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Poesia & Contos Infantis

 

 

 


TRÊS SEMANAS PARA ESQUECER / Irwin Shaw
TRÊS SEMANAS PARA ESQUECER / Irwin Shaw

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

TRÊS SEMANAS PARA ESQUECER

 

Constance estava sentada impacientemente na poltrona de sua cabina de primeira classe, tomando de vez em quando um gole do champanhe que Mark lhe mandara. Mark tinha sido chamado para fora da cidade e não pudera ir despedir-se, mas mandara o champanhe. Não gostava da bebida, mas sem sa­ber o que fazer com ela, ia bebendo. O pai, sentado em frente do portaló, bebia também. Pela sua expressão, Constance de­duzia que ele também não gostava de champanhe. Ou talvez não gostasse daquela safra em particular. Ou ainda poderia não gostar por ter sido mandado por Mark. E quem sabe o champanhe não tivesse nada a ver e ele estivesse apenas abor­recido?

Constance tinha consciência da sua expressão mal-humorada e tentou mudá-la porque sabia que parecia mais moça, mais criança, com 16 ou 17 anos, quando estava mal-humorada. Tudo que fizesse com o rosto naquele momento lhe daria uma expressão mais embirrada ainda e seu maior desejo era que a sirene do navio apitasse e seu pai desembarcasse.

— Provavelmente você vai beber um bocado disto, quan­do estiver na França.

— Não pretendo ficar muito tempo na França — disse a moça. — Vou procurar um lugar tranqüilo.

Sua voz pareceu-lhe ter sons de infância, alta, vingativa e mimada. Tentou sorrir para o pai. As últimas semanas no apar­tamento, enquanto a briga continuava e a hostilidade quase aflorara à superfície, tinham sido penosas para ela e agora, nos últimos 10 minutos antes de o navio zarpar, desejava vol­tar, tanto quanto possível, a um relacionamento anterior, muito mais simples. Por isso sorriu, mas teve a impressão de que o sorriso era mecânico, frio, forçado. O pai voltou-se e olhou vagamente pelo portaló, para o cais encoberto. Chovia e so­prava ura vento frio e os homens que, nas docas, esperavam para soltar os cabos, tinham um triste aspecto.

— Vai ser uma noite de mar bravo — disse o pai. — Você trouxe Dramamine?

A hostilidade voltou por ele ter perguntado pelo Dramami­ne. Logo naquele momento!

— Não preciso de Dramamine — disse a moça, tomando um grande gole de champanhe.

O rótulo da garrafa era perfeito, como todos os presentes de Mark, mas o vinho era ácido e desagradável.

O pai voltou-se para Constance, sorrindo, e ela pensou amar­gamente: “É a última vez que ele vai querer me dominar!”

Lá estava ele de pé, forte, confiante, cheio de saúde, pare­cendo muito jovem, dando a impressão de se estar divertindo intimamente. Constance pensou: “Que diria você se eu saísse agora mesmo deste maravilhoso navio? O que diria você?”

— Tenho inveja de você — disse o pai. — Se alguém me tivesse mandado para a Europa quando eu tinha 20 anos...

“Vinte, 20”, pensava Constance. “Está sempre martelan­do nos 20!”

— Por favor, pai, vamos acabar com isto. Estou aqui e vou-me embora, está tudo certo, mas poupe-me esta história de inveja.

— Todas as vezes que eu por acaso lembro a você que está com 20 anos — disse o pai — você reage como se eu a in­sultasse.

Sorriu, satisfeito consigo mesmo, por compreender tão bem as coisas e não ser um desses pais cujos filhos lhes escapam irrevogavelmente para misteriosos e escuros caminhos.

— Não vamos discutir isto — disse Constance, abaixando a voz. Quando se lembrava, fazia questão de falar em voz bai­xa. Às vezes, ao telefone, parecia um homem ou uma mulher de 40 anos.

— Divirta-se bastante.— disse o pai. — Vá a todos os lu­gares alegres. E, se resolver ficar mais tempo, mande me di­zer. Talvez eu consiga passar lá algumas semanas com você.

— Dentro de três meses, a contar de hoje — falou Cons­tance com rispidez — estarei chegando a este cais.

— Como queira, minha querida.

Constance sabia que quando o pai dizia “minha querida” estava zombando dela. Não admitia que zombassem dela ali, na cabina feia e pequena, com um tempo horrível lá fora, o navio prestes a zarpar e vozes de pessoas que se despediam, rindo alto, na cabina ao lado. Teria chorado, se suas relações com o pai fossem melhores.

Tocou a sirene avisando que os visitantes deveriam sair. O pai aproximou-se e beijou-a, abraçando-a um instante. Cons­tance esforçou-se por ser educada, mas quando ele disse, muito sério, “Você vai ver... daqui a três meses vai agradecer-me por isso”, Constance empurrou-o, furiosa com sua impertur­bável segurança e ao mesmo tempo pesarosa porque eles, que tinham sido tão unidos, não mais poderiam ser amigos.

— Adeus — disse ela, com a voz embargada, desta vez sem se preocupar em abaixar o tom. — A sirene já tocou. Adeus. O pai pegou o chapéu, deu um tapinha no ombro da moça, hesitou um momento, parecendo pensativo, mas não pertur­bado, e saiu para o corredor, desaparecendo entre os outros visitantes que se dirigiam para as escadas e para o cais.

Quando teve certeza de que o pai já estava longe, Constan­ce foi para o tombadilho e lá ficou de pé, sozinha, na chuva fina e ao vento, observando os rebocadores que puxavam o navio, levando-o para a correnteza. Quando a embarcação co­meçou a descer o rio, afastando-se do cais, estremeceu sob o vento gelado e, aprovando a grandeza dos próprios sentimentos, pensou: “Estou dirigindo-me para um continente onde não conheço ninguém!”

Constance firmou-se na barra transversal do elevador quan­do este se aproximava da parada do meio da colina. Certificou-se de que os esquis estavam bem seguros quando foram che­gando à plataforma de neve endurecida onde os esquiadores que tinham descido somente até a metade da montanha esta­vam à espera para tomar os lugares vagos e voltar ao cume. Constance sempre se sentia um pouco insegura nestas ocasiões porque, se estivesse só, sentada de um lado da cadeirinha, a primeira pessoa da fila ocuparia o outro lugar e sempre havia um tranco mais forte que poderia fazê-la perder o equilíbrio. Viu que havia um homem à espera do lugar a seu lado e concentrou-se para conservar uma atitude graciosa quando se acomodasse a seu lado. Sentou-se suavemente e a cadeirinha passou sem problemas pela fila dos que estavam à espera.

Constance sentia que o homem a olhava, mas estava, no mo­mento, preocupada demais com o terreno a sua frente, para virar a cabeça.

— Ah! Conheço você! — falou o homem, quando come­çaram a subir com segurança, rumo ao alto, firmando-se pa­ra evitar os trancos da cadeirinha, os esquis batendo de vez em quando nos ferros. — Você é a jovem americana séria.

Constance olhou para ele pela primeira vez.

— E você — disse ela, porque todo mundo se fala, na mon­tanha — é o jovem inglês risonho.

— Certo pela metade — respondeu o homem, Tinha a pele bronzeada do esquiador e o rosto quase tão corado como o de uma moça. — Pelo menos, um terço da verdade.

Constance sabia que ele se chamava Pritchard porque ou­vira outras pessoas conversarem com ele no hotel. Lembrava-se de ter ouvido um dos professores de esqui dizer a respeito dele: “É atirado demais. Pensa que é melhor do que realmen­te é. Não tem a técnica necessária para tanta velocidade”.

Lançou um olhar ao rapaz e concluiu que ele, de fato, era atirado demais. Tinha o nariz comprido, destes que não fotografam bem, mas que ficam perfeitos especialmente num ros­to longo e fino. Vinte e cinco, 26 anos. Não mais que isso — pensava a moça, vendo o companheiro firmar-se na barra da cadeirinha, sem segurá-la com as mãos, tirar as luvas e pescar no bolso um maço de cigarros. Ofereceu um a Constance.

— Players — disse ele. — Espero que não me despreze por isto.

— Não, obrigada — respondeu Constance, certa de que se tentasse acender um cigarro cairia do elevador.

O rapaz inclinou-se um pouco e acendeu o cigarro, com as mãos em concha e entrecerrando os olhos, por causa da fu­maça. Tinha mãos longas e finas e as pessoas que têm mãos assim dão a impressão de serem nervosas e de se deixarem per­turbar com facilidade. Era alto e magro, suas calças de esquia­dor estavam bastante gastas. Usava suéter vermelho e um cachecol quadriculado. Tinha o ar de um gozador, mas de um gozador que ria de si mesmo. Movia-se com facilidade nos es­quis e via-se logo que era uma dessas pessoas que não têm medo de cair.

— Nunca vi você no bar — disse ele, jogando o fósforo so­bre a neve e calçando as luvas.

— Não bebo — respondeu a moça, o que não era exata­mente a verdade.

— Eles têm Coca-Cola no bar. A Suíça é um país pro­gressista!

— Não gosto de Coca-Cola.

— Antigamente, era a principal colônia inglesa — falou sor­rindo o rapaz. — A Suíça... Mas nós a perdemos, assim co­mo a Índia. Antes da guerra, nesta cidade, os ingleses cobriam os campos, como o edelweiss. Se você quisesse achar aqui um suíço, entre 1º de janeiro e 13 de março, tinha de caçá-lo, com o auxílio de um cão.

— Esteve aqui antes da guerra? — perguntou Constance, admirada.

— Com minha mãe. Quebrou a perna, uma vez.

— Ela está também aqui este ano?

— Não, está morta.

Preciso ter cuidado, pensou Constance, evitando olhar pa­ra o homem sentado a seu lado, de não perguntar às pessoas, na Europa, por seus parentes. Acontece que tantos deles morreram...

— Isto aqui costumava ser muito divertido — disse o ra­paz. — Os hotéis repletos, bailes todas as noites, todos se ves­tindo para jantar e cantando God Save The King no dia de Ano-Novo. Sabia que agora aqui era tão sossegado?

— Sabia — respondeu Constance. — Perguntei ao agente de viagens.

— Ah! E que foi que ele disse?

— Disse que todos aqui esquiavam com seriedade e iam dor­mir às 10 horas da noite.

O inglês olhou-a por um momento:

— Você não é uma esquiadora séria, é?

— Não. Certamente que não.

— Então é uma dessas delicadas?

— Delicada? — perguntou Constance, olhando espantada para ele. — Que quer dizer com isto?

— Você sabe... os anúncios. Escolas para crianças delica­das. Suíça para TB.

Constance deu uma risada.

— Pareço tuberculosa? — perguntou.

Ele a examinou com seriedade e a moça sentiu-se exuberan­te, nada austera e até um pouco gorda demais com as roupas justas.

— Não — disse ele. — Mas a gente nunca sabe ao certo. Já leu A Montanha Mágica?

— Já — respondeu Constance, orgulhosa por mostrar que não era inteiramente sem cultura, embora fosse americana e jovem, lembrando-se de que saltara as discussões filosóficas e chorara com a morte do primo. — Já li. Por quê?

— O sanatório descrito no romance não fica muito longe daqui — falou Pritchard. — Mostrarei a você, um dia, quan­do houver muita neve. Acha este lugar triste?

— Não — respondeu ela, admirada. — Por quê?

— Muita gente acha. A mistura. Lindas montanhas, gente cheia de saúde descendo pelas colinas, arriscando o pescoço e sentindo-se maravilhosamente bem, e gente com os pulmões em pandarecos, agarrando-se à vida e imaginando se algum dia sairão daqui vivos.

— Acho que nunca pensei nisso — falou Constance com franqueza.

— Era ainda pior logo depois da guerra. Toda aquela gen­te que não tinha comido direito, vivera escondida ou na pri­são e que passara tanto tempo assustada...

— Onde estão agora?

Pritchard encolheu os ombros.

— Mortos, deram baixa ou foram desmobilizados — fa­lou ele. — É verdade que as pessoas se recusam a morrer, lá na América?

— Exato — disse a moça. — Seria admitir a derrota...

Pritchard sorriu e deu um tapinha na mão enluvada de Cons­tance, agarrada com força no ferro da cadeirinha.

— Você não deve ficar zangada por invejarmos vocês — disse ele. — É o nosso único meio de demonstrar gratidão.

Delicadamente, desprendeu a mão dela da barra.

— E você não deve ficar tão tensa, quando esquiar. Afrouxe os dedos. Não deve nem ao menos franzir a testa, antes de voltar ao hotel para tomar chá. A regra é: solta, desesperada e extraordinariamente confiante.

— É assim que você é?

— Principalmente desesperado — respondeu o rapaz.

— Então o que é que vai fazer nesta encosta própria para principiantes? Por que não tomou o teleférico para o alto?

— Torci o tornozelo ontem, de modo que hoje posso ape­nas fazer curvas majestosas e vagarosas... Amanhã, entretanto, atacarei novamente aquele lá... — falou, mostrando com um gesto o pico, meio oculto pela neblina. O sol, acima dele, era uma bola pálida, fazendo a montanha parecer proibida e pe­rigosa. — Vai também? — perguntou, olhando para ela com ar inquisitivo.

— Ainda não fui lá — falou Constance, olhando com res­peito a montanha. — Acho que por enquanto é demais para mim.

— Você deve fazer sempre o que é um pouco demais para você — disse ele. — Com os esquis. Do contrário, onde esta­ria a graça?

Ficaram algum tempo em silêncio, subindo vagarosamente a colina, sentindo o vento cortar-lhes o rosto, observando a luz fria e nebulosa da montanha. A 20 metros de distância, uma moça que vestia uma capa amarela subia diligentemen­te, como uma boneca brilhante e paciente.

— Paris? — perguntou Pritchard.

— Como? — falou Constance, sentindo que ele pulava de­pressa demais de um assunto para outro e achando-se meio obtusa.

— Você disse que veio de Paris. Será que você é dessas pes­soas agradáveis que vêm para cá nos dar o dinheiro de seu governo?

— Não — respondeu Constance. — Eu vim apenas... bem... de férias. Moro em Nova York. E a comida francesa me arrasa.

Pritchard examinou-a com ar crítico.

— Você parece tudo, menos arrasada. Seu aspecto é o des­sas garotas que anunciam sabonetes e cerveja nas revistas ame­ricanas.

Acrescentou depressa:

— Se isto for considerado insulto em seu país, retiro o que disse.

— E os homens, em Paris... — continuou Constance.

— Oh! Existem homens em Paris?

— Até nos museus. E seguem a gente. Com seus chapéus de feltro. Olhando para nós como se nos avaliassem pelo pe­so. Mesmo diante das imagens religiosas.

— Uma garota que conheci, uma garota inglesa — falou Pritchard — foi seguida desde Prestwick, na Escócia, até o fim da Cornualha, por um artilheiro americano, em 1944. Du­rante três meses. Só que não houve quadros religiosos. Pelo menos que eu saiba.

— Sabe o que eu quero dizer. Há uma atmosfera de má edu­cação — disse Constance com superioridade, percebendo que o rapaz estava caçoando dela, com aquela sua cara séria de inglês, mas sem saber se deveria ou não ofender-se.

— Você foi educada em colégio de freiras?

— Não.

— É espantoso como a maioria das moças americanas nos dá a impressão de terem sido educadas em colégios de freiras. No fim, a gente descobre que elas bebem gim e riem às garga­lhadas nos bares. Que é que você faz à noite?

— Onde? Em casa?

— Não. Sei o que as pessoas fazem à noite, na América. Assistem à televisão. Pergunto o que faz aqui.

— Eu... eu lavo o cabelo — disse a moça, na defensiva. — E escrevo cartas.

— Quanto tempo vai ficar aqui?

— Seis semanas.

— Seis semanas — repetiu ele, passando os bastões para a mão direita, pois já se aproximavam do alto. — Seis sema­nas de cabelos brilhantes e de correspondência atualizada.

— Fiz uma promessa... — disse ela, achando melhor que ele ficasse sabendo, para o caso de ter alguma segunda inten­ção. — Prometi a uma pessoa escrever uma carta por dia en­quanto estivesse fora.

Pritchard abanou a cabeça, como se a compreendesse.

— Esses americanos... — falou, quando chegavam ao alto e escorregavam da cadeira, na superfície plana. — Os ameri­canos sempre me deixam intrigado.

Acenou para ela com os bastões e desceu rapidamente a co­lina, o suéter vermelho tornando-se um veloz e alegre ponto contra o branco-azulado da neve.

O sol escorregava entre os picos, com uma ficha de ouro por uma gigantesca fenda e a luz, cheia de nuanças perigosas tornava impossível ver os acidentes do terreno. Constance des­ceu pela última vez, caindo duas vezes e com ligeiro temor su­persticioso porque era sempre quando diziam “esta é a última vez” que as pessoas acabavam se machucando.

Correu e parou junto a um monte de neve entre duas casas de fazenda, nos arredores da cidade. Tirou os esquis com uma sensação de alívio e de ter realizado um grande feito. Os dedos dos pés e das mãos estavam gelados, mas sentia calor no corpo todo, o rosto estava muito corado e respirava o ar frio e puro da montanha com a sensação de quem come uma coisa deli­ciosa. Sentia-se forte e bem disposta e sorria para os outros es­quiadores que paravam barulhentamente à sua volta. Estava limpando da roupa a neve das duas últimas quedas, para dar a impressão de boa esquiadora quando andasse pela cidade, quando Pritchard desceu pela última escarpa e parou perto dela.

— Vi você — disse ele — mas juro que não conto a ninguém.

Constance deu uma última pancadinha nos cristais gelados de sua parka. *

— Caí só quatro vezes esta tarde — disse ela.

— Lá em cima — falou Pritchard, mostrando o cume da montanha — você vai cair o dia todo.

— Eu não disse que vou lá — disse Constance, juntando os esquis e começando a colocá-los nos ombros. Pritchard aproximou-se e tomou os esquis.

— Posso carregar meus esquis — disse a moça.

— Não seja inflexível. As moças americanas sempre são in­flexíveis quando se trata de coisas sem importância.

Fez um grande V com os dois pares de esquis, colocando-os nos ombros, e os dois começaram a andar, as botas ran­gendo sobre a neve dura da estrada. As luzes da cidade acenderam-se, pálidas por causa da neblina, na tarde que de­clinava. O carteiro passou por eles, empurrando seu trenó, se­guido por seu grande cão. Seis crianças, com suas roupas de brincar na neve, com os trenós amarrados uns nos outros, des­ceram correndo por uma rua lateral em declive e caíram em frente deles, dando grandes risadas. Um grande cavalo, com a barriga protegida contra o gelo, puxava vagarosamente três grandes toras de madeira, na direção da estação. Velhos com suas parkas de um azul-claro passavam dizendo “grüssi” e a empregada de uma das casas do alto da colina descia rapidamente em seu trenó, com um latão de leite entre os joelhos, enquanto ia fazendo curvas fechadas. No rinque de patina­ção, tocavam uma valsa francesa e a música misturava-se ao riso das crianças, às campainhas dos freios dos cavalos a dis­tância e ao bater do sino da estação, lembrando velhos tem­pos, anunciando a partida de um trem.

“Partida”... dizia o sino da estação, sobrepujando os ou­tros sons.

Ouviu-se um estrondo que ecoou pelos montes distantes. Constance ficou olhando, intrigada.

— O que é isto? — perguntou.

— Morteiros — respondeu Pritchard. — Nevou ontem à noi­te e as patrulhas estiveram trabalhando o dia todo, atirando no que ficou fora dos morros e telhados. Por causa das avalanches.

Ouviu-se outro estouro, um som baixo e prolongado e os dois pararam, escutando.

— Como nos velhos tempos — disse Pritchard, quando re­começaram a caminhar. — Como na velha e boa guerra.

— Oh! — exclamou Constance, sentindo-se tola, por nun­ca ter ouvido o ruído de tiros. — A guerra! Você esteve nela?

— Um pouco — disse o rapaz, sorrindo. — Estive em uma guerrazinha.

— Fazendo o quê?

— Atirador noturno —- respondeu Pritchard, levantando um pouco os esquis que levava sobre os ombros. — Voei num avião preto e feio, num céu feio e escuro. Esta é a qualidade mais maravilhosa dos suíços... a única coisa em que atiram é na neve.

— Atirador noturno — disse Constance, de modo vago. Ti­nha apenas 12 anos quando a guerra terminou e estava tudo misturado e remoto em sua memória. Era a mesma coisa que ouvir falar sobre a turma que se formou duas gerações antes de nós, no colégio. As pessoas se referem constantemente a nomes, datas e acontecimentos, esperando que você os identi­fique, mas você não consegue lembrar-se direito. Atirador no­turno. Que seria aquilo?

— Voávamos em incursões sobre a França — disse Pritchard. — Voávamos muito baixo para evitar o radar e a arti­lharia antiaérea e circulávamos em volta dos campos de pou­so, fazendo misérias, esperando os aviões que desciam, já com o trem de aterrissagem abaixado.

— Ah! Agora me lembro. . . — disse Constance com firme­za. — Você era um dos que comiam cenoura para ter visão noturna.

Pritchard riu.

— Para fins de publicidade, comíamos cenoura. Na reali­dade, usávamos o radar. Localizávamos o avião na tela e ati­rávamos quando o tínhamos na mira. Dêem-me uma tela de radar e uma cenoura por dia.

— Derrubou muitos aviões? — perguntou Constance, ima­ginando se a pergunta seria mórbida.

— Grüssi — falou Pritchard com o dono de uma pensão que estava de pé em sua porta, olhando o céu, para ver se nevaria aquela noite. — Vinte centímetros pela manhã. Em pó.

— Acha? — perguntou o homem, olhando para o céu com ar de dúvida.

— Garanto — disse Pritchard.

— O senhor é muito gentil — disse o homem, sorrindo. — Deveria vir à Suíça com mais freqüência.

Entrou, fechando a porta.

— Dois — disse Pritchard a Constance. — Derrubamos um par deles. Quer que lhe conte como fui corajoso?

— Você parece tão jovem! — disse Constance.

— Tenho 30 anos. Que idade é preciso ter para derrubar um avião? Especialmente pobres aviões de transporte, com pouco combustível, atravancados de funcionários de baixo es­calão da retaguarda, limpando seus óculos e achando uma des­graça o avião ter sido inventado.

O som dos morteiros chegou de novo até eles e Constance desejou que aquilo parasse.

— Você não parece ter 30 anos — disse ela a Pritchard.

— Levo uma vida simples e saudável. Pronto! — disse ele, quando chegavam em frente de um dos menores hotéis, colo­cando os esquis no porta-esquis e jogando os bastões na neve, ao lado deles. — Vamos entrar e tomar uma simples e saudá­vel xícara de chá.

— Bem... — falou Constance. — Eu, francamente...

— Escreva esta noite uma carta mais curta e mais intensa — disse o rapaz, segurando-a delicadamente pelo cotovelo, qua­se sem a tocar, guiando-a para a porta. — E dê brilho aos seus cabelos outra noite.

Dirigiram-se ao bar e sentaram-se a uma pesada mesa de madeira lindamente esculpida. Não havia outros esquiadores na sala, apenas alguns homens da vila com suas roupas de fel­tro, sentados sob as galhadas presas na parede, jogando car­tas tranqüilamente e bebendo café em pequenos copos.

— Como lhe disse — falou Pritchard, tirando o cachecol —, o país está dominado pelos suíços.

O garçom aproximou-se e Pritchard fez o pedido em alemão.

— Que foi que você pediu? — perguntou Constance, sa­bendo que não poderia ter sido apenas chá.

— Chá com limão e rum.

— Acha que devo beber rum? — perguntou a moça, in­decisa.

— Todo mundo, no mundo inteiro, deveria tomar rum. Evi­ta que a pessoa se suicide pela madrugada.

— Você fala alemão, não fala?

— Falo todas as línguas mortas da Europa. Alemão, fran­cês, italiano e inglês. Fui cuidadosamente educado para viver num mundo de moedas permutáveis.

Recostou-se, esfregando as juntas dos dedos de uma das mãos na palma da outra, para aquecê-los. Encostara a cabeça na parede de madeira e sorria para ela, que ainda não sabia se estava ou não à vontade.

— Quero ouvir você dizer Hi-Ho, Silver.

— O quê? — perguntou Constance, espantada.

— Não é assim que vocês dizem, na América? Tenho que aperfeiçoar minha pronúncia para a próxima invasão.

— Ninguém fala mais isso — respondeu a moça, pensan­do: “puxa, como ele é nervoso! Gostaria de saber o que lhe aconteceu para ficar assim”... E acrescentou: — Não se diz mais isto. Já passou da moda.

— As coisas saem da moda tão depressa em sua terra... — disse Pritchard, com ar pesaroso. — Veja os suíços... — e com um gesto indicou os homens que estavam jogando. — Este jogo está na moda desde 1910. Viver entre suíços é como morar à beira de um lago. Muita gente não suporta isso, naturalmen­te. Lembra-se da piada sobre os suíços numa fita sobre Viena?

— Não — respondeu Constance. — Que fita?

— Um dos sujeitos diz: “Os suíços não fazem uma guerra há 150 anos. E o que foi que lucraram com isso? Inventaram o relógio de cuco?”

Pritchard deu de ombros e observou:

— Não sei. Talvez seja melhor viver no país que inventou o relógio de cuco do que no que inventou o radar. O tempo não é coisa muito séria para um relógio de cuco. Apenas um brinquedinho que produz um canto artificial e tolo de meia em meia hora. Para as pessoas que inventaram o radar, o tempo é ameaçador, porque é a diferença entre a altitude de um avião e a locação da bateria que vai derrubá-lo. É uma invenção de um povo desconfiado e que está sempre pensando em embos­cadas. Aí está o seu chá. Como vê, estou esforçando-me se­riamente para diverti-la porque há cinco dias que a observo e você me dá a impressão de uma moça que chora sozinha an­tes de dormir, diversas vezes por semana.

— Quanto disto aqui ponho no meu chá? — perguntou Constance, perturbada com aquela enxurrada de palavras, com o copo de rum na mão e evitando olhar para Pritchard.

— Metade — disse ele. — É preciso guardar o resto para uma segunda xícara.

— Tem um cheiro bom — disse a moça, aspirando a fragrância que evolava da xícara depois que adicionara o rum e espremera o limão sobre a mistura.

— Talvez — disse Pritchard — fosse melhor eu só falar so­bre assuntos impessoais.

— Talvez fosse melhor — concordou Constance.

— O camarada que recebe todas estas cartas... por que ele não está aqui?

Constance hesitou por um momento.

— Ele trabalha.

— Oh! Este vício!

Pritchard tomou um pouco de chá, depois colocou a xícara sobre a mesa e esfregou o lenço no nariz.

— O chá quente também lhe dá isso?

— Sim.

— Você vai casar com ele?

— Você disse assuntos impessoais.

— Então o casamento já está acertado.

— Eu não disse isto.

— Não. Mas teria respondido não, se não estivesse.

Constance riu.

— Muito bem. Está acertado, ou quase.

— Quando?

— Quando os três meses tiverem terminado — disse a mo­ça, sem refletir.

— É uma lei de Nova York ter de esperar três meses? Ou um tabu particular da família?

Constance hesitou. Compreendeu de repente que há muito tempo não conversava, realmente, com pessoa alguma. Pedi­ra refeições, perguntara por itinerários nas estradas de ferro e dissera bom-dia aos vendedores, nas lojas, mas tudo mais tinha sido solidão e silêncio, não menos penoso por ter sido imposto por ela própria. Por que não, perguntou-se, entre egoísta e agradecida, por que não falar no assunto ao menos uma vez?

— É meu pai... — falou, fazendo girar a xícara. — Idéia dele. Ele é contra. Disse que eu esperasse, para ver... Acha que esquecerei Mark depois de três meses na Europa.

— América — disse Pritchard. — O único lugar do mundo onde as pessoas podem se dar ao luxo de agir de modo anti­quado. Que há com Mark? É muito feio?

— É lindo — falou Constance. — Melancólico e lindo.

Pritchard concordou, como se estivesse anotando tudo.

— Não tem dinheiro, então?

— Tem bastante. Pelo menos, tem um bom emprego.

— Que há com ele, afinal?

— Meu pai acha que ele é velho demais para mim. Tem 40 anos.

— Um grave defeito — falou Pritchard. — É por isso que ele é melancólico?

Constance riu.

— Não. Ele já nasceu assim. É um homem que pensa muito.

— Você só gosta de homens de 40 anos?

— Só gosto de Mark — respondeu Constance. — Se bem que na verdade nunca me dei bem com os rapazes que conhe­ço. Eles... eles são cruéis. Fazem com que eu me sinta tímida e com raiva de mim mesma. Quando saio com um deles, vol­to para casa sentindo-me, de certa forma, desonesta.

— Desonesta? — perguntou Pritchard, parecendo es­pantado.

— Sim. Sinto que não procedi como eu mesma, mas como procederiam as outras moças que saem com eles. Coquete, cí­nica, amorosa. Parece-lhe muito complicado?

— Não.

— Detesto a opinião que os outros têm de mim — disse Constance, quase esquecendo-se do rapaz sentado à sua fren­te e falando amargamente, para si mesma. — Detesto ser usa­da apenas para os dias de comemorar qualquer coisa, quando alguém volta da universidade ou do exército. Alguém para ser­vir de companhia nas festas ou para apertar quando se volta para casa, de táxi. E odeio a opinião que meu pai faz de mim...

Era a primeira vez que Constance desabafava assim. Con­tinuou a falar:

— Eu sempre pensei que fôssemos bons amigos, que ele me julgasse uma pessoa adulta e responsável. E então, quando disse a ele que queria me casar com Mark, vi que era tudo pu­ro engano. O que ele realmente pensava de mim é que eu era uma criança. E uma criança é uma espécie e idiota. Minha mãe deixou-o quando eu tinha 10 anos e, desde então, fomos muito unidos, mas não como eu pensava que éramos. Ele es­tava apenas brincando comigo. Adulando-me. Quando sur­giu o primeiro problema sério, tudo ruiu. Ele não aceitava, absolutamente, a opinião que eu tinha de mim. Foi por isso que acabei aceitando a história dos três meses. Para provar a ele, de uma vez por todas...

De repente, Constance olhou para Pritchard, desconfiada.

— Você está se divertindo à minha custa?

— Claro que não — disse o rapaz. — Estou pensando nas pessoas que conheci e que têm opiniões diferentes de mim, di­ferentes da que eu próprio tenho. É uma idéia assustadora.

Olhava para ela, examinando-a, e era difícil a Constance saber até que ponto ele falava a sério.

— E qual é a opinião que você tem a seu respeito?

— Não está ainda completamente formada — falou a mo­ça, vagarosamente. — Sei o que quero ser. Quero ser respon­sável, não ser criança e não ser cruel. Quero seguir uma direção séria... — Encolheu os ombros, muito sem jeito. — Bastante vago, não?

— Vago, mas admirável — disse Pritchard.

— Que nada, ainda não sou admirável — disse ela. — Tal­vez dentro de 10 anos. Ainda não estou inteiramente formada.

Riu nervosamente.

— Não é bom? Você vai embora dentro de poucos dias e eu nunca mais tornarei a vê-lo, por isso posso falar assim com você.

— Sim — disse ele. — É muito bom.

— Há muito tempo que não converso com pessoa alguma. Talvez seja efeito do rum.

Pritchard sorriu.

— Pronta para uma segunda xícara?

— Sim, obrigada.

Ficou observando-o enquanto ele a servia e admirou-se ao notar que as mãos dele tremiam. Deve ser um desses jovens, pensou ela, que voltam da guerra e bebem uma garrafa de uís­que por dia.

— Então — disse ele — amanhã subiremos ao alto da montanha.

Constance ficou agradecida por ele ter compreendido que ela não desejava continuar falando de si e ter desviado a conversa sem qualquer comentário.

— Como é que você vai poder ir? E seu tornozelo? — perguntou.

— Peço ao médico para dar uma injeção de Novocaína ne­le e depois de algumas horas meu tornozelo se considerará imortal.

— Combinado — disse ela, observando-o enquanto se ser­via de chá e notando o tremor das mãos. — De manhã?

— Não esquio pela manhã — disse ele, adicionando o rum ao chá e aspirando com prazer o perfume.

— Que é que você faz de manhã?

— Eu me recupero e escrevo poesias.

— Oh! — disse ela, em dúvida. — Eu deveria reconhecer o seu nome?

— Não. Eu sempre rasgo tudo na manhã seguinte.

Constance riu, meio sem jeito, porque as únicas pessoas que conhecia e que faziam poesias eram garotos de 15 anos, no colégio.

— Puxa! Você é um homem esquisito.

— Esquisito? — perguntou Pritchard, franzindo as sobran­celhas. — Isto não significa algo um tanto obsceno, na Amé­rica? Rapazes que gostam de rapazes?

— Em alguns casos apenas. Neste, não — respondeu Cons­tance, embaraçada. — Que espécie de poesias você faz?

— Lírica, elegíaca e atlética — disse ele. — Enaltecendo a juventude, a morte e a anarquia. Ótima para ser rasgada. Va­mos jantar juntos hoje?

— Por quê? — perguntou Constance, inquieta pela manei­ra como Pritchard pulava de um assunto para outro.

— Aí está uma pergunta que mulher nenhuma faria, na Europa.

— Avisei no hotel que ia jantar no quarto.

— Tenho grande influência no hotel — disse ele. — Acho que posso evitar que levem sua bandeja para o quarto.

— Além do mais — falou Constance — que me diz da se­nhora com quem você tem jantado toda a semana? A senhora francesa.

— Ótimo — disse ele, sorrindo. — Você também me esta­va observando.

— Há somente 15 mesas na sala — falou Constance, meio sem jeito — não se pode evitar...

A senhora francesa teria uns 30 anos, no mínimo, usava ca­belos ondulados e curtíssimos e tinha um busto absurdamen­te mirrado. Ela e Pritchard pareciam divertir-se muito, juntos, rindo sobre assuntos só deles, a um canto da sala, todas as noites. Sempre que a francesa estava na sala, Constance sentia-se jovem e inexperiente.

— A senhora francesa é uma boa amiga — disse Pritchard —, mas os anglo-saxões não são suficientemente nuancés pa­ra o gosto dela. Os franceses são patriotas até debaixo d’água. Além disso, o marido dela chega amanhã.

— Acho melhor continuar com o meu plano — disse Cons­tance, formalmente, levantando-se. — Podemos ir?

Pritchard olhou-a muito sério, por um instante.

— Você é linda — disse ele. — Há ocasiões em que é im­possível não dizer isto.

— Por favor... — disse a moça. — Tenho que ir agora.

— Naturalmente — falou o rapaz, deixando dinheiro so­bre a mesa. — Como quiser.

Andaram os 100 metros até o hotel, em completo silêncio. Tinha escurecido inteiramente, fazia muito frio e a respira­ção dos dois formava pequenas nuvens diante da boca, enquan­to caminhavam.

— Vou guardar seus esquis — disse Pritchard, quando che­garam ao hotel.

— Obrigada — respondeu Constance, em voz baixa.

— Boa-noite. E escreva uma linda carta.

— Vou tentar — disse a moça, voltando-se e entrando no hotel.

Chegando ao quarto, tirou as botas, mas não se preocupou de trocar de roupa. Ficou deitada na cama, sem acender a luz, olhando para o teto escuro e pensando que ninguém lhe disse­ra, até então, que os ingleses eram assim.

“Meu querido”, escreveu Constance. “Perdoe-me por não ter escrito, mas o tempo tem estado maravilhoso e por alguns dias dediquei-me unicamente a esquiar e a lidar com as cama­das mais profundas da neve. Há aqui um jovem inglês que tem sido muito atencioso e bastante camarada para me servir de instrutor. Embora não deva dizer isso, a verdade é que estou ficando uma esquiadora de primeira. Ele foi da RAF, o pai afundou com o Hood e a mãe morreu num bombardeio”...

Parou de escrever. Não, disse consigo, está péssimo. É co­mo se eu estivesse escondendo alguma coisa e usando a pobre e patriótica família morta como uma cortina. Pegou outra folha de papel.

“Meu querido”, escreveu.

Alguém bateu na porta. Constance falou:

— Já!

A porta abriu-se e Pritchard entrou. Constance ergueu os olhos, surpreendida. Durante as três semanas inteiras, ele nunca fora ao quarto dela. Levantou-se, embaraçada. Estava só de meias e o quarto repleto dos vestígios do esqui da tarde: as botas perto da janela, suéteres jogadas em cima de uma ca­deira, luvas secando no radiador e a parka pendurada perto da porta do banheiro, com a neve escorrendo da gola. O rá­dio estava ligado e tocavam uma música americana numa es­tação alemã.

Pritchard, de pé na porta, sorriu para ela.

— Ah! — disse ele — “qualquer cantinho de um quarto estrangeiro será para sempre Vassar”.

Constance desligou o rádio.

— Desculpe... — disse ela, com um gesto vago, abrangen­do todo o ambiente — o quarto está numa confusão...

Pritchard aproximou-se da penteadeira e ficou olhando pa­ra uma fotografia que lá estava, numa moldura de couro.

— O destinatário das cartas? — perguntou.

— O destinatário das cartas.

Sobre a penteadeira havia uma caixa de lenços de papel, um ferrinho para virar os cílios e uma barra de chocolate comida pela metade. Constance sentiu-se culpada apresentando Mark de modo tão frívolo.

— É um homem muito bonito — disse Pritchard, exami­nando a fotografia.

— É — disse Constance. Tinha encontrado os mocassins e sentia-se um pouco menos embaraçada.

— Parece sério — falou Pritchard, arredando a caixa de lenços de papel, para ver melhor.

— Ele é sério — disse a moça.

Durante as três semanas que estivera esquiando em compa­nhia de Pritchard, pouco falara sobre Mark. Tinham conver­sado sobre quase todos os assuntos, mas como por uma combinação tácita, não haviam falado em Mark. Tinham esquiado juntos todas as tardes, falando muito sobre a necessi­dade de inclinar o corpo para a frente e relaxar na hora de cair, sobre o tempo em que Pritchard freqüentara a escola pú­blica na Inglaterra, sobre o pai dele, sobre o teatro de Lon­dres e os romancistas americanos; conversaram seriamente sobre o que significava ter 20 e 30 anos, sobre o Natal em No­va York e os jogos de futebol em Princeton, nos fins de sema­na. Tiveram uma discussão meio violenta sobre a natureza da coragem, quando Constance perdera a sua, certa tarde, no meio de um pista íngreme, com o sol descambando e a montanha deserta. Mas nunca haviam falado sobre Mark.

Pritchard afastou-se da fotografia.

— Não precisa calçar-se por minha causa — disse ele, mos­trando os mocassins. — Uma das melhores coisas do esqui é tirar essas malditas botas e andar num quarto aquecido, com meias de lã.

— Estou empenhada numa luta sem tréguas para deixar de ser relaxada — disse Constance.

Ficaram um instante de pé, em silêncio, um em frente do outro.

— Oh! — disse por fim Constance. — Sente-se.

— Obrigado — respondeu cerimoniosamente Pritchard, sentando-se na única poltrona. — Entrei apenas por um mo­mento. Vim despedir-me.

— Despedir-se... — falou Constance, sem entender. — Aonde vai?

— Para casa. Ou, pelo menos, para a Inglaterra. Achei que devia dar-lhe meu endereço.

— Naturalmente.

Pritchard inclinou-se, pegou um pedaço de papel e uma ca­neta e escreveu por um momento.

— É apenas um hotel — disse ele. — Até encontrar um lu­gar para morar.

Colocou o papel na penteadeira e ficou com a caneta no ar.

— Assim você tem mais alguém a quem escrever — disse ele. — O destinatário inglês de suas cartas.

— É — disse a moça.

— Você pode mandar dizer como está a neve, quantas ve­zes desceu a montanha em um dia e quem se embriagou de noite, no bar.

— Não é uma partida um tanto repentina? — perguntou Constance.

Fosse lá como fosse, o caso é que depois dos primeiros dias, nunca lhe ocorrera que Pritchard pudesse ir embora. Estava lá quando ela chegara e parecia fazer parte do lugar tão inte­gralmente que era difícil imaginar o lugar sem ele.

— Não tão repentina — disse Pritchard. — Eu quis despedir-me de você em particular.

Constance imaginou se ele iria beijá-la. Naquelas três se­manas, não tinha sequer segurado as mãos dela e só a tocara quando a ajudava a levantar-se, depois de uma queda espe­cialmente feia. O rapaz, porém, continuou em pé, sem se mo­ver, com um sorriso estranho nos lábios, brincando com a caneta, calado, como se esperasse que ela dissesse alguma coisa.

— Bem — disse afinal — vejo você mais tarde?

— Sim — disse ela.

— Vamos ter um jantar de despedida. Há vitela no menu, mas vou ver se consigo alguma coisa melhor, para festejar.

Colocou cuidadosamente a caneta em cima da penteadeira.

— Até mais tarde — falou, saindo e fechando a porta.

Constance ficou olhando a porta fechada. Todo mundo vai embora, pensou. Sentia raiva, sem razão. Sabia que era tolice, como uma criança protestando contra o fim de uma festa de aniversário, mas não conseguia evitar aquele sentimento. Olhou em volta do quarto. Pareceu-lhe cheio demais e desar­rumado, como o quarto de uma estudante desleixada. Impa­ciente, começou a colocar as coisas nos lugares. Pôs as botas no corredor, pendurou a parka no armário, levou a caixa de lenços de papel para o banheiro e deu a meia barra de choco­late à arrumadeira. Endireitou a cama, limpou o cinzeiro e, num impulso, jogou na cesta de lixo o ferrinho de curvar os cílios. “É uma tolice”, disse ela, “curvar os cílios.”

Pritchard pediu uma garrafa de Borgonha porque o vinho suíço, dizia ele, era fraco demais para despedidas. Não con­versaram muito durante o jantar. Era como se ele já tivesse partido um pouco. Por uma ou duas vezes, Constance quase começou a dizer quanto lhe era grata pela sua paciência com ela na montanha, mas por uma razão qualquer, não conse­guiu falar e o jantar tornou-se cada vez mais constrangedor para ambos. Pritchard pediu conhaque com o café e Cons­tance aceitou, embora soubesse que lhe dava azia. Enquanto tomavam o conhaque, a banda de três figuras começou a to­car para a dança, e o barulho era demais para conversarem.

— Quer dançar? — perguntou Pritchard.

— Não — respondeu Constance.

— Ótimo — disse ele. — Desprezo a dança.

— Vamos sair daqui — propôs Constance. — Vamos dar um passeio.

Foram aos quartos pegar uma roupa mais quente. Pritchard esperava por Constance quando ela desceu, com as botas de neve e um casaco de castor que o pai lhe dera no ano anterior. Pritchard estava encostado numa coluna da varanda da fren­te e a moça o fitou por algum tempo, antes que ele se voltasse e surpreendeu-se por ver como ele parecia cansado e subita­mente envelhecido quando não sabia que estava sendo ob­servado.

Andaram pela rua principal, com o som da música dimi­nuindo à medida que se afastavam. No cume do mais alto monte, onde terminava o teleférico, brilhava uma única luz, da cabana lá existente, onde as pessoas podiam aquecer-se antes da descida ou tomar um vinho quente e biscoitos.

Caminharam até o fim da rua, depois atravessaram-na até atingir a estrada que ficava ao longo do rinque de patinação, escuro naquele momento. O gelo refletia palidamente as es­trelas e ouvia-se o marulhar da água do regato que também “seguia toda a extensão do rinque e que quase nunca gelava.

Pararam numa pequena ponte coberta de neve e Pritchard acendeu um cigarro. As luzes da cidade tinham ficado muito para trás e as árvores os rodeavam em escuro silêncio. Prit­chard inclinou a cabeça para trás, deixando a fumaça escapar vagarosamente por entre os lábios, mostrando com um gesto a luz do alto da montanha.

— Que vida! — disse ele. — Daquelas duas pessoas lá de cima. Noite após noite, sozinhas no alto de uma montanha, esperando o mundo chegar na manhã seguinte.

Deu outra tragada no cigarro.

— Sabe, eles não são casados — disse ele. — Só mesmo os suíços pensariam em colocar duas pessoas que não são ca­sadas no alto de uma montanha destas. Ele é um velho e ela uma fanática religiosa. Ambos se detestam, mas nenhum dos dois dá ao outro a satisfação de arranjar outro emprego.

Pritchard deu uma risadinha, enquanto os dois observavam a brilhante luzinha acima deles.

— No ano passado, houve uma tempestade de neve e o te­leférico não funcionou durante uma semana. Faltou força e os dois tiveram de viver seis dias e seis noites quebrando ca­deiras para acender o fogo, comendo chocolate e sopa enlata­da, sem falar um com o outro.

Calou-se um instante, depois disse:

— Esta luz pode servir de símbolo para este belo continente.

De repente, Constance soube o que tinha a dizer:

— Alan — falou, colocando-se bem diante dele — não quero que você vá.

Pritchard deu um piparote no cigarro.

— Seis dias e seis noites — repetiu ele — com a dureza nos seus corações.

— Não quero que você vá.

— Estou aqui há muito tempo — disse Pritchard. — Já aproveitei a melhor neve.

— Quero que você case comigo — falou Constance.

Pritchard olhou para ela. Constance notou que ele se esfor­çava por rir.

— Esta é a maravilha de termos 20 anos... — disse ele. — Poder dizer uma coisa destas.

— Eu disse que quero que você case comigo.

O rapaz jogou fora o cigarro, que ficou brilhando na neve. Deu um passo à frente e beijou-a. Constance sentiu o gosto do fumo e do conhaque nos lábios dele. Pritchard ficou al­gum tempo apertando-a contra si, depois afastou-se e abotoou-lhe o casaco, como uma babá cuidando de uma meninazinha.

— As coisas que acontecem com um homem... — falou, abanando a cabeça, vagarosamente.

— Alan... — disse Constance.

— Retiro tudo o que disse — falou ele. — Você não se pa­rece absolutamente com as moças que anunciam sabonete e cerveja.

— Por favor, Alan, não torne as coisas mais difíceis.

— Que é que você sabe a meu respeito? — perguntou, lim­pando a neve do balaústre da ponte e encostando-se nele. — Nunca ninguém avisou você sobre os tipos de homens que en­contraria na Europa?

— Não me faça ficar confusa, por favor.

— E o camarada na moldura de couro?

Constance respirou fundo. Podia sentir o frio penetrando em seus pulmões.

— Não sei — disse ela — ele não está aqui.

Pritchard deu uma risadinha triste.

— Perdido — disse ele. — Perdido pelo oceano.

— Não é só o oceano — disse Constance.

Caminharam novamente em silêncio, ouvindo o som das bo­tas na estrada gelada. A lua começava a surgir entre os picos e se refletia na neve, num tom leitoso.

— Você precisa ter algumas informações — falou Pritchard, em voz baixa, olhando a sombra comprida que a lua projeta­va em sua frente. — Já fui casado.

— Oh! — falou Constance, procurando, com muito cui­dado, andar sobre as pegadas que outras pessoas tinham dei­xado na estrada, à sua frente.

— Não foi um casamento muito sério — falou Pritchard, olhando para ela. — Divorciamo-nos há dois anos. Isto mo­difica as coisas?

— Problema seu — falou Constance.

— Tenho que visitar a América algum dia. Estão criando lá um novo tipo de gente.

— O que mais? — perguntou a moça.

— A próxima informação não é muito interessante. Não tenho vintém. Não trabalho desde que terminou a guerra. Te­nho vivido das jóias que minha mãe deixou. Não havia muita coisa e vendi o último broche a semana passada, em Zurique. Eis por que tenho de ir embora, mesmo que não houvesse ou­tras razões. Como vê... — falou, sorrindo com dificuldade — você arranjou o pior dos deserdados.

— Que mais? — perguntou Constance.

— Ainda quer ouvir mais.

— Quero.

— Eu nunca viveria na América. Sou um sujeito cansado, pobretão, da velha safra da RAF, meu lugar é outro. Vamos... — falou, segurando bruscamente o cotovelo da companhei­ra, como se não quisesse falar mais. — É tarde. É melhor vol­tarmos ao hotel.

Constance retrucou:

— Você não me está dizendo tudo.

— Não basta o que falei?

— Não.

— Muito bem, eu não poderia ir para a América nem que quisesse.

— Por quê?

— Porque não me deixariam entrar.

— Por quê? — perguntou Constance, espantada.

— Porque sou pasto dos vermes — disse Pritchard.

— Que quer dizer com isso?

— Suíça para os fracos — respondeu o rapaz, com voz rou­ca. — Chutaram D. H. Lawrence do Novo México e o man­daram morrer na Riviera, por causa disso. Não se pode censurá-los. Já têm doenças demais. Agora vamos voltar pa­ra o hotel.

— Mas você parece tão cheio de saúde... Você esquia...

— Todo mundo aqui morre em plena saúde — falou Prit­chard. — Comigo, a coisa vai e vem. Fico quase curado, de­pois, no ano seguinte — e encolheu os ombros — fico quase incurado... Os médicos abanam a cabeça quando me vêem no elevador. Volte para casa. Eu não sirvo para você. Sou um sujeito angustiado. Você não é angustiada. É a miscigenação final. Agora, vamos voltar para o hotel?

Constance concordou. Caminharam devagar. A cidade mon­tanhosa que ficava em frente deles estava quase completamente às escuras, mas podiam ouvir a música do baile, suave e dis­tante, através do ar puro da noite.

— Não me importo — falou Constance, quando atingiram os primeiros edifícios. — Não me importo com coisa alguma.

— Quando eu tinha 20 anos... — falou Pritchard. — Quan­do eu tinha 20 anos, eu disse, uma vez, a mesma coisa.

— Em primeiro lugar — disse Constance — temos de ser práticos. Você precisa de dinheiro. Darei a você amanhã.

— Não posso aceitar seu dinheiro.

— Não é meu. É de meu pai.

— A Inglaterra lhe será para sempre agradecida. — Prit­chard tentava gracejar. — Tome cuidado comigo — disse ele.

— Que quer dizer com isto?

— Estou começando a sentir vontade de ser consolado.

— Que mal há nisso?

— Pode ser mortal — sussurrou Pritchard, tomando-a desajeitadamente nos braços — para aqueles que são inconsoláveis.

 

Quando acordaram na manhã seguinte, a princípio estavam muito sérios, falando sobre o tempo, que podiam entrever atra­vés das cortinas meio abertas, e que estava cinzento e instá­vel. Depois, Pritchard perguntou:

— Como está se sentindo?

— Eu me sinto enormemente adulta — respondeu Constance, depois de refletir um pouco, no desejo de dar uma res­posta bem precisa.

Pritchard não pôde deixar de dar uma gargalhada e toda a solenidade desapareceu. Ficaram deitados, confortavelmente, discutindo sua situação, imaginando o futuro como dois desvalidos. Constance preocupava-se, embora não muito seria­mente, com o escândalo do pessoal do hotel e Pritchard dizia-lhe que não havia motivo para preocupar-se, pois nada que os estrangeiros faziam escandalizava os suíços. Constan­ce sentiu-se mais satisfeita do que nunca por estar num país tão civilizado.

Fizeram planos para o casamento e Pritchard disse que iriam à parte francesa da Suíça porque não queria ser casado em alemão e Constance desculpou-se por não ter pensado naqui­lo antes.

Finalmente, resolveram vestir-se, porque ninguém pode pas­sar o resto da vida na cama. Constance teve um instante de pungente tristeza por ver quanto ele era magro e pensou, já conspirando contra ele: ovos, leite, manteiga e repouso. Saí­ram juntos do quarto, corajosamente decididos a enfrentar tu­do, mas não havia ninguém no corredor ou na escada para vê-los, de modo que tiveram o duplo prazer de serem sinceros e passarem despercebidos ao mesmo tempo, o que Constance considerou um bom agouro.

Verificaram que era quase hora do almoço, portanto toma­ram um pouco de Kirsch, depois suco de laranja e ovos com bacon, além de um maravilhoso café na sala de jantar limpíssima, de paredes de madeira. No meio da refeição, Constance sentiu lágrimas nos olhos, e como Pritchard perguntasse por que ela estava chorando, disse que pensava em todos os cafés da manhã que tomariam juntos. Os olhos de Pritchard fica­ram também ligeiramente úmidos, olhando para ela do outro lado da mesa. Constance disse, então:

— Você deve chorar muitas vezes, por favor!

— Por quê?

— Porque é tão antiinglês!

E os dois riram.

Depois do café Pritchard disse que ia subir a montanha pa­ra esquiar um pouco e perguntou a Constance se queria ir com ele, mas a moça respondeu que estava por demais melodiosa aquele dia, para esquiar e ele achou graça no melodiosa.

Constance disse que ia escrever algumas cartas e Pritchard ficou pensativo.

— Se eu fosse um cavalheiro, escreveria imediatamente a seu pai, explicando tudo.

— Não faça isso! — respondeu a moça, com seriedade. Co­nhecia o pai e sabia que ele tomaria o primeiro avião, se rece­besse uma carta daquelas.

— Não se preocupe — disse ele. — Não sou assim tão ca­valheiro.

Constance ficou a observá-lo enquanto caminhava pela ne­ve, com o suéter vermelho e os esquis, parecendo jovem e ele­gante. Foi então para o quarto escrever para Mark, dizendo que tinha pensado muito e que pedia desculpas, mas acabara achando que tudo tinha sido um erro. Escreveu com calma, sem qualquer sentimento de tristeza, confortável em seu quarto aquecido. Não falou em Pritchard, porque não era da conta de Mark.

A seguir, escreveu ao pai, dizendo que havia rompido com Mark. Também não tocou em Pritchard porque não queria que ele tomasse o primeiro avião, nem falou na volta para ca­sa. Tudo aquilo podia esperar.

Fechou as cartas e deitou-se para descansar um pouco. Dor­miu por mais de uma hora. Vestiu-se para enfrentar a neve, foi ao correio postar as cartas e chegou até o rinque, para ver as crianças patinando. Na volta para o hotel, parou numa lo­ja que vendia objetos de esqui e comprou um suéter amarelo mais leve para Pritchard, porque em breve o sol estaria muito quente durante o dia e as roupas de inverno seriam pesadas demais.

Estava no bar, esperando tranqüilamente por Pritchard, quando, ouviu dizer que ele tinha morrido.

Ninguém fora dizer-lhe porque não havia nenhuma razão particular para isso.

Um instrutor com quem Pritchard costumava esquiar dizia no bar, conversando com alguns americanos:

— Ele perdeu o controle e calculou mal a distância, indo bater numa árvore. Morreu em cinco minutos. Era um rapaz de ouro — o professor de esqui aprendera inglês com seus alu­nos ingleses, antes da guerra — mas corria demais. Não tinha técnica necessária para dominar a velocidade.

O professor de esqui não falava como se fosse rotina mor­rer esquiando, mas também não parecia admirado. Ele pró­prio tivera muitos ossos quebrados, como todos os seus amigos, batendo em árvores ou muralhas de pedra, ou em quedas, du­rante o verão, quando serviam de guias para os alpinistas. Fa­lava como se julgasse inevitável, e mesmo justo, que de vez em quando alguém pagasse pela falta de técnica nas montanhas.

 

Constance esperou o enterro. Caminhou atrás do trenó co­berto de preto, dirigindo-se para o cemitério e para o buraco feito na neve, surpreendendo-se com a inesperada cor escura da terra, depois do branco absoluto do inverno. Ninguém tinha vindo da Inglaterra, porque não havia ninguém para vir, embora a ex-esposa tivesse mandado flores por telegrama. Mui­ta gente da aldeia acompanhou o enterro, apenas como amigos, bem como outros esquiadores que tinham conhecido Pritchard superficialmente e, tanto quanto se poderia saber, Constance era uma entre eles.

Junto ao túmulo, o professor de esqui, com o hábito de repetição comum a tantos professores, falou:

— Ele não tinha a técnica necessária para tanta velocidade.

Constance não sabia o que fazer com o suéter amarelo e acabou dando-o à camareira, para que desse ao marido.

Oito dias depois, Constance chegava a Nova York. O pai estava à sua espera, no cais. Ela acenou para ele, que retribuiu a saudação. Mesmo de longe, a moça podia ver como estava satisfeito por tornar a vê-la. Beijaram-se quando ela desceu a escada do navio e ele a abraçou com emoção. Depois afastou-a de si, dizendo:

— Meu Deus! Você está simplesmente maravilhosa! Está vendo... — falou, e Constance desejaria que ele não tivesse dito aquilo, mas compreendeu que era inevitável — está ven­do como eu tinha razão? Então eu não sabia o que estava dizendo?

— Sim, pai — respondeu a moça, pensando como podia ter ficado zangada com ele, um dia. Ele não é estúpido, mes­quinho, incompreensivo. É apenas solitário.

Segurando-a pela mão, como fazia quando ela era uma meninazinha e os dois passeavam juntos, o pai conduziu-a para o galpão da Alfândega, para esperarem que sua bagagem viesse do navio.


A MORTE DO VELHO JÓQUEI

Lloyd Barber estava deitado na cama, lendo o France-Soir, quando o telefone tocou. Eram 2 horas da tarde, mas chovia pelo quinto dia consecutivo e, de qualquer modo, Lloyd não tinha mesmo aonde ir. Lía um artigo sobre as posições relati­vas, das equipes da Liga de Rúgbi. Nunca assistia a um jogo de rúgbi e não se interessava pelas posições relativas das equi­pes de Lille, Pau e Bordéos, mas já lera o jornal inteiro. Fazia frio no quarto pequeno e escuro, porque não havia aqueci­mento entre 10 da manhã e 6 da tarde, de sorte que Lloyd ti­rara os sapatos e se deitara na cama larga, cheia de altos e baixos, cobrindo-se com o sobretudo.

Pegou o fone e o encarregado da recepção falou:

— Há uma senhora aqui à sua procura, Sr. Barber.

Barber lançou um olhar ao espelho que ficava acima da pen­teadeira, no lado oposto ao da cama. Bem que gostaria de ter um aspecto melhor.

— Ela disse quem é? — perguntou.

— Não, senhor. Quer que pergunte?

— Não é preciso. Desço num instante.

Largou o fone e calçou os sapatos. Calçava sempre o pé es­querdo em primeiro lugar, para dar sorte. Abotoou a camisa e endireitou a gravata, notando que estava esgarçada no lu­gar do nó. Vestiu o paletó e bateu nos bolsos, para ver se ti­nha cigarros. Sabia que não os encontraria. Deu de ombros e, deixando a luz acesa por vingança, já que o gerente se esta­va mostrando desagradável em relação ao pagamento, desceu.

Maureen Richardson estava sentada na saleta ao lado do vestíbulo, numa dessas cadeiras de veludo, velha como o tem­po, que os hotéis parisienses de quarta classe fornecem à sua clientela, com o fito de desencorajar o excessivo convívio dos hóspedes no andar térreo. Nenhuma das lâmpadas fora acesa e uma luz esverdeada filtrava-se através das cortinas, vindo da rua batida pela chuva. Maureen tinha sido uma garota bo­nita e cheia de vida, de olhos azuis e ingênuos, quando Bar­ber a conhecera, durante a guerra, pouco antes de seu casamento com Jimmy Richardson. Mas depois disso Mau­reen tivera dois filhos e Jimmy não estava lá muito bem de vida. No momento, a moça vestia um velho casaco molhado, as belas cores do rosto tinham desaparecido e, à luz esverdea­da do vestíbulo, apresentava uma coloração esbranquiçada e os olhos pareciam sem vida.

— Alô, Beleza! — falou Barber. Richardson sempre a cha­mara assim e embora aquilo de início servisse de caçoada en­tre seus colegas de esquadrão, continuara lealmente a dar-lhe este nome, até que o apelido acabara pegando.

Maureen voltou-se rapidamente, como se estivesse assustada.

— Lloyd — disse ela — ainda bem que encontrei você em casa!

Cumprimentaram-se e Barber perguntou-lhe se gostaria de ir a algum lugar, para tomarem um café.

— Prefiro não ir — falou Maureen — pois deixei as crian­ças almoçando em casa de uma amiga e prometi ir buscá-las às 2 e meia, de modo que não disponho de muito tempo.

— Certo — disse Barber. — Como vai Jimmy?

— Oh, Lloyd... — Maureen torcia as mãos e Barber notou que os dedos estavam avermelhados e as unhas sem fazer. — Você tem estado com ele?

— Como? — perguntou Barber, olhando para ela, admirado, através da obscuridade. — Que quer dizer com isso?

— Tem estado com ele? — insistiu Maureen, com voz fra­ca e assustada.

— Não o vejo há um mês, mais ou menos — disse Barber. — Por quê? — perguntou, mas estava quase certo de que sa­bia a razão.

— Ele viajou, Lloyd... Há 32 dias e não sei o que fazer.

— Para onde foi?

— Não sei — falou Maureen pegando um maço de cigar­ros e acendendo um. Estava preocupada demais para lembrar-se de oferecer outro a Barber. — Ele não me disse...

Maureen fumava com avidez.

— Estou tão preocupada... Julguei que ele lhe tivesse dito alguma coisa... ou que talvez você o tivesse visto.

— Não — respondeu Barber, cautelosamente. — Não me disse coisa alguma.

— É a coisa mais estranha do mundo. Estamos casados há mais de 10 anos e ele nunca fez uma coisa como esta — falou Maureen, esforçando-se para controlar a voz. — Chegou em casa uma noite, dizendo que tirara um mês de licença no tra­balho e que voltaria no fim de 30 dias. Aí, então, me contaria tudo. E pediu-me que não fizesse perguntas.

— E você não fez perguntas?

— Ele estava procedendo de modo tão estranho... Nunca o vira daquele jeito. Todo agitado, numa grande excitação... Eu poderia mesmo dizer que estava feliz. Só que se levantou várias vezes durante a noite para ver os garotos. E Jimmy nunca me dera preocupações... bem, no que diz respeito a outras mu­lheres... — falou Maureen, com certo formalismo. — Ele não é como outros homens que conhecemos. E uma coisa que se pode dizer de Jimmy é que ele é digno de confiança. Assim, ajudei-o a fazer a mala.

— Que foi que ele levou?

— Apenas uma valise com roupas leves. Como se fosse pa­ra uma estação de veraneio. Levou até mesmo uma raquete de tênis.

— Ah, sim, uma raquete de tênis — repetiu Barber, como se fosse a coisa mais natural deste mundo maridos levarem consigo raquetes de tênis quando sumiam de casa. — E não teve a menor notícia dele?

— Nenhuma. Ele me avisou que não iria escrever. Já ou­viu, algum dia, algo parecido?

Mesmo na sua angústia, Maureen deixava transparecer, pelo modo de falar, sua reprovação de esposa.

— Eu sabia que não deveríamos ter vindo para a Europa — continuou ela. — Com você, é diferente. Você não é casa­do e sempre foi meio avoado, muito diferente de Jimmy...

— Telefonou para o escritório dele? — Barber perguntou, interrompendo-a. Não queria saber até que ponto as pessoas o consideravam avoado e solteiro.

— Pedi a uma amiga para telefonar. Ia ficar esquisito... a esposa dele perguntando onde ele estava...

— E que foi que disseram?

— Que o esperavam há dois dias, mas que ele não voltara ainda.

Barber pegou um dos cigarros de Maureen e acendeu-o. Ha­via quatro horas que não fumava e o cigarro lhe pareceu deli­cioso. Sentiu uma leve gratidão egoísta por Maureen ter ido procurá-lo no hotel.

— Lloyd, você sabe de alguma coisa? — perguntou a mo­ça, exausta e mal vestida, com seu fino casaco encharcado, ali diante dele, sob a luz mortiça e esverdeada.

Barber hesitou.

— Não. Mas vou dar uns dois telefonemas e ligo para você amanhã.

Ambos se levantaram. Maureen enfiou as luvas nos dedos avermelhados. Eram umas luvas muito usadas, de um preto desbotado. Olhando para elas, Barber lembrou-se de repente da Maureen bem-arrumada e atraente que conhecera na Louisiana, tantos anos antes, e de como ele, Jimmy e os outros pareciam saudáveis e bem vestidos em seus uniformes de te­nentes, com as asas recentemente pregadas no peito.

— Escute aqui, Beleza. Como está de dinheiro? — per­guntou.

— Não vim aqui por causa disto — respondeu Maureen com firmeza.

Barber tirou do bolso a carteira e examinou-a com atenção. Não era necessário. Sabia exatamente quanto ela continha. Ti­rou uma nota de 5 mil francos.

— Tome — disse ele. — Veja se isto serve.

Maureen fez menção de devolver-lhe a nota.

— Não sei, realmente, se devo... —- começou a dizer.

— Psiu... Beleza — falou Barber. — Não há nenhuma ga­rota americana em Paris que não tenha o que fazer com 5 mille, num dia como este.

Maureen suspirou e guardou a nota na carteira.

— Acho horrível tomar seu dinheiro deste jeito, Lloyd.

Barber beijou-a na testa.

— Em memória dos bons tempos de outrora — disse ele, guardando a carteira com os 15 mil francos que lhe restavam e que, pelo que sabia, teriam de durar pelo resto da vida. — Jimmy me pagará isto.

— Acha que não lhe aconteceu nada? — perguntou a mo­ça, de pé, muito perto dele.

— É claro! — respondeu com falsa animação. — Não há razão para preocupar-se. Telefono para você amanhã. Pro­vavelmente ele estará em casa para atender o telefone e bri­gando comigo por andar com sua mulher enquanto ele está fora da cidade.

— Tomara... — falou Maureen, com um triste sorriso.

Atravessou o vestíbulo, que mais parecia uma caverna es­cura, saindo na rua batida pela chuva, em busca dos filhos que deixara almoçando em casa de uma amiga.

Barber voltou ao quarto, pegou o fone e ficou esperando que o velho atendesse lá embaixo. No meio do quarto havia duas malas abertas, com camisas empilhadas, já que não era possível guardá-las todas na minúscula cômoda do hotel. So­bre esta cômoda viam-se uma conta de alfaiate com o carim­bo de vencida; uma carta da ex-esposa de Barber, proveniente de Nova York, na qual a mulher lhe dizia que encontrara sua pistola do exército no fundo de uma de suas malas e perguntava o que deveria fazer com ela, receando guardá-la, por causa da Lei Sullivan; uma carta de sua mãe, pedindo-lhe que dei­xasse de ser maluco e voltasse para casa e arranjasse um em­prego certo; outra carta, de uma mulher pela qual não estava interessado, convidando-o para ficar com ela em sua vila de Eze, lugar bonito e quente, dizia, e onde um homem estava lhe fazendo falta; mais outra carta, de um rapaz que voara com ele durante a guerra, como artilheiro, e que insistia em afirmar que Barber lhe salvara a vida quando sobrevoavam Palermo e que, para surpresa de todos, tinha escrito um li­vro. Costumava escrever para Barber, no mínimo uma vez por mês, cartas longas e um tanto literárias. Era um rapaz estra­nho, emotivo. Fora um artilheiro nervoso e vivia indagando se ele e as pessoas que amava — entre as quais incluía Barber, decerto por causa dos oito minutos sobre Palermo — estavam vivendo para cumprir os compromissos assumidos. “Nossa ge­ração está em perigo”, escrevera o rapaz na carta que estava sobre a cômoda, “em perigo de achatamento. Vivemos muito cedo nossas aventuras. Nosso amor transformou-se em afei­ção, nosso ódio em desagrado, nosso desespero em melanco­lia, nossa paixão em preferência. Estamos preparados para viver como anões obedientes, uma vida falsa e perigosa.”

A carta deixara Barber deprimido, por isso não a respon­dera. Já estava acostumado com esse tipo de conversa partin­do dos franceses. Bom seria que o ex-artilheiro deixasse de escrever-lhe ou, pelo menos, que escrevesse sobre outros as­suntos. Barber não respondera também a carta da ex-esposa porque fora para a Europa justamente esquecê-la. Não res­pondera à sua mãe porque achava que ela talvez estivesse com a razão. E não fora para Eze porque, por mais duro que esti­vesse, não tinha vocação para gigolô.

No espelho acima da penteadeira estava pregada uma foto­grafia de Jimmy Richardson e do próprio Barber, tirada na praia, em Deauville, no verão anterior. Os Richardson tinham alugado uma cabana lá e Barber passara com eles dois fins de semana. Jimmy Richardson era outro que se ligara a ele durante a guerra. Fosse lá por que fosse, Barber era sempre presenteado com a afeição de pessoas cuja amizade não de­sejava.

— As pessoas se ligam a você — dissera-lhe certa vez uma garota que estava com raiva dele — porque você é um hipó­crita automático. Mal alguém entra no lugar onde está, você fica animado e cheio de confiança em si.

Barber e Jimmy usavam roupa de banho quando tiraram o retrato. Barber, alto e bronzeado, ostentava uma bela figu­ra de californiano, ao lado de Jimmy, que mais parecia um garoto, gordo e inseguro, ali de pé, tendo atrás de si o mar ensolarado.

Barber olhou a fotografia. Jimmy não parecia o tipo de su­jeito que desaparece, seja de onde for, por 32 dias. Quanto a si próprio, pensou com azedume, parecia automaticamente animado e cheio de confiança.

Estendeu o braço, pegou a fotografia e guardou-a numa ga­veta. Em seguida, ainda segurando o fone displicentemente, olhou em volta, com aborrecimento. À luz forte da lâmpada sem abajur, a madeira escura dos móveis tinha um aspecto sombrio e parecia roída de cupins e a cama, com sua colcha de lã matizada, de cor indefinida, parecia conspurcada por in­contáveis centenas de homens e mulheres de formas obscenas que em outros tempos haviam alugado o quarto por uma ho­ra. Por um instante, Barber sentiu uma violenta saudade de todos os quartos de hotéis Statlers em que havia dormido e de todas as cabinas de trem entre Nova York e Chicago ou de Saint Louis a Los Angeles.

Vinha do fone um som sibilante e Barber voltando a si deu o número do George V. Completada a ligação, perguntou pe­lo Sr. Smith. Sr. Bert Smith. Depois de algum tempo, a tele­fonista respondeu que o Sr. Smith não estava mais no hotel. Barber apressou-se a perguntar, antes que a moça desligasse, se o Sr. Smith era esperado nos próximos dias ou se deixara endereço. Não, respondeu a moça depois de uma longa pau­sa, o Sr. Smith não estava sendo esperado e não deixara en­dereço.

Barber desligou. Não estava surpreendido com o que acabara de saber sobre Bert Smith, um sujeito que entrava e saía misteriosamente de hotel para hotel, e que deveria ter dado uma dúzia de outros nomes, além de Smith, desde a última vez em que estiver a com ele.

Com esforço consciente, Barber tentou não pensar em Jimmy Richardson, em sua mulher, que todo o esquadrão numa brin­cadeira chamava de Beleza, e nos dois filhos pequenos de Ri­chardson.

Com um ar sombrio, aproximou-se da janela. A chuva de inverno de Paris caía na rua estreita, embaçando-a, batendo, desanimada, nos edifícios que ficavam em frente, tornando impossível imaginar-se que aspecto teriam tido, quando no­vos. Um operário descarregava caixas de vinho de um cami­nhão, parecendo deprimido pela chuva e o som tão parisiense, do tilintar de garrafas, tornava-se abafado, cavo e triste pela cascata de água cinzenta que caía do céu, dos peitoris das ja­nelas, dos sinais luminosos e dos toldos enrolados. Não era dia para um marido estar desaparecido, para um amigo estar desaparecido. Não era dia para um homem estar só, tendo no bolso apenas 15 mil francos, hospedado num acanhado quar­to de hotel, onde o aquecimento era desligado das 10 da ma­nhã às 6 da tarde. Não era dia para se estar sem emprego, sem cigarros e sem almoço, como não era dia para um exame de consciência, sabendo que, fossem quais fossem as desculpas procuradas para nossos atos, sempre no final, nos reconhece­ríamos culpados.

Barber sacudiu-se novamente. Não adiantava ficar o dia in­teiro no quarto. Se queria fazer alguma coisa útil, deveria sair à procura de Bert Smith. Olhou o relógio. Eram quase 2h30. Procurou lembrar-se de todos os restaurantes onde vira Berth Smith às 2h30 da tarde. O elegante restaurante perto do Rond Point, onde o pessoal de cinema, os proprietários de jornais e os turistas endinheirados iam comer... o bistro do Boulevard Latour-Maubourg, na Margem Esquerda... os restaurantes de Auteuil, Longchamp e St. Cloud... Barber abriu o jornal. Ha­via corridas em Auteuil naquele dia.

Se não estivesse nas corridas e ainda se encontrasse em Paris, era provável que Bert Smith fosse encontrado em uma das galerias de arte, àquela hora da tarde. Bert amava as artes ou, pelo menos, comprava quadros, com argúcia e conhecimento de causa. Como Smith morava em quartos de hotel, lugares pouco aconselháveis para se ter uma coleção de quadros, era provável que comprasse os quadros para especular, como re­presentante de alguém ou ainda quando os quadros eram tão importantes que o governo francês não queria que deixassem o país para serem contrabandeados para fora da França.

Barber costumava encontrar Smith, no fim da tarde, tam­bém na sauna do Claridge, baixinho e gordo, com pernas sur­preendentemente bem torneadas, sentado em meio do vapor, enrolado numa toalha, ficando cada vez mais vermelho, nos lábios um sorriso voluptuoso, derretendo em suor a gordura que acumulara nos muitos anos em que comia nos melhores restaurantes da Europa.

Encontrara muitas vezes Smith, também, por volta de 6 h no salão de barbeiro do George V, fazendo a barba e, depois disso, no bar do Relais Plaza ou no bar inglês, no porão do Plaza-Athénée. Mais tarde, à noite, encontrara-o em várias boates — no LTEléphant Blanc, no CarrolPs, no La Rose Rouge...

Barber lembrou-se com tristeza dos últimos 15 mil francos que estavam em sua carteira. O dia seria longo, úmido, dis­pendioso e difícil. Pôs o paletó e o chapéu e saiu. Continuava a chover. Barber chamou um táxi e deu ao motorista o ende­reço de um restaurante próximo ao Rond Point.

 

Tudo começara cerca de dois meses antes, na tribuna de Auteuil, pouco antes de começar o sexto páreo. Era um dia de . neblina e havia poucos espectadores. Barber não estava com muita sorte, mas tivera uma barbada para o sexto páreo, nu­ma aposta de 8 por 1. Apostou 5 mil na ponta e subiu para a arquibancada, a fim de ter boa visão da corrida.

Havia apenas um espectador a seu lado. Um homenzinho gorducho que usava um caro chapéu de veludo e trazia consi­go um binóculo e um guarda-chuva enrolado, à moda dos ingleses. Sorriu para Barber e cumprimentou-o com um aceno de cabeça. Barber correspondeu delicadamente ao sorriso, lembrando-se, ao mesmo tempo, de que já vira aquele homem muitas vezes, antes, a menos que fosse um irmão dele ou vá­rios outros homens parecidos, em restaurantes e bares ou nas ruas, em geral acompanhados de moças altas que tanto pode­riam ser manequins de segunda classe como prostitutas de primeira.

O homem do guarda-chuva aproximou-se, passando pelas longas filas de bancos de cimento molhado. Tinha pés peque­nos e lépidos, usava uma gravata de cor viva e o rosto era bem cuidado, com olhos grandes e negros cercados de cílios espes­sos. Era um rosto ao mesmo tempo calmo, cínico, seguro de si, sensual, desesperado e cheio de ousadia, que tanto podia pertencer a um turco como a um húngaro, a um grego e até mesmo a um sujeito nascido em Basra. Era um rosto que se podia encontrar em Paris, Bruxelas, Roma ou Tânger, sem­pre nos melhores lugares, sempre fazendo algum negócio. Um rosto que nos parecia, de certa forma, interessar à polícia.

— Boa-tarde — disse o homem em inglês, levando a mão ao chapéu. — Está num dia de sorte?

Falava com um sotaque difícil de identificar. Era como se, em criança, tivesse freqüentado escolas em vários países e ti­vesse tido 10 governantas de 10 nacionalidades diferentes.

— Nada mal — respondeu Barber, com prudência.

— Qual o seu favorito neste páreo? — perguntou o homem, apontando com o guarda-chuva para a pista, onde os cavalos se dirigiam com passos cautelosos para a distante linha de par­tida, pela grama pesada.

— O Número Três — disse Barber.

— Número Três — repetiu o homem, encolhendo os om­bros, como se tivesse pena de Barber mas fosse impedido, pe­la boa educação, de manifestar seu sentimento. — Como vai a companhia de cinema? — perguntou ainda.

— A companhia de cinema voltou para casa há um mês — respondeu Barber, ligeiramente surpreendido com o fato de aquele homem estar a par do assunto. Uma companhia cinematográfica americana estivera fazendo um filme sobre a guer­ra e Barber tivera quatro meses de sorte, muito bem pago co­mo assistente técnico ajudando o artista principal a afivelar pára-quedas e explicando ao diretor a diferença entre um P-47 e um B-25.

— E a estrela loura? — perguntou o homem tirando o bi­nóculo dos olhos. — Aquela que tinha um traseiro sensacional?

— Também voltou para casa.

O homem moveu as sobrancelhas e fez um leve gesto de ca­beça, indicando seu pesar pelo fato de seu novo conhecido e a cidade de Paris ficarem privados do sensacional traseiro.

— Bem, pelo menos deixa-lhe as tardes livres para vir às corridas — disse ele, tornando a examinar a pista com o binó­culo. — Lá vão eles.

O Número Três partiu na frente, liderando o grupo até a reta de chegada, sendo então ultrapassado rapidamente por quatro cavalos.

— Toda pista de corrida neste país — observou Barber — tem 100 metros a mais.

Tirou do bolso as pules e rasgou-as uma a uma, jogando-as no cimento molhado.

Viu com surpresa que o homem do guarda-chuva também tirava do bolso e rasgava algumas pules. Eram apostas feitas no Número Três, todas elas altas. O homem deixava cair as pules com uma expressão entre resignada e divertida, como se durante toda a sua vida estivesse habituado a rasgar coisas que, de repente, perdiam o valor.

— Vai ficar para o último páreo? — perguntou, quando desciam as arquibancadas desertas.

— Acho que não. O dia já encheu minhas medidas...

— Por que não fica? Talvez eu tenha algum palpite.

Barber pensou um instante, ouvindo os passos de ambos a ressoar no cimento.

— Estou de carro — falou o homem. — Posso dar-lhe uma carona até a cidade, Sr. Barber.

— Oh! — exclamou Barber, admirado. — O senhor sabe meu nome.

— Claro — respondeu o outro, sorrindo. — Por que não espera por mim no bar? Tenho de receber o dinheiro de algu­mas apostas.

— Julguei que o senhor tivesse perdido — falou Barber, desconfiado.

— No Número Três — respondeu o homem, tirando algu­mas apostas de outro bolso e agitando-as levemente. — Mas ainda tenho o seguro. Devemos sempre pensar no seguro. — Encontro-me com o senhor no bar?

— O.K. — disse Barber, não por esperar alguma dica va­liosa para o próximo páreo, mas por causa da carona até em casa. — Lá estarei. Ah, por falar nisso, qual é o seu nome?

— Smith — disse o homem. — Bert Smith.

Barber dirigiu-se ao bar e pediu um café, depois mudou de idéia e pediu um conhaque, porque café não bastava, depois de uma corrida daquelas. Ficou de pé, recostado no bar, re­fletindo amargamente que pertencia à categoria de pessoas que nunca pensam em seguro. Smith... — pensava ele — Bert Smith. Barber gostaria de saber quantos outros nomes tivera aquele sujeito antes de adotar este.

Smith entrou no bar sem fazer ruído, com seu andar lépi­do, sorrindo. Colocou a mão no braço de Barber.

— Sr. Barber — disse ele — temos uma barbada para o sé­timo páreo. O Número Seis.

— Eu jamais ganho no Número Seis — falou Barber.

— Pois é uma barbada segura — falou Smith. — Dizem que vão pagar 22 por 1.

Barber lançou ao homem um olhar duvidoso. Ficou a ima­ginar quem seria o informante de Smith.

— Que diabo! — disse ele. — O que tenho a perder?

Apostou 5 mil francos no Número Seis e, por superstição, ficou no bar durante a corrida, bebendo seu conhaque. O Nú­mero Seis ganhou de ponta a ponta, por meio corpo e apesar das apostas terem caído ligeiramente, pagou 18 por 1. Barber seguiu pela tarde úmida e escura, deixando para trás os jornais abandonados e a grama pisada, com seu cheiro de fazenda, dando pancadinhas no pacote de 90 mil francos que levava no bolso, num confortável volume, satisfeito com o homenzinho que caminhava a seu lado.

Bert Smith tinha um Citroen, dirigia com perícia e rapidez, ultrapassando os outros carros e entrando no acostamento para tirar vantagem sobre os demais, quando abria um sinal.

— Vem freqüentemente às corridas, Sr. Barber? — pergun­tava no momento em que passavam por um guarda de trânsi­to que parecia um tanto fora de propósito com sua pelerine branca, na rua úmida e brilhante.

— Venho demais — respondeu Barber, satisfeito com o ca­lor do carro, os efeitos do último conhaque e ainda com o vo­lume que levava no bolso.

— Gosta de jogar?

— Quem não gosta?

— Há muita gente que não gosta e tenho pena dessa gente — disse Smith, tirando um fino de um caminhão.

— Tem pena? — perguntou Barber, olhando para Smith meio surpreso. — Por quê?

— Porque... — respondeu Smith com um leve sorriso — porque nos tempos que correm há sempre um momento em que temos de nos arriscar, não apenas por dinheiro e não ape­nas no guichê das apostas. E quando chega este momento, quem não tem hábito de jogar não acha a coisa divertida e tem toda a probabilidade de perder.

Seguiram em silêncio por algum tempo. De vez em quan­do, Barber olhava disfarçadamente para o homem calmo e se­guro de si que ia ao volante, com o rosto iluminado pela luz refletida no pára-brisa. Gostaria de dar uma olhada no pas­saporte dele, ia pensando. Em todos os passaportes que ele carregou consigo nos últimos 20 anos...

— Por exemplo... — prosseguiu Smith — durante a guerra...

— Sim?

— Quando você estava em seu avião — falou Smith — voan­do numa missão. Não houve ocasiões em que teve de tomar rapidamente uma decisão, sua sorte dependendo de uma fra­ção de segundo, quando a menor hesitação em jogar uma cartada... sssst!

Smith tirou uma das mãos do volante e, com o polegar pa­ra baixo, imitou qualquer coisa que caía. Sorriu para Barber.

— Creio que o senhor foi um desses jovens que quase fo­ram mortos uma dezena de vezes.

— Acho que sim — respondeu Barber.

— Gosto desta característica dos americanos — falou Smith. — Faz com que se pareçam mais com os europeus.

— Como sabe que estive na guerra? — perguntou Barber, imaginando, pela primeira vez, se teria sido simples coincidên­cia o fato de Smith estar a seu lado na arquibancada, pouco antes do sexto páreo.

Smith deu uma risadinha.

— Há quanto tempo está em Paris? — perguntou. — Um ano e meio?

— Dezesseis meses — respondeu Barber, imaginando co­mo o homem podia saber isto também.

— Não há mistério nenhum nisso — disse Smith. — As pes­soas falam nos bares, nos jantares. Uma garota conta à ou­tra. Paris é uma cidade pequena. Onde quer que o deixe?

Barber olhou pela janela, para verificar onde estavam.

— Não muito longe daqui — disse ele. — Meu hotel fica ao lado da Avenida Victor Hugo. O carro não chega até lá.

— Ah, sim — falou Smith, como se conhecesse tudo sobre todos os hotéis. — Se não for muita indiscrição — continuou ele — pretende ficar muito tempo na Europa?

— Depende.

— De quê?

— Da sorte — respondeu Barber, sorrindo.

— Tem um bom emprego na América? — perguntou Smith, sem desviar os olhos do tráfego a sua frente.

— Dentro de 30 anos, trabalhando 10 horas por dia, talvez eu fosse o terceiro homem dentro da companhia — falou Barber.

Smith sorriu.

— Uma calamidade — disse ele. — Encontrou coisa mais interessante a fazer, por aqui?

— Ocasionalmente — respondeu Barber, começando a ter consciência de que estava sendo submetido a um interrogatório.

— É difícil interessar-se pelas coisas, depois de uma guer­ra — observou Smith. — Enquanto dura, uma guerra é abso­lutamente aborrecida. Depois, quando ela acaba, descobrimos que a paz é ainda mais aborrecida. É o pior resultado das guerras.

— Continua voando?

— De vez em quando.

— Ainda conserva o brevê?

— Sim.

— Faz bem — concordou Smith com um gesto.

Parou o carro bruscamente junto ao meio-fio e Barber saltou.

— Pronto, chegamos — disse Bert Smith, sorrindo e esten­dendo a mão que Barber apertou. A mão era gorda e macia, mas havia uma dureza de pedra sob aquela maciez.

— Obrigado por tudo — disse Barber.

— Obrigado pela companhia — falou Smith, segurando por um instante a mão de Barber, fitando-o lá de seu lugar. — Foi muito agradável. Espero que nos tornemos a ver. Talvez cada um de nós dê sorte ao outro.

— Sem dúvida... — falou Barber, sorrindo. — Sinto-me sempre à vontade na companhia de pessoas que me dão bar­badas de 18 por um.

Smith sorriu, soltando a mão de Barber.

— É possível que qualquer destes dias tenhamos uma aposta melhor que a de hoje — disse ele.

Smith abanou ligeiramente a mão e Barber fechou a porta do carro. O motorista arrancou bruscamente, entrando no trá­fego, quase fazendo com que dois carros se engavetassem lo­go atrás dele.

Foram necessárias duas semanas para Smith se declarar. Des­de o início, Barber sabia que alguma coisa vinha a caminho, mas esperou pacientemente, curioso e divertido, almoçando nos melhores restaurantes freqüentados por Smith, acompanhando-o a galerias de arte e ouvindo-o falar sobre o Impressionismo, indo com ele às corridas e ganhando mais que perdendo, baseado nas informações que Smith obtinha de homens que falavam entre dentes e circulavam pelo hipódromo. Barber fingia apreciar mais do que na realidade o fa­zia a companhia do esperto homenzinho e tinha certeza de que Smith, por sua vez, fingia gostar mais dele do que na realida­de gostava. Era uma espécie de namoro velado no qual ne­nhuma das partes se comprometera ainda. Apenas, ao contrário do que sucede nos namoros normais, durante as duas primei­ras semanas Barber não conseguiu saber o que Smith preten­dia dele.

Finalmente, certa noite, depois de um ótimo jantar e de uma esticada um tanto sem nexo pelos clubes noturnos, durante a qual o amigo mostrou-se estranhamente silencioso e abstraí­do, os dois estavam parados em frente do hotel de Smith, quan­do este fez sua jogada. Era uma noite fria e a rua estava deserta, com exceção de uma prostituta que conduzia um cãozinho e olhou para os dois, sem esperança, dirigindo-se então para os Campos Elíseos.

— Vai estar no hotel amanhã pela manhã, Lloyd? — per­guntou Smith.

— Vou — respondeu Barber. — Por quê?

— Por quê? — repetiu distraidamente Smith, olhando pa­ra a moça, que parecia enregelada e que, seguida pelo poodle, caminhava desanimada pela rua escura e vazia. — Por quê? — tornou a dizer, com uma risadinha forçada. — Porque quero mostrar-lhe uma coisa.

— Pois estarei em casa amanhã de manhã — falou Barber.

— Diga-me uma coisa, meu amigo — disse Smith, tocan­do levemente no braço de Barber com a mão enluvada —, tem idéia da razão que me levou a procurá-lo tantas vezes nas últi­mas semanas, pagando-lhe refeições caras e uísques de primeira?

— Com certeza, porque sou encantador, interessante e en­graçado — respondeu Barber. — E depois, porque deseja al­guma coisa de mim.

Smith riu francamente desta vez e alisou a manga de Barber.

— Você não é nenhum bobo, não é verdade, meu amigo?

— Não de todo — concordou Barber.

— Diga-me, amigo — falou Smith, quase num sussurro — que tal ganhar 25 mil dólares?

— Como? — perguntou Barber, achando que não tinha ou­vido bem.

— Psiu... — falou Smith, subitamente alegre. — Pense so­bre isto. Até amanhã de manhã. Obrigado por me ter acom­panhado até em casa.

Smith largou o braço de Barber e dirigiu-se para o hotel.

— Smith! — chamou Barber.

— Psiu... — falou Smith, levando o dedo à boca, num gesto gaiato. — Durma bem. Amanhã de manhã estarei com você.

Barber ficou observando-o entrar pela porta giratória de vi­dro e chegar ao imenso vestíbulo do hotel, fartamente ilumi­nado e completamente vazio. Deu um passo em direção à porta, tencionando segui-lo, depois parou, deu de ombros e levan­tando a gola do casaco caminhou vagamente na direção de seu próprio hotel. Já esperara todo este tempo, pensava, poderia esperar até de manhã.

Barber ainda estava deitado, na manhã seguinte, quando a porta se abriu e Smith entrou. O quarto estava escuro, com as cortinas corridas e Barber, ainda meio adormecido, pensa­va obscuramente: 25 mil... 25 mil... Abriu os olhos quando a porta foi aberta. Viu uma silhueta baixa e forte delineada contra a luz mortiça do corredor.

— Quem é? — perguntou, sem levantar-se.

— Lloyd, desculpe — falou Smith. — Durma outra vez. Virei vê-lo mais tarde.

Barber sentou-se abruptamente.

— Entre, Smith — disse ele.

— Não quero incomodá-lo...

— Entre, entre... — falou Barber saindo da cama, descal­ço, indo até a janela e abrindo a cortina. Olhou a rua, lá fora, estremeceu e fechou a janela.

— Puxa vida! Imagine você! O sol saiu! Feche a porta.

Smith fechou a porta. Usava um leve casaco de tweed cin­za, muito britânico, e um chapéu de feltro macio, muito ita­liano. Tinha na mão um grande envelope de papel manilha. Parecia ter tomado banho e se barbeado recentemente e esta­va perfeitamente acordado.

Barber, piscando à súbita luz do sol, vestiu um roupão, cal­çou um par de mocassins e acendeu um cigarro.

— Desculpe — falou. — Vou me lavar.

Dirigiu-se para trás do biombo que separava a pia e o bidê do resto do quarto. Enquanto se lavava, esfregando o rosto e molhando o cabelo com água fria, ouviu Smith dirigir-se para a janela, cantarolando, com uma suave e melodiosa voz de autêntico tenor, um trecho de ópera que Barber já tinha ouvi­do, embora não se lembrasse de qual era. Além de tudo mais, pensava ele, penteando os cabelos com força, aposto que este filho da mãe conhece 50 óperas.

Sentindo-se refrescado e menos em desvantagem com os den­tes escovados e os cabelos penteados, saiu de trás do biombo.

— Paris... — dizia Smith na janela, olhando para fora. — Que cidade agradável. Que farsa.

Voltou-se, sorrindo.

— Ah! — disse ele. — Que sorte você poder molhar os ca­belos... — Tocou tristemente os seus fios ralos, bem pentea­dos e observou: — Cada vez que penteio os cabelos eles caem como folhas secas. Quantos anos você disse que tem?

— Trinta — respondeu Barber, sabendo que Smith se lem­brava perfeitamente.

— Que idade! — falou Smith, suspirando. — O maravi­lhoso momento do equilíbrio. Velho bastante para saber o que quer e bastante jovem para enfrentar o que vier.

Saiu da janela, sentou-se e colocou o envelope de papel ma­nilha no chão, ao lado da cadeira.

— Qualquer coisa... — falou, olhando para Barber, quase com ar petulante. — Espero que ainda se lembre de nossa conversa.

— Lembro-me de um homem ter dito qualquer coisa a res­peito de 25 mil dólares — falou Barber.

— Ah! — exclamou alegremente Smith. — Você se lem­bra. E então?

— Então o quê?

— Então, você quer ganhá-los?

— Estou ouvindo — falou Barber.

Smith esfregou as mãos macias, delicadamente, diante do rosto. Os dedos rígidos produziram um som leve, seco e inde­finido.

— Surgiu uma pequena possibilidade — disse ele. — Uma interessante possibilidade.

— Que é que eu devo fazer para ganhar 25 mil dólares? — perguntou Barber.

— Que é que devo fazer para ganhar 25 mil dólares? — re­petiu Smith em voz baixa. — Você terá de voar um pouco. Tem voado por muito menos, não e verdade? — perguntou com uma risadinha.

— Certamente — respondeu Barber. — Que mais deverei fazer?

— Nada mais. Apenas voar — falou Smith, parecendo ad­mirado. — Ainda está interessado?

— Continue — disse Barber.

— Um amigo meu acaba de comprar um avião de um mo­tor, novinho em folha. Um Beechcraft, monomotor. Um avião perfeito, agradável, confortável, cem por cento seguro — fa­lou Smith, descrevendo com satisfação o aparelho tão seguro e confortável. — Naturalmente, este meu amigo não é piloto. Precisa de um piloto particular que esteja disponível a qual­quer momento.

— Por quanto tempo? — perguntou Barber, observando o outro com cuidado.

— Por 30 dias. Não mais — respondeu Smith, sorrindo para ele. — O salário não é mau, não é verdade?

— Não sei ainda — disse Barber. — Continue. Para onde seu amigo quer que eu voe?

— Acontece que o homem é egípcio... — falou Smith desculpando-se, como se ser egípcio fosse uma desgraça par­ticular que só se menciona entre amigos, ainda assim em voz baixa. — É um rico egípcio que gosta de viajar. Especialmen­te do Egito para o Sul da França e vice-versa. Está apaixona­do pelo Sul da França. Vai lá sempre que pode.

— Sim?

— Quer fazer duas viagens de ida e volta do Egito para as proximidades de Cannes, no próximo mês... — falou, olhan­do fixamente para Barber — em seu novo avião particular. Depois, na terceira viagem, vai descobrir que está com pres­sa. Tomará o avião comercial e o piloto o seguirá, dois dias depois, sozinho.

— Sozinho? — perguntou Barber, procurando apreender bem todos os detalhes.

— Sim, sozinho — falou Smith. — Isto é, sozinho, com exceção de uma pequena caixa.

— Ah! — exclamou Barber, sorrindo. — Finalmente sur­giu a pequena caixa.

— Finalmente — repetiu Smith, sorrindo para ele, delicia­do. — Foi tudo calculado. A pequena caixa pesará 120 quilos.

— E o que estará dentro desta pequena caixa de 120 qui­los? — perguntou Barber, calmo e aliviado agora que com­preendera o que lhe era oferecido.

— É absolutamente necessário saber?

— Que vou dizer ao pessoal da alfândega, se me pergunta­rem o que contém a caixa? Mando-os perguntar a Bert Smith?

— Você não terá que se envolver com funcionários alfan­degários, garanto-lhe. Quando levantar vôo do Cairo, a cai­xa não estará a bordo. E quando aterrissar no aeroporto de Cannes ela não estará a bordo. É o suficiente?

Barber tirou uma última baforada do cigarro e apagou-o. Ficou olhando pensativamente para Smith, sentado muito tran­qüilo na cadeira dura, naquele quarto desarrumado. Seu as­pecto era o de homem bem vestido e bem cuidado demais para estar naquele lugar, àquela hora. Drogas, foi o que Barber pen­sou. E mais: ele que as enfie...

— Não, amigo Barber, não é o suficiente. Vamos, diga. — Smith suspirou.

— Está mesmo interessado em saber?

— Estou mesmo interessado em saber.

— Muito bem — falou Smith contrariado. — O caso é o seguinte: Você terá que estabelecer uma rotina. Irá e voltará do Cairo diversas vezes. Seus papéis estarão sempre em or­dem impecável. Todos ficarão conhecendo você. Fará parte da rotina regular do aeroporto. Depois, na viagem que fará sozinho, tudo estará perfeitamente legal. Você levará apenas uma pequena mala com objetos pessoais. O plano do vôo mos­trará que seu destino é Cannes e descerá apenas em Malta e Roma, para reabastecer. Decolará do Cairo. Sairá do curso apenas por algumas milhas. Um pouco para dentro da costa, estará voando sobre o deserto. Descerá num campo de pouso da RAF que não é usado desde 1943. Lá estarão vários ho­mens... Está ouvindo?

— Estou ouvindo — respondeu Barber, que se dirigira à janela e lá ficara, de costas para Smith, olhando a rua enso­larada.

— Colocarão a caixa a bordo. Tudo não demorará mais de 10 minutos — falou Smith. — Em Malta, ninguém lhe per­guntará coisa alguma, porque você estará em trânsito, não sairá do avião e só demorará o tempo necessário para reabastecer o avião. A mesma coisa em Roma. Atingirá a costa sul da Fran­ça antes de nascer a lua. Mais uma vez — falou Smith, como se saboreasse as próprias palavras — sairá um pouco da rota. Voará baixo, acima das montanhas entre Cannes e Grasse. A certa altura, verá luzes. Descerá, abrirá a porta e jogará fora a caixa, a uma altura de 30 metros. Em seguida, fechará a porta e tomará o rumo do mar, aterrissando em Cannes. Seus pa­péis estarão em perfeita ordem. Não houve desvios de rota. Você nada terá a declarar. Sairá do avião pela última vez e lhe pagaremos os 25 mil dólares combinados. Não é fácil?

— Facílimo — disse Barber. — Um planozinho maravilho­so, amigo Bertie.

Voltou-se da janela.

— Agora diga o que conterá a caixa.

Smith riu, deliciado, como se o que ia dizer fosse engraça­do demais para guardar consigo.

— Dinheiro — disse ele. — Apenas dinheiro.

— Quanto?

— Cento e vinte quilos de dinheiro. Notas inglesas com­primidas dentro de uma leve caixa de metal, forte e bonita. Notas de cinco libras.

Neste momento, ocorreu a Barber a idéia de que talvez esti­vesse tratando com um louco. Mas lá estava Smith, sentado tranqüilamente; com seu aspecto saudável e era claro que aquele homem jamais tivera a menor dúvida sobre a própria sanida­de mental.

— Quando receberei o pagamento? — perguntou.

— Quando a caixa for entregue — disse Smith.

— Amigo Bertie... — falou Barber, balançando a cabeça com desaprovação.

Bert sorriu.

— Eu sabia que não estava lidando com nenhum tolo, dis­se ele. — Muito bem. Depositaremos 12 mil e 500 dólares em seu nome, num banco suíço, antes da primeira viagem ao Egito.

— Confia em mim até este ponto?

O sorriso desapareceu imediatamente dos lábios de Smith.

— Confiaremos em você até este ponto — falou. E o sorri­so voltou. — Imediatamente depois de feita a entrega, depo­sitaremos o restante. Uma bela proposta. Moeda corrente. Nenhum desconto para o imposto de renda. Você será um ho­mem rico. Meio rico... — e Smith riu do próprio espírito. — Tudo por uma simples viagem de avião. Apenas para ajudar um egípcio que gosta do Sul da França e que, naturalmente, anda um tanto preocupado com a instabilidade de seu país.

— Quando deverei encontrar-me com o egípcio? — pergun­tou Barber.

— Quando for ao aeroporto para sua primeira viagem. Não se preocupe. Ele estará lá. Aceita? — perguntou Smith com ansiedade.

— Estou refletindo — respondeu Barber.

— Não é como se estivesse traindo sua pátria — falou Smith com ar compungido. — Jamais pediria a um homem que fi­zesse uma coisa destas. A um homem que lutou na guerra pelo seu país. Também não é como se estivesse lesando os ingle­ses. Os ingleses, por quem você decerto tem alguma afeição. Mas os egípcios? — concluiu Smith encolhendo os ombros, pegando o envelope de papel manilha e abrindo-o. — Trouxe aqui todos os mapas — disse ele — para o caso de você querer estudá-los. A rota está toda marcada mas, naturalmente, fica tudo por sua conta, já que afinal você é quem vai voar.

Barber pegou o grosso maço de mapas e abriu um, ao aca­so. Mostrava apenas o caminho do mar até Malta e a locação do campo de aterrissagem lá existente. Barber pensava nos 25 mil dólares e o mapa tremia um pouco em suas mãos.

— É ridiculamente fácil — observou Smith. — Uma barbada.

Barber largou o mapa.

— Se é tão fácil, por que você está pagando 25 mil dóla­res? — perguntou.

Smith deu uma risada.

— Admito que possa haver certos riscos — disse ele. — É pouco provável, mas nunca se tem certeza. Pagamos pela in­certeza, se quiser colocar a coisa desta forma. — Deu de om­bros. — Afinal de contas, depois de uma guerra, você deve estar calejado no que se refere a riscos.

— Quando quer a resposta? — perguntou Barber.

— Hoje à noite. Naturalmente, se você disser não, teremos de fazer outros planos. E meu amigo egípcio está impaciente.

— Teremos? Você e quem?

— Naturalmente, trabalho com outras pessoas.

— Quem são elas?

Smith fez um gesto desolado.

— Sinto muito — disse ele — mas não posso dizer-lhe.

— Telefono para você hoje à noite — falou Barber.

— Ótimo.

Smith levantou-se, abotoou o casaco e colocou o chapéu com cuidado, num ângulo conservador. Alisou a aba, delicadamen­te, com prazer.

— Vou às corridas hoje à tarde. Talvez queira encontrar-se lá comigo.

— Onde é a corrida hoje?

— Auteuil. É uma corrida de obstáculos.

— Tem alguma dica?

— Talvez. Há uma égua que vai correr pela primeira vez. Conversei com o jóquei e ele me disse que ela tem boas possi­bilidades. Mas saberei ao certo lá pelas 3 horas.

— Estarei lá.

— Ótimo — falou Smith com animação. — Embora seja contra meus interesses enriquecer você por antecipação... — Deu uma risadinha. — Seja como for, pela nossa amizade... Deixo os mapas?

— Sim. — respondeu Barber.

— Até as três — falou Smith, quando Barber abriu a porta para ele. Apertaram-se as mãos e Smith saiu, um homem ri­co, vestido de tweed e perfumado, seguindo pelo corredor fra­camente iluminado do hotel.

Barber fechou a porta, pegou os mapas e espalhou-os so­bre a cama. Havia muito tempo que não examinava um mapa aéreo. Norte do Egito. O Mediterrâneo. A Ilha de Malta. Sicília e a costa italiana. O Golfo de Gênova. Os Alpes Maríti­mos. Ficou examinando os mapas. O Mediterrâneo lhe pareceu muito grande. Na verdade, não lhe agradava voar acima de tanta água num monomotor. Na realidade, não gostava de voar. Depois da guerra, voara o menos possível. Não procurara ex­plicar o caso a si mesmo, mas quando tinha de viajar preferia o carro, o trem ou o navio, sempre que possível.

Vinte e cinco mil dólares!

Dobrou os mapas cuidadosamente e recolocou-os no enve­lope. Naquele estágio das coisas os mapas de pouco lhe ser­viriam.

Tornou a deitar na cama, meio recostado nos travesseiros, com as mãos cruzadas na nuca. Mar aberto, pensava. Cinco vezes. Mesmo isto não era assim tão ruim. Mas o que dizer dos egípcios? Estivera ligeiramente no Cairo, durante a guer­ra. Lembrava-se de que à noite os policiais egípcios andavam aos pares, portando carabinas. Não gostava dos lugares onde os policiais portam carabinas. E as prisões egípcias...

Mexeu-se na cama, inquieto.

Quem poderia saber quantas pessoas estavam a par de um plano como aquele? E bastava uma para arruinar tudo. Um criado ou sócio mal satisfeito, um cúmplice ambicioso ou tí­mido... Fechou os olhos e quase via os homens gordos, de uni­formes escuros, com suas carabinas, dirigindo-se para seu aviãozinho novo e brilhante...

E suponhamos que um pneu estourasse ou uma roda enguiçasse na aterrissagem? Em que condições estaria aquele cam­po abandonado no deserto desde 1943?

Vinte e cinco mil dólares!

Era muito dinheiro! Valia a pena pensar no caso. A caixa estaria no banco a seu lado e a costa egípcia se iria afastando, o mar azul estendendo-se lá embaixo e o motor funcionando como um relógio... surge então o primeiro indício da patru­lha. O pontinho brilhante começa a crescer... Que avião usa a Força Aérea Egípcia? Suponhamos que sejam Spitfires que sobraram da guerra. Viriam rapidamente, voando com o do­bro de sua velocidade, fazendo-lhe sinais para que voltasse...

Barber acendeu um cigarro. Cento e vinte quilos. Digamos que somente a caixa — teria de ser bem forte — pesasse 20 quilos. Quanto pesaria uma nota de cinco libras? Haveria mil por quilo? Cinco mil multiplicado por 100, com a libra a 160... Perto de 1 milhão e meio de dólares. Sentiu a boca seca, levantou-se e tomou dois copos de água. Sentou-se novamen­te, procurando acalmar-se, dominando o tremor das mãos. Se houvesse um desastre, se por qualquer razão não conseguisse cumprir a missão... se o dinheiro se perdesse e você se salvas­se... Smith não parecia um assassino, mas afinal, quem pode dizer quem é assassino hoje em dia? E quem saberia com que outras pessoas estaria ele envolvido? Outras pessoas, dissera ele, mas quem seriam essas outras pessoas? O rico egípcio, os vários homens no antigo campo de aterrissagem em pleno de­serto, as pessoas que providenciariam as luzes num outeiro pró­ximo a Cannes... quantas outras, passando sorrateiramente pelas fronteiras, indo secretamente, ilegalmente, de um país a outro, com armas e ouro na bagagem, sobreviventes da guerra, da prisão, das denúncias... quantas outras, desconhecidas, que veria de relance à luz do sol da África, ou como um vulto que corria num escuro outeiro da França, pessoas a quem não teria acesso nem poderia julgar, mas de quem sua vida depen­deria; pessoas que se arriscavam a ser presas, deportadas ou levar uma bala da polícia pela sua parte numa caixa cheia de dinheiro...

Barber levantou-se, vestiu-se e saiu, fechando a porta. Não queria ficar sentado naquele quarto frio e desarrumado, olhan­do aqueles mapas.

Vagou pela cidade o resto da manhã, olhando as vitrinas e pensando nas coisas que poderia comprar se tivesse dinhei­ro. Voltando-se de uma vitrina, viu um policial que olhava para ele, desconfiado. Um homem baixo, de rosto mau e bi­gode fino. Olhando para o policial, Barber lembrou-se de al­gumas histórias que tinha lido sobre o que faziam com as pessoas suspeitas que interrogavam nas salas dos fundos dos distritos policiais. De pouco serviria um passaporte america­no, se você fosse pilhado com 500 mil libras inglesas debaixo do braço.

É a primeira vez na minha vida, pensava Barber, com es­panto, caminhando devagar pela cidade cheia de gente, que penso na possibilidade de passar para o outro lado da lei. Surpreendia-se por pensar tão calmamente no caso. Não sa­beria dizer por quê. Talvez efeito do cinema e dos jornais, pen­sava. As pessoas tornam-se tão familiarizadas com o crime que este se torna humanizado e acessível. Não pensam nele, mas, quando surge em sua vida, compreendem que no subconsciente vêm aceitando a idéia do crime como um complemento quase normal da vida cotidiana. Os policiais devem saber disso, pen­sava, vendo imediatamente as coisas por outro prisma. De­certo olham os rostos comuns, fechados, que passam por eles e sabem logo como estão próximos do roubo, do assassinato e de prejudicar o próximo, conhecimento que os deixa malu­cos. Devem ter vontade de prender a todos.

Quando Barber observava os cavalos correndo em volta da raia, antes de começar o sexto páreo, sentiu um tapinha no ombro.

— Amigo Bertie... — falou, sem se voltar.

— Desculpe por estar atrasado — falou Smith, aproximando-se da grade onde estava Barber. — Receou que eu não viesse?

— Soube alguma coisa do jóquei? — perguntou Barber.

Smith olhou em volta, desconfiado. Depois sorriu:

— O jóquei está confiante — disse ele. — Apostou também.

— Qual é o cavalo?

— O Número Cinco.

Barber observou o Número Cinco. Era uma égua castanha clara, com uma bela cabeça delicada. Tinha a crina e a cauda bem aparadas e o passo era vivo, mas não nervoso. Bem tra­tada, seu pêlo era brilhante. O jóquei era um homem de seus 40 anos, de nariz comprido e curvo, tipicamente francês. Era feio e quando abria a boca notava-se que vários dentes da frente estavam faltando. Usava um boné marrom que cobria as ore­lhas e uma camisa de seda branca pontilhada de estrelinhas marrons.

Olhando para ele, Barber pensou que era uma pena um ho­mem tão feio montar um animal tão bonito.

— O.K., amigo Bertie — disse ele. — Vamos ao guichê.

Barber apostou 10 mil francos na cabeça. O cachê era ani­mador: 7 por 1. Smith apostou 25 mil francos. Seguiram lado a lado para as arquibancadas, onde subiram juntos no mo­mento em que os animais se dirigiam para a raia. Havia pou­ca gente no hipódromo e apenas alguns expectadores nos bancos mais altos.

— E então, Lloyd — falou Smith. — Deu uma olhada nos mapas?

— Sim, examinei os mapas — respondeu Barber.

— Que tal achou?

— São ótimos mapas.

Smith olhou fixamente para Barber. Depois resolveu dar uma risadinha.

— Quer me fazer de tolo, não? Sabe muito bem o que quero dizer. Decidiu-se?

— Eu... — começou a dizer Barber, olhando para os cava­los que iam a meio galope. Respirou fundo. — Direi depois da corrida. — falou ele.

— Lloyd!

A voz vinha de baixo, à direita, e Barber voltou-se naquela direção. Subindo os degraus, viu Jimmy Richardson. Sempre fora um tanto gorducho, rechonchudo como um bebê, e a co­mida parisiense nada fizera para torná-lo mais magro. Arquejava, com o paletó aberto, mostrando uma camisa xadrez, enquanto subia para encontrar-se com Barber...

— Como vai? — falou ofegante, quando chegou à altura onde estava o outro. Bateu amistosamente nas costas do ami­go. — Vi você cá em cima e imaginei que tivesse alguma bar­bada para este páreo. Não tenho o menor palpite e ouvi muita conversa fiada o dia todo. Não entendo muito de saltos.

— Alô, Jimmy — disse Barber. — Sr. Richardson, Sr. Smith...

— Prazer em conhecê-lo — disse Richardson. — Como se escreve seu nome?

Riu-se de sua própria piada e continuou:

— Francamente, Lloyd, sabe de alguma coisa? Maureen é capaz de me matar se chegar em casa e disser a ela que perdi a tarde toda.

Barber lançou um olhar a Smith que observava Jimmy com ar benevolente.

— Bem... — disse ele — acho que o amigo Bertie sabe de alguma coisa...

— Amigo Bertie — implorou Richardson — por favor...

— O Número Cinco me parece muito bom... — falou Smith em voz baixa, sorrindo levemente. — Mas é melhor andar de­pressa. Vão começar a qualquer momento.

— Número Cinco — disse Richardson. — Entendido. Vol­to logo.

Desceu correndo, o paletó voando atrás dele...

— É um sujeito confiante, não? — perguntou Smith.

— É filho único — respondeu Barber. — Nunca deixou de agir como tal.

Smith sorriu delicadamente.

— De onde o conhece?

— Fazia parte de meu esquadrão.

— De seu esquadrão — repetiu Smith, abanando a cabeça e observando Richardson que corria, seu vulto tornando-se me­nor à medida que se dirigia para o guichê das apostas. — Piloto?

— Hum-hum...

— Bom?

Barber encolheu os ombros.

— Outros, melhores que ele, foram mortos e muitos pio­res receberam condecorações.

— Que é que ele faz em Paris?

— Trabalha para uma firma farmacêutica — respondeu Barber.

Foi dado o sinal e os cavalos correram na direção do pri­meiro obstáculo.

— Acho que seu amigo chegou tarde — comentou Smith, levando o binóculo aos olhos.

— É — respondeu Barber, observando a largada.

O Número Cinco caiu no quarto obstáculo. Pulou junto com mais dois cavalos e de repente caiu e rolou. Os outros passaram à sua volta. O quarto obstáculo ficava bem no fim da pista e era difícil ver o que estava acontecendo, até que um instante depois a égua conseguiu levantar-se e saiu a meio galope atrás dos outros animais, as rédeas arrebentadas e soltas. Foi então que Barber viu o jóquei deitado, imóvel, encurvado, de rosto no chão, a cabeça metida debaixo do ombro.

— Perdemos nosso dinheiro — falou Smith calmamente. Tirou o binóculo dos olhos, pegou as pules, rasgou-as e jogou-as fora.

— Quer me emprestar um instante, por favor? — pediu Bar­ber, pegando o binóculo. Smith retirou a alça, passando-a so­bre a cabeça, e Barber assestou o binóculo no ponto distante onde o jóquei estava deitado. Dois homens corriam para jun­to dele, virando-o.

Barber ajustou o binóculo e os vultos dos dois homens que cuidavam da figura imóvel saíram da névoa e entraram no foco. Mesmo através do binóculo, notava-se qualquer coisa de ter­rivelmente urgente e desesperada nos movimentos dos homens, a distância. Os dois seguraram o jóquei e começaram a carregá-lo desajeitadamente para fora da pista.

— Droga! — dizia Richardson, aproximando-se. — O gui­chê acabava de se fechar quando cheguei e...

— Não se queixe, Sr. Richardson — falou Smith. — Caí­mos no quarto obstáculo.

Richardson sorriu.

— Foi meu primeiro golpe de sorte hoje.

Lá embaixo, em frente das arquibancadas, a égua desarvorada desviava-se, galopando pela raia afora, procurando livrar-se de um rapaz que tentava segurar as rédeas partidas.

Barber continuava focalizando os dois homens que carre­gavam o jóquei. De repente, depuseram-no sobre a grama e um deles curvou-se e encostou o ouvido na camisa de seda bran­ca. Depois de algum tempo, levantou-se. Os dois recomeça­ram a carregar o jóquei, mas andavam agora vagarosamente, como se já não fizesse sentido apressar-se.

Barber entregou o binóculo a Smith.

— Vou para casa — disse ele. — Chega de esporte por hoje.

Smith dirigiu-lhe um olhar agudo. Levou o binóculo aos olhos e focalizou os homens que carregavam o jóquei. Em se­guida, colocou o binóculo na caixa e passou a alça pelo ombro.

— Matam no mínimo um por ano — falou em voz baixa. — É de se esperar, num esporte como este. Vou para casa com você.

— Esperem aí! — exclamou Richardson. — Aquele sujei­to está morto?

— Já estava ficando velho demais — observou Smith. — Demorou demais a largar.

— Santo Deus! — exclamou Richardson, olhando para a raia, lá embaixo. — E eu fiquei chateado por ter chegado tar­de para apostar nele. Isto é que se chama uma barbada... — disse sorrindo, um sorriso de criança. — Apostar num jóquei morto!

Barber começou a descer, rumo à saída.

— Vou com vocês — disse ele. — Hoje é meu dia de sorte.

Os três homens desceram das arquibancadas sem falar. As pessoas estavam reunidas em pequenos grupos e havia por to­da parte um estranho murmúrio abafado, agora que a notícia começava a circular.

Chegando ao carro, Barber sentou-se no banco de trás, dei­xando Richardson perto de Smith, no banco da frente. Que­ria pelo menos um pouco de solidão, no momento.

Smith dirigia devagar e em silêncio. O próprio Richardson falou apenas uma vez.

— Que maneira de morrer... — disse ele, enquanto seguiam por entre as altas árvores desfolhadas. — Numa corrida de segunda, numa corrida de 300 mil francos como prêmio!

Barber ficou sentado a um canto, com os olhos semicerrados, sem olhar para fora. Revia a última vez que os dois ho­mens haviam pegado o jóquei. “A barbada de Smith para aquela tarde!”, pensava. Fechou os olhos e viu os mapas es­palhados em seu quarto. O Mediterrâneo. A vastidão do alto-mar. Lembrou-se do cheiro de queimado. O pior de todos os cheiros. O cheiro de seus pesadelos durante a guerra. O chei­ro de metal quente, de borracha derretida. A barbada de Smith.

— Chegamos — dizia Smith.

Barber abriu os olhos. Estavam parados junto ao beco sem saída, no fundo do qual ficava a porta de seu hotel. Desceu do carro.

— Espere um instante, Bertie. Quero entregar-lhe uma coisa.

Smith olhou para ele, intrigado.

— Não pode ficar para depois, Lloyd? — perguntou.

— Não. Espere um instante.

Barber entrou no hotel e subiu ao quarto. Os mapas esta­vam dobrados, empilhados na penteadeira, com exceção de um que estava aberto ao lado dos outros. O caminho de Mal­ta. Dobrou-o rapidamente e colocou todos no envelope de papel manilha, voltando ao carro. Smith estava de pé, do lado de fora, fumando, segurando nervosamente o chapéu, porque começara a ventar e as folhas secas esvoaçavam sobre a calçada.

— Aqui está, amigão — disse Barber, estendendo-lhe o en­velope.

Smith não o recebeu.

— Tem certeza do que está fazendo?

— Plena.

Ainda assim, Smith não recebeu os mapas.

— Não tenho pressa — falou em voz baixa. — Não quer ficar com eles mais um dia?

— Não, obrigado.

Smith olhou silenciosamente para Barber durante um mo­mento. As lâmpadas da rua acabavam de acender-se, com sua azulada luz fluorescente e sob elas o rosto de Smith parecia pálido sob o caro chapéu e seus bonitos olhos negros estavam inexpressivos, sob os cílios recurvados.

— Só porque um jóquei cai num obstáculo... — começou ele a dizer.

— Tome! — falou Barber — Do contrário jogo-os na sarjeta.

Smith estendeu a mão e pegou o envelope.

— Jamais terá outra oportunidade como esta... — disse ele alisando com os dedos a beira do envelope.

— Boa noite, Jimmy — falou Barber, inclinando-se na porta do carro onde estava o amigo, olhando a cena muito admira­do. — Dê lembranças minhas a Maureen.

— Espere aí, Lloyd — falou Jimmy, começando a sair do carro. — Vamos tomar um tragos juntos. Maureen só me es­pera daqui a uma hora e poderemos bater um papo, falar so­bre velhos conhecidos...

— Sinto muito — disse Barber, que desejava, acima de tu­do, estar só. — Tenho um encontro. Fica para outro dia.

Smith voltou-se e olhou pensativamente para Richardson.

— Esse seu amigo sempre tem um encontro. É um rapaz muito popular. Quanto a mim, sinto que estou precisando de uns tragos e ficaria muito honrado, Sr. Richardson, se me acompanhasse.

— Bem... — falou Richardson sem muita convicção. — Moro perto do Hotel de Ville e...

— Fica no meu caminho — disse Smith, sorrindo cor­dialmente.

Richardson acomodou-se novamente no carro e Smith fez menção de entrar. Parou e ergueu os olhos para Barber.

— Eu me enganei a seu respeito, não é verdade, Lloyd? — disse com desprezo.

— Exatamente! — respondeu Barber. — Estou ficando ve­lho para me entusiasmar com novas aventuras.

Com uma risadinha, Smith entrou no carro. Não houve aper­tos de mão. Smith bateu a porta do carro e Barber ficou olhan­do, enquanto ele se afastava rapidamente do meio-fio, obrigando um motorista de táxi a frear bruscamente, para evi­tar uma batida. Seguiu ainda com os olhos o grande carro preto que avançava velozmente pela rua, sob a luz forte e azulada. Em seguida, voltou ao hotel, subiu a seu quarto e deitou-se, porque uma tarde nas corridas sempre o deixava exausto.

Levantou-se uma hora mais tarde. Lavou o rosto em água fria, para despertar, mas continuou a sentir-se inquieto e va­zio. Não estava com fome nem com sede e seus pensamentos se voltavam constantemente para o jóquei, via a camisa su­ja... Não queria ver ninguém. Vestiu o paletó e saiu, detes­tando o quarto que fechou atrás de si.

Caminhou vagarosamente na direção da Étoile. Era uma noi­te fria e úmida, a neblina começava a vir do rio e as ruas encontravam-se quase desertas, porque todos estavam em ca­sa jantando. Não olhou para as vitrinas iluminadas porque não iria comprar coisa alguma por muito tempo. Passou por vários cinemas, os anúncios de néon brilhando ao nevoeiro que começava a espessar-se. No filme, pensou ele, o herói es­taria agora a caminho da África. Escaparia por pouco de ser apanhado no Egito, mataria vários homens morenos no cam­po de aterrissagem do deserto. Teria problemas com o motor quando sobrevoasse o Mediterrâneo, mas conseguiria safar-se, com a água quase tocando a ponta das asas e, provavel­mente, cairia, sem se machucar muito, ficando apenas com um corte fotogênico na testa. E, o mais importante, conseguiria salvar a caixa bem a tempo. No fim, este herói seria um agente do Tesouro ou um membro do Serviço Secreto In­glês que jamais duvidaria da própria sorte e da própria cora­gem e não chegaria ao final do filme com apenas alguns poucos francos no bolso. Se fosse um filme artístico, as montanhas estariam cobertas de forte nevoeiro e o avião estaria perdido, voando sem direção e, finalmente, quando os tanques estives­sem vazios, cairia em chamas. O herói, massacrado e cambaleante, tentaria retirar a caixa mas não conseguiria e as chamas acabariam por expulsá-lo. Encostado numa árvore, acabaria rindo loucamente, com o rosto preto de fumaça, vendo o avião e o dinheiro se queimarem, mostrando a inutilidade das am­bições humanas desmedidas.

Barber sorriu desanimado, ensaiando as cenas, diante dos grandes cartazes coloridos nas portas dos cinemas. Os filmes são mais perfeitos. As aventuras acontecem apenas com quem é aventureiro. Afastou-se dos Campos Elíseos, caminhando vagarosamente e sem rumo, tentando decidir se seria melhor comer ou beber um trago, primeiro. Quase automaticamente, dirigiu-se para o Plaza Athénée. Nas duas semanas em que Smith o cortejara, tinham-se encontrado quase todas as noi­tes no bar inglês do Plaza.

Entrou no hotel e desceu para o bar. Ao entrar na sala, viu, a um canto, Smith e Jimmy Richardson.

Barber sorriu. Amigo Bertie, pensou ele, você está perden­do o seu tempo. De pé junto ao bar, pediu um uísque.

— ... cinqüenta vôos... — dizia Richardson, com sua voz alta que se ouvia por toda parte. — África, Sicília, Itália, Iugo...

Foi quando Smith o viu. Cumprimentou-o secamente, com um gesto de cabeça que não sugeria, sequer, um convite. Ri­chardson voltou-se na cadeira e também viu Barber. Sorriu para ele, meio sem jeito e ficou muito vermelho como se ti­vesse sido pilhado pelo amigo em companhia de sua namorada.

Barber cumprimentou-os com a mão. Por um instante, pen­sou em aproximar-se e tentar tirar Richardson daquela em­brulhada. Ficou observando os dois homens, tentando imaginar o que um pensaria do outro. Ou, para ser mais exato, o que Smith pensaria de Richardson. No caso de Jimmy, não era pre­ciso pensar muito. Se alguém lhe pagava uma bebida era seu amigo pelo resto da vida. Apesar de tudo por que já passara — a guerra, o casamento, os dois filhos e o fato de morar nu­ma terra estranha — Jimmy nunca pensava que alguém pu­desse não gostar dele ou querer prejudicá-lo. Quem gostasse de Jimmy, chamaria a isto ser confiante. Qualquer outro di­ria que era estupidez.

Barber examinava detidamente o rosto de Smith. Já o co­nhecia bem para poder dizer, sem errar, o que se passava por detrás dos bonitos olhos e daquele rosto bem cuidado. Naquele momento, notou que Smith estava chateado e louco para se livrar de Jimmy.

Voltou à sua bebida, sorrindo consigo mesmo. Bastaria uma hora, pensava ele, uma hora ouvindo aquela voz alta e inex­pressiva, olhando para aquele rosto bem-humorado mas vul­gar, para o amigo Bertie convencer-se de que aquele não era o homem que voaria do Cairo até Cannes, com uma caixinha cheia de notas de cinco libras.

Barber acabou depressa seu uísque e saiu antes de Smith e Richardson se levantarem da mesa. Não tinha nada a fazer naquela noite, mas não queria jantar em companhia de Jimmy e Maureen Richardson.

 

E agora, dois meses se tinham passado e havia 32 dias que ninguém ouvia falar em Jimmy Richardson.

Durante a tarde inteira à sua procura, Barber não tivera a mínima notícia de Smith. O homem não era encontrado nos restaurantes, nas galerias de arte, no salão de barbeiro, no ba­nho turco nem nos bares. E ninguém o vira nas últimas semanas.

Eram quase 8 horas da noite quando Barber chegou ao bar do Plaza Athénée. Estava encharcado, por ter andado o dia: todo na chuva, cansado, com os sapatos molhados e sentindo que ia ficar resfriado. Olhou em volta da sala, que estava quase vazia. Fazendo uma concessão a si próprio e pensando nos táxis que tomara durante o dia, pediu um uísque.

Ia tomando seu uísque na sala silenciosa e os pensamentos lhe acudiam em círculos. Eu deveria ter feito alguma coisa. Mas o que haveria de dizer? E Jimmy não me teria dado ouvi­dos. Mas eu deveria ter dito alguma coisa. As perspectivas são más, Jimmy, vá para casa... Vi um avião espatifando-se no chão, no quarto obstáculo, vi um corpo sendo carregado atra­vés da grama seca, por egípcios, Jimmy. Vi mapas sujos de sangue...

Por que não interferi no negócio, pensava Barber, amarga­mente. Por que confiei na estupidez de Jimmy, a ponto de pen­sar que ninguém lhe ofereceria tanto dinheiro? Por que fui imaginar que Bert Smith era esperto demais para contratar um cara como Jimmy?

Não fizera nada do que deveria ter feito e agora estava en­volvido com uma moça desesperada, sem marido e sem dinhei­ro, pedindo uma ajuda que era tarde demais para dar-lhe. Sem dinheiro! Jimmy fora tão estúpido, que nem um adiantamen­to pedira.

Lembrava-me de Jimmy e Maureen, sorridentes, encabulados, jovens e cheios de esperança, no dia em que se casaram em Shreveport, ao lado do Coronel Summers, o Comandante do Grupo. Lembrava do avião de Jimmy, quase colado às asas do seu, quando sobrevoavam a Sicília; de seu rosto, quando desceram em Foggia com um dos motores em chamas. Recordava-se da voz de Jimmy, cantando, embriagado, num bar de Nápoles e do que lhe dissera o amigo no dia seguinte ao de sua chegada a Paris: “Rapaz, esta é a cidade que me serve. Fiquei com a Europa no sangue!”

Terminou a bebida, pagou e subiu as escadas. Dirigiu-se a uma cabina telefônica e ligou para seu hotel, para saber se havia recado.

— A Sra. Richardson telefonou, pede-lhe que ligue para ela.

— Obrigado — disse Barber. Ia desligando quando o ve­lho falou, irritado:

— Espere um instante! Ela ligou há uma hora dizendo que ia sair. Pediu que se o senhor voltasse antes das 9, ela gostaria que fosse encontrar-se com ela no bar do Hotel Bellman.

— Obrigado, Henri — falou Barber. — Se por acaso ela telefonar novamente, diga-lhe que vou para lá.

Saiu do hotel. O Bellman ficava perto. Caminhou devagar, embora continuasse a chover. Não tinha a menor pressa de encontrar-se com Maureen Richardson.

Chegando ao hotel, hesitou antes de entrar, sentindo-se can­sado para enfrentar a situação, desejando que fosse possível deixar Maureen para o dia seguinte. Suspirou e abriu a porta. O bar era pequeno, mas estava repleto de homens gordos e bem vestidos que ali iam tomar um drinque antes de saírem para jantar. Foi então que viu Maureen. Estava sentada a um canto, de costas para a sala, e tinha o casaco velho e fino nas costas da sua cadeira. Estava sozinha e havia a seu lado um balde com champanha.

Barber inclinou-se para ela, irritado por causa do champa­nha. Aí está ela gastando meus 5 mil francos, pensou, aborre­cido. As mulheres andam loucas, nos dias que correm.

Inclinou-se e beijou-a no alto da cabeça. Maureen ergueu a cabeça, assustada, depois sorriu, ao ver quem era.

— Oh! Lloyd... — falou, num estranho sussurro. Levantou-se e beijou Barber, abraçando-o com força. Seu hálito cheira­va a champanha e Barber imaginou que estivesse meio alta.

— Lloyd, Lloyd... — disse ela, afastando-o um pouco, mas segurando-o com as duas mãos. Os olhos estavam cheios de lágrimas e as mãos tremiam.

— Vim logo que recebi seu recado — falou Lloyd, tentan­do ser prático, temendo que Maureen se descontrolasse na fren­te de todos os presentes. Ela continuava de pé, lábios trêmulos, segurando-o nervosamente. Muito sem jeito, Barber olhou para as mãos dela. Estavam com as unhas ainda sem fazer, mas um enorme anel brilhava em um dos dedos, com reflexos bran­cos e azuis. Quase com medo, Barber ergueu os olhos. Que diabo andara ela fazendo?

Foi então que viu Jimmy. Jimmy que caminhava entre as mesas, na direção dos dois. Tinha um sorriso aberto nos lá­bios, perdera um pouco de peso e estava bronzeado; todo o seu aspecto era de quem acabara de chegar de um mês de fé­rias nos mares do sul.

— Alô, rapaz! — falou com seu vozeirão que se ouvia por sobre as mesas, dominando o murmúrio das conversas. — Es­tava telefonando para você.

— Ele voltou para casa... — falou Maureen. — Chegou às 4 horas da tarde, Lloyd.

Sentou-se. Fosse o que fosse que tivesse acontecido depois das 4 horas da tarde, o certo era que Maureen andara beben­do. Sentou-se, ainda segurando uma das mãos de Barber e olhando, com uma expressão um tanto vaga, para o rosto do marido.

Jimmy deu uns tapinhas nas costas de Barber e os dois apertaram-se vigorosamente as mãos.

— Lloyd... — disse ele. — O nosso velho Lloyd... Garçom! — gritou e sua voz reverberou por toda a sala. — Outro co­po. Tire o casaco. Sente-se.

Lloyd tirou o casaco e sentou-se vagarosamente.

— Bem-vindo ao lar — disse ele tranqüilamente, assoando o nariz. O resfriado chegara.

— Em primeiro lugar — disse Jimmy — Tenho uma coisa para você. Cerimoniosamente, enfiou a mão no bolso e tirou uma nota de 10 mil francos.

— Maureen me contou — falou com solenidade. — Você foi um bocado amigo. Tem troco para 10?

— Acho que não — disse Barber. — Não.

— Garçom... — disse Jimmy ao rapaz que acabara de tra­zer o terceiro copo — troque isto para mim por duas de cin­co, por favor.

Quando Jimmy falava francês, seu sotaque fazia tremerem até os americanos.

Jimmy encheu com cuidado os três copos. Ergueu o seu e bateu-o primeiro no de Barber, depois no de Maureen, que continuava olhando para ele como se o estivesse vendo pela primeira vez e como se não esperasse ver coisa tão maravilho­sa em dias de sua vida.

— Ao crime! — disse Jimmy, piscando. Ficava com uma cara complicada quando piscava, como o bebê que tem difi­culdade de executar esse movimento e, para isso, tem de usar todo um lado do rosto e mais a testa.

Maureen deu uma risadinha.

Beberam. Era um ótimo champanha.

— Vai jantar conosco — disse Jimmy. — Só nós três. O jantar da vitória. Só a Beleza, eu e você, porque se não fosse por você...

Com súbita solenidade, colocou a mão no ombro de Barber.

— É verdade — falou Barber, sentindo os pés gelados e as pernas das calças frouxas, em volta das meias molhadas. Te­ve de assoar novamente o nariz.

— Beleza mostrou a você o anel? — perguntou Jimmy.

— Mostrou — respondeu Barber.

— Ganhou-o hoje às 6 horas — informou Jimmy.

Maureen estendeu a mão e ficou olhando o anel. Riu no­vamente.

— Sei de um lugar — falou Jimmy — onde se come um ótimo faisão e onde se bebe o melhor vinho de Paris e...

O garçom voltou e entregou a Jimmy duas notas de 5 mil francos. Barber pensou vagamente em quanto pesariam.

— Se algum dia estiver num aperto — disse ele, entregan­do a Barber uma das notas — sabe a quem recorrer, não?

— Sei — respondeu Barber, guardando a nota no bolso.

Começou então a espirrar e 10 minutos mais tarde pediu des­culpas, dizendo não ser possível ficar até o fim da noite, com um resfriado daqueles. Tanto Jimmy como Maureen insisti­ram para que ele ficasse, mas Barber sabia que ambos passa­riam melhor sem ele.

Tomou outro copo de champanha, dizendo que entraria em contato com eles e saiu do bar, sentindo os dedos dos pés con­gelados dentro dos sapatos molhados. Estava com fome, gos­tava muito de faisão e o resfriado, na realidade, não era tão forte, mesmo que o nariz continuasse a escorrer o tempo to­do. Mas sabia que não seria capaz de suportar a noite inteira os olhares que Jimmy e Maureen trocavam entre si.

Voltou a pé para o hotel, porque estava farto de táxis, subiu ao quarto e ficou sentado na beira da cama, no escuro, sem sequer tirar o casaco.

É melhor eu dar o fora daqui, pensava, ao mesmo tempo que enxugava o nariz com as costas da mão. Este continente não é para mim...

 

UMA HISTÓRIA COMO TANTAS OUTRAS

O pano de boca desceu e começaram os aplausos. O teatro tornara-se quente, depois de três longos atos, e Robert Harvey aplaudiu discretamente, com palmas que movimentavam apenas os pulsos, porque não queria transpirar. Era um ho­mem grande, forte e descobrira que quando se permitia de­monstrar entusiasmo nos auditórios superaquecidos do centro da cidade, saía encharcado de suor. Certa vez, apanhara for­te resfriado por causa disso, saindo na chuva depois de Uma Rua Chamada Desejo, de modo que aprendera a controlar o entusiasmo movendo educadamente as mãos, fazendo muito pouco ruído. O pano subiu novamente e os artistas curvavam-se, agradecendo, sorrindo abertamente porque a peça estava em cartaz havia três meses, deveria permanecer por mais um ano e todos tinham com que comer. Bem, certamente não va­lia os 320 da entrada. O que estará acontecendo, pensava Ro­bert, com as peças que vi quando era mais moço?

Virgínia, na cadeira ao lado, aplaudia entusiasticamente. Ti­nha os olhos brilhantes, como sempre acontecia quando se di­vertia. Robert resolveu nada dizer a respeito dos 320 da entrada quando comentasse a peça, mais tarde. Os artistas estavam sendo aplaudidos individualmente e quando chegou a vez da moça que fizera o papel da cínica amiga da heroína, Robert aplaudiu com força, arriscando-se a transpirar, porque se en­contrara com ela uma vez numa festa. Além do mais, não era feia, usava os cabelos negros cortados de um modo fora do comum e tinha grandes olhos azuis. Era um pouco forte de­mais e, no futuro, acabaria engordando. Tinha-se a impres­são de que jamais conseguiria ser boa atriz, mas nada disso importaria muito nos próximos anos. Robert sentiu gotas de transpiração aparecendo na testa e ficou satisfeito quando a moça, depois de uma reverência durante a qual se viam os seios, voltou para os bastidores.

Acenderam-se as luzes e os Harvey começaram a andar va­garosamente entre as filas de poltronas, em meio a reativadas ondas de perfumes e de peles. Virgínia comentou:

— Foi uma peçazinha bem boa, não? — e Robert concor­dou com um gesto de cabeça, desejando que não houvesse ne­nhum parente do autor da peça ali por perto, para ouvi-la.

Chegando ao vestíbulo, Robert notou, enquanto vestia o so­bretudo, uma rapaz com um cachecol amarelo encostado na bilheteria. Numa sociedade mais realista, pensou ele, segurando o braço de Virgínia e dirigindo-se para a rua, teria permissão de dar um soco no nariz de qualquer sujeito que olhasse da­quele modo para sua mulher.

Caminharam pela rua, entre os táxis, Virgínia andando ra­pidamente com seus saltos altos, e entraram no beco que fica­va entre a porta dos artistas e os grandes cartazes anunciando uma comédia musical. Havia três peças de sucesso na rua vi­zinha. As pessoas saíam dos teatros alegres e bem-humoradas e certamente ficariam assim por mais meia hora. Era agradá­vel estar no meio desta gente, numa noite fresca e sem vento. As luzes do restaurante, do lado oposto da rua, eram acolhe­doras entre os edifícios às escuras e o porteiro, embora não fosse amável, mostrou-se educado quando lhes abriu a porta. O maître foi um pouco mais frio que o porteiro e conduziu-os para uma mesa no fundo do restaurante, embora estivessem vazias várias mesas mais próximas da entrada. Robert acei­tou humildemente a indicação pensando filosoficamente que aquele era um restaurante de gente de teatro, que em uma dú­zia de outras casas ele seria conduzido para perto da porta, enquanto os atores se dariam por muito felizes se os deixas­sem entrar.

Virgínia sentou-se na banqueta, com mil pequenos cuida­dos, em seguida tirou os óculos da bolsa e examinou cuidado­samente a sala. Depois de um minuto, colocou os óculos sobre a mesa e voltou-se para Robert:

— De que é que está rindo? — perguntou.

— De ver você tão satisfeita — respondeu Robert.

— Quem disse que estou satisfeita?

— Você fez um levantamento geral e disse consigo: “Que coisa boa. Sou mais bonita que todas elas...” E agora, pode saborear a sua ceia.

— Oh, como você é perspicaz! — falou Virgínia, sorrindo. — Realmente, é um homem muito esperto!

O garçom aproximou-se. Pediram espaguete e meia garra­fa de Chianti, depois ficaram observando o restaurante encher-se de pessoas que haviam estado no teatro, artistas que exi­biam ainda restos de pintura em volta do pescoço e moças ex­traordinariamente altas e bonitas, usando casacos de vison, vindas do musical, do outro lado da rua. Robert comia com vontade e bebia o vinho devagar, saboreando-o.

— Esta peça de hoje — falou Virgínia, enrolando delica­damente o espaguete no garfo, com o auxílio de uma colher — foi boa e me diverti enquanto estava lá, mas estou ficando cansada destes horríveis tipos de mulher que se vêem atual­mente nas peças. São todas bêbadas ou ninfomaníacas, levam os filhos ao desespero ou arruínam a vida de duas ou três pes­soas por ato. Se eu fosse autora teatral, escreveria uma peça agradável e antiquada, na qual a heroína fosse pura e bonita, fazendo do marido um verdadeiro homem, mesmo que ele fosse fraco, bebesse demais e roubasse de vez em quando do patrão, para apostar nas corridas.

— Se eu fosse um autor teatral você estaria em Hollywood — disse Robert.

— De qualquer forma, aposto que seria um grande sucesso — insistiu Virgínia. — Garanto que as pessoas andam lou­cas para ver uma peça da qual possam sair dizendo: “Foi exatamente assim que mamãe, agiu quando papai se envolveu numa encrenca no banco e os dois homens à paisana vieram de Nova York para buscá-lo.”

— Se aparecer por aí uma peça como esta — disse Robert, tranqüilamente — vá vê-la sozinha, numa vesperal.

— E observe as artistas atuais. Fazem questão de represen­tar de um modo tão comum, como alguém que a gente encon­tra na rua. Às vezes penso como têm coragem de cobrar para as pessoas irem vê-las. Quando eu era menina, as atrizes eram tão afetadas que todos sabiam que era preciso pagar para vê-las, já que jamais encontrariam alguém parecido na vida real.

— Que tal achava a Duse? — perguntou Robert. — Que opinião fazia da Bernhardt quando tinha 10 anos?

— Não seja tão espirituoso. Você sabe muito bem o que quero dizer. Aquela moça de quem você gostou tanto hoje, por exemplo...

— De que moça eu gostei tanto? — perguntou Robert in­trigado.

— Aquela alta. A que fez o papel da amiga.

— Oh, aquela... — falou Robert. — Não gostei tanto dela assim.

— Pelo menos agiu como se tivesse gostado. Fiquei com medo de que suas mãos se tivessem transformado numa pol­pa ensangüentada, quando ela deixou o palco.

— Estava apenas sendo gentil. Fui apresentado a ela numa festa — disse Robert.

— Em casa de quem? — perguntou Virgínia, parando de comer.

— Em casa dos Lawton. Ela foi colega de colégio de Anne Lawton — falou Robert. — Não foi apresentada a ela?

— Não fui à festa. Estava gripada naquela semana — dis­se Virgínia. Tomou um gole de vinho e perguntou: — Como é o nome dela?

— Carol qualquer coisa. Veja no programa.

— Deixei o programa no teatro. Achou-a simpática?

Robert encolheu os ombros.

— Falei com ela por cinco minutos apenas. Disse-me que veio da Califórnia, que detesta trabalhar para a televisão, que é divorciada desde o ano passado, que ela e o marido conti­nuam bons amigos. O tipo de conversa que se tem em casa dos Lawton.

— Ela tem todo o jeito de ter vindo da Califórnia — disse Virginia, dando ao comentário um tom de crítica.

— É de Oakland — falou Robert. — Não é exatamente a mesma coisa.

— Lá está ela — disse Virginia. — Perto da porta.

Robert ergueu os olhos. A moça estava sozinha e dirigia-se para o meio da sala. Estava sem chapéu, os cabelos à vonta­de, usava um casaco esportivo e sapatos baixos. Robert con­cluiu, olhando para ela, que as atrizes vão ficando cada ano mais feias. A moça parou uma ou duas vezes para cumpri­mentar pessoas amigas e dirigiu-se para uma mesa de canto, onde um grupo de três homens e duas mulheres esperava por ela. Robert viu que ela passaria por sua mesa e ficou imagi­nando se deveria ou não cumprimentá-la. A festa onde a co­nhecera fora dois meses antes e, segundo sua modesta teoria, gente como atrizes, editores de livros e diretores de cinema ja­mais se lembram de alguém a quem foram apresentados, se esse alguém não tem alguma relação com suas profissões. Du­vidava de que a moça o reconhecesse, mas armou um sorriso discreto. Caso ela se lembrasse dele, pareceria que a estava cumprimentando. Se ela passasse sem notá-lo esperava que o sorriso fosse interpretado como resposta a uma das diverti­das observações de Virginia.

Mas a moça parou em frente à mesa, sorrindo francamen­te. Estendeu a mão e falou:

— Vejam só, Sr. Harvey! Que prazer encontrá-lo de novo!

Não era mais bonita vista de perto, pensara Robert, mas quando a viu sorrir, a moça pareceu-lhe amável e simples e sua voz demonstrava que era de fato um prazer encontrá-lo novamente depois dos cinco minutos de conversa no barulhento salão dos Lawton, dois meses antes.

Robert levantou-se e apertou a mão da moça.

— Boa-noite. Quero apresentar-lhe minha mulher, Miss Byrne.

— Prazer em conhecê-la, Miss Byrne. Estávamos falando a seu respeito — disse Virginia.

— Assistimos à peça hoje e achamos que a senhorita está muito bem — explicou Robert.

— Vocês são uns amores. Adoro ouvir isto, mesmo que não estejam sendo sinceros — disse a moça.

— Que me diz do autor da peça? — perguntou Virginia. — Deve ser um sujeito bem estranho.

— Problemas com a mãe — disse Miss Byrne, erguendo os olhos para o teto, num gesto significativo. — Todos os jovens autores que surgem atualmente no teatro têm o mesmo pro­blema. Era de se pensar que andassem perseguidos por recor­dações da guerra, mas não é nada disso. É apenas a mamãe.

— Isso não acontece só com os jovens autores teatrais — disse Virginia, sorrindo. — Esta é a sua primeira peça, Miss Byrne?

— Que nada! — disse a moça. — Já trabalhei em três ou­tras. Remorso, Três Semanas de Férias... não me lembro do nome da outra. Um fracasso. Estreavam na segunda-feira, saíam do cartaz no sábado.

Virginia voltou-se para Robert.

— Viu alguma das outras, querido? — perguntou ela.

— Não — respondeu Robert, surpreso. Nunca ia ao teatro sem a mulher.

— Mais três peças... — falou Virginia, parecendo realmente interessada. — Deve estar há bastante tempo em Nova York.

— Dois anos — respondeu Miss Byrne. — Um piscar de olhos, para um crítico de teatro.

— Dois anos — repetiu Virginia, amavelmente.

Voltando-se para Robert, perguntou:

— De onde mesmo você disse que ela veio? Hollywood?

— Oakland — falou Robert.

— Nova York deve ser bem interessante — observou Vir­ginia. — Para quem veio de Oakland!

— Adoro Nova York — disse Miss Byrne, jovial e anima­da. — Mesmo com os fracassos.

— Desculpe — disse Virgínia — por deixá-la tanto tempo de pé, conversando sobre teatro. Quer sentar-se e tomar algu­ma coisa conosco?

— Obrigada — disse a moça. — Mas não posso, realmen­te. Estão à minha espera lá no canto.

— Fica para outra vez — falou Virginia.

— Certamente — afirmou Miss Byrne. — Foi um prazer tê-la conhecido, Sra. Harvey. Seu marido falou-me a seu res­peito. Espero que nos tornemos a ver. Boa-noite.

Despediu-se com um sorriso franco e foi ao encontro dos amigos.

Robert sentou-se devagar. Houve um instante de silêncio na mesa.

— É uma vida dura... — falou Virginia, depois de algum tempo. — A vida de atriz não é fácil, hem?

— É.

— Três Semanas de Férias... — repetiu Virginia. — Não admira que tenha fracassado, com um título destes. Ela fazia o papel principal na peça?

— Não sei — respondeu Robert. — Já disse a você que não assisti a peça.

— Ah, é. Você me disse.

Ficaram novamente em silêncio. Virginia começou a girar o copo entre as mãos, com movimentos nervosos.

— Você me disse... — repetiu ela. — Foi pena a moça não ter podido beber alguma coisa conosco. Poderíamos ter apren­dido muita coisa sobre teatro esta noite. Acho o pessoal de teatro fascinante.. E você?

— O que há com você? — perguntou Robert.

— Nada — respondeu Virginia num tom forçado. — Não há nada comigo. Acabou de comer?

— Sim.

— Vamos pagar a conta e sair daqui.

— Virginia... — disse Robert, pronunciando vagarosamente o nome da mulher, num tom de repreensão.

— Ro...bert — falou ela, arremedando-o.

— Muito bem — disse Robert. — O que é?

— Eu não disse nada.

— Sei que você não disse. Qual é o problema?

Virginia ergueu os olhos e encarou o marido.

— Miss Byrne... — disse Virginia. — Pensei que você não soubesse o nome dela...

— Oh... — gemeu Robert. — Agora a coisa vai começar.

— Não vai começar coisa alguma. Quero ir para casa. Pe­ça a conta.

— Garçom! — chamou Robert. — A conta, por favor.

Ficou olhando para Virginia, que começara a fazer cara de mártir.

— Escute, eu tinha me esquecido do nome dela.

— Carol Qualquer Coisa... — disse Virginia.

— Lembrei-me quando ela se aproximou da mesa. No mo­mento em que me levantei. Nunca lhe aconteceu uma coisa assim?

— Não — respondeu Virginia.

— Pois é um fenômeno muito comum — falou o marido.

— O.K., é um fenômeno muito comum — concordou Vir­ginia. — Não duvido.

— Não acredita em mim?

— Você nunca esqueceu o nome de uma garota, desde que tinha seis anos de idade — falou a mulher. — Sabe o nome da moça que dançou com você na noite do jogo com Yale, em 1935.

— Gladys — falou Robert. — Gladys McCleary. Jogava hockey no Bryn Mawr.

— Não admira que estivesse tão interessado em ir à casa dos Lawton aquela noite.

— Eu não estava interessado em ir à casa dos Lawton — falou Robert, começando a altear a voz. — Além disso, nem sequer sabia que a moça existia. Seja lógica, pelo menos.

— Eu estava com 38 graus de febre — falou Virginia, lamentando-se de novo pelos olhos vermelhos, pela testa es­caldante e a desagradável tosse de dois meses antes. — Ficava deitada, sozinha, dia após dia...

— Não fale como se estivesse agonizando durante todo o inverno — disse Robert muito alto. — Esteve três dias de ca­ma e no sábado saiu para almoçar fora, apesar de uma tem­pestade de neve.

— Ah, então você é capaz de lembrar-se de que nevou num sábado há dois meses atrás e não consegue lembrar-se do no­me de uma moça com quem conversou horas, numa festa, e com a qual trocou as mais íntimas confidencias.

— Virginia! — exclamou Robert. — Vou me levantar des­ta cadeira e gritar a plenos pulmões.

— Divorciada... — disse ela — mas continuando bons ami­gos. E o que há entre você e sua ex-esposa? Também são bons amigos? — perguntou Virginia.

— Você sabe tanto quanto eu que as únicas vezes em que vejo minha ex-esposa é quando temos de acertar o aumento da pensão.

— Se continuar falando neste tom de voz, nunca mais o dei­xarão entrar neste restaurante novamente — sussurrou Virginia.

— Vamos sair daqui — falou Robert, irritado. — Garçom, onde está a conta?

— Ela é gorducha — continuou Virginia, olhando para Miss Byrne, sentada de costas a uns 10 metros de distância. — Gorda na cintura. Grotescamente gorda.

— Grotescamente — concordou Robert.

— Você não me engana — retrucou Virginia. — Conheço seus gostos.

— Oh, Deus! — murmurou Robert.

— Sempre fingindo ser um profundo conhecedor da bele­za feminina — falou a mulher — mas preferindo secretamen­te o que está fora de moda, as gorduchas nojentas.

— Oh, Deus! — repetiu Robert.

— Como aquela Elise Cross — continuou a dizer Virginia — há dois anos atrás, em Cape. A impressão que dava era de que tinha de ser enfiada no colete por meio de compres­são. E sempre que eu procurava por você, numa festa, os dois tinham saído a passear nas dunas.

— Pensei que tivéssemos concordado em não discutir este assunto novamente — falou Robert, cheio de dignidade.

— Que assunto tenho permissão para discutir? — pergun­tou Virginia. — As Nações Unidas?

— Nunca houve coisa alguma entre mim e Elise Cross e você sabe disso muito bem.

Robert falou com firmeza e de modo convincente.

A verdade é que tinha mesmo havido alguma coisa, mas dois anos se haviam passado e desde então não tornara a ver Elise nem qualquer outra, aliás. Além do mais, era verão e ele vi­via bêbado quase todo o tempo, por motivo qualquer do qual não se lembrava mais, e todas as pessoas a sua volta eram de um tipo especial, gente bonita, sofisticada e neurótica, que está sempre mudando de parceiros e costuma aparecer nesses lu­gares em agosto, infestando a atmosfera. Lá por volta do Dia do Trabalho já estava envergonhado de seu procedimento e resolvido a mudar, de uma vez por todas. Por isso se sentia irritado e ofendido por ter que se defender sem motivo, de­pois de tão longa abstinência.

— Você ficava mais tempo na praia que a turma dos salva-vidas — continuou a falar Virginia.

— Se o garçom não trouxer esta conta — disse Robert — vou sair daqui imediatamente e terão que me seguir de táxi, se quiserem receber o dinheiro.

— Mas a culpa é minha... — falou Virginia com voz trê­mula. — Muita gente me avisou, antes de nos casarmos. Eu conhecia sua reputação.

— Escute, isto foi há mais de cinco anos — falou Robert, acabrunhado. — Eu era mais moço naquele tempo, mais cheio de energia e era casado com uma mulher de quem não gosta­va e que não gostava de mim. Sentia-me infeliz, solitário e in­quieto.

— E agora?

— E agora... — respondeu Robert, imaginando como se­ria bom ficar seis ou sete meses longe da mulher — agora sou casado com uma mulher que amo, estou acomodado e pro­fundamente feliz. Há anos não almoço ou saio para tomar um drinque com pessoa alguma. Mal toco o chapéu quando pas­so na rua por uma mulher conhecida.

— E que me diz daquela atriz gorda que ali está?

— Escute... — falou Robert, sentindo-se rouco, como se estivesse gritando no vento por muitas horas. — Vamos acer­tar isto. Conheci a moça numa festa. Conversei com ela du­rante cinco minutos. Não a acho muito bonita. Não a considero boa atriz. Fiquei surpreendido quando ela me reconheceu. Ti­nha esquecido o nome dela. Depois lembrei, quando ela pa­rou junto à nossa mesa.

— Creio que você espera que eu acredite em tudo isto — falou friamente Virginia.

— Claro que espero. Porque foi exatamente o que aconteceu.

— Eu vi aquele sorriso — continuou Virginia. — Não pen­se que não vi.

— Que sorriso? — perguntou Robert sinceramente ad­mirado.

— “Oh, Sr. Harvey...” — falou Virginia, num arrulho — “que prazer tornar a vê-lo!” E depois, o sorriso, o nariz franzidinho de menininha e o olhar direto e longo...

— Finalmente! — disse Robert ao garçom, que se aproxi­mou com a conta. — Espere — disse ainda, contando algu­mas notas, sentindo as mãos trêmulas de raiva. Ficou observando o garçom que se dirigia para a caixa, perto da co­zinha, para pegar o troco. Falou, então, procurando contro­lar a voz:

— E agora, o que é, exatamente, que você pretende com tudo isto?

— Posso não ser muito inteligente — falou Virginia — mas se há uma coisa que tenho é intuição. Especialmente quando se trata de você. Além do mais, aquele sorriso não deixava dúvidas.

— Bem, espere aí... — falou Robert, abrindo e fechando espasmodicamente a mão — é muita bondade de sua parte, depois de estarmos casados há cinco anos, achar que as mu­lheres se atiram a meus pés após cinco minutos de conversa, mas sou obrigado a desiludi-la. Foi coisa que nunca me acon­teceu. Nunca. — Falou devagar, distintamente e em tom de mágoa.

— Se há uma coisa que não suporto é a falsa modéstia — disse Virginia. — Já tenho observado você se olhando ao es­pelho com aprovação, fingindo que se está barbeando ou pro­curando cabelos brancos. Além disso... — falou com amargura — conversei com sua mãe. Sei como foi educado por ela. Me­teu em sua cabeça que todo o sexo feminino estaria sempre correndo atrás de você, porque você é um Harvey e tão mara­vilhoso...

— Santo Deus! — exclamou Robert. — Agora temos mi­nha mãe também!

— Ela é um bocado responsável. É isso mesmo, sua mãe. Não pense que não é...

— Muito bem... — disse Robert. — Minha mãe é uma mu­lher mesquinha e terrível, todo mundo concorda com isto. Mas que tem ela a ver com o fato de uma mulher me ser apresenta­da numa festa e sorrir para mim num restaurante, quando me encontra por acaso?

— Por acaso? — repetiu Virginia.

— Continuo sem compreender como poderia ser por mi­nha culpa. Não posso evitar que as pessoas sorriam em res­taurantes.

— A culpa é sempre sua — afirmou Virginia. — Mesmo quando não diz uma palavra. Basta seu jeito de entrar na sala e ficar de pé, parado, decidido a mostrar que é... um machão.

Robert levantou-se e empurrou a mesa.

— Não agüento mais — disse ele. — Simplesmente não agüento. Para o inferno com o troco.

Virginia levantou-se também, com a fisionomia dura.

— O melhor que temos a fazer — disse Robert, enquanto ajudava a mulher a vestir o casaco — é ficar uma semana sem nos falar.

— Ótimo — respondeu Virginia, com indiferença. — Para mim, está perfeitamente bem.

Caminhou rapidamente pelo meio do restaurante, sem olhar para trás.

Robert ficou a olhá-la andando por entre as mesas, o casa­co preto voando em sua volta. Bem que gostaria de ter um gênio pior. Gostaria de ser capaz de passar a noite fora de ca­sa e embriagar-se.

O garçom chegou com o troco e Robert separou a gorjeta. Por cima do ombro do garçom, viu Miss Byrne voltar vaga­rosamente a cabeça e olhar para ele. As demais pessoas da mesa conversavam animadamente. Pela primeira vez, Robert exa­minou detidamente a moça. É verdade, pensou ele, as mulhe­res de hoje são magras demais, em sua maioria.

Então Miss Byrne sorriu para ele. O nariz ficou franzidinho, o sorriso era lindo e fitou-o por longo tempo. Robert sentiu-se envaidecido, consideravelmente mais jovem e bastante curioso. E quando baixou os olhos, deixando uma boa gorje­ta para o garçom, sabia que telefonaria para ela no dia seguinte e como seria a sua voz, ao telefone.

Em seguida, vestiu rapidamente o sobretudo e saiu do res­taurante, atrás da esposa.

 

EM ESTILO FRANCÊS

Beddoes chegou do Egito pela manhã. Foi para o hotel, aper­tou a mão do porteiro, disse-lhe que a viagem tinha sido boa e que os egípcios eram insuportáveis. Pelo porteiro, ficou sa­bendo que a cidade estava cheia, como sempre, e que o preço do quarto tinha aumentado, como sempre.

— A estação turística dura agora 12 meses por ano— dis­se o porteiro, entregando a chave a Beddoes. — Ninguém mais fica em casa. É exaustivo.

Beddoes subiu para o quarto, pedindo ao porteiro para guar­dar sua máquina de escrever no armário embutido, porque não queria vê-la por algum tempo. Abriu a janela e olhou com pra­zer o Sena que corria. Tomou um banho, vestiu roupas lim­pas e deu à telefonista o número de Christina. A telefonista tinha um modo insolente de repetir os números em inglês e Beddoes notou, com um sorriso, que isto também não mudara. Ouviu-se a barulheira habitual nos cabos e a telefonista ligou com o número de Christina. O telefone, no hotel em que ela morava, ficava no andar térreo e Beddoes teve de soletrar vagarosamente o nome dela — Mademoiselle T. de Teodoro, A de André, T de Teodoro e E de Eduardo — para que o ho­mem entendesse e fosse dizer a Christina que um senhor americano a chamava ao telefone.

Beddoes ouviu os passos de Christina atravessando o vestíbulo e podia adivinhar, pelo som, que estava usando sapatos de saltos altos.

— Alô... — disse Christina. Houve súbito ruído no apare­lho, mas mesmo assim Beddoes reconheceu o tom ansioso e excitado da voz dela. Christina atendia ao telefone como se esperasse que cada telefonema lhe trouxesse um convite para alguma festa.

— Oi, Chris... — disse ele.

— Quem é?

— Uma voz que vem do Egito.

— Walter! — falou Christina alegremente. — Quando chegou?

— Nesse instante — disse Beddoes, mentindo por uma ho­ra só para lhe dar prazer. — Você está de saltos altos?

— Espere um pouco enquanto olho... — falou Christina e, depois de algum tempo: — Você ficou biruta no Egito?

Beddoes riu.

— Faquirismo semi-oriental. Trouxe um estoque comigo. Onde vamos almoçar?

— Walter! — falou a moça. — Estou desolada...

— Tem um compromisso?

— Sim. Quando é que você vai aprender a telegrafar?

— Está bem — disse Beddoes, esforçando-se por não dei­xar transparecer a decepção. Sentia que se pedisse a Christina para desmarcar o compromisso ela o faria, mas era norma sua não implorar coisa alguma. — Fica para outro dia — disse ele.

— Que tal um drinque hoje à tarde? — perguntou Christina.

— Podemos começar com isto. Às 5 horas.

— Digamos 5h3O.

— Onde nos encontraremos? — perguntou Beddoes, ligei­ramente aborrecido pelo adiamento.

— Perto da Étoile.

— No Alexandre?

— Ótimo. Vai chegar na hora pelo menos uma vez na vida?

— Seja mais delicada com um homem no seu primeiro dia de volta à cidade — disse o rapaz.

— A tout à l’heure — disse Christina.

— Que foi que disse, Madame?

— Todos os garotos estão falando francês este ano — res­pondeu Christina, rindo-se. — É bom saber que você está no­vamente na Terra.

Ouviu-se um clique quando ela desligou. Beddoes colocou o fone no gancho e foi para a janela. Ficou olhando o rio, pensando que era a primeira vez, em muito tempo, que Chris­tina não vinha imediatamente a seu encontro, quando chega­va a Paris. O rio parecia-lhe frio, as árvores estavam desfolhadas e o céu devia estar cinzento há muitos meses. Mas mesmo assim, a cidade lhe parecia cheia de promessas. Mes­mo um inverno sem chuva e sem neve não conseguiu impedir que Paris parecesse cheia de promessas.

Almoçou em companhia de um homem da AP que acabara de chegar da América e que lhe contou que as coisas estavam pretas em Nova York. Disse que mesmo comendo nas lancho­netes, um almoço custava no mínimo um dólar e meio e que Beddoes deveria dar graças por não estar lá.

Beddoes chegou um pouco atrasado ao café, mas Christina ainda não estava. Sentou-se no terraço envidraçado, perto da grande janela, sentindo o frio da tarde de inverno penetrar pela manga do paletó. O terraço estava cheio de mulheres que to­mavam chá e homens que liam jornais. Lá fora, sob as árvo­res, formava-se um pequeno grupo de veteranos de alguma unidade da Primeira Grande Guerra, homens de meia-idade, encolhidos nos seus casacos, com bandeiras e condecorações, que se preparavam para caminhar atrás de uma banda do exér­cito, até o Arco, para colocar uma coroa no monumento em memória de camaradas mortos em batalhas das quais ninguém mais se lembrava. Os franceses, pensou Beddoes mal-humorado, porque Christina estava atrasada e a tarde não cum­pria as promessas que fizera, estão sempre dispostos a obs­truir o trânsito. Têm um inesgotável estoque de mortos para homenagear.

Tinha pedido uma cerveja porque bebera demais no almoço. Também comera demais, num primeiro acesso de glutoneria depois da comida egípcia. Sentia o estômago pesado e ficara de repente muito cansado, depois de tantas milhas per­corridas nas últimas 24 horas. Depois que se faz 35 anos, pen­sou, melancólico como a tarde, por mais rápido que seja o avião, por mais macias que sejam as poltronas, os ossos mar­cam inexoravelmente a distância percorrida. Lembrava-se de ter ouvido dizer que os desportistas, quando iam envelhecen­do, faziam a barba duas ou três vezes por dia, para evitar que os técnicos e os cronistas esportivos vissem os reveladores fios brancos. Talvez, pensava, os diplomatas de carreira a serviço em países estrangeiros fizessem o mesmo. Setenta menos trin­ta e cinco são trinta e cinco, pensava. Era uma equação que lhe vinha sinistramente à lembrança, especialmente durante as tardes e cada vez com maior freqüência depois do aniver­sário que marcava o meio do caminho. Olhou para fora, através da vidraça, para os veteranos, formados de qualquer modo atrás das bandeiras e notou que seu hálito subia para as nu­vens que estavam por sobre suas cabeças, junto com a fuma­ça dos cigarros. Bem poderiam começar a marchar e sair dali. A palavra veterano caiu-lhe subitamente no ouvido com um som desagradável.

Também desejava que Christina chegasse. Não era hábito dela chegar atrasada. Era uma dessas raras mulheres que che­gam ao lugar marcado na hora certa. Engraçado, lembrou-se também de que ela se vestia com grande rapidez e levava ape­nas um ou dois minutos para pentear os cabelos. Estes cabe­los eram louros, cortados muito curtos, no estilo parisiense, deixando a nuca descoberta. Beddoes sentiu-se melhor pen­sando na nuca de Christina.

Teriam uma noite divertida, pensava. Ninguém tinha o di­reito de sentir-se velho ou cansado em Paris. Se esta sensação se tornar crônica, pensava ele, mudo-me de uma vez por todas.

Pensou na noite que o esperava. Circulariam por dois ou três bares, fugindo dos amigos e sem beber muito, depois iriam a um bistro, no mercado, onde os bifes eram bem feitos e bebia-se um ótimo vinho tinto. Depois disso talvez fossem a um cabaré onde levavam original espetáculo de bonecos e onde três rapazes cantavam canções engraçadas que, ao contrário das canções engraçadas dos clubes noturnos, eram de fato diver­tidas. Ao sair, depois do espetáculo, tudo era encantamento e alegria e chegava-se à conclusão de que era assim que um homem devia sentir-se em Paris, às 2 horas da manhã.

Na noite anterior à sua partida para o Cairo, levara Chris­tina lá. A perspectiva de lá voltar logo na primeira noite após a volta à casa dava-lhe uma sensação que não saberia expli­car, mas que prenunciava acontecimentos agradáveis. Chris­tina estava muito bonita, era mesmo a moça mais bonita da sala repleta de mulheres bonitas, e ele tinha dançado, pela pri­meira vez em muitos meses. A música era tocada por um pia­nista e um homem que tirava sons ricos e eletrizantes de uma guitarra elétrica. Tocavam canções populares francesas, can­ções que sempre o faziam sentir como era gostoso amar em Paris, como o amor ali era cheio de tristeza e saudade.

A música deixara Christina um pouco tristonha, lembrava-se, o que era estranho tratando-se dela. Segurara a mão dele durante o espetáculo e beijara-o quando as luzes se apagaram, entre dois números. Seus olhos estavam cheios de lágrimas e perguntara “que é que vou fazer dois meses sem você” quan­do ele falara de sua partida na manhã seguinte. Pensara en­tão, com certa cautela, porque também se sentia emocionado, que era uma sorte ter de viajar. Aquela era a fase da pré-vontade-de-casar e era preciso estar de sobreaviso contra ela, especialmente numa sala escura, em Paris, madrugada, com um pianista tocando canções que falavam em folhas secas, em amores perdidos e namorados separados pela guerra.

Beddoes fora casado uma vez e achava que por enquanto era o suficiente. As esposas têm uma tendência para ter filhos, tornar-se mal-humoradas ou dar para beber e arranjar outros homens quando os maridos eram enviados para o outro lado da Terra por três ou quatro meses, a serviço.

Ficara um pouco surpreendido com Christina. Não era do tipo sentimental. Conhecia-a, se bem que intimamente, havia pouco tempo, desde que chegara dos Estados Unidos, quatro anos antes. Servia de modelo para fotografias e era bonita bas­tante para vencer na profissão, mas, como dizia, sentia-se uma perfeita idiota fazendo as expressões langorosas e sensuais que estavam na moda e que exigiam dela. Sabia datilografia e taquigrafia e fazia serviços avulsos para empresários america­nos que vinham passar um ou dois meses em Paris, a negócios. Aprendera rapidamente o francês, tinha um carro e de vez em quando arranjava empregos curiosos, como acompanhante de ricas senhoras americanas que desejavam visitar castelos pelo país ou na Suíça. Parecia nunca sentir falta de sono (apesar de estar perto dos 26 anos), ficava acordada a noite inteira com qualquer companhia, ia a muitas festas e tivera (que Beddoes soubesse) casos com dois amigos dele — um fotógrafo free-lancer e o comandante de um avião de transportes que morrera num desastre perto de Frankfurt. Podia-se telefonar para ela a qualquer hora do dia ou da noite, sem que ela se aborrecesse e apresentá-la a qualquer grupo, ficando satisfei­to com seu modo de proceder. Sabia sempre qual o bistrô da moda e quem estava cantando o que em qual boate, qual o novo pintor que valia a pena ver, quem estava na cidade e quem chegaria na próxima semana, quais os hoteizinhos dos arre­dores de Paris onde era agradável almoçar ou passar um fim de semana. Era claro que não tinha muito dinheiro, mas vestia-se de modo encantador, bastante francês para divertir seus ami­gos franceses e não tão francês para que seus amigos ameri­canos achassem que ela estava querendo parecer européia. Em resumo, embora não fosse uma moça que tivesse a aprovação da vovó, Christina era, como lhe dissera certa vez Beddoes, um ornamento dos anos loucos e confusos da segunda meta­de do século XX.

Os veteranos começaram a movimentar-se, as bandeiras ba­lançando ligeiramente na tarde escura, e o pequeno desfile fez a volta atrás da sede da TWA, em direção aos Campos Elíseos. Beddoes ficou olhando vagamente, pensando em outros desfiles, outras bandeiras. Foi então que viu Christina atra­vessando a rua em diagonal, num passo rápido e firme, em meio ao tráfego. Poderia morar na Europa o resto da vida, pensou Beddoes, observando-a com um sorriso, mas seria su­ficiente dar 10 passos para todos saberem que nascera do ou­tro lado do oceano.

Levantou-se quando ela abriu a porta que dava para o ter­raço. Estava sem chapéu e Beddoes notou que os cabelos es­tavam muito mais escuros e que nunca os vira tão compridos. Beijou-a nas duas faces quando ela se aproximou da mesa.

— Bem-vinda — disse ele. — Em estilo francês.

Ela o abraçou um instante.

— Muito bem... — falou — cá está o homem novamente Sentou-se, abrindo o casaco, e sorriu para ele do outro la­do da mesa. Tinha o rosto muito corado, por causa do frio, os olhos brilhantes e parecia esplendidamente jovem.

— O espírito de Paris... — falou Beddoes, tocando a mão que a moça pusera sobre a mesa. — Departamento america­no... Que é que você vai tomar?

— Chá, por favor. É um prazer tornar a vê-lo.

— Chá? — perguntou Beddoes, com uma careta. — Algum problema?

— Não — disse Christina abanando a cabeça. — Apenas quero tomar chá.

— É uma bebida muito fraca para se brindar a volta de um viajante — falou Beddoes.

— Com limão, por favor — pediu Christina.

Beddoes encolheu os ombros e pediu chá ao garçom.

— Como vai o Egito? — perguntou Christina.

— Eu estive no Egito? — perguntou por sua vez Beddoes, divertindo-se ao ver a cara de Christina.

— Pelo menos é o que diziam os jornais.

— Oh, sim... Um novo mundo esforçando-se para nascer — disse Beddoes, com sua voz firme e profunda. — Tarde de­mais para o feudalismo, cedo demais para a democracia...

Christina fez uma careta.

— Bonita frase para os arquivos do Departamento de Es­tado. Pergunto como estava o Egito, na mesa de um bar.

— Cheio de sol e de tristeza. Depois de duas semanas no Cairo a gente sente pena de todo mundo. Como está Paris?

— Tarde demais para a democracia — disse Christina — cedo demais para o feudalismo...

Beddoes sorriu, inclinou-se e beijou-a.

— Pergunto com um beijo... como está Paris?

— Como sempre... — e Christina hesitou. — Quase a mes­ma coisa.

— Quem está na Terra?

— A turma — respondeu vagamente Christina. — Os feli­zes exilados de sempre. Charles, Boris, Anne, Teddy...

Teddy era o fotógrafo free-lancer.

— Tem estado sempre com ele?

— Como? — perguntou Christine, sorrindo de leve.

— Apenas me informando — sorriu Beddoes.

— Não. Não tenho estado com ele. A grega dele está na cidade.

— Ainda a grega?

O garçom aproximou-se e colocou o chá em frente a Chris­tina. Ela se serviu e espremeu o limão. Tinha dedos compri­dos e Beddoes notou que não usava mais esmalte nas unhas.

— Seu cabelo... — disse ele. — O que aconteceu?

Christina levou a mão à cabeça, distraidamente.

— Ah, você notou?

— Onde está a loura de outros tempos?

— Resolvi ser mais natural — falou Christina, mexendo o chá. — Ver no que dava, para variar. Gosta?

— Ainda não me decidi. Está mais comprido, também.

— É... Durante o inverno. Meu pescoço sentia muito frio. Dizem que fico mais jovem.

— Estão absolutamente certos os que dizem isso. Você pa­rece ter exatamente 11 anos.

Christina riu e levantou a xícara.

— Aos que voltam!

— Recuso-me a aceitar brindes com chá.

— Você é um desprezível beberrão — falou Christina, to­mando tranqüilamente o seu chá.

— Agora — falou Beddoes — o programa da noite. Pode­ríamos ir jantar no mercado, porque estou louco para comer um bife e depois... — Interrompeu-se. — O que é? Não pode­mos jantar juntos?

— Bem... — falou Christina, com a cabeça baixa, mexen­do o chá. — É que tenho um compromisso...

— Desmarque-o. Mande o miserável...

— Não posso — disse Christina, erguendo os olhos e fitando-o muito séria. — Ele vem encontrar-se comigo aqui dentro de alguns minutos.

— Bem... — concordou Beddoes. — Assim o caso é dife­rente, não?

— Exato.

— Não nos podemos livrar dele?

— Não. Não nos podemos livrar dele.

— Não existe homem de que não nos possamos livrar — falou Beddoes. — Um velho amigo, você dirá, que acaba de chegar dos horrores do deserto, escapando por um triz da disenteria e das guerras religiosas, precisando de terna atenção pelos seus nervos abalados e et coetera...

Christina sorria e abanava a cabeça.

— Sinto muito, mas não pode ser.

— Quer que eu me encarregue do caso? De homem para homem? Escute aqui, meu velho, somos pessoas adultas e ci­vilizadas... este tipo de conversa.

— Não — disse Christina.

— Por que não? — perguntou Beddoes, consciente de que estava quebrando uma norma há muito estabelecida e à qual se agarrava ciosamente: a de nunca implorar coisa alguma.

— Porque não quero — falou Christina.

— Oh! — exclamou o rapaz. — Então a coisa está assim...

— Mais ou menos assim — disse Christina em voz baixa. — Podemos jantar juntos, nós três. É um homem muito agra­dável. Você vai gostar dele.

— Jamais gosto de qualquer homem na minha primeira noi­te em Paris — afirmou Beddoes.

Ficaram um momento em silêncio e Beddoes lembrava-se das vezes em que Christina dissera, ao telefone: “É um peca­do, mas vou dar o fora nele. Encontro com você às 8”. Era difícil acreditar que ela estava sentada à sua frente, parecen­do a mesma de sempre, e que não fosse dizer a mesma coisa, dentro de um instante.

— Dois meses. É muito tempo, não? — perguntou Beddoes. — Em Paris...

— Não — respondeu Christina — Não é muito tempo. Nem em Paris nem em outro qualquer lugar.

— Alô, Christina.

Era um rapaz alto, quase gordo, sorridente e louro que se encontrava de pé, segurando o chapéu, ao lado da mesa. Inclinou-se e beijou Christina na testa.

Beddoes levantou-se.

— Jack — Christina apresentou-os — este é Walter Bed­does. John Haslip. Dr. Haslip.

Os dois homens apertaram-se as mãos.

— Ele é cirurgião — falou a moça, quando Haslip entre­gava o chapéu e o sobretudo à recepcionista, sentando depois a seu lado. — Por pouco foi capa do Life, no ano passado, por causa de qualquer coisa que fez com os rins. Dentro de 30 anos será tremendamente famoso.

Haslip riu-se. Era um homem grandalhão, tranqüilo, que parecia confiar em si. Tinha um jeito de atleta e era provável que tivesse mais idade do que aparentava. Bastou um olhar para Beddoes compreender o que o homem sentia por Chris­tina. Haslip não era muito discreto neste assunto.

— Que vai beber, Doutor? — perguntou Beddoes.

— Limonada, por favor.

— Un citron pressé — disse Beddoes ao garçom. Lançou um olhar curioso a Christina, mas a moça mantinha no rosto uma expressão firme.

— Jack não bebe — disse ela. — Acha que não é direito para alguém que ganha a vida cortando o próximo.

— Quando eu me aposentar — falou Haslip — vou me en­charcar de bebida e deixar que as mãos tremam como folhas ao vento.

Falava animadamente. Olhou para Beddoes e era fácil ve­rificar que lhe custava grande esforço deixar de olhar para Christina.

— Divertiu-se muito no Egito? — perguntou.

— Oh... — falou Beddoes, admirado. — Sabe de minha viagem ao Egito?

— Christina me falou a seu respeito.

— Fiz um juramento solene de esquecer o Egito por um mês, depois de chegar aqui — disse Beddoes.

Haslip riu. Tinha um riso baixo e natural, sua fisionomia era amistosa e despreocupada.

— Sei como é — disse ele. — O mesmo que sinto, às vezes, a respeito do hospital.

— Onde fica o hospital? — perguntou Beddoes.

— Seattle — respondeu rapidamente Christina.

— Há quanto tempo está aqui? — perguntou Beddoes, per­cebendo que Christina lhe lançava um olhar de través...

— Três semanas — disse Haslip, voltando-se para Christi­na, como se não encontrasse conforto em outra posição. — Quanta mudança na vida em três semanas, meu Deus... — fa­lou, dando uma pancadinha no braço de Christina e rindo no­vamente. — Mais uma semana e de volta ao hospital!

— Veio a passeio ou a negócios? — perguntou Beddoes, caindo impiedosamente no tipo de conversa de todos os ame­ricanos que se conhecem no estrangeiro.

— Um pouco de cada coisa — respondeu o médico. — Fui convidado para uma conferência de cirurgiões e aproveitei para visitar alguns hospitais.

— Que pensa da medicina francesa, agora que teve conta­to com ela? — perguntou Beddoes, e o investigador que havia dentro dele agia automaticamente.

— Bem... — e Haslip conseguiu deixar de olhar para Chris­tina por um momento — as coisas funcionam aqui de modo diferente do nosso. Intuitivamente. Não possuem os equipa­mentos que temos, nem dinheiro para pesquisas, de modo que são obrigados a suprir esta falta com intuição e perspicácia.

Haslip sorriu e continuou a falar:

— Se adoecer, Sr. Beddoes, não hesite em entregar-se nas mãos dos médicos. São tão bons aqui como em qualquer outro lugar.

— Estou muito bem — falou Beddoes e, mal acabou de fa­lar, sentiu que fora uma tolice dizer aquilo. A conversa come­çava a deixá-la pouco à vontade, não por causa do que dissessem, mas pelo modo franco, absolutamente claro, com o qual aquele homem olhava para Christina. Houve um mo­mento de silêncio e Beddoes compreendeu que se não dissesse alguma coisa, ficariam calados pelo resto da vida.

— Passeou bastante? — perguntou meio sem jeito.

— Não tanto quanto desejava. Só em Paris. Gostaria de ter visitado o sul, nesta época do ano. Ter ido a este lugar de que Christina está sempre falando. St. Paul de Vence. Creio que é absolutamente diferente de Seattle, mas há por lá água corrente e uma comida saudável. Já esteve lá, Sr. Beddoes?

— Já — respondeu Beddoes.

— Christina me falou. Obrigado — disse, dirigindo-se ao garçom que lhe trouxera a limonada.

Beddoes fitou Christina. Os dois tinham passado lá uma se­mana, no outono anterior. Gostaria de saber o que, exatamen­te, Christina contara ao médico.

— Iremos lá na próxima viagem — falou Haslip.

— Ah... — disse Beddoes, notando o plural. — Pretende voltar brevemente?

— Daqui a três anos — respondeu Haslip, retirando com cuidado o gelo da limonada e colocando-o no pires. — Posso tirar férias de seis semanas, de três em três anos. As pessoas não adoecem muito no verão. — Desculpe... — disse ele — mas tenho que dar uns telefonemas.

— Embaixo, à direita — falou Christina. — A telefonista fará a ligação para você. Ela fala inglês.

Haslip deu uma risada.

— Christina não confia no meu francês — disse ele. — Diz que tem um sotaque único e sui generis.

Começou a afastar-se, depois parou:

— Gostaria que o senhor jantasse conosco, Sr. Beddoes.

— Bem... — respondeu Beddoes. — Prometi encontrar-me com algumas pessoas... Mas verei o que posso fazer.

— Ótimo — disse Haslip tocando levemente o ombro de Christina como se quisesse, inconscientemente, tranqüilizar-se. Afastou-se, caminhando entre as mesas.

Beddoes ficou a observá-lo, com um pensamento desagra­dável: “Bem, pelo menos mais bonito eu sou”... Voltou-se depois para Christina, que mexia distraidamente algumas fo­lhas de chá que tinham ficado no fundo da xícara.

— É por isso que os cabelos estão mais compridos e em sua cor natural, não? — perguntou.

— Sim, é por isso — respondeu Christina, continuando a mexer com as folhas de chá.

— E o esmalte das unhas?

— Também o esmalte das unhas...

— E o chá?

— Também.

— Que foi que contou a ele sobre St. Paul de Vence?

— Tudo.

— Levante a cabeça desta droga de xícara!

Vagarosamente, Christina largou a colher e ergueu a cabe­ça. Tinha os olhos brilhantes, não tanto que se pudesse inter­pretar a razão; e a boca estava firme, como se por esforço.

— Que é que você quer dizer com tudo? — perguntou Beddoes.

— Tudo.

— Por quê?

— Porque não preciso esconder coisa alguma dele.

— Há quanto tempo o conhece?

— Você ouviu. Três semanas. Um amigo de Nova York pediu-lhe que me procurasse.

— Que vai fazer com ele?

Christina fitou-o bem dentro dos olhos.

— Vou me casar com ele na próxima semana. Iremos para Seattle.

— E voltará dentro de três anos para passar seis semanas, porque as pessoas não adoecem no verão.

— Exatamente.

— E isto lhe agrada?

— Sim.

— Você fala como se me desafiasse... — observou Beddoes.

— Não se faça de inteligente comigo — falou asperamente Christina. — Estou farta de tudo isto.

— Garçom! — chamou Beddoes. — Traga-me um uísque, por favor. — Falara em inglês porque, por um instante, tinha esquecido onde estava. — E você — dirigiu-se a Christina — pelo amor de Deus, beba alguma coisa!

— Outro chá — pediu Christina.

— Pois não, minha senhora — falou o rapaz, afastando-se.

— Pode responder a algumas perguntas? — perguntou Beddoes.

— Claro.

— Respostas corretas?

— Claro.

Beddoes respirou fundo e olhou pela janela. Um homem de sobretudo ia passando, encolhido.

— Bem, que é que ele tem de mais?

— Como hei de responder? — falou Christina. — Bem, ele é um homem delicado, bom e satisfatório.

— E o que mais?

— Ele me ama — respondeu a moça em voz baixa. Duran­te todo o tempo em que estiveram juntos, Beddoes nunca a vira pronunciar aquela palavra. — Sim, ele me ama — repe­tiu Christina, tranqüilamente.

— Eu vi. Desmedidamente.

— É o termo certo — concordou Christina.

— Agora vou fazer-lhe outra pergunta: gostaria de levantar-se agora desta mesa e ir-se embora comigo?

Christina empurrou a xícara, virando-a, pensativa.

— Sim — respondeu.

— Mas não fará isto.

— Não, não farei.

— Por que não?

— Vamos falar de outra coisa. Para onde irá na próxima viagem? Quênia? Bonn? Tóquio?

— Por que não?

— Porque estou cansada de pessoas como você — falou a moça, com voz clara. — Estou farta de correspondentes, de pilotos e de jovens estadistas de futuro. Estou farta de todos os jovens brilhantes que estão sempre indo a alguma parte, para fazer reportagens sobre uma revolução, negociar um tra­tado ou morrer numa guerra. Estou farta de aeroportos e de despedidas. Farta de não ter direito de chorar senão depois que o avião partiu, de estar sempre estupidamente às ordens. Cansada de atender ao telefone, de todos os encantadores e mimados intelectuais que andam sempre bêbados. Cansada de sentar-me ao lado de alguém que já amei e ser atenciosa com suas gregas. Cansada de passar de mão em mão, de gostar mais das pessoas que elas de mim. Isto responde à sua pergunta?

— Mais ou menos — respondeu, admirado por ninguém, das outras mesas, estar prestando atenção neles.

— Quando você foi para o Egito — continuou a dizer Chris­tina, com voz firme — tomei minha decisão. Fiquei encosta­da na grade, vendo os homens abastecerem os enormes aviões, com suas luzes acesas. Engoli as lágrimas e me decidi. Dá pró­xima vez seria com alguém que ficasse desesperado quando eu partisse.

— E então o encontrou.

— E então o encontrei — falou calmamente Christina. — E não vou deixá-lo.

Beddoes estendeu a mão e segurou a dela que ficou inerte entre as dele.

— Chris... — disse apenas.

Christina olhava pela janela. Lá estava ela, a silhueta re­cortada pela última claridade da tarde, nítida, jovem e impla­cável, fazendo-o lembrar-se confusamente da primeira vez em que a vira e de todas as moças que conhecera. Lembrava-se dela a seu lado, à luz de uma manhã de outono, apenas três meses antes, no quarto de um hotel do Sul, de onde se viam os Alpes e o mar a distância. Segurando a mão dela, sentindo o contato conhecido dos dedos da moça com os seus, sentia que se conseguisse fazê-la voltar a cabeça, tudo seria diferente.

— Chris... — murmurou ele.

Mas Christina não se voltou.

— Escreva-me quando eu estiver em Seattle — disse ela, sempre olhando pela janela respingada de chuva e onde as lu­zes do café e as do restaurante que ficava do outro lado da rua se refletiam, aumentadas e distorcidas.

Beddoes largou a mão dela. Christina não se preocupou em mudar de posição. Continuou com as mãos sobre a mesa, e as unhas sem esmalte destacavam-se pouco sobre a madeira manchada.

Beddoes levantou-se.

— Acho melhor ir andando — disse ele, falando com difi­culdade, sentindo a voz soar estranha dentro da própria cabe­ça e pensando “meu Deus, estou ficando senil, estou com vontade de chorar num restaurante”...

— Não vou esperar a conta — continuou ele. — Diga a seu amigo que não posso jantar com vocês e que peço desculpas por deixar a conta para ele pagar.

— Está certo — disse Christina. — Ele terá prazer em pagar.

Beddoes inclinou-se e beijou-a, primeiro numa face depois na outra.

— Adeus — falou, pensando que sorria. — Em estilo francês.

Apanhou o sobretudo e afastou-se rapidamente. Passou pela sede da TWA, na grande avenida, e fez a volta na esquina on­de os veteranos haviam estado marchando meia hora antes. Caminhou às cegas na direção do Arco, onde as folhas de louro da coroa brilhavam ainda no lusco-fusco da tarde, diante do túmulo e da chama.

Sabia que era uma noite imprópria para alguém ficar só e que deveria ir a algum lugar e telefonar convidando alguém para jantar. Passou por dois ou três lugares onde havia tele­fones e, embora hesitasse diante de cada um deles, não en­trou. Porque sabia que não existia, em toda a cidade, alguém que quisesse ver naquela noite.

 

O NÚMERO DOIS

Era uma noite de sábado, à hora em que as pessoas se ma­tavam, na pequena tela. Policiais morriam no cumprimento do dever, bandidos eram lançados dos telhados, uma velha senhora ia sendo envenenada aos poucos pelas próprias péro­las e sua assassina era apresentada à justiça por uma compa­nhia de cigarros, depois de longas discussões no escritório de um detetive particular. Atores corajosos e desarmados atiravam-se sobre vilões armados de seus 45, ingênuas eram salvas da morte por afogamento, pela rápida decisão de jo­vens belos e intrépidos.

Peter estava sentado numa grande poltrona diante da tela, com os pés passados por cima dos braços, comendo uvas. Co­mo a mãe não estava em casa, ele comia sementes e tudo, enquanto lançava um olhar crítico à violência que se desenvolvia à sua frente. Quando a mãe estava por perto, pairava no ar o medo de apendicite e ela verificava cuidadosamente se to­das as sementes tinham sido retiradas e colocadas no cinzei­ro. Além do mais, se ela estivesse em casa, haveria irritantes sermões sobre a qualidade dos programas de televisão e sua influência sobre os jovens, além de mal-humoradas mudan­ças de canal, em busca de qualquer coisa vagamente definida como educativa. Sozinho, ousadamente acordado às 11 da noi­te, Peter trincava as sementes, deliciando-se com o ruído mal-educado e a solidão e liberdade da casa vazia.

Durante os comerciais, fechava os olhos e se imaginava ati­rando garrafas em homenzarrões de barba por fazer que por­tavam pistolas e subiam vagarosamente escadas escuras, dirigindo-se para uma porta atrás da qual todos já sabiam que o Chefe estava à espera, com o volume do revólver a tiracolo perfeitamente visível por baixo do tecido listrado do paletó.

Peter estava com 13 anos. Em sua classe havia mais três me­ninos com o mesmo nome e o professor de História, que se julgava muito engraçado, chamava-os de Número Um, Nú­mero Dois (o que no momento comia uvas com sementes e tudo), Número Três e Pedro, o Grande. Este, naturalmente, era o menor aluno da classe. Pesava apenas 30 quilos, usava óculos e era o último a ser escolhido para tomar parte nos jo­gos. A classe ria sempre, quando o professor o chamava de Pedro, o Grande. O Número Dois ria também, embora não achasse aquilo muito engraçado.

Peter praticara uma ação muito boa em relação a Pedro, o Grande, duas semanas antes e os dois eram agora o que se poderia chamar de amigos. Todos os Peter eram o que se po­deria chamar de amigos. Não eram amigos de verdade, mas tinham alguma coisa que os unia, alguma coisa que os outros meninos não tinham. Não gostavam daquilo, mas o fato é que existia e isto os tornava responsáveis uns pelos outros. Por is­to, duas semanas antes, quando Charles Blaisdell tomou o boné de Pedro, o Grande, durante o recreio, e começou a jogá-lo para o ar, Peter tomou o boné, devolveu-o ao dono e enfren­tou Blaisdell. Naturalmente houve luta e Peter tinha certeza de que aquela seria sua terceira derrota do semestre, quando aconteceu uma coisa inesperada. Justamente quando Peter co­meçava a ansiar para que aparecesse algum professor (é ver­dade que apareciam freqüentemente, quando ninguém precisava deles), Blaisdell socou-o para valer. Peter caiu e o outro deu-lhe um soco no alto da cabeça, quebrando o braço. Qualquer um podia ver que Blaisdell tinha quebrado o braço porque ele caiu, gritando, com o braço pendurado, como um pedaço de corda. Walters, o professor de ginástica, aparecera finalmente e carregara Blaisdell, que não parava de gritar. Foi quando Pedro, o Grande, aproximou-se de Peter e falou, cheio de admiração:

— Puxa, rapaz, uma coisa você tem de admitir... Você tem a cabeça dura...

Blaisdell faltou às aulas por dois dias e voltou com o braço engessado. Cada vez que ele era dispensado de escrever no quadro-negro por causa do braço quebrado, Peter sentia uma onda de prazer percorrer-lhe todo o corpo. Pedro, o Grande, vivia atrás dele, fazendo-lhe favores e pagando-lhe refrigeran­tes, porque os pais dele eram divorciados e lhe davam mais dinheiro do que necessitava. E aquilo era ótimo.

Mas o melhor de tudo era o que Peter passara a sentir de­pois da briga. O mesmo que devia sentir a turma da televisão quando entrava num quarto cheio de homens armados, e saía com a moça, os documentos ou o suspeito, deixando para trás cadáveres e desolação. Blaisdell pesava 60 quilos, o que não fizera Peter recuar, assim como o fato de todos os espiões por­tarem duas armas cada um não fazia recuarem os homens do FBI, lá na tela. Sabiam o que tinham de fazer e o faziam, na­da mais. Peter não seria capaz de expor desta forma suas idéias, mas pela primeira vez na vida sentia dentro de si aquela sen­sação de orgulho e confiança.

— Eles que venham... — murmurava obscuramente, mas­tigando sementes de uva e olhando para a televisão com olhos semicerrados. — Eles que venham...

Sentia que quando crescesse seria um homem perigoso, mas um homem a quem poderiam recorrer sempre os fracos e os in­justamente perseguidos. Tinha certeza de que chegaria a 1,85 m de altura, porque esta era a altura de seu pai e de todos os seus tios, o que já ajudava. Mas era preciso desenvolver os braços. Eram finos demais. Afinal de contas, não era possí­vel contar com pessoas quebrando sempre o braço ao esmur­rar sua cabeça. Andava fazendo flexões todos os dias, pela manhã e à noite. Até o momento, conseguia levantar o corpo, apoiado nos braços, apenas cinco a seis vezes de cada vez, mas continuaria até que tivesse braços como barras de aço. Braços assim significariam, na verdade, a diferença entre a vida e a morte, no futuro, quando fosse obrigado a atacar um ho­mem armado e desarmá-lo. Naturalmente, era preciso tam­bém ter reflexos rápidos e ser capaz de, num olhar, ficar por dentro da situação, antes do momento crucial. E, o que era mais importante de tudo, era preciso não ter medo, qualquer que fosse a circunstância. Um momento de hesitação e acaba­ria no necrotério. Mas agora, depois da luta pelo boné, Peter não se preocupava com esta parte, isto é, com o medo. De agora em diante, seria apenas uma questão de técnica.

Os palhaços começavam a aparecer na tela, rindo com to­dos os dentes, e Peter foi à cozinha apanhar mais um cacho de uvas e duas tangerinas na geladeira. Não acendeu a luz da cozinha e era engraçado ver como o aposento se tornava um lugar misterioso depois da meia-noite, quando não havia nin­guém em casa e somente os raios da luz que vinha da geladei­ra projetavam sobre o linóleo sombras das garrafas de leite. Até pouco tempo antes, não gostava muito do escuro e acen­dia sempre as luzes, onde quer que fosse, mas era preciso trei­nar a coragem, como tudo mais.

Comeu as duas tangerinas de pé na cozinha escura, só para treinar. Engoliu também as sementes, só para enfrentar sua mãe. Voltou então à sala, levando as uvas.

Os palhaços continuavam a rir e a rir sem parar. Girou o botão, mas lá estavam eles, em todos os canais, usando cha­péus engraçados e contando piadas sobre o Imposto de Ren­da. Se a mãe não o tivesse feito prometer que iria deitar-se às 10 horas, Peter teria desligado a televisão e ido para a ca­ma. Resolveu não perder tempo e estirou-se no chão, come­çando a levantar o corpo apoiado nos braços, com o cuidado de conservar retos os joelhos. Já estava no quarto exercício e ia baixando o corpo, quando ouviu o grito. Parou no meio da ginástica, para certificar-se do que ouvira. Novo grito seguiu-se ao primeiro. Era um grito de mulher e um bocado alto. Lançou um olhar à televisão. Lá estava um homem fa­lando sobre uma cera para o assoalho. Era um homem de bi­gode e muitos dentes e não havia a menor dúvida de que ele não estava gritando.

Da próxima vez que ouviu o grito, vinha seguido de vozes e gemidos e Peter ouviu também o barulho de murros na por­ta da frente do seu apartamento. Levantou-se e desligou a te­levisão, para certificar-se de que os sons não estavam sendo transmitidos pelo aparelho.

Ouviu novamente batidas na porta e uma voz de mulher gritando:

— Por favor... por favor... por favor...

Desta vez, não havia dúvidas. Peter olhou em volta da sala vazia. Havia três lâmpadas acesas e o aposento pareceu-lhe agradável e claro. O espelho refletia as uvas e o quadro de bar­cos que tia Marta pintara no ano anterior, quando estivera em Cape Cod. O aparelho de televisão ficava a um canto e, desli­gado, parecia um grande olho cego. As almofadas da poltro­na macia onde estivera sentado estavam amarrotadas e Peter sabia que a mãe iria batê-las e endireitá-las antes de dormir. Toda a sala transpirava aconchego, um lugar onde seria im­possível ouvir uma mulher gritar à meia-noite e esmurrar a porta, pedindo em altos brados, “por favor, por favor, por favor...”

Lá da porta, a mulher gritou:

— Assassino! Ele está me matando! — Pela primeira vez, Peter lamentou que os pais tivessem saído aquela noite.

— Abram a porta! —berrou a mulher. — Por favor, por favor abram esta porta!

Era fácil verificar que ela não dizia por favor apenas por simples polidez. Peter olhou nervosamente à sua volta. A sa­la, com todas as suas luzes, parecia-lhe estranha e havia som­bras por trás de tudo. Foi então que a mulher gritou novamente, mas desta vez gritou apenas. Ou a pessoa é corajosa, pensa­va friamente Peter, ou não é. Pôs-se a caminhar na direção da porta. No corredor, havia um espelho comprido e o garo­to olhou-se nele. Achou os braços muito finos.

A mulher começou a bater novamente e Peter examinou a porta com atenção. Era uma porta grande, de aço, mas balançava-se, com se alguém a estivesse sacudindo com toda força. Pela primeira vez, Peter ouviu outra voz. Era uma voz de homem, só que não parecia uma voz humana. Era como se fosse um animal rugindo, rosnando, decidido a praticar um ato irracional. Peter jamais ouvira coisa semelhante, em to­das as cenas de ameaças e violências que vira na televisão. Aproximou-se vagarosamente da porta, com a mesma sensa­ção que tinha sentido quando estivera seriamente gripado, re­cordando a finura dos braços vista no espelho e lamentando ter-se decidido a ser corajoso.

— Oh, meu Deus! — gritou a mulher. — Oh, meu Deus! Não faça isto!

Em seguida, novas batidas na porta e o som baixo e feroz de animal enjaulado que Peter jamais ouvira. O menino es­cancarou a porta.

A Sra. Chalmers estava ajoelhada no vestíbulo, bem na fren­te de Peter e logo atrás dela estava o Sr. Chalmers de pé en­costado na parede, tendo às suas costas a porta aberta de seu próprio apartamento. Era ele quem fazia os estranhos sons. Tinha na mão um revólver apontado para a mulher.

O vestíbulo era pequeno, de paredes forradas com um pa­pel que a mãe de Peter dizia ser em estilo colonial americano, com um aplique de ferro batido. Somente as duas portas da­vam para esse vestíbulo e diante da dos Chalmers havia um tapete onde estava escrito: Bem-vindos. Os Chalmers tinham cerca de 30 e poucos anos e a mãe de Peter costumava dizer: “Uma coisa se pode afirmar a respeito de nossos vizinhos: eles são sossegados”.

Dizia também que a Sra. Chalmers gastava um bocado de dinheiro em roupas.

A Sra. Chalmers era um tanto gordinha, tinha lindos cabe­los louros e uma pele suave e rosada. Toda ela dava a impres­são de ter passado a tarde inteira num salão de beleza. Costumava dizer a Peter, quando o encontrava no elevador:

“Puxa, como você está ficando alto!”

Falava com voz suave, como se estivesse querendo rir. Ha­via sempre, em volta dela, uma agradável onda de perfume.

O Sr. Chalmers usava pincenê quase constantemente, esta­va começando a ficar careca e trabalhava até tarde no escritó­rio, várias vezes por semana. Quando ele e Peter se encontravam no elevador, dizia: “Está ficando mais frio”, ou “O calor está chegando”.

Dizia apenas isso e Peter não tinha opinião formada sobre ele, exceto achar que ele parecia um diretor de colégio.

Naquele momento, entretanto, a Sra. Chalmers estava de joelhos no vestíbulo, tinha o vestido rasgado e chorava, gran­des riscos pretos escorriam-lhe pelo rosto. Além do mais, não parecia, absolutamente, ter acabado de chegar de um salão de beleza. O Sr. Chalmers estava sem paletó e sem pincenê, com o pouco cabelo que possuía todo despenteado.

Lá estava ele, encostado no papel em estilo colonial ameri­cano, fazendo aqueles ruídos de fera, com um grande e pesa­do revólver na mão, apontado para a mulher.

— Deixe-me entrar! — gritou a Sra. Chalmers. — Você tem de me deixar entrar. Ele vai me matar! Por favor!

— Sra. Chalmer... — começou a dizer Peter, mas as pala­vras custavam a sair e ele não conseguiu pronunciar o s final do nome dela. Defendia-se vagamente com as mãos, como se esperasse que alguém fosse atirar-lhe alguma coisa.

— Vá para dentro! — rosnou o Sr. Chalmers.

Peter olhou para o homem. Estava apenas a dois metros de distância, contraindo os olhos, pela falta dos óculos. Apon­tava o revólver para a mulher, mas de certo modo Peter acha­va que o estava apontando também na sua direção. Dois metros eram uma distância muito, muito grande...

— Boa-noite — disse o menino, fechando a porta.

Houve um único soluço do outro lado, e nada mais.

Peter entrou, levou para a geladeira as uvas que não chega­ra a comer, acendendo a luz da cozinha quando entrou e deixando-a acesa ao sair. Voltou então à sala, pegou as has­tes do primeiro cacho de uvas e jogou-as na lareira, porque do contrário sua mãe notaria, procuraria as sementes e, não as encontrando, lhe daria quatro colheres de leite de magnésia no dia seguinte.

Em seguida, deixando acesas as luzes da sala, embora sa­bendo o que diria sua mãe ao voltar, foi para o quarto e meteu-se depressa na cama.

Ficou esperando o som dos tiros. Ouviu dois ou três ruídos que poderiam ter sido tiros, mas em plena cidade, é difícil ter certeza.

Ainda estava acordado quando os pais chegaram. Ouviu a voz da mãe e, pelo tom, sabia que estava reclamando das lu­zes acesas na sala e na cozinha, mas fingiu estar dormindo quando ela entrou no quarto para espiá-lo. Na queria falar-lhe sobre os Chalmers porque se o fizesse ela perguntaria quan­do acontecera o caso e ia querer saber o que ele estava fazen­do de pé à meia-noite.

Continuou muito tempo tentando ouvir o ruído de tiros, a princípio molhado de suor, depois tiritando de frio. Chega­ram até ele vários sons agudos e indefinidos na noite silencio­sa, mas nada de que pudesse ter certeza. Finalmente, adormeceu.

Na manhã seguinte, Peter levantou-se cedo, vestiu-se rapi­damente e saiu do apartamento sem acordar os pais. O vestíbulo parecia o mesmo de sempre com a lâmpada de ferro batido, o papel de parede florido e o capacho, na porta dos Chalmers, onde se lia: Bem-vindos. Não viu sangue nem ca­dáveres.

Por vezes, quando a Sra. Chalmers estivera esperando o ele­vador, sentia se o perfume dela muito tempo depois. Mas na­quele momento, não sentia perfume algum, apenas o cheiro comum de um edifício de apartamentos. Peter olhou nova­mente para a porta dos Chalmers, enquanto esperava o eleva­dor, mas a porta não se abriu e de dentro não vinha o menor ruído.

Sam, o cabineiro, que aliás não gostava de Peter, apenas resmungou qualquer coisa quando o menino entrou. Peter decidiu nada perguntar-lhe. Saiu na manhã clara e fria de do­mingo, esperando ver na porta do edifício o carro funerário, ou pelo menos, dois ou três carros de polícia. Mas viu apenas uma mulher idosa que levava o cachorro para passear e um homem com a gola do casaco levantada andando apressada­mente, vindo da esquina, com jornais debaixo do braço.

Peter atravessou a rua e olhou para o sexto andar, para as janelas do apartamento dos Chalmers. As venezianas estavam descidas e todas as janelas fechadas.

Um policial descia a rua pelo lado oposto, pesadão, som­brio e decidido. Por um momento, Peter julgou que ia ser pre­so. Mas o policial continuou seu caminho na direção da avenida e desapareceu na esquina, e o menino murmurou consigo:

— Eles nunca sabem de coisa alguma...

Peter subiu e desceu a rua, primeiro de um lado, depois do outro, esperando, embora lhe fosse difícil saber o que espera­va. Viu alguém passar a mão pela persiana do quarto de seus pais, fechando-a com um estalido seco. Sabia que deveria su­bir rapidamente, com uma boa desculpa por estar na rua, mas não se sentia capaz de enfrentar os pais naquela manhã e in­ventaria a desculpa mais tarde. Talvez dissesse que tinha ido ao museu, embora duvidasse de que sua mãe engolisse aque­la. Qualquer desculpa. Mais tarde.

Finalmente, depois de ter patrulhado a rua por quase duas horas, quando já se aproximava da porta do edifício, esta se abriu e o Sr. e a Sra. Chalmers saíram. O homem usava o pincenê e o chapéu cinza-escuro e a Sra. Chalmers, um casaco de peles e um chapéu vermelho enfeitado de penas. O Sr. Chal­mers segurava atenciosamente a porta para sua mulher que parecia, quando saiu, ter acabado de chegar de um salão de beleza.

Era tarde demais para virar-se e fingir que não os tinha vis­to. Peter ficou de pé, imóvel, a dois metros da porta.

— Bom-dia — falou o Sr. Chalmers, ao mesmo tempo que segurava o braço da mulher. Os dois passaram pelo menino.

— Bom-dia, Peter — disse a Sra. Chalmers com a sua voz suave, sorrindo para ele. — Linda manhã, não?

Os Chalmers seguiram rua abaixo, na direção da Avenida Madison, duas pessoas casadas, de braços dados, indo para a igreja ou para o grande hotel para tomar o café da manhã. Peter ficou a olhá-los, envergonhado. Tinha vergonha da Sra. Chalmers por causa da sua aparência na noite anterior, por ter estado de joelhos gritando daquela maneira parecendo tão apavorada. Tinha vergonha do Sr. Chalmers pelo estranho som desumano que imitara e por ter ameaçado matar a mulher e não o ter feito. E tinha vergonha de si próprio por se ter senti­do tão corajoso quando abrira a porta e por não ter mostrado coragem 10 segundos depois, com o Sr. Chalmers a dois me­tros de distância, de revólver na mão. Sentia-se envergonha­do por não ter feito a Sra. Chalmers entrar no apartamento, por ela não estar, naquele momento, caída, com uma bala no coração. Mas, acima de tudo, o que mais o envergonhava era o fato de todos se terem cumprimentado e os Chalmers terem seguido juntos, de braços dados, na manhã de sol e vento, dirigindo-se para a Avenida Madison.

Eram quase 11 horas quando Peter voltou para o aparta­mento, mas os pais ainda estavam dormindo. Havia um exce­lente programa àquela hora, sobre contra-espionagem na Ásia, e o menino ligou automaticamente a televisão, enquanto co­mia uma laranja. Era um programa muito excitante e havia um pedaço em que um oriental entrava numa sala cheia de americanos, com uma bomba na mão. Peter sabia o que viria a seguir. O herói, que não tinha medo e acabara de chegar da Califórnia, começaria a simular um ataque... O menino aproximou-se do aparelho e desligou-o. A imagem foi desa­parecendo aos poucos, tremulamente. Piscando um pouco, Pe­ter olhou por um instante para a televisão apagada.

“Ah!”, pensou ele, cheio de súbita e profunda descrença, depois da noite em que enfrentara o incompreensível e desa­vergonhado mundo dos adultos, um mundo armado que ele fora incapaz de desarmar. “Ah!... deixem isso pra lá... Isso é coisa para crianças”...

 

IDADE DA RAZÃO

Tivera o sonho apenas uma vez, em dezembro. Pensou nele durante alguns minutos, na manhã seguinte, depois o esque­ceu até uma tarde de abril, 10 minutos antes da decolagem do avião que deveria tomar. Foi então que, repentinamente, se recordou do sonho. Sempre que tinha de tomar um avião, sen­tia certo nervosismo antes de embarcar, uma sensação de pe­rigo, embora ligeira e controlada, uma leve intuição inconsciente de que toda viagem de avião pode terminar com a morte, a consciência oculta de que havia uma fatalidade la­tente nos ventos, nas nuvens, nas válvulas e nas asas, fatali­dade que nem a habilidade e o cuidado dos pilotos ou a publicidade da companhia aérea seriam capazes de afastar. Foi aquele instante costumeiro, aquela latente previsão de desas­tre, que o fez lembrar-se do sonho, enquanto estava junto ao portão, em companhia da esposa e da irmã, olhando para o campo de pouso às escuras, para o enorme avião e para as luzes que marcavam as pistas de decolagem.

Fora um sonho muito simples: sua irmã Elizabeth havia mor­rido, não saberia dizer como, ele acompanhara o caixão ao cemitério e ficara olhando, sem chorar, quando o baixaram à sepultura, voltando então para casa. Mas havia um detalhe no sonho: tudo aquilo acontecera no dia 14 de maio. A data tinha sido perfeitamente clara e bem definida, o que dera ao sonho um sentido real e trágico que, de outra forma, não te­ria. Quando acordou, tentou descobrir por que 14 de maio, uma data obscura que ficava a cerca de cinco meses de distân­cia, fora escolhida especificamente e com tamanha insistên­cia pelo seu consciente adormecido. Mas não o conseguiu. Não havia aniversários na família no mês de maio, nenhuma data especial, nada de particular tinha acontecido, a ele ou a al­guém que conhecia, naquele dia. Sorrira ligeiramente, meio adormecido, tocara de leve o ombro nu de Alice, deitada a seu lado, depois se levantara, fora para o trabalho e, na at­mosfera normal de cada dia, entre relatórios e projetos, es­quecera o sonho e não falara sobre ele à mulher nem a pessoa alguma.

E então, rindo-se do modo pelo qual sua filhinha de cinco anos se despedira dele, ainda meio dormindo, quando saíra do apartamento, ao beijar sua irmã Elizabeth, o sonho volta­ra. Elizabeth estava corada e saudável como sempre, uma ga­rota animada e bonita que parecia ter acabado de sair de um campo de tênis ou de uma piscina e se havia um toque de peri­go à sua volta, estava muito bem escondido.

— Traga Cary Grant para mim... — dissera ela, quando ele tocara sua face com os lábios.

— Pode contar comigo — respondera Roy.

— Bem, agora vou deixá-los para uma despedida especial — falou Elizabeth. — Alice, dê a ele as instruções de última hora. Diga-lhe que se comporte...

— Já dei minhas instruções para esta viagem — respondeu Alice. — Nada de garotas. Não mais de três Martínis antes do jantar. Telefonar para mim dando o serviço, duas vezes por semana. Tomar o avião e voltar para casa no mesmo ins­tante em que terminar o trabalho.

— Duas semanas — falou Roy. — Juro que voltarei den­tro de duas semanas.

— Não se divirta muito... — disse ainda Alice, sorrindo, mas a ponto de chorar como acontecia sempre que o marido viajava sem ela, mesmo que fosse a Washington para voltar no dia seguinte.

— Não me divertirei — disse Roy. — Prometo me aborre­cer todo o tempo.

— Ótimo — falou Alice, rindo.

— Não leva nenhum número de telefone escondido na rou­pa? — perguntou Elizabeth.

— Nada disso.

Tinha havido um período na vida de Roy, pouco antes de seu casamento com Alice, em que ele fora muito mulherengo e, durante a guerra, os amigos que voltavam da Europa com relatos de aventuras sensacionais e em grande parte fictícias, em Paris e Londres, fizeram com que as mulheres da família o julgassem mais instável e impetuoso do que realmente era.

— Santo Deus! — disse Roy. — Será um alívio livrar-me por alguns dias desta diretoria feminina.

Caminhou para o portão de embarque, em companhia de Alice.

— Cuide bem de si, meu amor — Alice falou baixinho.

— Não se preocupe — respondeu ele, beijando-a.

— Detesto isto... — reclamou Alice, agarrando-se a ele. — Estamos sempre nos despedindo. Esta é a última vez. De ago­ra em diante, aonde quer que você vá, irei junto.

— Combinado — respondeu Roy, sorrindo para a mulher.

— Mesmo que você só vá até o Estádio Americano.

— Para mim, não pode haver nada melhor.

Roy apertou-a nos braços por um instante, querida, fami­liar e emocionada como estava, por ser deixada para trás. Em seguida, caminhou para o avião. Voltou-se, quando chegou à porta e acenou para Alice e Elizabeth que corresponderam à despedida, notando como as duas se pareciam, ali de pé, la­do a lado, como duas irmãs de uma família de moças boni­tas, ambas louras e claras, elegantes, com pequenos movimentos e atitudes quase idênticos.

Virou-se e entrou no avião. Um instante mais tarde, a por­ta se fechava e o aparelho começava a taxiar, dirigindo-se pa­ra o fim da pista.

Dez dias mais tarde, pelo telefone, entre Los Angeles e No­va York, Roy dizia a Alice que teria de ir para o Oeste.

— Munson diz que terei de ficar lá seis meses — falou Roy. — Prometeu arranjar-me uma casa e você já está convidada...

— Muito obrigada — respondeu Alice. — Diga a Munson que gostaria de dar-lhe um soco.

— Não há outro jeito, querida. Os negócios acima de tu­do. Você sabe...

— Por que ele não disse isto a você antes de sua viagem? Você poderia ter-me ajudado a fechar o apartamento e tería­mos viajado juntos.

— Ele só soube depois que cheguei — falou pacientemente Roy. — O mundo anda muito complicado estes dias...

— Gostaria de lhe dar um soco.

— Muito bem — falou Roy, sorrindo. — Você vem para cá e diz isto a ele, pessoalmente. Quando vai chegar? Amanhã?

— Há uma coisa que você precisa saber — respondeu Ali­ce. — Não sou um exército em manobras. Você não pode di­zer: “Cidadã Alice Gaynor, apresente-se a 5 mil quilômetros daqui, amanhã às 4 horas da tarde”... e esperar que eu obedeça.

— Concordo. Você não é um exército em manobras. Quan­do chega?

Alice teve de rir.

— Você parece que está realmente cheio de saudades.

— Eu estou realmente cheio de saudades.

— Ótimo.

— Quando?

— Bem... — falou Alice, refletindo, hesitante. — Tenho que tirar Sally da escola, mandar alguns móveis para o depó­sito, alugar o apartamento, reservar passagens de avião...

— Quando?

— Dentro de duas semanas. Se conseguir a reserva das pas­sagens. Pode esperar?

— Não — respondeu Roy.

— Nem eu... — disse Alice, e os dois riram. — Tem se di­vertido muito por aí?

Roy reconheceu o tom de tentativa de inquérito e conteve um suspiro.

— Nada, nada — respondeu. — Não saio à noite, fico em casa lendo. Já li seis livros e estou na metade do relatório do General Marshall sobre seu modo de conduzir a guerra.

— Houve uma noite em que você não ficou lendo... — Alice falava com cuidado, num tom propositalmente descuidado.

— Muito bem — falou Roy. — Quando foi?

— Monica chegou segunda-feira e telefonou para mim. Con­tou que viu você com uma moça bonita, num restaurante da moda.

— Se houvesse justiça — falou Roy — Monica seria joga­da no atol de Bikini.

— Ela tem cabelos pretos e compridos...

— Monica tem razão. A moça tem cabelos pretos e com­pridos!

— Não precisa gritar. Estou ouvindo muito bem.

— O que Monica esqueceu de contar é que a moça é espo­sa de Charlie Lewis.

— Ela disse que vocês estavam sozinhos...

— E Charlie, a dois metros de distância, no banheiro dos homens.

— Tem certeza?

— Não. Talvez ele tenha ido ao banheiro das senhoras.

— Pode ser engraçado para você. Mas com a sua fama...

— Minha fama é a de todos os maridos — respondeu Roy.

— Detesto o seu senso de humor quando se trata deste assunto.

A voz de Alice começou a tremer e Roy cedeu:

— Escute aqui, meu bem... — falou baixinho. — Venha depressa. O mais rápido que puder. Assim acabamos com es­tas tolices.

— Desculpe... — falou Alice, com voz suave e arrependi­da. — É que temos estado longe um do outro tantas vezes nestes últimos anos. Fico nervosa e boba. Quem está pagando o te­lefonema?

— A firma.

— Ainda bem. Detesto brigar com nosso dinheiro. Você me ama?

— Venha depressa para cá.

— Considera isto uma resposta à minha pergunta?

— Sim.

— Eu também... Adeus, querido. Até breve.

— Dê um beijinho em Sally por mim.

— Sim, darei.

Roy desligou. De início, sacudiu levemente a cabeça, meio aborrecido, lembrando-se da discussão, depois sorriu, recor­dando o fim da conversa. Levantou-se e foi olhar a folhinha, calculando em que dia poderia esperar a mulher e a filha.

O telegrama chegou três dias depois:

“Reserva vôo, 2 horas, 14 maio. Chegaremos Burbank 10 horas local. Favor fazer barba. Beijos. Alice.”

Roy sorriu, releu o telegrama e então conscientizou-se de uma sensação de mal-estar que se recusava a cristalizar-se ou definir-se. Andou o dia todo com uma sensação desagradável e foi só à noite, quando começou a adormecer, que tudo se tornou claro. Despertou, levantou-se da cama e tornou a ler o telegrama. 14 de maio. Deixou a luz acesa, acendeu um ci­garro e sentou-se na cama estreita do quarto de hotel impes­soal, deixando a idéia ir aos poucos se apoderando dele.

Nunca fora um homem supersticioso, nem ao menos reli­gioso. Sempre rira da mãe que tinha sempre às ordens uma provisão de sonhos, pressentimentos e avisos de coisas boas ou más. Alice tinha um ou dois hábitos supersticiosos, como, por exemplo, não falar sobre uma coisa que desejava muito porque poderia não acontecer se falasse sobre ela ou a dese­jasse demais. Mas sempre zombara dela também. Durante a guerra, quando as revistas e jornais asseguravam que não existia um só ateu nas fronteiras, nunca tinha rezado, nem mesmo nos momentos piores e mais perigosos. Nunca, em sua vida adulta, fizera coisa alguma movido por superstição ou pres­sentimento. Olhou em volta do quarto, funcionalmente mobiliado, claro, típica decoração do século XX, e sentiu-se idiota por estar acordado em plena noite, procurando fantasmas e avisos nos pedaços de sonho que passavam pelos sensíveis canais de sua mente de engenheiro.

O sonho, na verdade, tinha sido explícito. Sua irmã morre­ria no dia 14 de maio. Mas os sonhos nunca são o que pare­cem ser, e Elizabeth e Alice eram tão parecidas, andavam sempre juntas e eram tão boas amigas... Conhecia bastante o mecanismo dos sonhos para compreender que poderia ha­ver uma simples transferência naquele mundo sombrio e fan­tasioso — uma irmã por uma mulher, a mulher pela irmã. E agora, entre todos os dias do ano, sua esposa e filha tinham escolhido o dia 14 de maio para voar por 6 mil quilômetros sobre rios e montanhas do continente, de Nova York até a Ca­lifórnia.

Apagou a luz muito tempo depois, sem ter tomado uma de­cisão, e tentou dormir. Ficou olhando para o teto escuro, ou­vindo de vez em quando o ruído de um carro que passava rapidamente na rua lá fora, na noite que se aproximava do fim. Para um homem que não acreditava no destino, pensava que via o mundo em termos de simples causa e efeito, que acha­va não ser inevitável nenhum ato, que o lugar do nascimento e da morte das pessoas não era preestabelecido, que nenhum acontecimento estava previsto por forças maiores, que a raça humana não recebia avisos e palpites de nenhuma força so­brenatural, aquele era um modo ridículo e inútil de passar a noite. Para um homem que passava debaixo de escadas, que jamais mandara ler a mão ou a sorte nas cartas, aquele proce­dimento era idiota. Contudo, não conseguia dormir.

Na manhã seguinte, ligou para Nova York.

— Alice — disse ele — prefiro que vocês venham de trem.

— Que foi que houve? — perguntou Alice.

— Estou com medo da viagem de avião — falou Roy, ou­vindo o riso incrédulo da mulher, do outro lado da linha.

— Não seja tolo — disse Alice. — Ainda não houve um só acidente nesta linha e não será logo agora que vai haver.

— Mesmo assim...

— E não vou tentar distrair Sally por três dias, numa cabi­na de trem — falou a mulher. — Levaria todo o verão para me recuperar...

— Por favor... — pediu Roy.

— Além de não conseguir passagens de trem nas próximas semanas, o apartamento já está alugado e tudo acertado. Que foi que deu em você? — perguntou, desconfiada.

— Nada. É só que eu não gosto de viagens de avião.

— Santo Deus! — exclamou Alice. — Você já voou milha­res de quilômetros para toda sorte de lugares...

— Eu sei. É por isso mesmo que fico preocupado.

— Você bebeu? — perguntou Alice.

— Alice, meu bem, são 8 h da manhã aqui... — disse Roy, com um suspiro.

— Bem, você parece tão estranho...

— Passei a noite inteira acordado. Preocupado.

— Muito bem, pois deixe de ficar preocupado. Dia 14 es­taremos aí com você. Tem certeza de que está passando bem?

— Claro.

— Pois confesso que este foi um telefonema um bocado es­tranho.

— Desculpe.

Conversaram por mais alguns minutos, um tanto friamen­te, e Roy desligou insatisfeito e arrasado.

Ligou outra vez, dois dias depois.

— Não faça perguntas — disse ele. — Apenas faça isto por mim e explicarei tudo quando você chegar aqui. Se quer vir de avião, muito bem, mas não venha no dia 14. Venha no dia 15, no dia 16 ou 17. Qualquer outro dia. Mas não no dia 14.

— Roy! — exclamou Alice. — Você está me deixando se­riamente preocupada. Que houve com você? Conversei com Elizabeth e ela acha que isto não parece coisa sua.

— Como está ela? — perguntou Roy.

— Elizabeth vai bem. Aconselhou-me a não dar atenção a você e viajar no dia marcado.

— Diga a Elizabeth que se meta com a vida dela!

Roy estava trabalhando muito, dormindo mal e sua voz era áspera e nervosa. Alice reagiu imediatamente:

— Acho que sei o que está acontecendo — disse friamente. — Monica me disse que vai haver uma grande festa em casa dos Condons, no dia 14. Você decerto prometeu levar alguém e uma esposa seria um transtorno.

— Oh, meu Deus, quer parar com isto? — gritou Roy pelo telefone.

— Não é à toa que estou casada com você há sete anos — disse Alice. — Não sou cega.

— Pois venha hoje! — gritou Roy. — Ou venha dia 12 ou 13. Mas não venha no dia 14.

— Você sabe tão bem quanto eu que se desistir da reserva não conseguirei outra antes de junho. Se não quer mais me ver, diga logo. Não precisa de toda esta palhaçada.

— Alice, meu bem... — implorou Roy — pode estar certa de que desejo vê-la.

— Pois bem, então acabe com essa tolice ou me conte o que há.

— Alice, o caso é o seguinte... — começou ele a dizer, re­solvido a contar tudo a ela, por mais que aquilo o fizesse sentir-se idiota, mas houve um ruído na linha, em seguida 6 mil qui­lômetros de sussurros e silêncio. Quando conseguiu novamente a ligação, 10 minutos mais tarde, sentia-se por demais ridícu­lo para confessar, a essa altura, que se transformara em um homem tolo, infantil, descontrolado, nervoso e irresponsável, depois de tantos anos de sanidade.

— Não tenho mais nada a dizer — falou a Alice, quando a telefonista restabeleceu a ligação — exceto que a amo muito e não poderia suportar se alguma coisa lhe acontecesse.

Ouviu Alice chorar baixinho do outro lado da linha.

— Precisamos estar juntos depressa — disse ela. — Isto é horrível. E não torne a telefonar, meu querido. Você está tão esquisito que quando acabo de falar com você as mais tristes idéias me vêm à cabeça. Tudo estará bem quando eu chegar aí?

— Tudo será maravilhoso, minha querida.

— E você nunca mais tornará a viajar sem mim? Nunca?

— Nunca.

Roy podia fechar os olhos e ver a mulher encolhida como uma menininha falando ao telefone no quarto de sua casa tranqüila e agradável, segurando o aparelho com ambas as mãos, o rosto bonito e inteligente demonstrando pesar e saudade. Era difícil, para ele, dizer mais alguma coisa.

— Boa-noite — disse apenas. — E cuide-se.

Roy desligou o telefone e ficou olhando para a parede nua do outro lado do quarto, sabendo que não dormiria também aquela noite.

O dia 14 de maio amanheceu nublado e Roy ficou olhando o nevoeiro, com os olhos ardendo e tonto pela falta de sono. Saiu do hotel e perambulou pelas ruas tranqüilas e cinzentas onde apenas os carros da polícia e os caminhões distribuido­res de leite perturbavam a madrugada escura e fina.

Califórnia... pensava ele. As manhãs são sempre nubladas, o nevoeiro é regra geral, na Califórnia, antes das 8 h. A hora e o tempo são diferentes na costa do Atlântico e o avião dela só deve sair daqui a muitas horas.

Deve ser a guerra, pensava. Isto nunca teria acontecido co­migo antes da guerra. Pensei que tinha voltado em perfeitas condições, mas talvez tenha sido confiante demais. Todos aque­les cemitérios com jovens enterrados na areia ou na grama e as velhas senhoras com seus vestidos de renda preta morren­do nas ruas de Londres, vítimas dos bombardeios aéreos. A imaginação de um homem acaba se tornando mórbida. Preci­so controlar-me, dizia consigo, sensatamente. Sou um homem que sempre se considerou normal, equilibrado em todas as si­tuações, que sempre zombou dos médiuns e do espiritismo, dos padres e dos psicanalistas.

O nevoeiro começava a dissipar-se e Roy ficou olhando a silhueta distante das montanhas que montavam guarda na entrada leste da cidade. Os aviões tinham de descer a pique acima delas e rodear a cidade e a região que ficava a oeste. Uma faixa de azul aparecia acima das montanhas e se ia tornando cada vez mais larga, o nevoeiro se desmanchava em fiapos sobrei as palmeiras feias e copadas enfileiradas dos lados da rua. Em breve o sol estaria brilhando sobre os gramados cobertos dei orvalho e o céu se mostraria claro e azul desde Beverly Hills até Scotland.

Voltou ao hotel e deitou-se, sem ao menos tirar os sapatos. Acordou algum tempo depois. Vagamente, no momento de acordar, viu uma confusão de aviões caindo envoltos em ro­los de fumaça, como nos noticiários de guerra, e a voz de Sally dizendo, cheia de tristeza, como sempre fazia na hora de dor­mir: “Eu tenho mesmo de ir dormir? Estou tão acordada”...

Olhou o relógio. Seria lh40 em Nova York. Naquele mo­mento, já estariam no aeroporto e o grande aparelho estaria pousado, no campo, os mecânicos ocupavam-se dele, homens verificavam os tanques de gasolina. Para o diabo com tudo isso, pensou Roy. Não me importo de parecer maluco.

Pegou o telefone:

— Aeroporto LaGuardia, Nova York — pediu ele.

— Haverá uma pequena demora — disse a telefonista. — Chamarei depois.

— É um assunto muito importante. Urgente.

— Haverá uma pequena demora. Chamarei depois — re­petiu a telefonista, no mesmo tom de voz.

Roy desligou o telefone e dirigiu-se à janela, onde ficou olhando para fora. O céu estendia-se, claro e brilhante, sobre as montanhas, na direção de Nova York.

Direi tudo a ela, pensava Roy. Seja ou não idiotice. Vou proibi-la de tomar o avião. Mais tarde poderemos rir de tudo isto. Tomarei o primeiro avião e voltarei com elas. Isto será uma prova de que não existe outro problema.

Colocou duas ou três camisas numa valise e tornou a pegar o telefone. Cinco minutos mais tarde, estava ligado com o ae­roporto, mas esperou outros cinco para que o ligassem com o gerente da companhia aérea.

— Meu nome é Gaynor — disse Roy, com voz alta e apres­sada. — O pedido que vou fazer é muito estranho, portanto preste bem atenção no que vou dizer.

— Qual é o nome, senhor?

— Gaynor. G-a-y-n-o-r.

— Ah, sim. Gaynor. Como a artista — falou a voz distan­te, rindo educadamente de sua brincadeira. — Que deseja, senhor?

— Minha mulher e minha filha...

— Fale mais alto, por favor.

— Minha mulher e minha filha... — gritou Roy. — A Sra. Alice Gaynor deve tomar o avião de 2 h para Los Angeles. Quero que o senhor as impeça de viajar.

— Como disse?

— Quero que o senhor impeça que tomem o avião. Minha mulher e minha filha. O avião de 2 h para Los Angeles...

— Creio que é impossível, Sr. Gaynor — falou a voz es­pantada, mas educada.

— Não pode ser impossível. Tudo que tem a fazer é falar pelo microfone...

— Impossível, senhor. O avião de 2 h acaba de decolar. Mais alguma coisa em que possa servi-lo?

— Não — disse Roy, com voz inexpressiva, recolocando o fone no lugar. Sentou-se por um momento na beira da ca­ma, depois levantou-se e foi para a janela. Olhou para o céu claro e para as montanhas verde-amarelas. Lá ficou de pé, olhando para as montanhas, à espera do telefonema da com­panhia aérea.

 

UM BEIJO EM CROTON FALLS

Frederick Mull era um homem grande e folgazão, de bigo­de avermelhado, mas quando tiraram os bondes da Terceira Avenida, e o aposentaram, adoeceu e morreu, ele que nunca faltara um dia ao trabalho em toda a sua vida, exceto por em­briaguez ou por ferimentos recebidos durante aquele tipo de discussão que um homem não pode evitar, de vez em quando, em noites de bebedeira, em companhia de seus honrados ami­gos. Já sentira bastante quando lhe haviam tirado o condu­tor, obrigando-o a fazer troco na porta do veículo, com todo o tráfego de Nova York reclamando e gritando à sua volta, mas quando inauguraram os ônibus e lhe disseram que teria de aprender a dirigir se quisesse continuar na companhia, tanto ele quanto a companhia sabiam que era o fim.

Tudo isso nos mostra há quanto tempo aconteceu o que va­mos narrar. Foi no tempo em que a neve caía todo os anos na cidade, os lagos congelavam e os confortáveis edifícios mar­rons não tinham ainda sido substituídos pelas altas chapas de vidro e concreto onde funcionam os escritórios e ninguém le­vava um dia para ir da Ponte até Yorkville, pela superfície da terra.

Mull tinha seus defeitos. Bebia uísque, e certa noite foi levado para casa e entregue à mulher, em estado de choque que durou dois dias, por ter defendido o enforcamento de Roger Casement no bar de um homem chamado Mulloy, perto da Rua 40.

O pai de Mull combatera no Exército da União, sob o co­mando de McClellan, e ele próprio era bom patriota. Costu­mava dizer que era um pouco de tudo, já que sua família viera do Centro e sua mãe era meio índia. Tinha uma voz bonita de barítono e, depois de ter tomado umas e outras, gostava de cantar Flow Gently, Sweet Afton, Good King Wenceslas e Oh, Susannah. Na maioria das vezes, porém, preferia John Brown’s Body Lies A-mouldering in The Grave e Who is Sylvia?

Na opinião de sua mulher, tinha também um fraco por mu­lheres.

A única base para esta opinião provinha de um fato acon­tecido no verão de 1921, quando estiveram num hotel, em Croton Falls, ela recuperando-se após o nascimento da filha. A Sra. Mull olhou pela janela numa noite de luar e viu o marido beijando uma ruiva cujo marido era esperado somente no Dia do Trabalho.

O Sr. Mull afirmava que havia sido tomado de surpresa, antes de saber o que a ruiva pretendia fazer, ela o encostara numa coluna, passara os braços por seu pescoço e o beijara, errando a boca por boa margem, na sua ansiedade. Mas a Sra. Mull não acreditou em nada daquilo e, daquele momento até a morte, o Sr. Mull ficou sendo considerado pela esposa co­mo um homem dissoluto e mulherengo.

Estava certa de que todas as mulheres da grande cidade de Nova York andavam de bonde pela Terceira Avenida unica­mente para corromper seu marido. É verdade que havia uma história de certa viúva ainda de luto fechado que, num dia de primavera, em 1919, atravessara o carro e metera na mão de Mull um endereço num cartão gravado, enquanto esperava que o carro parasse na Rua 79, mas corriam muitas histórias, na­quele tempo, a respeito de motorneiros de bonde, maquinistas de trem e gente deste tipo, nem todas dignas de crédito.

Para evitar que outras viúvas ou virgens de olhar lânguido ou mal-amadas usassem os mesmos truques, a mulher come­çou a esperar, ao longo da linha, em horas imprevisíveis, a passagem do carro. Por uma ou duas vezes ele a vira a tempo, de pé ao lado de um poste, segurando pela mão a filhinha mo­rena, Clarice. Passara, então, sem parar. A mulher gritava co­mo se estivesse sendo violentada, ameaçando, com o punho fechado, o carro amarelo que seguia chocalhando na direção do Bowery, fazendo os motoristas de táxis pararem para olhá-la, espantados. Mas, naturalmente, ela não podia denunciá-lo à companhia. Por isso, passou a usar de astúcia e escolhia pontos onde havia pelo menos oito ou dez passageiros à espe­ra, de modo que, por causa deles, o marido não se atrevia a passar ao largo. Mesmo muitos anos depois de a mulher ter desistido desta atitude, Mull se encolhia visivelmente em sua cabina quando se aproximava das Ruas 23 e 24, ou na esqui­na de Bloomingdale.

Ao entrar no bonde, a mulher cumprimentava friamente o Sr. Coombs, que quase sempre trabalhava como condutor no carro do seu marido, pagava a passagem e dirigia-se para a frente do carro, desafiando com o olhar as outras mulheres que por acaso lá estivessem. Nunca dizia uma palavra ao ma­rido. Limitava-se a ficar sentada, fuzilando-o com o olhar, até que não suportando mais, ele abaixava a cortina que ha­via atrás do motorneiro, para evitar que o reflexo das luzes do interior do carro lhe prejudicassem a visão durante a noite.

As viagens noturnas, naturalmente, eram as piores. Costu­mava esperar por ele na cozinha escura e fria, com as pernas envoltas numa manta, como uma mulher de pescador, em noite de tempestade, aguardando a chegada do faroleiro que viria bater na porta, trazendo más notícias. E quando ele chegava, fingia que estava fazendo café e tirando os biscoitos, mas o tempo todo procurava sentir nele algum perfume, como um cão de caça farejando novas pistas, e os olhos o percorriam todo, em busca de marcas de batom e sinais de desalinho, co­mo um pirata examinando um mapa manchado de sangue.

Mull era um homem de boa paz e não se queixava. Só se casara aquela vez e supunha que a instituição era assim mesmo.

Sentia-se satisfeito. Tomava seu uísque antes e depois do trabalho e brincava com Clarice, ensinando-lhe a cantar Who is Sylvia? Suportava as queixas da mulher como suportava o mau tempo e os inspetores de trânsito e, afinal, tomava aqui­lo como uma prova de amor, o que na realidade era. Sentir-se-ia solitário e perdido sem os seus ciúmes. Afinal de contas, viveram juntos quase 30 anos, no que naquele tempo era con­siderado felicidade.

Viveu o suficiente para ver a filha única casada com um ho­mem de bem, chamado Smalley, que trabalhava como fiscal de uma companhia de seguros. No dia do casamento, disse ao noivo:

— Ah, homem, pelo menos, no seu trabalho, ninguém vai retirar os trilhos sobre os quais você se locomove.

Smalley era de um estofo diferente de Mull, o que era de se esperar, já que a Sra. Mull passara grande parte da vida recomendando à filha que não se casasse com um homem igual a seu pai. Mull ouvira muitas vezes na vida este aviso e, se bem que não o aprovasse taxativamente, muitas vezes balan­çara a cabeça em tranqüilo sinal de concordância com os con­selhos da mulher. Admirava muito a inteligência dela e sua palavra era para ele sagrada, em questões de gostos e de afeições.

O único prazer que Smalley tinha fora de casa era o triunfo obtido contra alguém que tivesse quebrado a perna em aci­dentes do trabalho ou perdera seus bens num incêndio, obrigando-os a aceitar uma indenização menor do que a ori­ginalmente pedida à companhia. Nunca fora visto num bar e olhava para as pontas dos sapatos quando cruzava com mu­lheres na rua. Abastecia bem a casa e, embora aparentemente incapaz de dar um filho à mulher, insistia para que ela tomas­se uma empregada três tardes por semana, para ajudar na lim­peza e passar a roupa.

Quando o Sr. Mull morreu, a mulher pranteou-o sincera­mente, conservou o retrato dele sobre o consolo, com os bi­godes penteados, e dizia às visitas, enquanto tomavam uma xícara de chá:

— Ah, ninguém sabe a vida que levei com este homem!

Sonhava constantemente com o marido, através dos anos, conversando com ele em sonhos, num tom conjugal e, no dia seguinte, ia visitar a filha para contar-lhe tudo.

— Seu pai me visitou novamente ontem à noite — dizia ela — e tivemos uma longa conversa sobre a vez que subimos o rio até Newburgh e o vapor do piquenique quase virou, por causa da chuva. — Ou então: — Tivemos uma conversa séria esta noite e ele me prometeu só beber cerveja até o domingo depois da Páscoa.

Por vezes, a Sra. Mull corria à casa da filha, com os olhos brilhantes, dizendo:

— Ele estava de muito bom humor ontem à noite, não es­tava sob o efeito da bebida ou coisa semelhante, você com­preende... estava naturalmente alegre e cantou Flow Gently, SweetAfton e quatro versos de They’re Hanging Danny Den-ver in the Morning.

Clarice encarava com calma estes relatos da mãe. Amara o pai e o considerava o homem mais interessante de todos quan­tos conhecera e achava perfeitamente natural que ele custasse a ser esquecido. A mãe era uma velha solitária, morando num quarto, com muito pouca coisa com que se ocupar, depois de uma vida inteira implicando com um homem insubordinado e adorável. Achava que estas visitas noturnas, vindas do ou­tro mundo, amenizavam a solidão de sua mãe, dando-lhe um motivo para viver.

Mas, certa manhã, toda a atmosfera mudou. A mãe apare­ceu cedo, de lábios brancos e zangada.

— Ele veio de novo ontem à noite — foi dizendo, mal pas­sou pela porta do apartamento de Clarice.

— Que tal a visita? — perguntou a filha, como sempre.

— Não podia ser pior — falou a Sra. Mull. — Foi uma noite horrível!

— Que é isto, mãe? Não diga isso!

— Queria ver o que você teria feito em meu lugar! — ex­clamou a Sra. Mull.

— A senhora deve ter cuidado para não ofendê-lo — falou Clarice, conciliadora. — Lembre-se de que ele é um homem velho.

— Ofendê-lo! — zombou a Sra. Mull. — Experimente ofen­der aquele homem... Tem a resistência de um elefante.

— Que foi que aconteceu? — perguntou Clarice.

— A campainha tocou... — falou a Sra. Mull — e lá esta­va ele, de pé, no rosto aquele sorriso que usa sempre quando sabe que fez alguma coisa que me vai aborrecer.

— Ora, mãe... — começou a dizer Clarice — a senhora não deve ir tirando conclusões...

— Tirando conclusões! — exclamou indignada a Sra. Mull. — Espere até ouvir a minha história, depois diga se estou ti­rando conclusões. Sabe o que aquele homem teve o desplante de fazer ontem à noite?

Fez uma pausa e Clarice perguntou, desconfiada:

— O que foi?

— Finalmente ele passou dos limites! Sou uma mulher to­lerante e aprendi a aceitar o que é ruim junto com o que é bom, mas até os santos têm seu limite. E quando os vi ali de pé na porta ontem à noite, eu sabia...

— Como? — perguntou Clarice, intrigada. — Que quer di­zer com “os vi”?

— Exatamente o que disse. Quero dizer que vi os dois... seu pai e aquela ruiva, com um vestido de crepe da China tão apertado que não sei como podia respirar ou até comer. E o filho...

— Que filho? — perguntou Clarice, com voz sumida.

— Um menino alto e desajeitado — falou a Sra. Mull — maior que as próprias roupas e com o mesmo sorriso do pai no rosto. Se pusermos um bigode naquela cara, aquele meni­no pode ir à garagem um dia qualquer, pegar um carro e des­cer toda a Terceira Avenida, que ninguém notará qualquer diferença.

— Ora, mamãe... — falou Clarice que, naturalmente, já ouvira falar na ruiva de Croton Falls, naquele verão de 1921, mas esta era a primeira vez que ouvia a segunda parte. — Eu nunca ouvi falar em menino algum.

— Nem eu — disse a Sra. Mull. — Até ontem à noite. Ah, ele foi o homem mais falso que já pisou as ruas desta cidade. Mas, ontem à noite, ele se revelou. Lá de pé, na maior tran­qüilidade com a mulher segurando-lhe o braço e aquele filho inegável, dizendo: “Bertha, trouxe uns amigos. Tem algum refresco aí?”

— E o que foi que a senhora fez? — perguntou Clarice, zombando da mãe e, ao mesmo tempo, cheia de curiosidade.

— Ah, fui muito gentil — respondeu a Sra. Mull. — Nun­ca fui de fazer cenas diante de estranhos e seu pai, sabendo disso, já contava com minha atitude. Cumprimentei a mulher com frieza, convidei-os para entrar com toda a educação, fiz chá e tirei do armário metade de um pudim de pão. Fiquei lá sentada, dizendo sim ou não, de vez em quando, e aquela mulher falando sobre Croton Falls e como tinha achado o ve­rão muito quente ou como desconfiava de que usavam mar­garina na cozinha, embora jurassem que era manteiga. Verdade que nada fiz para pô-los à vontade e a visita foi muito curta. Tive oportunidade de chamar seu pai a um canto e dizer-lhe com termos bem precisos que era a última vez que eu queria ver aquela mulher e seu filho do pecado. Disse-lhe bem clara e definitivamente, para não haver dúvidas no futuro, que se quisesse tornar a ver-me, que viesse sozinho.

— E o que foi que o pai respondeu a isso? — quis saber Clarice.

— Nada — respondeu a Sra. Mull. — Antes que ele tivesse tempo de abrir a boca, a mulher veio para o hall, colocou a mão no braço dele e falou: “Frederick, está ficando tarde. Es­tão à nossa espera na cidade.” E saíram juntos, depois de me agradecerem delicadamente pelo chá, os três grandes sem-vergonhas.

Clarice, que era uma moça sensata, disse o que era necessá­rio dizer para restabelecer a ordem e a harmonia:

— Acho que a senhora não precisa preocupar-se mais. Te­nho certeza de que ele vai levar o aviso em consideração.

— Acho bom — falou a Sra. Mull, furiosa — do contrário encontrará a porta fechada em sua cara.

Por uma semana ou mais, era o que contava a Sra. Mull, tudo correu bem. O marido visitou-a três vezes, um tanto quieto e distraído, mas sozinho. Ela, por sua vez, tinha decidido ser tolerante e não dizer o que desejava. Por uma questão de ta­to, não tornara a tocar no assunto da ruiva e do óbvio filho.

Mas parece que o diabo tornou a tomar conta do homem e, num sábado à noite, ele tocou a campainha e apresentou-se com aquele sorriso contrafeito nos lábios, levando a ruiva pe­lo braço. Todas as pregas do espartilho dela apareciam escan­dalosamente sob o vestido justíssimo e, naturalmente, junto deles, o estafermo daquele menino com a expressão-de-sábado-à-noite do pai estampada no rosto.

— Lá ficou ele, no hall — contou a Sra. Mull à filha, na manhã da segunda-feira — sorrindo e se deliciando com sua própria culpa, dizendo:

— Íamos passando e achamos que você talvez estivesse pre­cisando de companhia.

A Sra. Mull tivera de esperar até segunda-feira para contar à filha, que fora passar o fim de semana em Providence, em visita à família do marido. O atraso forçado dera-lhe tempo de organizar eloqüentemente os detalhes e começou a contar sua história mal tirou o chapéu, na sala de visitas de Clarice.

— Olhei antes para ele — falou a Sra. Mull — depois para aquela mulher e seu ilegítimo filho. Este olhar não deixou de ser compreendido por seu pai, pode estar certa, mas ele não se deu por achado e falou, com descaramento: “Não nos vai convidar para entrar um pouco, Bertha?” Falava de pé, entre os dois, como um touro premiado numa exposição. “Eu avi­sei, Frederick” falei, educadamente, mas com firmeza. “Agora vá embora e nunca mais torne a subir estes degraus.” “Espe­re aí, Bertha”..., começou ele a dizer, com aquela voz açuca­rada e cheia de lábias que sempre usa quando há uma mulher no meio. Mas interrompi-o logo. “Disse a você que saísse da­qui”, falei. “Não quero mais saber de você. Estou farta. Não gaste seu tempo tentando demover-me. A porta está fechada”, concluí, fechando a porta na cara dele. Sem bater, porque não queria dar àquela mulher o prazer de saber que eu estava fu­riosa, mas firme e definitivamente. Ouvi murmúrios de pesar do outro lado, por um ou dois minutos, depois todos se fo­ram e fui dormir. Ele voltou uma hora mais tarde e tocou a campainha, chamando através da porta: “Bertha, estou sozi­nho agora, deixe-me entrar, pelo amor de Deus”. Mas eu não disse palavra nem fiz o menor movimento. Ele passou a noite inteira tocando a campainha e choramingando atrás da por­ta, mas minha decisão estava tomada e não deixei que ele per­cebesse, nem por um suspiro, que tinha ouvido o menor som. Finalmente, quando o sol já ia nascendo, tocou a campainha desesperadamente, pela última vez e gritou: “Adeus, Bertha, já estou indo, é adeus para sempre.” E embora meu coração me pesasse no peito, não respondi, porque já era tempo de dar-lhe uma lição. E isto — falou ainda a Sra. Mull — foi o fim de seu pai.

Clarice ia dizer à mãe que deveria dar outra oportunidade ao velho, mas desistiu quando viu a dureza do queixo da Sra. Mull. Fez uma xícara de chá para ela e procurou acalmá-la o melhor que pôde. Viu-a colocar o chapéu, enfiando-o na ca: beca como o soldado que coloca o capacete antes de uma ba­talha, e descer as escadas para fazer as compras do dia, implacável e só.

Clarice ficou o dia inteiro pensando na mãe e como seu amor pelo marido fora tão ardente durante 40 anos, a ponto de dar-lhe força para expulsá-lo de sua porta, mesmo estando ele mor­to por tanto tempo, por causa de um beijo dado numa varan­da, em Croton Falls, no ano de 1921. E quando o Sr. Smalley chegou em casa naquela noite, olhou-o friamente e teve certe­za, quando o viu tirar os sapatos e sentar-se pacata e fielmen­te em sua poltrona, de que ele jamais inspiraria paixão em mulher alguma e que, 10 dias depois que ele tivesse baixado à sepultura, ela não seria capaz de lembrar-se nem ao menos de seu mais irritante maneirismo.

— Ah — disse ele, acomodando-se na poltrona e abrindo 0 jornal. — Trabalhei um bocado hoje...

Clarice olhou com amargura para ele, durante um longo momento.

— Fazendo o quê? — perguntou ela. — Prejudicando os pobres e tirando aos infelizes que tiveram seus bens destruí­dos pelo fogo os seus legítimos direitos?

— Clarice... — exclamou Smalley erguendo os olhos do jor­nal, assustado e surpreendido, sentindo uma nova e perturba­dora nuance em seu casamento e sabendo que aquilo não lhe traria vantagens. — O que foi que eu fiz?

Mas Clarice não lhe deu resposta. Estava vestindo o casaco e saiu do apartamento sem dizer palavra, dirigindo-se a um bar da Terceira Avenida, não muito distante da esquina de Bloomingdale.


O ÚLTIMO DIA DE VERÃO

Munnie Brooks foi despertado pelo som de dois gritos na rua, junto à sua janela. Abriu os olhos e fitou o teto. Pela intensidade da luz, apesar das cortinas cerradas, podia dizer que fazia sol lá fora. Virou a cabeça. Na cama ao lado, Bert dormia tranqüilamente, as cobertas bem arrumadas, possivel­mente sonhando. Munnie saltou da cama e, descalço e de pi­jamas, chegou à janela e abriu as cortinas.

As últimas névoas da manhã se desfaziam nos campos e lá embaixo, mais distante, o mar estava calmo naquela ensola­rada manhã de outubro. Mais longe, seguindo a curva da cos­ta, erguiam-se os Pireneus, seus cumes apontando para o céu claro.

Saindo por trás de um monte de feno que ficava para além do terraço do hotel, surgiu um caçador com seu cão. Cami­nhava devagar, recarregando a arma. Vendo-o, Munnie lembrou-se com certo prazer guloso de que na véspera come­ra perdiz no jantar.

O caçador era um velho que usava roupa de brim, como os pescadores, e botas de borracha, também de pescador. Ca­minhava com passo firme e cuidadoso atrás do cachorro, pe­lo mato cortado rente. Quando eu for velho, pensou Munnie, que estava com 22 anos, desejo ser e parecer com ele, em uma certa manhã de outubro.

Abriu mais as cortinas e olhou o relógio. Passava das 10 horas. Tinham ficado acordado até tarde na noite anterior, todos três, no cassino de Biarritz. No começo do verão, quando estavam na Cote d’Azur, um tenente pára-quedista em férias lhe ensinara um sistema à prova de erros para ganhar na role­ta e, sempre que podiam, freqüentavam os cassinos. O siste­ma exigia grande capital, de modo que nunca tinham ganho mais de 8 mil francos em uma noite, jogando em sociedade e muitas vezes tinham de ficar acordados até as 3 horas da madrugada, de olho na roleta. Mas desde que haviam conhe­cido o tenente não tinham mais perdido, o que os tornava ex­cepcionalmente ricos durante aquela viagem, especialmente quando chegavam a um lugar onde havia cassinos. O sistema não levava em conta os números e se concentrava no verme­lho e no preto, envolvendo um complicado ritmo de duplas. Na noite anterior, haviam ganho 4 mil e 500 francos e tinham ficado acordados até as 2 horas. Talvez por isso, acordando tarde, com o tempo bom e o velho caçando passarinhos de­baixo de sua janela, as notas de mil francos, sobre a mesinha de cabeceira, aumentavam o prazer e a felicidade da manhã.

Ali de pé, sentindo o sol quente nos pés nus, aspirando a leve maresia, ouvindo o murmúrio distante das ondas, lembrando-se da perdiz, do jogo e de tudo que acontecera no verão que terminava, Munnie compreendeu que não estava dis­posto a voltar para casa naquela manhã, como tinham plane­jado. Seguindo com o olhar o caçador e seu cão, que caminhavam lentamente pelo campo, à beira-mar, Munnie compreendeu que quando fosse mais velho lembrar-se-ia da­quele verão e diria: “Ah, como tudo era maravilhoso quando eu era jovem!”

Esta dupla habilidade, de gozar o momento presente com a despreocupação própria da juventude e a melancólica refle­xão da idade madura, levara Bert a dizer-lhe, meio brincalhão, meio sério:

— Tenho inveja de você, Munnie. Você possui um raro dom... o dom dá nostalgia instantânea. Você tira duplo pro­veito de todas as coisas.

Mas este dom tinha suas desvantagens. Tornava difícil pa­ra Munnie deixar os lugares de que gostava e enchia de emo­ção os momentos finais e as despedidas, porque o velho que viajava dentro dele estava sempre a dizer, num sussurro: “Nun­ca mais as coisas serão como agora...”

Colocar um ponto final àquele longo verão que se prolon­gara até outubro seria mais penoso para Munnie que qualquer outra despedida que até então conhecera. Sentia que aqueles eram os últimos dias das últimas verdadeiras férias de sua vi­da. A viagem à Europa fora um presente dos pais depois de sua formatura na universidade e agora, quando voltasse, lá estariam, no cais, todos aqueles rostos bondosos que lhe da­vam as boas-vindas, mas rostos exigentes, perguntando-lhe que pretendia fazer, oferecendo-lhe empregos, dando-lhe conse­lhos, fazendo-o acomodar-se e criar raízes, amorosas, mas im­placavelmente, no caminho que o levaria a ser um adulto responsável e domesticado. Dali para diante, as férias seriam rápidos interlúdios em que teria de aproveitar avidamente o verão entre dois períodos de trabalho. “Os últimos dias de sua juventude”, dizia o velho que habitava dentro dele. O navio atracaria dentro de sete dias...

Munnie voltou-se e olhou para o amigo adormecido, Bert tinha um sono tranqüilo, dormia de costas, com as cobertas bem arrumadas, o nariz comprido e fino, queimado de sol, geometricamente reto, no ar. Aquilo também mudaria, pen­sava Munnie. Depois que o navio atracasse, nunca mais have­ria entre eles a mesma intimidade. Nunca estariam tão próximos um do outro como quando se sentavam nas pedras, olhando lá embaixo o mapa da Sicília, subindo ao sol pelas ruínas de Paestum ou perseguindo as duas garotas inglesas nos bares ro­manos. Nunca tão unidos como na tarde chuvosa de Florença Quando, juntos, falaram com Martha pela primeira vez. Nunca tão juntos como na longa viagem, expostos ao vento e aperta­dos no pequeno carro aberto, subindo a costa liguriana até a fronteira, parando quando tinham vontade, para tomar um copo de vinho branco ou para nadar, num dos pequenos bal­neários da praia, com as suas bandeirolas brilhantemente co­loridas agitadas pelo vento na quente tarde do Mediterrâneo. Nunca tão amigos como no cassino de Juan-les-Pins quando, num momento de conspiração, o pára-quedista lhes ensinara o infalível sistema. Nunca tão próximos como nas pálidas ma­drugadas em que voltavam para o hotel rindo e se vangloriando de seus ganhos, com Martha cochilando entre os dois. Ou co­mo na ardente tarde de Barcelona, sentados numa das últi­mas fileiras da arquibancada, do lado do sol, suando, protegendo os olhos com as mãos e aplaudindo o matador que fazia a volta na arena exibindo as orelhas do touro, flores e odres de vinho caindo do alto, à sua volta. Nunca tão amigos como em Salamanca ou Madri ou na estrada, atravessando uma região quente e árida, a caminho da França, bebendo o incomparável conhaque espanhol, tentando lembrar-se das mú­sicas ao som das quais dançavam os ciganos nas tascas. E nunca tão íntimos, finalmente, como naquele pequeno quarto caia­do de hotel da costa basca, com Bert ainda adormecido e Munnie de pé na janela, vendo o velho caçador desaparecer com seu cão e sua espingarda, e sabendo que lá em cima, no quar­to que ficava sobre o deles, Martha dormia como era seu há­bito, enroscada como uma criança, até que eles fossem acordá-la, juntos como sempre, como se não confiassem em si próprios ou um no outro, para contar-lhe o que pretendiam fazer naquele dia.

Munnie escancarou as cortinas e deixou o sol entrar; se existe um navio que tenho direito de perder, pensava ele, é o que sai depois da amanhã de Le Havre.

Aproximou-se da cama de Bert, pisando cuidadosamente na roupa espalhada pelo chão. Cutucou com o dedo o ombro nu do amigo.

— Patrão — disse ele — hora de levantar. A regra era que quem perdesse a partida de tênis seria obrigado a chamar o outro de Patrão por 24 horas. Bert vencera no dia anterior, por 6 a 3, 2 a 6 e 7 a 5.

— São mais de 10 horas — Munnie falou, cutucando-o de novo.

Bert abriu os olhos e olhou friamente para o teto.

— Estou de pileque? — perguntou.

— Tomamos apenas uma garrafa de vinho ao jantar — disse Munnie. — E duas cervejas depois.

— Então não estou de pileque — falou Bert, como se a no­tícia o deixasse deprimido. — Mas está chovendo lá fora.

— A manhã está clara e ensolarada — afirmou Munnie.

— Sempre ouvi dizer que chovia sem parar na costa basca — falou Bert, com voz queixosa, continuando imóvel.

— Pois sempre lhe mentiram.

Bert passou as pernas vagarosamente para fora da cama e ficou sentado, magro, anguloso e nu da cintura para cima, com uma calça de pijama curta demais para ele e de onde os gran­des pés saíam, um tanto perdidos.

— Sabe por que é que as mulheres americanas vivem mais que os homens, Gorducho? — perguntou ele, semicerrando os olhos por causa do sol.

— Não.

— Porque dormem de manhã. É a minha ambição — fa­lou Bert tornando a deitar-se, mas com as pernas ainda para fora da cama — viver tanto quanto as mulheres americanas.

Munnie acendeu dois cigarros e jogou um para Bert, que conseguiu segurá-lo sem levantar a cabeça do travesseiro.

— Tive uma idéia — disse ele — enquanto você desperdi­çava horas preciosas de sua infância, dormindo.

— Escreva-a no livro de sugestões — falou Bert, bocejando e fechando os olhos. — A gerência dará uma sela de pele de búfalo aos que apresentarem uma sugestão que seja posta em prática por...

— Escute — falou Munnie, cortando a brincadeira — acho que devemos perder aquele maldito navio.

Bert fumou em silêncio durante algum tempo, olhos semi-cerrados, nariz apontando para o teto.

— Há pessoas — disse ele — que são perdedoras de nascença de navios, de trens e de aviões. Minha mãe, por exem­plo. Uma vez escapou de morrer pedindo uma segunda sobremesa, ao almoço. O avião acabara de decolar quando ela chegou ao aeroporto e incendiou-se 35 minutos mais tar­de. Não houve um único sobrevivente. Ela pedira um sorvete, com morangos frescos esmagados.

— Deixe disso, Bert — falou Munnie que por vezes se im­pacientava com o hábito de o amigo desviar a conversa en­quanto tomava uma decisão. — Sei de toda a história de sua mãe.

— Na primavera — continuou a dizer Bert — ela fica lou­ca quando vê morangos. Diga-me uma coisa, Munnie, você alguma vez já perdeu alguma coisa?

— Não...

— Acha sensato, então, modificar a rotina de uma vida in­teira, nesta altura dos acontecimentos?

Munnie dirigiu-se ao banheiro e encheu um copo com água. Quando voltou ao quarto, Bert continuava deitado, com as pernas balançando para fora da cama, fumando. Munnie fi­cou de pé ao lado dele, em seguida jogou vagarosamente toda a água no peito bronzeado do amigo. A água espalhou-se um pouco, depois escorreu em finos fios sobre as costelas de Bert, caindo no lençol.

— Ah! — exclamou Bert, sempre fumando. — Como é refrescante!

Os dois riram e Bert levantou-se.

— Muito bem, Gorducho. Eu não sabia que você estava fa­lando a sério.

— Minha idéia — disse Munnie — é ficar aqui até o tempo mudar. O sol está bom demais para voltarmos para casa.

— Que faremos das passagens?

— Mandaremos um telegrama à companhia de navegação, dizendo que desejamos transferir as passagens para mais tar­de. Eles têm uma lista de espera quilométrica. Ficarão en­cantados.

Bert concordou, muito sério.

— E Martha? Talvez ela precise voltar hoje a Paris.

— Martha não tem necessidade de ir a parte alguma. Nun­ca. Você sabe disso — respondeu Munnie.

Bert tornou a concordar e observou:

— A garota mais feliz deste mundo.

Lá fora ouviu-se novo tiro. Bert voltou a cabeça, escutan­do. Mais um tiro.

— Puxa! — disse ele, passando a língua nos lábios — Aque­la perdiz do jantar de ontem estava uma verdadeira maravilha.

Levantou-se, procurando ver alguma coisa, e com aquela calça de pijama folgada mais parecia um garoto que poderia ter futuro na equipe esportiva do colégio, se o convencessem a comer bastante durante um ano. Fora gordinho até entrar para o Exército, mas ao sair em maio, estava comprido e fi­no, as costelas à mostra. Quando Martha queria caçoar dele, dizia que ele parecia um palito vestido.

Bert encaminhou-se para a janela e Munnie ficou de pé ao lado dele, olhando as montanhas, o mar e o sol.

— Você tem razão — falou Bert. — Só mesmo um idiota pensaria em viajar para casa num dia como este. Vamos dizer a Martha que a festa continua.

Vestiram rapidamente suas calças de brim e as camisas xadrez, calçaram os tênis e subiram juntos, entrando sem bater no quarto de Martha.

O vento fazia uma persiana bater na janela, mas a moça continuava dormindo, enroscada em si mesma, só o alto da cabeça aparecendo acima das cobertas, os cabelos pretos, encaracolados e despenteados. O travesseiro estava no chão.

— Despertar! — ordenou Bert. — Despertar para a glória.

Aproximou-se da cama e tocou a cabeça de Martha.

Observando-o, Munnie sentiu nos próprios dedos uma crispação elétrica.

— Por favor... — falou Martha, ainda com os olhos fe­chados. — Assim no meio da noite...

— É quase meio-dia — disse Munnie, mentindo em quase duas horas — e queremos falar uma coisa com você.

— Pois falem e dêem o fora daqui.

— O Gorducho aqui — disse Bert, de pé junto à cama — teve uma idéia. Quer ficar aqui até que comece a chover. Que acha disso?

— Ótimo — disse Martha.

Bert e Munnie sorriram um para o outro, ambos sabendo que tinham compreendido perfeitamente.

— Martha — falou Bert — você é a única mulher perfeita que existe no mundo.

Saíram então do quarto, para que ela pudesse vestir-se.

Tinham conhecido Martha Holm em Florença. Aparente­mente, tinham a mesma opinião sobre os museus e igrejas que deviam visitar, de modo que estavam sempre se encontrando com ela. Estava sozinha, era claro que era americana e, como dizia Bert, não havia outras mais bonitas. Acabaram por se falar. Talvez por tê-la visto pela primeira vez na Galeria Uffizi, entre os Botticellis, Munnie tivera aquela idéia, mas, a não ser pelo cabelo, que era preto, curto e cortado irregularmen­te, ele achava que Martha bem poderia ser a Primavera, alta, esguia e jovem, com um nariz afilado e olhos profundos, pensativos e perigosos. Sentia-se um tanto ridículo de pensar aquilo de uma garota americana de 21 anos, que usava calças com­pridas e freqüentara Smith durante um ano, mas não podia evitar aquilo. Nunca tocara no assunto com Martha e, natu­ralmente, jamais dissera uma palavra a Bert.

Martha conhecia muita gente de Florença e adjacências (mais tarde descobriram que ela conhecia muita gente em diversos lugares) e convidou-os para um chá, em Fiesole, numa viela onde havia uma piscina, e para uma festa onde Munnie aca­bou dançando com uma condessa.

Martha estava na Europa há cerca de dois anos e era ótima para indicar os lugares aonde deviam ir e quais as arapucas, falava italiano e francês, ficava pronta na hora marcada, não choramingava quando tinham de andar a pé algumas quadras, ria das brincadeiras de Munnie e Bert, fazia também as suas, não dava risadinhas tolas, não chorava nem ficava amuada, o que a colocava muito acima de qualquer outra garota ame­ricana que Munnie conhecia. Depois de passarem três dias jun­tos em Florença, quando se preparavam para seguir viagem para Portofino e França, pareceu-lhes insuportável ter de deixá-la. Pelo que Munnie e Bert tinham observado, a moça não tinha planos.

— Digo a minha mãe — explicara Martha — que estou fa­zendo cursos na Sorbonne, o que é quase verdade, pelo me­nos no inverno.

A mãe de Martha morava em Filadélfia, era três vezes di­vorciada e, de vez em quando, a moça enviava-lhe uma foto­grafia, para que quando finalmente voltasse para casa não houvesse um embaraçoso momento em que a mãe não a reco­nheceria.

Assim, Munnie e Bert sentaram-se com Martha a uma me­sa de café, na Piazza del Signoria, e expuseram a ela seu plano.

— O que decidimos — falou Bert (Munnie, sentado ao la­do, concordava tacitamente) — é que a excursão Brooks-Carboy, que percorre a Europa sem guia, poderia empregá-la como intérprete, para escolher hotéis e como provadora de co­midas estrangeiras. Além de adicionar à excursão um toque feminino. Está interessada?

— Estou — respondeu Martha.

— Gostaríamos de saber se poderíamos, mais ou menos, combinar nossos planos.

Martha sorriu.

— Ando por aí sem rumo — disse ela. — Não sabiam?

Isto significa — perguntou Munnie, que gostava das coi­sas perfeitamente claras — que você concorda em ir conosco?

— Significa que desejo imensamente ir com vocês e estava louca que me convidassem.

Olhou para um e depois para outro, animada, cheia de gra­tidão, pronta para tudo.

— Pois bem — disse Bert. — Munnie e eu conversamos so­bre o assunto e queremos que tudo fique bem claro. Uma coi­sa como esta tem de ser planejada com antecedência, do contrário tudo irá por água abaixo. Pensamos em algumas re­gras boas e práticas, e se você concordar, poderemos partir amanhã. Caso contrário, sem mágoas, desejamos que você pas­se um esplêndido verão.

— Diga logo, Bert — falou Munnie, impaciente — não pre­cisa recitar o preâmbulo da Constituição.

— Regra Número Um — disse Bert, enquanto Martha, sen­tada muito quieta, ouvia com seriedade. — A Regra Número Um é básica. Nada de complicações. Eu e Munnie somos ve­lhos amigos e há anos planejamos este verão. Estamos divertindo-nos maravilhosamente e não queremos acabar lu­tando em duelo ou coisa parecida. Bem, eu conheço as mu­lheres...

Fez uma pausa, esperando que alguém sorrisse. Ninguém sorriu.

— Ele não diria isto antes do Exército... — aparteou Munnie.

— Que é que você sabe a respeito das mulheres? — per­guntou Martha, muito séria.

— O que sei é que as mulheres estão sempre ocupadas em escolher — prosseguiu Bert. — Chegam a uma sala onde há cinco homens presentes e a cabeça começa a trabalhar como um computador, fazendo perfurações: — Primeira Escolha, Segunda Escolha, Aceitável, Talvez, Impossível.

— Santo Deus! — exclamou Martha tampando a boca com a mão para disfarçar o riso e esforçando-se por ficar séria. — Desculpe... Você também acredita nisso, Munnie?

— Não sei... — respondeu Munnie, encabulado. — Não tenho as prerrogativas de Bert... nunca prestei serviço militar.

— Sou até capaz de dizer como você faria sua escolha en­tre Munnie e eu — prosseguiu Bert — para que você não te­nha trabalho nem perca seu tempo.

— Pois diga — pediu Martha. — Diga mesmo.

— A princípio — falou Bert — a tendência seria escolher-me. Em outra ocasião direi as razões. Depois de algum tem­po, entretanto, as coisas mudariam e Munnie seria a decisão final.

— Pobre Bert... — falou Martha, rindo. — Como será hor­rível para você! Sempre ganhando apenas o primeiro round! Por que me está dizendo tudo isto?

— Porque você tem de nos prometer que não escolherá ne­nhum de nós — respondeu Bert. — E, se escolher, terá de le­var seu segredo para o túmulo.

— Para o túmulo — repetiu Martha, tentando ser muito solene.

— Até a partida do navio, nos trataremos como irmãos e irmã e nada mais. D’accord?

— D’accord — respondeu Martha.

— Ótimo.

Bert e Munnie entreolharam-se, satisfeitos por serem todos tão ajuizados.

— Regra Número Dois... — disse Bert. — Se depois de al­gum tempo começarmos a achar que você é um trambolho... faremos as despedidas e você irá embora. Nada de lágrimas. Nada de recriminações. Nada de cenas. Apenas um cordial aperto de mãos e levaremos você até a próxima estação. D’accord?

— D’accord duas vezes — disse Martha.

— Regra Número Três, cada qual pagará exatamente a terça parte das despesas.

— Naturalmente — falou Martha.

— Regra Número Quatro... — continuou Bert, como um diretor de companhia explicando aos funcionários um plano de operações. — Cada qual é livre de ir aonde quiser e com qualquer outra pessoa, sem que ninguém lhe pergunte coisa alguma. Não somos uma unidade inseparável, porque as uni­dades inseparáveis são muito chatas. O.K.?

— Uma confederação livre e independente de Estados so­beranos — disse Martha. — Compreendi e aceito as regras.

Apertaram-se as mãos, cercados pelas estátuas absurdamente grandes, e partiram na manhã seguinte, após terem estudado um meio de encaixar Martha dentro do carro e amarrar a ba­gagem dela atrás. E tudo correu da melhor forma possível. Não tinha havido a menor briga durante todo o verão, embo­ra discutissem, entre outras coisas, sobre sexo, religião, polí­tica, casamento, escolha de carreiras, a situação da mulher na sociedade moderna, o teatro de Nova York e de Paris e as di­mensões das roupas de banho das meninas nas praias da Itá­lia, França e Espanha. E quando Bert se entusiasmara, por uma ou duas semanas, com uma americana lourinha e gorducha, em St.-Tropez, Martha não dera sinal de estar perturba­da, mesmo quando a moça se mudou para o hotel onde esta­vam hospedados, instalando-se abertamente no quarto ao lado do de Munnie e Bert.

A verdade é que nada parecia perturbar muito Martha, que aceitava os acontecimentos de cada dia com uma estranha e quase sonhadora placidez. Parecia nunca tomar uma decisão e aceitava as decisões dos outros, fossem quais fossem as con­seqüências, sempre com o mesmo sorriso bem-humorado e uma aprovação um tanto vaga.

Munnie achava que esta agradável boa vontade de Martha estava ligada à sua extraordinária capacidade de dormir. Se ninguém a acordasse pela manhã, dormiria até meio-dia, até 2 horas da tarde, mesmo que tivesse ido deitar-se cedo na vés­pera. Não era uma particularidade física porque ela não pre­cisava de sono e nunca sugeria que era hora de ir para a cama, por mais tarde que ficassem acordados, à noite, ou fosse qual fosse a hora em que se tivessem levantado. Martha nunca es­crevia ou recebia cartas, jamais se preocupava em deixar en­dereço quando se mudavam. Quando precisava de dinheiro telegrafava para o banco, em Paris, para onde ia sua mesada e, quando a recebia, gastava despreocupadamente. Não se in­teressava muito por roupas e cortara os cabelos tão curtos, dissera a Bert e Munnie, para não ter que pentear-se a todo momento.

Quando os três conversavam sobre o que pretendiam fazer de suas vidas, Martha era mais vaga do que sempre.

— Não sei... — costumava dizer, dando de ombros e sor­rindo, como se estivesse indulgentemente espantada consigo mesma. — Creio que vou andar por aí. Esperar para ver. Por enquanto, estou a fim de me deixar levar. Não vejo ninguém de nossa idade fazendo qualquer coisa que me atraia muito. Estou à espera de uma revelação que me faça tomar o cami­nho certo. Não tenho pressa de me comprometer, nenhuma pressa mesmo...

Curiosamente, a falta de objetivo de Martha tornava-a muito mais interessante do que todas as moças que conhecera, garotas positivas, mas limitadas, que sabiam que desejavam casar e ter filhos, ser sócias de um bom clube, garotas que deseja­vam trabalhar num palco e tornar-se famosas, outras cujo ideal era serem jornalistas ou professoras universitárias. Martha ain­da não se inclinara para coisa alguma, pensava o rapaz, por­que até então nada de muito bom lhe aparecera. E havia sempre a esperança de que, quando ela finalmente se decidisse, fosse por alguma coisa realmente original e gloriosa.

A única parte do plano que não saíra como tinham plane­jado em Florença fora que, com exceção da semana em que surgira a loura gorduchinha, em St.-Tropez, os três tinham sido uma unidade inseparável, mas isso acontecera apenas por­que os três preferiam estar entre eles do que com outras pes­soas. Não teria dado certo se Martha fosse um tipo de moça diferente, se Bert e Munnie não fossem tão bons amigos e não confiassem tão completamente um no outro ou, finalmente, não teria dado certo se os três fossem um pouco mais velhos. Mas dera certo, pelo menos até a primeira semana de outubro e, com um pouco de sorte, daria certo até o momento em que beijariam Martha, em despedida, e tomassem o navio, a ca­minho de casa.

Ficaram deitados na praia deserta até quase 2 horas, em se­guida foram nadar. Nadaram rapidamente, porque a água es­tava fria e aquele era o melhor meio de se aquecerem. A corrida foi curta, cerca de 500 metros, e Munnie estava completamente sem ar quando chegaram ao fim, tentando acompanhar Mar­tha. A moça ganhou com facilidade e estava boiando tranqüi­lamente quando Munnie e alcançou, arquejante, tentando fazer entrar o ar nos pulmões.

— A coisa seria diferente se eu não tivesse sofrido de asma — falou Munnie, meio envergonhado.

— Não fique triste — retrucou Martha, batendo ligeiramente com os pés. — As mulheres flutuam com mais facilidade...

Os dois saíram da água e ficaram observando Bert que se vinha debatendo com dificuldade em sua direção.

— Bert — disse Martha quando o rapaz os alcançou e parou — você é o único rapaz que conheço que quando nada se parece com uma velha dirigindo um automóvel.

— Meus talentos são outros — retrucou Bert.

Voltaram para a praia falando alto, vermelhos por causa da água fria, agitando os braços. Vestiram-se ali mesmo, de­baixo de uma grande toalha, um de cada vez, por questão de pudor. Martha vestiu umas calças que davam pelas canelas e uma camisa de malha de listras azuis e brancas. Olhando-a ajeitar as roupas com movimentos leves e despreocupados, Munnie pensou que nunca mais na vida tornaria a ver alguém tão alegre e obscuramente comovente como Martha Holm, ves­tindo uma camisa velha numa praia ensolarada, sacudindo a água dos cabelos negros e curtos.

Resolveram fazer um piquenique, em vez de irem a um res­taurante e entraram no pequeno MG de dois lugares que o ir­mão de Munnie deixara para ele quando fora passar férias na Europa, no ano anterior. Com Martha sentada numa almofada em cima do freio, entre os dois, foram à cidade, com­praram uma galinha assada, um pão grande e um pedaço de queijo Gruyère. Pediram uma cesta emprestada ao vendedor de frutas que lhes vendeu um grande cacho de uvas pretas, compraram duas garrafas de vinho e voltaram para o carro, dando a volta no cais e dirigindo-se ao velho forte que em ou­tras épocas fora cercado e caíra, mas que no momento era usa­do, no verão, como escola de natação para crianças. Encostaram o carro e caminharam pela larga muralha, levan­do consigo a cesta com o vinho e a grande toalha de banho meio molhada que iria servir de toalha de mesa.

Da muralha, podiam ver todo o trecho do cais oval, vazio naquele momento, a não ser pela presença de um pequeno bar­co de pesca com uma vela rudimentar que se dirigia para a Ponta de Santa Bárbara. Viam também a praia deserta e as construções vermelhas e brancas das casas de Saint-Jean de Luz. O estaleiro próximo ao forte estava abarrotado de pe­quenos barcos azuis emborcados nos cepos, onde ficariam du­rante o inverno. De um ponto qualquer, a distância, vinha um leve ruído de marteladas, solitário e insólito, produzido por um homem que colocava novas tábuas no fundo de um pe­queno pesqueiro. Mais longe, em alto-mar, quase atingindo a linha azulada do horizonte, os barcos da frota de pescado­res de atum balouçavam sobre as ondas.

A maré estava baixando e as ondas vinham rolando, bran­cas e cheias de espuma, mas não ameaçadoras, por sobre as rochas em declive sobre as quais fora construída a muralha, perto desta, ao lado da baía, viam-se as ruínas dos bastiões circulares da antiga muralha que o mar destruíra em séculos passados. Emergindo das águas tranqüilas, irregulares, inú­teis, desmoronando-se, faziam Munnie lembrar-se vagamen­te dos romanos e de aquedutos que conduziam água das montanhas para cidades há muito desaparecidas, e de calabouços, nos quais os últimos prisioneiros tinham morrido 500 anos antes.

Não seguiram até o fim da muralha, separada do quebra-mar por largo canal por onde as embarcações entravam e saíam do porto. Mesmo nos dias mais tranqüilos, Munnie sentia a presença de algo selvagem e perigoso na ponta chata da pedra onde ia quebrar-se a força do oceano, uma ameaça constante para as águas calmas da baía e para a terra que ficava além.

Munnie sofria ligeiramente de vertigem e ao olhar, pelos la­dos da muralha que se erguia a pique, para as verdes profun­dezas em movimento, e para a crista espumosa das ondas, via um quadro desolador em que era atirado lá embaixo, mergu­lhava, lutando contra as ondas que iam e vinham, lançando para o ar borrifos de espuma.

Nada disse, entretanto, e ficou grato a Martha quando ela falou, antes de se adiantarem muito.

— Aqui está muito bom.

Ajudou a moça a estender no chão a toalha de banho que serviria de toalha de mesa, colocando-a bem no centro da amurada.

Soprava um ventinho frio, mas Bert tirou a camisa, para conservar o bronzeado. Munnie, que tinha no peito grande quantidade de pêlos macios, mas ruivos e encaracolados, dos quais se envergonhava, declarou que estava frio demais para despir-se. Bert lançou-lhe um olhar irônico, porque sabia do problema do amigo com os pêlos, mas não disse palavra.

Enquanto Martha partia a galinha em pedaços, arrumando-a, com o queijo e as uvas sobre pedaços de papel, no centro da toalha onde todos teriam facilidade de servir-se, Bert incli­nou a cabeça e ficou escutando o longínquo e ritmado marte­lar que vinha do estaleiro.

— Sempre que escuto um ruído assim, num lugar como este — disse ele — lembro-me do final de O Jardim das Cerejei­ras. Tudo melancólico, tudo fechado e pronto para morrer, enquanto o outono se instala...

— Pois eu, quando ouço isto, penso sempre: divórcio, di­vórcio... — falou Martha.

— Aí está a diferença — disse Bert — entre a Rússia e a América.

Bert caminhou até a beira da amurada e lá ficou, os dedos dos pés perigosamente para fora, olhando o horizonte, um vul­to longo, livre, de gestos largos, recitando, com os braços er­guidos:

— Venha quebrar-se, oh, mar, nestas pedras escuras! E que eu tenha coragem de manifestar os pensamentos que desper­tas em mim!

— O almoço está na mesa — disse Martha, que se tinha sentado com as pernas cruzadas, arregaçando as mangas da blusa até acima dos cotovelos, deixando à mostra os braços morenos e surpreendentemente cheios e roliços numa moça tão esbelta. Tirou um pedaço de galinha e deu uma dentada.

— É o único tipo de piquenique que presta. Sem formigas — disse ela.

Munnie tomou um pouco de vinho, bebendo da garrafa, por­que haviam esquecido de levar copos, partiu um pedaço da comprida bisnaga e escolheu um pedaço da carne mais escu­ra. Bert sentara-se do outro lado de Martha, dobrando as com­pridas pernas em movimentos lentos. Pegou um pedaço de galinha e falou, mastigando:

— Acham que um jovem e inteligente americano conseguiria ficar rico montando na França uma fábrica de pratos e co­pos de papel?

— Só serviria para estragar todo o inefável encanto medie­val — observou Martha.

— Ah, este sórdido e inefável encanto medieval de papel sujo de gordura! — falou Bert. — Só mesmo uma mulher pa­ra notar coisas assim, não é, Munnie? — perguntou erguendo exageradamente as sobrancelhas, num gesto teatral. — Puxa, não foi sorte nossa ter entrado naquela galeria de arte de Florença e encontrado Martha? Caso contrário, sabem como te­ria sido o nosso verão? Cairíamos nos braços do rebotalho do sexo feminino da Europa... todas estas estrelinhas do ci­nema italiano estourando as blusas, divorciadas americanas, douradas e louras, cheirando a Arpege. Puxa, Munnie, não sente como se Alguém estivesse olhando por você aquele dia, no museu? Diga a verdade, Gorducho, isto não o faz sentir-se sobrenaturalmente tranqüilo?

— Onde aprendeu a dizer estas coisas? — perguntou Mar­tha, sempre de pernas cruzadas e levando tranqüilamente aos lábios a garrafa de vinho.

— Meu avô foi pregador da Igreja Batista em Memphis, no Tennessee — falou Bert. — Ensinou-me a temer a Deus, ler a Bíblia, a gostar de milho e a falar com sentenças equilibradas.

Levantou-se e declarou, agitando o osso da galinha sobre o oceano Atlântico:

— Arrependei-vos, vós que sois pecadores, vós que nadastes em águas mornas e lançastes olhares amorosos sobre as virgens...

Curvou-se na direção de Martha. Continuou:

— Vós que sentastes às mesas de jogo e esquecestes de man­dar cartões-postais para casa. Arrependei-vos, porque vos entregastes aos prazeres e perdestes o navio!

— Quer um pedaço de queijo? — perguntou Martha.

— Com mostarda — respondeu Bert, tornando a sentar-se- Ficou olhando para Munnie, pensativamente.

— Que acha você, Munnie? — perguntou ele. — Estamos tão felizes como nos sentimos ou apenas pensamos que somos felizes? A eterna indagação do filósofo: A ilusão ou realida­de. Será de pedra esta muralha? — perguntou em tom orató­rio. — Será o oceano azul? Será dinheiro o que temos nos bolsos ou apenas cautelas que recebemos em Duluth, no ano de 1922, de uma companhia de tabaco que faliu na primeira quinta-feira depois da queda da Bolsa? Será isto que estamos bebendo o bom vinho da França ou vinagre misturado com sangue e água do mar? Rose de Béarn... — falou, lendo o ró­tulo da garrafa. — Parece bastante real, mas será? Será esta que aí está uma linda moça? Seremos nós três superprivilegiados e esplêndidos jovens príncipes americanos de dentes brancos em visita à nossa maior colônia ou seremos, sem o saber, pobres refugiados com as costas para o mar... Se leu o jornal da manhã, deve saber a resposta. Somos nós irmãos e amigos ou trairemos uns aos outros ao pôr-do-sol? Revis­tem as damas, à procura de punhais...

— Santo Deus! — exclamou Martha. — A vitrola disparou!

Munnie sorria sonhadoramente, admirando o espetáculo da­do por Bert. Era um sujeito franco e direto, dizia exatamente o que desejava dizer. Mas os rasgos de retórica de Bert o di­vertiam. Apreciava o amigo como um homem que gosta de música mas não sabe tocar e aprecia o hábil pianista que toca generosamente, no momento exato, sem que ninguém lhe pe­ça. Assim tinha sido desde que ambos tinham 16 anos e ha­viam ingressado na universidade, onde Bert fazia escandalosos improvisos em versos brancos sobre os hábitos sexuais de uma senhora de meia-idade e ligeiramente careca que lhes ensina­va química. Aquele hábito costumava acarretar a Bert sérios aborrecimentos, porque ele era nervoso e corajoso e, uma vez começando, chegava a dizer coisas ofensivas, pouco impor­tando quem estivesse ouvindo.

Ainda naquele verão, tinham sido obrigados a brigar com quatro jovens alemães, num bar de Nice, e a correr depois da polícia, tudo por causa de um dos espetáculos de Bert. Ele havia puxado conversa com os alemães, perguntando-lhes de onde eram. Os rapazes, depois de certa hesitação, disseram que eram suíços. Bert então perguntara, amavelmente:

— De Düsseldorf? De Hamburgo?

Os alemães, que eram homens grandes e fortes, ficaram meio desconcertados e voltaram-se para suas cervejas. Mas Bert não deixou a coisa ficar por aí.

— O lugar da Suíça que acho mais encantador é Belsen. Tão rural, tão aconchegante e cheio de recordações... Eu sempre disse que a Suíça teria ganho a guerra se não tivesse sido apu­nhalada pelas costas pelos fabricantes de relógios. E olhem que foi uma boa coisa.

— Pare com isso... — sussurrou Munnie, e Martha puxara o braço de Bert.

— São quatro. Vão nos matar... — disse ela. Mas Bert prosseguira.

— Sinto orgulho em dizer-lhes, cavalheiros — dissera, com um sorriso amplo — que sempre acreditei numa Suíça Maior e existem muitos bons americanos de sangue vermelho que pen­sam como eu.

Os alemães resmungaram qualquer coisa entre si e Munnie tirou o relógio e guardou-o no bolso, para que não se que­brasse quando começasse a briga.

— Cale a boca, Bert — disse Martha. — Vão jogar-lhe uma caneca de cerveja.

— E agora, rapazes... — falou Bert, erguendo o copo —, gostaria que me acompanhassem num brinde ao maior de to­dos os velhos suíços, o bondoso, doce e adorável companhei­ro que foi Adolf Hitler, e depois cantaremos todos o Switzerland Uber Alies.* Creio que sabem a letra...

Munnie, a essa hora, já se aproximara e quando o primeiro alemão se voltou, segurou-lhe o braço e deu-lhe dois socos com a mão direita. Os alemães eram lentos, mas fortes, e além do mais estavam furiosos. Quando Munnie conseguiu arrastar Bert para a porta, ele estava com o nariz sangrando e a gola do paletó quase arrancada. Todos os empregados da casa grita­vam, chamando a polícia.

Os três tinham corrido pelas estreitas ruelas de Nice, ouvindo uma gritaria confusa que ia desaparecendo, atrás deles. Bert ria enquanto corria, sacudia a mão, que ficara dormente ao contato com um crânio alemão, e perguntava a Munnie:

— De que parte da Suíça você é, amigo? Leipzig? Nuremberg?

Meia hora mais tarde, quando estavam seguros, sentados num bar de Promenade des Anglais, a coisa começara a pare­cer engraçada também a Martha e Munnie e, durante o resto do verão, quando algum deles fazia alguma coisa que aos ou­tros parecia errada ou louca, ouvia a pergunta incrédula: “De que lugar da Suíça, você veio?”

Bert estava sentado, agitando suavemente a garrafa de vi­nho, voltado para a baía:

— Acho que vou inaugurar um serviço de viagens especial. Excursões fora da estação, para lugares mais ou menos deca­dentes. Vou escrever um folheto intitulado: “Conheça a Feli­cidade: Não Siga a Moda! Fuja da Espécie Humana Durante as Férias!” Acha que seu pai concordará em dar a grana para começarmos, Munnie?

Bert tinha uma crença inabalável na grande fortuna do pai de Munnie e acreditava que ele estava ansioso por aplicar di­nheiro em negócios fabulosos que Bert descobria para ele. As oportunidades incluíam uma plantação de abacates perto de Grasse e a construção de um teleférico de 120 mil metros para esqui, numa vila de 22 casas, nos Pireneus espanhóis. Todos os projetos de Bert, além de envolverem grande capital por parte do pai de Munnie, incluíam também a necessidade de o próprio Bert permanecer na Europa, como gerente.

— Munnie... — disse ele. — Acha que devemos telegrafar a seu pai?

— Não — respondeu Munnie.

— A oportunidade de uma vida inteira — continuou Bert. — Para que ele quer guardar todo aquele dinheiro? Os inventariantes acabarão tomando tudo dele, no amargo fim. Bem... darei um jeito. Esse não é o único meio de arranjar uns dóla­res. Martha... — disse ele — sabe que você representa uma vasta fonte de riqueza em potencial?

— Vou doar meu corpo à ciência — disse Martha — com a idade de 85 anos.

— O essencial — prosseguiu Bert — é não se casar com um americano.

— Denunciem este homem à polícia — ameaçou Martha.

— A América não é lugar para mulheres bonitas — conti­nuou a dizer Bert. — As casas estão ficando pequenas demais, as empregadas muito caras e uma bela mulher encontra-se de repente num aconchegante ninhozinho, em Scarsdale, cerca­da de aparelhos de televisão e eletrodomésticos, convidada para participar da Associação de Pais e Professores. Uma bela mu­lher assenta melhor num país ligeiramente decadente e quase na bancarrota econômica. Como a França... Você pode casar-se com um simpático cavalheiro de 45 anos, de bigode grisa­lho e grande propriedade feudal às margens do Loire. Maravilhosas caçadas no outono, vinhos leves provenientes da propriedade e dúzias de criados recebendo os chapéus ou curvando-se quando a camionete partir. Seu marido vai adorá-la e convidará seus amigos para alegrá-la e a deixará sozinha por muito tempo, enquanto vai a Paris tratar dos negócios ou consultar o médico, por causa do fígado.

— Onde é que você entra na história? — perguntou Martha.

— Ele será um dos amigos convidados para diverti-la — disse Munnie, que não estava gostando da conversa. Ainda que Bert estivesse brincando, sabia que o amigo aprovaria se Martha de fato se casasse com um velho cheio de dinheiro. Dias antes, quando conversavam sobre as carreiras que pode­riam escolher, Bert dissera:

— O importante é cada qual reconhecer o seu dom e fazer uso dele. E o melhor meio de usá-lo é evitar a insuportável chatice do trabalho. Ora, seu dom... — sorrira, olhando para Martha — é o da beleza. É fácil. Se você usar este dom para dominar um homem, o céu será o limite. Meu dom é maior ainda, mas, afinal de contas, menos útil: eu tenho charme...

Sorriu, zombando de si mesmo e continuou:

— Mas não faço uso dele... Contudo, sou inteligente e, se não escolher a vítima errada, poderei ir longe. Quanto a você, Munnie... — e Bert abanou a cabeça, em sinal de dúvida — seu dom é a virtude. Pobre coitado. Que é que ele pode fazer com isso?

Agora, sentado numa ponta da toalha, retirando com pra­zer as uvas da haste, uma a uma, Bert sacudia a cabeça.

— Não... — disse ele. — Não serei um dos amigos convida­dos. Terei um posto fixo. Serei o administrador da propriedade, o americano exótico, sem ambições, que gosta de morar na Fran­ça, às margens do belo rio. Andarei de um lado para outro ves­tindo um velho paletó de tweed, cheirando a cavalos e a vinho novo, estimado por todos, fazendo comentários azedos sobre a situação do mundo, jogando gamão com a dona da casa quan­do o marido está ausente e subindo a escada, mais tarde, com um último copo de Armagnac na mão, para diverti-la, a meu modo desajeitado de americano, na bela cama ancestral...

— Que romântico! — exclamara a moça.

— Para cada época — disse Bert, muito sério — seu estilo particular de romantismo. Este é o de agora, dos anos entre as guerras.

Munnie sentira-se muito sem jeito e, ao olhar para Martha, mais sem jeito ficou, porque ela estava rindo. Tinham rido juntos de muitas coisas, desde Florença, e conversavam sobre todos os assuntos, mas Munnie gostaria que Martha não esti­vesse rindo naquele momento.

Levantou-se.

— Acho que vou deitar-me mais para baixo, para dormir a sesta. Acordem-me quando quiserem ir embora.

Andou cerca de 30 metros, levando uma suéter para servir de travesseiro, e deitou-se na pedra aquecida pelo sol. Ouviu Martha e Bert rindo juntos, um riso íntimo, em meio à vasti­dão ensolarada.

Fechando os olhos, por causa do brilho do sol e ouvindo o riso distante, Munnie compreendeu que sentia uma dor. Não era uma dor localizada, mas de uma outra espécie, vaga e fu­gidia. No momento em que Munnie pensava “pronto, já sei, é na garganta”, a dor se esvaía, não para desaparecer, mas para colocar seus dedos vagos, mas firmes e quase sólidos em outro lugar qualquer. Afinal, ali deitado, com a cortina de calor fechando-lhe os olhos, Munnie compreendeu que o que sen­tia não era dor. Era tristeza.

Uma tristeza profunda e complexa, composta de vários ele­mentos. Uma sensação de perda, a sombra de uma partida ime­diata, nostalgia de recordações que se afastavam irrevogavelmente da inocência, uma confusão de emoções mais profunda do que qualquer outro sentimento que experimen­tara na vida. Profundamente abalado como estava, Munnie sabia também que se, telepaticamente afetada por seu estado, Martha parasse de rir junto com Bert, se levantasse e cami­nhasse os 30 metros ao longo da muralha, chegando até onde ele estava, sentasse a seu lado e lhe tocasse a mão, tudo esta­ria bem, num instante.

Mas a moça não se levantou e Munnie ouviu-a rir mais alto de qualquer coisa que Bert dissera e não chegara até ele.

De repente, Munnie soube o que deveria fazer. Assim que chegasse no navio, quando todos os tratos tivessem perdido o valor e as regras já não tivessem efeito, escreveria a Martha pedindo-lhe que se casasse com ele. Desajeitadamente, come­çou a compor a carta, em pensamento.

“Acho que esta carta será uma surpresa para você, porque durante todo o verão eu não disse uma só palavra, mas é que não compreendia o que vinha acontecendo comigo. Além dis­so, havia um trato entre você, Bert e eu, feito em Florença, de conservarmos tudo na base da simples amizade, o que fe­lizmente consegui fazer. Não sei quais são seus sentimentos a meu respeito, mas talvez o nosso trato a tenha impedido de dizer alguma coisa. Pelo menos, é o que espero. Vou arranjar emprego e me estabelecer, assim que chegar em casa e então você pode voltar, conhecer minha família e...”

Parou de escrever a carta em pensamento. Pensou na mãe, sentada, tomando chá em companhia de Martha e dizendo: “Então você diz que sua mãe mora em Filadélfia? E seu pai... ah... quer provar um destes bolinhos? Então conheceu Mun­nie em Florença e depois você, ele e Bert passaram juntos o resto do verão... Limão? Creme?”

Munnie abanou a cabeça. Cuidaria da mãe quando chegas­se o momento. Continuou a escrever sua carta imaginária.

“Você disse, certa vez, que não sabia o que desejava fazer de você, que estava à espera de uma espécie de revelação que a fizesse seguir o caminho certo. Talvez vá rir-se de mim por me oferecer como uma revelação, mas pode ser que você ache que casando comigo...”

Munnie abanou novamente a cabeça, aborrecido. Santo Deus, pensou, mesmo que ela estivesse loucamente apaixona­da, aquela frase liquidaria tudo para sempre.

“Nada sei a respeito de você com outros homens...”

Os pensamentos vinham em borbotões...

“Você nunca pareceu interessada em mais ninguém enquanto esteve conosco e nunca se referiu a alguém em particular e, que eu saiba, nunca demonstrou preferências entre mim e Bert...”

Munnie abriu os olhos e voltou a cabeça na direção de Martha e Bert. Os dois estavam sentados muito juntos, com as ca­beças quase encostadas, de frente um para o outro, conversando baixo e em tom sério.

Lembrou-se da descrição que Bert fizera do dom que pos­suía. “Tenho charme e não ligo para coisa alguma.” Bem, pen­sou Munnie, mesmo que ela dê o desconto para o egoísmo isto não deve atraí-la muito. Além do mais, houve aquela loura, abertamente, confessadamente, em St.- Tropez. Se Bert tives­se alguma intenção com relação a Martha ou se esta, como Bert tinha predito, estivesse interessada em fazer uma esco­lha, aquilo poria um final ao assunto, não? Bert, foi o que Munnie decidiu, seria o amigo solteirão e divertido da famí­lia. O melhor amigo.

Munnie cochilou um pouco e as imagens mais ternas e deli­ciosas esvoaçavam em seus pensamentos. Martha descendo do avião em Idlewild, por achar a viagem de navio muito longa, depois de receber sua carta, saindo do campo para cair em seus braços. Martha e ele acordando certa manhã em seu próprio apartamento e resolvendo cochilar por mais uma hora, depois saindo para tomar café fora. Martha chegando com ele a uma festa e um leve sussurro de inveja e aprovação percorrendo a sala, porque ela era tão linda. Martha...

Alguém estava gritando. De muito longe, alguém gritava.

Munnie abriu os olhos e piscou, pensando, confuso. Será que alguém gritou nos meus sonhos?

Ouviu de novo o grito, levantou-se e olhou para a baía. Na água, a cerca de 300 metros de distância, viu um pequeno bar­co, o mesmo que tinham visto antes. Estava virado, quase afun­dando, e duas pessoas agarradas nele. Enquanto olhava, tornou a escutar o grito, desesperado, sem palavras.

Munnie voltou-se e olhou para Martha e Bert. Estavam dei­tados, as cabeças juntas sobre a toalha, os corpos formando um largo V, e dormiam.

— Bert! — gritou Munnie. — Martha! Acordem!

Bert mexeu-se, depois se sentou, esfregando os olhos. Tor­naram a ouvir o grito, muito alto, vindo da baía.

— Olhe lá! — disse Munnie, apontando. Bert voltou-se, ain­da sentado e olhou o barco virado e os dois vultos quase sub­mersos, agarrados a ele. Um homem e uma mulher.

— Santo Deus! — disse Bert. — Que é que aqueles dois es­tão fazendo ali?

Acordou Martha:

— Ei, acorde, para ver o naufrágio.

O barco estava quase imóvel sobre a água, movendo-se ape­nas ligeiramente quando as duas pessoas mudavam de posi­ção. Enquanto olhava, Munnie viu o homem largar o barco e começar a nadar na direção da praia. Nadava devagar e a cada momento parava, agitava um braço e gritava. Depois de cada parada, afundava um pouco, depois reaparecia, debatendo-se, desesperado.

— Oh, meu Deus! — exclamou Bert. — Ele deixou a mu­lher lá!

Bert já estava ao lado de Munnie, acompanhado por Mar­tha, todos olhando para a baía. O homem teria de nadar uns bons 300 metros para chegar à praia e com toda aquela grita­ria, aqueles gestos e afundando duas vezes por minutos, não era provável que conseguisse vencer aquela distância. A mulher que ficara agarrada no barco também gritava de vez em quando e seus gritos eram estridentes e desesperados, por so­bre as águas calmas e brilhantes.

Finalmente, Munnie entendeu o que o homem estava gritando:

— Au secours! Je noye, je noye!

Munnie sentiu leve irritação. Parecia melodramático e exa­gerado gritar que se estava afogando, especialmente com uma voz tão forte, em águas tão tranqüilas da baía calma e ensola­rada. Aproximou-se da beira da amurada, ficando ao lado de Bert e Martha.

— Ele parece se estar arranjando muito bem — falou Bert. — Nada com fortes e boas braçadas.

— Terá de dar uma boa explicação, mais tarde — ajuntou Martha. — Deixando a namorada deste jeito!

Enquanto observavam, o homem afundou outra vez. Pare­ceu muito longo o tempo em que ficou submerso e Munnie começou a sentir a boca seca, olhando o local onde o homem desaparecera. Finalmente, ele surgiu novamente, desta vez com os braços e os ombros nus, brancos e brilhando contra a água muito azul. Tinha tirado a camisa debaixo da água e um mo­mento depois a camisa surgiu e saiu boiando. O homem tor­nou a gritar. Já então estava claro que se dirigia diretamente aos três que estavam de pé, na amurada. Continuou a nadar, batendo fortemente os pés.

Munnie examinou a praia e o estaleiro onde os Snipes ti­nham sido emborcados nos cepos, onde passariam o inverno. Não havia por lá nenhum barco que ele pudesse usar, nem mes­mo um pedaço de corda. Procurou ouvir o som do martelo que tinham ouvido ao chegarem à muralha, depois compreen­deu que o som deixara de ser ouvido havia muito tempo, en­quanto estavam comendo. Mas além, do outro lado da baía, não havia movimento nas casas que ficavam em frente ao mar, não havia gente nadando ou pescando, nem crianças brincan­do em parte alguma. Todo o mundo de pedras, areia e mar parecia ter sido oferecido aos três jovens de pé, na amurada, e à mulher que se agarrava ao barco virado, dando gritos estridentes e desesperados na direção do homem que lutava com as águas e se afastava dela vagarosa e penosamente.

Por que é que isto não aconteceu em agosto? pensava Mun­nie, irritado. Olhou lá embaixo, para a água que vinha bater em ondas brandas e regulares na base da amurada. Não era muito profunda, naquele momento, com a maré vazante. Se­ria 1,50 a 2 metros de profundidade e grandes pedras e blocos de cimento quebravam irregularmente a superfície. Se fosse pular, seria um mergulho de no mínimo 4 a 5 metros e não havia meio de evitar as rochas.

Munnie olhou, quase envergonhado, para Martha e Bert. A moça tinha os olhos semicerrados e rugas na testa. Chupa­va o polegar, como uma garotinha atrapalhada com um pro­blema, na escola. Bert tinha um ar crítico e desinteressado, como se estivesse assistindo ao espetáculo de um acrobata, num circo de terceira classe.

— Que idiota dos infernos — disse ele. — Se não sabia ma­nobrar um barco, poderia ao menos ter tido o bom senso de não se afastar da praia.

— Franceses... — falou Martha. — Pensam que sabem fa­zer tudo. — E continuou roendo a unha.

O homem tornou a gritar, agora dirigindo-se claramente aos três.

— Que vamos fazer? — perguntou Munnie.

— Passar uma descompostura neste estúpido filho da mãe,, quando ele chegar à praia, por ser tão mau marinheiro.

Munnie olhava atentamente o nadador. Prosseguia mais va­garosamente e parecia afundar cada vez mais, depois de cada braçada.

— Não creio que ele consiga chegar à praia — disse.

— Bem — falou Bert — pior para ele.

Martha nada disse.

Munnie engoliu em seco. Mais tarde, pensou, não suporta­ria a idéia de ter ficado ali, em pé, vendo um homem morrer afogado.

Em seguida, outro quadro surgiu diante de seus olhos, cla­ro e nítido, nos menores detalhes. Ele, Bert e Martha de pé, diante de um policial francês sentado a uma mesa, com o bo­né na cabeça, escrevendo num caderno de notas com uma caneta-tinteiro que vazava.

— Então — dizia o policial — desejam dar parte de um afogamento?

— Sim.

— Quer dizer que viram o homem a alguma distância da praia, acenando para os senhores e depois desaparecendo.

— Sim.

— E a mulher?

— A última vez que a vimos estava agarrada ao barco, flu­tuando sobre o mar.

— Sim... E que providências tomaram, pessoalmente?

— Nós... nós viemos aqui dar parte.

— Ah, sim... naturalmente... — novos rabiscos no cader­no, a mão estendida: — Seus passaportes, por favor. — Um rápido olhar sobre as páginas que ia virando e um rápido sor­riso gelado, quando jogou os passaportes sobre a mesa.

— Ah! São americanos, todos vocês...

O homem que nadava afundou mais uma vez; durante um segundo.

Munnie tentou engolir em seco, novamente. Desta vez, não conseguiu.

— Vou buscá-lo — disse, mas por um momento não se mo­veu, como se dizer aquilo já resolvesse tudo, colocasse o ho­mem em terra firme, endireitasse o barco, calasse os gritos.

— São pelo menos 250 metros da praia — falou Bert, com muita calma. — E outros tantos para voltar, talvez um pouco menos, com aquele francês maluco agarrado ao seu pescoço.

Munnie ouviu, agradecido.

— É verdade — disse ele. — No mínimo.

— Você nunca nadou 500 metros em sua vida — disse Bert, em tom amistoso e sensato.

O homem tornou a gritar e, desta vez, sua voz era rouca e aterrorizada.

Munnie começou a caminhar rapidamente pela amurada, dirigindo-se para onde havia uma escada que ia ter à pequena praia em frente ao forte. Não correu porque não queria estar cansado quando entrasse na água.

— Munnie! — ouviu Bert gritando. — Não seja idiota!

Quando ia descendo a escada, escorregadia por causa do limo, Munnie notou que Martha não dissera palavra. Chegando à praia, andou pela linha da água, até chegar ao ponto próxi­mo de onde estava o homem. Parou, respirou profundamen­te e acenou para o nadador, animando-o. Ali, ao nível da água, a distância lhe parecia muito maior que os 250 metros calcu­lados. Com um chute, tirou os sapatos, ao mesmo tempo que arrancava a camisa. O vento frio bateu-lhe na pele. Tirou as calças, jogando-as para um lado, sobre a areia, ficando ape­nas de cueca. Hesitou. Era uma cueca velha, rasgada entre as pernas que ele próprio havia costurado, desajeitadamente. Viu de repente seu corpo jogado na praia e as pessoas reparando a costura mal feita e rindo disfarçadamente. Desabotoou a cue­ca e deixou-a cair na areia. Quando caminhou deliberadamente para entrar na água, pensou: “Ela nunca me viu nu. Gostaria de saber o que pensa”.

Feriu o pé numa pedra e a dor trouxe-lhe lágrimas nos olhos. Caminhou até a água bater-lhe no peito, depois então, num impulso, começou a nadar. A água estava fria e Munnie sen­tiu a pele contraída e gelada no mesmo instante. Controlava-se para não nadar depressa demais, guardando seu fôlego pa­ra quando se aproximasse do homem que se afogava. Cada vez que levantava a cabeça para calcular quanto tinha nada­do, parecia-lhe que não tinha saído do lugar. Era difícil, tam­bém, nadar em linha reta. Parecia-lhe estar sendo constantemente puxado para a esquerda, na direção da mura­lha, de modo que era obrigado a corrigir constantemente o rumo,. Uma vez, levantou os olhos para ver Bert e Martha. Não conseguiu vê-los e teve um momento de pânico. Que dia­bo terão feito?, pensou. Foram-se embora... Voltou-se, de cos­tas, perdendo preciosos minutos e viu os dois na praia, de pé na beira da água, observando-o. Claro que estavam ali, pensou.

Tornou a voltar-se e nadou com método, na direção do fran­cês. Cada vez que tirava a cabeça de dentro da água, o francês estava gritando e parecia tão longe como sempre estivera. Resolveu não olhar por algum tempo. Era por demais desanimador.

Foi então que começou a sentir os braços cansados. Não pode ser, pensou, ainda não nadei 50 metros! Mesmo assim, os músculos entre os ombros e os cotovelos pareciam contraí­dos, torcendo-lhe os ossos, provocando uma espécie de dor e fraqueza nos braços. Começou também a sentir um pouco de cãibra na mão direita e deixou-a flutuar à vontade sobre a água, o que o fazia prosseguir mais devagar. Mas não sabia de que outro modo poderia agir. A cãibra fê-lo lembrar-se de que tinha comido pouco antes, tomara muito vinho, comera uvas e queijo. Enquanto nadava, com a água parecendo uma verde mancha diante de seus olhos e fazendo forte pressão, vagarosa e contínua, em seus ouvidos, pensava na mãe, em todos os verões de sua infância nas praias do lago, em New Hampshire. Dizia-lhe sempre: “Nunca se deve nadar antes de passadas duas horas depois de uma refeição”, sentada numa cadeirinha de madeira, debaixo de um guarda-sol listrado, ven­do as crianças brincarem na praia estreita e cheia de pedras.

O pescoço e a base do crânio começavam a doer e os pensa­mentos passavam pela sua consciência, desconexos e escorre­gadios. Lembrava-se de que jamais gostara muito de nadar. Entrava na água somente para refrescar-se e por brincadeira. A natação sempre lhe parecera um esporte sem atrativos. Sem­pre a mesma coisa, repetidas vezes... levantar um braço, de­pois o outro, bater com os pés, depois levantar um braço, o outro, bater com os pés, sem nunca, realmente, chegar a par­te alguma. E nunca conseguira tirar a água dos ouvidos. Cos­tumava ficar surdo horas a fio e a água só saía quando ele ia deitar-se e ficava virado de lado durante muito tempo.

Os braços começavam a ficar dormentes e Munnie movimentava-os cada vez mais, numa tentativa de fazer com que os ombros entrassem em ação. Parecia estar nadando mais debaixo da água que nunca. Não adianta perder tempo, refle­tia ele, forçando-se a pensar em outra coisa e esquecer os bra­ços. O melhor seria imaginar o que faria quando alcançasse o homem. Com dificuldade, começou a transformar em fra­ses o que pretendia dizer em francês, quando se aproximasse dele. “Monsieur, j’y suis. Doucement, doucement...” Fica­ria afastado do homem, tentando acalmá-lo, antes de segurá-lo. Lembrava-se vagamente de ter assistido a uma demonstra­ção de salvamento numa piscina, quando tinha 14 anos. Não prestara muita atenção, porque o garoto que estava atrás dele batia-lhe disfarçadamente, mas sem parar, com uma toalha molhada. Mas lembrava-se de qualquer coisa sobre a necessi­dade de afundar, se o afogado passasse os braços pelo seu pes­coço, girando o corpo e empurrando o outro, com a mão colocada sob seu queixo. Não acreditara naquilo quando ti­nha 14 anos de idade, nem acreditava, naquele momento. Era dessas coisas que parecem muito eficientes em terra firme. Ha­via também a história de dar um soco no queixo do afogado, para descordá-lo. Mais prática de terra firme. Nunca tinha de­sacordado ninguém com um soco, em toda a sua vida. Sua mãe detestava violência. “Monsieur, soyez tranquile. Roulez sur votre dos, s’il vous plait.” Em seguida, seguraria o ho­mem pelos cabelos e começaria a rebocá-lo, nadando de lado. Se o homem o compreendesse. Sempre tivera a maior dificul­dade em fazer com que os franceses compreendessem seu so­taque, especialmente ali, no país basco. Martha não tinha a menor dificuldade. Todos falavam no seu encantador sotaque. Bem, por que não, depois de todo aquele tempo na Sorbonne? Ela deveria ter vindo com ele, como intérprete, ao me­nos... “Tournez sur votre dos.” Assim estava melhor.

Nadava pesada e vagarosamente, os olhos começavam a ar­der, por causa da água salgada. Quando Munnie levantava a cabeça, havia manchas brancas e pretas diante de seus olhos e ele não conseguia enxergar direito. Continuou nadando. De­pois de 50 braçadas, decidiu, iria parar, boiar um pouco e olhar em volta. A idéia de boiar parecia-lhe então o maior prazer concedido à raça humana.

Começou a contar as braçadas. Quatorze, quinze, dezesseis... Santo Deus, pensou, e se o homem for careca? Tentou lembrar-se de como era a cabeça dele, vista a distância, mergulhando para afastar-se do barco virado. Lembrava-se de ter visto um estranho brilho. Ele é careca!, concluiu Munnie, desespera­do. Nada iria dar certo.

Começou novamente a contar as braçadas. Quando chegou a 35, compreendeu que era preciso parar um pouco. Forçou-se a dar mais cinco braçadas, parou e deitou-se de costas, arquejante, bufando, olhando para o céu. Quando descansou, virou-se e ficou parado, equilibrando-se na água, procurando o francês.

Piscou e esfregou os olhos com as costas da mão, afundan­do até o queixo ao fazê-lo. O francês não estava à vista. San­to Deus!, pensou Munnie, o homem afundou!

Foi então que ouviu algo chapinhando na água e virou o corpo. Um barco de pesca afastava-se do lugar onde Munnie vira pela última vez o francês e se dirigia para o barco virado. Munnie se manteve à tona d’água, em posição vertical, obser­vando o barco de pesca de atum parar e dois pescadores se inclinarem, puxando a mulher para bordo. Compreendeu que o pesqueiro tinha vindo do sul, oculto pelo pequeno cabo on­de o forte fora construído, e deveria ter velejado ao longo da costa e entrado pelo canal, enquanto ele nadava cegamente, afastando-se da costa.

Os pescadores lançaram uma corda sobre o barco, depois viraram na direção de Munnie, que esperou, lutando com os pulmões. O barco pesqueiro era pintado de azul, velho e va­garoso, mas pareceu seguro e grande, ao aproximar-se. Munnie viu rostos morenos, largos e sorridentes, viu os gorros azuis acima deles e acenou com grande esforço, quando a embarca­ção chegou perto e parou.

— Ça va? — gritou um pescador, sorrindo para ele, com um cigarro, queimado até o fim, pendente dos lábios.

Munnie conseguiu sorrir.

— Ça va bien — gritou ele. — Très bien.

O homem que tinha sido salvo, ainda nu da cintura para cima, aproximou-se da beira do barco e olhou curiosamente para Munnie.

Munnie notou que o homem tinha muito cabelo... O francês não disse palavra. Era um rapaz gordo e tinha no rosto uma expressão de aborrecimento e dignidade. A mulher esta­va a seu lado. Estiver a muito maquilada e a água fizera misé­rias com o ruge e a máscara. Olhou furiosa para Munnie, depois voltou-se para o francês.

— Crapaud! — disse em voz muito alta. — Espece de cochon!

O francês fechou os olhos e balançou a cabeça, conservan­do a expressão triste e digna no rosto. Os pescadores sorri­ram mais abertamente.

— Alors... — falou um deles, jogando uma corda na dire­ção de Munnie — allons-y.

Munnie lançou à corda um olhar satisfeito. Depois lembrou-se de que estava nu. Abanou a cabeça. Se havia uma coisa que não iria acontecer-lhe naquela tarde seria ser pescado nu e co­locado diante daquela mulher que descompunha o amigo, chamando-o de porco e de sapo.

— Estou bem... — disse Munnie, olhando os rostos more­nos, rudes e divertidos daqueles homens habituados a toda sorte de acidentes.

— Estou O.K. Isto é... je voudrais bien nager. Je suis O.K...

— O.K., O.K. — disseram os pescadores, rindo muito, co­mo se o que acabavam de dizer fosse enormemente espirituoso. Puxaram a corda, acenaram para Munnie e o pesqueiro começou a fazer a volta, dirigindo-se para o cais, rebocando o barquinho.

Muito bem, pensava Munnie, ao vê-los afastarem-se, pelo menos eles me entenderam.

Em seguida, voltou-se e olhou para a praia. Parecia-lhe es­tar a quilômetros de distância e admirou-se de ter nadado tanto. Nunca nadara tanto em sua vida. Na praia, na linha d’água, com a torre do forte visível atrás dos dois, Bert e Martha es­tavam de pé, pequenos vultos perfeitamente delineados, lan­çando compridas sombras, agora que o sol começava a se pôr.

Respirando profundamente, Munnie recomeçou a nadar.

Era obrigado a virar-se e boiar, a cada 10 metros, mais ou menos e, por algum tempo, pareceu-lhe que não saía do lugar, apenas executava os movimentos da natação. Mas afinal, abaixando o corpo, sentiu os pés tocarem o chão. Era ainda bem fundo, a água dava-lhe pelo queixo. Num gesto de orgu­lho que ele próprio não procurou entender, continuou nadan­do, num perfeito crawl, até que as pontas dos dedos arranharam a areia.

Só então levantou-se. Cambaleou um pouco, mas conseguiu firmar-se e caminhou vagarosamente, nu, pingando água, até o ponto onde estavam Bert e Martha, ao lado da pilha de suas roupas.

— Como é, meu amigo, de que parte da Suíça você é? — perguntou Bert, quando Munnie se aproximou.

Ao inclinar-se para pegar a toalha e começar a se enxugar, tremendo ao contato do pano áspero, Munnie ouviu o riso de Martha.

Esfregou-se até ficar seco. Demorou longo tempo, com fortes calafrios, cansado demais até mesmo para preocupar-se em cobrir a própria nudez. Voltaram para o hotel em silêncio e quando Munnie disse que ia deitar-se e procurar descansar um pouco, os dois outros concordaram que era provavelmente a melhor coisa que ele tinha a fazer.

Munnie teve um sono inquieto, os ouvidos meio surdos e cheios de água, o sangue vibrando dentro dele como um mar distante e movediço. Quando Bert entrou no quarto, dizendo que era hora do jantar, Munnie respondeu que não estava com fome e queria descansar.

— Vamos ao cassino depois de jantar — falou Bert. — Quer que passemos por aqui para pegar você?

— Não — respondeu Munnie. — Não me sinto com muita sorte hoje.

Houve um instante de silêncio no quarto às escuras. Finalmente Bert falou:

— Durma bem, Gorducho. — E saiu.

Sozinho, Munnie fitava o teto escuro, pensando: “Não sou gordo. Por que será que ele me chama assim? Começou com isto no meio do verão”. Tornou a dormir e só acordou nova­mente quando ouviu o carro parar na porta do hotel e os passos furtivos passando pela porta e subindo para o andar de cima. Ouviu depois uma porta sendo aberta e logo fechada com cuidado. Obrigou-se a fechar os olhos e tentou dormir.

Quando acordou, o travesseiro estava molhado pela água que saíra do ouvido e sentiu-se melhor. Sentou-se e o sangue parou de latejar dentro da cabeça. Acendeu a luz e olhou pa­ra a cama de Bert. Estava vazia. Olhou o relógio. Eram 4h30 da manhã.

Levantou-se, acendeu um cigarro, foi até a janela e abriu-a. A lua começava a desaparecer e o mar repetia um som mo­nótono e queixoso, como um velho se lamentando da vida que ficara para trás.

Por um momento, pensou no que teria acontecido se o bar­co de pescadores não tivesse aparecido. Em seguida, largou o cigarro e começou a arrumar suas coisas. Não demorou mui­to, porque tinham viajado com pouca roupa durante todo o verão.

Quando terminou, certificou-se de que a chave sobressalente do carro estava no chaveiro. Em seguida, escreveu um bilhete a Bert, dizendo-lhe que resolvera partir para Paris. Esperava chegar lá a tempo de tomar o navio. Esperava que aquilo não atrapalhasse muito os planos de Bert e sabia que ele haveria de compreender. Não tocou em Martha.

Carregou a mala através do hotel às escuras e jogou-a no espaço vazio, ao lado do motorista. Vestiu a capa de chuva, calçou as luvas, deu partida no carro e guiou com cuidado, sem olhar para trás para verificar se o barulho do carro ti­nha acordado alguém que tivesse ido à janela, para vê-lo partir.

Havia neblina nas partes mais baixas da estrada e Munnie guiou com cuidado, sentindo o rosto molhado. Dirigia mecanicamente, quase hipnotizado pelo ruído regular dos limpa­dores de pára-brisa e as luzes contínuas dos faróis na sua frente.

Foi somente depois de Bayonne, quando a madrugada ti­nha rompido e apagara os faróis, quando a estrada se estendia, brilhante e cinzenta, entre as fileiras de pinheiros de Les Landes, que se permitiu lembrar-se do dia e da noite que aca­bava de passar. E então, a única coisa que conseguiu pensar foi que a culpa era sua. “Prolonguei o verão por um dia a mais.”

 

AS ENSOLARADAS MARGENS DO RIO LETHE

Hugh Forester sempre se lembrava de tudo. Sabia as datas da Batalha de New Cold Harbour (31 de maio a 12 de junho de 1864); recordava-se do nome de sua professora do primei­ro ano primário (Webel, gorda, ruiva, 45 anos, sem cílios)^ sabia os recordes dos arremessos de um jogo da Liga Nacio­nal (Dizzy Dean, St. Louis Cards, 30 de julho de 1931, 17 ho­mens contra o Cubs); lembrava-se do quinto verso do poema A Uma Cotovia (Shelley: em profundo esforço de arte não pre­meditada); recordava-se do endereço da primeira moça que beijara (Prudence Collingwood, 248, East South Temple Street, Salt Lake City, 14 de março de 1918); lembrava-se das datas dos três desmembramentos da Polônia (1772, 1793, 1795) e da destruição do Templo (70 a.C); sabia o número dos na­vios tomados por Nelson na Batalha de Trafalgar (20) e a pro­fissão do herói do romance de Frank Norris, McTeague (dentista); recordava-se do nome do homem que ganhou o pri­meiro Prêmio Pulitzer da história, em 1925 (Frederic L. Paxson), o nome do vencedor do Derby de Epson em 1923 (Papyrus) e o número que recebeu quando foi convocado em 1940 (4.276); lembrava-se dos números de sua pressão arte­rial (16,5 por 9. Muito alta), seu tipo sangüíneo (O) e o grau de sua visão 40 por 20 no olho direito, 30 por 20 no esquerdo); lembrava-se do que lhe dissera o chefe quando o despedira de seu primeiro emprego (“Vou pôr uma máquina no seu lugar”); e o que a mulher lhe dissera quando a pedira em casamento (“Quero morar em Nova York”); lembrava-se do nome corre­to de Lenine (Vladimir Ilych Ulianov) e o que causara a morte de Luís XIV (gangrena da perna). Também se lembrava das es­pécies de pássaros, da profundidade média de todos os rios na­vegáveis da América, os nomes verdadeiros e os escolhidos por todos os Papas, inclusive os de Avinhão; as médias no manejo de bastão obtidas por Harry Heilmann e Heinie Groh; as datas dos eclipses totais do Sol, a partir do reinado de Carlos Magno; a velocidade do som; onde ficava o túmulo de D.H. Lawrence; todo o Rubáiyat de Omar Khayyam; a população da antiga re­serva Roanoke; a distância média do tiro da carabina automá­tica Browning; as campanhas de César na Gália e na Bretanha; o nome da pastora de As You Like it e a quantidade de dinheiro que ainda tinha no Chemical Bank and Trust na manhã de 4 de dezembro de 1941 (2 367,58 dólares).

E, então, esqueceu-se do seu vigésimo quarto aniversário de casamento (25 de janeiro). Sua mulher, Narcisse, olhou para ele de modo estranho aquela manhã, na mesa do café, mas Hugh lia o jornal da véspera, pensando que aquela gente ja­mais chegaria a um acordo, em Washington, e não lhe pres­tou muita atenção. Recebeu uma carta de seu filho, que estudava na Universidade de Alabama, mas meteu-a no bolso sem abrir. Fora dirigida somente a ele, de modo que sabia que era um pedido de dinheiro. Quando Morton escrevia as car­tas de obrigação para a família endereçava-as sempre ao pai e à mãe. Morton estava em Alabama porque suas notas não tinham sido suficientemente altas para matricular-se em Yale, na Universidade da Cidade de Nova York nem no Colorado.

Narcisse perguntou a Hugh se queria peixe para o jantar e ele respondeu que sim. Narcisse observou que o peixe também estava criminosamente caro e ele respondeu que sim. A mulher perguntou se ele estava sentindo alguma coisa e respondeu que não, beijou-a e saiu do apartamento. Dirigiu-se à Estação do metrô e fez toda a viagem de pé, lendo o jornal da manhã.

Os pais de Narcisse tinham morado na França durante al­gum tempo, daí a origem do seu nome. Mas Hugh já se habi­tuara a ele. Enquanto lia o jornal, no carro superlotado, desejava um tanto vagamente que a maior parte das pessoas que ocupavam o noticiário dos jornais desaparecesse.

Hugh foi o primeiro a chegar ao escritório. Foi para a divi­são onde trabalhava e sentou-se à mesa, deixando a porta aberta, gozando o silêncio e as mesas desocupadas. Lembrou-se de que o nariz de Narcisse vibrara, na hora do café, prenunciando um início de choro. Pensou um instante por que seria, mas sabia que ela acabaria por lhe dizer a razão e pensou em outra coisa. Narcisse chorava numa média de cinco a oito vezes por mês.

A editora onde ele trabalhava estava preparando uma enciclo­pédia em um volume, absolutamente completa, em papel bíblia, com 750 ilustrações. Falava-se que seria chamada Enciclopédia Gigante de Bolso, mas não se tinha ainda chegado a uma deci­são definitiva. Hugh estava trabalhando no S. Naquele dia, ti­nha em sua frente Sódio, Sófocles e Sorrento. Lembrou-se de que Máximo Gorki tinha morado em Sorrento e que, das 120 peças escritas por Sófocles, apenas sete tinham sido descober­tas. Hugh não desgostava de seu trabalho, exceto quando o Sr. Gorsline aparecia. O Sr. Gorsline era o dono e o editor-chefe da casa e gostava de ficar de pé por trás dos empregados, silen­ciosamente, observando-os enquanto trabalhavam. Sempre que o Sr. Gorsline entrava na sala, Hugh tinha a curiosa sensação de que o sangue corria mais vagarosamente na sua virilha.

O Sr. Gorsline tinha cabelos grisalhos, a fisionomia e a si­lhueta de um picador, usava ternos de tweed e começara edi­tando calendários. A casa ainda editava grande quantidade de folhinhas pornográficas, religiosas e neutras. Hugh era mui­to útil para a edição de folhinhas porque se lembrava de coi­sas como o dia da morte de Cromwell (3 de setembro de 1658) e a data em que Marconi enviara a primeira mensagem pelo telégrafo sem fio através do Atlântico (12 de dezembro de 1901), ou que o primeiro navio a vapor navegou de Nova York até Albany (17 de agosto de 1807).

O Sr. Gorsline apreciava o talento especial de Hugh e se mos­trava constantemente interessado por sua saúde. Era um adepto da medicina homeopática e acreditava nas propriedades me­dicinais dos vegetais, particularmente da berinjela. Também era contra óculos e deixara de usar os seus em 1944, após a leitura de um livro que falara de uma série de exercícios para fortalecimento dos olhos. Tinha convencido Hugh a abando­nar os óculos durante um período de sete meses, em 1948, tem­po durante o qual Hugh sofrera contínuas dores de cabeça para as quais o Sr. Gorsline receitara diminutas doses de um remé­dio da farmácia homeopática que tinha feito Hugh sentir-se como se tivesse recebido no crânio uma carga de chumbo de caça. Depois disso, sempre que o Sr. Gorsline estava de pé por detrás de Hugh, olhava para os óculos dele com a expressão teimosa e irredentista* de um general italiano inspecionando Trieste. A saúde de Hugh, embora não fosse má, era frágil. Resfriava-se com freqüência e os olhos tinham uma tendência de se tornarem injetados depois do almoço. Não havia meios de ocultar estas falhas ou o fato de, no tempo frio, Hugh fa­zer várias visitas por hora ao banheiro dos homens.

Durante a manhã, o Sr. Gorsline foi duas vezes para junto de Hugh. Da primeira, ficou de pé por detrás da cadeira, sem dizer nada durante cinco minutos, depois perguntou:

— Ainda em Sódio? — e afastou.

Da segunda, ficou oito minutos em silêncio, depois falou:

— Forester, você está engordando. Pão branco. — E saiu da sala.

De cada vez Hugh sentiu na virilha a sensação do costume.

 

Pouco antes da hora do almoço a filha de Hugh chegou ao escritório. Beijou o pai e disse:,

— Meus parabéns, paizinho.

Entregou-lhe um embrulho pequeno e comprido com um laço de fita colorida. Clare tinha 22 anos e estava casada havia quatro, mas recusava-se a deixar de chamar Hugh de paizinho.

Hugh abriu o embrulho, meio sem jeito. Era uma caneta-tinteiro com tampa de ouro. Era a quarta caneta-tinteiro que Clare lhe dava nos últimos seis anos, duas no seu aniversário, outra pelo Natal. Clare não herdara a memória do pai.

— Por que este presente? — perguntou Hugh.

— Paizinho! Você está brincando... — disse Clare.

Hugh ficou olhando para a caneta. Sabia que não era dia de seu aniversário (12 de junho). E certamente não era Natal (25 de dezembro).

— Não pode ser... — falou Clare, incrédula. — Você não esqueceu.

Hugh recordou-se da cara de Narcisse ao café, de seu nariz vibrando.

— Oh! Deus! — disse ele.

— É melhor você comprar um ramo de flores antes de pi­sar em casa hoje à noite — falou Clare, olhando ansiosamen­te para o pai. — Está sentindo-se bem?

— Claro que estou me sentindo bem! —respondeu Hugh, aborrecido. — Todo mundo tem direito de esquecer um ani­versário de vez em quando.

— Você, não, paizinho.

— Eu também. Sou humano também — disse Hugh com firmeza, mas sentindo-se abalado. Desatarrachou a tampa da caneta e escreveu “VINTE E QUATRO ANOS” em letras maiúsculas, num bloco, conservando a cabeça baixa. Possuía agora oito canetas.

— Era exatamente o que precisava — disse ele a Clare, guar­dando a caneta no bolso. — Muito obrigado.

— Não vá dizer que esqueceu que me convidou para almo­çar, não é?

Clare telefonara na véspera, dizendo a Hugh que desejava discutir com ele um problema importante.

— Claro que não — respondeu ele, irritado.

Vestiu o sobretudo e saíram juntos. Hugh pediu peixe, de­pois mudou o pedido para costeleta de carneiro, lembrando-se de que Narcisse dissera, ao café da manhã, que teriam pei­xe para o jantar. Clare pediu frango assado e uma salada, mais uma garrafa de vinho porque, dizia ela, à tarde ficava menos triste depois de uma garrafa de vinho. Hugh não compreen­dia por que razão uma moça bonita de 22 anos precisava de uma garrafa de vinho para não se sentir triste durante a tar­de, mas não fez comentários.

Enquanto Clare examinava a lista dos vinhos, Hugh tirou do bolso a carta de Morton e leu-a. Morton pedia 250 dóla­res. Ao que parecia, tinha tomado um Plymouth emprestado a um colega e caíra com ele num buraco depois de um baile, ficando o conserto em 125 dólares. Havia uma moça em sua companhia, também... A moça tinha quebrado o nariz e o mé­dico cobrara 100 dólares pelo tratamento e Morton promete­ra pagar. Precisava ainda de 10 dólares para comprar dois livros sobre ética e os 15 dólares restantes, como dizia Morton, eram para arredondar a conta. Hugh meteu a carta no bolso sem nada dizer sobre ela a Clare. Pelo menos, pensava ele, não era tão ruim como no ano anterior, quando Morton fora amea­çado de ser expulso da Universidade por ter colado num exa­me de matemática.

Enquanto comia o frango e bebia o vinho, Clare contava ao pai o que a estava preocupando. Era, principalmente, seu marido, Freddie. Estava indecisa, dizia ela, comendo com ape­tite o seu frango, não sabia se abandonava o marido ou tinha um filho. Tinha certeza de que Freddie estava tendo encon­tros com outra mulher, na Rua 78, Leste. Encontravam-se à tarde e ela não queria tomar qualquer atitude antes que Hugh tivesse com Freddie uma conversa de homem para homem. Freddie recusava-se a conversar com ela sobre o assunto. Quan­do tocava no caso, ele saía de casa e passava a noite num ho­tel. Se ele quisesse o divórcio, Hugh teria de lhe arranjar mil dólares, no mínimo, para as seis semanas em Reno, já que Fred­die tinha avisado que não lhe adiantaria um centavo para uma porcaria como aquela. Além do mais, Freddie estava, no mo­mento, com um pequeno problema financeiro. Dera um des­falque na agência de automóveis para a qual trabalhava e eles o estavam apertando, havia duas semanas. Se resolvessem ter o filho, o médico de Clare cobraria 800 dólares e ela precisa­ria pelo menos de 500 para hospital e enfermeiras. Sabia que podia contar com o pai para isso.

Bebia seu vinho e falava, enquanto Hugh comia, calado. Freddie, dizia Clare, estava atrasado cinco meses com a men­salidade do clube de golfe, além das taxas de manutenção, e tinham ameaçado excluí-lo, se não pagasse até sábado. E aquilo era realmente urgente, por causa do vexame por que passa­riam, e Freddie andava pela casa procedendo como verdadei­ro selvagem desde que recebera a carta do clube.

— Eu disse a ele — falou Clare, com lágrimas nos olhos e comendo sem parar — que posso muito bem trabalhar, mas respondeu-me que seria o cúmulo deixar que as pessoas dis­sessem que ele não podia sustentar sua própria esposa. Natu­ralmente, devemos respeitar um sentimento como este. Disse também que não lhe pediria mais um centavo e isso também é digno de admiração, não é?

— É... — concordou Hugh, lembrando-se de que o genro lhe pedira emprestados 3 850 dólares num período de quatro anos e nunca lhe pagara um centavo. — É... Tem razão... Você disse a ele que vinha conversar comigo hoje?

— Vagamente... — disse Clare, enchendo de novo o copo de vinho. Enquanto pescava os últimos pedaços de nozes e ma­çãs da salada, disse que detestava sobrecarregar o pai com seus problemas, mas que ele era a única pessoa do mundo em quem confiava. Ele era tão firme, sensível e inteligente, dizia ela, e o fato é que não tinha certeza se ainda amava Freddie, esta­va tão confusa... Além disso, não gostava de ver Freddie tão desesperado por causa de dinheiro e queria que Hugh lhe dis­sesse francamente se achava que ela estava preparada para a maternidade, com a idade de 22 anos. Quando acabaram de tomar café, Hugh tinha prometido conversar com Freddie so­bre a mulher da Rua 78 e financiar ou a viagem ao Reno ou o obstetra, conforme o caso, e fizera uma vaga promessa so­bre as dívidas e taxas do clube de golfe.

De volta ao escritório, Hugh comprou uma bolsa de pele de crocodilo para Narcisse, por 60 dólares, e preocupou-se du­rante algum tempo com a inflação, enquanto preenchia o che­que e o entregava à vendedora.

Sentiu alguma dificuldade em trabalhar quando voltou do almoço porque lembrava-se sem cessar de como era Clare quan­do criança (sarampo com quatro anos, caxumba no ano se­guinte, freios nos dentes de 11 aos 15, acne entre 14 e 17). Trabalhou vagarosamente em Sorrento. O Sr. Gorsline entrou duas vezes na sala durante a tarde. Da primeira, disse:

— Ainda em Sorrento?

E da segunda perguntou:

— Quem se importa de saber que aquele comunista russo escreveu um livro lá?

Além da sensação costumeira na virilha, Hugh notou que sua respiração se acelerara, tornara-se quase ofegante, quan­do o Sr. Gorsline se aproximara dele, durante a tarde.

Depois do trabalho, dirigiu-se ao barzinho da Avenida Le-xington onde se encontrava com Jean três vezes por semana. Lá estava ela, acabando de tomar seu primeiro uísque. Hugh sentou-se ao lado dela, apertando-lhe a mão, em cumprimen­to. Gostavam um do outro há 11 anos, mas até então só se tinham beijado uma vez (no Dia da Vitória), porque Jean fo­ra colega de classe de Narcisse em Bryn Mawr e tinham deci­dido, desde o início, proceder corretamente. Jean era uma mulher de porte majestoso que, embora tivesse tido uma vida atribulada, conservara-se relativamente jovem. Sentavam-se triste e secretamente em pequenos bares no fim da tarde e con­versavam em voz baixa e nostálgica sobre como tudo poderia ter sido diferente. No começo, a conversa era mais animada e, por uma hora e meia, Hugh recuperava o otimismo e a con­fiança que tivera quando jovem ao receber todas as honras, na universidade, antes de ter ficado claro que uma boa me­mória e inteligência não significavam necessariamente sorte.

— Acho — disse Jean, enquanto Hugh tomava sua bebida — que muito em breve teremos de acabar com isto. Não leva a coisa alguma e não acho que estamos procedendo bem. Sinto-me culpada. Você não?

Até então, nunca ocorrera a Hugh estar fazendo algo de que devesse sentir-se culpado, com a possível exceção do beijo no Dia da Vitória. Mas, agora que Jean mencionara o fato, sa­bia que, provavelmente, se sentiria culpado toda vez que en­trasse num bar e a visse à sua espera.

— Sim... — falou tristemente. — Acho que tem razão.

— Vou passar o verão fora — disse Jean. — Em junho. Quando voltar, não vou mais encontrar-me com você.

Hugh ficou triste. O verão estava ainda a cinco meses de distância, mas ele teve a sensação de que alguma coisa se fe­chava atrás dele.

Teve que ficar de pé o tempo todo, no metrô, a caminho de casa e o carro estava tão cheio que ele não podia virar as páginas do jornal. Leu e releu a primeira página, pensando que coisa boa não ter sido eleito presidente.

Fazia calor no trem e Hugh sentia-se gordo e desconfortá­vel, espremido entre os passageiros, com a sensação nova e desagradável de que as carnes lhe pesavam demais. Então, pou­co antes de chegar à Rua 242, lembrou-se de que tinha deixa­do a bolsa de pele de crocodilo em cima de sua mesa, no escritório. Sentiu um aperto na garganta e tremor nos joelhos. Não era só porque, chegando de mãos vazias, teria de enfren­tar um serão de suspiros, reprovações veladas e, quase certa­mente, de lágrimas. Não era também pelo fato de não confiar muito na faxineira que todas as noites arrumava o escritório e que uma noite (3 de novembro de 1950) estava certo, tirara selos no valor de um dólar e 30 cents de sua primeira gaveta do lado direito. Mas, de pé no carro já não muito cheio, Hugh foi obrigado a enfrentar o fato de que por duas vezes, naque­le dia, tinha esquecido alguma coisa. Não se lembrava de ja­mais ter-lhe acontecido coisa semelhante. Levou as pontas dos dedos à cabeça, como se houvesse alguma explicação obscura e ele conseguisse descobri-la daquela maneira. Resolveu dei­xar de beber. Bebia apenas cinco ou seis uísques por semana, mas a indução de uma amnésia parcial pelo efeito do álcool era um princípio médico bem estabelecido e talvez sua tolerância fosse anormalmente baixa.

A noite se passou como ele esperava. Comprara algumas rosas na estação para Narcisse, mas não poderia falar-lhe so­bre a bolsa de couro de crocodilo porque sabia que aquilo ape­nas serviria para aumentar a ofensa da manhã. Chegou a sugerir que voltassem à cidade, para um jantar comemorati­vo, mas Narcisse tivera o dia inteiro para ficar sozinha e au­mentar a autopiedade, lamentando-se por sua infelicidade e insistiu que comessem o peixe, que custara 93 cents. Lá pelas 10h30 já estava chorando.

Hugh dormiu mal e chegou cedo ao escritório na manhã se­guinte, mas nem mesmo a visão da bolsa de crocodilo, deixa­da bem em cima de sua mesa pela mulher da limpeza, conseguiu levantar-lhe o moral. Durante o dia, esqueceu os nomes de três peças de Sófocles (Oedipus Coloneus, Trachiniae e Philoctetes) e mais o número do telefone de seu dentista.

Foi assim que tudo começou. Hugh passou a freqüentar cada vez com mais assiduidade a biblioteca de consulta do terceiro andar, sentindo pavor de atravessar a sala, porque os colegas começavam a olhar para ele com curiosidade e espanto ao vê-lo passar, duas ou três vezes por hora. Em um dia, esqueceu os títulos das obras de Sardou, a área de São Domingos, os sintomas da silicose, a definição de síndroma e a época da mortificação de São Simeão Stylites.

Esperando que aquilo passasse, não disse palavra a ninguém — nem mesmo a Jean, no barzinho da Avenida Lexington.

O Sr. Gorsline começou a ficar mais e mais tempo por de­trás da cadeira de Hugh enquanto este fingia que trabalhava, escondendo seu ar desorientado, as bochechas caindo, soltas dos ossos, como cordas de uma forca, o cérebro parecendo um pedaço de carne congelada devorada por lobos. Certa vez, o Sr. Gorsline resmungou alguma coisa sobre hormônios e de outra feita, às 4h30, aconselhou Hugh a tirar a tarde de fol­ga. Há 18 anos Hugh trabalhava para o Sr. Gorsline e era a primeira vez que este o aconselhava a tirar uma tarde de fol­ga. Quando o Sr. Gorsline saiu da sala, Hugh ficou sentado à sua mesa, olhando cegamente para profundezas terríveis.

Certa manhã, alguns dias depois do aniversário de casamen­to, Hugh esqueceu o nome do seu jornal da manhã. Ficou dian­te da banca do jornaleiro, olhando a fila de Times e Tribunes, News e Mirrors, e todos lhe pareceram idênticos. Sabia que por 20 anos comprara o mesmo jornal pela manhã, mas na­quele momento não viu a menor pista, quer no formato, quer nas manchetes, que lhe indicasse qual era. Curvou-se e olhou mais detidamente os jornais. O presidente, anunciava uma manchete, falaria aquela noite. Quando se ergueu, Hugh com­preendeu que não se lembrava do nome do presidente ou se ele era republicano ou democrata. Por um momento, sentiu algo que só poderia definir como um profundo prazer. Mas sabia que aquilo era enganador, como o êxtase descrito por T.E. Lawrence na ocasião em que apanhara até quase mor­rer, na mão dos turcos.

Comprou um exemplar do Holiday e ficou olhando distraidamente as fotografias coloridas de cidades distantes, enquanto se dirigia ao escritório.

Naquela manhã, esqueceu a data em que John L. Sullivan ganhou o campeonato mundial de pesos-pesados e o nome do inventor do submarino. Teve ainda que consultar a bibliote­ca, porque não tinha certeza se Santander ficava no Chile ou na Espanha.

Estava sentado à sua mesa, naquela tarde, olhando para as mãos, havia uma hora que tinha a impressão de que camundongos caminhavam entre seus dedos, quando o genro entrou no escritório.

— Alô, Hugh, meu velho!

Desde a primeira noite em que o genro aparecera em sua casa, sempre o tratara daquele modo brincalhão.

Hugh levantou-se e disse “alô”. Parou em seguida e ficou olhando para o genro. Sabia que era seu genro. Sabia que aque­le era o marido de Clare. Mas não conseguia lembrar o nome do homem. Pela segunda vez, naquele dia, sentiu a excitante onda de prazer que o invadira ao lado da banca de jornais ao perceber que se havia esquecido do nome e do partido político do presidente dos Estados Unidos. Só que agora a alegria durava mais. Durou enquanto ele apertava a mão do genro e durante toda a viagem do elevador, em companhia dele, até mesmo no bar próximo, enquanto pagava três Martínis para o rapaz.

— Hugh, meu velho! — disse o genro, enquanto tomava o terceiro Martíni — vamos falar sobre o que interessa. Clare me disse que você deseja conversar comigo sobre determina­do problema. Vá dizendo logo, meu velho, e acabemos logo com isso. Que é que o preocupa?

Hugh olhou com firmeza o homem sentado em sua frente, do outro lado da mesa. Mas não conseguiu lembrar-se de um só problema em que pudesse estar envolvido.

— Nada — disse ele. — Não há nada de especial que dese­je falar com você.

O genro ficou a olhá-lo, furioso, enquanto ele pagava as bebidas, mas Hugh limitou-se a cantarolar baixinho, sorrin­do para a moça que os servia.

Na rua, onde ficaram parados por um momento, o genro pigarreou e disse:

— Escute, meu velho, se é sobre...

Mas Hugh apertou-lhe calorosamente a mão e afastou-se rapidamente, sentindo-se lépido e desembaraçado.

Mas, ao voltar ao escritório, olhando a mesa cheia de pa­péis, a sensação de bem-estar o deixou. Passara então o T e, olhando os pedaços de papel e o montão de livros sobre a me­sa, compreendeu que tinha esquecido considerável número de fatos referentes a Tácito e estava completamente perdido em relação a Taine. Havia ainda sobre a mesa um pedaço de pa­pel de carta com uma data e um começo de frase: “Meu ca­ro...’’

Ficou olhando para o papel, tentando lembrar-se para quem estava escrevendo. Foi só depois de cinco minutos que a me­mória lhe voltou. A carta seria para o filho, pois havia deci­dido, finalmente, enviar-lhe um cheque de 250 dólares, conforme o pedido feito. Procurou no bolso o talão de che­ques. Não o encontrou. Procurou cuidadosamente em todas as gavetas da escrivaninha, mas também não estava lá. Tre­mendo ligeiramente, porque era a primeira vez na vida que guardara um talão de cheques fora do lugar, resolveu telefo­nar ao banco e pedir que lhe mandassem pelo correio um no­vo talão. Pegou o telefone. Ficou olhando para ele, apalermado. Esquecera o número do telefone do banco. Re­colocou o fone no lugar e abriu a lista telefônica na letra B. Deteve-se. Engoliu em seco. Esquecera o nome do banco. Olhou a página dos bancos. Todos os nomes lhe pareciam va­gamente familiares, mas nenhum deles tinha para ele uma sig­nificação especial. Fechou o catálogo, levantou-se e foi para a janela. Olhou para fora. Viu dois pombos num beirai, pare­cendo sentir frio e, do outro lado da rua, de pé junto à janela do edifício em frente, um homem de pé, fumando um cigarro e olhando para baixo, como se pretendesse suicidar-se.

Hugh voltou à escrivaninha e sentou-se. Talvez fosse um aviso, pensou, o que acontecera com o talão de cheques. Tal­vez ele devesse adotar uma atitude mais severa com relação ao filho. Ele que pague pelos próprios erros, pelo menos uma vez. Pegou a caneta e resolveu escrever tudo isto, para Alabama.

“Querido...” escreveu. Ficou por longo tempo olhando a palavra. Em seguida, fechou a caneta com cuidado e recolocou-a no lugar. Não se lembrava mais do nome do filho.

Enfiou o paletó e saiu, embora fossem apenas 3h35. Foi an­dando até o museu, caminhando um tanto apressado, sentindo-se melhor a cada quadra vencida. Ao chegar ao museu, sentia-se como um homem a quem tivessem acabado de anunciar que ganhara uma aposta de 100 dólares, numa corrida de 14 por 1. Havia anos que Hugh desejava ver os egípcios, mas andara sempre ocupado demais.

Quando acabou a visita aos egípcios, sentia-se maravilho­samente bem. E assim continuou durante toda a viagem para casa, no metrô. Não fez mais nenhuma tentativa de comprar jornais. Não tinham o menor significado para ele, já que não conhecia nenhuma das pessoas mencionadas nos artigos. Era o mesmo que ler o Sind Observer, de Karachi, ou o El Mundo, de Sonora. O fato de não ter nas mãos um jornal tornou a viagem muito mais agradável. Passou o tempo observando as pessoas à sua volta, o que lhe parecia muito mais impor­tante, agora que não lia mais jornais.

Naturalmente, quando abriu a porta de casa a euforia o abandonou. Narcisse dera para ficar olhando muito para ele, quando se sentavam após o jantar e ele tinha que ter muito cuidado com a conversa. Não queria que a mulher descobris­se o que se passava com ele. Não queria que ela se preocupas­se e quisesse curá-lo. Passava todo o tempo ouvindo a vitrola, mas esquecia-se de mudar o disco. Era uma vitrola automáti­ca e repetiu o último disco, o Segundo Concerto para Piano de Saint-Saéns, por sete vezes até que Narcisse veio da cozi­nha e a desligou dizendo:

— Acabo ficando louca!

Foi deitar-se cedo. Ouviu a mulher chorar na cama ao seu lado. Era a terceira vez naquele mês. Faltavam ainda entre duas a cinco vezes. Disto ele se lembrava.

Na tarde seguinte, ocupava-se de Talleyrand, curvado em sua mesa, trabalhando devagar mas razoavelmente, quando sentiu que havia alguém por trás dele. Virou-se na cadeira. Lá estava um homem grisalho, de terno de tweed, olhando para ele.

— Sim? — falou Hugh. — Está procurando alguém?

Para sua surpresa, o homem ficou muito vermelho e saiu da sala batendo com a porta. Hugh deu de ombros, despreoçupadamente, e voltou a Talleyrand.

O elevador estava cheio quando saiu, no fim do dia, e no vestíbulo, lá embaixo, os empregados e as secretárias saíam apressadamente do edifício. Perto da porta estava uma moça muito bonita que sorriu para Hugh e acenou-lhe alegremente. Hugh parou um instante, lisonjeado, tentando sorrir também. Mas tinha marcado um encontro com Jean e, além do mais, estava velho demais para essas coisas. Com o rosto sério, saiu na onda das outras pessoas. Julgou ter ouvido uma espécie de grito que, curiosamente, lhe pareceu qualquer coisa como papai... Mas sabia que não era possível, por isso nem se voltou.

Dirigiu-se à Avenida Lexington, apreciando a brilhante tarde de inverno, seguindo na direção norte. Passou por dois ou três bares e diminuiu o passo ao passar por um terceiro. Retroce­deu um pouco e ficou olhando as frentes dos bares. Todos ti­nham muito cromado, luzes fluorescentes, todos pareciam iguais. Havia um outro no lado oposto da rua. Foi até lá, mas o bar pareceu-lhe idêntico aos outros. Entrou assim mesmo, mas Jean não estava lá. Pediu um uísque, encostado no bal­cão e perguntou ao homem que lhe serviu:

— Viu aí uma senhora sozinha, na última meia hora?

O homem levantou os olhos para o teto, pensando:

— Como é ela?

— Ela... — começou a dizer Hugh, mas logo parou. Foi tomando sua bebida. — Não tem importância — disse, colo­cando uma nota de um dólar sobre o balcão e saindo.

Dirigindo-se a pé para a estação do metrô, sentia-se melhor do que quando ganhara a corrida de 100 metros, com a idade de 12 anos, no dia da competição de fim de ano, na Escola Pública Brigham para meninos, em Salt Lake City, no dia 9 de junho de 1915.

A sensação persistiu, naturalmente, só até quando Narcisse pôs a sopa na mesa. A mulher tinha os olhos inchados e era evidente que estivera chorando durante a tarde, o que era cu­rioso, porque Narcisse jamais chorava quando estava só. Co­mendo seu jantar, sentindo Narcisse olhá-lo do outro lado da mesa, Hugh começou a sentir novamente os camundongos pas­seando entre os dedos. Terminado o jantar, a mulher falou:

— Você não me engana. Sei que há outra mulher. — E acres­centou: — Nunca pensei que isto acontecesse comigo!

Na hora em que foi deitar-se, Hugh sentia-se como um pas­sageiro de um navio cargueiro com pouca carga, durante uma tempestade em alto-mar.

Acordou cedo, sabendo que o sol brilhava lá fora. Ficou na cama, sentindo-se aquecido e confortável. Ouviu um ruí­do vindo da cama ao lado e olhou através do pequeno espaço que separava os dois leitos. Havia uma mulher na outra cama. Era uma mulher de meia-idade, com rolinhos nos cabe­los, roncava e Hugh estava certo de nunca a ter visto em toda a sua vida. Levantou-se sem fazer barulho, vestiu-se depressa e saiu para o dia de sol.

Sem refletir no que fazia, encaminhou-se para a estação do metrô. Viu as pessoas correndo para tomar o trem, sabendo que, provavelmente, deveria fazer o mesmo. Tinha a sensa­ção de que em um lugar qualquer, ao sul da cidade, em algum edifício alto de uma rua estreita, esperavam por ele. Mas sa­bia também que por mais que se esforçasse, jamais reconhe­ceria o edifício. Os edifícios hoje em dia, foi o pensamento que lhe ocorreu, se parecem muito uns com os outros.

Andou apressadamente, afastando-se da estação do metrô, na direção do rio.

O rio brilhava ao sol e havia gelo em suas margens. Um me­nino de uns 12 anos, usando um poncho quadriculado e um gorro de lã, estava sentado num banco, olhando o rio.

No chão gelado, a seus pés, estavam alguns livros escolares atados com uma faixa de couro.

Hugh sentou-se ao lado do menino.

— Bom-dia — falou amavelmente.

— Bom-dia — respondeu o garoto.

— Que é que está fazendo? — perguntou Hugh.

— Estou contando as embarcações — falou o menino. — Ontem contei 32. Sem contar com as barcas. Não conto as bar­cas de passageiros.

Hugh abanou a cabeça. Meteu as mãos nos bolsos e ficou olhando para o rio. Lá pelas 5 da tarde, ele e o menino tinham contado 43 embarcações, sem incluir as barcas. Não se lem­brava de ter tido um dia tão agradável em toda a sua vida.

 

O CASAMENTO DE UM AMIGO

É impossível assistirmos ao casamento de um amigo sem uma sensação de desastre ou pesar. Dependendo do lado em que estamos colocados, é provável que tenhamos desagradáveis re­servas a respeito da noiva ou do noivo, talvez mesmo de am­bos, e se tivermos bastante cinismo provavelmente nos lembraremos de outros casamentos a que assistimos e o fim que tiveram. Então, se somos homens e a noiva é bonita, há quase sempre um momento em que sentimos violento e ignó­bil sentimento de perda.

Entretanto, durante o casamento de Ronny Biddell, embo­ra a noiva fosse jovem e linda e olhasse para ele com o maior amor, nada senti além de satisfação e uma estranha sensação de alívio, talvez semelhante à do irmão de um toureiro que presenciou uma tourada particularmente perigosa, na qual o matador estivera na ponta dos chifres do touro, praticara mil loucuras durante toda a tarde para finalmente, exausto e co­berto de sangue, matar triunfantemente o animal.

Ronny não era meu irmão e, naturalmente, não estava co­berto de sangue. Lá estava ele, de pé no altar, vermelho, co­meçando a ficar careca, transpirando um pouco como sempre, forte e começando a ficar gorducho com sua casaca e suas calças listradas, esforçando-se por sorrir ligeiramente, como se nunca tivesse corrido perigo em toda a sua vida.

Foi por acaso que assisti ao casamento. Tinha chegado a Londres pretendendo vagamente procurar Ronny. Aliás, fi­zera mesmo uma ou duas tentativas para encontrá-lo, mas to­do mundo, na Inglaterra, parecia ter mudado de endereço várias vezes depois da guerra e eu não conseguira acompanhar a pista de meu amigo. A verdade é que estava também meio temeroso do que iria encontrar quando finalmente o desco­brisse e inventei desculpas para não procurá-lo com maior empenho.

Finalmente, um dia, num restaurante da Rua Jermyn, eu o vi do outro lado da sala, sentado com uma moça morena e muito jovem, extremamente bonita, que olhava para ele vi­drada, o que, em nossa época, num restaurante cheio, é sinal público de amor. Quinze minutos mais tarde, estava convida­do para o casamento.

Sentado, então, na igreja, entre as fisionomias estranhas e refinadas dos ingleses, prestando atenção à cerimônia e olhando para o crânio avermelhado e sólido de Ronny, para seus om­bros firmes, veio-me aquela curiosa sensação de alívio por ver que Ronny, entre todos os homens que eu conhecera durante a guerra e que mais tarde tinham sofrido, desaparecido ou se mostrado incapazes de viver de acordo com as esperanças com as quais lhes havíamos acenado, chegara inesperadamente àque­le brilhante e vitorioso momento.

Conhecera Ronny em Londres, em 1943. Ele era, então, te­nente do exército inglês, vagamente ligado ao mesmo projeto para o qual eu fora designado, uma dessas missões mistas de aliados que tinham muito pouco a ver com a vitória na guer­ra, mas que serviam, enquanto os exércitos esperavam a inva­são da Europa, como motivo de congraçamento e cooperação anglo-americana, quase sem despesas para os exércitos.

Ronny, à primeira vista, parecia o tipo de homem que fora privado, apenas por causa de sua juventude, de ser um coro­nel do exército da índia. Usava bigode, falava alto, tinha a postura de um soldado e bebia também como soldado. Era, de fato, um típico oficial inglês das colônias, pelo menos na nossa opinião de americanos, tanto que o chamávamos, o que muito o divertia, de “Comedor de Bifes”. A falha do quadro era que, debaixo daquele exterior forte e marcial, Ronny era tremendamente acanhado, especialmente com as mulheres. Ti­nha sido criado pelas tias, com tão grande rigidez, que o res­peito que sentia pelas mulheres, na idade de 28 anos, era levado a tais extremos que, na prática, se transformava em impotência.

Era de uma simplicidade infantil com os amigos quando fa­lava sobre si mesmo e eu já conhecia toda a sua história duas semanas depois de o ter conhecido. Tinha uma atração anor­mal pelas mulheres. A visão de um rosto bonito num vestíbulo de teatro o fazia enrubescer, como se todos os pensamentos e emoções que o invadiam à vista de uma moça bonita fossem algo de criminoso, visível não só a ela, que estava a seis me­tros de distância, como a todas as pessoas presentes. Certa vez, quando uma moça que convidei para jantar em nossa compa­nhia se despediu de Ronny beijando-o no rosto, ele me con­fessou, entre brincalhão e encabulado, que passara a noite inteira acordado.

Outra tendência desagradável de Ronny era respirar alto, como alguém que sofre de asma, quando conversava com uma moça e até mesmo quando conversava sobre uma moça. Em toda aquela temporada em Londres, quando para não ir mui­to longe direi que fora um período quase sem precedentes de camaradagem entre os sexos, nunca vi Ronny sair com uma namorada.

Isto não quer dizer que ele nunca se tenha envolvido com uma mulher. Durante dois anos, antes da guerra, havia mo­rado em Paris, com uma pequena renda, usando uma boina, segundo ele próprio dizia, e estudando o que vagamente cha­mava de Arte. Naquele tempo conhecera Virginie ou melhor, como ele próprio confessava, deixara-se envolver por ela num café, numa noite de chuva, quando pagara uma bebida.

— As francesas, meu caro amigo — dizia ele, baseando-se em sua experiência com Virginie — são mais o meu tipo. Di­retas. Nada de ficar constantemente fazendo charme com os homens. Diretas.

Acontece que Virginie não fora lá tão direta assim. Era jo­vem, tinha cabelos negros, olhos que matavam, segundo Ronny, e um quê especial na boca, tipicamente francês. Mo­rava com a família, pelo menos era o que dizia, uma gente tão exageradamente religiosa que Ronny nunca teve permis­são de pelo menos conhecê-la. Depois de inúmeros jantares, noites na Ópera e nos teatros onde Ronny a levava, Virginie despedia-se dele, às escondidas, na porta de casa.

Ronny, por sua vez, morava com uma família e tinha de passar pela sala de visitas para entrar no quarto, não haven­do a menor possibilidade de convidar a moça para ir lá. Esta­va realmente apaixonado e chegou a um ponto em que saíam três vezes por semana. Beijava-a na porta de casa e falava em casamento, quando começou a guerra.

Houve uma chorosa despedida em público, nos jardins de Luxemburgo, e Ronny voltou à Inglaterra, prometendo escrever diariamente e uma rápida vitória para as forças unidas dos dois países.

Saudável, cheio de boa vontade, mas sem nenhum talento militar, Ronny foi convocado como soldado raso e mandado para trás de uma mesa, num depósito de carros para conser­tar, perto de Salisbury. Alegando motivos patrióticos e um de­sejo imenso de enfrentar o inimigo, puxou todos os cordões que pôde para ser transferido para uma posição perigosa, até que alguns meses mais tarde se encontrou a caminho da Fran­ça. Nunca chegou a Paris. Ficou em Rennes, sentado atrás de outra mesa, novamente num depósito de carros para conser­to. Virginie não pôde ir encontrar-se com ele por causa da ob­jeção dos pais, mas Ronny conseguiu passar duas licenças em Paris, onde compensava a ignomínia de seu uniforme de sol­dado raso com pródigos jantares em tête-a-tête com Virginie, em elegantes restaurantes e com os ricos presentes comprados com seus minguados recursos, nas lojas mais caras da cidade. Casamento estava fora de cogitação, naquele período, mas a paixão de Ronny, aguçada por dois anos de separação, não mais admitia obstáculos e ele chegou ao ponto de esquecer as recomendações de suas tias e insistir com Virginie para encontrar-se com ele. Depois de razoável período de hesita­ção e levando em conta os perigos daqueles tempos e o pa­triotismo daqueles pobres rapazes que poderiam estar hoje aqui e amanhã sabe-Deus-onde, Virginie cedeu. Mas, depois de tão longa espera, de tantos suspiros insatisfeitos, de tantas con­versas sussurradas à noite, junto a postes de luz ou na soleira de portas escuras, não poderia ceder de uma só vez e num só momento. Concordou... mas para o futuro. Na próxima li­cença de Ronny, quando os dois estivessem preparados, o en­contro se realizaria... Ronny voltou para Rennes, borbulhante de ansiedade e, logo que teve coragem, pediu outra licença que lhe foi prometida para daí a três semanas. Chegou a fazer re­servas, através do correio, em um pequeno mas excelente ho­tel, de uma suíte de dois quartos com banheiro e chegou mesmo a encomendar o jantar e o vinho para a noite crucial.

Quatro anos depois, quando me contou tudo isto, Ronny se lembrava exatamente do menu e dos vinhos que encomen­dara — salmão escocês defumado, pato assado com pêssegos, salada e morangos silvestres. Os vinhos eram um Haut-Brion de 1928 e um Veuve Cliquot de 1919.

Meio hipocondríaco, apesar da aparência robusta, e temendo que aquele prolongado estado de tensão o levasse em má hora para a turma dos doentes e para um hospital, começou a fa­zer longos e rápidos passeios nos insípidos subúrbios de Ren­nes, visando à saúde, e deixou de beber qualquer coisa, até mesmo vinho, durante as três semanas. Quando o dia se apro­ximava, apesar de já não ser capaz de dormir mais que qua­tro ou cinco horas por noite, começou a acreditar que poderia chegar a Paris em condições aceitáveis.

Com o uniforme impecável, as obrigações religiosamente cumpridas e prontos os complicados arranjos com o banco, Ronny estava pronto a partir para Paris quando o exército ale­mão, depois de uma guerra estacionária e não belicosa na frente ocidental, invadiu os Países-Baixos. Todas as licenças foram canceladas, inclusive a de Ronny, que passou a rezar, mais fervorosamente que qualquer general no comando dos dois exércitos em luta, pela estabilização da frente. Enquanto mo­vimentos inesperados e contra-ataques se sucediam, sendo es­magados e descartados pelas forças alemãs, Ronny ia mergulhando cada vez mais profundamente na apatia. Quan­do o exército inglês, de acordo com a moderna doutrina de que é preciso salvar em primeiro lugar os funcionários buro­cráticos, meteu-o num caminhão e o enviou a um porto do sul da Bretanha de onde, sem nunca ter ouvido um tiro de ca­nhão, foi colocado num confortável navio de passageiros e le­vado para a Inglaterra, Ronny perdeu todo o interesse pela guerra e nem ao menos se preocupava em ouvir as notícias, transmitidas pelo rádio do navio, da desintegração dos exér­citos aliados ao Norte.

Depois disto, Ronny ficou sentado durante seis meses nu­ma colina de Sussex, servindo num tanque permanentemente estacionado num prado, já que seu motor tinha sido removi­do para uma unidade mais ativa. Nem a imobilidade do tan­que, nem o fato de a guarnição contar apenas com quatro bombas para o caso de os alemães surgirem na estrada que ficava mais embaixo conseguiram perturbar a tranqüila me­lancolia do rapaz. Como muitos filósofos levados aos mos­teiros por alguma decepção secreta, mas imensa, Ronny passou aquele período muito longe de preocupar-se com assuntos tem­porais tais como a passagem de exércitos, mortes em comba­tes ou o colapso de governos. Ficava sentado no prado, ao lado de sua inútil arma, entre perfumadas flores de verão, si­lencioso, sorrindo vagamente para os companheiros, relendo as curtas cartas que recebera de Virginie antes da queda de Paris e examinando sem cessar o comunicado enviado ao ge­rente do hotel, com o menu do jantar comemorativo, do qual guardara uma cópia.

Quando a América entrou na guerra e começou a parecer que no futuro os exércitos ingleses voltariam ao continente, Ronny candidatou-se para a Unidade de Treinamento de Ca­detes, na compreensível suposição de que seria mais alegre­mente recebido por Virginie se usasse uniforme de oficial. Estudou com afinco e obteve uma honrosa classificação em sua classe, distinguindo-se de seus colegas oficiais apenas por ter assinado uma petição que exigia uma Segunda Frente, e que circulou naquela época entre os comunistas, embora vies­se de uma família inabalavelmente fiel ao partido tory e suas idéias políticas fossem consideradas medievais até mesmo pe­lo Duque de Wellington.

Quando conheci Ronny, em Londres, era entusiasta incon­dicional dos americanos, principalmente porque com a che­gada de novas tropas americanas à Inglaterra, a libertação de Paris tornava-se, a seus olhos, cada vez mais certa. Admira­va, acima de tudo, a comunicação dos americanos, especial­mente seu fácil relacionamento com o sexo oposto, embora considerasse muito acima de suas forças imitá-los. Era um des­ses homens infelizes para os quais a idéia de amor e mesmo de sexo está irrevogavelmente ligada a uma mulher. O fato de estar separado desta mulher por quatro anos, pelo Canal da Mancha e por 60 divisões do exército alemão não alterava absolutamente sua atitude, servia apenas para reforçá-la.

Quando se tornou certo que a invasão estava iminente, Ronny apresentou-se como voluntário para uma posição pe­rigosa, obtendo, por isso, uma promoção e o privilégio de de­sembarcar na praia logo no primeiro dia. Daí por diante transformou-se na imagem do perfeito soldado, fazendo seus os interesses de sua pátria, oferecendo-se por diversas vezes para integrar patrulhas de reconhecimento, ligação e ataque, embora a missão da unidade a que estava ligado não fosse pri­mordialmente de ataque. Mas creio que se pode dizer com jus­tiça que tudo que pôde ser feito por um humilde tenente de um posto obscuro para romper as linhas de combate e recha­çar o exército alemão para além do Reno foi feito por Ronny.

No dia da queda de Paris, Ronny entrou na cidade entre as aclamações do povo com os primeiros contingentes aliados. O motorista do pequeno caminhão no qual Ronny fizera sua entrada na capital era um cabo de 40 anos da idade chamado Watkins que, embora fosse pai de cinco filhos, era um român­tico incurável. Seguindo a orientação de Ronny, guiou o caminhão ao longo de ruas suspeitas, às vezes perigosamente de­sertas, outras vezes repletas de parisienses que comemoravam a libertação, até um endereço que ficava por trás da Estação de St.-Lazare, onde o rapaz fora buscar Virginie pela última vez.

Existe um tipo de homem que depois de uma busca seme­lhante encontraria a dama à sua espera, perfumada e apro­priadamente vestida, em sua sala de estar, pronta para ser beijada. Ronny não era desse tipo. Virginie não estava pela vizinhança e ninguém lá se lembrava dela. No apartamento dela morava um casal de Caen que, aproveitando-se do fato de Ronny falar francês, queixou-se amargamente dos bombar­deios que tinham sofrido por parte da Real Força Aérea.

Aquela noite, em meio ao delírio que marcou as primeiras 24 horas de liberdade da cidade, Ronny perambulou distraidamente, com um sorriso fixo nos lábios, porque era um ho­mem bom demais para empanar com sua tristeza a alegria dos amigos, mas enfrentando a trágica convicção de que o amor acabara para ele de uma vez por todas, antes mesmo de ter começado realmente.

Nossa unidade, como se exaurida pela tomada de Paris, per­maneceu na cidade, sob ordens ambíguas, aboletada num hotelzinho da Rue de Rivoli, enquanto as linhas de batalha se afastavam cada vez mais. Ronny ficou num quarto ao lado do meu e, noite após noite, eu ouvia seus passos firmes de mi­litar andando de um lado para outro, como uma sentinela decidindo-se a procurar o coronel e confessar-lhe que tinha traído a honra do regimento.

Então o milagre aconteceu. Certa tarde, andando no cami­nhão ao longo do Boulevard des Italiens, três ou quatro dias após nossa chegada a Paris, Ronny viu Virginie. Estava de bi­cicleta, afastando-se rapidamente na pista oposta. Seus cabe­los eram agora louros, mas Ronny, que estivera examinando cada rosto feminino da cidade com a persistência nervosa de uma antena de radar, não se deixaria enganar. Fez sinal a Wat­kins, que dirigia o caminhão, mandando-o fazer a volta. Wat­kins, por aquela época já contagiado pela paixão de Ronny, ziguezagueou loucamente entre a massa de bicicletas, jipes e pedestres, indo finalmente alcançar Virginie na esquina da Rua Lafitte. Ronny pulou do caminhão ainda em movimento, mas conseguiu manter o equilíbrio, gritando o nome de Virginie como um desesperado e acabando por segurar o guidão da bi­cicleta. Ela o reconheceu quase imediatamente e os dois se bei­jaram no meio da rua, à vista de Watkins que sorria satisfeito e de diversas pessoas que os olhavam interessadas. Como Ronny me confessou mais tarde, naquele momento, de pé no meio da rua movimentada, bloqueando o trânsito, com o som de buzinas nos ouvidos e apertando Virginie nos braços, a guer­ra atingira, para ele, seu ponto culminante.

Acontece que Virginie tinha um compromisso inadiável, mas condescendeu em beber alguma coisa, rapidamente, num ca­fé próximo e em ter com Ronny uma conversa que ele não foi capaz de repetir-me coerentemente, uma hora depois. Marca­ram encontro para as 6 horas, num bar próximo ao nosso ho­tel e Ronny, para quem amor era sinônimo de dar, passou o resto da tarde procurando obter, nas mais diversas fontes, pre­sentes para Virginie. Comprou uma echarpe vermelha, embo­ra o preço fosse exorbitante; trocou um binóculo capturado aos alemães por cinco metros de seda de pára-quedas; conse­guiu de um amigo, por preço de ocasião, três latas de sardi­nhas que o outro vinha escondendo há dois meses na mochila; ordenou a Watkins, mais do que feliz em obedecer, que ex­plorasse sem piedade suas ligações com dois sargentos que cui­davam do rancho e Watkins surgiu com uma caixa de rações e uma lata de geléia de laranja, façanha de não poucos méri­tos numa cidade em que todos, soldados e civis, viviam com os alimentos severamente racionados.

Ronny insistiu comigo para conhecer a moça, embora eu tivesse tentado convencê-lo de que no primeiro dia, antes de ter sido absorvido o impacto de tantos anos perdidos, talvez fosse melhor para ele ficar a sós com ela. Mas Ronny, cuja idéia de felicidade envolvia automaticamente a de participa­ção e que estava compreensivelmente nervoso pensando nos primeiros momentos delicados que passaria com Virginie, insistiu em que eu fosse pelo menos conhecê-la, mesmo que me retirasse alguns minutos depois.

Quando cheguei ao bar, pouco depois das 6, Ronny estava sentado a um canto, muito tenso, transpirando e sozinho, cer­cado de sua pilha de presentes e olhando ansiosamente o relógio.

— Ela não veio — falou, logo que me sentei. — Sou um idiota, deveria ter dito que ia buscá-la. Ela decerto não vai encontrar o bar.

— Ela mora a vida inteira em Paris, não mora? Claro que vai descobrir o bar.

— Não sei... — falou Ronny, sem tirar os olhos da porta. — E há também a questão da hora. Eu disse 6 horas, mas não me lembro se hora local ou hora do exército.

Naquela época, por causa do esquema de economia que os alemães tinham introduzido, para aproveitar a luz do dia e economizar combustível, a França estava sempre a uma hora adiante de nós.

— Talvez ela tenha estado aqui... — disse Ronny, muito perturbado — esperou um pouco, não me viu e acabou desis­tindo e voltando para casa. E, como idiota que sou, não per­guntei a ela qual era seu endereço.

— Perguntou ao rapaz do bar se a viu? — falei.

— Ele diz que não viu pessoa alguma — respondeu Ronny. — Mas é possível que ela tenha olhado e resolvido esperar lá fora. Ela é tímida e talvez não quisesse ficar aqui sentada, no meio de tantos soldados e...

Ronny interrompeu-se e levantou-se, com um sorriso trêmulo.

— Virginie! — disse ele.

Cumprimentou cerimoniosamente a moça, com um aperto de mão, apresentou-a a mim e segurou a cadeira para ela, en­quanto se sentava.

— Estou com uma pressa imensa, Ronneee — disse a mo­ça. Usava uma saia rodada e sentou-se, fazendo-a girar. Era bastante bonita, embora os cabelos louros fossem uma catás­trofe, e seu olhar era vivo e alerta, como de um jogador que procurava avaliar a força do adversário antes de fazer sua apos­ta. Era uma garota baixa, bem cuidada, de ar inteligente, tí­pica moça de cidade grande e era difícil imaginá-la despedindo-se de Ronny com tanto recato e tamanha resistên­cia, quatro anos antes.

— Será que têm uísque por aqui? — perguntou.

— Claro que têm — respondeu Ronny, no tom de um ho­mem preparado para destilar a bebida ali mesmo e das pró­prias veias, se necessário. Chamou o garçom e pediu uísque começando a colocar na mesa os vários presentes que levara, com ar encabulado, mas radiante.

— Trouxe umas coisas para você. Uma echarpe e esta seda que...

— Ah! — exclamou Virginie. — Rações americanas...— falou, alisando o papelão. — Tão bem planejadas...

A expressão de seu rosto mudou, como se o jogador que havia nela acabasse de decidir que o adversário não era páreo duro. Sorriu carinhosamente, tocando a mão de Ronny.

— O mesmo Ronneee de sempre — disse ela. — Tão aten­cioso... — Perguntou em seguida, com um jeitinho gracioso: — Mas como é que vou levar tudo isto para casa? Tenho ape­nas uma bicicleta.

— Estou com um caminhão aí — falou Ronny, mais feliz ainda por ter oportunidade de prestar novos serviços. — Le­vo você até a casa.

— Há lugar para a bicicleta também?

— É claro!

— Ótimo — disse a moça. — Neste caso, posso ficar uns 15 minutos a mais.

Virginie sorriu suavemente para Ronny e eu não conseguia mesmo ver nos olhos dela o olhar sedutor que meu amigo des­crevera, nem encontrar aquele quê tipicamente francês na sua boca.

— Estou tão ansiosa para saber o que passou nesta guerra horrível e... — me lançou um olhar significativo — há uma ou duas coisas que desejo explicar quando estivermos sós.

Levantei-me.

— Bem, tenho que ir jantar — falei.

— Vocês, americanos... — disse Virginie, com um sorriso encantador. — São tão gentis.

Ronny estava radiante, cheio de orgulho por ver que Virgi­nie tinha gostado de seu amigo. Deixei os dois, Ronny resfolegando e falando num sussurro íntimo, Virginie sentada, com os olhos modestamente baixos, acariciando com os dedos, de vez em quando, a caixa de ração integrada.

Mais tarde, naquela noite, estava em meu quarto, quando Ronny bateu na porta e entrou. Estava muito nervoso, era claro que tinha bebido demais e não conseguia ficar quieto. Anda­va de um lado para o outro com passo incerto, sobre o tapete estragado estendido ao lado da cama.

— Que achou dela? — perguntou.

— Eu...

— Não é maravilhosa?

— Maravilhosa — concordei.

— As francesas têm alguma coisa especial... acho que es­tou desinteressado para sempre das moças inglesas.

— Bem... — falei. — Talvez você...

— Você pode me arranjar um pacote de cigarros? — per­guntou.

— Bem... — disse eu — é um bocado difícil...

— Eu pago, naturalmente — Ronny apressou-se a dizer.

— Para que quer os cigarros? Virginie fuma? — perguntei.

— Não — falou Ronny. — É para o homem com quem ela está vivendo.

— Ah! — falei, fechando o livro.

— Ele fuma como uma chaminé — explicou Ronny — e só gosta de cigarros americanos.

— Compreendo.

Ronny fez mais duas viagens de um lado para o outro do tapete.

— Por isso é que ela estava com tamanha pressa. O homem é terrivelmente ciumento. Bem, é que depois de quatro anos, com a guerra e tudo mais, ela não sabia se eu estava vivo ou morto...

— Naturalmente — falei.

— Bem, é que não teria cabimento eu mostrar um ciúme infantil, não acha?

— Acho que sim.

— Ele é um desses tipos sombrios, geniosos. Quase se des­controlou quando me viu...

Ronny sorriu de leve e compreendi que junto com a decep­ção de descobrir que Virginie se entregara a outro em sua au­sência havia certa satisfação por ter encontrado, finalmente, alguém que tivesse ciúmes dele.

— O homem fez parte da Resistência ou coisa parecida. E agora que tudo acabou, passa os dias sentado no apartamen­to, fumando como uma chaminé e fiscalizando todos os pas­sos de Virginie. Não se pode censurá-lo, tratando-se de uma moça tão atraente como Virginie, não acha?

— Bem, eu...

— Mas ela não o ama — falou Ronny, respirando com di­ficuldade. — Foi o que ela me disse no caminhão, a caminho de casa. Moram nos confins de Montmartre e a pobre moça tem que pedalar para cima e para baixo, seja qual for o tem­po. Ela o acolheu quando estava sendo perseguido pela polí­cia. Simples patriotismo. Depois, uma coisa leva a outra... Estão vivendo juntos há três anos, mas ela não é feliz. Pro­meti os cigarros para amanhã. Acha que pode arranjá-los?

— Vou fazer o possível. Amanhã de manhã.

— Puxa vida! — disse Ronny — Depois de quatro anos! Vê-la no Boulevard des Italiens, pedalando uma bicicleta! Abri­ram a lata de geléia e era patético ver como comiam às colheradas. Vou encontrar-me com ela amanhã à tarde. Eu não faria isso se fossem casados ou se ela ao menos gostasse dele. Bem, é que não será uma violação de princípios, nem eu estou ti­rando vantagens. Eu me declarei muito antes de ele ter apare­cido em cena, não é verdade? Afinal de contas, se minha licença não tivesse sido cancelada quando os alemães invadiram a Bélgica...

Ronny permitiu-se um ligeiro suspiro, lembrando-se dos in­convenientes da invasão. Prosseguiu:

— E cá estou eu, encontrando-me com ela nos bares! Não posso ir à casa deles, porque o homem fica lá sentado o dia inteiro, fumando sem parar, vigiando todos os passos dela. Que azar dos infernos, não é? — Sorriu, desanimado, encaminhando-se para a porta. — Depois de quatro anos! Um homem que fica em casa o dia inteiro...

Saiu e, muito tempo depois de eu ter apagado a luz, ouvi-o andando de um lado para o outro no seu quarto, as tábuas rangendo tristemente durante as longas horas daquela noite de amor e desencanto.

Durante os dias que se seguiram, Ronny foi de pouca utili­dade para o exército inglês. Sempre que Virginie conseguia rou­bar 15 minutos do tempo dedicado ao amante, Ronny dava um jeito de estar disponível, encontrando-se com ela em ba­res, na frente de monumentos, nos halls de hotéis e em todas as pontes sobre o Sena que Virginie tinha de atravessar em suas várias caminhadas através de Paris. Houve conversas sérias murmuradas muitas vezes enquanto a moça segurava o guidão da bicicleta e descia depressa uma rua, com Ronny a seu lado, os dois seguidos lentamente por Watkins e o caminhão. Ronny voltava desses torturantes encontros muito verme­lho, respiração ofegante, com um brilho constante no olhar, semelhante com o que imaginamos deve ter havido nos olhos do Capitão Ahab quando, finalmente, teve certeza de que es­tava se aproximando da baleia branca.

Nos intervalos do tempo em que passava correndo de um ponto a outro da cidade para encontrar-se com Virginie, Ronny empregava suas energias em arrecadar tesouros do Comissa­riado Aliado, tesouros que entregava fielmente, de caminhão, no apartamento de Virginie e seu amante. Os três tinham cur­tas e amáveis conversas, contava Ronny, sobre o que tinha si­do a vida em Paris sob o domínio dos alemães e sobre o modo desajeitado de os americanos fazerem a guerra. O amante de Virginie condensava apenas nos cigarros toda a sua admira­ção pelos americanos. O apartamento, que era pequeno, logo deveria ter tomado aparência de um pequeno depósito auxi­liar do Departamento de Provisões dos dois exércitos, com caixas de carne enlatada, pacotes de rações, latas de café e chocolate em pó, garrafas de uísque, pilhas de pacotes de ci­garros e, de vez em quando, até costeletas de porco e pedaços de carne fresca colocados por todos os lados, prova substan­cial do amor de Ronny. Não tenho a menor dúvida de que se Ronny, até então tímido e obediente de todas as regras, fosse investigado pelo Departamento de Investigações Criminais, te­ria boa possibilidade de pegar 10 anos de cadeia.

Mas nem esta nem outra qualquer consideração o teriam influenciado naqueles dias. Havia uma constante procissão de sargento carregando malas de campanha, entrando e saindo de nosso hotel, e Watkins tinha que estar sempre de pronti­dão, a fim de levar Ronny ao apartamento de Virginie, cada vez que fazia nova aquisição.

Sei que Ronny vivia sonhando com o momento em que che­garia sem se anunciar no apartamento de Virginie (onde não havia telefone) com a maleta cheia de cigarros ou barras de chocolate, para encontrar a moça sozinha, finalmente, depois de seis anos. Mas isto nunca aconteceu. Muitas vezes encon­trava apenas o amante, que se chamava Emile e que chegava, por vezes, a oferecer-lhe uma pequena dose de uísque que ele próprio levara para o casal. Mas Virginie, nunca!

Como o jogador que está perdido e continua a dobrar ce­gamente as apostas para se recuperar, Ronny continuava le­vando seus presentes para o apartamento. Era inteiramente inocente a respeito do que estava fazendo.

— Vou dizer-lhe uma coisa — confiou-me certo dia. — Este Emile não gosta realmente de mim. Em uma época normal, proibiria Virginie de encontrar-se comigo. Mas na situação atual, com os cigarros, a carne enlatada e o uísque, ele não sabe o que fazer. Compreenda... — prosseguiu Ronny — eu não faria isto se ele tratasse Virginie bem. Maltrata-a de ma­neira horrível e não tenho remorsos.

— Mas você não fez nada para ter remorsos — observei.

— Tudo tem seu tempo... — disse Ronny, cheio de con­fiança. — Tudo tem seu tempo...

Finalmente, no dia seguinte, que era um sábado, a esperança dele foi justificada. Estava lavando-me no quarto, preparando-me para o jantar, quando Ronny entrou. Eu sa­bia que ele marcara encontro com Virginie em frente à Ópera e que ela lhe havia dito que só podia ficar um quarto de hora. Em geral, ao voltar de seus encontros com Virginie, vinha ex­cepcionalmente corado e radiante, falando com animação, sem terminar as frases, rindo sem razão aparente e movimentando! se, inquieto, com excesso de energia nervosa. Naquela noite entretanto, estava pálido e abatido, falando com curiosa combinação de languidez e forte emoção reprimida.

— Bem... — disse ele. — Amanhã é o dia.

— De quê? — perguntei, espantado.

— Acabo de vê-la. — Devo ir amanhã ao apartamento, às 3hl5. É domingo e Emile vai assistir ao campeonato de boxe. Está interessado num peso-médio. É o único momento da se­mana em que a deixa só por mais de uma hora. Ela espera visitas às 4h30, entretanto. É um tempo um tanto curto. Uma hora e 15 minutos...

Sorriu languidamente e, naquele momento, não se parecia, absolutamente, com um coronel das índias. Disse ainda:

— Depois de seis anos... Mas a gente tem que começar, não acha?

— É verdade — respondi.

— É quase incrível, não é?

— Quase — concordei.

— Minhas tias ficariam escandalizadas.

— Ficariam? — falei, evitando dar opinião.

— Há sujeitos que fazem coisas como esta todos os dias de sua vida, não é?

— É o que ouço dizer.

— Espantoso — falou Ronny, sacudindo a cabeça. — Que horas são? — perguntou, ansioso.

Olhei o relógio.

— Dez para as sete — respondi.

Ronny olhou, preocupado, para o relógio.

— No meu faltavam 13. Acha que meu relógio está atrasado?

Ronny ficou escutando atentamente o tique-taque do relógio.

— É preciso estar com a hora certa, amanhã — observou. — Disse a Watkins que viesse encontrar-se comigo na porta do hotel às 3 em ponto. Ele está mais excitado do que eu... — falou, sorrindo, meio sem jeito, da lealdade de Watkins. Em seguida, perguntou, corando: — Escute, meu velho... Há alguma coisa que eu precise saber?

— O quê?

— Bem... alguma coisa em particular.

Hesitei, mas acabei decidindo que não havia mais tempo.

— Não — respondi.

— É espantoso... — disse Ronny.

Ficamos sentados em silêncio, olhando um para o outro.

— Curioso — disse ainda Ronny.

— O que é curioso?

— No próximo janeiro — respondeu ele — vou fazer 29 anos.

Levantei-me e pus a gravata.

— Vou jantar — falei. — Quer ir comigo?

— Hoje não, meu velho. Não creio que seja capaz de co­mer, esta noite.

Concordei, compreensivo, fingindo ser mais sensível do que sou, e saí para jantar. Ronny foi para o quarto escrever a car­ta semanal para as tias.

Na manhã seguinte eu estava de plantão e o homem que de­veria me substituir só apareceu bem depois de 2 horas. Almo­cei numa cantina de oficiais em trânsito e, por ser um dia quente, de sol, caminhei devagar para o hotel, parando mui­tas vezes para apreciar o brilhante sol de setembro caindo so­bre os velhos edifícios, nas ruas tranqüilas. Estava bem satisfeito por não chegar a tempo de ver Ronny antes de sua saída para a aventura. Tinha a impressão de que era impossí­vel deixar de dizer alguma coisa inconveniente, num momen­to como aquele e não queria complicar, por uma palavra impensada ou um sorriso involuntário, o clímax da hora.

Cheguei ao hotel uns 20 minutos depois das 3 e já ia entrando quando Ronny despencava, porta afora. Transpirava profusamente, com seu uniforme de combate muito bem pas­sado, tinha o rosto vermelho, os olhos injetados e a boca aber­ta, como se tivesse estado gritando. Segurou-me pelos dois braços e as mãos, desesperadamente fortes, amassaram meu blusão.

— Onde está Watkins? — berrou, embora estivesse com o rosto a poucos centímetros do meu.

— O quê? — perguntei, sem entender.

— Você viu Watkins? — gritou Ronny ainda mais alto, sacudindo-me. — Vou matar aquele filho da puta!

— O que aconteceu, Ronny?

— Você tem um jipe? — esbravejou ele. — Vou mandar submetê-lo a uma Corte Marcial.

— Você sabe que não tenho nenhum jipe, Ronny — falei.

Ronny largou meus braços e pulou no meio da rua, onde ficou olhando em todas as direções, girando sobre os calca­nhares, agitando os braços.

— Nada de transporte! — exclamou. — Nada deste maldi­to transporte! — Olhou o relógio. — Três horas e 25 minu­tos... falou, quase chorando. — Vou transferir aquele porco para a infantaria!

Voltou para a calçada e começou a caminhar, quase cor­rendo de um lado para outro.

— Eu deveria estar lá há 10 minutos já!

— Telefonou para a garagem? — perguntei, querendo ajudar.

— Ele esteve lá toda a manhã — gritou Ronny — lavando o maldito caminhão. Depois saiu, há uma hora. Decerto está passeando pelo Bois, com seus amigos do mercado negro!

Aquilo era uma injustiça, já que o relacionamento de Watkins com o mercado negro, no momento bastante intenso, ti­nha começado unicamente para servir a Ronny, mas não julguei o momento oportuno para justificar o motorista ausente.

Ronny tornou a olhar o relógio e esbravejou:

— Há um ano e meio que ele trabalha comigo e nunca se atrasou um minuto. E escolhe justamente hoje para começar! Não conhece alguém que tenha um jipe?

— Bem... — falei com ar duvidoso — talvez possa conse­guir um para você, em mais ou menos uma hora...

— Mais ou menos uma hora!

O riso de Ronny era horrível e ele continuou:

— Ela espera visitas às 4h30! Mais ou menos uma hora... Olhou, desesperado, para as fachadas impassíveis dos edi­fícios e para a rua deserta.

— Que cidade! Não tem metrô, nem ônibus, nem táxi! Meu Deus! Você não conhece alguém que tenha uma bicicleta?

— Acho que não, Ronny... — falei. — Bem, gostaria de ajudar...

— Gostaria de ajudar! — repetiu ele com ironia, voltando-se contra mim. — Não acredito em você. Não acredito mesmo!

— Ronny... — disse eu, em tom de reprovação. Desde que o conhecia, era a primeira palavra inamistosa que me dirigia.

— Ninguém se importa nem um pouco. Você não me en­gana! — gritou. O suor escorria pelo seu rosto, agora de um vermelho alarmante. — Para o diabo com vocês todos! Mui­to bem, muito bem... — ia gritando de modo incoerente, agi­tando os braços. — Pois vou a pé!

— Vai levar, no mínimo, meia hora — observei.

— Quarenta e cinco minutos — disse ele. — Que diferença faz? Se este desgraçado deste motorista aparecer, diga-lhe que vá atrás de mim e me procure pelo caminho. Ele conhece o caminho...

— Está certo, Ronny. Felicidades.

Lançou-me um olhar sombrio, respirando com dificulda­de. Disse uma palavra obscena e começou a correr. Fiquei a olhá-lo, correndo com dificuldade pela rua cheia de sol, dei­xando para trás as janelas fechadas das casas, pesadão em seu uniforme caqui, seu vulto ficando cada vez menor e mais dis­tante, na direção de Montmartre. Fez a volta na esquina e a rua ficou tranqüila, perdida no silêncio da ensolarada tarde de domingo.

De certa forma, eu me sentia culpado, como se eu pudesse ter feito alguma coisa por Ronny e deixado de fazer por insensibilidade. Fiquei em frente ao hotel, fumando e esperan­do que Watkins aparecesse com o caminhão. Finalmente, quan­do faltavam 10 minutos para as 4, vi-o dobrar a esquina e entrar na rua. O caminhão estava limpo e polido, tanto quanto se podia esperar de um veículo que fizera toda a campanha, a partir do desembarque, até Paris. Watkins também, como pude observar quando ele se aproximou, tivera grande trabalho com sua pessoa. Barbeara-se com capricho e a pele estava verme­lha, brilhante e quase em carne viva. O cabelo estava emplastrado debaixo do boné e tinha no rosto um sorriso maroto, bondoso e feliz, quando estacionou o caminhão em frente do hotel. Ao seu lado, um grande ramo de flores.

Saltou do carro e fez uma elegante continência, sempre sorrindo.

— Estou um pouco adiantado, mas pensei que num dia co­mo este o tenente estaria à minha espera na calçada.

— Por onde, diabos, você andou, Watkins? — perguntei, irritado, por causa de Ronny e por ver o homem tão estupidamente satisfeito consigo.

— Onde estive? — perguntou Watkins, espantado. — On­de estive?

— O Tenente ligou para a garagem há quase uma hora e disseram que você já tinha saído.

— Bem... — falou Watkins — pensei que o tenente gosta­ria de levar umas flores para a moça e andei por aí, procuran­do. Cravos... — falou, mostrando o banco. — O senhor ficaria espantado se soubesse quanto me pediram por eles...

— Watkins! Você está com uma hora de atraso!

— O quê? — perguntou Watkins, boquiaberto, olhando o relógio. — O tenente disse exatamente 3 horas e ainda che­guei um pouco mais cedo. Não são ainda 3 horas.

— Faltam 10 para as 4, Watkins! — disse eu.

— Como?

Watkins fechou os olhos, como se não suportasse olhar pa­ra mim.

— Faltam 10 para as 4 — repeti. — Não lhe disseram que ontem, à meia-noite, todos os relógios seriam adiantados uma hora, para coincidir com o horário dos franceses?

— Oh! — disse Watkins num sussurro. — Oh! Pelo amor de Deus, pelo amor de Deus!

O rosto dele estava inexpressivo, como o de alguém sob o efeito de anestesia.

— Ouvi falar sobre isto durante a semana, mas não durmo no alojamento, não estava de serviço hoje de manhã e nin­guém falou no assunto, na garagem. — Oh, minha mãe! Te­nha pena de mim... Onde está o tenente?

— Neste momento — respondi — deve estar passando pe­lo Sacré Coeur, numa corrida louca.

Watkins voltou-se como um lutador que tivesse sido atingi­do e, sem muito rumo, procurasse apoiar-se na corda. Apoiou-se na porta do caminhão, com a testa comprimida contra o metal. Quando levantou a cabeça, vi lágrimas em seus olhos. Ficou ali de pé, com as pernas arqueadas, o corpo curvado, com seu uniforme bem passado e o rosto desfeito de pesar, pensando em Ronny subindo a correr, desesperado, pela coli­na de Montmartre.

— Que é que posso fazer? Que diabo posso eu fazer?

— Bem — falei — pelo menos você poderá ir esperá-lo, para que ele não tenha de voltar a pé para casa.

Watkins balançou a cabeça, num gesto mecânico. Depois entrou na cabina do caminhão, jogando os cravos no chão e dando partida, sem olhar para a esquerda ou para a direita.

Ronny estava de volta ao hotel às 6 horas. Ouvi o barulho do caminhão parando na porta e olhei pela janela, vendo-o descer vagarosamente, sem dar uma palavra a Watkins, dirigindo-se, com ar cansado, para a porta do hotel. Dirigiu-se diretamente para meu quarto e entrou sem bater, afundando-se numa poltrona, sem tirar o quepe. A gola tinha manchas escuras de suor e seus olhos estavam fundos, como se não dor­misse por várias semanas. Servi uma dose de uísque e colo­quei o copo na mão dele. Nem sequer olhou para mim, limitando-se a ficar lá sentado, um vulto redondo, desanima­do, amarrotado, olhando sem ver a parede manchada acima da cama.

— Você soube... — disse finalmente.

— Sim.

— O exército — falou com voz inexpressiva. — Sempre que uma coisa boa está prestes a nos acontecer, o exército faz al­guma coisa para atrapalhar.

Ficou sentado na poltrona, curvado, pensando na declara­ção de guerra em 1939 e no colapso da Bélgica, menos de um ano antes. Sacudiu a cabeça e tomou um grande gole de uísque.

— Horário francês... — disse, sem maiores explicações.

Pus mais uísque no copo dele.

— Eu tenho de dar o fora — falou Ronny. — Estou nesta guerra há muito tempo.

— Que aconteceu? — perguntei, pensando que talvez fos­se bom para ele falar sobre o caso.

— Nada — respondeu com uma risadinha curta. — Che­guei lá cinco minutos depois das 4. Watkins me pegou a uma quadra de casa. Viu as flores?

— Vi — respondi.

— Foi atencioso da parte dele, não?

— É verdade.

— Ela estava preparando canapés para as visitas.. Sardinhas. Tinha as mãos todas cheias de óleo.

— Estava zangada?

— Não exatamente — respondeu Ronny. — Quando con­tei a ela o que tinha acontecido, começou a rir. Pensei que ela fosse sufocar, de tanto rir. Nunca tinha ouvido uma mulher rir daquele jeito, em toda a minha vida.

— Bem... — falei, tentando confortá-lo. — Fica para ou­tra vez.

Ronny abanou a cabeça.

— Não. Quando, finalmente ela parou de rir, beijou-me na testa e falou: “É o destino, chéri, ficaremos sendo bons amigos”.

Não havia nada a dizer depois daquilo. Servi-me também de um pouco de uísque. Ficamos sentados, em silêncio.

— Ela me pediu que a ajudasse com os canapés. Abri duas latas de carne e cortei o dedo... — falou, mostrando a mão direita, onde vi um corte feio, irregular, cheio de sangue seco.

— O único sangue que perdi em toda esta maldita guerra

— disse ele. — Os amigos dela chegaram um pouco antes da hora marcada. As 4hl5. Devoraram tudo. Tive que abrir mais três latas de carne. Ficaram o tempo todo queixando-se do exér­cito americano. Emile também chegou mais cedo. Às 4h35. — Ronny estava tão preocupado com a hora certa como um maquinista de estrada de ferro. — O peso-médio dele venceu — falou amargamente, como se aquilo fosse demais para su­portar. — Um nocaute no primeiro round da luta. Bebeu três copos de uísque, para comemorar, e batia sem cessar em mi­nhas costas, chamando-me de mon petit anglais e mostrando-me como fora a luta. Três esquerdas, mon petit anglais, co­mo um raio, no nariz, e um direto, como uma bomba, bem no meio do queixo. O outro ficou 10 minutos sem se levantar. Ele estava tão satisfeito, o Emile, que consentiu que Virginie se despedisse de mim, sozinha, no corredor.

Ronny sorriu tristemente. Continuou falando:

— Sujou minha farda toda de óleo de sardinha. E me deu algumas explicações. Disse que estava com a consciência pe­sada, que chegara o momento de falar francamente. Estava meio esquisita. Como se estivesse esforçando-se por não rir. Disse-me que conhecia Emile desde 1937. Não morava com a família desde os 15 anos de idade. A família dela mora em Nice. Nunca morou em Paris. E Emile não lutou na Resistên­cia. Contrabandeou manteiga da Normandia durante toda a guerra.

Ronny levantou-se da poltrona, penosamente.

— Tenho de dar o fora. — Voltou-se e encarou-me com tristeza. — Tenho de sair disto. Não se surpreenda — disse com ar misterioso — com o que ouvir dizer.

Saiu vagarosamente, os ombros, caídos, o porte de um ho­mem vencido. Ouvi quando ele entrou no quarto e o ranger das molas quando ele se deitou na cama.

A partir do dia seguinte, notei uma mudança em Ronny. Quando ele andava, desprendia forte cheiro de uma perfumada água-de-colônia e começou a cultivar o hábito de usar o lenço na manga. Também começou a andar com um passinho estranho e falar num tom muito esquisito em um homem cuja aparência era de quem comandava um regimento de cavala­ria. Começou a evitar-me e nunca mais tivemos aquelas lon­gas e simplórias conversas à noite, no meu quarto. Quando o convidei para jantar, deu uma risadinha e disse que andava muito ocupado aqueles dias.

Uma semana mais tarde, recebi a visita de um oficial-médico inglês, um capitão grisalho e de aspecto sombrio, especialista em doenças nervosas e casos de esgotamento provocado pela guerra.

— Talvez o senhor possa me ajudar, tenente — disse o ca­pitão, depois de certificar-se de que eu conhecia Ronny por quase um ano. — É sobre seu amigo, o tenente Biddell.

— Algum problema com ele? — perguntei cautelosamen­te, desejando que Ronny me tivesse avisado.

— Não sei ao certo... — disse o capitão. — O senhor diria que há nele qualquer coisa de anormal?

— Bem... — falei, imaginando como poderia responder ho­nestamente à pergunta sem prejudicar Ronny. — É difícil di­zer. Por quê? Qual é o problema?

— O tenente Biddell foi procurar-me três ou quatro vezes nesta semana — disse o capitão — contando uma história muito estranha. Muito estranha mesmo. — O capitão hesitou, de­pois prosseguiu: — Bem, não tem sentido falar com ambigüi­dade. Ele acha que deve ser desmobilizado pelo bem do Exército.

— O quê? — perguntei, surpreendido.

— Diz que descobriu, muito recentemente, aliás, que... bem, ambos somos adultos e não tem sentido falar por meias pala­vras — disse o capitão. — Não é a primeira vez que ouvimos falar de coisas como esta. Principalmente em tempo de guer­ra, com homens vivendo uma vida que não é normal, priva­dos por muitos anos da companhia das mulheres. Falando francamente — disse ainda o capitão — o tenente Biddell diz que se sente irresistivelmente atraído pelos homens.

— Oh! — disse eu apenas, pensando: “Pobre Ronny... o lenço e a água-de-colônia”...

— As provas exteriores existem, naturalmente — continuou o capitão. — O perfume, o modo de falar, etc. Mas ele não parece ser desse tipo, embora em minha profissão nada me surpreenda. O senhor compreende. Seja como for, ele afirma que... bem... se continuar nesta atmosfera militar... ele pode­rá começar a agir abertamente... o que, é claro, teria graves conseqüências. Conversei com outros oficiais companheiros dele, com o motorista, e todos parecem surpreendidos. Ouvi dizer que o senhor e ele são amigos muito íntimos e pensei que talvez pudesse esclarecer a situação.

— Bem...

Hesitava. Por um momento, pensei em contar ao médico toda a história. Depois resolvi que seria melhor não contar. Talvez, pensei, seja mesmo tempo de Ronny cair fora. Disse, então:

— Notei pequenos indícios, aqui e ali. A guerra tem sido cansativa para ele... — acrescentei lealmente.

O capitão concordou:

— Para quem não tem sido? — falou com ar sombrio, levantando-se e saindo, depois de apertar minha mão.

No dia seguinte, sem aviso prévio, nossa unidade recebeu ordem de abandonar Paris. Ao mesmo tempo, Ronny foi des­ligado de nossa unidade e destacado para serviço no Quartel-General, em Paris onde, presumo, seria mais fácil para o mé­dico concluir seu exame. Na confusão da partida, não vi Ronny e não voltei a Paris senão depois de terminada a guerra. Nes­ta ocasião, meu amigo já tinha partido. Ouvi dizer que, ape­sar do que pudesse ter acontecido, ele não tinha conseguido dar baixa, como pedira. Alguém me informou que julgava que Ronny tinha sido mandado de volta à Inglaterra, mas não ti­nha certeza e não era possível fazer um único tipo de investi­gação que poderia esclarecer-me, sem comprometer Ronny.

Fui mandado de volta à América sem ir de novo à Inglater­ra e por muitos anos pensava com certa tristeza no meu amigo e imaginava, não sem piedade, por que caminhos ele se teria metido na Londres dos tempos de paz. Não o julgava com ri­gor. Não é só um bombardeio de 24 horas ou o fato de estar na linha de fogo durante meses a fio que destrói num homem a vontade de continuar e muitas neuroses de guerra se mani­festam sem nenhuma relação com tudo isso. Mas quando en­contrava, por acaso, com um homem vestido de certo modo exagerado ou falando com afetação característica, imaginava se ele não seria diferente hoje, caso num momento de crise, em seu passado, alguém tivesse chegado meia hora mais ce­do, ou meia hora mais tarde...

Ronny beijou a noiva diante do altar, em seguida os dois se voltaram e começaram a caminhar entre os bancos, ao som da música. Quando passou por mim, muito vermelho, triunfante, terno, grandalhão, Ronny piscou para mim. Pisquei tam­bém para ele, pensando: “Não é uma coisa boa? Afinal, nem tudo terminou mal, desde 1944.” E quando Ronny saiu da igre­ja, de braços com a noiva, imaginei se me seria possível obter o nome e endereço de seu psiquiatra para um ou dois outros amigos meus...

 

* Camisa comprida, com capuz, usada no Alasca e pelos esquiadores. (N. do T.).

* O personagem referia-se, é claro, ao hino alemão:

Deutschland Uber Alles. (N. do T.)

* Irredentista: partido patriótico e político da Itália cujo lema era “Itália irredenta”. (N. do T.)

 

                                                                                            Irwin Shaw

 

                      

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