeito no estranho assassínio de sua mulher, Evelyn Della-Rosa, que também estivera internada no MMC.

 

Harry estava preocupado com o que esperava o verdadeiro Max Garabedian. Tentara falar-lhe para casa, mas ninguém lhe respondera. Era quase certo que o homem ainda estava no emprego, embora Harry não soubesse qual era a escola em que ele era director. Maura tentou falar para o Ministério da Educação, mas também ninguém lhe respondeu.

 

- São apenas quatro e meia e não está lá ninguém - contou ela. - Não admira que muitas crianças nesta cidade não saibam ler.

 

- Não sei o que hei-de fazer - disse Harry, talvez pela décima vez. - Este tipo está à minha espera em Nova Jérsia às nove horas. O banco fecha daqui a uma hora e um quarto.

 

Recomeçou a andar de um lado para o outro.

 

- Temos de começar a mexer-nos, e a mexer-nos depressa. Quanto mais eu esperar, mais provável é que os tipos do banco saibam que eu sou outra vez notícia. Dada a situação, não sei se estarão muito dispostos a pagar-me vinte e cinco mil dólares em dinheiro. Seja qual for a nossa decisão, tenho de ir buscar esse dinheiro agora. Depois, não sei se poderemos voltar para aqui.

 

À chamada que fizera descer a parada para vinte e cinco mil dólares chegara na mesma altura em que Ray Santana desatara aos tiros no Grey 2. Quando Harry chegara do consultório, tinha dois telefonemas na máquina, e nenhum deles era mais prometedor que as dúzias de outros feitos durante os últimos quatro dias. Pensando que esse telefonema poderia ser de Maura, a dar-lhe conta da situação após o fim do turno, Harry atendeu.

 

- Está?

 

- É o doutor Harry Corbett?

 

A voz era de um homem novo ou de meia-idade, com um sotaque que Harry não conseguiu identificar ao certo, talvez alemão ou suíço.

 

- Sou - respondeu Harry.

 

- Estou a telefonar por causa do homem que está no seu cartaz e da recompensa de cinquenta mil dólares.

 

Harry fez uma careta e arrependeu-se de ter desligado o atendedor. Abriu o bloco de apontamentos e tomou nota da hora do telefonema.

 

- Continue - pediu. - Em que hospital trabalha?

 

- Não trabalho num hospital - disse o homem. - Soube do caso e da sua recompensa pelo meu patrão.

 

- E quem é ele?

 

- O homem do cartaz. As suas iniciais são A. P. Não direi o nome pelo telefone. Mas talvez você já o saiba.

 

Harry ficou hirto ao ouvir as iniciais do Doutor e perguntou a si próprio se o homem que estava ao telefone não seria o próprio Perchek. Harry tentou desesperadamente pensar num motivo para negar que sabia quem era Anton Perchek. Estaria a ceder!

 

- Quem é você? - perguntou.

 

- Sou vigilante na mansão dele e faço de guarda-costas quando ele precisa. Neste momento, estou a falar de um telefone público. Se você conhece o A. P., sabe que ele não hesitaria em matar-me já por eu estar a fazer este telefonema.

 

Harry abrira o bloco de apontamentos e escrevia tudo o que podia do que o homem estava a dizer.

 

- Continue - disse ele.

 

- Quero encontrar-me consigo esta noite e fazer a minha troca. As minhas informações contra o seu dinheiro.

 

- Quanto?

 

- Não tenciono ficar nesta zona nem sequer neste país depois de nos encontrarmos. Eu e o Doutor temos tido alguns problemas entre nós. Tenho motivos para acreditar que ele tenciona matar-me. Aceito metade do que você ofereceu. Vinte e cinco mil em dinheiro.

 

- Não os tenho.

 

- Então arranje-os. Não negoceio abaixo disso. Vinte e cinco mil ou não há acordo. Em troca, dir-lhe-ei onde fica a mansão do Doutor e dar-lhe-ei uma fotografia dele recente, tirada sem o seu conhecimento. Também lhe direi qual o tipo de segurança que ele tem na mansão. Lá você encontrará provas do envolvimento dele na morte da sua mulher, além de outras provas contra ele. O destino que você dará a essas provas é consigo.

 

- Mas...

 

- Doutor Corbett, não tenho tempo para isto. Tenho os meus próprios preparativos a fazer. Hoje à noite, às nove horas. Se conhece o Doutor, perceberá por que motivo é que eu não confio em ninguém. Faça exactamente o que eu lhe digo, ou ambos ficaremos a perder. Agora, aqui vai o que tem de fazer...

 

Nessa tarde, o banco de Harry estava aberto até às seis horas. Harry tinha um total de 29 350 dólares na sua conta de poupança e mais 5000 dólares à ordem. Por outro lado, não tinha qualquer contacto pessoal no banco. Amaldiçoando-se por não fazer mais dinheiro, por não ter aceite o lugar na Hollins-McCue, por não ter ido para oftalmologia e por ter confiado em Ray Santana, Harry pegou na caderneta de poupança, no livro de cheques e, com Maura, esgueirou-se pela porta das traseiras. Correram para o BMW, que estava na garagem, pararam por instantes numa banca de jornais e depois foram para o banco. Sem saber qual o espaço que vinte e cinco mil dólares ocupariam, sobretudo em notas de cem dólares ou menos como o homem exigira, Harry esvaziara uma pasta e levara-a consigo.

 

Entrou no banco meia hora antes do fecho. Era uma filial não muito grande, e ainda havia fila para as seis caixas. Harry nunca pegara em vinte e cinco mil dólares de uma só vez. O banco teria tanto dinheiro disponível?

 

Lá fora, Maura estava sentada ao volante do BMW de Harry. As normas que o chefe da segurança de Perchek estabelecera implicavam que Harry levasse o dinheiro a um aterro situado na margem do Hudson, do lado de Nova Jérsia, não muito longe da cidade de Fort Lee. Harry deveria ir sozinho e chegar às nove horas em ponto. O caminho para o local foi explicado com minúcia. O aterro era uma lixeira ao fundo de uma estrada sinuosa de terra batida e cascalho. Harry deveria guiar até ao centro da clareira, acender e apagar os faróis quatro vezes e esperar junto da porta do lado do condutor. O homem insistira em saber a marca e o número da matrícula do carro. Se outro veículo se aproximasse do aterro, estivesse ou não ligado a Harry, o encontro gorar-se-ia... para sempre.

 

- O dinheiro é muito importante para mim, mas não o suficiente para morrer por ele - dissera o homem.

 

- Como é que eu sei que isto não é uma armadilha? perguntou Harry.

 

- Que tipo de armadilha? Com que objectivo? Se o meu patrão quisesse matá-lo, você já estaria morto. É tão simples como isto. Se você o conhece, bem sabe que é assim. Você é muito mais importante para ele se estiver vivo. Além disso, ele adora infligir dor. A permanência e a calma da morte são os seus inimigos.

 

Harry afugentou um arrepio involuntário.

 

- Irei armado.

 

- Bem parvo era se não viesse. Posso assegurar-lhe que levarei uma arma.

 

- Quero ter a oportunidade de ver o que você tem, antes de lhe entregar o dinheiro.

 

- Terá cinco minutos...

 

A caixa mais nova examinou o talão de levantamento de Harry durante quinze segundos. Depois, verificou o seu saldo e sorriu-lhe através do vidro.

 

- Como quer o seu dinheiro? - perguntou a mulher. Harry lembrou-se de que estava na cidade de Nova Iorque e não numa aldeia da província. Um levantamento de vinte e cinco mil dólares era tudo para ele, mas talvez não fosse invulgar para os funcionários do banco.

 

- Em notas de cem ou inferiores - respondeu ele, sabendo que não fazia sentido aparentar desinteresse quando ela tinha o seu saldo bancário no ecrã, mesmo à frente.

 

- Trouxe qualquer coisa para levar o dinheiro ou quer um dos nossos sacos? - perguntou ela.

 

- Tenho uma pasta.

 

Harry levantou-a para ela ver. A expressão da mulher permitiu-lhe concluir que ela sabia que aquela situação não era muito vulgar para ele.

 

- Preciso da autorização de Mister Kinchley - disse ela.

 

Saiu do seu posto e encaminhou-se para a zona das secretárias, onde se encontravam os funcionários mais jovens. Harry seguiu-a com os olhos e viu-a aproximar-se de um homem de trinta e muitos anos, elegantemente vestido, bronzeado como um marinheiro e com um queixo bem delineado.

 

”Despacha-te. Dá-me o maldito dinheiro”, pensou Harry. Se o levantamento do banco fracassasse, Harry resolvera telefonar a seu irmão Phil, que vivia em Short Hills, a cerca de quarenta e cinco minutos de Fort Lee. Mas se optasse por essa via, tudo se tornaria muito mais complicado.

 

Arriscou-se a espreitar pela janela da frente. Maura estava estacionada mesmo do outro lado da rua. Usava óculos escuros e um chapéu branco de aba mole, que se agitava animadamente, talvez ao som de qualquer coisa que ela ouvia na rádio. Apesar da tensão provocada pela situação, Harry sorriu ao olhar para ela.

 

A relação de ambos fora forjada no calor intenso dos acontecimentos que os tinham aproximado. Mas, em pouco tempo, tinham-se tornado amigos, como ele e Evie nunca tinham sido. E essa amizade, por sua vez, conferira à sua relação amorosa uma abertura e um carinho mútuo que nunca existira no casamento de Harry.

 

Agora, com relutância, Harry punha à prova essa amizade. Apesar da história bastante credível do homem que lhe telefonara, e da sua alusão às iniciais de Perchek, nem ele nem Maura estavam descansados com o que lhe era pedido. No entanto, como o homem dissera, não havia razão para que Perchek quisesse atraí-lo para uma armadilha. Não podia ser pelo dinheiro. Vinte e cinco mil dólares eram apenas trocos para o homem.

 

Era como se Harry não pudesse fazer mais nada, excepto seguir as instruções à letra e esperar que acontecesse o melhor. Porém, quando Maura reparou no telefone que Evie mandara instalar no BMW, tivera uma ideia. E, pouco depois, ambos urdiram um plano. Havia três elementos essenciais à sua estratégia, e Maura possuía-os todos: outro carro, um telemóvel e a coragem e a força de vontade para se expor ao perigo. Tinham parado numa banca de jornais e comprado uma planta detalhada da zona circundante de Fort Lee. Nela, o aterro não passava de uma mancha vazia junto do rio, quadrada, rodeada de ruas suburbanas. Logo que possível, Maura iria buscar o seu carro e o seu telefone. Em seguida, aproximar-se-ia do aterro e, sem ser vista, estacionaria num sítio onde pudesse esconder-se e donde avistasse o terreno. Às oito e vinte, depois de ele sair da garagem, ela telefonar-lhe-ia. Voltaria a contactá-lo depois de ele chegar ao local. Se não houvesse indícios de armadilha, ele poderia avançar com mais confiança. Se surgissem problemas, ela servir-se-ia do telefone para pedir socorro. Tinham uma arma, a que Harry tirara ao assassino em Central Park. Depois de discutir com Harry para que a conservasse, Maura reconhecera que fazia muito mais sentido ser ela a levá-la.

 

- Senhor, desculpe a demora.

 

Harry virou-se para o guiché, mas depois percebeu que a jovem estava a seu lado.

 

- Oh, sim. Não há problema.

 

Susteve a respiração e cerrou os punhos para evitar o tremor das mãos. Aproximava-se a hora de ponta. Mesmo que tudo corresse bem no banco, Maura ainda teria de atravessar a Ponte George Washington, encontrar um lugar para estacionar o carro e depois voltar para o aterro. Se tivessem de contactar Phil, com o dinheiro ou sem ele, seria quase impossível que ela chegasse a tempo.

 

- Se me acompanhar, senhor, Mister Kinchley entregar-lhe-á o seu dinheiro.

 

- Óptimo - disse ele, com um sorriso calmo e os ouvidos a latejar.

 

Kevin Loomis estava sentado, sozinho, no seu escritório da cave, com fotografias de família e da sua vida com Nancy espalhadas pela secretária, por baixo de uma lista que ele fizera. Todos os artigos que constavam da lista tinham sido verificados. As apólices de seguros eram absolutamente rigorosas, desde que não houvesse suspeitas de que a sua morte fora um suicídio. O suicídio custar-lhe-ia - custaria a Nancy - dois milhões dos três milhões e meio que constavam da apólice, já para não falar dos quinhentos mil dólares por morte acidental. Mas ele preparara todos os movimentos, todos os momentos, ao mais ínfimo pormenor. Não haveria suspeitas de suicídio.

 

Preparara com um cuidado especial a lista de convidados para o churrasco que ambos iriam oferecer na noite seguinte. Entre os convidados, catorze ao todo, contavam-se as pessoas mais respeitadas, bem sucedidas, influentes e civilizadas que eles conheciam. O pastor e a mulher, o patrão de Nancy e a mulher, o advogado que chefiava a associação local da Little League e o presidente do Rotary Club. Nancy admirara-se um pouco por ele só ter convidado dois dos seus amigos mais divertidos e amigos de beber, mas Kevin explicara-lhe que queria agradecer a algumas pessoas antes de se mudar para Port Chester e ela aceitara a explicação.

 

De facto, Kevin queria convidados que testemunhassem, com mais eficácia e eloquência, a sua boa disposição e a sua hospitalidade no momento do acidente, assim como o facto de ele ter ”os seus preferidos”. Dois deles acompanhá-lo-iam à cave. Os dois que tencionava levar consigo eram homens em cujas casas ele fizera em tempos pequenas reparações, o dono de um estabelecimento e o pastor. Ficariam nas escadas, com as lanternas apontadas para a água que escorria do tubo solto da máquina de lavar roupa. Eles atestariam que Kevin era suficientemente competente para se encarregar da emergência e diriam que ele se deslocara no chão de cimento com alguns centímetros de profundidade de água. O momento em que a mão de Kevin pousasse no fio do secador ficaria para sempre gravado na mente de ambos. Mas que se lixasse. Eles eram amigos que fariam tudo por Nancy. E ele pagava um preço muito mais alto.

 

A situação dos filhos também fora acautelada. Nicky e Julie iriam passar a noite com uns amigos. Brian ficaria com os pais de Nancy. Era estranho pensar que, na tarde do dia seguinte, quando se despedisse deles, os veria pela última vez. Eles iriam sofrer, mas não tanto como se a família ficasse desamparada e o pai fosse para a prisão.

 

”Talvez exista mesmo outro mundo”, pensava ele naquele momento. ”Talvez eu possa vê-los todos os dias.”

 

Kevin empilhou as fotografias e reviu-as, uma a uma, pela última vez. Depois atou-as com um elástico e guardou-as na gaveta. Rasgou as listas e atirou-as para um cesto de plástico cheio de lixo, que deitaria nos contentores da garagem. Por fim, aproximou-se mais da máquina de lavar roupa e do secador, para verificar o seu trabalho. O cordel atado ao tubo solto, que saía pela janela da cave, estava no seu lugar. Um puxão, e o tubo soltar-se-ia. Cortar o cordel e livrar-se dele seria um dos seus derradeiros actos neste mundo. O último seria colocar ingenuamente a mão na parte de trás do secador.

 

Kevin sabia que Harry Corbett desconfiava do que ele tencionava fazer. Não havia nada de subtil na história sobre o Vietname que ele lhe contara no carro, naquela noite. E, de facto, Kevin pensara muito no que Corbett tentara dizer-lhe, que a sua situação não era desesperada. Era fácil a Corbett fazer uma afirmação dessas. Não tinha três filhos para criar.

 

Kevin falara com ele várias vezes desde então, e tivera o cuidado de se mostrar animado e positivo. Não acreditava que Corbett tencionasse prejudicá-lo. E o que lhe restava, afinal? Daí a pouco mais de vinte e quatro horas, tudo estaria acabado.

 

Kevin inspeccionou a instalação que fizera à volta da máquina de lavar roupa e do secador. A Polícia viria e faria um relatório qualquer. Mas ninguém poderia provar que não fora um acidente. Absolutamente ninguém.

 

Kevin suspirou, como alguém que concluíra um trabalho bem feito. Nessa noite teria um jantar maravilhoso com a família. E, mais tarde, faria amor com Nancy como nunca fizera.

 

A vaga de calor do fim do Verão, à qual tinham sido atribuídas queimaduras, acidentes e mortes em toda a cidade, dissipara-se finalmente. Ao anoitecer, a temperatura era de vinte graus, acompanhada de uma brisa razoável e de uma ameaça de chuva. Às seis horas em ponto, Harry deixou Maura no automóvel dela e depois regressou ao parque do prédio onde aguardaria as oito e um quarto para partir. Há anos que o relógio do tablier do BMW não funcionava, e nem ele nem Evie se tinham incomodado a mandá-lo reparar, por isso Harry contava com o seu Casio. Aproximava-se da garagem quando Maura lhe telefonou para experimentar o telefone celular e lhe dizer que o trânsito entre a sua casa e a ponte era moderado. Voltaria a telefonar-lhe às oito e vinte, como tinham combinado.

 

- É assim, Harry - disse ela. - Verás. Esta noite, por volta das dez horas, estaremos prontos para ir à Polícia. Desta vez, eles têm de acreditar em nós. Espera e verás.

 

- Tu é que esperas. E tem cuidado, por favor.

 

Harry estacionou no seu espaço e saiu da garagem. Um carro-patrulha passou por ali, devagar, a meio quarteirão de distância. Talvez o tivessem visto, talvez não. Graças a Ray Santana, não havia sítio nenhum onde ele pudesse estar em segurança. Voltou para o BMW, ligou o rádio e ficou à espera.

 

A WINS, uma estação só de notícias, continuava a fazer transmissões actualizadas de dez em dez minutos sobre os estranhos acontecimentos que envolviam o homem armado do Manhattan Medical Center. O verdadeiro Max Garabedian fora posto sob custódia da Polícia, interrogado e libertado. Regressara ao seu apartamento da Rua 103 e recusava-se a falar à imprensa até receber instruções do seu advogado. Numa declaração preparada, lida pelo seu advogado, Garabedian negava saber fosse o que fosse acerca do homem admitido com o seu nome no Manhattan Medical Center. Negava ter qualquer relação com Harry para além da de doente/médico, mas considerava Harry um ”médico inteligente e dedicado”, e exprimia a sua determinação em se abster de qualquer juízo até a verdade ser apurada.

 

Harry lembrou-se de tentar telefonar a Garabedian do telefone do seu automóvel. Mas não tinha tempo de fazer mais nada, excepto ficar sentado à espera que fossem oito e um quarto.

 

Havia mais. Ray Santana não fora apanhado. As autoridades não conseguiam explicar como é que um homem armado, em pijama e sem sapatos nem meias, conseguira sair do hospital com vigilantes e dúzias de agentes da Polícia a cercarem o local. O locutor, que travava uma luta nítida com o autodomínio, opinava que aquilo era Nova Iorque, afinal. Talvez o fugitivo estranhamente vestido tivesse desembocado nas ruas de Manhattan e se tivesse misturado com os outros transeuntes.

 

Às sete horas, Barbara Hinkle, a directora das Relações Públicas do MMC, deu uma conferência de imprensa, da qual a WINS transmitiu alguns excertos. O hospital estava grato por não ter havido feridos no lamentável acidente. Os responsáveis do hospital não tinham mais nada a dizer até estar concluída a investigação preliminar daquele acontecimento, que poderia ter sido uma calamidade. Barbara Hinkle acrescentou que, até então, as autoridades hospitalares ainda não tinham conseguido localizar o Dr. Harry Corbett, o médico que admitira o homem armado no quarto 218 do Grey.

 

- Estou certa que todos sabem que o doutor Corbett tem estado sujeito a uma grande pressão ultimamente, devido à morte trágica da mulher. Soube que ele está a receber tratamento médico pela sua reacção ao desgosto e também pelo stress pós-traumático relacionado com os serviços heróicos prestados no Vietname... - confirmava.

 

Stress pós-traumático!

 

- A Barbie do hospital com a sua língua viperina - disse Harry em voz alta.

 

Era óbvio que os médicos do hospital já se tinham reunido e decidido quanto à estratégia a seguir em relação aos desastres colectivos provocados em sua casa pelo Dr. Harry Corbett: stress pós-traumático. Harry perguntou a si próprio que nome inventariam eles se alguém quisesse saber quem era o seu psiquiatra.

 

- ... No hospital, especula-se que o doutor Corbett se serviu do nome de Max Garabedian para hospitalizar alguém que estava muito doente, mas que não tinha seguro de saúde, talvez um veterano do Vietname - prosseguia Hinkle. - O plano fracassou quando o seu doente enlouqueceu.

 

- Bonito - exclamou Harry. - Nada mal. ”E também não andam muito longe”, pensou.

 

O resto da conferência de imprensa de Hinkle não acrescentava nada de substancial, excepto que os funcionários do hospital procuravam a identidade e o currículo das enfermeiras especiais que tinham sido levadas para o hospital pelo homem armado.

 

Durante quarenta minutos, não foi transmitido nada de novo. Depois, meia hora antes de Harry partir, um dos muitos mistérios relacionados com o caso fora dado como resolvido. Um electricista que trabalhava no sistema de aquecimento do hospital fora encontrado por um funcionário da manutenção, amarrado e amordaçado na subcave. Fora roubado sob a ameaça de uma arma por um homem que correspondia à descrição do fugitivo. Tinham-lhe levado as roupas e os sapatos e tinham-lhe tirado vinte e cinco dólares da carteira, que lhe fora devolvida. A Polícia procurava impressões na carteira, assim como no quarto onde o homem armado estivera internado durante três dias.

 

- Ele estava nervoso e assustado, creio eu - disse o electricista. - Mas foi decente para comigo. Devolveu-me a carteira, dizendo que sabia que era um castigo conseguir uma nova carta de condução. Não me fez mal. Mas acho que talvez me tivesse atacado se eu não tivesse feito o que ele queria...

 

Harry viu as horas. Eram oito e dez. Lá fora, o crepúsculo começava a dar lugar à noite. As luzes da cidade acenderam-se. Harry ligou o motor do BMW e lentamente, mais lentamente do que nunca, desceu a rampa que dava para a saída. Por último, às oito e um quarto em ponto, desligou o rádio e saiu para a rua. O jogo começara.

 

Harry passou por um quarteirão, depois por outro. Não se sentia muito nervoso, mas as suas mãos estavam sem cor. Olhou para o relógio. Eram oito e vinte. Onde estava ela? Onde estava o telefonema? Viu outra vez as horas. Muito bem, talvez sejam apenas oito e dezoito. Pouco depois, o telefone tocou. Harry atendeu.

 

- Sim - respondeu.

 

- Harry, estou em cima de uma árvore - segredou Maura, sem fôlego. - Estou em cima de uma árvore no bosque que fica junto de uma lixeira. Acreditas? Se eu soubesse que havia um homem como tu que me faria subir às árvores em lixeiras de Nova Jérsia, à noite, com uma arma na minha carteira, nunca teria perdido o meu tempo a beber.

 

- Bem, eu não estou num local tão exótico - disse Harry em voz baixa, embora não fosse necessário. - Estou na Rua Noventa e Seis e vou a caminho da avenida. Já aí está alguém?

 

- Ninguém. Descobri um sítio espaçoso para deixar o carro e um lugar perfeito para me esconder.

 

- E tens a certeza de que ninguém te viu?

 

- Tenho. Estás a ser seguido?

 

- Ainda não posso dizer.

 

- Tanto faz. Harry, acho que estou a ver um carro a subir a estrada. Volto a telefonar-te às dez para as nove, a menos que ele se aproxime demasiado desta árvore.

 

- Estás a fazer um bom trabalho, Maura. Tens frio? Acho que vai chover.

 

- Estou bem. Já te disse. Esta vai ser a grande noite. Com um olho na estrada e outro no espelho retrovisor,

 

Harry virou para Henry Hudson Parkway. No meio de outros carros, apercebeu-se de um de cor escura, e tinha a certeza que ele o seguia desde o início. Mas Maura tinha razão. Não importava que o homem o tivesse mandado seguir ou não. Seguiria as instruções à letra. Maura era o seu trunfo.

 

Quando atravessou a Ponte George Washington, começou a cair uma chuva miúda. Harry detestava os limpa-pára-brisas e só os ligava quando era obrigado a isso. Dessa vez, ligou-os quando as primeiras gotas começaram a cair. Se as coisas corressem mal nessa noite, não seria por ter cometido qualquer acto estúpido.

 

Assim que chegou à zona ribeirinha de Nova Jérsia, consultou as direcções. Três quilómetros mais à frente, saiu da estrada principal e entrou num subúrbio operário densamente povoado. As ruas estavam ladeadas de árvores, e os pequenos quintais das casas de ripas de madeira estavam cheios de bolas e outros ornamentos das novas famílias. O automóvel de cor escura seguia-o mais atrás, com as luzes apagadas. Harry tinha a certeza de que via o vulto de duas pessoas lá dentro. Localizou facilmente a esquina onde recebera instruções para parar e esperar um minuto. Ia a travar quando o telefone tocou. Era Maura, vários minutos adiantada. E, assim que pegou no auscultador, Harry percebeu que havia sarilho.

 

- Sim?

 

- Harry, pára imediatamente! - segredou ela, em pânico.

- Este local está cheio de polícias. Uma dúzia deles. Talvez mais. Os carros-patrulha não se vêem e tu nem te aperceberias de nada. Mas eles estão aqui.

 

Sentindo o sangue gelar-lhe nas veias, Harry olhou pelo retrovisor. O automóvel ainda lá estava, a dois ou três quarteirões de distância. Pôs o carro em ponto morto e começou a descer lentamente a rua.

 

- Continua - disse ele.

 

- Harry, o teu amigo Dickinson está cá. Em dado momento, esteve a cerca de três metros desta árvore. Agora anda a passear por aqui, para verificar se todos estão nos seus postos.

 

- Tens a certeza?

 

- Tenho. Ele está acompanhado por um tenente que parece ser da Polícia local. Está muito entusiasmado por ter vindo aqui para te apanhar. Daquilo que pude ouvir, alguém telefonou para a Polícia e disse que tu tinhas exigido um encontro neste local, que tinhas um cadáver em teu poder e que pagarias vinte e cinco mil dólares a esse tipo para ele o levar para bem longe e o enterrar onde ninguém o descobrisse. O homem disse que tu eras maluco. Que matavas pessoas por diversão. Que não queria nada contigo, excepto ver-te na cadeia, onde não poderias fazer-lhe mal. Tens de sair daqui, Harry.

 

Com a cabeça à roda, Harry começou lentamente a acelerar.

 

- Mantém-te escondida até poderes voltar para casa em segurança - pediu. - Depois vai para o meu apartamento. Entrarei em contacto contigo.

 

Ao desligar, Harry ouviu-a recomendar-lhe que tivesse cuidado. Depois olhou para as direcções de que tomara nota. No quarteirão seguinte, viraria à esquerda ou seguiria em frente, em vez de virar à direita como lhe tinham dito. Os homens do outro automóvel levariam alguns segundos a aperceber-se de que ele se afastava do que fora planeado. Três ou quatro segundos, no máximo. Era tudo o que tinha. O melhor seria tentar regressar à auto-estrada. Acelerou até aos sessenta.

 

Enterrar um cadáver? Como é que Perchek podia pensar que uma história tão bizarra criaria problemas a Harry?... A menos que...

 

No mesmo instante, Harry percebeu o que se estava a passar, apagou as luzes, virou bruscamente para a esquerda e acelerou. Voltou a virar à direita e depois à esquerda. A sirene estava atrás dele, naquele momento, e Harry via o clarão azul através das árvores. As ruas, ressequidas durante quase duas semanas, estavam escorregadias de chuva e óleo. Harry virou outra vez, e entrou numa rua comprida que desembocava na estrada principal. O velocímetro aproximava-se dos cento e vinte. Harry sempre conduzira descontraidamente e era raro acelerar tanto, mesmo numa auto-estrada. Um casal que saía de casa para ir ao supermercado, um miúdo de bicicleta... eram desastres que poderiam ocorrer naquele momento. Não havia dúvida de que os homens que vinham no carro-patrulha também tinham pedido reforços.

 

Harry tentou desesperadamente analisar a situação. O melhor que tinha a fazer era reconhecer que ela era terrível. Percorria ruas ensopadas em chuva, numa zona que lhe era completamente estranha, à noite, num automóvel com sete anos, e quase de certeza com um cadáver no porta-bagagens. Um minuto. Era tudo o que lhe restava. Um minuto antes de eles o apanharem ou de os reforços lhe bloquearem a passagem.

 

Harry rodava agora numa estrada principal. Admitindo que era a mesma por onde ele passara, tinha quatro faixas sem divisória. O outro automóvel vinha-lhe no encalço, apenas a três quarteirões de distância, e a ganhar terreno. Harry ia a travar para virar para a faixa que seguia para norte. Mas, no último momento, apercebeu-se de uma pequena folga no trânsito nos dois sentidos. Carregou a fundo no acelerador e atravessou-se na estrada. De ambos os lados vinham dois tractores com atrelados. Numa cacofonia de travões, de pneus a chiar e de buzinas, ambos se desviaram, derrapando num poderoso e grotesco pas de deux. O carro da Polícia não teve alternativa senão parar e afastar-se da dança potencialmente mortal. Havia uma rua mesmo em frente daquela donde Harry saíra. Desceu-a a grande velocidade. Abrandou um pouco e olhou para trás no momento em que um dos atrelados, num movimento lento e tormentoso, tombou para o lado.

 

Ao longe, ouviu as sirenes, que eram muitas. Virou para uma rua lateral e parou no meio da rampa de uma casa às escuras. As sirenes ouviam-se cada vez melhor. Harry saiu do carro sem fazer barulho, esperando, a qualquer momento, que os faróis incidissem na casa ou que ele fosse atacado por um vagabundo. Olhou à sua volta. Não fazia ideia onde estava, mas sabia que o rio ficava algures na direcção da casa. Logo a seguir à garagem e ao quintal das traseiras, avistou um bosque, a oeste. Com sorte, poderia lá chegar. Depois, teria de ficar à espreita. Abriu a pasta e meteu no bolso o que lhe pareceu serem sete mil dólares. Estava de calças vincadas e de sapatos abotinados: o aspecto ideal para impressionar os funcionários do banco, mas não o melhor para fugir da Polícia. Infelizmente, naquele momento, tinha de se arranjar com eles.

 

Pegou na chave e meteu-a na fechadura do porta-bagagens. Em parte, apetecia-lhe deixá-la fechada e desatar a correr. Temia confrontar-se com essa parte do pesadelo. Fora Perchek que lho preparara. Mais tarde, onde quer que se encontrasse, saberia pelos noticiários o que estava lá dentro. Uma das sirenes estava agora muito próxima, e pouco depois um carro da Polícia desceu a rua, com as luzes a faiscar. Harry recolheu-se na sombra. O cerco estava a apertar. Restava-lhe pouco tempo. Rodou a chave, hesitou de novo e depois abriu o porta-bagagens.

 

Foi imediatamente atingido na cara por uma baforada de ar quente a cheirar a sangue e a morte. Lá dentro, enfiado no porta-bagagens acanhado, estava Caspar Sidonis. O seu rosto perfeito parecia de cera e o cabelo estava ensopado em sangue que lhe saía dos orifícios de bala mesmo por cima das orelhas.

 

Harry sentiu um afluxo de bílis na garganta. Hesitou, tentando pensar nalguma coisa que pudesse fazer. Depois, voltando a engolir o ácido cauterizante, fechou lentamente o porta-bagagens.

 

- Pobre patife - disse em voz baixa.

 

Um segundo carro-patrulha, sem luzes nem sirene, passou por ali, examinando todas as casas e rampas do outro lado da rua, com um holofote. Harry voltou a mergulhar na escuridão. Seguir-se-ia o lado em que ele se encontrava. Deitando um último olhar ao porta-bagagens, fugiu para o quintal das traseiras e saltou por cima de uma sebe com um metro e meio de altura. Ao cair no solo, sentiu uma dor no peito que lhe cortou a respiração, que lhe explodiu mesmo por baixo do esterno e lhe subiu aos maxilares e aos ouvidos. Cambaleou e depois caiu no solo musgoso e ensopado em chuva. No mesmo instante, ficou encharcado, quer da chuva quer da sua própria transpiração.

 

As sirenes parecia rodearem-no naquele momento. De rastos, Harry embrenhou-se no bosque e subiu para uma árvore. A dor estava a abrandar. Afastou uma onda de náusea e evitou o vómito. Em seguida, fechou os olhos e respirou fundo várias vezes, para se acalmar. Desistir era uma hipótese. Alguém havia de acreditar que lhe tinham armado uma cilada. Mel Wetstone já operara verdadeiros milagres. Talvez conseguisse fazer mais este.

 

Não. A ideia de ser detido, da prisão, de Albert Dickinson, era superior às suas forças.

 

A cem metros, ouviu vozes. Tinham encontrado o carro. A dor abrandara muito naquele momento. Quase desaparecera. Com a experiência de sobrevivência na selva que adquirira no Vietname e uns milhares de dólares no bolso, pelo menos tinha uma hipótese remota de escapar. Empurrou o dinheiro para o fundo do bolso e saltou da árvore. Em seguida, sempre agachado e deslocando-se sem fazer barulho, iniciou uma corrida desajeitada pelo bosque cerrado.

 

High Hill, na zona elegante de Short Hills, em Nova Jérsia, era uma casa de estilo colonial com quinze divisões, garagem e piscina, que se erguia num terreno com cerca de um hectare e meio. Construída e baptizada por um barão do álcool em 1920, o seu nome fora conservado pelos proprietários seguintes. Phil Corbett, o último da linha, vivia na propriedade com a família há mais de três anos. Não gostava do pretensiosismo do nome da casa e ameaçava constantemente substituir a placa de pedra onde se lia High Hill, colocada na esteia na base da rampa, por outra com o nome de High Upkeep.

 

Quando o telefone começou a tocar, às dez e meia da noite de trinta de Agosto, Phil estava a ganhar oitocentos dólares e ponderava a hipótese de aumentar substancialmente a sua vantagem. Uma vez por mês, o jogo disputava-se em casa de cada um dos seis participantes, em sistema de rotatividade, mas os jogadores preferiam High Hill. Pouco depois de se mudar, Phil convertera a sala de música numa sala de jogo à moda do Oeste, com paredes insonorizadas, painéis de nogueira, música de fundo de cabaré, serradura no chão, uma ventoinha de tecto, charutos cubanos e escarradeiras de latão. As apostas eram suficientemente altas para serem interessantes. Mas não havia um único jogador que não arrecadasse confortavelmente cinco mil dólares.

 

Ao fim da tarde, alguns dos homens tinham comentado as últimas notícias que envolviam o irmão mais velho de Phil. Dois deles, Matt MacCann e Ziggy White, ambos milionários que não haviam concluído os estudos universitários, tinham crescido com Phil em Montclair e conheciam muito bem Harry.

 

- A vida é feita de altos e baixos - disse Matt. - Lembram-se como todos nós idolatrávamos o Harry? Ele era o estudioso que iria para a faculdade. Nós éramos os merdosos que iríamos para a prisão.

 

- Vocês deviam continuar a idolatrá-lo - retorquiu Phil.

- Ele é um tipo formidável. Enquanto nós estamos aqui a tentar ganhar uma quantia obscena, ele está a ajudar os outros a tratarem-se. Em metade dos casos, nem sequer lhe pagam.

 

- Mas que disparate é este no hospital? Este stress pós-traumático?

 

- O Harry tem um stress pós-traumático igual ao teu. Alguém quer apanhá-lo. É o que ele me diz e é nisso que eu acredito.

 

- Espero que tenhas razão - disse Ziggy. - Sempre gostei muito do Harry. Mas, como sabes, até o Dillinger tinha um irmão.

 

- Ele não é o Dillinger, Ziggy...

 

O telefone continuou a tocar: cinco, seis, sete vezes. Segundo o acordo que Phil fizera com Gail, se ela estivesse em casa nas noites de póquer, atenderia todos os telefonemas. Mas, nessa noite, Gail fora ao cinema com uns amigos. Phil examinou o dez, o valete, a dama, o rei de espadas e depois deitou um olhar furibundo ao telefone, desejando que ele se calasse. Por fim, pousou as cartas.

 

- Vão ter de esperar que eu vos leve o dinheiro, meus senhores - declarou, levantando-se. - Mas desde já vos aviso que estou a preparar uma razia.

 

- Sim, claro - comentou alguém entre dentes.

 

- Está?

 

- Phil? Sou eu. Estás sozinho?

 

Phil apercebeu-se logo do nervosismo do irmão.

 

- Ah, não. Não, não estou.

 

- Muda de telefone, por favor. Phil pôs a chamada em espera.

 

- Eu estava a mentir acerca da razia - disse ele, pondo as cartas no fundo do baralho. - Vão jogando sem mim.

 

Vinte minutos depois, Phil estava de volta, com um ar muito preocupado.

 

- Houve problemas com o meu irmão - contou. - Acho que vai ser uma noite agitada.

 

- Podemos fazer alguma coisa? - perguntou White.

 

- Podem. Gostava que tu e o Matt ficassem aqui. Quanto a vocês, vão para casa o mais depressa possível. Amanhã falamos. E, se vos apetecer, rezem pelo Harry. Ele está metido num grande sarilho e vai precisar de toda a ajuda que lhe pudermos dar.

 

- Phil, tem cuidado - disse um dos outros três homens.

- Ninguém quer acreditar que uma pessoa da família se pode meter em sarilhos, mas isso acontece.

 

- Eu sei, Stan. Obrigado. Gostaria que se esquecessem que eu recebi este telefonema, mas façam como quiserem.

 

Os três homens trocaram olhares inquietos. Depois, sem fazerem mais perguntas, precipitaram-se para os carros. Ziggy White e Matt McCann ficaram para trás. Pouco depois de o último ter partido, um carro da Polícia surgiu na rampa.

 

- Matt, preciso que fiques a olhar pelos miúdos até a Gail chegar - pediu Phil. - Talvez até às onze e meia. Ziggy, vou falar com estes tipos. Depois, tenho de sair sem ser seguido. Alguém tem ideias?

 

Durante o período do liceu, White fora o maior dos valentões, sempre a saltar do rochedo mais alto ou a roubar alguma coisa, de que não precisava, do estabelecimento mais atento à gatunagem. Chegara a fazer uma pequena fortuna na bolsa. Naquele momento, pensou no problema durante uns segundos.

 

- Não te aflijas - disse ele, entusiasmado. - O Matt esconde-se enquanto os polícias cá estiverem. Tu esclareces que a tua mulher saiu e que ficaste a tomar conta dos miúdos. Eu acompanho-os e fico a conversar com eles ao pé do carro-patrulha. Entretanto, tu sais pelas traseiras. Leva uma lanterna, mas usa-a só quando tiveres a certeza de que não há perigo. Sai pelo quintal e atravessa aquele ribeiro que há lá atrás. Se eles quiserem falar contigo, terão de esperar no fundo da rampa. Eu vou-me embora com eles e finjo que vou para casa, mas viro em Maitland. Encontro-me contigo na rampa dos Griffins. Eles estão em Inglaterra até ao Dia do Trabalho. Sabes onde é, não sabes? Muito bem. Podes deixar-me perto de casa e ficar com o carro enquanto precisares dele.

 

Harry ajoelhou-se no mato denso, atrás da berma de uma estrada rural de duas faixas. A noite não estava muito fria, mas ele estava ensopado e a tremer. Graças a Deus, Phil estava em casa. Graças a Deus, não hesitara em ajudá-lo. Agora, só faltava ele aparecer. Não era que Harry quisesse expor o irmão à acusação de cumplicidade num homicídio. Mas, até encontrar Anton Perchek e descobrir uma maneira de o vencer, aquela era a única oportunidade realista que tinha.

 

O maior problema era conseguirem encontrar-se, visto que ele não sabia exactamente onde estava, e Phil não conhecia bem a região de Fort Lee. Por fim, ficara ao cuidado de Harry escolher a pessoa indicada e pagar-lhe para o levar a uma subestação eléctrica que ficava relativamente perto da casa onde tinham passado a infância, em Montclair. Fora lá que Harry apresentara o irmão mais novo à cerveja e aos cigarros, e viera a descobrir que Phil já os conhecia muito bem.

 

O felizardo escolhido por Harry foi um motociclista que ia numa Harley. Harry avistou-o do bosque, junto de uma estação de serviço, ao entrar para a casa de banho, e chamou-o quando ele saiu. O homem tinha o corpo coberto de tatuagens e era grande como um urso. Era tão improvável que se deixasse assustar por Harry como se mostrasse simpático com a Polícia. O preço de uma viagem de meia hora foi combinado em segundos: mil dólares. Desde que era médico que Harry testemunhara os estragos causados por acidentes com motociclos. Ganhara, portanto, um medo saudável de andar naquilo a que os médicos das urgências chamavam ”triciclos”. Mas o motociclista, que se chamava Claude, valia o risco. Harry enfiou o capacete sobressalente, encolheu-se o mais que pôde no lugar do passageiro, cerrou os dentes e pôs os braços à volta do ”urso”.

 

- Ouça, se você se sair bem, quero mais cem - disse o motociclista, a rir-se.

 

- Você não acelera, e eu não fugirei - respondeu Harry. Durante os primeiros três quilómetros, passaram por quatro carros da Polícia que seguiam em sentido contrário.

 

- Você deve ser importante - exclamou Claude, por cima do ombro.

 

- Mais ou menos - respondeu Harry.

 

Durante a primeira meia hora que Harry passara agachado nos arbustos da subestação, tinham passado seis carros, um dos quais era um Montclair da Polícia. Agora, ao passar a mão lamacenta pela testa, Harry não sabia o que faria a seguir. Se havia alguma opção exequível, ainda não se lembrara dela. Além disso, escapara como que por milagre à cilada que Perchek lhe armara em Fort Lee. Mesmo assim, quando a viagem de quarenta minutos chegou ao fim, os dentes de Harry ainda batiam sem dó nem piedade. Gratificou o motociclista com uma nota de cem dólares, com a naturalidade de quem não espera receber nada em troca. Agora, conforme o medo que ele e Phil tinham ocultado um ao outro se apoderava dele, desejava não se separar de Claude.

 

Havia curvas na estrada, em ambas as direcções, a cinquenta metros do sítio em que Harry estava escondido. As luzes dos faróis dos carros que se aproximavam reflectiam-se nas árvores antes de eles serem vistos. Assim que Harry ouvia o ruído de um motor ou via um reflexo, estendia-se no chão ao lado da estrada. E cada vez ficava mais sujo e mais ensopado, se é que tal era possível.

 

Através da escuridão e da chuvinha persistente, ouviu o ruído de um motor à sua esquerda. Pouco depois, o reflexo da luz tremeluziu nas árvores. ”Um camião”, pensou ele, escondendo-se. Mas era uma autocaravana, do tamanho de um camião, que se deslocava lentamente, seguida de perto por um carro. Harry imobilizou-se quando os dois veículos abrandaram ainda mais e pararam a menos de três metros de distância. Os condutores desligaram os motores e apagaram as luzes. No mesmo instante, voltou a reinar a escuridão. A luz interior da autocaravana acendeu-se e apagou-se quando a porta se abriu e fechou. Durante alguns segundos, fez-se silêncio. Depois, Phil gritou:

 

- Harry? Estás aí?

 

Para conseguir responder, Harry teve de lutar contra a enorme tensão que lhe paralisava os músculos e os maxilares. Estava preocupado com o segundo carro, mas, na situação em que se encontrava, tinha de acreditar que Phil sabia o que estava a fazer.

 

- Estou aqui, mano - respondeu ele.

 

Levantou-se e tentou livrar-se da lama. Phil cruzou-se com ele em frente da autocaravana, na qual Harry reconheceu uma Winnebago.

 

- Estás bem?

 

- Ensopado e muito assustado. Isso quer dizer que estou bem?

 

- Bem, acredites ou não, tenho aqui dentro um fato quente que te serve.

 

- Quem é que está no carro?

 

- É o Ziggy White. Lembras-te dele?

 

- Aquele que costumava apostar que conseguia conduzir durante uma milha com os olhos vendados?

 

- Eu não queria que ele viesse comigo, mas ele insistiu. Não se cansa de viver na corda bamba... A ti, bastava-te jogar na bolsa. Além disso, diz que nunca se esquecerá de que tu, uma vez, impediste o Bumpy Giannetti de lhe dar uma sova.

 

- Agradece ao Ziggy por mim - disse Harry, enquanto Phil o ajudava a subir. - Mas diz-lhe que, se for esse o caso, talvez eu tenha aparecido no momento certo e presenteado o Bumpy com um murro que o derrubou.

 

O interior da Winnebago era espaçoso como um quarto de hotel.

 

- Isto é incrível - disse ele, despindo a camisa. - É tua?

 

- Por enquanto, é tua. A Luxor. Dez metros de tudo o que poderias exigir de uma autocaravana. Dois televisores com uma antena no tecto, fax, telefone, bar, geleira, aparelhagem estereofónica, máquina de lavar e secar roupa, airbags para o condutor e para o passageiro e armários de madeira de cerejeira. Disseste-me que precisavas de um carro, mas eu pensei que também precisavas de um sítio onde estivesses em segurança. Depois, lembrei-me que tinha as duas coisas numa só. Alugamos esta menina de vez em quando a quem precisa de um quarto de hotel, mas não quer ficar hospedado num hotel. Pertence à minha empresa. Os documentos estão no porta-luvas, além de duas folhas com os locais para onde podes ou não levá-la e estacioná-la. Também está aqui o número do meu beeper. Podes contactar-me vinte e quatro horas por dia.

 

- Phil, eu... Obrigado. Muito obrigado. Isto é perfeito. Quanto é que...

 

- Ouve - disse Phil, interrompendo-o e erguendo a mão.

- Nem queiras saber.

 

Harry enxugou-se e tirou os molhos de notas ensopadas dos bolsos.

 

- Esqueceste-te de falar no microondas - lembrou.

 

- Não ligues tudo ao mesmo tempo - disse Phil, atirando-lhe um fato Nike quente e preto. - Acho que não conseguiria suportar a ideia de que todo esse dinheiro se tinha evaporado na minha autocaravana. O frigorífico está muito bem fornecido, e no armário há roupa que te deve servir. Tem cuidado e não fiques demasiado tempo no mesmo sítio. Precisas de mais alguma coisa?

 

Harry ficou a pensar, depois tirou uma caneta e uma folha de papel da pequena secretária de mogno e escreveu meia dúzia de linhas a Maura.

 

- O porteiro do meu prédio entrega-lhe isto - disse ele.

- Depois quero que te afastes disto. Já fizeste mais do que o suficiente.

 

Phil meteu a carta na algibeira.

 

- A nossa vida tem sido engraçada, Harry - assegurou. Não nego que, ao longo dos anos, sobretudo depois de teres ganho aquelas medalhas no Vietname, me esmerei nos negócios porque queria suplantar-te em qualquer coisa.

 

- Bem, e conseguiste.

 

- E depois? O facto é que sempre existiu qualquer coisa dentro de mim. Nunca fizeste nem disseste nada que me levasse a pensar que eu tinha de superar-te. O que importa isso neste momento? Não se trata de uma competição. Nunca foi. São as nossas vidas. És o meu único irmão, Harry. Não quero perder-te.

 

Harry olhou para o irmão na penumbra. Era a primeira vez que ouvia Phil falar assim. Encostou a cabeça ao apoio de couro macio do banco do passageiro.

 

- Lembras-te daquele dia, em frente do meu consultório, em que me disseste que não me preocupasse, que havia de aparecer alguma coisa que me desse um empurrão? E apareceu, Phil. Um monstro. Chama-se Anton Perchek. É médico. E não o largarei enquanto um de nós não desaparecer.

 

Harry escreveu o nome e entregou-o ao irmão.

 

- Se me acontecer alguma coisa, esse é o homem que matou a Evie. Também matou Caspar Sidonis, Andy Barlow, um dos meus doentes preferidos, e sabe-se lá mais quem. A Polícia federal sabe quem ele é, mas talvez não o admita. Acho que ele colaborou com a CIA nuns trabalhos de tortura. Foi dado como morto há anos, mas eles têm uma impressão digital do Perchek tirada no quarto de hospital da Evie.

 

”Eu tinha deixado de me preocupar, Phil. Não sei porquê... Talvez por ter feito cinquenta anos, talvez por causa da Evie, talvez por causa da maldição da família. Mas agora preocupo-me, Phil. Graças a esse patife, o Perchek, as coisas voltam a ser importantes para mim. Essa mulher, a Maura, aquela a quem se destina a carta, é muito especial. Quero ter oportunidade de a conhecer melhor. Talvez me volte a casar um dia... Se não for com ela, será com alguém parecido com ela. Talvez tenha um ou dois filhos, para tu seres tio.

 

- Hei-de estragá-los com mimos. Sabes para onde vais quando saíres daqui?

 

- Sei, mas não quero que tu saibas. Já tivestes de mentir à Polícia por minha causa.

 

- Sabes como hás-de contactar-me.

 

- Sei. Não te preocupes, Phil. Vou ganhar esta.

 

- Eu sei. Eu sei que vais. Bem... É melhor irmos andando.

 

- Agradece por mim ao Ziggy. E dá saudades à Gail e aos miúdos.

 

Por instantes, os irmãos ficaram à porta, em silêncio. Depois, pela primeira vez desde a morte do pai, abraçaram-se.

 

Rocky Martino, o porteiro da noite do prédio de Harry, tinha motivos de sobejo para beber um ou dois copos a mais. Fora a noite mais longa e mais tensa da sua vida. No espaço de algumas horas, parecia que metade de Manhattan se abatera sobre ele, que toda a gente andava à procura de Harry Corbett. A Polícia de Manhattan, a Polícia de Nova Jérsia, até o FBI. Tinham falado em atravessar as fronteiras de um estado com um cadáver. Também tinham aparecido algumas equipas de estações de televisão e de rádio, que falaram com ele. Mas ele só lhes pôde dizer que não sabia quando é que Harry Corbett saíra do prédio nem quando voltaria.

 

A única coisa que não lhes disse, mas que disse à Polícia, foi que Maura Hughes voltara ao apartamento às dez e meia e que ainda lá estava. Dois agentes tinham subido e falado com ela durante mais de uma hora.

 

Rocky percebera o que o esperava e tivera a presença de espírito suficiente para telefonar a Shirley Bowditch, a presidente da associação de condomínios. Ela tratara de tudo. Agora, finalmente, estava sozinho. Dirigiu-se ao armário da manutenção, que ficava mesmo atrás da porta para a cave. Na prateleira de baixo, no fundo de uma caixa de ferramentas fechada à chave, estava a sua reserva de álcool. Escolheu uma garrafa de Absolut e bebeu-a de uma vez. O ardor na garganta fez-lhe vir as lágrimas aos olhos, lágrimas quentes e familiares. Quando voltou para o átrio, um homem alto e de ombros largos, envergando um casaco desportivo, batia no vidro e mostrava um distintivo da Polícia. Rocky carregou no botão e abriu-lhe a porta. O homem enorme apresentou-se e indicou o departamento a que pertencia, mas o que ele dissesse não interessava. Rocky disse-lhe como se chamava.

 

- Precisamos da sua ajuda - disse o polícia. - Quanto tempo fica de serviço?

 

- Até ao meio-dia - respondeu Rocky. - Trabalho da meia-noite ao meio-dia. O Armand Rojas, o outro porteiro, e eu resolvemos...

 

- Está bem. Está bem, Rocky. Agora, ouça. Está uma mulher em casa do Harry Corbett. Chama-se Maura Hughes.

 

- E então?

 

- Se ela se meter num táxi para ir ter com ele, queremos ser nós a levá-la.

 

O homem encaminhou Rocky para a rua e apontou para um táxi estacionado no quarteirão seguinte.

 

- Se ela lhe pedir para arranjar táxi, indique-lhe aquele. Nós trataremos do resto.

 

- E... está bem - confirmou o homem, intimidado com o tamanho e os modos bruscos do homem.

 

O gigante tirou uma nota da carteira e deu-lha. Era de cinquenta dólares.

 

- Faça isto bem feito, Rocky. Nem uma palavra a ninguém e haverá mais uma destas para si.

 

Rocky pegou na nota e esperou que o polícia desaparecesse. Depois voltou à caixa das ferramentas. Faria o que o homem lhe pedira porque estava assustado com o que poderia acontecer se não lhe obedecesse, e porque queria os outros cinquenta dólares. O tipo que subira há uma hora para ir entregar um envelope a Maura só lhe dera uma nota de vinte. Bebeu outra vodca. Gostava de Harry Corbett e tinha pena que ele estivesse metido em sarilhos. Mas, com os diabos, a culpa não era do Rocky Martino.

 

Regressou ao átrio. Eram quase cinco da manhã. Tinha dinheiro novo na algibeira e as entranhas bem quentes. Lá fora, no outro quarteirão, o táxi aguardava. Rocky humedeceu os lábios e pensou na sorte repentina, a que em breve se juntariam mais cinquenta dólares. Ninguém o poderia criticar por colaborar com a Polícia. Absolutamente ninguém.

 

Quatro horas... Cinco... Cinco e meia... O telefone continuava a tocar quase permanentemente em casa de Harry. Os estranhos acontecimentos que envolviam o homem armado no Manhattan Medical Center, seguidos pela execução sumária de Caspar Sidonis, haviam-no lançado para a ribalta dos meios de comunicação social. Maura estava sentada no pequeno gabinete de trabalho e assistia à evolução da história na televisão local e nacional, enquanto se servia do atendedor para fazer a triagem dos telefonemas. As estações actualizavam as notícias de cinco em cinco ou de dez em dez minutos, e uma delas repetia permanentemente os acontecimentos. Começou a ser transmitido um resumo da vida e dos muitos talentos de Sidonis.

 

Maura sentia-se física e emocionalmente exausta. Mas estava demasiado excitada e preocupada com Harry para adormecer. Enfiado entre as almofadas do sofá estava o bilhete que um homem chamado White viera entregar há umas horas.

 

Maura

 

Estou bem, vai ter comigo às dez horas da manhã, em frente do sítio em que nos encontrámos pela primeira vez com o Walter. Se eu não aparecer, tenta outra vez daí a três horas. Eu farei o mesmo. Apanha vários táxis, em seguida o metropolitano e depois vai a pé. Tem cuidado. É provável que sejas seguida.

 

Beijos. Harry

 

White não lhe dissera nada, excepto que Harry estava bem e em segurança. Uma hora depois, Albert Dickinson fora ao seu encontro. De pistola em punho, ele e outro polícia tinham revistado o apartamento. Apesar da presença do outro agente, Dickinson mostrara-se agressivo e desrespeitador, tal como no hospital. Não tinha paciência para ouvir histórias sobre a inocência de Harry Corbett, sobre Anton Perchek, ou sobre fosse quem fosse. Só queria saber onde podia encontrar o seu homem.

 

- Miss Hughes, conhece as penas em vigor neste Estado por ajudar e incitar um fugitivo procurado por assassínio? perguntou. - Se souber onde está o Corbett e não nos disser, prometo-lhe que passará a maior parte da sua vida na prisão.

 

- Não posso imaginar uma prisão que seja mais desagradável do que esta conversa - disse Maura, com um sorriso doce.

 

- A presunção deve ser uma questão genética. Tenho o prazer de lhe comunicar que acabámos de dar aquele lugar de detective a alguém que é mais do que um jogador e menos presunçoso do que o seu irmão yalie.

 

- Tenente, se vai fumar, terá de fazê-lo lá fora. Maura apontou para a janela do sexto andar e não para a porta. Nos momentos de silêncio que se seguiram, julgou que Dickinson ia bater-lhe. Por fim, mimoseando-a com um ”Vá-se lixar”, o homem saiu pela porta fora. Maura fechou a porta, deu três voltas à chave e sorriu ao lembrar-se da nova definição de ”fechadura de polícia”.

 

Agora, estava recostada a ver as repetições das entrevistas com os funcionários e as enfermeiras do MMC, a Polícia, o electricista vítima do homem armado e Max Garabedian. A única nova notícia era a velha notícia de que o falso Garabedian ainda não fora preso nem identificado, mas que as impressões digitais recolhidas no hospital estavam a ser analisadas.

 

”Avante, Ray”, pensou ela, satisfeita.

 

Estava radiante por não ter sentido necessidade de beber durante aquela noite tensa e difícil, mas também sabia que precisava de dormir. Pôs o despertador para as oito e meia, desligou a campainha de todos os telefones do apartamento e colocou o atendedor não muito longe da sua cabeça. Se Harry telefonasse a comunicar uma alteração dos planos, pelo menos ela teria oportunidade de ouvir a sua mensagem. Por último, atendeu um dos telefones.

 

- E vocês vão descansar - disse ela. Depois pousou o auscultador com força.

 

Às oito horas da manhã, uma mensagem do produtor de Inside Edition acordou-a. Prometia a Harry dinheiro suficiente para contratar uma equipa de defesa de primeira, em troca de um exclusivo da sua história. Maura tomou duche, fez café e espreitou pela janela. O dia estava enevoado mas não chuvoso. O C.C.’s Cellar não ficava muito longe do apartamento, mas era preciso uma hora para lá chegar. Apanharia um táxi e desceria algures perto das Nações Unidas. Depois iria a pé para uma estação de metropolitano. Em seguida, apanharia outro táxi e talvez atravessasse um armazém com muitas saídas. Por último, apanharia mais um táxi e ficaria a um ou dois quarteirões do clube. Pareceu-lhe que num sítio tão concorrido como Manhattan, com estações de metropolitano e tantos armazéns, não seria difícil garantir que não seria seguida.

 

Vestiu umas calças de ganga e uma blusa de xadrez, calçou uns ténis e depois escolheu um grande saco de pano entre uma série deles que havia no roupeiro de Evie. Meteu lá dentro a carteira, a cabeleira de cor escura que usara no hospital e uma blusa branca, para o caso de ter de mudar de aspecto. Depois, por uma questão de precaução, juntou uma camisa, umas calças de ganga e uns ténis para Harry. Não sabia se ele teria de voltar a casa à pressa. Manteve o revólver enfiado na bolsa de cabedal à frente do corpo. A sensação de segurança de o ter à mão sobrepunha-se ao medo de ser presa por posse ilegal de arma de fogo.

 

Desceu os seis lanços de escadas e sobressaltou Martino ao entrar pela porta das escadas, atrás dele. O homem levantou-se e recuou, mas não antes de Maura sentir uma forte baforada de álcool. Tinha os olhos injectados de sangue e as mãos trémulas, mas representou bem.

 

- Miss Hugues, pregou-me cá um susto - exclamou, humedecendo os lábios com a língua. - Em que posso ser-lhe útil?

 

Maura perguntou a si própria quantas vezes disfarçara tão mal o facto de ter estado a beber como Rocky, sempre a pensar, talvez como ele, que estava a sair-se bem.

 

- Pode arranjar-me um táxi, por favor? - disse ela, procurando a carteira no saco.

 

- Sim, minha senhora - respondeu Martino. - Não há problema. O doutor Corbett deu notícias?

 

- Não, Rocky. Nada.

 

- Bem, espero que ele esteja bem.

 

Afastou-se da secretária. com passos largos e exagerados, saiu e acenou para a rua. Pouco depois, um táxi parou à porta. Maura deu uma nota de um dólar a Rocky, hesitou e depois deu-lhe uma de cinco.

 

- Faça uma pausa e vá tomar o pequeno-almoço, Rocky

- disse ela.

 

O homem guardou as notas no bolso das calças.

 

- Oh, you sim, minha senhora. Vou.

 

Houve qualquer coisa no seu sorriso que inquietou Maura. Correu para o táxi.

 

- Para as Nações Unidas - ordenou, olhando logo para trás assim que o carro arrancou. - Eu digo-lhe por onde quero que vá. Não se rale se o caminho não for o mais directo. Eu pago.

 

O motorista fez um sinal afirmativo.

 

Se alguém os seguisse, é porque era muito bom nisso. Quando chegaram ao quarteirão seguinte, Maura estava convencida de que a rua atrás de si não tinha ninguém. Talvez alguém fosse à frente deles com um rádio, mas ela depressa se aperceberia disso. Passaram por uma banca de jornais. Maura viu a fotografia de Harry em todas as primeiras páginas. Leiam todos! O Doutor Morte Volta a Atacar! A situação já não tinha nada de espirituoso, de romântico ou de aventureiro. Por instantes, na noite anterior, quando estava empoleirada naquela árvore junto do aterro, sentira-se como Grace Kelly em Ladrão de Casaca, ou como Audrey Hepburn em Charada. Nessa manhã, sentia-se vazia, exausta e assustada. Tentou imaginar como Harry se sentira ao abrir o porta-bagagens.

 

Naquele momento estavam na Broadway e seguiam para sul. Maura deixou passar mais três quarteirões.

 

- Vire aqui à direita - ordenou ela.

 

O táxi continuou em frente. Maura bateu na divisória de vidro e disse:

 

- Já lhe disse para virar aqui à direita.

 

O táxi virou à esquerda, na direcção do parque. A meio do quarteirão, começou a abrandar. Maura deixou de bater no vidro. Desesperada, tentou compreender o que estava a acontecer. Pensou na arma que trazia à cintura, mas percebeu que precisava de sair daquele táxi. Fez menção de tocar na porta no preciso momento em que as fechaduras electrónicas se abriram.

 

O táxi continuou a andar. De repente, a porta do lado de Maura abriu-se. Um homem saltou quase para cima dela. Era um gigante, talvez com dois metros de altura, e largo de ombros. Empurrou-a com a mão, como se ela fosse uma boneca. A cabeça de Maura bateu na janela, mesmo atrás da cicatriz. Sem receber quaisquer instruções, o motorista acelerou e voltou para oeste, na direcção do Hudson.

 

Maura reconheceu logo o monstro. Era o rufião de Perchek, o sobrevivente do parque. Furiosa, Maura saltou sobre ele, batendo-lhe na cara com a mão direita, enquanto tentava abrir a bolsa de cabedal com a esquerda. O seu primeiro golpe, com o punho fechado, atingiu-o em cheio no sobrolho. O homem deu um grito, levou uma mão à cara e agrediu-a com a outra. Maura esquivou-se e sentiu a mão prestes a pegar no revólver. Com outro movimento, puxou-o para fora, encostou o cano às costelas do homem e disparou.

 

Não aconteceu nada. Absolutamente nada. A sua única oportunidade esfumara-se. O assassino tirou-lhe a arma e deu-lhe uma valente bofetada. O lábio de Maura abriu-se e roçou nos dentes. A cabeça caiu-lhe para trás e embateu na janela. Em seguida, Maura caiu para a frente, quase no regaço do homem.

 

- O canhão de segurança, o canhão de segurança - insistiu ele, com uma voz surpreendentemente aguda. - Não podemos tentar disparar a nossa armazinha enquanto não soltarmos o dispositivo de segurança.

 

Agarrou-a pelo pescoço e puxou-a para cima. Maura cuspiu-lhe, borrifando-lhe a camisa e a cara de sangue. Ele limpou a face com as costas da mão, lentamente, furioso. E depois bateu-lhe outra vez, com tanta força como da primeira vez. Agora, Maura estava sem energia. O homem obrigou-a a ajoelhar-se e empurrou-lhe a cara para junto do banco.

 

- Andamos à procura do teu companheiro, o Corbett disse ele.

 

- Não sei - conseguiu responder Maura. Tinha a cara a latejar, e a mão do homem no seu pescoço também a aleijava, mas estava decidida a não lhe dar o prazer de a ver chorar. Não sei onde ele está nem sequer se está vivo.

 

O assassino tirou-lhe a camisa de Harry do saco e levantou-lhe a cara à força para lha mostrar.

 

- Claro que não sabes - disse ele.

 

- Mesmo que soubesse onde ele estava, nunca lhe diria. O homem obrigou-a a encostar a cara ao banco.

 

- O Doutor vai gostar de ouvir isso - disse ele.

 

O fugitivo mais procurado de Nova Iorque manobrava cuidadosamente a enorme Winnebago Luxor através das ruas de Manhattan, tentando não atrair atenções desnecessárias. Confinava-se tanto quanto possível às avenidas largas no sentido norte-sul, e sentia-se aterrado quando entrava numa rua atravancada por camiões de obras. Como passara a maior parte da vida na cidade, onde o seu carro ficava muitas vezes na garagem durante várias semanas, a sua condução era penosa. Muitas vezes, conduzir o BMW constituía um desafio. Conduzir a autocaravana numa rua estreita ladeada de carros seria um desastre potencial. A sua fotografia estava em toda a parte. Um acidente de viação sem importância, um polícia, uma paragem. Poderia ser tão simples como isso.

 

Faltavam dez minutos para às dez. Harry descia Columbus Avenue, tentando gerir o tempo para chegar à Rua 56 às dez horas em ponto. Assim que apanhasse Maura, poderiam sair da cidade e descobrir um local para parar e esclarecer a situação. Havia aqueles que sabiam, ou pelo menos que acreditavam, que ele estava inocente: Maura, tom Hughes, Mary Tobin, Kevin Loomis, Steve Josephson, Doug Atwater, Julia Ransome, Phil, Gail. Harry olhou para o estrado montado como se fosse uma consola e para o bloco onde apontava os nomes, e acrescentou Ray Santana à lista. Tinha vários amigos, colegas de trabalho e até doentes que dificilmente o considerariam capaz de cometer qualquer crime, e muito menos um assassínio. Mas restava saber quantos deles é que estariam dispostos a correr riscos por causa dele.

 

Juntos, Maura e ele, haviam de conseguir descobrir alguma coisa, sobretudo se conseguissem localizar Ray. Santana contribuíra fortemente para a confusão em que ele estava envolvido, mas não fora o seu causador. Agora, se tentasse associar-se a Loomis, era muito possível que conseguissem furar as linhas inimigas. Se. Primeiro, Harry tinha de se encontrar com Maura; depois, tinha de fazer o que pudesse para garantir que Kevin Loomis continuaria vivo; e, por último, tinha de encontrar Santana... E tudo isto sem se deixar prender. ”As Primeiras Coisas em Primeiro Lugar”, pensou, lembrando-se dos estandartes azuis e dourados que vira na parede durante uma reunião dos AA. As Primeiras Coisas em Primeiro Lugar. Virou para a Rua 56. Felizmente, não havia camiões de entregas, obras na rua nem veículos estacionados em segunda fila. Mas Maura também não estava lá. A fachada do C. C.’s estava deserta, e o estabelecimento parecia estar encerrado. Harry abrandou e pensou em ir espreitar à porta. Mas uma buzina insistente atrás de si poupou-lhe o trabalho de tomar uma decisão. Percorreu alguns quarteirões da Amsterdam, depois virou para a Columbus e voltou a passar pelo mesmo sítio. Nada. Tentou falar para casa dela e para a sua, mas respondeu-lhe o atendedor em ambas. Ninguém respondia do C. C.’s. Por fim ligou a Phil pelo pager.

 

- Olá, Harry - disse Phil. - Ainda bem que falas. Acho que ouvi falar de ti num noticiário ou noutro sítio qualquer.

 

- Que engraçadinho. Como estão a Gail e os miúdos?

 

- Digamos que todos temos de defender um pouco o nome da família. Como estás?

 

- Graças a ti, ainda estou à solta. Phil, naquele bilhete que te entreguei, eu marcava um encontro com a Maura. Mas ela não apareceu até agora. Tens a certeza de que ele foi entregue?

 

- Tenho. Falei com o Ziggy esta manhã. Ele entregou-lho pessoalmente por volta das três da manhã.

 

- Merda.

 

- Posso fazer alguma coisa?

 

- Não, por agora. Já fizeste muito. Phil, obrigado. Voltarei a contactar-te.

 

- Toma bem conta dessa menina. Ando a prometer à Gail irmos passar um fim-de-semana fora nela. Agora que já deste as primeiras notícias, tenho de ir trabalhar.

 

Harry andou às voltas durante cerca de uma hora, tendo o cuidado de não demorar sempre o mesmo tempo. Nem sinais de Maura. Definitivamente, algo estava a correr mal. Pediu às informações o número do telefone de casa de Kevin Loomis e tentou ligar-lhe. O papá fora comprar gelo para uma festa, disse-lhe uma criança. A mamã estava na casa de banho. Harry disse que voltaria a telefonar daí a uma hora.

 

Eram quase onze horas, quase duas horas antes da segunda tentativa de encontro à porta do C. C.’s. Harry lá estaria, mas tinha a certeza de que Maura não apareceria. Perchek?

 

Dickinson? Álcool! Das três hipóteses, só uma prevaricação parecia improvável. Harry verificou o painel do combustível e os restantes mostradores do tablier de avião a jacto. Não havia problemas... por enquanto. Dirigiu-se para o centro da cidade. A única alternativa que tinha, ao que parecia, era tentar encontrar Ray Santana. Não queria pôr Mary Tobin em risco, mas não tinha outra hipótese. Além disso, pensou, a sorrir, se houvesse algum confronto entre as autoridades e Mary, as suas simpatias iriam para os polícias. Apanhou-a em casa. Tal como esperava, ela estava ansiosa por fazer o que pudesse para o ajudar e tinha uma família enorme desejosa de fazer o mesmo.

 

- O meu genro, o Darryl, é o único que tem dito mal de si

- disse ela. - E já levou da minha filha. Agora, terá de se haver comigo.

 

Foram precisos quase quarenta e cinco minutos para ela ir buscar o endereço e o número do telefone de Walter Concepcion e trazê-los para casa. Assim que entrou no consultório, surgiram dois polícias que vigiavam o local e interrogaram-na.

 

- Vamos apanhá-lo - afirmou um deles. - E é melhor que a senhora não esteja a ajudá-lo quando o fizermos.

 

- Tenho vinte e um netos e sete bisnetos, meu rapaz respondeu Mary. - Tenho a certeza de que você fará um sucesso junto da sua família e dos seus colegas quando me levar para a cadeia.

 

Ao meio-dia em ponto, Mary telefonou a Harry para lhe dar o número do telefone e a morada de Walter Concepcion e lhe relatar a conversa com a Polícia. Harry telefonou logo mas ninguém atendeu. Depois, quando estava a um quarteirão da pensão, voltou a tentar. Dessa vez, Santana atendeu. Três minutos depois, saiu de casa e saltou para o banco ao lado do condutor. Assim que viu o homem, Harry percebeu que a sua fúria desaparecera. Estava simplesmente grato por agora serem dois e não um. Virou para Harlem River Drive, na direcção norte.

 

- É esta a minha ideia de um carro para fugir - disse Santana.

 

Ray tinha a barba por fazer e estava esgotado e excitado como Harry nunca o vira.

 

- É um empréstimo do meu irmão. Ainda bem que você fugiu. Sente-se bem? Não me parece tão entusiasmado.

 

- O costume. Estraguei tudo no hospital, Harry. Peço-lhe desculpa. “

 

- Foi o Perchek que você viu?

 

- Não, não foi o Perchek. Foi o Garvey. O Sean Garvey, o patife que me levou ao Perchek. Eu estava ali deitado, meio a dormir, quando ouvi a voz dele lá fora. Foi há sete anos, mas eu reconheci-o logo. Os nossos olhares cruzaram-se e ele também me reconheceu. Tenho a certeza. Ele estava com um grupo de pessoas bem vestidas. Pintou o cabelo de uma cor mais clara e fez qualquer coisa à cara, mas era ele. Quando eu cheguei à porta do quarto, ele ia a fugir. Eu... eu descontrolei-me e disparei. O resto já você sabe.

 

- Sabe onde é que o Garvey está neste momento? O que poderia ele estar a fazer num hospital de Nova Iorque?

 

- Não. Depois de Nogales, ele desapareceu, quase que se esfumou. Ou tinha amigos poderosos e bem colocados, ou possuía provas incriminatórias contra eles. Mexi todos os cordelinhos para o encontrar. Nada. Nem havia registo de que tivesse trabalhado para o Governo. Não tinha número da Segurança Social. Não pagava impostos. Nada. Procurei testemunhas. Liguei para todos os contactos de que me lembrei na agência e na CIA. Nada. Tem aí café?

 

Harry apontou para o termo. Santana encheu uma chávena e depois ligou o televisor de vinte e três centímetros assente num suporte giratório do lado do passageiro. O repórter estava a actualizar as notícias sobre a dupla caça ao homem. A Polícia procurava o Dr. Harry Corbett e um homem que parecia ser Raymond Santana, um ex-agente infiltrado da DE A, cujas impressões digitais figuravam entre as várias recolhidas no quarto 218 do Grey.

 

- Tanta coisa para o factor surpresa - disse Ray. - Era apenas uma questão de tempo. Acha que a Maura está em apuros?

 

- Tenho a certeza. Daqui a pouco, volto a passar pelo clube. No bilhete que lhe enviei dizia-lhe que tentaríamos de novo se um de nós não aparecesse.

 

- Aquele corpo no seu porta-bagagens parece ser obra do Perchek. Acha que ele a apanhou?

 

Harry abanou a cabeça.

 

- Não quero pensar nisso.

 

- Primeiro essa Roundtable, depois o Perchek e agora o maldito do Sean Garvey, ainda por cima. Mas que filão, Harry.

 

- Por onde é que acha que havemos de começar?... Ray?

 

Santana, de olhos semicerrados, observava o ecrã de perto.

 

- Douglas Atwater, vice-presidente da Manhattan Health. Conhece-o, Harry?

 

- Conheço-o bem. É uma das pessoas que mais me tem apoiado no hospital.

 

- Está em directo no estúdio, a pedir que você se entregue antes que alguém se magoe.

 

- E então?

 

- Bem... o seu apoiante no hospital é também o homem que eu tentei matar ontem.

 

- O Garvey?

 

- Em carne e osso.

 

Não fazia sentido ficarem na cidade, e havia um bom número de razões para não o fazerem. com Harry ao volante, saíram de Manhattan e foram para norte, pela Estrada 684, na direcção da fronteira Nova yorque-Connecticut. Estavam desanimados. Maura não aparecera no C. C.’s à uma hora, e era quase certo que se encontrava em poder de Perchek, e não da Polícia.

 

- Sabe? Quanto mais penso no Atwater, mais estúpido me sinto - disse Harry.

 

- O que quer dizer com isso?

 

Santana, com os pés apoiados no tablier, desligara o televisor. Olhava pela janela para um monte de nuvens tempestuosas que se aproximavam.

 

- Colocar tubos intravenosos no corpo da Evie e injectar-lhe Aramine exigiu um certo planeamento - explicou Harry.

- Quem o fez tinha de saber que ela entraria no hospital naquele dia. E eu próprio não soube senão vinte e quatro horas antes. O Doug era uma das poucas pessoas, além de mim, que sabia que a data de admissão dela fora alterada.

 

- Quando é que ele começou a trabalhar no seu hospital?

 

- Ele não trabalha exactamente no hospital, trabalha na empresa de cuidados de saúde controlados que tem um contrato com o hospital.

 

- Cuidados de saúde controlados. Isso parece-me muito assustador, se quer a minha opinião.

 

- Trata-se de uma nova versão do velho médico que se deslocava no seu carrito, com a sua mala preta. De qualquer modo, o Doug anda nisto há cinco ou seis anos, creio eu.

 

- Bate certo. Alguém graúdo da agência se esmerou para o fazer desaparecer: uma vida nova, uma cara nova, e nada de registos de que ele existiu. É provável que o Garvey tenha trazido o colega Anton para Nova Iorque, assim que foi instalado no seu novo cargo da empresa de cuidados de saúde controlados. Deve haver muito dinheiro envolvido nesse negócio da Roundtable para o Perchek não regressar aos seus bons velhos tempos.

 

- Talvez o Doutor quisesse assentar.

 

- Claro que sim. Ele está na pré-reforma. Só mata cinco ou seis pessoas por semana.

 

- Bem, o que fazemos agora?

 

- Tenho estado a pensar que talvez devêssemos telefonar ao Garvey - disse Santana. - As coisas estão a deslindar-se para ele com a mesma rapidez com que estão a esclarecer-se para nós. O Garvey sabe que eu estou por perto, neste momento. E, até que eu me aproxime, ele não deixará de espreitar por cima do ombro. Aquele tiro que eu disparei no hospital pode ter falhado o alvo, mas foi um sinal claro de que eu não tenciono negociar. Além disso, ele percebeu que você sabe da existência da Roundtable. Por que outro motivo me admitiria no hospital?

 

- Mas não temos provas de nada, caso contrário iríamos à Polícia. Eles também devem saber isso.

 

- Concordo. Isso dá-lhes oportunidade de se manterem em actividade, mas só se você for preso ou morto e se conseguirem comprar-me ou matar-me.

 

- E a Maura?

 

Santana abanou a cabeça, com uma expressão grave.

 

- Se a Maura estiver em poder deles, será uma moeda de troca, enquanto nós andarmos por aqui, e perderá o interesse quando desaparecermos.

 

- Deixe-me telefonar-lhe - disse Harry, furioso. - Quero agradecer-lhe a sua amizade dedicada ao longo de todos estes anos.

 

- Mantenha-se frio.

 

Harry parou numa zona de estacionamento e ligou para o gabinete de Atwater no MMC.

 

- Quem devo anunciar, por favor? - perguntou a secretária de Atwater.

 

Harry hesitou e depois respondeu:

 

- É o doutor Charles Mingus. Doutor Charles Mingus.

 

Mingus, um dos ídolos de Harry, era reconhecido por muitos, incluindo Atwater, como o maior baterista de jazz de todos os tempos. Morrera há quinze ou vinte anos. Daí a uns segundos, Atwater apareceu na linha.

 

- Harry, é você? - perguntou ele.

 

- Olá, Doug. Pode falar?

 

- Posso. Doutor Charles Mingus. Inteligente. Muito inteligente. Você é um tratado, Harry.

 

- Vi-o na televisão, há pouco. Obrigado por se preocupar comigo.

 

- Gosto de o ouvir, pá. Gosto de saber que está bem. Onde diabo está você?

 

- Oh, ando por aí. Ando a tentar encontrar a Maura Hughes, Doug. Talvez você saiba onde ela está.

 

- Ela fez um belo desenho, não fez, Harry?

 

- O Perchek tem-na em seu poder?

 

- Perchek. Perchek. Ora aí está um nome que não me diz nada. Oh, desculpe, mas eu só vi a sua amiga Maura naquela vez no hospital. Aposto que é uma bela mulher quando está sóbria e sem ligaduras, e que tem uma cabeleira farta. Não é uma brasa como a Evie, mas, quem é?

 

Harry pôs a mão no bocal e murmurou:

 

- Ela está em poder dele. Depois, retirou a mão e perguntou:

 

- O que pretende dela, Doug?

 

- Harry, você não ouviu? Eu disse que só a vi uma vez no hospital.

 

- Eu sei onde está o Ray Santana, Doug. É esse o acordo. O Santana em troca da Maura.

 

- Esta é a conversa mais disparatada da minha vida. Primeiro, alguém chamado Perchek, de quem eu nunca ouvi falar, depois alguém chamado Santana, de quem eu também nunca ouvi falar.

 

- Doug. Eu preocupo-me mesmo com essa mulher. Não quero que ela sofra. Diga-me o que pretende.

 

- Desde que aquele seu falso doente disparou sobre mim, tenho estado a pensar por que diabo é que você se deu ao trabalho de o internar no hospital.

 

Harry voltou a tapar o bocal.

 

- Ele está a morder o isco - disse, em voz baixa. - Está bem, Doug, ouça. Não vamos brincar um com o outro. Você entrega-me a Maura Hughes, ilesa, e eu não só lhe digo onde está o Santana como lhe conto tudo o que sei da Roundtable, quais os cavaleiros que andam a dar com a língua nos dentes sobre todo o processo e exactamente o que têm contra si. Dessa vez não houve uma resposta imediata.

 

- Então o que tenciona fazer? - perguntou Atwater.

 

- Vou partir. Tenho tudo preparado: bilhetes, passaporte, dinheiro e destino seguro. Tudo. Mas não parto sem a Maura.

 

- Meu Deus, Harry. Está assim tão mal, hem? Vá por mim, nenhuma merece isso... excepto a próxima.

 

- Sem ela, não me importa o que possa acontecer-me, e não partirei. Isso significa que você não terá o Santana e que a Roundtable se desmoronará. Se nos entendermos, terei de partir amanhã, logo de manhã. Ou você e eu fazemos negócio esta noite, ou nada feito.

 

Seguiu-se outra pausa prolongada.

 

- Para onde posso telefonar-lhe?

 

- Nem pense nisso, Doug. Estou nervoso, mas não sou estúpido.

 

- Eu diria que não. Está bem, pá, tem alguma coisa onde escrever?

 

- Estou pronto.

 

Atwater deu-lhe um número da zona 201, a zona norte de Nova Jérsia que incluía Fort Lee.

 

- Telefone-me esta noite às nove horas - disse ele. Depois falaremos.

 

- Às nove. Ouça, Doug, eu não tenho muito a perder. Se o Perchek fizer mal à Maura Hughes, juro que vos mato, aos dois.

 

- Ouça, Harry, tenha calma, homem. Falaremos e depois veremos o que podemos fazer.

 

- Às nove. Harry desligou.

 

- Bravo, bravo - aplaudiu Santana. - Foi um desempenho excelente.

 

O olhar de Harry era duro como pedra.

 

- Ainda foi melhor do que você julga - disse ele. - Sei exactamente onde ela está.

 

Caía uma chuva forte quando atravessaram a Ponte Tappan Zee, na direcção de Nova Jérsia. O relógio digital do tablier da Winnebago marcava sete horas e seis minutos da tarde. Num pequeno calendário à sua direita lia-se 31 de Agosto.

 

31 de Agosto - a maldição dos Corbett menos um.

 

Harry concentrou-se na estrada que tinha à frente, enquanto Santana se preparava. Harry sabia que podia morrer no dia 1 de Setembro, tal como o avô e o pai, para todos os efeitos, tinham morrido aos sessenta anos. Mas as suas hipóteses de ser morto nessa noite eram muito, muito maiores. Ainda assim, Santana era um profissional, Harry já estivera debaixo de fogo na sua vida, e não iriam ao encontro de Maura sem se prepararem. Antes de atravessarem a ponte, tinham saído da estrada e procurado um estabelecimento de artigos do exército e da marinha. Ray passou meia hora lá dentro e saiu com uma espingarda, duas mochilas cheias de equipamento e um recibo de 1123,37 dólares. O stock era limitado, mas os artigos principais - a espingarda com mira telescópica e os binóculos eram “adequados”, na sua opinião.

 

- Você matou um tipo na guerra como os jornais contaram? - perguntou Santana, inspeccionando a espingarda, quando eles arrancaram.

 

- Não é nada de que me orgulhe.

 

- Está bem. Matar uma pessoa é algo que você já fez uma vez, que sabe que é capaz de fazer. Isso é que me interessa.

 

- Estou cheio de ódio, Ray. Não me seria difícil matar qualquer deles.

 

- Sempre é menos uma coisa com que tenho de me preocupar.

 

Harry nunca entrara em casa de Doug Atwater, mas vira-a da água e de terra. Há três anos, Harry alugara um iate para uma festa-surpresa pelo aniversário de Evie. O barco era grande, suficientemente grande para albergar a orquestra do clube e cerca de quarenta convidados, e ainda sobrara espaço. Fora alugado para dar a volta à ilha de Manhattan e tratara-se, de longe, do acto mais extravagante de Harry. Apesar de o seu casamento já estar a esboroar-se devido ao seu estilo de vida conservador, Harry estava desejoso de se afirmar. Essa noite fora a última vez em que se lembrava de ter visto Evie verdadeiramente feliz.

 

Atwater aparecera com a sua habitual e fulgurante blonde du jour, uma actriz qualquer. Sandi? Patti? Harry e ela estavam sozinhos na amurada, ao anoitecer, a ver as paliçadas de Nova Jérsia, quando, de súbito, ela começou a acenar para uma casa moderna e espectacular erigida mesmo à beira de uma delas.

 

- É a casa do Dougie! - exclamou ela. - É a casa do Dougie. Está a ver aquele terraço? Esta manhã vi lá mimosas. Nem imagina como é a vista. Já lá esteve?

 

De facto, até àquele momento, Harry sabia apenas que Atwater vivia num último andar elegante da Rua 49, na zona leste. Tinham-se encontrado várias vezes, quando ele e Evie tinham saído com Atwater e a namorada. Curioso acerca da casa, Harry avistou-a, à beira do rio, do lado de Nova Iorque, e fixou dois pormenores. Mais tarde, o capitão serviu-se dos seus mapas para a localizar com exactidão. Não ficava muito longe de Fort Lee. Harry pensara em falar na casa a Atwater, mas tinha a certeza de que nunca o fizera. Atwater e ele davam-se bem, mas era óbvio que não eram muito íntimos, pois Harry nunca fora convidado.

 

Um ou dois meses depois, quando fora visitar a mãe ao lar, Harry dera consigo a poucos quilómetros do sítio da casa. Foi-lhe muito fácil descobri-la. Era uma mansão ampla, de estilo californiano, no cimo de uma rampa íngreme, ladeada de árvores e com cem metros de comprimento, pelo menos. O portão de ferro forjado maciço, ao fundo da rampa, estava fechado. Um muro de pedra e cimento com um metro e oitenta de altura estendia-se ao longo da estrada em ambas as direcções, dando a impressão de que toda a propriedade era murada. Harry nem pensou em espreitar.

 

Nessa noite, porém, ele e Santana apareceriam por lá.

 

- Pare no próximo desvio - disse Santana. - Precisa de se preparar e eu preciso de verificar isto.

 

Apesar do seu aspecto esquelético e dos tiques nervosos, Ray sempre se mostrara altivo e seguro de si. Mas, depois da conversa de Harry com Sean Garvey, tornara-se reservado e submisso. O tique ao canto da boca diminuíra, quase não passava de uma sugestão, e as mãos estavam bem firmes. Harry apostava que era exactamente assim que Santana estava quando se baixara, fizera pontaria e disparara naquela noite em Central Park.

 

Harry parou num desvio pouco concorrido. Santana atirou-lhe uma camisa de gola alta preta, um colete com munições, um boné e um pequeno frasco de maquilhagem preta chamada Nightstalker.

 

- Não se esqueça das costas das mãos - avisou, afastando-se de Harry, que afagava uma espingarda dentro de uma capa de lona.

 

Lá fora, a chuva começava a cair com mais força. A leste, ao longe, os relâmpagos destacavam-se na escuridão do céu.

 

Harry pôs as roupas atrás do seu banco. Evie, Andy Barlow, Sidonis. Maura! Estava pronto para a luta, pronto para tudo. Mas tinha de fazer mais uma coisa antes de avançarem para o confronto: um telefonema.

 

Kevin Loomis olhou para o relógio e tentou imaginar como estaria a inundação na cave. A chuva obrigara-os a fazer o churrasco dentro de casa, mas isso não tinha importância. Estava tudo a correr como ele planeara. Já não faltava muito tempo.

 

Há cerca de meia hora, saíra pela porta das traseiras, ostensivamente para ir buscar um cartão ao saco de golfe que estava na garagem. Pegou no cartão, que deixara junto da porta da garagem, e depois contornou a casa para ir soltar o tubo da máquina de lavar roupa. A instalação ainda estava melhor do que ele esperava. Um puxão no fio fizera soltar o tubo, e o fio escorregara de tal maneira que bastara a Kevin puxá-lo pela janela da cave. Agora, faltavam cerca de dez minutos para ele “descobrir” o desastre.

 

Kevin abriu caminho entre os convidados, trocando histórias, rindo-se das anedotas e fazendo o possível por se embriagar. Era estranho saber que se aproximava o momento exacto da sua morte. E se ele soubesse desde o início? Teria agido doutra maneira? A pergunta era retórica. Teria ingressado sempre na Roundtable, mesmo que soubesse o que ela era. E, no momento em que participara na sua primeira reunião, passara a ser um deles. A partir daí, não podia fazer nada que alterasse a situação.

 

Despedira-se de cada um dos filhos à sua maneira e conseguira fazer amor com Nancy de uma forma mais ou menos razoável, antes de a tensão se apoderar dele. Agora, estava na cozinha e olhava para a gaveta onde guardara as lanternas. Faltavam só mais uns minutos. De repente, percebeu que o telefone estava a tocar. O seu primeiro pensamento foi que acontecera alguma coisa a um dos miúdos. Pegou no auscultador.

 

- Está?

 

- Kevin Loomis?

 

- Sim.

 

- Fala o Harry. Harry Corbett. Como está?

 

- Bem. Mas temos aqui uma festa. Não posso falar.

 

- Não faz mal. Pode ouvir. Não o demoro. O assassínio de que me acusam, o do cirurgião?...

 

- Sim.

 

Da porta, Nancy perguntou-lhe por gestos se o telefonema era para ela. Kevin abanou a cabeça.

 

- É o Atwater, Kevin - disse Harry. - O Doug Atwater, da Manhattan Health. Ele é o cavaleiro que está por trás dos assassínios, por trás daquele doutor Perchek de que eu lhe falei.

 

- Eu já desconfiava. É o Galaaz, o cavaleiro responsável pela segurança. Vi-o hoje no noticiário.

 

- Talvez os outros do seu grupo tenham participado, mas creio que ele é o cérebro. Neste momento, vamos atrás dele e do Perchek.

 

- Boa sorte.

 

- Kevin, estou a telefonar-lhe para lhe pedir que assista a isto. Se os apanharmos, vamos precisar que você testemunhe contra eles. Se falharmos, todos aqueles doentes em risco vão precisar ainda mais de si.

 

- Eu... Eu não sei do que você está a falar - afirmou Kevin. - Claro que vou assistir a isso. Desejo-lhe sorte para esta noite. Agora tenho de ir.

 

- Kevin, por favor, seja forte. Tem muito a perder. Todos nós temos.

 

Kevin desligou sem responder. Maldito Corbett. Ele nem sequer tinha filhos. Abriu a torneira do lava-louça, que não deitava agora mais do que um fio de água.

 

- Ouça, Fred, a água perdeu a pressão de repente - disse ele a um dos dois homens que escolhera. - O que acha?

 

O homem encolheu os ombros.

 

- Acho que temos de ir ver o que se passa na cave - aconselhou.

 

Kevin deixou-o abrir a porta da cave e acender a luz.

 

- A lâmpada está fundida. Ou então não há energia cá em baixo - disse o homem.

 

Lá de baixo, ouviam o som da água a correr. Kevin deu-lhe uma lanterna e depois chamou o reverendo Pete Peterson e deu-lhe outra. A sua pulsação começara a acelerar-se.

 

- Parece que há uma grande inundação aqui em baixo - avisou. - Infelizmente, as minhas botas de borracha estão ali no meio. Deixem-se ficar na escada e sigam-me com as lanternas. Verei o que posso fazer.

 

“Está quase”, pensou Kevin. Era estranho, muito estranho que toda a sua vida se resumisse àqueles momentos.

 

Conduziu os dois homens à cave e entrou na água, que tinha meio metro de altura.

 

- É o tubo da máquina de lavar roupa - gritou ele na escuridão. - Está solto. Mantenham as lanternas apontadas para ele.

 

Todas aquelas coisas da vida que lhe tinham parecido tão importantes na altura... Todas insignificantes...

 

- Tenha cuidado - disse Peterson. Kevin voltou a pôr o tubo no seu lugar.

 

- Estão a ver? Não há problema. Não há problema nenhum.

 

O que estou a fazer está certo. É melhor para a Nancy. É melhor para os miúdos. É melhor para todos. Meu Deus, perdoa-me...

 

Sir Tristão, cavaleiro da Roundtable, respirou fundo e depois pousou a mão na parte de trás do secador. O seu corpo retesou-se. Saltaram-lhe faíscas das pernas à superfície da água. O seu coração parou imediatamente. Os músculos da mão, atingidos por um espasmo em especial, apertaram o fio puído. Kevin estava morto há quinze segundos quando o peso do seu corpo o libertou do fio e o deixou cair na água.

 

Green Dolphin Street.

 

Ainda estavam um pouco afastados da casa de Atwater quando Harry começou a ouvir a música na sua mente. Acompanhou o ritmo com os dedos no volante e agitou a cabeça.

 

- O que está a fazer? - perguntou Santana.

 

- A ouvir música. É uma melodia que me vem à cabeça quando estou excitado. Às vezes nem sequer me apercebo de que estou tenso senão quando a ouço.

 

Santana observou-o. No meio da maquilhagem preta, os seus olhos pareciam discos de madrepérola.

 

- Continue - disse ele por fim.

 

Dirigiram-se para o Hudson até encontrarem a estrada estreita e sinuosa que acompanhava as paliçadas. Harry desligou as luzes e abrandou. Não havia automóveis do outro lado, nem em andamento nem estacionados. As casas sobranceiras ao Hudson, todas a uma altura imponente, estavam bem afastadas umas das outras e encravadas no bosque, a uma grande distância da estrada. Através da chuva e da escuridão, era impossível distinguir pouco mais do que as luzes de algumas delas.

 

- Ainda sabe onde estamos? - perguntou Santana.

 

- Não estou tão certo como há pouco - respondeu Harry, espreitando pelo pára-brisas da Winnebago, que era varrido por escovas do tamanho de sticks de hóquei. - Talvez seja por isso que esta melodia na minha cabeça está cada vez mais forte.

 

- Talvez seja tempo de deixar de a ouvir. Como saberá que lá estamos?

 

- Estou à procura daquele muro de que lhe falei. Aquele muro de pedra.

 

Quase no mesmo instante, os dois homens avistaram-no: pedras encaixadas em cimento, com sessenta centímetros de espessura, que se estendiam ao longo da estrada até perder de vista. A direita, uma vedação metálica com um metro e oitenta de altura unia o muro aos rochedos. Harry parou o mais longe da estrada que pôde, desligou o motor e apontou para a vedação.

 

- Aposto que há uma igual do outro lado, e depois seguem-se os rochedos. Portanto, o local está totalmente protegido.

 

- Uma grande barreira. Não há melhor sítio do que este para um tiroteio - disse Santana.

 

Espreitando a estrada, localizaram o portão principal, talvez a cinquenta metros. Santana serviu-se de uma lanterna encapuçada e tirou para fora o equipamento, que incluía um revólver de cano arrebitado e a arma semiautomática com silenciador, que Harry sabia ser a mesma que matara o homem armado no parque. Além disso, havia corda, fita adesiva, canivetes, corta-arames, canivetes suíços, lanternas fortes e várias caixas de munições. Santana deu o revólver e algumas balas a Harry.

 

- O canhão de segurança está aqui. Solte-o depois de carregar a arma. Em seguida, aponte e dispare.

 

- Aponte e dispare - repetiu Harry. - O derradeiro momento da Kodak.

 

- Ponha a sua mochila às costas e prepare-se. Santana pegou nos binóculos e na espingarda, apagou as

 

luzes interiores da autocaravana, depois abriu a porta e saiu. Impressionado, Harry observou como o ex-agente infiltrado se aproximou do muro, depressa e sem fazer qualquer ruído, e depois o escalou num abrir e fechar de olhos. Quando chegou lá acima, deitou-se, para examinar a propriedade. Pouco depois, voltou.

 

- A casa está muito bem iluminada e não fica longe. Até distingo algumas das janelas. Há um guarda na portaria. Não vi mais ninguém.

 

- Há cães?

 

- Que eu visse, não.

 

- Não devíamos ter trazido uns pedaços de carne com osso?

 

- Como aqueles que se vêem no cinema?

 

- Exactamente.

 

- Harry, qualquer cão de guarda que seja digno deste nome sabe distinguir entre a carne que está no chão e a carne fresca que ataca para matar. Se virmos um cão, damos-lhe um tiro. É demasiado simples para o cinema, mas é muito eficaz. Agora, aqui vai o que devemos fazer. Vou subir outra vez ao muro e desço até meio. Quando eu fizer um sinal luminoso, telefone lá para casa e peça para falar com a Maura. Desse modo, teremos a certeza de que ela lá está. com sorte, espero vê-la por uma das janelas. Se não a vir, teremos de nos aproximar o suficiente para descobrir onde ela está. Se eu fizer dois sinais de luzes, avance. Se fizer três sinais, é porque há algum problema. Nesse caso, suba o muro e prepare-se para usar essa arma. Feche as portas e deixe a chave debaixo do pneu traseiro do lado direito. Tem perguntas a fazer?

 

- Nenhumas.

 

- Está pronto?

 

- Estou. Ray, há mais uma coisa.

 

- Diga.

 

- Por favor, não se ofenda com isto. Eu também tenho umas contas a ajustar com esta gente. Umas grandes contas. Só quero lembrar-lhe que... mantenha a calma.

 

A reacção de Santana não foi a que Harry esperava. O homem lançou-lhe um olhar perturbante e assustador. O tique ao canto da boca intensificou-se.

 

- Está bem. Você pediu e agora vai ouvir - afirmou. Tenho sofrido sempre desde que aquele patife me enfiou aquela substância no corpo. Há sete anos. Durante este tempo, só tive paz quando consegui imaginar como ele se sentiria naquela prisão mexicana imunda. Agora ele está naquela mansão com o facínora que me entregou para eu ser torturado. Não me peça para ter calma.

 

Harry sentiu-se recuar ante a fúria do homem. Levou algum tempo a recuperar a compostura. Por fim, pousou a mão no braço de Santana.

 

- Desculpe, Ray - disse ele. - Vamos apanhá-los. Prometo-lhe que vamos apanhá-los.

 

Santana afastou-se e encostou-se rapidamente ao muro. A chuva abrandara consideravelmente e era mais fácil ver o portão. Harry ficou à espreita durante um ou dois segundos. Quando olhou para trás, Santana já estava em cima do muro.

 

Pouco depois, fez um sinal de luzes. Harry viu as horas. Eram nove e oito minutos. Ligou o número que Atwater lhe dera. Atwater respondeu ao segundo toque.

 

- Doutor Mingus? - perguntou ele.

 

- Sou.

 

- Diga-me outra vez o que tem para mim.

 

- Quero uma prova de que a Maura está bem.

 

- Diga-me o que tem.

 

- O Santana está hospedado numa pensão em Spanish Harlem. Dar-lhe-ei a morada e o número de telefone dela quando você deixar partir a Maura.

 

- Como é que ele me encontrou aqui?

 

- O Perchek deixou uma impressão digital no quarto da Evie. Alguém do departamento avisou o Santana. Ele pediu segredo ao tipo. Mais ninguém sabe, excepto ele e eu. Nem sequer o tipo que recolheu a impressão digital.

 

- Como é que eu sei que você está a dizer a verdade?

 

- Doug, estou-me nas tintas para si e para aquilo em que você acredita ou não acredita. Todos os polícias de Nova Iorque andam à minha procura. Assim que eu tiver a Maura sairei daqui. Só isso é que me interessa. Onde está ela?

 

- com quem é que tem estado em contacto na Roundtable?

 

- com dois homens. Jim Stallings é um deles. Agora está morto. Quanto ao outro, só lhe digo o nome dele quando falar com a Maura. Ele deu-me os nomes de todos os outros membros.

 

- Dê-me um.

 

- Alguém chamado Loomis. Não me recordo do primeiro nome, mas tomei nota dele.

 

- É com ele que você tem falado?

 

- Não. Agora não me demore mais. Não posso estar aqui tanto tempo.

 

- Telefone para este número daqui a cinco minutos. Harry desligou e esperou na escuridão. Mais acima, mal distinguia o vulto de Santana, colado ao cimo do muro. A chuva parara. O ar do campo que entrava pela porta do lado do passageiro era limpo e suave. O canto das pequenas aves e dos grilos enchia o silêncio pesado. Harry passou os dedos pela maquilhagem e revestiu as costas das mãos.

 

Nove e treze. Pegou no auscultador e carregou no botão redial.

 

- Muito bem - disse Atwater, assim que ouviu a voz de Harry. - Tem trinta segundos. Estou aqui mesmo ao lado dela, a ouvir a conversa por um telefone portátil. Não me aborreça.

 

- Está?

 

- Maura, sou eu. Estás bem?

 

- Harry. Tenho estado tão preocupada contigo. Estou bem. Eles... Eles obrigaram-me a beber bourbon. Eu não queria, mas eles obrigaram-me. Depois desistiram e injectaram-me uma droga qualquer para eu lhes dizer onde tu estavas. Mas eu não podia dizer-lhes o que não sabia.

 

A voz de Maura denotava cansaço, mas firmeza.

 

- Maura, sê corajosa. Tenho tudo o que é preciso para sairmos do país.

 

Houve uma pequena hesitação, que ela se apressou a disfarçar.

 

- Julgava que não conseguias resolver as coisas tão depressa. Estou pronta - disse ela.

 

A extensão de Maura desligou-se.

 

- Muito bem, Harry. Volte a falar para este número daqui a cinco minutos e combinaremos tudo.

 

- Daqui a meia hora. Não posso estar onde estou durante mais tempo.

 

- Quem é o outro homem da Roundtable com quem você falou?

 

- Harper. Pat Harper. Da Northeast Life and Casualty. Kevin Loomis pronunciara o nome do homem uma única vez, mas Harry lembrara-se com facilidade. A sua primeira namorada no liceu também se chamava Pat Harper. Indicar o nome de Harper naquele momento fora perfeito. Se Harry não conseguisse nada nessa noite, pelo menos Loomis não sofreria represálias.

 

- Muito bem. Daqui a meia hora - confirmou Atwater. Harry ouviu o sinal de desligar e tentou imaginar o que se passaria do outro lado do muro. Durante dois minutos, só havia escuridão à sua frente. Depois, a lanterna de Santana piscou duas vezes. Chegara o momento.

 

Harry pôs a mochila às costas e enfiou o revólver no cinto. Agachado, encostou-se ao muro e caminhou ao longo dele até se aproximar de Santana, que estava do lado da estrada.

 

- Eles não a têm dentro de casa - disse ele em voz baixa. - Alguém... suponho que era o Garvey... saiu por uma porta lateral e foi para norte. Pouco depois voltou com ela. Em seguida regressaram, e o Garvey veio sozinho. Agora ele está lá em casa.

 

- Por onde começamos?

 

- Pelo guarda que está ao portão. Se houver tiroteio, deixe isso comigo. A minha arma não faz barulho.

 

- Eu sei.

 

Santana encostou a espingarda ao muro.

 

- Parece que vai ser um trabalho difícil. Espero ser recompensado por isto - disse ele.

 

As pedras facilitavam a escalada do muro. Juntos, os dois homens chegaram ao cimo, baixaram-se para passar para o outro lado e caíram no solo encharcado. Harry julgou sentir uma dor no peito antes de cair. De facto, o que sentiu foi uma breve pontada, embora não tão forte como a que o atingira ao saltar a sebe em Fort Lee. Se não sentisse outra pior nessa noite, bem poderia suportá-la.

 

Com o cano das armas virado para baixo, aproximaram-se da portaria. Ao lado, estava um automóvel de cor escura, de quatro portas. Através da pequena janela da portaria, viram o guarda a falar ao telefone.

 

- Se isto for um telefonema de controlo, estamos com sorte - segredou Santana. - É menos uma coisa que corre mal. Prepare adesivo de cinco centímetros.

 

Santana fez sinal a Harry para que se aproximasse da porta da casa do guarda, depois bateu-lhe ao de leve e encostou-se ao muro. A porta abriu-se cautelosamente. De arma virada para baixo, o homem saiu. Harry nem teve tempo para apreciar os movimentos de Santana senão quando tudo estava acabado. Ray atingiu o homem no pulso com a pistola. O guarda deixou cair a arma como se esta estivesse electrificada. Antes de começar a gritar, Ray estava em cima dele, tapando-lhe a boca com a mão e imobilizando-lhe o tornozelo com a porta. Dominá-lo foi uma operação rápida e silenciosa. Ray pôs-se em cima do peito do homem e encostou-lhe o cano do revólver aos dentes.

 

- Nem um pio! Percebes? - grunhiu Ray.

 

O homem fez um sinal afirmativo. Mantendo-lhe o silenciador na boca, Ray obrigou-o a rolar para o lado e fez sinal a Harry para que lhe atasse as mãos atrás do corpo. Depois virou-o de novo de costas. Em seguida, apontou-lhe a arma à garganta.

 

- Onde está a rapariga?

 

O homem olhou para a cara enegrecida de Ray. Harry percebeu que ele avaliava as vantagens e os perigos de mentir. A luta interna durou apenas alguns segundos.

 

- Na casa de hóspedes... Lá em baixo há um caminho à esquerda...

 

- O Perchek está com ela?

 

Ao ouvir o nome do Doutor, o homem ficou aterrado. Hesitou e depois fez um sinal afirmativo.

 

- Quantos homens são?

 

Ray esperou pela resposta e depois encostou o cano do silenciador ao olho esquerdo do homem.

 

- Quantos são?

 

- Um mais o Perchek, que está na vivenda - respondeu ele, a gaguejar. - Estão dois em casa.

 

- Além do Garvey?

 

- Quem?

 

- Do Atwater.

 

- Sim. Dois além dele.

 

- Ponha-lhe uma mordaça na boca e prenda-a bem - segredou Santana a Harry. - Passe-lhe o adesivo duas vezes à volta da cabeça. Depois, amarre-lhe os tornozelos.

 

Harry agiu com eficiência e, juntos, arrastaram o homem ao longo de dez metros e ataram-no a uma árvore. Santana verificou o interior da casa do guarda.

 

- O botão para abrir o portão fica mesmo ao lado da porta, lá dentro. A porta ao lado do portão não está fechada à chave.

 

Santana olhou para o relógio.

 

- Temos cerca de vinte minutos. Vamos buscá-la.

 

Mantiveram-se junto do muro, que se ia juntar à sebe metálica no outro extremo da propriedade, numa zona de arbustos rasteiros. No cimo do monte e à direita deles, ficava a casa principal, com luzes em todas as janelas e a rampa iluminada. Cerca de cinquenta metros à esquerda da casa principal, viam-se mais luzes entre as árvores.

 

- É ali - disse Harry em voz baixa, apontando.

 

Com um aceno de cabeça, Ray foi à frente. Aproximaram-se das árvores e, sempre agachados, foram avançando com todo o cuidado. A casa de hóspedes, uma versão em miniatura da mansão, era espectacular. Era quase toda de vidro, assente em vigas de aço, que se projectavam para além do rochedo, de tal modo que o terraço se estendia cerca de trinta metros sobre o Hudson. Harry espreitou para o precipício. Havia uma faixa de seixos rolados, com três a cinco metros de largura, entre a base do rochedo e a água. Do outro lado do rio calmo e escuro, ficava Manhattan, reluzente como a Via Láctea.

 

Encostado ao rochedo, por baixo do piso principal, havia um conjunto de salas que não se viam da parte da frente da casa de hóspedes. Através de uma janela com grades, avistaram Maura, que ora se sentava na beira de uma cama ora andava de um lado para o outro. Parecia abatida e cansada, mas razoavelmente firme. Santana pôs um dedo nos lábios e apontou para a casa. Aproximando-se, os dois homens espreitaram por uma grande janela panorâmica. O espaço enorme, constituído por uma sala de estar, uma casa de jantar e uma cozinha, tinha a forma de uma tenda. A estrutura era de madeira de faia e de vidro, o tecto era de madeira de cedro e, ao meio, erguia-se um poste com quatro metros e meio de altura. As portas abriam-se para o terraço, e meia dúzia de janelas grandes proporcionavam vistas deslumbrantes da cidade. Um guarda armado, de coldre ao ombro, servia café. Atrás dele, sentado à mesa, a ler, estava o Doutor.

 

Ao vê-lo, um som gutural e invulgar libertou-se da garganta de Santana: era o som do ódio. Pegou numa boa pedra e, com a arma, fez sinal a Harry para que o seguisse. Pararam mesmo junto da porta de vidro.

 

- Primeiro eu - disse ele em voz baixa.

 

Antes de Harry poder responder, Santana pegou na pedra e atirou-a à porta. O vidro grosso estilhaçou-se no interior. Ray entrou quase no mesmo instante em que a pedra caiu ao chão.

 

- Quieto! - gritou ele, quando o homem fez menção de pegar na arma.

 

Harry entrou pelo caixilho da porta e pegou na arma do homem. Anton Perchek, que nem sequer largara o livro, olhou para ele e depois para Santana. Sorriu, confuso. As íris dos seus olhos estavam tão desmaiadas que pareciam quase brancas. As pupilas estavam dilatadas e lembravam buracos negros na neve. Harry não detectou qualquer laivo de medo no homem, nem qualquer emoção.

 

- Deita-te, de barriga para baixo! - ordenou Santana ao homem armado.

 

O homem hesitou e Santana abateu-o com uma coronhada atrás da orelha, sem desviar a atenção de Perchek. O homem gemia mas estava consciente, enquanto Harry o amarrava com a técnica que aperfeiçoara no porteiro. Santana puxou uma cadeira da mesa. com o revólver sempre apontado para Perchek, ajudou Harry a sentar o homem quase inconsciente. Harry amarrou-o. Em seguida, recuou, aproximando-se de Santana.

 

O Doutor olhou para ambos com curiosidade. Era, sem dúvida, o mesmo homem que Harry vira à porta do quarto de Evie, o homem que Maura desenhara. Mas, em certos aspectos, não era. Era parecido com todas as versões obtidas em computador, e simultaneamente com nenhuma. Ficaria bem atrás do balcão de uma loja de conveniência ou junto de uma mesa de operações, a varrer as ruas ou a pilotar um avião a jacto. Não era ninguém e era toda a gente. Quando falou, a sua voz era melosa, hipnótica e totalmente desprovida de emoção.

 

- Bem, Ray. Há quanto tempo, não é verdade? - perguntou.

 

Santana afastou a mesa com o pé. Apesar da tinta preta na cara, Harry apercebia-se da sua tensão. Era óbvio que também Perchek a sentia.

 

- Você não me parece muito bem, Ray - disse ele, enquanto Santana lhe atava os pulsos aos braços de ferro forjado da cadeira. - Esses músculos das mãos. Esse tique no olho. O que é isso? Drogas? Alguma doença?

 

Harry reparou que os braços do Doutor, em especial os antebraços, eram fortemente musculados. O bíceps esticava-lhe as mangas do pólo azul-celeste. Santana revistou-o à procura de uma arma, mas não encontrou nenhuma.

 

- A chave do quarto de Maura - exigiu Ray. Perchek encolheu os ombros, como se o assunto fosse demasiado fútil para ele.

 

- Não há chave - respondeu. - Apenas um trinco deste lado.

 

Santana fez sinal a Harry para que descesse o curto lanço de escadas. Trinta segundos depois, Harry voltou com ela. Maura tinha os olhos encovados e o lábio inchado e com uma crosta ensanguentada, mas, de resto, parecia ilesa.

 

- O matulão bateu-lhe quando a raptou - explicou Harry.

 

- Mais alguma coisa? - perguntou Santana.

 

- Além de me terem obrigado a beber, não me fizeram mal. Consegui cuspir um pouco do que bebi. Depois, eles deixaram-me sozinha e provoquei o vómito. Estive embriagada durante algum tempo, mas agora estou sóbria. Eles julgaram que eu começaria a pedir mais, mas eu detestei a sensação e até o paladar.

 

Harry passou-lhe um braço pela cintura e apertou-a com força.

 

Santana fulminava Perchek com o olhar.

 

- Quem é que na agência ajudou o Garvey a desaparecer com tanta limpeza? - perguntou ele.

 

Perchek continuou a sorrir-lhe, com um ar benevolente.

 

- Ray, você está com um aspecto terrível. Terrível. - O seu discurso era tão estéril como o seu olhar. - Sabe, continuo a pensar que, em Nogales, nunca tive oportunidade de lhe dar o antídoto para o meu hiconidol. É do que você precisa. Meu Deus, Ray, que descuido. Lamento. Lamento muito.

 

- Cale-se e diga-me quem é que arranjou uma nova identidade ao Garvey.

 

- Há um antídoto, sabe? E também é muito eficaz. O processo bioquímico é bastante simples. Chama-se inibição competitiva. O antídoto mistura-se no fluxo sanguíneo e substitui aquelas moleculazinhas horríveis que se alojaram nas extremidades dos seus nervos durante todos estes anos, e zás, você fica curado. Desaparecem as dores, Ray. Pense nisso. Repare nos seus olhos. Você é um toxicodependente, não é? Oh, Ray, imagino o que tem passado durante todos estes anos. É de admirar que não tenha dado cabo de si entretanto...

 

Santana escutava-o, como que transfigurado. Perchek era tranquilizador, sedutor, hipnótico e totalmente credível. Harry queria dizer alguma coisa, alguma coisa que quebrasse o encantamento da retórica do Doutor. Mas ficou imóvel. Aquele era um assunto de Santana.

 

- ... Bem, agora, não é preciso sofrer mais, Ray. Essas horríveis dores súbitas que continua a ter? Posso eliminá-las. Prometo. Não é preciso tomar mais drogas. Sentirá a diferença daí a uns minutos. Nunca mais terá dores. É garantido. Pode manter-me amarrado enquanto experimenta. Depois pode ir-se embora. Prometo que ninguém lhe tocará. Só o quero a ele. - Perchek apontou para Harry. - Em troca do antídoto, só quero passar meia hora com ele.

 

Perchek olhou para Harry que, pela primeira vez, detectou emoção no seu olhar, uma aversão desgastante e desprezível, totalmente concentrada nele. Harry olhou para Santana e apercebeu-se de um assomo de incerteza. Perchek também reparou e esboçou um novo sorriso benevolente.

 

Santana pôs a pistola em cima da mesa. Depois, deu meia volta e colocou uma tira de adesivo bem apertada na boca do Doutor. Em seguida, tirou um dispositivo do bolso, uma antiga estrutura de metal com cinco apoios para os dedos e parafusos aguçados por cima de cada um. Perchek endireitou-se momentaneamente, mas não fez qualquer movimento para resistir quando Ray lhe pegou na mão direita.

 

- Não tenho um remédio para as dores, mas tenho isto que guardo há anos - disse ele. - Foi um amigo que mo trouxe da China. Aposto que você usa uma coisa parecida de vez em quando. Primeiro a unha, depois a carne, a seguir o osso, e por fim o parafuso aparece do outro lado. Dez dedos, milímetro a milímetro. Tenho andado a poupá-lo, e nem sabia porquê... até agora.

 

Ray apertou os parafusos de tal maneira que as unhas embranqueceram. Perchek não reagiu.

 

- Ray, não deixe que ele o torne igual a ele próprio - suplicou Harry. - Não existe antídoto para essa droga. E, mesmo que existisse, você sabe que ele nunca lha daria. Eu preciso dele, Ray. Eles querem acusar-me dos crimes que ele cometeu. Vamos levá-lo e fechá-lo em qualquer lado. Não desça ao nível dele.

 

- Você não percebe, Harry - disse Santana friamente. Siempre estaba yo a su nível. Eu sempre estive ao nível dele. Agora saia!

 

As suas palavras pareciam chicotadas. Harry ia a protestar, mas sabia que não serviria de nada. Pegou no braço de Maura.

 

- Estaremos lá fora - avisou. - Só temos cerca de dez minutos antes de o Garvey começar a perguntar a si próprio porque é que eu não telefonei.

 

Saíram no momento em que Santana apertava o primeiro parafuso.

 

- Quem é que o Garvey comprou na agência? Quem é que o protege agora? - perguntou ele.

 

Perchek sorriu por trás do adesivo. Santana apertou o parafuso até este atingir a unha. O sangue brotou à volta do metal. Perchek olhava para cima.

 

- Dor ou respostas - disse Santana. - Tem de optar.

 

- Não, Ray. Você é que tem de optar.

 

Sean Garvey dirigiu-se-lhe do lado de fora da porta. Tinha uma arma apontada à cabeça de Harry. Entraram na sala. Seguia-se o matulão, que arrastava Maura por um braço e que depois a atirou ao chão. Tinha a arma apontada directamente para Ray.

 

- ... E não tem muito tempo.

 

- Raymond, não tiveste cuidado há sete anos - disse Garvey. - E não tiveste cuidado esta noite.

 

Sem afastar o revólver da têmpora de Harry, afastou-se da porta principal até ficar de costas para o rio.

 

- Aqui o meu homem, o Big Jerry, telefonou para a portaria para combinar uma partida de golfe com o colega. E sabes o que aconteceu? Ninguém lhe respondeu. Agora tira isso da mão do Perchek.

 

Santana não se mexeu.

 

- Filho da mãe - exclamou. - Quantos dos nossos colegas é que mataste? Como é que te pagaram? Por cada escalpe?

 

Ray olhou para a porta. Foi um movimento imperceptível, mas Harry captou-o. E Garvey também.

 

- Não brinques comigo - disse ele. - Não há ninguém lá fora e tu sabes. Encara a realidade, Raymond. Tentaste e perdeste. Agora tira isso da mão do Anton.

 

Santana voltou a olhar para a porta, só com um movimento dos olhos. Depois, soltou o parafuso. Perchek flectiu os dedos e o dispositivo caiu no chão de madeira de carvalho.

 

- Muitos dos tipos que tu vendeste tinham família - retorquiu Ray. - Filhos que foram obrigados a crescer sem um pai. Trabalhávamos por uma merda de um salário e corríamos demasiados riscos porque acreditávamos no que fazíamos. Todos nós confiávamos em ti. E tu entregaste-nos um por um. Eu posso entendê-lo.

 

Santana apontou para o Doutor.

 

- Ele trabalha para os maiores, quaisquer que eles sejam. É uma máquina. Mas tu... Tu és muito pior. Tu és escumalha. És um traidor sem alma, sem entranhas.

 

- O adesivo - ordenou Garvey. - Tira-lho da boca, Santana obedeceu, mas não foi nada meigo.

 

- Devias ter ficado no Kentucky, ou lá donde és, Raymond. Todos estariam melhor. Agora temos de fazer uma espécie de peritagem de danos para manter o meu projecto preferido a andar.

 

- Foi por isso que tiraste o Perchek da prisão? Para trabalhar para a Roundtable?

 

- Digamos que, assim que eu comecei a dominar a técnica dos seguros de saúde, contemplei as hipóteses. Mas agora preciso de saber qual dos meus cavaleiros é que precisa de uma lição de lealdade. Felizmente para nós, creio que o nosso amigo doutor Corbett pode prestar-nos essa informação. E, por coincidência, temos aqui o homem que o pode ajudar. Vais ajudá-lo, não vais, Anton?

 

Perchek sorriu.

 

- Será um prazer.

 

- Então, vai para ali, Raymond. O Big Jerry vai soltar o Doutor. Harry, não se importa de rastejar e ir ocupar o lugar do doutor Perchek naquela cadeira?

 

Garvey encostou o cano da arma à nuca de Harry e obrigou-o a pôr-se de gatas. Lentamente, Harry passou por Maura, que continuava no chão. Tinha os olhos fixos em Santana, que continuava agachado ao lado de Perchek.

 

Pela terceira vez, Santana deitou um olhar momentâneo e quase inadvertido à porta. Harry começava a acreditar que estava alguém lá fora. Era óbvio que Sean Garvey sentiu o mesmo.

 

- Jerry, tenho a certeza que o nosso amigo Raymond está a fingir, mas vai dar uma olhadela lá fora, está bem? Depois solta o Doutor.

 

Harry sentiu o movimento atrás de si, quando Jerry se dirigiu para a porta principal.

 

Então, de súbito, rosnando de raiva e de ódio, Santana ergueu-se e atirou-se ao seu chefe de outros tempos. Garvey disparou na horizontal, e voltou a disparar. Jerry virou-se rapidamente e disparou duas vezes sobre Santana, que estava de costas. Mas o grito sobrenatural de Santana aumentou de intensidade. Atingiu Garvey no peito e obrigou-o a recuar, passando pela porta estilhaçada e saindo para o terraço. Jerry correu para eles, mas Harry percebeu que era demasiado tarde.

 

Santana, agora silencioso, teve um aperto mortal como castigo. As suas pernas agitavam-se como as de um jogador de futebol, apesar de a vida já ter abandonado o seu corpo. Garvey embateu no cimo do parapeito à altura da cintura, no momento em que Ray o empurrou, e os dois homens saltaram como se fossem brinquedos. O grito de Garvey encheu a noite. Depois, deixou de se ouvir, com a rapidez de uma guilhotina.

 

Jerry olhava para o sítio em que os dois homens tinham desaparecido quando Perchek o chamou. Virou-se no momento em que Harry se levantou e se dirigiu para a mesa onde Santana deixara a sua arma. Harry agarrou na coronha da pistola quando o assassino disparou. O canto da mesa estilhaçou-se. Harry rolou no chão e voltou a rolar quando um tiro atingiu o soalho atrás dele. Doía-lhe o peito, mas conseguiu reagir sem dificuldade. Depois, de súbito, viu-se de barriga para baixo, apontando o cano da sua arma ao peito de um homem que se preparava para o matar. Era o seu sonho recorrente de Nha-trang. Mas, dessa vez, não havia nenhum jovem rosto asiático, nem uma voz a ecoar-lhe aos ouvidos. Apenas um silvo e uma pequena faísca. O pescoço do matulão abriu-se, mesmo por cima da camisola. O homem foi projectado para trás, atravessou o vidro da janela e foi parar ao terraço.

 

Harry conseguiu levantar-se, preparado para voltar a disparar. Mas não foi preciso. O homem jazia imóvel e o sangue esguichava-lhe da carótida. Pouco depois, o esguicho deu lugar a um gotejamento. Maura correu para Harry, que pousou a mochila e tirou a lanterna. Juntos, espreitaram junto do parapeito do terraço. Os corpos desfeitos, de Santana e de Garvey jaziam nos rochedos, lá em baixo, a trinta metros.

 

- Oh, Ray - proferiu Harry em voz baixa. Maura virou-se rapidamente.

 

- Pelo menos, o sofrimento do Ray terminou - disse ela, passando por cima do cadáver enorme, estendido sobre um monte de vidros partidos. - Ele disse-me, no hospital, que não aguentava isto muito mais tempo. Quando recebeu o telefonema acerca das impressões digitais do Perchek, pensava cada vez mais no suicídio.

 

Sem Maura ver, Harry agarrou-se ao parapeito até a dor incómoda por baixo do esterno começar a ceder. Raios. Agora, não.

 

- O Perchek injectou-lhe aquele hiconidol - disse Harry, por fim. - O Ray odiava-o. Mas era o Garvey que ele pretendia. Foi o Garvey que o entregou e aos outros agentes infiltrados. Ouve, temos de sair daqui antes que os outros tipos da casa principal apareçam. Podemos chamar a Polícia da minha autocaravana.

 

Harry afastou-se do parapeito e foi para dentro com Maura.

 

- Vamos, Perchek. Se se meter comigo, juro que o mato.

 

- Vejo que você é muito bom nisso - respondeu o Doutor. Harry substituiu a mordaça de adesivo, cortou a corda que o atava à cadeira e obrigou-o a deitar-se no chão, de barriga para baixo. Mais uma vez, reparou que Perchek era muito bem constituído, em especial de ombros e de braços. E mesmo com o revólver encostado à espinha do homem, continuava a sentir-se em risco.

 

- Aperta bem - disse ele, enquanto Maura atava as mãos de Perchek atrás do corpo. - Certifica-te de que as mãos dele estão frouxas. Não quero folgas. Depois pega naquela arma que está no chão. Verifica o canhão de segurança e...

 

- Eu sei, eu sei.

 

Harry ajudou Perchek a levantar-se e empurrou-o para a porta. Do outro lado da sala, o guarda, amarrado e amordaçado, viu-os sair.

 

- Por aqui, ao longo da vedação - ordenou Harry, em voz baixa. - Maura, mantém os outros dois tipos debaixo de olho.

 

Deslocavam-se cautelosamente pelo meio dos arbustos ensopados. Dez metros. Vinte. Avistaram o muro de pedra.

 

- Ali! - segredou Maura, nervosa.

 

Apontou para um vulto que se dirigia furtivamente para eles, de arma em punho. Harry tirou o adesivo da boca de Perchek.

 

- Diga-lhe que fique onde está - ordenou ele. Perchek não disse nada. Harry encostou-lhe o cano da arma à nuca.

 

- Raios, faça o que lhe digo ou juro que o mato aqui mesmo!

 

- Sou eu, o Perchek. Não te aproximes. O doutorzinho tem uma arma apontada às minhas costas.

 

- Onde está o Doug? - perguntou o guarda.

 

- Está morto. Fica onde estás.

 

- Não, para trás! - gritou Harry. - Para trás! Mas fique na relva, onde eu possa vê-lo. Maura, vamos na direcção do portão. Há mais um, algures. Portanto, mantém-te alerta. Atravessaram o relvado. Harry agarrava na corda que prendia os pulsos de Perchek com uma mão e no revólver dele com a outra. Maura mantinha a arma em riste.

 

- O melhor é matar-me - disse Perchek.

 

- Cale-se.

 

- O Santana não aproveitou a oportunidade quando a teve, e veja como ele acabou.

 

Tinham chegado ao portão. Harry verificou o interior da casa do guarda. Não estava lá ninguém.

 

- Não te afastes - avisou em voz baixa. - Aquele tipo ainda lá está?

 

- Ainda - respondeu Maura.

 

- Está bem.

 

Susteve a respiração, puxou Perchek mais para junto de si e obrigou-o a sair pelo pequeno portão de ferro forjado, ao lado do portão principal. A Winnebago estava no sítio em que a tinham deixado, a cinquenta metros, na estrada.

 

- Maura, aquela autocaravana é nossa. A chave está debaixo do pneu traseiro do lado direito. Vais tu a guiar enquanto eu tomo conta dele. Parece difícil, mas não tem segredo nenhum. Ligas o motor e segues. Até lá, vem atrás de nós. Dispara para qualquer coisa que mexa.

 

- É a última oportunidade - disse Perchek.

 

Harry não se incomodou a responder. Estava atento à grande autocaravana, que se encontrava então a menos de dez metros.

 

- Está tudo bem aí?

 

- Não há problema - respondeu Maura.

 

- Estamos quase a chegar.

 

Chegaram à esquina do muro e estavam a menos de três metros da autocaravana, que parecia intacta.

 

- Vai buscar a chave. Eu cubro-te.

 

Harry encostou-se à parte lateral da Winnebago. Maura passou por ele, correu para o pneu traseiro e meteu a mão lá debaixo. Mais uma vez, Harry ficou sem fôlego.

 

“Deus queira que estejas aí”, rezou ele.

 

- Encontrei-a - afirmou ela.

 

Maura correu para a porta do lado do passageiro, abriu-a e trepou para o lugar do condutor. Harry obrigou o Doutor a subir.

 

- Vamos, Perchek. Suba e sente-se ali naquele banco. Nesse momento, ouviu-se um tiro vindo algures de cima do muro junto do portão e uma bala atingiu o metal junto da cara de Harry. Antes que ele pudesse reagir, uma segunda bala atingiu-lhe o braço. Harry deu um grito e embateu na parte lateral da autocaravana, agarrado à ferida. A arma caiu-lhe da mão. Perchek, com as mãos bem atadas atrás das costas, não perdeu tempo e desatou a correr para o portão. Outra bala atingiu a Winnebago, de lado. Maura atirou-se para o chão, mas já Perchek se escapava pelo pequeno portão. Disparou três vezes na direcção do muro, mas o vulto desaparecera.

 

- Eu estou bem - disse Harry. - Vem para aqui e liga isto. Eu consigo desenvencilhar-me.

 

Harry seguiu-a na direcção da Winnebago e fechou a porta. Pouco depois, Maura arrancou. Harry rasgou a manga da camisola. A bala atingira-lhe a parte carnuda do deltóide e saíra apenas dois centímetros ao lado do sítio por onde entrara. As feridas sangravam abundantemente, mas era sangue venoso, não arterial. Harry conseguia mexer os dedos e o cotovelo, embora tivesse muitas dores, as suficientes para desconfiar que o úmero também poderia ter sido atingido. Enrolou a manga à volta das feridas e serviu-se dos dentes e da mão livre para a atar com toda a força. Quando Maura acelerou ao passar pelo portão de ferro maciço, os faróis do automóvel que se encontrava ali estacionado acenderam-se. Harry amaldiçoou-se por não se ter lembrado de alvejar um pneu ao passar por ele.

 

- Eles vêm atrás de nós - confirmou.

 

- Para onde vou?

 

- Afasta-te do rio, segue pela direita. Mantém-te nesta estrada e vê se consegues encontrar um sítio onde possas voltar à esquerda.

 

- Harry, esta coisa é enorme.

 

- Vai o mais depressa que puderes e depois acelera um pouco.

 

Harry pegou no telefone e ligou para o 911.

 

- Fala o doutor Harry Corbett! Sou procurado pela Polícia. Neste momento, seguimos pela zona das paliçadas, numa Winnebago, e somos perseguidos por homens que querem matar-nos. Estamos...

 

A janela do lado de Maura rebentou para o interior do veículo, cobrindo-a de vidros. Instintivamente, Maura baixou-se, depois levantou a cabeça e acelerou até aos sessenta quilómetros por hora.

 

- Estás bem?

 

- Tenho golpes na cara e no braço, mas estou bem.

 

Os pneus e os travões chiaram quando ela virou o volante para a esquerda. Derraparam no pavimento molhado e depois sentiram o ruído do choque de metal contra metal. com o impacte, os armários abriram-se. O fax soltou-se do suporte e embateu na parede. As panelas, os tachos e as latas de comida caíram na alcatifa e soltaram a mesa de teca.

 

- Consegues pôr o cinto de segurança?

 

- Não posso largar o volante!

 

Harry largou o telefone, pegou na arma de Maura e correu para a janela traseira ao lado do condutor.

 

- Não os vejo! - gritou ele. - Talvez os tenhas empurrado para...

 

O vidro da janela atrás dele estilhaçou-se. Harry virou-se e disparou três vezes, enquanto Maura virava bruscamente para a direita. Harry perdeu o equilíbrio e gritou quando o seu braço ferido embateu num tampo. Dessa vez, o choque com o automóvel foi mais ruidoso e intenso. O automóvel seguia muito mais depressa, mas não conseguia ultrapassar a Luxor.

 

- Harry?

 

- Estou bem. Eles são três, acho eu! O Perchek vai no banco traseiro! Tenho a certeza!

 

Era obrigado a gritar para se sobrepor ao ruído do vento e dos motores. Naquele momento, desciam uma colina bastante íngreme.

 

- Harry, quase não consigo manter-me na estrada!

 

- Podes virar à esquerda, numa rua lateral?

 

- Vou a oitenta! Teria de abrandar para vinte! Espero que esta estrada não tenha muitas curvas, caso contrário, capotamos!

 

- Continua! Estás a fazer um bom trabalho!

 

O automóvel voltou a embater neles. Dessa vez, a janela do meio estilhaçou-se. Harry segurou-se e puxou o gatilho do revólver, mas obteve apenas um clique impotente. Os perseguidores avançaram.

 

- Cuidado, Maura! - gritou ele.

 

Uma bala entrou pela janela do lado de Maura e rachou metade do pára-brisas. Maura guinou para a esquerda. Só a pressão exercida pelo automóvel é que os impediu de se despistarem. Harry conseguiu subir para o banco ao lado do condutor, procurou o cinto de segurança com o braço ferido e depois desistiu. Se Maura não o pusera, ele também não o poria.

 

- Harry, eles estão na nossa frente, estão a tentar bloquear-nos a passagem! - gritou ela. - Mal consigo ver através do pára-brisas! Harry, cuidado! A estrada desapareceu! Eles estão à nossa frente!

 

O automóvel chocara com a grelha da Winnebago, por baixo do pára-brisas. A autocaravana estava a ser empurrada para o lado, galgando uma faixa de árvores novas e de arbustos baixos a oitenta quilómetros por hora. As árvores estalavam como foguetes enquanto a Winnebago avançava, com um chiar de travões. Os ramos das árvores maiores fustigavam as janelas sem vidros. Maura tinha cada vez mais dificuldades em segurar o volante. Depois, de súbito, a jovem e densa floresta desapareceu. Uma faixa de dez metros de mato desembocou na escuridão. À frente deles, viam-se as luzes de Manhattan. Lá muito em baixo estava o Hudson.

 

- Harry! Harry! - gritou Maura, agarrando-se. - Vamos cair!

 

O automóvel e a autocaravana caíram no precipício juntos. Estarrecido e horrorizado, Harry agarrou-se à extremidade do banco, esticando as pernas e espreitando pelo pára-brisas rachado, quando o automóvel se afastou deles e caiu à água em primeiro lugar. A Winnebago afocinhou ligeiramente ao passar pelo sítio onde o carro se despenhara. O pára-choques dianteiro foi o primeiro a atingir a água cor de ébano com uma força estonteante. No mesmo instante, o pára-brisas foi projectado para o interior e os dois airbags encheram-se de ar. A água fria inundou a cabina.

 

Harry inclinou-se para a frente e colidiu com o guarda-lamas, no mesmo instante em que o airbag o projectou para trás. A dor no peito, que nunca desaparecera totalmente, explodiu dentro dele mais uma vez.

 

- Maura! - gritou.

 

O rio avançou a toda a força, inundando a Winnebago em poucos segundos. Sempre inclinada para a frente, a grande autocaravana deslizou e desapareceu à superfície. Harry tentando lutar contra a força da água, o airbag e a dor no braço e no peito, inalou profundamente e agarrou-se ao banco, na esperança de agarrar o corpo de Maura a qualquer momento. As águas escuras do rio empurraram-no para trás. Harry descalçou os ténis e fez um esforço para se acalmar e orientar. A escuridão era total. Onde estavam as janelas! Por baixo dele? Por cima? Continuavam a afundar-se? Começou a faltar-lhe o ar. Esperneou e tentou encontrar uma saída. Nada. A água entrava-lhe pelo nariz e pela boca. Daí a pouco, teria de respirar. Ficou em pânico ao ver-se encurralado na água, uma sensação até então desconhecida.

 

Os seus movimentos tornaram-se mais fracos, mais inúteis. A dor no peito aumentou. A água chegou-lhe à garganta.

 

“Respira”, gritou a sua mente. “Tens de respirar.”

 

A escuridão envolveu-o.

 

Relutante, Harry entregou-se a ela. Sentiu os braços pesados. A dor terrível por baixo do esterno começou a dissipar-se. Depois, no momento em que perdeu a consciência, sentiu uma mão a agarrar-lhe a parte de trás da camisa.

 

Quando Harry voltou a si, a primeira coisa que sentiu foi o cheiro: a amálgama inconfundível de solutos de limpeza, de anti-sépticos, de detergente e de doenças humanas. Era um odor que lhe era tão familiar como o seu próprio quarto. Estava num hospital, deitado numa cama, num ângulo de quarenta e cinco graus.

 

A pouco e pouco, o pesadelo começou a regressar. Estava morto. Tinha de estar. A sensação terrível da água lodosa do rio a encher-lhe a boca e os pulmões... Era impossível que não tivesse sido fatal. Isto é o céu? Não, é Iowa... Estava morto, o que não era assim tão mau. Se abrisse os olhos naquele momento, veria nuvens a acumularem-se aos seus pés. James Mason encaminharia os novos recrutas para a escadaria celestial que os conduziria ao piso seguinte.

 

- Doutor Corbett? Doutor Corbett, abra os olhos.

 

Uma voz de mulher. Harry não reagiu imediatamente, embora sentisse que podia fazê-lo. Tentou mexer os braços e as pernas. Primeiro as pernas, depois o braço esquerdo e por fim o direito. Não conseguiu mexê-lo. O braço foi-se. A bala destruíra uma artéria e o braço fora amputado. Harry entreabriu os olhos e espreitou para o peito. O braço e a mão estavam lá, apoiados numa alça, e funcionavam como seria de esperar deles.

 

- Maura...

 

Pronunciou o nome em voz baixa e dqpois repetiu-o, mais alto.

 

- Quem é a Maura? - perguntou” a mulher.

 

Harry abriu bem os olhos e virou-se para o sítio de onde vinha a voz. Uma mulher jovem, de cabelo curto, louro, e rosto sedutor e inteligente, olhava para ele. Vestia uma bata branca com uma etiqueta azul onde se lia: “Doutora Carole Zane. Cardiologia.”

 

- A Maura Hugues é a mulher que me acompanhava - respondeu Harry, cujos sentidos se definiam rapidamente.

 

- Houve uma mulher que sobreviveu ao acidente, mas não sei como se chama. Pelo que ouvi dizer, o senhor ficou pior do que ela. Acho que a levaram para um hospital de Newark.

 

“Graças a Deus que ela está viva”, pensou ele.

 

- Sabe mais alguma coisa do acidente? - perguntou ele.

 

- Nada, a não ser que o senhor ia numa caravana e caiu ao Hudson de uma altura de dez metros.

 

- Onde estou agora? - perguntou Harry.

 

- Está na Unidade de Cuidados Intensivos de Cardiologia do Hospital Universitário, em Manhattan. Sou a doutora Zane, cardiologista. O senhor foi transportado para aqui de helicóptero, ontem à noite. Ao que parece, era o hospital mais próximo do local do acidente que tinha uma cama vaga no serviço de cardiologia.

 

- Que dia é hoje?

 

- Sábado.

 

- É dia um?

 

- Um de Setembro, sim.

 

Dia 1 de Setembro. O fim para o avô. O princípio do fim para o pai. Agora é a vez de Harry...

 

- Tive um acidente nas coronárias?

 

- Talvez. Não temos a certeza. Parece que é médico, não é verdade?

 

- Sim, de clínica geral.

 

- Muito bem. Foi atingido no braço. A bala raspou-lhe o úmero, mas o osso está intacto. Quiseram examinar-lhe a ferida ontem à noite, mas não foi possível porque o seu electrocardiograma não está normal. Apresenta alterações de segmento que apontam para um ferimento agudo na parede posterior. As suas enzimas cardíacas também estão ligeiramente altas. Portanto, houve algum músculo cardíaco que sofreu uma lesão menor.

 

- Então tive um acidente coronário?

 

- Não há a certeza. Os padrões do electrocardiograma continuam a mudar. O que quer que é continua a evoluir. Isso significa que podemos tratá-lo.

 

- com um balão?

 

- Ou com um bypass.

 

- Raios.

 

Harry resumiu rapidamente a sua história de família e os sintomas intermitentes durante vários meses. A médica tomou apontamentos, parando de vez em quando para esclarecer qualquer ponto. Era óbvio que se tratava de uma mulher brilhante, mas também era meiga e atenta e tinha o cuidado de não lhe mostrar que estava com pressa.

 

- Tem dores neste momento? - perguntou ela.

 

- Não. Nunca tenho dores quando estou em repouso. Tenho-as sobretudo quando corro muito ou salto.

 

- Bem, optámos por não lhe dar medicamentos que liquefaçam o sangue ou que dissolvam coágulos por causa do ferimento da bala, e admitindo que possa haver feridas internas de que ainda não temos conhecimento. Está a ser-lhe administrada nitroglicerina.

 

A médica apontou para os sacos de plástico cujos tubos estavam ligados à mão esquerda de Harry. A nitroglicerina era-lhe aplicada através de uma agulha comprida e fina inserida no tubo primário, que continha água açucarada, para lhe manter a veia aberta.

 

- Não há problema - disse Harry, interrogando-se sobre a melhor maneira de saber onde e como estava Maura.

 

- Gostaríamos de lhe fazer um cateterismo cardíaco o mais depressa possível - disse Zane.

 

- Faça o que tem a fazer.

 

A médica estendeu-lhe um bloco: a autorização para a operação.

 

- Há vários problemas que podem surgir com esse processo descrito na segunda página. Tenho de pô-lo ao corrente de todos eles.

 

- Não se incomode - disse Harry, assinando. - Já morri uma vez, e não me senti assim tão mal. Acha que posso fazer um ou dois telefonemas?

 

- Primeiro, deixe-me auscultar-lhe o coração e os pulmões. Depois, tem aqui uma pessoa para o ver.

 

Curioso, Harry deixou-se examinar. Depois, Carole Zane prometeu ir ter com ele à sala onde seria feito o cateterismo, o mais depressa possível, e dirigiu-se para a porta. Harry seguiu-a com o olhar. Só então reparou no polícia que estava sentado em frente do seu cubículo envidraçado, a olhar para ele.

 

- Doutora Zane?

 

A médica virou-se para trás.

 

- Sim.

 

- O que está o polícia ali a fazer? Ela esboçou um sorriso paciente.

 

- Bem, por aquilo que me disseram, o senhor está sob prisão. Encontramo-nos lá em baixo.

 

Harry levantou mais um pouco a cabeceira da cama e procurou um telefone. Se ele estava sob prisão, então Phil também se encontrava em apuros. A Polícia decerto associara já a Winnebago ao irmão.

 

- Só um telefonema, Corbett. Como se você estivesse na cadeia.

 

Albert Dickinson entrou no quarto e parou aos pés da cama. Vestia o fato do costume e, pelo cheiro, parecia ter acabado de fumar um maço de cigarros. Harry sentiu um misto de raiva e de repugnância ao vê-lo.

 

- Apanharam alguém a sair da casa do Doug Atwater? perguntou.

 

- A Polícia está a tratar disso.

 

- Talvez estejam à espera que alguém lance fogo ao local. Sabe alguma coisa da Maura?

 

- Ainda não está com delirium tremens, se é a isso que você se refere.

 

- Seu patife. Você não tem coração?

 

- Não, quando se trata de assassinos ou de bêbedos. Não, não tenho.

 

- Você vai ficar sem fala quando a verdade vier ao de cima. O que há com a Maura?

 

- Está no Hospital Newark City. Está ferida, mas não com gravidade. Pelo que sei, foi ela que o salvou. Parece que veio à superfície, não o encontrou e mergulhou de novo. Os médicos dizem que você estava a morrer quando ela o levou para a margem. Parece que você sofreu um acidente das coronárias.

 

- É o que eles dizem. E o automóvel que caiu connosco?

 

- Estão a içá-lo neste preciso momento.

 

- Há sobreviventes? Dickinson abanou a cabeça.

 

- Nenhum.

 

- Quantos é que estavam lá dentro? .

 

- Não sei. Só hoje é que o saberei e serei informado das suas identidades. Vou esperar que tratem de si para lhe exigir um depoimento. Portanto, terá algum tempo para arranjar uma história de primeira. O seu dossier já tem dez centímetros de espessura e está cheio de histórias da carochinha. Devo dizer-lhe que sabemos donde veio aquela autocaravana monstruosa. A Polícia de Jersey fará uma visita ao seu irmão assim que o nosso departamento lhes disser que pretendemos acusá-lo de ter ajudado e encorajado um criminoso. É o que vamos fazer.

 

Harry ajustou os tubos de oxigénio no nariz e perguntou a si próprio se o detective não estaria a tentar provocá-lo de propósito para desencadear um acidente coronário.

 

Uma enfermeira com uma seringa entrou no quarto.

 

- O que é isso? - perguntou Harry.

 

- É Demerol, para o manter descontraído durante o cateterismo. O pessoal do laboratório virá buscá-lo daqui a pouco.

 

- Nada de drogas, por favor - disse Harry. - Eu estarei calmo. Prometo.

 

- Está bem - respondeu a enfermeira. - Mas terei de avisar a doutora Zane.

 

- Este homem está sob prisão, miss - disse Dickinson. Se for para qualquer lado, terá de ser acompanhado por um agente.

 

A avaliar pela sua expressão, a enfermeira não dava tanta importância a Dickinson como ele gostaria. Harry pediu um telefone.

 

- Só um telefonema - lembrou-lhe Dickinson.

 

Harry engoliu uma dúzia de comentários acerca do polícia e da sua estirpe. Em seguida, telefonou ao irmão. Phil acabara de ter conhecimento do acidente e preparava-se para ir ao hospital. Tal como Harry previra, subvalorizou a perda da elegante autocaravana.

 

- Olha, seria o presente dos teus cinquenta anos, Harry. Só faltava embrulhá-la.

 

Mas estava preocupado com a situação cardíaca de Harry.

 

- Parece que tanto te preocupaste com essa maldição que ela se tornou realidade - disse ele.

 

- Talvez.

 

Phil prometeu saber o que pudesse de Maura e ir visitá-lo daí a duas horas. Pouco depois, entrou uma maca no quarto, empurrada por um homem de óculos com aros de osso e bigode grisalho. Vestia uma bata cirúrgica. Transferiu os sacos de Harry para um suporte ligado à maca e depois agarrou-lhe no lençol por baixo da cabeça. Do outro lado, duas enfermeiras agarraram no mesmo lençol ao nível das ancas.

 

- Não fique aí a olhar - disse uma delas a Dickinson. Pegue neste lençol por baixo dos pés e ajude-nos a içá-lo.

 

Dickinson acedeu, mas mostrou-se contrafeito.

 

- Muito bem - disse a outra enfermeira. - Um, dois, três.

 

Os quatro içaram Harry para a maca, como se ele não pesasse nada. A aterragem causou-lhe uma pontada no braço e uma dor, real ou imaginária, no peito.

 

- Quanto tempo é que isso leva? - perguntou Dickinson. A enfermeira encolheu os ombros.

 

- Uma ou duas horas - respondeu ela, colocando um monitor/desfibrilhador cardíaco portátil entre os pés de Harry.

 

- Depende do que encontrarem e do que fizerem. Ele pode ir parar à sala de operações para um bypass.

 

As enfermeiras ligaram um pequeno reservatório de oxigénio aos tubos de Harry e taparam-no com um lençol. Dickinson saiu do quarto atrás da maca e de uma enfermeira.

 

- Faça um intervalo - aconselhou ao polícia fardado. Eu vou lá para baixo com ele. Telefono-lhe daqui a meia hora a dizer-lhe o que se passa.

 

com a enfermeira de um lado e Dickinson do outro, Harry foi levado para o elevador. O monitor que tinha aos pés registava o seu ritmo cardíaco. Perante a eventualidade de ser operado ao coração, sentia-se distante, esquisito e muito mortal. Mas, na realidade, quase sempre se sentira assim desde a noite em que voltara ao Alexander 9 com um batido de leite para Evie. A maca entrou no elevador, empurrada pelo homem do laboratório. Dickinson e a enfermeira encolheram-se para caber lá dentro. Aos pés de Harry, em frente das portas por onde tinham entrado, havia outras. Harry sentiu as portas fecharem-se atrás de si. Ouviu alguém a meter uma chave no painel de comandos para não haver paragens no caminho.

 

- Olhe lá, o que está a fazer? - perguntou a enfermeira.

 

- O laboratório fica no oitavo andar, e não na subcave. Nesse momento, a sua expressão foi de horror. Dickinson, espantado, olhou para o homem e procurou a arma no interior do casaco, e Harry ouviu o silvo de um revólver com silenciador mesmo ao pé da orelha. A enfermeira deu uma volta de 180 graus, chocou com a porta metálica e caiu no chão. Dickinson visivelmente derrotado, baixou a mão num gesto de rendição. O revólver com silenciador emitiu outro silvo e abriu imediatamente um buraco na camisa branca do detective, do lado esquerdo do peito. À volta do buraco surgiu uma auréola escarlate. O homem olhou para Harry, com um misto de admiração e de pavor. Depois, os olhos rolaram-lhe nas órbitas e, sem uma palavra, o detective caiu no chão.

 

Harry ficou demasiado chocado e horrorizado para falar. No ecrã do monitor, o seu ritmo cardíaco subiu aos cento e setenta. Esperava a qualquer momento que o coração parasse.

 

- Eu disse-lhe que devia ter-me morto quando teve oportunidade para isso - disse Anton Perchek, com indiferença.

- Agora, prepare-se para a sua grande fuga.

 

O elevador parou na subcave, mas Perchek impediu que as portas se abrissem.

 

- Você não vai conseguir - objectou Harry.

 

- Consegui até agora, não é verdade? - gabou-se Perchek. - Passei pelo meu apartamento de Manhattan para ir buscar umas coisas e cheguei para iniciar uma longa preparação algumas horas depois de você. Não podiam ter escolhido um hospital melhor para os meus desígnios. Tenho umas etiquetas de identificação excelentes. E como já tratei vários casos da Roundtable, conheço muito bem este local.

 

- Você está louco.

 

- Vamos, doutor. Temos de ir andando. Tenho um cesto de roupa à minha espera do lado de fora da porta. É sábado, portanto a lavandaria está quase deserta. Um pouco de Pentotal na veia e conseguiremos passar pelas centrifugadoras e sair daqui.

 

- Porque não me mata? - perguntou Harry.

 

O Doutor virou a maca para Harry ver o ódio no seu olhar... e a satisfação.

 

- Oh, Harry, a ideia não é matá-lo - disse ele. - A ideia é obrigá-lo a suplicar-me que o mate.

 

Harry procurou uma coisa, qualquer coisa, que pudesse servir-lhe de arma. Não haveria nenhum rapto nem nenhuma sessão de tortura. O caso acabaria ali mesmo, naquele momento. Reparou que o botão de abertura das portas ficava junto do seu pé direito. Do outro lado, lá em baixo, devia haver uma arrecadação ou uma central eléctrica. Se ele conseguisse lá chegar, teria uma hipótese. Pelo menos, Perchek seria obrigado a decidir se iria atrás dele ou fugiria.

 

A alça tinha folga suficiente para lhe permitir uma certa amplitude de movimentos. Protegido pelo lençol, passou a mão por cima do corpo. A dor no ombro intensificou-se, mas ele ignorou-a. Por fim, os seus dedos fecharam-se sobre a única arma de que ele se lembrava: a agulha de quatro centímetros que estava enfiada no tubo. com cuidado, retirou-a e passou-a para a mão esquerda.

 

Perchek ajudou a abrir a porta atrás de Harry.

 

- Lá está o nosso cesto, precisamente onde eu o deixei - disse ele, baixando o revólver, enquanto puxava a maca para fora. - Agora a dose exacta de Pentotal e...

 

Nesse momento, a enfermeira caída no chão soltou um gemido. Perchek voltou-se.

 

“Agora!”, pensou Harry.

 

Pegou na agulha com força e enterrou-a completamente na zona mole atrás da orelha direita do Doutor. Perchek soltou um grito de dor e de espanto e caiu para trás, agarrado à orelha. Harry levantou-se da maca e, com toda a força que tinha, deu um murro na face esquerda de Perchek, que se estatelou no chão, junto do cesto. Depois, virou-se e carregou no botão do painel mesmo por cima do sítio onde Albert Dickinson jazia. Ouviu Perchek a levantar-se, no momento em que as portas do outro lado se abriram. Baixando a cabeça, Harry atravessou a correr uma pequena sala de espera, passou por umas portas de batente e correu para os infernos.

 

Encontrava-se numa longa passagem de cimento, na central cavernosa do hospital. A temperatura era superior a quarenta graus e o nível de ruído era ensurdecedor: o zumbido das máquinas sobrepunha-se ao agitar constante da água em circulação. Harry arrancou a alça e atirou-a para o lado, enquanto fugia desajeitadamente do elevador, esperando a qualquer momento ser alvejado pelas costas. À sua direita havia um corrimão de segurança, e quatro metros e meio mais abaixo ficava a grande turbina, um monolito cinzento que emergia de uma placa de betão. O ronco forte e compassado que ela emitia atingiu Harry no peito como um punho cerrado.

 

A sua esquerda, com dez metros de altura e por baixo de um tecto constituído por painéis de vidro escuro, estavam as caldeiras, gigantes agoirentos que irradiavam calor e energia. Trinta metros mais à frente, ficava a cabina de controlo envidraçada. Lá dentro, de costas viradas para Harry, um homem corpulento de fato-macaco castanho e capacete amarelo via televisão.

 

- Socorro! - gritou Harry. - Socorro!

 

O seu grito foi engolido pelo barulho. Harry tropeçou, com o suor a escorrer-lhe pela face e a fazer-lhe arder os olhos. As pulsações constantes da turbina provocavam-lhe uma náusea enorme. Harry olhou para trás no preciso instante em que uma bala fez ricochete na coluna de aço, junto da sua orelha. Perchek passara pela maca, a rastejar, e estava agora na porta do corredor, tentando acertar-lhe mais uma vez. Harry atirou-se para o chão, de barriga para baixo, ignorando as dores no ombro e no peito. A bala falhou por centímetros, polvilhando-lhe a cara de pó de cimento. Oito metros à sua frente, ficavam as escadas para a sala de controlo, que era insonorizada, conforme ele acabara de concluir. Oito metros. Harry conseguia até distinguir o saco do McDonald’s em cima da bancada, junto do televisor. Mas a menos que o engenheiro de capacete se virasse e o visse, a cabina bem podia estar na Lua. Não conseguiria chegar lá antes de Perchek o apanhar.

 

Então, à sua direita, a cerca de três metros, reparou nas escadas que desciam para o piso das turbinas. Conseguiu arrastar-se de joelhos e com a ajuda da mão esquerda. O seu braço direito não aguentava o mínimo peso. O calor era intenso e entorpecedor. A dor no peito era constante. Harry quase caiu nos degraus de aço, atravessou a custo a zona de cimento e procurou protecção atrás da turbina. Piso zero. A vibração monótona atravessava-lhe o corpo como uma serra.

 

Quatro metros e meio acima dele, no corredor que vinha do elevador, Perchek inclinava-se no corrimão metálico, à sua procura. Ficar ali para o matar era uma opção insensata, mas era óbvio que o orgulho e o ódio do Doutor tinham triunfado sobre a lógica.

 

Agachado atrás da turbina, Harry contornou-a, tentando esconder-se de Perchek. Atrás de si, havia outro corrimão de segurança e, depois dele, outras escadas para um nível inferior. A central, sem janelas e com três pisos, era grande como uma catedral. Harry ouvia a água a correr lá em baixo, talvez a ser bombeada do rio para arrefecer o vapor das caldeiras, depois de ter passado pela turbina. Harry perguntou a si próprio se a conduta que devolvia a água ao rio seria suficientemente grande para escoar um homem.

 

Perchek já se aproximara das escadas que davam acesso ao corredor. As escadas para o nível inferior eram uma continuação das outras. Harry não tinha por onde sair. Continuou a avançar para a esquerda, tentando manter a terrível turbina entre ele e o Doutor. Mas, nesse momento, Perchek viu-o. Harry caiu para trás quando o revólver voltou a cuspir fogo. A secção de um tubo mesmo por cima da sua cabeça abriu-se. com um rugido que lembrava um comboio de mercadorias, o vapor sujeito a uma enorme pressão libertou-se, inundando instantaneamente toda a zona e atingindo nove metros de altura. A temperatura subiu rapidamente. Era doloroso respirar o ar quente e húmido. Um inferno.

 

Harry sabia que lhe estava vedado o acesso às duas escadas. Mas, naquele momento, a nuvem rodopiante de vapor envolvera por completo a turbina. Harry penetrou na névoa cerrada que lhe dava pela cintura e esgueirou-se por baixo do corrimão de segurança. O desnível de três metros e meio para o piso inferior parecia-lhe muito maior. Mas não havia alternativa. A custo, agarrado ao corrimão com a mão em bom estado, Harry baixou-se junto da beira. Ficou ali pendurado por instantes e depois saltou para o pavimento de betão, rebolando desajeitadamente ao cair. Sentiu uma dor, dos pés até ao peito, que lhe tirou o fôlego. Os instantes seguintes foram assustadores, até ele perceber que ainda conseguia mexer-se.

 

Naquele momento, encontrava-se na zona mais baixa do hospital. Por baixo do pavimento de betão ficavam os túneis de água, o espaço para rastejar e o solo. O pedestal maciço que sustentava a turbina nascia do chão e atravessava o pavimento do piso que Harry abandonara. À sua frente, ao nível do betão, havia uma grade de aço. Harry aproximou-se dela, de rastos, e inspeccionou-a. Tinha um metro e vinte por um metro e dava acesso a um túnel de betão com cerca de dois metros e meio de largura. Na base do túnel, um metro e meio abaixo do sítio onde Harry estava ajoelhado, havia um canal, cuja água, proveniente do arrefecimento da central, corria rapidamente para o rio. A seu lado, um poste de controlo com quatro botões permitia que o fluxo de água fosse interrompido para servir o sistema em ambas as direcções. Abrir para Dentro, Abrir para Fora, Abrir Fluxo e Fechar Fluxo. A perspectiva de tentar fugir através do túnel para o rio não era atraente, mas estava a transformar-se rapidamente na sua única opção. Porém, a dor no peito parecia uma broca e estava a piorar, e Harry não seria capaz.

 

No piso da turbina por cima dele, o vapor continuava a sair. Perchek estava algures lá em cima, sem dúvida a guardar a escada, que era a única saída de Harry. Mas o Doutor tinha agora outro problema. Não faltaria muito para que a pressão do vapor activasse um alarme. O engenheiro da sala de controlo olharia para baixo e veria o que estava a passar-se. E qualquer homem mentalmente são fugiria nesse momento.

 

Mas a sanidade mental de Anton Perchek era duvidosa.

 

Harry tentou deslocar a grade. Era pesada mas amovível. com dois braços sãos, teria sido muito fácil. Continuou a olhar para as escadas, esperando a qualquer momento ver Perchek a descer da nuvem. A dor terrível no esterno prolongava-se até ao queixo e aos ouvidos. A pouco e pouco, com um grande sofrimento, Harry afastou a grade para o lado. Calculava que, lá em baixo, a água corrente tivesse três metros de profundidade. Não era muito para amortecer a queda. Harry estava fraco, atordoado e ensopado em suor... Talvez estivesse à beira de um ataque cardíaco. Tinha poucas hipóteses de sobreviver se caísse no túnel escuro como breu e seguisse o curso da água até ao rio. Seria preferível tentar esconder-se atrás do pedestal da turbina. A qualquer momento, alguém seria obrigado a descer.

 

Chegou à base de betão do pedestal no preciso momento em que Perchek emergiu da nuvem de vapor e desceu as escadas. Harry agachou-se ficando fora do alcance visual, pelo menos nesse momento. A seu lado havia um carrinho de metal cheio de ferramentas. Harry tentou pegar num martelo com a mão esquerda. Era uma arma poderosa, mas duvidava que conseguisse servir-se dela com eficácia. Mesmo assim, era alguma coisa. Perchek inspeccionou a zona e espreitou para o túnel. A grade aberta era uma prova de que Harry estivera ali. Mas era também um motivo de confusão para Perchek. Tinha de tomar uma decisão.

 

Harry pegou no martelo e ficou à espreita, enquanto o Doutor continuava agachado junto da abertura, sem saber se havia de saltar. A dor no peito de Harry estava a dificultar-lhe a respiração e até a concentração. Então Perchek levantou-se e afastou-se da grade, vasculhando de novo o recinto. Harry praguejou em voz baixa. Tinha de fazer qualquer coisa, talvez tentar enfiar-se debaixo das escadas. Perchek ajoelhou-se outra vez e espreitou para o túnel.

 

De repente, antes de se aperceber verdadeiramente do que estava a fazer, Harry levantou-se e avançou para o Doutor com quantas forças tinha, apoiado no carro das ferramentas que levava à sua frente. O silvo do vapor e o ruído das máquinas abafavam o som das rodas. Perchek sentiu qualquer coisa e virou-se, mas era demasiado tarde. O carrinho bateu-lhe no ombro, projectou-o para a beira e ele caiu à água. Harry caiu no chão, ofegante e quase a perder os sentidos. Lá em baixo, via o Doutor de gatas, à procura da arma na água.

 

Harry fez um esforço para se mexer. Ajoelhou-se junto da grade, com uma lentidão agonizante, e voltou a pô-la no seu lugar. Perchek olhou para cima ao ouvir o barulho. Pela primeira vez, Harry julgou ver o pânico no rosto do

homem. Depois, lembrou-se do painel de comandos. Se fechasse a saída da água, a sua profundidade aumentaria e a arma seria mais difícil de encontrar. Valia a pena tentar qualquer coisa que lhe desse um pouco mais de tempo. com um grande esforço, rolou no chão, estendeu o braço e carregou no botão. Algures lá de baixo veio a vibração dos mecanismos a ajustarem-se. Harry caiu no chão, de barriga para baixo, sem conseguir mexer-se e respirando com dificuldade. As luzes diminuíram de intensidade. O barulho intenso começou a desvanecer-se.

 

Passou-se algum tempo. Um minuto? Uma hora?

 

Então, de repente, a grade junto do rosto de Harry começou a mover-se. Harry abriu os olhos e, através de uma névoa acinzentada, viu os dedos de Perchek agarrados ao metal, empurrando-o para cima aos solavancos. com o escoadouro fechado, a subida da água trouxera-o para cima. A sua capacidade de elevação era diminuta, mas o homem era suficientemente forte para afastar a grade para o lado. Daí a pouco conseguiria sair. Lutando contra a escuridão e as dores, Harry conseguiu apoiar-se num cotovelo. Depois, com uma lentidão agonizante, deitou-se de costas por cima da grade. Sem se conseguir mexer, ficou ali deitado, de braços abertos, enquanto os dedos de Perchek se lhe agarravam freneticamente aos cabelos e ao pescoço e lhe puxavam a camisa.

 

- Corbett, saia daí! Saia daí!

 

- Vá... para... o diabo...

 

- Corbett...

 

As palavras aterradas do Doutor deixaram de se ouvir. Os seus movimentos eram agora mais frouxos.

 

Harry sentiu a frescura apaziguadora da água à sua volta, a inundar o pavimento. Os dedos que se agarravam à grade soltaram-se. Passaram-se alguns minutos. A água continuava a subir à sua volta, e chegava-lhe ao pescoço, às orelhas.

 

De súbito, a cacofonia das máquinas e do vapor parou.

 

“Morri”, pensou Harry. “Finalmente, morri... Mas o Perchek também morreu, Ray... O Doutor também morreu...”

 

Sentiu que uma mão lhe abanava suavemente o ombro. Olhou para cima através da névoa. O engenheiro estava ajoelhado a seu lado, com o capacete amarelo e uns simpáticos olhos castanhos por trás de uns óculos protectores...

 

- Que disparate ter vindo cá para baixo desta maneira. Você está doido, homem? - disse ele. - Foi uma sorte não se ter matado.

 

               2 de Setembro

 

As letras maiúsculas no calendário diário, que estava mesmo em frente da sua cama, foram as primeiras coisas que Harry viu ao abrir os olhos. 2 de Setembro. A Maldição dos Corbett Mais Um. Já estava acordado e recordava-se de que as enfermeiras e os médicos tinham falado com ele antes de o tirarem do ventilador. Porém, lembrava-se de pouco mais, excepto que fora operado. Seria um doente cardíaco para o resto da vida, talvez até um deficiente. Mas pelo menos tinha o resto da vida à sua frente.

 

Estava outra vez no quarto da UCI, embora não no mesmo em que estivera. Tinha uma máscara de oxigénio e estava ligado à habitual profusão de fios e de tubos. Contudo, sentia-se bastante bem. A Doutora Carole Zane estava a seu lado.

 

- Respire fundo, doutor Corbett - disse ela. - Tem de respirar fundo.

 

Harry já tratara muitos doentes submetidos a operações para implantação de bypasses e sabia que, durante duas ou três horas, a dor provocada pela fractura do esterno e pelo seu posterior ajustamento era intensa. Mesmo assim, era essencial respirar fundo para limpar os pulmões. Fez o que a médica lhe pediu. Sentiu uma guinada do lado esquerdo, mas nada no esterno. Absolutamente nada. Mexeu as pernas. Também não lhe doeram. Uma delas tivera de ser aberta para retirar a veia necessária ao bypass. Passou a mão pelo interior das coxas. Não tinha ligaduras. Depois tocou no peito. A pele por cima do esterno estava rapada, mas intacta.

 

- O que se passa? - perguntou.

 

- O que quer dizer com isso?

 

- O bypass... Como é que conseguiram sem fazer uma incisão aqui?

 

A médica olhou para ele com curiosidade e depois percebeu tudo.

 

- Doutor Corbett, receio que tenhamos exagerado um pouco na anestesia e nos analgésicos. Eu já lhe disse várias vezes o que aconteceu. O senhor não tem um bypass. E, a avaliar pelos seus arteriogramas, nunca o terá. Não se recorda de os ter visto?

 

Harry abanou a cabeça. Carole Zane sorriu ao olhar para o seu doente e voltou-se para mais alguém que estava no quarto. De repente, Maura surgiu a seu lado. Tinha o olho esquerdo negro e uns pensos no sobrolho e na face. Mas o seu aspecto era radioso.

 

- Olá, doutor - cumprimentou ela. - Lembra-se de mim?

 

- Acho que sim. A pessoa que me salvou a vida na Winnebago, não foi? Ainda bem que estás boa.

 

- Tive alta esta manhã. Dez pontos, mas mais nada. Harry, não tens nenhum bypass. Não tens nada no coração. Absolutamente nada.

 

Harry olhou para ela, confuso.

 

- Não percebo. A dor, o electrocardiograma...

 

Maura mostrou-lhe um saquinho de plástico transparente. Lá dentro estava um espigão castanho, ensanguentado, com dez centímetros de comprimento.

 

- Tiraram-te isto do corpo, Harry - disse ela. - É barnbu, portanto nunca aparecia nas radiografias. Estava espetado nas tuas costas desde os tempos da guerra, e a pouco e pouco ia avançando. A ponta estava mesmo encostada à parte de trás do teu coração.

 

- Assim que vimos que os seus arteriogramas estavam perfeitamente normais, fizemos uma TAC - explicou Carole Zane. - E lá estava ele. Foi relativamente fácil extraí-lo.

 

- E o mesmo aconteceu à maldição - concluiu Maura.

 

- Mas estar atordoado também é uma maldição. Portanto, ainda tenho razões para me preocupar.

 

- Falei com o teu irmão e com o meu. Neste momento, o tom está em casa do Atwater, com o teu advogado. O tom diz que encontraram uma sala cheia de documentos da Roundtable, incluindo gravações e balancetes financeiros.

 

- O Perchek tinha uma casa algures em Manhattan - disse Harry. - Acho que era onde ele guardava os disfarces, as etiquetas de identificação e os venenos que usava. Se conseguirmos descobrir esse local, talvez encontremos o Aramine que ele administrou à Evie.

 

- Esse Perchek é o homem que matou o polícia no elevador?

 

- E a enfermeira.

 

- Não. A enfermeira, não. A operação durou quase toda a noite, mas ela está a reagir muito bem. Ouvi dizer que vai ficar boa.

 

- Meu Deus, que boa notícia.

 

- Encontraram um homem a boiar mesmo por baixo de si, na central eléctrica - disse Zane. - Era ele?

 

Harry fez um sinal afirmativo e sorriu por baixo da máscara de oxigénio. Estava a pensar em Ray Santana.

 

- E melhor deixarmo-lo descansar um pouco - avisou Zane.

 

A médica apertou-lhe a mão para lhe incutir confiança, ajustou os fios do monitor e depois saiu do quarto. Maura levantou a máscara e beijou-o na boca.

 

- Bambu - disse ele.

 

- Bambu - repetiu ela. Afagou-lhe a testa e voltou a beijá-lo. - Ouve, já alguém te disse que és parecido com o Gene Hackman?

 

                                                                                Michael Palmer  

 

                      

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