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Lucy dormira pouco naquela noite, num quarto do pequeno hotel que os irmãos lhe haviam recomendado por pertencer a uma estimável viúva que tinha quatro filhos como alunos externos do colégio.. Na manhã seguinte, levando Peter para casa, afim de passar as férias, olhava-o cheia de orgulho e deixava o espírito divagar pelos seus futuros triunfos, que lhe pertenceriam também.
Notou com prazer que Peter estava se desenvolvendo em estatura e força. Iam-se processando nele mudanças que o transformavam de ingénua criança em um forte rapaz.
Lucy acompanhava com desconfiança o engrossar da sua voz e teve que concordar, como coisa inevitável, com suas primeiras calças compridas.
Sabia que aquilo tinha que acontecer e, como tudo se processava gradualmente em boa direção, não se deixava perturbar.
Peter se fazia alto, de maneiras reservadas, cuidadoso com suas roupas e com uma tendência especial a estudar-se detidamente ao espelho. Sua mãe começou a perceber nele, além da sua distinção e simpatia, uma coisa indefinível que o assinalava como seu filho entre milhões de outros rapazes: uma crescente semelhança com o pai.
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O modelado dos lábios, o sorriso, os fortes e brancos dentes, brilhantes e perfeitos. Descobria nele pequenas coisas, que a faziam estremecer, tocando-lhe as cordas da memória. Achava-o um belo rapaz e vivia com ele no pensamento, tirando imensa satisfação dos seus entusiasmos e sucessos.
Acreditava que certas mudanças também deviam estar-se processando nela própria, mas nunca detinha nisso o pensamento. Seu corpo se tornara um corpo mais sólido, a cintura menos flexível, o sorriso ensombrado por uma reserva maior. Nunca havia contemplado as possibilidades de uma aventura romântica. Joe havia-lhe dado, nesse terreno, um rude choque. A paixão de Miss Hocking também a desgostara disso. Acima de tudo, tinha o filho; assim, apesar de não o saber, as circunstâncias da sua vida haviam-na induzido a uma curiosa repressão, que desviara todo o seu amor para Peter. Seus clientes, fosse qual fosse a atitude que tomassem, eram para ela meras faces enfarinhadas, emergindo e desaparecendo com igual precipitação, sem nada significar em sua vida. Lennox gostava dela. Sabia-o. Tinha, porém, seus negócios, que para ele eram uma verdadeira obsessão. Contudo, uma vez. no escritório, ele se havia atrevido timidamente a passar-lhe um braço em torno da cintura. Muito calma, ela ordenara-lhe que o retirasse. E ele obedecera imediatamente, confuso, pedindo desculpas e infinitamente mais perturbado do que ela. Sufocara em si toda e qualquer tendência a sonhos introspectivos que a, inclinassem à tristeza e que a induzissem a uma piedade mórbida de si própria. E poucas vezes ela tinha lazeres para se deixar ficar de mãos cruzadas, entregue a esses momentos de abstração.
Tinha seu trabalho. Acostumara-se a uma refeição rápida e a uma corrida matinal para alcançar o trem. Esperava em plataformas de estação com chuva, sol ou vento.
Percorria todo o distrito em sua peregrinação semanal e ficava durante horas em lojas úmidàs e padarias subterrâneas. Cultivava o otimismo e, para os negócios, usava
uma alegre cordialidade. Quando passou a primeira onda de encomendas motivada pela simpatia, acostumou-se à rotina do trabalho. Seus lucros se fizeram menores, porém
tornaram-se mais regulares e, ao menos quanto a isso, achava-se satisfeita. Diversas vezes, punha-se a considerar o absurdo de estar ela fazendo esse trabalho, esperdiçando
sua vida na venda de uma mercadoria pouco dignificante. De qualquer modo, a margarina triunfara e Lennox interessava-se extraordinariamente pela sua venda, mesmo
em detrimento dos negócios de manteiga. Era quase cómico, mas ela continuava a vendê-la. Não se sentia infeliz, além disso não poderia escolher. O ordenado que percebia,
permitia-lhe viver confortavelmente, vestir-se com asseio, elegantemente mesmo, conforme desejava seu filho quando ela o visitava no colégio. Podia pois gozar certos
prazeres da vida e, sobretudo, custear a educação de Peter.
Sentia que possuía razões para agradecer a Deus, conforme dizia Edward. Às vezes, porém, surpreendia-a o pouco interesse que as pessoas de suas relações mostravam
pela sua situação. Isso a amargurava talvez um pouco. Edward, sem dúvida alguma, era o mais escrupuloso em cumprir seu dever para com ela. Escrevia-lhe de vez em
quando, vinha vê-la algumas vezes, convidava Peter durante as férias, falava em termos benevolentes da sua vida escolar e era
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intermitentemente generoso na medida que lhe permitiam seus limitados meios. Nunca fizera alusão alguma a Joe. Lucy, todavia, tinha a desagradável convicção de que
ele suspeitava o motivo do silêncio persistente do irmão e, por decoro, nunca o mencionava. Contudo, insensivelmente, sua atitude para com Edward havia mudado. Ela
própria confessava que não o julgava o mesmo de dantes.
Quanto a seu irmão Richard, esse mantinha sua habitual distância. Pensava que ela ia indo muito bem e tirava daí mais um motivo de se orgulhar do cérebro e do carater
dos Murray. Pelo Natal, uma vez, Lucy recebera um limpa-penas feito por sua sobrinha Vera. De outra vez, Eva lhe enviou um abafador de bule de cetim cor de rosa,
como lembrança da família inteira, em sinal de estima que lhe votava. ?
De algum modo, essas amáveis atenções fizeram-na fechar-se mais sobre si mesma. Perdeu um pouco dos seus instintos sociais. Nunca abandonou, porém, sua primitiva
generosidade. Por ocasião do casamento de Netta com Dave Bowie - um acontecimento sensacional que marcou o triunfo do verdadeiro amor sobre a passagem dos anos -
ela presenteou sua ex-criada com lindas roupas brancas; um presente bastante desproporcionado às suas economias.
Deixou de se interessar por certos assuntos gerais. Não sabia grande coisa da situação nacional. A reconquista do Sudão, a organização do Domínio na Austrália deixaram-na
indiferente. Nunca soube que Marconi estava usando o telégrafo sem fio, nem que Langly fizera voar sua pequena máquina. Para ela, o nome de Kruger não soava como
uma terrível des-honra. Sofreu sem nenhuma dor a morte da Rainha Vitória.
X
No dia 3 de setembro de 1904, Lucy entrou de excelente humor no escritório e dirigiu-se imediatamente à sua secretária. Nada de extraordinário ocorrera para influenciar
seu humor, a não ser talvez o perfume do outono no ar. Sempre gostara dessa estação, em que o vento derruba as folhas e espalha na terra uma fragrância que a fazia
parar subitamente para tomar um grande e perfumado hausto. com ar de confiante eficiência, fazia correr livremente o lápis de cópia sobre a folha.
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- Há alguma coisa que o aborreça hoje? perguntou ela a Andrews que deixara de corresponder ao seu cumprimento ao entrar.
O outro, porém, manteve-se calado, acariciando o bigode caído e olhando-a com uns olhos sem brilho. Sem querer, ela sorriu, lembrando-se que Uma vez tremera defronte
dele, naquele mesmo escritório, respondendo: "Farei o possível para me lembrar do que diz, Mister Andrews."
- Está rindo, não é? virou-se nesse momento Andrews, despertando do seu mutismo. Pois ria à vontade. É melhor fazê-lo agora, porque depois talvez isso não seja mais
tão fácil.
Aquele pessimismo fê-la rir ainda mais:
- Onde está Dougal? indagou.
Dougal, com os anos, tornara-se mais agradável do que prometia. Era agora um simpático rapaz, muito amigo de Lucy.
com um gesto de cabeça, Andrews indicou o gabinete:
- Está com o patrão. Também lá estive, e logo chegará sua vez. !
- Que há de novo? interrogou ela, olhando-o com mais atenção.
- Vai sabê-lo bem depressa, e não há de gostar, garanto! tornou ele mais abatido do que de ordinário.
-, Nesse momento, abriu-se a porta do gabinete e Dougal saiu acompanhado pelo próprio Lennox.
- Ah! já chegou? falou este ao vê-la. Quer vir aqui por um minuto?
Lucy ergueu-se lentamente. A visão do rosto de Dougal e aquela intimação depois da profecia de Andrews inquietaram-na um pouco. Nada havia feito, porém, de modo
que não havia razão para ter medo.
- Sente-se, Missis Moore, disse Lennox, que nunca a chamava assim; acabo de falar com os outros, declarou mexendo os lápis nervosamente. Custa-me imenso fazê-lo:
mesmo
assim isto tem de ser feito. - Depois, pegando na régua que se,achava sobre a mesa, continuou: - tenho uma notícia a lhe dar.
Lucy fez se pálida. Fixou-o em silêncio e depois articulou : -
- Mas meu trabalho está indo bem, perfeitamente bem; creio que o senhor sabe disso.
- Sei disso, sei disso! E estou verdadeiramente desolado.
- .Então... que há? perguntou ela ofegante.
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- Vendi tudo... sim, vendi tudo isso, a firma e o stock, a Van Hagelmann! - E encostando-se na cadeira, prosseguiu, a despeito da confusão que mostrava, com uma
voz francamente de triunfo: - Eu estava sendo um espinho na carne deles. Procuraram derrubar-me e não conseguiram. Vendi margarina holandesa, contra a vontade deles,
debaixo de seus narizes. E agora estão fartos. Não querem mais competição. Querem ter o monopólio. Eu sabia! Havia visto isso de longe! E isso porque dei saída à
margarina e sacrifiquei a manteiga. Foi muito hábil da minha parte. E agora está feito; o negócio está concluído. Saio eu e eles entram.
A essas palavras, o rosto de Lucy foi-se fazendo rubro. Então era aquilo que ele estivera visando?
- Mas eles vão nos conservar aqui! indagou ela ansiosa.
Lentamente Lennox sacudiu a cabeça e suas maneiras mudaram:
- Aí é que está a parte má do caso. Eles têm seus escritórios, seus empregados, seus viajantes. Penso que talvez conservem Dougal, que é um jovem que lhes pode ser
útil. Andrews, porém, e a senhora... não sei! - E ajuntou significativamente : - Sinto muito.
Apesar de se esforçar para fazer transparecer o constrangimento em suas feições, era visível que não estava nada contrariado. Estava encantado por ter realizado
aquela transação. Lucy via-o claramente, e um súbito impulso, ao sentir a injustiça do fato, invadiu-a.
- E eu tenho que ser afastada assim, depois de tantos anos! Eis o prémio que recebo pelo pesado trabalho que realizei.
- A senhora sempre foi paga, respondeu Lennox suavemente.
- Mas não é direito! É injusto! protestou Lucy indignada, o senhor devia nos ter prevenido do que estava preparando.
- Mas eu próprio não tinha certeza, desculpou-se Lennox e depois acrescentou com mais suavidade ainda: ?- Não vale a pena perder a calma por isso.
Talvez a lembrança daquela distante e cálida tarde em que ele lhe havia passado o braço em torno da cintura o impedisse de ser mais positivo. Talvez, mesmo agora,
ele se desse conta da consideração que lhe tinha.
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- Há muito que desejava retirar-me dos negócios, continuou. Certamente a senhora encontrará alguma outra ocupação sendo uma pessoa correta como é.
Aos lábios de Lucy acudiu naquele momento uma resposta brusca; ela os mordeu, porém. Ergueu-se abruptamente, encarando-o com uns olhos brilhantes e cheios de ressentimento
:
- Que tempo ainda deverei trabalhar? perguntou.
- Um mês, declarou pacificamente Lennox.
Ela deixou o gabinete cheia de indignação. Viu-se naqueles primeiros dias ali, humilhada pela atitude de Lennox e agora novamente tendo que tragar a amargura de
ser despedida desse modo. E contudo, quanto havia trabalhado, afrontando intempéries, para assegurar a esse miserável Lennox uma confortável aposentadoria!
, - Não lhe disse ? exclamou Andrews. Eu sabia que ia também ser despedida!
- Não me aborreça! atalhou ela.
Dougal conservava-se em silêncio. Não fora despedido e, por isso, mantinha um ar contrafeito de quem havia traído os colegas.
Lucy, de lábios comprimidos, apanhou seu livro, pô-lo em ordem e deixou o escritório às cinco horas.
com o espírito confuso, sem mesmo se aperceber de que chovia e que os cabelos começavam a se lhe empastar nas faces, caminhou para a estação. Durante a viagem procurou
enfrentar aquela inesperada catástrofe. Sempre cheia de confiança, nunca chegara a prever aquela situação. Uma nova onda de ressentimento avassalou-a.
Ao alcançar Ardfillan, chovia ainda e a roupa molhada lhe aderia lamentavelmente ao corpo, no momento em que afinal entrou em casa.
- Brr! exclamou Miss Hocking entrando vivamente no hall. Você está molhada como um peixe, minha filha!
- Realmente, estou encharcada, concordou Lucy. Não levei agasalho.
- Venha imediatamente mudar de roupa, disse a outra que usava no momento seu indefectivel quimono de seda verde e tinha um alegre brilho nos olhos. Ponha-se bem
elegante e não se esqueça de que fomos convidadas para jantar fora.
Lucy agitou a cabeça, sacudindo assim as gotas dágua que aljofravam ainda.
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- Não posso ir, respondeu com firmeza. Estou fatigada e não tenho desejo nenhum de sair.
- Ah! mas você deve ir! precisa ir! insistiu Miss Hocking com efusão. Far-lhe-á bem. Teremos música. Um pouco de canto antes do jantar. Vai ser muito repousante
para você. Venha!
- Já lhe disse que não irei, tornou Lucy bruscamente. Não quero ir.
- Preciso fazer com que você vá, minha querida. vou ajudá-la a vestir-se.
- Deixe-me, pediu Lucy afastando os carinhosos braços da outra. Acabo de perder meu emprego!
- Seu emprego? ecoou a outra incrédula.
- Sim, meu emprego, meu trabalho, minha situação. Fui posta na rua. Sabe o que isto quer dizer?
- Deus do céu! exclamou Miss hocking; e depois, com um brilhante sorriso, acrescentou: - Você arranjará outra coisa amanhã pela manhã. Seguramente! Agora, venha.
Ah.venha!
Lucy não lhe deu resposta. Passou-lhe bruscamente ao lado e foi para o seu quarto, onde começou a tirar a roupa molhada, tinha mais uma contrariedade, voltar para
casa e ter semelhante recepção.
que mulher estranha essa!" pensava no seu mau humor. "E que idiota fui eu, em me meter com ela."
Enxugava as pernas com. a energia que lhe dava a sua impaciência. Calçou novas meias e mudou de sapatos. Depois, apanhou no armário seu vestido de veludo cinza.
Nesse momento, uns dedos leves bateram na porta, e a voz de Miss Hocking chegou-lhe cantante:
- Você já está preparada, minha querida? Eu estou pronta.
com esforço, Lucy controlou sua resposta:
- Você precisa ir só; eu não posso ir!
- Ali! mas venha! Por favor! gritou lá de fora Miss Hocking excitada. E mexia na maçaneta da porta como uma criança contrariada. Lucy, porém, conhecendo por experiência
própria a insistência da outra, trancara a porta ao entrar. O silêncio que se seguiu àquele diálogo foi pesado de melindres. Depois, a porta da rua bateu, fazendo
relaxar-se a atitude constrangida de Lucy, libertando-a daquela desagradável tensão. Então, acabou de se vestir e foi para a cozinha, onde fez chá e torradas.
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Depois de tudo pronto, quando já havia espalhado manteiga nas torradas, sentou-se meditativamente para lazer a pequena refeição, colocando ao lado da chícara a última
carta que Teter lhe escrevera. Pôs-se a relê-la. Aquelas linhas, corretamente traçadas, confortaram-na. Logo depois, todavia, recaiu em melancólicas cogitações.
Dentro de seis meses, Peter deixaria o colégio definitivamente; assim, no fim do ano, ela se veria na contingência de assegurar-lhe o futuro. Por ocasião da última
distribuição de prémios, o Irmão William, mais decrépito que nunca, porém ainda "bem forte" conforme ele próprio dizia - com a mão, não mais na cabeça, mas no onbro
do premiado, dissera-lhe: "Este rapaz tem uma carreira bonita diante de si".
Se antes sua situação não era fácil, quão mais complicada se achava agora! ?- pensava Lucy. Contudo, apesar do futuro se lhe antolhar obscuro, a ambição que nutria
para o filho era bem determinada. Depois de todos os sacrifícios que fizera para educá-lo satisfatoriamente, a ideia de permitir que ele tivesse uma ocupação menos
brilhante ou nula parecia-lhe absurda. Não queria nem pensar em vê-lo tornar-se empregado de escritório, amanuense ou aprendiz em qualquer ramo do comercio. Tudo
isso estava fora de cogitação, seu presente estado de espirito intensificava ainda mais aquela sua determinação. Tinha um objetivo em mente, que o caminho para esse
objetivo íôsse obscuro, isso não a desanimava em absoluto. Não sabia como as coisas se arranjariam, mas tinha fé em si mesma. Procuraria imediatamente outra colocação.
Fôsse o que fosse! Cheia de determinação, dobrou a carta e foi para a cama.
Ainda não tinha conciliado o sono quando Miss Hocking voltou. com os olhos abertos na escuridão, Lucy ouviu a porta se abrir de modo incerto, hesitante, e depois
fechar-se de golpe. Ouviu os passos da outra, no vestíbulo, arrastarem-se lânguidos, de modo muito diverso do habitual. Aquilo despertou-lhe a atenção. Pôs-se a
escutar, esquecendo por um momento suas preocupações, e ouviu os passos de Miss Hocking dirigirem-se para o seu quarto e continuarem a soar por muito tempo.
"Estranho!" murmurou ela. Erguendo-se sobre o cotovelo olhou para a porta, que deixava entrar por baixo um fraco raio de luz indicativo de que o hall ainda se achava
iluminado. Lucy esperava aquela costumeira entrada cheia de exuberância, aquele movimento em toda a casa, aqueles pedaços de canções cantaroladas pela amiga e até
uma tenta-
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tentativa de invasão em seu quarto, onde declamaria, com grande gasto de interjeições, todas as extraordinárias maravilhas da festa. Mas enquanto repousava ainda
sobre o cotovelo, chegou-lhe aos ouvidos, na escuridão, com extraordinária clareza, um som que não era de riso nem de lágrimas, mas di uma combinação das duas coisas:
o som de um choro histérico. Pulou da cama imediatamente, calçou os chinelos de feltro e vestiu o penteador. Abriu a porta e avançando a cabeça no hall iluminado,
perguntou:
- Há alguma novidade? - Não obteve resposta. Apenas aquele exagerado desespero redobrou.
A testa de Lucy franziu-se enquanto atravessava o hall e ia bater à porta do quarto de Miss Hocking. Esperou uma resposta que não veio, então, deliberou torcer a
maçaneta e entrar.
No limiar estacou cheia de assombro. Reclinada em sua cama, como si ali se tivesse atirado enquanto se despia, com o rosto e o corpo banhado da luz esverdeada pelo
globo de vidro colorido, jazia Miss Hocking. O vestido jogado no chão; as rendas amarfanhadas; os ombros nus; os louros cabelos meio desfeitos caídos em desordem;
era uma esplêndida criatura semi-núa que ali estava em estranho e voluptuoso abandono. A ponta rósea de um seio revelava-se-lhe no corpete e por cima das longas
meias negras, sua pele branca brilhava contra o lustre de cetim. Assim jazia ela, soluçando alto, em lamentável e extremo infortúnio.
- Que se passa? interrogou Lucy; e havia aspereza em
sua voz.
Para ela, o espetáculo da outra mulher, naquela atitude de abandono, era a um tempo demasiado exótico e demasiado indelicado para provocar simpatia. Nem a afetava
aquele desgosto proclamado em altos brados. Nem a comovia, pelo absurdo. Apertando ainda mais estreitamente o penteador em torno das suas formas harmoniosas, continuou
com voz ainda mais alta:
- Estou perguntando o que se passa aqui.
- Ele me desprezou-ou-ou! gaguejou Miss Hocking através dos soluços. Soube disso na festa! - E dos seus grandes olhos novas lágrimas jorraram.
- Que quer você dizer? perguntou Lucy rispidamente. Estava indignada com o comportamento da outra. Novamente insistiu. - Diga-me o que quer você dizer com isso.
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- Ele me abandonou, me desprezou! Fez-se noivo de outra mulher. Participou-o hoje, disse a outra num queixume. Abandonou-me depois de me ter olhado daquele modo!
E, voltando a chorar, batia com os pés no chão, desesperada.
Era inconcebível, mas assim era! A infortunada mulher se achava possuida de um desespero frenético pela perda de alguma coisa que nunca lhe pertencera.
- Cale a boca! ordenou Lucy com voz alterada, e deixe que eu a ponha na cama.
- Como posso calar-me? gritou a outra. Eu o amava, sim, amava-o! E ele me amava também, eu sei. Estou certa disso. Confiávamos um no outro. E eu o esperava!
O castelo daquela monstruosa ilusão fora derrubado por um único e inesperado choque. Os alicerces da sua vida haviam sido abalados e parecia que sua razão também
se abalara com isso.
Novamente se elevaram seus lamentos e seu olhar tinha um brilho selvagem.
- Eu o amava... eu amava! Aos olhos de Deus nós estávamos casados.
Lucy alarmou-se:
- Pare de chorar agora, disse com suavidade, batendo-lhe carinhosamente no ombro e procurando ao mesmo tempo cobrir aquela vasta extensão de nudez.
- Você me acredita, não é, minha boa Lucy, soluçou Miss Hocking arrancando-lhe a mão e esfregando-a energicamente contra a face banhada de lágrimas; e repetia: -
Minha boa Lucy!
- Acredito, sim! exclamou Lucy conciliadora. Agora venha. Você precisa ir para cama. ""
Conseguiu fazer com que a outra se erguesse e, com dedos delicados, pôs-se a despi-la.
Miss Hocking deixou de chorar e tornou-se passiva; trágica e despenteada, bela na sua nudez; porém seu rosto, agora sem lágrimas, tornou-se fixo e vazio de expressão.
Subitamente, tomada de uma grotesca estupefação, gritou:
- Que vai ser de mim, agora?
- Deixe disso! respondeu Lucy que conseguira vestirlhe uma longa camisa e ajudava-a agora a subir para sua alta cama de colunas. Você quer tomar uma chícara de
chá? Acreditava profundamente na eficácia dessa beberagem como restaurador.
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Miss Hocking acenou com a cabeça, com aquele mesmo ar abstraído. Lucy saiu do quarto, fez chá e trouxe-o em uma grande chávena.
- Tome disse persuasiva. Beba isto!
Miss Hocking estendeu uma obediente mão, grande, bela e bem cuidada, tomou a chávena. Mal a tomara, porém, deixou-a cair apáticamente no chão. A chávena não se partiu,
mas o chá derramou-se completamente, espalhando-se pelo tapete.
- Veja o que você fez! exclamou Lucy.
Perante aquele pequeno incidente, principiou a zangarse. Ao se inclinar "para apanhar a chícara e o pires, declarou:
- Agora você tem que ficar sem ele.
- Desculpe, disse Miss Hocking humildemente. Eu estava pensando em outra coisa. Em meu amor por Malcolm. Não é um sentimento sublime?
Endireitando-se, o rosto afogueado, Lucy fixou a lamentável criatura que jazia na cama. Não sentia simpatia alguma por ela. Apenas um exacerbado aborrecimento. Tinha
um desejo exasperado de comunicar-lhe um pouco de bomsenso. Desprezava-se ardentemente por ter tolerado durante tanto tempo aquelas maluquices. Além disso, tinha
suas contrariedades particulares. Comparava mentalmente a futilidade daquela mágoa idiota com a grave dificuldade de sua própria situação. Contudo perguntou:
- Quer um pouco de bromureto?
- Queria um pouco de bromureto! ecoou a outra como uma criança. E quando Lucy lho deu ela o tomou sem resistência, segurando com a própria mão, a mão com que Lucy
lhe apresentava, diante dos lábios, a colher, como que para melhor estabilizá-la.
Já não parecia mais tomada de desespero. A dor parecia ter-se tornado remota.
Lucy continuava a olhá-la com a testa franzida.
- Boa noite, disse por fim.
- Boa noite, respondeu plácidamente Miss Hocking-
Lucy apagou a luz e saiu do quarto. A princípio sentira-se muito inquieta, agora, porém, estava quase tranquila. De repente, pensou admirada em todos aqueles anos
em que a vida lhe decorrera suavemente. Tolerara bem Miss Hocking até agora. Sentira-se segura bastante em sua vida económica; e eis que em. um só dia lhe sobreviera
aquela dupla catástrofe!
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O estado da companheira, entretanto, não a perturbava. Amanhã estará melhor, pensou com severidade ao meterse na cama.
XI
NA outra manhã, entretanto, Miss Hocking não estava melhor. Depois do café, pronta já para sair, Lucy foi ao seu quarto.
- Está se sentindo bem? indagou.
- Estou muito bem, respondeu Miss Hocking languidamente. Sabe estive pensando...
Formavam um estranho contraste aquelas duas mulheres : uma, de pé, ereta; bem vestida, segura de si mesma, batendo com o guarda-chuva, caprichosamente enrolado,
na ponta do sapatinho polido; a outra, indolente em seu negligé, de cabelos espalhados pelo travesseiro de rendas, os grandes e belos olhos ensombrados por uma trágica
tristeza.
- Sim! continuou ela. Creio que isso tudo é porque não toco o órgão da igreja, sabe? Si eu pudesse tocá-lo, ele voltaria para mim... Preciso aprender a tocar órgão
hoje mesmo.
Lucy franziu a testa sob o véuzinho esticado. Como era diferente aquilo da habitual despedida que Miss Hocking lhe fazia todas as manhãs: "Até logo, Lucinha! Volte
cedo!"
- Você dormiu bem?
- Dormi, disse Miss Hocking, e hoje vou aprender a tocar. Irei à igreja esta manhã. - Suspirou. - Tudo farei por Malcolm, meu esposo aos olhos de Deus.
- Pare com isso, agora! exclamou Lucy bruscamente, como si com sua energia pudesse infundír alguma razão naquela fútil cabeça. Você bem sabe que eu não quero ser
aborrecida com essas conversas.
- Eu sei que você não gosta disso, Lucy, falou a outra tristemente. Mas você não compreende. Eu tenho que pensar nisso. Tenho que me preocupar com ele. Não posso
evitá-lo.
Lucy mordeu os lábios e olhou o relógio. Devia partir para a estação; tinha que tratar dos seus negócios. Não ia passar o dia inteiro cuidando daquela tola criatura.
Rodou nos calcanhares.
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- Tenho que partir, disse bruscamente. E saiu do quarto deixando Miss Hocking absorta, com ar de sonhadora letargia.
No correr do dia, pôs aquele assunto deliberadamente de parte. Preocupou-se com a premência da própria situação. Dispunha de um mês para encontrar uma nova ocupação.
Imediatamente começou a indagar disfarçadamente dos seus fregueses, como se estivesse brincando, si podiam sugerir-lhe uma oportunidade adequada às suas habilitações.
Muitos deles se mostraram penalizados por sabê-la constrangida a renunciar ao trabalho. Ela, porém, percebeu, no tom com que falavam, a mesma superficial solicitude
que lhe haviam mostrado por ocasião da morte de Frank. Alguns, em ar jocoso, falaram-lhe de modo abstrato das atrações do matrimónio. Outros mostraram-se ainda mais
jocosos e menos abstratos; todos, porém, lhe prometeram ocupar-se com seu caso e avisá-la si encontrassem uma oportunidade. Sempre era alguma coisa. Ela já pusera
as rodas em movimento.
Voltou para casa satisfeita com o seu dia e tão absorta em seus cuidados que só ao atingir Victória Crescent seu espírito reverteu a Miss Hocking.
Naturalmente ela já se refez, pensou, cheia de otimismo. Que criatura tola.
Miss Hocking, porém, não parecia refeita, o que era visível pela insólita presença de Missis Dickens que, àquela hora, costumava estar longe depois do serviço terminado.
- Tive que esperar sua chegada, explicou esta em voz baixa a Lucy; Miss Hocking está exquisita.
- Que há de novo? perguntou Lucy rapidamente.
- Miss Hocking está diferente! A senhora sabe como ela costuma ser, cantando e rindo todo o tempo, tocando naquela viola grande que tem e perguntando: "Acha isso
bonito, Dick? e que tal isso aqui, Dick?" Mas hoje...
Lucy deu-lhe um shilling e deixou-a ir. Depois, arranjando uma expressão de alegria, entrou na sala.
- Decidi-me contra o órgão, foi dizendo imediatamente Miss Hocking. Estava negligentemente vestida, com o costume cinzento, sentada muito tesa numa cadeira no meio
da sala.
- Aquilo não era [possível, acrescentou.
- Por que? perguntou Lucy a contragosto.
- Estive com o organista, que é homem simpático e que me conhece bem. Levou-me ao sótão do órgão para mostrarme como é, porém aquilo não serve. Vi-o imediatamente.
Tem um pedaço de pau entre os joelhos. Como podia eu
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manipular aquilo com uma saia? - Estacou e ficou refletindo de um modo aparentemente razoável: - A menos que eu use aquele trajo com que faço ginástica por baixo
do vestido, sabe Uma vez lá, tiro a saia. Mesmo assim...
- Oh! por favor! pediu Lucy. Fôra-se-lhe a severidade e agora estava tomada de súbito alarme. - Por favor; não fale assim!
- Está bem, disse Miss Hocking no mesmo tom razoável. Acho então que tenho que aprender hebraico. É isso. vou comprar um livro hoje e amanhã aprenderei hebraico.
Então passearemos os dois, ele e eu, por aí... Ele me amará por isso.
- Não fale assim, exclamou Lucy outra vez. Você sabe que isso é uma tolice. Você se aflige e me afligirá também.
Estava agora inteiramente perturbada com o estado da amiga, sem saber o que devia fazer. Comovida com aquilo, passou toda a tarde procurando animá-la a ver si a
libertava daquela terrível obsessão. Arrependia-se agora da sua anterior rispidez e fazia tudo para resgatar aquela atitude.
No dia seguinte, que era um sábado, arranjou tudo de modo que Missis Dickens - que, animada mais pela curiosidade do que pela bondade, chegara mais cedo - ficasse.com
a amiga até a hora do seu regresso. Convenceu Miss Hocking de que deveria ficar em repouso no leito e só então partiu para o escritório.
Depois de duas horas de trabalho ali, saiu para realizar a primeira parte de um plano que traçara. Dirigiu-se ao escritório da firma Hagelmann, na rua Alston, e
pediu para ver o gerente. Naquela firma, porém, as coisas não se passavam como na firma Lennox. Não se podia penetrar naquelas elegantes salas com a facilidade com
que se subia aqueles velhos degraus e se entrava no velho escritório de Saddleripgs. Lucy viu-se barrada por um secretário que lhe perguntou o nome e o assunto de
que vinha tratar. Não chegou a ver o gerente. Suave, mas firmemente, foi informada de que era inútil esperar uma entrevista ou qualquer perspectiva de emprego naquela
firma.
Saindo dali, de cabeça alta, ia pensando que eles não sabiam o que estavam perdendo desdenhando-a daquela maneira. Ela, uma mulher experimentada, uma viajante com
freguesia, ser recambiada assim sem uma entrevista! Sem uma palavra de desculpa! Haviam de ver! Arrepender-se-iam daquilo. Competidora alguma teria as vantagens
que ela podia dar. Cheia de indignação, e como ainda era cedo,
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decidiu-se a levar mais além sua ideia, lamentando o tempo que perdera para conseguir a frustrada entrevista, e a inutilidade dos argumentos que havia tão cuidadosamente
preparado.
Conhecia mais três outras firmas para as quais poderia
apelar e que pertenciam ao mesmo ramo de negócio. A mais importante delas ficava ali perto, exatamente na rua Cars?well. Sem delongas, para lá se dirigiu. Ali, ao
menos, não foi difícil ser admitida. Sorriu intimamente ao ver o completo contraste entre as duas recepções. Quando, porém, expôs sua situação, surgiu uma nova dificuldade.
O gerente da firma alegou que os negócios andavam mal por culpa da concorrência estrangeira; já tinha além disso um número suficiente de viajantes, e não seria justo
privar um homem do seu ganha-pão, naqueles tempos difíceis, para dar o lugar a uma mulher. Sugeriram-lhe que visitasse a casa Margotson, que talvez pudesse admiti-la.
Lucy foi à casa Margotson, que era, aliás, a segunda que tinha em mente. Depois teve que ir à terceira. Acabou por voltar ao seu escritório, com o sangue nas faces,
sentindo-se inquieta, tomada de estranho desânimo. Um fio de dúvida insinuava-se através da sua confiança.
Mas era ridículo! Era uma mulher que já havia provado seu valor. Ao chegar à estação, mais tarde, comprou dois jornais e, sentando-se em um compartimento, percorreu
cuidadosamente as colunas de anúncios, marcando com o lápis todas as vagas que julgava poder preencher razoavelmente. De repente, viu que não tinha muitas habilitações
para serviços de escritório. Não sabia escrever a máquina, não sabia estenografar. Perguntava-se quase irritada por que não se lembrara de aprender essas coisas.
Também já não era jovem bastante para atender a um desses: "precisa-se de uma senhora moça..." Sabia bem disso. Si tivesse sorte, poderia servir num balcão, ou cozinhar
para uma família qualquer, pela principesca soma de vinte libras por ano... Tudo isso estava fora de questão.
E eis que havia agora Miss Hocking. Não podia esquecê-la completamente. Estava mesmo muitíssimo inquieta com o que se passava com ela. Tinha, porém, todo o fim da
semana diante de si para pensar e resolver aqueles sérios problemas.
Chegando a Ardfillan, desembarcou e pôs-se a subir a colina lentamente, porque estava fatigada. O dia fizera-se quente. Um belo dia, cheio de um sutil langor de
verão indiano.
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A meio caminho da rua Garsden, um rapazinho vendia a folha hebdomadária local. Um pouco por achar uma vaga semelhança entre o pequeno jornaleiro e Peter, um pouco
para procurar ainda algum anúncio naquelas páginas, Lucy comprou um exemplar sobre o qual, sem se deter, lançou um olhar distraído. De repente, estacou. Deu com
um pequeno parágrafo, no qual se anunciava o noivado oficial do Reverendo Malcom Adam. Então era autêntico, afinal, aquele incidente, muito normal, aliás, que derrubara
as douradas ilusões de Miss Hocking? Dobrou o jornal com outros dois que já trazia e entrou no apartamento.
Depois de se ter desembaraçado do chapéu e dos objetos que trazia, entrou na sala, onde Miss Hocking se achava sentada à secretária literalmente coberta de livros.
No chão, em torno, mais livros jaziam.
- Não vê que estou ocupada? exclamou com impaciência Miss Hocking desgrenhando com a mão inquieta os cabelos louros. Depois, asumiu um ar estudioso, abstrato, si
bem que cheio de fervor. Lucy olhou para os livros. Felizmente não eram livros hebraicos conforme temia, e sim sobre botânica, tirados das mais altas prateleiras,
tão raramente tocadas, da estante. - Para que vem perturbar? insistiu Miss Hocking. Você não vê que estou procurando achar a mim mesma ?
- Pensei que você me tivesse prometido ficar na cama, respondeu Lucy suavemente. Você não quer almoçar agora?
- Não, não quero, declarou a outra, cheia de convicção; tenho coisas mais importantes a fazer antes de ir à igreja amanhã. Tenho que me atravessar entre aqueles
dois!
- Está bem, disse Lucy. Voltou-se e saiu da sala fechando a porta firmemente atrás de si. Por fim, adquirira a certeza de que estava lidando com uma mulher completamente
louca. Que iria fazer? Sua perturbação era estranha. Enquanto almoçava sem saber o que comia, perguntava a si própria que resolução deveria tomar. Era doloroso e
inacreditável pensar que Miss Hocking, que durante anos havia alimentado aquela tola ilusão, tivesse perdido com ela tudo o que tinha de razoável na vida. Paradoxalmente,
aquela ilusão conservara-a bordejando o abismo da loucura e agora ao desfazer-se arrojava-a nele. A pobre criatura se debatia no labirinto do sexo como um animal
desgarrado.
Ao terminar a refeição, Lucy afastou a cadeira e ergueu-se abruptamente da mesa. Ela precisa, oh! precisa sair desse estado! pensou. Ainda julgava aquilo uma fase.
um desequilíbrio passageiro. Esperava poder arrancá-la da
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horrível ideia fixa. Não queria invocar o auxílio de pessoa alguma, porque expor a fraqueza da amiga parecia-lhe quase uma traição. Preferia esperar. Queria deixá-la
só naquela tarde, pensando quê a solidão e a tranquilidade poderiam resolver simplesmente aquele caso.
Pôs-se então a escrever cartas em resposta aos anúncios que a haviam interessado, escolhendo, para cada tuna, as frases que julgava mais adequadas a cada género
de emprego. Às vezes detinha-se com a pena suspensa e ouvido atento às atividades na sala onde deixara a amiga. Ouviu a porta abrirse e fechar-se. Depois, mais nada.
Depois de escritas, lacradas- e seladas as cartas, Lucy endireitou-se na cadeira e olhou a considerável pilha que formavam, pensando que na terça-feira já poderia
ter as respostas. Esse pensamento confortou-a um pouco.
- Quer fazer o favor de pôr essas cartas no correio quando for. Missis Dickens? perguntou ao ver a empregada entrar na sala.
- Sim senhora, respondeu a interpelada, que prosseguiu depois meio hesitante: - Ainda que mal pergunte... que vai a senhora fazer a respeito de Miss Hocking?
- Vamos esperar um pouco, disse Lucy com um pretenso ar de confiança, espero que esse... esse pequeno ataque passe por si mesmo.
- A senhora não acha que devia avisar os amigos dela? sugeriu Missis Dickens. Miss Hocking tem um irmão aí... Uma vez, quando eu arrumava e espanava, vi as cartas
que ele escreve sobre a secretária. A senhora não pode deixar de avisá-lo.
A expressão de Lucy fez-se glacial. Dick havia se excedido claramente e agora queria também tomar responsabilidades que estavam acima das suas atribuições.
- Acho que deve deixar isso comigo, afirmou de um modo conclusivo; farei o que for melhor.
- Mas a senhora não pensa, insistiu a outra contrafeita, que é um perigo passar aqui uma noite só com ela, do modo em que ela está! Eu não teria essa coragem. Para
falar a verdade, não o faria por dinheiro nenhum.
?- Eu não tenho medo, Missis Dickens, respondeu Lucy com vivacidade. Não se incomode com isso. - Depois, apanhando as cartas, acrescentou com um modo mais sugestivo:
- a senhora pode pôr estas cartas no correio, de passagem.
- Sim senhora, disse Dick enxugando a grande mão vermelha no avental, o que era mais um ato de cortesia que de
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necessidade. - Então, bôa-noite. O chá está arrumado na bandeja.
Quando Lucy ouviu o som que fez a porta da rua ao se fechar atrás dela,, levantou-se. Estava satisfeita com a pequena vitória moral que tivera sobre a empregada.
Nunca simpatizara muito com Missis Dickens.
Depois começou a pensar que não se esforçara ainda bastante para arrancar Miss Hocking daquele estado em que jazia; e censurou-se por essa indiferença.
Apanhou a bandeja de chá e caminhou para a sala pensando que, afinal de contas, devia muitas gentilezas à amiga.
- Está, na hora do chá, declarou cheia de determinação, desde o limiar da porta; e você vai tomá-lo queira ou nãoqueira.
- Mas eu quero tomá-lo! Quem foi que disse que eu não queria chá? replicou imediatamente a outra. Abandonara os livros e agora estendera-se numa chese-longue, abrindo
e fechando o guarda-chuva que tinha ido buscar no hall com um ar de brincadeira impulsiva.
- Venha, então, convidou Lucy depondo a bandeja sobre a mesa e começando a servir o chá. Fingiu não reparar no guarda-chuva o mais que foi possível; finalmente,
já com a chávena de chá na mão, viu-se constrangida a dizer: - Quer deixar isso por um momento?
- Estou gostando de fazê-lo, respondeu Miss Hocking imediatamente. Foi por isso que abandonei os livros. É mais fácil e me faz bem. - Continuou aquele abrir e fechar;
por fim, contudo, vendo a chávena que Lucy continuava a lhe estender, jogou no chão o guarda-chuva aberto e, arrebatando a chícara de chá fumegante, sorveu-o de
um trago. - Muito gostoso! exclamou depois, mas o que eu preciso é de garantir o amor! É isso que eu quero.
- Agora um pedaço de bolo, disse Lucy com firmeza. - Bolo? Não sei si quero. bolo. Pode ser demasiadodoce e de qualidade inferior,
- Este aqui é muito bom, continuou Lucy; chegou hoje mesmo da casa Allen. - Allen! Subitamente veiu-lhe à memória aquele primeiro almoço que lá haviam feito juntas,
há tanto tempo, tão diverso daquela refeição que faziam naquelemomento. Seus olhos encheram-se de compaixão e pediu afetuosamente: - Vamos! experimente só este
pedacinho! - e estendeu o prato. O pedaço de bolo tornava-se agora para ela um símbolo; si a outra aceitasse, significaria vitória; si
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recusasse, fracasso. - Vamos, tome só um pedaço para me ser agradável. Você sabe o quanto gosto de você!
- Então eu sou tão atraente para as mulheres quanto para os homens! perguntou Miss Hocking, cruzando as pernas e afastando de si o prato.
Lucy indignou-se:
- Pela última vez peço-lhe que deixe de falar assim. Miss Hocking, porém, fixava-a com um olhar inexpressivo.
- Sei que isso é duvidoso, disse; mas há uma coisa que você precisa me dizer. Si eu fosse uma mulher de rua, quanto será que me pagariam?
Lucy teve uma pequena exclamação de desespero que se parecia com um soluço. Não havia remédio! Precisava chamar alguém em seu auxílio.
- Não ria,! falou Miss Hocking com as maneiras subitamente mudadas. Proibo-a de rir. - E inclinando-se, de repente, bateu com a mão numa das faces de Lucy.
Por um momento, as duas mulheres encararam-se em silêncio, depois Miss Hocking prorrompeu num largo riso de mofa.
- Idiotinha! exclamou cheia de desprezo. Você não vê que eu lhe sou superior em tudo?
O rosto de Lucy tornou-se rubro. Levantou-se sem uma palavra e, tomando a bandeja, saiu da sala. Foi à cozinha cega de indignação. Aquela mulher desajuisada, pela
qual ela fazia tudo o que estava ao seu alcance, ter-lhe batido! Era o cúmulo! Tinha que tomar uma deliberação. Foi para o seu quarto e pôs rapidamente o chapéu
e o casaco.
- Onde está você? gritou Miss Hocking de fora. Que está fazendo?
Lucy não respondeu.
- Venha cá! - vociferou novamente a outra. Parecia excitada, inquieta. - Quero-a aqui imediatamente.
E apareceu na porta do quarto, enchendo o limiar com seu vasto corpo.
- Como ousa recusar-se a vir quando eu a chamo?
- vou sair e volto já, foi a breve resposta de Lucy, que, antes que a outra pudesse replicar, passou por ela, abriu a porta e saiu de casa. Fechou a porta atrás
de si com violência nervosa, refletiu por alguns momentos e depois começou a andar rapidamente.
Caía a noite e uma forte ventania fazia as árvores curvarem-se. Inclinando a cabeça, Lucy caminhou contra o vento, que, opondo-se aos seus passos, mais ainda a incitava
em
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seu propósito. Em cinco minutos atingiu o portão da casa do Dr. Hudson. Era o médico que morava mais próximo de Crescent. Enquanto puxava a campainha, pensava apreensiva
no que poderia Miss Hocking estar fazendo na sua ausência e teve um súbito pressentimento de desastre. Quando já se impacientava, uma criada veiu abrir a porta e
foi avisar imediatamente o Dr. Hudson, que se achava em casa.
Lucy o conhecia por tê-lo chamado uma vez para ver Peter. Era um homem de meia idade, discreto, de maneiras polidas até o extremo. Nesse momento, adiantava-se para
ela que, sem perder um momento, lhe disse à queima-roupa:
- Miss Hocking, a senhora na companhia de quem eu resido, está muito exquisita.
- Exquisita! repetiu o médico olhando-a de modo estranho. Eu a conheço e sempre a achei exquisita. A senhora deveria sabê-lo. Não moram juntas há anos?
As faces de Lucy encheram-se de sangue. Viu nesse momento, por aquele olhar e aquela pergunta, que suspeitavam de qualquer coisa por sua convivência com Miss Hocking,
suspeita descabida e injusta que lhe lançavam por causa daqueles últimos cinco anos da sua vida.
- Ela, antes, não tinha sinão algumas originalidades, declarou Lucy aceitando aquele desafio. Agora, porém, é diferente.
- Como diferente?
Lucy relatou-lhe tudo o que se passara nos últimos dias. Enquanto falava, o olhar do médico vagueava pela sala. Ela não compreendia bem sua atitude, mas via claramente
que ele lhe era hostil.
- Nunca se sabe a quantas se anda com essa gente! exclamou ele por fim, e pelo que me diz, parece que aquela pretensa originalidade acaba de se transformar em alguma
coisa muito parecida... - e fez uma pausa significativa.
- com o que? perguntou Lucy ansiosa.
?- Loucura, disse ele friamente, como si a censurasse com aquela palavra. - Loucura furiosa.
Apesar de estar conciente do que, aquilo poderia ser, Lucy ficou chocada com aquelas palavras e com a frieza com que foram ditas. Durante anos vivera com uma mulher
que beirava os limites da loucura; e, apesar de suspeitar de alguma coisa, não sabia o que fosse.
- O senhor vem, então indagou Ansiosa.
- vou, respondeu médico secamente; espere aqui vinte minutos enquanto eu me preparo e depois iremos juntos.
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- Não, oh! não! exclamou ela torcendo as mãos, estou preocupada com ela. Tenho medo de deixá-la mais tempo sozinha.
- Aconselho-a que espere, replicou gravemente; tudo pode acontecer com uma pessoa assim!
Lucy, porém, estava assaltada pela visão de alguma desgraça ocorrendo na sua ausência. Algum desastre pelo qual se julgaria responsável depois. Abanou a cabeça e
dirigiu-se para a porta, contrafeita.
- Irei antes, disse apressadamente. Venha logo que possa.
A expressão no rosto do dr. Hudson não mudou:
- Como queira! respondeu.
Ao sair para a noite fria, Lucy apressou o passo em direção à casa onde ficara a amiga. Como poderia pensar em demorar-se, agora que sabia de toda a gravidade da
situação? Todas as gentilezas que recebera dela apresentaram-se-lhe ao espírito, enchendo-a de uma gratidão compadecida.
Subiu as escadas a correr e, quasi sem fôlego, abriu a porta e entrou em casa ainda ofegante. O hall estava escuro. Nada podia ver. Da escuridão, entretanto, elevou-se
um som dilacerante que lhe feriu o ouvido.
- Onde está você? perguntou com o coração pulsando desordenadamente.
Não obteve resposta, mas aquele barulho de coisa rasgada vinha com insistência da sala de visitas. Tomada de pânico, Lucy precipitou-se para lá.
Miss Hocking ali se achava, de pé ao lado da mesa, com os contornos do vasto corpo esbatidos pela sombra invasora e as mãos, traindo intenções vingativas, rasgavam
em tiras os jornais que Lucy deixara sobre a mesa.
- Onde esteve você? gritou ao vê-la, com voz áspera, cheia de fria animosidade.
- Saí só por um momento, explicou Lucy ainda um pouco ofegante.
- Você já me disse isso, replicou Miss Hocking com os dentes cerrados de ódio. Mas eu sei onde esteve. Sempre fazendo as coisas nas minhas costas! - E indicando
os jornais que estivera pondo em pedaços: - Esses jornais são seus?
- São, respondeu Lucy, mas não fique assim, você me assusta. Deixe-me acender o gás.
Subitamente estacou horrorizada ante o olhar selvagem com que ela a fixava. Na escuridão crescente, aquele enorme vulto parecia-lhe indescritivelmente ameaçador.
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- Foi você quem fez isso! gritou Miss Hocking acusadora. Li a notícia sobre Malcolm no seu jornal. Você está contra mim! Foi você quem fez isso tudo, tudo! Você
odeia-me e eu a odeio!
Conservando aquele mesmo olhar fixado em Lucy, começou a fazer a volta da mesa em sua direção, aproximando-se lentamente dela.
- Por favor! Por favor, não faça isso! implorou Lucy recuando e encostando-se à parede.
- Miserável! bradou Miss Hocking. - Tinha achado enfim um derivativo, uma vítima sobre quem descarregar a força da sua imensa vitalidade. Desesperada, pôs-se a despedaçar
as roupas, arrancando-as de si e jogando-as no chão
"com movimentos selvagens dos braços. Seu rosto, pálido na sombra, emoldurado pela desordem dos cabelos, parecia o de uma fúria. Estava terrificante.
- Pelo amor de Deus! suplicou Lucy. Não faça isso. Eu nada fiz!
A outra, porém, não a ouvia, arrancara de si toda a roupa e agora seu corpo branco erguia-se como um fantasma em frente de Lucy. Era um espetáculo pavoroso e obsceno.
- Você arruinou-me a vida! gritou, frenética. Estava agora perto de Lucy, que subitamente gritou.
Então, surgiram da sombra duas mãos poderosas que a agarraram pelo pescoço. Os dedos daquela mão pareciam de ferro e enterravam-se-lhe na carne apertando-lhe a garganta.
Lucy lutou. Lutou desesperadamente procurando libertar-se. Aquelas duas mãos lhe estavam tirando a vida. Atirou-se contra aquele corpo nu que a. oprimia e que recebia
alegremente os seus golpes. Cravou os dentes naquela carne branca, mas aquelas mãos apertaram-na mais estreitamente. Quis gritar mas só conseguiu articular um fraco
soluço. Agonizava, seu corpo começou lentamente a ceder, a cabeça descaiu-lhe para trás, os olhos saltaram-lhe das órbitas. A escuridão Desapareceu dando lugar a
uma névoa vermelha, na qual flutuavam fogos-fátuos. Aterrada, galvanizada, Lucy pensou em Peter. Estava morrendo... uque faria o filho sem ela? Seus lábios roxos
entreabriram-se; debilmente procurou murmurar algumas palavras, mas um ruido encheu-lhe os ouvidos, seu corpo distendeu-se e uma completa escuridão envolveu-a. Quando
voltou à vida, achou-se estendida num sofá. Um forte cheiro de amónia sufocava-a. A sala parecia cheia de luz e gente; o Dr. Hudsom. ali estava inclinado sobre ela
e, perto, viu um homem em uniforme, um policial. Do quarto
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ao lado vinha um constante guinchar semelhante ao de um animal ferido. Era a voz de Miss Hocking.
- Ainda bem! ouviu Hudson falar. Mas eu não lhe disse que não deveria vir?
Por que estava aquele policial olhando para ela daquele modo ansioso? Que fazia ele ali? Procurou sorrir-lhe e acenar com a cabeça, mas sentiu novamente uma dor
terrível na garganta.
Mais uma vez, desmaiou.
- XII
PASSARAM-SE quatro dias antes que pudesse abandonar o leito. Hudson recomendara-lhe que ali se conservasse durante uma semana, mas ela tinha ideias próprias sobre
todas as coisas e assim, na tarde do quarto dia, depois de despedir a vigilante Missis Dickens, levantou-se. No momento, porém, em que tocava o chão com o pé, teve
que reprimir com dificuldade uma exclamação de dor. Ao menor movimento, seu pescoço irradiava uma pontada pela espinha abaixo. Teve que andar cautelosamente, conservando
a cabeça quase imóvel. Mesmo assim continuou.
Apoiando-se nos móveis, atravessou o quarto e foi mirar-se ao espelho. Estava pálida, e na brancura da pele da garganta duas grandes manchas vermelhas simétricas
pareciam as duas asas de uma borboleta enorme. Olhou com curiosidade para aquelas manchas durante um momento; depois, com um pequeno arrepio, voltou-se. Vestiu com
dificuldade um roupão e passou para o hall. Sentia-se bastante enfraquecida, mas desejava impacientemente furtar-se à influência coercitiva da cama.
Evitou instintivamente passar pela sala de visitas e entrou na cozinha. Em torno, tudo estava tranquilo. O apartamento quieto, silencioso, vazio da presença de Miss
Hocking. Haviam-na levado para um manicômio. Que coisa estranha pensar nisso! Partira num carro fechado para o Hospício Blandford,,nos arredores de (Glasgow. Muitas
vezes Lucy o contemplara do trem: um edifício imponente, de pedra cinzenta, com torreões como um castelo. Nunca poderia pensar que sua amiga fosse para ali algum
dia. Rememorou todo o calamitoso fato, tranquilamente, como uma pessoa que estuda detalhadamente um quadro. Tudo se passara tão
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rapidamente! Tivera que telefonar ao irmão de Miss Hocking, um homem alto, moreno, anguloso, com um rosto perspicaz e preocupado, que usava um alto colarinho branco
à maneira dos pastores protestantes. Aquele colarinho havia impressionado o espírito de Lucy, que estava febril quando da sua chegada. Não era padre, todavia, e
sim advogado de reputação. E ele zelava cuidadosamente por essa reputação.
- Sempre tememos esse desenlace - disse ele a Lucy com voz clara, bem inglesa. Era evidente que temia também a repercussão que aquilo poderia ter sobre sua carreira.
Não desejo divulgar o fato, repetiu, não uma, porém vinte vezes, com uma insistente ansiedade. - Será fatal, em minha profissão.
Lucy de algum modo lhe dava razão; pensava também que ninguém iria confiar num advogado com uma irmã doida.
Hudson lhe dissera que o mal de Miss Hocking era incurável. Por mais de cinco anos, pois, ela vivera com uma criatura meio louca, que agora era reconhecidamente
alienada! Esse pensamento aterrou-a, tornando assustadora a lembrança daqueles anos passados. Era estranho, mas esquecera as originalidades de Miss Hocking e não
abrigava ressentimento algum por aquele ataque súbito; pensava apenas nas gentilezas que recebera dela. " Sim! ela era boa!" pensou, com os olhos úmidos.
E agora precisava desocupar o apartamento dentro de um mês. Os móveis seriam vendidos ou guardados, ela não o sabia bem. Tudo fora arranjado pelo irmão advogado,
que se mostrava muito gentil com ela, apesar de ter nos olhos a mesma curiosa expressão que tivera o Dr. Hudson. Além disso, ela sabia que não poderia arcar sozinha
com as despesas do apartamento.
Abruptamente voltou o pensamento para suas próprias dificuldades. Seus olhos, agora secos, perderam a expressão sonhadora e encheram-se de seriedade. Sua situação,
realmente, era grave. Possuía um punhado de coisas: um guarda-roupa, uma cadeira de balanço, um quadro; tinha também boas roupas - agora arrependia-se de ter gasto
tanto dinheiro com elas, seguindo as instruções de Miss Hocking - e ao todo possuía, em dinheiro, vinte libras. Acima de tudo, tinha o filho, seu querido Peter,
cujo rosto evocara no momento que julgou ser o último instante da vida. Tinha também suas amizades... Esse pensamento, porém, ela o varreu das suas cogitações. Não,
nunca mais se aproximaria delas, depois daqueles daquele desgraçado fato, para não ter
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que sofrer alguma humilhação. Não sabia solicitar simpatias. Mudara muito, perdendo aquela amabilidade que possuia antes.
Assim, no fim do mês, ver-se-ia sem trabalho e sem residência, a menos que se mexesse utilmente.
Agitava-se inquieta e foi assaltada pelas dores. Exasperada pela própria fraqueza, moveu a cabeça propositadamente para provocar a dor e suportou-a ferozmente até
que amortecesse. Sim, essa era a sua atitude para com a vida.
Só na segunda-feira ela pôde sair, apesar de se sentir fraca e vacilante nos passos enquanto andava pelas ruas. No escritório, foi reservada quanto ao acidente que
sofrera acidente foi a palavra que todos empregaram - e não procurou em absoluto provocar simpatias. Até Dougal, que era agora um dos seus favoritos, ao lhe dizer
" A, senhora está um pouco abatida, Missis Moore", só recebeu como resposta um pequeno aceno de cabeça .
Apesar de não se sentir bem, saiu para o trabalho do costume, menos pelo interesse da casa do que pelo seu próprio.
Não percebera ainda, ou não quisera se conformar com as dificuldades que a cercavam. O distrito, naquele tempo, estava em crise, afundado no marasmo da depressão
comercial que se seguira à guerra dos Boers. Por toda parte, reinava uma cautelosa corrente de pessimismo. Os estaleiros, em sua maior parte, ainda estavam paralisados.
As maiores fábricas metalúrgicas de "Wlnton haviam apagado duas fornalhas de fole e, em consequência disso, o trabalho, em muitas minas, achava-se .parado ou reduzido
à metade. Esses fatos em grande escala necessariamente influíam sobre as outras coisas menores. Os pequenos comerciantes alongavam os rostos e encurtavam o crédito.
Em suas últimas viagens para a casa Lennox, Lucy notou uma grande diminuição nas encomendas, pressagiando maus tempos. Por toda parte, multidões de desempregados
agrulpavam-se apáticamente perto dos departamentos governamentais. Os golpes dos martelos
- pulso das indústrias do distrito - já. não eram vigorosos nem vitais; soavam, agora em notas fracas e intermitentes. Instintivamente Lucy começou a sentir esses
presságios de crise. Aqueles que lhe haviam prometido interessar-se em ?achar-lhe alguma ocupação, quando os procurou novamente disseram-lhe que a ocasião era péssima
para procurar trabalho.
Além disso, ainda não se vivia na época em que as mulheres passaram a ser admitidas em toda espécie de 225
trabalho, e Lucy não posuia habilitações para manter aquela luta desigual. Nenhuma das cartas que ela escrevera, tão cheia de confiança, em resposta aos anúncios
dos jornais, foi contestada. Seria que aquela gente não compreendia o que estava perdendo? Ela, Lucy Moore, tão viva, tão competente, tão solícita em servir, ser
desprezada daquela maneira! Era incrível!
Todavia, continuava a responder aos anúncios com uma espécie de pertinácia, forçando-se a um otimismo que estava longe de sentir. Comprou papel de cartas de melhor
qualidade, gastou shillings em selos, apelou para o impossível. Candidatou-se à gerência de um orfanato, a um lugar de secretária em Londres, mesmo ao lugar de chefe
de uma lavanderia. Finalmente, em desespero de causa, inseriu nos jornais um anúncio oferecendo seus serviços para qualquer emprego em que pudesse obter um ordenado
razoável.
Os dias se passavam e nada acontecia. Lucy ainda não estava inteiramente refeita do choque que sofrera. O Dr. Hudson falara-lhe vagamente em tomar férias. Ela, porém,
havia afastado imediatamente a ideia como impossível. Suas esperanças começavam a falhar. Às vezes, durante a noite, despertava imaginando o que seria dela e de
Peter! Sua principal preocupação era ele. Ignorando completamente o que se passava, Peter continuava a enviar cartas cheias de otimismo: numa delas, pedia uma nova
caneta-tinteiro, noutra aludia às perspectivas de uma carreira a seguir. Cada carta dessas era para Lucy um sublime incentivo que a impelia à perseguição do sucesso.
E, a despeito disso tudo, falhava.
Cheia de amarga desolação, entrou no escritório em Saddleriggs, no sábado que seria seu último dia de trabalho. Desalentada, caminhou em direção à sua secretária
e pôs-se a tomar notas das entradas, que seriam as derradeiras que faria naquele monótono e sujo pardieiro. Contudo, arrancava-se, quase dolorosamente, daquela monotonia
e deplorava ter que abandonar aquela sujeira. { Conhecia tanto aquilo tudo! Frank trabalhara ali e dali ela tirara sua manutenção, enchendo o lugar com alguma coisa
da sua vida.
Quando levantou a cabeça, encontrou o olhar de Lennox que a fitava. Ele tociu contrafeito e desviou os olhos. Pouco depois, porém, foi à sua mesa. Estavam sós no
escritório.
-: Encontrou já alguma coisa para fazer? perguntou ele com o mesmo constrangimento; e ela notou em seu rosto
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uma curiosa preocupação que ela vira nascer naqueles últimos dias e que fora aos poucos aumentando.
- Encontrei, mentiu ela incitada pela compaixão que via em seus olhos. Encontrei uma oportunidade muito boa ontem.
O rosto de Lennox iluminou-se um pouco.
- Então sempre encontrou? Como estou satisfeito! Estava começando a me inquietar por sua causa. A senhora tinha um aspecto verdadeiramente abatido, esses últimos
dias. É extraordinário como isso me contrariou.
- Estou passando até muito bem, respondeu Lucy calmamente. Sinto-me perfeitamente forte e saudável.
- Sei disso, acudiu ele, a senhora está sempre como um potro de raça em forma; foi por isso que eu, ao vê-la abatida, ultimamente, tive remorsos, pensando que podia
ser, talvez, responsável por isso.
Estava meio atordoado ainda. Ele, o homem que até aqui vivera para o trabalho, retirava-se agora espontaneamente ; não se habituava facilmente, porém, a essa ideia.
Olhando agora aquela elegante criatura defronte de si, veio-lhe à memória a tarde em que involuntariamente lhe passara o braço em torno da cintura. Como lhe parecera
mimosa e suave aquela curva! Inconcientemente, suas feições ?pálidas e vivas coloriram-se. Até ali fora solteiro por inclinação e porque estivera demasiado ocupado,
mas agora... tinha apenas cinqoenta e sete anos e sentia-se ágil como um pardal.
- Estou muito contente, continuou ele cofiando a barba. Andava muito ocupado com a assinatura do contrato de venda e por isso não pude interessar-me mais cedo pelas
suas atividades. Qual vai ser sua ocupação, agora!
- Relaciona-se com o ensino, respondeu ela ao acaso, um pouco levianamente. É um excelente emprego. - Não podia compreender a atitude dele. Logo que passara o primeiro
choque da sua demissão, seu ressentimento havia diminuído. De resto, sempre compreendera o ponto de vista de Lennox.
- Ah! muito bem! disse ele vagamente. Muito bem!
- Olhou-a por alguns instantes, depois foi até a janela, revolvendo na mente uma estranha e intangível consideração.
Lucy contemplou aquelas costas quadradas. Por que lhe mentira? Aquilo era tão fora dos seus hábitos! Mas não poderia tolerar ouvi-lo dizer: "Sinto muito, muito,
que a senhora nada tenha arranjado!" Tudo suportaria, menos patentear sua derrota.
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Inclinou a cabeça novamente sobre o livro em que estivera fazendo os lançamentos, mas viu perfeitamente que Lennox agora se dirigia para ela como si fosse lhe falar
outra vez. Nesse momento, entretanto, a porta abriu-se e Andrews entrou no escritório, seguido por Dougal. Imediatamente, Lennox estacou, pôs as mãos nos bolsos
e começou a assoviar baixo. Lucy sentiu instintivamente os olhares de Andrews e Dougal fixados nela. Estavam ambos com a vida assegurada: Dcugal continuaria a trabalhar
com a firma Hagelmann e Andrews tinha perspectiva de uma existência melhor diante de si, à testa de um pequeno varejo de jornais e bombons.
Sim, estavam todos arranjados, menos ela. Falhara em tudo. Era uma mentirosa, uma mistificadora, uma idiota! Mas não importava. Conservaria a cabeça erguida e se
esforçaria por sorrir.
Terminou a escrita, fechou o livro, depôs o lápis e olhou para o relógio. Ao fazê-lo, ouviu-o dar uma poderosa badalada: uma hora.
- Muito bem! exclamou alegremente, ou assim parecia.
- Acabou-se a firma Lennox.
Todos saudaram aquela frase com adequada solenidade. Era um momento solene.
Trocaram apertos de mão entre si, e Lennox deu a cada um, um envelope contendo uma pequena gratificação.
- Espero que nos tornemos a encontrar, Missis Moore, disse Dougal calorosamente. Era agora muito mais alto que ela, vestia-se bem e tinha um ar de homem de negócios.
Até suas orelhas pareciam menos salientes. Era incrível a melhoria que lhe adviera com os anos. Mas que haviam os anos feito por ela?
- Havemos de topar um com o outro por aí, Dougal! respondeu com vivacidade. É mais que certo.
- Espero que seja realmente tornou ele grave.
- E não deixe de nos visitar a mim e minha mulher, lembrou Andrews, que a ocasião arrancara da sua habitual melancolia.
- Estou muito contente por sabê-la arranjada, disse Lennox ainda confidencialmente, um pouco hesitante, conservando-lhe a mão apertada na sua mais tempo do que era
necessário. Irei tomar uma chícara de chá em sua companhia um dia desses.
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Será que ele voltaria ainda a tomar chá com ela? Pôs o chapéu e a capa, olhou pela última vez ao redor e, já da porta, sorriu para todos, coletivamente.
- Adeus, então, exclamou com. vivacidade, e felicidades!
Sorrindo ainda, voltou-se e desceu as escadas. Lá fora, contudo, o sorriso apagou-se-lhe e os lábios tremiam-lhe enquanto fazia o percurso para a estação e tomava
o trem. Uma vez instalada num compartimento vazio, olhou para as almofadas do assento fronteiro com a face composta; mas, de repente, deixou cair o rosto entre as
mãos e mergulhou num dilúvio de lágrimas silenciosas.
XIII
AQUELAS lágrimas lhe fizeram bem. Ao enxugá-las, pensou quase com um sorriso que o fato de sair do emprego e do apartamento onde estava não queria dizer que se acabara
o mundo. A esperança era inextinguível dentro dela.
Resolvera não alugar outro apartamento em Ardfillan. Apesar de pouco conhecida na cidade, queria evitar expor aos olhos do público aquela súbita mudança de posição
e fortuna. Queria sair dali para começar uma vida nova. No coração da cidade seria mais fácil encontrar moradia de preço mais módico, conforme lhe convinha. Já estava
pois resolvido de antemão o primeiro passo que daria.
Sob pretexto algum chamaria em seu auxílio os parentes. Não bajularia ninguém. Joe, naturalmente, estava fora de questão. O tépido e intermitente interesse de Edward
havia-a simplesmente irritado. Quanto a Richard, seu -próprio irmão, mais facilmente ela se deixaria morrer que pedir-lhe um único penny.
Sua reserva em dinheiro era ridiculamente minguada. Apenas umas poucas libras. Iniciou uma campanha intensiva. Deixou de comprar jornais e servia-se da biblioteca
pública para percorrer, com interesse quase doloroso, as colunas de anúncios. Na segunda-feira, escreveu vinte cartas oferecendo seus préstimos para diversos empregos.
Na terça-feira, foi a Glasgow e novamente se apresentou em todas as casas que mesmo remotamente se relacionassem com seu primeiro ramo de trabalho. Na quarta-feira
foi a Rasley, num trem de trabalhadores, para evitar maiores despesas, percorreu a localidade e tudo resultou inútil. Seria que não tinha sorte? As coisas não iriam
melhorar para ela? Sentia-se tomada de
229
uma fria exasperação. Quinta-feira, passou o dia em casa escrevendo mais cartas; e foi interrompida pelos homens que vinham arranjar os móveis de Miss Hocking, que
deveriam ser removidos na segunda-feira seguinte; Lucy tirou de dentro deles tudo o que era seu e empacotou essas coisas.
A despeito de si mesma, sentiu que sua situação era quase desesperadora. Esforçou-se durante quatro dias e seus esforços haviam resultado nulos.
Na sexta-feira, pensou: "Si nada acontecer hoje, amanhã vou procurar um quarto para mim". E nada aconteceu naquele dia. Teve que enfrentar a amarga necessidade e
tomou muito cedo um trem para Glasgow. Desembarcou aí com o rosto sombrio e triste, atravessou Queen Street Station e entrou na rua Unity.
De repente, colidiu contra alguém. Voltou-se e, levantando severamente a cabeça, encontrou-se olhando para o rosto sorridente de Dougal Frame. Foi um encontro que
evocava estranhamente o momento em que, no seu primeiro dia na firma Lennox, ele, correndo-lhe atrás com sua habitual vivacidade, havia se jogado sobre ela na escada.
- A senhora me disse que havíamos de topar um com o outro na rua, virou-se Dougal sorrindo mais alegremente ainda, porém isso se deu mais cedo do que eu esperava.
?- Sim, respondeu Lucy com alguma frieza, mas eu não esperava que você me derrubasse.
- Desculpe-me - apressou-se ele em dizer, o sorriso desaparecendo-lhe do rosto; hesitou, desconcertado por aquela singular falta de efusão, enquanto a corrente de
pedestres continuava a passar por eles no passeio. - Fui visitar uma tia, disse à guisa de explicação, cada vez mais embaraçado, ela é caixa na firma Henderson Shaw.
Lucy sorriu para ele, perguntando-lhe quando estaria livre da sua presença. Não se achava de humor a manter aquela ingénua conversação.
- Minha tia está bastante contrariada, continuou Dougal corando ao notar o silêncio de Lucy. Um dos seus cobradores deixou a casa sem dar satisfações e ela não sabe
o que faça para encontrar alguém de confiança que o substitua. Queria que eu aceitasse o lugar, mas isso não é possível, porque vou começar a trabalhar segunda-feira
para a firma Hagelmann.
Lucy levantou abruptamente a cabeça, fixando-o intensamente, não com aquele gélido sorriso, e sim com uma ansiedade que lhe transparecia nos olhos azues.
230
- É um emiprêgo? exclamou ela com um tom diferente na voz. Você disse que ela lhe ofereceu um emprego?
- Mas são apenas vinte e cinco shillings por semana e tem-se que andar o dia todo fazendo cobranças. Não, muito obrigado! falou ele com desprezo, eu nem olharia
para um trabalho desses.
- Você sabe si ela já arranjou outra pessoa para fazê-lo ? Dougal sacudiu a cabeça:
- Terão que anunciar, creio eu.
- Dougal, indagou ela com súbita veemência, você acha que eu poderia obter esse emprego? - E continuou rapidamente : - Escute, Dougal, eu preciso encontrar uma
colocação. Não importa o que seja. Si você crê que me dariam essa, eu ficaria encantada.
com os olhos cheios de assombro, o jovem Prame respondeu lentamente:
- Certamente que lho dão. Minha tia é caixa da casa há muitos anos e é praticamente quem dirige aquilo. Darlhe-á o emprego, não tenho disso a menor dúvida, mas...
pensei que a senhora...
Inconciente da ironia da situação que fazia daquele exempregadinho, que ela julgara de um modo duvidoso a princípio, o salvador que a vinha tirar da sua dificuldade
atual, Lucy interrompeu-o:
- Diga-me onde é. Preciso ir lá imediatamente. Num momento via mudada a feição da sua vida. Ria agora, encantada, sem pensar que pouco antes quase tratara mal aquele
amigo.
- Bem, disse ele afinal, sorrindo da sua alegria, o escritório fica no fim da rua Davis. A firma é Henderson Shaw, agência de casas. Pergunte lá por Miss Tinto e
fale em meu nome. Sinto muito não poder acompanhá-la. Mas espero que não encontre dificuldade alguma indo só. O que acho é que não vai gostar da espécie de trabalho.
- Não se incomode com isso, respondeu Lucy lançando-lhe um olhar caloroso. O que eu quero é trabalhar.
- Compreendo, falou ele com ar de dúvida. Era evidente que não compreendia, e o sorriso que tinha, enquanto Lucy lhe tomou a mão, era ainda meio interrogativo.
- Até à vista, despediu-se ela cheia de gratidão, e mil vezes obrigada.
- Não há de que! redarguiu ele contrafeito. Bem! espero que topemos novamente um com o outro um dia desses. 231
Lucy sorriu-lhe ainda uma vez e voltando-se começou a caminhar rapidamente.
Afinal a sorte lhe sorria. Precisava aproveitá-la imediatamente. Seguindo as instruções de Dougal, viu-se em pouco tempo defronte do edifício onde estava instalada
a firma Henderson Shaw, Agentes de Imóveis.
Era um edifício imponente, com portas de mogno e dobradiças de bronze polido, muito diferente daquele triste escritório de Saddleriggs. Ela, porém, não se intimidou.
Pôs o queixo determinadamente para a frente, torceu a maçaneta e entrou no estabelecimento.
Encontrou-se numa grande e majestosa sala, defronte de um grande balcão de madeira polida e entalhada de bronze. Atrás do balcão achava-se uma senhora alta e gorda.
Por algum tempo, Lucy deixou-se ficar parada contemplando o chão de mosaico de madeira, o balcão ornado de bronze - parecia haver um excesso de bronze naquela sala
- os móveis que a ornavam: uma grande secretária, duas mesas, algumas cadeiras e um enorme cofre verde encostado à parede. O que avultava ali, porém, era aquela
mulher, que ressaltava do ambiente atraindo o olhar.
Tinha um rosto vermelho e reluzente e usava óculos de aro de ouro. Vestia-se de preto, um vestido de gola alta, e não tinha enfeite algum a não ser uma corrente
de ouro. A proeminência do seu busto era extraordinária. Olhando para Lucy, perguntou com uma voz surpreendentemente suave:
- Que deseja?
Esmagada pelo imponente aspecto da interlocutora, Lucy sentiu-se subitamente insignificante; contudo articulou resolutamente :
- É com Miss Tinto que tenho o prazer de falar? A outra acenou com a cabeça.
- Chamo-me Lucy Moore, continuou ela rapidamente. Vim lhe falar a respeito da vaga que se deu na casa, - E antes que Miss Tinto pudesse replicar, embrenhou-se em
um detalhado relato das circunstâncias que haviam motivado sua ida ali.
Era uma história longa e, ao terminá-la, Lucy novamente se sentiu tomada de ansiedade e um pouco trémula.
- Isso mesmo, disse por fim Miss Tinto, após um prolongado exame através dos seus vidros. - E acrescentou: É um bom rapaz, esse meu sobrinho.
- Muito bom rapaz! concordou Lucy com fervor.
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- E vai indo extraordinariamente bem, tornou a outra. Novamente Lucy apoiou aquele conciso elogio ao jovem
Dougal Frame.
-i Sinto muito, respondeu Miss Tinto cautelosamente, mas, para esse lugar, preciso de um homem.
Ao dizer isso Miss Tinto não emprestava uma significação muito literal à sua frase. Tinha cincoenta e cinco anos e nessa idade conhecia tudo o que era possível conhecer
dos homens e das suas duplicidades. Era uma mulher de negócios, pioneira dos seus tempos, calma, eficiente, respeitável e virgem; possuia energia suficiente para
dominar qualquer homem. Contudo, apesar da sua secura, Miss Tinto era amável quando julgava que o devia ser.
- Às vezes é necessário fazer cobranças em lugares exquisitos.
- Isso não me afeta. acudiu Lucy vivamente. Há mais de seis anos que venho fazendo trabalho de homem.
- Mas não creio que este trabalho lhe convenha, disse Miss Tinto pensativa.
- Dê-me a oportunidade de experimentá-lo e verá, insistiu Lucy.
Um inesperado sorriso espalhou-se lentamente pelas reluzentes ífeições de Miss Tinto.
- A senhora se tem em alto conceito, observou com uma ironia um pouco causticante. Depois, tornando-se novamente séria, continuou: - Precisamos exigir as melhores
referências. Nossos cobradores têm que lidar com grandes quantias.
- Posso lhe oferecer boas referências, disse Lucy vivamente. E deu logo os nomes de Lennox, de Edward e de Richard.
O efeito que o último daqueles nomes produziu foi surpreendente.
- Seu irmão! exclamou Miss Tinto olhando Lucy com outros olhos. Então a senhora é irmã de Mister Murray! É um homem distinto. Também moro em Ealston. - Depois, levantando
vagarosamente a folha do balcão que permitia que se abrisse passagem, falou quase com cordialidade: Entre e sente-se um pouco. vou falar a seu respeito com Mister
Eattray.
Lucy obedeceu, sentando-se numa das cadeiras que encontrou, enquanto Miss Tinto subia um pequeno lanço de degraus que dava acesso a uma porta envidraçada por onde
desapareceu.
233
Esse momento era decisivo para Lucy. Tinha a certeza de que seria bem sucedida. Estava certa de que Miss Tinto se achava inclinada a seu favor. Sentada ali, olhando
sem ver aquele enorme cofre verde, com as mãos cruzadas nos joelhos, tinha um ar inquieto e ansioso.
O emprego não era muito bom, mas para ela era de importância vital. Teria pelo menos um teto assegurado para si e para Peter quando viesse do colégio. Iria para
Glasgow. Ardentemente desejou obter aquele novo lugar.
De súbito levantou os olhos e viu que Miss Tinto descia já os degraus. Levantou-se trémula e encarou a outra mulher, cujo rosto nada traía da decisão que iria revolucionar
sua vida.
- Apesar da firma ser Henderson Shaw, o chefe da casa se chama Mister Rattray.
- Sim, niurmurou Lucy, cheia de ansiedade.
- Na realidade ele deixa tudo sob minha direção, disse Miss Tinto lentamente. Estou aqui há trinta anos e ele deposita em mim toda a confiança.
- Sim, repetiu Lucy ofegante.
- De modo que resolvi aceitar suas referências, continuou Miss Tinto depois de uma pequena pausa, sorrindo bondosamente; si forem satisfatórias, poderá começar a
trabalhar na próxima semana.
Lucy teve ímpetos de chorar, de rir, de gritar. Fora aceita, pois! Recomeçaria a viver. Novamente tinha o futuro diante de si, pronto a ser moldado por suas hábeis
mãos. De golpe, a recordação da adversidade que a perseguira durante aqueles últimos tempos, desvaneceu-se como um espectro que se esconjura.
Abraçando com o olhar as amplas formas de Miss Tinto, teve um impulso selvagem, histérico irresistível quase, de cair sobre aquele vasto seio maternal.
Conseguiu, porém, dominar-se.
- Muito obrigada, tartamudeou em voz baixa, estou
muito... muito contente.
E não pôde acrescentar mais nada.
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XIV
UM mês depois, Lucy almoçava em sua casa, à luz de um bico de gás que silvava enquanto ardia. Ainda não eram oito horas e um lençol de névoa estendia-se sobre a
cidade, inutilizando a fraca luz do crepúsculo e esbatendo-se contra a janela do quarto em que ela se achava.
Essa era pois a sua casa, aquele lugar tranquilo com que tão avidamente sonhara! Procurara exaustivamente durante dois dias; e mesmo com o auxílio da firma Henderson
Shaw, aquela casinha de quartos tão pequeninos - um deles servindo também de cozinha - e aquele arremedo de quarto de banho, o conjunto situado num último andar
de um grande quarteirão cheio de habitações daquele género, fora o único que preenchera as exigências da sua respeitabilidade e da sua bolsa. E quão pouco satisfaziam
ambas essas coisas! O aluguel era de, sete shillings por semana, o máximo que Lucy poderia despender; e o ambiente... todas as casas daquela rua, muito inadequadamente
chamada rua das Flores, respirava pobreza quase indigente.
O edifício, de entradas estreitas e escuras, de degraus de pedra mal iluminados, nada tinha de grandioso. Havia, porém, em todo o bairro, aqui e ali, vestígios quase
apagados de um passado mais digno, o que o preservava de uma completa sordidez.
Fora, assim, ali na rua das Flores n.? 53 que Lucy viera instalar-se acossada pela necessidade.
Resolvera imediatamente dar um aspecto melhor àquela casa e mobiliá-la com algum conforto. Teve, contudo, que modificar essa resolução porque o pagamento do último
trimestre do colégio de Peter quase lhe esgotou a pequena reserva de dinheiro. Pudera apenas prover às necessidades mais prementes; dois leitos de ferro, algumas
cadeiras em segunda mão e alguns utensílios de cozinha de preço módico. Como lamentava agora ter-se separado de seus móveis daquele modo definitivo e por tão pequena
soma! No entanto estava feito e era coisa irrevogável.
Não! sua nova casa não era aquilo que ela sonhara! Não era ainda um lugar, si bem que ela em pouco tempo fosse transformá-la num; ou então, si a fortuna lhe sorrisse,
abandoná-la-ia para morar em lugar mais conveniente.
235
Lucy terminou a refeição e arrancou-se àquelas cogitações, lançando um olhar ao relógio de niquel - uma das compras baratas que realizara - que se achava sobre a
lareira. Levantou-se, apagou o gás e passou ao pequeno hall. Ali, numa escuridão de poço, apanhou o chapéu e a capa, em cabides invisíveis, arranjou-se e, abrindo
a porta, saiu.
Lá fora o nevoeiro envolveu o vulto apressado que emergia da escura entrada do edifício. Talvez pela proximidade do rio, o nevoeiro ali se fizesse mais espesso.
Contudo, nesse momento a bruma começava a levantar-se e um disco vermelho do sol conseguia fazer-se ver, revelando algo da fisionomia do bairro comprimido entre
Kelvinbank e as docas.
Agora mesmo, enquanto o atravessava, Lucy sentia a mesquinhez do lugar. As ruas eram estreitas, lajeadas, juncadas de papéis sujos e rasgados e de cascas de laranjas;
as lojas indistintas, de fachadas sujas e marcadas de giz com que brincavam as crianças da rua.
Lucy apanhou o bonde vermelho que a transportava todos os dias para o trabalho e, em caminho, pensava tristemente no rude golpe que lhe havia transformado a vida,
deslocando-a para aquele cenário diferente.
Quanto ao seu novo trabalho, era muito diverso do emprego que perdera, o qual, em comparação, fora uma sinecura cujos honorários agora pareciam retrospectivamente
munificentes. Compreendia agora por que Dougal Fráme tivera razão quando dissera que "o lugar não era grande coisa". Mas aceitava sua presente colocação com o mesmo
espírito com que se resignara a residir no n.? 53 da rua das Flores, dizendo-se com um sorriso irónico: "Você desceu mais um degrau, minha amiga!" No íntimo, porém,
esperava, cheia de confiança, poder subir novamente, e em breve, os degraus da vida.
Na esquina da rua Davis desceu do bonde e, com passos rápidos, dirigiu-se para o escritório, onde entrou depressa, contente por se ver livre do frio cortante.
O grande e luxuoso edifício já não a intimidava. Tornara-se familiar. Transpôs o balcão com naturalidade, respondeu ao amável aceno de Miss Tinto e dirigiu-se imediatamente
à sua pequena mesa. No lado oposto, estava um homem que consternava o chapéu e o casaco e que disse à sua entrada, sem a olhar, um seco bom-dia.
- Bom-dia, respondeu Lucy sorrindo levemente. A agressividade habitual de Adam Dandie não deixava de
diverti-la. Era o outro cobrador da casa, homem entroncado, espesso, queimado de sol e de aspecto agreste. Suas maneiras também eram rudes e categóricas. Suas próprias
roupas, a capa de oleado brilhante que lhe envolvia o robusto corpo e o gasto chapéu enfiado até as orelhas, traíam a rudeza que era sua principal característica.
Quando se irritava tornava-se belicoso e jogava as palavras com a força com que as mulas atiram coices. Tal era Adam Dandie em tudo, excetuando as pernas. Essas,
quando ele se achava de pé, descreviam um O perfeito. E o diâmetro transverso desse O era bastante largo. Isso explicava seu rancor contra um universo que continha
pulgas, nevoeiro, mulheres, whisky insuficiente e bondes atrasados. Podia-se, porém, dizer em favor de Dandie que esse rancor não era maligno e que ele mantinha
essa atitude mais para se divertir.
- Diabo de lápis! exclamou, fazendo pela segunda vez a ponta de um. Não se fabrica mais nada que preste, hoje em dia!
- Dê-mo que o apontarei, sugeriu amavelmente Lucy.
- Si pensa que o pode fazer melhor do que eu, engana-se. Provavelmente, iria cortar-se e depois havia de me querer processar pelos danos.
- Enquanto não for por quebra de promessa, não faz mal, falou Miss Tinto lançando um olhar de entendimento a Lucy. Apesar da sua posição superior Miss Tinto havia
definitivamente acolhido em sua amizade a nova cobradora.
Nesse momento, Mister Rattray entrou no escritório, ou para dizê-lo com mais propriedade, atravessou-o. Era um homem alto, anguloso, que raramente se mostrava. Acenou
a todos, de passagem, e desapareceu.
- Bem, disse Lucy, com nevoeiro ou sem ele é melhor começar desde já. Hoje toca-me a rua White. Que falta de sorte!
- Veja si vai se perder na cerração, comentou Dandie com uma solicitude saturnina.
Lucy sorriu, sacudindo a cabeça; depois, tomando o livro e a pasta - eram as insígnias da sua profissão agora, aquele livro de capa de couro preto e a pasta lustrosa
- saiu do escritório.
A capa que trazia não. era abrigo suficiente para um tal tempo, e a umidade, atacando-lhe a garganta, fê-la tossir. Em torno dela, envolvente como o nevoeiro, agitava-se
a vida da cidade,- Lucy, porém, não sentia mais aquela vibração que
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dantes a animava. Acostumara-se àquilo e era mais velha agora. Sim! pensava, estava envelhecendo rapidamente. Além disso, não gostava daquele trabalho, nem do nevoeiro,
nem, principalmente, da rua White.
A rua White era estreita, uma passagem apertada entre duas filas de edifícios altos, escuros e tristes, onde o sol não penetrava nem mesmo nos dias msis claros de
verão. E agora era como uma vala invadida pela cerração.
Uma vez em frente da primeira porta em que deveria entrar para começar seu trabalho, Lucy bateu fortemente na madeira do painel com o lápis, um detalhe profissional
que por amarga experiência, adquirira na primeira semana em que havia quasi gasto a pele dos nós dos dedos à áôrça de bater com eles. Tinha tima quantidade imensa
de cobranças a fazer em cada um desses edifícios, que eram como colmeias e cujos aluguéis eram semanais. Naquele pequeno pedaço de rua residiam, sob as condições
de civilização do princípio do século vinte, cerca de quatro mil seres humanos. "Casas controladas", como as chamavam, tendo colados às portas uns pequenos cartazes
que davam direito a um inspetor noturno da Corporação de entrar para se assegurar de que não havia ali excesso de moradores.
Salutar precaução de uma autoridade benigna. Apesar de tal precaução, doze pessoas - de três gerações - dormiam em harmonia e conforto em um desses quartos que
mediam três metros de largura por cinco de comprimento. Pelo menos era de supor que harmonia e conforto ali reinassem, porque nunca se queixavam ao proprietário.
Novamente Lucy bateu. A porta abriu-se na largura de um centímetro e, através dessa pequena fresta, uma voz perguntou : - Quem está aí ?
- Henderson Shaw, falou Lucy vivamente.
- Ah! murmurou a voz, não-mais interrogativa, mas cheia de resignação. Houve uma pausa ainda mais expressiva do que a exclamação; depois, a porta abriu-se lentamente
e apareceu em sua moldura uma figura de mulher morena e despenteada, de rosto sujo. Olhou Lucy com um ôlho brilhante. O outro já não voltaria a brilhar porque se
fora, deixando em seu lugar uma sinistra e vazia órbita.
A mulher, porém, não era sinistra: - Entre! disse em tom suave, com a costumeira resignação ao inevitável...
Dentro, só miséria. Ausência completa de móveis a não ser caixotes de madeira e um velho colchão de palha a um
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canto, sobre o qual uma criança recem-nascida parecia ter ainda, os olhinhos sem brilho, alguma brumosa visão da limbo de onde recentemente emergira. Crianças maiores
brincavam em torno, maltrapilhas e sujas.
- A senhora precisa desculpar; nós não esperávamos que viesse tão cedo, desculpou-se procurando assim salvar a. honra e explicando o desarranjo em que se achavam
todas, as coisas. - Aqui está seu dinheiro, tornou depois de uma. afanosa busca em seus trapos.
- Muito bem! a senhora está sempre em dia, observou Lucy olhando em torno daquela indescritível moradia. Deve ter muita luta em sua vida, não é mesmo?
- Muita, exclamou a outra, nunca posso ter móveis,, pois sempre vem um dia em que não posso pagar o aluguel e aí vem o locador, que nos obriga a mudar de casa.
Alguma coisa agitou-se no coração de Lucy. Esse trabalho não era para ela. Realmente, não era! Era horrível toda aquela miséria. com esforço, dominou-se e dirigiu-se
para a porta. Houve uma troca de saudações depois das quais Lucy disse:
- Voltarei dentro de uma semana a esta mesma hora. Tinha que ser. Aquele era seu ofício, agora.
Bateu em cada porta daquele quarteirão. Tomou notas em seu livro negro, recolheu as sujas notas e o dinheiro miúdo na pasta que se foi tornando cada vez mais pesada,
enquanto sua cabeça se fazia cada vez mais leve. Ouviu desculpas aqui, ali queixas. Ao terminar a tarefa, estava exausta. Supriu-se em uma mercearia de alguns génerosque
lhe faltavam em casa e recolheu-se à rua das Flores, onde preparou uma refeição que comeu cheia de apetite, achando-se bem em sua modesta casa depois de ter contemplado
tanta miséria. Miss Tinto sancionara aquele regresso diário à rua das Flores para almoço, concordando bondosamente em que era uma medida prática e económica.
As quatro e meia, voltou novamente ao escritório.
- Que terrível nevoeiro! disse Miss Tinto. Tivemos que conservar as luzes acesas durante todo o dia, aqui.
1- Cá dentro não está desagradável, tornou Lucy. Lá
fora, porém, está horrível. Estou contente por me achar aqui.
Miss Tinto recebeu a pasta das mãos de Lucy e falou-lhe:
- E eu estou contente porque você se está acostumandoao trabalho. Isso no princípio é desagradável.
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Lucy manteve-se em silêncio durante um momento, assaltada pela súbita visão daquele quarteirão esquálido e miserável ; depois, com um laivo de amargura na voz, indagou:
- A quem pertencem aqueles prédios em que fiz a cobrança hoje?
- São da propriedade de um homem chamado Tully, disse Miss Tinto algo surpreendida pela pergunta e pelo tom em que fora feita. Aquele que tem uma joalheria na rua
Alston. Também mora em Ralston, perto do lugar onde habito. Por que o pergunta?
- Estava pensando numa coisa... respondeu Lucy que recordava o aspecto exterior- da luxuosa joalheria. Si algum dia me encontrar com Mister Tully, hei de dizer-lhe
tudo aquilo, que penso dele.
XV
ANDANDO para cima e para baixo, na plataforma da estação, Lucy procurava ocultar numa calma aparente a. intensidade da sua impaciência. O sol poente daquela morna
tarde de junho espalhava na cidade uma luz amarelada. Era como si fosse obra de magia, a estranha irrealidade daquela luz que a cegava com seu brilho.
Esperava Peter. Miss Tinto, com aquele modo brusco que mascarava suas súbitas generosidades, havia-lhe ordenado que deixasse o escritório às quatro e meia, tornando-lhe
assim possível correr até em casa, fazer-se mais elegante e chegar a tempo de esperar o trem que vinha de Laughtown. E agora, enquanto contava impaciente seus passos,
um apito silvou e apareceu a resfolegante massa do comboio, que foi diminuindo a marcha até parar. Lucy esperava com todo o corpo tenso procurando avidamente com
o olhar a figura do filho. Trémula de emoção, viu-o descer do seu compartimento e adiantar-se da multidão em direito a ela.
Já não era o meninozinho, que lhe segurava a mão e lhe trotava ao lado nessa mesma plataforma; por algum milagre do tempo e da sorte, era agora um correto e aprumado
rapaz, que caminhava cheio de confiança, independente dela. Lucy não se moveu. Ficou ali, de pé, observando-o, com um sorriso que lhe tremia nos lábios, esperando
que ele a visse.
- Alo! mamãe! disse ele no momento em que deu com ela, sinto muito ter tido alguns minutos de atraso. - A
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graça com que tirou o chapéu para saudá-la - a ela, sua mãe
- enlevou-a. Sentiu-se repentinamente fraca no momento em que ele a beijava-
- Peter, meu filho, você voltou!
- Agora é para sempre, respondeu ele alegremente. Lucy olhou-o cheia de seriedade, enquanto Peter sorria com a mesma ingénua candura da sua infância. - Que vamos
fazer com a minha bagagem? perguntou ele.
- É verdade, sua bagagem! disse ela começando a agitar-se. Peter tomou-lhe o braço e assim caminharam para o depósito das bagagens. Lucy voltou a sentir aquele estremecimento
de felicidade que a enchia de uma doce emoção. A alegria de tê-lo para sempre, como ele o dissera, era inacreditável !
- Bi-la aqui! exclamou ele.
A mala de Peter já não era nova. O couro lascara. , As iniciais haviam amarelecido si bem que ainda estivessem decifráveis. Como parecia pequena, ali, defronte deles,
na plataforma ! Anos atrás, aquele menino de pé, ao lado dela, é que parecera insignificante. Agora dava-se o contrário.
- Vamos mandar pô-la no carro, disse Peter.
Lucy hesitou; custou-lhe um grande esforço, mas mesmo assim, falou:
- Creio que é melhor mandá-la por um carregador.
- Mas por que não a levamos conosco? perguntou Peter erguendo as sobrancelhas.
- Tomaremos um bonde, tornou ela com ar razoável. E assim, é melhor mesmo que o carregador a leve.
Adiantou-se e tranquilamente tomou todas as providências para que a mala fosse levada ao seu endereço.
Enquanto saíam da estação e tomavam a rua Young, reinou silêncio entre eles e esse silêncio persistiu enquanto esperaram um bonde e o tomaram. Só depois de muito
tempo ele observou:
- Você não me disse muita coisa sobre a nova mudança, em suas últimas cartas. Só falou de Miss Hocking e do novo emprego. E que tal é mesmo esse emprego?
- Não é grande coisa, realmente, respondeu ela procurando assumir um ar descuidoso. Não temos muito, por enquanto, mas você verá que nos arranjaremos muito bem.
Sabia que precisava dizer-lhe tudo, queria, porém, poupar-lhe certos detalhes.
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- Mas isso não me irá impedir de... avançou Peter alarmado.
- Não, em absoluto! interrompeu Lucy, isso está acima de tudo! Você pode achar o que é nosso, agora, menos elegante do que em Ardfillan. Só ficaremos assim mais
algum tempo. Estaremos juntos e dentro em pouco sairemos de dificuldades.
- Muito bem! disse Peter, cujo olhar clareou instantaneamente.
Ao chegarem às imediações de Kelvinbank, Lucy ergueu-se.
- Cá estamos, exclamou com vivacidade. Você vai morar bem perto disso! e apontava para um edifício, um enorme edifício cinzento com uma torre central, construído
no cume da colina dominando o Parque BLelvingrove. A edificação, sobre a alta colina, estava nesse momento banhada por um raio de sol que dissolvia a fria e escura
severidade da pedra com qut era construída, tornando delicado, ténue como uma teia de aranha, o rendilhado da torre. Era uma linda visão aquela, e para Lucy era
mais que isso, era um incentivo, uma esperança, uma inspiração que se refletia em seus olhos e em todo o seu rosto. - Isso não o emociona? perguntou com os olhos
brilhantes.
- - É um bonito prédio, concordou ele. Sua expressão, porém, era diferente, meditativa e fria; parecia estar fazendo cálculos interiores que lhe tornavam o olhar
pesquisador, desapaixonado e quase inquisitivo, como se dissesse a si próprio: Quando eu acabar de frequentar isso, estarei pronto para começar a vida.
Lucy sorriu-lhe e dirigiu-se, interiormente apreensiva, para a rua das flores, enquanto Peter, docilmente, a seguia. Nunca ela achara aquela rua tão suja, tão escura
e tão cheia de gente duvidosa quanto agora. Sentia-se subitamente responsável por aquilo. Quisera que Peter conhecesse a rua quando o movimento fosse melhor, para
mostrar-lhe o que tinha ainda de belo; a tarde morna, porém, atraíra todos os seus habitantes para fora como os coelhos saem de suas tocas. As crianças corriam,
brincavam e riam livremente, lutando às vezes umas com as outras. As mulheres encostavam-se às portas, de braços cruzados e línguas soltas, olhando curiosamente
os transeuntes e gritando de vez em quando uma ameaça dirigida à belicosa filharada. Os homens, em mangas de camisa, liam jornais e fumavam cachimbos defronte das
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janelas abertas, levando de vez em quando à boca copos de cerveja e cuspindo para a rua com toda a naturalidade.
- Mas mamãe, isso aqui é sórdido, comentou subitamente Peter, nunca pensei que você morasse num lugar assim!
- Mas essa rua, às vezes, tem outro aspecto, Peter. Antes que ele pudesse responder, chegaram defronte da
entrada do número 53. Subiram as escadas em.silêncio, e Lucy abriu a porta com sua chave.
- Eis-nos em casa, disse com alegria desmentida pela ansiedade revelada em seu olhar, não é grande coisa, mas é nossa e isso é o principal.
Fechou a porta e andando adiante de Peter apontou:
- Aqui está o seu quarto, e aqui, continuou indicando a cozinha, é uma espécie de sala de visitas onde eu durmo.
Peter levou algum tempo para penetrar toda a significação daquela moradia, depois seus olhos encheram-se de assombro.
- É aqui que nós moramos agora? perguntou incrédulo. Lucy fez que sim, com a cabeça. Habituara-se, de certo
modo, àquilo e não esperava que ele estranhasse tanto a mudança. E contudo fizera o possível para arranjar a casa, pondo cortinas nas janelas, polindo o oleado do
chão até vê-lo espelhar. Até mesmo caiara os tetos de branco nas férias do fim de semana.
- Mas os móveis! Está tudo tão desguarnecido, observou ele, uma cama e um guarda-roupa no meu quarto... e quase nada no outro. Ouve-se um eco de casa vazia, por
aqui!
O rosto de Lucy fez-se corado.
- Não ficaremos aqui para sempre, declarou, e à medida que o tempo for passando arranjarei outros móveis.
- Mas é horrível, mamãe! Pensar que temos que morar neste desconforto e num bairro destes!
- Foi o melhor que pude arranjar, retrucou Lucy categoricamente. Temos que nos acostumar, e esperar por melhores tempos para então deixar isto.
Peter sentou-se e olhou para ela:
- Bem! si tem que ser mesmo, o melhor realmente é ver si nos acostumamos.
- Eis a atitude que eu aprecio! disse ela; eu sabia que você ia compreender; e vai sentir-se muito melhor depois que tomar seu chá.
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Peter olhou para a mesa, que já estava posta, e sorriu cheio de dúvidas:
- A vista daquela multidão aí fora é suficiente para acabar com o apetite de um homem.
Mas seu apetite não se acabara, porque ao sentar-se à mesa comeu tudo de bom grado, apesar de lançar, uma vez por outra, olhares cheios de dúvidas em torno.
- De qualquer modo, você é uma boa cozinheira, mamãe! disse afinal.
- Espere para ver, quando você estiver estudando, as boas coisas que eu prepararei para você, replicou ela. Seu instinto protetor já começava a elaborar os pratos
nutritivos e saborosos com que o regalaria. - Aí você vai se julgar feliz por estar em casa.
Peter recostou-se na cadeira.
-? Sim, vai ser muito bom, falou devagar, mas vamos discutir isso calmamente; você parece muito confiante, mas como vai se arranjar para fazer essas coisas?
?- Tudo se ha de arranjar muito bem, você verá, disse ela, cheia daquela confiança de que ele a acusara.
- Tenho o programa da Universidade, que me foi dado pelo irmão William. As taxas vão custar, em média, perto de trinta libras por ano. Livros e acessórios, digamos...
cinco libras. Ponha mais vinte libras para minhas roupas e dinheiro para alfinetes e mais despesas forçadas... É verdade que, si for preciso, posso fazer concurso
para uma das vinte bolsas de estudo, coisa que para mim será uma brincadeira ...
Lucy estava encantada com o modo competente pelo qual ele expunha a situação. Além disso, dava-lhe prazer aquela intimidade que os ligava, associando-os no interesse
pela
mesma causa.
- Temos que viver durante esses cinco anos e fazer mais essas despesas de que lhe falei há pouco, prosseguiu Peter; agora, diga-me francamente: quanto está você
ganhando?
Lucy perturbou-se um pouco, hesitando.,
- Diga, insistiu ele, quanto lhe resta depois de estar pago o aluguel deste salubre palácio?
- Dezoito shillings, responde ela com firmeza, dezoito shillings por semana.
A boca de Peter entreabriu-se enquanto fixava em sua mãe dois olhos cheios de assombro. "
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- Dezoito shillings por semana! gaguejou, menos de cincoenta libras por ano para nossa manutenção e para suas roupas! - E com um curto riso sardónico: - E para alugar
seu camarote na ópera... Isso é absurdo, mamãe!
- Estou certa de que chegará para tudo, disse Lucy resolutamente.
Peter, no entanto, sacudia a cabeça repetindo:
- É um absurdo! Eu sei o que estou dizendo. Entendo dessas coisas. Você parece que não raciocina. Veja, por exemplo, as condições em que você vendeu seus móveis!
Si naquele tempo eu já tivesse dezesseis anos e não fosse apenas um garotinho. nunca o teria consentido! Depois, aquele caso de Miss Hocking... você bem poderia
ter previsto aquilo. Mas qual... você não vê coisa alguma porque é teimosa.
A essas palavras Lucy sentiu-se tomada de indignação. Via o quanto eram injustas aquelas censuras e desagradava-lhe aquela atitude de juiz, que o filho assumia;
isso depois de tudo o que ela.sofrera trabalhando para conservá-lo no colégio, procurando arranjar tudo para ele do melhor modo. A não ser Peter, ninguém poderia
falar com ela daquela maneira e escapar da cortante e devastadora cólera da sua resposta. Amava-o imenso, porém, e por isso disse simplesmente:
- Você tem que me deixar proceder do modo que me parecer melhor.
- Que é que me adianta então traçar planos, si você os inutiliza com sua obstinação? declarou Peter com petulância. E de que nos serve ter parentes ricos si você
não, lhes pede auxílios ?
- Quero fazer tudo por mim mesma, respondeu Lucy resolutamente, e sem auxílio de parentes.
Peter olhou-a com as lágrimas nos olhos, subitamente dominado pela sua inflexibilidade.
- Você não vê então quê se trata agora de mim? Sou eu quem tem que arranjar um meio de nos fazer sair deste horrível buraco, exclamou queixoso. É intolerável isto
aqui.
- Já agora chorava francamente, cheio de desespero.
- Não chore, meu querido Peter! disse Lucy instantaneamente comovida por aquelas inesperadas lágrimas. Apesar do seu tamanho de agora, e da sua independência, Peter
ainda era para ela aquele mesmo meninozinho, a criança que corria para seus braços, ávido da sua compaixão. A doçura daquele pensamento, depois de uma separação
tão longa, deu-lhe um ensejo inexplicável de ceder. 245
- Pensaremos nisso, falou tranquilizando-o e tomando-lhe a mão, talvez seja bom consultar Richard ou Bdward para ver o que dizem.
- Você precisa ir, disse Peter enxugando os olhos com o lenço, digo-lhe que é esse o único meio.
Aquele rosto lastimoso, aquele desgosto, trouxeram a Lucy reminiscências da fraqueza de Frank. Aquela atitude que o filho assumira, moveu-a de um forte impulso de
proteção. Sentia-o perto de si e dependente dela.
- Não sei como me deu isso agora! observou finalmente Peter voltando para a mãe um rosto meio confuso. E acrescentou à guisa de desculpa: - Isso não tornará a acontecer.
- Você está fatigado, meu filho, disse Lucy erguendo-se. vou arranjar-lhe a cama.
Entraram no desataviado quarto e Peter foi para a janela, onde ficou enquanto sua mãe abria as cobertas e batia as almofadas.
- Veja, mamãe, chamou ele depois de algum tempo, daqui pode-se ver bem a Universidade.
Lucy foi para junto dele e passou-lhe o braço em torno dos ombros enquanto lhe seguia a direção do olhar. Além, no cimo da colina, vago e impreciso, elevava-se o
edifício que se tornara o alvo de suas ambições e esperanças. Sombrio e imponente, dominava todo o mesquinho bairro.
Era um momento pungente. No coração de Lucy elevou-se aquela sufocante angústia, aquela aspiração imprecisa. Seus olhos ergueram-se ainda mais, fixando-se em uma
estrela que cintilava no firmamento e que aos poucos se ia tornando mais brilhante à medida que o céu escurecia.
- XVI -
LUCY pensara tanto no passo que tinha a dar que sentia doer-lhe a cabeça. Durante todo o tempo em que estivera trabalhando, revolvera o assunto no espírito e chegara
à conclusão de que, si pedir para ela seria uma coisa intolerável, pedir para Peter era uma humilhação que poderia suportar.
Eis porque se achava naquela tarde de sábado, em pleno junho, na estação de Ralston, a frente da casa de Richard.
Uma vez defronte do pequeno portão de ferro trabalhado, viu que o jardim fora alterado desde sua última visita ali.
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O taboleiro de grama estava agora transformado em uma quadra de ténis, haviam plantado uma fila de limeiras para ensombrar a alameda, e a pequena estufa fora pintada
de branco recentemente. Alegrando-se por aqueles indícios de prosperidade de Richard, tocou a campainha com a mão firme.
Uma criada fê-la entrar para a sala de visitas, onde Lucy ficou à espera, sentando-se à janela. Durante cinco minutos esteve só, deixando os olhos vaguearem pelos
móveis estofados de veludo, o piano de ébano, os vasos de flores e as fotografias sobre a lareira. Uma fotografia dela e de Peter ocupava um lugar destacado no centro.
Lucy suspeitou de que Eva a havia colocado ali expressamente para a ocasião. Nesse momento, ela entrava de mãos estendidas:
- Sinto tanto tê-la feito esperar, Lucy! ciciou. Eu estava repousando do almoço. Faço questão de fazer uma sesta, sabe e as crianças saíram para jogar golf. Vão
ter muita pena de não a poderem ver.
- Eu também sinto não os ver. Já há muito que não estou com eles. - Lucy intimamente pensava que provavelmente Eva não julgara necessário fazer os filhos esperarem
a visita de um parente pobre.
- Realmente, há uma eternidade que você não vem por aqui, disse Eva em tom de reprovação. vou mandar servir o chá imediatamente.
Tocou a campainha com um belo gesto da sua mão pequenina bem cuidada. O chá veio em uma bandeja, num serviço de prata, com chícaras Wedgwood.
- Peter está com você agora, não é mesmo! perguntou Eva, oferecendo-lhe bolos.
- Está comigo, sim, respondeu Lucy.
- É um menino muito agradável. Tenho o retrato dele ali, com você, continuou Eva apontando para a fotografia sobre a lareira. E continuou a falar de modo agradável,
cheia de volubilidade, .enquanto Lucy, meio constrangida por aquela efusão, respondia lacônicamente.
Depois de alguns momentos, a porta abriu-se e Richard entrou. Lucy sentiu subitamente um grande prazer em vê-lo. Suas naturezas eram diversas e ele nunca era realmente
caloroso quando a via; era, porém, seu irmão e de qualquer modo isso os aproximava.
- Você está novamente atrasado para o chá, gorgeou Eva. E voltando-se para Lucy explicou: - Esteve
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trabalhando em seu gabinete, naqueles casos complicados. Deus do céu! como custa viver hoje em dia!
- Você está com boa aparência, observou Richard dirigindo-se a Lucy e tomando das mãos de Eva sua chícara de chá. Quanto a mim, não tenho passado bem, ultimamente.
O médico me disse que estava artrítico, mas não creio que seja isso.
- É excesso de trabalho, meu amor! sussurrou Eva traindo em sua atitude todo o carinho de uma esposa perfeita. Falou com volubilidade por mais algum tempo,- depois,
assumindo um ar cheio de tato, levantou-se, dizendo com um sorriso:
- Agora vou deixá-los sós. Vocês devem ter milhares de coisas a dizer um ao outro. - E saiu da sala.
- Muito bem, Lucy, não a temos visto por aqui ultimamente, disse Richard assim que sua mulher os deixou. Como vão as coisas para você?
Lucy sentiu-se feliz por ter aquela margem para falar. Até ali temera precisar ela própria iniciar o assunto.
- Foi exatamente para falar nisso que eu vim aqui hoje, Richard.
E franziu as escuras sobrancelhas e respondeu:
- Senti muito quando soube que você perdera aquele emprego na casa Lennox. Por outro lado, fez muito bem em arranjar aquela outra colocação. Muito corajoso da sua
parte. - E ajuntou depois, judiciosamente: - Mas por que não quis você casar outra vez? Creio que isso simplificaria as coisas.
- Não sei! exclamou Lucy, confusa.
- Deixe-se disso! Você ainda é uma mulher bastante apresentável.
- Não se apresentou nenhuma ocasião, tornou ela. - Mas é a lei natural, continuou Richard umedecendo
os lábios. Eva e eu somos muito felizes,, fique certa.
- Eu também me sinto feliz com Peter, disse Lucy. Apenas desejo vê-lo bem encaminhado,.
- É muito natural, falou Richard, depois de uma pausa. Aquela aquiescência deu-lhe coragem,- juntando todas
as forças Lucy começou:
- Há muito que não nos víamos, Richard, e talvez a culpa disso me caiba. Agora, porém, que Peter deixou o colégio, eu preciso dos seus conselhos e do seu auxílio.
Você quer me ajudar nisso?
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- Decerto, respondeu ele imediatamente.
- Vai me ajudar a educar Peter?
- Farei o que me for possível, disse Richard em tom preciso.
- Muito agradecida, Richard! exclamou Lucy com visível emoção. Que bondade a sua! Você não sabe quanto me custou vir aqui. Não fui feita para pedir, mas preciso
de um pequeno auxílio para fazer Peter ingressar na Universidade.
- Na Universidade! - Saindo da sua habitual compostura Richard deu um pulo na cadeira. - Mas criatura de Deus! que quer você dizer ?
-. Apenas isto: quero que Peter estude para médico, murmurou Lucy.
- Pô-lo na Universidade para estudar medicina! observou ele olhando-a com assombro e perdendo por completo suas maneiras pausadas. ?- Você está maluca!
- Peter é muito inteligente, Richard, disse Lucy constrangida. Sempre quis que ele tivesse uma profissão e desejava que se tornasse médico.
Aquelas palavras deram tempo a Richard para recobrar o sangue-frio.
- Minha querida Lucy, replicou em tom magistral, você não sabe o que está dizendo. Você não poderá encaminhar seu filho para isso, mesmo com o auxílio que eu lhe
posso dar. Não sou rico. Tenho uma família em que pensar. Charles está estudando e sua educação está me ficando muito cara. Tenho também que pensar na educação artística
de Vera. Tem um talento extraordinário. Está frequentando aulas aqui e Eva deseja que ela complete os estudos em Paris, no caso de me ser possível fazer esse sacrifício.
Como se vê, não posso estar nadando em dinheiro, Lucy. Não se deixe iludir pela aparência da nossa casa e pelo nosso modo de viver. Temos que manter estas coisas
de qualquer maneira. Minha situação requer. Eu, por mim, não sou orgulhoso. Muitas vezes penso que devíamos viver mais modestamente...
- Mas você disse que me ajudaria, interrompeu Lucy.
- Sim, disse. Mas de certa maneira. Tenho alguma influência e assim, poderia arranjar para seu filho um emprego qualquer num escritório.
- Um emprego! exclamou Lucy indignada.
- E por que não, faz favor de me dizer? perguntou Richard friamente; você já o fez frequentar um bom colégio, agora já é tempo desse moço fazer alguma coisa por
você.
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Além disso, se tiver realmente valor, em breve irá melhorando de situação. Deixe-o lutar pela vida.
- Você pode ficar com esse emprego, Eichard, redarguiu Lucy amargamente. Não é dessa espécie de auxílio que eu necessito. Meu filho pode ter melhor que isso.
Richard contemplou-a por algum tempo, depois disSe cheio de ênfase:
- Você não mudou!
- Realmente, não mudei até ao ponto de querer encerrar meu único filho num escritório, enquanto seus dois têm tudo o que há de melhor.
- Deixe que os Moore façam alguma coisa por Peter lembrou Bichard; aquele que é estalajadeiro tem dinheiro em quantidade.
- Não quero o auxílio nem o dinheiro de Joe, disse Lucy asperamente. E agora, para falar com franqueza, também não quero o seu.
- Bem! mas você não poderá dizer que eu não a aconselhei a abandonar essa ideia louca da Universidade.
- Veremos! desafiou Lucy começando a calcar as luvas..
- Use de lógica, insistiu Eichard em tom mais conciliador; para que vive você sempre nadando contra a maré? Um. dia ainda encontrará águas profundas onde se afogue.
Deilhe um conselho razoável. Arranjarei para seu filho algum trabalho respeitável. Seu ordenado ser-lhe-á de grande auxílio. Não continue a querer conseguir o impossível.
Contente-se com o que tem.
Apertando o último botão da sua luva, Lucy ergueu-se subitamente com o rosto pálido e disse com voz vibrante:
- Você verá o que eu posso fazer! Richard levantou-se também contrafeito.
- Não tome essa atitude ridícula, Lucy. Ouça a razão. Não queira atingir o impossível.
- Adeus, Richard. - Sua atitude realmente parecia ridícula e a intensidade de seus pensamentos era um pouco desproporcionada para a situação.
O irmão olhou-a por algum tempo, depois encolheu os ombros: -
- Está bem! Si você insiste em (Ser melodramática, não há remédio!
Nesse momento abriu-se a porta e o sorriso de Eva brilhou naquele carregado ambiente:
- Será possível que você esteja penssando em ir embora, Lucy ? Você não demorou nada...
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- Demorei-me demais, disse Lucy rígida; sua ironia, porém, tinha um tom patético.
- Sinto muito que você não fique para o jantar. E eu queria tanto colher umas flores no jardim para lhe oferecer! ciciou docemente Eva, enquanto a acompanhava até
a porta.
Flores! pensou Lucy. Pedira pão e ofereciam-lhe flores! Um dia ela daria flores a Eva! Controlou-se suficientemente até despedir-se de ambos, mas assim que transpôs
o jardim, suas faces queimaram de insopitada indignação. Aquela humilhação amargurava-a. Sim. Havia-se rebaixado. E para que? Richard, que estava encaminhando o
filho para a advocacia e pensando em enviar a filha a Paris, oferecera a seu filho um empreguinho qualquer. Naturalmente agora estaria relatando a Eva o que se passara
entre eles e esta criticava-a. Os lábios de Lucy tremiam e a indignação cegava-a.
Durante a viagem de regresso o orgulho ferido ditou-lhe uma linha de conduta. Chegou à rua das flores cheia de determinação. Peter esperava-a. Não cogitando da futilidade
de um jogo de golf, pensou ela, porém, lendo cheio de gravidade em seu quarto. Procurando conservar a voz o mais normal que lhe permitia sua agitação, perguntou:
- Você acha que poderá obter um dos lugares gratuito" na Universidade, de que me falou outro dia?
Peter levantou os olhos surpreendido com aquela estranha atitude:
- Estou certo disso, mamãe, mas tio Richard não...
- Não me fale em Richard, disse Lucy ferozmente; depois, com um esforço, dominou-se e olhou-o com ternura. Quero que você se inscreval amanhã. Você vai obter um
desses lugares gratuitos, meu filho. Eu farei o resto.
XVII
A CHAVE de Lucy não fez ruido quando ela a introduziu cautelosamente na fechadura e deu-lhe volta. Deixando no pequeno hall a bolsa de couro e tirando o chapéu e
a capa, que pendurou no cabide, Lucy entrou na sala.
Peter estudava: os cotovelos sobre a mesa, a cabeça entre as mãos, os cabelos em desordem, inclinava-se sobre os livros e papeis que juncavam a mesa e que o absorviam
de tal modo
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que não se apercebeu da presença de sua mãe. Esta pôs-se a preparar silenciosamente o chá, acendendo o gás e pondo a chaleira a ferver. De quando em vez, lançava
um olhar para o lado do filho. Aquele estudo intensivo vinha durando há quase três semanas e aquela figura absorta e inclinada emocionava-a de um modo indescritível.
Quando, afinal, seus preparativos se completaram, Lucy aproximou-se e pediu:
- Pode me dar agora a mesa, Peter?
- Alo, mamãe! disse este como despertando de um sonho e encostando-se na cadeira: - Vem me incomodar de novo, hein?
- Posso dar-lhe ainda cinco minutos, si você quiser, murmurou ela.
- Não! está muito bem! tornou Peter alegremente. Já. trabalhei muito hoje.
Levantou-se e pôs-se a passear com as mãos nos bolsos, enquanto Lucy rapidamente preparava a mesa para a refeição.
- O chá está pronto! disse logo que arranjou tudo. sorriu, pensando que naquela casa um gongo tornava-se perfeitamente inútil.
- Outra vez peixe! observou Peter sentando-se.
- Pensei que você gostasse, acudiu Lucy rápida. Está muito fresco, fui buscá-lo eu própria no mercado, apesar da distância. É um alimento leve e bom para o cérebro,
enquanto você estuda.
- bom para o cérebro, nada! disse Peter indulgente e através da sua voz Lucy ouviu o alegre motej-o de Frank
- mas está bom e cheira bem, continuou enquanto comia cheio de apetite. Havia quase terminado quando, olhando para sua mãe, perguntou: - E você não come ?
- Você sabe que eu não gosto de peixe, respondeu Lucy rindo. Além disso, há pouco, tomei chá com bolos. Miss Tinto convidou-me a entrar no Chisholm quando íamos
para o escritório. Isso me tirou o apetite para o chá.
Peter lançou-lhe um olhar cheio de dúvida, enquanto passava o último pedaço de peixe para seu prato. Desconfiava de que aquela explicação fosse falsa.
- Muito bem! disse. Si esse é seu sistema! Você vai
acabar estragando o estômago com isso. - Depois, apanhou o
Evening News e abrindo-lhe as páginas cor de rosa, procurou
a parte esportiva, que se pôs a ler e a comentar. - O West
devia tirar o campeonato, este ano; tem um team bastante bom. Um esplêndido team. Pode ficar certa! continuou ele.
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Lucy não saberia distinguir um jogador de foofball de um levantador de pesos; seu interesse, porém, nascia da animação que coloria nesse momento o rosto de Peter,
que andava pálido desde que iniciara seus estudos.
Quando acabou de ler tudo o que julgava interessante, Peter deixou cair o jornal, espreguiçou-se e exclamou:
- Bem! Mas não será isto que me fará tirar o primeiro lugar! Preciso continuar a estudar apesar de já ter passado todo o dia nisso!
- O essencial é que você seja classificado, sugeriu Lucy. Ser o primeiro ou o último, não importa.
- Quero o primeiro lugar ou nenhum! afirmou Peter conclusivo.
E pôs-se a observar meditativamente sua mãe, enquanto esta tirava a mesa. Quando ela começou a lavar os pratos, ele ergueu-se e disse:
- vou enxugar os prados para você, hoje. Lucy ergueu uma fumegante e molhada mão:
- Volte ipara seu lugar, Peter.
Ele, porém, tirando a toalha do prego, começou a enxugar os pratos gotejantes que a mãe ia depositando na bandeja. Emocionava-a de um modo curioso tê-lo assim perto
de si, tocando-a quase, dominando-a agora quase por uma cabeça inteira, ajudando-a naquele serviço doméstico. Pensava que, algum dia ela poderia dizer-lhe, através
de uma mesa luxuosamente servida em sua sala de refeições, quando ele regressasse talvez de uma brilhante intervenção cirúrgica: "Lembra-se daquele dia em que nós
lavávamos juntos os pratos na rua das Flores?" Seria uma reminiscência quase grotesca. Entrementes, Lucy apreciava aquela ajuda como um sinal da camaradagem que
reinava entre eles.
- Obrigadinha, disse, quando tudo ficou pronto; agora vá dar um passeio antes de recomeçar a estudar.
- Acha que devo sair? perguntou Peter indeciso. Era a voz de Frank falando novamente sem iniciativa, pedindo-lhe a opinião.
- Naturalmente, respondeu Lucy com firmeza. Só lhe pode fazer bem.
Peter apanhou o gorro e saiu, depois de lhe dirigir um rá.pido sorriso que a alegrou como um raio de sol.
Durante a ausência do filho, arranjou a casa, tornou a. dispor os livros sobre a mesa, manuseando-os cuidadosamente, depois mudou ráipidamente o vestido cinzento
que usava em casa. Durante todo o tempo estivera de ouvido atento 253
esperando o rápido passo de Peter na escada e o assovio com que ele costumava agora anunciar sua chegada. Quando ela ouvia o pequeno sinal, corria para a porta,
abria-a e voltava imediatamente para a sua cadeira, onde se punha a fazer tricot dando assim, a impressão de que a porta se abrira miraculosamente por si e não porque
ela fosse tão solícita de maneira a abri-la com tanta sofreguidão.
Habitualmente Peter ia ao Parque assistir ao jogo de ténis ou então detinha-se um momento, no bawling green público, passando finalmente no café Grove, cujo proprietário
se chamava António Demario, para tomar um gelado. Lucy, apesar de franzir a testa quando ele falava nesse café, abstinha-se de repreendê-lo.
Peter voltava aos livros, e ela, sentada do outro, lado da mesa, tricotava-lhe pares de meias ou então fingia ler uma novela, pensando consigo mesma como pudera
suportar separar-se dele todo o tempo que o conservara no colégio. Depois refletia que assim fora melhor, em vista das circunstâncias; agora, porém, via claramente
que não poderia mais viver sem o filho. Observava-o disfarçadamente, seguia-lhe os esforços e ajudava-o com o inconciente apoio de sua própria vontade.
À medida que os dias se passavam e quanto mais próxima se achava a época dos exames, ia-lhe parecendo que Peter estudava demais. Sabia que ele visava o primeiro
lugar, apesar de ser um fato que, encontrando-se classificado entre os vinte primeiros candidatos, receberia do mesmo modo uma bolsa para seus estudos. Desejava
ardentemente vê-lo satisfeito e nessa intenção fez preces mais fervorosas ainda do que era de costume. Agora, de passagem para o escritório, costumava entrar em
uma igreja; muitas vezes, acendia velas votivas em frente à imagem de Sto. António e deixava cair moedas numa caixa preta que havia sob os pés, calçados em sandálias,
do santo padroeiro da juventude.
Quando ela beijou o filho, naquela manhã do exame, e o viu partir gravemente para a grande aventura, uma lágrima surgiu-lhe nos olhos enquanto corria à janela para
vê-lo descer a rua. Orgulho e ternura dominaram-na quando ele se voltou e acenou-lhe afetuosamente, confiantemente, com a mão. Alquela confiança de,-Peter em si
próprio encantava-a. Quanto a ela, sentia-se nervosa, cheia de ansiedade. Nesse dia, trabalhou com naturalidade, deu respostas adequadas quando lhe perguntavam alguma
coisa, mas não tinha bem consciência do que fazia... Quando, afinal, viu escoar-se aquele interminável dia, deixou o escritório e for imediatamente para casa.
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Subiu as escadas ofegante, apesar de saber que era cedo demais para que Peter já estivesse de volta. No momento em que abriu a porta para entrar em casa, a porta
do apartamento vizinho abriu-se e uma mulher jovem com uns embrulhos na mão aproximou-se com o rosto sorridente.
?- Estes embrulhos foram trazidos aqui por um fornecedor durante sua ausência, disse estendendo-os a Lucy.
Era loura e tinha um rosto redondo, risonho e corado. O corpo cheio dava-lhe um ar ao mesmo tempo inocente e voluptuoso.
- É muita gentileza da sua parte, agradeceu Lucy tomando os embrulhos e fazendo menção de entrar.
- Chamo-me Mrs Finch, aventurou a outra. Meu nome é Bessie Finch.
- Está muito bem! respondeu Lucy sem encorajá-la. Não estava com disposição para manter conversas acidentais. Além disso, não gostava de relações com vizinhos; contudo,
a franqueza estampada no rosto da outra impediu-a de fecharlhe a porta.
- Disseram-me que a senhora é nova aqui, prosseguiu Bessie, nós também o somos.
- Realmente, somos novos aqui, concordou Lucy.
- Tenho muito prazer em conhecê-la, continuou Bessie cheia de franqueza. Não tenho amizades aqui. Quando estava em "Whiteinch, onde minha mãe tem uma casa de frutas,
eu tinha muitos amigos. Por causa do comércio, somos muito conhecidos lá. Aqui, porém, é diferente. Mister Finch, meu marido - aqui Bessie corou - trabalha durante
o.. dia todo. Casamos há pouco tempo. E quando chega em casa, às vezes, está tão fatigado que nem quer ouvir falar em algum divertimento. De modo que, muitas vezes,
eu me aborreço.
- Eu também trabalho fora o dia inteiro, disse Lucy para desencorajá-la.
- O rapaz que vive aqui é seu filho? insistiu Bessie. um moço tão simpático! Tira o chapéu quando me encontra na escada. É muito bem educado. Mister Finch e eu estivemos
pensando, outro dia, em que ramo de comércio a senhora estava querendo pô-lo.
A essas palavras, que foram tocar o ponto fraco da armadura do seu orgulho, a mão de Lucy se deteve, quando já ia fechar decisivamente a porta.
- Meu filho vai estudar na Universidade, afirmou. vou fazê-lo estudar medicina.
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Bessie Finch ficou visivelmente confundida. Suas sobrancelhas ergueram-se de assombro e caiou-se por algum tempo. Depois teve um pequeno riso embaraçado:
- Meu marido trabalha para Lush Cia., fabricantes de whisky. É um bom lugar e dá bastante dinheiro.
Lucy teve um sorriso constrangido. Não estava interessada em Mister Pinch, que sabia ser um homenzinho gordo quê deixava atrás de si, pelas escadas, um estranho
cheiro
de álcool. Nem queria ceder àquele seu antigo instinto de sociabilidade que lhe havia modificado completamente a vida no tempo em que também ela era uma jovem e
solitária esposa.
- Muito obrigada por ter guardado meus embrulhos, disse conclusiva entrando em sua casa.
- Foi um prazer, respondeu Bessie sorrindo mais uma vez. Lucy, porém, não lhe deu mais oportunidade de falar; inclinou a cabeça e fechou a porta silenciosamente.
Dirigiu-se à cozinha e depôs os embrulhos, esquecendo imediatamente aquele encontro sem importância.
Ficou à espera de Peter, sentindo-se cada vez mais enervada, até ouvir que batiam na porta. Ele não assoviara, o que Lucy tomou logo como um mau presságio.
Ao abrir a porta, Peter entrou pálido e cansado, com um borrão de tinta a lhe manchar a face esquerda. Nada falou ao entrar.
- Si você quiser comer agora, está tudo pronto, disse Lucy imediatamente.
Jogando-se sobre a cama e fixando o forro do teto, Peter ficou em silêncio ainda algum tempo ? depois exclamou apenas:
- Ótimo!
Aquela simples palavra e o modo pelo qual foi proferida vibraram em Lucy, alegrando-a de pronto. Cheia de animação, pôs-se a arranjar na mesa o saboroso guisado
que preparara para o filho.
- Você não parece muito curiosa, disse subitamente Peter; por que não me pergunta que tal estive?
- Você se foi muito bem, não é mesmo? indagou ela levantando calmamente as sobrancelhas. Fingia estar indiferente, mas seus joelhos tremiam enquanto falava.
- É cedo ainda para falar, acudiu ele rápido, mas achei tudo fácil. Facílimo! Resolvi os problemas matemáticos num instante, e a prova de inglês, fi-la de olhos
fechados. - Seu entusiasmo crescia com as palavras. ?- Foi tudo facílimo, e quando saí e falei com os outros camaradas, eles me disseram que haviam encontrado dificuldades.
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Por um momento Lucy teve um impulso de simpatia para com as tristes mães daqueles que haviam encontrado dificuldades; depois entregou-se à alegria e ao orgulho que
lhe dava a desenvoltura do filho. A emoção impedira-a de falar e ela deixou-se ficar parada, contemplando a figura emagrecida do filho, estirada sobre o modesto
leito. Sua ternura envolvia-o numa espécie de carinho patético. Olhou para aqueles pulsos ossudos emergindo de umas mangas demasiado curtas, para o brilho que a
fazenda do terno tomara no lugar dos cotovelos, para aquela face pálida - última evidência do esforço, que fez culminar sua emoção de mãe
- para a tinta que lhe manchava os dedos e o rosto.
Enquanto isso, Peter, numa torrente de palavras, fazia a relato do seu dia, descrevendo com luxo de detalhes tudo o que fizera e como fizera. Lucy bebia-lhe as palavras,
pensando que colhia naquele momento os frutos do sacrifício que fizera em enviá-lo para u colégio em Laughtown. Perguntava-lhe como poderia recompensá-lo por ter
se aplicado tão diligentemente. Enquanto o servia e pedia-lhe que comesse até mais não poder, aquela ideia de recompensa não lhe abandonava o espírito.
Desejaria que Peter se regalasse, que tivesse um justo prémio para a vitória que sabia que ele conquistara.
XVIII
nos dias subsequentes, Peter caiu numa espécie de apatia - que devia ser a reação do grande esforço que fizera.
Antes de um mês não poderiam ser conhecidos os resultados dos exames e durante todo esse tempo ele nada tinha a fazer. Seu humor modificou-se; andava pela casa queixando-se
do calor e da poeira das ruas da cidade, lamentava não possuir amigos ou, em sua falta, uma bicicleta em que poderia afastar-se em passeios pelo campo, em busca
de melhor temperatura. Lucy não admitia a hipótese de que Peter acamaradasse com a rapaziada do distrito e sabia que, no momento, não lhe era possível comprar-lhe.
uma bicicleta. Inquietou-se por vê-lo, uma tarde em que voltava do escritório, sair do café Demario onde fora, muito justificavelmente, matar a sede tomando uma
bebida gelada. Via com apreensão que, às vezes, seus ombros tendiam a curvar-se. 257
Pensou com ansiedade que a saúde do filho poderia ressentir-se da falta de uma mudança de ares.
De repente, quando estavam nisso, chegou uma carta de Edward, carta muito expressiva, na qual dizia que desejara muito fosse Peter passar no Presbitério alguns dias
das suas férias, mas que, em vista de lhe terem recomendado, por causa do fígado, uma viagem à Madeira, isso não seria possível. Como prova evidente de pesar, enviava-lhe
um presente de cinco libras.
Aquilo era muito de Edward; que detestava que lhe pedissem dinheiro, preferindo dá-lo espontaneamente quando bem o entendia. Lucy ficou encantada com o presente.
Seu primeiro impulso foi o de guardar a nota de cinco libras; depois pensou em comprar coisas necessárias. O quarto de Peter precisava de um tapete e a cama em que
ela dormia estava com uma das molas quebrada. Afastou, porém, esses pensamentos, assaltada por uma súbita ideia. Aquele excesso de estudo de Peter, seu atual ar
abatido, o ar enervante da cidade que os afetava a ambos, a convicção de que mereciam um período de repouso e o fato de acreditar que, apesar da sua recente admissão
em S. S., poderia obter dez dias de férias em junho, decidiram-na. Viu-se à beira-mar com Peter, e a visão do mar azul e murmurante transportou-a. Sem dúvida não
poderiam ir à Madeira, mas teriam umas férias bem merecidas, Peter e ela, mesmo que aquilo fosse custar todo aquele dinheiro que tinha nas mãos.
Quando expôs essa ideia ao filho, viu brilharem-lhe os olhos e erguerem-se-lhe os ombros. Imediatamente Peter deixou de amaldiçoar o tempo, que passou instantaneamente
a ser ideal para praia. Depois de muitas discussões alegres e de muitas indagações, resolveram-se a tomar o conselho de Miss Tinto, que lhes recomendara uma visita
a Doune, onde conhecia uma senhora chamada Miss Tweedy que mantinha uma pensão muito razoável nos preços e célebre pelo asseio.
Lucy escreveu-lhe sem demora e Miss Tweedy apressou-se em responder que teria muito prazer em receber Mrs Moore e o filho pela módica soma de trinta e cinco shillings
semanais. Assim, tudo ficou decidido e Lucy começou metodicamente a fazer seus preparativos de viagem.
A manhã seguinte do dia da partida estava lindíssima. Missis Finch apareceu inesperadamente no momento em que o carregador levava a mala de Peter - que continha
as
coisas de ambos - e prometeu corando, cheia de
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generosidade, que tomaria conta da casa. Lucy, indulgente naquelemomento, apreciou muito aquela gentileza.
Agradeceu muito e partiu com Peter para tomar na. esquina o bonde tão familiar, o que nesse dia fez com insólita emoção. Não parecia aquele mesmo veículo que a transportava
diariamente à White. Parecia ter agora um agradável colorido vermelho e até os botões da farda do condutor cintilavam.
Na estação o carregador esperava-os ao lado da mala, livrando-se da suspeita que concebera a respeito da sua parcimônia. Em pouco tempo viram-se no trem. Partiram
e Lucy, encostando-se na poltrona, teve uma sensação maravilhosa de liberdade. Depois de deixarem o calor sufocante da cidade, aquela jornada era como uma embriaguez,
uma nova face da beleza da vida, o despertar quase penoso das suas, aspirações de alegria.
Finalmente atingiram Doune. A casa de Miss Tweedy,, que eles tiveram dificuldade em achar, longe de ter as seduções de um grande hotel, ficava na parte mais sossegada
da cidade. A própria Miss Tweedy era uma criatura sossegada,, com uma cabeça pequena e um pescoço comprido e branco, grandes olhos cheios de pessimismo e uma voz
de inflexões suaves.
- Vejo que acertaram com a casa, disse gentilmente,
- Acertamos, realmente, respondeu Lucy com vivacidade.
- Toda a gente me conhece, continuou Miss Tweedy" com um modesto orgulho, sou muito respeitada em toda a cidade. Espero que não sejam exigentes com a comida - -
e fixando-os com um olhar sem brilho explicou: - A comida que forneço é simples. A mais simples do mundo. Tudo o que uso, porém, é de primeira qualidade.
Depois, com um suspiro, Miss Tweedy assinalou as horas das refeições, indicou a rua onde ficava a igreja local, predisse uma baixa de temperatura, preveniu-os contra
os perigos dos banhos tomados em horas tardias e, depois de outros conceitos, todos pessimistas, desapareceu da sala.
Um silêncio expressivo seguiu-se à sua partida.
- Felizmente é tudo muito limpo, disse Lucy depois de algum tempo.
- Mas a dona da casa abate um pouco a moral do indivíduo ! observou Peter.
Entreolharam-se e, gradativamente, despertou-lhe no rosto um sorriso que se foi alargando até que se transformou em alegre riso.
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- Peter, não ria alto! Ela pode ouvi-lo, ralhou Lucy ainda sorrindo.
Miss Tweedy, porém, ganhava muito quando mais conhecida. Alguma coisa em seu pessimismo impedia-o de ser depressiva. E sua cozinha não poderia ser suplantada.
O tempo desmentiu-lhe completamente os vaticínios, conservando-se esplêndido numa sucessão de dias que passaram com uma suavidade de sonho. Lucy pouco fez. A indolência
tornara-se sua principal alegria. Deixava-se ficar sentada nos rochedos mornos da praia olhando o mar, aquela imensa extensão de água que se agitava inquieta, aquelas
ondas que vinham incansavelmente lamber as pedras aos seus pés. O motivo intermitente, persistente, da água, era como o motivo da vida: tornou-se para Lucy uma inspiração,
uma inspiração não realizada, que seu corpo dali tirava inconcientemente, enquanto assim se achava passivo e lânguido.
Ali perto Peter se banhava todas as manhãs. Costumava saltar de um trampolim, instalado numas rochas altas, para uma profunda e verde piscina, e quando mergulhava,
Lucy tinha prazer de ver seu corpo varando o ar claro e fresco da manhã.
Depois que se vestia, vinha ter com ela, os cabelos ainda molhados, a toalha masculamente enrolada em torno do pescoço; e depois de lhe perguntar se havia notado
progressos na sua performance, davam juntos um grande passeio ao longo da praia. Estavam quase sempre juntos. Ocasionalmente, Peter parecia desejar um campo mais
dilatado de divertimentos, dirigindo um olhar de inveja aos jogadores de golf que passavam carregando os tacos ao ombro. Em certos momentos, manifestava-se contrariado
com a pequena quantia que tinha que gastar. Lucy, porém, dava-lhe o máximo de que podia dispor. E na maior parte do tempo ele se mantinha de bom humor. Assumia para
com a mãe uns ares de indulgência e, quando durante os passeios que faziam, qualquer um apreciativo olhar masculino se voltava para ela, ele dizia:
- Você é ainda uma mulher bem bonita, sabe, mamãe? Deu para mexer com ela, dizendo que percebera uma
admiração apaixonada da sua parte pelo diretor de uma troupe de pierrots que dava espetáculos na localidade, e repreendia-a por se deixar consumir por aquela secreta
paixão não correspondida.
Durante a tarde, depois do chá, passeavam de braço dado e iam quase sempre ver os pierrots. A entrada era barata e a diversão excelente, o repertório da Vai Pinkerton
era
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reputado o melhor que se liavia visto na cidade e o próprio Vai, que durante o dia passava perfeitamente despercebido, destacava-se durante a noite do resto da troupe
por uma larga fita vermelha que atravessava diagonalmente a alva camisa do seu trajo de gala dotado de uma distinção continental. Vai Pinkerton possuia Uma aristocrática
aparência e uma voz de barítono cheia de expressão. Sua arte culminava no momento em que, com uma das mãos romanticamente estendida e a outra posta eloquentemente
sobre o coração trespassado pela fita vermelha, cantava:
"Daisy, Daisy, dá-me logo o teu "sim,", Que eu estou doido de o mor por ti. Não será um casamento elegante, Pois não podemos alugar carruagem; Mas tu ficarás muito
linda Postada bem alto no assento De uma bicicleta feita pra dois."
- Deixe estar que eu arranjo a carruagem para vocês, mamãe, dizia Peter com ar complacente: não se incomode com isso.
Muitas vezes mandaram pedir ao admirável Vai que cantasse "Daisy" e quando ele vinha anunciar que ia cantar "a pedido", os dois tinham a impressão de que a canção
era exclusivamente para eles.
Depois do espetáculo, regressavam ambos, de braço dado, cantarolando o estribilho, enquanto o murmúrio do mar fazia o acompanhamento. O ar salino e fresco fustigava-lhes
as faces, as luzes do porto distante refletiam-se na água negra, a areia em que pisavam rangia suavemente. Quando passavam defronte do Hotel Marine, cujas iluminadas
janelas estadeavam magnificência, Lucy, muitas vezes, apertava o braço do filho fazendo-o parar e, ali, ocultos na sombra, observavam a brilhante vida que luzia
lá dentro. Mesas com abat-jours róseos, os criados que se inclinavam obsequiosos, a curva de um ombro de mulher surgindo de um vestido de noite, toda a representação
de uma existência refinada ali se patenteava. Cheios de interesse naquela oculta espionagem, mãe e filho sentiam-se tomados de uma secreta aspiração por aquela vida,
a dela passiva, e a dele, cheia de avidez. Lucy via-se, no fim da grande luta que ainda tinha que manter, movendo-se naquela atmosfera de luxo, e Peter, de lábios
entreabertos, colocava também seu futuro naquele cenário de elegância e bem-estar.
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Quando, enfim, se afastavam, mergulhados em seus pensamentos, não falavam quase: Lucy, porém, sabia que reinava uma .união mais estreita entre eles, um alvo comum
que os ligava mais intimamente.
Durante esse feliz período, Lucy deixou quase de considerar Peter um filho. Sua companhia ocupava-lhe os dias; bebia-lhe as palavras, observava-lhe o sorriso e adivinhava-lhe
o mais possível os desejos. Satisfazer os caprichos do filho tornou-se-lhe a maior alegria, apesar de ocultá-lo sob uma espécie de aspereza. Nunca deixava transparecer
seu imenso carinho nos gestos. Não queria estragá-lo. Suas dádivas não eram filhas da indulgência, eram o sinal de uma afeição que exigia em troca uma afeição igual.
Tais eram as relações entre eles durante esse período em Doune. E quando, por fim, como todas as férias, aquelas terminaram, essas relações pareciam sólidas e permanentemente
estabelecidas entre os dois. Lucy regressou à rua das Flores com um sentimento de segurança, forte para as batalhas do futuro.
Em Doune, pouco haviam falado do resultado dos exames, evitando mesmo esse assunto por uma tácita certeza do êxito. Contudo, como se aproximasse o dia em que seriam
publicados os resultados, uma excitação febril apoderou-se novamente dela. E quando chegou afinal a manhã desse dia, a rigidez das suas mãos traiu-a enquanto se
vestia.
Era um sábado e Peter resolveu ir para a Universidade às onze horas, dizendo que mais ou menos a essa hora seriam afixados os resultados gerais, o que lhe permitiria
vir trazer à sua mãe a notícia, boa ou má, quando ela voltasse na hora do almoço.
- A notícia tem que ser boa! disse Lucy rapidamente. Apesar de já pronta para partir, hesitava antes de transpor a porta.
- Também acho, respondeu Peter. O fato de não quererem revelar suas apreensões fazia-os sentirem-se constrangidos um com o outro; Foi com esforço que ela articulou:
- É melhor que eu vá andando para não chegar atrasada.
Ao atingir a rua, sentia-se inquieta, tomada de uma grande impaciência. Havia esperado tranquilamente um mês inteiro, e agora essas poucas horas que a separavam
do almoço pareciam-lhe um prazo interminável. Na esquina viu o vendedor de jornais ocupado em fixar os placares matutinos, e
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quando por ali passava, por uma associação de ideias, parou abruptamente e comprou o Glasgow Heralã.
Depois de se instalar no bonde, sentiu as mãos tremerem-lhe enquanto abria as folhas impressas, apesar de se dizer que era impossível que o resultado já estivesse
publicado no jornal da manhã. Percorria com os olhos notícias que julgava triviais: o terremoto do Japão, um ciclone em Bornéu, um assassinato em Leeds, procurando
ansiosa notícias mais sensacionais. Aos poucos, porém, convencia-se de que não mencionavam naquele jornal novidade de real interesse. Estivesse o nome de Peter impresso
ali que imediatamente se destacaria daquele conjunto de palavras inúteis e de letras mortas. Quando já ia abandonar a leitura, saltou-lhe aos olhos a secção de "Notícias
"Universitárias". Logo depois do cabeçalho havia uma lista de nomes. Devorou aquela curta lista com os olhos. Eram apenas vinte e cinco nomes e todos nomes sem importância,
despidos de qualquer significação.
Não seria a lista que procurava. Leu o princípio do parágrafo e imediatamente seu espírito procurou outra explicação. Aquela era a lista, porém devia ter havido
engano. O nome do seu filho havia sido omitido daquele miserável registro. Era engano de impressão. Lucy enguliu em seco e leu tudo novamente. Vinte e cinco candidatos
bem sucedidos em duzentos competidores para as vagas de lugares gratuitos. Todos os detalhes eram dados sobre esses presunçosos rapazes: as bolsas que lhes caberiam,
e até seus estúpidos, pretensiosos e bombásticos sobrenomes. Aquilo encheu-a de amargura. Tornava-se evidente o que acontecera. Um longo suspiro saiu-lhe do peito
como si fosse a expiração de todas as suas esperanças. O jornal deslizou-lhe aos pés, os olhos tornaram-se-lhe fixos em frente. A intensidade do seu desapontamento
tornava-a fisicamente enferma. Saltou tristemente do bonde. Em vez de andar por aquelas ruas movimentadas, desejaria deitar-se e chorar.
Nada disse no escritório e enquanto trabalhava, não podia deixar de pensar em tudo aquilo sem compreender muito bem o que se passara. No seu íntimo, ainda existia
alguma esperança. A carreira de Peter no colégio fora satisfatória. Ele trabalhara muito. Exprimira satisfação pelo que se passara com ele no dia do exame. Ela,
por seu lado, rezava tanto! Aquilo tudo a desnorteava.
Nessa confusão de espírito, apressou-se em voltar para casa logo depois de uma hora. Um único olhar ao rosto do
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filho foi suficiente para confirmar o que temera, esmagando-lhe as últimas ilusões.
Peter estava sentado na cadeira com. a cabeça enterrada nos ombros, as mãos enfiadas nos bolsos, naquela mesma atitude apática em que se deixava ficar, em pequeno,
quando se zangava ou ficava doente em Ardfillan. Lucy sabia que ?aquela atitude de abatimento representava o nível mais baixo no barómetro dos seus sentimentos.
- Não se incomode com isso, filho; disse imediatamente esquecendo seu próprio desgosto à vista da aflição que o empolgava. Você fez o que pôde.
- Foi uma trapaça! exclamou Peter abatido, sem querer olhá-la. Essa história toda não passa de uma fraude!
- Que está me dizendo? acudiu ela, vendo suas vagas suspeitas confirmadas por aquela frase.
- Eles não lêem as provas, continuou Peter sombrio. Jogam todas para o teto e a que demora mais a cair é a premiada. Estou lhe dizendo que minhas provas foram ótimas,
esplêndidas, todas elas!
- Talvez as dos outros também estivessem boas, murmurou Lucy. Talvez,. - E pensou paradoxalmente naqueles que haviam confessado não terem feito boas provas.
- É tudo proteção, estou lhe dizendo; depende dos colégios de onde se vem. No meu, não me deram nem uma recomendação, falou Peter amargamente.
- Mas com certeza... - ia avançando Lucy.
- E isso! interrompeu ele, acuse-me logo. Tome o partido dos outros contra mim, depois de eu ter me matado de tanto estudar.
Os lábios de Lucy tremeram e ela passou levemente, carinhosamente, o braço pelos ombros do filho. Ele, porém, sacudiu-a e disse com lágrimas na voz:
- Deixe-me, mamãe, você não pode me deixar sossegado ? Você sabe tanto quanto eu que poderia ter sido classificado. Não é justo o que fizeram.
Ela nada respondeu e deixou cair a mão. Não pensava sinão nele e na sua decepção. Aquele ressentimento, talvez injusto, parecia-lhe muito natural. Por muito tempo
guardou silêncio; depois, com o coração oprimido, pôs-se a andar em torno do quarto sob pretexto de estar pondo em ordem os objetos.
Quando já ía aventurar uma frase, ouviu-se de repente o estalo da tampa da caixa de cartas que se abria e fechava. Lucy olhou hesitante para o rígido perfil do filho
e concluiu,
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pela sua apatia, que aquilo devia ser a confirmação da má notícia: a nota oficial do seu fracasso.
- Vá ver! disse ele sombrio, sem erguer a cabeça, vá ver e leia, mas não me mostre. Estou farto de tudo isso.
Essas palavras provaram que ele tivera a mesma suposição que a assaltara. Em todo caso ela dirigiu a Peter outro olhar compadecido e com melancolia antecipada rasgou
o sobrescrito. Durante algum tempo manteve-se perfeitamente imóvel, depois, levou uma das mãos ao peito e um curto e inarticulado grito partiu-lhe dos lábios. Seu
rosto triste animou-se, seus olhos incrédulos, ainda fixos na carta,, iluminaram-se.
- Peter exclamou. Oh, Peter!
Peter levantou-se e arrancou-lhe a carta das mãos.
- Está vendo? gritou tomado de vertigem. Não pôdedizer mais nada. Seus olhos encheram-se de água. Teve um soluço curto e histérico e sentou-se numa cadeira. Um conflito
de emoções travou-se-lhe no íntimo e seu rosto ia refletindo a surpresa, a estupefação, a alegria, e finalmente, o êxtase.
- O Eeekie Trust, disse Peter surpreso, nunca ouvi. falar nisso.
- Mas eu ouvi, respondeu Lucy. Miss Tinto falou-menisso. Eu incluí seu nome no caso... no caso de você... Oh! não foi esplêndido
Ele olhou outra vez para a carta. Esta dizia-lhe em. forma concisa que havia sido escolhido para o Réekie Trust, que era uma bolsa de vinte e cinco libras anuais
durante cinco anos, criada pelo falecido Kezia Beekie para auxílio aos filhos das viuvas reconhecidamente pobres. com laconicidade quase brutal, informaram-no de
que, apesar dele estar colocado no nonagésimo lugar na lista dos competidores, era o primeiro no preenchimento das condições de elegibilidade para a supracitada
bolsa. Pediram-lhe que se dirigisse a Fullerton Cia., no endereço dado, logo que recebesse a comunicação.
- Não sabia de nada disso, tornou Peter. Como incluiu você meu nome?
- Falaram-me a respeito no escritório, explicou Lucy. Não pensei que fosse preciso, porém, uma tarde, como passasse por Fullerton, entrei e dei todos os dados sobre
minha situação, sobre meu ordenado.
Peter fixava-a.
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- Ao menos é alguma coisa, murmurou lentamente.
- Vencemos, apesar de tudo, exultou Lucy. O rosto fizera-se-llie corado, as palavras brotavam-lhe dos lábios: - Já não sabia o que havíamos de fazer! Estava desesperada.
Oh! não é maravilhoso ?
Aquela alegria contaminou-o, mesmo assim ainda disse zangado:
- Gostei daquele topete! Porem-me no nonagésimo sétimo lugar! - E envolveu a decisão da banca examinadora num último e chistoso desprezo.
- (De qualquer modo é maravilhoso! insistiu ela; conseguimos o que desejávamos, e lembre-se de que você foi classificado antes de mais de cem outros candidatos.
Aquele aspecto da questão, que ele não havia ainda considerado, impressionou-o (favoravelmente.
- Você tem razão, disse: Seu orgulho consolou-se. Jogou-se para trás, na cadeira, fixando os olhos no teto, e exclamou: - Venci a despeito deles!
Nada mais que isso podia ser dito. Tinha visto tudo perdido e agora tudo fora recuperado. Aquele momento de angústia que haviam sofrido deixara-lhes, ao ser miraculosamente
conjurado, uma sensação de bem-estar.
Uma serena confiança no futuro estabeleceu-se em Lucy e seus olhos brilharam de felicidade.
-" XIX -
A VIDA, que agora parecia maravilhosa, decorria alegremente para ambos. Tinham conversas íntimas nas quais discutiam as coisas da Universidade. De noite Peter dava
passeios a largas passadas e os floreios da bengala e o aprumo da sua cabeça, traíam a consciência que tinha de que seria em breve um vulto de projeção. Era um rapaz
que se achava no limiar das mais obscuras ciências.
Uma vez em que regressava mais tarde que de costume de uma dessas excursões, surpreendeu-se por encontrar sua mãe sentada na cadeira de balanço com uma carta aberta
nas mãos. Tinham recebido três cartas num mês, o que queria dizer três mais que de costume.
- Você nunca poderá adivinhar de quem é esta carta, Peter, disse Lucy balançando-se; vem de Lennox.
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Aquele nome não causou impressão alguma a Peter. A lembrança que tinha de Lennox era vaga e uma carta enviada por ele era um mesquinho incidente na vida alegre que
levava agora.
Lucy olhou-o corando um pouco e continuou:
- Ele quer vir até aqui visitar-nos.
- Não diga! murmurou Peter que assoviou depois significativamente. E acrescentou irónico: - Deixe-o vir e daremos uma festa aqui no palácio.
Lucy percorreu com os olhos o palácio - essa era agora satírica denominação da sua casa dada pelo filho - e disse lentamente:
- Como posso convidar alguém para vir aqui, realmente? É um contraste muito grande com o modo por que vivíamos em Ardíillan onde ele costumava ir. - Durante algum
tempo a recordação da sua elegante vila entristeceu-a. De repente seu rosto alegrou-se: - vou dizer-lhe que se encontre comigo para tomarmos um chá no Chisholm,
exclamou decidida. Sim, é exatamente o que vou fazer!
Peter começou a rir.
- Você e o velho Lennox, mamãe, passeando juntos! Essa é boa! muito boa.
Ela observava-o meio zangada, meio risonha:
- Por que está você rindo assim? protestou. Pois vou me encontrar com ele, sim! Não é má criatura apesar de já ter sido essa a minha impressão.
De fato, ela sentia um vago e incompreensível desejo de tornar a ver Lennox, agora que havia encaminhado definitivamente o filho em sua carreira. Ao cabo de um momento,
pegou na pena e escreveu-lhe uma resposta.
Durante os dias que se seguiram Lucy não esqueceu o caso, Aquilo estava constantemente em seu espírito despertando agradavelmente algum instinto há muito tempo relegado
e esquecido. Surpreendeu-se, por vezes, com aquele alvoroço que acabou por explicar como sendo causado pela parcimônia de divertimentos em sua vida presente.
Na sexta-feira à "noite, passou em revista seu guarda-roupa, inspeção que foi cumprida tristemente. O vestido cinzento era agora de uso constante e ela já estava
aborrecida dele. Além disso, exibia um brilho suspeito na barra e nos punhos.
Está desalinhado! pensou afastando-o um pouco de si com um olhar crítico. Contudo ela era uma criatura de recursos. Possuía uma gola de rendas, Cluny legítimo, um
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presente de Frank guardado há muito tempo, que exumou da gaveta depois de alguma busca. A gola, depois de lavada, passada a ferro e cosida sobre as lapelas do seu
costume, deulhe um aspecto agradável que alegrou a severidade do vestido, imprimindo-lhe um tom adequado à .ocasião e à estação. Quando, na tarde de sábado, Lucy
veiu mirar-se ao espelho depois de vestida, notou que estava muito bem. De fato! Assim arranjado, o velho vestido cinzento não estava de todo mau.
Peter, que havia observado aqueles arranjos com um olhar onde a ironia era suplantada pela curiosidade, preparava-se também para ir assistir a uma partida da foofball.
Lucy, lendo nesse olhar uma indagação, vestiu-se com ar contrafeito, prometendo voltar a tempo de preparar seu jantar.
Saiu e caminhou sem pressa, porque, em contraste com aquele histórico primeiro dia em Saddleriggs em que chegara cedo e ele atrasado, resolvera ser ela a chegar
atrasada naquele dia.
Era um dia agradável de sol quente, com um céu de um doce azul. As ruas estavam tranquilas e haviam sido regadas para evitar a poeira. O humor de Lucy estava agradável,
também.
Quando chegou ao local combinado, Lennox já ali se achava, parecendo, pela expressão impaciente que trazia, estar ali já há algum tempo, tal como ela o desejara.
- Está adiantado ou eu estou atrasada? perguntou ela com vivacidade.
- Estou adiantado, creio eu, respondeu Lennox tirando o chapéu com um sorriso meio forçado. E o carrilhão do relógio de Tron, dando o quarto de hora, desmentiu-o
no mesmo momento.
Lucy sorriu por ver invertidas assim as relações que haviam tido.
- Muito bem! disse. Que tal lhe parece a vida de homem desocupado?
?- Não é lá essas coisas)" observou ele cofiando a barba. Não, não é grande coisa, afinal!
Houve um silêncio entre eles, enquanto se mantinham um pouco tímidos ali na calçada; de repente, endireitando os ombros, Lennox aventurou:
- Então, vamos tomar uma chícara de chá comigo? Sua carta dizia...
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- Terei muito prazer nisso, acudiu Lucy calorosamente. Estou ansiosa por uma chícara de chá.
Aquela atitude satisfez Leiinox, que lhe tomou o braço apertando-o como antigamente. Juntos, entraram na casa Chisholm na rua Alston e sentaram-se à única mesa que
se achava vazia na ocasião. Mal se haviam instalado, uma garçonnette aproximou declarando:
- Essa mesa está reservada.
Lennox ergueu os olhos para ela e respondeu tranquilamente :
- Não havia aqui aviso algum e esta é a única vaga.
- Mas está reservada, apesar disso, tornou a garçonnette que parecia estar de mau humor.
A mão de Lennox dirigiu-se sugestivamente para o bolso, de onde tirou alguma coisa que passou ainda mais sugestivamente para as mãos da moça.
- Muito bem, senhor, disse está assumindo um tom diferente. vou ver o que se pode fazer.
E afastou-se sorrindo.
O olhar de Lennox procurou o de Lucy com uma ingénua satiabe
sfação:
- É o valor do dinheiro! Estou começando a modificar minhas ideias, sabe. Pensava que o dinheiro era bom. para guardar, mas vejo que é um prazer gastá-lo.
Lucy não respondeu, mas pensou que era realmente um prazer ter uma vida assim folgada. Veio o chá, que foi servido em silêncio.
- Não está aborrecida comigo por ter escrito? aventurou Lennox por fim.
- Em absoluto! protestou ela com um sorriso franco.. Esqueci tudo, agora que arranjei novamente minha vida, mas talvez eu não tivesse sido muito razoável no tempo
em que fui despedida.
Dissera deliberadamente aquela frase com uma espécie de provocante zombaria. Ele, porém, respondeu com seriedade:
- Não quero falar do tempo em que a despedi. Agora os tempos são outros. Devo dizer-lhe que foi um terrível choque para mim ter que me retirar dos negócios. Nunca
pensei que fosse me sentir assim! Para mim, isso foi a mesma coisa que é para um homem qualquer ver-se viuvo. A princípio senti-me desnorteado. - Calou-se e sua
mão, distraidamente, foi procurar, no bolso do colete, um lápis ausente ; depois continuou: - Aos poucos, porém, fui me 269
acostumando e comecei a ver que há outras coisas na vida além de se fechar um bom negócio.
No meio do barulho e das conversas na sala, ela o olhou em silêncio, brincando distraidamente com a colher, constatando que ali, ante ela, se achava um caso estranhamente
patético: um homenzinho solitário e sem atrativos, que construíra sua vida sobre uma base única, muito diferente daquela em que ela construíra a sua, e que via agora
essa base ruir sob os pés. Fora um erro. Sim, um grande erro! Sua própria vida não poderia desmoronar-se assim!
- De modo que resolvi dizer-lhe uma coisa, continuou Lennox com uma inflexão curiosa na voz, uma coisa importante.
Lucy esperou. O rosto dele, que costumava ser tão fechado, parecia naquele momento extraordinariamente revelador.
- Está se sentindo bem no seu emprego atual? perguntou depois de algum tempo, observando-a com atenção.
- Muito bem, respondeu ela tranquilamente.
- Mas não é prudente que . continue a trabalhar como o está fazendo, afirmou ele. Não é coisa que lhe sirva.
- Uma pessoa pode fazer seja o que for quando o quer. Além disso eu o (faço por meu filho.
- Abandone isso, disse lentamente Lennox com um ar grave.
- Abandonarei tudo quando Peter estiver formado. Não levará muito tempo. - E com um sorriso confiante acrescentou: - Tem alguma sugestão melhor para mim?
- Abandone tudo, repetiu Lennox mais lentamente ainda e com um ar ainda mais grave.
Lucy deixou de brincar com a colher, ergueu a cabeça e olhou para Lennox com a atenção subitamente despertada. Estava estupefata, não tanto pelas suas palavras,
como pela expressão que tinha naquele momento. Sua respiração paralisou-se.
- Já não sou jovem, disse ele, contudo ainda não me sinto velho, e sou saudável. Sinto-me vivo como um pardal. E tenho dinheiro. Queria Alguém que me ajudasse a
gozá-lo. Além disso, vivo isolado, terrivelmente isolado, agora que me retirei dos negócios.
Calou-se vendo que Lucy lia seus pensamentos.
Ela sobressaltou-se. Era incrível, mas assim era. Ali naquela casa de chá - lugar menos adequado a uma
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declaração romântica - Lennox propunha-lhe casamento. Veio-lhe um súbito acesso de riso, um impulso que ela só conseguiu dominar à custa do seu rosto estranhamente
patético.
- Creio que sempre a quis, continuou, como si lhe custasse muito dizer aquilo. O sentimento reprimido através dos anos vibrava nessas palavras e havia alguma coisa
de trágico em seu apelo.
- Mas é impossível, declarou ela vagarosamente. Pertencemos a religiões diferentes.
- Sou um homem de ideias largas, respondeu ele imediatamente. Não haverá objeção nenhuma da minha parte quanto a isso.
Lucy olhou para ele séria, pensando naqueles dias em que ele se sentara à sua mesa em Ardfillan; sentia-se estranhamente comovida por aquela declaração. Percorrera,
porém, um longo caminho desde aqueles dias em que sorria para ele no jardim da sua casa. Abanou lentamente a cabeça.
- Não pode ser. Tenho meu filho, compreende. É realmente impossível.
Lennox estremeceu.
- Como! exclamou incrédulo. Então não quer? nãoaceita ?...
- É que não posso! respondeu ela.
?- Está falando sério? gaguejou ele. Sou um homem de posses. Creio que ignora quanto eu valho. Posso comprar-lhe toda espécie de coisas.
Por um segundo apenas, ela hesitou. Sabia que ele era rico, que era um homem decente, que representava conforto e segurança. Si houvesse falado naquele último dia
no escritório, quando ela estava mergulhada no desespero, sem dúvida o haveria aceito. Ele atrasara-se, porém. Agora, o caso era diferente. Seu filho estava encarreirado
para o sucesso, sua resolução seria inabalável. Teria que lutar até seu último triunfo.
- Pense durante algum tempo, pediu Lennox subitamente, quase súplice.
- Isso nada adiantaria, disse ela compadecida; e a essas palavras a tensão entre os dois desfez-se.
(Outra vez Lucy ouviu vozes e os risos, o tinir das chícaras e pires de porcelana. Lennox não insistiu. Estava abaladíssimo; mas, procurando encobrir sua decepção
com o risinho que lhe era habitual, observou:
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- Creio que está agindo mal, em todo caso não há inconveniente em perguntar...
- Não, respondeu ela séria, calçando as luvas. Sinto. muito, apenas.
- Deixe-me dizer-lhe uma última coisa, disse Lennox mais firmemente, com o rosto corado. Em seu lugar, eu não me sacrificaria muito por esse seu filho, sabe?
Lucy sorriu-lhe gentilmente e, atribuindo sua frase a um despeito justificável, preferiu ignorar essas palavras. Ela. era ela e Peter era Peter. E estavam muito
acima do resto.
- E si não conservar seus amigos ou não mantiver outros interesses, vai se concentrar demasiadamente sobreuma coisa só; e isso.é mau. Aprendi-o à minha custa.
- Nós dois continuaremos sempre a ser bons amigos,, não é mesmo? perguntou ela.
Lennox olhou-a de um modo curioso, sem responder;, depois afastou a cadeira e levantou-se. Deixaram a casa de chá sem dizer uma palavra.
Uma vez na rua ele falou:
- vou apanhar meu trem. Não tenho mais nada a. fazer.
A ideia de que ele ia deixá-la deu a Lucy um estranho arrependimento; agora, paradoxalmente, não queria que ele se fosse. Mas como e sob que pretexto poderia detê-lo?
- Quando o verei novamente? disse parando e voltando-se para ele antes de entrarem na rua que ia dar à estação.
- Não sei... não sei! respondeu ele. Lucy, porém, não compreendeu o estranho e penetrante olhar que ele lhe dirigiu naquele momento.
Instintivamente Lucy estendeu-lhe a mão. A dele estava quente.
- Então, adeus.
- Adeus!
Ela ficou de pé contemplando seu vulto que se afastava, como o fizera dantes do portão da sua casa. E naquele momento lhe veio uma crise de indescritível nostalgia.
Teve um súbito impulso de correr-lhe atrás; voltou-se no entanto,, e pôs-se a caminhar vagarosamente.
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tinha vinte e cinco shillings por semana e isso não era muito. Além de todas as despesas da casa, que consumiam a metade dessa soma, tinha que prover às necessidades
de duas pessoas com a outra metade. Para ela, aquilo era uma luta, uma amarga luta que tinha de manter. Essa luta, porém, não seria eterna. No futuro, teria conforto.
Não se julgava mártir. Rejubilava-se com o fato de saber que o período das suas privações era limitado.
Era uma esplêndida e prudente dona de casa. Privava-se "pessoalmente de . quase tudo, pensando em Peter. Como iria permitir-se certos gastos quando a carreira do
seu filho dependia de quase cada penny que passava através dos seus relutantes dedos? Sempre julgara o filho delicado de saúde e, para combater essa tendência, alimentava-o
o melhor possível. Para isso não media sacrifícios e fazia às-vezes longas caminhadas para conseguir-lhe o bom e... barato. Havia momentos em que, ao cozinhar-lhe
o jantar, sentia surgirem em si instintos selvagens e primitivos. O cheiro da comida que costumava preparar para Peter subia-lhe às narinas causando-lhe um agudo
mal-estar e trazendo-lhe água à boca. O aspecto da carne assada e seu caldo fazia seus lábios tremerem como o focinho de um cão famélico. Ela, porém, dominava-se.
Não se deixaria vencer! E quando seguia os movimentos da faca e do garfo do filho enquanto comia, era um deleite constatar a excelência do seu apetite. Isso tranquilizava-a
quanto à saúde dele.
Assim era, também, quanto a sapatos e roupas. Os sapatos de Lucy ela os escolhia com as solas mais grossas que podia obter, o que os tornava pesados e toscos. Comprava-os
em uma sapataria modesta perto da rua "White e fazia ainda colocar protetores de metal para torná-los ainda mais duráveis.
com Peter, era diferente. Gostava de bons sapatos e preocupava-se com as roupas. Conhecia, entretanto, o valor do dinheiro e sabia como gastava até o último penny.
A história do "garro" que tivera quando pequeno, recomeçara agora. Mantinha um pequeno livro de contas, descobrira o modo de ser económico adquirindo livros em segunda
mão e era, em tudo, exato, escrupuloso, sem prodigalidades. Aquele era o seu dinheiro e Peter sabia exatamente o que fazer com ele.
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Lucy achara, porém, que ele devia vestir-se melhor para frequentar a Universidade e, assim, seguindo os conselhos de Miss Tinto, que era ótima conselheira - conseguira
de um alfaiate chamado Ward, que cortasse uma roupa adequada ao esbelto corpo de Peter e à sua bolsa. Escolheram, os três, meticulosamente, uma bela fazenda que,
depois de cortada, caía muito bem no corpo.
Peter tinha cuidados com o novo terno, trocando-o pelo velho quando chegava da rua, pendurando meticulosamente o casaco nas costas de uma cadeira e deitándo-se todas
as : noites sobre as calças estendidas entre os colchões.
Logo que chegou a outra remessa da sua bolsa de estudos, e depois de feitas as despesas obrigatórias, Peter achou natural que o restante fosse aplicado em enriquecer
seu guarda-roupa. Outro terno e um sobretudo de meia estação chegaram em grandes caixas para a rua das Flores, 53. Peter tornou-se um rapaz elegante, objeto de admiração
da sua mãe, da senhoria, Missis Gollins, e de Bessie Finch. Tornou-se também uma figura de projeção no café Veneziano, de Demario.
Uma vez, Missis Cóllins, vendo seu elegante vulto desaparecer escadas abaixo, dissera a Lucy:
- Parece um duque. É um crime pensar que qualquer dia vai começar a fumar e a se meter com raparigas como os outros!
Lucy aceitou o justo elogio e não deu importância ao ridículo vaticínio.
Não tinha apreensões. Conhecia o filho, sua constância, sua pureza de coração, sua lealdade para com ela. Outros rapazes talvez pudessem prevaricar e cair. Peter,
porém, era seu filho, e este fato, apenas, era suficiente.
Ele não se tornara ainda o presidente da União, mas seus progressos, como sua conduta, eram bons e ela os acompanhava cheia de um apaixonado interesse. Aquilo tornou-se
para ela a fonte de onde tirava todo conforto e satisfação. Durante as longas noites em que se achavam juntos, ele era levado, em certas e preciosas ocasiões, a
fazer-lhe inteiras e íntimas confidências. Assim, ela "seguia, encantada, suas aventuras zoológicas, desde a insignificante ameba, acompanhava-o em suas profundas
pesquisas químicas com o nitrato de prata e os cloretos, ouvia as maravilhas da botânica, e física, os princípios nunca antes suspeitados da gravidade. Os olhos
brilhantes de Lucy fixavam-se nos lábios do filho. Bebia-lhe as palavras. Parecia-lhe vê-lo ao microscópio ou
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com o escalpelo na mão, inclinado sobre uma peça anatómica. Sentia o calor das fortes chamas azues dos bicos de Junsen. Ouvia a voz dos professores e testemunhava
os gestos dos seus colegas. Vivia-lhe a vida, não apenas quando ele falava, de noite, das suas realizações durante o dia, mas também durante seu dia de trabalho,
quando via a glória de um raio de sol batendo num miserável pedaço de quintal. Lembrava-se dele e aquele pensamento consolava-a de aborrecimentos e fadigas. O carrilhão
da Universidade, ao soar, transportava-a para ele, unindo-os na afeição e na identidade de propósitos.
Cedo, contudo, Peter passou a estudos perto dos quais as primeiras pesquisas não passavam de meros brinquedos de criança. Aí, naturalmente, ela não podia segui-lo,
nem propor-lhe assistência ao mais leve serviço. Ele sacudia misteriosamente a cabeça, de modo que ela se sentia uma intrusa em uma região que era tabu. Havia momentos,
porém, em que ele fazia-lhe gelar o sangue com algum detalhe mórbido da sala de anatomia que a terrificava. Admitindo sua desenvoltura de estudante, nunca ela pôde,
todavia, apoiar inteiramente aquela atitude para com os infelizes que acabam desse modo, sobre a mesa de mármore. Para Lucy, um tal fim, trágico em seu fracasso,
resumia a mais terrível calamidade da vida. Uma vez teve um terrível pesadelo, cheio de horrores da câmara mortuária. Morrer vencida e anónima! Ser estendida sobre
a lage fatal! Estremecia.
Refletia, porém, que ele não poderia chegar a ser médico sem se revestir de indiferença para com essas coisas. Além disso, o sucesso que obtinha nos exames justificava
os meios que levavam ao grande e glorioso fim.
Quando Lucy viu o nome de Peter - o preto no branco
- na lista dos promovidos ao segundo ano, teve a prova positiva de que soubera encaminhá-lo. Uma doce justificação das suas ações encheu-a de exaltação. "Isso há
de lhes moostrar!" pensou exultante, incluindo assim todos os que haviam impugnado o critério da sua conduta.
Sentiu-se orgulhosa e seu justificável orgulho era aparentemente partilhado por Edward. O reverendo, que havia lido o resultado dos exames do sobrinho no Herald,
sentiu-se satisfeito com essa nova glória para o nome dos Moore, achando também que aquilo redundaria em maior importância para sua posição eclesiástica e popularidade
na diocese.
- Será que devo ir mostrar a notícia ao Bispo? perguntou ele satisfeito, enquanto tomava o chocolate matinal.
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Ao que Miss O Regan respondera cheia de unção:
- Ele precisa saber que se trata do sobrinho do sr. reverendo.
imediatamente, Edward escrevera congratulando-se com o estudante, ao mesmo tempo que o convidava a participar de suas próximas férias que, este ano, não seriam passadas
na Madeira, e sim em St. Andrews, onde o ilustre sacerdote pretendia estimular o fígado.
Lucy ficou encantada. A questão das férias de Peter preocupava-a de há muito, e os cumprimentos do cunhado desvaneceram-na. Não teve pesar por não ter sido convidada
a acompanhá-los; isso não lhe seria fácil; não tinha roupas e, além disso, os dois homens prefeririam estar sós. Ela só poderia atrapalhá-los. Assim, foi com grande
alegria que levou Peter a estação de onde partiu para reunir-se ao tio em St. Andrews. Pensava que a experiência da vida de um bom hotel seria salutar às maneiras
do filho, removendo toda a timidez que lhe ficara da meninice. Sabia também que ele estaria, acima de tudo, em uma companhia impecável e aquilo tirou-lhe todo o
espinho da separação.
Quanto a ela, desde aquela estada em casa de Miss Tweedy, nunca mais tivera férias, o que não tinha importância alguma para uma mulher forte como era... Satisfez-se
em compartilhar, em espírito, com o filho, a sua mudança de ares.
Um postal colorido, de um hotel palaciano, com seu quarto marcado por uma flecha, foi enviado por Peter para a rua das Flores, chegando à hora do almoço dum quente
dia de agosto. Parecia um hotel excelente. Lucy não desgostava de hotéis. Descobriu no postal palmeiras e cadeiras de vime que deveriam oferecer uma frescura sedutora.
Aí, pensou, sentar-se-ia vestida de shantung azul, com um grande chapéu que lhe ensombrasse o rosto e uma sombrinha, naturalmente. Sim! O azul favorecia-a e seria
uma alegria poder abandonar aquele vestido surrado com- toda a sua heróica resistência. Fechando os olhos viu-se sob aquelas palmeiras enquanto Peter lhe fazia servir
um sorvete. Era um sorvete cor de rosa, com folhados, de que ela gostava tanto! E o garçon que trouxe tudo era obsequioso. Lucy estava certa de que ele a julgava
encantadora e fina. Deu-lhe seis pence.
Abriu os olhos, que foram cair sobre os restos de um osso de vitela, que enfrentara durante três dias sem que lhe trouxesse conforto ao estômago. Olhou, porém, sem
rancor para o prato pouco atraente. Seus olhos fixavam-se, agora,
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num futuro não muito distante. Conservava a alegria de viver e, cheia de satisfação, sentiu que o período de privações estava caminhando para o fim.
Alegremente, colocou o postal sobre a lareira tornando-o o objeto mais visível da sua inspiração. Lavou a louça e arrumou a casa. Esta ainda estava como no princípio.
Mas como poderia ser de outra maneira ? Como podia ela mobiliar melhor a casa quando possuia, por vezes, um único shilling entre ela e a miséria? Mas o shilling
ainda estava ali. O resto ela esperaria. Alegremente, ainda, apanhou sua pasta e partiu para o trabalho, para o peremptório bater nas inevitáveis portas, para a
costumeira declaração de que era de "Henderson Shaw", para subir as intermináveis escadas, manusear o sujo dinheiro, encher aquela ridícula pasta, e para ser assaltada
pela vista de toda aquela imundície, nauseada por aqueles horríveis cheiros, conservando, porém, a cabeça erguida e pugnando pelo seu objetivo.
Peter regressou daquelas férias na praia muito queimado e com um jeito quase marítimo. Divertira-se imenso e sua opinião sobre o tio Edward havia mudado bastante.
Dizia agora que ele "não era um pássaro tão mau assim".
Depois de haver deslumbrado sua mãe com o esplendor daquela estada, pergumtou-lhe:
- E você como passou esse tempo todo, Lucy? - Começara a chamá-la assim depois que chegara. Apesar de sentir que era um modo afetuoso de se lhe dirigir, Lucy não
gostava disso.
?- Mamãe, é como você me deve chamar, corrigiu ela.
Nesse outono ele ensaiou libertar-se da tutela. Começou mesmo a barbear-se. Tio Edward, que era esotérico em questões de toilette, chegando mesmo a usar um creme
depois de fazer a barba, dera-lhe uma das suas navalhas, uma nobre lâmina, que embora não fosse de Toledo - pelo menos raspara-lhe os pêlos durante a sua memorável
estada na Espanha.
A ideia de Peter barbear-se impressionou Lucy de um modo curioso. Todas as manhãs ela aquecia-lhe especialmente água numa chaleira, antes que ele despertasse. Sua
dedicação intensificou-se. Às vezes olhava-o cheia de encanto. Tinha novamente um homem em casa.
Chegara o outono. As férias não eram para ela, mas essa mudança de estação era tão refrescante como uma mutação do cenário. Lucy hauria uma nova coragem daquele
ar que revigorava, uma nova coragem que vitalizava mais ainda seu propósito.
277
XXI -"
SABE, mamãe, disse Peter - e quando ele começava a
frase assim, Lucy, por sua longa experiência, sabia que ia ouvir alguma coisa de que não,sabia... - vai Iiaver um baile amanhã.
- Ah! exclamou Lucy sem grande interesse. Por um momento pensou que o filho se estivesse referindo aos bailes de Rove Assembly Rooms, que não passavam de ruidosas
e detestáveis reuniões anunciadas como "Bailes seletos - é facultativo usar luvas, mas é obrigatório usar escarpins". Que outro baile poderia Peter frequentar?
- É oferecido pela União, o Beta Club. Disseram que o buffet é excelente, explicou Peter. Aquela palavra buffet, dita assim depois da magra ceia que havia feito,
assumiu proporções fantásticas!
Lucy não estava se sentindo bem. Tivera um dia fatigante e sua garganta, que - depois de uma laringite que a atacara em Ardfillan - nunca mais fora sã, ardia de
modo suspeito. Agora, com uma meia em torno do pescoço e os pés metidos, enfim, em chinelos de quente feltro, começava a sentir-se confortável. E eis que Peter lhe
falava em um baile!
- Espere até que estejamos mais desafogados para falar em dansas, observou, com mais severidade do que desejaria empregar. Como poderia você arranjar a roupa de
baile e o dinheiro para a entrada? Deve ser caro, estou certa, com o tal buffet.
Repetiu essa palavra mal humorada.
- Não se zangue Lucy, replicou ele pacificamente, arranjei a entrada com um homem do comité, inteiramente grátis, compreende? Conte,comigo para essas coisas! Está
havendo falta de homens, sabe?
Lucy observava-o enquanto ele examinava as unhas.
- Mas o traje de rigor ? disse ela por fim de um modo mais brando.
- Isso podia-se arranjar, talvez.
- Você não iria alugar roupa, exclamou ela rapidamente, assaltada pela degradante lembrança das "Agências de roupas" que pululam nas ruas duvidosas do distrito.
- Eu não consentiria isso.
- Deus do céu! Não! protestou Peter indignado. Um homem que se preza não faz uma coisa dessas. - Depois, suas maneiras voltaram à anterior forma complacente. - Não!
Sei de coisa melhor.
- O que então? perguntou, azedamente. Ele estava provocando-a com aquela insistência sobre um assunto vexatório como esse.
- Passei na alfaiataria do Ward, outro dia, explicou Peter rapidamente. Você sabe que somos os melhores amigos do mundo. Estivemos falando de roupas a rigor. Disse-lhe
que não podia fazer roupa desse género para mim ainda por uns dois anos. Ele queria me dar crédito, mas eu não aceitei. - Aí Peter calou-se, enquanto seus olhos
buscavam aprovação no rosto de Lucy; como esta não falasse, prosseguiu : - Você sabe! Ward é um camaradão. Tem lá na alfaiataria um traje a rigor que pertence a
um homem que está em viagem para a China, deixado para uma reforma. Experimentei-o e fica-me como uma luva. Tem um corte que é uma beleza.
A roupa de um homem que estava na China! Era fantástico!
- Mister Ward não vai emprestar-lhe essa roupa! disse Lucy lentamente.
- Como não! Já me prometeu com toda certeza. Posso tê-la amanhã pela manhã. E ninguém precisa sabê-lo.
- Mas você sabe dansar? indagou ela com desconfiança,
- Oh! eu me arranjo bastante bem, garantiu Peter sorrindo.
Lucy estava aturdida. Viu que o filho arranjara tudo de antemão. Assombrava-se com seu expediente. Não desejava que ele fosse; opunha-se mesmo bastante à sua ida.
Mas Peter estava esperando... esperando uma palavra sua.
- Si você já tem a roupa e a entrada, pode ir, falou por fim, relutante, com uma voz que parecia vir de muito longe.
- Muito bem, Lucy, disse Peter satisfeito, está resolvido! Agora vamos tirar a mesa e começar a estudar.
Lucy tirou a mesa e durante toda a noite seu olhar caía cheio de apreensões sobre o filho. Conhecia, sem dúvida, a retidão incorruptível de Peter; mesmo assim, a
ideia daquela dansa, uma forma de prazer tão diferente do género de férias que tivera com Edward, enchia-a de um vago mal-estar, que
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ela atribuiu um pouco aos arrepios que haviam começado a sacudí-la durante a tarde e que se prolongaram pela noite.
No dia seguinte, sentiu a garganta mais inflamada, mas nada disse a Peter. Este almoçou rapidamente, sem querer notar o que estava comendo. E saíram ambos. Nessa
noite, enquanto Lucy punha água quente no quarto de banho, sem fazer comentários, Peter, lançando uma curiosa olhadela de lado para sua mãe, levou para o quarto
a grande caixa de papelão que trouxera consigo quando voltara da rua.
Pareceu a Lucy que Peter levava um tempo imenso para barbear-se, ele que ordinariamente era tão rápido em fazê-lo. Preocupou-se também com a maneira pela qual teria
arranjado os acessórios, que devem acompanhar um traje a rigor. Parecia-lhe incongruente que ele se vestisse daquela forma em uma casa tão mesquinha e pobre. Seria
que Peter não possuia o senso das conveniências? Seu humor tornou-se sombrio com esses pensamentos.
Contudo, quando ela ouviu seus passos se aproximarem, ficou em expectativa. Peter entrou calmamente, caminhando, garrido sobre os sapatos de verniz, emprestados.
- Então? perguntou tranquilamente. Que tal me acha? Lucy, ao vê-lo entrar, ficara sem palavras, de pé, imobilizada, com as mãos ainda gotejantes da água com que
lavava os pratos, a boca entreaberta. Aquele não era seu filho! Aquela elegante e divina criatura cujo rosto brilhava com um tom translúcido de rosa sobre o imaculado
colarinho e a brancura da camisa, cujas costas revelavam uma elegância flexível nas linhas sensuais do finíssimo estofo preto. Ele suplantava todos! Vai Pinkerton,
o diretor da troupe de pierrots, a despeito da faixa vermelha berrante, era uma nulidade ao pé dele. Lucy estava comovida. Tão comovida que seus olhos se encheram
de lágrimas.
- Oh! Peter! murmurou. Você está maravilhoso!
A visão do filho, em pé no cenário daquela modesta cozinha, metido naquelas roupas emprestadas, "como um jovem Apoio, foi-lhe penosa como uma dor.
Sentia, naquele momento, para com ele, uma emoção que nunca experimentara antes, uma ternura exaltada, admiração mesclada de amor. Frank nunca se vestira assim.
Frank! Não, nem mesmo Frank lhe parecera assim tão belo. Ela nunca amara Frank com aquele amor que lhe inspirava o filho naquele instante.
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- É maravilhoso! balbuciou novamente. Essa era uma das raras ocasiões em que perdera o domínio de si própria perante o filho. - Parece que eu não o conheço...
- A roupa faz o homem, explicou ele. Vendo aquela admiração estampada na fisionomia de Lucy, Peter teve a modéstia de se sentir contrafeito. - Realmente não estou
muito mal, observou, mas você também não precisa exagerar.
- E foi ajustar a gravata defronte do pequenino espelho sem moldura que pendia da parede. Depois puxou os punhos, para praticar e disse: - Estou quase na hora de
ir. - Olhando subitamente para sua mãe acrescentou: - E que tal si você fosse também, Lucy ? Você não ficaria sem dansar enquanto eu estivesse por lá.
Lucy não respondeu, porém suas feições endureceram. Depois de um longo silêncio falou com secura:
- Não chegue muito tarde.
- Não tenha medo! Volto ao dever, amanhã, como sempre. Dê-me uma escovadela, sim, mamãe?
Lucy escovou-lhe a roupa; depois, envolvendo a riqueza da sua roupa no sobretudo e ocultando a brancura da camisa em uma manta de seda cor de vinho que a mãe descobrira
em sua gaveta, Peter despediu-se dela e desceu alegremente as escadas.
Lucy voltou à lavagem dos pratos, abstrata, sem se dar conta do que fazia, achando repentinamente a casa vazia, privada de uma presença quase luminosa.
De súbito, surpreendeu-se ouvindo bater levemente na porta. Por um momento pensou que fosse Peter e correu a abri-la. Não era ele, porém. Era Missis Finch, a vizinha
do lado, que ficou hesitante no limiar.
- Vi que havia luz acesa aqui, disse nervosamente, com uma pálida sombra do seu habitual sorriso. Queria pedir-lhe o favor de me deixar um pouco em sua companhia.
- Em minha companhia? ecoou Lucy. Tinha suas razões para não gostar de admitir pessoa alguma em sua casa; e àquela hora, sobretudo, aquele pedido era muito estranho.
- Sim, implorou Bessie, estou um pouco assustada. Esta noite Mister Finch está fazendo serão na fábrica. Algumas vezes ele só chega depois da meia noite. - Seu rosto
cheio estava pálido na luz mortiça do corredor.
- Entre, então, respondeu Lucy depois de um momento de hesitação. Devia agora alguns favores a Bessie e seu sentimento de justiça impediu-lhe negar-se a recebê-la.
Seu
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tom. no entanto fora frio. Entraram na cozinha. Bessie lançou um olhar rápido e curioso em torno. Sentaram-se uma defronte da outra.
- A senhora é muito gentil por me ter acolhido, murmurou a outra, de sopetão.
- Ora essa! protestou Lucy meio contrafeita.
- Não sei o que foi que me deu! continuou a outra. Creio que foi por ter ficado só durante horas. - Fez uma pausa, mas Lucy, apesar de estar notando sua agitação,
eximiu-se de fazer qualquer indagação curiosa. Houve um silêncio.
- Peter saiu para ir a um baile, explicou Lucy, depois, fazendo um esforço para parecer natural.
- A um baile? ecoou Missis Finch. Seu olhar iluminou-se de um pálido clarão. Eu gostava também de bailes, antes,
- Sim? disse Lucy amável.
- Oh! si gostava! exclamou Bessie, com os olhos subitamente úmidos. Foi num baile que eu encontrei Mister Finch. Estava vestida de branco, nesta noite, e com uma
fita
amarela no cabelo; o cinto era também amarelo. Ele disse que eu estava... - seu rosto gordinho encheu-se de contrações e ela prorrompeu em sentido choro. Inclinou
a cabeça na mesa e deixou as lágrimas correrem. Entre os soluços, articulava de vez em quando queixas e lamentos. - Desculpe-me, sim ?.. . Chego aqui e ponho-me
a chorar desse modo... Mas não posso... não posso ! É John... Meu Johnzinho. .. Gosto muito dele... ?- E interrompeu-se sacudida pelos soluços Lucy teve uma rápida
visão de John, o homenzinho de meia idade, gordo, calvo. Não era nenhum Romeu; contudo era o marido, a fonte e a origem da felicidade de Bessie.
- Mas que é que a aflige? perguntou Lucy afinal.
- É a bebida... a bebida! gemeu Bessie. Eu quis. ocultá-lo durante meses, ,mas agora isso está me sufocando. Ele bebe, bebe. Bebe o tempo todo! Eu não queria acreditar
nisso quando nos casamos... pensei que ele gostasse de um copo e... pronto. Mas isso está me matando. Eu que sou de uma família respeitável! Não há noite em que
ele não volte embriagado. Bem que minha mãe me preveniu. Mas eu gosto tanto... tanto dele! É o pior de tudo!
Uma terrível suspeita acudiu à mente de Lucy.
- E ele... ele lhe bate?
- Não! não! disse a outra histérica. Eu preferiria que ele me batesse. Gosto dele e ele só gosta da bebida. Chega,
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cai na cama e ronca como um porco. É tudo o que se pode tirar dele: roncos! - Riu nervosamente. - Pela manhã, come presunto com ovos e jura que não torna mais a
beber. De noite volta novamente embriagado! - O choro voltou a assaltá-la. Lucy não sabia o que havia de fazer. Não era comunicativa; não lhe era fácil exteriorizar
simpatia, estava no entanto penalizada. Conservou-se rigidamente sentada olhando cheia de compaixão para a cabeça inclinada da outra, esperando em silêncio que aquela
crise de lágrimas cessasse. Finalmente Bessie levantou a cabeça, enxugou os olhos com as costas da mão, como uma criança.
- Sou uma tola! exclamou. Uma verdadeira tola! Que pensará a senhora de mim?
- Isso não é tolice, respondeu Lucy consoladora, e eu sinto imenso seu desgosto.
- Em todo caso fez-me bem chorar, disse a outra, e eu lhe fico muito agradecida. Agora a senhora sabe de tudo, mas eu não me incomodo. Sou uma criatura saudável
e essa situação me faz mal. - Nesse momento pôs-se a escutar e disse a Lucy: - Creio que estou ouvindo passos. É melhor que eu vá ver si é ele. - Foram ambas até
a porta, onde ficaram em silêncio vendo a lenta ascensão de John Finch pelas escadas. Ele subia cautelosamente, com um passo meticuloso, a mão segurando firmemente
o corrimão. Vinha calmo, demasiado calmo, e seu hálito inflamava o ar. Precedido pelo forte odor de álcool, avançava amável, digno, olhando o mundo superiormente,
cheio de boa vontade para com seus semelhantes.
- Ah! exclamou tranquilamente ao atingir o patamar. Missis Moore e minha Bessie. Muito bem! - Fechou um dos olhos e acrescentou, amável: - A noite está bem bonita
lá fora.
- Vamos para casa, John, disse Bessie inquieta.
- Preciso falar com Missis Moore, respondeu John prazenteiro.
- Oh! não, John, vamos!
- Preciso falar, Bessie, preciso falar!
Ela tomou-lhe o braço e procurou dirigi-lo para a sua porta. John, porém, firmou-se nas curtas pernas e falou depressa:
- Missis Moore, eu conheço seu cunhado Joe. É um grande freguês meu em Levenford. bom camarada o grande Joe... 283
"
Lucy, contudo, lançando um último olhar de compaixão ao rosto torturado de Bessie, fechou a porta e encostou-se nela por um momento, escutando. Ouviu-os afastarem-se
e, depois, as palavras do bêbedo foram abafadas pela outra porta que se fechou sobre o casal.
Lucy foi para a cozinha. Estava aterrada com aquela estranha cena. E subitamente os olhos do espírito puseram-se a visualisar um buffet em torno do qual brilhavam
luzes, enquanto muitos rapazes vestidos a rigor bebiam e mantinham-se em franco deboche, arrastando seu filho a cingir a fronte com folhas de parra. Ela estivera
louca permitindo que Peter fosse àquele baile! As apreensões começaram a atormentá-la. Sentia-se invadida por um penoso pressentimento de desastre.
Ficou à espera. Então, no tormento e no silêncio daquela noite, soou um passo na escada, leve, seguro e rápido. Lucy não se moveu, seus olhos, porém, iluminaram-se.
Era seu filho. Depois, ele surgiu, róseo, alegre, natural e com o colarinho ligeiramente úmido.
- Como! Ainda de pé ? exclamou ao entrar no quarto. Você devia estar dormindo há muitas horas!
Dormindo! pensou ela. Seu alívio ao vê-lo lançou-a de súbito num júbilo profundo. Peter voltara, normal, perfeito, com o hálito puro de qualquer cheiro de licor,
com as faces limpas de toda carícia de meretrizes. Nunca mais ela desconfiaria dele. Nunca!
- Divertiu-se? perguntou ela carinhosamente.
- Mais ou menos, respondeu Peter depois de refletir um pouco. As damas não eram grande coisa! - E sacudiu os ombros desdenhosamente.
- Mas com certeza você dansou com alguém interessante! insistiu ela, torturando-se para ter a certeza.
- Ninguém! efxclamou ele rindo. Uma boa senhora disse-me que eu lhe pisava os pés l - Si bem que Lucy não o acreditasse, a noite não fora nenhum brilhante sucesso
para ele. Haviam-lhe dito, mesmo, que andar em torno da sala não significava estar dansando. Bocejou espreguiçando-se.
Aquele bocejo, tão natural, tão espontâneo, tão infinitamente tranquilizador, restaurou inteiramente a confiança de Lucy no filho. Foi buscar uma chícara de caldo
quente para ele e observou-o enquanto o tomava. Depois, quase às duas da madrugada, foi para a cama sorrindo das suas apreensões absurdas.
Adormeceu instantaneamente.
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- XXII -
UMA coisa desagradável fazer-nos vir aqui desse modo, falou Peter ao deixar em companhia de sua mãe os escritórios da firma Fullerton Cia. Parece que nos estão dando
uma esmola.
Ele ia receber a quarta prestação da sua bolsa. Lucy, para preencher a estipulação do filantrópico, porém desconfiado benfeitor, fora constrangida a acompanhá-lo.
- Nunca se pode ter certeza, disse ela justificando aquela precaução, pois admitia não ser impossível que algum estudante pouco escrupuloso pudesse ir gastar o dinheiro,
destinado a fins mais nobres, na taverna mais próxima. Alguns podem abusar. Nem todos merecem confiança. - Não acrescentou "como você", mas foi o que (pensou. A
conduta do filho, em relação ao dinheiro, até ali fora irrepreensível. Nunca esbanjava um penny. Tudo fora gasto utilmente e consigo próprio.
- Que grande idiota ele deve ter sido! resmungou Peter entre dentes, classificando desse modo, de uma vez por todas,, Kezia Reekie, o doador da sua bolsa.
- Que foi que você disse, Peter? - Às vezes Lucy pensava que estava ficando um pouquinho surda.
- Eu estava abençoando Kezia, declarou Peter ambíguo.
Puseram-se a andar ao sol, em direção ao ponto dos bondes, e Lucy sentia um grande prazer em achar-se na rua em companhia do filho. Era raro ela ter uma oportunidade
de fazê-lo. Hoje, entretanto, pedira permissão para deixar o trabalho cedo, afim de acompanhar Peter.
Desde aquelas absurdas fantasias da noite do baile Lucy ainda sentia remorsos ao relembrá-lo - chegara-se ainda mais ao filho. Agora ela podia sorrir daquelas fantasias,
porém, durante algum tempo ainda, ficara nervosa e tudo a contrariava. Uma vez, abrindo-lhe o guarda-roupa onde o inofensivo traje a rigor se achava pendurado, ela
dissera, irritada:
- Quando irá embora essa roupa? Ela não lhe pertence, não é mesmo?
Peter sorrira e replicara:
- Não há pressa alguma, mamãe, essa roupa não morde. Ward tem muito tempo para mandar buscá-la.
Seu tom fora um espécie de censura. Agora, ali na rua, essas recordações estavam longe do espírito de Lucy.
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Sentia-se feliz em gozar a luz do sol, a companhia do filho e aquelas férias do seu trabalho. Gostava também de lançar de vez em quando um olhar às vitrines das
lojas, de passagem. Quando andava sozinha no meio da multidão elegante, tinha às vezes" um sentimento de inferioridade e de descontentamento. Agora, porém, com Peter
ao lado, sentia-se perfeitamente bem, escoltada por tão elegante companheiro. Causava-lhe satisfação notar os olhares que dirigiam a ambos os transeuntes que cruzavam.
Constatou que os jabots estavam em moda, sobretudo os, de cor de rosa pálido, que era uma cor que sempre lhe ficara bem. Apesar de não haver comprado um só vestido
naqueles últimos quatro anos, foi com prazer que descobriu que seu interesse em torno das coisas que se usam não desaparecera. Sempre gostara de andar bem vestida
e pensava que quando Peter estivesse instalado na vida, recuperaria a perdida elegância.
- Que lindo dia, não é mesmo? disse ela desviando o olhar das vitrines e sorrindo para o filho. Você não está sentindo a primavera no ar?
- Sinto cheiro de diversas coisas, por aqui, respondeu Peter meio constrangido. Estivera taciturno desde que saíra, ?e agora desviava propositadamente a cabeça dos
que o encaravam ao passar e do olhar da sua mãe.
- A água de alfazema era o meu perfume predileto, continuou Lucy. Algum dia você me dará uma grande garrafa cheia dela.
Mal pronunciava essas palavras, empalideceu e seus olhos se tornaram fixos. Vira sair da casa Ray, a casa de modas mais afamada da rua, a figura de uma elegante
mulher. E essa mulher era a sua cunhada Eva.
Não era a primeira vez que entrevia Eva, que era uma infatigável compradora naquela rua. Via-a até muito frequentemente, mas a verdade era que Eva, pelo seu lado,
nunca a vira. Talvez "aquele complexo de inferioridade da parte de Lucy, ou talvez a recordação daquele último encontro em Ralstson, fosse o motivo de que ambas
desviassem os olhares ao se encontrarem. Lucy tinha, em todo caso, a amarga convicção de que Eva possuía motivos derivados do seu esnobismo para evitar falar-lhe.
Tendo em mente esse pensamento, começou a apressar o passo quando ouviu a voz afetada de Eva chàmando-a. Estremeceu e parou.
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- É você, Lucy? ciciou Eva. Imagina! Encontrá-la aqui!
- É verdade! tornou Lucy com propositada ironia. É estranho! - O sangue voltara-lhe ao rosto e ela sentiu, para seu desespero, que estava enrubescendo. Eva sorriu.
Estava fresca, amável e à vontade. com uma contração de lábios, Lucy sentiu a elegância do costume, cortado por alfaiate, o chapéu cor de rosa, o jabot de rendas
e a linda sombrinha que pendia do braço arqueado da outra. Nada faltava à sua toilete. , ;,-
- Costumo vir sempre à cidade, mas sou tão míope que me é difícil reconhecer as pessoas na rua, continuou Eva. E nessa desculpa sem sutileza, Lucy teve a confirmação
da sua suspeita.
- Meu trabalho me prende no outro lado da cidade, replicou Lucy significativamente e com uma inequívoca frieza.
Eva emitiu uma exclamação de simpatia que lhe era fácil ciciar; depois, seu sorriso dirigiu-se a Peter e seu olhar envolveu apreciativamente a sua elegante aparência.
- Esse não é seu filho ? exclamou. Mas está um homem!
- Não de todo, ainda, redarguiu Lucy secamente, e pensou: "Foi por isso que você parou! Porque queria bisbilhotar em torno do meu filho!" E disse alto: - Agora vamos
andando para apanhar condução.
Eva, porém, não fez menção de despedir-se; em vez disso, dirigiu-se a Peter:
- Eu não poderia reconhecê-lo apesar de você ser meu sobrinho. Não é engraçado? Por que nunca veio nos ver durante todo esse tempo?
- Não sei bem, tia Eva, respondeu Peter. Seu mau humor diluira-se com a presença daquela criatura elegante e amável. Agora, sorria efusivo: - Nós não costumamos
sair muito.
- Essa mãe perversa, que prende você em casa! disse Eva recriminando Lucy, com um dedinho enluvado e reprovador. Precisamos de vê-lo um dia desses em Lê Niã.
- Peter tem que estudar, falou Lucy, bruscamente, e eu tenho o que fazer.
- Mamãe! exclamou Peter indignado.
Eva mostrou um risinho como contribuição à conversa.
- Não temos mesmo muito tempo para andar por aí, continuou Lucy. Sabia perfeitamente que estava sendo incivil, mas, avistara uma coisa antagônica surgindo da suave
e perfeita elegância da outra, forçou-a a acrescentar: - Temos que trabalhar para viver.
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- Francamente, mamãe! tornou Peter indignado com aquela falta de cortesia e olhou, como que pedindo desculpas, para a tia.
- Quero apenas que você venha ver-nos um sábado desses, disse Eva amavelmente. É absurdo que não nos conheçamos bem!
"É absurdo, sim, pensou Lucy furiosa, porém a culpa não é minha".
- Terei muito prazer em ir, respondeu Peter. É muito agradável ir-se para os lados de Ralston.
- Costumamos jogar ténis, adiantou Eva. Tudo muito sem-cerimônia.
"E quem foi que já ouviu falar em partidas de ténis com cerimónia?" pensou Lucy amargamente.
- Esplêndido! exclamou Peter.
- Muito bem! ciciou Eva. Insisto em que você vá até lá. E traga sua mãe também, naturalmente. Escreverei para marcar o dia.
- Não, recusou Lucy. Não poderemos ir!
- Tenho que deixá-los, disse Eva sorrindo, ao cabo de um momento; seu ar dizia, porém, confidencialmente a Peter: "Sou demasiado fina para insistir nesse assunto;
veremos contudo si você não acha um meio de vir até Lê Nid". Trocou apertos de mão com ambos e afastou-se.
Lucy e o filho tomaram o bonde em silêncio. Ela conservava os lábios comprimidos, a cabeça alta e erecta. Quanto a Peter, estava furioso. Mesmo assim, depois de
algum tempo, foi ele o primeiro a falar.
- Posso perguntar por que foi você tão rude para com tia Eva? - E seu tom encerrava uma calma forçada.
- Oh não sei, Peter! suspirou ela e olhou-o como pedindo desculpas. Foi talvez uma estupidez da minha parte, porque não gosto dela. Não a acho sincera.
- Eu, por mim, acho-a encantadora, apressou-se ele em dizer. E foi muito amável em me convidar.
- Mas como pode você lá ir ? indagou Lucy ríspidamente. Você sabe que seu exame final está aproximando-se e também não tem roupa especial para essas coisas, ou será
que você pensa em arranjar também flanelas esportivas com o homem da China? - Seus lábios tinham um rictus sardónico, contudo, mal pronunciara essa alusão de roupa
emprestada, já estava arrependida.
- Tia Eva parece ser, além de interessante, muito boa pessoa, respondeu Peter com insolência.
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- Boa! exclamou Lucy amargamente. Que sabia ele de Eva? Poderia adivinhar que era vinagre e não leite o que circulava sob sua macia e cremosa pele?
Peter observou sua mãe durante algum tempo e, depois, disse um pouco desdenhoso-
- Espero que você não tenha inveja porque ela se veste melhor do que você e é rica!
Aquela acusação parecia tão verdadeira que Lucy corou até o pescoço.
- Não fale assim! replicou com severidade.
- Mas não será mesmo? interrogou novamente Peter quase insultante.
- Lembre-se de que sou sua mãe, tornou ela feroz. Richard e todos os seus nunca fizeram nada por nós.
- Está bem!... - Àquelas palavras Peter abrandou. Mesmo assim, depois de algum tempo, acrescentou enfadado: ?- Si você pensa que hoje em dia as criaturas correm
atrás de nós para fazer-nos favores, está enganada. É preciso ser razoável. Cada um tem seus negócios em que se ocupar; e si você quiser ter amigos precisa sair
para procurá-los, e não esconder-se numa água-furtada!
Ouvindo essas acusações, Lucy apertou os lábios para não deixar escapar alguma resposta indignada e seu olhar tornou-se fixo. Achou inútil continuar aquela discussão.
Vivendo na intimidade em que viviam, as discussões eram inevitáveis; porém, deixavam-na sempre tão perturbada e entristecida que ela envidava todos os esforços para
evitá-las. Mesmo assim, Peter ainda se mantinha descontente ao descerem do bonde. Assim permaneceu quando já se achavam em casa. Lucy pôs-se a fazer chá enquanto
Peter, com toalhas mergulhadas em água quente, começava a cuidar da pele do rosto. Ultimamente, com grande desgosto seu, vira-se assaltado por uma invasão de comedones
?- assim corrigira ele o termo "cravos", que era o usado por Lucy - e agora, colocado em frente ao espelho, parecia penitenciar-se, extirpando-os dolorosamente da
pele.
Imparcialmente julgado, o caso agora parecia menos grave e Lucy começava a perceber o ponto de vista do filho. Afinal de contas, ele era jovem, estava no limiar
da vida. O filosófico desprendimento com o qual ela aguardava um futuro melhor nunca poderia ser imitado pela sua impetuosa juventude. Começou a sentir compaixão
daquela petulante impaciência.
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Pôs-se a pensar que o campo de liberdade do filho era realmente restrito. E veio-lhe o desejo de encontrar algum divertimento interessante que pudessem frequentar
juntos. Durante alguns dias, preocupou-se com essa ideia, sem contudo chegar a nenhum resultado satisfatório, sentindo que, para conservá-lo mais preso a si, precisaria
proporcionar-lhe mais divertimentos. Eis que, repentinamente, a sorte caiu-lhe nas mãos. Miss Tinto havia comprado dois bilhetes para um espetáculo no Empire; mas
como adoecesse a irmã com quem deveria ir ao teatro, ofereceu-os, graciosamente a Lucy, que os aceitou cheia de gratidão. De fato, estava encantada! Aqueles bilhetes
haviam custado três shillings cada um e haviam sido comprados com antecedência, sendo por isso localidades muito bem situadas. Naquela noite, Lucy voltou para casa
cheia de alacridade e, quando Peter chegou, ela lhe disse imediatamente:
- Que acha? Tenho dois bilhetes para o Empire amanhã! - Peter ergueu as sobrancelhas e depois de uma pausa comentou: "
- Espero que não sejam entradas de favor!
- Oh! Peter, Miss Tinto não me daria uma coisa assim!
- E que peça vão levar no Empire amanhã?
- Não sei bem, respondeu Lucy perdendo um pouco da sua animação.
- Deixe-me ver, disse Peter tomando um ar entendido, parece-me que Maria Lloyde está nesse teatro encabeçando o espetáculo.
- Maria Lloyde! exclamou Lucy animando-se novamente. Oh! ela é maravilhosa, não é mesmo ? Gostaria de vê-la. É a favorita de Londres.
- Creio que ela já está agora um pouco passada; em todo caso pode ser alguma coisa divertida.
- Certamente .que será divertido, assegurou-lhe ela calorosamente. Vamos gostar imenso.
No dia seguinte, à noite, Lucy, assegurando-se de que os bilhetes estavam consigo - seria uma calamidade esquecê-los!
- depois de se preparar, fechou a casa e desceu as escadas. Peter, detido por uma aula atrasada, havia prometido reunirse-lhe em Charing Cross. Lucy chegou cedo
ao ponto em que deveriam se encontrar e pôs-se a andar para cima e para baixo, gozando a fresca tarde e antecipando o prazer que teria com a diversão daquela noite.
Outras pessoas esperavam ali. Aquele era um ponto de encontro habitual para muitos. De súbito, teve um sobressalto, sentindo alguém tomar-lhe o braço num peremptório
e possessivo aperto.
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- Siga o seu caminho! ordenava-lhe uma voz ao pé do ouvido, Lucy voltou-se vivamente. Era Peter, sorridente, que levantando o chapéu voltou a colocá-lo num ângulo
que prometia uma noite de grande divertimento.
- Que susto você me deu! exclamou ela; seus olhos, porém, haviam se tornado brilhantes ao vê-lo.
- Isso é bom porque sacode o fígado, respondeu ele imitando gravemente as maneiras de Edward.
Lucy ocultou um sorriso motivado não tanto pelas palavras que ouvira, como pela felicidade que a empolgava no momento.
- Temos conosco os bilhetes, madame? perguntou Peter, com afetuosa ironia, ou deixamo-los sobre a arca do palácio?
Ela já os tinha na mão e entraram na sala de espetáculos, depois de passar por um porteiro agaloado como um almirante, no momento exato em que a orquestra atacava
a "Grande Marcha" de Blakfc. As faces de Lucy coraram àquela espetacular entrada. O aplomb de Peter, todavia, era magnífico; num gesto superior entregou um penny
em troca de um programa e, após encontrar as poltronas com grande facilidade, lançou um indolente olhar em torno antes de sentar-se ao lado de sua mãe. Esta havia
tirado o chapéu e a jaqueta e estava agradavelmente conciente da frescura da sua blusa recentemente lavada e passada a ferro e do belo arranjo dos seus cabelos.
Lembrou-se de que a última vez que entrara num teatro fora cinco anos atrás.
- Áthleto e Angelo, murmurou Lucy, olhando para o programa, levantadores de pesos. - Nesse momento abriu-se a cortina sobre uma cena bucólica onde, destacando-se
do fundo arborizado, se inclinavam Áthleto e Angelo. Altos, maciços e impassíveis, de longos bigodes encerados, estavam vestidos de malha branca. Começaram imediatamente
a levantar prodigiosos halteres, cada vez mais pesados, enquanto os olhos se lhes esbugalhavam assustadoramente. - Muito bem, aprovou Lucy quando a cortina caiu,
debaixo de alguns aplausos ampliados pelo som retumbante da orquestra.
- É o primeiro número, disse Peter indulgente. Nunca é grande coisa.
De novo a cortina se abriu enquanto Lucy, rapidamente, procurava consultar o programa, na meia-luz que se estabelecera.
- P. Elmer Hárrison, anunciou ela a Peter,. cantor negro. E olhou interessada para o palco.
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Elmer, de fato, era preto. Mas, apesar da qualidade da sua cútis, possuía uma voz de ressoante riqueza e um belo sorriso: um encantador sorriso que lhe entreabria
os esplêndidos e rubros lábios, deixando ver uns dentes brancos de marfim que lhe iam até as enormes orelhas. Cantou a cançãodo Toreador, da Carmem, e uma canção
When the Ebbtide Flows.
Ambos gostaram de Elmer. "Passável", foi o comentário de Peter. Havia, porém, coisas mais que passáveis. Era um "esplêndido programa", conforme se podia esperar
da perspicácia de Miss Tinto. E Lucy sentiu a alegria correr-lhe nas veias como um capitoso vinho.
Depois vieram "As Cascarellas", acrobatas que emocionaram a assistência, atingindo inacreditáveis alturas. "Otto e Olga" vieram a seguir, para acalmar com canções
os nervos excitados dos espectadores. Cantaram "Agora eu tenho que chamá-lo papá" e "Você tem em sua terra uma pequena como Mary?" canções cheias de melodia. Veio
também Primavesi, prestidigitador, que o Evening News cognominava "de primeira ordem", e ainda Ebnezer Edwards, vestido de cor rosa, "o caçador ventríloquo". Elle
Tortamada, a maravilhosa contorcionista, quase repelente em seus esgares, era a seguinte. Toda a expectativa, entretanto, centralizava-se em torno de Marie, que,
para se fazer desejar, deixou-se ficar para o fim. E Marie era sublime. Não havia mesmo superlativo suficiente para Marie. Apareceu de saiote curto e provocante.
Primeiro, cantou, cheia de malícia, "Tenho medo de ir para casa no escuro". E na sala, cada espectador masculino desejou que Marie fosse menos timorata. Depois cantou
uma canção que falava de uma senhora francesa, invadida subrepticiamente desse misterioso flagelo que é o embonpoint! Toda vez que ela cantava uma quadrinha, piscava
um olho, requebrava-se e dizia um irresistível ouil oui!
O efeito foi devastador; Marie percorria o palco rebolando os quadris. com mãos hábeis, fazia movimentos sugestivos e ondulantes de adiposidade em torno das coxas,
em torno do peito e em outras regiões. I? sempre, acompanhado de tambores, vinha o estribilho "Em-bon-point" e com os tímbales, vinha o oui! oui! Foi o clímax! Marie
mergulhou a assistência em acessos de riso louco. Peter e Lucy riram com os outros e riram tanto que mal puderam conservar-se de pé no momento em que executaram
o "God Save the King". Havia sido um espetáculo raro e encantador. Como Lucy gostara de tudo! A vida ao lado de Peter era bela, apesar de tudo.
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Saíram da sala aquecida do teatro para o frio exterior, onde já se formara uma cauda para a segunda sessão.
- Pensar que têm. que recomeçar aquilo tudo! disse Lucy um pouco penalisada por Athleto e Angelo. Mas oh! Peter, foi maravilhoso!
- São pagos para fazer isso, comentou Peter. Dinheiro! É o que faz as rodas moverem-se. E parou para comprar um jornal das mãos de um garoto. Na esquina, fez um
sinal pitoresco a um bonde amarelo, que obedeceu, parando com um ruído de protesto em todas as juntas.
Em caminho, enquanto Peter lia seu jornal, Lucy, muito junto a ele, pensava no quanto se mostrara gentil para com ela naquela noite, e no quanto se divertira. Sentia-se
feliz. Tão feliz quanto sempre o fora com Frank. Encostando-se ao ombro do filho, pôs-se a desejar que o bonde prolongasse eternamente aquela sua marcha sacudida..
.
De repente Peter exclamou.-
- Aqui há uma novidade para você. - Lucy abriu os olhos e olhou para ele. - Ouça isto: fizeram tio Edward cónego. - E em voz excitada, leu alto o curto parágrafo
que relatava a elevação do Reverendo Edward Moore à dignidade de cónego, em virtude de seus longos serviços na. diocese. - Isso é esplêndido para o velho rapaz,
não é mesmo, perguntou.
- Esplêndido, sim, concordou Lucy. Aquelas notícias eram-lhe quase indiferentes, porém em seu presente estado de espírito tudo lhe parecia agradável.
- Preciso escrever-lhe para felicitá-lo, disse Peter meditativo, depois de alguns momentos.
- Você tem razão, Peter, assentiu ela.
O filho olhou-a curiosamente e depois, quando já haviam descido e caminhavam pela rua das Flores, ele perguntou-lhe de chofre:
- Por que é que você não é sempre assim, mamãe?
- Assim como? indagou ela surpresa.
- Oh! você sabe o que é que eu quero dizer. - Sua fisionomia estava séria. - Assim, natural... sem susceptibilidades nem rigidez.
Ela não respondeu.
Quando entraram em casa, uma carta jazia no chão do pequenino hall.
- Deve ser do tio Edward, falou Peter, mas agora as notícias já são velhas.
Contudo a carta, que trazia um grande monograma dourado no sobrescrito, não proviera do novo cónego. Era de
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Eva, convidando Peter para jogar ténis no sábado seguinte e com um post-scriptum dizendo:. " Traga sua mãe si ela quiser vir". Peter olhou para Lucy como si lhe
recomendasse : "Veja lá que atitude toma, depois do que lhe falei". De modo que Lucy, apesar de sentir-se repentinamente contrariada, não disse coisa alguma. Refletiu:
"Ele sabe que eu não desejo que vá. E não irá". Resolveu não exprimir essa reflexão em palavras. Em silêncio, viu-o jogar a carta de Eva no fogo e sentar-se para
escrever uma carta de congratulações ao tio Edward.
-" XXIII -"
PETER, no entanto, foi à partida de ténis e Lucy não foi com ele. Não houve cena alguma. Tudo se passou com a maior simplicidade. Durante toda a semana, o assunto
foi tabu entre eles. Ela pensara sempre, consigo mesma: "Eu sei que ele não irá". Mas Peter estava resolvido a ir. No sábado, vestiu com especial apuro sua roupa
mais leve. Foi-lhe penoso pensar que não tinha traje esportivo de flanela clara; e para justificar a falta de uma raquete de ténis resolveu dizer que havia deslocado
o pulso. Depois, escreveu um bilhete a Lucy explicando sua ausência. Aquele sistema de bilhetes fora instituído justamente por Lucy, que - toda a vez que não podia
esperá-lo para o almoço por ter que ir trabalhar antes de Peter regressar das aulas - escrevia a lápis um bilhetinho dizendo por exemplo - " A refeição está pronta
na estufa. Voltarei cedo. Saudades". Agora, como ia aquela guilhotina cair-lhe amargamente sobre o próprio pescoço!
Peter, em seu bilhete, mostrou-se totalmente faceto: "Retido por uma tarde em casa de Evinha..." Assinado, "Tio tom".
Depois disso, já pronto, postou-se um momento defronte do espelho, inspecionando-se. Gradualmente foi aparecendo um sorriso de satisfação em seu rosto. Inclinou-se
em saudação à sua imagem e pôs se a apertar mãos imaginárias, cheio de meneios elegantes. Apesar do deslocamento do pulso, vibrou no ar uma raquete inexistente.
Depois riu de si próprio, endireitou a gravata, deu um último olhar à sua imagem e saiu.
Era um delicioso dia de verão e, enquanto descia a rua, Peter endireitava os ombros, todo aprumado. Cheio de
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basófia, passou por Alice Maitland que cruzou com ele de volta da sua lição de música; Peter respondeu ao seu olhar tímido com um leve erguer de chapéu. Não era
grande coisa, Alice - que ele soubesse - e sua cabeça era demasiadamente equilibrada para deixá-lo cometer uma indiscrição daquele lado. Em todo caso, sempre era
agradável aceitar o caloroso tributo de um par de olhos. Talvez aquele seu displicente sorriso a tornasse feliz durante todo o dia. Quem sabe ? Ao chegar à estação,
seu bom humor continuava. Tomado de um súbito acesso de extravagância, adquiriu um bilhete de ida e volta de primeira classe. Era de fato um gesto estranho da parte
de uma pessoa que contava as moedas a cada passo. Como, porém, se achasse na solidão do seu compartimento, ao pôr os sapatos polidos no assento fronteiro, confessou
a si próprio que aquilo valia o excesso de dinheiro que empregara.
Ainda não eram três horas quando chegou a Ralston. Fora do portão de Lê Nid, parou indeciso. Defronte dele estendia-se uma quadra de ténis dividida por uma rede
de riscas bem marcadas e flanqueada por uma fila de cadeira" destinadas à assistência. Não havia ninguém por ali, entretanto. De chofre, um pouco da sua bela segurança
abandonou-o. Não sabia jogar ténis. Não devia ter vindo. Teve um medo súbito de parecer ridículo. Desconcertado, teve um movimento rápido, afastando-se com a cabeça
baixa para evitar ser reconhecido por alguém que o pudesse ver das janelas. Aos poucos, seus passos afrouxaram-se e, um quarto de hora, vagueou por ali, sem destino.
Apesar do seu estado de espírito, pôs-se a admirar as lindas vilas daquele agradável subúrbio. Uma, especialmente, chamou-lhe a atenção. "A Torre" era o nome escrito
por cima do largo pórtico branco, e a casa era toda construída em estilo barroco, tendo um pequeno torreão para justificar aquele nome pomposo que Peter fixou na
memória, achando o conjunto sobremaneira imponente.
Recuperando a naturalidade, com um último olhar ao relógio, encaminhou-se novamente para a casa da tia.
Agora, estava atrasado. A fila de cadeiras já se achava ocupada por uma quantidade de gente que, voltando-lhe as costas, falava e ria com toda a aparência de intinlidade.
Além disso, havia um automóvel estacionado defronte do portão, um belo carro vermelho forrado de marroquim com um belo radiador encimado por um leão. Viu imediatamente
que era um Argyll e aquilo abalou-o. Um Argyll parado na porta de tia Eva! Hesitou ao abrir o portão, desconcertado mais uma vez, sem saber se deveria aproximar-se
do grupo
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de pessoas ou avançar para a porta principal da casa. Achou melhor subir os três pequenos degraus e tocar a campainha, anunciando-se à criada que veiu abrir-lhe
a porta com nervosa gravidade. Fizeram-no entrar para uma sala já preparada para o chá, tendo sobre a mesa uma profusão de sandw-iches, bolos, rendas Doiley e reluzente
prataria.
Esperou rigidamente sentado em uma cadeira admirando com os olhos o arranjo de todas as coisas e procurando escutar a conversa que lhe chegava aos ouvidos através
da janela entreaberta. Aquela era a sua primeira aventura social e ele se sentia nervoso. Sobressaltou-se quase ao ver entrar a tia Eva seguida de Charlie. Ambos
lhe sorriram.
- Mas onde está sua valise? exclamou tia Eva, depois de uma .conversa preliminar. Trazia um vestido de fustão branco e uma écharpe cor de laranja arranjada à moda
cigana em torno dos cabelos escuros. - Não me diga que não vai jogar!
Peter corou e gaguejou:
- É que desloquei o pulso.
Eva olhou para o pulso; depois, inclinando a cabeça, ameaçou-o com o dedo, picaresca:
- Você tem que jogar! Dependemos de você. Suba com Charlie que lhe emprestará algumas das coisas.
- Sinceramente, protestou Peter, esse jeito que dei no pulso me inutiliza a mão, sabe? - E o vermelho de seu rosto intensificou-se.
Eva, porém, despachou-os para cima com um cicio imperioso. Antes que pudesse encontrar uma desculpa mais consistente, Peter achou-se no quarto de Charlie, um quarto
alegre e desarrumado, com estantes de livros e quadros pelas paredes, vendo o primo tirar de uma gaveta uma quantidade de roupas de flanela.
- Isso lhe deve servir, falou Charlie endireitando-se. Era mais ou menos" da altura e da idade de Peter; moreno, sério, um pouco sisudo, como o pai, era entretanto
amável. Sorria para o primo, nesse momento, com o seu largo e agradável sorriso. - Fume um cigarro enquanto muda a roupa, disse oferecendo-lhe a carteira; tenho
uma raquete guardada por aí, que lhe poderá servir.
- É muita gentileza sua, tartamudeou Peter desabotoando os suspensórios. Eu estava tão fora de forma que nem tive a ideia de trazer minhas coisas.
Charlie, indolentemente encostado no armário, deixou escapar uma fumaça do cigarro.
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- É uma cancha ordinária, essa nossa, disse; as bolas vivem caindo para o lado dos arbustos. O jogo, também, é uma tolice! Só o pratico para não engordar.
- Há um bocado que não jogo, continuou Peter do mesmo modo, com o cigarro que lhe estava dando alguma segurança, dançando-lhe no canto dos lábios. Isso é jogo para
moças. - E tirou a camisa expondo o tórax sem acanhamento.
- Há aqui duas pequenas interessantes, hoje. Kitti e Rose.
- Sim?
- Estou particularmente interessado em MISS Darting, que é Kitti.
- Ah! fez Peter. Quis dizer alguma coisa apropriada, mas nada lhe ocorreu, naquele momento. Assim, deixou escapar o fumo pelas narinas e acabou de dar um laço nos
sapatos emprestados em silêncio. Quando ficou pronto, desceram e dirigiram-se para a cancha. Novamente Peter se sentiu contrafeito ao se aproximar do grupo que ocupava
as cadeiras. Gente elegante, pensou ele, preparando-se nervosamente para sorrir. Aquele costume de flanela emprestado fazia-o sentir-se um palhaço, e a raquete de
Charlie em suas mãos parecia um banjo. Contudo, enveredou com bastante sucesso pelas apresentações, com grande gasto de "muito prazer em conhecê-la" e muitos sorrisos.
Pareciam todos muito agradáveis.- exatamente o que se podia esperar dos amigos de tia Eva. E eram todos jovens - ela gostava de ter em torno de si gente nova. Ali
estavam Missis Ivy MacBride. amiga do peito de Eva, loura, elegante, cheia de gestos, jovem e sensacional viuva de um cavalheiro que falecera depois de enriquecer
com um negócio de espartilhos. Kitti Darting, uma dinâmica moreninha com um olhar travesso para o lado de Charlie e um pai que recentemente multiplicara alguns milhares
metendo-se no comércio de carne congelada. Vera também ali se achava, anêmica, de óculos, curvada, muito bem vestida, porém não muito interessante. Ao seu lado um
jovem gorducho por nome de Jim, vermelho, cordial e sua irmã:.. Rose!
Agora -Peter encontrava-se numa cadeira ao lado de Rose, olhando fixamente para uma corda partida do seu banjo (ou seria uma raquete, aquilo, vendo-a no entanto
perfeitamente pelo canto dos olhos. Em torno dele recomeçaram as conversas que sua chegada havia interrompido. Perguntavam quem ia dar a próxima partida de whist,
a próxima dansa onde séria; si já tinham visto a exposição de pintura
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em Maidenhall. Por fim, Peter ousou levantar os olhos para a vizinha. Era alta, tinha olhos castanhos um pouco sonhadores, uma pele macia e leitosa ligeiramente
marcada de sardas e os cabelos cor de cobre realçados pela fita verde que os prendia. Seu todo indiferente intimidou um pouco Peter; mesmo assim, conseguiu articular:
- Joga ténis muito bem?
Ela sorriu suavizando imediatamente as feições com esse sorriso.
- Jogo - disse candidamente. E ele que pensara que ela fosse altiva! - E que tal é seu jogo?
Já seguro de si, Peter esboçou com a mão um gesto de superioridade.
- Meu jogo é o cricket. - Não conseguira ele marcar dezessete pontos contra o irmão John Jacob, uma vez? E acrescentou," já convencido à força de repeti-lo: - E
desloquei o pulso.
Rose ficou impressionada com a primeira asserção e penalizada com a segunda.
- Mora na cidade? perguntou-lhe timidamente. Aquela dignidade não era sinão a máscara com que ocultava sua dogura. - Nunca o vi por aqui, antes.
- Moro, sim, respondeu Peter lentamente olhando para tia Eva, que do outro lado da fila podia ouvi-lo, porém, interrompeu a conversa que mantinha para encorajá-lo
com
um aceno.
- Antigamente morávamos também no campo; mas agora, tomamos um apartamento na cidade enquanto frequento a Universidade.
- Estuda então na Universidade? exclamou Rose, cujos olhos brilharam cheios de interesse fixando-se nele.
Peter assentiu com a cabeça, acrescentando lacônicamente.-
- Medicina!
.Rose juntou as mãos:
- Oh! esplêndido ! Papai queria que Jim também fosse estudar medicina. É uma profissão tão nobre! Mas ele só tinha queda para o comércio. Acho que é maravilhoso
ser cirurgião.
Houve uma pausa, durante a qual Peter assumiu um ar extremamente irónico; afinal resolveu-se a perguntar:
- Mora por aqui?
?- Moramos muito perto daqui. Nossa casa se chama "A Torre". Um nome feíssimo. Mas papai quis que se chamasse assim.
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A Torre! Peter afiou os ouvidos e olhou para Rose com um novo interesse mesclado de respeito. Pareceu-lhe uma criatura tão faiscante, de admiráveis olhos, pescoço
muito branco, mãos macias, plácidas, com um lindo vestido de seda pesada e espessa e um cinto de couro verde brilhante.
- Como veio para cá? indagou Peter um pouco surpreendido. Não cruzamos no caminho.
- Viemos no carro. Jim na direção.
A Torre! E aquele formidável Argyll! Francamente, aquilo ultrapassava seus melhores sonhos. Aquela era a sociedade que ele preferia e a que realmente pertencia!
- A cancha está esperando, gritou alegremente tia Eva. Rose e Peter contra Ivy e Jim.
Peter ergueu-se obediente, quase sem temor.
- Você precisa me auxiliar, disse significativamente a Rose enquanto se encaminhavam para a cancha. Há muito que eu não jogo.
Ela sorriu com um ar de cumplicidade.
Felizmente o jogo não era ciclônico. Era suave, fácil e não muito diferente do ping-pong que Peter jogara algumas vezes em Port Doran no Guild Hall. O estilo de
Jim era arrebatado, cheio de tiros ferozes na rede; e a gorda viuvinha, muito apertada nos coletes da marca familiar, podia mexerse muito, porém movia-se em uma
órbita restrita. Rose era segura e dava conselhos muito úteis; Peter, seguindo esses conselhos, não estava nada mau. Segurando a raquete corretamente e jogando a
bola bastante alto, desincumbiu-se de um modo não muito desfavorável. Ganharam. Rose e ele retiraram-se da cancha debaixo de uma salva de palmas.
- Belo jogo, ciciou tia Eva, agora é a nossa vez! Você, Charlie, jogue com Kitti, e Vera joga Comigo. - Dizendo isso, dirigiu-se com um porte de cabeça cheio de
vivacidade para a cancha desocupada, acompanhada pelos outros.
- Você esteve esplêndido, murmurou Rose aceitando a limonada que Peter galantemente lhe trouxera de uma pequena mesa ali perto. Sobretudo com este pulso deslocado!
Peter sorveu um grande gole do seu copo e desviou os olhos para o jogo em início. Aquilo é que era vida! Recostou-se na cadeira e estirou as pernas brancas. De fato!
ficava muito bem, vestido assim, de flanela. Alisou os cabelos com a mão, depois olhou para Rose e disse ousado:
- É que tive uma admirável parceira, compreende? Ela sorriu, assistindo à partida em silêncio. Diversos
jogos se sucederam. Tia Eva era entusiasta e tinha um especial dinamismo no arranjo de grupos entre seus hóspedes.
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- Ivy, dessa vez você joga com Peter, e Kitti, você... E assim por diante. Observando-a, Peter pensava que
sua tia era encantadora, cheia de bondade. E perante aquela bondade, ele começava a sentir-se perfeitamente em seu elemento. Divertia-se imensamente. Jogou mais
uma vez com Rose e encontraram-se como antigos camaradas. Novamente venceram. Então, alegremente conduzidos por tia Eva, entraram para tomar chá. Foi uma encantadora
cerimónia, apesar de ter sido deliberadamente revestida de simplicidade. Peter foi colocado ao lado de Rose e esteve amável, ligeiramente superior, achando-a uma
vizinha encantadora, gentil e tranquila. Achava extraordinariamente fácil dirigir-lhe a palavra e ela dedicava-lhe toda a atenção. Não era como Kitti, por exemplo,
que olhava constantemente para todos os lados, ou Vera, que parecia ser indiferente a tudo que não fosse os amanteigados. Peter estava contente consigo, com Rose...
com toda gente. Quando chegou a ocasião dos cigarros, Charles estendeu-lhe a. carteira:
- Fume um dos meus, amigo velho! Francamente! aquilo reafirmava definitivamente sua
equidade e consagrava-lhe o triunfo social. Sentia-se cercado de cordialidade, de gente amiga, boa, encantadora. Era um absurdo da parte de sua mãe não querer que
ele entretivesse aquelas relações! Voltou-se para Rose:
- Espero que nos tornemos a ver. É tão difícil encontrar pessoas agradáveis, nesses tempos de hoje!
Ela sorriu sem afetação, olhando para as unhas, e concordou, reflexiva:
- Isso é verdade.
Houve uma pausa. Peter contemplava aqueles olhos baixos que ensobravam as faces redondas da jovem, e sentiu-se tomado de um súbito desejo de dizer alguma coisa amável,
um cumprimento qualquer. Rebuscou no cérebro, procurando achar alguma frase não muito comprometedora; por fim, seu olhar caiu sobre um broche que Rose trazia fechando-lhe
o vestido aberto no pescoço, segundo a nova moda.
- Fica-lhe muito" bem esse broche, disse ele, galante. Rose levou indolentemente a mão ao broche e respondeu
simplesmente:
- Eu, por mim, não gosto muito dessas coisas, mas dizem que a pedra é de muito boa água.
Peter sentiu-se abruptamente todo confuso. Pensara que aquele ornato fosse cristal, e era um diamante, aquela grande pedra faiscante, que fez imediatamente seus
olhos brilharem.
300
- Você precisa encontrar-se comigo na cidade, um desses dias, para tomarmos um chá, disse Peter involuntariamente, sem saber de onde lhe viera aquela audácia.
Os olhares dos dois se encontraram.
- Terei muito prazer nisso, aceitou Rose num sorriso. Nesse momento Eva ergueu-se e declarou que, já que
todos haviam acabado, deviam regressar ao esplêndido sol que fazia lá fora.
- Você parece estar se divertindo, disse a Peter passando ao seu lado, enquanto ele mantinha a porta aberta, galantemente, para dar-lhe passagem.
Houve mais ténis, mais risos, mais conversas. Entre uma partida e outra Peter ajudou Rose a procurar uma bola perdida entre os arbustos. Suas cabeças encontraram-se
tão juntas quando se inclinaram sob um loureiro, que ele pôde ver as gotinhas de suor que aljofravam o lábio superior da moça. Espetáculo encantador.
Lá para as seis horas, o tio Richard veio até o jardim, cheio daquela sua costumeira gravidade - agora, contudo, ligeiramente menos severo - para ver como iam as
coisas.
Pareceu satisfeito ao ver Peter, e depois de algum tempo, veiu sentar-se ao seu lado, um pouco de parte.
- Sinto que sua mãe não pudesse vir, disse cheio de discrição, cruzando as pernas. Como vai ela?
- Sempre forte, obrigado. Richard, meneou a cabeça:
- Folgo muito, folgo muito. Por vezes eu me ponho a pensar que sua boa mãe não é justa para conosco. - Fez uma pausa e fixou a ponta de um de seus sapatos. - Não
nos correspondemos com ela, realmente, mas queremos-lhe muito bem.
?- Sem dúvida, acudiu Peter. Eu o reconheço.
- Talvez que a vida tivesse maltratado um pouco Lucy, sugeriu Richard. É compreensível. Eu, porém, não tenho a menor má vontade para com ela. Estimo que você o compreenda,
meu caro. E lembre-se de que será sempre benvindo aqui. Sua tia Eva, - e seu olhar foi contemplar .com agrado a distante imagem da esposa, - aprecia muito as criaturas
jovens. Venha nos ver, sempre que o desejar.
Peter sentiu-se grato, profundamente grato.
?- Estou encantado com os seus sucessos na Universidade, continuou tio Richard. Houve tempo em que duvidei disso, confesso. Agora, todavia, que o vejo, já não estou
surpreendido. Continue, meu rapaz, e verá que vai lhe ser fácil triunfar.
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- Muito obrigado, titio, balbuciou Peter. Não sabia bem por que motivo se achava tão agradecido e não analisou aquele sentimento.
- Lembre-me à sua mãe, sim ? Finalizou Richard tirando bruscamente o relógio de ouro e reassumindo suas maneiras habituais. Tenho que me retirar.
Quando viu o tio partir, Peter sentiu-se subitamente constrangido pela evocação da sua mãe. Naquele momento, pareceu-lhe que estava preso por um laço a alguma coisa
que ele não podia explicar e que desejava partir esse laço, libertando-se de uma sujeição. Não obstante, um minuto depois, essa ideia saiu-lhe da cabeça e ele começou
a divertir-se novamente.
Por fim, o sol ocultou-se e levantou-se uma ligeira brisa, que fez estremecer a delicada Vera. Houve um movimento geral em direção à casa e Peter subiu para mudar
a roupa. Despiu-se e tomou um banho de chuva na grande banheira de porcelana branca, tão diferente da tina estalada e fendida da sua casa. Depois, vestiu-se com
extremo cuidado, escovou os cabelos com a brilhantina de Charles, até vê-los espelhar, e desceu.
Rose e Jim estavam de partida e Peter teve a impressão de que eles haviam protelado sua partida até que ele chegasse. Rose voltou-se para ele e disse com voz suave:
- Quer que o levemos até a estação?
- Vamos todos! exclamou Kitti alegremente, com seu modo estabanado.
Peter despediu-se de Eva e Richard com uma gratidão profusa e eloquente. Depois subiu com os outros para o grande carro vermelho. Era incrível que ele, que há algumas
horas estacionava timidamente nesse mesmo portão, partisse agora daquele modo, fazendo parte daquele grupo alegre.
Ficou muito junto a Rose, no assento de trás, e a cada um dos movimentos do carro, sentia a seda do seu vestido deslizar-lhe contra a pele macia. Estaria ela corada?
Ele o ignorava. Tudo o que sabia é que se sentia feliz.
Desceram na plataforma onde o trem o esperava Ralston sendo ponto terminal. E agora ele abençoava seu bilhete de primeira classe. Entrou no compartimento com um
ar de fidalga indiferença e debruçou-se na janela, defronte do pequeno grupo que estacionava lá fora. Riam, todos e brincavam; Jim, tornando-se de repente engraçado
tirou do bolso uma quantidade de níqueis e pôs-se a experimentar a sorte na máquina automática. Comiam chocolate, conversando
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em torno da sua janela. Afinal a locomotiva apitou, resfolegou uma, duas vezes e partiu.
Galantemente, Peter tirou o chapéu e agitou-o na mão, conservando os olhos fixos no grupo que diminuia pela distância. Seria fantasia sua, ou Rose havia correspondido
àquele aperto de mão que lhe dera? Agora ela acenava um último adeus, no momento em que ele sumia na curva.
Exultante, Peter levantou a janela e jogou-se para trás, nas almofadas. Tinha vontade de gritar, de cantar. Era maravilhoso! Como se divertira! Era um bonito rapaz
e saíra-se extraordinariamente bem em tudo. Que sucesso fizera! E que gente encantadora! Rose, especialmente valorizada pela sua torre e seu Argyll, com aquele diamante
faiscando com tanta simplicidade em seu colo redondo! De repente, pôs-se a rir. A vida estava se abrindo maravilhosamente ante ele. Depois, fechou os olhos e encostou-se
nas almofadas com um sorriso ainda a brincar-lhe nos lábios.
-" XXIV -
QUANTO a Lucy, chegou tarde do trabalho. Ao entrar em casa, não encontrou Peter. com um ar fatigado, apanhou seu bilhete. "Retido por uma tarde em casa de Evinha.
Tio tom". Nenhuma indicação sobre a hora em que estaria de volta, nenhum pensamento gentil para ela, nenhum recado afetuoso. Seu rosto corou violentamente ao ler
aquelas palavras. Arrancou o chapéu e jogou-o no armário. Sufocava! Então ele fora! Sentou-se e seus pensamentos voaram para longe. Um momento depois, sobressaltou-se,
bruscamente. Por que se sentia daquele modo, tão despeitada, tomada de uma amargura tão intensa? Que lhe estaria acontecendo? Anos atrás, teria ficado encantada
com uma visita daquela natureza. Teve uma visão das suas visitas com Peter a Port Doran. Agora, havia mudado de um modo estranho e insidioso. Não tinha roupas próprias;
não gostava de Eva; tinha justas queixas de Richard. Além disso, estava cansada, depois de uma semana de trabalho árduo. Havia, porém, uma razão acima dessas coisas
que a fizera recusar aquele convite. Seria que aqueles anos de luta e ansiedade e a consciência da inferioridade do seu modo de vida tinham destruído sua sociabilidade
? Não! A razão não era aquela. Eva . ia saber que seu filho lhe desobedecera. A recordação daquele encontro recente feriu-a. Sim! a vitória pertencia a Eva,
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que havia forjado tudo. Lucy sabia que aquilo constituiria um delicioso triunfo para aquele cicioso pequeno poço de insinceridade. Abrigava naquele momento um ódio
diabólico e amargo de Eva. Queria que a deixasse em paz com seu filho. Nada mais. Que deixassem Peter tranquilo. Queria-o apenas para si, e agora, sabendo-o longe,
sentia-se desgraçada. Confessava-o a si própria.
Automaticamente, ergueu-se e pôs uma chaleira a ferver para preparar o infalível conforto de uma chávena de chá,. Controlando-se, reuniu todas as suas forças. Afinal
não havia nenhuma conspiração universal para afastar seu filho do seu lado, e ele a estimava. Tranquilizou-se pensando naquela deliciosa noite do Empire.
Tomou o chá, pegou um livro e esforçou-se por ler. No andar de baixo, Alice Maitland começou a tocar aquelas intermináveis escalas, o que sempre a enfadava; mas
Lucy nem ouvia aquelas notas, nem via as palavras impressas defronte de si. Esperava. E consolidava sua resolução de não se mostrar violenta, deixando-se dominar
pela raiva.
Quando Peter regressou de Ralston, viu com um curioso aperto no coração que ele estava radiante. Perguntou em tom forçado, porém carinhoso:
- Você se divertiu?
Visivelmente tranquilizado por essa recepção. Peter confiou-lhe suas aventuras em Lê Nid.
- Todos lhe mandaram muitas lembranças, terminou ele intencionalmente, já sem fôlego, depois de manifestar o entusiasmo de que se achava possuído.
- Muito bem! exclamou Lucy a quem estava custando um terrível esforço sua determinação de conservar-se calma. Lembranças! As lembranças deles haviam porventura feito
Peter ingressar na Universidade?
- Não vejo em que possam ser criticados! disse Peter inocentemente. ?
- Que tal está Vera, agora indagou Lucy abruptamente.
- Assim! Mal lhe falei. - E dirigindo à sua mãe um sorriso encantador. - Havia, porém, lá, uma turma esplêndida! Um dos grupos veio num desses carros Argyll novos,
que devem custar uma fortuna. Não ficarei satisfeito enquanto não tiver um carro daqueles e dinheiro para fazê-lo correr.
O riso apagou-se-lhe no rosto e Peter lançou um olhar desgostoso em torno da peça. - É horrível voltar-se para um buraco desses depois de se ter estado numa casa
decente.
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Você precisa ver o quarto de banho lá. Aqui, como poderemos convidar alguém?
- Mas, já agora, não ficaremos aqui muito tempo, respondeu Lucy meio aborrecida.
- Graças a Deus! tornou Peter.
O tom que ele usava estava se tornando insuportável para Lucy, que esteve prestes a ter uma terrível explosão. Mas não disse palavra. Em silêncio, viu-o entrar no
quarto para mudar a roupa. Quando Peter voltou, trazia os livros, que jogou sobre a mesa, começando a estudar.
"Enfim, tudo passou", pensou Lucy congratulando-se pela sua reserva. "Ele esteve naquela festa idiota, mas eu não quero mais pensar nisso."
Aparentemente Peter também deixou de ipensar no caso, porque não voltou a aludir a coisa alguma do que se passara naquele dia. Mesmo assim, Lucy não estava tranquila.
Seria imaginação sua ou seria mesmo que ele estava mudando de um modo indefinível? Quem sabe si alguma semente misteriosa de inquietação não fora semeada nele,,
naquela única e mal-aventurada excursão ? Era absurdo, ridículo; contudo, muitas vezes, durante a noite, quando ela erguia os olhos do seu trabalho e olhava para
o filho, via-o fixar os livros com uma expressão vazia. Observava também que Peter se tornava cada vez mais preocupado com suas roupas, queixava-se cada vez mais
da escassez de dinheiro; trouxe do laboratório um vidro de loção para pele. Numa tarde em que ela teve que voltar inesperadamente à casa por ter esquecido alguma
coisa, encontrou-o sentado à mesa escrevendo furiosamente. Todas aquelas evidências apontavam na mesma direção. Lucy, por vezes, achava que se estava preocupando
sem motivo. Além disso, não havia ela resolvido afastar qualquer suspeita que se quisesse insinuar na doçura do seu amor ? Não se deixaria mais uma vez desfeitear
pela desconfiança. Seu terrível engano com Frank fora suficiente. Não, não suspeitaria Peter de coisa alguma.
E eis que, um belo dia, nos fins de maio, ao entrar no escritório, ouviu Miss Tinto rir alegremente enquanto olhava para Adam Dandie, que, de pé, no meio da sala,
com seu natural talento histriónico, ocupava-se em fazer a imitação de alguém que se curvasse galantemente, oferecendo o braço a uma criatura invisível - certamente
do sexo feminino - a quem dirigia essas palavras. "Atravessemos Maidenhall, minha querida, tome o meu braço, sim?" 305
Parada, na porta, Lucy sorriu involuntariamente. Dandie, que não havia dado pela sua presença, continuou, falando com Miss Tinto:
- Tão certo como eu estar aqui! Foi assim que eu o vi. Divertidíssimo! - E pôs-se a rir.
Nesse momento, Miss Tinto, desviando os olhos, viu Lucy e corou, cheia de confusão, voltando a mergulhar-se no livro de pagamentos que estava aberto diante dela.
- De que estão rindo? perguntou Lucy entrando e "fechando a porta atrás de si.
Miss Tinto articulou qualquer coisa inaudível, porém o inimitável Dandie, mesmo pegado em flagrante, enfrentou a situação corajosamente.
- Digam-me, insistiu Lucy.
- Não era nada, disse Dandie.
Lucy fixou-o, sentindo-se invadir por uma desagradável suspeita.
- Era alguma coisa sobre mim? indagou severamente.
- Em absoluto, protestou ele; estávamos nos divertindo um pouco.
- Era alguma coisa comigo, tornou a insistir Lucy, ríspida. Vamos, diga o que era.
Dandie impacientou-se.
- Estou lhe dizendo que não era, replicou. É que vi na rua, esta tarde, seu filho de braço com uma qualquer. Está aí o que era! - E dirigindo-se para sua secretária,
deixou cair o livro que trazia, com estrondo, assumindo um ar ofendido. Depois começou a somar alto suas contas.
Lucy sentiu que corava e estava a pique de repudiar, indignada, aquela asserção. Hesitou, porém. E si fosse verdade? Ela sabia que Dandie conhecia Peter, que já
viera algumas vezes falar com ela no escritório, e sabia que era dotado de ótima vista.
- Eu não me incomodaria por uma coisa dessas, observou Miss Tinto sem levantar os olhos do seu livro de contas. Todos os rapazes fazem essas coisas, de vez em quando.
Lucy não respondeu a essas palavras. Mordeu os lábios e dirigiu-se para a sua mesa, onde jogou a pasta e o livro com rudeza, sentindo os olhos dos outros sobre ela.
As cinco horas, deixou o escritório sem se despedir de nenhum dos dois. Corria, quase. Tardava-lhe chegar em casa. Peter já lá estava, à sua espera. (
- Faz favor de entrar, Lucy, - disse ele amavelmente. Estou morto de fome.
- Onde esteve você esta tarde?
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- Por que? Para que essa pergunta? - O rosto de Peter alterara-se àquela atitude. ?- Estive no dispensário, vendo os doentes, como sempre faço.
?- E onde esteve depois disso? - Essa pergunta foi feita desabridamente.
Peter olhou-a de um modo estranho:
- Mas que é isso, afinal, mamãe? O que é que você está querendo saber?
- Responda-me! gritou Lucy.
- com quem é que você pensa que está falando? exclamou Peter encolerizando-se. Não sou mais nenhum meninozinho de escola.
- Responda-me, repetiu Lucy feroz.
- Você está doida? alarmou-se Peter, já agora com um pouco de medo dela.
Olharam-se em silêncio. Os lábios de Lucy estavam exangues e sentia o coração bater descompassado.
- Você foi visto na rua Maidenhall esta tarde com uma criatura, de braço dado.
- E que tem isso? disse Peter sombrio.
Ele não negara! O sentimento que sufocava Lucy tornou-se intolerável.
- Que tem isso? tornou ela furiosa, é o que você tem a dizer quando seu trabalho está aí por fazer, enquanto você gasta seu tempo nessas coisas e ainda por cima
quase sem um penny no bolso!
- De quem é a culpa?
- Que explodiu ela. Você ignora que saindo assim em plena luz do dia pode perder sua pensão, si tudo se divulgar? É humilhante! É indigno!
- Veja como fala! exclamou Peter exaltado. Deixe de julgar assim as criaturas! Que mal houve no que eu fiz
Os lábios de Lucy tremiam enquanto o olhava.
- Você está louco? disse com voz estrangulada. Esquece desse modo seus deveres, e vai por aí com qualquer criatura desmiolada da rua Maidenhall, enquanto eu luto
para dar-lhe as coisas! Será que você não tem mais que fazer do que se tornar um inútil idiota?
- Você luta para dar-me as coisas! falou Peter altivamente. Eu creio que tenho uma bolsa!
- Então você nega que eu me estou privando de tudo neste mundo por sua causa! perguntou Lucy indignada.
- Não seja vulgar! replicou Peter com gélido desdém.
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- O que ?... - Àquelas maneiras fizeram-na perder o controle. Lucy recuou o braço e depois vibrou uma terrível bofetada no rosto do filho.
Peter recuou àquele ataque inesperado e, agarrando-se à toalha da mesa, arrojou por terra a louça do chá, que se partiu com grande ruido. Em seu rosto pálido, começaram
a aparecer as impressões vermelhas dos dedos de Lucy.
- Bem! Agora sei onde chegamos! bradou Peter endireitando-se; e procurando assumir uma atitude digna, rodou sobre os calcanhares e foi para o seu quarto, fechando
a porta atrás de si com violência.
Lucy seguiu-o com os olhos, que agora se achavam reluzentes de lágrimas. Ofegava como se tivesse corrido. De repente ouviu um fuido no hall. Na sua agitação, ao
entrar, deixara a porta aberta e Missis Finch entrou nesse momento.
- Pensei que tinha ouvido alguma coisa, disse ela abrindo uns olhos redondos, que, desde o escândalo que o marido
promovera, pareciam estar sempre na expectativa de uma calamidade Semelhante; a senhora... a senhora deu alguma queda ?
- Eu... eu tropecei, explicou Lucy fixando a outra como se estivesse em transe; depois procurando tornar sua explicação mais clara e menos falsa completou: - Tropecei
na mesa.
- Será que a senhora está doente? interessou-se Bessie. Quer que eu faça alguma coisa?
- Agora já estou bem, disse Lucy pronunciando com dificuldade as palavras e apoiando-se na mesa com um braço hirto. Missis Finch curvou-se e apanhou as coisas que
tinham caído. Uma chícara e um prato haviam-se partido. Depois, erguendo um rosto congestionado, sugeriu timidamente:
- Eu posso ir buscar um pouquinho de whisky.
- Não! protestou Lucy. Muito agradecida. Preciso apenas descansar.
- Mas... ia insistir Bessie; porém, alguma coisa na atitude de Lucy impressionou-a e ela, com uma expressão confusa no rosto redondo, saiu da sala, atravessou o
hall e fechou a porta atrás de si.
Lucy, então, sentou-se. Sentia-se ridiculamente fraca e a mão que descansava sobre o joelho tremia levemente. Assim ficou durante cinco minutos. Depois, levantou-se
e tomou um copo de água. A cor ia-lhe voltando lentamente ao rosto. Pôs-se a preparar o chá, arranjou a mesa, jogou a louça quebrada no lixo e finalmente, com um
esforço quase doloroso, veio até a porta do quarto do filho onde bateu com firmeza.
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- Peter! disse em voz baixa e controlada. Venha tomar seu chá.
Não esperou pela resposta. Depois de um momento de ansiosa espera, Peter abriu a porta e aproximou-se lentamente, com as mãos metidas nos bolsos, a boca amarga,
e apesar do tamanho e da idade, trazendo uma expressão desconcertada na fisionomia. Sentou-se e começou a comer em silêncio. A mão de Lucy, ao passar-lhe a chícara,
estava perfeitamente firme.
- Tome as torradas, falou com voz distinta, estendendo-lhe o prato.
Houve um longo silêncio.
- Obrigado, mamãe, disse enfim Peter com esforço, mastigando as torradas com manteiga como si fossem de pau.
Uma profunda e poderosa emoção inundou Lucy, mesclada a um imenso alívio. Seus olhos pousaram compadecidos naquela cabeça baixa. Havia perdido o controle. Não pretendera
subjugá-lo daquele modo. Sua vitória pesava-lhe como um desgosto. Fora tudo, porém, para o bem dele. Talvez para o seu, também.
Sim! Fora tudo para o bem de ambos.
- XXV -"
LUCY julgava haver restabelecido a antiga intimidade e, para fazer desculpar sua atitude, envidava todos os esforços para agradá-lo. Agora Peter estava estudando
para os exames finais e ela, como sempre, se desvelava em torno dele. Durante aquele verão, sua situação económica piorara. O preço dos géneros alimentícios subira;
seu ordenado, entretanto, continuava o mesmo. Por esse tempo, ela já poderia ter melhorado sua posição. Fora otimista ao entrar na firma Henderson Shaw; mas agora,
já, há muito compreendera que suas possibilidades eram limitadas. Não era muito talentosa ; e, por isso, sabia que nunca poderia subir nem melhorar aquela sua humilhante
situação presente. De qualquer modo aquilo teria que ajudá-la em seus propósitos; depois, deixaria! tudo. Si não era brilhante, era teimosa, de uma teima intransigente
e comprovada, que crescia na razão da adversidade."
Vê-la caminhar ao longo na rua das Flores, naquelas tardes de verão em que se podia sentir o ar parado, era observar um espírito transcendendo dos limites da frágil
carne. Caminhava lentamente, o vestido gasto até o fio, colado à pele,
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pela transpiração, o chapéu, deformado já, enterrado até as sobrancelhas, o corpo erecto, porém um dos ombros caídos sob o peso da pasta cheia também das compras
que fazia, os lábios pálidos, os olhos remotos e enormes, o rosto descorado e emagrecido. Toda ela respirando esse ar peculiar aos isolados.
Não dava atenção à vizinhança, evitava as crianças que brincavam na rua, sem ver as mulheres que se calavam à sua passagem para .seguí-la com o olhar.
Embora não tivesse consciência de ser uma mártir, era como uma criatura perseguida - perseguida por si própria
- caminhando para algum propósito de amor e sacrifício. Mesmo assim, obcecada por esse propósito, não era insensível ao sofrimento que ele lhe causava. Sofria. E
sabia também, a despeito da sua pretensão de ser invencível, que estava caminhando rapidamente para o limite da sua tolerância. Muitas vezes, no meio da noite, despertava
no recesso do seu quarto, banhada no frio suor de um terrível pesadelo. Peter falhara nos exames! Sua saúde arruinara-se! Ou então, com uma angústia indizível, sonhava
que havia perdido sua pasta. Mesmo desperta, esse medo a assaltava a miúdo - o medo de sofrer um desastre monetário que seria para ela uma calamidade. Mesmo dormindo,
as preocupações não a abandonavam. Despertava, por vezes, exausta, como se tivesse sido espancada.
A essência da sua vida era o sacrifício. Recusava tudo a si própria, visando um futuro brilhante. Vestidos, férias, esquecia tudo e procurava até deixar de se alimentar.
Vivia em perpétua dieta - não a sua dieta favorita: frango com aspargos - porém o que comia era suficiente para fazê-la viver, e no momento era tudo o que ela exigia.
Não sofria, aliás, de debilidade física, afora alguns eventuais ataques de vertigem causados pela sua dieta quase exclusivamente farinácea. Embora desconhecesse
a causa, aquilo começou a afetar seriamente as condições dos seus dentes. Sua dentadura fora firme e perfeita, tão alva que Frank muitas vezes a comparara" ao leite
desnatado. No princípio, na rua das Flores, Lucy continuara a cuidar muito dos dentes, escovando-os de dia e de noite com giz canforado; mas as escovas de dentes
- especialmente as baratas que podia comprar - ficavam tão rapidamente destituídas de pêlos, que ela desistiu de adquirilas e começou a usar, em seu lugar, retalhos
de pano. Depois, sempre visando a economia, enquanto Peter escolhia a melhor pasta de dentes para si, ela abandonou o giz canforado para usar unicamente o sal grosso,
que ouvira dizer que era um excelente dentifrício.. Agora, como resultado dessas
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limitações, seus dentes estavam estragados e Lucy sofria cruciantes dores em dois molares. Cheia de resolução resolvera nada contar a Peter, que andava absorvido
nos estudos para os exames finais, achando que ele já tinha muito em que se preocupar. Apesar das dores que a afligiam, cercava o filho de todo o conforto que o
momento exigia. As refeições apareciam-lhe na mesa como por arte mágica. com medo de perturbá-lo, ficava ao seu lado, durante horas, perfeitamente imóvel em sua
cadeira de balanço. Levava seu tricot para o outro quarto, para que o tinir das agulhas de metal não o distraísse. Chegou a descer ao andar onde morava Missis Maitland
para pedir-lhe o favor de tomar medidas para que o estudo de piano de Alice não fosse perturbar Peter durante certas horas. Pensava em tudo e não omitia coisa alguma.
Elevava-se, apesar das dificuldades com que lutava, a alturas que tocavam as raias do sublime.
Aquela dor, porém! que faria ela para acabar com aquilo ? Justamente quando precisava estar melhor, para o último arranco durante os exames, ficava paralisada pelo
sofrimento.
Na tarde das primeiras provas, a dor de dentes não melhorara e, depois de sua visita semanal à rua Wliite, Lucy parou defronte do modesto consultório de um dentista
americano que muitas vezes observara de passagem. Hesitou um pouco, mas acabou entrando. Sua intenção era fazer antes umas indagações; o dentista, no entanto, que
era um homem alto e forte, de sorriso largo e alegre, levou-a para a cadeira estofada de vermelho antes que ela pudesse protestar.
- Não seria má ideia extrair todos os dentes e colocar uma chapa, disse alegremente, depois de um rápido exame.
- Não, não! Quero apenas libertar-me da dor de dentes, replicou Lucy alarmada.
- Então vamos tirar quatro dentes para começar, tornou o dentista pegando na seringa hipodérmica.
Lucy pôs a mão sobre a manga do seu casaco.
- Mas quanto vai ser isso ? indagou, preciso sabê-lo antes. - Tudo fica por cinco shillings.
O rosto de Lucy anuviou-se:
- Então não posso!
- Nesse caso três shillings e meio, concedeu o dentista. ?É o preço mínimo; mal paga o anestésico.
Três shillings e meio! Era ainda uma soma avultada. Lucy pensou por um momento, depois disse lentamente.
- E quanto é... sem anestésico ?
O dentista olhou-a, compreendendo por fim um pouco daquela miséria.
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- Então, fá-lo-ei por dois shillings.
- Está bem! exclamou Lucy suspirando. Reclinou-se para trás, agarrou-se firmemente aos braços da cadeira, fechou os olhos e abriu a boca.
A tortura foi indizível. A dor era como línguas de fogo lambendo-lhe os maxilares, subindo-lhe até o cérebro. Ela nunca sonhara que alguma coisa pudesse ser tão
angustiante. O último dente pareceu levar-lhe todos os ossos. Ela, porém, nem siquer gemeu.
Afinal aquilo cessou. Depois de enxaguar o sangue da boca, levantou-se e, com o rosto pálido, abriu a carteira, deu ao dentista os dois shillings. Era um preço baixo
para a conservação do seu orgulho.
Em caminho para casa, sentia-se fraca, num estado meio vertiginoso.
-" Deus do céu, mamãe! admirou-se Peter olhando-a quando ela entrou, que está você sentindo?
- Não é nada, respondeu ela, deve ser esse calor. Mas você... como esteve nos exames ? - E pôs-se a fazer o chá como de costume.
As gengivas de Lucy foram lentas em cicatrizar, mas, livre da dor persistente, sentia-se outra mulher. Durante os dias subsequentes não apresentou sinais de abatimento.
Estava calma, e procurava infundir confiança a Peter. Durante a semana inteira, ela viu-o sair e chegar, confortando-o, apresentando-se sempre cheia de otimismo.
Finalmente, terminaram as provas. Então, Lucy teve uma reação. Sentiu-se débil, lânguida, como si estivesse completamente: exausta de forças e foi assaltada por
estranha agitação.
A medida que se aproximava o dia da divulgação do resultado dos exames, essa agitação, de há muito reprimida, exaltou-se e quase a traiu. O êxito desses exames significava
tudo para ela. Sentia, como uma espécie de fatalismo, que, si Peter falhasse agora, ela nunca mais poderia repetir aquele supremo esforço. Fora até ao limite das
suas forças.
Passou-se lentamente outra semana, mas suas apreensões não cediam. No dia aprazado para a publicação oficial das notas dos-exames, ela se dirigiu ao escritório terrivelmente
impressionada. "
312
-" XXVI
- Você está um feixe de nervos, criatura! exclamou
-Miss Tinto cheia de uma dignidade que se tingia de
censura. - Como si essa preocupação adiantasse alguma
coisa! i
- É isso o que sente? perguntou Adam Dandie fazendo tremer violentamente as pernas arqueadas, como si estivesse tomado de grande pavor.
- Não é bem isso, replicou Lucy com um sorriso forçado e depois com um movimento de cabeça orgulhoso: Não tenho medo!
- Ainda bem! disse Dandie com um sorriso malicioso,
- Você conhecerá o resultado quando chegar a hora, observou Miss Tinto com um ar conclusivo e judicioso. O mundo não se acabará si.. .
Nesse momento a campainha do telefone retiniu. Miss Tinto interrompeu-se, tomou o receptor e pô-lo ao ouvido. Depois, com uma curiosa expressão, voltou-se para Lucy:
- É a você que estão chamando.
Quatro olhos se pregaram em Lucy enquanto ela se aproximava da secretária.
A voz de Peter chegou-lhe pelo fio tão clara como si ele estivesse ao seu lado.
- É você, mamãe? - Sou eu.
- Bem... falou ele, achei que devia lhe telefonar, compreende?
- Mas... o que se passa? perguntou ela alarmada. Houve alguma coisa...
- Não. Nada de mau.
- Então o que há? - Uma súbita fraqueza apoderou-se de Lucy. Era a primeira vez que Peter lhe telefonava e aquelas suas hesitações convenceram-na de que sucedera
algum desastre.
Aos seus ouvidos soou o riso de Peter: ?- Não fique nervosa, Madame Lucy. Lucy nada respondeu: tremia, doente com aquela incerteza,
- De qualquer modo, continuou a voz alegremente, pensei que você gostasse de saber que quem lhe está falando é o Dr. Moore.
313
Por um segundo ela não compreendeu; depois tartamudeou :
- Peter... é verdade ?
- É um fato - assegurou ele com naturalidade; acabo de consultar as listas. É positivo!
Lucy não pôde articular palavra alguma. Os olhos tornaram-se-lhe cegos de lágrimas. uma imensa onda de alegria apoderou-se dela.
- Você sempre teve a certeza de que eu passaria, não é mesmo?
- Sim, claro! gaguejou ela sufocada pela emoção, sentindo a língua rígida.
Houve um silêncio durante o qual Peter pareceu esperar que Lucy se congratulasse com ele. Ela, todavia, estava demasiado comovida para falar. Depois, novamente ouviu
a voz dizer.
- Hoje não vou almoçar em casa. Ficarei aqui com os outros para uma espécie de comemoração.
- Muito bem, assentiu ela, rápida.
- Então, -até logo, mamãe.
- Peter... disse ela, encontrando finalmente uma expressão para a felicidade que a invadira. Ele, porém, já se fora, e Lucy ficou defronte do telefone entontecida
por uma luz interior. Depois pendurou lentamente o receptor. Estava possuida de uma suprema, sublime beatitude. Seu rosto iluminara-se estranhamente. Lutara, mas
a luta terminara. E vencera! Sim, a vitória lhe pertencia. Tinham ambos vencido aquele terrível e desigual conflito. Sem coisa alguma, havia elevado o filho do nada
àquela nobre e exaltada profissão. De súbito, o coração oprimiu-a. Quisera proclamar seu êxtase de felicidade. Olhou em torno, exultante. Vitória! A vitória era
sua!
- Foi aprovado! gritou ela com explicável emoção. Meu filho foi aprovado.
Os companheiros olharam-na por algum tempo, em silêncio.
- Muito bem! falou Miss Tinto. Ótimo! Passou com distinção, ou alguma coisa assim?
- Não sei... nem me interessa sabê-lo, tornou Lucy excitada. A falta de entusiasmo daqueles dois surpreendia-a. Aquela nova maravilha do universo nem lhes causava
admiração, nem os entusiasmava. Delicadamente, murmuraram umas palavras de parabéns. Estavam satisfeitos, mas não transportada"
314
- Agora temos uma orgulhosa mãe, comentou Dandie não sem um laivo de sarcasmo.
- Pelo menos, disse Miss Tinto conclusiva, sua preocupação terminou.
- .Agora, dentro em pouco, ela nos deixará por causa de sua situação, afirmou Dandie gravemente, fixando o teto.
- Creio que sim, disse Lucy alegremente; já estou farta deste trabalho. - E sorriu .para eles.
Deixou o escritório sob essa mesma aura de felicidade. Nas ruas, a vida da cidade parecia subitamente transfigurada. As cores dos bondes pareciam tiradas do arco-iris.
Os homens que esbarravam contra ela, dirigindo-se para o trabalho, tinham uma alegre impetuosidade. As vitrines seduziam-na. O sol tinha um brilho intenso. Até mesmo
o ar estava diferente, capitoso como um vinho.
Durante o dia todo, enquanto trabalhava, o pensamento de seu triunfo - o triunfo do filho havia-se tornado seu ?estava constantemente em seu espírito. A intervalos,
tinha pequenas exclamações de alegria. Seu rosto libertara-se da fixidez habitual e se achava animado como o de uma jovem. Os lábios exibiam a mesma linha ascendente
que haviam tido na mocidade. Seus pés estavam novamente ligeiros, suas costas aprumadas.
Dez palavras pelo telefone tinham-lhe retirado dez anos de sobre os ombros.
Não via o caso pelo prisma real, como poderia fazê-lo. Era uma mulher qualquer, uma pobre mulher que lutara durante anos esgotando-se num emprego mesquinho; que
se privara de tudo para fazer com que seu filho, um rapaz medíocre, completasse o curso de um colégio de província e emergisse finalmente em companhia de cem outros,
igualmente medíocres e inexperientes, que, pronunciando mal o latim de juramento de Hipócrates, em breve estariam soltos em um confiante universo. Para Lucy, porém,
não era assim. Não! mil vezes não! Para ela, a batalha fora homérica; o prémio, supremo. E agora, a vitória - tão arduamente conquistada - era um êxtase inexprimível.
Nessa noite, ao regressar à rua das Flores, subindo os degraus estragados, entrou em casa. O filho já lá estava. Ela parou em frente a ele, com os olhos subitamente
úmidos
- Peter, exclamou estendendo-lhe os braços - Peter!
315
- XXVII -
ERA chegado o grande e triunfante dia.
? Lucy vestia-se para a cerimónia da colação de grau, as faces coradas, os movimentos meio confusos pela excitação. Peter, imaculado como um noivo, já partira antes
para alugar uma toga, e agora ela, com os olhos no relógio, começara a enfiar o vestido novo. Enquanto o passava pela cabeça às pressas, foi perturbada por uma vaga
apreensão. Fizera ela própria aquele vestido, do fim de uma peça de voile pardo que comprara numa liquidação na casa Tutt, cortando-o sobre um molde do Welãon s
Home Dressmaker e cosendo-o rapidamente, o melhor que pudera, sem o auxílio de máquina, durante as noites da semana anterior. Por consequência, duvidava um pouco
daqueles pontos e agora, mirando-se ao espelho, pôs-se a duvidar também do vestido. Não estava gasto nem usado como. "a relíquia" e, afinal de contas, vestia-a.
Não era, porém, o vestido que sonhara - alguma coisa suave e transparente, para disfarçar os contornos do corpo, pois começava a engordar - fora contudo o melhor
que pudera arranjar. Mas que importava o vestido e o resto da sua modesta toilette? Era a colação de grau que era importante, e o raro deleite de vê-lo, a ele, seu
filho, reunido aos colegas em assembleia.
Durante anos, viera imaginando esta cena e agora chegara o dia, o glorioso dia!
O relógio dava seis pancadas demoradas, quando Lucy transpôs o pórtico da Universidade. Durante aqueles cinco anos, nunca entrara naquele edifício apesar de haver
concentrado ali quase toda sua vida. Tudo parecia em festa. Carruagens e automóveis convergiam para o portão da entrada. Havia uma verdadeira multidão nos terraços.
Uma bandeira flutuava languidamente na alta haste branca.
Seguindo os retardatários ao anfiteatro, entrou no Bufe Hall toda corada e, por sorte, encontrou uma cadeira encostada na parede, na última fila da galeria repleta.
Aí instalou-se respirando, sentindo-se segura e despercebida.
Olhou em torno, mas não pôde ver Peter. A sala estava ocupada por uma assistência seleta. Lucy instintivamente aprumou-se orgulhosa em sua cadeira.
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De repente, soou um harmónio alto e triunfante, que dominou o murmúrio da conversação. Aquele som de órgão transportou-a. Tornou-se o símbolo da sua vitória, o infinito
onde seu espírito, de súbito, criou asas.
A música cessou e, com um sobressalto, Lucy voltou daquele sonho. Viu entrarem os professores, passando de dois em dois, seguindo o mestre de cerimónias que trazia
um bastão e lhes indicava os lugares que iam assumindo, graves, doutos, em suas togas e curiosas capas. Os capelos punham notas coloridas, escarlates, azues e amarelas,
nos grupos escuros que formavam. O Reitor, um homem de pescoço curto, de olhar esperto e de barba em ponta, subiu à plataforma. Ouviu-se uma oração em latim.
Depois a cerimónia da colação teve início.
Lucy inclinou-se avidamente, observando uma por uma as figuras vestidas de negro, que avançando até a plataforma, se ajoelhavam numa atitude suplicante e eram tocadas
pelo Reitor, que lhes concedia solenemente o pergaminho.
O momento era impressionante.
De súbito, o corpo -de Lucy tornou-se tenso, rígido pela expectativa. Ouvira, afinal, chamar o nome de Peter. O sangue subiu-lhe às faces, ao ver o filho emergir
de baixo da galeria e avançar para a plataforma, erecto, a toga a cair-lhe em pregas nas costas. Estava pálido, porém senhor de si. Cumpriu com perfeição o ritual
que lhe exigiam: ajoelhar, inclinar-se, erguer-se. Fez, tudo com tanta distinção,! O coração de Lucy estremeceu-lhe no peito. Uma forte salva de palmas saudou Peter
ao levantar-se, calorosos aplausos que quase a surpreenderam e que vinham do centro do salão. Quanto a ela, nem moveu as mãos, que lhe jaziam rígidas no regaço.
Era demasiado orgulhosa para aplaudir e o momento a comovera sobremaneira, empolgando-a. Mais tarde, diria a Peter o que sentira. Fora uma emoção muito profunda,
muito íntima, para ser exteriorizada.
Terminara a cerimónia! Lucy sentiu-se entontecida pelo ruído e pelo movimento. Novamente soou o órgão, depois ela se ergueu, como os demais, e dirigiu-se para a
saída.
O progresso, em direção à porta, foi lento. Os grupos parados, conversavam e riam. Ninguém tinha pressa e muitos lhe barravam o caminho. Alguns a olhavam curiosamente
- pensou ela - um olhar de alto a baixo, e depois desviavam os olhos. Lucy não queria passar na frente de pessoa alguma, e contudo desejava sair dali. Prometera
a Peter encontrá-lo lá fora, nos corredores.
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Por fim, encontrou-se nesses corredores, repletos da mesma multidão elegante. Lucy sentiu-se deslocada, com um arremedo de vestido que lhe caía tão mal quanto um
saco em que se achasse envolvida. Mas que importava aquilo? Dentro em breve essas coisas pertenceriam ao passado. Vestir-se-a de cetim e não de saco. Esperava o
filho. Partiriam juntos.
Esperou encostada a uma das colunas, observando a multidão com um rosto impassível. De repente, viu Peter e seus olhos se puseram a sorrir: mas, imediatamente, estremeceu.
Seus punhos cerraram-se e as sobrancelhas aproximaram-se, enquanto o olhar se fazia sombrio e se tornava fixo. O seu filho ali estava, com a cabeça descoberta, a
toga a lhe flutuar em torno; falava, ria e era o centro de um grupo. Enquanto os olhos de Lucy detalhavam esse grupo, os lábios comprimiam-se-lhe numa espécie de.rictus
de repulsa. Passou lentamente a mão pelos olhos, como si estivesse ofuscada. Sim. Era incrível! Ela nunca poderia imaginar, mas assim era. Âlí estavam todos. Todos
os seus parentes ali se achavam, aqueles mesmos que haviam conspirado contra ela: Richard, com Vera e Charles e, naturalmente, Eva. Lá estavam também Edward e, finalmente,
Joe, acompanhado por sua irmã Polly. Foi Joe o primeiro a vê-la. com sua grande mão fez um gesto tímido convidando-a a se aproximar. Todos os olhos se voltaram para
ela. Lucy permaneceu imóvel durante um momento; depois, vagarosamente, como uma sonâmbula, dirigiu-se para eles.
- Permita-me que a felicite também, Lucy, disse Richard imediatamente, com uma atitude que ela classificou de ingenuidade odiosamente fingida. - Isso foi uma bela
realização da parte do seu filho.
Lucy tomou-lhe a mão rigidamente, mecanicamente, ainda ofuscada pelo choque que tivera ao vê-los.
- É uma bela ocasião para uma família se reunir, observou Edward com sua urbanidade. E indicando Joe e Polly: - Quando Peter me escreveu, eu resolvi que nos encontrássemos
todos. Estamos muito orgulhosos dele.
- É isso mesmo; estamos contentíssimos por ter vindo, foi dizendo Joe com excesso de afabilidade. E, agora, vamos fazer uma refeição no Grosvenor,- quem paga tudo
sou eu.
- Nós tínhamos que vir para aplaudi-lo, disse amavelmente Eva beliscando o braço de Peter. E sorriu para Lucy, de sob o elegante e alado chapéu, ao mesmo tempo que,
com
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as luvas, acenava para um grupo de jovens que se aproximava. Depois acrescentou suavemente: - Trouxemos aqui alguns amigos que jogaram ténis com Peter, para cumprimentá-lo.
E murmurou, à guisa de apresentação, alguns nomes que Lucy, confrontando o grupo rigidamente, nem siquer ouviu. Uma raiva surda trabalhava-a, uma animosidade que
fazia novamente surgir a cor em suas faces pálidas. Que direito tinha essa gente de vir ali, sob o pretexto de amizade, para se meter com seu filho? Que fizeram
em favor dele ou dela ? Sozinha, conduziu aquela batalha, e agora, eles vinham partilhar seu triunfo. Haviam-se desinteressado dela, haviam-na desprezado, haviam-na
deixado lutar só. Cerrou os dentes para impedir que lhe corressem lágrimas de revolta. Era uma reunião de família, então! Oh! Deus! Aquilo era intolerável!
- Creio que é um pouco tarde para essa reunião, disse ela com uma frieza de gelo a Edward.
- Nunca é tarde para uma reparação, exclamou Eva com um pequeno riso. Àquelas absurdas palavras, a tensão desfez-se num riso geral.
- Por favor, mamãe, cochichou Peter ansioso, ao seu ouvido. Não fique assim, sobretudo hoje. Todos eles nos querem bem.
Lucy atirou-lhe um olhar ardente.
- Que tal se fôssemos andando já para o Grosvenor? acudiu Joe alegremente. Por mim estou morto de fome. McKillop é um bom amigo meu e há de nos ceder um gabinete
reservado. Quanto a bebida, desde já previno que vai haver champagne à vontade.
E voltando-se timidamente para Lucy acrescentou:
- Agora somos todos amigos, não é mesmo. E só os corações secos não festejam.
Houve um murmúrio geral de aprovação e todos se dirigiram para o saguão num movimento que arrastou Lucy com o grupo. Seus olhos, porém, conservavam-se duros e alguma
coisa se dilacerava em seu peito.
Em caminho para o Grosvenor, todos (falavam ao mesmo tempo de coisas desencontradas e fúteis. Lucy não teve opor tunidade de falar coisa alguma. De repente ouviu
uma voz que dizia, atrás dela:
- Havemos de caber todos no carro. Vamos ficar apertadíssimos, mas Peter pode sentar-se em seus joelhos, Rose.
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Um arrepio percorreu-lhe a espinha. Quis voltar-se, mas não pôde. Polly caminhava ao seu lado, sim, Polly! Mais gorda que nunca, resfolegando sob as vulgares e caríssimas
vestes. Polly, olhando-a com solicitude, indagava de sua saúde.
Lucy mal respondia. Queria agarrar Peter, tirá-lo dali, achar-se a sós com ele. Mas foi levada pelos outros para fora da Universidade, onde se achava uma fila imensa
de carros e automóveis. Pararam todos perto de um grande auto vermelho, cujo radiador niquelado brilhava ao sol.
. - Embarquemos todos! exclamou a mesma voz que ela ouvira antes. Enchamos o velho caminhão!
Essa voz pertencia a um rapaz que, com um sorriso encorajador, abrio ambas as portas do carro e pulou para a direção.
- Entre primeiro, Rose. Você pode muito bem ser comprimida. Vai ser a primeira sardinha.
- Faz favor de entrar, Missis Moore, disse alguém ao lado de Lucy. Esta voltou-se vivamente. Uma jovem alta, cheia, com os mesmos cabelos e, os mesmos olhos que
ela
via no rapaz, sorria-lhe amável, um pouco nervosamente. Lucy, porém, não correspondeu a esse sorriso. Mantinha se fria, ultrajada, furiosa. Tudo aquilo lhe parecia
uma vergonhosa conspiração contra ela.
- Não posso ir, respondeu ela friamente. Um protesto geral elevou-se.
- Você tem que vir, mamãe, insistiu Peter galantemente. Tirara a toga e agora inclinava-se para ela com solicitude. Enraivecida, Lucy julgou aquela solicitude uma
afetação.
- Você sabe que eu não posso ir, disse olhando-o com uma frieza que lhe dilacerou o- próprio coração. - Venha conosco, Lucy, interveio Edward brandamente. - Não,
não posso ir, recusou dolorosamente.
- Mas por que não? perguntou Joe com o polegar metido na cava do colete! (como Lucy detestava aquela atitude, santo Deus!); há tantos anos que não estamos todos
juntos
Todos os olhares se fixaram nela.
- Tenho que ir trabalhar, disse mentindo, enfrentando-os rigidamente.
Estabeleceu-se um silêncio cheio de constrangimento. Eva teve um pequeno riso de inflexões nervosas e entrou no
320
automóvel. O rosto de Peter ruborizou-se enquanto Rose o olhava surpreendida.
- Então entrem aqueles que puderem ir, falou Richard subitamente frio. Não podemos ficar aqui o dia todo e Lucy fará o que preferir. - E entrando também no carro
disse qualquer coisa a Eva em voz baixa.
Depois dele, subiram todos no automóvel. Todos menos Lucy. O motor trepidava. Lucy sentia os olhos do filho fixos nela com um olhar perturbado, implorante. Antes
que o carro partisse, ela agitou-se e. forçando as feições a assumirem uma expressão amável, despediu-se rapidamente e, voltando-se, pôs-se a descer a rua.
Ouviu o motor partir sem voltar a cabeça e, mesmo quando, pelo silêncio que se seguiu, sentiu que o carro já deveria ter desaparecido, não deteve seus passos. O
caminho que tomara estava errado. Afastava-a de casa mais dois quilómetros do que outro ,que poderia tomar. Bastar-lhe-ia voltar atrás e emreredar pela outra rua.
Mas não! Não o faria. De cabeça erguida, continuou pelo caminho que escolhera.
Ao chegar em casa estava exausta. Sem mesmo tirar o chapéu e as luvas-, atirou-se sobre a cama, onde se deixou ficar fixando o teto amarelecido e estalado.
Mentira quando dissera que tinha que trabalhar. Miss Tinto, generosamente, dispensara-a por todo o dia. Por que então se achava ali tolhida, infeliz, carpindo um
desgosto indefinido, quando podia estar naquela festa de comemoração com Peter tomando champagne?
Agitou-se inquieta, assaltada pelo ciúme. Tudo aquilo era tão injusto! Peter lhe pertencia por laços mais fortes do que o mero acidente do seu nascimento. Desde
aquele dia em que, meninozinho de oito anos, ele se atirara em seus braços de volta de Port Doran, ela o ligara a si por uma corrente que forjara com suas próprias
mãos.
A uma hora, levantou-se, fez um chá forte e tomou a escura e amarga beberagem. Sentiu-se melhor, mais calma. Via agora que se contrariara em vão. Aquela festa, aquela
congregação de parentes indesejáveis fora um mero incidente, um fato que, uma vez passado, não tornaria a acontecer.
Sua calma fortaleceu-se. Andou pela casa arranjando as coisas e, às quatro horas, saiu para fazer compras. Essas compras não foram feitas de modo habitual, e sim
de um modo diferente, quase dissipador. Seu humor, abrandando-se
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mais ainda, tornou-se quase um espírito de abandono. Era claro para ela, agora, que se deixara levar pela cólera naquela manhã. O choque que tivera, ,o inesperado
acaso, lançara-a naquele estado. "Esse meu génio!" pensou, abanando a cabeça. E recobrando o bom humor, sorriu pela primeira vez naquele dia. Realmente, era agradável
gastar dinheiro daquele modo! Chegou a comprar um ramo de flores da velha florista da esquina da praça James. Piores! Uma extravagância motivada pelo seu novo estado
de espírito. Poderia harver nada mais absurdo do que isso?
Voltou para casa a passo rápido, diferente do seu usual andar meditativo. Peter não voltara ainda e esse fato alegrou-a de modo estranho. com vivacidade, pôs-se
a fazer os preparativos para o jantar.
Sim. Aquela refeição não ia ser apenas um simples chá! Seria realmente um jantar. Ele almoçara no Grosvenor. Pois agora ia comparar os méritos daquela luxuosa cozinha
com os seus. Esse jantar ia ser, a um tempo, uma comemoração, uma justificação e uma reparação. Nem a própria Miss O Eegan poderia fazer coisa semelhante.
De mangas enroladas, o rosto animado, - parecia quase juvenil.
Enquanto as iguarias cozinhavam, arranjou a mesa escolhendo tudo o que havia de melhor, cobrindo o remendo que havia no meio da toalha com um vaso cheio das flores
que comprara, e sentou-se depois, fatigada mas alegre, numa expectativa alvoroçada, com os olhos no relógio que marcava sete horas menos um minuto. Em breve Peter
chegaria. Era muito pontual e pela manhã havia mencionado essa hora quando ela ?- que já delineara vagamente aquela comemoração - perguntara a que horas deveria
voltar.
" Assim ficou, esperando ouvir os passos do filho na escada.
Nada ouviu, entretanto. Nem os passos, nem o assovio com que a avisava. As sete e quinze, levantou-se e foi à janela. Mas Peter não estava à vista.
Voltou à cozinha e olhou para o relógio. Um quarto para as oito! Começou a perturbar-se. Seu olhar, porém, passando pela mesa, tranquilizou-a um pouco daquela inquietação
momentânea. Tudo estava perfeito. O jantar agora esperava sobre a chapa quente. Foi endireitar um ramo das flores e voltou a sentar-se.
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Não pôde contudo conservar-se tranquila. Levantou-se, andou para cima e para baixo no quarto, hesitou, depois novamente foi à janela, contemplou ansiosamente a rua
deserta e voltou vagarosamente.
Sentou-se outra vez, com os olhos no relógio, esperando agora com uma inquietação crescente.
Gradualmente, o brilhante alvoroço da expectativa foi desaparecendo. Surgiram-lhe rugas na testa. Toda a animação fugiu-lhe do rosto. Que teria acontecido a Peter?
Recomeçou a agitar-se sem descanso, indo à janela, voltando, olhando para o relógio, esperando, esperando, esperando, aguçando o ouvido para ouvir os passos do retardatário.
Às nove horas Peter ainda não chegara. Nem às nove e meia. Escurecera de todo e a alegria do dia extinguira-se completamente. Lucy, então, tirou a mesa e fez desaparecer
todos os vestígios do seu malogrado banquete.
Seus lábios caíam com uma expressão infinitamente patética: seus olhos, porém, nem derramaram lágrimas.
Quando, enfim, Peter chegou, ao soar as dez horas, ela estava sentada com o tricot nas mãos, a testa lisa, a expressãoimpenetrável.
- Não consegui me libertar daquela gente! disse ele imediatamente. Estava ofegante, mas sorria, cheio de bom humor. - Você ficou pensando que eu não viria? Estava
inquieta ?
Sem interromper o trabalho ela olhou-o fixamente:
- Não. Eu sabia que você ia voltar. - E acrescentou lentamente, dando uma intenção a cada palavra: - E por que haveria eu de me inquietar? Temos todo o futuro em
nossa frente.
- XXVIII -
CINCO meses mais tarde, quando já se aproximava o fim do curso hospitalar de Peter, Lucy já resolvera tudo o que haveria de fazer.
Seu filho tinha vinte e dois anos e estava habituado a trabalhar duramente. E o trabalho era necessário ao seu plano. Abriria um consultório de clínica geral, em
alguma das províncias da Inglaterra e ela cuidar-lhe-ia da casa. Como ela faria brilhar essa placa!
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Visualizava uma pequena e confortável casa em alguma cidadezinha adiantada. Nada de pretensioso, para começar! Uma casa alegre e decente, com uma placa de cobre
na porta. Tivera ultimamente uma ideia brilhante: Percorrendo o Lancei, periódico de assuntos médicos que ela consultava regularmente na Livraria Mitchell, encontrara
um anúncio que lhe fez brilharem os olhos. O North Stafford Medicau Aid Society precisava de dois assistentes jovens, que fossem ativos e, de preferência, graduados
em Glasgow. Cada um deles teria casa, carvão e iluminação gratuiita, além de £250 por ano. Era um ordenado certo e tudo sem que fosse necessário gastar um penny
de capital. Lucy sentiu-se jubilosa. E dois lugares vagos! Sem dúvida Peter obteria um deles.
Correu a mostrar-lhe o anúncio, mas Peter mostrou-se vacilante. Não o atraía uma clínica de contrato. não aprovava isso. Era muito trabalho exigido por esses clubes
de clínica, e um trabalho que oprimia um homem, baixando-lhe o crédito profissional. Sxprimiu-se, enfim, muito judiciosamente, como sendo contrário a candidatar-se
ao lugar. Lucy, porém, pensava diferentemente. Resolvera convencer o filho das vantagens que o lugar apresentava. Ultimamente, entre ela e Peter estabelecera-se
alguma coisa que não sabia explicar. Ele não se lhe confiava como dantes, tornara-se retraído, e Lucy procurava lutar contra esse estado de coisas.
Peter agora passava longas noites retido em plantões e Lucy ficava em casa, com o cotovelo apoiado no braço da cadeira e o queixo repousando-lhe na palma da mão,
invadida por um sentimento confuso de perplexidade. Seu rosto estava agora mais cheio, porque as horas das suas refeições haviam se tornado mais regulares. Usava
um vestido discreto
de sarja, tendo dado o outro - que fora feito em casa à
porteira, já há algum tempo. Mesmo assim, não se sentia .feliz. Seu olhar estava inquieto. Talvez precisasse tomar umas férias. Mais tarde abandonaria completamente
o trabalho. Seu espírito estava constantemente voltado para seu futuro com o filho.
De repente ouviu tocar a campainha. Levantou-se lentamente, sabendo que não era Peter - que usava ainda sua forma especial de se anunciar - e foi abrir a porta.
No patamar, achava-se um homem idoso, de rosto vermelho com um sorriso especulativo que revelava um dente de ouro e enchia-lhe o rosto de rugas.
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Era baixo e seu sobretudo, de uma fazenda preta e macia, tinha uma gola de seda. Usava um colarinho alto e a gravata estava espetada por um alfinete que ostentava
uma brilhante granada. Trazia três anéis profundamente enterrados na carne dos dedos que seguravam uma bengala de pesado castão de prata. Na cabeça, trazia um gorro
de astracã, uma espécie de curioso turbante que fazia do homenzinho um estranhíssimo tipo.
- E" com Missis Moore que tenho o prazer de falar? perguntou conservando o sorriso e identificando-a com um brilho esperto dos olhos.
- Sim! respondeu Lucy um pouco bruscamente, mal impressionada pela singularidade do seu ar.
O desconhecido agitou a cabeça em aprovação à própria clarividência e disse depois de uma curta pausa:
- Queria falar-lhe.
Lucy olhou-o surpreendida e replicou:
- Mas que deseja? Eu não o conheço.
O visitante foi sacudido de súbito por uma espécie de riso interno, como si a ideia de não se conhecerem lhe tivesse proporcionado um imenso divertimento.
- Estou certo de que nos conheceremos em breve, observou.
- Mas que quer o senhor? indagou ela de novo. Seu interlocutor semicerrou os olhos astutamente. - Quero lhe falar a respeito do seu filho.
A mão de Lucy, que já ia para fechar-lhe a porta no rosto, deteve-se em seu movimento.
- Muito bem! exclamou o homenzinho voltando a franzir o nariz no sorriso. Não se mostre tão inflexível comigo. vou entrar para lhe dizer algumas palavras.
Lucy hesitou; depois, abriu-lhe passagem. O nome do filho fora um talismã que dera entrada ao desconhecido.
- Quer me dizer o que o traz aqui? perguntou Lucy com a voz dura e desagradável, temendo ter em sua frente algum agiota em cujas mãos Peter tivesse caído.
O visitante sentara-se confortávelmente, apoiando ambas as mãos no castão da bengala.
- Chamo-me Tully, disse procurando observar o efeito daquelas palavras. Naturalmente a senhora já ouviu falar em mim. Sou Tully, o joalheiro da rua Alston.
Lucy fixou-o assombrada. Seu olhar envolveu-o detalhando o alfinete da gravata, os anéis, a bengala, abrangendo
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até mesmo o ridículo chapéu que se achava a seu lado, sobre a mesa. Então esse é que era Tully. Aquele casquilho e grotesco homenzinho vestido com afetação. Cheia
de desprezo Lucy exclamou:
- Realmente eu o conheço. O senhor não é um joalheiro. É um agiota e um proprietário de bairro pobre.
O homenzinho prorrompeu num riso alegre, batendo com a bengala no chão.
. - Muito boa, essa! muito boa! exclamou sem se perturbar. Gosto das coisas assim, ditas com simplicidade. - Parou e enxugou os olhos num lenço amarelo canário.
- É isso mesmo! Disseram-me que a senhora era uma fera. E por Deus! Acho que é mesmo.
- Quem lhe disse isso? interrompeu Lucy asperamente. Ele piscou para ela, amável.
- Alguns amigos seus em Ralston, minha querida senhora. É onde moro, sabe? Possuo lá uma bela casa toda cercada de imensos e belos jardins; qualquer dia a senhora
precisa aparecer por lá. E foi toda feita à custa de penhoras e aluguéis. Ah! Ah! Ah! - E mergulhou novamente no riso que o sacudia todo.
Lucy controlou-se com esforço. Sentou-se do outro lado da mesa, defronte dele, e falou:
- Quer ter a bondade de me dizer o que deseja? Suponho que meu filho deixou-se cair nas garras dos seus empréstimos. Quanto lhe deve ele?
" Aquelas palavras, e especialmente pelo tom em que foram ditas, as maneiras do visitante modificaram-se imediatamente. Seus olhos piscaram e logo depois exclamou:
- Deus do céu, criatura, eu não sou agiota! Seu filho anda atrás da minha filha Rose. eis o que há. - E encostou-se na cadeira com um ar ofendido, como si esperasse
ouvi-la desculpar-se. Lucy, porém, não o fez. Estava assombrada. Seus lábios contraíram-se enquanto o defrontava sem nada poder dizer. Foi ele o primeiro a quebrar
o silêncio: - É o que eu lhe digo. Seu filho anda lá com a Rose. E é bem bonita a minha filha, por sinal. A imagem da sua defunta mãe, que já está com os anjos!
E é a menina dos meus olhos. Olhando para aquele rosto pálido que o defrontava, continuou cheio de indulgência: - Mas esteja certa de que nada tenho contra o rapaz."
Sei que ele nada possue, porém não me incomodo por isso. Tenho bastante de meu. Minha filha terá belíssimo dote. E ele tem posição. Galgou sozinho uma esplêndida
profissão. Gosto muito dele, apesar das suas
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bajulices. - Lucy estremeceu, ele, todavia, nada percebeu e continuou. - Tem muito merecimento por todas essas coisas. Além disso, sabe que dois e dois são quatro.
Digo-o em seu favor.
Lucy ainda se conservava confusa, desnorteada. Mas, de repente, um raio atravessou-lhe o espírito e fê-la lembrar-se de Rose! As partidas de ténis! Os amigos de
Eva em Ralston! Aquela moça alta e corada que vira no dia da colação de grau, fazendo-lhe um convite um pouco nervosamente, ao lado do automóvel. "Faça o favor de
entrar, Missis Moore". E ouvia ainda a voz do irmão dizer: "Peter poderá sentar-se nos seus joelhos, Rose".
Um terrível espasmo percorreu-a toda. Rose Tully, a filha daquele miserável senhorio, para o qual ela trabalhara como uma escrava, extorquindo rendas iníquas de
pobres miseráveis, para pagar pelo seu palácio e seus jardins, para encher-lhe o bolso e para o luxo da sua detestável filha.
- Acha que Peter não tem mais nada que o recomende atalhou num tom contido de amargura.
Tem realmente, concedeu Tully generoso. Tem a mesma religião que nós temos. Não quero casamento misto para minha Rose. Quando ela se dirigir ao altar, tem que ser
para o altar verdadeiro.
Lucy tornara-se frenética. Uma fúria transbordante nascia-lhe do choque que lhe dera aquela revelação.
- E agora que o vejo satisfeito, disse com voz clara e severa, pergunto-lhe si não pensou em mim.
- Como assim?
- Meu filho sabe que o senhor viria aqui!
- Não, francamente, não sabe. Isso foi ideia minha.
- De modo que está tudo resolvido, não é mesmo?
- Deus do céu, não, minha senhora. Há ainda uma porção de coisas de que devemos tratar.
- com efeito! - Seu sarcasmo era diabólico. Tully encarou-a:
- Sei perfeitamente como se deve sentir, mas não pense que perderá nada com isso. Providenciarei nesse sentido. E olhando significativamente em torno: - Mandarei
alguns móveis para guarnecer sua casa, tapetes e outras coisas.
- Cale-se! gritou Lucy, feroz. Pensa que eu aceitaria sua miserável caridade, eu ou meu filho?
A fisionomia de Tully revelou um profundo assombro.
- Caridade! A senhora não me conhece ainda, disse exaltando-se; nem conhece a minha Rose.
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- Nunca hei de conhecê-la! retrucou ela altivamente.
- Como? - Tocado no ponto mais sensível, o rosto de Tully tornou-se escarlate. - Por Deus, minha senhora, feliz do homem que casar com a minha Rose!
- Meu filho não será esse homem, replicou Lucy em voz baixa e concentrada.
Depois, erguendo-se, olhou-o fixamente.
- Deus do céu, a senhora é louca! exclamou Tully estupefacto: a sorte dele que a senhora está inutilizando. E eu que lhe ofereci o que lhe ofereci! Vamos discutir
essa história direito, senhora. Eu amo minha filha e quero-a feliz. Foi isso que me trouxe aqui. Por que não se dispõe a ceder também?
- Nunca! protestou Lucy violentamente.
- A senhora não é razoável. Não, não. Não é razoável. Bem que eles me o disseram!
Mais calúnias que lhe haviam levantado! Lucy, cheia ?de desprezo, disse:
"- Si eu sou assim, é melhor que saia da minha presença.
- Francamente! a senhora é exquisita, falou Tully andando em direção à porta. E eu lhe prometo que realmente nunca mais porei os pés aqui. - Depois, pondo na cabeça
seu ridículo chapéu, abanou a cabeça e saiu.
Imediatamente a rígida atitude de Lucy distendeu-se. Sentindo-se fraca, procurou uma cadeira. Novamente os olhos encheram-se daquela primeira expressão de penosa
surpresa causada pela notícia que Tully lhe viera trazer. Realmente, o choque fora terrível. Aquela coincidência aniquilava-a. Era uma injustiça do destino. Por
que havia de ser exatamente a filha desse Tully, entre milhões... Eva! Fora Eva a culpada daquela amizade, arranjando aquelas partidas de ténis, com suas manias
sociais. Aquilo realmente era um golpe demasiado rude.
,E Peter... por que nada lhe dissera? Seus lábios puseram-se a tremer. O tormento do ciúme invadiu-a. Um insuportável tormento. Imediatamente, porém, acudiu-lhe
uma explicação. Peter era jovem, requestado, sugestionável. Toda e qualquer outra razão era inadmissível. Não. As intenções de Peter não podiam ser sérias. Repudiava
esse pensamento. Tinha, contudo, de agir imediatamente. Precisava lhe falar o mais cedo possível. Não devia ficar inerte, enquanto seu filho era atraído para uma
armadilha que poderia inutilizar completamente seu brilhante futuro. Olhou para o
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relógio. Três e um quarto! Talvez ainda aquela tarde ele estivesse demasiado ocupado para voltar para casa. Resolveu que, si ele não viesse, iria procurá-lo.
Foi à janela e olhou em direção ao hospital.
XXIX -
Empregando força de vontade, Lucy obrigou-se a esperar ? - meia hora, de pé, à janela, com os olhos fixos e as sobrancelhas contraídas. Ao completar-se o tempo,
mexeu-se decidida. Pôs o chapéu e saiu de casa.
O dia fora de vento violento, porém, seu espírito estava mais impetuoso do que o vento. Mesmo assim, enquanto caminhava rapidamente, resolvia mostrar-se perfeitamente
calma. Era o melhor partido que poderia tomar. Precisava agir com toda a calma naquela crise inesperada. Daquela vez,, nada de processos bruscos e desesperados:
calma.
Enquanto atravessava o parque e se aproximava do hospital, seus olhos fixaram-se na grande massa pardacenta do edifício. Penetrar sem permissão naqueles desconhecidos
e misteriosos muros era, já de si, uma estranha aventura. Ela o faria, no entanto. Não podia adiá-lo. Atravessou, cheia de determinação, o largo pátio lajeado onde
alguns doentes de casacos vermelhos apanhavam sol.
Ao chegar à entrada principal, aproximou-se do porteiro,
- Quero falar ao Dr. Moore, disse.
O porteiro depôs o jornal onde estava lendo e olhou-a. Era um homem idoso, que, observando-a por cima dos óculos, lhe falou com todo o pessimismo de uma larga experiência
- O Dr. Moore há de ter saído!
- Não creio, contestou Lucy. E entrou em explicações, sobre a urgência de ver o filho.
- Está bem, redarguiu o velho porteiro. Si é tão importante assim e a senhora quer experimentar, suba. É no primeiro andar, à direita.
Seguindo suas instruções, Lucy pôs-se a subir um lanço de degraus de pedra que ia dar num corredor pintado de branco. O cheiro forte do clorofórmio e do ácido fênico
chegava-lhe às narinas. Uma porta de vidro entreabriu-se dando-lhe a visão rápida de uma fila de leitos.
No fim do corredor, Lucy parou hesitante, vendo três portas. De repente ouviu risos; a porta do meio abriu-se e
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uma irmã surgiu-lhe em frente. Era alta, de meia idade, e trazia um véu flutuante. Seus punhos e cinto engomados reluziam. O sorriso que ainda trazia no rosto apagou-se
ao ver Lucy.
- Que deseja? perguntou.
- Queria ver o Dr. Moore.
- É sobre algum doente ou marcou alguma consulta?
- Não... começou Lucy.
- Nesse caso, acho que não poderá vê-lo, continuou a irmã assumindo um ar importante e impaciente. O Doutor está -ocupado e não recebe ninguém, agora.
- Ele me receberá. Sou sua mãe.
- O Dr. Moore é seu filho! - E o rosto da irmã encheu-se de uma surpresa que cedeu lugar a uma certa amabilidade.
- Bem, disse, nesse caso a senhora pode entrar. Sou a irmã Cooper, encarregada deste andar. O Dr. Moore está oferecendo, um pequeno chá. Na verdade sou eu quem está
oferecendo a ele. - Suas feições perderam o ar profissional e ela acrescentou: - É para que ninguém estranhe, compreende?
Lucy nada respondeu. Não compreendera o que queria diz er aquela irmã rigidamente engomada. Seguindo-a, porém, até a sala de espera da secção de cirurgia, viu imediatamente
a significação daquelas palavras. O rosto, que dulcificara para o encontro com o filho, tornou-se duro e amargo. Uma pequena mesa coberta por uma toalha branca ali
estava arranjada para o chá. Peter, sentado no sofá, tinha nas mãos uma chávena, e ao lado dele, no mesmo sofá, com outra chávena em suas mãos, estava Rose Tully.
A situação era a mais banal possível. Um rapaz simpático, satisfeito da vida, tomava chá em companhia de uma jovem igualmente contente, sob o olhar maternal de uma
enfermeira. Para Lucy, todavia, aquilo era terrível, desesperador. Outro choque espantoso pelo inesperado. Ficou aniquilada ante a intimidade daqueles dois, ali
no sofá. Seus olhos não se .podiam desviar da juvenil figura de cabelos ruivos que se achava tão próxima do seu filho. Viu que era bonita, que tinha a pele clara
um pouco marcada de sardas, que seus olhos eram castanhos, que possuía belas mãos e uns lábios bem desenhados. Sentiu novamente a dor do ciúme. Como pudera aquele
inexpressivo Tully produzir tão encantador rebento? As mãos de Lucy, gastas ao serviço de seu filho, cerraram-se com firmeza.
- Aqui está sua mãe que veiu vê-lo, doutor, disse a irmã. A chícara de Peter desequilibrou-se. Olhou em torno
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e Instantaneamente seu rosto encheu-se de uma pequena surpresa cheia de embaraço.
- Ah! sim... respondeu contrafeito, enquanto Rose corava lentamente.
- Sente-se, Missis Moore, convidou a irmã, aproximando-lhe uma cadeira. vou servi-la de chá.
Lucy sentou-se rígida, sem que seus olhos abandonassem a moça que se achava no sofá. A irmã, sentindo a tensão no ar, preparava-se para gozar aquela inesperada feição
que assumira o chá que estava oferecendo.
Assim estavam: Rose vermelha como outra rosa, a irmã cheia de presença de espírito e atenta, enquanto Peter lutava desesperadamente para reconquistar o sangue-frio.
?- Eis uma honra inesperada, mamãe, tartamudeou ele, afinal.
- É verdade! acudiu a irmã sorrindo. E não podia ter escolhido melhor ocasião, não é mesmo
- Assim parece, disse Lucy com esforço. A mão com que tomou a chícara que a irmã lhe estendeu tremia. Não de emoção, porém de raiva. "Calma, pensava ela contudo,
preciso ter calma". Uma vez, numa crise semelhante àquela, que terríveis consequências foram causadas por sua precipitação !
A irmã Cooper ria encantada. Não é que fosse má, mas, que situação, aquela! E que história ia ela poder contar mais tarde? na sala comum!
- A senhora mora no campo, não é mesmo? perguntou amavelmente a Lucy. Seu filho contou-me que morava em Ardfillan.
- Não. Moro aqui perto. - Essas palavras de Lucy foram pronunciadas com uma brevidade perigosa.
- Quer outro pedaço de bolo, mamãe? acudiu Peter terrivelmente embaraçado.
- Como, si nem ao menos tocou ainda no primeiro observou a irmã cheia de animação.
Estabeleceu-se o silêncio, até que Rose, criando finalmente coragem, voltou-se para Lucy.
- Que belo dia, hoje, não é verdade? falou com pouca originalidade mas com muito boa vontade. Seu rubor desaparecera, deixando-lhe apenas os lábios vermelhos num
rosto pálido. Peter olhou rapidamente para sua mãe. A irmã Cooper também fixava Lucy. Ambos aguardavam uma resposta àquele tímido convite à amizade. Lucy, porém,
com
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os olhos fixos no tapete, não respondeu. Odiava aquela criatura que se achava no sofá. O ciúme, um ciúme estranho -e anti-natural, era como uma ferida em seu peito.
- Lá fora, realmente, está bonito, disse a irmã. Não quer mais chá, Miss Tully?
- Não, obrigada, não posso, recusou Rose que, de fato, dava a impressão de que sufocaria se pusesse mais alguma coisa na boca.
- Ho doutor?
- Também não, obrigado - e Peter com o dedo procurou afrouxar o colarinho. Sentia-se terrivelmente mal por achar-se incapaz de dominar aquela situação, que o enchia
de um grande ressentimento contra a mãe. Por que ela não o deixava em paz? Por que estava ali sentada com um rosto de gelo, sem nada dizer, teimando em causar, toda
aquela perturbação ? Olhou mal humorado para a irmã Cooper, que nesse momento se servia complacentemente de uma segunda chávena de chá.
- Gosto imenso de chá, explicou a irmã, que mantinha naquela sala o nível artificial da civilidade. E côncia da sua posição continuou: - Preciso muito disso. A senhora
não calcula as responsabilidades com que eu tenho que arcar. Duas enfermeiras com quinze leitos cada uma. As serventes para dirigir e além disso... - sorriu com
malícia - deve-se sempre vigiar um pouco o jovem doutor que aqui está.
Lucy olhou-a friamente em silêncio.
- A senhora não calcula o que já tenho passado aqui com outros médicos internos! As coisas de que eles são capazes! Entram e saem pelas janelas, de noite. Uns pintam
os outros de azul de metileno! Bebem a aguardente do armário de estimulantes. Não que eu tenha a dizer nada disso do Dr. Moore. Pelo contrário. É o interno mais
correto que tenho tido há anos. Acho que uma afeição séria é muito eficaz a um homem jovem. A senhora não pensa assim ?
Lucy, porém, não escutava. Sua atenção estava presa no sofá. De súbito, Rose, que, ao que parecia, não pôde Sustentar a situação - ou aquele olhar fixo - agitou-se
erguendo-se.
- Tenho que ir, sussurrou a Peter. Este também lhe disse alguma coisa a meia-voz e, levantando-se, dirigiu-se para a porta. - Obrigada por tudo, agradeceu Rose
voltando-se para a irmã Cooper. Depois, defrontando Lucy sem rancor algum e até com uma confusão muito graciosa, disse timidamente .- - Boa tarde, Missis Moore.
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- Adeus, disse Lucy com gélida finalidade. com essa primeira e última palavra afastava Rose Tully da sua vida. Ao pronunciá-la, e enquanto a moça deixava a sala
confundida, teve um sentimento de triunfo. Sim. Conservara-se calma. Nada de arrebatamento. Agira com frieza. Rose, com toda a sua formosura, era como uma palha
diante da feroz rajada do seu propósito. Como a derrotara facilmente! É verdade que possuía experiência, resolução, coragem, e a razão estava do seu lado.
Voltando-se para a irmã Cooper, falou francamente:
- Queria falar ao meu filho por um momento, em particular.
A irmã olhou-a arqueando as sobrancelhas, como em reprovação pelas suas maneiras, e respondeu com arrogância:
- Eu tinha mesmo que me retirar. Tenho muito que fazer, sabe?
E saiu fechando a porta com modo insolente.
Lucy voltou-se para o filho. Estavam sós, por fim. Por algum tempo olhou-o em silêncio; depois, sua fisionomia dulcificou-se aos poucos, até assumir a expressão
de ternura inefável do seu amor por ele.
- Queria me libertar dessa gente, disse ela com lentidão. Peter olhou-a com irritação e, meneando a cabeça com
impaciência, exclamou:
- Bonita coisa fez você! Nunca se viu um procedimento semelhante! Antes que anoiteça, todo o mundo no hospital saberá disso. A idiota dessa Cooper vai se encarregar
de espalhar a história toda.
- Mas Peter, eu precisava vir aqui. Você não compreende ?
- Não, não compreendo.
Aquele tom áspero desnorteou-a; contudo, ela convencêlo-ia com sua lógica.
- Esperei você durante uma hora, disse com forçada naturalidade, e, como pensei que você tivesse que ficar de plantão, vim porque precisava lhe falar.
- Por que há-de você pensar sempre que eu sou uma criança que precisa ficar amarrada às fitas do seu avental para obedecê-la? Será que eu não sei me conduzir? Por
que há-de você me perseguir e surgir sempre de repente, em cada esquina, fazendo-me passar por idiota perante... perante todo o mundo?
Lucy olhou-o com o rubor indicativo de cólera subindo-lhe às faces.
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- É justamente porque eu não quero que você passe por idiota que me encontro aqui, replicou com firmeza.
- Mas que foi que eu fiz? Faça o favor de me dizer. Eu bebo, por acaso? Ou jogo? Serei algum ladrão? Peter transbordava de virtuosa indignação. - Você não ouviu
o que a irmã Cooper disse de mim? Sou o interno mais tranquilo que ela tem há anos. Mesmo assim você me fala como si eu...
- E porque eu estou pensando em seu futuro, interrompeu Lucy alteando a voz.
- Nesse caso, você não deseja a minha felicidade? tornou ele imediatamente. E depois de uma pausa triunfante, continuou a expor seu ponto de vista. - A coisa mais
natural deste mundo é que eu me interesse por Miss Tully. Não nego que me interesso, nem tenho vergonha disso. É uma esplêndida pequena.
O rosto de Lucy mudou de cor. Aquelas palavras dilaceraram-na. Apoiando-se no braço da cadeira, inclinou-se para a frente.
- Não fale desse modo! disse com severidade. Você pensa que eu vou me deixar ficar inativa, enquanto você se complica com essa pequena nulidade?
Peter olhou-a cheio de sombrio ressentimento.
- Nulidade? repetiu. Permita-me que a informe de que Miss Tully é uma criatura riquíssima.
Será que ele não pensa em outra coisa sinão em dinheiro? pensou Lucy, e logo em um dinheiro tão sujo como aquele!
- E não comece a ofender os outros, continuou Peter. Você já foi bastante rude quando Rose estava aqui. Será que não sabe ser delicada?
- O que? exclamou Lucy com voz febril. Lembrou-se de que alguém, há muito tempo, lhe pedira para ser delicada com outra mulher... mas não pôde parar para pensar.
Então é assim que você a chama ? Rose!
- E por que não? retrucou Peter dando com o pé no atiçador que se achava no chão. É um nome que lhe fica muito bem.
Novamente Lucy sentiu aquela angústia do ciúme. Os membros lhe tremiam quando, a despeito do seu controle, gritou:
- Que foi que ela fez por você para merecer isso ? Peter enfrentou-a. Sua humilhação recente instigou-o a
desafiá-la.
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- Ela nada fez e eu não quero que ela faça coisa alguma. O que acontece é que eu a amo e ela também me ama. Eis aí!
- Que é que essa criatura de leite e rosas sabe a respeito de amor? continuou Lucy com violência. Pergunte-lhe se ela seria capaz de gastar os dedos até os ossos
por você! Pergunte-lhe si lutaria, si se tornaria uma escrava e si passaria até fome por você!
- Não quero que ela faça nada disso, respondeu Peter corando. Há outras coisas na vida além disso.
- Há quanto tempo você a conhece? persistiu Lucy naquele tom de ferocidade concentrada. - Há alguns meses, não é mesmo? E porque ela tem um rosto de boneca, porque
você a julga bonita, esquece-se de mim. - Seu fôlego tinha um som rouco, parecia um soluço. - É vergonhoso da sua parte proceder desse modo. Você não tem gratidão,
nem sentimento de decência?
- Que é que você quer de mim? tornou Peter colérico. Espera que eu não me case nunca? Pensa que não posso ter vida à parte.? Quer que eu fique para sempre atado
às fitas do seu avental?
- Você não tem ainda vinte e três anos. gritou Lucy indignada, para falar desse modo! Como ousa dizer essas coisas ? E pensar que está falando com essa naturalidade
toda de casamento, só porque viu uma vez um rostinho tolo de sorriso afetado!
- Não comece com essas coisas, disse Peter cortante. Não admito isso!
- Pois continuarei, exclamou Lucy ofegante, levando a mão à garganta. E vou resolver essas coisas uma vez por todas. Você é tudo o que me resta, e ver que você procede
desse modo, na sua idade, é... de enlouquecer!
com um esforço penoso, controlou-se. Um suor frio lhe aljofrava a pele. Depois perguntou com voz clara:
- Que pretende você fazer com essa Rose Tully? Esse nome foi pronunciado com inflexível desprezo.
Aquelas palavras fizeram-no estremecer. A arrogância de Peter começava a ceder. Olhou para sua mãe contrafeito e gaguejou:
- Para que há de você estar se contrariando e criando tragédias onde elas não existem?
- Responda à minha pergunta! tornou Lucy feroz. Que pretende você fazer com essa... essa boneca que Eva, lhe meteu nos olhos ?
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- Mas, mamãe... respondeu Peter desamparado. Não fique nesse estado!
Lucy, porém, estava resolvida a esclarecer aquela situação uma vez por todas, a intervir naquele namoro, a esmagá-lo, aniquilá-lo, antes que ele pudesse florescer
e destruí-la.
- Pela última vez pergunto: você vai deixá-la em paz ? Peter estava dominado. Sua mãe mostrava-se tão pouco
razoável, tão inflexível! Era inútil querer fazer-lhe compreender, o amor que Rose lhe dedicava e o generoso interesse que Mr, Tully mostrava por ele, chegando a
ponto de por à sua disposição o financiamento de uma clínica, abrindo-lhe assim uma brilhante perspectiva de triunfo. Como poderia ela compreendê-lo? Ele sabia de
antemão qual seria sua conduta no caso de lhe revelar seus planos. Era uma criatura tão intolerante que faria uma cena, um absurdo qualquer,. por aquele motivo.
De repente, levantou os olhos que se haviam fixado sombriamente no tapete e olhou para sua mãe com aquela mesma expressão de ingenuidade que tivera na infância.
- Realmente você tem razão, mamãe, disse lentamente. Creio que estou muito novo para pensar nessas coisas. Talvez em um ano ou dois... - E calou-se, sorrindo timidamente.
Houve uma pausa durante a qual Lucy lhe perscrutava o rosto com secreta intensidade.
- Então você vai abandonar essa ideia absurda, não é mesmo ? indagou pausadamente, vai afastar-se dela e não admitirá que ninguém mais nos separe?
Peter fingiu hesitar, depois, de repente, prometeu cheio de franqueza:
- Muito bem, mamãe. Seja como você quiser.
; Lucy, então, respirou, seus traços distenderam-se. Aquele sim! era Peter, seu filho, sua carne e seu sangue. NãoJhe podia estar mentindo. Ela vencera!
- Lembre-se de que você me deu sua palavra, Peter, disse tranquilamente. Afinal de contas esse é o seu dever o meu direito.
- Sim, mamãe.
Lucy apoiou a mão no braço do filho:
- Há outra coisa que eu quero que você me prometa. antes que eu deixe esta sala.
Peter teve um sorriso meio duvidoso enquanto ela começava a dizer gravemente:
?
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- Quero que você se candidate a esse lugar em Staffordshire do Norte. Precisamos começar a vida, e quanto mais cedo, melhor.
- Naturalmente, concordou Peter depois de uma curta hesitação.
- Tenho pois a sua palavra empenhada nessas duas coisas, continuou Lucy baixo.
Os olhos de Peter desviaram-se inquietos sob o olhar intenso de sua mãe.
De súbito Lucy sentiu que tudo estava perdoado, como si ele fosse um meninozinho que tivesse caído em falta, porém que se tivesse arrependido depois. A emoção transpareceu
através daquela máscara de gelo. Uma lágrima brilhou-lhe nos olhos e caiu-lhe pela face pálida.
- Eu sabia que você faria o seu dever, Peter, finalizou em tom comovido, envergonhada quase de haver duvidado dele. - Eu sabia disso, meu filho.
Antes de partir, Lucy fez o filho escrever pedindo o lugar de Staffordshire. Tinha a intuição de que ele conseguiria classificar-se. Ela própria colocou a carta
no correio, de regresso para a rua das Flores.
XXX -
LUCY partiu em gozo de férias com um sentimento de ter
? vencido uma difícil batalha. Por um lado não desejava ir porque achava que tinha muito que fazer para organizar seu futuro. Mas já havia arranjado as coisas no
sentido de partir novamente para Doune, tendo já falado no escritório, para que lhe concedessem férias, e escrito a Miss Tweedy para reservar-lhe um quarto.
. De modo que deixou alegremente a estação de St. Enoch, onde Peter tinha ido acompanhá-la para se despedir dela. Na realidade, fora ele quem insistira para que
fosse; e agora, quando o trem se precipitava por aquela mesma estrada que cinco anos antes os dois haviam percorrido juntos, Lucy relembrava comovida o último olhar
que o filho lhe dera: constrangido, quase como que pedindo desculpas... Ultimamente Peter parecia estar se dedicando tão exclusivamente a ela! Que bom rapaz era
seu filho! Ouvia a razão muito facilmente e ela conseguira provar-lhe a loucura que iria cometer si persistisse naquela atitude recente. Sim! Ele
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ouvira. Disso Lucy não tinha a menor dúvida. Uma -vez, duvidara de Frank. Ah! si ela tivesse acreditado nas suas palavras... depois daquela amarga lição nunca duvidaria
nem da palavra, nem da lealdade de seu filho.
Ao chegar a Doune, achou tudo mudado. Filas de bungalows arrumavam-se agora em torno da estação, em toda parte havia mais movimento. Miss Tweedy, porém, não mudara.
Lucy sentiu-se um pouco emocionada ao vê-la igualmente magra e abatida depois daqueles anos todos. Miss Tweedy também pareceu contente, a seu modo, por ver Lucy.
- Devo confessar que me é agradável vê-la novamente. Não é habitual eu gostar de um hóspede como gostei da senhora. Nunca pude esquecê-la. Várias vezes estive pensando
si nada de mau lhe havia acontecido.
Lucy sorriu do eterno pessimismo de Miss Tweedy e respondeu :
- Não me parece que haja sucedido coisa alguma de muito mau.
( Miss Tweedy sacudiu a cabeça.
A senhora mudou muito, observou com simpatia. V-se que teve muito que lutar. Vi-o logo que lhe abri a porta! E essa luta foi terrivelmente árdua ou estou muito enganada!
- Miss Tweedy arqueou os cantos da boca e sacudiu novamente a cabeça, como quem sabe muito bem que não está em erro.
- Tudo isso já passou, respondeu Lucy.
- Sim! mas a senhora está mais velha e com o rosto mais chupado.
- A senhora também não está muito gorda, replicou Lucy tranquilamente.
- Eu? disse Miss Tweedy amargamente, eu estou mais sumida que uma sombra. Também, o que como não dá para "sustentar um pardal. Não posso comer quase. Sou delicada
de nascença. E aquele seu filho? continuou, também não deve estar um homem muito forte. Era caprichoso para a comida, não era mesmo?
- Está muito bem agora. A senhora pode vê-lo numa fotografia que trouxe comigo.
- Nesse caso a senhora deve ter feito muito por esse jovem. Espero que ele seja grato. - E depois de mais alguns conceitos, todos pessimistas, sua frágil figura
sumiu da sala.
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Nessa noite Lucy foi para a cama cedo e dormiu profundamente. Na manhã seguinte sentiu-se bem disposta e saiu imediatamente a passeio. Chovera durante a noite e,
agora, uma brisa fresca vinha do mar, obrigando-a a apressar os passos enquanto caminhava pela rua principal da cidade. Parou no correio e escreveu um postal a Peter.
Escolheu um cartão com uma vista da cidade, evitando os postais coloridos de mau gosto. No canto escreveu discretamente: "Recebeu alguma resposta de S?" Depois escreveu
outro postal, ligeiramente humorístico, endereçado a Miss Tinto. Sua correspondência não ia além disso.
Tomou o caminho de volta em direção à casa de Miss Tweedy. Lutava agora alegremente contra o vento, o que a fazia sentir-se vigorosa e quase jovem. Passando por
uma casa de frutas, uma cesta de maçãs vermelhinhas chamou-lhe a atenção. Parou. Sempre gostara imensamente de maçãs, mas havia muito que não provava nenhuma. Obedecendo
a um impulso, Lucy entrou na, casa de frutas e comprou algumas das mais maduras.
Foi até a praia e ali abrigou-se da força do vento entrando em uma espécie de pequena guarita de madeira, que havia sido construída defronte das rochas, onde ela
costumava sentar-se na outra vez que ali estivera.
Viu-se pois só, tendo em frente a água movediça, que de vez em quando erguia altas nuvens de espuma que vinham cair a seus pés. Pôs-se a comer, meditativa, uma das
maçãs. gozando aquele regalo. Depois comeu outra.
Que iria fazer agora? Estava em férias, o que de algummodo significava que deveria divertir-se. Precisava de achar alguma coisa que a ajudasse a desfazer a desagradável
influência do tempo, mas não possuia para isso grandes recursos. Os divertimentos a ela acessíveis eram limitados. Pensou em dar um passeio, mas refletiu que, dado
o género do seu trabalho, estava cansada de andar. Além disso, nãoa seduzia a ideia de caminhar sozinha com aquela ventania. Poderia ter comprado uma revista ou
um jornal. Não tinha porém, muita inclinação para a leitura e faltava-lhe curiosidade pelas coisas que se passavam no mundo. Que interesse poderia ter ela para saber
que as consolidadas haviam subido ou descido uma fração, ou que um novo presidente fora eleito no Peru? Confessava a si própria que sua apatia era extraordinária,
sabia no entanto que não poderia vencê-la. Eis aí como se tornara! Os anos de esforço que vivera haviam-na reduzido a isso.
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Sua fronte anuviou-se. Veio-lhe subitamente a conciência de que, afinal, era uma mulher solitária, de meia idade, que se achava ali numa guarita batida pelo vento,
numa praia deserta; uma mulher com poucos amigos e que era olhada com desdém por aqueles que a conheciam. Tornara-se uma criatura de rosto pálido, de corpo pesadão
e mãos ásperas pelo trabalho que tinham executado.
Sem querer, seu pensamento voltou atrás, para aquelas férias que passara ali com Peter, há. cinco anos, e recordou aqueles momentos felizes, enquanto seus olhos
se perdiam na água cinzenta da piscina de banho. com os olhos do espírito, viu o filho precipitar-se do trampolim e mergulhar na água azul, ao sol. Seu rosto iluminava-se
fugazmente ao relembrar as cenas daqueles dias felizes.
Finalmente estremeceu, como colhida por um calafrio. Suspirou, sentiu-se transida de frio. Ergueu-se e voltou para casa. Nessa tarde, perseguindo sua ilusão, dirigiu-se
para o pequeno teatro de variedades. Ali, com surpresa quase cómica, constatou que o elegante Vai Pinkerton já não costumava ocupar a pequena ribalta. Sim. Fôra-se!
e sua refinada "e bem trajada troupe fora substituída por uma gente mais nova e descarada, que se vestia impudentemente de pierrots e que fazia insistentes e repetidas
coletas.
Lucy olhou para aquela gente com uma fisionomia fechada. Uma rapariga de saia curta, com um chapéu de palhaço inclinado num ângulo provocante, sacudia seus guisos
e um indicador malicioso, enquanto cantava "Molly O Morgan with tihe littte organ". Uma coisa vulgar. Coisas do tempo de hoje! A recordação de Vai Pinkerton, cançonetista,
alto, garboso, com a mão sobre o peito comunicando tanta expressão ao que cantava, apresentou-se ante ela com uma dignidade contrastante. Afastou-se abruptamente.
Passava ignorada entre a multidão. Ninguém reparava nela. Dirigiu-se para casa. Ao passar defronte do Grande "Hotel, mal o olhou. Não podia ainda pretender entrar
naquele brilhante estabelecimento. Nem mesmo o desejava mais. Tudo o que almejava, era aquela alegre casinha tendo à porta uma placa de cobre onde estivesse gravado
o nome do seu filho e sua profissão.
Ao entrar em casa, Miss Tweedy surgiu misteriosamente à sua frente, como si emergisse das entranhas da terra.
Olhando para Lucy exclamou:
- A senhora está pálida, Missis Moore.
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- Creio que estou um pouco fatigada, disse esta.
- É o ar salino. Abate as pessoas no primeiro dia, alvitrou Miss Tweedy.
- Talvez! tornou Lucy.
- A botija de água quente está em sua cama, pronta para a senhora quando a senhora estiver pronta para ela.
Dito isso, Miss Tweedy sumiu e Lucy foi para a cama.
Os dias subsequentes passaram-se tranquilos. Lucy melhorara de aspecto e sentia um bem-estar de que não gozava há muito tempo. Lia um pouco, passeava bastante, mas
preferia deixar-se ficar sentada na guarita, junto dos rochedos. O tempo continuava incerto, contudo o ar tonificava-a e infundia-lhe alguma coisa de sua vivacidade
e força.
Nada recebera ainda de Peter. Já contava com isso, porém, pois sabia-o muito mau correspondente. Mas por causa disso, depois de decorridos dez dias, começou a contar
os dias que lhe restavam de estada ali. Sua ânsia intensificava-se. Os planos para o futuro revolviam-se continuamente em seu espírito. Cheia de alegria, convencia-se
de que agora, realmente, a verdadeira recompensa do seu sacrifício estava muito perto.
No penúltimo dia da sua estada, Lucy saiu e dirigiu-se à praia. Não ficou no seu lugar favorito perto dos rochedos; desafiando o vento, pôs-se a caminhar com vivacidade
ao longo do mar. Seu humor pedia movimento; e a razão daquele humor, daquela exaltação, era clara. Não o negava. Dentro em pouco voltaria a ver o filho. Foi tão
longe, em sua caminhada, que chegou tarde para o almoço. com as faces fustigadas pelo vento, Lucy chegou toda corada, subindo rapidamente os degraus da entrada.
No hall, tomou fôlego, tirou o casaco, deixou a sombrinha no porta-chapéus e entrou na sala. Miss Tweedy entrava também, surgindo por outra porta. Sorriu para Lucy
através da bandeja que transportava nas mãos.
- A senhora está com bom aspecto! observou surpreendida. - Depois acrescentou: - Há uma carta para a senhora sobre a lareira.
Os olhos de Lucy brilharam. Apenas uma pessoa poderia escrever-lhe. Correspondeu grata ao sorriso de Miss Tweedy.
- É a carta que eu esperava! exclamou. Deveria trazer boas novas do lugar que ela tanto desejava para o filho. E precipitou-se na direção indicada por Miss Tweedy.
A carta era de Peter.
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Enquanto ela a conservava nas mãos para prolongar um pouco aquele alvoroçado prazer, vieram-lhe à memória as cartas que o filho lhe escrevia do colégio, cartas ingénuas,
escritas com tinta roxa, cheias de afeição e carinho.
Havia em seu rosto uma avidez, uma ternura sublime, enquanto abria o sobrescrito e desdobrava a folha. Começou a ler, sorrindo.
Mas de repente a luz foi-se-lhe apagando no rosto, que endureceu, assumindo uma expressão estranhamente contrariada. O sangue abandonou-lhe a face, deixando-a não
pálida, porém verde. A terrível notícia apanhou-a de chofre, com uma devastadora violência, como si fosse um raio que a colhesse.
Nenhum grito lhe escapou dos lábios. Ficara como que petrificada. Só a mão que segurava a folha contraiu-se e, logo, pôs-se a tremer como num ataque de paralisia.
O nome de Rose se achava naquela carta, várias vezes repetido entre algumas palavras que ensaiavam uma tímida conciliação, dansando defronte dos olhos frenéticos
de Lucy. O nome de Rose!
Peter partira com Rose. Aceitara uma proposta que o pai de Rose lhe fizera, de instalar-lhe um consultório em Londres.
Abandonara-a, a ela sua mãe!
Por algum tempo, ficou imóvel. Depois estremeceu. Seu corpo parecia ter morrido; mas seu espírito vivia. Vivia sofrendo mil torturas que seu pensamento agitava febrilmente.
Compreendia que havia sido habilmente afastada para que tudo fosse resolvido sem que ela soubesse. Fora ludibriada, humilhada, rebaixada. Mas a humilhação nada era.
Ele se fora... seu filho... casara!
Depois de tantos anos de fadigas, de renúncias, de lutas, depois de tanto sacrifício amargo, depois de tudo o que sofrera e tolerara, ele a abandonava!
Transpusera obstáculos de inconcebível dificuldade para, no fim, entregar seu filho aos braços de outra mulher. Era uma tortura! Uma tortura insuportável.
Enlouquecida pela angústia que lhe ia na alma Lucy deixou-se cair numa cadeira.
A carta escapou-lhe da mão.
TERCEIRA PARTE
NOVE meses mais tarde, Lucy encontrava-se na cozinha da sua casa da rua das Flores. Em torno, as coisas pouco haviam mudado. As cortinas talvez estivessem mais desbotadas
e as estreitas janelas talvez precisassem um pouco mais de limpeza. A mancha da umidade, no teto, espalhara-se ainda mais. Lucy nunca pudera imaginar-se em um ambiente
descuidado como aquele. Mas que importava isso agora? O desarranjo e a poeira eram trivialidades. Ninguém a procurava ali. Ultimamente deixara-se absorver por assuntos
de. muito maior importância. Muitos dias se tinham passado daquele terrível dia em Doune, em que sentira que sua vida terminara, em que se vira arruinada, fracassada,
destruída! .Que louca fora ela! Como estivera cega!
Fora uma criatura que vivera de cabeça baixa procurando na areia seixos brilhantes de Uma praia de infinitas ilusões, inclinando-se, em busca de felicidade, para
os salvados arrojados ali por um frio mar de amarguras. Nem um único seixo brilhante recolhera: cinzas, apenas cinzas, que loucamente espalhara nos cabelos. O gosto
dessas cinzas chegaram-lhe à boca com todo o seu nauseante sabor de desengano.
Mas agora, parecia-lhe que todas essas provações talvez fizessem parte dos desígnios divinos para trazê-la, por fim, àquele estado. Um vago sorriso assomou-lhe ao
rosto, ao considerar sua felicidade presente. Não a merecia; contudo, conseguira-a miraculosamente. Essa felicidade era sua, incrivelmente sua.
Por alguns momentos deixou-se ficar sentada à mesa, reflexiva, depois de terminado o almoço -que, agora, adiava até as quatro horas, para não ter que voltar duas
vezes para casa. Então, sem parecer lembrar-se mais da terrível missiva que a aniquilara em Doune. apanhou uma carta que jazia ao lado do seu prato e percorreu-a
como que alheada. Aquela carta era também de Peter. datada do dia anterior e trazendo no sobrescrito um endereço em Maida Vale, Londres. Dizia:
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"Querida mamãe:
Tive imenso prazer em receber seu bilhete contando que tudo lhe corre bem. Quanto a nós, estamos ambos bem dispostos e felizes. Tudo vai correndo satisfatoriamente
na minha clínica. Sem dúvida você gostará de saber que eu agora arranjei uma nova cliente na pessoa de uma titular. Que tal? Naturalmente você a conhece de nome:
Lady Macarthy, assim se chama ela. Paga meio guinéu por visita, não é fantástico? Desse modo, seu filho não vai indo assim tão mal. Algum dia talvez você o veja
na rua Harley. Estou resolvido a isso e não em data muito remota. Pode crer que não será por falta de esforço que não serei famoso, algum dia. Entrementes, é preciso
sermos pacientes (não estou querendo fazer trocadilho). Continuo a desejar tê-la aqui perto de nós, mas isso é realmente difícil por ora. Contraria-me imenso pensar
que você ainda está trabalhando, mas cada penni que eu ganho ainda vai para a prática da profissão e você naturalmente concordará em que é essencial para nós consolidar
nossa posição. O pai de Rose tem sido sempre muito bom. Esteve aqui novamente na semana passada. Não pode viver longe de nós e De fato ele é excepcionalmente generoso,
mas não podemos exigir que faça tudo. De qualquer modo, espero que não esteja longe o dia em que você também esteja aqui conosco. Ficaremos então juntos o mais possível.
Nunca poderá vir demasiado rápido para mim o dia em que possa estabelecê-la aqui numa situação independente para toda a vida. Sei que este é o seu desejo também.
Rose envia-lhe as mais carinhosas lembranças assim como eu também o faço.
Seu dedicado filho,
PETER."
Lucy releu aquilo tudo muito calma. Assim eram ultimamente quase todas as cartas do filho, que chegavam mais ou menos com o intervalo de uma semana e que ela podia
responder simplesmente com igual regularidade. Cartas cheia de carinho, cheias de brilhantes promessas. Aquelas promessas ! Sem dúvida ele acreditava nelas, Lucy
porém... Seria que era injusta ? Não o sabia, mas acreditava que em dez anos Peter continuaria a fazê-las do mesmo modo. E o que era estranho é que esse pensamento
não lhe causava agora a menor amargura. Era extraordinária aquela tolerância nela que nunca fora uma mulher tolerante.
Não é que tivesse esquecido aquele regresso de Doune... nunca poderia esquecê-lo. Nunca! Nem esqueceria a angústia, a amargura, o desânimo do seu espírito, ao voltar
para a sua casa tão vazia, tão completamente deserta... Mesmo agora um arrepio lhe percorria o corpo ao pensar que se sentira uma mulher aniquilada. Em baixo, no
apartamento dos Maitland, havia nesse dia uma festa com música alegre, tocada ao piano e cantada em coro, e um sarilho de dansas. Não 345
era a primeira festa que se dava em casa dos Maitland, mas naquele dia tal movimento tinha-a irritado bastante. Achara também insuportável a solidão em torno dela.
Desesperada, saíra de casa esforçando-se por acalmar a agitação do espírito no borborinho impetuoso das ruas. Era uma noite de sábado, na rua Young. Seria aquilo
vida ou seria loucura? Luzes brilhavam, as calçadas regorgitavam de sons e cores. Mulheres passavam rindo e conversando. O povo se comprimia, surgindo como um ruidoso
exército que avançasse à conquista do prazer. Meretrizes estacionavam nas esquinas, alertas, à espera, oferecendo-se aos homens. Os veículos desfilavam em rápida
sucessão. As casas de diversões abriam as portas de par a par, por toda parte risos, gritos, cantos, discussões entre homens embriagados. Tudo aquilo desfilava ante
Lucy como um sonho confuso, cercava-a como um pesadelo, do qual era a figura central. Ela, porém, não pertencia a esse descuidoso exército. Achava-se ali perdida.
Era uma criatura sem fé. Lamentava amargamente todas as coisas que a vida lhe negara. Arrependia-se de sua virtude. Por que não soubera tirar alguma felicidade da
vida? Tivera um corpo, um corpo mais belo e cheio de seiva do que o daquelas vulgares prostitutas que faziam parada dos seus encantos duvidosos. E tinha sentimentos.
Sufocara, entretanto, tudo aquilo. Por que se restringira aos estreitos limites da respeitabilidade, economizando, privando-se de tudo... para nada ? Fora ela própria
a culpada de tudo. Enganara-se a si própria, na vida que escolhera. Desejou desesperadamente escapar àquela angústia cometendo alguma loucura, buscando o esquecimento
eterno.
Assim vagueou pelas ruas do prazer, voltando tarde da noite para casa, cuja tranquilidade a assombrou. Mesmo,, porém, nessa tranquilidade, não pôde dormir. Agitara-se
durante a noite inteira. No dia seguinte, que era um domingo, deixou-se ficar na cama, exausta, olhando para o vago, sem mesmo pensar em ir à igreja, deixando os
segundos passarem.
Na segunda- feira arrastou-se até o escritório. Precisava de ir lá. Era o seu meio de vida. Não queria depender de ninguém. Nunca poderia aceitar uma posição secundária
em casa. do filho, recebendo as migalhas da sua refeição. Não! A estrela na qual pusera toda a sua fé extinguira-se. O ídolo que construira jazia derrubado aos seus
pés. Tudo sacrificara a esse ídolo e ele a abandonara pela fatuidade.
Entrou no escritório entorpecida, indiferente, apesar de temer a inevitável cena: os olhares à socapa, a comiseração
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que não desejava e, ainda mais do que isso, aquele olhar latente significando: "Eu não lhe disse?", "Eu a avisei e você não me quis ouvir!" Aquilo havia sido como
uma adaga no seu flanco, uma terrível provação para o seu orgulho, para ela que se gabara tão confiantemente do que faria quando seu filho terminasse o curso.
Depois de enfrentar aquela situação com uma fisionomia composta, Lucy partiu para os bairros da miséria, para a detestável ronda do trabalho degradante. E, agora,
já não tinha nenhuma afeição para incentivá-la. Toda aquela escravidão recomeçara.
Como a tinham feito sofrer também, no princípio, aqueles postais que lhe haviam sido enviados pelos recem-casados, em sua viagem de núpcias pela Bretanha! Como gostaram
da Bretanha, pela sua originalidade (essa frase fora de Rose) e pela sua esplêndida cozinha (essa fora do seu filho! E já falavam em outra viagem! Os postais chegavam
todos os dias, mensageiros da paz, sinais de carinho, brilhantemente coloridos com mulheres de toucas e tamancos, evocações de paisagens ensolaradas; e lhe perguntavam:
"Não é uma bela paisagem, mamãe?" Todas elas eram muito lindas, mas para Lucy eram como lancinantes evidências do que estava perdendo. Os dois, viajando pelo estrangeiro,
divertindo-se, e ela... deixada ali como um objeto imprestável, sim, como uma das cascas de laranja ou um dos pedaços de papel sujo que juncavam a rua das Flores.
Sem dúvida, o que ela deveria fazer era aceitar a situação da maneira tradicional, tendo um doce impulso de perdão, escrevendo uma carta emocionante ao feliz par,
sugerindo discretamente uma pequena doação mensal, precauções materiais misturando-se a uma visão sentimental daquilo que ela poderia ser daí a alguns anos, com
a cabeça branca, sentada à lareira, embalando uma criancinha nos joelhos. Mas isso não estava em Lucy. A esse pensamento sentia a fria picada de um agudo espinho
e enchia-se de revolta. Nada daquilo poderia consolá-la da injustiça e da amarga desfeita que sofrera. Sua vida agora parecia-lhe vazia de sentido. Vazia sobretudo
de esperança.
Os dias da semana se passaram e outro domingo veio. Levada pelo hábito, quase indiferente, dirigiu-se para a igreja. Não para a igreja de São Patrício. Ali ela era
conhecida; (fugindo instintivamente da chuva de perguntas que temia caisse sobre si, foi a uma paróquia adaptada, à igreja de Santa Maria, uma igrejinha construída
em uma praça silenciosa,
curiosamente sossegada entre o bulício das ruas comerciais. Já ouvira falar vagamente daquela igreja, ou do seu pároco, não estava bem certa de qual dos dois. Curvada
sob o insuportável desgosto, atormentada pela dor, guiada por aquele indefinível desejo de libertar-se do seu estado de alma, com as forças quase esgotadas, entrara
na igreja.
Fora ali que se dera o milagre. Porque certamente aquilo fora um milagre. Disso Lucy não tinha a menor dúvida. Mesmo agora, sentada em frente daquela mesa em desordem,
seu rosto iluminou-se ao recordar aquele momento. Sim. A mão que dirigira sua vida guiara-a até ali. Lucy estava perfeitamente certa disso.
Deixou-se ficar, por alguns momentos ainda, sentada à mesa, com um sorriso estampado no rosto pálido. Depois, ergueu-se, foi pôr a carta do filho com as outras,
numa empoeirada pilha sobre a lareira e, apanhando suas coisas, deixou tranquilamente a casa.
Chegou ao escritório às quatro e meia, foi para a sua mesa, sentou-se e pôs-se a arranjar os objetos. Depois deixou em ordem seu livro. Finalmente, voltando-se para
Miss Tinto, indagou calmamente:
- Mister Eattray estará no gabinete?
Miss Tinto parou de escrever e olhou-a surpreendida. Aquela era uma pergunta estranha. As órbitas de Lucy e de Mister Eattray não costumavam cruzar-se.
- Está lá em cima, sim. Ouvi-o subir antes da sua chegada.
- Obrigada, disse Lucy. Levantou-se e saiu da sala. Miss Tinto seguiu-a com uns olhos esbugalhados de espanto até ela fechar a porta.
Em cinco minutos Lucy se achava de volta. Imediatamente Miss Tinto interpelou-a:
- Ele estava? inquiriu discretamente, o que era, porém, uma pergunta indireta que pedia informações mais positivas.
- Estava, respondeu Lucy serenamente, acrescentando depois, sem alterar seu tom de tranquila indiferença: -
Acabo de pedir minha demissão.
Miss Tinto estremeceu. Voltando-se inteiramente para a outra, perguntou-lhe cheia de interesse:
- Então vai partir mesmo para Londres? Muito bem! Vai enfim tornar a ver seu filho.
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Lucy olhou-a um instante e disse por fim:
- Não. Não é para lá que eu vou. Mas partirei dentro de um mês. - Dirigiu-se à sua mesa, empilhou seus livros e encaminhou-se para a porta. - Agora, vou-me embora.
Nada mais tenho a fazer.
- Mas para onde vai? insistiu Miss Tinto movida por uma curiosidade intensa.
- Tenho os meus planos, respondeu Lucy vagamente. Cumprimentou a outra com a cabeça, deu boa-noite e deixou o escritório.
Outros planos! ficou pensando Miss Tinto muito depois dela já ter saído. E debatia consigo mesma o assunto quando Adam Dandie, furioso por ter sido retido por uma
interrupção no serviço dos bondes, entrou na sala.
Miss Tinto não deu atenção alguma aos seus conceitos pessimistas sobre os veículos em geral. A notícia que tinha não podia ser adiada.
?- Ela vai nos deixar, disse fazendo um movimento de cabeça em direção à mesa vazia. Apresentou sua demissão esta tarde.
- Não diga! exclamou Dandie enrolando as arqueadas pernas nos lados da cadeira, como si fossem dois imensos pontos de interrogação. Vai ao encontro daquele seu maravilhoso
filho?
?- Não! - E um mundo de insinuações concentravam-se naquela única sílaba.
- Então para onde vai ela?
- Deus é quem sabe! respondeu lentamente Miss Tinto. Só Ele poderá saber o que lhe irá acontecer. É a pior inimiga de si própria, coitada. Tenho imensa pena dela.
- Pois ela não tem nenhuma pena de si mesma, replicou Dandie. Anda enlevada, esses últimos dias.
- Enlevada?
Houve um silêncio durante o qual Dandie coçou a cabeça com o cabo da caneta, dizendo depois vagarosamente, cheio de uma suprema sabedoria:
- Deu agora para a religião, sabe? Já tenho visto isso em outras pessoas. Conheci um homem chamado Gilmour, que foi um grande patife em seu tempo, mas que se converteu
num congresso do Exército da- Salvação em Gorbals e, daí em diante, saiu quebrando todas as garrafas de whisky que encontrava em seu caminho. Acabaram por metê-lo
na cadeia por causa disso. Pois as mulheres são ainda piores. E sou eu quem lhe diz que é isso que tem nossa colega.
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Conheço-as a léguas. Católicas ou não, isso pode acontecer a qualquer uma. Assim parece, pelo menos.
- A coitada sofreu uma decepção tão grande, ultimamente! murmurou Miss Tinto.
- É por isso mesmo, não vê? explicou o infalível Dandie. Ela estava madura para a coisa. Era fácil. Dê um grande golpe numa criatura daquele género e ela se volta
imediatamente para a religião. Outro dia, ainda, tive uma grande discussão com ela sobre esse assunto. Ela quase me arranca as orelhas...
- Mas que irá fazer!
- Si a senhora o ignora, ela o sabe muito bem, retrucou Daudie judiciosamente. Pode crer que ela é uma criatura que se dirige a si própria. - E voltando para a sua
mesa, de onde se levantara para dar aquele alvitre, concluiu: - Contanto que não comece a quebrar garrafas de whisky por aí...
Miss Tinto, porém, nem siquer sorriu. Em vez disso, franziu a testa e sacudiu vagarosamente a cabeça, como quem julgasse que aquilo poderia ser uma coisa que pudesse
acabar mal... muito mal.
LUCY afastou-se do escritório muito rapidamente, como alguém que tem um objetivo em mira. Ela, que há alguns meses arrastava-se desanimada achando que não valia
a pena viver! Era realmente um milagre! E, como tal, Lucy reconhecia a magnitude da bênção lançada sobre ela e que lhe havia restituído a paz.
Não se incomodava que Miss Tinto franzisse as sobrancelhas procurando adivinhar, nem que Dandie resmungasse o que bem entendesse. Que aquele doce ardor que agora
a possuía servisse para excitar-lhes a veia da ?maledicência, era para ela uma coisa completamente indiferente. Era feliz. Mais feliz do que nunca o fora. Como poderiam
eles compreender aquela felicidade, aquela grande alegria interior que maravilhava ainda hoje a ela própria! Mas era sua, aquela brilhante e suave chama perante
a qual tudo o mais se tornava insignificante. Aquela chama crepitante que ela sempre buscara, que sempre se ocultara a seus olhos, pertencia-lhe enfim. Aquela era
a razão da sua nova serenidade e do seu ar de tranquila decisão.
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Em caminho pelas vielas mais escusas, evitando deliberadamente as ruas principais, movimentadas e bem iluminadas, foi assaltada pela recordação daqueles dias em
que se esforçava para captar as passageiras satisfações do mundo, quando as luzes, as multidões e as vitrines a haviam interessado, quando se deixara invadir até
mesmo pela mesquinha vaidade dos vestidos. Será que houvera mesmo um tempo em que, metida num vestido de zibelline, plantada defronte de um espelho, perguntara a
Netta: "Que tal me acha?" Seria possível que alguma vez ela se" tivesse sentado à mesa de uma casa de chá, para se fartar de bolos de creme? Aquelas recordações
pareciam inconsistentes e confusas, tão longínquas! Sim. É essa prodigiosa felicidade que a invadira, aquelas trivialidades se tinham tornado remotas, deixando-lhe
apenas um remorso vago de ter-se deixado algum dia arrastar àquilo.
Chegara quase à praça Garnet. Como si àqueles caminhos lhe fossem familiares, seguiu uma ruela mal iluminada e veiu sair defronte da Igreja de Santa Maria. Transpondo
o limiar da estreita porta gótica, novamente Lucy pensou naquela sublime e espiritual experiência que tivera. Como poderia esquecer? Aquilo a invadira como uma torrente
desencadeada, como um relâmpago de graça, como uma luz pura e deslumbrante que modificara completamente sua vida. E pensar que durante toda essa vida passada ela
vivera perseguindo fantasmas, enquanto aquela, a grande, a única realidade lhe passara despercebida!
Acontecera aquilo nove meses atrás, naquele domingo abençoado dia! - e nessa mesma escura e suja igreja. Ajoelhada, meio oculta por uma coluna, ela se esforçava
para articular uma oração, mecanicamente, sem bem saber o que fazia, demasiadamente esmagada pelo seu desgosto para elevar o espírito àquela formal devoção do costume.
Talvez fosse porque nunca fora realmente devota, e sim movida apenas pelo hábito, e por saber que aquilo era um dever, que naquele dia não conseguira encontrar a
energia para orar. Todo o seu ser parecia uma corda muito tensa que deveria partir-se em breve.
De repente levantara a cabeça. Naquele momento, partira-se a corda e, enquanto se elevavam as vibrações ecoantes, olhou diretamente o divino rosto. Estremecera.
Aquela face inclinada e caída sobre o peito tinha o olhar fixado nela com uma expressão de calma porém angustiada compreensão. Lucy fora instantaneamente trespassada
como que por uma estranha e dolorosa punhalada. Não pudera retirar
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os olhos daquela contemplação. Os seus estavam vinculados irrevogavelmente àqueles tranquilos e doloridos olhos, que pareciam tristes pelo seu solrimento e nublados
por uma doce censura. Imediatamente Lucy pusera-se a tremer, porque aquele rosto apresentava todos os sofrimentos que ela agora sentia. A dor estampava-se em todos
os seus traços. A testa ferida sangrava, as faces cavadas estavam exangues, os lábios entreabertos revelavam a língua sedenta. A terrível agonia de uma torturada
e solitária morte estava esculpida naquelas feições. Aquela face, porém, não estava morta. Vivia e atraía-a para si com um estranho poder em que se misturavam piedade
e dor, força e fraqueza, severidade e compaixão. Lucy sentiu-se desmaiar e lutou desesperadamente para tornar a. si, para baixar os olhos. Aquilo era apenas um crucifixo
suspenso na coluna sobre sua cabeça, a face de Jesus no momento em que morrera na cruz. Não era nada que ela não soubesse, nada que ela não tivesse visto já mil
vezes antes. Por maior e mais vivo que parecesse, não era sinão madeira, gesso e pintura. Mas seus olhos hipnotizados não se baixavam. Sim. Vira muitas vezes o rosto
do Cristo sofredor, mas nunca, nunca assim como aquele.
Estava tão próximo a ela, tão real e vivo! Parecia ter sopro nos divinos e torturados lábios e suor na fronte, angustiada. Seus olhos pareciam chamá-la, compreendendo
sua desgraça, oferecendo-lhe piedade, amor e paz. Durante toda a sua vida, Jesus a esperara paciente e sofredor e só agora ela se apercebia disso. Em torno dela,
tudo desapareceu numa espécie de nevoeiro através do qual a imagem tomou uma aparência luminosa e resplandecente. Jesus! Jesus! Seu divino rosto brilhava diante
dela. Seu Salvador, que ela negligenciara e abandonara, oferecia-lhe Seu amor. Compreendia. Chamava-a com os olhos cheios de compaixão. Seu divino peito sangrava
pelas suas dores. Seu divino corpo fora acoitado e palpitava. Seus divinos braços, estendidos na cruz:, abriam-se para recebê-la. Também Ele sofrera e aqueles olhos
sofredores e onicientes haviam visto todas as suas angústias. Ele era Aquele que proclamara a inutilidade de todas as coisas, a não ser o amor a Deus. Não seria
Ele quem assim traçara seu destino para que ela no fim pudesse vir a Ele?
De súbito aos seus ouvidos soou uma voz clara: Vinde a mim, vós todos que sofreis opressão e injustiça". O rosto de Lucy empalideceu. Uma ternura imensa empolgou-a.
Foi a visão daquela face transfigurada! Aquilo era mais do que ela podia suportar. Seu coração pôs-se a palpitar com um
estranho ardor que expulsava a tristeza de que estivera cheio. Aquele ardor aumentou, aumentou, até que o pobre corpo não mais pôde conter aquele transbordamento.
Dentro dela, alguma coisa dissolveu-se. Seu espírito subitamente tomou asas e elevou-se nos ares em direção à imagem de Cristo, seu Salvador. Subindo, subindo, encontrou-se
em Seus amoráveis braços. Oh! inesperada, inacreditável ventura! Em seu êxtase Lucy sentiu os braços do seu Redentor envolverem-na suavemente. Sua cabeça descaiu
e uma torrente de lágrimas jorrou-lhe dos olhos, cegando-a. Estava sobre Seu divino peito, chorando de alegria. Jesus, Filho de Deus vivo, o esplendor do Pai, o
brilho da luz eterna, pertencia-lhe a ela, por fim, era Sua. Por que não voltara para Ele antes? Caminhara através de desertos áridos, gastara-se num trabalho inútil.
Agora, porém, sua alma ressurgira para aquela doce união com o criador. Aquele era o fim para o qual ela fora criada. Ao pé daquela união, a vida nada era, a morte
não era nada! Em torno dela as vozes dos anjos uniam-se em uma celestial harmonia .de felicidade.
- Jesus! Jesus! murmurou Lucy em êxtase. Vim afinal para vós. Pertencer-vos-ei eternamente.
Por longo tempo, ali se deixou ficar ajoelhada, enlevada no transporte da sua beatitude. Nada viu da Missa. Nada ouviu do sermão. Não olhou para ninguém e ninguém
a olhou. Sem que ela se apercebesse, a igreja esvaziou-se. Ficou só.
Finalmente, agitou-se. Seu rosto, como a brilhante face da visão que tivera, estava agora transfigurado. Nunca imaginara que tendo entrado naquela igreja sentindo-se
tão desgraçada, pudesse deixá-la assim consolada e em paz.
Cheia de Ifervor, Lucy ergueu-se e beijou os pés da imagem na cruz.
Estava tão confortada que se apoderou dela o medo de
? que aquela felicidade não durasse. O tesouro parecia-lhe demasiado precioso para lhe pertencer. Seus receios no entanto eram vãos. Ela nunca abraçara uma causa
que não seguisse com fervorosa intensidade. E a alegria persistira. Era realmente sua, e aumentara dia a dia, até tornar-se a essência da sua vida. Havia muitas
coisas de que ela teria que se penitenciar: toda a sua anterior frieza e negligência. Voltara à igreja de Santa Maria uma vez, duas, sempre! Acabara por fazer da
igrejinha o doce refúgio para o qual instintivamente se voltava. Não havia nenhuma virtude especial, naquela pequena e despretensiosa capela, porém, fora ali que,
através ?da sublime bondade do seu Criador, ela encontrara a Graça.
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Ali vinha, pois, para orar, para oferecer seu trabalho, sua vida, seu próprio ser a Deus, para assistir ao Santo Sacrifício da Missa, para fazer suas comunhões diárias.
Aqueles preciosos momentos em que Jesus lhe dava Seu corpo unindo-Se a ela, enchiam-lhe a alma de um intenso êxtase de alegria. Antes, Lucy nunca pudera compreender
a verdadeira significação do Santíssimo Sacramento. No passado, quando cumpria sua devoção quaresmal, receber a Hóstia e sentir o delicado e branco disco dissolver-se
na sua boca, era um solene mas não emocionante e maravilhoso momento. Ela aceitava -aquilo como fazendo parte da sua crença, porque assim lho haviam ensinado. Agora,
porém... como era diferente o que sentia! Aquela fusão com Jesus, como era real e completa! Acendendo-lhe o fervor, aumentando a intensidade do seu anelo, era uma
doce repetição do momento em que, em sua visão, Ele a estreitara em. Seus amoráveis braços.
Mas que poderia fazer para melhor mostrar sua gratidão e seu amor? A intensidade do seu ardor exigia que ?ela fizesse mais do que aquilo; impelia-a docemente para
diante, para um sacrifício cada vez maior. Ansiava por uma união mais estreita com seu Salvador. Tudo por Jesus... Era esse realmente o motivo da sua vida agora.
E de repente viera-lhe a revelação, uma tarde em que, sentada, meditava tranquilamente em seu quarto. Assim, talvez, tivesse vindo a Maria a Anunciação. Era tão
simples, tão inevitável! Para aqueles que não o pudessem compreender, parecia pretensioso, ou ridículo apenas. Para ela, contudo, fora uma inspiração de inexcedível
doçura. Dar-se inteiramente a seu Deus! Foi esse impulso de completo dom de si mesma, que a moveu. E que havia em sua vida que a impedisse de deixar o mundo? Nada.
Nada existia que a pudesse prender. Era como si, durante toda a sua vida, aquela perda gradual do apego às coisas terrenas tivesse sido uma preparação para aquele
sublime fim. Imediatamente Lucy se deixou cair de joelhos e agradeceu a Deus aquele pensamento. Lentamente a resolução se lhe formou no espírito. Pediu conselho
ao seu confessor e obteve-o. Então, calmamente, -decidiu-se.
Era essa a razão daquele passo que dera, afastando-se do seu emprego em Henderson Shaw. E aquela sua vinda ali, hoje, era decisiva.
Quando a cerimónia da bênção terminou, Lucy continuou ajoelhada, observando o padre, enquanto este deixava o altar
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e entrava na sacristia. Fora ele quem a ajudara em sua resolução e agora ela desejava falar-lhe.
O Padre John Talbot era quem tinha a seus cuidados, naquele tempo, a Igreja de Santa Maria, na praça Garnet. Severo, assíduo, era um homem de impecável sinceridade.
Mesmo os seus inimigos não podiam negar a intensidade de sua crença. Aquela arraigada fé arrancara-o aos seus domínios - ele pertencia a uma família abastada que
possuía ricas terras - e trouxera-o para a Igreja. Trabalhava sozinho naquela pobre paróquia, jejuando regularmente, abstendo-se de carne, bebendo água apenas, trazendo
sempre consigo um cilício, flagelando-se à meia-noite perante o altar - praticava em segredo todos os castigos da carne. Dir-se-ia que era um louco, um santo, um
fanático, mas nunca um embusteiro. Sua própria aparência o impedia. Alto, magro, erecto, tinha no rosto cadavérico uma inquieta e amarga expressão. Era moreno e
pálido. O nariz era pontudo como um bico, a boca parecia uma cicatriz e os olhos eram grandes, severos e profundos. Esse rosto, assim como suas maneiras, nunca se
distendia; conservava-se sempre grave, absorto, quase formidável.
Agora tirava os paramentos na sacristia, onde o aroma de incenso se misturava ao cheiro da cera. Reinava ali uma tranquilidade apenas perturbada pelo movimento dos
dois pequenos sacristães, que, a um canto, despiam suas túnicas.
O padre Talbot retirou a capa, dobrou-a, desembaraçou-se da sobrepeliz e guardava esses paramentos quando se ouviu bater à porta que comunicava com a nave.
- Retirem-se, falou o padre para os dois rapazinhos, sem, voltar a cabeça. Sua voz era fria e austera; e os dois obedeceram-lhe imediatamente, saindo pela outra
porta que ia dar ao páteo. Então o padre pôs na cabeça o barrete e, avançando para a porta, abriu-a. - Estava à sua espera, disse imediatamente, fazendo entrar Lucy
na sacristia; e contemplando-a com seriedade perguntou;.- Então! está resolvida? Pensou em tudo aquilo que eu lhe ponderei?
- Sim, padre. Pensei em tudo e estou resolvida.
Por algum tempo, os dois encararam-se em silêncio. O rosto do sacerdote estava sombrio e ainda severo. Lucy, porém, agora, tirava um extraordinário conforto daquela
firmeza. Decorrido um momento, murmurou:
- Resolvi tudo conforme os seus conselhos. Estou em suas mãos. 355
- Nas mãos de Deus, corrigiu o sacerdote asperamente. Não a convidou a sentar-se; rígido, fez daquela entrevista uma penitência para ambos. - Já a conheço há perto
de nove meses, continuou ele, e conheço um pouco da sua vida. A senhora, não é jovem. Tem apenas seus últimos anos a oferecer. Mesmo assim, si está preparada para
suportar trabalhos árduos, para uma completa submissão...
- Oh! sim! Estou! interrompeu Lucy.
- Nesse caso, também estou preparado para ajudá-la. Penso que a senhora tem vocação. É isso o que me move. Essa vocação chegou-lhe tarde; mas, de qualquer modo,
a senhora agora a possue. - Estacou, enquanto Lucy o olhava com uns grandes olhos brilhantes; depois continuou friamente : - Estive pensando no assunto e inclinei-me
para a Ordem, das Servas de Deus. Conheço-a bem. É a que lhe convém mais. Já enviei para lá duas noviças que se deram admiravelmente.
- Pensei que o senhor se tivesse referido às Carmelitas, disse Lucy rápida.
É uma ordem muito severa. A senhora já não é muito jovem para suportar sua disciplina, declarou o sacerdote francamente. Além disso a senhora precisa não esquecer
sua posição e sua idade. Que poderá a senhora oferecer à Ordem das Carmelitas que a induza a aceitá-la? Não. Não creio que a aceitassem.
Lucy corou, mas continuou a fixar os olhos em seu rosto.
- A Ordem de que lhe falo, prosseguiu, não é muito severa. A única desvantagem que eu nela encontro é que a sede é no estrangeiro, em Sentiens, perto de Bruxelas.
A senhora terá de passar pelo menos três anos lá - talvez todo o resto da sua vida - mas provavelmente, ao professar, será enviada a uma das filiais aqui na Inglaterra.
- Isso para mim não faz diferença. Prefiro sair daqui, afastar-me de tudo.
- Não se trata de preferência sua. Si a senhora tomar o véu, precisa esquecer aquilo que deseja. - Novamente fez uma pausa para depois continuar: - Já escrevi à
Madre Geral; há algumas formalidades que a senhora deve preencher.
- Sim. Tudo o que for preciso, acudiu Lucy com vivacidade.
- Precisa ter as certidões de nascimento, de batismo, um atestado médico e uma certidão de óbito do seu marido. Além disso, precisa de duas recomendações. Eu,
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naturalmente ofereço uma e a outra... - aqui olhou-a gravemente, sugiro que a peça ao cónego Moore.
- vou escrever-lhe hoje mesmo, assegurou Lucy. Depois, perguntou timidamente: - E quando poderei partir?
- A Madre Geral escrever-lhe-á. Si a senhora for aceita, terá em mãos a resposta dentro de um mês.
Um mês! Era o que ela queria. A esse pensamento um estranho ardor invadiu-a como que intoxicando-a.
- Como tem sido bom para mim, padre! murmurou ela. Queria tanto agradecer-lhe!
- Nada há que agradecer, disse o sacerdote em tom quase irritado, procurando excluir qualquer sentimentalismo daquela cena. E depois de um- silêncio significativo,
que punha fim àquela curta entrevista, finalizou, acompanhando-a até a porta : ?- Vá em paz.
Lucy sentia-se feliz. Dera voluntariamente aquele passo. Aqueles poucos minutos de conversa, tão restritos e despidos de emoção, iam conduzi-la ao porto que escolhera.
Entrou novamente na capela. Já ali penetrara a sombra da noite e apenas se percebia o brilho da luz vermelha da lâmpada do santuário. Lucy aproximando-se do altar,
ajoelhou-se. Si ela pudesse ser aceita! Rezou para que a aceitassem como Serva de Deus, para que sua frieza, sua indiferença na vida passada pudesse ser esquecida.
Sim. Aceitá-la-iam. Toda a sua vida agora tendia para esse fim. Estranho pensamento que ela, Lucy Moore, estivesse agora quase a entrar para um convento! Só ela
própria poderia compreender a verdadeira significação desse passo. "Tudo, tudo por Jesus".
Assim era. Lucy entregava-se ao seu Deus com todo o apaixonado ardor de uma noiva.
SEGUINDO os conselhos do seu confessor, Lucy escreveu a Edward e, no sábado seguinte, ficou estarrecida pelo seu modo de responder. A resposta não foi uma carta,
mas uma visita pessoal do cónego.
- Tive que vir, Lucy,. foi dizendo ele imediatamente, ainda ofegante, depois de rápidos cumprimentos. Ando ocupado, ocupadíssimo! Tenho uma reunião diocesana agora
às quatro horas, mas não pude deixar de vir. - Seus modos
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se haviam modificado um pouco naqueles últimos anos. Sua timidez agora mascarava-se sob a dignidade, e a doçura fundia-se-lhe numa pompa maior. - Que é aquilo que
você me manda dizer na sua, carta? - E continuou, tirando a "carta que recebera, das profundezas do bolso: - Isto não pode ser sério, Lucy!
- É perfeitamente sério, Edward, assegurou calmamente, observando-o enquanto ele se instalava na cadeira de balanço - agora o único assento sólido naquela peça.
Aquela visita surpreendia-a, mas não a vexava. Os dias em que a pobreza da sua casa havia trazido o rubor da vergonha às suas faces já tinham passado. Não. Agora
desejava aquela pobreza que Cristo pregara.
- Mas não pode ser! minha querida Lucy, protestou o cónego abanando-se com a carta. Subira as escadas com demasiada rapidez e ultimamente seu fígado andava meio
congestionado. - Ou pelo menos você não tem noção - desculpe-me - do que está a fazer. Você sabe o que significa isso? As privações que teria de sofrer?
?- Não podem ser maiores que aquelas a que estou acostumada. O regulamento me foi explicado. Além disso, ofereço a Deus essas privações. - Falava com tranquilidade
e indiferença.
- É muito louvável, realmente, sua intenção, disse Edward olhando-a com indulgência, mas francamente, Lucy, na sua idade, você não deve pensar nisso.
Lucy franziu um pouco a testa. Afinal tinha apenas quarenta e dois anos; ia responder quando o cunhado se antecipou:
?- Deixe-me dizer-lhe, agora umas, coisas. Você tem tido uma vida rude ultimamente, minha cara amiga. O modo, porém, pelo qual você tem arcado com tudo é muito
digno de elogios. Esse casamento de Peter. que foi quase uma fuga, foi uma surpresa até para mim. E jovem como é! Mas... é a lei natural. Lá diz S. Paulo: "É melhor
casar do que abrasar." Cedo ou tarde você teria que perdê-lo. E, afinal de contas, não foi tão cedo assim. Na Espanha, por exemplo - seus olhos voltaram-se retrospectivamente
ao passado - na Espanha, casam muito cedo. Amadurecem-se rapidamente, lá. Sobretudo as mulheres. Vi algumas casadas aos quatorze anos. Além disso, Peter casou muito
bem, com uma distinta moça católica, bonita, muito bonita! E também rica. E depois, que belo começo para o rapaz essa esplêndida clínica
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em Londres! Ele me escreveu dizendo que vai indo muito bem e que agora anda curando a nobreza... o garoto! Em poucos meses estará em condições de se ocupar de você.
Muito fez você pelo rapaz mas tê-lo-á de volta, se tiver paciência. Inclinou-se pára a frente e estendeu a mão branca e macia: "Pax vobisciim!" Seu ar queria dizer
claramente: "Vamos! Para que abrigar ressentimentos?"
- Eu não estou pensando nas coisas do passado agora, respondeu Lucy com mansidão surpreendente, estou preocupada com o futuro.
- Sim, sim, não há dúvida, minha querida, mas um ressentimento natural, uma decepção, pode ser a causa de um passo precipitado desses. Quero dizer, esse casamento
feito na sua ausência. Deus sabe, porém, que não me meti nisso.
Ela abanou a cabeça lentamente oferecendo outra vez aquele argumento irretorquível:
- Você não me conhece ainda, Edward. Isso agora é tudo para mim. Encontrei a felicidade, uma felicidade indizível em Nosso Senhor.
Ironia das situações! Foi o sacerdote quem estremeceu a essas palavras, como si fossem absurdas. Edward considerou-a com um ar cheio de dúvida.
- Muito bem, muito bem, disse, como que acalmando-a; mas admitindo que você persista nessa ideia, já considerou o sacrifício que faz? Você não pode renunciar ao
mundo tão facilmente quanto pensa.
Lucy considerou aquelas palavras no espírito: o mundo! aquela casa... os bairros da pobreza que tinha que percorrer diariamente... aquela sua penosa e monótona vida...
- Posso deixar tudo, replicou mais secamente do que desejara, e hei de deixar tudo.
- A vida do claustro, insistiu Edward, quando a pessoa a ela se habitua desde jovem, gradualmente, é uma coisa... Na sua idade, você vai se sentir humilhada. Vai
achá-la muito dura.
- Já não encontrei bastante disso, aqui retorquiu Lucy sem amargura. Já não me convenci de que a vida nada possue fora do amor a Deus?
- Você pode servir a Deus cá fora, no mundo, sugeriu Edward corando levemente. Nós, padres, assim fazemos.
- Comigo ou é tudo ou nada, disse Lucy com firmeza. Além disso a vida religiosa me chama.
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Edward, olhando-a, pensou naqueles dias em que, tão elegantemente vestida, tão brilhante e contente, ela o ia visitar com o filhinho. Como poderia demovê-la daquele...
sim, daquele propósito estúpido?
- Mas o que foi que houve com você? perguntou-lhe, examinando-a com atenção. Depois, sua fisionomia assumindo uma expressão humorística, e lembrando-se de que ela
sempre apreciara suas pequenas anedotas, continuou: - Espero que não tenha tido uma visão como a velha senhora que veio me ver, outro dia, Miss McTara. Creio que
você a conhece. É bastante rica, uma das minhas melhores paroquianas e piedosíssima. "Sr. cónego", disse ela toda alvoroçada, "acabo de ter uma santa visão. Ontem,
depois do jantar, vi-os tão claramente quanto estou vendo agora o reverendo". Ah! respondi - você sabe que eu a conheço bem e sei que ela gosta do seu vinhozinho
às refeições. - Então, teve essa visão depois do jantar, não é mesmo? E quantos copos de vinho do Porto havia tomado? "Só dois copos, senhor cónego, nunca tomo mais
que isso; mas diga-me, teria sido um milagre?" Dois copos? repliquei eu, vá para casa, minha boa alma, e hoje ao jantar tome em vez de dois, três copos de Porto.
Não tenha a menor dúvida de que hoje verá toda a Santíssima Trindade.
E Edward pôs-se a rir encantado com o próprio humorismo e pelo excelente modo pelo qual o relatara. O rosto de Lucy, porém, conservou-se tão sério que gradualmente
a alegria do sacerdote se extinguiu. Houve uma curta pausa durante a qual ele a olhou de soslaio, desconcertado pelo fracasso das suas boas intenções.
- Siga o meu conselho, Lucy, declarou por fim num tom conciliatório. Nunca me meti na sua vida, e aviso-a para que não se arrependa depois.
? Lucy olhou para o sacerdote que tinha em sua frente, bem nutrido, de mãos e faces gordas, de pele macia e bem tratada, que levava uma boa vida, comendo bem, bebendo
melhor, e seu pensamento transportou-se rapidamente à imagem do padre Talbot, magro, famélico, ardendo em fé e gasto pela intensidade dessa fé. Seria que esses dois
homens professassem o mesmo credo? De qualquer modo, ela sabia qual dos dois exemplos desejava seguir.
- O padre Talbot me disse que eu tenho vocação, respondeu friamente, e aconselhou-me partir.
O rosto de Edward encheu-se de sangue.
- Talbot! exclamou, Talbot é um fanático. O bispo anda com os olhos em cima dele. Você não pode se guiar
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pelo que ele diz. Nós nos devemos à vida e a nós mesmos. Estacou, recuperando a suavidade sacerdotal, e continuou gravemente: - Não. Não pense que adianta andarmos
vestidos de roupas velhas e de cabeça raspada. Devemos cuidar de nós. Ontem mesmo eu andei convencendo um frade a jogar golf. - Dizia isso cheio de satisfação e
autoridade.
Lucy olhou-o com uns olhos que pareciam querer penetrá-lo :
- Será possível que, logo você, esteja querendo me impedir de devotar-me ao serviço de Deus?
A cor do rosto de Edward aumentou. Mexeu-se inquieto. Realmente, aquela rudeza de Lucy era do pior gosto!
- O que eu quero é impedi-la de dar um passo errado. Você é muito obstinada, não direi teimosa, mas não gosta de seguir os conselhos de ninguém. Qualquer pessoa
que tiver lógica lhe dirá o que lhe estou dizendo. A própria Miss
O Regan assim pensa.
De modo que ele andara discutindo aquilo com Miss. O Regan! A irritação começou a querer invadi-la:
- Eu sou como sou, replicou friamente, assim Deus me fez. Mas não seria capaz de comentar os seus atos por trás de você. Além disso, o modo pelo qual você me fala
faz pensar que eu estou indo para o diabo em vez de estar indo para um convento.
Ultrajado, Edward recuou elevando a mão, numa atitude quase apostólica:
- Lucy, Lucy! protestou, essa sua língua!
Ela controlou-se, deixando as mãos caírem no regaço.
- Perdoe-me, Edward, falou firmemente, apesar de professando sua nova humildade - baixar a cabeça, mas tenho que ir. Nada do que você me disser poderá alterar minha
resolução. Quero me dedicar a Jesus!
Uma longa pausa sucedeu a essas últimas palavras, que pareciam vir do mais profundo da sua alma.
- Muito bem! exclamou finalmente Edward com um movimento expressivo de resignação. Faça o que quiser. Mas depois não diga que eu não a avisei. ?- E olhou em torno,
como para tomar as paredes como testemunhas de que fizera o seu dever.
- Quer tomar uma chícara de chá? perguntou ela suavemente. Não é incómodo nenhum para mim.
- Não, não, interpôs Edward levantando-se. Tenho que jantar com o Arcebispo depois da reunião. Não quero tomar coisa alguma, antes.
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Parecia agora ansioso por partir.
No pequeno háll, apertaram-se as mãos.
- Adeus, Lucy; e que Deus a abençoe. Afinal de contas, é possível que você se dê bem nessa vida. Estamos todos nas mãos de Deus.
Seu vulto ocupava toda a porta, mas mesmo assim, dada sua corpulência, seus passos eram leves ao descer tranquilamente as escadas.
Rapidamente Lucy fechou a porta atrás dele e voltou para a cozinha.
O próprio Edward querer impedi-la de se entregar inteiramente a Deus! Poderia haver coisa mais engraçada? Contudo ela sentia vontade de rir. Seus olhos, porém, brilhavam
com o fulgor de antigamente. Nada poderia separála de Jesus.
Lentamente seu olhar se foi tornando fixo e, como em uma visão, apareceu-lhe a imagem do Cristo, sangrando por cinco dolorosas chagas, com os braços estendidos para
ela.
LUCY, apesar de saber, com toda a convicção que lhe dava aquela luz interior, que seria aceita pela Ordem das Servas de Deus, experimentou uma grande alegria quando
recebeu a confirmação de que podia partir. A Madre Geral,, com um lindo cursivo e um inglês excelente, exprimiu a emoção que lhe haviam causado os termos da carta
de Lucy e as boas recomendações do padre Talbot. De modo que ela se resolvera a aceitá-la, a despeito da sua idade, como noviça da Ordem, nas condições especificadas.
Graças a Deus! com os olhos da fé, Lucy viu os portões que se lhe abriam para dar-lhe a paz e a felicidade das orações.
Imediatamente se pôs a fazer, cheia de alegria, os preparativos para sua partida daquele ambiente que, durante anos, tanto a havia oprimido. Sentia-se estranhamente
livre, tinha um sentimento de alívio e uma energia, uma alegre energia que emanava daquele fogo interior. Não lhe custava deixar o país. Pelo contrário, "Deixa tudo
o que é teu e segue-me", dissera o Mestre. E, realmente, que tinha ela para deixar?
Por menos que tivesse que gastar em sua viagem, o dinheiro que possuía era insuficiente. Teria de recorrer a ajuda do
filho para conseguir o que faltava. A soma não seria grande e era impossível que ele llie recusasse isso. Mesmo assim, não lhe escreveu. Quando chegasse a Londres
ela tudo lhe explicaria. Possuía seus métodos de fazer as coisas. Decidira não se despedir de ninguém. Quem realmente se incomodaria com sua partida? Richard e Eva?
Joe, Polly, mesmo Edward? Tal acontecimento nem siquer chegaria a agitar a superfície das suas vidas. Restringira de tal modo sua vida pelas circunstâncias criadas
por suas ideias quê já se sentia isolada, estranhamente desprendida. com o padre Talbot estivera já diversas vezes, em pequenas entrevistas cerimoniosas, cuja frieza
parecia contudo mais acender o fogo do seu zelo. .Ao.se despedir de Miss Tinto, teve um impulso momentâneo, mas aos outros conhecidos deu um adeus cheio de naturalidade,
de bom humor, sem dar indicação alguma do seu propósito. Disse que queria deixar o trabalho, que ia repousar um pouco no sul (a primeira coisa que lhe viera à cabeça).
Não desejava despedidas espetaculares. O essencial era partir. E como partia alegremente!
Assim, na manhã do dia primeiro de maio, ela se achou no trem que partia para Londres, uma mulher de meia idade, pálida, simplesmente vestida, de olhar resoluto
e testa levemente franzida. Levava todas as suas coisas na surrada mala que pertencera a Peter. Ao comprá-la, nunca poderia prever o uso que lhe daria. Na bolsa,
mais ou menos três libras: no coração, porém, entesourada preciosamente, levava a fortuna inestimável do amor a Deus.
Talvez pela sua impaciência, a viagem pareceu-lhe mais longa do que imaginara. Nunca fora a Londres. Uma vez, Frank considerara a ideia de levá-la ao Continente,
mas na realidade, ela nunca chegara a sair da Escócia.
Não trouxera blush consigo, não desejava ler, nem sentia vontade de conversar. Ficou tranquilamente sentada no seu canto do compartimento, silenciosa, absorvida
por uma secreta meditação, cheia de uma exaltação interior.
Em Crewe, tomou uma xícara de chá com bolo; uma rápida refeição feita de pé, no restaurante da parada.
Em Euston, onde finalmente chegou às seis horas, Lucy desembarcou na plataforma, vendo-se cercada de uma enorme multidão. Imediatamente chamou o carregador que,
por sua vez, chamou um carro. Em "meio àquele bulício, conservava-se calma. Havia traçado tranquilamente seus planos. Não iria à casa do filho. Não. Não que alimentasse
meu ressentimento
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ou rancor, nem que tivesse ainda ciúme de Rose, mas não lhes queria impor sua presença. Em vez disso, foi para um pequeno hotel na rua Gower, que Miss Tinto recomendara
muito especialmente porque, numa visita memorável que fizera a Londres com a irmã, achara-o "decente e razoável". Tranquilamente, sem se perturbar com o movimento
das ruas e com a estranha sensação de entrar em um hotel desconhecido, Lucy obteve seu quarto aparentando uma experiência que não possuía. Imediatamente depois,
telefonou a Peter. Seu nome figurava na lista e ela achou facilmente o número, pedindo sem demora a ligação. E foi ele quem atendeu com uma voz agradável, cheia
de vivacidade, positivamente profissional e cheia de expectativa. Quando, porém, ela se anunciou e disse onde se instalara, a voz perdeu a animação de um modo quase
cómico. Depois de um longo silêncio, cheio de estupefação, a voz tornou quase bruscamente:
- Mas. . . mas que é que você está fazendo aqui?
- Venha até cá e eu lhe direi, respondeu ela que contara já com aquela surpresa.
- Mas é melhor que você venha aqui, mamãe. Para que não nos preveniu de sua chegada? É isso mesmo... é melhor que você venha cá.
Os lábios de Lucy sorriam levemente em frente ao receptor:
Eu o espero a uma hora qualquer da tarde de hoje. disse. E desligou.
Meia hora depois chegava Peter, efusivo e temeroso, escondendo um sentimento no outro. E agora no quarto de Lucy eles se enfrentavam. Peter sentado simplesmente
na cama e ela toda espigada em uma cadeira que fazia parte do mobiliário do aposento, ambos assaltados pela lembrança do que se passara desde que se haviam visto
pela última vez.
- Mas você nem deve pensar nisso, mamãe, protestou ele pela terceira vez cheio de assombro. Francamente, isso é o maior choque que eu tive na vida. Não compreendo
como você não me avisou disso antes!
?- E você me avisou que ia dar aquele passo que deu? perguntou ela com um pequeno sorriso forçado. -
Peter corou violentamente, baixando a cabeça e começou a puxar os fios da colcha vermelha que cobria a cama.
- Rose quer que você vá para a nossa casa, disse ele contrafeito. Foi a última recomendação que ela fez antes da minha saída. - Fez uma pausa e depois continuou
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contrariado: Essa ideia, na sua idade! Nunca ouvi falar numa coisa assim. Que irá pensar toda gente quando souber... Lucy olhou-o tranquilamente quase compadecida.
Era. natural que ele se deixasse perturbar pelas trivialidades da existência. Apesar da sua compostura, sentia uma grande agitação ao vê-lo novamente. Todos os momentos
de intimidade da vida que haviam passado juntos, apresentaram-se-lhe na imaginação. Peter pouco mudara. Suas maneiras eram quase as mesmas, tinha aquele mesmo sorriso
onde se notava a mesma timidez e o mesmo inconciente atrativo. Lucy ainda o queria muito porém, agora, naturalmente, seu carinho, todo o seu panorama sentimental
era diferente. Ela via as coisas, como deviam ser vistas, as futilidades da vida lhe apareciam como simples insignificância ante a grande e eterna finalidade da
salvação. Sorriu-lhe com os olhos.
- Nem gosto de pensar que você vai se enterrar em um convento, protestou Peter novamente. E isso me coloca numa situação bastante duvidosa.
- Eu sei quais são os seus sentimentos, meu filho, respondeu Lucy, vagarosamente. E ao dizer aquelas palavras,, sua pequena figura assumia uma majestosa atitude.
- Mas,. a despeito disso, eu irei.
- Venha para a nossa casa por alguns dias para pensar melhor, insistiu ele. Já .lhe disse que Rose deseja muito .que você vá.
- Isso nada adiantaria, replicou ela com uma estranha e inocente hostilidade. Rose não me tornará a ver. vou partir imediatamente. Amanhã ou depois.
Peter ergueu os olhos meio suplicante, meio ofendido:
- Você não me censura por coisa alguma, não é mesmo? O que fiz foi muito natural.
- Não o censuro em absoluto, falou ela novamente tranquila. Você não pode calcular quanto eu me sinto feliz.
- Eu queria fazer tanto por você! exclamou ele desanimado. Tudo aquilo que lhe escrevi era apenas uma questãode tempo. Eu faria tudo por você!
?- Preciso de algum dinheiro, replicou Lucy calmamente, controlando a situação. Mas não é muito.
Subitamente os olhos de Peter se umedeceram. Seu instinto de posse, abalado pela ideia da partida de sua mãe, fê-lo novamente protestar sua boa vontade em auxiliá-la.
Na voragem dos seus sentimentos afetivos sua habitual mesquinhez sumiu. Perguntou quanto ela queria, tirou a carteira do bolso e, cheio de emoção, deu-lhe algumas
cédulas.
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- Pega o que quiser, declarou emocionado; naquele instante apresentava toda a cordialidade dos Moore num momento de crise, fazendo aquela doação com uma espécie
de sublime generosidade, tirando dali, na realidade, o sentimento tranquilizador para a sua conciência de estar cumprindo um dever. Nove meses atrás, Lucy teria
repudiado desdenhosamente aquele presente; agora, porém, aceitava o dinheiro sem comentário ou repugnância. Não era para ela. Era para Deus. Peter, mais impressionado
por aquela dignidade do que por qualquer demonstração de afeto, cheio agora de Uma súbita ternura por sua mãe, fez mais protestos, promessas, teve exclamações de
pesar. Mas o controle de Lucy era grande. Peter teve a impressão de que ela se tornara para sempre estranha a ele. Ao levantar-se para partir, disse tristemente:
- Voltarei amanhã para vê-la. Novamente Lucy o beijou e sorriu.
Assim que o filho partiu ela se deixou ficar um momento, pensativa; depois, erguendo-se, foi guardar o dinheiro que ele lhe havia dado e, saindo do quarto, desceu.
Entrou na sala de refeições, que era confortável e discreta, -e provou os alimentos simples mas excelentes que lhe foram servidos. Manteve-se à parte, num canto,
sem dar atenção aos outros que se achavam na sala. Seus olhos, que pareciam querer desde já recolher-se na humildade e na meditação, conservaram-se fixos na toalha
da mesa. Assim que terminou a refeição, levantou-se.
Ainda não eram oito horas; impelida por uma força interior, Lucy pôs o chapéu e o casaco e saiu do hotel. As ruas pulsavam de vida: eram como grandes veias pelas
quais fluísse uma constante e vital corrente. Carruagens e taxis desfilavam rápidos. A multidão dirigia-se aos restaurantes, aos teatros. Um carro particular passou
rente a Lucy e ela pôde ver o brilho de uma camisa branca e a brancura de uns ombros nus. No passado ela tivera um grande desejo de conhecer Londres - quantas vezes
o dissera a Frank e mais tarde também a Peter! Sonhava com jantares no Trocadero
- que julgavam elegantíssimo - regados com vinhos. Depois iriam assistir a uma boa representação que os fizesse rir. Mais tarde, ceariam em qualquer lugar de Soho
para dar um sabor de boémia à noite. Sim! tudo aquilo fora planejado! Mas aquilo passara. Agora era como cinza em sua boca. Nada desejava nem lamentava. Si lhe oferecessem
agora aquele programa, dantes tão ardentemente
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desejado, ela desviaria a cabeça friamente. Nada tinha valor perto do que possuia agora. Enquanto caminhava, Lucy tinha uma ânsia, uma doce ansiedade que só ela
podia entender. Durante todo aquele dia nem uma só vez tivera a consolação de uma visita à igreja, mas agora sentia no coração um desejo que tinha que ser satisfeito.
Teve de se informar para conseguir encontrar a igreja que lhe haviam recomendado; depois de algum trabalho, achou-se dentro dela. Aí, ajoelhou-se e persignou-se
com um suspiro de felicidade.
Regressou ao hotel muito tarde e fatigada pela viagem, dormiu profundamente, um feliz sono sem sonhos. Na manhã seguinte, deixou o hotel com a lista de objetos que
deveria comprar - que lhe fora enviada pela Madre Superiora - e o dinheiro que Peter lhe dera. Depois de alguma busca, achou em uma pequena loja da rua Edgware
um modesto vestido de sarja negra que lhe ia do pescoço aos pés, uma áspera roupa branca que lhe garantiram ser eterna, meias de lã, lençóis de algodão e um par
de grosseiros cobertores. Tudo isso custou pouco e Lucy voltou para casa, onde esperou que lhe enviassem as compras. Quando chegaram, arranjou-as cuidadosamente
na mala.
Durante a tarde Peter veiu vê-la novamente. Pelo espaço de uma hora estiveram juntos no pequeno quarto. Foi uma estranha entrevista, durante a qual Peter se sentiu
curiosamente constrangido. Tivera tempo de considerar a situação e sentia-se aflito pelo irrevogável da separação. O egoismo não conseguira superar nele o sentimento
de afeição. Si Lucy tivesse partido diretamente ? de Glasgow, talvez tudo fosse diferente. Ele possuia essa faculdade, tão comum nos egoístas, de alhear-se aos fatos
que se dão fora da sua esfera de contacto. Mas, ver aquela desagradável situação patenteada aos seus olhos pela presença de Lucy, ali naquele pequeno quarto, fazia-o
sentir-se realmente infeliz.
Insistiu em perguntar si lhe havia dado o dinheiro suficiente, quis mesmo dar-lhe mais. Aquilo, pelo menos, era uma prova evidente da sua sinceridade. Lucy, porém,
sorriu. Que iria ela fazer com dinheiro, agora? Peter comoveu-se. Seus olhos se encheram de lágrimas quando perguntou por que o deixava. Sua mãe procurava consolá-lo
mas em vão. Por mais que ela lhe dissesse que se sentia muito feliz, o transtorno dele aumentava. Parecia a Lucy que os anos haviam recuado e que haviam voltado
aos anos da infância de Peter em Ardfillan.
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Ao despedir-se, ele soluçava quase, manifestando uma dor tão infantil que Lucy teve um sorriso suave, cheio de compaixão, e quando, o filho, partiu, ela deixou-se
ficar pensando, com um vago sorriso nos lábios entreabertos. Sentia que era assim que desejara despedir-se dele.
Peter havia prometido levá-la à estação Vitória no dia seguinte. Mas a intuição de Lucy não a enganara quando a avisara de que já se havia despedido do filho. Pela
manhã, um recado telefónico avisou-a de que ele se achava ocupado com um cliente e que a encontraria na estação. Mas Peter lá não se achava. Não era por culpa sua.
Não pudera deixar o cliente. Por um lado Lucy sentiu-se contente. Desejara que sua partida fosse tranquila e despretensiosa. Não queria parecer que estava fazendo
grandes renúncias; não queria despedidas melodramáticas, nem lhe agradava fingir grande desgosto quando se acenava o limiar do claustro. Esse pensamento enchia-a
de desprezo. Inundava-a o amor a Deus, e entregar-se-lhe era a sua alegria. Agora, a última barreira fora transposta. O apito da locomotiva soou como um clarim louvando
a Deus.
Instalada em seu compartimento, olhou através da janela enquanto a alegre paisagem de Kent, mais linda do que qualquer quadro, desenhava aos seus olhos encantados,
Silenciosamente seus lábios repetiam "Bendito seja Deus!" As próprias rodas girando .ecoavam aquele mudo hosana: " Bendito seja Deus"; "Bendito seja Deus"; "Bendito
seja Deus!"
E Deus era realmente bom para ela, mesmo nessas pequeninas coisas que dantes desdenhava. A despeito de si própria, Lucy havia temido a travessia do Canal, mas, uma
vez chegando a Dover, encontrou um mar quieto e sereno como um lago. Tudo lhe correu bem. A trepidação do motor substituiu o barulho das rodas, o ritmo era, porém,
o mesmo: "Bendito seja Deus"! E ela avançava para o seu supremo objetivo.
Em Calais, passou depressa pela alfândega - sua bagagem estava marcada para ser examinada em Bruxelas - e entrou no rápido inteiramente indiferente às cenas que
presenciava ou à estranheza da língua. Tudo lhe parecia fácil desde que se sentia guiada pela divina mão. O trem partiu. Novamente as rodas iniciaram a canção triunfante.
Agitou-a uma rápida excitação. Não a novidade da paisagem, aquela terra cinzenta cortada de estradas brancas e fileiras de álamos. Aquilo passou-lhe em frente como
um sonho.
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Em Tournai seu inconsistente bilhete de passagem, agora reduzido a um mero fragmento, foi novamente visado. Aí comeu os sandwiches que trouxera do hotel. Passou
por Lille, Baisieux e Blaudain. Estaria fatigada? Suas costas doíam um pouco; talvez os olhos lhe ardessem, da poeira, mas o espírito estava alerta. Não se apercebia
quase do cansaço. Estava cada vez mais conciente daquela sensação de proximidade. Por fim, quando os raios de sol, perfurando a cerração, apareceram banhando um
amontoado de tetos e torres, o trem diminuiu a marcha e entrou na estação. Chegara a Bruxelas! Imediatamente Lucy desembarcou na plataforma, onde ficou parada um
momento fazendo desviar a corrente do povo pela sua imobilidade. Subitamente seus olhos iluminaram-se. Avistara duas freiras, de pé ao lado da entrada. Elas duas
por sua vez, apesar de Lucy não se aperceber disso, observavam-na. Lucy avançou, as freiras também se mexeram. Conheceram-se intuitivamente antes de se encontrarem.
Oh! feliz encontro ao qual Lucy estava predestinada desde que nascera
- A senhora veio da Inglaterra? perguntou a mais baixa das religiosas, sorrindo. Falava um inglês admirável.
- Muito depressa, disse a outra religiosa também, em inglês, esse; um pouco deficiente. E com dificuldade, acompanhando as palavras com um gesto de cabeça, indicou
que quisera significar que o trem chegara na hora.
?- Foi bondade de ambas virem me esperar, murmurou .Lucy.
- Não tem o que agradecer. Fomos enviadas para isso, respondeu a que falara primeiro; e, à guisa de apresentação, indicou a companheira: - Bonne Mère Marie Emmanuel,
do Noviciado, e eu sou a Irmã Joséphine, Postulante.
Lucy sorriu calorosamente e exclamou:
- A senhora fala tão bem inglês!
- Isso não é nada, disse a Irmã Joséphine, temos algumas casas na Inglaterra. A Mère G-énérale também fala muito bem.
- Não nos devemos demorar, interrompeu Mère Marie Emmanuel, impaciente.
- É verdade! concordou a Irmã Joséphine imediatamente, eis aqui a bagagem. - E voltando-se contrafeita encaminhou-se para a douane. Aí, enquanto sua mala era aberta,
Lucy teve um momento para inspecionar as duas religiosas.
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Ambas usavam um longo capote escuro de passeio que cobria o hábito, ocultando todo o corpo, e cada uma delas tinha na cabeça a touca branca sob o véu negro da Ordem.
Aí, no entanto, cessava a semelhança.
A Irmã Joséphine era de mediana estatura e tinha uma pele macilenta de poros abertos, um nariz grosso, olhos pequenos e cinzentos, sobrancelhas móveis, expressivas,
e maneiras alegres e infantis. Aqueles modos pareceram vagamente familiares a Lucy; onde os encontrara, porém, não lhe foi possível lembrar no momento.
Bonne Mère Marie Emmanuel, instrutora das noviças, ?era pálida, alta, severa. Tinha olhos azues e lábios estreitos e secos. Os caninos eram agudos e mostravam-se
um pouco proeminentes nas raras ocasiões em que sorria. A Irmã Joséphine manifestava-lhe, ao que parecia, um ingénuo e obsequioso respeito, não tanto por qualquer
diferença de hierarquia como por deferência. O inconciente tributo que uma natureza fraca paga a uma outra mais forte. Naquele momento, Irmã Joséphine gesticulava
e falava muito rapidamente em francês com o guarda da alfândega, o qual escutando atenciosamente, se inclinava e voltava a inclinar-se com o maior respeito. Finalmente,
levantando o gorro, escreveu com giz azul uns complicados rabiscos na mala que não chegara a abrir e gritou alto: - Carregador!
Enquanto as três se afastavam juntas, Joséphine disse, ?voltando-se para Lucy:
- O pai da nossa Irmã Clara é alto funcionário na ?douane. Todas as religiosas que vêm para Sentiens, não pagam direitos. É um grande privilégio, esse.
Saíram da estação e encontraram-se numa grande praça, onde imediatamente tomaram um carro que as esperava. O carregador colocou aí a mala e foi despedido por Marie
Emmariuel, que lhe deu uma pequena moeda. A portinhola fechou-se e o carro pôs-se a rolar sobre o calçamento. Lucy conservava os olhos baixos. Defronte dela, as
duas religiosas estudavam-na com ingénua curiosidade.
- Está fatigada? perguntou a Irmã Joséphine, que era a que mais falava.
- Não, não! respondeu Lucy levantando os olhos vivamente. Não queria dar sinal algum de fraqueza tão cedo. ?A travessia foi muito tranquila.
- O mar também me põe doente, disse a Irmã Joséphine amável.
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- Mas isso agora acabou, redarguiu friamente Marie Emmaiiuel. Houve um curto silêncio; depois, em voz baixa, as duas puseram-se a falar em francês.
Lucy teve um caloroso impulso de amizade para com essas duas mulheres com as quais sabia que ia viver agora. Não quis, porém, interromper-lhes a conversa.
Pôs-se a olhar para fora pela pequena janela do carro. Estavam percorrendo uma rua bastante movimentada, cheia de carros abertos e bondes que corriam em grande velocidade,
parecendo perseguirem-se alegremente. Uma quantidade de cafés com homens e mulheres sentados nas calçadas em pequenas mesas redondas, com os nomes de Café du Pays,
Café Belgique, Café du Postillon. O povo não era agitado. Todos pareciam plácidos e tranquilamente contentes. Os que se sentavam às mesas tinham bebidas defronte
de si, mas parecia não beberem nunca. Ficavam ali, sentados, olhando e tomando ar.
Finalmente, o carro saiu da rua principal, e pôs-se a subir uma colina, passando por vagas formas de estátuas, uma fonte, outra praça, um grande edifício - seria
um palácio? - depois entrou num bairro tranquilo onde casas escuras, de portões de ferro com cadeados, pareciam desabitadas. De quando em vez, via-se ali uma casa
de comércio com nomes curiosos: Epicerie, Boulanger, Robes, Charcutier. Aquele era realmente um país estranho. De repente, o carro pôs-se a ladear um bosque que,
contemplado àquela hora em que já começava a escurecer, parecia enorme e tenebroso como uma floresta.
- Forêt du Sentiens, disse Irmã Joséphine. Agora estamos perto. - E libertando a mão do casaco, apontou para o cume de uma pequena elevação à esquerda.
Os olhos de Lucy procuravam ver através da estreita janela. Contra a triste opacidade do céu que escurecia, ela pôde ver os contornos de um edifício que parecia
ter as asas abertas como um grande morcego agachado sobre a colina.
O coração saltou-lhe no peito e pôs-se a pulsar rapidamente. Ela não estava mais en route. Chegara! Atingira o fim da jornada. Enquanto o carro rolava sobre o caminho
macadamizado, Lucy sentiu-se invadir de um tremor, de um alvoroço, feito de esperança e alegria.
Enfim! Enfim ali se achava!
. 371
-
O CONVENTO de Sentiens, sede da instituição, que à distância parecia um morcego, tinha realmente a apropriada forma de uma cruz. A cabeça da cruz, que dava para
a Eue de Camboix e ficava por detrás de altas grades de ferro trabalhado, entrelaçado de clematites, constava do hall, dos parlatórios e, em cima, tinha uns poucos
quartos de cama reservados a hóspedes que pudessem se apresentar ocasionalmente, todos alegres e abertos, expondo uma agradável fachada visível a quem passasse na
sossegada rua. De cada lado dessa entrada estendia-se um braço abrigado por altos muros. O esquerdo abrangia o refeitório, a sala de trabalho e as celas das religiosas
professas. Ao lado, conforme o nome o indica, uma pequena edificação independente, o Postulai, destinado ao alojamento das postulantes; e como que adicionado à última
hora, um quarto longo e baixo para o alojamento das irmãs .leigas. O braço direito, igual ao esquerdo, incluia as celas, o refeitório e a sala de trabalho das noviças.
Finalmente, no estreito corpo dessa cruz, elevando sua esguia torre muito acima dos mais altos galhos de um enorme carvalho adjacente, ficava a igreja.
Separando ?- apesar de unindo de algum modo - essas quatro divisões principais do edifício havia um páteo central, lajeado, que tinha no meio uma imagem de S. José
dirigindo um plácido e perpetuo olhar através das janelas da cozinha do convento que lhe ficava em frente. Para trás da edificação, cercando a igreja e estendendo-se
até muito longe, ficava o jardim, um grande e belo jardim dividido em aléias e avenidas pela disposição de suas árvores. Muitas árvores frutíferas, sobretudo ameixeiras,
cerejeiras, pereiras, e também limeiras e loureiros. Rosas trepadeiras enlaçavam-se em torno dos caramanchões que enfeitavam os deslumbrantes passeios de pedra branca.
Um grande e alto muro cercava todo aquele terreno e, como si isso não fora suficiente, a natureza, como toda a sua redundância, levantara uma barreira além dessa,
a floresta de Sentiens que, aproximando-se do muro, o tornava ainda mais sólido. Toda comunidade estava guardada como uma cidadela ?- uma fortaleza que possuía
um imico e complicado meio de acesso. Para entrar nessa cidadela, era necessário puxar a corda da campainha, esperar, ser inspecionado através de uma grade, ser
admitido por uma vagarosa irmã leiga,
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porteira, entrar no hall e então, por virtude de uma chave especial que abria as portas subsequentes, atravessar a cadeia de parlatórios. Só assim se poderia atingir
o limiar do claustro.
Era num desses parlatórios que Lucy se adiava sentada agora,. esperando. Estava só. A Irmã Joséphine e Mère Marie Emmanuel tinham ido informar a Superiora da sua
chegada. Enquanto esperava, seus olhos percorriam lentamente a pequena sala. Havia ali apenas uma pequena mesa coberta de oleado, algumas rígidas cadeiras enfileiradas
com meticulosa exatidão, uma estufa de porcelana amarela com uma chaminé de ferro e um quadro único nas paredes: Jesus caminhando sobre as águas. Aquilo completava
o mobiliário.
A nudez daquela sala, porém, nada era ante o terrífico e notável asseio que ali reinava. O soalho de madeira espelhava como vidro. A velha estufa tinha um brilho
opaco e sua chaminé reluzia como uma cartola nova. A mesa, as cadeiras, a maçaneta da porta, tudo tinha sido polido com extraordinário zelo. Tempo houvera em que
Lucy se orgulhava da limpeza da sua casa, mas nunca, não, nunca sua casa havia sido assim imaculada!
Estava ela ainda maravilhada, quando a porta se abriu e uma venerável mulher entrou majestosamente na sala, seguida por Joséphine e Marie Emmanuel. Era alta, gorda
e volumosa pela amplitude do hábito que vestia. Seu rosto era branco e cheio; os olhos castanhos, míopes, reduzidos ao tamanho de contas de rosário pelos espessos
vidros dos óculos de aro de aço, possuíam uma intensidade penetrante. E os dentes inferiores, projetados para a frente e muito amarelos, davam-lhe um curioso ar
de censura, como si sua possuidora estivesse constantemente arguindo o universo.
Mesmo assim, era uma figura imponente; avançando em direção a Lncy estendeu-lhe ambos os braços.
- Seja benvinda! disse com uma graça peculiar.
Lucy ergueu-se. Instintivamente sentiu que se achava na presença da Bonne Mère Générale; focalizada por três pares de olhos que a observavam, abandonou suas mãos
àquela cordialidade.
- A senhora não é muito jovem, notou a Superiora, que agora se achava tão perto de Lucy que esta lhe sentia o hálito a cada palavra, - mas os caminhos de Deus sabem
atrair as almas. O trabalhador entra no vinhedo à undécima hora. Compreende? A senhora vem pela graça de Deus! Depois, mudando rapidamente de assunto, perguntou:
Está fatigada?
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- Não, madre. - Intuitivamente Lucy sentira que era assim que deveria chamá-la.
- Quer tomar alguma coisa? ?- Não, madre.
A Superiora recuou satisfeita e deixou cair o queixo sobre o peito.
- A senhora chegou a tempo. Si chegasse durante a noite, não a teríamos recebido. Teria que dormir por cima dos parlatórios. Agora, porém, estamos preparadas. Vamos
recebê-la depois das orações. - Ao voltar-se, seu olhar caiu sobre as duas irmãs que, imediatamente, baixaram os olhos, cheias de respeito. - A irmã Josephine será
sua guardiã agora, explicou a Superiora amavelmente, por algumas semanas, talvez; depois, durante seu noviciado, precisará obedecer a Bonne Mère Marie Bmmanuel.
Inclinou a cabeça e desapareceu pela porta com a firmeza- que dá a aristocracia absoluta.
A porta fechou-se atrás dela e, por um momento, ninguém disse palavra, como si a atmosfera ainda agitada por aquela augusta presença devesse antes acalmar-se. Depois
de algum tempo, Josephine falou gentilmente, como si estivesse se dirigindo a uma criança:
- Vamos! nós a prepararemos. - E tomando Lucy pelo braço, conduziu-a até outro pequeno parlatório. Irmã Emmanuel acompanhou-as em silêncio. Era um estrito preceito
do Regulamento que nenhuma religiosa ficasse só com alguém que não tivesse ordens. Deveriam estar sempre duas. Novamente ficaram ali as três, esperando, até que
uma velha irmã leiga entrou, trazendo nas mãos nodosas uns véus negros.
Enquanto Lucy, muito ereta na cadeira, sentia-se corar, houve quase uma confusão na escolha e no arranjo do véu. Esse era de um material grosseiro e barato, semelhante
ao que costumam usar na igreja as mulheres do povo na Itália. O arranjo correto do véu, na cabeça de Lucy, era uma operação delicada. Informavam-na de que deveria
usá-lo sempre ao entrar na igreja. Deram-lhe também uma caixa de papelão onde deveria trazê-lo sempre cuidadosamente dobrado.
De súbito, ouviu-se a badalada de um sino e, assim que a ouviram, as irmãs deram Lucy como pronta. A irmã leiga, apanhando os véus restantes, desapareceu imediatamente.
- Levante-se, disse Irma Josephine. Lucy ergueu-se. Sentia-se, de repente, perturbada.
- Que devo fazer? perguntou nervosamente.
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- Não é muita coisa, explicou a outra com indulgência. Basta ajoelhar-se e cantar o Magnificat. É muito bonito e ser-lhe-á fácil.
Dizendo isso tomou novamente Lucy pelo braço e, ainda acompanhadas por Marie Bmmanuel, saíram da sala. Percorreram um longo corredor espelhante e pararam ante uma
porta de duas folhas.
- Aqui é a igreja, disse a Irmã Jeséphine, formalizando-se e elevando o dedo aos lábios, que apesar disso ainda sorriam agradavelmente. A porta abriu-se e elas entraram
pelo fundo da igreja. Vagarosamente Lucy ergueu os olhos, que, pela fadiga e por uma estranha agitação que se havia apoderado dela, se achavam baixos naquele momento.
E então, aos poucos, esses olhos se encheram de uma luz de ternura. Sua viagem, a estranheza do lugar, as formalidades dos parlatórios, foram esquecidos instintivamente.
A beleza do templo era extrema. A nave era comprida e alta, as paredes guarnecidas de madeira escura,.o teto abobadado, pintado e reluzente como um céu distante,
estava quase invisível pela escuridão reinante. Apenas os círios do altar se achavam acesos e mais dois ladeando um prie-ãieu colocado defronte da grade do altar.
Toda a igreja parecia cheia de uma triste e misteriosa tranquilidade.
O pequeno altar era de mármore branco, subia-se a ele por cinco degraus e era dominado por um grande crucifixo. A luz dos círios bruxoleava e lançava uma ténue claridade
nas portas de bronze do tabernáculo e nos pálidos ramos de flores que se achavam de cada um de seus lados. Nas paredes percebiam-se vagamente os quadros da via-crucis
e também eram apagadas as figuras das freiras ajoelhadas naquele silêncio que em parte alguma é tão absoluto como numa capela de convento. Aquela quietude enchia
agora o coração de Lucy de um sentimento delicioso de calma e alegria.
Foi-lhe feito um sinal; ela avançou e ajoelhou-se no prieãieu, esforçando-se por acalmar-se e murmurar uma oração. Mas não pôde. Todo o seu espírito estava absorvido
no pensamento emocionante de que se achava ali, por fim, no seio daquela comunidade de santas mulheres, ela que passara toda a sua vida no mundo, vivendo tão sem
merecimentos. Agora oferecia os restos daquela existência inútil ao seu Criador. Que paz encontrava naquela rica mansão de Deus! Quentes lágrimas vieram-lhe aos
olhos.
-Nesse momento, elevou-se a voz intensa do órgão, que encheu a nave de uma gloriosa rapsódia de sons. O coro
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começou a cantar "Veni Creator Spiritus". Lucy, muda, escutava. Depois veio o Magnificai:
"Magnificat anima mea, Dominum:
Et exsultavit spirítus meus in Dèo salutari meo."
Cantavam aquilo para ela, para acolhê-la com toda a sua indignidade. Qualquer coisa estava sufocando-a. Seu espírito se rejubilava em Deus Salvador. Não pôde conter
no peito a torrente impetuosa da emoção. As lágrimas rolaram-lhe pelas faces. Como pudera ser tão cega até ali? Contrita, batia no peito dizendo: "Deus, sede misericordioso
para com esta pecadora! Doce Jesus, consenti que eu Voa ame cada vez mais!"
"Te Deum laudamus: te Dominum confitemur."
E no coração de Lucy havia agora um hino de agradecimento. Deus aceitara-a. Como lhe seria fácil esquecer ali o mundo e suas misérias!
O canto cessou e fez-se o silêncio propício à meditação. Depois de um momento Lucy sentiu que lhe tocavam no braço. Ergueu os olhos e levantou-se. De cabeça baixa
dirigiu-se para o claustro.
Agora, em virtude de ter sido aceita, e por aquela simples cerimónia, estava dentro da clausura. Aquele era o primeiro passo. Lucy conservou-se passiva enquanto
aquela mesma irmã leiga lhe retirava o véu e lhe atava a touca de malha negra que deveria usar daí por diante.
- Não espere pelas orações desta noite, disse a Irmã Joséphine com autoridade. É visível o seu cansaço. - E conduziu-a através de uma porta envernizada, por cima
da qual se lia a palavra "Postulai", a uma escada de madeira muito polida. Em silêncio galgaram essa escada e tomaram por um estreito corredor, para o qual se abriam
diversas portas. Em torno reinava aquela mesma quietude e aquele curioso cheiro dos conventos; um odor quente, único, indescritível. Os passos ecoavam tranquilamente
no soalho. Afinal, a Irmã Joséphine abriu a penúltima porta. Dentro reinava a escuridão ; riscando um fósforo a religiosa acendeu uma vela cuja luz permitiu que
se visse um estreito e despido quarto que continha apenas um colchão, um pequeno armário, sobre o qual repousava uma bilha, e, na parede, um grande crucifixo.
- Essa é a cela, falou Joséphine. Como postulante concede-se-lhe uma vela; uma por semana. Não a terá mais
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quando se tornar noviça. Estar na cama às nove horas com a vela apagada é a regra. E a regra precisa ser observada. Esta última frase caiu-lhe dos lábios como um
cântico solene, já muito repetido; e olhou complacentemente para Lucy. Conforme lhe expliquei, esta noite a senhora está fatigada. Mas amanhã começará a aprender.
- A sombra de um sorriso iluminou-lhe as feições chatas. Encaminhou-se para a porta:
- Louvado seja Deus, disse. Era seu modo de desejar boa. noite. E Lucy respondeu como lhe haviam ensinado-
- Para sempre seja louvado.
Suavemente a porta se fechou. Lucy ficou só. Estava sozinha no quarto da sua cela. Tão prontamente fora realizado seu desejo que ela mal podia analisar a situação.
A cabeça lhe doía da fadiga e da violência das emoções que experimentara. Sentia-se completamente esgotada. Pelo hábito, por um momento pensou em tomar uma chícara
de chá que a confortaria. Aquele pensamento, porém, não durou mais de um instante. Que absurdo! E sorriu, dirigindo-se à pequena janela que abriu. Imediatamente
um golpe do doce ar da noite veiu refrescar-lhe o rosto ardente. Aquele ar estava cheio do perfume da terra e da (floresta, fresco da umidade do orvalho. Lucy deixou-se
ficar ali olhando para a escuridão absoluta, enquanto atrás dela a chama da vela. bruxoleava e projetava estranhas e gigantescas formas nas paredes. .De repente,
na escuridão daquela floresta invisível, elevou-se um som puro e mavioso, uma nota de beleza, tão inesperada, tão sublime e apaixonada, que parecia surgir de alguma
região que não pertencesse à terra. Encantada, Lucy escutava, enquanto aquelas notas se elevavam e morriam num alegre transporte cheio de modulações ardentes e livres.
Que maravilhoso era aquele extasiante trinado! Era a canção do rouxinol! E aquele canto chegou aos ouvidos de Lucy como a confirmação da sua felicidade.
com o coração cheio de gratidão, fechou a janela, despiu-se rapidamente e deitou-se.
Antes de apagar a vela, seu último olhar foi para o crucifixo preso à parede fronteira. As quatro e meia da madrugada o sino do convento bateu alto. Estava ainda
meio-escuro. Lucy despertou sobressaltada, com a cabeça confusa, cheia das irrealidades do sono-
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e da vibrante ressonância daquele sino. Onde estava? Seu espírito procurava orientar-se. Não compreendia ainda. Então, através do nevoeiro da sua perplexidade, ouviu
um golpe na porta e essas palavras proferidas com insistência"Louvado seja Deus! Louvado seja Deus Imediatamente respondeu: "Para sempre seja louvado!" Prestando
ouvido, escutou o som dos passos que se afastavam pelo corredor, parando em frente das outras portas; depois ouvia novamente bater e a mesma saudação era repetida
e logo respondida.
Em que estava ela pensando? Devia levantar-se imediatamente sem nenhum momento de reflexão. Esse era o primeiro ato do sacrifício do dia. E ei-la, logo de início
do seu postulado, desobedecendo ao primeiro mandamento da regra! Levantou-se rapidamente do colchão e acendeu a vela. Lavar-se e vestir-se com seu novo vestido e
a touca, foi obra de poucos instantes. Não havia espelho na cela; e isso talvez, fosse melhor, porque sua figura, naquele imenso vestido preto e naquela touca, era
verdadeiramente grotesca. Havia também a cama a fazer, a água de que se servira a despejar deveria lavar e enxugar a bacia. A cela precisava ficar no mais perfeito
estado de arranjo. Tudo isso ela cumpriu com diligência.
Às cinco e um quarto, o sino soou novamente - issoLucy sabia que era para o Angelus - e logo depois ela ouviu o som de portas que se abriam e o ruido de muitos
passos no corredor. Deixando a cela e seguindo por instinto a última forma escura que desfilava, desceu a escada e entrou na igreja, sombria, onde já se achava reunida
a comunidade. A meia. luz que vagamente reinava na capela, deixava apenas perceber as formas imóveis e negras das religiosas, que pareciam sombras enfileiradas.
Lucy procurou seu lugar, que era nos primeiros assentos entre as outras postulantes. Para aí dirigiu-se e imediatamente se ajoelhou.
Conservava-se instintivamente erecta e ocultava o rosto nas mãos. O silêncio da meditação que se seguia às orações matinais era um silêncio sepulcral. Ninguém se
mexia. A imobilidade era absoluta. Então, nessa escuridão crepuscular, surgiram lentamente os primeiros clarões do amanhecer. O silêncio também foi quebrado pelos
sons do dia que nascia: o chilrear de muitos pássaros nas árvores que cercavam a igreja.
Ajoelhada ali, Lucy teve um impulso quase desvairado respondendo àquela suave luz da madrugada. Estranhamente alegre, sentiu o espírito iluminado, o coração
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rejubilante de feliz expectativa. Cheia de fervor rezou para merecer a graça de se tornar como aquelas santas almas que a rodeavam.
Às seis e meia o sino novamente soou e a Missa teve início, rezada por um padre curvado, muito velhinho, de mãos trémulas e pés arrastados, com uma voz aflautada
que se quebrava nas oitavas superiores. A Missa necessariamente foi rezada sem pressa, seguindo-se a Bênção; então, às oito horas, a comunidade ergueu-se em silêncio
e saiu da igreja para o refeitório.
Conservando-se entre suas amigas, Lucy voltou ao Postulai e, em companhia das outras, que eram cinco, seguiu Irmã Joséphine ao refeitório. Este era uma sala estreita,
tendo no centro uma longa mesa de madeira flanqueada por duas filas de bancos. Era uma sala desguarnecida e austera. Sobre a mesa já se achava servida a refeição
da manhã: sete tigelas meticulosamente arrumadas, cheias de um líquido escuro, e junto a cada tigela, dispostos com igual exatidão, sete pedaços de pão. Quando todas
já se achavam na sala, houve um momento de expectativa; depois de uma curta oração, Irmã Joséphine sentou-se à cabeceira e as postulantes colocaram-se-lhe em torno.
Lucy esperou e tomou o lugar que deixaram vago. A refeição começou em silêncio. Lucy sentia-se fraca pelo prolongado jejum; mesmo assim, era estranho que não tivesse
o menor apetite. O líquido escuro que a tigela continha não era café e sim um sucedâneo, sem um pingo de açúcar que lhe melhorasse o gosto e lhe mitigasse o amargo
acre. E o pão não era o pão que ela conhecia. Duro e seco, tinha substância, mas não tinha sabor. Lucy, contudo, sabia dos sacrifícios que lhe exigiam e desejava
ardentemente submeter-se àquilo tudo. Durante a refeição pautou-se pela atitude das outras, conservando os olhos baixos e mantendo silêncio absoluto.
As oito e um quarto terminou o repasto e todas se levantaram imediatamente da mesa.
- Espere aqui, sussurrou Irmã Joséphine a Lucy, enquanto as outras deixavam a sala enfileiradas; e quando já todas haviam saído, ajuntou em tom mais alto: - Agora,
precisa saber que deveres tem a cumprir.
- Já arranjei meu quarto, disse-lhe Lucy alegremente. As sobrancelhas da Irmã Joséphine encresparam-se:
- Não, não diga assim, observou em tom de reprovação, nunca diga "meu". A cela não é sua. Só o é pela caridade
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da Ordem e pela mercê de Deus. Nada aqui é seu. Tudo é "nosso". Diga sempre "nossa cela". Lucy corou.
- Eu não tinha compreendido, Irmã, explicou em voz baixa.
- Não responda! exclamou Josépiine rapidamente. A não ser que tenha que fazer uma pergunta, o silêncio é a regra. E a regra tem que ser obedecida. Além disso deve-se
dirigir com toda a reverência a quem lhe estiver superior. Essa pessoa está logo abaixo de Deus. Deve ser como Deus. Aprenda sempre que a humildade precisa ser adquirida.
É a primeira coisa.
Lucy mordeu os lábios e baixou os olhos. Estava inocente de qualquer culpa. Sua frase Ifôra tão simples, tão isenta de más intenções!
No entanto a Irmã Joséphine continuou, sem rancor algum na atitude, porém com uma insistência quase infantil:
- Saber rezar não é tudo, e a vida religiosa não consiste em passar as horas defronte do tabernáculo. Há lições de humildade que precisamos ensinar. Lembre-se de
que Nosso Senhor disse: "Tu precisas tornar a ser como uma criança!"
Lucy escutava obediente, dominando o impulso que lhe viera de dizer: "Eu não o disse de propósito". Submissa, não emitiu um único som; e quando a Irmã Joséphine
apanhou uma chave e deixou o refeitório, ela seguiu a de cabeça baixa. Percorreram o corredor até o fim e passando através de duas portas que Joséphine abriu, pararam
em frente de uns armários.
?- Agora, ouça, Lucy, falou a instrutora com indulgência, para servir o Senhor, todas as tarefas lhe devem ser agradáveis. Em primeiro lugar, comece a lavar e limpar
o petit pays.
Lavar e limpar? Lucy estremeceu. Não estaria Joséphine enganada? Não fora para ali para desempenhar o papel de criada. Para isso havia as irmãs leigas,, as mulheres
do povo do lugar, que de bom grado fariam essa espécie de trabalho. Ela, quando não estivesse orando, poderia coser, bordar, fazer as vestimentas que seriam usadas
ao serviço de Deus. Mas isso!...
- Apanhe a vassoura, o balde e a areia, ordenou a instrutora calmamente, abrindo a porta do armário. E venha depressa. Já estamos atrasadas.
Os olhos de Lucy encheram-se de pasmo. A vassoura, o balde e a areia! Mas apanhou-os. Tinha-os agora nas mãos
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e acompanhava a Irmã Joséphine para o território desconhecido do petit pays. Perplexa, perguntava a si própria o que viria a ser o petit pays.
De repente corou vivamente, penosamente. A Irmã parara defronte de uma porta, indicando assim, claramente, que seria esse o lugar onde deveria exercer seu mister.
O petit pays era a designação que davam às privadas do Postulai!
- Agora, disse brandamente a instrutora, você deve limpar tudo muito bem. Molhe a areia. .. assim, e espalhe-a. .. assim. Depois esfregue tudo cuidadosamente. E
não deixe pó nem areia alguma. Não é uma coisa agradável. Mas não esqueça nada do que lhe recomendei.
Lucy, ainda corada pelo choque sofrido, olhou, para a Irmã como pedindo permissão para falar.
- Que é? perguntou-lhe esta.
- É preciso mesmo fazer isso? indagou Lucy em voz baixa.
- Assim o ordenam, retrucou a outra complacentemente. É a vontade de Deus. - Depois sorriu, com aquela expressão ingénua e vazia, e voltando-se, com as mãos cruzadas
dentro das mangas, desapareceu no corredor.
A vontade de Deus! Lucy conservou-se algum tempo imóvel. Depois, vagarosamente, caiu de joelhos e começou a esfregar o chão.
Seu espírito conturbado também trabalhava e ela perguntava a si própria si já não mourejara bastante em sua vida em tarefas mesquinhas e baixas. E agora, aquele,
serviço a ela confiado, naquele momento de exaltação de amor a Deus, era uma degradação intolerável. Por algum tempo, esteve trabalhando com a fisionomia curiosamente
contraída. Finalmente, um brando susniro escapou-se-lhe do peito. Não estava com a razão. Realmente! Tinha que fazer aquilo que lhe haviam ordenado. Submeter-se
às regras sem discutir. Por enquanto, não via tudo claro ainda; mais tarde, sim, entenderia. Estava cansada e confusa pela estranheza de tudo aquilo. Mas tinha coragem,
coragem e resolução. "Louvado seja Jesus! Louvado seja Seu Sacratíssimo Coração". E, em silêncio, começou a recitar a litania.
Continuou sua tarefa mesmo depois que suas costas começaram a doer. Quando o sino bateu meio-dia. aquele sino que agora a controlava, Lucy ergueu-se com os joelhos
doloridos, no momento em que a Irmã Josébine aparecia.
- Já terminou? inquiriu esta amavelmente. Era uma grande concessão que fazia, falando-lhe.
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- Sim, respondeu Lucy com extrema submissão.
Joséphine olhou em torno e, enquanto olhava, seus pequenos olhos verdes iam perdendo a amabilidade, enchendo-se de descontentamento.
- Não está bem feito o trabalho, observou com impaciência. Não está me agradando. ,
Lucy abriu a boca para responder, depois fechou-a firmemente.
- Veja isso aqui, continuou a irmã inclinando-se e apontando para alguns grãos de areia molhada que haviam aderido a uma fresta. O trabalho não está perfeito, e
isso depois de tudo o que eu lhe disse! ?- Recolheu os grãos de areia com a unha e levantou-se trazendo-os na ponta dos dedos como si transportasse alguma coisa
obscena. Depois, logo que os reuniu ao resto da areia dentro do balde, exclamou com ênfase: - O bom Deus não gostará disso. Mesmo que eu não esteja aqui para observá-la,
meus olhos estão sempre sobre você. Agora .creio que basta. Espero que tenha compreendido.
Dizendo isso, afastou-se.
Ser repreendida assim por ter deixado, sem querer, um grão de areia numa fresta... Estaria Lucy sonhando?
Silenciosamente, dirigiu-se para o refeitório e esperou perto do lugar que já ocupara. Cada uma das outras postulantes vinha chegando das suas tarefas. Nenhuma falou
ou olhou para ela. Os olhos de Lucy também se baixaram.
Logo após serem dadas as graças, sentaram-se todas. Então, entrou uma irmã leiga trazendo em um grande prato de folha sete arenques crus em salmoura.
A Irmã Joséphine ficou com o maior - um ato de sacrifício, uma vez que eram tão intragáveis - depois distribuiu um a cada uma das postulantes num prato onde havia
também um pedaço de pão do mesmo tamanho e qualidade do que havia sido servido pela manhã. Lucy olhou para o arenque com repugnância. Estava com fome; seu estômago,
porém, revoltou-se ante aquele espetáculo. Não estava acostumada àquela espécie de alimento. Discretamente, observou que as outras já haviam começado a comer e,
lentamente, com um engulho interior, tomou do garfo e da faca. Forçou-se a engolir os bocados. Si as outras o faziam, ela também o poderia fazer.
De repente, a Irmã Joséphine, olhando para ela, encontrou-lhe o olhar e permitindo-se violar o silêncio, observou encorajando-a:
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- É muito bom. esse arenque. Quando a velha irmã Adrienne tem sua crise de fígado pede sempre um arenque em salmoura.
Nenhuma palavra foi pronunciada, mas um murmúrio de aprovação veio das outras postulantes, que, apesar dos seus ares de introspecção, estavam suspensas ao menor
gesto da instrutora. E agora cada uma rivalizava com a vizinha pelo menos assim pareceu a Lucy - para conseguir a aprovação de Joséphine, no esforço para deixar
em cada prato apenas a espinha do peixe e tão despida e raspada que chegava a brilhar.
Então, cada postulante passou o prato a Joséphine que o esvaziava dos esqueletos e devolvia-o a cada uma, que então, revelando a dupla serventia do pão, o esfregava
no prato até limpá-lo completámente.
Depois disso, quando os pratos assim limpos foram recolhidos à cabeceira da mesa, cada uma recebeu naquele mesmo prato uma porção suficiente de pudim de pão silenciosamente
trazido pela irmã leiga. Apesar daquela limpeza, os pratos conservavam o cheiro de peixe, o que fazia com que o pudim tivesse o mesmo gosto acre do arenque.
Uma vez comido o pudim - era proibido repeti-lo - os pratos foram limpos pelo mesmo processo anterior e o pão que servira para isso foi consumido até o último bocado.
A Irmã Joséphine, então, olhando em torno, levantou-se. Foram novamente dadas as graças, e o almoço terminou.
E agora, todas em fila atrás da instrutora, dirigiram-se para a igreja onde foi lido em voz alta um capítulo da Imitação ... E então, pondo-se novamente em fila,
saíram da igreja para o jardim. Não para o jardim grande, para um pequeno recinto reservado às postulantes. Um silêncio maior reinou no ar por um momento; depois,
Joséphine levantou o dedo e caiu o véu do mutismo. Seis vozes falaram ao mesmo tempo rompendo aquele dique que durara seis horas. "Deo gratias!" exclamaram; e aquilo
veio como um grito triunfante. Era a hora do recreio.
Lucy estremeceu àquele inesperado pairar de pegas, mas Joséphine sorriu-lhe, tranquilizando-a:
- Agora é permitido falar. Podem fazer amizade.
E voltando-se para as outras cinco, que haviam formado um pequeno grupo onde exercitavam as línguas, fê-las voltarem-se. 383
- Marguerite, Emilie, Thérèse, disse a instrutora indicando cada uma das três que se achavam mais próximas, à medida que falava. Eram todas jovens, de estatura mediana,
e Lucy achou-as estranhamente semelhantes, com os mesmos cabelos e olhos escuros e os mesmos rostos pálidos, agora iluminados por um sorriso de acolhimento. - Essas
três são primas e pertencem a uma boa família de Bruxelas, continuou Joséphine com importância. Depois, apontando para as outras duas: - E aqui, Gabrielle e Wilhelmine.
Gabrielle, alta e distinta inclinou a cabeça e murmurou uma palavra de saudação; mas Wilhelmine, uma criatura vulgar, espessa, com uma fisionomia de aldeã, deixou-se
ficar com a boca entreaberta, olhando com ar obtuso.
- Wilhelmine é surda mas teve um bom dote, observou Joséphine alegremente: é uma flamenga de Steinaeh. Veio da fazenda do pai onde há muitas vacas e muito creme.
?- E olhando para a gordura da outra: - Está-se vendo!
- Reclame! disse Thérèse astuciosamente; une l)onne affiche pour Ia ferme... - Essas palavras foram saudadas por uma gargalhada geral.
A flamenga piscou os olhos e sorriu.
Irmã Joséphine riu com as outras. Todas cercaram Lucy, rindo, pairando, afligindo-a com aquela volúvel e incompreensível tagarelice. Felizmente para seu sossego
Joséphine começou a falar e, a julgar pelos seus rápidos e variados gestos, parecia estar relatando alguma interessante aventura. De quando em vez, os olhos se voltavam
para Lucy e havia pequenos acenos de cabeça, pequenos murmúrios de aprovação. A palavra douane foi muitas vezes repetida naquele relato. De repente, acudiu a Lucy
a ideia de que Joséphine estivesse dando parte do seu triunfo na alfândega.
O incidente daquela pobre e surrada mala ter passado na douane sem pagar direitos estava emocionando todo o convento.
?- Realmente isso foi gentil da parte do pai de Claire, exclamou Emilie.
Depois de contada a história, houve uma pausa. De repente, Wilhelmine teve um riso alvar e, sacudindo a cabeça como uma alegre potranca, disse cheia de animação:
- Agora vou dar uma corrida. Preciso muito de correr! - E pôs-se, de fato, a correr pelo jardim.
Boa propaganda para a fazenda... - N. da T.
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Todas se puseram a rir e com um grito de inocente travessura, quase infantil, Thérèse, Emilie, Marguerite, seguidas mais lentamente por Gabrielle, partiram em perseguição
da gorda flamenga, Joséphine seguia com um sorriso aquelas animadas cabriolas. Depois voltou-se para Lucy:
- Faz bem ao coração a alegria, disse risonha. Devemos ser como as criancinhas. - Percebendo o retraimento de Lucy, continuou: - Você não deve ser assim tão séria
e .silenciosa aqui. Uma boa religiosa deve estar sempre alegre. Durante o recreio deve-se rir. Lembre-se de que aqui devemos ser como as criancinhas de Jesus.
- É difícil rir sem vontade, respondeu Lucy com os olhos cheios de perplexidade. Viera para ali para orar e não para rir. - Sobretudo, é difícil rir sem motivo algum.
- Mas devemos esforçar-nos, replicou Joséphine, temos que fazer as coisas contrariando a nossa vontade. - Então, juntando as palmas das mãos e erguendo os olhos
numa caricatura à piedade extremada, observou: - Não é isso que faz a boa religiosa!
Lucy corou. Houve um silêncio apenas quebrado pelos risos das que se perseguiam correndo. A irmã olhava-a curiosa, depois disse com bondade:
- Em pouco tempo você se tornará igual às outras. E veja! Agora vou lhe dar uma coisa preciosa. - Sorriu e mergulhou a mão com grande solenidade no bolso do hábito.
- Eis aqui a chave do paraíso. - Sua mão continha agora realmente uma chave, presa a uma pequena correia de couro, na qual se achava gravada a palavra postulai.
Todas as postulantes a possuem, concluiu Joséphine mais séria, porque todas as portas estão fechadas. Agora quando você cumprir suas obrigações, pode abrir você
mesma as portas. Fica sempre no bolso esquerdo, compreende?
- Sim, irmã. - E Lucy tomou a chave.
Mas teria compreendido? Onde vira essa chave, antes? Sentia-se estúpida, estranhamente confusa. Forçar-se a sorrir, guardar sempre uma chave no bolso esquerdo, servir
a Deus apanhando até o último grão de areia em uma fresta, seria isso o que ela esperava? Quando se entregara tão ?completamentg a Deus, não pensara que as coisas
mesquinhas da vida fossem esquecidas, abandonadas ante a majestade dessa sublime paixão? Bruscamente arrancou-se a esses injustos e desordenados pensamentos. Tinha
muito que aprender. Depois, compreenderia. 385
O sino tocou anunciando o fim do recreio; e logo à primeira badalada, todas aquelas barulhentas vozes emudeceram. Enfileirando-se mais uma vez, tornaram todas a
entrar no Postulai para a leitura espiritual.
Assim se passou a tarde. O sino tocava e era imediatamente obedecido. Uma badalada e todas se sentavam; outra, e punham-se todas de pé. Ao som do sino, entrava-se
na igreja, e ao som do sino de lá se saía. Quando soava, todas se ajoelhavam e, quando voltava a soar, erguiam-se todas. A uma ordem sua começava-se a meditar, e
a outra ordem, deixava-se de meditar. Durante longas horas, essas tranquilas ações eram observadas como ritual. Lucy aplicava-se ardentemente em seguir esse ritual.
Desde que se convertera, começara a apreciar os longos momentos de solidão, nos quais desenvolvia aquele misterioso sentimento de intimidade com Deus. Agora, porém,
pautaria sua vida pela vida da comunidade. Fá-lo-ia por amor a Deus.
Durante a Bênção, a luz dos círios brilhava sobre o altar com brancas línguas de fogo. E entre esse brilho, no ostensório dourado, estava a fonte de todo conforto,
sua consolação, uma visão demasiado deslumbrante para ser encarada. Lucy sentiu a paz voltar-lhe novamente. Jesus ali se achava para ela; o Cristo que havia sido
crucificado por seu amor. De cabeça baixa, humilhou-se. Quem era ela, realmente, para ousar criticar o regulamento? De alma tranquila, deixou a igreja.
Enguliu o jantar - uma insípida mistura de semolina sem açúcar - como si estivesse fazendo uma penitência. Nenhum sacrifício lhe parecia grande demais.
- Preciso lhe dizer, cochichou-lhe Joséphine enquanto subiam as escadas, depois das orações da noite, que hoje, seu véu não estava muito bem dobrado dentro da caixinha.
Mas amanhã estaria, pensou Lucy. Nenhum sacrifício era grande demais.
Às oito e meia, ela se achava só em sua cela. Teve um longo suspiro de alívio. Sentiu-se feliz por ter chegado sem tropeços ao fim daquele dia, por ter suportado
bem todas as suas atribulações e estranhezas. Era tudo tão novo para ela! e tão difícil! Aquele dia parecera-lhe interminável. Sim, via agora todas as dificuldades
da vida. Transpô-las-ia, contudo. Nunca em sua vida admitiria a derrota.
Abriu a janela e olhou para a escuridão lá fora. Chovia levemente, e a umidade tocou-lhe a face. Nesse momento
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Lucy sentiu-se cheia de ânimo, fresca e livre. Então, despiu-se cheia de fadiga e deitou-se. Na palidez do rosto, seus olhos pareciam enormes e escuros. Soprou a
vela.
Essa noite não havia canção de rouxinol, mas, com um ritmo regular, através da estreita parede, da cela vizinha chegava o ruído do ressonar de Wilhelmine.
- QUANDO São Benedito, lia suavemente Emilie, rezava ? - em sua cela, Satã apareceu-lhe em forma horrível e, escarnecendo-o, disse que ia visitar seus filhos que
trabalhavam. O santo homem alarmou-se ao ouvi-lo e imediatamente enviou um anjo para avisar os irmãos, para que se mantivessem em guarda. Mal, porém, havia chegado
o anjo do local da cena, e, pelo poder do demónio, a parede que eles estavam construindo desabou matando um jovem noviço. Os monges ficaram muito aflitos não só
pela perda do seu trabalho, comotambém pela morte do jovem irmão. Um deles correu a dar a notícia a Benedito, que, calmamente, pediu que trouxessem o corpo à sua
cela. O cadáver, contudo, ficara tão esmagado e lacerado que o único meio de o trazerem à presença do santo foi reunindo os pedaços dentro de um saco. Este dispôsos
pedaços sobre a esteira onde costumavam prosternar-se para orar. Depois, fazendo saírem todos, implorou a Deus que não consentisse no triunfo do Seu inimigo. De
súbito, um terrível ruído de trovão rasgou os ares: os pedaços do corpo uniram-se e o jovem morto levantou-se..."
A voz igual de Emilie continuava a fazer-se ouvir na sala do noviciado, onde, sob o olhar de Marie Enimanuel cerca de vinte noviças se haviam congregado para uma
leitura espiritual. Entre essas noviças, sentada no último dos bancos sem encosto que cercavam a leitora, estava Lucy. Seu período de postulado terminara. Seu vestido
fora substituído pelo hábito e o véu branco. E já tinha acesso ao recinto do noviciado. Tudo isso graças à recente tomada do véu. Tudo mudara muito! Fora uma mudança
que durante a cerimónia ela se comprometera a aceitar.
Quando estivera no Postulai, Lucy pensava sempre que estava numa situação em que não era "nem uma coisa nem outra". Aquele pensamento fizera-a tolerar tudo- o que
se passara com ela durante aqueles meses de postulado. "Essa
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não é a vida religiosa!" dizia sempre consigo mesma. Assim forçava-se a aceitar e a conformar com aqueles usos que lhe pareciam entrar em tão grande conflito com
a sua devoção. Tomara tudo aquilo como uma transição, uma preparação para a vida em que agora ingressara tão resolutamente. Aquele período fora eivado de dificuldades.
Agora, todavia, o Postulai pertencia ao passado, e Lucy que já possuia o hábito, o véu, a disciplina, o livro da Santa Regra, adiantava-se para o último grau da
Ordem.
"Us anjos, dizia a voz tranquila de Emilie, conduziram Benedito pelo caminho e outros anjos vieram ao seu encontro : os anjos da guarda dos pobres habitantes ludibriados.
com alegria transbordante, imploraram ao abençoado santo que conjurasse os espíritos das sombras..."
Si bem que seus conhecimentos de francês fossem rudimentares, já agora Lucy podia seguir as palavras claramente pronunciadas, mas, inconscientemente, sua atenção
se afastava da leitura. Não que pusesse em dúvida os milagres do bom S. Benedito! Ela acreditava neles. Eram outros milagres como aquele dos pães e dos peixes, da
caminhada sobre as águas, da ressurreição da filha de Jairo. Mas, a despeito de si própria, pensava na "culpa". Aqui, como no Postulai, havia costumes aos quais
ela teria que se acostumar e chegar aos poucos a compreender. A "culpa"! Sempre ao terminar aquela leitura tinha lugar a "culpa", e hoje, que era sextafeira, não
haveria apenas a "culpa" e sim o "capítulo de culpas", a confissão aberta feita de joelhos, das transgressões acumuladas na semana passada.
Sem dúvida aquilo era necessário, como parte que era do Regulamento que Lucy agora aceitava como a palavra de Deus. Mesmo assim, era estranho que não pudesse pensar
na sua aproximação sem uma grande perturbação interior. Na capela, naquela manhã, ela já fora distraída por aquele mesmo pensamento, desviada das orações por aquilo
que com certeza fora instituído para o seu -bem. Aquilo não era razoável nem havia nenhuma opressão na "culpa" que justificasse aquela sua objeção. Era uma coisa
simples, absurdamente, simples: a mera declaração das violações triviais do Regulamento. Mas, de algum modo, a própria simplicidade daquele tribunal aberto era o
que a tornava assim tão confusa. Não era uma prova terrível; ela, porém, tinha a sensação humilhante de uma criança perante a autoridade, alguma coisa que lhe parecia
subversiva de toda a alta nobreza da sua crença. De repente estremeceu. Por que se deixara
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levar a pensar naquilo outra vez? Não deveria permitir-se àquelas distrações assim frequentes.
"O semblante de Benedito resplandecia de uma luz celeste, e os camponeses, vendo isso, cercaram-no e escutaram cheios de temor suas..."
Nesse momento ouviu-se bater o sino, e à primeira badalada imperativa, Bmilie estacou no meio da frase como si tivesse sido fulminada por um raio. Aquilo era admirável,
aquela perfeita obediência ao Regulamento. E Marie Emmanuel, observando-a como sempre, levantou-se da sua cadeira de espaldar direito com um pequeno aceno de aprovação.
Desse modo já estava a dócil Emilie altamente colocada -nas suas boas graças. com o movimento da instrutora, imediatamente todas se ergueram e, em silêncio, ajoelharam-se
diante da imagem do Sagrado Coração.
O "Veni Creator Spiritus" foi recitado alto.
"Veni Creator Spiritus, Mentes tuorum visita; Imple superna gratia, Quse tu creasti pectora."
Após o "Amen" houve uma curta pausa para o recolhimento; depois, a instrutora pôs-se de pé e seguida de todas as noviças em fila, agrupadas escrupulosamente por
ordem de idade, entrou na ala contígua. Aí tudo já se achava preparado. Uma cadeira única estava impressionantemente colocada no meio da sala, e em torno, formando
um semicírculo, havia pequenos assentos que se arrumavam como satélites em torno de um planeta.
Marchando diretamente em direção ao trono, Marie Emmanuel ocupou-o majestosamente, enquanto as noviças - cada uma de pé junto ao lugar designado - esperavam o sinal
para sentar-se. Decorreu um momento em que a religiosa pesquisou com a vista aqueles rostos; depois, seu eloquente olhar deu consentimento. Houve um fraco murmúrio,
e, então, novamente silêncio. Mais uma vez, todas as atenções se voltaram para a figura central. Mais uma vez, também, Lucy sentiu dentro de si aquele inquieto mal-estar
que tanto deplorava. Observando Marie Emmanuel, que agora consultava impassível um livro de notas contendo a revelação de todas as faltas reveladas na semana anterior,
teve o rápido impulso de desviar os olhos.
Gostava de Marie Emmanuel - devia amá-la e respeitá-la - essas coisas eram prescritas nessa casa de Deus. 389
contudo, depois que ingressara no noviciado, sentira-se atormentada por uma vaga inquietação. Naturalmente seria alguma coisa sem razão de ser. Ali todas eram irmãs
dentro dos braços de Jesus, todas- ligadas pelo amor comum sob um teto comum e, de todo o coração, Lucy queria dar e receber esse amor.
Por que, então, aquela sua estranha intuição de que Marie Emmanuel e ela não se simpatizavam? No Postulai, Joséphine sorria enquanto fazia suas reprovações, mas
essa outra, tão impessoal, tão exaltada, não sorria. Não! Seus olhos pálidos, que tudo observavam, eram frios, suas maneiras distantes, despidas de qualquer sentimento
humano. Era rígida, glacial e impassível. A própria maneira pela qual ela se achava ali, mantendo aquele tribunal sem importância, respirava uma grande severidade.
Agora, com um gesto característico das suas belas mãos - Lucy já conhecia bem esse gesto - ela endireitou a touca e seu olhar caiu sobre a primeira noviça. Era o
momento em que começava a "culpa". Um silêncio mais profundo de expectativa estabeleceu-se: a avidez daquelas que gostavam da "culpa" e o recuo daquelas a quem ela
era desagradável.
- Comece, ordenou Marie Einmanuel lacônicamente.
Instantaneamente, a primeira noviça caiu de joelhos e, animada e composta, principiou:
- Por santa obediência faço minha "culpa" de todas as faltas que cometi contra o Regulamento, particularmente... - aí suspirou - por ter faltado ao espírito de
pobreza, quebrando uma agulha enquanto cosia.
A instrutora fechou os olhos e pareceu refletir.
- Você dirá três paters, disse- depois imperturbável, e para o futuro tenha cuidado com a sua agulha. Essas agulhas, custam muito caro à comunidade.
A noviça inclinou a cabeça e começou a penitência, enquanto a imediata, uma jovem italiana chamada Assunta, caiu sobre os joelhos ante a instrutora, começando rapidamente,
nervosamente, a dizer:
- Por santa obediência faço minha "culpa" de todas as faltas que cometi contra o Regulamento, particularmente... particularmente... - gaguejou - particularmente
por ter faltado com o espírito de modéstia religiosa, andando depressa demais pelos corredores.
Houve uma pausa. Marie Emmanuel lentamente abriu os olhos pálidos e penetrantes.
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?- Nada mais tem a dizer!
- Não, bonne mère, respondeu Assunta corando penosamente. Não me lembro de mais nada.
- Faça o favor de ver si se lembra, foi a resposta glacial.
- Não posso me lembrar de coisa alguma, ma bonne mère, balbuciou a outra; e seu rubor desvaneceu-se, deixando-lhe a pele morena subitamente lívida. Marie Emmanuel
ergueu os olhos para o teto, tornando assim aquele silêncio opressivo.
- Em seu armário, exclamou friamente, que estive examinando ontem, encontrei seus dois lenços dobrados sob sua toalha. Isso, como bem o sabe, é contra a ordem. Sempre
lhe disseram que pusesse os objetos maiores por baixo. Os lenços devem ficar por cima da toalha e não ao contrário.
- Estacou e acrescentou mordaz: - Por causa disso, terá que dizer três aves - lês bras en croix - no refeitório, na hora do jantar.
Lucy, contra a sua própria vontade, sentiu qualquer coisa agitar-se-lhe no peito. Aquela falta fora tão mesquinha e era tão penosa a mortificação da culpada. Já
havia notado a irmã Assunta antes, achando-a uma pequena e insignificante criatura, piedosa e delicada, que parecia extraordinariamente sensitiva, encolhendo-se
à menor palavra de censura. Francamente, era injusto, era uma tirania covarde e mesquinha punir uma criatura tão fraca. Novamente aquele sentimento que Lucy tanto
temia, subiu-lhe como uma quente onda. Os lábios comprimiram-se-lhe e seus dedos apertaram-se nervosamente. Tinha a cólera na alma e tinha vergonha. Já em " culpas"
anteriores sentira aquela mesma vergonha. Para que tudo aquilo? Estremecendo, dominou-se. Não devia pensar assim; tinha que curvar aquele seu espírito demasiado
impetuoso. Aquilo era pecado, e pecado grande, querer julgar a autoridade colocada acima dela pela vontade de Deus. Baixou os olhos. Lentamente, a "culpa" caminhava
em sua direção passando pelas outras.
Uma fora negligente em seu dever. Três aves.
Outra falara a uma freira professa. Apenas duas aves: (Aquela devia ser uma favorita).
A seguinte quebrara o silêncio. Três paters e uma homilia.
Outra, ainda, deixara alimento em seu prato. (Esta teria que rezar três glórias pelas fibras que deixara na espinha de um arenque!)
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Aquela fora muito reservada durante o recreio. Sua falta era a mesma que Lucy costumava ter. Ainda não conseguira igualar o riso de pássaro é a tagarelice que distinguia
as puras de coração.
Mas ah! não devia pensar desse modo, aquilo era amargo e errado, contrário à Santa Regra! Lucy baixou os olhos enquanto outra noviça se ajoelhava. Era Marguerite,
agora, que derramara água no soalho do corredor. Aqui o sermão foi longo. Vinte francos haviam sido gastos no ano anterior para envernizar aqueles soalhos. E a água
manchava o verniz, comia-o, consumia-o.
E a "culpa" prosseguia. Cada uma tinha alguma coisa a confessar. Seria um terrível pecado contra a humildade protestar uma completa inocência. Uma presunção! E todas
as faltas confessadas, multiplicadas e aumentadas, pesariam como uma pena sobre o prato de uma balança. Mas como? Estava novamente a pensar assim? Lucy mordeu os
lábios e murmurou uma prece muda pedindo socorro. Não era extraordinário que temesse as "culpas", uma vez que elas a faziam incorrer naquela- iniquidade. Precisava
vencer aquela terrível obstinação do seu espírito, submeter-se pacientemente à vontade de Deus.
Logo seria a sua vez. Ao seu lado, "Wilhelmine mexia-se inquieta; seu rosto cheio, de expressão estúpida, contraía-se ansioso e seus olhos fixavam-se, num olhar
fascinado, sobre Marie Emmanuel. Parecia tomada de grande apreensão como uma plácida bezerra ameaçada de alguma grande calamidade.
Mas agora era a vez de Lucy. Ajoelhou-se e procurou -alguma coisa para dizer. Veio-lhe à cabeça acusar-se de ter sido também reservada durante a recreação; com muitas
palavras, confessou sua culpa e esperou a penitência. Essa, porém, não veio.
- Nada mais tem a dizer?
Lucy estremeceu e ergueu os olhos para Marie Emmanuel, que a olhava como um juiz. Não soube o que -responder.
- Seu dever dessa semana não é lavar as pias? perguntou a outra.
- Sim, ma bonne mère. - Esse era realmente seu dever " ela o cumpria escrupulosamente, deixando as pias imaculadamente limpas.
Entretanto, a instrutora persistiu:
- Hoje, encontrei dois pedaços pequenos de sabão destacados do pedaço grande, no prato da pia. Isso é contra a
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Regra. Em seu livro poderá ver que em tais circunstâncias o pedaço grande de sabão deve ser recolhido, enquanto os pedaços pequenos devem ser postos dentro de um
pano até serem consumidos. Isso não foi observado.
Lucy perguntava a si própria si haveria algum antagonismo latente por trás daqueles olhos pálidos. Impossível. Recalcou ferozmente o pensamento e forcou-se a dizer:
- Não, ma bonne mère.
- Compreende então que o trabalho da semana tem que er cumprido com perfeição?
Lucy sentiu que havia dois fragmentos de sabão entre ela e a salvação eterna.
- Sim, ma bonne mère, e baixou a cabeça para receber a penitência. Quando disse seus paters, ergueu-se e .suspirou. Aquilo terminara. Sim. Terminara até a próxima
semana. -
Os pessegueiros do jardim do convento tinham florescido e, agora, as flores se espalhavam sobre a grama, como uma espuma. As frondes de madressilva já haviam desabrochado.
Já as errantes glicínias haviam entretecido seus heliotropos nos caramanchões.
O carvalho atrás da igreja tinha um lustro mais profunda e suas folhas eram acariciadas pelo ar morno e a luz de um verão precoce.
Mas o doce langor da estação estava distante de Lucy como um sonho. Aquele ar suave não a atingia enquanto ela, na sala de trabalho do noviciado, cosia, absorta
em seus pensamentos. Ao mudar a estacão, ela também mudara, ao que parecia; quanto, não o podia saber, porque ali - como no Postulai - não havia espelho e a inspeção
do corpo não era permitida pela Regra. Envolvida no hábito, sua forma era invisível. Emagrecera muito e seus ombros haviam adquirido uma atitude curvada. Seu rosto
parecia menor cercado pela touca branca. Os olhos tinham em torno grandes olheiras e as mãos eram agora estranhamente nervosas em seus movimentos.
Sentia que havia perdido peso, mas constatara-o sem pesar. Talvez fosse aquele regime que, por mais adequado e completo que pudesse ser, a emagrecera assim. Aquela
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alimentação era estranha ao seu paladar. Lucy a engulia apenas por um esforço de vontade e talvez não fosse completamente assimilada. Ela, porém, não pesquisava
si seria essa a causa, nem lhe importava isso. Assim como os calos que adquirira nos joelhos, aquilo viera gradualmente e ela não se apercebia bem como. Não pensava
em sua saúde, nem se confessava fraca. Uma ou duas vezes as palavras de Edward lhe haviam vindo à mente, mas Lucy as afastava severamente. Suportaria aquela vida
apesar do que ele lhe predissera. Resolveu pois ignorar completamente aquele novo e estranho nervosismo, aquelas palpitações no coração, os verdadeiros saltos que
ele dava quando alguém lhe dirigia a palavra e aquelas tonturas que a deixavam com aquelas exquisitas flutuações} etéreas.
Tinha mais em que pensar. Quando lhe perguntavam como passava, respondia que ia bem, muito bem; e tinha um inconciente orgulho na firmeza da sua resposta. Contudo,
não era apenas o orgulho que a movia; era sua vontade e um espírito empregado numa tensão muito mais vital do que as mesquinhas considerações de alimentação e saúde.
Seu espírito andava absorvido por uma cogitação interior que durava já há algumas semanas.
Lucy não se podia libertar dessa luta interior, desse perpétuo conflito. Já rezara para readquirir a paz e lutava, lutava. Contudo continuava apreensiva. Não tinha
mais aquelas ilusões de mulheres santas movendo-se com gestos de madona, rostos suaves, mãos puras e línguas de plácida doçura. Como pudera ter tido aquela concepção
da vida religiosa ? Aquelas freiras eram mulheres. Todas eram humanas, ali. Mas que humanidade reprimida. Tão estranha, levando uma vida à parte, muito diferente
daquela que ela esperava. Aquela estranheza despertava-lhe, às vezes, uma penosa perplexidade. Por que se achava ali, com aquelas roupas exquisitas, num meio de
estrangeiras, imitando-lhes a linguagem, a tagarelice, aquela infantil ingenuidade? Por amor a Deus. Deus a conduzira ali e ali ela permaneceria. Aquela era a resposta,
uma resposta que ela se esforçava por poder dar sem incertezas. Mas não podia evitar o medo que sentia. E era Marie Emmanuel, sua boa mãe, que surgia perante ela
como propagadora daquele medo. Ultimamente, cada vez mais adivinhava que uma feroz antipatia nascera entre a instrutora e ela. Era quase um ódio. Estremeceu. Nãopodia
ser! Aquilo era impossível, naquela casa onde o amor
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a Deus devia ser a base das relações entre todas. Mas como explicar, então, aquela perseguição perpétua?
Enquanto a agulha corria, Lucy revia numa incansável introspecção as últimas semanas cheias de amargas recordações, flagelando-se com os próprios pensamentos e com
a mórbida revivescência das humilhações por que passara, todas tão mesquinhas que doíam e mortificavam pela própria trivialidade.
Naquela primeira tarde, na estação, quando ela avançara sorrindo para Marie Emmanuel, havia instintivamente sentido a frieza da instrutora. Agora, porém, essa frieza
parecia carregada de uma imensa antipatia. E ela... com que violência poderia corresponder a tal sentimento! Mas não devia fazê-lo. Deveria escondê-lo, destruí-lo,
aniquilá-lo. Mas não podia deixar de ver que a perseguição era injusta. Por que teria ela sempre que ter a alegria e o êxtase das suas orações perturbados por aquela
censura constante? Sua testa franziu-se ao pensar nisso. Seria imaginação sua? Não. Estava convencida de que Marie Emmanuel a odiava.
Mesmo agora, cosendo, de cabeça baixa, parecia-lhe sentir aqueles olhos frios cravados nela. Contra a vontade ergueu o olhar e uma onda de mal-estar invadiu-a, porque
a instrutora a observava calmamente, parecendo ler-lhe os pensamentos.
Imediatamente Lucy voltou a baixar os olhos sobre a costura, exasperada pela sua covardia. Que tinha ela a temer ? Temia a Deus, unicamente. Nunca em toda a sua
vida lhe faltara coragem para manter a cabeça erguida. Inconcientemente, sua atitude fez-se rígida.
Em seu redor as outras noviças, umas vinte ou mais, ocupavam pequenos bancos defronte das compridas mesas que enchiam a sala e cosiam silenciosamente, alheias à
sua perturbação de espírito. De súbito, sentiu-se fraca, a mão débil e fatigada, exausta. Mas persistiu no trabalho, que era a orla de uma toalha de altar. Estava
quase terminada e, por fim, Lucy deixou-a cair no regaço e parou de coser.
- Acabou o trabalho? perguntou Marie Emmanuel, cuja voz soou friamente na quietude da sala.
- Acabei, ma bone mère, respondeu Lucy sem encontrar seu olhar. Por que não a encarava? Seria por verdadeira humildade?
A instrutora ergueu-se e, aproximando-se, inspecionou o trabalho minuciosamente.
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- Tst! Tst l - Marie Emmanuel fez com a língua um ruído enquanto se apoderava da toalha com um ar de desprezo. - Como está sujo esse trabalho! - E, para Lucy, a
entonação que dera à palavra era diabólica. Um estremecimento percorreu-a toda. O demónio da revolta surgiulhe no peito. Acusá-la daquilo! A toalha lhe fora entregue
já suja. A instrutora o sabia, assim como sabia que suas mãos eram imaculadas.
- Não compreendeu? persistiu Marie Emmanuel. Você tornou esse trabalho imundo!
Os lábios de Lucy formaram a resposta: - Sim, ma bonne mère. - mas, nesse momento, alguma coisa partiu-se dentro dela. Toda a sua violenta indignação subiu-lhe
à boca. Não importava que a Regra prescrevesse a humilde aceitação de todas as injustiças, a plácida expiação de faltas não cometidas ! Ergueu os olhos em desafio.
- A senhora não sabe que a peça estava suja quando eu a recebi? replicou Lucy lentamente com voz distinta.
Que terrível violação à Regra! Uma espécie de murmúrio de estupefação partiu das outras noviças a essa resposta e à gravidade dessa resposta. Marie Emmanuel, porém,
conservou-se imóvel, com uma expressão indizível no rosto pálido. Não respondeu absolutamente àquela pergunta, mas dobrando cuidadosamente a toalha disse friamente:
- Basta. Antes do jantar você terá que beijar pés e, durante ele, ficará, em penitência, ajoelhada, lês bras en croix.
Voltando-se, tornou à sua cadeira. Lucy conservou-se rígida, o rosto coberto de palidez. A tontura, que agora tão a miúdo a afetava, flutuava-lhe na cabeça como
um nevoeiro. Por que teria que se submeter a essa tirania? Era a pergunta que lhe queimava o espírito. Aquilo não tinha razão de ser. Era uma injustiça. Deus não
quereria que Seu mundo assim fosse: tão mesquinho, tão infantil. Deveria ela curvar a fronte até a poeira e rastejar aí ? Deveria renunciar a si própria, libertar-se
do seu espírito, despojar-se de tudo para obter essa perfeição que era proclamada constantemente aos seus ouvidos? Devia haver algum poder na alma humana. Uma criatura
não podia ser desfibrada como queriam que ela se tornasse.
Cortando aquela introspecção, ouviu-se o retinir do sino que anunciava o jantar; daquele sino que agora tão ostensivamente a controlava. Lucy ergueu-se com as outras,
com uma face que parecia uma máscara, e reuniu-se a elas, quando todas se puseram em fila atrás da instrutora e
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encaminharam-se para o refeitório. Sim! Caminhavam agora sempre numa corrente; movendo-se lentamente mas sempre numa corrente, sempre controlada.
Foram dadas as graças; depois, todas. se sentaram de um lado da mesa comprida e estreita, com as costas contra a parede. Lucy, porém, não tomou seu lugar. Permaneceu
de pé com os olhos fixos em Marie Emmanuel, com o rosto calmo, sufocando aquela agitação interior com uma terrível tensão dos seus enfraquecidos nervos. Nunca revelaria
a horrível tortura que essa penitência constituía para ela.
A instrutora fez um pequeno sinal e Lucy avançou lentamente para cumprir o castigo intolerável. Ajoelhar-se e beijar os sapatos dessas vinte mulheres! Cair sobre
os joelhos, baixar o rosto até o chão, levantar-se, avançar mais um passo, ajoelhar-se novamente, descer os lábios outra vez, beijar mais aqueles pés.
Si Frank pudesse vê-la agora! Ele, que lhe beijara os lábios com amor... Ou Peter, ou mesmo Edward, que talvez se achasse naquele momento percorrendo um campo de
golf ou saboreando uma iguaria da qual estivesse dizendo: "Deliciosa!" Que pensariam dela? Talvez rissem. Era tão engraçado aquele espetáculo de uma mulher de meia
idade a se arrastar nos joelhos metendo a cabeça debaixo da mesa, batendo com a cabeça ao levantar-se, beijando os pés de todas essas mulheres estranhas. - Talvez
Jesus também risse dessa tortura que a oprimia. Ele morrera por seu amor; sim conforme o dizia Marie Emanuel - ela se deveria rebaixar por amor a Ele.
Finalmente aquilo terminou. com os pés vacilantes dirigiu-se para o meio da sala e, com as costas voltadas para a mesa ajoelhou-se. Estendeu os braços - lês bras
en croix como lhe haviam dito - conservando-se rigidamente erecta com a cabeça caída para trás. Assim, naquela atitude de espírito e corpo, deveria abandonar-se
a uma prece interior. Mas poderia orar? Atrás dela, o ruído abafado da refeição começou. Os pratos eram postos sobre a mesa, os garfos tiniam ao chocar-se com a
louça, a cadeira de Marie Emmanuel arrastou-se, soavam abafados os passos da irmã leiga. E durante o tempo todo Lucy ficou ajoelhada de braços estendidos, toda trémula
à lembrança daquela tirania grotesca que lhe amargurava e envenenava o coração. E haviam-na posto ali para rezar!
Estava fraca e a fadiga da atitude começou a tornar-se insuportável. Ela, porém, não cederia. Mostraria a essa
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Marie Emmanuel, mostraria a todas como podia suportar o sofrimento. Não sofreu tanto no mundo? Por isso se achava ali. No entanto, onde estava aquele manto de paz
em que ela esperava poder envolver seu atribulado espírito? Seria isso: ter lês bras en croix e os olhos de Marie Emmanuel fixos vigilantemente em suas costas?
As mãos começaram a pesar-lhe como chumbo; depois, lentamente, aquela sensação estendeu-se-lhe ao longo dos braços, que penderam para o chão. A dor tornava-se insuportável.
Sentia-se exausta. Mas não abandonaria aquela atitude. A intensidade do orgulho mantinha-a imóvel.
Finalmente, terminou o jantar. Ouviu-se o barulho dos bancos afastando-se da mesa, o murmúrio das orações depois da refeição; e, enfim, o lento movimento em direção
à porta.
- Já basta.
A instrutora estava de pé ao seu lado, indicando que agora Lucy se poderia erguer para tomar sua refeição. Ainda por um segundo, Lucy manteve sua atitude; depois
seus braços descaíram e, em completo silêncio, levantou-se. Enquanto Marie Emmanuel se retirava da sala dirigiu-se ao seu lugar e sentou-se. O alívio que sentia
era imenso. Mesmo assim sentia-se doente, os dedos estavam tão fracos que mal podiam manejar o garfo e a faca. A irmã leiga, uma criatura meio corcunda, de face
rude, trouxe-lhe o jantar com um olhar de simpatia. Um imenso desejo de falar àquela camponesa simples invadiu Lucy. Notava nela uma vaga evidência de humanidade.
Uma palavra de simpatia, que fosse! Mas não. Não podia. A Regra exigia silêncio àquela hora.
E assim, comeu, muda, desolada, mas confortada por esse momento de solidão.
Vencendo a repugnância obrigou-se a comer a carne de cavalo que era o jantar, nesse dia. Ao terminar, olhou pela janela e viu que chovia bastante, o que impediria
as noviças de saírem para o jardim. Erguendo-se, forçou-se a entrar na sala comum onde tinha lugar o recreio nos dias chuvosos.
Ninguém pareceu notar sua presença. Lucy, porém, sabia o que tinha a fazer. Deveria falar e rir com as outras sem guardar a lembrança da sua humilhação, dando um
sinal visível de que não abrigava rancor. Ao sentar-se perto da janela onde conversava e ria um pequeno grupo - Thérèse, "Wilhelmine e Marguerite ali se achavam
também ?- sentiu o olhar da instrutora observá-la insistentemente. Hoje, contudo, desviando a cabeça, sentiu-se descuidada.
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De repente, surpreendeu-se ouvindo uma voz dizer-lhe amavelmente ao ouvido:
- Isso lhe ocupará os dedos.
Era uma das noviças a seu lado, que lhe punha no regaço uma caixa de papelão cheia de cordéis. Todas elas tinham alguma ocupação para esses recreios de dia de chuva.
Virar sobrescritos pelo avesso para que pudessem novamente servir, enrolar e separar retalhos da sala de costura, dar nós nas cordas com que eram feitas as disciplinas;
diversas pequenas coisas úteis recomendadas pela Regra. E agora, Lucy correspondendo languidamente ao sorriso da sua vizinha, pôs-se a desembaraçar os pequenos barbantes
que enchiam a caixa, desfazendo os nós, enrolando-os em pequenas bolas perfeitas.
Em torno, a conversa continuava.
- Precisamos fazer os versos de felicitações, lembrou uma das noviças.
- É verdade! Aproxima-se o aniversário de bonne mère, acudiu uma outra.
- Faça os versos você, Thérèse.
- Faça-os com todo o gosto para a bonne mère. Está combinado.
Lucy pensou consigo mesma que aquelas frases pareciam ser feitas propositadamente para os ouvidos de Marie Emmanuel, com o fito de agradá-la. Depois refletiu que
aquele seu mau julgamento poderia ser ditado pela amargura que sentia. Não podia libertar-se do seu ressentimento. Era aquele o estado da alma próprio a uma criatura
que se queria elevar ao seu Salvador?
Abatida e confusa, continuava entretanto firme na sua convicção. Iria para a frente. Suportaria tudo. E cerrou os dentes com firmeza.
Ali ficou, pois, muito pálida, inclinada, uma figura infinitamente patética, desembaraçando cordéis com dedos que tremiam ligeiramente, como si, num símbolo, estivesse
procurando desembaraçar o curto fio da sua existência.
ESTARIA sendo observada? Lucy não estava certa, mas tinha agora sempre o estranho e obsedante sentimento de que todas procuravam surpreender os segredos do seu espírito.
Oprimida por aquela vida em comum, desejava
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constantemente a solidão. Mas nunca estava só, a não ser durante aquelas horas de escuridão na cela, em que permanecia muito rígida, deitada e olhando a sombra amorfa,
lutando para ver iluminada a invisível imagem pendente da cruz que ficava na parede oposta. Apenas sua fantasia iluminava aquela imagem durante as noites de insônia,
a não ser quando a lua jogava um translúcido clarão através de estreita grade e tornava o Cristo de gesso lívido e real.
Ultimamente, dormia pouco, e de um sono inquieto e "intermitente. Seu colchão de crina do Postulai fora-se e, agora, tinha o leito que as religiosas usam com o magro
colchão de palha. Marie Emmanuel lhe dissera um dia com seu modo impessoal e frio:
- Já há dois meses que tomou véu. Você dormirá sobre a palha, esta noite, como o bendito Senhor na mangedoura.
Era justo e adequado. Aquilo que servira ao Salvador servir-lhe-ia também. Não era sacrifício para ela. Mas,, apesar do espírito aceitar resolutamente a privação,
o corpo recusava-se a ceder em dormir sobre aquela palha. Além disso, recentemente lhe haviam trocado a cela - novamente em obediência à Regra; permanecer muito
tempo em uma cela imprimia a qualidade de posse, que era proibida - e Lucy ainda não se acostumara a essa mudança. Ansiava, pois, por esse sono que lhe fugia.
Era durante essas horas insones de escuridão e mortal silêncio que nem mesmo o tique-taque de um relógio interrompia, que, enquanto esperava nervosamente o raiar
da aurora, o fatigado cérebro de Lucy se punha a trabalhar em torno daquela ideia de espionagem. Não se tratava apenas do constante vigiar do oniciente olhar de
Marie Emmanuel; era uma observação mais reticente e secreta, que se estendia além da clausura do noviciado. Eram pequenos colóquios por trás de portas fechadas;
Joséphine, Marie Emmanuel e a Superiora em graves confabulações. E um iluminado olhar da Superiora, lançado sobre ela no momento em que saía da igreja. Seria apenas
imaginação sua? Assim devia ser. Mas havia um fato concreto que não admitia dúvida: aquela estranha entrevista!
Um belo dia, durante o recreio, a Superiora surgira e, defrontando-a, dissera:
- A comunidade está notando que você anda emagrecendo. Será que você está doente?
Imediatamente Lucy negara o fato de estar enferma.
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- É preciso ter saúde para seguir a regra comum. Nenhuma exceção pode ser feita. Uma saúde muito débil e um coração muito altivo não podem fazer uma boa religiosa.
Estariam chamando seu coração de altivo? Depois de suas penitências ignominiosas sobre os joelhos? Lucy conservou-se muda.
- Ouvi dizer que você é verdadeiramente favorecida em questão de orações. Desse modo, certamente Nosso Senhor lhe dará a graça de continuar esta vida, observou por
fim a Superiora.
Continuar esta vida! Essas eram as palavras que Lucy conservou no espírito depois dessa conversa e que pareciam perseguí-la acudindo-lhe especialmente durante as
noites com insistente intensidade. Havia nelas uma espécie de ameaça, uma sugestão de fracasso. Ela que nunca falhara, não poderia falhar nesse último vital empreendimento.
Si bem que aquele período fosse experimental, Lucy nunca o tomara assim. Desde o princípio considerara o convento como um refúgio permanente e final.
Inexplicavelmente, apesar de achar aquela vida tão estranha, tão rigorosa e incompreensível, com toda a apaixonada vibração da sua natureza ela desejava vivamente
continuá-la. Lembrou-se de repente daquela inabalável resolução com que ingressara no convento. Seria ela uma criatura de vontade .fraca para perder a força e a
fé tão facilmente? Deus a guiara ali com todo Seu amor a ela. Esse era o rochedo ao .qual ela se agarrava.
Fazia-o por Jesus, Jesus, seu amado Senhor, que fora açoitado, coroado de espinhos e crucificado até uma angustiosa morte. Como podia ela recusar-se a sofrer por
Seu amor, quando Ele, por sua causa, tanto sofrera? "Tudo por Jesus! Tudo por seu amor!" Esse era o propósito fixo que tinha em mente. Encerrada na cela durante
essas longas horas de escuridão, consumia-se Lucy nesse amor. Era como uma chama ardendo dentro dela. Muitas vezes, no sombrio negrume, via o Sagrado Coração de
Jesus cercado de fogo. Ante essa visão, queria levantar-se daquela palha e cair de joelhos oferecendo sua alma e seu corpo a Jesus. Coibida, porém, pelos mandamentos
da Regra, ali ficava deitada, esperando com os olhos muito abertos até que o primeiro clamor do sino da maanhã lhe permitisse erguer-se e ir para Ele.
- Louvado seja Deus!
- Para sempre seja louvado!
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Então, no escuro, levantava-se rapidamente, envolvia no hábito o corpo gasto e corria à igreja, onde, ante a imagem de Deus, se prostrava humildemente em adoração.
É verdade que, certas noites, nos seus raros momentos de sono, ela era muitas vezes afligida por um terrível sonho. Uma instigação estranha: chamas que se elevavam
por sua ordem queimando o convento numa oferenda a .Deus. E Lucy despertava tomada de suores gelados, cheia de pavor. Aquilo, sem dúvida, era um pesadelo.
- Louvado seja Deus!
- Para sempre seja louvado!
Quantas vezes dera aquela fervorosa resposta? Estava ali há alguns meses, apenas. Para ela, no entanto, aqueles meses pareciam muitos; cada um, um largo deserto
de tempo.
Os pêssegos estavam agora maduros no lindo jardim, enormes e seivosos, perfumados e abrindo-se ao sol quente. Era agradável admirar por um momento, durante o recreio,
os frutos, dádivas de Deus, observar as irmãs leigas colherem-nos com as mãos rudes mas cuidadosas, depois arrumá-los nos grandes cestos onde seriam levados ao mercado.
Mas mesmo assim, belos como eram aqueles frutos, Lucy não tinha desejo algum de comê-los. Talvez, há muito tempo, ela tivesse sido diferente. Houvera tempo em que
um pêssego poderia tentá-la. Agora aquilo não lhe importava. Mas admirava aquele jardim, lá entrando sempre, nas horas de recreio, com uma sensação de extraordinário
alívio. Ali fora ela favorecida por uma bizarra e inesperada amizade que a fazia esperar avidamente aquela única hora passada sob aquelas árvores pujantemente carregadas.
Fora ali que a velha Irmã Adrienne lhe falara um dia, a velha religiosa que, aos oitenta anos de idade, contava sessenta de hábito. A irmã Adrienne era toda enrugada
e não tinha dentes. Mas que sorriso doce possuia! Andava pelo jardim durante as horas em que havia sol, rezando num enorme rosário que lhe pendia de dentro das mangas.
Um dia, tropeçara, e como Lucy corresse a ampará-la, subitamente ela lhe dirigira a palavra. Apenas em virtude da sua idade avançada
- era a decana da comunidade - tinha o privilégio de se dirigir a uma noviça. Seguiu-se a isso uma camaradagem que não estava estritamente de acordo com a Regra.
Mas nesse momento que Lucy atravessava, a amizade da Irmã Adrienne
- si é que se podia chamar aquilo amizade - era como uma contemporização em face de um desastre que se aproximava. Lucy parecia apegar-se à velha criatura, como
que procurando
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tirar dela alguma coisa daquela tranquilidade a que tão ardentemente aspirava.
Ser religiosa professa há sessenta anos! Certamente que descer ao íntimo daquele coração, seria solver para sempre o enigma eterno que enfrentava. Lucy procurava
forçar a Irmã Adrienne a lhe fazer aquela revelação.
- Sim! No dia da festa dos Doze Santos Mártires, terei sessenta anos de hábito.
- A senhora sente grande felicidade, grande contentamento agora? perguntou-lhe Lucy.
- É uma felicidade aquecer meus velhos ossos ao sol, replicou Adrienne complacente; sobretudo agora, que se aproxima o meu octogésimo aniversário!
- Mas... no princípio ? insistia Lucy.
- Ah , entrei aqui cheia de fervor, murmurou a velha religiosa perdendo-se nas suas reminiscências. Ainda me lembro como a minha pobre mãe chorava quando tomei o
véu. Ela não fazia gosto em que eu seguisse minha vocação. Depois... esse fervor... não sei! - Fez uma pausa e depois prosseguiu: - Você sabe, nessa nossa vida tem-se
que fazer as coisas todas por obrigação, incessantemente. Li há muito tempo a respeito de um grande santo... não me lembro que santo era! Agora esqueço tudo com
tanta facilidade! Mas esse santo nunca obteve a graça de um verdadeiro fervor pelo qual orou toda a sua vida. Apesar disso, porém, continuou a fazer tudo pelo bom
Deus. Dizia: "Eu creio". E fazia como se acreditasse. É compreensível. - Novamente estacou, sonhadora; quando voltou a falar, disse: - Eu não sou uma santa, mas
sou assim, também.
Lucy olhava com ansiedade:
- Mas a recompensa, Irmã, depois da sua morte...
?- Eu não quero morrer, acudiu Adrienne com uma vivacidade insólita. Acho a vida agradável. E tenho recordações tão doces! Recordações da casa em que nasci, em
Liége... quando eu era criança meu pai me chamava "mon petit chou frise", e brincava à sombra de uma figueira que havia em nosso jardim... um dia me levaram, a uma
grande feira onde havia ciganos. Meu vestido era azul e minha cabeça estava cheia de cachos...
Lucy interrompeu-a:
- Mas certamente, Irmã, a senhora deseja estar com Deus, Nosso Senhor...
- É curioso! tornou a velha freira. Uma vez na Itália, onde passei muitos anos, em nossa Ordem, deu-se um fato que me impressionou. Conheci um velho Arcebispo, muito
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velho e muito piedoso. Repentinamente, adoeceu. Que se passou então? Em lugar de exclamar: "Já estou muito velho, devo vorrer para ter a felicidade de me achar com
Deus", não disse nada disso. Pediu que chamassem médicos especialistas. Decidiram operá-lo. Ele concordou para ver si melhorava. Ficou tão bom e tão contente, que
houve muitas cerimónias em ação de graças. Não é curioso?
O sino tocou anunciando o fim do recreio e Lucy, com o espírito cheio de confusão, dirigiu-se à igreja para orar por um lugar nesse paraíso que Adrienne não tinha
pressa de conhecer.
Não obteve, pois, da velha religiosa, a solução que procurava com tanta ânsia, mas sentia uma tranquilidade benéfica em sua companhia. Criou um grande apego à Irmã
Adrienne.
Quando alguma censura de Marie Emmanuel a deixava trémula, quase fora de si, fazia por pensar naquela venerável e estóica face e aquilo era para ela um extraordinário
calmante. Saber que podia falar a Adrienne durante a hora de recreio parecia fortificar sua resignação. A velha religiosa passou a ser para ela um antídoto de Marie
Emanuel. Aquela amizade, contudo, parecia ser motivo para que o ódio de Marie Emmanuel aumentasse. Mesmo assim Lucy se constrangia a sofrer obedecendo.
Chegou afinal a véspera da festa dos Doze Santos Mártires. Por causa da grande ocasião, Lucy falara com a Irmã Adrienne um pouco mais que de costume. A velha religiosa
lhe dera uma pequena imagem sagrada e Lucy, ao atravessar o jardim, levava apertado na mão o pequeno cartão colorido e um pálido sorriso nos lábios. Imediatamente
sentira o olhar de Marie Emmanuel fixo nela. O sorriso apagou-se-lhe do rosto e rapidamente fez desaparecer a imagem no bolso. Não trocaram palavras. Seu espírito
estava cheio de revolta à lembrança daquele olhar frio, no momento em que entrou na igreja para as orações da tarde. Custava-lhe muito seguir o preceito de apresentar
a face depois de ter sido golpeada na outra. Deveria, porém, dominar aquele sentimento de rebelião.
Cheia de fervor, fixando os olhos no tabernáculo, orou silenciosamente para obter a graça de continuar a ter um sinal que fosse de misericórdia e de paz.
Saiu da igreja confortada, de olhos úmidos e ainda iluminados por aquele fervor. Agora sentia-se armada de uma força maior para enfrentar outra noite de inquietação.
Como era a última das noviças a deixar a capela, pertencia-lhe a tarefa de fechar a porta. No momento em que o
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fazia, uma sombra se lhe acercou. Era Marie Emmanuel que abruptamente a deteve.
- Um momento, faz favor, disse a instrutora em voz baixa.
Lucy estremeceu. A Regra exigia um absoluto silêncio depois das orações da noite, que só podia ser interrompido raramente e por circunstância grave. Cheia de surpresa
e de apreensão Lucy encarou a outra no sombrio corredor.
- Preciso dizer-lhe uma coisa que você deve saber antes de amanhã, começou Marie Emmanuel em seu tom frio e preciso. Seu vulto, na obscuridade, era quase inumano.
Continuou : - É sobre a Irmã Adriene.
Lucy teve uma contração interior. Seria aquele o sinal que ela tanto pedira?
- Observei, disse a outra fria como um juiz, que estão sempre juntas durante as horas de recreio. Essa intimidade não é regular. A Irmã Adrienne tem os privilégios
da idade, mas você não os tem, compreende?
Por intuição, Lucy percebeu imediatamente que estava outra vez a pique de ser humilhada, repreendida e censurada injustamente. Isso não cessaria nunca?
Em sua face apareceu subitamente o espasmo de um tique incontrolável, que ultimamente a afligia nos momentos em que se sentia nervosa. Conservou-se imóvel sem dar
resposta alguma.
- Para que uma criatura se torne uma boa religiosa, prosseguiu a voz frígida, é necessário tudo abandonar.
Aquela voz não continha aborrecimento, apenas uma fria autoridade. Lucy continuava calada.
- Compreendeu? perguntou a instrutora num tom de quem esperava uma resposta. Lucy agitou-se. Chegara o momento. Não o sinal pelo qual ela rezara! Algo diferente,
melhor! E agora, como si a houvesse aguardado, encontrando-se sozinha com aquela mulher que a humilhara, agarrou ferozmente aquela ocasião. O coração, que ela sentira
apertar-se-lhe, expandiu-se de repente. Suas narinas dilataram-se. Comprimindo os lábios numa linha rígida, perguntou com dêsdem cortante:
- Tenho permissão para falar? A instrutora inclinou ligeiramente a cabeça.
- A senhora sabe que foi a Irmã Adrienne que se dirigiu a mim em primeiro lugar?
- Isso nada quer dizer.
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- Si ela novamente se dirigir a mim, que devo fazer? Aquelas palavras sibilavam no silêncio do háll da escada.
- Si ela lhe dirigir a palavra, não responda.
As duas encararam-se e nos olhos de Lucy acendeu-se uma luz de batalha. Era uma criatura que possuia alma e não um ser destituído de fibra que se deixasse arrastar
pelo chão, lambendo a poeira e exclamando "OH! pardon, ma bonne mère" por uma suposta falta. Sentiu como que um fogo a percorrer-lhe as veias. Essa pálida e estéril
criatura não era melhor que ela. Pelo contrário. Sentia-se superior a ela. Apesar da fraqueza do seu corpo combalido, sentia-se mais forte e melhor. Conhecera os
êxtases do amor e as fadigas do trabalho. Não era nenhuma virgem neorótica recalcada naquela vida inútil e sem objetivo. Era uma verdadeira mulher e não tinha medo
de coisa alguma. Seu rosto abatido estava transfigurado enquanto defrontava Marie Emmanuel com um ar ameaçador.
?- Sabe que há três meses você tem tornado a minha vida um inferno?
- Como! - Aquela exclamação fora espontânea e acompanhada de um olhar assustado.
?- Sim. Um verdadeiro inferno, e tudo isso para nada.
- Essas palavras vieram num turbilhão e Lucy continuou: ?- Você tem se empenhado em me ridicularizar e em me humilhar sem nenhum motivo.
As pálpebras de Marie Emmanuel bateram e ela se tornou extraordinariamente pálida.
- Assim é, disse ela com lentidão; mas tudo para o seu bem; em seu benefício.
- Meu benefício! exclamou Lucy, e teve um violento gesto de repulsa. A esse movimento, Marie Emmanuel recuou em direção à escada.
- Isso não está direito, protestou a religiosa numa voz descontrolada que tremia singularmente, você está se conduzindo de modo .irregular.
Uma alegria terrível estufou o peito de Lucy. Viu a perturbação da outra e isso encheu-a de exaltação.
- Veja como eu sou! declarou ferozmente. Submeti-me a tudo, apesar de ser mais forte que você!
O rosto de Marie Emmanuel tornou-se lívido na sombra do hall.
- É uma ofensa a Deus falar desse modo, disse em voz estrangulada. Amanhã você terá que fazer uma penitência.
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Penitência! Um amargo desdém invadiu Lucy, que replicou : - Amanhã ainda não chegou. - E continuou a fixar ameaçadoramente a outra, que agora se encostava à parede.
A virtude abandonara Lucy e deixara em seu lugar apenas desprezo.
- Já é tarde, murmurou a instrutora alarmada, já devíamos estar recolhidas. - Por um instante as duas mulheres olharam-se em silêncio; depois, lentamente, Marie
Emmanuel baixou os olhos, voltou-se e começou a subir os degraus.
,De punhos cerrados e lábios trémulos, Lucy viu-a retirar-se.
"Não posso", pensou, "não posso tolerar isto". Então, com um gesto de desespero, voltou-se para a porta que, por hábito, tinha que fechar. Mas não o fez. Em vez
disso, abriu-a e ficou ali, de pé, com o peito cheio de confusão, olhando para a doce e misteriosa beleza da noite. Diante dela estava o jardim coberto pela radiante
luz da lua. Atrás dela, no claustro, aquelas celas, à mesquinhez e a miséria. Seu coração batia fortemente enquanto, no limiar do jardim, estendia a face ardente
para a tranquilidade da noite com a cabeça inclinada para trás, o rosto voltado para o firmamento, o corpo tenso na escuridão, todo vibrante ainda como um arco demasiadamente
tenso. Repentinamente esse arco distendeu-se. Avançou: a porta fechou-se sobre ela. Tremendo, Lucy adiantou-se para o ar livre.
O JARDIM engolfou-a como um fresco e insondável mar. No momento em que transpusera aquela porta, Lucy havia perdido completamente o senso da realidade; circunr dada
agora pela sombra, guiada pelo instinto, pôs-se a correr como impelida por uma força estranha, para fugir à sua opressão.
Seus pés não produziam som algum sobre a grama úmida do orvalho. Aquela figura curvada atravessava a fantasmagórica, luz, como uma sombra que não seguia estrada
alguma e não deixava nenhum traço da sua passagem.
Mas onde ia ela? Correndo, correndo com o fôlego entrecortado de soluços, fechada dentro dos muros impenetráveis que cercavam o jardim, para onde poderia fugir?
Confusa, tomada de pânico, o próprio movimento da sua carreira a assustava. Cercada pelos muros, pela floresta e
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pela noite, presa debaixo da redoma do céu indiferente, ela era como um pequeno peixe perdido, abrindo trêmulamente caminho através de oceanos vastos cujos profundos
abismos não pudessem ser penetrados por luz nem compreensão.
Repentinamente, estacou na sua fuga, ofegante, tomada de desespero. Para onde ia? Que fazia ali? Ela, Lucy Moore, só, naquela vasta e incompreensível clausura, numa
hora dessas, no coração de um país estrangeiro! A lua, como uma branca hóstia na escuridão do firmamento, banhava-a de luz sem lhe dar conforto. As estrelas eram
apenas uma poeira dourada semeada ao acaso. Além disso, mais nada naquele céu de escuridão sinão o negrume sob o qual ela se achava submersa, menos que nada.
Perdida, levou as mãos à testa, procurando pensar, assaltada pelo perfume dos frutos maduros que errava no ar como um vinho capitoso. Em torno dela, o jardim começou
a delinear-se ante seus olhos incertos. As árvores não se mexiam, as pálidas flores estavam imóveis como lindas frondes de coral. Toda aquela beleza e quietude despertou
alguma coisa no seu espírito. Sim! Ela se recordava. Viera para ali em busca de paz. Seu rosto contorceu-se e, na contemplação desse
? pensamento, toda a beleza que entrevira no jardim perdeu-se para ela.
A lembrança intolerável acudiu-lhe, amargurando-a. Fora por amor a Deus que ali viera ter, para se lhe oferecer inteiramente. Não o fizera tanto a Deus como a Jesus,
Jesus, o Salvador crucificado por amor a ela. Jesus era Deus, o Filho e o Pai juntos ao Espírito Santo em um só. Esse mistério era realmente incompreensível e tão
firme e sagrado que nem o examinou; pensava apenas em seu amor ao Cristo, que para ali a atraíra, compelindo-a ao doce sofrimento do sacrifício e ao completo abandono
da sua pessoa. Mas qual fora. o resultado daquilo? As mãos de Lucy fecharam-se nervosamente e seus olhos dirigiram-se ferozes para os contornos amorfos do convento
que se delineava vagamente na escuridão.
Uma súbita rebelião apoderou-se dela; desviando o rosto, olhou em torno de si. Precisava fazer alguma coisa. Não podia ficar ali inativa e deixar as circunstâncias
apoderarem-se dela, submergirem-na. Nunca o fizera! E Jesus estava do seu lado, conciente do seu amor, observando-a Naquele momento em que lutava para chegar a Ele.
Um ténue sorriso iluminou-lhe o rosto.
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"Jesus", murmurou involuntariamente, "ajudai-me!". Baixou a cabeça e conservou-se rígida como procurando escutar. Depois, elevando repentinamente o tom de voz, que
rasgou a quietude da noite qual meteoro fendendo a escura abóbada celeste, gritou alto:
- Jesus, Jesus, vinde em meu auxílio. Aqui ,me acho por amor a Vós.
Novamente esperou, escutando, o olhar vago. Mas nenhuma resposta lhe veio do céu indiferente.
Agitou-se inquieta, moveu os membros entorpecidos, enquanto sentia novamente o medo tocar-lhe a testa com um dedo gelado. Pôs-se a caminhar vagarosamente sob as
árvores. De súbito, a lua ocultou-se atrás de uma nuvem e todo o jardim mergulhou instantaneamente na escuridão. Inconcientemente Lucy apressou o passo, como para
fugir a essa penetrante obscuridade que a cercava agora tão completamente. Seu corpo, gasto pelos rigores que havia suportado, inclinava-se para a frente. As pernas
moviam-se tropeçando. A cabeça latejava-lhe. Desesperada, perguntava-se por que Jesus não viera em seu auxílio. Pouco antes implorara sua ajuda, um sinal que fosse!
E encontrava-se agora mergulhada na escuridão. A resposta era aquela. Não sucedera isto mesmo a Jesus, uma vez, em um jardim chamado Gethsemani, ter chamado por
socorro como o fizera ela? Seu sofrimento, entretanto, não fora evitado. O dela, também não. Uma terrível angústia mental assaltou-a repentinamente, como uma ventania
cruel sob a qual seu espírito vergava e era sacudido como um barco apanhado pelo furacão. Seria que o sofrimento de Cristo fora como o dela própria, tudo em vão?
Por que se achava ali? Aquela escuridão não era um jardim, e sim um universo através do qual ela cambaleava, cega. Seu amor. pelo marido, pelo filho, por Jesus,
era o mesmo amor repetido, insensatamente repetido. Estremeceu. Sua ardente ternura pelo infante Salvador não era sinão a mesma ternura que se apoderava dela quando
seu filhinho lhe repousava nos braços. O sorriso de Jesus Menino era o sorriso do seu próprio filho; seu amor por um era o mesmo amor que tinha pelo outro. E Frank!
Outra vez teve a visão daquelas mãos pálidas, cerosas, cruzadas na morte, e da vaga e misteriosa imagem do seu rosto. Mas aquele rosto não era o de Frank. Era a
face de Cristo; e o corpo era o corpo de Jesus, abandonado e inerte como fora recolhido da cruz pelas santas mulheres para ser dado à sepultura. A. mesma débil e
exangue forma humana. 409
Um grito baixo e inarticulado fugiu-lhe dos lábios. E todos os seus pensamentos eram inarticulados também, girando entre a incerteza e a dúvida.
Em meio, contudo, a esse inexprimivel caos, aqueles três amores se uniam e compunham misteriosamente uma trindade que assumia uma única forma. Aquilo surgia dela.
Seu corpo de mulher era a fonte de todo amor jorrando da terra, na qual tudo tem origem, sobre a qual tudo deve passar e retornar novamente ao pó.
Levando as mãos aos olhos, Lucy soluçou alto. Que lhe estava acontecendo? Estaria enlouquecendo? Gemeu e, tomada de pânico, tombou sobre os joelhos. "Jesus Jesus!
gritou. Vossa amorável testa perfurada de espinhos. Vossa face adorável gotejante de suor e sangue, eu Vos amo! Eu Vos amo! Libertai-me da dúvida." E batia no peito
erguendo os olhos. Nada, porém, naquele céu sombrio, lhe mostrava que sua voz estava sendo ouvida ou perdida para sempre no infinito. Estaria ela perdida, também?
Mergulhada no desespero, abandonada! Seu corpo inclinou-se desamparado, seu olhar acendeu-se de uma luz selvagem.
Aquele convento, com todas as portas fechadas a chave, não era sinão um manicômio. E aquelas mulheres de olhar vazio, de sorridentes rostos infantis, traziam a mesma
expressão que ela vira no rosto insensato de Miss Hocking.
Como si lhe chegasse de muito longe, pareceu-lhe ouvir o repicar de um sino, um estranho e insistente dobrar, não em mensagem de paz, mas de alarme. Aquilo era mesmo
o som de um sino ou seria um zumbido em seus ouvidos? O som continuou enchendo a noite. Então, na escuridão, apareceram pequenos pontos de luz que se moviam incertos,
vagueantes e fugidios como distantes fogos-fátos. Fascinada, Lucy os fixava. Depois, subitamente, vacilou. As luzes convergiam para ela, agitando-se como sinos ao
som daquele sino distante. Ficou apavorada. Abandonara Deus... renegara-O! Estaria agora cercada, de demónios, que acorriam para atormentá-la? Sua garganta, seca
e ardente, contraiu-se num débil grito.
. Voltou-se e quis correr, mas não o conseguiu. Lutou cheia de angústia para mover o corpo entorpecido, enraizado. Mas ficou petrificada. Fez um último e convulsivo
esforço; lutou. Então, seu corpo rígido distendeu-se e Lucy caiu por terra sem sentidos.
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Aí foi encontrada por aquelas que a estavam procurando à luz das lanternas, e assim a trouxeram novamente para o convento.
Ao despertar, Lucy sentiu um quente raio de sol da manhã bater-lhe no rosto, banhando também seu cobertor: um fato de tal modo insólito e irreal que instantaneamente
a obrigou a fechar novamente os olhos. Um momento depois, contudo, tornou a abri-los. Um homem alto, vestido com um hábito de monge, achava-se de pé ao lado do leito.
Usava barba longa e quadrada. Um pince-nez balançava-lhe no nariz comprido e sério. Ele, porém, não estava sério. Naquele momento, sorria.
- Depois de ter dormido assim bem, disse em tom encorajador, naturalmente está se sentindo melhor!
A rígida face de Lucy manteve-se imóvel. Não sorriu, nem deu resposta. Novamente cerrou os olhos. Apesar de se sentir amodorrada, não dormia. Ouvia vagamente vozes
numa conversa muito polida e formal; adivinhou a partida cheia de dignidade do médico. Sim, ela calculava que aquele fosse o médico. Além do cura, nenhum outro homem
a não ser o médico era admitido no claustro. Ainda uma vez, abriu os olhos e olhou em torno. Seu olhar caiu imediatamente sobre a velha Irmã infirmiére, que lhe
acenou com a cabeça e sorriu-lhe gentilmente por cima da barra de cobre que formava o pé da cama. Viu que não se achava na enfermaria, nem em nenhuma cela. O grande
leito no qual se achava indicava-o logo. Era un grande leito, tão confortável e macio depois do seu colchão de palha, que Lucy não pensou que repousasse numa superfície
e sim que se achava envolvida por uma nuvem. E o quarto? O quarto era agradável, aberto, os móveis encantadores! Havia um tapete de Bruxelas sobre o soalho envernizado,
cortinas de renda amarela nas janelas e, mesmo, um espelho sobre a cómoda, A lareira ornava-se de flores - flores de papel vermelho ?- colocadas em um vaso amarelo.
Não Lucy não sabia que quarto era aquele.
E onde estava seu hábito? Procurou-o com os olhos na cadeira que estava ao lado da sua cama. A cadeira estava completamente vazia. De modo que lhe tinham levado
o hábito e haviam-na colocado naquele quarto estranho e elegante,
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cercando-a, apesar da sua terrível desobediência à regra, de sorrisos, de bondade e daquele amável médico de baroa quadrada. Ah! sim... agora Lucy já sabia onde
se achava. Haviam-na posto fora da clausura. Encontrava-se num dos dormitórios que havia por cima dos parlatórios.
E, mais uma vez, tornou a fechar os olhos. Mas não pôde pensar. Não tinha, na verdade, vontade alguma de pensar, seu corpo lhe doía como si tivesse sido flagelada
por varas cruéis. A cabeça lhe parecia flutuante e suas pálpebras pesadas e sonolentas. Chegaram-lhe aos lábios uma tigela cheia de um líquido que ela tomou. Uma
grande mosca zumbiu num vidro da janela. -Novamente Lucy adormeceu.
A tarde já ia avançada quando despertou. O sol, agora, lançava um suave e brilhante quadrado de luz sobre o desenho do tapete perto da porta. Lucy viu que se achava
só no quarto e, deitada de costas, por algum, tempo, manteve-se imóvel sem pensar em coisa alguma. Lembrou-se vagamente da sua terrível aventura no jardim, mas sem
noção de tempo, nem de detalhes, como si lhe tivesse acontecido qualquer coisa de terrível apesar de vaga, assim como uma tempestade que a tivesse devastado e quase
destruído mas que houvesse passado agora. Não! Ela não queria pensar. Estava fraca, muito fraca. Era singular! Precisou de um grande esforço para levantar as mãos
e de um esforço ainda maior para erguer a cabeça do travesseiro.
Depois, de repente, constatou que não se achava sozinha no quarto e seus olhos se alarmaram de surpresa. Uma velha mulher de tipo estranho a encarava; uma criatura
de rosto tão fino e enrugado que se tornava quase grotesco. Os cabelos grisalhos dessa mulher estavam cortados como os de um rapaz e seus olhos grandes e escuros
fixavam-na de dentro de profundas órbitas. Suas mãos como o rosto eram ossudas e incrivelmente emaciadas. Inconcientemente, Lucy ergueu a mão e esse movimento foi
simultaneamente efetuado pela outra. Cheia de pavor, Lucy encolheu-se dolorosamente. Aquela imagem era a dela própria, refletida no espelho que a Irmã infirmière
inclinara naquela direção.
Estupefata Lucy voltou a deitar-se afastando os olhos da sua imagem. Eis em que se tornara! Numa mulherzinha cinzenta como um rato! E ainda não tinha quarenta e
cinco anos! Fora quase ontem que ela tivera a aparência de uma jovem e descuidosa criatura, cheia de vida, esperando à gloriosa luz do sol, no portão da sua casa,
por Frank. E agora? Nenhuma lágrima viera àqueles grandes e escuros olhos que
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se fixavam, no teto; seu olhar, porém, tornou-se pungente e remoto. Toda expressão daquele rosto se tornou infinitamente patética. Que vida vulgar e, também, que
estranha vida fora a sua! Lutando por alguma coisa que não chegara nunca, estendendo as mãos para alcançar o infinito!
Lentamente a porta se abriu e entraram no quarto a Superiora, a velha Irmã Enfermeira e também - com grande pasmo de Lucy - a instrutora das noviças. Parecia incrível,
mas todas elas sorriam!
- Então, então! Já despertou, hein ? foi dizendo a Superiora, acercando-se da borda do leito. Já parece outra, com muito melhor fisionomia. - E voltando-se para
a enfermeira indagou: - Monsieur lê docteur está satisfeito?
- Está sim, Bonne Mère Générale, respondeu a outra obsequiosamente. Está perfeitamente contente, Conforme já lhe disse...
A Superiora deteve-a com um gesto.
- Ele não voltará aqui? - Aquilo parecia mais uma declaração do que uma pergunta.
- Não, Bonne Mère Générale. A doente agora está confiada a mim. Ele recomendou...
A Superiora deteve-a com um gesto:
- Vê? disse para Lucy, amavelmente, o que tem não é coisa séria. Uma enfermidade ligeira. Uma febrezinha de cabeça. Nada... - e concluiu com um gesto positivo nada
absolutamente.
- Já está com a fisionomia mais tranquila, observou Marie Emmanuel com um riso pálido.
- Na verdade, meu cordial é notável! avançou a enfermeira. Monsieur lê docteur, ele próprio, elogiou-o. E um elogio dele é precioso!
- Você vai ter tudo aquilo que for preciso, declarou a Superiora suavemente. Vai tomar bouillon, vinho, ovos com leite. Mas, não deve deixar por isso de tomar o
tão gabado cordial da Irmã Marthe.
Todas as três riram do pequeno gracejo.
- Talvez ela gostasse de algumas frutas, murmurou Marie Emmanuel com um ar régio. São tão refrescantes!
Os olhos de Lucy alargaram-se de assombro. Que significaria aquilo? Seria essa a mesma mulher que a havia humilhado tanto nesses seis últimos meses?
- Naturalmente, concordou a Superiora, algumas frutas devem ser permitidas. - Fez uma pequena pausa, depois disse: Não queremos mais fatigar a sua doente, Irmã.
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Despediram-se todas e encaminharam-se para a porta.
Não fora feita referência alguma à deplorável falta de Lucy, não haviam mencionado castigo algum, não lhe tinham feito pergunta alguma direta; nada houvera, a não
ser a manifestação de uma indulgente amizade.
Haviam-se retirado as três, sorrindo e em perfeita ordem e entendimento. Lucy nem sequer abrira a boca durante toda a entrevista.
Pôs-se a conjecturar. Por que tanta abundância depois de tanta severidade? Que iriam fazer com ela? E novamente, que iria ser dela?
A Irma Marthe voltou pouco depois trazendo em triunfo, um prato onde havia um amontoado de .frutos. Ali havia ameixas, pêssegos quase estalando com o próprio sumo
e lindas uvas. Colocou o prato na cadeira ao lado da cama e observou:
?- Estarão ao seu alcance quando as desejar.
Lucy, seguindo com os olhos os movimentos vagarosos da enfermeira, perguntou depois de um momento:
- Há quanto tempo me encontro aqui ? - Sua voz soou sem timbre e falhada a seus próprios ouvidos.
- Desde ontem, apenas, respondeu Marthe alegremente, não é muita coisa. - Houve uma pausa; depois, no silêncio do quarto, a voz de Lucy tornou:
- Que será que me vai acontecer?
Mas a enfermeira fingiu não ouvir. Seus passos silenciosos dirigiram-se para o armário, que ela abriu tirando de dentro uma colher já gasta e uma garrafa de gargalo
alto, cheia de um líquido escuro,
Aproximãndo-se de Lucy, derramou um pouco do líquido na colher e falou-lhe:
- Tome. Já é hora do seu remédio.
Este era xaroposo e tinha um gosto bastante amargo. Depois, o silêncio estabeleceu-se no quarto, apenas quebrado pelos vagos ruidos exteriores. Lucy jazia agora
imóvel, as mãos emagrecidas sobre o cobertor, os olhos mais uma vez perdidos numa distância remota e absoluta. Antes que a última claridade do crepúsculo houvesse
deixado o quarto, a droga fê-la mergulhar no sono.
Teve um sono sem sonhos, do qual só despertou quando a Irmã Marthe lhe tocou no ombro. Incrédula, considerou a brilhante luz da manhã. A noite, que era para ela
ultimamente um período tão longo e tormentoso, passara como um relâmpago!
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- A senhora é boa demais para mim! disse à enfermeira, com os lábios trémulos.
- Oh! em breve estará boa, respondeu a outra. Meu cordial é específico, sabe?
Um sorriso ténue apareceu nos lábios de Lucy. Realmente, sentia-se melhor. A cabeça ainda lhe pesava, mas ao corpo voltaram correntes de vitalidade que começavam
a agitar-se dentro dela, como um fluxo de seiva num velho tronco de árvore. Mas como se sentia fraca! Ao tomar o chocolate
- tão espesso e forte - sua mão trémula mantinha a chícara com dificuldade. E o espírito ainda se achava enevoado, paralisado ao peso da dúvida.
Toda a manhã esteve mergulhada nessa inércia.
.Durante a tarde, novamente a porta se abriu para dar passagem às visitantes da véspera.
Mais uma vez, cumprimentaram-na pela melhora. Depois, com um gesto, a Superiora fez sair a velha enfermeira.
- Você parece estar já muito melhor, declarou chegando-se bem para a borda do leito. E continuou com uma voz leve, agradável e com um rápido meneio de cabeça: -
Em breve estará pronta para viajar.
Os olhos de Lucy não deixaram o rosto da interlocutora. Já esperava aquilo. Era inevitável. Mesmo assim, seu espírito enfraquecido e passivo agitou-se àquelas palavras.
Queriam desembaraçar-se dela e buscavam fazê-lo de um -modo agradável, sem transtorno. Aquela devia ser a razão de tantas atenções e sorrisos.
- Tenho então que ir? perguntou devagar.
- É melhor para a sua saúde, observou a outra com volubilidade. E voltando-se para Marie Emmanuel: - Está claro que sentimos muito! Mas com uma saúde tão delicada,
que poderia fazer?
- É isso mesmo, concordou Marie Emmanuel, que poderia fazer?
Durante o curto silêncio que se seguiu, uma lenta onda de amargura cresceu no peito de Lucy. com uma fisionomia calma e composta, ela articulou distintamente:
- Eu estava bem quando ingressei na comunidade. Tinha meu atestado médico para prová-lo.
- Talvez a idade... sugeriu Marie Emmanuel com um tato infinito. Isso era contra você! ...
- Você é que estava contra mim, vociferou Lucy com voz baixa e concentrada. Você e tudo aqui. Vim para cá 415
desejando ardentemente elevar-me a Deus e sempre fui impedida. Sempre você me rebaixava a alguma coisa, mesquinha e vil. Você me despojou de tudo.
- Você continua a não compreender, quis explicar Marie Bmmanuel. Essa perfeita submissão é da Regra. Só fui severa para conseguir que você adquirisse essa submissão.
Você, porém, se afastou de nós, não buscou identificar-se. Bonne Mère Générale sabe disso e... - Estacou e estendeu as mãos como para se justificar.
- Isso não tem importância, disse a Superiora calmamente, com os olhos fixos em Lucy. Toda a comunidade sente muito que você não se adapte; em todo caso, essa questão
está encerrada. - Agora precisa conservar-se tranquila para pensar em sua volta.
Lucy mordeu o lábio pálido. "Nada de recriminações ou desculpas; estava resolvido desde o princípio que ela não tinha razão. O assunto, porém, não seria discutido.
E queriam ver-se livre dela - isso percebia claramente. Muito bem! Ela também já não tinha vontade de permanecer ali!
- Não se incomodem, disse com uma dignidade imensamente patética, escreverei a meu filho imediatamente.
- Nós já escrevemos, acudiu Bonne Mère Générale tranquilamente. Seu bom filho deve estar recebendo nossa carta hoje.
Até mesmo isso fizeram! Haviam escrito a seu filho em termos que ela ignorava e teria que ignorar sempre. Aquela mesma injustiça de sempre, irritando-a daquele modo,
fazendo o velho ressentimento elevar-se dentro dela!
Deliberadamente ? procurou controlar o tique nervoso em sua face.
- Uma carta não é suficiente, disse calma. É preciso telegrafar. Avisar que chego amanhã.
- Não, não! Isso é impossível, acudiram ambas. É muito cedo. Talvez daqui a uma semana.
- Não desejo permanecer aqui, replicou Lucy com uma voz pausada que lhe custou muito esforço. Este lugar me é odioso.
- Aliás você ainda está muito... muito fatigada, avançou Marie Emmanuel.
- Não ficarei aqui, repetiu Lucy firme, imperativa; e, apesar de toda a sua debilidade, lutava desesperadamente para conservar a calma exterior. Não se trairia.
Contudo, com uma agitação crescente exclamou: - Si não telegrafarem que eu chego amanhã de tarde, eu própria o farei.
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As duas mulheres a olharam cheias de receio, depois entreolharam-se significativamente e voltaram a fixá-la.
- Fique aí tranquila, disse por fim a Superiora procurando acalmá-la. Você sabe que nós não a detemos, mas é que não lhe é possível partir.
- É possível sim! reiterou Lucy resoluta. Partirei amanhã pela manhã.
Houve um longo e desconcertante silêncio.
- Si você assim quer, concordou finalmente a Superiora, ainda com ar de protesto. Mas, francamente! Não é razoável seu projeto!
Lucy não respondeu. Nem siquer se moveu; mas fechou os olhos como si desejasse apagar da sua vista aquelas odiosas presenças. Muito depois de ambas se terem ido,
ela assim se conservou. Mas, sob aquela tranquilidade aparente, ocultava-se uma imensa vergonha. Sim! Apesar de toda aquela aparência de dignidade elas a haviam
expulsado. Seus lábios puseram-se a tremer. Tinham julgado que ela não servia para estar com elas. Quando chegara ali, trouxera o coração cheio de fervor e de amor
a Deus, tendo um desejo único: ser esposa de Jesus. Agora seu amor fora rejeitado, seu fervor recusado. De alma vazia, a desprezada noiva de Jesus ia embora... para
onde? Gasta, esbulhada, destituída de tudo, ainda tinha a conciência de um estranho desejo da sua alma
Lá fora o sol banhava o jardim, e as flores eram. sugadas pelas abelhas que zumbiam; e alguma coisa além acenava-lhe vagamente da enevoada distância. Talvez ainda
houvesse alguma coisa para ela...
Sem se mover, silenciosamente, seu coração transbordou e, dos seus olhos, começaram a deslizar lágrimas.
A MANHÃ seguinte, que Lucy decidira seria a da sua partida, nasceu clara e fresca. Uma fria viração agitava as folhas do velho carvalho, desprendendo-as e fazendo-as
voar em torno como assustadas andorinhas. Repentinamente o verão se havia transformado em outono.
Lucy despertara cedo e por muito tempo permanecera mergulhada em seus pensamentos. Só às oito horas ergueu-se lentamente, cheia de preocupação. Vacilava e tropeçava
de
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vez em quando, mas convinha-lhe ser cautelosa por causa da Irmã Marthe, a cujos olhos curiosos ela não queria trair a terrível fraqueza que a assaltava. Era incrível
tanta fraqueza ! Tinha que manter uma constante luta para conservar a cabeça aprumada e custava-lhe um enorme esforço reprimir o tremor das mãos enquanto se vestia.
Enfiou novamente o vestido preto que usara no Postulai e que, agora, se tornara demasiado largo para a sua magra forma, caindo-lhe em torno como uma sobrecasaca
num espantalho. Aquele vestido nunca fora atraente, mas agora, arranjado como estava para se lhe adaptar ao corpo, tinha um ar ao mesmo tempo grotesco e trágico.
Ao erguer-se, depois de dar um laço no cordão das botinas, com a cabeça meio tonta, Lucy deu consigo no espelho. Que espetáculo! pensou desanimada. Ela que fora
dantes elegante, caprichosa! Frank chamava-a mesmo bonita!
- Está se sentindo bem depois que se levantou? perguntou a velha Marthe solícita entrando naquela ocasião.
Lucy voltou-se para ela:
- Estou perfeitamente bem.
- Nesse caso vamos descer.
Dirigiram-se ao parlatório, onde já Marie Emmanuel e Joséphine a esperavam. Aquelas duas, que uma vez haviam sido incumbidas de recebê-la, aparentemente haviam sido
também designadas para levá-la dali.
A Superiora não estava presente, ocupada no momento com suas devoções. A mala de Lucy também se encontrava no parlatório, aberta, com todas as suas roupas e tudo
o que trouxera meticulosamente dobrado e ela foi obrigada a permanecer ali enquanto se procedia a um inventário sob seus olhos. Foi-lhe demonstrado que nada do que
ela trouxera fora confiscado. Foi-lhe dada conta do seu dinheiro até o último sou. O que restava fora mais do que suficiente para a sua passagem. Seu bilhete fora
comprado, o carro encomendado. Tudo estava feito. Era justo! E ela dissera que havia sido "despojada"!
Finalmente a mala foi fechada e - como a fechadura, de tão velha, já cedera, quebrando-se - amarraram-na com uma corda.
Ficaram ali, as três, porque a enfermeira sumira sem dizer uma palavra. Não havia comoção, nada que fosse fora do comum. Nada podia obstar os inexoráveis movimentos
da máquina que a apanhara e engolfara e agora( ia triturá-la.
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- O telegrama foi passado esta manhã, avisou Marie Emmanuel.
- Esse embrulho, disse Joséphine indicando um pacote muito bem feito sobre a mesa, é uma boa merenda. Sanãiviches, um patê e até salsichas. Tudo especialmente feito
para você, concluiu sorrindo.
Por fim se esforçavam em cumulá-la desses favores temporais, quando, ali mesmo, tudo lhe fora roubado! Subitamente Lucy ergueu a cabeça:
- Si for permitido, eu gostaria de me despedir da Irmã Adrienne.
As duas religiosas entreolharam-se indecisas; Marie Bmmanuel guardou silêncio, mas Joséphine, com seu sorriso desprovido de expressão, disse:
- Infelizmente isso é impossível. Na manhã de seu aniversário, a boa irmã foi encontrada inconciente. Teve uma congestão cerebral que a matou - explicou e sorriu,
muito alegre. - Sim! deve estar havendo muito júbilo no paraíso por estarem acolhendo uma nova santa.
Uma grande tristeza invadiu Lucy, ao mesmo tempo que um sentimento de perda. Apenas Adrienne, naquele lugar irreal, lhe pareceu natural e humana. E seu passamento
era saudado por aquele sorriso infantil, ingénuo; um sorriso dirigido àqueles portões dourados que se estariam abrindo à velha criatura, que não queria deixar a
luz do sol aqui na terra. Era fantástico!
Ouviu-se o rodar da carruagem lá fora.
- É o seu carro, disse Marie Emmanuel erguendo-se; vou mandar o cocheiro entrar para levar sua bagagem.
Lucy encaminhou-se para a porta e viu o mesmo carro fechado, que a trouxera ali, com o mesmo cocheiro, que entrou no parlatório e reapareceu curvado sob o peso da
sua mala, que depositou sobre a coberta do carro.
No ar errava aquela frescura de outono que ela sempre amara.
Marie Emmanuel acudiu:
- Nós a acompanharemos até a estação.
- Não, recusou Lucy com naturalidade. Prefiro ir só. A outra mulher encarou-a. Houve um curto e rígido
silêncio.
- Mas nós temos ordem de acompanhá-la, disse Joséphine, cujos pequenos olhos piscavam com a luz do sol e pela perturbação.
- Não recebo mais ordens, respondeu Lucy. Agora faço o que quero.
Subiu no carro e fechou a porta atrás de si. Através do pequeno vidro da janela viu os dois rostos voltados para ela com uma expressão de incompreensão e de desânimo
no olhar. Mas o cocheiro chicoteou o cavalo e aqueles rostos recuaram no passado quando ela os perdeu de vista.
Tudo se dera calmamente, indiferentemente, como si ela estivesse de volta de uma simples visita, em vez de ter concluido a mais desesperada experiência da sua vida.
A princípio Lucy não olhava para a esquerda nem para a direita. Conservava os olhos fixos no tapete do carro. Depois, lentamente, ergueu a cabeça e, com um rosto
impassível, olhou para a estrada. Havia muito movimento por toda parte. Mulheres e raparigas apressavam-se para o almoço, deixando as oficinas de rendas de Sentiens,
rindo, falando, gesticulando, batendo com os tamancos com uma rude energia. Como pareciam felizes e descuidosas! Ela também fora, dantes, cheia de energia e de resolução.
Entrou nos subúrbios de Bruxelas, passando pelo mesmo caminho por onde viera. Ali reinava mais calma e o caminho estava desimpedido. Viu só um rapaz limpando a janela
de uma charcuterie e um concierge de avental verde polindo os metais da porta do seu edifício. Um gendarme estacionava numa esquina. Tudo muito natural e tranquilo.
Atingiram Bruxelas. Novamente bondes, tráfego, lojas abertas, cafés regorgitantes. Seus olhos viam tudo, mas como se fossem espelhos. Percebia as coisas apenas com
a superfície do espírito.
Depois veio a estação. O trem. O compartimento com aquele cheiro sulfuroso e os assentos de imitação de veludo.
Atravessava, de volta, aquele mesmo país, aqueles mesmos campos, via os camponeses inclinados sobre esses campos divididos em quadrados bem delineados, os canais,
as mesmas filas de álamos balançando-se como palmas ao vento.
Já atravessara aquela terra, cheia de um penetrante êxtase, com o coração batendo no ritmo das rodas. E onde a conduzira esse êxtase? A uma cena de loucura em um
jardim cercado de muros, onde por pouco não perdera a razão. Estremeceu e fechou seu espírito àquele pensamento.. E agora regressava! Era tão desanimador aquele
regresso. Que havia sido toda a sua vida, sinão uma cega procura de futilidades. Sempre avante, lutando tanto, com todas as
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suas forças, procurando moldar o destino com ambas as mãos, para esse maravilhoso resultado! Tudo o que fizera fora firmemente deliberado. Não fora acidental. Todas
as coisas tinham vindo dela própria! E aquela enfermiça e ridícula criatura era o resultado de tudo aquilo. Aquela retirada era a imutável conclusão do seu destino.
Mas seria mesmo o fim, aquilo? Teria ela sido derrotada? Inconcientemente Lucy pôs a cabeça naquela sua costumeira atitude de escuta, procurando ouvir o barulho
que as rodas faziam. Aquelas rodas eram as mesmas que a haviam levado em sentido contrário, e ela era a mesma mulher! Como era diferente, entretanto, o que repetiam
aquelas rodas ao rolar - "sempre avante" diziam elas, "sempre avante, sempre avante", incitando-a a avançar sempre, sempre!
Endireitando-se no assento Lucy baixou a janela e deixou o ar entrar batendo-lhe em cheio no rosto. Agora sentia-se melhor. Aquele ar puro e livre era bem melhor
do que o ar confinado que respirara no claustro. Agora ela poderia fazer alguma coisa.
Não. Não fora derrotada. Revoltou-se a esse pensamento. O passado passara e devia ser esquecido. Tinha o futuro. Sempre havia o futuro. Sua cabeça estava muito confusa
e o problema agora era muito desconcertante. No momento ela se sentia estúpida, sim! estúpida e inocente. Agora não podia pensar, mais tarde, porém, conseguiria
resolver tudo.
Suas forças iam voltando. Instintivamente, sentiu que alguma coisa vinha ao seu encontro. Era uma convicção, um alegre pressentimento. Esqueceu a cabeça que lhe
doía, o corpo exausto, todos os seus percalços. Esqueceu tudo, encheu-se de uma singular alegria.
Tournai... Blaudain... Baisieux... Lille... passaram sucessivamente. Encontrou-se em Calais passando pela curiosa inspeção da Alfândega. Tomou o vapor que se achava
atracado no cais. Olhando o mar cinzento e o movimento das nuvens, Lucy adivinhou que a travessia seria rude. Era extraordinário que esse pensamento, que dantes
a encheria de medo, nesse momento não lhe desse apreensões. Sua fibra enrijecera desde aqueles dias em que ela desanimara ante um mar encapelado. Agora, sabia que
ia ficar doente. Mas era inevitável e ela o aceitava.
Quando o vapor largou do cais, Lucy não desceu. Permaneceu encostada na amurada, segurando-se a cada balanço do barco. Foi uma travessia terrível! Parecia um símbolo
de sua vida aquela travessia! Ela e o barco eram
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semelhantes. Cambaleando a cada golpe, mas voltando a erguer-se, impelidos por aquela força interior que os movia a ambos e avançando sempre através daquelas ondas
selvagens. "Sempre avante!" Uma poeira de água molhava-lhe as faces, uma vaga ao quebrar-se varreu o deck e salpicou-lhe um pouco os pés. Sentiu-se doente; não eram
náuseas o que sentia: era como
irna fraqueza mortal.
Agarrava-se fortemente ao parapeito, mantendo-se rígida enquanto a grande massa de água rolava e corria lá em baixo. Seu chapéu estava derrubado, seu vestido enfunado
como uma vela, tinha o rosto roxo de frio e os dentes cerrados.
Uma camareira passou rápida, voltando o rosto para evitar a rajada. Ao vê-la estacou. Seus olhos demoraram-se (sobre ela.
- Vamos descer; venha para baixo, disse ela e acrescentou : - Vamos, Madame.
Madame - estranha criatura era aquela para merecer semelhante título - voltou para a camareira a cabeça desgrenhada.
- Creio que estarei melhor aqui, respondeu ofuscada.
- Mas a senhora parece doente. Não quer tomar alguma coisa?
E, sem esperar resposta, desceu e voltou trazendo um copinho de bebida.
Sem largar o parapeito, Lucy tomou-a depressa, agradeceu à camareira e pagou-a, procurando em sua bolsa, com dificuldade, o dinheiro estrangeiro.
O licor aqueceu-a por dentro. Estava transida de frio. O vento cortante penetrava suas roupas inadequadas fazendo-a tremer. Seus dentes se entrechocavam. Sentiu
uma pontada aguda no peito.
Conseguiu, porém, dominar seu mal-estar. Não se deixaria vencer. Amparou-se firmemente à amurada, deixando o vento levar o enjoo que a possuíra até finalmente cessar.
Como o vapor, vencera galhardamente a travessia. Haviam dito que ela não suportaria a jornada e ela a suportara! Estava na Inglaterra... em casa. Depois da tortura
daqueles mares do Canal, a tranquilidade do porto de Dover era realmente a paz.
Ao descer do navio oscilante, uma fraca reação agitoulhe o corpo. A agitação daquela sanguínea e inexaurível coragem. Tinha a sua força!
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Para ir tomar o trem, não tinha que andar muito, mas parecia-lhe que suas pernas não lhe pertenciam. Sentia uma dor esquisita nos olhos e no peito.
- Não tem nada a declarar?
Nada... nada a não ser sua força! Onde ficava a plataforma? Tinha que seguir a multidão. Nunca poderia tomar aquele trem! Sem saber como, entretanto, tomou-o.
Finalmente achou-se em um compartimento, apesar de haver escolhido, na sua perturbação, um carro de fumantes cheio de homens que riam e falavam alto. Não fazia mal.
Agora ela não mudaria de compartimento. Não valia a pena. Estava quase no fim da longa jornada.
Agora sentia calor. Muito calor. Suas mãos e sua testa ardiam, apesar de seus pés estarem ainda gelados. Sentia o rosto em fogo. Subrepticiamente encostou a face
contra o vidro da janela.
Aproximava-se de Londres. Já devia estar perto, e Peter iria encontrá-la na estação. Recordou as palavras que fizera telegrafar. Ela mesma as escolhera: "Chegarei
sete e trinta estação Victoria Mamãe". Um leve sorriso assomou-lhe aos lábios. Apesar da carta que devia ter recebido, Peter compreenderia e veria que ela não havia
sido derrotada. Sim! seu filho sabia que ela não admitia fracasso. Estava apenas abatida e derreada. Era a sombra de si mesma. Não fora. porém, derrotada. E voltava
para ele. Ternas recordações acudiram-lhe ao espírito. Aquele sorriso familiar em seu rosto, quando ele dizia em Doune:
- Você é ainda uma mulherzinha bem bonita, sabe, mamãe ?
De braços dados passeavam pela praia e iam de noite ao teatrinho onde se sentavam juntos, no escuro, enquanto Vai Pinkerton cantava para eles:
"DaÀsy, Daisy... eu estou doido, De amor por ti,"
Talvez ela tivesse sido demasiado severa, não querendo ceder ao desejo de Peter... Obstinada, batera com a cabeça contra a dura parede do inevitável. Agora, no entanto,
aceitaria o inelutável, aceitaria Rose, aceitaria tudo... agora.
O comboio silvou e com um ruído de freios parou na estação. Estava em casa... ou perto de casa... enfim!
"Deixou o compartimento esvaziar-se antes de descer. Depois, na plataforma, ficou à espera. Seus olhos tinham
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uma luz brilhante e febril. Sentiu o coração pulsar-lhe dolorosamente. Seria seu coração ou aquela pontada do lado? Agora a multidão rareara e Lucy podia ver melhor
naquela confusão. Mas, apesar de olhar para todos os lados, não conseguiu ver Peter. Talvez o trem tivesse chegado adiantado. Talvez Peter estivesse um pouco atrasado.
Não tinha medo algum de que ele não viesse. Podia esperar... só alguns momentos... até que ele chegasse. Entrementes ela andaria para cima e para baixo. Era melhor.
E assim, vagarosamente, com passos incertos, pôs-se a andar para um lado e para outro... uma velha e pobre mulher metida naquelas roupas grotescas, andando para
cima e para baixo na plataforma da estação.. . esperando.
Caminhou assim por essa plataforma durante uma hora. ELA Poderia ir sozinha para a casa do filho, mas uma espécie de fraqueza a retinha ali. Estava entontecida,
repentinamente despojada do último vestígio de sua força.
Sem dinheiro inglês na bolsa, inconciente da passagem do tempo, sem forças para arrancar-se àquele movimento que a levava de um lado para outro, como um pêndulo,
tendo sempre fé em que o filho chegaria, ela esperou.
Ele, porém, não podia vir. Estava longe. A carta da Superiora seguia-o agora através da Bretanha, onde fora passar as férias com Rose. E o telegrama, aquele telegrama
que ela própria compusera, fora aberto pelo seu colega de consultório, que nada percebeu da sua significação e que estava, além disso, assoberbado pelo trabalho
dobrado e que pensara: "Ela irá ter à sua casa". Dera um recado à criada que tomava conta daquela casa vazia. Esta esperava vagamente que aparecesse alguém. E era
tudo.
Fora ela quem criara tal situação. A culpa era inteiramente sua. Devia ter ficado em Sentiens até se tornar mais forte, até obter alguma resposta do filho, até que
tudo se arranjasse para o seu regresso. Mas isso não era dela! Por isso viera e estava ali, esperando. "Sempre avante", era o que diziam as rodas. Mas realmente
era impossível às suas pernas levarem-na mais além. Aquelas pernas não lhe pertenciam. Vacilavam e dobravam-se sob a leve e etérea substância do seu corpo. Seu corpo
agora estava aéreo e
poderia flutuar si não fosse aquela cruel pontada .em seu peito, que se tornava uma cadeia... cada respiração forjava um novo elo que pesava e a acorrentava à realidade.
Precisava fazer alguma coisa. Não poderia ficar ali para sempre.
Vagamente, percebeu um policial que estacionava perto de um pilar e que a observava. Estava ali a muito tempo e olhava-a com uma suspeita curiosa e concentrada.
De súbito, sentiu-se pior, inexprimivelmente fraca e entontecida. Pensou em seus desfalecimentos. Ia ser acometida por uma daquelas fraquezas que já tivera no claustro.
Não seria nada; mas precisava fazer alguma coisa. Precisava de auxílio. Aproximou-se do policial, abriu a boca para falar, gaguejou, lutou com todas as suas forças
para pronunciar as palavras. Estaria falando? Não sabia. Aquele rosto redondo sobre os brilhantes botões da farda flutuava ante seus olhos. Que pensaria ele? Iria
sentir em seu álito o álcool que a camareira lhe dera a beber? Iria pensar que ela... Lucy Moore... Então, de repente, resolveu a dificuldade, para ele e para si
própria, caindo desmaiada a seus pés.
Imediatamente acorreu uma verdadeira multidão, como que por obra de mágica. Multidão, sem dúvida, simpatizante, que judiciosamente constatou que ela desfalecera
e aconselhou que lhe dessem ar. Contudo, era extraordinário que ela não tornasse do seu desmaio.
Veio então uma ambulância, uma branca ambulância motorizada, que entrou na sombria estação como si fosse um fantasma.
Lucy foi deitada nessa ambulância jazendo de costas como uma figura tumular. Seus olhos estavam entreabertos e procuravam compreender. Através de um nevoeiro, via
dois vultos inclinados sobre ela, vestidos de longos aventais brancos.
Tac... tac... tac... Alguma coisa em seus ouvidos... alguma coisa dolorosa em seu peito... e um barulho de rodas... de motor! Desistiu de pensar e fechou os olhos.
De seus lábios vinha uma respiração rouca e frequente.
- A respiração dela. está exquisita, não está ? disse
uma voz.
- O que me admira é ver essas velhas saírem assim, completamente sós, respondeu outra.
- Está aí o que acontece! tornou a primeira.
Já no hospital, Lucy continuava meio inconciente, ainda como uma figura tumular, agora jazendo sobre uma padiola. Tudo acontecera tão repentinamente. Quis acenar
com a mão em protesto, mas não tinha força na mão. Assim foi transportada através de corredores intermináveis cheios de luzes e de rostos.
E aquela dor continuava. Parecia uma coisa séria. Agora estava pior. Seria dor de dentes? Sim, parecia com a dor da extração daqueles dentes... ela se lembrava:
"Vamos tirar quatro, para começar" e sua voz deliberada: "Quanto é, sem anestésico?" E encostara-se calmamente na cadeira vermelha... Sentia aquelas dores, novamente.
Depois, viu o grande e sorridente rosto do dentista inclinar-se para ela. Mas era outro rosto, mais jovem, que lhe sorria como encorajando-a. Depois, sentiu a aguda
picada de uma agulha no braço. Procurou sorrir também, quis falar, dizer quem era, falar sobre seu filho.
E dor.. . mais dor. Finalmente, nuvens escuras e grandes vagas cinzentas rolavam sobre ela, precipitando-a em uma abençoada inconciência.
- Fulminante, disse o médico interno aos pés da cama, e não há reação.
- Quando nós a apanhamos, explicou a Irmã, espantou-nos ver sua magreza.
- É melhor prevenir os parentes.
- Não há indicação alguma sobre ela. Nenhuma marca nas roupas, nem bolsa, nem cartas, apenas algum dinheiro belga no bolso do vestido. E que vestido!
O médico voltou a contemplar a doente.
- Então é preciso prevenir a polícia.
- Está bem.
- E ponha as cortinas! aconselhou o médico à Irmã antes de sair. Uma pneumonia com essa constituição!
E, assim, foram postas cortinas em torno do leito número 7. Eram aquelas cortinas brancas que se agitavam e dansavam ante os olhos enevoados de Lucy. Pareciam com
as cortinas brancas que havia nas janelas da sua casa em Ardfillan.
Mãos abriam aquelas cortinas e rostos espiavam por entre elas. O rosto de Peter, o rostinho sorridente, suado e vermelho, com que ele voltava da escola.
E agora ela via Arâmore Point. Aqueles pique-niques perto do lago onde se pescava. E a praia. Recuou mais ainda e viu-se nessa praia, sentada, aleitando seu filhinho.
O sol em seu regaço, o rostinho de bebé de Peter sorrindo para ela brilhava; sentia o cheiro da maresia. E olhando para ela, com um pingo de leite a escorrer-lhe
pelo canto da boca.
Depois, voltou-lhe um pouco a conciência, enquanto ouviu um fraco borbulhar ao lado da sua cama e sentiu que lhe davam alguma coisa a beber. Como tinha sede! Seus
lábios partidos queimavam, sua língua estava seca e sedenta. Procurou enxugar os lábios; suas mãos, porém, pareciam ter atingido Uma enorme dimensão e pesavam como
chumbo. E além disso, sua respiração estava tão embaraçada, tão difícil!
Então, novamente recuou pelos anos. Outros rostos apareceram por entre aquelas cortinas. O rosto de Frank, muito calmo e com aquele seu sorriso de mofa; o de Anna,
insultante, escarnecedor, injuriando-a; o de Netta, simples e franco ; o rosto de Dave Bo-wie, simpático e risonho; faces da sua infância, também todas imprecisas,
flutuantes, formando agora um anel que girava em torno dela entontecendo-a. Depois houve outro período de conciência. Onde estava? Sentia-se tão fraca, tão cheia
de dor e de angústia. Estaria... estaria morrendo? Não. Não podia ser! Não podia acabar assim. Tinha apenas quarenta e cinco anos. Não fora vencida. Sempre avante!
Novamente caiu no sonho delirante. Não via rostos agora; apenas uma luz, uma luz ofuscante que a banhava, que era brilhante demais para seus fracos olhos. A luz
brilhava, brilhava como o halo de um Cristo. Não, não era isso. O halo de Cristo nunca fora tão brilhante. Era a luz do sol, a ardente luz do sol caindo sobre o mar cintilante. E uma poeira bailava no ar como um enxame de borboletas irisadas. Ela recuara, recuara até o princípio. Estava agora na janela, olhando para fora,
esperando, levantando a mão para abrigar os olhos da luz.
"Essa luz inundou todo o seu ser com uma final e ofuscante intensidade.
Depois subitamente apagou-se.
E sobre ela caiu a sombra eterna.
Faleceu na tarde seguinte àquela em que dera entrada no hospital. Não pôde resistir. Era inevitável.
Levaram-na para o necrotério. Ali, depositaram-na sobre aquela mesa de mármore que fora uma visão apavorante em seus pesadelos.
A noite estava linda e tranquila, cheia de quietude outonal que ela tanto amara.
E, na silenciosa cripta, um nevoeiro cinzento penetrou, vindo do rio e abateu-se misteriosamente sobre seu corpo gasto, despido, despojado de tudo, sobre aquele mármore.
Imobilizada na máscara da morte, aquela face estava vazia de expressão. Os olhos cerrados, os lábios pálidos e ligeiramente entreabertos, as mãos translúcidas
cruzavam-se no peito numa imobilidade final.
E a névoa, elevando-se mais espessa da água e da terra, envolveu-a...
A. J. Cronin
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