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Poesia & Contos Infantis

 

 

 


TRÊS VIDAS / Lobsang Rampa
TRÊS VIDAS / Lobsang Rampa

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

TRÊS VIDAS

 

Este livro NÃO é apresentado como obra de ficção por uma razão muito especial: NÃO é ficção!

Naturalmente, estamos prontos a concordar em que algumas das palavras contidas nele sobre a vida neste mundo podem ser rotuladas como "licença artística", mas eu lhes garanto que TUDO sobre a vida no Outro Lado é a verdade pura e simples.

Há pessoas que nascem com grande talento musical; outras, com o dom de pintar e cativar o mundo. Também há as que se destacam por meio do seu trabalho e da sua devoção ao estudo.

Eu tenho pouca coisa, do ponto de vista material, neste mundo — nem carro, nem televisão, nem isto, nem aquilo — e passo as vinte e quatro horas do dia confi­nado à cama porque, para começo de conversa, sou pa­raplégico — não posso usar as pernas. Isso me deu a grande oportunidade de aumentar os talentos ou as capa­cidades que me foram outorgadas quando nasci.

Sou capaz de fazer tudo aquilo de que falo nos meus livros — exceto andar! Posso fazer viagens astrais e, de­vido aos meus estudos e, acredito, também a uma pre­disposição natural, viajar a outros planos de existência.

As personagens deste livro são pessoas que viveram e morreram neste mundo e que, graças a provisões espe­ciais, eu pude seguir nos seus "Vôos para o Desconhe­cido".

Tudo o que está escrito neste livro sobre a Pós-Vida é inteiramente verdade, de modo que não posso classifi­cá-lo como ficção.

Lobsang Rampa

 

 

—         Quem é aquele cara?

Leonides Manuel Molygruber endireitou-se com es­forço e olhou para o homem.

Hein? perguntou ele.

Quem é aquele cara? repetiu o outro.

Molygruber olhou para a rua, a tempo de ver uma cadeira de rodas movida a eletricidade entrar num edi­fício.

—         Aquele ali? retrucou ele, cuspindo em cima do sapato de um homem que passava. É um sujeito que mora por aqui, escreve livros ou coisa parecida, mexe com fantasmas e outros troços e escreve sobre pessoas que estão vivas depois que morreram.

Sorriu, com ar de superioridade e continuou:

—         Tudo isso é besteira, uma coisa sem nenhum sen­tido. Quando a pessoa morre, está morta, não é mesmo? A gente chama os padres e eles falam que é para fazer uma prece e aí talvez a pessoa vá para o Céu e, se não, vai é para o Inferno mesmo. Ou então a gente chama o Exército de Salvação e eles fazem uma chacrinha na sexta-feira à noite e depois os sujeitos como eu têm que ir atrás deles, limpando toda a sujeira com a vassoura e a carrocinha. Eles ficam berrando e batendo nos seus pan­deiros, bem debaixo do nariz de quem passa, gritando que precisam de dinheiro pra fazer o trabalho de Deus.

Olhou em volta e assoou o nariz sem usar nenhum lenço. Depois, encarou de novo o seu interlocutor:

—         Deus nunca fez nada pra mim, nunca! Tenho este pedaço de calçada para limpar, fico varrendo e varrendo e depois pego na pá e boto a sujeira toda na carrocinha e, de vez em quando, vem um carro — a gente chama de carro, mas na verdade são caminhões — pega na carroça, com todo o lixo dentro, recolhe e, de manhã, eu tenho que começar tudo de novo. É um diabo de um trabalho que não tem fim, todo santo dia a mesma coisa. A gente nunca sabe quando é que o chefe vai dar as caras, no seu belo Cadillac e, se a gente não estiver o tempo todo curvado em cima da vassoura, bem, acho que a coisa che­ga aos ouvidos de algum cara importante lá na Prefei­tura e ele dá uma bronca no meu chefe e o meu chefe descarrega em cima de mim. Ele sempre diz que é pra mim não esquentar a cabeça, que quem paga impostos não quer saber se eu estou trabalhando ou não, mas é sempre bom mostrar serviço.

Molygruber olhou mais um pouco em volta, ao mesmo tempo em que fingia que varria, depois limpou o nariz, com um estrondo horrível, na manga direita da camisa, e disse:

—         Se alguém perguntar que é que o senhor está fa­lando com o gari, o senhor diz que tá perguntando a hora, mas a verdade é que Deus nunca desceu lá do céu para pegar na vassoura e fazer o serviço pra mim, eu é que fico de costas doendo de tanto ficar varrendo toda a su­jeira que o pessoal joga no chão. Nem queira saber o que o pessoal joga: calcinhas e outras coisas que vão den­tro... tudo. O senhor nem imagina o que eu encontro por essas ruas. Mas, como eu estava dizendo, Deus nunca varreu pra mim, nunca recolheu nenhum lixo pra mim. Só mesmo o pobre que não pode arrumar emprego melhor é que tem que varrer rua.

O homem olhou de esguelha para Molygruber e co­mentou:

O senhor é um bocado pessimista, hein? Aposto como é ateu!

Ateu? — retrucou Molygruber. — Não, não sou ateu, minha mãe era espanhola, meu pai era russo e eu nasci em Toronto. Não sei nem onde é que fica esse lu­gar, nunca ouvi falar!

O outro riu e explicou:

—         Ateu é quem não tem religião, quem não acre­dita senão no presente. Quando a gente morre, vai em­bora... para onde? Ninguém sabe, mas o ateu acha que, quando ele morre, seu corpo vira lixo, igualzinho ao que o senhor apanha com a sua pá. Isso é que é ser ateu!

Molygruber riu também e replicou:

—         Então eu sou ateu! Agora, quando os caras que trabalham comigo perguntarem o que eu sou, posso dizer pra eles que não sou nem russo nem espanhol, sou ateu. E eles vão sair rindo, achando graça do velho Molygruber.

O homem despediu-se. Para que perder tempo fa­lando com um pobre diabo? pensou. Estranho, como to­dos esses varredores de rua, ou garis, conforme eles próprios se chamavam, eram tão ignorantes e, ao mes­mo tempo, tão sabedores da vida das pessoas que mora­vam no bairro.

De repente, parou e bateu com a mão na testa.

—         Que idiota que eu sou! — exclamou ele. — Estava querendo informações sobre aquele sujeito.

Girou sobre os calcanhares e voltou para onde o ve­lho Molygruber continuava em atitude de contemplação, aparentemente procurando emular a estátua da Vênus de Milo, só que o sexo e a silhueta eram diferentes. Por mais boa vontade que se tivesse, uma vassoura não era lá muito apropriada para se posar. O homem aproximou-se dele e perguntou:

—         Escute, o senhor trabalha nesta zona, deve co­nhecer as pessoas que moram no bairro. Que acha disto?

Mostrou-lhe uma nota de cinco dólares.

—         Quero que o senhor me diga o que sabe a respeito daquele sujeito da cadeira de rodas.

A mão de Molygruber estendeu-se e agarrou a nota de cinco dólares antes que o outro tivesse acabado de falar.

—         Lógico que eu sei um bocado de coisas sobre aquele sujeito. Ele mora por aqui, entrando naquela rua­zinha e depois dobrando à direita, é ali que ele mora, vai fazer uns dois anos. Não dá muito as caras. Tem uma do­ença nas pernas ou coisa parecida, mas dizem que não vai durar muito. Escreve livros, o nome dele é Rampa e os troços que ele escreve são um bocado ridículos — so­bre a vida depois que a gente morre. Ele não é ateu. Mas falam que um bocado de gente lê os livros dele, tem um monte de livros dele naquela loja lá, dizem que vendem paca. Engraçado, como tem gente que ganha dinheiro fácil, só escrevendo umas palavras, enquanto eu tenho que suar, grudado nesta vassoura!

—         Será que pode descobrir direito onde ele mora? — perguntou o homem. — O senhor diz que ele mora naquele edifício, mas descubra para mim qual o número do apartamento e, amanhã, se o senhor já souber me di­zer ao certo e a que horas, mais ou menos, ele sai, eu lhe dou dez dólares.

Molygruber meditou um pouco, tirou o chapéu, co­çou a cabeça e puxou as pontas das orelhas. Os colegas diriam que nunca o tinham visto fazer aquilo, porém Mo­lygruber costumava fazê-lo quando estava pensando e, como os colegas dele seriam unânimes em afirmar, ele nunca pensava muito. Mas agora valia a pena o esforço para pensar se compensava trabalhar tão pouco para ga­nhar dez dólares.

Por fim, ele cuspiu e disse:

—         Combinado, chefe, amanhã pode vir a esta mesma hora que eu vou lhe dizer o número do apartamento dele e lhe avisar quando ele sair, se não sair mais cedo. Tenho um amigo que conhece o zelador, eles recolhem o lixo juntos. O lixo sai naqueles latões azuis, tá vendo? Bem, meu amigo vai saber tudo para mim e, se o senhor quiser, eu posso descobrir mais umas coisinhas.

O homem ergueu as sobrancelhas, mudou de posi­ção e perguntou:

—         Ele bota cartas, coisas assim, no lixo?

—         Que nada! — exclamou Molygruber. — É o único cara nesta rua que tem um treco que corta os papéis. Pa­rece que aprendeu na Irlanda.

Uns jornalistas pegaram alguns papéis dele e, segundo dizem, ele não é pessoa de cometer o mesmo erro duas vezes. Tem um treco que transforma tudo quanto é carta em uma espécie de ser­pentina, tudo em tirinhas, que ele depois bota em sacos de lixo verdes. Não posso procurar no lixo para o se­nhor porque por estas bandas o pessoal é muito cuida­doso, pensam em tudo.

—         Está bem disse o homem. A esta mesma hora, amanhã, eu venho e, se o senhor puder me dar o número do apartamento e a hora em que ele sai, eu lhe dou os dez dólares, conforme o prometido. Até amanhã!

Dito isso, o homem ergueu a mão em despedida e foi-se embora. Molygruber ficou parado, tão parado que parecia mesmo uma estátua, pensando no caso, tentando calcular quantos chopes ele poderia tomar com dez dó­lares. Depois, foi se arrastando lentamente, empurrando a carrocinha e fingindo varrer a sujeira da rua, enquanto andava.

Nesse momento, um homem de batina negra dobrou a esquina e quase caiu em cima da carrocinha do velho Molygruber.

—         Cuidado, puxa vida! exclamou Molygruber, ir­ritado. Que diabo! Vai querer espalhar o lixo que eu passei toda a manhã recolhendo nessa carrocinha?

O pároco sacudiu a sujeira da batina e olhou para o gari.

—         Ora, meu bom homem disse ele você é que pode me ajudar. Sou o novo pároco e estou querendo fazer umas visitações. Pode me dizer se há gente nova no bairro?

O velho Molygruber levou o indicador e o polegar às narinas, inclinou-se para a frente e limpou ruidosa­mente o nariz, por pouco não acertando os pés do vi­gário, que não pôde esconder um gesto de repulsa.

—         Visitações? repetiu o gari. Sempre pensei que só o diabo é que fazia isso. Ele vem nos visitar e a gente logo logo fica com furúnculos e coceiras, ou en­tão a gente acabou de gastar o último níquel numa cer­vejinha e alguém derruba o copo no chão. Isso é que eu pensei que fossem essas tais de visitações.


 

O pároco olhou-o dos pés à cabeça com uma ex­pressão de desgosto,

—         Meu pobre homem, — disse ele — deduzo que você há muito tempo não põe os pés numa igreja, pela sua falta de respeito para com os padres.

O velho Molygruber encarou-o firme e replicou:

—         É isso mesmo, padre, eu não sou homem de en­trar em igrejas. Agora mesmo um sujeito me disse o que eu sou... um ateu, tá aí o que eu sou — e riu de ma­neira alarmante.

O pároco olhou em volta e disse:

—         Mas, meu bom homem, você precisa ter uma religião, acreditar em Deus. Venha até a igreja no do­mingo, que eu farei um sermão especialmente para você, meu infeliz irmão, que ganha a vida varrendo a sujeira das ruas.

Molygruber apoiou-se, complacente, na vassoura e disse:

—         Ora, padre, o senhor nunca vai poder me conven­cer de que Deus existe. Olhe só para o senhor, ganha um dinheirão só para falar de uma coisa que não existe. Me prove que Deus existe, me traga ele aqui e me deixe apertar a mão dele. Deus nunca fez nada pra mim.

-Parou e remexeu nos bolsos até encontrar um cigarro meio fumado. Tirou um fósforo do bolso e riscou-o na ponta da unha do polegar, antes de continuar:

—         Minha mãe era uma dessas que fazem... o se­nhor sabe... por dinheiro. Nunca soube quem era o meu pai, provavelmente foi trabalho de uma porção de caras. Só sei é que tive que me virar desde que era deste tamanhinho e ninguém nunca fez nada por mim, de maneira que não adianta o senhor sair da sua casa confortável e do seu belo emprego no seu carrão, pra vir me encher os ouvidos com uma porção de lorotas a respeito de Deus. Primeiro venha varrer a rua pra mim, pra ver se Deus lhe dá uma mão.

O velho Molygruber bufou de raiva e pôs-se a traba­lhar com uma velocidade incrível. Atirou a vassoura para cima da carrocinha, pegou nas alças e empurrou-a rua afora. O pároco ficou olhando para ele com uma expres­são de surpresa no rosto. Depois, abanou a cabeça e afastou-se, murmurando:

—         Meu Deus, meu Deus, que homem ímpio, onde é que vamos parar?

Na tarde desse mesmo dia, Molygruber foi ter com dois zeladores de edifícios próximos com quem costumava se reunir e trocar informações e fofocas. A sua maneira, Molygruber era um dos homens mais bem informados do quarteirão: sabia os hábitos de todo mundo, quem entrava e quem saía nos edifícios. De modo que, quando ele perguntou a um dos zeladores "Quem é aquele ve­lho na cadeira de rodas? Ouvi dizer que é escritor!", os zeladores olharam-no dos pés à cabeça. Um deles riu alto e disse:

—         Não me diga que VOCÊ está interessado em li­vros. Pensei que estivesse muito acima dessas coisas. Seja como for, esse cara está escrevendo um livro sobre um troço chamado "tanatologia". Não sei bem o que é, mas ouvi dizer que é uma conversa fiada sobre a vida depois que a gente morre. Acho ridículo, mas foi o que me dis­seram.

Molygruber enrolou um cigarro na ponta da língua, olhou de esguelha e disse:

—         Ele deve ter um belo de um apartamento! Aposto como tem tudo o que é moderno. Bem que eu gostaria de ver um desses apartamentos por dentro!

O zelador sorriu e retrucou:

Nada disso. O pessoal aqui vive muito modesta­mente. Não é preciso acreditar em tudo o que ele es­creve, mas eu posso lhe garantir que ele vive de acordo com o que prega. A cara dele é de quem não vai de­morar a descobrir se é verdade essa história de tanato-sei-lá-o-quê que é sobre o que ele escreve.

Onde é que ele mora? Em que apartamento? perguntou Molygruber.

O zelador olhou em volta e disse:

—         Bem, isso é segredo. Ele não quer que se diga o número do apartamento, mas eu sei onde ele mora. Para que é que você quer saber?

Molygruber não respondeu e continuaram conver­sando durante algum tempo, até que voltou a atacar:

—         Você falou que o número do apartamento dele era nove-zero-nove, ou coisa parecida?

O zelador riu:

—         Sei que você está querendo me enrolar, seu velho sabido, mas, como se trata de você, vou lhe dar o nú­mero do apartamento, e. . .

Nesse exato momento, um dos caminhões do lixo entrou na rua e o carregador automático abafou com seu barulho estridente o que o zelador dizia. Molygruber não se deu por achado; pegou num maço de cigarros vazio, tirou um lápis do bolso e disse:

—         Ei, pode escrever aqui. Não vou dizer a ninguém quem foi que me deu o número.

O zelador escreveu o número, imaginando o que o velho gari desejaria e devolveu-lhe o maço. Molygruber olhou-o, levou a mão à cabeça, num gesto de continência, e enfiou o maço no bolso.

—         Preciso ir andando — disse o zelador. — Tenho que botar para fora os latões, o caminhão já vem vindo aí. Até amanhã.

E voltou para o depósito de lixo do edifício, enquanto o velho Molygruber continuava o seu caminho.

Não tardou muito e o caminhão de lixo apareceu e dois homens saíram, agarraram a carrocinha de Molygru­ber e a puseram na parte de trás do caminhão.

—         Entre aí, rapaz — disse um dos homens, prova­velmente o chofer — que a gente lhe dá uma carona até o depósito.

Molygruber entrou, sem atentar para o fato de que ainda faltavam quinze minutos para ele largar o serviço. Voltaram para o depósito de lixo.

Diga-me uma coisa, rapazes — perguntou Moly­gruber — por acaso vocês conhecem um escritor cha­mado Rampa, que mora na minha área.

Conhecemos — disse um dos lixeiros. — Reco­lhemos o lixo do edifício dele. O cara gasta um bocado em remédios, é embalagem vazia, é vidro de medicamento e agora parece que ele está tomando injeções, pelo me­nos tem seringas onde se lê "Tuberculma". Não sei que negócio é esse, mas é o que tá escrito. Tive que con­vencer um porteiro, um substituto, para não ligar pra po­lícia. O cara cismou que o velho estava tomando drogas.

O lixeiro fez uma pausa para enrolar um cigarro e depois continuou:

—         Nunca fui a favor de ligar para a polícia em casos desses. No ano passado, deu a maior confusão, uma fa­xineira encontrou um cilindro de oxigênio velho, no meio do lixo e, mesmo vendo que ele já não tinha nem vál­vula e estava vazio, resolveu ligar para a polícia e para os hospitais, até que, depois de muita confusão, desco­briu-se uma explicação perfeitamente legal. Nunca vi nin­guém ter cilindros de oxigênio em casa sem estar doente, né?

Olharam para o relógio de parede e deram um pulo. Passava um minuto da hora de encerrar o expediente — estavam trabalhando além do horário, sem receber paga­mento extra. Rapidamente, despiram o uniforme, enfiaram a roupa comum e saíram correndo, para aproveitar o tempo livre encostando-se nas esquinas.

Na manhã seguinte, Molygruber chegou um pouco atrasado ao trabalho. Ao entrar no depósito, para pegar a sua carrocinha, um homem gritou, da cabine de um ca­minhão:

—         Ei, Moly! Você perguntou tanto sobre aquele cara, que eu trouxe um livro que ele escreveu pra você dar uma olhada.

Jogou um livro na direção de Molygruber. O título era Eu Creio.

—         Eu Creio — resmungou Molygruber. — Não quero saber dessas besteiradas. Quando a gente morre, morre mesmo. Ninguém vai chegar pra mim e dizer: "Oi, Moly­gruber, você se comportou muito bem toda a vida, tem um trono aqui para você, feito de latões de lixo."

Mas olhou para o livro, folheou-o e enfiou-o no bolso do paletó.

—         Que é você está fazendo aí, Molygruber? Que é que está roubando? — perguntou uma voz áspera e, logo depois, um sujeito corpulento e atarracado saía de um pequeno escritório, estendia a mão e dizia: Passe pra cá.

Molygruber desabotoou em silêncio o paletó, puxou do livro e entregou-o ao chefe.

—         Hum! exclamou o superintendente. Quer dizer que você agora tá nessa, hein? Pensei que você só acreditasse numa boa cerveja e no cheque do pagamento.

Molygruber sorriu para o chefe que, apesar de baixo, era um pouco mais alto do que ele, e disse:

—         Pois é, Chefe, por que o senhor não dá uma olhada nesse livro e depois me diz se existe mesmo vida depois dessa? Pra mim, quando eu encontro uma cabeça de peixe jogada na rua pego com a pá, é porque o peixe está morto mesmo e ninguém vai me dizer que ele vai ressuscitar.

Virou-se e cuspiu eloqüentemente no chão. O superintendente entregou o livro de volta e, por fim, disse:

—         Bem, Molygruber, a gente não entende é nada dessa história de vida e de morte. A minha patroa é fã desse sujeito, já leu todos os livros dele e jura que tudo o que ele escreve é verdade. Ela é vidente e, quando dá para falar nas suas experiências, fico todo arrepiado. Não faz duas noites, fiquei tão apavorado com a história dos fan­tasmas que ela contou, que saí e bebi um pouco demais. Quando voltei para casa, tarde da noite... bem, estava com medo da minha própria sombra. Mas vamos traba­lhar, rapaz, você já está atrasado. Não vou dar bronca porque a culpa é minha, ficar aqui batendo papo, mas veja se dá pra se mexer mais do que de costume.

O velho Molygruber pegou a sua carrocinha, certificou-se de que ela estava vazia, de que a vassoura era mes­mo a sua, e saiu andando pela rua, para dar início a mais um dia na sua vida de gari.

Era um serviço chato. Uma turma de garotos de es­cola tinha passado por ali e enchido a sarjeta de lixo. O velho Molygruber resmungou uma série de xingamentos ao curvar-se para recolher papéis de balas, envólucros de chocolate e todo o lixo característico das crianças. Sua carrocinha logo ficou cheia. Parou um pouco, apoiado à vassoura, para observar a construção de um prédio. De­pois, continuou a andar. Um carro enguiçado estava sendo rebocado. Dali a pouco, um relógio deu as horas. Molygruber endireitou-se, passou o cigarro para o outro canto da boca e dirigiu-se para um pequeno parque hora do almoço. Gostava de se refugiar ali e almoçar dentro da guarita, longe do pessoal que se sentava no gramado e enchia tudo de lixo para depois ele limpar.

Foi andando e empurrando a carrocinha, até que che­gou à guarita e, tirando uma chave do bolso, abriu a porta e entrou. Com um suspiro de alívio, sentou-se em cima de um monte de caixotes cheios de flores para trans­plantar. Estava procurando os sanduíches na lancheira, quando uma sombra se atravessou na entrada da guarita. Olhou para cima e viu o homem que esperava ver. A idéia de ganhar dinheiro fácil atraía-o muito.

O homem entrou na guarita e sentou-se.

—         Bem disse ele vim buscar a informação que lhe pedi.

E puxou a carteira recheada de notas.

O velho Molygruber olhou para ele com ar azedo.

—         Quem é o senhor, antes de mais nada? Nós, garis, não damos informações a qualquer um que aparece, te­mos de saber com quem estamos lidando.

E deu uma dentada num dos sanduíches, fazendo voar pedaços de tomate. O homem sentado nos caixotes à sua frente afastou-se, com um pulo.

Que é que ele podia dizer a esse respeito? Que, como qualquer um logo veria, ele era inglês e um pro­duto de Eton, embora a sua permanência em Eton tivesse sido de menos de uma semana, devido a um terrível engano provocado pela escuridão da noite que o fizera confundir com desastrosas conseqüências — uma das camareira com a esposa de um dos professores. Por causa disso, fora expulso praticamente antes de chegar a freqüentar a escola, estabelecendo assim um novo re­corde. Mas gostava de dizer que tinha estudado em Eton, o que não deixava de ser verdade.

—         Quem sou eu? — disse ele. — Pensei que o mundo inteiro soubesse quem eu era. Sou o represen­tante de um famoso jornal inglês e queria saber dados sobre a vida pessoal desse autor. Meu nome é Jarvie Bumblecross.

O velho Molygruber limitou-se a continuar masti­gando, espalhando sanduíche por todos os lados e mur­murando qualquer coisa com os seus botões. Tinha um cigarro numa das mãos e um sanduíche na outra, dava uma dentada no sanduíche seguida de uma tragada no cigarro.

—         Jarvie? — repetiu ele, por fim. — Nunca ouvi esse nome.

O homem pensou um momento e depois decidiu que não havia mal algum em confiar naquele velho, afinal de contas o mais provável era que nunca mais se vissem depois dali.

—         Pertenço a uma velha família inglesa, cuja origem remonta a muitas gerações — disse ele. — Minha bisavó materna fugiu com um cocheiro de Londres. Naqueles tempos, os cocheiros de carruagens de aluguel eram chamados jarvies e assim, para comemorar um caso bastante infeliz, desde então todos os homens da família têm-se chamado Jarvie.

O velho Molygruber ficou pensando um bocado e depois disse:

—         Quer dizer que o senhor está querendo escrever sobre a vida daquele cara? Bem, pelo que eu escutei fa­lar, muita gente já escreveu sobre a vida dele. Me pa­rece, pelo que tenho ouvido dizer, que vocês, jornalis­tas, estão tornando a vida dele um verdadeiro inferno. Dele, e de outros que nem ele. Acontece que ele nunca me fez mal nenhum, e olhe só para isto — acrescentou, estendendo um dos sanduíches. — Olhe só, todo o pão marcado de jornal. Como é que eu vou comer isto? Que adianta comprar esses jornais, se vocês não usam tinta que preste? Nunca gostei do sabor de tinta de jornal.

O homem estava ficando cada vez mais irritado.

—         Quer atrapalhar o trabalho dos jornalistas? Não sabe que eles têm o direito de ir aonde quiserem, de en­trar em tudo quanto é lugar e de fazer perguntas a qual­quer um? Fui muito generoso em lhe oferecer dinheiro em troca de informações. O seu dever é fornecê-las gra­tuitamente a um jornalista.

O velho Molygruber perdeu a paciência. Não podia bater naquele inglês de fala mansa, que se julgava mais importante do que Deus, de modo que se pôs de pé e disse:

—         Dê o fora, moço, dê o fora! — Suma daqui, seu abelhudo de uma figa! Ou boto você dentro da minha carrocinha e levo-o para o depósito, pros outros caras lhe darem um esculacho.

Agarrou um ancinho e avançou para cima do homem, que se levantou mais que depressa e recuou, tropeçando nos caixotes e caindo no chão, numa confusão de braços, pernas e pedaços de madeira. Mas não demorou muito tempo caído. Um olhar para o velho Molygruber e logo pôs-se de pé e saiu correndo em disparada da guarita, só parando quando já estava a uma longa distância.

O velho Molygruber começou a andar lentamente de um lado para o outro, apanhando caixotes e pedaços de madeira e resmungando consigo mesmo:

—         Jarvie... cocheiro de carruagem... que espécie de conversa eles pensam que eu vou engolir? Se ele ti­nha uma bisavó, ou sei lá o quê, que casou com um cocheiro, como é que esse sujeito saiu tão cretino? Ah, claro — continuou ele, o rosto cada vez mais vermelho de raiva — deve ser por ele ser inglês que tem cara de otário.

Sentou-se de novo e atacou o segundo sanduíche; mas não, estava por demais furioso para continuar a co­mer, de modo que guardou o resto e saiu da guarita para beber água na torneira do parque.

la andando e olhando para as pessoas. Afinal de con­tas, estava na hora do almoço. De repente, de trás de uma árvore surgiram dois padres.

—         Ah, meu bom homem — disse um deles — será que o senhor pode me dizer onde fica o... toalete dos homens?

O velho Molygruber respondeu, de mau humor:

Não, aqui não tem disso não, vão ter que ir a um hotel. Tá se vendo que os senhores vêm da Inglaterra, onde tem disso nas ruas. Nós não temos, e os senhores vão ter que ir a um posto de gasolina, ou a um hotel, ou a um boteco.

Que coisa extraordinária! — comentou um dos padres com o outro. — Alguns canadenses parecem ter uma incrível aversão pelos ingleses como nós.

E dirigiram-se, apressados, para o hotel, que ficava a uma quadra dali.

Nesse momento, ouviram-se gritos vindos do pequeno lago no meio do parque. Molygruber virou-se para ver o que era. Caminhou na direção do lago e viu uma criança dos seus três anos boiando na água, a cabeça mergu­lhando e vindo de novo à tona. Em volta do lago, uma porção de gente olhava, sem fazer a menor tentativa para salvar a criança.

Às vezes, o velho Molygruber movia-se com rapidez. Foi o que aconteceu. Avançou, derrubando uma velha e empurrando outra para o lado. Pulou a mureta de pedra e entrou na água, para ele rasa, do lago. Ao fazê-lo, po­rém, o seu pé escorregou no lodo que havia no fundo e ele caiu, machucando seriamente a cabeça. Mas logo se levantou, agarrou a criança e virou-a de cabeça para baixo, como que para fazer a água escorrer dela. Depois, atravessou, cambaleando, o lago escorregadio e transpôs de novo a mureta. Uma mulher correu para ele, gri­tando:

—         Cadê o chapéu dela? Cadê o chapéu dela? É no­vinho, acho bom o senhor apanhá-lo.

Molygruber atirou a criança, completamente enchar­cada, para os braços da mãe, que retrocedeu, com medo de que a água lhe estragasse o vestido. Em seguida, vol­tou para a sua guarita e ficou muito tempo de pé, com ar sombrio e a água escorrendo-lhe pela roupa e entrando pelos sapatos adentro, até formar uma poça no chão lembrou-se de que não tinha roupa para trocar, mas não fazia mal, logo aquela estaria seca. Agarrou, com um suspiro, a carrocinha, empurrou-a para fora e trancou a porta.

Molygruber estremeceu, porque um vento frio co­meçava a soprar do Norte e todo mundo sabe que o vento norte é sempre vento frio. Começou a tiritar e resolveu trabalhar um pouco mais rápido, para ver se conseguia es­quentar e secar a roupa no corpo.

Em pouco, estava suando profusamente, mas nem as­sim a roupa parecia secar. Saía água até dos sapatos e a tarde transcorreu como se fosse uma eternidade até che­gar a hora de voltar ao depósito.

Os colegas ficaram surpresos com o silêncio do ve­lho Molygruber.

— Que será que aconteceu com o velho Moly? — perguntou um deles. — Parece que foi roubado, ele não costuma ficar tão calado! Só queria saber o que foi que houve!

O velho carro de Molygruber custava a pegar e, quan­do por fim ele conseguiu pô-lo em marcha, viu que um dos pneus traseiros estava vazio e, com uma praga, des­ligou o motor, saiu e entregou-se à cansativa tarefa de trocar o pneu. Isso feito, entrou de novo no carro e de novo custou muito a fazê-lo pegar. Quando chegou ao seu quarto solitário estava farto de tudo, de salvar crian­ças, do trabalho, da solidão em que vivia. Despiu-se de­pressa, enxugou-se com uma toalha velha e deitou-se sem se lembrar de comer algo.

Acordou suando muito. A noite parecia não ter fim, ele tinha dificuldade em respirar e o seu corpo parecia es­tar pegando fogo. Ficou deitado no escuro, respirando com estrépito e pensando no que poderia estar havendo com ele, mas que, tão logo amanhecesse, iria até a farmácia e compraria algum xarope ou pastilha para aliviar o peso no peito.

A manhã custou a chegar, mas finalmente os raios vermelhos do sol brilharam na sua janelinha e foram en­contrá-lo já acordado, com o rosto em fogo e muita fe­bre. Tentou levantar-se, mas caiu no chão. Não saberia dizer quanto tempo ficou ali, até ser despertado por mo­vimentos no seu quarto. Abriu os olhos e viu dois padioleiros colocando-o numa maca.

Você está com pneumoma dupla — disse um deles. — Vamos levá-lo para o hospital e logo você vai ficar bom de novo.

Tem parentes? — perguntou o outro — Você quer que a gente avise alguém?

O velho Molygruber fechou os olhos, exausto, e mer­gulhou num sono agitado. Não percebeu quando o car­regaram para a ambulância, nem quando esta entrou no pátio da Emergência, nem quando o levaram para uma enfermaria e o colocaram numa cama.  

 

—         Vamos, vamos, estenda o braço e nada de brinca­deira. Vamos!

A voz era autoritária e estridente. Leonides Manuel Molygruber mexeu-se um pouco e abriu os olhos, sen­tindo o braço ser agarrado e puxado para fora dos len­çóis.

—         Não sei por que tanta resistência — disse a voz, irritada. — Preciso tirar um pouco de sangue do senhor. Vamos, nada de brincadeira!

O velho Molygruber abriu os olhos um pouco mais e viu que acima, do lado esquerdo, estava uma mulher de testa franzida e com ar de quem está chateada. Olhou para o outro lado e viu uma espécie de cesto de arame em cima da mesa de cabeceira. Parecia um desses cestos onde os leiteiros põem as garrafas, só que em vez disso havia uma porção de tubos de ensaio, com algodão em cima.

—         Quer dizer que o senhor voltou para nós, hein? Muito bem, vamos logo, está me fazendo perder tempo.

Dizendo isso, a mulher puxou-lhe violentamente a manga do pijama e colocou em volta do braço dele uma coisa que parecia um pedaço de borracha preta. Depois, abriu um pacotinho, tirou algo de dentro e esfregou-lhe vigorosamente a pele. Molygruber sentiu uma dor aguda e a mulher exclamou:

—         Puxa, vida, por que é que as suas veias não são mais visíveis? Vou ter que fazer tudo de novo!

Tirou a agulha, apertou o torniquete e deu outra espetadela.

Molygruber olhou para baixo e viu um grande tubo — um tubo de vidro — ligado à agulha espetada no seu braço. Enquanto olhava, o tubo foi se enchendo. Rapi­damente, com a perícia de uma longa prática, a mulher substituiu o tubo por outro, que também não tardou a se encher. Por fim, satisfeita com a quantidade de sangue colhido, arrancou a agulha e colocou um adesivo em cima da perfuração. Depois, colocou, com um grunhido, os dois tubos no cesto de arame, após escrever neles o nome de Molygruber.

A mulher aproximou-se de outra cama e a sua voz guinchante foi arranhar os ouvidos de outro paciente. Mo­lygruber olhou em volta e viu que estava num quarto com cinco outros pacientes. Depois, a sua vista turvou-se, a respiração tornou-se difícil e, durante algum tempo, ficou de novo sem tomar conhecimento de nada.

Um barulho que parecia vir de pratos e de um grande carro de rodas sendo empurrado despertou-o. Com es­forço, abriu, lentamente os olhos e, bem à porta da en­fermaria — do outro lado da sua cama — viu um relu­zente carro cromado, que parecia cheio de pequenos ar­mários também reluzentes. Uma enfermeira surgiu, como por encanto, e começou a distribuir bandejas com comida, cada uma delas com o nome de um paciente.

Um enfermeiro aproximou-se dele, olhou-o e per­guntou:

—         Como é, está se sentindo melhor?

O velho Molygruber grunhiu uma resposta, pois sen­tia-se por demais exausto para falar e qualquer idiota po­deria ver que estava se sentindo muito mal.

O enfermeiro tirou uma coisa da cabeceira da cama e disse:

—         Estique o braço esquerdo, vou tomar a sua pressão.

Molygruber sentiu um aperto no braço e depois no­tou que o enfermeiro tinha um estetoscópio nos ouvidos, enquanto com a mão direita apertava uma espécie de pêra de borracha. Molygruber caiu de novo num torpor e voltou a acordar quando já não sentiu mais o aperto no braço.

—         OK disse o enfermeiro. O Dr. Phlebotum não deve demorar. Acho que está começando a ronda. .Até já!

E foi de cama em cama.

—         Que é que há com você, rapaz, que foi que houve com o seu café da manhã, hoje? perguntou ele a um dos pacientes.

Molygruber viu que o homem tinha a seu lado uma espécie de mastro, do qual pendia um vidro, de onde saíam tubos. Perguntou, com voz débil:

Que é isso, que estão fazendo com ele?

É uma solução salina respondeu o enfermeiro, pra ver se lhe melhora as idéias.

A vista turvou-se de novo e Molygruber ficou ouvindo a própria respiração ofegante, como se ecoasse a dis­tância. Ficou outra vez preocupado. Sentiu uma mão na garganta e percebeu que lhe estavam desabotoando o pi­jama.

Que é que há com este sujeito? perguntou uma voz de homem. Molygruber abriu os olhos e viu o que sem dúvida seria o médico, com um jaleco branco, no peito do qual estava bordado, do lado esquerdo, "Dr. Phlebotum".

Ah, Doutor, o acadêmico disse que ele tem pneu­monia dupla, de modo que estamos esperando que o senhor o examine.

O médico fechou a cara e disse:

—         Quer dizer que os acadêmicos agora deram para diagnosticar?

Curvou-se e aplicou o estetoscópio ao peito de Mo­lygruber. Depois, bateu com o indicador no peito e auscultou-o.

—         Ele precisa tirar uma radiografia, os pulmões pa­recem estar cheios de líquido. Cuide disso, sim, enfer­meira?

O médico escreveu algo na tabuleta colocada aos pés da cama de Molygruber e passou para o paciente se­guinte. Molygruber adormeceu.

Um barulho de vozes fez com que ele abrisse de novo os olhos. Uma enfermeira e um atendente estavam tra­zendo uma maca sobre rodas para junto da cama dele. Empurraram-no bruscamente para um dos lados da cama e colocaram a beira da maca debaixo do seu corpo. De­pois, com um gesto rápido, "como o de um pescador trazendo um peixão para terra", pensou ele, passaram-no para a maca e o atendente cobriu-o depressa com um lençol e empurrou-o corredor abaixo.

Que foi que houve com você, vovô? pergun­tou o atendente.

Não sei respondeu Molygruber. Entrei numa água fria ontem e não tive oportunidade de me enxugar, de maneira que fiquei muito quente, e depois com muito frio e acho que caí, porque, quando acordei, descobri que estava naquela enfermaria. Puxa, que dor no peito, será que ninguém vai fazer nada pra me tirar essa dor?

O atendente sussurrou entre dentes:

—         Claro que vamos fazer, não tá vendo que o esta­mos levando para o raio X? Para que você acha que va­mos fazer isso, se não para ajudá-lo?

Com um tranco, a maca parou contra uma parede.

—         Chegamos! disse o atendente. Agora você espera um pouco, que já vêm buscar você. Puxa, que dia cheio! Acho que vai ser um desses dias de louco, não sei como é que eu ainda estou neste hospício!

E, dando meia-volta, saiu apressado pelo corredor de paredes de vidro. O velho Molygruber ficou ali durante o que lhe pareceu uma eternidade. Cada vez lhe doía mais respirar. Por fim, uma porta abriu-se violentamente e uma enfermeira saiu, empurrando outra maca.

—         Vou deixar você aqui disse ela à mulher es­tendida na maca e alguém virá buscá-la para levá-la de volta à enfermaria.

Dizendo isso, virou-se para o velho Molygruber.

Bem, você é o próximo, que é que há com você?

Não posso respirar, só isso respondeu Moly­gruber.

A mulher agarrou a maca e, com força aparentemente desnecessária, empurrou-a porta adentro, para uma sala às escuras. A luz mal dava para Se ver a própria mão di­ante do rosto, mas Molygruber pôde distinguir estranhos tubos metálicos, fios e peças cromadas e, num dos lados da sala, algo semelhante a uma caixa de cinema. A mu­lher colocou-o contra o que parecia ser uma mesa, só que, em vez de reta, era um pouco curva.

Que há com ele? — perguntou uma voz e uma jovem saiu de trás da cabine de vidro.

Tenho aqui a tabuleta dele. Suspeita de pneumo­nia dupla. Radiografia do tórax, de frente e de costas.

A jovem e a enfermeira agarraram no velho Moly­gruber, empurraram a maca mais para junto da mesa e, com um movimento preciso, colocaram-no em cima da mesa cromada e de superfície curva.

Alguma vez já tirou radiografia? — perguntou a jovem.

Não, nunca, não entendo nada disso — respondeu Molygruber.

Muito bem, deixe por nossa conta — falou a moça. — Fique aí, de costas e faça o que a gente lhe disser, mais nada.

Fez descer uma grande caixa, que parecia suspensa de tubos cromados. Apertou botões. Acendeu-se uma lu­zinha e ela projetou no peito dele algo semelhante a um X. Depois, aparentemente satisfeita, disse:

Agora, não se mexa e, quando eu disser "respire", respire fundo e prenda a respiração, entendeu?

Entendi — retrucou Molygruber. — Avise-me quando for para prender a respiração.

A jovem colocou-se atrás da cabine. Passado um mo­mento, gritou:

—         Pronto, prenda a respiração! — e ouviu-se como que um sibilar.

—         Muito bem, pode respirar — disse a moça.

Aproximou-se da mesa e deu a impressão de que abria gavetas. Molygruber só podia ver que ela tinha nas mãos uma grande caixa de metal, maior do que o seu peito. Depois, pegou outra e colocou-a debaixo da mesa em que ele estava deitado.

—         Agora, vamos virá-lo de bruços — disse ela.


 

Segurou-o e virou-o, até colocá-lo na posição cor­reta. Mais uma vez, mexeu na caixa preta e de novo saiu uma luzinha que projetou um X em cima dele. Depois, ela voltou ao cubículo de vidro e ordenou, novamente.

—         Prenda a respiração. Pronto, pode respirar.

A coisa continuou durante algum tempo. Molygruber perdeu a conta do número de radiografias tiradas, mas, por fim, a moça voltou para junto dele e disse:

—         Muito bem, agora vou levá-lo para fora e o se­nhor vai ter que esperar que a gente veja se as chapas saíram boas. Se não, vamos buscá-lo outra vez.

Dizendo isso, abriu a porta e empurrou a maca para fora. Molygruber ficou pensando que era mais ou menos como se fossem locomotivas mudando de vagões e que, naquele hospital ninguém parecia ter compaixão ou con­sideração pelos pacientes, era tudo feito com brutalidade e às pressas.

Depois de muito, muito tempo, uma garotinha — que não parecia ter mais de catorze anos — entrou, arras­tando os pés e fungando, como se estivesse muito res­friada. Sem falar nada com Molygruber, começou a em­purrar a maca. E assim, com a mocinha fungando e em­purrando, Molygruber atravessou de novo o corredor e acabou chegando à enfermaria de onde tinha saído. A moça deu um último empurrão à maca, dizendo:

- Pronto, aí está ele — e foi embora.

A maca rolou e foi bater na parede oposta. Ninguém ligou a mínima, mas por fim o enfermeiro aproximou-se e empurrou-a para junto da cama.

—         Pronto, já acabou — disse-me o doutor — vai voltar mais ou menos daqui a uma hora. Espero que você agüente até lá.

Molygruber foi novamente tirado da maca e colo­cado na cama. O enfermeiro puxou-lhe o lençol até o queixo, de maneira despreocupada, e empurrou a maca para fora da enfermaria.

Outro enfermeiro entrou correndo e só parou junto à cama do velho Molygruber.

Foi você quem tirou uma garotinha da água, on­tem? — perguntou ele, num murmúrio que ressoou por toda a enfermaria.

É, fui eu — disse Molygruber.

Bem, a mãe dela está aqui, pediu para ver você, mas a gente disse que você não podia vê-la, que estava muito doente. Ela está querendo criar caso.

Nesse momento, ouviram-Se passos fortes e uma mu­lher entrou na enfermaria, acompanhada de um policial.

—         É esse aí — disse a mulher, furiosa. — Ele ontem roubou o chapéu da minha filha.

O guarda avançou e olhou severamente para Moly­gruber, dizendo:

Esta dona está se queixando de que o senhor on­tem roubou o chapéu da filha dela e jogou-o na água.

Que mentira! — exclamou o velho Molygruber. — Eu tirei a menina da água, quando todo mundo estava parado, vendo ela se afogar. A mãe não fez nada para salvar a filha. Não vi nenhum chapéu, que é que o se­nhor acha que eu ia fazer com ele, comê-lo?

O guarda olhou em volta e depois virou-se de novo para o velho.

Foi o senhor quem salvou a criança do lago? O cara de que todo mundo está falando?

É, acho que sim — respondeu Molygruber.

Bem, a senhora não me falou nada disso — disse o guarda, voltando-se para a mulher. — Não me disse que ele tinha tirado a sua filha da água. Que espécie de mãe é a senhora, que tem coragem de acusar o homem que salvou sua filha?

A mulher ficou vermelha e depois pálida de raiva, até que, finalmente, disse:

—         Bem, alguém roubou o chapéu. A menina não está com ele, eu também não, de modo que só pode ter sido roubado.

O policial pensou um momento e depois disse:

—         Vou até a sala das enfermeiras, quero telefonar para o chefe.

Dirigiu-se para a referida sala, que ficava junto ao elevador. Logo em seguida, ouviu-se uma porção de "sim, senhor" e "não, senhor" e "muito bem, vou fazer isso, chefe". Depois, o homem voltou para a enfermaria e disse para a mulher:

—         O chefe mandou dizer que se a senhora teimasse em acusar o velho, eu podia prendê-la por perturbar a ordem, de modo que acho bom a senhora desistir da acusação ou vai ter que me acompanhar, e vou logo lhe avisando que o chefe tá um bocado aborrecido com a senhora.

Sem dizer palavra, a mulher deu meia-volta e saiu da enfermaria, seguida pelo guarda.

O velho Molygruber ficou bastante afetado por toda aquela história. Sua respiração tornou-se ainda mais estertorante, o enfermeiro aproximou-se, olhou para ele e apertou o botão de emergência, na cabeceira da cama. Não tardou que a enfermeira-chefe entrasse para dar uma olhada em Molygruber e saísse correndo para telefonar ao médico de plantão.

O velho Molygruber adormeceu e teve vários sonhos, perturbados por alguém que lhe desabotoava o casaco do pijama.

—         Puxe as cortinas, enfermeira, quero olhar o peito dele disse uma voz de homem.

O velho olhou para cima e viu um novo médico que, percebendo que o paciente estava acordado, disse:

—         O senhor tem líquido nos pulmões, líquido na pleura. Vamos ter que tirar um pouco dessa água.

Uma médica entrou, seguida de uma enfermeira, em­purrando uma bandeja sobre rodas para junto da cama. O médico disse:

—         Será que o senhor pode se sentar?

O velho tentou, mas estava demasiado fraco, de modo que lhe colocaram um cobertor embaixo dos pés e o que parecia ser um lençol enrolado passando por baixo dele e amarrando-o à cabeceira da cama, para que ele ficasse em posição sentada e sem poder escorregar.

A médica pegou uma seringa e começou a injetar algo no lado esquerdo de Molygruber. Esperou um pouco e depois espetou-o com uma agulha.

—         Pronto, ele já não sente disse ela, recuando.

Uma enfermeira trouxe um grande jarro de vidro, com uma abertura no alto e outra no fundo. Fixou cuidadosa­mente um tubo de borracha em cada abertura e prendeu-os com clipes. Segurou o jarro contra a luz e Molygru­ber viu que ele estava cheio de água. Depois, pendurou o vidro do lado da cama, logo abaixo do colchão, e ficou segurando a ponta do tubo nas mãos, enquanto que a outra ponta, a que saía do fundo do jarro, caía para den­tro de um balde.

O médico estava ocupado mexendo em algo, de cos­tas para o velho Molygruber. Por fim, voltou-se e o velho quase desmaiou, ao ver a enorme agulha que ele tinha nas mãos.

—         Vou enfiar este trocarte entre as suas costelas e extrair o fluido da sua pleura. Depois, vamos lhe fazer um pneumotórax artificial, para imobilizar o seu pulmão esquerdo. Mas primeiro temos que tirar o líquido. Não vai doer muito — disse ele.

Aproximou-se de Molygruber e enfiou-lhe, lentamente, o tubo de aço entre as costelas. A sensação era horrível. O velho, teve a impressão de que as costelas estavam es­tourando, que o coração ia lhe sair pela boca. A primeira tentativa não foi bem-sucedida. O médico tentou de novo, e mais uma vez, até que por fim, já muito aborrecido com o seu fracasso, deu nova espetadela e um líquido amarelo escorreu para o chão.

—         Rápido, enfermeira, rápido! — disse o médico, exasperado. — Me dê esse tubo.

E enfiou o tubo na ponta da agulha de aço.

—         Este trocarte parece estar cego — observou, en­quanto apalpava o peito de Molygruber.

A enfermeira ajoelhou-se ao lado da cama e logo depois Molygruber ouviu uma água correndo. Notando o seu espanto, a médica explicou:

—         Pois é, enfiamos esse trocarte entre as suas cos­telas e o introduzimos numa bolsa de líquido da pleura. Depois, soltamos os dois clipes do jarro que o senhor viu e o peso da água, distilada, ao sair, chupa o líquido dos seus pulmões. Logo o senhor vai melhorar — disse ela, com uma certeza que estava longe de ser sentida.

O velho estava ficando cada vez mais pálido, embora só Deus soubesse a falta de cor que ele costumava ter.

O médico disse:

—         Enfermeira, segure aqui — e depois voltou para junto da mesa, ouviu-se o tilintar de metal e vidro e logo ele se aproximou do paciente e, com um movimento rá­pido, enfiou a agulha no que a Molygruber pareceu ser o coração.

Pensou que ia morrer ali mesmo. Por um momento, sentiu um choque enorme, seguido de calor, e não tar­dou a perceber que o coração lhe batia com mais força, ao mesmo tempo que um pouco de cor lhe voltava às faces.

Então, já se sente melhor, não? — perguntou o médico, de novo jovial.

Acha que devemos lhe aplicar soro? — perguntou a médica.

É, talvez devêssemos. Apanhe o material, enfer­meira, vamos cuidar já disso — falou o médico, enquanto mexia em vários tubos.

A enfermeira voltou, empurrando o que parecia ser um pau muito comprido curvado na ponta e com rodas na outra extremidade. Colocou-o do lado direito de Moly­gruber e depois pendurou um vidro do gancho existente na ponta superior. Ligou um tubo de borracha e deu a ponta ao médico, que inseriu cuidadosamente outra agu­lha no braço direito de Molygruber. A enfermeira soltou a mola e Molygruber teve a sensação estranha de que algo escorria do tubo para dentro das suas veias.

—         Pronto — disse o médico. — Logo o senhor se sentirá melhor. É só ficar quieto.

O velho fez que sim com a cabeça e depois mergu­lhou novamente no sono. O médico olhou para ele e comentou:

—         Não estou gostando, vamos ter que vigiá-lo. Dizendo isso, saíram, deixando à enfermeira o tra­balho restante.

 

Bem mais tarde, no fim do dia, uma outra enfermeira despertou o velho:

—         Puxa, o senhor está com um aspecto bem melhor, está na hora de comer alguma coisa, não acha?

O velho fez mecanicamente que sim. Não tinha von­tade de comer, mas a enfermeira insistiu. Colocou uma bandeja sobre a mesa ao lado da cama dele e disse:

—         Escute, vou lhe dar de comer e o senhor vai comer, tivemos demasiado trabalho com o senhor para perdê-lo agora.

E começou a enfiar comida na boca do paciente, mal permitindo que o pobre diabo engolisse antes de passar à outra colherada.

Nesse momento, o guarda entrou na enfermaria e, afastando para o lado as cortinas, aproximou-se da cama de Molygruber.

—         Estou enxotando os jornalistas — disse ele. — Aqueles urubus estão tentando invadir o hospital. Que­rem manchetes a respeito do gari que salvou a criança, mas nós dissemos que o senhor está muito doente e não quer vê-los. Ou será que quer?

O velho abanou a cabeça com toda a ênfase possível e depois murmurou:

—         Não, puxa, será que eles deixam um cara morrer em paz?

O guarda olhou para ele rindo e replicou:

—         Que nada, o senhor ainda tem vida para muitos anos, daqui há pouco vai estar de novo empurrando a sua carrocinha e varrendo o lixo de todos eles. Mas pre­cisamos manter a imprensa à distância. Ameaçamos mover uma ação contra eles, se insistirem.

Deu meia-volta e saiu da enfermaria, deixando a en­fermeira a alimentar o velho, até ele ter medo de que a comida lhe saísse pelas orelhas.

Cerca de meia hora mais tarde, o médico voltou, olhou para Molygruber e depois inclinou-se para examinar o vi­dro debaixo da cama.

—         Ah! — exclamou o médico. — Acho que já tira­mos toda a água daquela bolsa. Agora, vamos bombear um pouco de ar para imobilizar o pulmão. Levamos ar para a pleura a fim de empurrar o pulmão para dentro e o senhor não poder respirar com ele. Assim, o órgão descansa um pouco. Vou também lhe dar oxigênio. Pôs a cabeça para fora das cortinas e disse:

—         Vocês aí vão ter que parar de fumar, não pode fumar aqui dentro enquanto instalamos a tenda de oxi­gênio.

Os outros pacientes reagiram com exclamações de revolta. Um deles disse:

—         Por que é que a gente vai deixar de fumar por causa dele? Que foi que ele fez por nós?

E acendeu um cigarro, de propósito.

O médico dirigiu-se à sala das enfermeiras e deu um telefonema. Dentro de instantes, um atendente entrou na enfermaria e levou o velho Molygruber, juntamente com o soro, dali para um quarto particular.

—         Pronto — disse o médico — agora podemos lhe dar oxigênio sem o risco de provocar um incêndio.

A aparelhagem foi colocada no lugar e um tubo foi ligado à saída de oxigênio existente na parede do quarto. Molygruber logo sentiu os benefícios da medida, come­çou a respirar mais facilmente e a sentir-se bem melhor.

—         Vamos deixá-lo toda a noite na tenda — disse o médico — e amanhã o senhor já estará quase bom.

E saiu do quarto.

O velho adormeceu de novo, dessa vez com mais conforto. Mas, já tarde da noite, um outro médico en­trou no quarto, examinou-o cuidadosamente e disse:

—         Vou retirar o trocarte, já secamos o pulmão. Daqui a uma hora, vamos tirar uma nova chapa e depois vere­mos o que fazer.

Virou-se para sair, mas depois voltou, perguntando:

Não tem parentes? Quer que a gente se comu­nique com alguém?

Não, não tenho ninguém no mundo — responde Molygruber. — Vivo só, mas espero que a minha carro­cinha esteja bem guardada.

O médico riu:

—         Pode ficar sossegado, a sua carrocinha está muito bem guardada. A Limpeza Urbana levou-a para o depó­sito. Agora, só falta a gente cuidar do senhor. Procure dormir.

Antes que ele alcançasse a porta, Molygruber já es­tava sonhando com mães furiosas, exigindo chapéus no­vos para os filhos, e com repórteres insolentes, avançando para a cama dele. Abriu os olhos, assustados, e deu com um enfermeiro retirando-lhe o soro e preparando-o para as novas radiografias.

—         Posso entrar? — perguntou uma voz extremamente melancólica. — Sou um padre.

O velho Molygruber abriu os olhos e fixou-os, con­fusamente, na figura que estava à sua frente. Um homem muito alto e magro, todo vestido de preto, à exceção do colarinho branco de sacerdote, por cima do qual um po-mo-de-adão muito proeminente subia e descia como se tentando pular da estreita garganta. Tinha o rosto pálido, as faces macilentes e um comprido nariz vermelho.

O padre olhou para o paciente e sentou-se numa cadeira ao lado da cama.

—         Sou padre e estou estudando psicologia aqui no hospital. Espero poder levar a palavra de Deus aos doen­tes. Estudei no Maritimes.

Molygruber franziu a testa, ou melhor, a sobrancelha, e retrucou:

— Pois eu estudei em Calgary... no depósito de lixo da cidade.

O padre olhou para ele e disse, com ar preocupado:

—         Fiquei muito triste em ver que, na sua ficha de admissão, constava que o senhor não tinha religião. Por isso vim lhe trazer a palavra de Deus.

O velho franziu ainda mais a testa e replicou.

—         A palavra de Deus? Para que é que eu quero a palavra de Deus? Que foi que Deus já fez por mim? Nasci órfão — disse ele, sem observar o disparate que dizia. — Minha mãe não quis saber de mim e eu nunca soube quem foi meu pai, acho que pode ter sido um entre cem. Desde que me entendo por gente que me valho a mim mesmo. Quando eu era criança, me ensinaram a rezar e eu rezava. Nunca ganhei nada com isso, até que por fim arrumei emprego carregando lixo na Limpeza Urbana.

O padre olhou para a ponta do nariz, torceu os de­dos e, finalmente, disse:

—         O senhor está muito doente. Por acaso conside­ra-se preparado para se defrontar com o Criador?

Molygruber olhou firme para o padre e respondeu:

—         Como é que eu vou saber quem foi o meu cria­dor? Já lhe disse que pode ter sido qualquer um. Ou será que o senhor pensa que Deus desceu lá do céu e me fez com as próprias mãos?

O padre ficou escandalizado e replicou, num tom ainda mais melancólico:

—         Você está caçoando de Deus, meu filho. Não vai conseguir nada de bom agindo assim. Você deve se pre­parar para se defrontar com o seu Criador, nosso Se­nhor, porque talvez dentro de muito pouco tempo você tenha de enfrentar o Seu julgamento. Acha que está pre­parado para isso?

Molygruber retrucou, com ímpeto.

Será que o senhor acredita mesmo em toda essa lorota?

Claro que acredito disse o padre. Está es­crito na Bíblia e todo mundo sabe que um cristão crê no que está escrito na Bíblia.

—         Pois eu não acredito disse o velho. Li al­guma coisa da Bíblia quando era jovem, até que desco­bri que tudo aquilo era conversa fiada. Quando a gente morre, morre mesmo. A gente morre e é enterrado e, quando tem parentes, o que eu não tenho, eles colocam flores numa jarra e depois pegam esta jarra e colocam em cima da gente. Não, o senhor nunca vai me convencer de que existe uma vida depois desta. Eu, pelo menos, não gostaria!

O padre pôs-se de pé e começou a andar, agitado, de um lado para o outro do quarto, até Molygruber ficar quase tonto de ver aquela silhueta preta, como o Anjo da Morte, esvoaçando diante dos seus olhos.

—         Uma vez eu folheei um livro de um sujeito que mora perto de onde eu trabalho, um cara chamado Rampa. Ele também escreveu um bocado de besteiras so­bre a vida depois que a gente morre. Ora, todo mundo sabe que isso é bobagem. Quando a pessoa morre, morre mesmo, e quanto mais tempo fica morta, mais fede. Já apanhei um bocado de gente morta, bêbados e gente assim e, passado algum tempo... puxa!.. a gente não pode nem chegar perto deles!

O padre sentou-se de novo, estendeu solenemente o dedo para o velho Molygruber e depois disse, indignado:

—         Você vai pagar por isso, meu filho, vai pagar por usar o santo nome de Deus em vão, por caçoar da Bí­blia. Pode ter a certeza de que Deus vai descarregar a Sua ira em cima de você!

Molygruber pensou um momento e disse:

—         Como é que vocês falam que Deus é bom, é um Pai, que ama todos os Seus filhos, tem piedade e compaixão deles, etc. e, logo depois, dizem que Deus vai se vingar? Como é que se pode explicar isso? E há outra coisa que o senhor podia me responder. A Bíblia diz que se a pessoa não aceitar Deus ela vai para o in­ferno. Eu também não acredito nessa história de inferno, mas, se a gente só se salva se aceitar Deus, o que acon­tece com o pessoal que viveu neste mundo antes de se falar no seu Deus?

O padre tornou a levantar-se, a voz trêmula de raiva, o rosto vermelho de indignação. Brandiu o punho para Molygruber e disse:

—         Escute aqui, não estou acostumado a ver pessoas como você me falando assim. A menos que você aceite os ensinamentos de Deus, pode ter a certeza de que a ira divina cairá sobre sua cabeça.

Deu um passo à frente e Molygruber pensou que o homem fosse lhe bater. Fazendo um esforço enorme, procurou sentar-se na cama. Sentiu uma dor terrível no peito, como se as costelas estivessem sendo amassadas. O seu rosto ficou azul e ele caiu para trás com um soluço, revirando os olhos.

O padre empalideceu e correu para a porta.

—         Depressa, depressa grasnou. O homem mor­reu enquanto eu falava com ele. Eu bem lhe avisei que a ira do Senhor se abateria sobre alguém tão ímpio.

E correu para um elevador que estava aberto. Entrou sem ver direito, mas conseguiu apertar o botão de des­cida.

Uma enfermeira pôs a cabeça para fora do seu cubí­culo e perguntou:

—         Que é que há com esse padre? Ele ainda vai aca­bar matando alguém de enfarte. Com quem ele estava falando?

Um atendente saiu de outra enfermaria e respondeu:

—         Não sei, mas acho que com Molygruber. Vamos dar uma olhada para ver se ele está bem.

Os dois entraram no quarto e encontraram Moly­gruber ainda agarrando o peito. Tinha os olhos semi­abertos e a boca caída. A enfermeira aproximou-se do botão de emergência e tocou-o de acordo com o código especial. Não tardou que o sistema de alto-falantes do hospital pedisse ao Dr. Fulano de Tal que se dirigisse de­pressa para aquele andar.

—         Acho melhor a gente endireitá-lo um pouco disse a enfermeira ou o doutor ainda bronqueia co­nosco. Ah, aí está ele.

O médico entrou no pequeno quarto, dizendo:

—         Puxa, o que foi que aconteceu com o paciente? Olhem só para a expressão no rosto dele! E eu, que es­perava que dentro de alguns dias ele pudesse receber alta!

Aproximou-se e colocou o estetoscópio nos ouvidos. Depois, desabotoou o casaco do pijama de Molygruber e auscultou-lhe o peito. Estendeu a mão direita e tomou o pulso não existente do velho.

—         Nenhum sinal vital, enfermeira, nenhum. Vou providenciar o atestado de óbito mas, enquanto isso, mande levá-lo para o necrotério. Precisamos desta cama, há inúmeros pacientes esperando.

Tirou o estetocópio dos ouvidos deixando-o pendu­rado no pescoço. Escreveu alguma coisa na papeleta de Molygruber e saiu do quarto.


 

A enfermeira e o atendente trocaram as roupas da cama de Molygruber, amarraram-lhe a calça do pijama e abotoaram-lhe o casaco.

—         Vá buscar a maca — disse a enfermeira.

O atendente saiu e logo voltou com a mesma maca na qual Molygruber fora da enfermaria até o raio X. Os dois levantaram os lençóis da maca, revelando, debaixo dela, uma outra maca, onde colocaram o corpo de Moly­gruber e o amarraram — pois não era de bom-tom dei­xar cadáver escorregar para o chão — puxando depois os lençóis para cima dos lados da maca, e escondendo in­teiramente o corpo.

O assistente riu e comentou:

—         Se alguns visitantes desconfiassem que por de­baixo desta maca há um cadáver, desmaiariam!

E empurrou a maca para fora do quarto, assobiando pelo corredor em direção ao elevador. Apertou no botão que dizia "Subsolo" e ficou de costas para a maca, en­quanto o elevador parava em todos os andares com o entra-e-sai das pessoas. No andar térreo, ninguém entrou, de modo que ele continuou até o subsolo, onde puxou a maca para fora do elevador. Empurrou-a por outro cor­redor e bateu em uma porta, que foi imediatamente aberta.

—         Mais um para você — disse ele ao atendente do necrotério. — Acaba de morrer. Trouxe-o logo, acho que não vai precisar de autópsia. Pode começar a mandar brasa.

—         Parentes? — perguntou o atendente do necrotério.

—         Nenhum — respondeu o outro. — Vai ter que ser enterrado como indigente ou, como é gari, talvez a Pre­feitura lhe pague o enterro. Mas duvido, estão sempre se queixando de falta de verba.

E ajudou o colega a tirar o corpo da maca e estendê-lo numa das mesas. Puxando o lençol que cobrira o corpo, o atendente deu meia-volla e saiu do necrotério asso­biando.

 

Mas o que aconteceu com Leonides Manuel Moly­gruber? Apagou-se como uma luz subitamente desligada? Expirou como um fósforo soprado? Não! Nada disso.

Molygruber, deitado naquela cama de hospital, sen­tindo-se à beira da morte, ficou muito afetado com a vi­sita do padre. Pensou o quão impróprio era para um sa­cerdote ficar cada vez mais vermelho de raiva e, da posi­ção em que estava, pareceu-lhe que o padre tinha a in­tenção de pular em cima dele e estrangulá-lo, por isso sentou-se de repente, procurando se defender e, talvez, gritar por socorro.

Fizera aquele movimento com um esforço enorme e respirou o mais fundo que podia. Imediatamente sentiu uma dor horrível no peito. O coração disparou como se fosse o motor de um carro posto a funcionar enquanto ainda parado. Seu coração acelerou e parou.

Sentiu-se, então, tomado de pânico. O que lhe iria acontecer? Qual seria o seu fim? Agora, pensou, vou ser apagado como a vela que eu costumava soprar quando era garoto, no único lar que eu conheci, como órfão. O pânico era enorme, sentia como se todos os seus nervos estivessem pegando fogo, como se alguém estivesse ten­tando virá-lo pelo avesso, como imaginava que um coelho se sentiria se é que um coelho morto podia sentir algo quando lhe estavam tirando a pele, antes de cozi­nhá-lo.

De repente, deu-se um violento terremoto, ou pelo menos foi o que lhe pareceu, e o velho Molygruber sur­preendeu-se voando. O mundo parecia composto de pon­tos como se uma poeira se tivesse levantado, ou um ci­clone tivesse feito tudo andar à volta. Depois, sentiu como se alguém o tivesse agarrado e colocado numa máquina de secar roupa ou num liquidificador.

Tudo ficou escuro. As paredes do quarto, ou "algo'' indescritível, deram a impressão de se fechar à sua volta. Sentiu como se estivesse dentro de um tubo de borracha pegajoso e escorregadio do qual procurasse, em vão, sair.

Tudo ficou mais e mais escuro. A impressão que ele tinha era de estar num tubo muito comprido, cujo inte­rior era completamente negro. Mas, ao longe, no que sem dúvida era a extremidade do tubo, ele viu uma luz, ou não seria uma luz? Era algo vermelho, que mudava para laranja-forte, como a roupa fluorescente que ele usava ao varrer as ruas. Lutando freneticamente, procurou sair do tubo. Parou para respirar um pouco e descobriu que não estava respirando. Prestou atenção e não conseguiu ouvir o latejar do coração e sim um ruído estranho, lá de fora, como que o sibilar de um vento forte. Depois, enquanto permanecia propositadamente imóvel, sentiu como se o empurrassem tubo acima, até chegar ao alto. Durante um momento, ficou preso na extremidade do tubo, mas logo ouviu-se um violento baque e ele foi cuspido para fora do tubo. Caiu de lado, sempre girando, e não viu nada, nenhuma luz vermelha, nenhuma luz laranja. Nem sequer escuridão. NADA!

Apavorado e sentindo-se muito esquisito, esticou os braços, mas nada se mexeu. Era como se não tivesse bra­ços. O pânico assaltou-o de novo, e ele tentou chutar, chutar com força, procurando acertar em algo. Mas de novo não sentiu nada, não sentiu as pernas. Fez um su­premo esforço para, com as mãos, tocar alguma parte do seu corpo, mas, para sua surpresa, era como se não ti­vesse mãos, nem braços, nem corpo. Ele apenas "existia", nada mais. Lembrou-se de alguma coisa que ouvira havia muito tempo. Algo referente a um espírito desencarnado, a um fantasma sem forma, sem corpo, mas que, mesmo assim, existia. Parecia mover-se violentamente e, ao mesmo tempo, estava imóvel. Sentiu pressões estranhas e, de repente, parecia estar grudado em piche quente.

Havia muito, muito tempo, tanto tempo que quase se perdia em sua memória, ele, garotinho ainda, ficara vendo uns homens asfaltar uma estrada. Um dos operá­rios, talvez por maldade, talvez por descuido, derrubara-lhe a vasilha de piche em cima. Ele ficara quase impos­sibilitado de mexer e era assim que se sentia agora. Quente, depois gelado de medo, depois novamente quente, e sempre com uma sensação de movimento que não era movimento, pois ele estava parado, estava quieto como — pensou — um morto.

O tempo passou, ou seria impressão? Não saberia di­zer ao certo, só sabia que estava ali, no centro do nada. Não havia nada à sua volta, não tinha corpo, nem braços, nem pernas, mas devia ter um corpo, senão, como pode­ria ele existir? Mas, sem mãos, não podia apalpar o corpo. Fixou a vista, olhou para todos os lados, mas não havia nada para ver. Nem sequer escuridão, não havia escuridão, não havia nada. De novo lhe veio à mente um fragmento de pensamento, referente às profundezas dos mares do espaço, onde nada existe. De onde lhe teria vindo aquele pensamento? perguntou a si mesmo, mas nenhuma idéia lhe veio à cabeça.

Ele existia sozinho em meio ao nada. Não se via nin­guém, não se ouvia nada, nada exalava cheiro, não havia nada a apalpar ou tocar e, mesmo que houvesse não adi­antaria porque ele não tinha com que tocar.

O tempo foi passando, ou não? Não fazia a menor idéia de quanto tempo estava ali. O tempo já não tinha significado. Nada tinha significado. Ele apenas estava "ali", embora não pudesse dizer onde era aquele "ali". Pare­cia ser um grão de poeira suspenso do nada, ou uma mosca presa numa teia de aranha, só que a mosca fica presa pela teia e ele não estava preso em nada. Sentia-se reduzido a nada. Sua mente, ou o que quer que es­tivesse no lugar dela, pôs-se a girar. Teria desmaiado, pen­sou, se é que se podia ter uma sensação dessas no estado em que se encontrava.


 

Ele era apenas algo ou, talvez, um nada rodeado pelo nada. Sua mente, ou a sua consciência, ou o que quer que fosse que ainda restava dele, procurava encadear pensamentos, criar algo para substituir aquele horrível nada. Pensou: "Sou um nada, mas um nada que existe no nada."

De repente, veio-lhe à mente um pensamento, como se fosse um fósforo aceso numa noite sem luar. Havia algum tempo, tinham-lhe pedido para fazer um trabalho extra, um homem tinha querido que ele lhe limpasse a garagem. O velho Molygruber tinha ido até lá, investigara e descobrira um carrinho de mão e algumas ferramentas de jardinagem. Depois, abrira a porta da garagem com a chave que o homem lhe dera e deparara com a mais in­crível coleção de velharias que jamais tinha visto. Um sofá quebrado, com as molas saltando para fora, uma ca­deira com as duas pernas partidas e traças saindo do es­tofo. Pendurados na parede, o chassi e a roda dianteira de uma bicicleta. Em volta, uma porção de pneus, pneus próprios para a neve e pneus velhos. Ferramentas enfer­rujadas e inúteis. Todo o lixo que só as pessoas muito econômicas conseguem acumular: um lampião de que­rosene, com um quebra-luz rebentado, uma persiana ve­lha, um manequim de costureira. Molygruber levara tudo para fora e empilhara tudo num canto do terreno para que o caminhão do lixo levasse no dia seguinte. Depois, voltara à garagem.

Uma velha banheira, embutida em uma mesa de co­zinha, aguçara a sua curiosidade e ele começara a puxá-la para fora, sem conseguir arredá-la. Decidira, então, ti­rar primeiro a mesa. Com a força, a gaveta central caíra, espalhando algumas moedas. Bem, pensara o velho Moly­gruber, é uma pena jogá-las fora, dão para pagar uns dois cachorros-quentes. Guardou-as no bolso. Um pouco mais no fundo da gaveta, encontrara um envelope com várias notas de diferentes países. Ótimo, pensara, vou levá-las a uma casa de câmbio e trocá-las. Mas o seu interesse es­tava na banheira. Tirara a mesa e pusera-a do lado de fora da garagem. Depois, encontrara uma porção de tol­dos podres e uma cadeira de lona partida em cima da peça. Pusera tudo para fora e, finalmente, conseguira ar­rastá-la para o meio da garagem.

A velha banheira estava cheia de livros, alguns bem esquisitos. Mas Molygruber não sossegou enquanto não amontoou-os todos no chão. E, entre eles, encontrou al­guns que lhe chamaram a atenção — livros escritos pelo tal Rampa. Folheou-os a esmo.

— Ah! — dissera ele para si mesmo — este sujeito deve ser mesmo um charlatão, acredita que a vida não acaba nunca.

Jogara-os de novo na pilha e apanhara mais alguns. Aquele Rampa parecia ter escrito uma porção de livros. Molygruber contara-os e ficara tão espantado com o nú­mero, que resolvera contá-los de novo. Alguns estavam ilegíveis, porque aparentemente um vidro de tinta derra­mara em sua superfície. Havia um livro lindamente en­cadernado a couro. Molygruber deixara escapar um sus­piro, ao pegá-lo, pois a tinta estragara o couro. Que pena, pensara ele, só aquela encadernação podia valer-lhe uns bons dólares. Mas não adiantava se lastimar e o livro foi atirado para junto dos outros.

Bem no fundo da banheira havia outro livro, salvo da sujeira, do pó e da tinta pelo fato de estar encapado em plástico grosso. Molygruber inclinara-se e tirara-o da capa. Chamava-se Você e a Eternidade. Folheava-o e vira que tinha algumas ilustrações. Obedecendo a um súbito im­pulso, guardara-o no bolso, antes de continuar com o trabalho.

Agora, naquela sua estranha condição de existir no nada, ele recordava algumas das coisas que o livro dizia. Ao voltar para casa, naquela noite, bebera uma lata de cerveja e comera um grande pedaço de queijo que com­prara no supermercado. Depois, pusera os pés em cima da mesa e lera algumas passagens do tal livro, Você e a Eternidade. Certas coisas que o livro dizia lhe tinham pa­recido tão fantásticas, que ele o havia desprezado num canto do quarto. Agora, ele se arrependia amargamente de não tê-lo lido mais, pois achava que, se o tivesse feito, poderia encontrar uma explicação para o seu atual dilema.

Seus pensamentos puseram-se a girar, qual grãos de poeira ao sabor de uma brisa caprichosa. Que é que o livro dizia? Que teria o autor querido dizer, ao escrever isto e aquilo? Que lhe teria acontecido? Molygruber lem­brou-se, arrependido, de como sempre se opusera à idéia da existência de vida após a morte.

Um dos livros de Rampa — ou seria uma carta que ele apanhara do lixo? — veio-lhe de repente à cabeça. "A menos que você acredite numa coisa, ela não pode existir." E: "Se um homem de outro planeta viesse à Terra, e fosse completamente diferente dos humanos, é bem possível que estes nem sequer o pudessem ver, pois suas mentes não seriam capazes de aceitar algo tão dis­tanciado dos seus pontos de referência."

Molygruber pensou muito e depois disse para si mesmo:

— Bem, eu estou morto, mas estou em algum lugar, de modo que devo existir e isso quer dizer que essa his­tória de vida depois da morte tem algum fundamento. Gostaria de saber qual.

Ao pensar nisso, voltou-lhe o nada, ou a sensação de estar coberto de piche — as sensações eram tão estra­nhas, que ele nem conseguia distingui-las bem, mas ad­mitiu a possibilidade de ter-se enganado, quando teve a certeza de que havia algo perto dele, algo que ele não podia ver, algo que não podia tocar. Mas, pensou, seria por ele agora já aceitar a existência de vida após a morte?

Lembrou-se então de umas coisas estranhas que os colegas tinham comentado, lá no depósito, a respeito de um sujeito internado num hospital de Toronto. O cara, diziam eles, tinha morrido e saído do seu corpo, desen­carnado. Molygruber não se lembrava de todos os de­talhes do caso, mas, até onde se recordava, um homem morrera, desencarnara e vira coisas surpreendentes no ou­tro mundo. Depois, para sua indignação, os médicos ti­nham-lhe ressuscitado o corpo e ele voltara a encarnar-se e contara a sua experiência a um repórter de jornal. Moly­gruber sentiu uma súbita alegria e quase pôde ver for­mas à sua volta.


 

De repente, sentou-se e esticou a mão para fazer ca­lar aquele maldito despertador. Estava tocando como nunca — nesse momento ele se lembrou de que não estava dormindo; lembrou-se de que não sentia os bra­ços, ou as mãos, ou as pernas, e que tudo ao seu redor era nada, nada exceto aquela espécie de campainha es­tridente, que parecia uma campainha, mas não era. Ele não sabia o que podia ser. Enquanto pensava naquilo, sentiu-se mover a uma velocidade enorme, a uma velo­cidade incrível, que na realidade não existia. Molggruber não tinha instrução suficiente para saber que existiam diferentes dimensões, a terceira, a quarta, etc. e que estava se movendo de acordo com antigas leis ocultas. Vamos dizer que ele se movia porque é realmente muito difícil acrescentar coisas quadridimensionais em termos de três dimensões.

Molygruber teve a impressão de que se movia cada vez mais rápido. Depois sentiu "algo" e, olhando em volta, viu formas veladas, viu as coisas como se através de um vidro fumê. Pouco tempo antes, tinha havido um eclipse do sol, e um dos seus colegas lhe dera um pe­daço de vidro fumê, dizendo:

— Olhe através desse vidro, Moly, e verá o que está acontecendo em volta do sol, mas não deixe cair.

Enquanto olhava, a névoa foi desaparecendo e ele deparou-se, horrorizado e cheio de pavor, com uma es­tranha cena.

Diante dele havia uma grande sala, cheia de mesas que pareciam de hospital. Cada uma delas ocupada por um cadáver nu, de homem ou de mulher, todos com a cor azulada da morte. Olhou e sentiu-se mal, coisas hor­ríveis estavam acontecendo com aqueles corpos. Estavam-lhes enfiando tubos em vários pontos, ouvia-se o sinistro gorgolejar de líquidos, e o barulho, não menos sinistro, de bombas sendo acionadas. Molygruber olhou mais de Perto, em mórbida fascinação, e viu que estavam tirando sangue de alguns dos corpos, em outros estavam bom­beando um líquido que, ao penetrar no cadáver, trans­formava-lhe o horrendo tom azulado numa cor exage­radamente saudável.

O interesse quase cruel de Molygruber fê-lo avançar. Passou por um cubículo no qual uma moça, sentada junto a uma das mesas, maquilava o rosto de um cadáver de mulher. Molygruber ficou impressionado. Os cabelos eram penteados, as sobrancelhas desenhadas a lápis, as faces pintadas com blush os lábios com um tom vermelho-vivo.

Continuou a "andar" e estremeceu ao ver outro corpo, que parecia recém-chegado. Sobre os olhos fechados do cadáver havia estranhos pedaços de metal em forma de cone que, segundo deduziu, e com acerto, destinavam-se a segurar as pálpebras. Depois, reparou que lhe atravessa­vam a gengiva inferior e superior com uma enorme agu­lha. Sentiu-se nauseado, ao ver o homem enfiar de re­pente um instrumento na narina esquerda do cadáver e, pegando na ponta da agulha, passá-la através do septo e depois puxar com força uma linha a fim de manter o queixo e a boca fechados. Se pudesse, Molygruber teria vomitado ali mesmo.

Foi então que, com um grande choque, viu um corpo que não era nada mais nada menos que o seu próprio. Viu-o ali, estendido, nu, em cima de uma mesa, emaciado, magro, desagradável à vista. Olhou, com desaprovação, para as suas pernas tortas, para os seus dedos nodosos. Perto dele havia um caixão que mais parecia uma concha.

A estranha força arrastou-o por um pequeno corredor e levou-o a uma sala. Lá, reconheceu quatro dos seus co­legas. Estavam sentados, falando com um rapaz bem ves­tido, que só parecia ter em mente o dinheiro que pode­ria tirar dali.

— Molygruber trabalhava para a Prefeitura — disse um dos seus ex-colegas. — Quase não tinha dinheiro, ti­nha um carro, mas não deve valer mais de cem dólares. É uma lata velha, para ele servia, mas acho que é só. Além do carro, que não deve dar mais do que uns cem dólares, ele tinha uma velha televisão, em preto e branco, que pode render de vinte a trinta dólares. Fora isso, to­dos os seus outros pertences... bem, acho que não vão dar mais de dez dólares, o que não chega para pagar um enterro, não é?

O rapaz bem vestido apertou os lábios, passou a mão pelo rosto e disse:

—         Bem, eu pensei que vocês pudessem fazer uma vaquinha para pagar o enterro de um colega morto em circunstâncias tão especiais. Sabemos que ele salvou uma criança de se afogar, que deu a vida por ela. Sem dúvida, alguém, mesmo na Prefeitura, custeará o seu funeral.

Os colegas entreolharam-se, abanaram a cabeça, tor­ceram os dedos e, por fim, um deles disse:

—         Bem, eu não sei, a Prefeitura não está querendo pagar o enterro dele e abrir um precedente. Disseram que, se a Prefeitura pagar, não faltará gente que se levante para reclamar. Não, eu acho que a Prefeitura não vai aju­dar.

O rapaz estava ficando impaciente, embora procurasse disfarçar. Afinal de contas, ele era um comerciante, es­tava acostumado com a morte, cadáveres, caixões, etc. e ganhava dinheiro fazendo enterros. Após pensar um pou­co, perguntou:

—         E o sindicato, será que ele não vai arcar com as despesas?

Os quatro ex-colegas abanaram quase que ao mesmo tempo a cabeça.

—         Não — disse um deles — já sondamos o pessoal, mas ninguém quer pagar. O velho Molygruber era um simples varredor de rua e não vai haver grande publi­cidade se o pessoal contribuir para o enterro dele.

O rapaz bem vestido levantou-se e dirigiu-se a uma sala ao lado.

—         Se quiserem chegar até aqui um momento — disse ele aos homens — posso lhes mostrar diferentes ti­pos de caixão, mas o enterro mais barato que podíamos fazer, o mais barato mesmo, não ficaria por menos de duzentos e cinqüenta dólares, com o caixão mais simples e o carro fúnebre para transportá-lo até o cemitério. Vo­cês não podem arrumar duzentos e cinqüenta dólares?

Os homens pareceram envergonhados e um deles respondeu:

Bem, acho que sim, a gente pode arrumar du­zentos e cinqüenta dólares, só que não vamos poder lhe dar essa importância agora.

Oh, eu não estou querendo que vocês me pa­guem já — retrucou o rapaz — desde que assinem este papel comprometendo-se a pagar. De outro modo, vocês compreendem, poderíamos ter que arcar com uma des­pesa que, afinal de contas, não é da nossa responsa­bilidade.

Os quatro colegas olharam significativamente uns para os outros e um deles disse:

—         Bem, acho que podemos arrumar até trezentos dólares, mas nem um centavo a mais. Vou assinar um pa­pel no valor máximo dessa quantia.

O rapaz puxou de uma caneta e deu-a ao homem, que assinou o seu nome, seguido do endereço. Os ou­tros imitaram-no.

O rapaz sorriu para eles, satisfeito por ter conseguido o que pretendia, e disse:

—         Temos que nos garantir porque o corpo do Sr. Molygruber está ocupando muito espaço e temos um negócio florescente, de modo que ele precisa ser remo­vido o mais depressa possível, ou seremos obrigados a acrescentar outras despesas à conta.

Os homens mostraram ter entendido, despediram-se e se dirigiram para o carro que os havia trazido. Quando já iam embora, pensativos e calados, um deles comentou:

—         Acho que vamos ter que arrumar esse dinheiro bem depressa, não gosto de pensar no pobre do Moly apodrecendo ali.

Ao que outro acrescentou:

—         Coitado, trabalhou anos varrendo as calçadas, conservando a sua carrocinha em melhor estado do que os outros e, agora que morreu, para salvar uma vida, nin­guém quer arcar com as despesas. Cabe a nós demons­trar um pouco de respeito por ele, afinal de contas era um bom sujeito. Vamos ver como podemos conseguir o dinheiro. Já pensaram no que vamos fazer a respeito do enterro?

Silêncio. Nenhum deles pensara nisso. Por fim, um deles disse:

—         Bem, acho que vamos ter que pedir licença no serviço para fazer o enterro dele. É melhor a gente ir falar com o capataz e ver o que ele diz.

Molygruber prosseguiu na sua viagem, revendo a ci­dade que ele conhecia tão bem. Parecia um desses ba­lões que às vezes pairam no ar anunciando uma reven­dedora de automóveis ou coisa semelhante. Parecia não ter controle sobre o seu destino. Primeiro, teve a sensação de emergir do telhado da casa funerária. Olhou para baixo e viu como as ruas eram feias, como as casas eram mal cuidadas, como precisavam de uma camada nova, uma nova "demão" de pintura. Viu os velhos carros es­tacionados em frente às casas e na calçada, e depois con­tinuou até o centro da cidade e sentiu um "aperto no coração" ao olhar os lugares que lhe eram familiares e descobrir um estranho usando o seu capacete de plástico, empurrando a sua carrocinha e, provavelmente, enver­gando também a sua japona vermelho-fluorescente. Olhou para o homem, arrastando languidamente a vassoura ao longo das sarjetas e, de vez em quando, agarrando as duas tábuas que ele costumava segurar nas mãos para apanhar o lixo e depositá-lo na carrocinha. Esta também não parecia tão bem cuidada como quando ele a usava, pensou. Continuou a pairar, olhando com espírito crítico e reprovador para o lixo que sujava as ruas. Viu uma nova construção e o vento carregar para bem longe a terra escavada do chão.

Algo o impeliu até o Depósito da Limpeza Urbana. Viu-se flutuando por sobre a cidade, mergulhando sobre um caminhão que saía para apanhar as carrocinhas e os garis. Continuou até o depósito e atravessou o telhado. Lá deparou com os quatro ex-colegas falando com o ca­pataz:

- Não podemos deixá-lo lá disse um dos homens. É horrível a gente saber que o dinheiro dele não dá para fazer um enterro decente, e ninguém querer ajudar.

Por que não fazemos uma vaquinha? replicou o capataz. É dia de pagamento, se pedirmos a cada um dos homens que dêem dez dólares, podemos fazer um enterro decente, com flores e tudo. Conheci-o desde ga­roto, nunca teve nada, às vezes eu até pensava que ele não era muito bom da cuca, mas fazia o serviço, só que um pouco mais devagar do que a maioria. É, vamos fazer isso, colocar um aviso na cabine do pagador, pedindo que todo mundo dê pelo menos dez dólares. Um dos colegas perguntou:

—         Quanto é que o senhor vai dar?

O capataz apertou os lábios, franziu a testa e enfiou a mão no bolso. Tirou uma velha carteira de dinheiro e abriu-a.

— Bem, estes vinte dólares são tudo o que eu tenho no mundo até receber o meu pagamento. Peguem, vou dar vinte dólares.

Um dos homens olhou em volta e encontrou, no meio do lixo, uma caixa de papelão. Abriu, com um ca­nivete, uma fenda no meio e disse:

—         Pronto, já temos onde coletar o dinheiro. Vamos colocá-la diante da cabine do pagador, junto com um cartaz. Podemos pedir para um dos datilógrafos escrever um aviso para a gente, antes que o pessoal comece a receber.

Logo depois os homens vieram receber. As carroci­nhas foram apeadas dos caminhões, os homens estaciona­ram-nas nos seus respectivos lugares, penduraram as vas­souras para o dia seguinte, e depois dirigiram-se lenta­mente para a fila do pagamento.

Que é isso? — perguntou um deles ao ver o aviso.

É sobre Molygruber, o nosso colega que morreu. Não há dinheiro suficiente para custear o enterro dele. Por que vocês não contribuem pelo menos com dez dó­lares cada um? Além de ser nosso colega, estava há muito tempo na Limpeza Urbana.

Os homens resmungaram um pouco e o primeiro da fila avançou para pegar o seu envelope. Todos os olha­res se fixaram nele. Enfiou-o mais que depressa no bolso, mas, vendo os olhares dos outros, tirou-o de novo e abriu, com relutância, uma das pontas do envelope. Len­tamente, muito lentamente, enfiou dois dedos e puxou uma nota de dez dólares. Ficou algum tempo olhando para ela e revirando-a nas mãos. Depois, com um pro­fundo suspiro, meteu-a depressa na abertura feita na caixa de papelão e afastou-se. Os outros também pegaram o seu pagamento e, vigiados pelos colegas, tiraram do en­velope uma nota de dez dólares, que colocaram na caixa de papelão. Por fim, todos os homens tinham recebido o ordenado e pago os dez dólares, exceto um, que disse:

—         Nada disso, eu nem conheci o cara, entrei esta semana. Não entendo como é que vocês esperam que eu pague para enterrar um cara que eu nunca vi.

Puxou o boné para a testa, dirigiu-se para o seu ve­lho carro e saiu guiando, com um ronco do motor.

O capataz aproximou-se dos quatro homens encar­regados de encomendar o funeral e sugeriu:

—         Por que vocês não vão falar com os chefes? Tal­vez eles dêem algum dinheiro. De qualquer maneira, vo­cês não têm nada a perder, eles não vão despedi-los por isso.

E os quatro rumaram para os escritórios dos funcioná­rios superiores. Lá chegando, ficaram sem saber como co­meçar, até que um deles estendeu o cartaz e a caixa co­letora para um dos chefes. O homem olhou e suspirou. Depois, puxou de uma nota de dez dólares, dobrou-a e enfiou-a na caixa. Os outros seguiram o exemplo. Dez dólares, nem mais nem menos. Por fim, depois que to­dos tinham contribuído, os quatro voltaram para junto do capataz.

—         Agora, rapazes — disse ele — peçam ao caixa para contar o dinheiro e dizer, por escrito, quanto temos ao todo. Assim ninguém fica responsável.


 

Gertie Glubenheimer olhou, desanimada, à sua vqlta.. Cadáveres por todos os lados, pensou, à minha esquerda, à minha direita, cadáveres à minha frente e atrás de mim, que visão horrível! Que ar de doente eles têm! Endirei­tou-se e olhou para o relógio, na outra extremidade da grande sala. Meio-dia e meia, disse para si mesma, hora do almoço. Tirou a merendeira de debaixo da mesa onde estava trabalhando e, virando-se, colocou um livro e os sanduíches que trouxera de casa em cima do cadáver a seu lado. Gertie era embalsamadora. Embalsamava cadá­veres na agência funerária, de modo a dar-lhes uma apa­rência saudável.

—         Olhe só para o tio Nick! exclamaria, mais tarde, um dos sobrinhos do morto. Não está com uma ótima aparência?

Gertie sentia-se tão à vontade entre cadáveres, que nem se dava ao trabalho de lavar as mãos antes de co­mer, após ter mexido naqueles corpos todos.

Uma voz interrompeu-lhe o lanche:

—         Quem foi o idiota que não tratou de encher a cavidade torácica daquele caso de autópsia?

O homenzinho que entrou pela porta adentro estava furioso.

Que foi que houve, chefe? perguntou um dos empregados, imprudentemente.

Que foi que houve? Você ainda tem coragem de perguntar? Houve que a mulher do cara foi lhe dar um beijo de despedida e como só havia um pedaço de jor­nal debaixo do lençol, o cotovelo dela entrou na cavi­dade torácica do falecido. Agora ela está histérica, amea­çando processar a gente até o último centavo.

Todo mundo riu baixo, porque a toda a hora esta­vam acontecendo coisas desse tipo e nunca ninguém le­vava esses casos muito a sério. No fundo, os parentes não gostavam que se soubesse que tinham enfiado os cotovelos nas entranhas dos seus entes queridos, antes do enterro.

O patrão levantou a cabeça e avançou para Certie.

—         Tire essa merendeira da cara dele — rugiu — você assim entorta o nariz do morto e depois não tem mais jeito.

Certie retrucou, fungando:

—         Tá bom, chefe, tá bom. Não precisa ficar nervoso, este cara é indigente, ninguém vai querer se despedir dele!

O patrão olhou para o número em cima da mesa, consultou a lista que tinha na mão e disse:

—         Ah, é esse! Não vão poder pagar mais de trezen­tos dólares, por isso é só metê-lo num caixão e despa­chá-lo. O único problema são as roupas.

A moça olhou para o corpo nu a seu lado e per­guntou.

Que é que houve com a roupa que ele vestia quando chegou?

Estava boa para a lata do lixo — respondeu o pa­trão. — De qualquer maneira, encolheu tanto depois de lavada que não vai mais entrar.

E que tal aquelas cortinas velhas, que a gente ti­rou para lavar e viu que estavam demasiado desbotadas para pendurar de novo? — disse Gertie. — A gente não poderia embrulhá-lo nelas?

O patrão fuzilou-a com o olhar.

—         Aquelas cortinas valem pelo menos dez dólares, quem vai me pagar esses dez dólares? Acho que o me­lhor que temos a fazer é botar umas aparas de madeira dentro do caixão, jogar o homem lá dentro e cobri-lo com mais aparas. Ninguém vai mesmo vê-lo. Façam isso.

Saiu da sala e Gertie continuou comendo os seus san­duíches.

Mal sabiam eles que Molygruber, pairando na sua forma astral, isto é, invisível, estava vendo e ouvindo tudo e ficou revoltado com a maneira pela qual o seu corpo era tratado, mas uma força estranha fazia com que ele per­manecesse ali, incapaz de se mover. Ficou assistindo a tudo, vendo alguns corpos de mulheres serem vestidos com trajes maravilhosos e os de alguns homens, com tra­jes de gala, enquanto ele, pensou, estaria com muita sor­te se o cobrissem com uma ou duas mancheias de aparas.

—         Que é que você está lendo aí, Bert? perguntou alguém.

Um rapaz com um livro na mão e um hambúrquer na outra levantou a cabeça e acenou com o livro.

—         Eu creio, respondeu. É um livro bom mes­mo, pode acreditar. É daquele sujeito, Rampa, que mora na cidade. Já li todos os livros que ele escreveu e uma coisa eu aprendi: que a gente precisa acreditar em al­guma coisa porque, se a gente não acredita em nada, fica num mato sem cachorro. Olhe só pra esse cara aí e fez um gesto na direção do corpo do velho Moly­gruber, nu e inanimado em cima da mesa. Esse cara, diz aí na ficha, que era ateu. Onde será que ele está agora? Não pode estar no céu porque não acredita nele, nem no inferno, porque também não acredita. Talvez es­teja perdido entre dois mundos. Este tal de Rampa sem­pre diz que a gente não tem que acreditar no que ele escreve, mas que precisa acreditar em alguma coisa ou, pelo menos, ter a mente aberta, porque se não temos a mente aberta, os encarregados de nos ajudar, no Outro Lado, não podem entrar em contato, nem auxiliar em nada. Num dos livros ele diz que quando a gente morre primeiro fica algum tempo no nada.

Riu e depois continuou:

—         Também diz que, quando as pessoas estão nesse estado, recém-desencarnadas, vêem o que estão espe­rando ver. Deve ser uma visão e tanto, todos aqueles an­jos esvoaçando!

Um dos colegas aproximou-se e olhou para a capa do livro.

Sujeito esquisito, hein? Que será que essa capa significa?

Não sei respondeu o dono do livro. É sem­pre assim com esses livros, a gente nunca entende as ca­pas. Mas isso não interessa, o que importa é o que está escrito lá dentro.

O velho Molygruber chegou mais perto. Embora não fizesse nenhum esforço, parecia estar sendo guiado, de modo que ficou pairando bem em cima dos homens, en­quanto eles comentavam o livro, e uma frase não lhe saiu da cabeça.

"Se você não crê numa coisa, para você ela não existe. E o que é que você vai fazer?"

O almoço prosseguia. Alguns dos empregados liam livros encostados nos corpos e Gertie tinha estendido o seu lanche em cima do cadáver do velho Molygruber, como se ele fosse uma mesa. Finalmente, uma sineta anunciou o término do intervalo. O pessoal recolheu os restos de comida, embrulhou-os e jogou-os na cesta do lixo. Gertie pegou numa escova e removeu as migalhas do corpo de Molygruber, sem desconfiar que ele contem­plava, revoltado, todos os seus gestos insensíveis.

—         Ei, pessoal, preparem já esse corpo, joguem al­gumas aparas no caixão número quarenta e nove e bo­tem o homem em cima, coberto com mais umas aparas. O corpo parece seco, mas não podemos nos arriscar disse o patrão, entrando na sala com um feixe de papéis na mão. Querem que o enterro seja. às duas e meia da tarde, vamos ter que correr. Vou me trocar disse e saiu.

Gertie e um dos homens viraram o corpo de Moly­gruber para um lado, passaram umas correias por baixo dele, amarraram-no bem e depois colocaram-no no que parecia ser uma pequena estrada de ferro correndo sobre trilhos. Empurraram o corpo para um lado da sala, onde um caixão, com o número 49 escrito a giz, esperava, com a tampa aberta. O funcionário dirigiu-se a um barril e pegou uma mancheia de serragem, que jogou no caixão, operação que repetiu até formar uma camada de cerca de quinze centímetros de serragem. Depois, deitaram o corpo de Molygruber no caixão e a moça disse:

—         Acho que não vai dar galho. Amarrei-o bem, fe­chei-o todo. Mesmo assim, vamos botar um pouco mais de serragem em vez de aparas, o chefe não vai saber.

E jogaram mais serragem em cima do corpo, até ele ficar totalmente coberto. A seguir, ergueram a tampa do caixão e deixaram-na cair com um estrondo. O homem foi buscar uma furadeira e a mulher enfiou os parafusos nos buracos, apagando depois o número a giz com um trapo úmido. O caixão foi então passado para um carri­nho. Cobriram-no com um pano roxo e levaram-no pata a sala de exposição.

Ouviram-se gritos e o patrão, agora vestido como um autêntico papa-defuntos, com um traje formal com­posto de paletó preto, chapéu e calça listrada, começou a dar ordens.

—         Tragam-no para aqui, vamos logo! O carro fú­nebre já está esperando, com a porta aberta e tudo. Va­mos!

Gertie e o colega empurraram o caixão por uma rampa dotada de uma espécie de trilho, que possibilitava a des­cida dos caixões diretamente para a parte de trás dos car­ros fúnebres. O motorista saiu do carro e perguntou:

—         Como é? Tudo pronto? Vamos indo!

O papa-defuntos sentou-se ao lado dele, as portas da garagem abriram-se lentamente e o carro pôs-se em mo­vimento.

Havia apenas um carro de acompanhamento, um carro com os quatro ex-colegas de Molygruber. Todos en­vergavam os seus melhores ternos, provavelmente tirados especialmente do prego, já que alguns homens achavam melhor empenhar os ternos que raramente usavam, para poderem ter dinheiro até o dia do pagamento e, além disso, o homem do prego sempre limpava os ternos e os passava antes de guardá-los.

O pobre Molygruber parecia preso ao seu corpo por cordas invisíveis. Enquanto o caixão era empurrado, Molygruber, na sua forma astral, sentia-se também empur­rado, embora isso fosse alheio à sua vontade. Só que pairava a cerca de três metros acima do corpo e atra­vessava, invisível, paredes, tetos e soalhos. Finalmente, fi­cou pairando sobre o carro fúnebre, que por sua vez se pôs em marcha. O papa-defuntos inclinou-se para fora do carro* e perguntou aos quatro acompanhantes:

—         Como é? Vamos?

O carro fúnebre saiu do estacionamento da agência funerária, seguido pelo carro dos acompanhantes. Leva­vam os faróis acesos, para indicar que se tratava de um enterro e, presa ao tejadilho do carro acompanhante, uma pequena flâmula triangular dizia: "Funeral". Graças a isso, podiam avançar sinais vermelhos sem serem mul­tados.

Atravessaram ruas movimentadas, passaram por crian­ças brincando nos playgrounds e, por fim, chegaram à ladeira que levava ao cemitério. O papa-defuntos parou, saltou e dirigiu-se ao carro acompanhante.

—         Fiquem junto de nós disse ele porque, no próximo cruzamento, tem sempre alguém tentando cortar e não queremos perder tempo nem que vocês se per­cam. Temos que virar na terceira à direita e depois do­brar na primeira à esquerda. Entendido?

O motorista do carro fez que sim e o dono da agên­cia funerária voltou para o carro fúnebre. Continuaram a andar com o carro acompanhante colado ao outro.

Não tardaram a chegar ao portão do cemitério. Os dois carros subiram por uma álea. No alto, um pouco para o lado, via-se uma sepultura recém-cavada, com uma ar­mação por cima e roldanas ao lado. O carro fúnebre su­biu, deu meia-volta e retrocedeu. Dois homens avançaram para o carro. O motorista e o papa-defuntos saltaram e os quatro abriram a porta de trás do carro fúnebre e pu­xaram para fora o caixão. Depois, carregaram-no para a sepultura, seguidos pelos quatro acompanhantes.

—         O defunto era ateu disse o agente funerário de modo que não vai haver serviço religioso. Isso vai lhes poupar despesas. Vamos só descer o caixão para dentro da sepultura e cobri-lo de terra.

Os outros homens concordaram e o caixão, com a ajuda da armação e das roldanas, desceu lentamente à sepultura. Os quatro acompanhantes aproximaram-se ao mesmo tempo da cova, olharam para baixo e ficaram mui­to tristes.

—         Coitado do velho Molygruber! disse um deles. Ninguém no mundo para chorar a sua morte.

Outro disse:

—         Bem, espero que tenha alguém no outro mundo esperando por ele.

E voltaram para o carro, saindo lentamente do cemi­tério. Os dois homens que ladeavam o diretor da funenária inclinaram uma tábua e uma porção de terra caiu sobre o caixão com um som oco e sinistro.

—         Isso mesmo, cubram-no — disse o papa-defuntos e afastou-se na direção do carro fúnebre.

O motorista subiu para a cabine e os dois partiram.

Molygruber ficou pairando, impotente para fazer fosse o que fosse, mesmo se mexer, olhando para baixo e pen­sando:

—         Então, será isto o fim da vida? E agora? Para onde é que eu vou? Sempre acreditei que não havia nada de­pois da morte, mas morri e aqui estou. O que é que eu sou e onde estou?

Nisso, pareceu-lhe ouvir um som semelhante ao do vento sibilando através das linhas telefônicas, num lugar alto, e Molygruber viu-se de novo se movendo a toda ve­locidade rumo ao nada. Não havia nada à sua frente, nada atrás, nada nos lados, mas ele avançava, à toda, para o nada.

Silêncio! Nada, senão o silêncio, nem um único som. Pôs-se à escuta, mas não conseguiu ouvir sequer o som de uma batida de coração, o som de uma respiração. Sus­teve a respiração, ou pensou que o fazia, mas logo cons­tatou, com um choque, que o seu coração não estava ba­tendo e que os seus pulmões tampouco estavam funcio­nando. Levado pelo hábito, levantou as mãos para apalpar o peito. Sentiu que tinha levantado as mãos, sentia que tudo estava funcionando, mas não existia nada nada.

O silêncio tornou-se opressivo. Mudou de posição ou, pelo menos, assim lhe pareceu. Não tinha mais certeza de nada. Tentou mexer uma perna. Tentou mover um dedo do pé — mas, nada. Nenhuma sensação de movi­mento, nenhuma sensação de que existia. Recostou-se, ou imaginou que o fazia, e procurou controlar-se, ordenar os seus pensamentos. Como pensar em meio ao nada, quando você tem a impressão de que não é nada, de que você nem sequer existe? Mas, não, você tem que existir, pensou ele, porque, se não existisse, não poderia pensar. Pensou no caixão sendo descido à cova de terra dura, ressequida de muitos dias sem chuva, sem uma só nuvem no céu.

Enquanto pensava, teve uma súbita sensação de movimento. Olhou, por assim dizer, "para o outro lado" e viu, com espanto, que estava pairando sobre a sua sepul­tura, mas como podia ser isso, se ainda há um segundo atrás — um segundo? ...o que era o tempo, como é que ele podia medi-lo ali onde estava? Levado pelo há­bito, experimentou olhar para o pulso, mas não, nada de relógio. E nem de braço. Nada, senão o nada. Ao olhar para baixo, tudo o que viu foi a sepultura. Espantado, viu que, sobre a sua sepultura a grama estava alta. Quanto tempo levava a grama para crescer? Tudo indicava que ele fora enterrado há mais de um mês. A grama não podia ter crescido tão depressa, não podia ter crescido em me­nos de um mês, ou um mês e meio. Viu, então, por de­baixo da grama, por debaixo da terra, os vermes cavando e avançando, viu a madeira do caixão. E viu mais: por baixo da tampa do caixão, a carne apodrecendo, se de­sintegrando lá dentro. Deu um pulo* e recuou, com um surdo grito de terror — ou foi essa, pelo menos, a sen­sação que teve. Deu consigo tremendo da cabeça aos pés, mas aí lembrou-se de que não tinha pés, de que, segundo parecia, não tinha nem corpo. Olhou em volta, mas con­tinuava a não ver nada, nem luz, nem escuridão, apenas o vazio, um vácuo onde nem sequer a luz podia existir. A sensação era terrível, chocante. Mas como é que ele podia sentir algo, se não tinha corpo? Ficou ali — ou talvez fosse melhor dizer "ficou existindo ali" — pro­curando entender o que lhe estava acontecendo.

De repente, um pensamento lhe veio à consciência. "Eu creio", pensou. "Rampa". De que é que aqueles su­jeitos estavam falando, da última vez que ele os vira, no depósito da Limpeza Urbana? Havia uma porção de garis e de motoristas de caminhão de lixo, todos falando so­bre a vida e a morte, conversa que tivera origem de um livro de Lobsang Rampa que Molygruber lhes mostrara.

Um dos homens dissera:

—         Bem, eu não sei no que acreditar, nunca soube. Minha religião não me ajuda, não dá nenhuma resposta, só diz que a gente precisa ter fé. Como é que a gente pode ter fé quando não tem prova de nada? Algum de vocês já conseguiu alguma coisa rezando?

Todos tinham abanado a cabeça. Um deles respon­dera:

—         Não, nunca, e nem conheci ninguém que tivesse conseguido. Quando eu era criança, me mandaram ler a Bíblia e uma coisa que me impressionou foi que todos os grandes profetas, santos, ou coisa parecida, estavam sem­pre rezando, mas nunca obtinham nada, nenhuma graça. Lembro-me de um dia ter lido sobre a Crucificação. Na Bíblia dizia que Cristo perguntou, já na cruz: "Meu Pai, por que me abandonaste?", mas não teve resposta.

Seguira-se um silêncio desconfortável, com todos os homens olhando para os pés e tentando, com esforço de quem não está acostumado, pensar no futuro. Que ha­veria após a morte? Nada? Os corpos limitar-se-iam a vol­tar para a terra sob a forma de uma massa putrefata e de ossos estéreis, desmanchando-se em pó? Não, devia ha­ver algo mais do que isso. Devia haver um sentido para a vida e um sentido para a morte. Alguns dos homens ti­nham olhado com um certo ar de culpa para os colegas, ao recordarem estranhas circunstâncias, acontecimentos e situações que, no seu entender, não podiam ser explica­dos de maneira plausível.

Um deles dissera:

—         Bem, esse escritor que você diz que mora na ci­dade, minha mulher leu uns livros dele e tem me en­chido o saco. "Jake, Jake, se você não acreditar em nada, não vai ter nada onde se segurar, quando morrer", diz à toda hora. "Se você acreditar que existe vida depois da morte, vai continuar vivendo depois que morrer, é a coisa mais simples deste mundo, você precisa acreditar que existe vida no outro mundo, senão vai ficar voando como uma bolha de sabão ao vento, pairando como se não existisse. Você precisa acreditar, ter a mente aberta para estar pronto a acreditar, se você tiver algo para estimular o seu interesse quando passar desta para a melhor."

Um longo silêncio se seguira. Os homens tinham fi­cado com um ar embaraçado, pensando como poderiam ir embora sem parecer que estavam querendo cair fora. Molygruber lembrou-se de tudo aquilo enquanto estava ali, deitado, ou de pé, ou sentado — não saberia dizer como — pairando no nada, não passando de um pensa­mento sem corpo. Mas talvez aquele escritor tivesse ra­zão, talvez as pessoas o tivessem perseguido, caçoado ou lhe dado uma publicidade desfavorável simplesmente por serem ignorantes, por estarem erradas. Talvez o escritor estivesse certo, mas o que era mesmo que ele ensinava? Molygruber esforçou-se por recordar o pensamento que mal roçara a superfície da sua consciência. Até que con­seguiu. "Você precisa acreditar em ALGO. Se você for ca­tólico, decerto acredita num céu povoado de santos e de anjos. Se for judeu, acreditará num paraíso diferente. Se for muçulmano, idem. Mas você precisa acreditar em algo, precisa manter a mente aberta para que, mesmo que você no fundo não creia, possa ao menos ter a aber­tura suficiente para vir a ser convencido. Senão, ficará flu­tuando entre os mundos, entre planos, como um pensamento fugaz e tênue."

Molygruber ficou pensando naquilo. Pensou como durante toda a vida negara a existência de um Deus, ne­gara a existência da religião, pensara que todos os sacer­dotes eram hipócritas e interesseiros, preocupados em enganar as pessoas com uma porção de lorotas. Pensou em tudo isso e procurou visualizar o velho escritor, que uma vez vira de perto. Tentou visualizar o seu rosto e apa­vorado, pareceu vê-lo diante de si, falando com ele.

— Você precisa acreditar em ALGO, senão será ape­nas uma sombra passageira, sem poder, sem motivação e sem âncora. Você precisa acreditar, manter a mente aberta, estar pronto a receber ajuda para poder ser salvo do vácuo, do vazio estéril, e passar a outro plano de existência.

Molygruber pensou de novo:

—         Quem estará usando a minha velha carrocinha?

E, como por encanto, viu novamente as ruas de Cal-gary, viu um rapaz jovem empurrando a sua carrocinha e varrendo as ruas, parando de vez em quando para acen­der um cigarro. Depois, viu o velho escritor e estremeceu ao perceber que este olhava para cima com um leve sor­riso nos lábios. O sorriso morreu e os lábios formaram as palavras:

—         Acredita em algo, abre a tua mente, há pessoas prontas a te ajudar.

Molygruber olhou de novo e sentiu uma súbita raiva do homem que estava usando a sua velha carrocinha. Ela agora parecia mesmo velha, estava suja, com a sujeira entranhada nas dobradiças das tampas e em volta das asas. A vassoura também estava gasta, não de maneira unifor­me, mas em ângulo, mostrando que o seu presente usuário não era um homem que se orgulhava do seu trabalho. Sentiu um impulso de raiva e, ao mesmo tempo, experi­mentou uma sensação de grande velocidade — uma ve­locidade assustadora, atordoante. Mas era tudo tão estra­nho... como é que ele podia sentir velocidade, se não tinha nenhuma sensação de movimento? Como podia sen­tir velocidade sem sentir o vento lhe bater no rosto? Es­tremeceu de terror. Ele não teria rosto? Estaria num lugar onde não havia vento? Não sabia dizer.

Molygruber apenas EXISTIA. Não tinha a sensação de tempo, mal tinha a de existir, apenas EXISTIA. Sua mente continuava funcionando, mas apenas com pensamentos fugazes, que atravessavam a tela da sua visão mental. Vi­sualizou de novo o velho escritor e quase ouviu as pala­vras que não tinham sido pronunciadas: "VOCÊ PRECISA ACREDITAR EM ALGO". Molygruber lembrou-se da sua in­fância, da pobreza em que vivera. Lembrou-se de uma gravura da Bíblia e de uma frase: "O Senhor é meu pas­tor. Ele me guia." Ele me guia. Aquele pensamento trans­formou-se num refrão na mente de Molygruber, ou na sua consciência, ou fosse lá no que fosse, fazendo-o pen­sar: "Gostaria que Ele me guiasse! Gostaria que alguém me guiasse!" Ao pensar isso, sentiu "algo", que não saberia dizer o que era, teve a impressão de que havia gente por perto, lembrando-lhe de quando ele dormia num al­bergue e, sempre que outra pessoa entrava no grande dor­mitório, ele sentia, não a ponto de acordar, mas a ponto de ficar de sobreaviso caso alguém tentasse roubar o re­lógio que ele guardava debaixo do travesseiro ou a magra carteira que enfiava no bolso traseiro.

Pensou "Me ajudem! Me ajudem!" e imediatamente pareceu sentir que tinha pés. Teve uma sensação estranha e — sim — ele tinha pés, pés descalços e, com uma hor­rível sensação de terror, descobriu que os seus pés esta­vam metidos em algo pegajoso, talvez piche. Lembrou-se de uma ocasião em que era garoto e saíra de casa descalço, indo direto para um trecho da estrada que os operários da Prefeitura tinham acabado de pichar. Recordou o medo, o terror — ele era muito pequeno — de ficar preso na estrada sem nunca mais poder sair. Era assim agora, ele estava preso, preso ao piche. Sentiu como se o piche lhe estivesse subindo pelo corpo — sim, porque ele agora sentia que tinha corpo, que tinha braços, mãos e dedos, mas não podia mexê-los por estarem presos no piche ou, se não era piche, era outra coisa igualmente pegajosa, algo que lhe impedia os movimentos e, à sua volta, ele poderia jurar que havia gente, gente que o estava obser­vando. Sentiu um acesso de raiva, uma raiva cega, quase assassina, e pensou: "OK, seus bolhas, que é que vocês estão olhando para mim de boca aberta, por que não me dão uma mão? Não estão vendo que estou preso?" O pensamento veio-lhe claro, quase como alguns pro­gramas que vira nos aparelhos de televisão que costu­mava ficar olhando, nas vitrinas das lojas. "Você precisa acreditar, precisa crer, precisa abrir a mente para que a gente possa lhe ajudar, porque você está nos repelindo com o seu pensamento. Acredite, estamos prontos a aju­dá-lo, creia!"

Resmungou e tentou correr atrás das pessoas que es­tavam olhando para ele, pois tinha a certeza de que es­tavam olhando, mas descobriu que os seus movimentos eram inúteis. Estava preso no piche, seus movimentos eram quase imperceptíveis. De repente, pensou: "Oh, meu Deus, que foi que aconteceu? "E, ao pensar "Oh, meu Deus!", viu uma luz na escuridão, como se fosse o sol subindo no horizonte, de manhã bem cedo. Olhou, espan­tado, e resolveu experimentar de novo, murmurando "Deus, Deus, ajudai-me!" Para sua alegria e surpresa, a luz tornou-se mais viva e Molygruber julgou ver uma "Fi­gura" de pé na linha do horizonte, acenando para ele. Mas não, Molygruber ainda não estava pronto; limitou-se a murmurar, para si mesmo: "Ora, deve ser uma nu­vem esquisita. Ninguém quer me ajudar." E a luz "escureceu, a claridade no horizonte desapareceu e Molygruber afundou ainda mais no piche ou no que quer que fosse. O tempo se passou. Passou-se uma eternidade de tempo, mas a entidade que Molygruber fora permaneceu "em algum lugar", imersa nas trevas da incredulidade, porque à sua volta só havia quem o ajudasse se ele abrisse a mente à fé, de maneira a possibilitar ser ajudado, ser guiado para a luz, para uma nova forma de vida ou de existência.

Estava preso a uma grande agitação, agravada pelo fato de não sentir os braços, as pernas ou qualquer outra parte do corpo, o que sobremaneira o preocupava. Não sabia por que, mas o certo é que não conseguia tirar aque­le velho escritor da cabeça, a toda hora ele lhe vinha à mente, como se algo estivesse borbulhando na sua cons­ciência. Por fim, atinou com o que era.

Alguns meses atrás, vira o velho escritor, na sua ca­deira de rodas movida a eletricidade. Estava passeando no parque novo, acompanhado de um homem. Molygru­ber, como era seu costume, parara para ouvir o que os dois diziam. Escutara, então, o escritor dizer:

— Como você sabe, a Bíblia dos cristãos dá uma grande ênfase à questão da vida depois da morte e sem­pre me pareceu extraordinário que os cristãos "parti­cularmente os católicos" acreditem em santos, anjos e demônios e, não sei por que, pareçam duvidar de que haja vida após a morte. Como podem explicar o que está escrito em Eclesiastes 12:5-7: "Porque o Homem vai para a sua morada eterna, enquanto os que o pranteiam an­dam pelas ruas; antes que a corda de prata arrebente ou o jarro se quebre na fonte, ou a roda no poço, e o pó retorne à terra de onde veio e o espírito retorne a Deus, que o ofertou."

"Bem dissera o escritor para o homem você entende o que isso quer dizer, não? Quer dizer que uma parte do corpo de uma pessoa retorna ao pó do qual se alega que ele foi feito e a outra parte volta para Deus, ou para a vida além desta. Ora, a Bíblia dos cristãos diz isso, fala da vida após a morte, mas os cristãos, ao que parece, não acreditam nela. Aliás, há uma porção de coisas em que os cristãos não acreditam. Só acreditarão quando chegarem ao outro lado!

Molygruber deu um pulo, ou sentiu que dava. Como é possível pular quando não se tem corpo? As palavras pareciam ter sido ditas bem atrás dele. Conseguiu cir­cular a sua consciência, mas não havia nada atrás de si, ficou algum tempo matutando no problema, pensando que talvez ele tivesse se perdido, talvez tivesse deixado que a vida que levara distorcesse a sua maneira de pen­sar, talvez, afinal de contas, houvesse mesmo vida após a morte. Devia haver, concluiu, porque ele vira o seu corpo morrer, vira o seu corpo morto e estremeceu e se pudesse, teria vomitado vira o seu corpo apodrecer, os ossos aparecendo por entre a carne em decomposição.

Sim, murmurou para si mesmo, se é possível murmu­rar sem ter voz, deve haver vida após a morte, toda a sua vida ele deveria ter-se enganado. Talvez a amargura que a vida dura suscitara nele tivesse distorcido o seu modo de ver as coisas. Sim, tinha de haver alguma es­pécie de vida, pois ele continuava vivo, ou achava que estava e, se não estava vivo, como é que estava pensando em todas aquelas coisas? Sim, ele devia estar, de alguma maneira, vivo.

Ao pensar nisso, sentiu uma coisa muito estranha, como se todo ele estivesse se espichando, formigando. Sentiu que tinha de novo braços e pernas, mãos e pés. E logo oh, maravilha! a luz começou a aumentar.

A luz começava a penetrar no nada, no vazio em que até ali ele existira. Um leve tom rosado, mas que cada vez ficava mais forte. Então, teve a impressão de estar caindo, tão subitamente que quase ficou tonto. Em seguida, pou­sou em algo pegajoso e só pôde ver à sua volta uma névoa preta, entremeada de raios de luz rosada. Procurou mo­ver-se e constatou que, embora pudesse fazê-lo, era-lhe difícil, muito difícil. Parecia estar pisando em algo grudento, que o fazia mover em câmara lenta, levantar pri­meiro um pé e depois o outro. Pensou, com os seus bo­tões, que devia estar parecendo um desses horríveis monstros que às vezes ilustram as capas dos livros de fic­ção científica.

Gritou, bem alto:

—         Oh, Deus, se é que há um Deus, ajudai-me!

Mal acabou de dizer isso, sentiu uma grande mu­dança. A sensação de pisar em grude acabou, a névoa à sua volta tornou-se menos densa e ele conseguiu distin­guir vultos que se moviam. Era uma sensação muito es­tranha. Como se estivesse dentro de um saco feito de plástico fumê. Fazia esforços para olhar através do plás­tico, sem conseguir.

Pôs a mão em concha sobre os olhos, procurando ver alguma coisa. Teve a impressão, mais do que a visão, de haver gente estendendo as mãos para alcançá-lo, sem conseguir. Parecia haver uma barreira, uma espécie de muro transparente e invisível.

"Oh, meu Deus", pensou ele, "se eu pudesse derrubar esse muro, ou papel, ou plástico, ou sei lá o quê! Não consigo ver quem são essas pessoas, talvez elas estejam querendo me ajudar, talvez estejam querendo me matar, mas como, se eu já estou morto? Ou será que não estou morto?" Estremeceu, uma e várias vezes, diante dessa idéia.

—         Será que estou no hospital? — disse para si mes­mo. — Estarei tendo pesadelos por causa daquele padre? Talvez eu esteja vivo e na Terra, e tudo isto não passe de um pesadelo. Gostaria de ter a certeza!

Débilmente, como se vinda de muito longe, uma voz chegou até ele, tão fraca e pouco nítida, que ele teve de aguçar os ouvidos para entender o que ela dizia:

—         Acredita, acredita na vida depois da morte. Acre­dita, só isso, e ficarás livre. Reza a Deus. Deus existe. Não importa o nome que tu lhe dês, não importa qual a tua religião, cada religião tem um Deus. Crê. Pede ao teu Deus que te ajude. Estamos esperando.

Molygruber ficou imóvel. Seus pés não reformaram o movimento incessante, na tentativa de romper o véu que o cercava. Ficou imóvel. Pensou no velho escritor, pensou nos padres que rejeitara como sendo apenas charlatães, à procura de uma maneira fácil de ganhar a vida com as superstições dos outros. Lembrou-se da sua mocidade, pen­sou na Bíblia e pediu a Deus que o esclarecesse:

—         Oh, Deus Todo-Poderoso, seja qual for a forma que adotares, ajuda-me, pois estou perdido, aprisionado, existo sem existir. Ajuda-me e deixa que outros me aju­dem!

Ao dizer, com o coração cheio de fé, sentiu um súbito choque, como se tivesse tocado em dois fios elé­tricos sem revestimento. Caiu para trás, ao mesmo tempo em que o véu se rasgava.

 

O véu rasgou-se. As trevas que cercavam Molygruber romperam-se bem diante dele, ao mesmo tempo em que uma luz intensíssima o cegava. Desesperado, ele levou as mãos aos olhos, agradecendo a Deus pelo fato de ter de novo as mãos. A luz era ofuscante como ele jamais ti­nha visto ou tinha? Recordou os tempos em que era gari ou lixeiro, lembrou-se dos enormes prédios que vira construir e da luz intensa que a solda elétrica produzia, tão forte, que os soldadores tinham de usar sempre óculos escuros. Molygruber fechou os olhos com força, apertou as mãos sobre eles e, mesmo assim, ainda lhe parecia ver a luz penetrando. Depois, conseguiu controlar-se um pouco e, com muito cuidado, descobriu gradativamente os olhos. A luz era brilhante, não havia dúvida, entrava-lhe através das pálpebras fechadas. Era um bocado bri­lhante e ele entreabriu os olhos o mínimo possível.

Que cena maravilhosa ele viu! As trevas tinham de­saparecido, esperava que para sempre, e ele estava de pé, perto de umas árvores. Ao olhar para baixo, viu um gramado verde-vivo, um gramado como ele nunca vira. Reparando melhor, viu que a grama estava cheia de coi­sinhas brancas com centros amarelos. Que seria aquilo? Mas logo percebeu: claro, eram margaridas, margaridinhas do campo. Nunca as tinha visto ao vivo, só em fotografias e, uma vez ou outra, na tevê, num dos programas que costumava assistir pela vitrina de alguma loja. Porém, ha­via mais coisas além de margaridas. Levantou os olhos e viu que haviam duas pessoas, uma de cada lado, sorrindo para ele — olhando para baixo porque Molygruber era um homem baixinho, uma dessas pessoas insignificantes, encolhidas, com mãos nodosas e deformadas, e feições corroídas pelas intempéries. Olhou para aquelas duas pes­soas, que ele nunca vira, mas que lhe sorriam de maneira muito bondosa.

—         Bem, Molygruber — perguntou uma delas — que lhe parece isto aqui?

Molygruber ficou calado, como é que ele podia res­ponder, o que é que ele podia achar de um lugar que ainda não tinha visto? Olhou para os pés e ficou muito contente de ver que tinha pés. Depois, deixou que os seus olhos percorressem todo o corpo. Logo em seguida, •deu um pulo e corou desde a raiz dos cabelos até as unhas dos pés.

—         Puxa, vida! — exclamou para si mesmo. — Aqui estou eu, diante de toda esta gente, sem ao menos um trapo para me cobrir!

Mais que depressa, as suas mãos repetiram o gesto impulsivo das pessoas apanhadas sem as calças. Os dois homens à seu lado quase choraram de tanto rir. Um deles disse:

—         Molygruber, Molygruber, que é que você tem? Você não nasceu vestido, nasceu? Ou terá sido a única pessoa a nascer com roupa? Se quer roupa, é só pensar nela!

Molygruber ficou em pânico e, por um momento, a sua confusão foi tal, que ele não conseguiu se lembrar de nenhum tipo de roupa. Acabou pensando num "macacão", roupa que ia dos tornozelos até ao pescoço, tinha man­gas e se enfiava por uma abertura na frente. Mal tinha acabado de pensar, estava vestido de macacão. Olhou para baixo e estremeceu, ao ver que era um macacão ver-velho, tão vermelho quanto a sua cara. Os dois homens riram de novo e uma mulher que vinha caminhando por uma álea virou-se para eles e sorriu.

—         Quem é ele, Bóris? — perguntou. — Um novato, com medo da própria pele?

O que se chamava Bóris riu e respondeu:

- É, Maisie, todos os dias chega algum!

Molygruber estremeceu ao olhar para a mulher. Pensou:

—         É, ela percebeu logo. Espero não entrar bem, não conheço nada acerca das mulheres!

Todos riram como loucos. O pobre Molygruber não sabia que, naquele plano da existência, todo mundo era telepático!

—         Olhe em volta, Molygruber — disse a mulher — depois podemos levá-lo e lhe explicar onde você está e tudo o mais. Você nos deu muito trabalho, não queria sair da sua nuvem preta, não importava o que a gente lhe dissesse!

Molygruber murmurou algo para si mesmo, de tal maneira, que até telepáticamente saiu um murmúrio. Mas olhou em volta. Estava numa espécie de parque, nunca na sua vida imaginara um parque tão bonito: a grama era mais verde do que qualquer outra que ele jamais vira. As flores — pois havia flores em grande profusão — tinham cores mais vivas do que ele jamais poderia sequer ter imaginado. O sol batia nele, um sol agradavelmente quente, e ouvia-se o zumbir de insetos e o chilrear de passarinhos. Molygruber olhou para cima e viu um céu azul, intensamente azul, com nuvenzinhas brancas. Mas logo se sentiu tonto de espanto, as pernas bambas:

—         Puxa! — exclamou. — Cadê o sol? Um dos homens sorriu e disse:

Nós não estamos na Terra, sabia, Molygruber? Você não está na Terra, está muito, muito longe, num tempo diferente, num plano de existência completamente diverso. Tem muito que aprender ainda, meu amigo!

Diabos! — disse Molygruber. — Como é possível o sol bater nas coisas, se ele não existe?

Seus três companheiros, dois homens e urna mulher, limitaram-se a sorrir e a mulher pegou-o suavemente pelo braço, dizendo:

—         Venha vá, a gente tem uma porção de coisas para lhe explicar.

Os quatro atravessaram o gramado, até uma área muito bem asfaltada.

—         Ei — gritou Molygruber — este asfalto está me machucando os pés, estou vendo que não tenho sapatos!

Novas risadas dos três.

—         Bem, Molygruber — disse Bóris — por que você não pensa num par de sapatos ou num par de botas, no que você preferir? Conseguiu a roupa, embora eu deva dizer que não gosto muito da cor, acho que você devia mudá-la.

Molygruber pensou em como devia estar engraçado, metido naquele macacão vermelho sem sapatos, e dese­jou ver-se livre daquela roupa. Imediatamente se viu nu!

—         Oh! — gritou ele — agora estou pelado diante de uma mulher. Meu Deus, nunca fiquei pelado diante de uma dona. Puxa, que será que ela vai pensar de mim?

A mulher riu a bandeiras despregadas e várias pes­soas se viraram, divertidas.

—         Ora, ora, Molygruber — disse a mulher — você não tem muito o que mostrar, tem? Mas, se quiser, é só pensar numa bela roupa de domingo, e num par de sa­patos muito bem engraxados, que logo se verá neles.

Foi o que Molygruber fez, com ótimos resultados.

O velho avançava com dificuldade e, cada vez que olhava para a mulher, corava de novo, terrivelmente em­baraçado porque, na Terra, fora um desses seres que gos­tavam de olhar e não de fazer, sendo que ele não podia ir a lugar nenhum para olhar e não tinha ninguém com quem fazer! A experiência e o conhecimento que Moly­gruber tinha do sexo oposto, por incrível que possa pa­recer, hoje em dia, reduzia-se ao que ele via nas revistas penduradas das bancas e às fotos provocantes que os do­nos dos cinemas colocavam na porta, para aguçar o ape­tite dos transeuntes.

Pensou de novo em seu passado, no pouco que co­nhecia das mulheres. Lembrou-se de que pensara que as mulheres eram inteiriças do pescoço até os joelhos, de como nunca parara para descobrir como é que elas po­diam andar desse jeito. Mas depois vira algumas moças tomando banho no rio e percebera que elas tinham per­nas, braços, etc., igual a ele. Risadas histéricas despertaram-no e ele viu que à sua volta se reunira uma multi­dão, pois naquele mundo bastava alguém pensar para que todos dali penetrassem nos seus pensamentos. Percebeu a situação, corou de novo e começou a correr. Os dois homens e a mulher correram atrás dele, ofegantes, tentando alcançá-lo, mas foram obrigados a parar, pois riam tanto que não conseguiam continuar. Molygruber correu até não agüentar mais e deixar-se cair num dos ban­cos do parque. Os outros alcançaram-no.

—         Molygruber, Molygruber, acho melhor você parar de pensar até entrarmos — disse um deles, indicando uma bela construção um pouco à direita. — Pense apenas em conservar a roupa no corpo até entrarmos lá. Depois, lhe explicaremos tudo.

Levantaram-se e os dois homens ficaram ao lado de Molygruber, agarrando-o pelo braço. Dobraram a álea à direita e atravessaram uma elegante porta de mármore. Lá dentro estava fresco e uma luz agradavelmente suave parecia se irradiar das paredes. Havia um balcão de re­cepção, parecido com os das portarias dos hotéis. Um homem sorriu e perguntou:

— Recém-chegado?

Maisie fez que sim e acrescentou:

— É, e ainda está muito verde.

Molygruber olhou para si mesmo, horrorizado, pen­sando que tinha passado de vermelho para verde, e só recuperou a calma ao ouvir novas risadas.

Atravessaram o hall e desceram um corredor, onde haviam várias pessoas. Molygruber corou novamente ao ver alguns dos homens e mulheres vestidos com roupas de tipos os mais variados, algumas muito esquisitas, e outros absolutamente nus sem que isso os perturbassem.

Quando, finalmente, fizeram com que Molygruber en­trasse numa sala, mobiliada de modo muito confortável, ele suava tanto como se tivesse acabado de sair de uma sauna, coisa que nunca experimentara. Afundou numa poltrona com um suspiro de alívio e pôs-se a enxugar o rosto com o lenço que encontrara no bolso.

—         Puxa! — disse ele. — Deixem-me voltar à Terra, não posso ficar num lugar como este!

Maisie riu e retrucou:

—         Mas, lembre-se Molygruber, você tem que ficar aqui. Você é ateu, não acredita em Deus, não tem uma religião, não aceita a vida depois da morte. Mas veja, já que você está aqui, deve haver alguma espécie de vida depois da morte, não acha?

A sala em que Molygruber se encontrava tinha ja­nelas enormes e a toda hora o seu olhar se desviava para elas, fascinado pelo que via lá fora: um belíssimo par­que, com um lago no meio e um rio sussurrante correndo para o lago. Viu homens, mulheres e algumas crianças. To­dos pareciam andar em uma determinada direção, como se soubessem para onde estavam indo e o que tinham que fazer. De repente, viu um homem sentar-se num dos bancos do parque e tirar um embrulho de sanduíches do bolso. Viu-o desembrulhá-lo rapidamente e jogar o pa­pel num depósito de lixo que havia por perto. Depois, o homem pôs-se a devorar os sanduíches. Com isso, Moly­gruber sentiu-se fraco e ouviu um ronco subir-lhe das en­tranhas. Olhou para Maisie e comentou:

—         Que fome, santo Deus! Quando é que se come, aqui?

Meteu a mão no bolso, para ver se não teria algum dinheiro com que comprar um hambúrguer ou um cachorro-quente. A mulher lançou-lhe um olhar compreen­sivo e replicou.

—         Você pode comer o que quiser, Molygruber, e be­ber também o que tiver vontade. É só pensar no que você quer comer e beber, mas não se esqueça de primeiro pensar numa mesa, ou terá que comer no chão.

Um dos homens virou-se para ele, dizendo:

—         Vamos deixá-lo sozinho, Molygruber. Você está com fome, muito bem, pense no que deseja comer, mas, como Maisie disse, pense primeiro numa mesa. Quando você tiver acabado de comer, coisa que, na verdade, você não precisa fazer aqui, voltaremos.

Em seguida, atravessaram a parede; esta se abriu e se fechou de novo atrás deles.

Tudo aquilo parecia muito estranho a Molygruber. Que história era aquela de, para comer, ter que pensar na comida? E aquilo de não precisar comer? O homem tinha dito que, na verdade, ele não precisava comer, o que significaria isso? Molygruber sentia fome, muita fome. Tanta, que pensou que ia desmaiar. Era uma sensação que ele conhecia muito bem. Muitas vezes, quando jovem,, desmaiara de fome, coisa extremamente desagradável.

Não sabia era como pensar. Em primeiro lugar, como pensar na tal mesa? Bem, ele sabia o que era uma mesa, qualquer idiota saberia, mas PENSAR numa mesa não era tão fácil assim. A sua primeira tentativa de pensar numa mesa foi completamente ridícula. Pensou nas vezes em que ficara olhando para as vitrines das lojas de móveis, enquanto varria as calçadas, pensou numa linda mesa re­donda, de metal, com uma luminária por cima e, depois, lembrou-se de como uma outra mesa, parecida com uma escrivaninha ou mesinha de costura, lhe chamara a aten­ção. Para seu espanto, viu diante de si uma mesa branca, de metal, só que pela metade, a outra banda era formada pela tal mesinha de costura, que não dava estabilidade al­guma. Empurrou-a com as mãos, dizendo:

— Fora, fora daqui! — como tinha visto num filme, havia anos.

Depois, concentrou-se de novo e pensou numa mesa que havia no parque onde ele costumava ir almoçar, uma mesa feita de toros de madeira e tábuas. Imaginou-a o mais claramente que pôde e ordenou que ela aparecesse ali, diante dele. E apareceu uma mesa bastante rústica, como o tampo feito de tábuas quase tão grossas quanto os toros. Logo percebeu que tinha esquecido de pensar num lugar onde sentar, mas não fazia mal, podia usar uma das cadeiras que havia na sala. Puxou-a para junto da mesa, mas descobriu que a mesa que ele tinha pensado não obe­decia às proporções do tamanho real, de modo que podia se sentar, com a cadeira e tudo, debaixo dela.

Por fim, pensou na mesa como ela devia ser e, de­pois, na comida. O pobre Molygruber fora uma pessoa destituída de sorte, toda a sua vida passara a café, refri­gerantes e coisas tipo hambúrguer, assim, pensou num Prato de hambúrqueres e, quando este se materializou di­ante dele, agarrou logo um e deu-lhe uma valente den­tada. Mas — oh, desilusão! — o hambúrguer não tinha nada por dentro! Após muitas tentativas malsucedidas, concluiu que tinha de pensar clara e nitidamente, ou qua­se a partir de zero, se queria comer um hambúrguer. Ti­nha de pensar primeiro no recheio e depois no resto. Por fim, conseguiu, mas, ao prová-lo achou que não tinha mui­to gosto. O café que pensou foi pior ainda: tinha bom as­pecto, mas o gosto não se parecia com nada que ele tivesse provado antes. Chegou à conclusão de que havia algo errado com a sua imaginação, mas continuou a fazer tentativas, nunca se afastando muito do café com hambúrqueres ou cachorros-quentes, mas, como nunca na sua vida comera pão fresco, o pão sempre lhe saía duro e mofado.

Durante algum tempo, ouviu-se o ruído das mandí­bulas de Molygruber, devorando sanduíches e, depois, o engolir do café. Satisfeito, ele empurrou a mesa e ficou sentado, pensando nas coisas esquisitas que lhe tinham acontecido. Em primeiro lugar, recordou que não acre­ditava na vida após a morte. Onde estaria ele agora, en­tão? Pensou no seu corpo apodrecido e seu estômago quase devolveu o que havia absorvido. Depois, pensou nas estranhas experiências por que passara; primeiro pa­recera-lhe estar preso numa barrica de piche, a seguir o piche fora substituído por uma fumaça preta, igual à que se formara quando aquele seu lampião a querosene fora deixado aceso no quarto e ele, ao voltar, pensara ter ficado cego, tal era a espessura da fumaça e a fuligem que se espalharam por todo o aposento. Parecia estar ou­vindo ainda a bronca da senhoria!

De repente, virou-se, Bóris estava à seu lado.

—         Muito bem, pelo que vejo você comeu bem — dis­se — mas por que se contentar com esses horríveis hambúrqueres? Você pode comer o que quiser, desde que pen­se com cuidado, a partir dos ingredientes até o prato completo.

Molygruber olhou para ele e perguntou:

—         Onde posso lavar os pratos?

Bóris riu, divertido, e retrucou:

—         Meu caro, aqui ninguém lava pratos, basta pensar neles surgindo e desaparecendo. Tudo o que você tem a fazer é pensar, quando acaba de comer, nos pratos su­mindo e nos elementos que os compõem voltando para o reservatório da Natureza. É muito simples, você logo se acostumará. Mas você não precisa comer, sabia? Todo o alimento que você precisa lhe vem da atmosfera.

Molygruber ficou indignado com aquilo, que ridículo, dizer que a pessoa se alimentava da atmosfera, era por demais absurdo, que espécie de otário Bóris achava que ele era? Ficasse sabendo que ele, Molygruber, sabia o que era passar fome, sabia o que era cair de fome na calçada, sabia o que era sentir o bico da bota de um guarda lhe chutar as costelas e lhe dizer para se levantar imediata­mente, se não queria ser preso por vadiagem!

—         Bem, vamos andando disse o homem não podemos ficar aqui toda a vida. Tenho de levá-lo para ver o doutor, ele vai lhe explicar uma porção de coisas e tentar ajudá-lo. Venha comigo.

Mal terminou de dizer isso, a mesa e os restos da refeição desapareceram no ar. Depois, encaminharam-se na direção da parede, que se abriu diante deles, deixando ver um corredor comprido e reluzente. Havia um bocado de gente andando pelo corredor, mas todos pareciam ter algum destino, estar fazendo algo, ao passo que ele, Moly­gruber, estava completamente desnorteado.

Acompanhou o homem corredor abaixo, até dobra­rem uma esquina. Bóris bateu numa porta verde.

—         Entrem! disse uma voz. Molygruber foi em­purrado para dentro e deixado sozinho.

Olhou em redor, assustado. A sala era confortável, mas o homem sentado diante da secretária amedronta­va-o, lembrava-lhe o médico que o examinara quando ele se candidatara ao emprego de varredor de ruas. O homem fora muito brusco, olhara para o franzino físico de Moly­gruber e dissera que não o achava com forças suficientes Para agüentar sequer uma vassoura. Depois, acabara ce­dendo e decretando que Molygruber reunia condições fí­sicas suficientes para ser varredor da Prefeitura.

Mas aquele homem ali olhou-o com simpatia e sorriu.

—         Sente-se aqui, Moly, preciso falar com você. Hesitando, quase com medo de dar um passo, Molygruber avançou e sentou-se, trêmulo, numa cadeira. O homem olhou-o de cima abaixo e disse:

—         Você me parece um bocado nervoso. O que é que há, meu filho?

Molygruber não sabia o que responder. A vida lhe fora terrível e agora a morte parecia-lhe pior ainda. Foi isso o que conseguiu dizer.

O homem escutou a história de Molygruber com aten­ção e, quando ele terminou, disse:

—         Agora, é a sua vez de prestar atenção. Sei que as coisas não foram fáceis para você, mas acho que você tor­nou-as ainda mais difíceis. Você precisa modificar as suas concepções a respeito de muita coisa.

Molygruber ficou olhando, boquiaberto. Algumas pa­lavras ele simplesmente não entendia, até que o homem perguntou:

Bem, o que é que há? Alguma coisa errada?

Tem umas palavras aí que não dá pra entender. — respondeu Molygruber — eu não estudei, tudo o que eu sei aprendi por conta própria.

O homem pensou um momento, aparentemente pas­sando em revista o que tinha dito e, por fim, disse:

—         Bem, eu não acho que tenha usado palavras di­fíceis, o que foi que você não entendeu?

Molygruber olhou para os pés e respondeu, humil­demente:

—         Concepção, sempre pensei que concepção era o que as pessoas faziam quando queriam ter filhos.

Nessa altura, foi o doutor que olhou para Molygru­ber literalmente boquiaberto, mas logo caiu na risada e retrucou:

—         Concepção? Bem, concepção não quer dizer ape­nas isso, também quer dizer compreensão, conceito. Quando você não tem concepção de uma coisa, quer dizer que não a compreende. Vamos tornar a coisa ainda mais fácil; digamos que você não entende nada sobre uma coisa, mas precisa entender.

Tudo aquilo era como que um enigma para Molygruber porque, se aquele homem queria dizer compreensão ou incompreensão ou falta de entendimento, então, com todos os diabos, por que não tinha dito isso? Nesse ponto, percebeu que o outro estava falando, achou melhor ouvir o que ele tinha a dizer.

—         Você não acreditava na morte, ou melhor, não acreditava na vida após a morte. Deixou o seu corpo e ficou flutuando, não lhe entrava na cabeça que você ti­nha deixado um corpo em decomposição e continuava vivo, você estava o tempo todo se concentrando apenas no nada. Assim sendo, se você não pode imaginar um lu­gar, também não pode ir até lá, pode? Se você parte do princípio de que não existe nada após a morte, para você, realmente, não existe nada. A gente só obtém o que es­pera, só obtém aquilo em que acredita, aquilo que se con­segue entender, por isso, procuramos chocá-lo e foi en­tão que o empurramos de volta à agência funerária, para que você visse uns cadáveres sendo preparados para o funeral. Tentamos fazer com que você visse que era ape­nas um pobre cadáver, a quem ninguém ligava. Por esse motivo é que você foi enterrado sob uma camada de ser­ragem, mas nem isso foi suficiente, tivemos que lhe mos­trar o seu caixão, tivemos que lhe mostrar a sua sepul­tura e até que lhe mostrar o seu corpo apodrecendo. Não era nossa intenção, mas foi preciso até mais do que isso para você se aperceber de que não estava morto.

Molygruber ficou ali, sentado como um homem em transe. Começava a entender e esforçava-se por entender mais ainda. Mas o doutor continuou:

—         A matéria não pode ser destruída, pode apenas mudar de forma e, dentro de um corpo humano, existe uma alma imortal, uma alma que perdura para sem­pre. Ela precisa mais do que um corpo porque tem que passar por todo tipo de experiências. Quando a experiên­cia é de luta, ela se apodera do corpo de um lutador e assim por diante. Mas, quando o corpo morre, é como se a gente jogasse uma roupa gasta na lata do lixo. A alma, o corpo astral, seja lá como você preferir chamá-lo, continua viva, sai dos despojos, sai do lixo e fica pronta para recomeçar. Mas, se a alma perdeu a capacidade de com­preensão, ou se nunca a teve, cabe a nós procurar ensi­ná-la.

Molygruber fez que sim, pensando naquele velho au­tor, que escrevera coisas muito além da compreensão dele, mas que agora aos poucos iam se encaixando na sua mente, como se fosse um quebra-cabeça em vias de ser decifrado.

—         Se uma pessoa não crê no céu ou na vida após a morte — prosseguiu o doutor — quando essa pessoa passa para o outro lado da morte, fica vagueando de um lado para o outro, não tem lugar para onde ir, não há ninguém para acolhê-la porque o tempo todo ela está convencida de que não existe mais nada. É como se fosse um cego, que a si mesmo diga que, como ele não pode ver, as coisas não existem.

Olhou para Molygruber, para ver se ele o estava acom­panhando e, quando se certificou de que estava, conti­nuou:

—         Você provavelmente quer saber onde está. Muito bem, você não está no inferno, acaba de vir de lá. O único inferno é esse lugar a que chamam Terra, não existe outro, nem fogo eterno, nem danação eterna, não existe a tortura do inferno, não há diabos encarregados de mar­car com ferro em brasa as suas partes mais delicadas. A pessoa é mandada à Terra para aprender, para passar por várias experiências e, quando a pessoa já aprendeu o que tinha de aprender, o corpo se desfaz e a pessoa sobe aos reinos astrais. Existem diferentes planos de existência, este é o mais inferior, o mais próximo do plano terreno, e você está aqui porque ainda não tem compreensão suficiente para passar para outro plano mais alto, e tudo por não ter a capacidade de acreditar. Se você fosse agora para um plano mais elevado, ficaria imediatamente cego pela intensa radiação de uma vibração muito superior.

Sua expressão tornou-se um bocado sombria, ao ver que Molygruber não estava entendendo. Pensou um pouco e depois disse:

—         Bem, acho melhor você descansar um pouco, não quero lhe puxar demasiado pela cabeça. Vá descansar e, mais tarde, continuamos com a explicação.

Pôs-se de pé e abriu a porta, dizendo:

—         Entre aí, descanse e mais tarde nos veremos.

Molygruber entrou num quarto que lhe pareceu extremamente confortável, mas, ao passar por uma coisa que poderia ser uma marca no meio do chão ou algo assim, tudo deixou de existir e ele, embora não soubesse, ador­meceu logo, já que as suas "baterias astrais" tinham sido seriamente esvaziadas por aquelas estranhas experiências que abordavam coisas muito além da sua compreensão.

 

Molygruber acordou com um sobressalto.

—         Puxa exclamou vou chegar atrasado no ser­viço, serei despedido e vou ter que viver do Fundo de Previdência.

Pulou da cama e ficou como que grudado no chão. Olhou em volta, espantado com a bela mobília e a pai­sagem maravilhosa vista através da grande janela. Aos pou­cos, foi-se recordando. Sentia-se muito descansado, nunca se sentira tão bem em toda a sua vida em toda a sua vida? Bem, onde estaria ele agora? Não acreditava na exis­tência de vida após a morte, mas afinal de contas tinha morrido, disso não havia a menor dúvida, ele por certo enganara-se, devia haver mesmo vida após a morte.

Um homem entrou, com um sorriso animador, e per­guntou:

—         Quer dizer que você é um dos que gostam de comer de manhã, não? Você gosta mesmo de comer, hein?

As entranhas de Molygruber começaram a roncar.

—         Claro que gosto disse ele. Não sei como se pode viver sem comer. Gosto de comer, gosto muito de comer, mas nunca pude comer muito.

Fez uma pausa, olhou para os pés e continuou: Toda a minha vida passei a café e hambúrgueres por­que era barato. Só isso e, de vez em quando, um pedaço de pão. Puxa, como eu gostaria de comer coisas boas! O homem olhou para ele e disse:

—         Muito bem. Peça o que quiser.

Molygruber ficou indeciso, havia tantas coisas mara­vilhosas que ele vira anunciadas nos menus à porta dos restaurantes! Como era mesmo? Pensou por um minuto e quase se babou, ao recordar-se de um breakfast especial que lera, no cardápio de um hotel de primeira. Ovos com bacon, torradas tanta coisa boa! Muila coisa cie nunca provara, mas o homem à sua frente sorriu e disse:

—         OK, já entendi o que você quer.

Riu e, dando meia-volta, saiu do quarto.

Molygruber ficou espantado, sem atinar com a ra­zão pela qual o homem saíra tão depressa. E o seu breakfast? O homem tinha-lhe dito para pedir o que quisesse e, depois, saíra do quarto.

Um aroma apetitoso fez com que Molygruber se vol­tasse: bem atrás dele estava uma mesa, com uma linda toalha branca, um guardanapo, talheres de prata, uma bela louça e belos copos. Ao ver os pratos que o esperavam, cobertos por reluzentes tampas de metal prateado, seus olhos esbugalharam-se.

Ergueu, emocionado, uma das tampas e quase des­maiou de êxtase ante o cheiro que saía do prato. Nunca vira comida como aquela. Olhou em redor, não sabendo se tudo aquilo era mesmo para ele. Depois, sentou-se, ar­rumou o guardanapo no pescoço e atirou-se à comida. Durante algum tempo, não se ouviu senão o barulho dos dentes de Molygruber, mastigando salsichas, fígado, rins, ovos com bacon e uma porção de outras coisas. Seguiu-se o estalar das torradas e o engolir barulhento de xíca­ras após xícaras de chá. Era a primeira vez que ele tomava chá e achou muito melhor do que café.

Quando, por fim, se levantou da mesa, foi para se deitar de novo na cama. Tinha comido tanto, que não podia ficar acordado. Encostou-se e dali a pouco estava dormindo. Sonhou com a Terra, com as dificuldades que lá passara, sonhou com o pai desconhecido e com a mãe prostituta, sonhou com a evasão de casa e começo do trabalho na coleta do lixo e depois, com o progresso que representara, para ele, passar de lixeiro a varredor de cal­çadas. Todas essas imagens lhe voltaram, em sonhos, à cabeça. De repente, abriu os olhos e viu que a mesa ti­nha desaparecido, bem como todos os pratos, e que, sen­tado diante dele, estava o doutor do dia anterior.

—         Puxa, rapaz — disse o doutor — como você come! Naturalmente, em nenhum destes mundos a comida é necessária, em nenhum destes planos de existência. Repre­senta apenas um hábito inútil, trazido da Terra, onde comer era uma necessidade. Aqui, nós nos nutrimos ab­sorvendo toda a energia de que precisamos do que nos rodeia. Daqui a pouco você também estará fazendo o mesmo, porque essa comida que você saboreou é ape­nas uma ilusão, você está simplesmente consumindo energia sob uma forma diferente. Mas agora precisamos falar, você tem muito que aprender. Sente-se ou deite-se, como quiser, mas preste bem atenção.

Molygruber recostou-se na cama e ouviu o que o dou­tor tinha a dizer:

—         A humanidade é uma experiência confinada a um Universo em particular, o Universo do qual à Terra é uma parte muito pequena e sem importância. A humanidade é apenas o revestimento temporário de almas imortais que têm de obter experiência de disciplina e trabalho duro através da existência corporal, pois tais dificuldades não existem nos chamados mundos espirituais.

"Há sempre entidades esperando para nascer num corpo terreno, mas as coisas têm de ser cuidadosamente planejadas. Em primeiro lugar, temos que saber o que é que a entidade precisa aprender, e depois, que espécie de condições deverão prevalecer através da sua vida, para que a entidade possa tirar os maiores proveitos da vida na Terra."

O doutor olhou para Molygruber e disse:

—         Você não entende muito disso, não é?

Molygruber retribuiu o olhar e respondeu:

—         Não, doutor, sei que as pessoas nascem e que nascer não é fácil, que depois elas passam uns anos de dureza e, quando morrem, são enfiadas num buraco, no chão, mais nada... Bem, pelo menos foi o que eu sem­pre pensei, até agora — acrescentou, em tom de re­flexão.

—         Pois é — observou o doutor — não é fácil, se a pessoa não tem a menor idéia do que acontece, e me parece que você acha que as pessoas vêm ao mundo as­sim, sem mais nem menos, que uma criança nasce, vive, morre, e é esse o fim. Mas não é nada disso. Vou lhe dizer como é que é.

E eis o que o doutor lhe disse:

—         A Terra é apenas um lugarzinho insignificante neste Universo e este Universo, por sua vez, é um lugar insignificante comparado com outros universos, aqueles que estão cheios de vida, de vida de muitos tipos dife­rentes, de vida servindo aos mais variados propósitos. Mas a única coisa que interessa aos humanos é o que acontece aos humanos. É tudo mais ou menos como se fosse uma escola. Tem-se um bebê, ele nasce, fica algum tempo aprendendo diretamente com os pais, aprende com eles as primeiras palavras, aprende... ou aprendia, antes que os hippies e os adeptos dos Women's Lib che­gassem à Terra... boas maneiras, os fundamentos de uma cultura. Depois, quando a criança atinge a idade apro­priada ,vai para o jardim de infância, lugar onde passa uma porção de horas, durante as quais a pobre professora procura mantê-la o mais possível comportada até a hora da saída. Esse primeiro período na escola não in­teressa muito, assim como a primeira vida na Terra não tem muita importância.

"A criança vai progredindo ano após ano, cada um mais importante do que o anterior, até chegar ao ponto culminante, à preparação para o futuro. Escola de Me­dicina? Faculdade de Direito? Ou curso de bombeiro hi­dráulico? Seja o que for, a pessoa tem que estudar e pas­sar por alguns exames, sendo que alguns bombeiros ga­nham mais do que alguns doutores. O padrão de valores que vigora na Terra está todo errado, pois, na verdade, não interessa o que é que os pais de uma pessoa eram, a única coisa que interessa, na vida após a morte, é o que ESSA PESSOA SE TORNOU. Há muito homem culto e de espírito elevado que é filho de um bombeiro na Terra. Por outro lado, muitas pessoas que ocupam altos cargos e que tiveram um berço de ouro podem ser piores do que os porcos, na sua falta de maneiras. Os valores que imperam na Terra estão completamente errados, apenas os valores da vida após a morte interessam.

"Nos primeiros tempos deste nosso ciclo de civili­zação, as coisas eram um bocado rudimentares, as pes­soas aprendiam batendo na cabeça umas das outras. Às vezes, eram simples e humildes camponeses, outras ve­zes eram nobres cavaleiros, batendo-se em duelo. De qualquer maneira, morriam e, quando a pessoa morre, tem que assumir uma nova vida.

"À medida que o próprio mundo vai amadurecendo neste ciclo de existência, as tensões que a pessoa tem de vencer vão se tornando mais e mais sofisticadas. A pessoa vai trabalhar e tem que enfrentar todo o ódio, os ciúmes, as mesquinharias da vida num escritório, toda a brutal competição do mundo dos negócios, dos seguros ou de qualquer outra profissão. No mundo atual, a pes­soa não mais bate na cabeça do seu vizinho, tem que derrubá-lo civilizadamente pelas costas ou, em outras pa­lavras, procurar fazer-lhe a caveira. Por exemplo, se você é um escritor e não concorda com outro escritor, forma uma panelinha com mais dois escritores e fazem a caveira do inimigo comum. Juntam uma porção de provas falsas, compram um jornalista inescrupuloso, pagam-lhe uns jantares e uns drinques e ele se põe a escrever um ar­tigo depois do outro sobre a vítima, e todos os outros pobres-diabos da imprensa... profissão muito aviltada... aproveitam a deixa, mordem a isca e fazem o possível por arrasar um escritor que, na maioria dos casos, eles nunca leram nem sequer conhecem. A isso se chama ci­vilização.

O doutor fez uma pausa e continuou:

— Espero que você esteja me seguindo, se não, é melhor dizer. Tenho que lhe ensinar alguma coisa, por­que você parece não ter aprendido nada durante o tempo que viveu na Terra.

"Depois que se determinou, no mundo astral, o que é preciso, passa-se a investigar as circunstâncias e a selecio­nar os candidatos a progenitores. Quando o casal escolhi­do fez o que lhe competia, a entidade "morre" para o mun­do astral e é enviada ao mundo dos homens sob a forma de um bebê. Em quase todos os casos, o trauma do nasci­mento é tão grande, que a entidade esquece tudo o que aconteceu na sua vida anterior, e é por isso que se ouve dizer: "Ora, eu não pedi para nascer, não tenho culpa!"

"Quando uma pessoa morra para a Terra, ela deve ter alcançado um certo estágio de compreensão, pode ter aprendido um pouco de metafísica e ter ganho um conhecimento que vai ajudá-la no outro mundo. Num caso como o seu, Molygruber, você parece saber muito pouco da vida após a morte, por isso estou lhe explicando.

"Quando uma pessoa só viveu umas poucas vidas no plano terreno, ou plano tridimensional, quando ela deixa a Terra, ou "morre", como erradamente se diz, o corpo astral, ou alma (ou como se preferir chamá-lo), é recebido num mundo astral de grau baixo, adequado ao conhecimento da pessoa que acaba de chegar. Quando um rapaz ou um homem não pode subir na vida por não saber o suficiente, ele tem de estudar à noite para poder progredir na sociedade. O mesmo acontece nos mundos astrais. Existem muitos mundos astrais, cada qual ade­quado para um tipo particular de pessoa. Aqui, neste mundo, que fica no baixo-astral de uma quarta dimensão, você terá que aprender um pouco de metafísica, terá que aprender a pensar para poder obter roupas, comida e todas as outras coisas de que você precisar. Terá ainda de ir ao Panteão da Memória, onde recordará tudo o que fez durante a vida passada e poderá julgar por si mesmo. Devo-lhe dizer que ninguém se julga com maior severi­dade do que o próprio Eu Superior. Esse Eu Superior pode ser igualado à alma. Em resumo, há cerca de noze "di­mensões" nesta esfera particular de atividade. Quando a pessoa atinge finalmente o nono corpo ou Eu Superior, está preparada para subir a planos mais altos e aprender coisas mais elevadas. As pessoas ou entidades estão sem­pre procurando elevar-se, assim como as plantas pro­curam sempre subir em direção à luz.

"Aqui é um mundo baixo astral, onde você vai ter muito o que aprender, não só sobre a vida na Terra, como sobre a vida no astral. Mais tarde, é que você poderá decidir que espécie de lições terá que aprender. Quando tudo estiver decidido, você poderá voltar à Terra, nascer de pais adequados e esperar que, desta vez, tenha mais oportunidades de subir e alcançar um melhor status na Terra, 'um melhor status espiritual, e não apenas de classe social!' Espera-se que, na próxima vida, você aprenda um bocado para que, quando você deixar de novo o seu corpo terreno, não volte para este estágio inferior, mas suba dois ou três planos acima deste.

"Quanto mais alto você subir nos planos astrais, mais interessantes serão as suas experiências e menos terá de sofrer, porém, terá de chegar lá lenta e cautelosamente. Por exemplo, se você fosse de repente içado a um mundo astral dois ou três planos acima deste, você ficaria ofus­cado pela intensidade das irradiações dos Guardiões desse mundo, de modo que quanto mais depressa você apren­der o que tem que aprender, mais depressa poderá vol­tar à Terra e se preparar para subir a planos mais altos e aprender coisas mais elevadas.

"Digamos que um homem muito bom deixa a Terra, o plano tridimensional do qual você acaba de chegar. Se o homem for realmente espiritual, ele poderá subir dois ou três planos e não achará tão difícil quanto neste plano em que você está, não terá de imaginar comida para co­mer. A essência do seu corpo absorverá toda a energia necessária daquilo que o rodeia. Você poderia conseguir os mesmos resultados, mas acontece que você não en­tende dessas coisas, não pode entender muito sobre a espiritualidade já que até agora não acreditou na exis­tência de vida após a morte. Neste plano em que você está agora, há muitas pessoas que também não acredita­vam na vida após a morte, e que estão aqui para aprender que ela existe!

"Em encarnações posteriores, você vai se esforçar por se elevar cada vez mais e, assim, cada vez que você morrer na Terra e renascer para um mundo astral ascen­derá a um plano mais alto e terá espaços de tempo cada vez maiores entre as encarnações. Por exemplo, no seu caso, suponhamos que você foi despedido do seu em­prego na Terra. No seu serviço, geralmente há muitas vagas, pode-se conseguir um emprego parecido logo no dia seguinte, mas, se você fosse professor ou coisa assim, só para lhe dar um exemplo, teria que procurar mais e es­perar muito mais para conseguir um emprego adequado. Da mesma forma, neste plano em que você agora está, você poderia ser mandado de volta à Terra dentro de um mês ou dois mas, quando você tiver ascendido a planos mais elevados, terá de esperar mais tempo, para se re-superar dos choques psíquicos sofridos na Terra."

Molygruber endireitou-se e disse:

—         Bem, tudo isso está acima do meu entendimento, Doutor. Acho que vou ter que aprender uma porção de coisas. Mas a gente pode falar daqui com o pessoal da Terra?

O doutor olhou para ele durante alguns momentos e depois respondeu:

—         Quando o assunto é considerado de urgência, sim. Sob certas condições e circunstâncias uma pessoa neste plano pode entrar em contato com alguém na Terra. Que é que você tem em mente?

Molygruber pareceu embaraçado, baixou a cabeça, olhou para as mãos, retorceu os dedos e, por fim, disser

—         Bem, o cara que ficou com a minha carrocinha, não gosto do jeito como ele trata dela. Eu cuidava, a con­servava sempre limpa, fazia gosto ver. Esse cara traz minha carrocinha cheia de sujeira. Queria entrar em contato com o superintendente do depósito e dizer pra ele dar um bom pontapé no traseiro desse novato.

O doutor ficou chocado.

—         Meu filho disse ele uma coisa que você tem que aprender é a não se deixar levar pela violência e a não julgar severamente as outras pessoas. Claro que você fazia muito bem em limpar a sua carrocinha, mas o seu substituto pode ter outros métodos. Não, você não pode entrar em contato com o superintendente por um motivo tão frívolo. Sugiro que esqueça a sua vida na Ter­ra, você já não está lá, está aqui e, quanto mais depressa aprender a viver neste mundo, mais depressa poderá pro­gredir, porque está aqui para aprender, e poder ser man­dado de volta à Terra com um status mais elevado... se você o merecer.

Molygruber ficou sentado na cama, tamborilando com os dedos sobre os joelhos. O doutor ficou a olhá-lo com curiosidade, pensando como era possível que, na Terra, as pessoas pudessem viver anos e anos e continuarem a ser "almas cativas do barro", mal sabendo o que se pas­sava à sua volta e nada sabendo acerca do passado ou do futuro. De repente, perguntou:

—         E então?

Molygruber teve um sobressalto' e retrucou:

—         Bem, estive pensando numa porção de coisas e compreendo que estou morto. Mas então como é que pareço sólido? Pensei que eu fosse um fantasma. Quando a pessoa vira fantasma, eu acho que não deve ser sólida, deve ficar que nem uma fumacinha.

O doutor riu e replicou:

—         Oh, já nem sei quantas vezes me perguntaram isso! A resposta é muito simples: quando você está na Terra, é basicamente do mesmo tipo de material que todos os que o rodeiam, de modo que vocês se vêem uns aos outros como sólidos, mas se uma pessoa, eu, por exemplo, saísse do mundo astral e descesse à Terra, pareceria tão tênue às sólidas pessoas que habitam a Terra, que ou elas não me veriam, ou enxergariam através de mim. Mas, aqui, eu e você somos feitos do mesmo material, de igual densidade, de modo que somos sólidos um para o outro e todas as coisas à nossa volta são sólidas. Repare bem, quando você ascender a planos mais elevados de exis­tência, as suas vibrações serão cada vez mais altas e, se uma pessoa, digamos, do quinto plano descesse até nós, não a veríamos, ela seria invisível para nós por ser feita de material mais fino.

Molygruber não estava entendendo. Ficou ali sentado, embaraçado, torcendo nervosamente os dedos.

Você não está me entendendo, não é? — per­guntou o doutor.

Não — confessou Molygruber. — Não estou en­tendendo nada.

O doutor suspirou.

—         Bem — disse — suponho que você entenda um pouco de rádio, você já deve ter ouvido rádio. Ora, você não pede pegar Freqüência Modulada... FM... num rá­dio feito apenas para captar AM, e vice-versa. Muito bem, pode-se dizer que FM é alta freqüência e AM é baixa freqüência. Da mesma maneira, pode-se dizer que nós, neste plano de existência, estamos em alta freqüência e que o pessoal da Terra está em baixa freqüência e isso o ajudará a entender que há mais coisas no Céu e na Terra do que você imagina, mas agora você está aqui e tem uma porção de coisas a aprender.

Molygruber teve, de repente, uma visão em flashback de quando freqüentava a Escola Dominical. Comparecera apenas a dois ou três domingos, mas ainda se lembrava. Parou de retorcer os dedos e olhou para o doutor.

—         Doutor — perguntou — é verdade que as pes­soas que são muito devotas têm um lugar especial no céu?

O doutor riu e respondeu:

—         Tanta gente tem essa idéia! Não, não há nenhuma verdade nisso. As pessoas não são julgadas segundo a religião que professam e sim pelo que se passa dentro delas. Praticam o bem por quererem ser boas, ou só o praticam para terem uma garantia quando morrerem para a Terra? Eis uma pergunta que se deve ser capaz de res­ponder. Quando as pessoas morrem, a princípio vêem e experimentam o que esperam ver e experimentar. Por exemplo, se um católico devoto passou a vida terrena sendo alimentado de anjos, música celestial e santos to­cando harpa, isso é o que ele verá quando morrer para a Terra. Mas, quando se apercebe de que tudo não passa de uma alucinação, aí começa a ver a Verdadeira Reali­dade e, quanto mais cedo isso acontecer, melhor para ela.

Fez uma pausa e olhou, muito sério, para Molygruber, antes de prosseguir:

—         As pessoas como você têm uma vantagem: não têm idéias falsas sobre o que vão ver. Muita gente do seu tipo conserva a mente aberta, isto é, nem acredita nem deixa de acreditar. E isso é muito melhor do que seguir com demasiada rigidez uma fé qualquer.

Molygruber ficou sentado muito quieto, o cenho tão franzido, que as sobrancelhas quase se encontravam. Por fim, disse:

—         Eu vivia apavorado, quando era garoto. Sempre me diziam que, se eu não obedecesse, iria parar no in­ferno e uma porção de diabos ia me espetar o traseiro com forquilhas em brasa, para que doesse muito. Como é que Deus, sendo tão grande, sendo um Pai para todos nós pode querer que a gente fique para sempre sendo torturado? Isso é que eu não entendo!

O doutor suspirou profundamente e, após uma pausa, disse:

—         É, essa é uma das maiores dificuldades que nós temos. As pessoas chegam aqui com valores falsos, con­taram-lhes falsidades, contaram-lhes que elas vão para o inferno, sofrer a condenação eterna. Ora, não há uma só palavra de verdade nisso. O inferno é a Terra. As enti­dades vão à Terra adquirir experiência, principalmente através dos reveses, e aprender, também à custa de muita luta, tudo o que têm que aprende. A Terra é um lugar de sofrimento. Quando uma pessoa tem um baixo grau de evolução, geralmente ela não tem o suficiente daquilo a que chamamos carma, por isso precisa sofrer a fim de aprender. Fica na Terra para adquirir alguma experiên­cia observando os outros e, mais tarde, regressa à Terra para experimentar reveses e enfrentar lutas. Mas não existe inferno após a vida na Terra, isso é uma ilusão, é uma falsidade que ensinam às pessoas.

— Então — perguntou Molygruber — como é que a Bíblia fala tanto no inferno?

Porque, nos tempos de Cristo havia um povoado chamado Inferno. Ficava nos arredores de uma terra muito alta e, fora do povoado, havia um pântano de origem vulcânica, com lavas fumegantes e um contínuo fedor do enxofre. Quando uma pessoa era acusada de algum crime era levada até o povoado do Inferno e obrigada a atraves­sá-lo, isto é, a passar pelo pântano de lavas sulfurosas, na crença de que, se ela fosse culpada, o calor a faria cair e ser queimada ou tragada. Se fosse inocente, ou ti­vesse dinheiro suficiente para subornar os sacerdotes, a ponto de estes lhe passarem nos pés uma camada de ma­téria retrataria ao calor, o nosso homem podia atravessar o pântano e emergir a salvo do outro lado, sendo auto­maticamente considerado inocente. O mesmo acontece agora, quando a justiça é tão freqüentemente comprada e os inocentes vão para a cadeia, enquanto que os culpa­dos ficam livres.

—         Tem outra coisa que eu não entendo — disse Molygruber. — Me disseram que, quando a gente morre, no Outro Lado tem ajudantes, que ajudam o cara a ir para o céu ou para o Outro Lugar, seja lá qual for. Muito bem, dizem que eu morri, mas até agora não vi nenhum aju­dante. Tive de chegar até aqui por minha conta, como se fosse um neném nascendo sem ninguém esperar.

- Que história é essa de ajudantes?

O doutor olhou para Molygruber e disse:

—         Claro que há ajudantes para ajudar os que que­rem ser ajudados, mas se alguém, como, por exemplo, você, se recusa a acreditar em alguma coisa, também não pode acreditar nos ajudantes. Se você não acredita nos ajudantes, eles não podem chegar perto para ajudá-lo. Em vez disso, você fica envolto na negra e espessa neblina da sua ignorância, da sua falta de fé, da sua falta de compreensão. Oh, sim, há ajudantes, que se aproxi­mam de você se você permite que eles se acerquem. Da mesma forma, geralmente os pais ou os parentes que já faleceram costumam dar as boas-vindas a quem acaba de chegar aos planos astrais da existência. Mas este plano aqui é o mais baixo, o que fica mais próximo da Terra, e você está aqui porque não acreditava em nada. Por você ser tão ignorante é que acha ainda mais difícil crer em planos mais elevados do que este, de maneira que está aqui, naquilo que algumas pessoas consideram o Purga­tório. O Purgatório é um lugar de purgação e, até você ficar purgado da sua falta de fé, não poderá progredir a planos mais elevados. Por você estar neste plano é que não pode se encontrar com as pessoas que lhe foram simpáticas em outras vidas e que agora estão em planos muito mais elevados.

Molygruber remexeu-se, confuso, e disse:

—         Puxa, parece que eu entrei bem mesmo! Que vai acontecer agora?

O doutor pôs-se de pé e fez sinal para que Molygru­ber o imitasse.

—         Você vai ter que ir agora ao Panteão da Memória, onde passará em revista todos os acontecimentos da sua vida na Terra e poderá julgar onde procedeu bem e onde procedeu mal, e assim formar na sua mente uma idéia do que vai ter que fazer para melhorar a si mesmo, numa próxima vida terrena. Venha comigo.

Dirigiu-se para a parede, que logo se abriu a fim de deixá-los passar. Molygruber e o doutor atravessaram no­vamente o grande corredor e o doutor encaminhou-se para um homem sentado a uma mesa, mantendo com ele uma breve conversa. Depois, voltou para junto de Moly­gruber e disse:

—         Por aqui.

Atravessaram um longo corredor e deram num pátio gramado, que tinha ao fundo um estranho edifício, de­certo feito de cristal, refletindo todas as cores do arco-íris e muitas outras, cujos nomes Molygruber não saberia dizer. Pararam junto à porta e o doutor explicou:

—         Aqui é o Panteão da Memória; há um em cada plano de existência, depois que se ultrapassa o plano ter­reno. Você entra e vê, diante de si, um simulacro da Ter­ra flutuando no espaço. À medida que for se aproximando, vai sentir como se estivesse caindo, depois vai lhe pare­cer que você está de novo na Terra, vendo tudo o que acontece, mas sem ser visto. Você vai ver tudo o que você fez, vai observar suas ações e de que maneira elas afetaram outras pessoas. Este é o Panteão da Memória, há quem o chame Palácio da Justiça, mas você não vai en­contrar nenhum juiz olhando-o de alto a baixo e pesando a sua alma numa balança, para ver se o joga ou não nas chamas eternas. Não, não há nada disso. No Panteão da Memória, cada pessoa vê a si mesma e julga se foi ou não bem-sucedida na Terra, e, se não foi, o que pode ser feito para melhorar a sua atuação. Muito bem — disse ele, agarrando o braço de Molygruber e empurrando-o suavemente para a frente — vou deixar você aqui. Entre no Panteão, leve o tempo que for preciso e, quando você sair, outra pessoa estará à sua espera. Adeus.

E foi embora. Molygruber ficou ali, tomado de um medo esquisito. Não sabia o que iria ver e não sabia o que fazer a respeito do que iria ver. Mas não fez men­ção de se mover, parecia ser uma estátua — a estátua de um varredor de ruas, sem a sua carrocinha — e, final­mente, uma Força estranha empurrou-o na direção do portão e Molygruber entrou.

E foi assim que Leonides Manuel Molygruber pene­trou no Panteão da Memória e lá viu a história de si mesmo e dos que tinham participado na sua vida, desde o início do tempo como uma entidade.

Aprendeu muito, viu os erros do passado, as coisas a preparar para o futuro e, por meios desconhecidos na Terra, a sua compreensão se expandiu, o seu caráter se purificou, e ele deixou o Panteão depois de um tempo indeterminado — poderia ter sido alguns dias, semanas ou mesmo meses mais tarde — e, reunindo-se com um grupo de conselheiros, planejou o seu regresso à Terra, estruturando uma tarefa para a sua próxima vida terrena, e com isso poder voltar para um plano muito melhor da vida astral.

 

O grande Presidente caiu para trás, na sua luxuosa poltrona giratória, e levou ambas as mãos ao peito. Ou­tra vez aquela dor, aquela horrível dor, que dava a im­pressão de que o seu peito estava sendo apertado num torno. Encostou-se na cadeira, arquejando, pensando no que devia fazer: chamar o médico e rumar para o hos­pital, ou agüentar um pouco mais?

O Sr. Hogy MacOgwascher, presidente da Glittering Gizmos, era um homem preocupado, com os mesmos problemas que tinham acabado com a vida do seu pai. A firma, fundada por seu pai, estava prosperando tanto, que Hogy desejava que o pai estivesse vivo para teste­munhar o seu sucesso. Mas, naquele momento, Hogy só tinha uma preocupação: encontrar as suas cápsulas de nitrito de amila. Quebrou uma delas em cima de um lenço de papel. Sentiu que as emanações lhe entravam pelo peito, dando-lhe um alívio temporário. Para o mal de Hogy, o único alívio verdadeiro seria a morte, mas o nitrito de amila fazia com que ele fosse se agüentando e ele sentia-se grato por isso. Tinha consciência de que o seu trabalho não estava terminado. Pensou no pai, morto há tanto tempo, pensou em como costumavam conver­sar, mais como dois irmãos do que como pai e filho. Olhou para a ampla janela e lembrou-se de uma ocasião em que o pai lhe passara a mão pelo ombro e, olhando para o prédio da fábrica, lhe dissera:

—         Hogy, meu filho, um dia tudo isto será seu. Cuide bem da minha obra, que ela lhe assegurará o conforto e a prosperidade para o resto de sua vida.

Dito isso, o pai recostara-se pesadamente na sua ca­deira e como Hogy agora levara as duas mãos ao peito e gemera de dor.

Hogy amara seu pai. Lembrava-se de estar sentado di­ante da mesa dele, uma mesa linda, enorme, entalhada à mão por um velho artesão, na Europa, e lhe perguntara:

—         Pai, por que é que nós temos um nome tão es­quisito? Não entendo. Muitas pessoas me perguntaram e eu nunca fui capaz de explicar. Você tem um pouco de tempo esta tarde, Pai, a reunião da diretoria já acabou, me conte o que aconteceu antes de você vir para o Ca­nadá.

MacOgwascher Sénior recostara-se na sua poltrona a mesma na qual Holy estava agora sentado e acen­dera um imenso charuto Havana. Fumando confortavel­mente, pusera os pés em cima da mesa, entrelaçara as mãos sobre o dilatado estômago e começara:

—         Bem, como você sabe, meu filho, a gente veio da Silésia, na Europa. Nós éramos judeus, mas disseram pra mim e pra sua mãe que mesmo no Canadá havia discri­minação contra os judeus, de modo que eu e ela disse­mos, muito bem, vamos cuidar disso, vamos virar católicos, eles parecem ser os donos do dinheiro e têm uma por­ção de santos pra olhar por eles. Eu e sua mãe começa­mos a procurar um nome que não fosse judeu e aí eu me lembrei do primo do tio dela. Ele era um bom ho­mem e ganhava bom dinheiro, era judeu, como você e eu, mas ganhava um bom dinheiro lavando porcos. La­vava os porcos com petróleo e eles ficavam brilhando que nem bumbum de neném, rosados como quando a gente dá uma palmadinha em bumbum de criança, e os juízes sempre diziam, puxa vida, esse porco deve ter sido pre­parado por fulano, tão bonitos eram os porcos do nosso parente.

O pai de Hogy tirara os pés de cima da mesa, en­quanto pegava uma faquinha tipo canivete, com a qual aparava a ponta do seu charuto, antes de continuar:

—         Eu disse pra minha esposa: isso é o que a gente vai fazer, vamos nos chamar Hogswascher, que quer di­zer lavador de porcos, é um nome que vai pegar bem na América, onde todo mundo tem nomes tão esquisitos.

Parara um pouco, rolara o charuto nos lábios e pros­seguira:

—         Minha mulher disse-me que esse nome não pa­recia muito católico, que a gente devia acrescentar um "Mac", como os irlandeses, os irlandeses sempre têm Mac no nome, nomes com Mac sempre dão sorte. Aí eu decidi que era isso mesmo o que a gente ia fazer, nos chamar MacOgwascher e, daqui por diante, ser católicos.

O velho fizera uma nova pausa, para ruminar um pouco mais. Hogy sempre sabia quando o pai começava a esmiuçar uma coisa porque ele infalivelmente se punha a rolar o charuto entre os lábios. Após uma grande ba­forada, o pai continuava:

—         Eu contei isso aos meus amigos e eles me disse­ram que santos a gente deve ter muitos, especialmente santo padroeiro, como acontece com os católicos da Irlanda. Eu não sabia qual escolher, nunca tinha entendido nada de santos, aí os meus amigos me disseram, você quer um bom santo padroeiro? Pra você, um bom santo padroeiro devia ser o São Lucro.

Hogy olhara espantado para o pai.

Papai — dissera ele — eu nunca ouvi falar em São Lucro. No seminário, os irmãos falavam muito em santos, mas nunca ouvi mencionar esse tal de São Lucro.

Sim, sim, meu filho — retrucara o velho Mac­Ogwascher — então eu vou lhe dizer por que é que o santo ficou com esse nome. Meu amigo falou pra mim: "Moisés, você sempre andou atrás do maldito lucro, mui­tas vezes me disse que o dinheiro não tem cheiro, de modo que você quer melhor santo padroeiro, Moisés, do que o São Lucro?"

Hogy estremeceu, ao sentir a dor apertar-lhe de novo o peito. Achou que ia morrer, que seu peito estava sendo esmagado, triturado, que o ar estava escasseando dos seus pulmões, mas cheirou de novo uma cápsula de nitrito de amila e, aos poucos, a dor foi cedendo. Tentou fazer al­guns movimentos e verificou que a dor tinha passado, mas decidiu que devia parar um pouco, pôr o trabalho de lado, descansar e pensar no passado.

Pensou de novs no pai. Anos atrás, o velho iniciara aquela firma valendo-se de umas pequenas economias. Seu pai e sua mãe tinham saído da Silésia após um dos pogroms[1] anuais e vindo para o Canadá, como imigrantes. Ao ver que não havia trabalho tivera que se conformar em ser lavrador algum tempo, em vez de joalheiro-ourives. Um dia, vira outro lavrador brincando com uma pequena pedra, que tinha um buraco no meio. Interrogado, o ho­mem dissera-lhe que brincar com aquela pedra lhe dava muita paz de espírito e, quando o patrão o censurava por ser demasiado lento ou estúpido, ele pegava na pe­drinha e logo uma grande calma o invadia.

O pai de Hogy pensou durante dias naquela pedra e tomou uma importante decisão. Reuniu todo o dinheiro que tinha, pediu mais algum emprestado e trabalhou como um escravo para juntar mais, a fim de iniciar uma pequena firma, chamada Glittering Gizmos (Amuletos Re­luzentes), que fabricava pequenos objetos, sem nenhum valor material, mas quase todos dourados a vácuo. As pessoas que os compravam achavam que o fato de levar um daqueles objetos dourados no bolso lhes transmitia uma sensação de tranqüilidade.

Certa ocasião, um amigo perguntara:

Afinal de contas, Moisés, o que vem a ser essas coisas que você vende? Têm mesmo algum poder?

Ah, meu amigo replicava Moisés eis uma boa pergunta. O que é um amuleto reluzente? Ninguém sabe dizer mas todos querem saber e por isso pagam bom dinheiro para ter um. Nunca se descobriu nenhum uso para eles, mas a gente anuncia como sendo uma NOVIDADE e tornou-se um símbolo de status ter um dos nossos amuletos, muita gente paga uma taxa extra para ter as suas iniciais gravadas neles. Você não pode esque­cer que aqui, no novo continente, tudo o que é novi­dade tem saída, tudo o que é velho é lixo. Muito bem, a gente pega no lixo, dá um banho de ouro nele e anuncia como sendo novidade, capaz de fazer isto e aquilo. Claro que não faz absolutamente nada, quem compra é que pensa e, como ninguém gosta de admitir que foi enganado, vai dizendo para os outros que aquilo tem po­deres mágicos e com isso eu vou ganhando um bocado..

—         Céus, Moisés! — exclamava o amigo. — Não me diga que está vendendo LIXO ao consumidor incauto!

Moisés MacOgwascher erguia as sobrancelhas grisa­lhas em fingido horror e replicava:

—         Meu amigo, será que você pensa que eu engano os outros? Está me chamando de vigarista?

O amigo ria e retrucava:

—         Sempre que conheço um católico cujo primeiro nome é Moisés, fico pensando o que o terá feito passar de judeu a católico.

O velho Moisés ria também e contava ao amigo a história da sua vida, como tivera um negócio na Silésia, como ficara conhecido pela boa qualidade, pela hones­tidade e pelos preços baixos do que vendia, e terminava dizendo, jovialmente:

—         Tudo isso para nada. Os russos me tiraram tudo, me fizeram ficar pobre, me botaram pra fora da minha casa e eu era um homem honesto, vendendo artigos ga­rantidos a preços justos. Aí, resolvi que estava tudo errado, virei um comerciante desonesto, vendendo bugigangas a preço alto e o pessoal agora me respeita! Olhe só para mim, tenho a minha firma, a minha fábrica, o meu Ca­dillac e o meu santo padroeiro, São Lucro!

Dava uma gargalhada e dirigia-se a um pequeno ar­mário embutido, a um canto do seu escritório, Abria len­tamente a porta, virava-se para o amigo e dizia:

—         Kommen sie hier.

O amigo ria, levantando-se e comentando:

—         Moisés, você está falando a língua errada. Aqui não se fala alemão, você agora é cidadão canadense, deve dizer: "Dê uma olhada aqui, meu chapa."

Dirigia-se para onde o velho Moisés estava, segu­rando a porta aberta do armário, e via um plinto de ébano, sobre o qual se firmava um cifrão de ouro, enci­mado por um halo. Olhava para o velho Moisés sem en­tender, provocando novas risadas.

—         Esse aí é o meu santo padroeiro, São Lucro — explicava ele. — Lucro sujo e dinheiro, mas o meu santo é dólar limpo.

A essa altura, Hogy já estava se sentindo bem me­lhor. Apertou o botão do interfone e chamou a secretária.

—         Quer fazer o favor de vir até aqui, Srta. William?

Uma jovem muito eficiente entrou e sentou-se na beirada da grande mesa.

Quero que chame o meu advogado, acho que chegou a hora de fazer o testamento.

Oh, Sr. Hogy — disse a secretária, alarmada — o senhor está muito pálido, acha que devo chamar o Dr. Johnson?

Não, não — retrucou Hogy — é que eu andei trabalhando demais e não descansei o suficiente. Ligue só para o advogado e peça-lhe para estar aqui amanhã, às dez horas. Por hoje é só.

Fez um gesto com a mão e a secretária saiu, achando que Hogy MacOgwascher estava com o pressentimento de que ia morrer.

Hogy recostou-se na cadeira, pensando no passado e também no futuro, lembrando-se do seu pai sentado ali, naquela mesma poltrona. Pensou no que a Srta. Williams lhe tinha dito e o seu pensamento voltou-se novamente para o pai. Ela contara-lhe como tinha entrado no escri­tório e encontrado o velho MacOgwascher sentado, si­lencioso e sombrio, à sua mesa, Quando ela entrara, ele estava olhando para o céu, vendo as nuvens passar cor­rendo por cima dos prédios da sua fábrica. Depois, sol­tara um profundo suspiro. A Srta. Williams parara e olhara para o velho, temendo que ele fosse morrer ali mesmo, diante dela.

—         Srta. Williams — disse-lhe na ocasião — pre­ciso já do meu carro. Diga ao motorista para trazê-lo, pre­ciso ir para casa.

A secretária concordou, e o velho MacOgwascher re­costou de novo, as mãos entrelaçadas sobre o volumoso ventre. Pouco depois, a porta do seu escritório se abriu e a Srta. Williams voltara, olhando com ar preocupado para o patrão.

—         O carro já o está esperando — disse ela. — Quer que o ajude a vestir o paletó?

O velho levantou-se com dificuldade e respondeu:

—         Ora, Srta. Williams, por acaso acha que estou tão velho assim?

A secretária sorriu e deu-lhe o paletó. O velho en­fiou desajeitadamente os braços nas mangas e ela ajudou a abotoá-lo.

—         Aqui está a sua pasta — disse-lhe. — Ainda não vi o seu novo Cadillac, sabia? Vou descer com o senhor para dar uma olhadinha, se o senhor não se importar.

Ele concordou e os dois desceram de elevador até a rua.

O motorista fardado saíra imediatamente do carro a fim de abrir a porta para o patrão.

—         Não, meu filho, não, quero me sentar na frente, com você, para variar — disse o velho, avançando para o assento dianteiro do automóvel.

Com um aceno para a Srta. Williams, instalou-se ao lado do motorista, que logo pôs o carro em movimento.

MacOgwascher Sênior morava no campo, a uns qua­renta quilômetros do escritório e, à medida que o carro corria pelas estradas que levavam aos arredores da cidade, ele olhava em volta, como se fosse a primeira vez que visse tudo aquilo — ou como se fosse a última. De­pois de quase uma hora, pois o trânsito estava bastante congestionado, o carro chegava diante da mansão dos Mac­Ogwascher. A Sra. MacOgwascher estava esperando na porta, porque a Srta. Williams, como boa secretária que era, lhe telefonara avisando que o patrão parecia estar na iminência de ter um ataque.

—         Ah, Moisés! — disse a Sra. MacOgwascher. — Passei o dia todo preocupada com você. Acho que você está trabalhando demais, talvez fosse boa idéia a gente tirar umas férias.

O velho Moisés dispensou o motorista e entrou em casa com ar fatigado. A mansão era típica de um homem com muito dinheiro, mas não muito gosto. Havia preciosas antigüidades ao lado de objetos modernos e berrantes, mas, mesmo assim, o velho e o novo se combinavam de uma maneira quase mística, como só os judeus ori­undos da Europa conseguiam alcançar. Em vista disso, em vez de parecer um bricabraque, o interior da casa resul­tava bastante atraente.

A Sra. MacOgwascher pegou no braço do marido, dizendo:

Sente-se aqui, Moisés, você parece que vai cair. Acho bom chamar o Dr. Johnson.

Não, mama, não. Temos uma porção de coisas para falar antes de chamar o Dr. Johnson.

Recostou-se na poltrona e levou as mãos à cabeça, numa atitude de meditação.

—         Mama — disse Moisés — lembra-se da nossa ve­lha religião? A religião da nossa família é a judaica. Por que é que eu não mando chamar um rabino para falar com ele? Há tanta coisa na minha cabeça que eu gostaria de esclarecer.

A esposa preparava um drinque para o marido.

—         Como é que a gente pode voltar à religião ju­daica — replicara ela, dando o copo ao marido — se há tanto tempo somos católicos?

O velho pensou um pouco, enquanto bebia o seu drinque, e depois respondeu:

—         Ora, ora, mama, a gente não precisa mais fingir. Não podemos voltar à terra dos nossos pais, mas pode­mos voltar à nossa antiga religião. Acho que talvez eu deva chamar aqui um rabino.

A coisa ficara por isso mesmo, mas, ao jantar, o velho deixou cair o garfo e a faca com estrondo e tombou para trás, arquejante.

—         Não, Moisés, agora já chega de brincadeira — dis­se-lhe a mulher, correndo para o telefone. — Vou cha­mar o Dr. Johnson.

Passou rapidamente o dedo pelo indicador automático e apertou um botão. A última maravilha eletrônica zum­biu, ao mesmo tempo que o aparelho chamou o número do Dr. Johnson. Este não demorou a atender.

—         Dr. Johnson, Dr. Johnson, o senhor precisa vir de­pressa, meu marido está de novo com aquele aperto no peito.

Sabendo que se tratava de um paciente que pagava bem, o médico não hesitou:

—         Muito bem, Sra. MacOgwascher, estarei aí dentro de dez minutos.

A mulher foi para junto do marido, sentando-se no braço da poltrona em que ele estava.

Mama, mama gemia o velho, segurando o peito com ambas as mãos — lembra-se de como a gente veio do Velho Continente? Da maneira mais barata possível, aglomerados como gado num curral? Demos duro, mama, eu e você, tivemos uma vida dura e não estou muito certo se fizemos bem em nos convertermos em católicos. Nas­cemos judeus, devíamos ter sempre continuado judeus. Talvez a gente devesse voltar a nossa antiga religião.,

Mas não podemos fazer isso, Moisés, não pode­mos! O que é que não diriam os nossos vizinhos? Acho melhor que você tire umas férias, talvez volte se sentindo melhor. Queria que o Dr. Johnson recomendasse uma en­fermeira para ir conosco e tomar conta de você.

A campainha da porta tocou, fazendo com que a Sra. MacOgwascher se levantasse de um pulo. Mas a empre­gada já estava atendendo num minuto. Dr. Johnson es­tava ao lado do paciente.

—         Então, Sr. MacOgwascher disse o médico, com voz jovial que foi que houve? Dor no peito, não? Es­pero que seja outro ataque de angina. Um dos principais sintomas, como o senhor talvez saiba, é a impressão de que se vai morrer.

A Sra. MacOgwascher aquiescia gravemente.

Pois é, doutor, há algum tempo ele está com essa impressão de que não vai viver muito tempo, por isso decidi chamá-lo com urgência.

Fez muito bem, Sra. MacOgwascher disse o médico é para isso que estamos aqui. Mas vamos le­vá-lo para a cama para eu poder examiná-lo. Trouxe um eletrocardiógrafo portátil para ver como vai seu coração.

O velho Moisés foi imediatamente colocado em sua imensa cama de casal, guarnecida com um edredom à moda européia. O médico examinou-o, o rosto cada vez mais grave e, finalmente disse:

—         Bem, acho que o senhor vai ter que ficar algum tempo de cama, o senhor está um bocado doente, tem trabalhado demais e, na sua idade, isso já não é possível.

Fechou o aparelho, guardou o estetoscópio e lavou as mãos no banheiro da suíte. Depois, apertou a mão do paciente e desceu a escada acompanhado da Sra. MacOgwascher. Chegando ao térreo, murmurou:

—         Posso falar com a senhora em particular?

A dona da casa levou-o para o escritório do marido e fechou a porta.

Sra. MacOgwascher, sinto dizer-lhe que o seu ma­rido está muito doente. Receio que, se ele continuar a trabalhar, não vá durar muito. O seu filho Hogy não está na Universidade?

Está sim, doutor — replicou a Sra. MacOgwascher — está no Ballyole College. Se o senhor achar aconselhá­vel, posso lhe telefonar imediatamente e pedir-lhe que venha logo. Ele é um bom rapaz, um ótimo rapaz.

Eu sei — concordou o médico. — Sei que ele é um bom rapaz, já o vi várias vezes. Na minha opinião, ele deveria voltar imediatamente. Talvez seja a última oportunidade de ver o pai vivo. Devo-lhe dizer que o seu marido está realmente precisando de assistência dia e noite. Posso lhe mandar ótimas enfermeiras.

Oh, sim, doutor, claro que sim. Graças a Deus te­mos recursos. Faremos tudo o que o senhor recomendar.

O doutor apertou os lábios, olhou para baixo e disse:

—         Bem, o ideal seria interná-lo na minha clínica, lá ele seria bem cuidado, mas, de momento, receio que não possa ser removido. Vamos ter que tratá-lo aqui mesmo. Vou mandar uma enfermeira para ficar de plantão durante oito horas, outra para substituí-la durante mais oito ho­ras e, logo de manhã, darei um pulo para ver como ele vai passando. Vou passar uma receita e mandar a farmá­cia despachá-la logo, mas a senhora vai me prometer se­guir cuidadosamente as instruções. Até amanhã, Sra. MacOgwascher.

O médico atravessou a sala de jantar, dirigindo-se à porta de entrada, diante da qual o seu carro estava esta­cionado.

Durante algum tempo, a Sra. MacOgwascher ficou com a cabeça apoiada nas mãos, pensando no que havia de fazer, só despertando com a entrada da empregada.

—         O patrão está chamando a senhora, madame. A Sra. MacOgwascher subiu depressa a escada.

-— Mama, por que não chamamos um rabino? — per­guntou ele. — Chame logo um rabino. Tenho uma porção de coisas para falar e talvez o meu filho, ou um velho amigo, possam recitar o Kaddisch.

Meu Deus, Moisés! — exclamara a esposa. — Você quer mesmo chamar um rabino? Não se esqueça de que somos católicos convertidos. Como vamos explicar aos vi­zinhos que, de repente, viramos de novo judeus?

Mas, como é que eu posso morrer em paz sem ter certeza de que alguém vai recitar o Kaddisch pra mim?

A Sra. MacOgwascher pensou no caso e concluiu:

—         Já sei. Vamos chamar um rabino como se fosse um amigo e, depois, chamaremos o padre. Assim, os vi­zinhos não falarão nada e nós ficaremos protegidos pelas duas religiões.

O velho riu-se a valer, o que fez com que a dor voltasse. Quando a dor cedeu, perguntou:

Puxa, quer dizer que você acha que eu tenho sido tão mau que preciso da garantia de duas religiões para poder entrar no céu? Bem, seja como você quiser, mas eu quero que você chame depressa o rabino. Depois, podemos mandar chamar o padre.

Já telefonei a Hogy, Moisés — disse a Sra. Mac­Ogwascher. — Disse-lhe que você teve um pequeno ata­que e que achei que seria um conforto para você se ele viesse por um ou dois dias. Ele falou que vinha imedia­tamente.

Hogy recordava tudo aquilo, esquecendo-se da dor por uns momentos, entretido que estava pensando na­queles dias, lembrando-se de como o seu carro atraves­sara a noite fria, cruzando pequenos povoados e grandes cidades. Recordou a expressão de espanto de um guarda, que surgira como por encanto de um esconderijo e ten­tara fazê-lo parar mas, vendo que ele não parava, montara na sua motocicleta e procurara alcançá-lo, sem resultado, pois Hogy tinha um carro possante e era um bom mo­torista. O guarda devia ser novato, pois logo desistira da perseguição.

Hogy chegou em casa quando a aurora irrompia no oriente e o céu estava todo riscado de vermelho, azul e amarelo. Depois de dormir um pouco, para que o pai não visse como ele estava cansado, fora ter com ele.

Encontrara-o deitado na cama, tendo na cabeça o yarmelke, o pequeno barrete redondo que os judeus or­todoxos usam em certas ocasiões. Sobre os ombros, pu­sera o xale das orações. Recebeu-o com um sorriso exangue e foi logo dizendo:

—         Hogy, meu filho, ainda bem que você voltou a tempo. Sou judeu e você é um bom católico. Os católicos acreditam em fazer o bem, de maneira que eu, meu filho, quero que você faça algo por mim: quero que você recite o Kaddisch que, como você sabe, é a Oração dos Mortos. Quero que você recite à maneira antiga, tradicional, que está quase esquecida. Isso não vai interferir com a sua fé católica, meu filho.

Hogy hesitou. Era realmente um católico convicto, acreditava nos Evangelhos, nos santos e em toda a dou­trina. Acreditava que o Papa tinha poderes divinos. En­tão, como podia ele, um bom católico, de repente voltar, ainda que temporariamente, à religião dos seus pais, à religião judaica? O velho ficara olhando para ele, observando-lhe atentamente a expressão do rosto. Por fim, suspirara, afundara ainda mais na cama:

—         Está bem, meu filho, não vou pedir mais, mas acho que todos acabamos da mesma maneira, tanto faz que eu seja judeu e você seja católico. Se a gente leva uma vida saudável, é recompensado. Mas me diga uma coisa, meu filho — disse, com um leve sorriso — por que é que os católicos temem mais a morte do que os de qualquer outra religião? Por que os católicos se opõem tanto a todas as outras religiões e crêem firmemente que, se a pessoa não for católica, apostólica, romana, não terá lugar no céu? Acho que compraram todos os ingressos adiantados — concluiu o velho, rindo.

Hogy gemeu:

—         Pai, deixe-me chamar um padre. Se você se con­verter sinceramente, tenho a certeza de que vai ter o seu lugar no céu. Como judeu, é que você não vai ter chance, vai direto para o inferno, como um velho escritor que eu andei lendo, até que um padre me pegou com um livro dele e tive que fazer penitência por andar lendo livros do tal Rampa. No hospital, há uns tempos, uma freira chorou com pena dele, disse que ele ia acabar no inferno, por ser budista... imagine só!

O velho MacOgwascher olhou para o filho com pena e disse:

—         Meu filho, desde que você saiu de casa e se tor­nou um católico devoto, ficou intolerante. Não faz mal, vou chamar um dos meus velhos amigos, que tem sido como um filho para mim. Ele vai me recitar o Kaddisch, e você não se vê abalado em sua fé, Hogy.

O velho rabino veio ver o velho MacOgwascher e os dois ficaram muito tempo conversando.

—         Meu filho mudou tanto — disse o doente — que acho que não é mais meu filho. Não quis ler o Kaddisch pra mim, não quis nem que eu falasse na nossa religião. Por isso vou lhe pedir, meu amigo, que o faça em seu lugar.

O rabino colocou as mãos nos ombros do velho amigo:

—         Claro que vou recitar o Kaddisch para você, Moi­sés, mas o meu filho é um ótimo rapaz e acho que seria mais apropriado que ele o fizesse porque é mais da idade do seu filho, enquanto que eu sou seu contemporâneo.

O velho Moisés pensou no assunto e acabou sor­rindo e aceitando a sugestão.

—         Sim, acho que você tem razão, vou aceitar o seu conselho e seu filho, se ele quiser, recitará o Kaddisch para mim como se fosse meu filho.

O velho fez uma pausa e só depois de algum tempo voltou a falar:

—         Rabino, esse autor, Rampa, você já ouviu falar nele? Já leu algum dos seus livros? Meu filho diz que muitos católicos estão proibidos de ler os livros dele, de que é que eles tratam?

O rabino riu.

Trouxe um para você ler, meu amigo. Fala muito a respeito da morte, dá muita coragem à pessoa. Vou lhe pedir que o leia, verá como vai lhe trazer paz de espírito. Recomendei-o a muitas pessoas e sim, eu sei alguma coisa sobre ele. É um homem que escreve a verdade, que tem sido perseguido pela imprensa ou, mais precisamente, pelos meios de comunicação de massa. Há alguns anos atrás, uns jornais andaram dizendo que ele era filho de um bombeiro, mas eu sei que isso não é verdade. Mesmo assim, não entendo o ponto de vista deles, por que teria ele que se envergonhar, se fosse mesmo filho de um bombeiro? Cristo, ao que se sabe, era filho de um carpinteiro e muitos santos da Igreja Católica têm origem muito humildes. Um deles, Santo Antônio, era filho de um guardador de porcos. Alguns eram até ladrões que se converteram. Esse escritor diz a pura verdade. Como rabino, ouço muita coisa, recebo muitas cartas e sei que o homem diz a verdade, mas entrou em choque com um grupo de pessoas e desde então tem sido perseguido e ninguém da imprensa lhe deu jamais uma oportunidade de se explicar.

E por que é que ele tem que se explicar? — per­guntou o velho Moisés. — Por que não se defendeu na ocasião, por que precisa explicar-se agora?

O rosto do rabino ficou sombrio.

—         O homem estava de cama, com uma trombose coronária, quando o pessoal da imprensa foi procurá-lo em casa. Pensou-se que ele fosse morrer e a imprensa mostrou-se ainda mais virulenta, por não haver ninguém para refutar-lhe a história. Mas chega de falar nele, te­mos que tratar de você. Vou falar com o meu filho.

Os dias se* passaram. Três, quatro, cinco dias. No quinto dia, Hogy entrou no quarto do pai. O velho estava desfalecido sobre os travesseiros, os olhos meio abertos, a boca escancarada, a mandíbula descaída sobre o peito. Hogy correu para junto dele e depois precipitou-se porta afora, gritando pela mãe.

O enterro de Moisés MacOgvvascher foi modesto, bem íntimo.

Três semanas depois, Hogy voltava à Universidade, a fim de concluir os seus estudos e tomar a seu cargo os negócios do pai.

 

Hogy MacOgwascher voltou, de súbito, ao presente. A consciência pesada, olhou para o relógio de parede: quanto tempo tinha desperdiçado? Enquanto aquela dor horrível não passava, o tempo não tinha importância. Fi­cou apertando o peito e imaginando se não acabaria da mesma forma que o pai.

A porta abriu-se cautelosamente. Hogy olhou, sobres­saltado. Que seria? Um assaltante, querendo roubar? Por que tanta precaução? A porta abriu-se um pouco mais e metade de um rosto surgiu, fitando-o com um único olho, o olho e a cara da sua secretária! Vendo que ele estava olhando para ela, a moça entrou na sala, corando e com certo embaraço.

—         Oh, Sr. Hogy disse ela estava tão pre­ocupada que entrei duas vezes, mas o senhor nem deu por mim. Ia chamar o médico para vir vê-lo. Espero que o senhor não pense que o estava espionando.

Hogy sorriu e retrucou:

—         Nada disso, minha cara, sei que nunca faria uma coisa dessas e sinto ter-lhe dado motivo para tanta pre­ocupação.

Olhou-a na expectativa, erguendo as sobrancelhas numa expressão tipicamente judaica de interrogação.

—         Queria perguntar alguma coisa?

A secretária olhou para ele, embaraçada, e por fim resolveu dizer:

—         Sr. Hogy, nestes últimos dias, não só eu, como outros colegas temos observado que o senhor vem sentindo bastante dores. Não acha que devia fazer um bom checkup, Sr. Hogy?

—         Já fiz e sei que sofro de angina pectoris, uma do­ença do coração. Eventualmente, acho que terei de deixar o cargo de Presidente... se eu não morrer antes, claro. Por isso, tenho que pensar em quem vai ficar no meu lugar. Talvez seja boa idéia convocar uma reunião espe­cial da diretoria para amanhã à tarde. Quer notificar os membros da diretoria?

A secretária fez que sim com a cabeça.

Oh, Sr. Hogy, espero que tudo se resolva. Acha que devo ligar para a Sra. MacOgwascher e dizer-lhe que o senhor vai já para casa?

Oh, não, nada disso, — retrucou Hogy. — Mi­nha mulher já está demasiado preocupada comigo, mas acho bom chamar o meu chofer e dizer-lhe para encostar o carro diante do prédio. Vou descer e ficar no hall à espera dele. Diga-lhe que entre assim que chegar.

Hogy passou em revista alguns dos seus documentos e, levado por um impulso, guardou-os no cofre. Olhou para o relógio, olhou em volta, e fechou o cofre. Revistou as gavetas da mesa, fechou-as à chave, depois saiu da sala e desceu a escada.

Hogy morava num dos novos bairros residenciais, a uns vinte e cinco quilômetros do escritório, numa região em desenvolvimento. Olhou, espantado, para os edifícios que estavam sendo construídos. Nunca tivera tempo para prestar atenção — a caminho do escritório ou de volta a casa sempre viajara com a cabeça mergulhada em papéis importantes. Agora, pela primeira vez, olhava pelas ja­nelas do carro, contemplava a vida ao seu redor, e pensou consigo mesmo, bem, acho que não vou demorar a mor­rer, como o meu pai, e o mundo vai continuar sem mim.

—         Oh, Hogy, acho melhor chamar o médico! — ex­clamou a Sra. MacOgwascher, ao ver o marido entrar. — Vou ligar logo para o Dr. Robbins, ele conhece você me­lhor do que ninguém.

Saiu correndo e dali a pouco estava falando ao tele­fone com a secretária do médico. À maneira das secretá­rias de médicos famosos, a mulher mostrou-se autoritária:

—         O Dr. Robbins está muito ocupado, seu marido vai ter que vir até o consultório.

Mas a Sra. MacOgwascher sabia como lidar com gente assim:

—         Bem, se a senhora não pode tomar um recado, vou telefonar para a esposa do doutor. Sou amiga pessoal da família.

Hogy sentou-se à mesa para comer alguma coisa. Não tinha fome, não se sentia bem e temia que uma refeição pesada lhe fizesse mal.

—         Acho que vou me deitar — disse ele, levantando-se da mesa. — Espero que o Dr. Robbins venha den­tro de duas ou três horas, esses médicos não parecem preocupar-se com os seus pacientes, tudo o que eles que­rem é jogar golfe e ver os cheques entrarem.

Virou-se e subiu lentamente a escada. Ao chegar ao quarto, remexeu nos bolsos, colocou o dinheiro trocado em cima da mesinha de cabeceira, dobrou cuidadosamente a roupa que tirara e, vestindo um pijama limpo — estava esperando o médico! — enfiou-se na cama. Durante al­gum tempo, ficou deitado, meditando, pensando em como a sua experiência era quase idêntica à do seu fa­lecido pai.

—         Santa Maria, mãe de Deus — rezou Hogy — orai por nós, pecadores, agora e na hora da nossa morte.

Nesse instante, ouviu-se o toque distante da campai­nha e de passos apressados. Hogy ouviu a porta da frente se abrir, uma conversa em voz baixa e a empregada su­bir correndo a escada.

—         O doutor já está vindo. Mando subir? — pergun­tou ela.

—         Como? Oh, sim, mande-o subir.

O médico entrou no quarto e, após cumprimentá-lo, tirou da maleta um estetoscópio e auscultou cuidadosa­mente o peito de Hogy.

—         Pois é, Sr. MacOgwascher — disse o médico — o senhor teve outra crise. Não se preocupe, vamos dar um jeito nisso, como das outras vezes. Fique calmo.

Sentou-se na cama e, uma vez mais, disse a Hogy que um dos principais sintomas da angina era o paciente achar que ia morrer.

—         Bem — disse ele — todo mundo tem que mor­rer, até mesmo os médicos. Um médico não pode curar a si mesmo, todos temos que morrer e eu já vi muita gente morrer. Mas tenho certeza de que a sua hora ainda não chegou.

Fez uma pausa, apertou os lábios e prosseguiu:

Seria bom que o senhor tivesse uma enfermeira de noite e outra de dia. Acho que ficaria mais sossegado, o senhor e sua esposa, que me parece muito preocupada, embora na verdade não- tenha razões. Gostaria que lhe mandasse umas enfermeiras?

Ah, doutor — retrucou Hogy — acho que não há pessoa mais indicada para fazer-me este favor. Prova­velmente, o senhor vai recomendar o mesmo esquema que o meu pai teve, duas enfermeiras de dia e uma de noite. É, eu gostaria muito que o senhor tratasse disso.

Dali a pouco, uma enfermeira entrava no quarto de Hogy. Ele olhou-a desanimado. Que droga, pensou, por que não mandam uma enfermeira charmosa e sim velhas rabugentas? Mas a mulher era eficiente, pôs-se logo a ar­rumar o quarto, de tal maneira que o pobre Hogy já não sabia onde tinha a cabeça nem onde tinha os pés. Sempre o mesmo com as mulheres, pensou, quando en­tram num quarto reviram tudo, a pretexto de arrumar. Bem, esse era um dos inconvenientes de estar doente, ele tinha que se conformar.

A noite foi muito desconfortável. Hogy sentiu dores, tomou remédios, sentiu mais dores e pareceu-lhe que o dia nunca mais ia chegar. Por fim, os primeiros raios de luz entraram pelas frestas da veneziana. Hogy nunca pas­sara uma noite pior, em toda a sua vida e, quando a mu­lher entrou no quarto, ele foi logo dizendo:

—         Acho que devemos chamar o padre, preciso me confessar.

A esposa desceu e ligou imediatamente para o pá­roco. Após uma lúgubre introdução por parte da Sra. MacOgwascher, Hogy ouviu-a dizer:

—         Oh, ainda bem, Padre, ainda bem, meu marido vai ficar muito feliz em saber que o senhor virá hoje mesmo.

Conforme prometera, o padre veio nesse mesmo dia, depois do chá. Hogy pediu à enfermeira que saísse, pois queria ficar a sós com o pároco.

—         Eu lhe garanto, Sr. MacOgwascher disse o pa­dre que o senhor sempre foi um ótimo católico e que, quando a sua hora chegar, o senhor sem dúvida irá direto para o céu, graças ao que tem feito pela Igreja. Vamos rezar juntos?

E ajoelhou-se no meio do quarto.

Hogy concordou. Certas coisas sempre lhe pareciam embaraçosas. Pensou no pai, que era judeu e não se envergonhava de dizê-lo, e que, no fundo, ele renegara a sua própria fé. Lera, não se lembrava onde, que ninguém devia mudar de religião sem ter uma razão muito forte, e ele não achava que subir na escala social e conseguir status, fossem razões muito fortes.

Nessa noite, Hogy ficou muito tempo acordado, pen­sando. A dor cedera bastante, mas ele ainda estava longe de sentir-se bem. Parecia ter uma cavidade no coração e, às vezes, tinha a estranha impressão de que o coração andava para trás. Ficou deitado na cama, no escuro, olhan­do para o céu da noite e para a copa das árvores, através da janela do quarto. Ficou pensando na vida, na religião. Haviam-lhe ensinado que, se não seguisse os ensinamen­tos de Jesus Cristo não tinha a menor chance de ir para o céu. Pôs-se a pensar no que teria acontecido com as almas de todos os que tinham vivido na Terra durante os milhares de anos anteriores ao Cristianismo, nos mi­lhões de habitantes da Terra que não eram cristãos... Seria verdade que, se a pessoa não fosse católica, não iria para o céu? Assim pensando, caiu num sono profundo e tranqüilo.

Nos dias que se seguiram, Hogy deu a impressão de estar melhorando incrivelmente. O médico estava muito satisfeito com a sua recuperação.

— Bem, Sr. MacOgwascher — disse o Dr. Robbins — em breve o senhor vai se levantar dessa cama e po­der tirar umas férias bem longe daqui, é o que o senhor está precisando. Já pensou onde gostaria de ir?

Hogy pensara sim, porém não chegara a uma decisão. A verdade é que não tinha vontade de ir a lugar nenhum, sentia-se cansado, sempre cansado. A dor diminuíra, mas, embora ele não soubesse explicar por que, não se sentia bem, parecia haver algo roendo-lhe o interior do peito. Mas o médico afirmava que ele estava melhorando, as enfermeiras também, a esposa idem e, quando o padre o visitou também disse que ele estava melhorando graças à misericórdia divina.

Chegou o dia em que Hogy recebeu permissão para se levantar e sair da cama. Vestiu um robe quentinho e ficou um bocado de tempo olhando pela janela, vendo os carros passarem, os vizinhos, da mesma forma que ele, olhando por entre as cortinas. Aí, pensou, bem, não adi­anta ficar aqui no quarto, acho que vou até lá embaixo.

Dirigiu-se lentamente para a porta, mas encontrou dificuldade em abri-la. Segurou a maçaneta mas, por incrí­vel que pareça, teve a impressão de não saber o que fazer para abri-la: a gente girava a maçaneta, puxava-a ou em­purrava-a? Ficou algum tempo junto à porta, tentando abri-la, até que, por fim, girou a maçaneta por acaso e a porta abriu-se tão rapidamente, que ele quase caiu para trás.

Alcançou o acarpetado corredor e foi descendo deva­gar os degraus da escada. De repente, deu um grito. Sen­tiu uma dor tão terrível que chegou a pensar que algum assassino o tinha apunhalado pelas costas, virando-se brus­camente. Isso fez com que perdesse o equilíbrio e caísse rolando escada abaixo.

Felizmente, o médico estava entrando. Correu para Hogy, junto com a Sra. MacOgwascher e a empregada, e todos formaram um círculo confuso à sua volta. O mé­dico ajoelhou-se, abriu-lhe depressa o robe, puxou do estetoscópio e auscultou-o. Abriu a maleta e — ele era um médico muito precavido — pegou unia seringa já pronta. Hogy sentiu uma picada forte e não viu mais nada.


Ouviu, como que muito ao longe, um ruído estranho, semelhante a um zumbido, sentiu-se oscilar e escutou um débil murmúrio de vozes. Não entendia o que estava acontecendo. Depois, ouviu uma sirene. Abriu os olhos e viu que estava numa ambulância, amarrado a uma maca. Sentada num banco ao seu lado, estava a mulher. Pare­cia muito desconfortável e Hogy não pôde deixar de pen­sar por que razão as ambulâncias ofereciam tão pouco conforto aos amigos e parentes dos pacientes.

Uma outra coisa lhe chamou a atenção: que engra­çado, pensou! Descendo uma ladeira, os pés da pessoa ficam mais altos do que a cabeça e, quando se sobe pelo outro lado... bem, era como andar numa gangorra. Tudo lhe parecia esquisito. As pessoas, lá fora, nos cruzamentos, olhavam avidamente através das janelas da ambulância, esperando satisfazer uma curiosidade mórbida. Algumas pareciam ter um estranho halo colorido, mas ele não parou para pensar no motivo, seus pensamentos esvoa­çavam de um assunto para o outro. De repente, ouviu-se um estrondo na frente da ambulância, o veículo entrou num túnel escuro e depois parou abruptamente. A ambu­lância começou a balançar; o motorista e o atendente pu­laram para fora e tentaram abrir a porta. Primeiro, ajuda­ram a Sra. MacOgwascher a sair e depois, com um bo­cado de barulho e confusão, puxaram a maca e fizeram com que ela fosse erguida a uma altura de mais ou me­nos metro e meio, para que pudesse ser facilmente em­purrada. Um dos atendentes disse, em voz baixa, para a esposa de Hogy:

— Entre nesse pequeno escritório aí colado, a se­nhora vai ter que dar todos os detalhes; os seguros que ele tem, a idade, a natureza da doença, o nome do mé­dico, a entidade de previdência social para a qual des­conta, tudo. Assim que tiver feito isso, queira subir para a Enfermaria XYX.

Agarraram rapidamente nas duas pontas da maca so­bre rodas e empurraram-na por uma espécie de rampa, parecida com uma que Hogy tinha na fábrica. A luz era fraca, mas eles conheciam bem o caminho e empurraram a maca a uma velocidade razoável, distribuindo, ao passar, saudações a médicos e enfermeiras.

Hogy, enquanto isso, deixava-se levar, pensando numa coisa e noutra. De repente, pararam e, com o canto do olho, ele viu um dos atendentes apertar o botão de um elevador. Não tardou que grandes portas se abrissem e os dois padioleiros empurrassem a maca rolante para den­tro deles. As portas fecharam-se com estrépito e o eleva­dor começou a subir. Parecia não querer mais parar, por fim, parou e balançou ligeiramente. As portas se abriram a uma luz muito brilhante incidiu sobre os olhos de Hogy. Com alguma dificuldade, ele concentrou-se na cena que tinha diante de si, o balcão das enfermeiras, logo à saída do elevador.

Emergência. Ataque cardíaco. Onde o colocamos? — perguntou um dos homens.

Bem, espere um pouco, vamos ver. Pode levá-lo para o Centro de Tratamento Intensivo — retrucou a en­fermeira que estava atrás do balcão.

Os padioleiros empurraram a maca pelo corredor afora. Hogy ouviu sussurros, o tilintar de instrumentos, o som de vidro batendo em metal, e a maca entrou por uma porta aberta.

Quando parou, Hogy olhou em volta com um con­fuso interesse. Estava num lugar esquisito, numa sala grande, onde devia haver umas doze camas. Hogy ficou espantado de ver que alguns dos pacientes eram mulhe­res e outros homens, e sentiu-se embaraçado, ao pensar que iria ter que dormir com aquelas mulheres — bem, não exatamente isso, mas na mesma sala que uma porção de mulheres. Murmurou algo e o padioleiro de trás curvou-se e perguntou:

Como?

Não sabia que havia enfermarias mistas, para ho­mens e mulheres — disse Hogy.

O padioleiro sorriu e retrucou:

—         Ah, isto aqui é o Centro de Tratamento Intensivo e os homens e as mulheres que vêm para cá estão de­masiado doentes para se preocupar com isso!

Puseram-se de novo em movimento e Hogy tornou a ouvir vozes falando baixo, em murmúrios ininteligíveis. Por fim, um dos padioleiros disse:

—         Pronto, o senhor está junto de uma cama, seria capaz de passar sozinho para ela?

Hogy fez que não com a cabeça e o padioleiro disse:

—         OK, nós vamos ajudá-lo, vamos fazer com que o senhor deslize. A maca e a cama são mais ou menos da mesma altura. Lá vai!

Hogy sentiu que o moviam e que era trasladado para a cama do hospital. Removeram a maca e os dois padio­leiros saíram. Uma enfermeira inclinou-se e suspendeu os anteparos laterais da cama, para que Hogy ficasse como que enjaulado.

—         Não sou nenhum animal perigoso — comentou ele.

—         Oh, não se irrite com isso — replicou a enfer­meira — nós sempre colocamos as grades, para evitar que os pacientes caiam da cama, o que daria até pro­cesso!

E, como se já fosse esquecendo, acrescentou:

—         Ah, o médico prometeu vê-lo tão logo possa.

Hogy ficou um tempo enorme ali, embora não sou­besse dizer quanto exatamente. Olhou para cima uma vez e pareceu-lhe ver a mulher olhando para ele, mas logo ela desapareceu numa espécie de neblina, porque tudo o que ele via parecia envolto numa névoa cinzenta. De­pois, sentiu que havia gente à sua volta que lhe desa­botoava o pijama. Sentiu o frio de um estetoscópio e uma picada no braço, e em seguida nebulosamente, viu tubos partindo do seu braço para algo — ALGO — a distância, que ele não conseguia distinguir. Sentiu um apertão no outro braço e o ruído de uma máquina sendo bombeada. Depois, uma voz de homem disse uns números em voz alta e exclamou:

—         Puxa! — Hogy não ouviu mais nada.

O tempo parecia ter parado. Parecia ter deixado de existir. Muito vagamente, Hogy percebeu que estavam mo­vendo as camas, ou talvez fossem macas sobre rodas, havia uma porção de barulhos metálicos e cheiros que lhe irritavam as narinas. Ele não entendia nada do que estava acontecendo.

Apercebeu-se, também vagamente, de que duas pes­soas falavam do lado dele, ou seria por cima? Não sa­beria dizer ao certo, mas ouviu coisas como:

—         Marca-passo?

—         Não sei, talvez fosse bom estarmos preparados para um choque cardíaco, não estou gostando do aspecto dele. Provavelmente, ele vai acabar reagindo. Vamos es­perar.

As vozes distanciaram-se, como se levadas pelo vento. Hogy cochilou de novo, mas foi despertado por alguém que lhe perguntava:

Como é, Sr. MacOgwascher? Está se sentindo me­lhor? Sr. MacOgwascher? Sr. MacOgwascher, está me ou­vindo? Responda, Sr. MacOgwascher, está me ouvindo? Oh, meu Deus! continuou a voz. Preciso tirar san­gue e não consigo pegar a veia!

Experimente outro torniquete disse uma outra voz. Às vezes, dá certo.

Parecia haver alguém mexendo-se ao seu lado, fa­zendo qualquer coisa no seu braço. Hogy sentiu um aperto desconfortável no braço, teve a impressão de que as pon­tas dos dedos iam rebentar e, depois de uma picada, ouviu uma voz exclamar:

—         Consegui, consegui, está tudo bem.

O tempo foi passando e a enfermaria ficou mais si­lenciosa, havia menos gente andando de um lado para outro mas, lá fora, um sino tocou: Uma duas três badaladas mais nada. Três horas? pensou Hogy. Se­riam três da tarde ou da manhã? Não sei dizer, não sei o que está acontecendo. Bem, não posso fazer nada, pen­sou ele.

De novo vozes:

Acha que deve lhe dar a extrema-unção, Padre? perguntou uma voz suave.

Bem, vamos ter que pensar nisso, os sintomas não são nada bons, não é?

Hogy tentou abrir os olhos. Tudo aquilo era muito estranho. Parecia haver um homem preto de pé, junto à sua cama. Pôs-se a pensar se não teria ido para o céu, mas logo lembrou que, pelo que sempre ouvira dizer, não havia negros no céu, mas não podia pensar que ti­nha ido para o Outro Lugar, devia estar no céu, com al­gum santo negro, ou coisa parecida. Percebeu, então, que um capelão do hospital estava inclinado sobre ele.

O tempo foi passando. Luzes suaves se acenderam na enfermaria e pequeninas luzes começaram a acender e a apagar em estranhos aparelhos. Hogy não podia ver claramente, parecia-lhe haver luzes amarelas, vermelhas e verdes e, de vez em quando, uma luz branca também. Do lado de fora da janela, um passarinho começou a cantar. Dali a pouco, ouviu-se o barulhinho de tênis ou sandálias, ele não conseguia distinguir, e logo várias enfermeiras e atendentes entraram na sala. Hogy ouviu murmúrios e a equipe da noite foi embora. As enfermeiras e os aten­dentes puseram-se a andar por entre as camas, ouviram-se pedidos de informações e o passar de folhas, à me­dida que as papeletas eram atualizadas. Por fim, uma en­fermeira aproximou-se de Hogy.

O senhor está com melhor aspecto, esta manhã, Sr. MacOgwascher disse ela.

Hogy não entendeu, pois tinha a certeza de que era a primeira vez que a enfermeira o via, ela acabava de entrar. A enfermeira consertou os lençóis da cama dele e passou para outro paciente.

A luz clareou, na enfermaria. Era o dia que surgia. Para leste, o balão vermelho ascendia aos poucos, até se transformar num grande círculo rubro e, à medida que a neblina matinal se dissipava, brilhava no céu, alegrando o dia.

Um novo clima de agitação tomou conta do Centro de Tratamento Intensivo: alguns dos pacientes estavam sendo levados, outros alimentados, alguns intravenosa­mente. Hogy tampouco foi poupado: uma enfermeira aproximou-se, tirou-lhe nova amostra de sangue, logo seguida de outra colega que lhe mediu a pressão. Por fim, entrou um médico, que lhe disse:

—         O senhor está se recuperando muito bem, Sr. MacOgwascher, em breve estará fora daqui.

E foi embora.

Várias horas — ou seriam vários dias? — se passaram, antes que Hogy fosse capaz de se sentar na cama. Por fim, duas enfermeiras chegaram junto dele e anunciaram:

— Vamos removê-lo daqui, Sr. MacOgwascher, o se­nhor vai para um quarto particular, não precisa mais de tratamento intensivo. Tem alguma coisa naquele armário?

—         Não — respondeu Hogy. — Não trouxe nada comigo.

—         Muito bem, então segure-se, vamos empurrá-lo.

Dizendo isso, as enfermeiras empurraram, com todo o cuidado, a cama de Hogy, juntamente com o aparelho de soro e, quando se aproximavam da porta, Hogy viu que uma outra cama estava sendo empurrada para ocupar o lugar que deixava.

Ao chegarem ao seu destino, Hogy olhou em volta, com o interesse característico das pessoas que têm que estar internados num hospital ou noutro qualquer lugar de confinamento. Viu que estava num quarto pequeno, mas bastante agradável, com um aparelho de televisão pendurado do teto, uma cama e uma janela. A um canto, havia um armário embutido e uma pia. Junto ao armário, via-se o botão de emergência e ele notou, com satisfação, que na cama havia diversos botões, para ligar o rádio e escolher um programa ou para ligar a televisão e esco­lher um canal.

As enfermeiras viraram a cama, a fim de colocá-la na posição correta. Depois, pisaram com força nos pe­dais de freio e uma delas saiu do quarto, enquanto a ou­tra se demorava ainda um pouco mais.

Hogy ficou sozinho, pensando no que viria a seguir. Apercebeu-se, vagamente, da existência de um sistema de comunicação com o público, lá fora, no corredor. Du­rante algum tempo, a sua atenção se voltou para aquilo, até compreender que se tratava de um sistema de chama­das, pois os médicos eram continuamente chamados a comparecer neste ou naquele andar. Reparou que o nome do seu médico era convocado com muita freqüência. Pres­tando atenção, ouviu chamar de novo o nome do seu médico, dizendo para ele ir ao quarto tal. Hogy estava no quarto mencionado, de modo que ficou à espera. Cerca de uma hora mais tarde, o seu médico finalmente entrou no quarto.

—         Muito bem, Sr. MacOgwascher, espero que esteja se sentindo bem melhor, pelo menos está com ótimo as­pecto, mas que susto que o senhor nos deu!

Hogy olhou para cima com esforço e retrucou:

Ainda não sou capaz de firmar muito bem a vista, doutor, parece que estou tonto. Também não consigo pensar com clareza. Por exemplo, há cerca de uma hora ouvi chamarem o senhor para comparecer neste quarto e fiquei todo esse tempo pensando qual o motivo disso. Acabei achando que me tiraram do Centro de Tratamento Intensivo inesperadamente.

Isso mesmo — aquiesceu o Dr. Robbins. — Houve um acidente muito sério e precisamos internar uma por­ção de feridos, alguns em estado muito grave. Como o senhor se recuperou tanto, achamos que preferiria estar aqui, num quarto particular, do que no Centro de Tra­tamento Intensivo, com um grupo de homens e mulheres.

Hogy sorriu e disse:

—         Perguntei a um enfermeiro por que razão havia homens e mulheres na mesma enfermaria e ele disse que não fazia diferença, porque as pessoas internadas no Cen­tro de Tratamento Intensivo estavam por demais doentes para se preocuparem com isso. E ele tinha razão!

Na cabeceira da cama de Hogy, embutidas na pa­rede, havia uma porção de estranhos aparelhos. Um de­les era um aparelho para exame de sangue, outro era um suprimento de oxigênio e havia várias outras coisas sem significado para Hogy, mas que lhe despertavam o inte­resse à medida que o médico os utilizava para fazer um checkup completo.

—         Não é desta vez ainda que o senhor vai, Sr. MacOgwascher — disse ele, por fim. E acrescentou: — Sua esposa está lá fora. Acho que ela gostaria de vê-lo, tem estado tão preocupada!

O médico saiu e, durante algum tempo, o silêncio to­mou conta do quarto. Por fim, Hogy olhou para cima e deparou com a esposa, de pé ao lado da cama, retor­cendo as mãos com ar muito aflito.

—         O padre prometeu vir esta tarde visitá-lo, Hogy disse ela. Acha que você talvez esteja precisando de consolo espiritual. Contou-me que você estava com muito medo de morrer, embora, graças a Deus!, você por ora não precise mais temer isso. O médico disse-me que logo logo você poderá ir para casa, mas que vai pre­cisar descansar durante algum tempo.

Puseram-se a falar de coisas importantes, que os ca­sais só costumam abordar em tempos de preocupação. Hogy perguntou se ela sabia onde estava guardado o tes­tamento dele, se as apólices do seguro estavam em or­dem, e sugeriu que o seu principal assistente na fábrica fosse nomeado gerente-geral.

Nessa tarde, quando o padre entrou no quarto, Hogy foi logo dizendo:

—         Tenho tanto medo de morrer, padre! É uma coisa tão incerta, um mistério tão grande! Não sei o que fazer.

Como quase todos os sacerdotes, o padre disse uma série de lugares-comuns e, tão logo pôde, partiu, após ter obtido de Hogy a promessa de contribuir com um re­cheado cheque para a paróquia, tão logo estivesse em condições de escrever.

O dia transcorreu. A noite deu lugar ao crepúsculo, por sua vez substituído pelas trevas da noite. As luzes da cidade, lá fora, projetavam-se, em formas distorcidas, na parede do quarto e Hogy ficou a olhá-las, fascinado ima­ginando uma porção de coisas a partir dos desenhos até que adormeceu.

O telefone estava tocando insistentemente, seu som áspero e metálico ressoando, terrível, na escuridão da noite, para quem tem o marido gravemente doente num.

hospital. A Sra. MacOgwascher sentou-se, de um pulo, na cama de casal e atendeu.

—         A Sra. MacOgwascher, Sra. MacOgwascher? perguntou uma voz.

—         Sim, é ela mesma. Quem está falando? retrucou ela.

A voz respondeu, em tom solene:

Sra. MacOgwascher, seu marido piorou e o mé­dico acha que a senhora deve vir já para o hospital e trazer consigo todos os membros da família que por acaso aí estejam. Mas dirija com cuidado, Sra. MacOgwascher, dirija com muito cuidado, porque nessas alturas as pes­soas tendem a dirigir a grande velocidade. Acha que den­tro de uma hora a senhora estará aqui?

Oh, meu Deus! Oh, meu Deus! exclamou a Sra. MacOgwascher. Claro que estarei logo aí.

Desligou e saiu lentamente da cama. Vestindo um robe, bateu com força noutra porta, que dava para o mesmo corredor.

—         Mama, mama! gritou ela. Acorde mama, acho que Hogy está morrendo, temos de correr para o hospital. Está acordada?

A porta abriu-se e a velha mãe de Hogy MacOgwas­cher saiu do quarto.

—         Estou sim, vou-me vestir imediatamente. E, você, vista-se também.

Hogy despertou sobressaltado. Sua mãe e sua mulher estavam sentadas à beira de sua cama. Ou não eram a sua mãe e a sua mulher? Hogy não podia garantir. Quem eram as outras pessoas? Algumas flutuavam no ar, sorrindo bondosamente para ele. E, então os olhos de Hogy esbugalharam-se ele viu um anjo, voando do lado de fora da janela. O anjo estava todo vestido de branco, com uma espécie de túnica longa, e as suas asas adejavam como se ele fosse um brinquedo mecânico. O anjo olhou para ele, sorriu e fez-lhe sinal para que o acompanhasse. Hagy sentiu-se impelido, teve vontade de segui-lo.

Era uma sensação muito estranha. O quarto estava escurecendo. Tudo parecia envolto em sombras roxas, como se fosse um veludo roxo e, Hogy viu — bem, pare­ciam-lhe manchas de luz, ou poeira dançando à luz do sol. Olhou em volta: a mãe estava à sua esquerda, a es­posa à sua direita, e... aquele homem de preto, o que estava fazendo ali? Parecia estar murmurando algo. Ah, sim, Hogy lembrou-se, o padre estava-lhe ministrando a extrema-unção. Hogy ficou chocadíssimo ao descobrir, para seu grande espanto, que podia ler os pensamentos do padre e que este estava pensando que, se usasse muita pompa, a Sra. MacOgwascher era capaz de lhe dar um bom donativo para a sua igreja. Aquela era gente de dinheiro, pensava o padre, podiam contribuir com uma quantia considerável. Por conseguinte, tão logo terminou com a extrema-unção, virou-se para a Sra. MacOgwascher e deu-lhe a bênção, sempre pensando: "Isso talvez me renda mais uns cem dólares."

Hogy começou a tremer. Sentia-se muito inseguro. A cama parecia feita de algo fofo e incapaz de segurá-lo. Seus dedos agarraram a roupa de cama, em desespero, e ele procurou ficar deitado, contrariando o impulso de su­bir, subir para a luz.

— Ele está indo embora ... está indo embora ... Hogy ouviu uma voz dizer e logo depois um estranho ro­çagar.

Quis gritar, apavorado, mas constatou que não podia falar, descobriu — bem, imaginou, que era uma pipa. Olhou para baixo e viu que tinha uma espécie de corda prateada, brilhante, que ia dele até um corpo de aspecto estúpido, estendido em cima de uma cama. Com espanto, percebeu que estava olhando para o seu corpo morto ou moribundo. Reconheceu a cabeça da esposa, a cabeça do padre, a cabeça da mãe dele. Depois, o médico entrou no quarto e fez a maior cena. Desabotoou o casaco do pi­jama de Hogy, auscultou-o desnecessariamente com o es­tetoscópio e abanou gravemente a cabeça, ,ao mesmo tempo em que, com um gesto teatral, puxava o lençol para cobrir o rosto do Hogy. Fez o sinal-da-cruz, junta­mente com o padre e as duas mulheres.

Venha conosco, venha conosco — murmuravam as vozes. — Deixe-se ir, abandone-se, nós cuidaremos de você. Está tudo bem, você está indo para o céu.

É, para o céu, para o céu entoaram outras vo­zes, em coro. Hogy sentiu um leve puxão e, instintiva­mente, olhou para baixo. Viu a corda prateada desapare­cer, cair, sumir. Viu, sentindo uma vertigem, que estava sobrevoando o hospital, bem alto, a cidade, alto, cada vez mais alto. Olhou em volta e, espantado, descobriu que estava sendo carregado por quatro anjos, cujas asas batiam e que olhavam para ele com muita atenção. Jun­tos atravessaram o céu escuro, entoando, em coro:

—         Estamos indo para o céu, estamos indo para o céu.

 

Carregado pelos ares, nos braços de anjos! Puxa vida! disse Hogy para si mesmo.

De repente, porém, ele sentiu um tremendo puxão e viu-se arrancado dos braços dos anjos, caindo, caindo, às cambalhotas, através da escuridão reinante. Tão depressa como havia começado, a queda livre cessou e Hogy sen­tiu como se estivesse balançando na ponta de um pe­daço de borracha, ou funcionando como um ioiô. Estava confuso e completamente desorientado, parecia estar "em algum lugar", mas não saberia dizer onde. Retorceu-se todo e, como se estivesse espiando através de um buraco no teto ou no chão, deparou-se com uma visão muito estranha.

Hogy estava olhando para dentro de uma agência fu­nerária. Estremeceu de medo, ao ver todos aqueles cor­pos nus, cada qual estendido numa mesa, sendo subme­tidos às coisas mais diabólicas. A alguns estavam fazendo escoar todo o sangue, em outros tapavam os "orifícios corporais" a fim de evitar que purgassem e, num cubi-culozinho aparte, Hogy viu-se A SI MESMO! O corpo que ele abandonara estava estendido numa daquelas mesas es­quisitas e, inclinada sobre ele, uma jovem, com um ci­garro pendendo do lábio inferior. Hogy ficou boquiaberto ao ver a jovem fazer a barba daquele corpo que fora seu. Enquanto olhava, fascinado, um homem falou, do andar de baixo:

—         Capriche, hein, Beth, o Sr. MacOgwascher era um homem muito importante, temos de aprontá-lo para esta tarde. Mande brasa, tá?

A moça fez que sim com a cabeça e continuou a trabalhar. Uma vez a barba feita, com todo o esmero, aplicou maquilagem ao rosto, escovou-lhe o cabelo que não era muito e tingiu-lhe as partes grisalhas. Depois, olhou para o corpo com expressão crítica, foi até a porta do cubículo e gritou:

—         Ei, chefe, este presunto está pronto. Quer vir dar uma olhada?

O patrão saiu de um cubículo na outra extremidade e dirigiu-se para a empregada, berrando, indignado:

Não permito que você fale assim, Beth, não per­mito. Trata-se do corpo do Sr. Hogy MacOgwascher, um homem muito importante. Exijo que todos os corpos se­jam tratados com o devido respeito.

Bem, chefe, o senhor não mostra esse respeito por alguns deles retrucou Beth. — Refiro-me aos presuntos que o senhor cobriu de serragem e enterrou de qualquer maneira. Mas, está certo, o senhor é o chefe, o senhor é quem manda. Adeus, Sr. MacOgwascher disse ela, pas­sando para outro cadáver.

Hogy desviou o olhar, enojado. Quando, após al­gum tempo, foi compelido a olhar novamente para baixo, viu que o seu corpo sumira e que um outro corpo estava sendo trazido, todo embrulhado em celofane, dobrado como se fosse uma roupa vinda da tinturaria. Ficou vendo, interessado, retirarem a embalagem. O corpo pertencia a uma mulher e o dono da funerária e um assistente pu­seram-se a despi-lo. Hogy, homem pudico, desviou os olhos e, ao fazê-lo, deparou com uma das "Salas de Ex­posição" . Lá estava o seu corpo, metido num caixão de luxo e sendo apreciado por várias pessoas, que bebiam café. Uma delas pousou a xícara na tampa do caixão. Hogy olhou para si mesmo e achou que estava parecido com um galã de cinema, de tal maneira o tinham pintado, empoado, tingido e barbeado. Um horror!

O tempo passou. Quanto tempo? Não era possível dizer ao certo, uns dois ou três dias. O tempo não importa, na vida para além da terrena. Mas Hogy continuava fixo no mesmo lugar. De repente, sentiu que estava de novo se movendo. Olhou para baixo e descobriu que es­tava num carro fúnebre, a caminho da igreja. Viu o caixão sendo carregado para dentro da igreja e assistiu ao pró­prio serviço fúnebre, com o padre rezando missa de corpo-presente e dizendo que "o nosso amado irmão está ago­ra no céu, no seio do Senhor, gozando das alegrias desti­nadas aos virtuosos".

Hogy afastou-se e só olhou de novo para baixo por sentir que o puxavam insistentemente: viu então que es­tava sendo carregado para o cemitério. Seguiu-se a encomendação do corpo e Hogy pulou, ao sentir um grande torrão de terra cair em cima do caixão. Mas logo percebeu o ridículo da coisa, ao compreender que o seu corpo es­tava lá embaixo, mas que ele estava "ali", onde quer que fosse. Com o tapar da sepultura, Hogy sentiu-se livre. Começou a subir com uma força que escapava ao seu controle. De repente, verificou, com grande espanto, que estava de novo repousando nos braços dos anjos. Imedia­tamente, as asas se puseram em movimento e os rostos dos anjos começaram a sorrir. Levavam-no para cima — ele não sabia para que lado estavam indo — mas via que viajavam a uma velocidade considerável, através de uma escuridão que parecia feita de veludo preto. Então, ao longe, surgiu uma luz dourada. Hogy assestou os olhos na direção da luz. Continuaram a subir e a luz foi ficando cada vez maior e mais forte, obrigando Hogy a piscar os olhos. Quando os anjos emergiram do que parecia ser um longo túnel, Hogy viu os Portões Perolados brilhando diante dele, grandes portões de ouro, sobre os quais se espalhavam imensas pérolas. Um reluzente muro branco estendia-se para a esquerda e para a direita dos portões, por entre cujas grades Hogy podia ver muitas cúpulas de catedrais e torres de imponentes igrejas.

Havia música no ar, música sacra. Aproximaram-se dos portões com os anjos sempre batendo as asas e segurando-o.

São Pedro, ou outro santo qualquer, veio até os por­tões e perguntou:

—         Quem vem lá, em nome do Senhor?

Um dos anjos respondeu:

—         O Sr. Hogy MacOgwascher, recém-falecido na Terra. Pedimos permissão para entrar.

Os portões abriram-se e Hogy viu o santo de perto. Parecia estar metido numa espécie de camisolão longo e branco, que lhe ia do pescoço até os tornozelos. Tinha um par de asas presas às costas, de onde lhe saía um reluzente cabo metálico, que se estendia alguns centí­metros acima da cabeça, sustentando um halo dourado. O santo olhou para Hogy e este para o santo, que lhe disse:

—         Você vai ter primeiro que comparecer perante o Anjo Cadastrador, para termos a certeza de que realmente você está apto a entrar. Por ali, segunda porta à direita.

Os anjos seguraram-no de novo — ele se sentia uma encomenda! — e começaram novamente a bater as asas, transportando-o ao longo de uma estrada muito lisa e limpa. Às margens da estrada viam-se santos ou habitan­tes da morada celestial, sentados na relva e tocando harpa. O som que produziam era indescritível, pois cada qual tocava uma peça diferente. Mas logo chegaram ao gabi­nete do Anjo Cadastrador. Os anjos fizeram com que Hogy pousasse suavemente e impeliram-no para a frente.

—         Entre aí — disse um deles. — Dê todos os dados necessários, data de falecimento, etc. Nós esperamos por você.

Hogy entrou e deparou com um anjo velho e de as­pecto bondoso, sentado num tamborete alto, as asas ba­tendo e olhando, com expressão míope, para Hogy, atra­vés de óculos de armação dourada. Umedeceu o polegar e passou algumas páginas de um enorme livro de registro, resmungando qualquer coisa para si mesmo, até que, de repente, parou e segurou a página com a mão esquerda.

—         Achei! — disse ele. — Nome: Hogy MacOgwas­cher, sexo masculino, morreu inesperadamente. É, é você mesmo, tenho o seu retrato aqui.

Hogy continuou a olhar estupidamente pára o velho anjo, cujas asas batiam sem parar, fazendo barulho como se estivessem enferrujadas. Por fim, o Anjo Cadastrador disse:

—         Por aqui, estão esperando por você lá fora, eles sabem o que têm que fazer.

Hogy viu-se de novo em movimento, sem que fizesse nada para isso. Saiu dali sem ter passado por nenhuma porta. Tão logo o viram, os anjos começaram a agitar as asas e a sorrir. Pegaram em Hogy e levaram-no pelos ares.

Agora você vai ter que ir à igreja — disse um deles.

É, acho melhor você entrar logo no esquema — disse o outro.

Voaram para abaixo e entraram pela fachada maciça e imponente de uma catedral. Lá dentro, havia anjos es­palhados por todo o lado, batendo as asas de acordo com a música. Hogy estava cada vez mais chocado, aquilo parecia-lhe uma paródia, mas assistiu à missa, com a im­pressão de que esta não terminava nunca, entretanto, os anjos não paravam de bater asas, de se persignar e curvar diante do altar. Finalmente, a missa terminou e os anjos saíram voando como se fossem um bando de pombos, deixando Hogy sozinho dentro da catedral.

Olhou em volta e pensou: "Não é possível que isto seja o céu!" Sentiu-se ludibriado. Aquela história de an­jos era pura bobagem, aquilo de as pessoas estarem sem­pre indo à igreja e cantando era por demais absurdo para ser crível. De repente, Hogy achou tudo aquilo ridículo. Ouviu um estrondo como o de um trovão, algo como que um relampaguear de alto a baixo, como se uma grande cortina tivesse sido rasgada e estivesse caindo. Olhou para cima, assustado. Mas logo viu o pai, avançando para ele, a rir, os braços estendidos.

—         Oh, meu filho — disse o velho MacOgwascher — você ficou um bocado de tempo preso à alucinação da sua religião! Não faz mal, eu passei pelo mesmo, só que a minha alucinação me fez ver Moisés. Bem, agora, que você se libertou disso, podemos falar de uma porção de coisas. Venha comigo, meu filho, venha comigo, você tem uma porção de amigos e parentes aqui, todos que­rendo vê-lo.


 

O velho MacOgwascher conduziu o filho através de um belíssimo parque, que parecia cheio de gente.

Hogy nunca tinha visto, em toda a sua vida terrena, parque tão bonito como aquele. O gramado tinha um lindíssimo tom de verde e havia flores como ele nunca vira, flores que ele sabia não serem da Terra. Os caminhos estavam maravilhosamente conservados, sem um papelzinho sequer. Para alegria de Hogy, havia pássaros can­tando nas árvores e pequenos animais correndo de um lado para o outro, como cães e esquilos, e vários outros animais que Hogy não conhecia.

—         Pai! — exclamou ele. — Quer dizer que os bichos também vêm para cá?

O velho MacOgwascher riu.

—         Hogy — disse ele — não me chame mais de "Pai", porque seria o mesmo que chamar um ator pelo nome do papel que ele desempenhou numa peça. De­pois que a peça acaba, o ator muda de papel e de nome. Na nossa última vida na Terra, eu fui seu pai, mas, numa vida anterior, você pode muito bem ter sido meu pai e até, talvez, minha mãe!

Hogy sentiu a cabeça girar, ao ouvir aquilo, tamanha foi a sensação de estranheza que sentiu.

Então, como é que eu devo chamá-lo? — pergun­tou.

Bem, até as coisas ficarem mais estabelecidas, você pode continuar me chamando de "Pai", se quiser, para evitar complicações — retrucou o velho MacOgwascher.

Hogy olhou para o pai e, depois, perguntou:

—         Será que pode me dizer onde nós estamos? Está se vendo que isto não é o céu, porque você é judeu e os judeus não vão para o céu.

O velho MacOgwascher riu com vontade. Várias pes­soas olharam para eles e sorriram, aquela cena repetia-se constantemente.

—         Hogy, meu filho, alguns dos conceitos vigentes na Terra são completamente errados. Você diz que eu sou judeu; bem, eu lhe direi que era judeu enquanto estava na Terra. Agora, minha religião é a única verdadeira, que é a seguinte: se você crê num Deus ou numa religião, é porque essa é uma boa religião. Aqui, não importa se você é judeu, católico, protestante, muçulmano ou outra coisa qualquer. A dificuldade é que, quando a pessoa en­gole todas as velhas fábulas de uma determinada religião, quando chega aqui, está tão hipnotizada, que só consegue ver o que espera ver. Na Terra, há pessoas que estão sempre sofrendo de aluminações, acham que são isto ou aquilo. Se você for a um hospital de doentes mentais, vai encontrar alguns Napolepes, uma meia dúzia de Jesus Cris­tos e outros quantos Moisés. Essas pessoas acreditam pia­mente que são o que pretendem ser. Por exemplo, — e apontou para um ponto a distância — ali se encontra atualmente um cavalheiro que acabou de chegar. Na Terra, disseram-lhe que, quando fosse para o céu, teria tudo o que quisesse, dançarinas aos montes, etc. Por isso ele agora está ali, vivendo num mundo de fantasia. Por todo lado vê dançarinas e, enquanto não perceber que se tra­ta de uma alucinação, ninguém o poderá ajudar e talvez ele passe anos e anos sonhando com aquele céu parti­cular, povoado de dançarinas e montanhas de comida. Só quando ele se compenetrar de que tudo não passa de uma miragem, como você fez com os seus anjos de asas, é que poderá ser ajudado.

— Comida, pai, comida! — exclamou Hogy. — Agora você disse algo sensato. Onde se consegue co­mida, aqui? Estou morto de fome!

O velho MacOgwascher olhou para Hogy e respon­deu:

— Meu filho, você já devia ter percebido. Escute, quando você chegou aqui, pensou que estava no céu, com anjos por todo o lado, anjos tocando harpa e can­tando, mas agora você se dá conta de que tudo não passava de uma alucinação. O mesmo acontece com o nosso amigo, ele pensa que está rodeado de bailarinas. Não está, tudo não passa de obra da sua imaginação descontrolada, da mesma forma que a sua imaginação o levou a ver anjos. Similarmente, se você quiser co­mer, é só imaginar a comida. Pode controlar a sua imaginação e conjurar mentalmente qualquer espécie de comida que você quiser, seja carne assada, cachorros-quentes ou uma garrafa de uísque. É apenas ilusão, claro, mas, se você quiser ir em frente com essa bobagem de que­rer comer, terá de fazer tudo logicamente. Comerá mas, depois, terá de eliminar o que não for absorvido. Terá de imaginar um vaso sanitário, terá de se sentar nele e imaginar, imaginar, imaginar. Garanto-lhe que você não fará nenhum progresso enquanto estiver preso às coisas bobas do mundo.

—- Bem, acontece que eu estou com fome, isso não é imaginação. Sinto uma fome louca. Se não me permi­tirem comer, por ser tudo uma ilusão, que vou fazer para acabar com a fome? — perguntou Hogy, num tom petulante.

O velho MacOgwascher respondeu, paciente:

—         Claro que você sente fome, porque toda a sua vida você se acostumou a sentir fome. À certas horas predeterminadas, você costumava ingerir comida e isso agora se tornou um hábito. Se, em vez de imaginar que está comendo a carne de animais mortos, você pensar em vibrações saudáveis, já não sentirá fome. Pense, Hogy, que à sua volta há energia vibrando, penetrando em você por todos os lados. Assim que você compreender que esse é o seu alimento, já não vai sentir fome. Imaginar comi­das e bebidas só vai atrasar o seu progresso espiritual.

Hogy meditou, esboçou protestar — e descobriu que não estava mais com fome.

—         Pai — disse ele — você está igualzinho ao que era lá na Terra. Como pode ser isso? Há um bocado de tempo que você está aqui. Você deveria parecer bem mais velho, ou então, como agora você não passa de uma alma... ah, estou tão confuso, que não sei mais no que acreditar ou o que fazer.

O velho MacOgwascher sorriu compassivamente:

—         Todos passamos por isso, Hogy. Alguns são capa­zes de entender as coisas mais depressa do que outros, mas imagine que eu lhe tivesse aparecido como veja­mos, uma moça ou um rapaz, você me teria reconhe­cido como a pessoa que você conheceu na Terra? Se eu me chegasse para você e lhe falasse numa voz dife­rente, com feições e físico diferentes, você teria pensado que era alguém querendo ludibriá-lo. Por isso, aqui es­tou como você se lembra de mim, falando com você na voz que recorda. Da mesma maneira, seus amigos e pa­rentes que aqui estão vão lhe aparecer como você os conheceu na Terra, porque você só vê o que deseja ver. Se eu olhar para o Sr. X, eu sei que o Sr. X para mim parece de uma certa maneira, mas o seu conceito do mesmo Sr. X pode ser completamente diferente e você ver um outro Sr. X. É como se estivéssemos de pé, um diante do outro, e um de nós segurasse uma moeda: um veria a cara, o outro a coroa. A moeda era a mesma, mas cada um de nós veria uma face dela. O mesmo acontece aqui, e também na Terra. Ninguém sabe preci­samente como vê a outra pessoa. É algo que nunca se discute, em que nem sequer se pensa. Por isso, surgimos aqui para os outros como éramos na Terra.

Hogy tinha olhado para o parque e ficou espantado com o que viu: um lado muito agradável, cheio de bar­cos com pessoas remando. Sentou-se num dos bancos do parque e continuou olhando para os barcos. O velho MacOgwascher virou-se para ele e, lendo-lhe os pensa­mentos, perguntou:

—         Ora, por que razão não haveriam de se divertir um pouco, Hogy? Não estão no inferno, como você sabe, estão fazendo o que gostam, o que é uma boa coisa. Aqui, pode-se imaginar um barco e sair remando. Podem-se go­zar algumas das sensações, só que muito mais fortes, que a pessoa apreciava na Terra.

Hogy ficou algum tempo sem poder responder, de tão surpreso que estava, mas depois disse:

Pensei que aqui nós fôssemos espíritos, almas pai­rando de um lado para o outro, cantando hinos e di­zendo orações. Isto não se parece nada com o céu que eu imaginava.

Mas, Hogy, você não está no céu, está numa di­mensão diferente, na qual você pode fazer coisas que não podia fazer na Terra. Você está aqui numa espécie de estação intermediária. Algumas pessoas sofrem um trauma ao morrer, da mesma forma que alguns bebês nas­cidos na Terra podem sofrer um trauma muito forte ao nascer, principalmente quando tirados a ferros. Bem, o mesmo acontece com o ato de morrer. Algumas pessoas, principalmente se levaram uma vida artificial, têm muita dificuldade em se libertar dos grilhões da Terra. Um exemplo disso é essa sua necessidade de comer. Na rea­lidade, você não precisa comer, é só você pensar em comida e em roupas.

Hogy olhou para si mesmo e disse:

—         Corpos, corpos. Se somos espíritos, por que te­mos estes corpos, pra que precisamos deles?

O velho MacOgwascher sorriu:

—         Se você pudesse ir à Terra agora, você seria um fantasma, embora o mais provável fosse você ser invisível, ou seja, as pessoas passarem através de você e você passar através delas, devido à diferença de vibração. Aqui, você me vê, pode me tocar, sou sólido para você e vice-versa, precisamos de alguma espécie de veículo para podermos existir, viemos da Terra e agora temos um corpo dife­rente, neste plano intermediário. Nossos corpos ainda al­bergam uma alma, que vai até o Eu Superior, muitos pla­nos acima. Aqui temos um corpo, de modo a podermos aprender coisas através do sofrimento, como na Terra, só que de uma forma muito mais branda. Mas, quando che­garmos, digamos, à nona dimensão, teremos um corpo adequado à nona dimensão. Se uma pessoa da nona di­mensão descesse agora até aqui, seria invisível para nós e vice-versa, pelo fato de sermos muito diferentes. Pro­gredimos de plano em plano e, onde quer que esteja­mos, não importa qual o estágio, nem qual a condição, temos sempre um corpo adequado a essa condição.

O velho MacOgwascher riu, antes de dizer.

—         Você pensa que está falando* comigo, Hogy, mas não está, você está se comunicando por telepatia. Aqui, não nos servimos da fala, exceto em circunstâncias muito especiais. Em vez disso, usamos a telepatia. Mas precisa­mos ir andando, meu filho. Você tem de ir ao Panteão da Memória, onde terá oportunidade de passar em re­vista tudo o que fez e pensou em fazer, quando na Terra. Verá o que quis fazer, verá os seus sucessos, que lhe vão parecer sem importância, e verá os seus fracassos. Jul­gará por si mesmo, Hogy, por si mesmo. Não há nenhum Deus irado, julgando as suas faltas e ansiando por con­dená-lo à danação eterna. Não existe inferno, ou me­lhor, existe: o inferno é na Terra, e não há nada disso de danação eterna. Na Terra, você tem certas experiên­cias e tenta levar a cabo certas tarefas. Você pode fra­cassar nessa tentativa, mas isso não tem importância. O que TEM importância é como você tentou fazer uma coisa, como você viveu a sua vida, e você ou o seu Eu Su­perior, julgarão como foi que você viveu e morreu na Terra. Você decidirá o que mais precisa ser feito para completar a tarefa a que você se propôs e que talvez não tenha terminado. Mas não podemos ficar aqui, ba­tendo papo.

O velho MacOgwascher pôs-se de pé e Hogy o imi­tou. Juntos caminharam pelos gramados verdes e bem aparados, detendo-se um pouco às margens do lago, a fim de admirar os barcos e as aves aquáticas, brincando à superfície da água. Depois, continuaram andando.

Hogy riu alto, ao ver, numa curva da álea, uma bela árvore, com um galho estendendo-se horizontalmente, sobre o qual três gatos estavam deitados ao comprido, as caudas pendentes, ronronando ao que parecia ser o cá­lido sol da tarde. Pararam um momento para olhar para os gatos, que ergueram as cabeças, abriram os olhos e sorriram ante o espanto de Hogy. Depois, voltaram a en­costar a cabeça na árvore e continuaram a dormir.

Ninguém aqui sonharia sequer em fazer-lhes mal, Hogy disse o velho MacOgwascher. Aqui reina a paz e todos confiam uns nos outros. Este plano de exis­tência não é nada mau.

Oh! exclamou Hogy. Quer dizer que há muitos planos de existência?

Oh, sim, há tantos quantos forem necessários replicou o velho MacOgwascher. As pessoas vão para o estágio que mais se adapta a elas. Vêm para cá a fim de descansar um pouco e decidir o que vão fazer, o que podem fazer. Algumas podem ser logo mandadas de volta à Terra, para se encarnarem num novo corpo, outras são enviadas para um plano mais alto de existência. Não in­teressa onde a pessoa está, a gente sempre tem lições a aprender e conclusões a tirar. De qualquer maneira, pre­cisamos nos apressar, porque você tem que ir ao Pan­teão da Memória ainda hoje.

O velho MacOgwascher andava mais depressa e os seus pés davam a impressão de nem tocarem no chão. Quando se pôs a pensar naquilo, Hogy viu que tampouco sentia o chão debaixo dos pés. Era tudo tão estranho, pensou. De qualquer maneira, concluiu que a melhor coisa a fazer era ficar calado e ver o que os outros fa­ziam, já que os outros estavam ali há mais tempo.

Dobraram uma curva da álea e, diante deles, surgiu o grande Panteão da Memória, um edifício branco, que parecia feito de mármore ultra polido.

—         Vamos sentar um pouco aqui. Hogy — sugeriu o velho MacOgwascher não sabemos quanto tempo você vai ficar no Panteão e é agradável olhar para toda essa gente, não acha?

Sentaram-se no que parecia ser um banco de pedra. Hogy verificou, fascinado, que o banco tomava a forma dele, isto é, em vez de ser duro, cedia um pouco e adap­tava-se à sua forma. Recostou-se e as costas do banco também assumiram uma forma confortável.

—         Veja! — disse o velho MacOgwascher, apontando paia a entrada do Panteão da Memória.

Hogy olhou na direção apontada pelo pai e mal pôde reprimir um sorriso: um grande gato preto dirigia-se para o portão do Panteão, com uma expressão de culpa na cara. O bichano olhou para cima, viu-os, deu meia-volta e desapareceu atrás de uns arbustos. O velho MacOgwas­cher riu.

—         Sabia, Hogy, que neste plano até os bichos têm que ir ao Panteão da Memória? Não falam em termos humanos, claro, mas você tampouco falará, lá dentro, tudo funciona por telepatia.

Hogy olhou para o antigo pai, boquiaberto:

—         Não vai me dizer que os BICHOS também vão ao Panteão da Memória! Só pode estar me gozando!

O velho MacOgwascher abanou a cabeça e soltou uma risada.

—         Hogy, Hogy, você não mudou nada. Contmua pen­sando que os seres humanos ocupam a mais alta posi­ção na escala da evolução, que os bichos são criaturas in­feriores, não é mesmo? Pois bem, você está errado, muito errado. Os seres humanos não são as criaturas mais pró­ximas da perfeição, existem muitas, muitas outras formas, tudo o que EXISTE tem uma consciência, tudo o que EXISTE vive, até mesmo este banco, no qual estamos sen­tados, é uma coleção de vibrações. Sente pontos altos na sua anatomia e cede a esses pontos altos, amoldando-se para lhe dar maior conforto. Olhe!

Levantou-se e apontou para o lugar onde estivera sentado.

—         O banco está voltando ao seu estado normal. Vou me sentar nele.

Uniu a ação às palavras, sentou-se e, imediatamente, o banco tomou a sua forma anatômica.

—         Como eu estava dizendo, Hogy, tudo tem cons­ciência, tudo o que EXISTE está em estado de evolução. Agora, os gatos não se transformam em seres humanos, da mesma forma que os humanos não viram gatos, se­guem diferentes linhas de evolução, da mesma maneira que uma rosa não se transforma num repolho, nem um repolho se metamorfoseia numa rosa. Mas provou-se, mesmo na Terra, que as plantas têm sentimentos, esses sentimentos já foram detectados, medidos e graduados por meio de um equipamento eletrônico muito sensível. Bem, aqui, neste mundo, as pessoas estão num estágio intermediário, estamos mais próximos dos animais do que na Terra. Não pense, Hogy, que isto aqui é o céu, não é, nem tampouco os estágios superiores. Poderíamos dizer que isto aqui é uma estação no meio do caminho, um lugar de triagem, onde se decide sobre o destino das pessoas. Ascenderão a um plano superior? Ou voltarão à Terra? Aprendi um bocado desde que cheguei aqui e sei que estamos muito próximos do plano terreno, a di­ferença é apenas a que existe entre o rádio comum AM, e o FM. O FM é bem melhor do que o AM, tem vibrações mais rápidas, mais finas, e aqui, neste mundo, as nossas vibrações são muito, muito melhores do que as da Terra, percebemos melhor as coisas, estamos num estado entre o físico terreno e o espiritual do Eu Superior. Vimos para cá para perdermos muitas inibições. Na Terra, se alguém me dissesse que um gato era capaz de falar, de racioci­nar, etc., eu acharia que a pessoa era louca. Aqui, aprendi que sim, os gatos têm raciocínio, muito brilhante até, em certos casos. Na Terra não entendemos isso porque o tipo de raciocínio deles é diferente do dos seres hu­manos.

Ficaram ali sentados durante algum tempo, venao apenas a silhueta do gato, a distância. Tinha um ar culpa­do, mas depois pareceu dar de ombros. Deitou-se sob a luz brilhante e adormeceu. Seria a luz do sol? Hogy olhou para o céu e lembrou-se de que ali não havia sol, tudo era um sol em miniatura. Evidentemente, o velho MacOgwascher seguira os seus pensamentos, pois observou:

— É, aqui não há sol. Tiramos a energia daquilo que nos cerca, ela nos é irradiada. Da mesma maneira, aqui não temos alimentos do tipo que existe na Terra, não precisamos nos preocupar com eliminá-los à moda ter­rena. Sempre absorvemos apenas a energia que quere­mos e não mais, ao passo que, com os alimentos terre­nos... bem, há sempre muito desperdício e o que fazer com esse desperdício é um dos maiores problemas que a humanidade enfrenta. Por isso, lembre-se, Hogy, aqui você não precisa pensar em comida. É só você existir, o seu corpo absorverá toda a energia de que necessita, e você não sentirá fome, a menos que pense em alimentos terrenos e aí, sim, durante algum tempo é possível que você sinta desejo deles.

Nesse momento, um homem passou por eles e Hogy estremeceu de espanto. O homem estava fumando um cachimbo! Enquanto andava, balançando os braços, tirava


boas baforadas do cachimbo, do qual saíam nuvens de fumaça. O velho MacOgwascher olhou para Hogy e teve que rir.

—         Hogy — disse ele — já lhe expliquei que certas pessoas sonham com comidas terrenas, outras com cigar­ros, outras com bebidas... muito bem, podem obter tudo isso, se quiserem, mas não há vantagem alguma. Signi­fica que ainda não evoluíram o suficiente para se liberta­rem dos velhos hábitos terrenos. Aquele sujeito está fu­mando. Muito bem, ele sente prazer nisso, mas um dia chegará à conclusão de que é um prazer idiota. Pensa em tabaco, depois pensa numa lata de fumo, depois leva a mão ao bolso do terno que imaginou e puxa da bolsa imaginária de tabaco, com o qual enche um cachimbo imaginário. Claro que tudo não passa de uma ilusão, de alucinação, de auto-hipnose, mas o mesmo se pode ver em qualquer hospício da Terra. Muitos loucos pensam que estão dirigindo um carro ou montando a cavalo. Lembro-me de uma vez ter ido visitar um hospital para doentes mentais e ter deparado com um louco numa ati­tude muito estranha. Perguntei-lhe o que estava fazendo. O homem olhou para mim como se eu fosse idiota, sem perceber que ELE é que era louco, e respondeu: "Ora, que acha que eu estou fazendo? Não está vendo o meu cavalo? O sem-vergonha está cansado, resolveu dei­tar-se no chão e não posso seguir viagem enquanto o diabo do cavalo não se levantar."

"O louco desmontou, com todo o cuidado, do seu cavalo imaginário e afastou-se, resmungando que aquele lugar estava cheio de lunáticos!

Hogy não conseguia entender o que estava aconte­cendo com ele. Sentia-se como se fosse um pedaço de metal, atraído por um ímã. Sem saber por que, agarrou-se ao braço do banco. O velho MacOgwascher virou-se para ele:

—         Chegou o momento, estão chamando você para o Panteão da Memória, é melhor ir. Esperarei aqui até você sair, talvez eu possa ajudá-lo, mas, quando sair, chame-me Moisés, e não Pai, aqui eu não sou seu pai. Agora vá!

Hogy levantou-se e, já ao se pôr de pé, percebeu que fora atraído para muito mais perto do Panteão da Memória. Voltou-se, a fim de ficar de frente para a en­trada, e constatou que estava quase correndo, indo bem mais depressa do que queria. Os grandes degraus de pe­dra estavam bem diante dele. Ficou impressionado com o tamanho do panteão, e assustado com as dimensões da entrada. Sentia-se como uma formiga atravessando um palácio na Terra. Subiu os degraus, cada qual lhe pare­cendo maior do que o anterior. Ou não seria isso? Tal­vez ele estivesse ficando menor a cada passo que dava. Sentia-se menor, sem dúvida. Mas reuniu toda a sua co­ragem e continuou a subir. Em breve chegou ao que pa­recia ser um vasto platô, só que à sua frente se erguia uma enorme porta, que dava a impressão de se perder no es­paço. Hogy avançou em sua direção. A porta abriu-se, Hogy penetrou no Panteão da Memória e a porta fechou-se atrás dele.

 

O velho monge levantou-se a custo do chão e sacudiu o desbotado burel. Olhou compassivamente para o ho­mem atarracado que transpunha a cerca de separação entre os terrenos do mosteiro e a via pública. Como que sen­tindo que o monge estava olhando para ele, o homem virou-se, parou e grunhiu:

—         Fique sabendo que eu sou Cyrus Bollywugger, o famoso jornalista. Se quiser me processar, pode ir con­tratando um advogado.

O monge encaminhou-se lentamente para uma pedra e sentou-se nela, suspirando.

Que coisa estranha, pensou. Ele, um velho monge, dando a mesma volta pelo jardim do mosteiro que já dera havia cinqüenta anos e, apesar dos cartazes dizerem que aquela era propriedade particular, aquele sujeito es­túpido tinha pulado a cerca e, não obstante os seus pro­testos, avançara para ele e lhe batera no peito com um gordo indicador.

—         Como é, cara, me diga o que se passa por dentro dessas paredes. Vocês são um bando de bichas, não? Bom, você até que não parece muito, mas me diga o que acon­tece aí dentro, preciso escrever uma reportagem.

O velho monge olhara para o homem da cabeça aos pés, com mais desprezo do que devia. Não se deve mos­trar desprezo pelos semelhantes, mas aquele realmente tinha passado dos limites. Havia muitos anos que o velho Irmão Arnold estava ali, tinha ingressado no mosteiro ain­da rapaz e, desde então, tentara conciliar os ensinamentos da Bíblia com o que ele achava ser certo ou errado. Con­forme o seu hábito, tinha debatido consigo mesmo o que lhe parecia certo. Não conseguia aceitar como verdade absoluta tudo o que a Bíblia dizia. Havia algum tempo, expressara certas dúvidas ao superior, pensando que este o ajudaria a esclarecê-las, mas não: o superior ficara fu­rioso e o velho Irmão Arnold tivera, como penitência, que passar toda a semana lavando a louça do mosteiro.

Nessa ocasião, como agora, após ser ofendido por aquele grosseiro jornalista, repetira para si mesmo uma oração:

— Senhor, permiti que nada chegue demasiado per­to, nem pareça demasiado real.

A prece acalmou-o, permitiu-lhe olhar para as coisas de maneira abstrata.

Andava pensando na sua vida passada. Havia o tra­balho de manhã, os estudos à tarde e as iluminuras. As tintas, atualmente, eram horríveis: tintas plásticas, e o per­gaminho — quanto menos se dissesse acerca do perga­minho, melhor. Podia ser muito bom para fazer abajures, mas não terminadas as tarefas da tarde, vinha sempre a mesma coisa, dia após dia, semana após semana, mês após mês, ano após ano: as vésperas, a ceia, comida em silêncio e, depois da ceia, as completas, terminando na cela solitária, fria e ventosa, com apenas uma cama dura e estreita e um crucifixo à cabeceira, uma cela tão peque­na, que até um presidiário teria feito greve, em protesto.

Ele estava pensando nisso, e passeando pelo jardim do mosteiro, quando aquele brutamontes invadira o seu santuário privado, batendo-lhe com o dedo no peito e exigindo matéria para uma reportagem sensacionalista. Bichas? Meu Deus, não! Os monges não eram bichas, olha­vam para os homossexuais com certa compaixão, mas com total falta de compreensão.

O ancião recusou-se a atender às exigências do ho­mem e ordenou que ele se retirasse. Cyrus Bollywugger enfureceu-se, gritou que a imprensa era muito poderosa, e que ele, de uma só penada, podia destruir a reputação do mosteiro e, ao ver o monge calado, em íntimo reco­lhimento, ergueu de repente o punho e bateu com toda a força no peito do velho, derrubando-o. O Irmão Ar­nold ficou algum tempo caído e estonteado, pensando a que ponto chegara a humanidade, para que um bruto da­queles agredisse um velho frágil, quase no fim da vida. Não conseguia entender. Por fim, dolorosa e lentamente, sentindo as pernas bambas, pôs-se de pé e cambaleou até uma rocha, onde se sentou para tentar reconquistar o equilíbrio e a compostura.

Bradando ameaças, Bollywugger pulou a cerca, afas­tando-se com um andar que mais fazia pensar num gorila bêbado do que num exemplar do homo sapiens.

O Irmão Arnold ficou ali sentado, junto ao mar resplandecente, olhando sem ver, os ouvidos como que tapados, mal se apercebendo dos gritos e berros que vinham da praia, crianças brincando e brigando, vozes estridentes, amaldiçoando os maridos.

O velho monge deu um pulo, ao sentir alguém pou­sar-lhe a mão no ombro e uma vez perguntar:

—         O que o preocupa, irmão?

Olhou para cima e viu um outro monge, da mesma idade que ele, contemplando-o com uma expressão de preocupação nos olhos castanhos.

—         Fui insultado por um jornalista, que pulou a cerca e me bateu no peito respondeu ele. Queria que eu lhe dissesse que éramos todos bichas, homossexuais, neste mosteiro e, quando eu neguei, com certa indigna­ção, ele me bateu no peito, atirando-me ao chão! Desde então, não me senti bem e tive de repousar um pouco. Mas vamos voltar ao mosteiro.

Ergueu-se com dificuldade e, devagar, os dois velhos, irmãos de ordem havia muitos e muitos anos, subiram pelo atalho que levava ao prédio do mosteiro.

Nessa noite, após as completas, quando os monges já estavam nas suas celas, o Irmão Arnold sentiu dores fortes, como se lhe estivessem atravessando o peito com lanças em brasa. Utilizando-se de uma sandália, bateu débilmente na parede da cela. Ouviu-se um arrastar de pés e uma voz perguntou, junto à sua porta:

—         Que é, Irmão? Está se sentindo mal?

—         Estou sim, Irmão respondeu o velho monge, numa voz fraca. Poderia pedir ao Irmão Enfermeiro que viesse me ver?

O outro murmurou que sim e afastou-se, com um ruído de sandálias batendo contra as lajes do chão. Era estranho, pensou o Irmão Arnold, que nenhum monge pudesse entrar na cela de um irmão, nem mesmo pelo mais puro dos motivos, a não ser o Irmão Enfermeiro, e mesmo assim só para prestar socorros médicos. Haveria algum fundamento no que o homem dissera? Seriam al­guns monges homossexuais? Talvez, pensou ele. A ver­dade era que a ordem tinha regras estritas para evitar que dois monges ficassem juntos sozinhos, sem a pre­sença de um terceiro. O Irmão Arnold ficou ali, deitado, cheio de dores, pensando no assunto, até ouvir a porta da cela se abrir e uma voz suave perguntar:

—         Irmão Arnold, o que tem?

E o velho monge contou o que acontecera naquela tarde, falou-lhe do soco no peito e da queda. O Irmão Enfermeiro tinha sido um médico consciencioso, que deixara de clinicar por lhe repugnar o aspecto comercial da "ciência" médica atual. Afastou cuidadosamente as roupas do Irmão Arnold e examinou-lhe o peito, a essa altura, cheio de manchas negras, amarelas e azuis. Seus olhos experientes não demoraram a perceber que o Ir­mão Arnold tinha algumas costelas quebradas. Voltou a cobrir cuidadosamente o peito do ancião, pôs-se de pé e disse:

—         Preciso ir falar com o superior, Irmão Arnold, vai precisar tirar radiografias e se internar num hospital.

Dizendo isso, saiu silenciosamente da cela.

Em pouco tempo, ouviu-se mais arrastar de pés e o murmúrio de vozes no corredor. A porta da cela abriu-se, o Irmão Enfermeiro e o Prior entraram e olharam para o monge.

—         Irmão Arnold disse o Prior vai precisar se internar num hospital, para tirar radiografias e engessar as costelas. Vou informar o superior, para que ele tome as providências necessárias. Enquanto isso, o Irmão En­fermeiro vai ficar aqui, para o caso de ser preciso fazer alguma coisa.

O Prior já ia saindo, quando o Irmão Arnold falou:

Não, Irmão, não quero ir para q, hospital, ouvi falar de tantos casos de descuido e negligência, que pre­firo ser tratado aqui mesmo, pelo Irmão Enfermeiro e, se o meu caso escapar à capacidade dele, encomendarei a alma a Deus.

Nada disso, Irmão Arnold, não posso permitir. Só o Superior pode dispensá-lo de ir para o hospital, vou falar com ele — disse o Prior, saindo da cela.

Havia pouca coisa que o Irmão Enfermeiro pudesse fazer para mitigar o sofrimento do velho monge, além de umedecer um trapo e passá-lo na testa do paciente, a fim de tentar reduzir a febre. Desabotoou de novo a vestimenta do Irmão Arnold, para que nem o peso da roupa o incomodasse, e os dois sentaram-se, pois o ve­lho resolvera sentar-se na cama, para melhor poder res­pirar.

Ouviram-se passos se aproximando. A porta da cela abriu-se e o superior entrou. O prior teve de esperar do lado de fora, pois as celas eram tão pequenas, que não cabiam mais que duas pessoas, além da que estava dei­tada. O superior ficou horrorizado com o estado do ve­lho monge. Ele e o Irmão Enfermeiro parlamentaram em voz baixa e, depois, o superior virou-se para o Irmão Arnold:

—         Não posso aceitar a responsabilidade de conser­vá-lo aqui, no estado em que está. Será necessário le­vá-lo para o hospital.

Fez uma pausa e levou dois dedos ao queixo, como quem tem uma difícil decisão a tomar. Passado um mo­imento, olhou de novo para o Irmão Arnold e disse:

Tendo em vista o seu estado e a sua idade, se assim desejar, Irmão Arnold, eu posso telefonar ao bispo e pedir-lhe conselho.

Gostaria muito, Irmão — disse o Irmão Arnold. — Detestaria ter de sair daqui, este é o meu lar, e receio enfrentar os riscos dos hospitais de hoje em dia. Ouvi falar de tantos casos fatais, que não tenho mais confiança neles e, sem confiança, acho que não tiraria proveito do tratamento. Já no Irmão Enfermeiro eu confio plena­mente.

— Como preferir, Irmão Arnold — disse o superior. — Não devia dizer isto, mas não posso deixar de con­cordar.

O superior saiu da cela e, acompanhado do prior, di­rigiu-se ao seu gabinete, onde ligou imediatamente para o bispo em cuja diocese o mosteiro estava localizado. Após alguns "Sim, Reverendíssima, farei isso", ouviu-se o ruído do telefone sendo desligado.

O superior ficou algum tempo em silêncio, pensando* e, depois, tomando uma súbita decisão, mandou vir o irmão que lhe servia de secretário, a fim de lhe ditar um documento para o Irmão Arnold assinar, segundo o qual, se se recusasse a sair do mosteiro, caberia a ele toda a responsabilidade pelo que pudesse vir a acontecer-lhe..

O mosteiro parecia ainda mais frio e branco, à luz do luar. Pequenas nuvens passageiras, ocultando de vez em quando a face da Lua, emprestavam um ar sinistro ao grande casarão. O luar, refletindo-se nas muitas jane­las, parecia piscar para as nuvens esvoaçantes. Ao longe, um mocho piou, lúgubre, na escuridão, enquanto que, perto, o barulho das ondas lambendo a areia e recuando, mostrando os novos vagalhões, formava um acompanha­mento cadenciado. No mosteiro, tudo estava em silêncio, como se até o prédio soubesse que a morte rondava e esperasse ouvir o roçagar das asas dos anjos. De vez em quando, ouviam-se os barulhinhos peculiares às construções, muito antigas: o ruído das patinhas apressadas dos camundongos, correndo pelos soalhos encerados, ou o guincho assustado de uma ratazana. Mas o prédio em si estava quieto e silencioso, como só os prédios muito ve­lhos costumam estar. De repente, o relógio da torre ba­teu as horas. As badaladas ressoaram pelos campos, misturando-se ao ronco de um trem, a distância, varando as trevas rumo à metrópole.

O Irmão Arnold jazia no seu leito de dor. À luz da vela bruxuleante, via o Irmão Enfermeiro olhando-o compassivamente. De repente — num lance tão repentino que o velho monge chegou a estremecer — o Irmão Enfermeiro disse:

—         Irmão, estamos tão preocupados com a sua pes­soa, como com o seu futuro! As suas crenças são por vezes tão diferentes das da religião ortodoxa! O irmão parece não se importar com aquilo em que acredita, bastando-lhe ter fé. Irmão Arnold, procure arrepender-se. Quer que chame o padre confessor, irmão?

O ancião olhou em volta e retrucou:

—         Irmão Enfermeiro, estou satisfeito com o meu modo de vida, vou para o que acredito ser o céu, sigo a minha fé, que não é necessariamente igual a que está nos livros sagrados. Acho a religião formal, ortodoxa, bastante limitada nas suas concepções.

Não pôde falar mais. A dor sacudia-lhe o corpo todo, sentia o peito em fogo, como se lhe estivessem enfiando pregos, e pensou nos pregos nas mãos e nos pés de Cristo, na dor que Ele deveria ter sentido, agonizando na Cruz.

—         Irmão Enfermeiro — disse ele — podia me pas­sar o crucifixo, para eu poder beijar as cinco chagas de Cristo?

O Irmão Enfermeiro ergueu-se lentamente e aproxi­mou-se da cabeceira da cama do velho. Estendendo a mão, e após persignar-se, tirou o crucifixo da parede e encostou-o nos lábios do Irmão Arnold.

—         Irmão, Irmão — exclamou Arnold, entrando em agonia — quem são essas pessoas reunidas à minha volta? Ah, estou vendo a minha mãe, que veio me dar as boas-vindas à Realidade Maior, à Vida Maior. Aqui está a mi­nha mãe, aqui está o meu pai, aqui estão também mui­tos amigos meus.

Rapidamente, o Irmão Enfermeiro levantou-se, abriu a porta e bateu com força e urgência na porta da cela vizinha. Ouviu-se uma exclamação e, no mesmo instante, um monge de cabeça raspada abriu a porta.

—         Depressa, depressa! — disse o Irmão Enfermeiro. — Chame o superior. O Irmão Arnold vai nos deixar!

O monge não parou para vestir o hábito, nem para calçar as sandálias: saiu correndo pelo corredor e pela escada abaixo. Dali a pouco regressou com o superior, que já estava de prontidão, sozinho, no seu gabinete.

O Irmão Arnold olhou em volta e exclamou, angus­tiado:

—         Por que será que nós, que pregamos a religião, temos medo de morrer? Por que, Irmão Superior, por que razão teremos tanto medo de morrer?

Mas logo uma resposta surgiu no cérebro do Irmão Arnold:

—         Você ficará sabendo, Arnold, quando vier para junto de nós, no Outro Lado da vida. Espere só mais um pouco.

O superior ajoelhou-se junto à cama, segurando o crucifixo nas mãos erguidas. Orou, pedindo a Deus mi­sericórdia para com a alma do Irmão Arnold qu2 tantas vezes se afastara dos preceitos da religião. Ao lado da cama, a vela gotejante ora subia, ora parecia morrer, so­prada pela brisa. Mas voltou a chamejar e, à luz da vela solitária, viram o Irmão Arnold soerguer-se e exclamar:

—         Nunc dimitis, nunc dimitis,[2] Senhor, permite agora que o Teu servo parta em paz, de acordo com a Tua palavra.

Dito isso, gemeu e tombou, sem vida, sobre os tra­vesseiros.

O Irmão Enfermeiro persignou-se e disse a oração dos mortos. Depois, curvando-se sobre a cabeça do su­perior, que continuava de joelhos, fechou os olhos do Irmão Arnold e colocou uma faixa sob o seu queixo, a fim de lhe manter a boca fechada, amarrando-a no alto da cabeça. Depois, ergueu cuidadosamente a cabeça e os ombros do falecido e retirou os travesseiros. Cruzou as mãos do Irmão Arnold sobre o peito, fez-lhe a necessá­ria toalete e, finalmente, cobriu-lhe o rosto com o lençol.

O superior ergueu-se lentamente, saiu da cela e, di­rigindo-se ao seu gabinete, deu instruções ao monge se­cretário. Minutos mais tarde, os sinos dobravam a fina­dos. Os monges levantaram-se em silêncio, vestiram os seus hábitos e desceram à capela para rezar pela alma do irmão morto. Mais tarde, quando o dia clareasse, di­riam uma missa de corpo presente, depois da qual o corpo do Irmão Arnold, envolto em seu hábito, com o capuz cobrindo-lhe a cabeça, as mãos em volta do cru­cifixo, cruzadas sobre o peito, seria carregado, em solene procissão, do mosteiro para o jardim, onde, no pequeno cemitério, iria fazer companhia a tantos outros monges ali enterrados.

Naquele momento, dois dos monges já se estavam preparando para descer ao cemitério e cavar a sepul­tura, diante do mar, onde o corpo do Irmão Arnold des­cansaria até a dissolução final. Os dois monges saíram com as pás ao ombro, calados, cada qual pensando no que haveria para além desta vida. As Sagradas Escrituras explicavam muita coisa, mas deveriam acreditar cega­mente nelas? O Irmão Arnold sempre dissera — para grande indignação do Irmão Superior — que não se podia levar muito a sério as Escrituras, deveriam servir ape­nas como um guia, indicador do caminho a seguir. Por diversas vezes ele havia dito que a vida eterna era ape­nas uma continuação da vida na Terra. Lembravam-se dele, calado, algum tempo atrás, no refeitório, tendo di­ante de si uma garrafa de água mineral ainda fechada. De repente, ele se levantara, agarrara na garrafa e dissera:

— Meus irmãos, esta garrafa assemelha-se ao corpo humano, também ela contém uma alma. Quando eu lhe tirar a chapinha, haverá borbulhamento, o gás sairá da garrafa. Da mesma forma, irmãos, nós abandonamos os nossos corpos, quando esta vida acaba. Nossos corpos nada mais são do que o invólucro da alma imortal e quando esse invólucro fica velho e não agüenta mais, a alma larga o corpo e vai para um determinado lugar. O que acontece nesse lugar? Meus irmãos, isso cada um* de nós vai descobrir, quando a sua hora chegar.

O Irmão Arnold despejara o conteúdo da garrafa num copo e bebera toda a água, dizendo:

— Agora, o corpo, ou seja, a água, desapareceu, da mesma forma que o nosso corpo acabará desaparecendo na terra, dissolvendo-se, finalmente, nas suas partes com­ponentes.

Os dois monges iam pensando nisso, enquanto pro­curavam um lugar apropriado para cavar a sepultura. Dois metros de profundidade, por dois metros de compri­mento e um metro de largura. Sem dizer palavra, puse­ram mãos à obra, removendo cuidadosamente a grama e pondo-a de lado, para depois poderem cobrir com ela a cova.

Enquanto isso, no mosteiro, o corpo do Irmão Ar­nold estava sendo removido antes que o rigor mortis se instalasse, pois isso tornaria difícil descer com o ca­dáver pelas escadas. Quatro monges entraram na cela carregando uma padiola de lona, que fizeram deslizar por baixo do corpo do morto, de maneira a que ele ficasse bem no meio. Depois, ergueram o corpo da cama, con­seguiram passá-lo pela estreita porta da cela e, com um pouco de esforço, transportá-lo pelo não menos estreito corredor. Movendo-se lentamente e recitando as frases preestabelecidas do Rio Fúnebre, desceram com o corpo e entraram com ele na capela. Colocaram-no reverentemente na mesa, compondo-lhe o hábito de modo a co­bri-lo naturalmente e calçando-lhe os pés com sandálias. Depois, recolocaram-lhe o crucifixo entre as mãos e ajeitaram-lhe o capuz em volta do rosto. Por fim, os quatro monges iniciaram a vigília solitária junto ao cadáver do irmão morto, até que o dia clareasse e fosse rezada missa de corpo presente.

Entretanto, o Irmão Arnold abandonava o velho cor­po. Sentiu que o carregavam para cima. Olhando para baixo, num misto de curiosidade e medo, descobriu que uma espécie de corda azul-prateada se estendia do seu corpo atual para o pálido cadáver deitado na mesa. Ao redor, parecia-lhe distinguir rostos conhecidos. Aquela não era a sua mãe? E ali estava o seu pai. Tinham vindo de além das Sombras para ajudá-lo, para guiá-lo na sua viagem.

O caminho à sua frente era escuro. Dava a impres­são de ser um túnel interminável ou, talvez, um longo tubo. Parecia-se com o tubo que os monges transporta­vam em procissão pela aldeia, em determinadas ocasiões, um tubo apoiado num pau, que erguiam à altura das ja­nelas, para que as pessoas pudessem atirar nele os seus donativos, que depois deslizavam, indo parar numa caixa de coleta.

O Irmão Arnold sentiu-se subir lentamente por esse tubo. Era uma sensação muito estranha. Olhou para bai­xo e viu que a corda de prata estava ficando cada vez mais fina, até que se partiu, como um elástico acaba ce­dendo à própria elasticidade.

Olhando para cima, julgou ver uma luz brilhante. Lembrou-se de quando descera ao poço do mosteiro, para ajudar a limpar os filtros d’água. Ao olhar para cima, vira o brilhante círculo de luz que iluminava o alto do poço. Tinha uma sensação semelhante, a sensação de que estava sendo carregado para cima, para a luz, e pensou: e agora?

De repente, como se atravessasse um alçapão, Arnold emergiu — onde? — num outro mundo, ou num outro plano de existência. Qual era, ele não sabia. A luz era tão intensa, que ele teve de tapar os olhos e, decorridos alguns minutos, os destapar cautelosamente e não pôde deixar de exclamar "Meu Deus!", ante a cena que se lhe deparava. Ouviu um riso divertido a seu lado, vol­tou-se e deu de cara com o seu pai na Terra.

—         Então, Adnold! — disse ele. — Você parece espan­tado. Pensei que você ainda se lembrasse, se bem que o mesmo tenha acontecido comigo e eu tenha custado um bocado a me acostumar.

Arnold olhou em volta.

—         É, confesso que ESTOU espantado — retrucou. — Este lugar parece-se com a Terra, embora muito melhor, e eu pensei que iríamos para... bem, não sei explicar exatamente, mas para um tipo de mundo mais abstrato, e não isto.

Fez um gesto indicando os prédios e os parques.

Isto me parece uma versão mais arrumada da Terra!

Arnold, você tem um bocado que aprender, ou que reaprender — disse o seu antigo pai..— Os seus es­tudos, a sua longa experiência, deveriam tê-lo levado à convicção de que, se uma entidade, uma alma, fosse dire­tamente do mundo terreno para as altas esferas celes­tiais, a mudança seria tão radical, que afetaria ou mesmo destruiria a sua sanidade mental.

Olhou fixo para Arnold e disse:

—         Pense num copo, num copo comum, de vidro. Se você colocar um copo frio em água muito quente, ele vai se rachar e, como ele, há muitas coisas que precisam ser feitas gradativamente. Da mesma maneira, uma pessoa que esteve doente por muito tempo e presa ao leito não pode esperar levantar-se um dia e sair correndo por aí, como se fosse um atleta em plena forma. O mesmo acon­tece aqui. Você, na Terra, estava num mundo muito cru; subiu e agora está num estágio intermediário, uma espécie de alto no caminho, de pausa para a meditação.

Arnold olhou em volta, maravilhado com a beleza dos edifícios, com o verde das plantas e com a perfeição das árvores. Viu que os animais e as aves não tinham medo dos seres humanos. Era como um mundo onde a boa vizi­nhança realmente imperava.

Não tenho dúvida de que, em breve, você vai as­cender a planos mais altos, porém, antes disso terá de ir ao Panteão da Memória. Lá, você poderá recordar a sua anterior visita a este mundo.

Acho divertida a maneira de dizer "ascender" — retrucou Arnold — pensei que as esferas celestiais e as esferas terrenas, ou os diferentes planos de existência, como se preferir chamá-los, fossem interligados e chegas­sem a ocupar o mesmo espaço. Então, por que dizer "ascender"?

Um homem que até ali se limitara a ouvir, sem dizer nada, resolveu interferir:

—         Bem, não há dúvida de que se ascende mesmo. Ascendemos a um plano mais alto de vibração. Se fôs­semos para um plano de vibração mais baixa, diríamos "descer", pois a verdade é que existem planos mais bai­xos de vibração e há pessoas aqui que têm de descer por alguma razão, talvez para auxiliar alguma alma cansada. Mas este é um plano intermediário, ascendemos a ele quando vimos da Terra. Queremos sair da Terra e, se des­cêssemos, poderíamos dizer que estávamos nos aproxi­mando do coração da Terra, coisa que a gente não quer fazer. De modo que nós ascendemos a um plano mais alto de vibração, para nos distanciarmos do centro da Terra, e em breve, você, Arnold, estará de novo subindo. Disso eu não tenho dúvida, pois este é apenas um está­gio intermediário, as pessoas daqui vão para um plano superior ou descem novamente à Terra, para aprender mais lições. Mas está na hora de você ir ao Panteão da Memó­ria, todo mundo vai lá antes de qualquer coisa. Venha comigo.

Juntos caminharam pelo que parecia ser uma rua mui­to bem conservada. Não se viam carros, nem quaisquer outros veículos mecânicos. As pessoas caminhavam e os animais também, muitas vezes ao lado dos seres humanos. Arnold e o seu novo amigo se desviaram das ruas e enve­redaram por um pequeno caminho, no fim do qual Arnold podia ver muitas plantas. Caminhava ao lado do outro, cada qual preocupado com os seus próprios pensamentos. Logo chegaram ao fim do caminho e viram um parque lindíssimo, com plantas e flores maravilhosas, como nunca Arnold tinha visto. No centro do parque havia uma gran­de edificação com uma cúpula, que as pessoas chamavam de Panteão da Memória. Ficaram um momento apre­ciando a paisagem, o verde, as cores vivas das flores e o azul extremamente brilhante do céu, que se refletiam na superfície do lago próximo ao Panteão da Memória.

Como se fossem uma só pessoa, Arnold e o seu novo amigo dirigiram-se para o Panteão. Foram andando, pen­sando, talvez, nas outras pessoas sentadas nos bancos ou na grama. De vez em quando, viam uma pessoa subir os degraus do Panteão da Memória e outras emergirem de alguma saída oculta. Algumas pareciam felizes, outras mui­to desanimadas. Arnold estremeceu por antecipação. O que se passaria no Panteão da Memória, que aconteceria com ele? Ascenderia a uma vibração mais alta, a uma for­ma de vida mais abstrata? Ou seria mandado à Terra, a fim de começar uma outra vida?

—         Olhe só — murmurou o novo amigo de Arnold, apontando numa determinada direção. Sua voz tornou-se um sussurro: — Aquelas são entidades de um plano muito mais alto de existência, que vieram até aqui observar as pessoas.

Arnold olhou e viu duas esferas douradas e brilhantes, que pareciam feitas de luz, a tal ponto, que Arnold nem sequer pôde perceber-lhes a forma exata. As duas esfe­ras pairavam e deslizavam como se fossem bolhas dou­radas, empurradas por uma brisa suave. Foram deslizan­do, até chegarem aos muros do Panteão da Memória, que atravessaram sem deixar nem uma marca na estrutura.

—         Preciso deixá-lo agora — disse o amigo de Ar­nold. — Mas anime-se, VOCÊ não tem nada com que se preocupar, pode estar certo. Adeus. Alguém estará à sua espera, quando você sair. Não fique com esse ar tão preocupado!

Afastou-se, tomando o mesmo caminho que o trou­xera.

Com crescente apreensão — ou antes, completamen­te apavorado — Arnold dirigiu-se para a entrada do Pan­teão da Memória. Ao chegar junto dos grandes degraus de pedra, parou e procurou olhar em volta, para ver o que estava acontecendo, mas não conseguiu parar, uma força invisível o impelia, o empurrava. Subiu depressa os de­graus e deteve-se um momento diante da grande porta de entrada. A porta abriu-se inesperada e silenciosamente. Arnold foi empurrado ou atraído para dentro, não sabia ao certo e também não importava muito. O que interessa é que, tão logo ele entrou, a porta se fechou.

 

Silêncio, um silêncio total. Nem o mais leve ruído. Nada. Um silêncio tão grande, que tudo parecia ausente, exceto o silêncio.

Escuridão, uma escuridão tão grande, que Arnold qua­se podia ver coisas. Seus olhos tinham-se acostumado à luz, deviam ter armazenado formas de luz porque agora, naquela escuridão tão profunda, ele continuava receben­do flashes de luz.

Uma total ausência de tudo. Arnold mexeu-se, mas não saberia dizer que se mexera, tudo era vazio, pensou ele, mais vazio ainda do que o próprio espaço. De repente, um débil ponto de luz apareceu "em algum lugar", emi­tindo raios azuis, semelhantes às faíscas que saem de uma ferradura em brasa quando está sendo malhada pelo fer­reiro. A luz era azul, clareava no meio e tomava-se mais escura à medida que se distanciava do centro. A luz ex­pandiu-se, ainda azul, e Arnold pôde ver o mundo, a Ter­ra que recentemente deixara. Parecia estar flutuando no espaço. Havia uma massa de nuvens, parecia uma bola de algodão de várias cores, nuvens pretas e nuvens brancas, e Arnold pôde ver, momentaneamente, o que lhe pareceu ser o Deserto do Saara, só areia e desolação. Depois, através da Terra, viu outros globos, todos interligados, mas sem se tocarem.

Estou ficando loucopensou Arnold vou sair daqui agora mesmo!

E deu meia-volta, querendo fugir. Atrás de si, viu duas orbes brilhantes. Olhou-as e recebeu a seguinte mensa­gem:

—         Está tudo bem, Arnold, sabemos tudo a seu res­peito, estivemos passando em revista o seu passado. Você teve um desempenho muito bom nesta última vida, só que foi preguiçoso, não subiu além do diaconato, não fez questão de ser ordenado. Você foi muito preguiçoso, Arnold.

Arnold continuou a olhar, atônito, e a mensagem con­tinuou:

Não, você não pode nos ver, somos de uma vibra­ção diferente. Tudo o que você pode ver é um globo de luz e nós não somos assim. Em breve você será um de nós, se assim o desejar, porque, se não quiser, terá de voltar à Terra para terminar algumas tarefas que dei­xou inacabadas, como essa de ter se contentado com o diaconato quando poderia ter subido muito mais alto.

Mas como é que vocês são? — quis saber Arnold.

Nem todos sabem como vive um rei — pensou uma das esferas. — As pessoas têm as idéias mais estra­nhas sobre os reis e as rainhas, algumas pensam que eles passam o dia inteiro sentados num trono de ouro, com uma coroa na cabeça e segurando o cetro na mão, quan­do os reis e as rainhas não vivem nada assim. Da mesma forma, na Terra as pessoas têm muitas idéias estranhas sobre a vida que se segue imediatamente à morte, pensam que existe um céu com portões recamados de pérolas... bem, ele existe para os que pensam que existe, por­que aqui, num plano controlado pelo pensamento, as pessoas são o que pensam que são e, se uma pessoa pensa que há anjos voando, ela verá anjos voando. Mas tudo isso é um desperdício, não há nenhuma utilidade numa vida assim, e esses estágios intermediários existem para que as pessoas possam meditar sobre as coisas e chegar a uma conclusão.

Os dois globos pareciam estar conversando, entre os dois havia um bocado de vibração. Um deles emitiu, en­tão, o pensamento seguinte:

—         Achamos muito engraçado que as pessoas, neste plano de existência, estejam tão amarradas aos seus há­bitos e costumes, que precisem imaginar comida e depois, que estão comendo. Vimos até — continuou a voz tele­pática — pessoas muito religiosas, que continuam comen­do peixe às sextas-feiras!

—         Não me diga! — exclamou Arnold. — Já é esqui­sitice demais! Mas por que é que as pessoas temem tanto a morte? — perguntou ele. — Embora eu fosse um reli­gioso e obedecesse às regras da Ordem, confesso que ti­nha um medo horrível de morrer. Pensava que Deus es­taria pronto a me condenar por todas as faltas que come­ti e sempre me intrigou o fato de as pessoas terem tanto medo da morte.

A voz telepática fez-se ouvir de novo:

—         As pessoas têm medo de morrer porque não que­rem conhecer a verdade. A morte é agradável; quando se atingem os seus últimos estágios não se sente mais medo, nem dor, nem sofrimento. Mas as pessoas precisam ter medo da morte, senão se suicidariam em massa. Se as pessoas soubessem como a morte é agradável e quão me­lhor é a vida aqui, todas elas se suicidariam, o que seria muito ruim. As pessoas vão para a Terra assim como as crianças vão para a escola, a fim de aprender, e as cri­anças têm que ir à escola e não fugir para fazer gazeta no campo. Assim, as pessoas têm medo da morte até o úl­timo momento, até ficar claro que não vão poder conti­nuar a viver. Então, elas se entregam ao calor da morte, à felicidade de morrer.

"Mas nós queremos que você deixe os mundos da matéria e venha para os mundos do espírito" — pensou uma das esferas.

—         E por que é que há um céu material, mesmo que seja apenas uma imitação, se as pessoas não pre­cisam de coisas materiais? — perguntou Arnold.

—         Porque para a Alma, ou o Eu Superior, ou seja, qual for o nome que você queria dar-lhe, é indispensável ter experiência material e, através das lutas na Terra, po­de-se aprender muita coisa em alguns anos apenas, ao passo que, se as lições tivessem de ser absorvidas por um espírito que habitasse um mundo espiritual, levariam um tempo infinito. Mas agora precisamos mostrar-lhe a sua vida passada. Preste atenção.

Arnold teve a impressão de que o mundo diante dele se expandia tão rapidamente, que chegou a pensar que estivesse caindo num precipício um precipício no es­paço? sobre o mundo em revolução. Caiu, ou julgou cair, a milhares de quilômetros e, de repente, viu que estava a apenas alguns metros acima da Terra. Diante dele, havia homens de aspecto estranho, entregues a um combate mortal, brandindo lanças, machados e até mesmo paus, com pesadas pedras na ponta. Arnold olhou para eles e uma figura em particular o atraiu. Erguendo-so ines­peradamente do chão, a figura atravessou com a lança o peito de um inimigo que se aproximava, fazendo-o tom­bar numa poça de sangue.

Por causa dessa má ação, Arnold, disse uma voz que vinha de dentro de sua cabeça, você teve que viver uma porção de vidas.

As cenas vinham desde a era dos assírios até diferen­tes períodos da história da Terra. Por fim, Arnold reviu a vida que acabara de deixar, viu a sua infância e os peque­nos delitos que cometera, tais como roubar a fruta do pomar de um vizinho velho ou tirar moedas destinadas ao leiteiro. Viu-se no mercado, roubando frutas.

Depois, viu-se já monge, temendo não ser aprovado nos exames para a ordenação e, conseqüentemente, ado­tando uma atitude de desprezo, para ocultar o medo de se mostrar incompetente.

Viu-se de novo morrendo, e depois saindo da Terra, subindo mais e mais, até aterrissar num outro plano de existência.

Você saiu-se bastante bem nessa vida — disse-lhe uma voz e seria uma perda de tempo voltar à Terra. Achamos que você devia vir para o mundo além das coi­tas materiais, onde poderá aprender muito.

Mas, e os meus amigos aqui? perguntou Ar­nold. Meu pai, minha mãe, e todas as pessoas que eu conheci? Se eu de repente for para um plano superior, após ter gozado da sua hospitalidade, que é que elas vão pensar de mim?

A voz riu:

—         Se fossem dignas de subir mais alto, Arnold, elas teriam subido e, se você não sair deste edifício sob' uma forma que elas possam reconhecer, elas ficarão sabendo que você ascendeu a um plano superior de existência. Quando sairmos daqui, os três pareceremos globos de luz aos olhos delas e, tendo visto dois entrarem, saberão que o terceiro é você e ficarão muito satisfeitas com o seu progresso. Ao mesmo tempo, terão esperanças de tam­bém progredir.

Arnold acabou achando que a voz tinha razão e para seu espanto, sentiu-se mais cheio de vida e de energia como jamais se sentira antes e, ao olhar para baixo, não viu mais os pés nem as mãos. Uma vez que ele conti­nuava a olhar, como que fascinado, a voz fez-se nova­mente ouvir:

—         Arnold, você agora é como nós, olhe para nós e estará se vendo, somos apenas massas de energia pura, absorvendo mais energia daquilo que nos rodeia. Pode­mos ir aonde quisermos e fazer qualquer coisa apenas pensando, mas, Arnold, já não precisamos comer!

Com uma estranha sensação de júbilo, Arnold consta­tou que estava seguindo os seus novos amigos através da parede do Panteão da Memória. Sorriu, ao ver a cara dos antigos amigos, lá fora, vendo sair três globos, quando apenas dois tinham entrado.

O júbilo aumentou, acompanhado por uma sensação de velocidade. Arnold pensou:

—         Por que será que sempre parecemos subir e nunca descer?

Imediatamente, lhe veio a resposta:

—         Bem, claro que a gente está subindo, indo para uma vibração mais alta. Você nunca ouviu falar em descer para uma vibração mais alta, ouviu? Da mesma forma, quando a gente deixa a Terra, a gente sobe, se afasta da Terra. Se a gente descesse, se aproximaria do centro da Terra, que é o que queremos evitar, mas... preste atenção para onde estamos indo.

Nesse exato momento, Arnold sentiu uma espécie de choque. Não saberia explicar ao certo o que sentia mas, se tivesse parado para pensar, talvez tivesse comparado a sensação à de um avião a jato rompendo a barreira do som. Era uma sensação muito esquisita, como se ele esti­vesse mesmo entrando numa outra dimensão.

Depois do choque inesperado, tudo deu a impressão de se inflamar à sua volta, e Arnold viu uma série de tona e cores cintilantes que não conhecia. Ao olhar para as duas entidades que o acompanhavam, não se conteve e exclamou:

—         Mas vocês são humanos, como eu! Os outros riram e retrucaram:

Claro que somos humanos como você, como acha que deveríamos ser? O grande Plano do Universo exige que as pessoas adotem uma determinada forma, por exem­plo, nós somos humanos, não importa que sejamos sub-humanos, humanos comuns ou super-humanos. Todos temos o mesmo número de cabeças, braços e pernas, o mesmo método básico de falar etc. Você vai ver que, nes­te Universo, tudo é criado com base na forma molecular do carbono, de maneira que, aonde quer que você vá, tanto os humanos quanto os humanóides são basicamente iguais a nós ou a você. Da mesma forma, o mundo ani­mal é também basicamente igual, um cavalo tem uma ca­beça e quatro membros, como nós, e, se você olhar para um gato, bem, verá o mesmo, uma cabeça, quatro membros e uma cauda. Em épocas passadas, os humanos tinham cauda; felizmente, prescindiram dela. Por isso, lembre-se, onde quer que você vá, neste Universo, não importa qual seja o plano de existência, todo mundo tem basicamente a mesma forma, a que damos o nome de forma humana.

Mas, meu Deus, eu vi vocês como duas bolas de fogo! disse Arnold, confuso. E agora eu os vejo como formas super-humanas, embora ainda com luz à volta!

Os outros riram e replicaram:

—         Você logo se acostumará. Vai ficar aqui, neste plano, durante muito tempo, há um bocado de coisas a fazer, a planejar.

Pairaram durante algum tempo. Arnold estava come­çando a ver coisas que nunca tinha visto. Os outros ob­servavam-no e um deles disse:

—         Espero que a sua vista esteja se acostumando, você agora está na quinta dimensão, longe do mundo ou plano das coisas materiais. Não vai precisar de conjurar comi­da, bebida ou coisas dessa natureza. Aqui, você existe puramente como espírito.

—         Mas, se somos espíritos — argumentou Arnold — como é que eu os vejo com formas humanas?

—         Não interessa o que somos, Arnold, continuamos a precisar de uma forma. Se fôssemos bolas de fogo, teríamos uma forma, e agora, você está se habituando à visão da quinta dimensão e, por isso, nos vê como nós somos, humanos na forma. Você também vê plantas, flo­res, prédios à sua volta; para as pessoas do plano do qual você veio, nada disso seria visível, isso se elas pu­dessem vir até aqui. Não podem, porque seriam queima­das pelas altas radiações..

Deslizaram sobre paisagens tão belas, que Arnold fi­cou encantado. Como lhe seria difícil descrever o que via se tivesse que voltar à Terra! Lá, ou mesmo no plano quadrimensional, não havia palavras para descrever a vida na quinta dimensão.

—         Que é que aquelas pessoas estão fazendo? — per­guntou Arnold, apontando para um grupo no interior de um lindo jardim. Pareciam estar sentadas em círculo e, embora ele achasse a idéia absurda, agir pelo pensa­mento. Um dos seus acompanhantes virou-se, com dis­plicência, e retrucou:

—         Oh, estão preparando coisas para serem manda­das sob a forma de inspiração para algumas pessoas na Terra. Há muitas coisas que se originam aqui e nós colo­camos nas mentes dos humanos, a fim de tentar elevar-lhes o nível espiritual. Infelizmente, os habitantes da Terra só pensam em usar tudo para fins destrutivos, para a guerra ou para lucros capitalistas.

Iam agora a grande velocidade pelo ar. Arnold ficou surpreso de ver que não havia estradas, deduzindo daí que o trânsito todo, ali, se fizesse pelo ar.

Chegaram a um parque cheio de gente. As pessoas pareciam estar passeando por áleas que cruzavam o par­que.

É para poderem passear mais facilmente — expli­cou um dos guias. — Andamos por prazer, quando não temos pressa de chegar a um lugar, de modo que só temos caminhos onde podemos andar por prazer, à beira de um rio ou de um lago, ou então num parque. Normal­mente, locomovemo-nos por meio da levitação controla­da, como agora.

Mas quem são todas essas pessoas? — perguntou Arnold. — Tenho a impressão de reconhecer algumas. Sei que é perfeitamente absurdo, ridículo, não é possível que eu as conheça ou que elas me conheçam, mas tenho a estranha sensação de já tê-las visto. Quem são?

Os dois guias olharam em volta e exclamaram:

Ah, ESSES! Bem, aquele ali, que está falando com um homem forte, ficou conhecido na Terra como Leonar­do da Vinci. O homem com quem conversa foi, na Terra, Winston Churchill. Ali — e apontaram para outro gru­po — está Hipócrates, que na Terra, há séculos atrás, ficou conhecido como o Pai da Medicina. Teve muita dificul­dade em chegar até aqui, porque dizia-se que ele havia atrasado em muitos anos o progresso da medicina.

Como assim? — perguntou Arnold, olhando para o grupo.

Bem, Hipócrates dizia saber tudo a respeito da medicina e do corpo humano, portanto era considerado um crime de lesa-majestade procurar investigar mais, por isso, decretou-se uma lei pela qual dissecar um corpo ou pesquisar peças anatômicas era considerado crime, pois seria o mesmo que insultar Hipócrates. Esse fato atrasou a medicina em centenas e centenas de anos.

Todo mundo vem para cá? — quis saber Arnold. — Não parece haver muita gente.

—         Oh, não, claro que nem todo mundo vem para cá. Lembre-se do velho ditado segundo o qual são muitos os eleitos, mas poucos os que triunfam. Muitos não con­seguem. Aqui temos apenas um número relativamente pequeno de pessoas de mentalidade, ou espiritualidade, muito adiantada. Estão aqui para um fim específico, o de procurar estimular o progresso da humanidade, na Terra.

A expressão de Arnold tornou-se grave. Sentia-se terrivelmente embaraçado.

—         Acho que houve um erro disse, humildemente. Sou apenas um pobre monge, que nunca aspirou a ser mais e, se vocês dizem que aqui só há pessoas de menta­lidade ou espiritualidade superior, então eu não tenho di­reito a estar entre vocês.

Os dois guias sorriram e responderam:

—         As pessoas espiritualmente superiores costumam subestimar-se. Você passou nos testes e o seu psiquismo foi examinado detalhadamente, por isso você está aqui.

Continuaram a levitar, deixando para trás o parque, subindo a outro plano, que Arnold teria chamado de re­gião alta. Constatou que, com a sua crescente visão espi­ritual, própria da quinta dimensão, ter-lhe-ia sido impos­sível explicar a alguém o que estava acontecendo. Antes de pousarem numa cidade muito especial, ele fez mais uma pergunta:

Alguém do plano da Terra vem até aqui e depois retorna?

Sim, em circunstâncias muito especiais, algumas pessoas também muito especiais, são escolhidas para des­cer ao plano terreno, regressarem por algum tempo, para serem, por assim dizer, instruídas sobre o que deverão dizer às pessoas na Terra.

Os três desceram juntos, como se unidos por laços invisíveis, e Arnold ingressou numa nova fase de existên­cia, uma fase que os humanos não poderiam entender, ou mesmo crer.


 

O SONHO DO VELHO ESCRITOR

O Velho Escritor teve um sonho e aqui está o que ele sonhou. Estava sentado na sua cama de hospital, com a pequena máquina de escrever no colo. Vocês conhecem a sua máquina de escrever? É amarelo-canário e lhe foi dada pelo seu velho amigo Hy Mendelson; é uma bela maquinazinha que, quando bem usada, tem um alegre matraquear.

A St.a Cleópatra estava calmamente reclinada a seu lado, sonhando com o que as gatas siamesas costumam sonhar quando bem alimentadas, quentinhas e confortá­veis. A St.a Cleo, ignorante da etiqueta, roncava como um velho trombone, embalada pelo bater monótono da máquina de escrever usada por mãos inexperientes e pelo ruído do trânsito, lá fora, que lembrava o zumbir de abe­lhas esvoaçando sobre um campo de flores, no verão.

O Velho Escritor estava com uma dor horrível nas cos­tas. Era como se pedaços de lenha lhe estivessem sendo espetados na carne e beliscando os nervos. Não podia se mexer porque era paraplégico, isto é, perdera o uso das pernas. De qualquer maneira, mover-se significaria per­turbar os belos sonhos da St.a Cleópatra, pois uma gati­nha linda como ela sempre tinha belos sonhos, que NÃO deviam ser perturbados. Por fim, a dor diminuiu, as bati­das da máquina rarearam e, com uma certa aspereza na voz, o Velho Escritor disse:

— Agora, saia do meu caminho, máquina, não posso mais olhar para você.

Dizendo isso, fez com que ela deslizasse para uma mesa ao lado da cama. Recostando-se da melhor maneira possível, fechou os olhos e, um segundo mais tarde — jurariam duas pessoas bastante parciais, que fizeram ques­tão de lhe dizer — ELE também ressonou, um ronco alto e raspante. Raspante ou não, alto ou não, ele ressonou e, se ressonou, foi porque adormecera.

Muitas cenas se formaram diante dos seus olhos, en­quanto sonhava. Sonhou que estava flutuando por cima das ruas e, embora sabendo que estava na sua forma as­tral, pensou: "Puxa, espero, pelo menos, estar de pijama!", porque muita gente, quando viaja pelo astral, se esquece de que, de acordo com as convenções da civilização, pelo menos algumas partes anatômicas devem ser tapadas.

O Velho Escritor continuou a pairar, até que, de re­pente, parou, horrorizado. Um carro esporte, de dois lu­gares, um desses velozes carros esporte ingleses, Austin-Healy ou Triunph, aproximava-se a toda, e a jovem que o guiava não parecia estar com a atenção no volante, seus longos cabelos atrapalhavam e a todo momento ela levava a mão à testa, para afastar a madeixa que não a deixava enxergar bem. No exato momento em que ela mais uma vez levantara a mão direita para afastar os cabelos, um carro — velho e pesado — saiu de um cruzamento e atravessou-se em seu caminho!

Ouviu-se um estrondo horrível, de metal amassado. O carro velho foi empurrado vários metros ao longo da rua. Um homem saiu do banco da frente, curvou-se todo e vomitou, de nervoso. Estava branco de susto.

Acorreram alguns curiosos com os olhos esbugalha­dos e os queixos caídos. Uma porção de gente apareceu nas janelas. Garotos surgiram correndo e chamando os colegas para verem "uma batida legal".

Um homem apressou-se a ligar para a polícia e não demorou a se ouvir uma cacofonia indicativa de que tan­to a polícia como uma ambulância estavam chegando. Pri­meiro chegou o carro da polícia, que freou com estrépito, e logo depois a ambulância. Dois policiais pularam do carro e dois homens pularam da ambulância, convergindo para os carros acidentados.

Ouviram-se ordens e gritos. Um dos policiais correu para o carro e agarrando o microfone, pediu que man­dassem um reboque. Gritava tanto, que o rádio era des­necessário, parecia que todo mundo na cidade podia ouvir o que ele dizia.

Em pouco tempo veio, da extremidade da rua ron­cando, um reboque — pela contramão, como sempre acontece. Mas ninguém ligou, coisas dessas acontecem em momentos de crise. O reboque deu marcha à ré até chegar ao local da batida. Rapidamente, o carro esporte, Austin-Healy, Triunph ou outra marca qualquer, foi rebo­cado uns poucos metros. Ao parar, o corpo da jovem motorista caiu ao chão, agitando-se fracamente, com as derradeiras manifestações de vida terrena.

O Velho Escritor pairava bem em cima, fazendo um som astral que poderia ser interpretado como "Tsk! Tsk!" Mas logo olhou de novo sobre o corpo quase morto da jovem, começava a se formar uma nuvem. Depois, o Cor­dão Prateado ligando o corpo astral ao corpo físico foi se afinando e partiu. O Velho Escritor viu que o primeiro era uma réplica exata do corpo da moça. Seu impulso foi ir atrás dela, gritando:

— Ei, menina, você esqueceu a calcinha!

Mas lembrou-se que hoje em dia as jovens não usa­vam calcinha, usavam biquínis, tangas ou meias-calça, e refletiu que, afinal de contas, não podia correr atrás de uma moça avisando que ela perdera o biquíni, o sutiã etc. Lembrou-se de que era paraplégico — mas esqueceu que não era paraplégico no astral. Entretanto, a jovem subia a um plano superior.

No local do desastre, vários homens tratavam de re­mover os veículos e de limpar a rua. O Corpo de Bom­beiros foi chamado para, com as suas mangueiras, apagar as marcas de sangue, óleo e gasolina.

Todo mundo contava o que tinha e o que não tinha visto e o Velho Escritor cansou-se de ouvir tanto bla-bla-blá e de ver os carros amassados serem levados para o depósito de sucata. Olhou para cima a tempo de ver a parte de trás da moça ser coberta por uma nuvem. Re­solveu ir atrás dela.

Até que era uma boa maneira, pensou, de passar uma tarde quente de verão. Por isso, graças à sua grande ex­periência em viagens astrais, foi subindo, subindo, subin­do, até ultrapassar a jovem e chegar "lá" antes dela.

A moça havia morrido fisicamente, mas estava viva para o "Outro Lado" e o Velho Escritor sempre achava interessante ver os recém-chegados aproximarem-se dos Portões Perolados. Penetrou, pois, no reino a que alguns dão o nome de "Outro Lado", outros de Purgatório, mas que na verdade é o que se pode chamar de um posto de recepção. Ficou na beira da estrada e, de repente, a jovem surgiu bem no centro do caminho, subiu alguns metros no ar e depois voltou a cair ao nível do chão.

Um homem apareceu como por encanto e perguntou:

—         Recém-chegada?

A jovem olhou-o com desdém e virou a cabeça. Mas o homem não se deu por achado:

—         Ei, moça, cadê a sua roupa? — perguntou.

A jovem olhou para seu corpo, horrorizada, e corou dos pés à cabeça. Olhou para o homem, olhou para o Velho Escritor — sim, ele também era homem! — e lar­gou a correr, os pés batendo com força na estrada plana, até que chegou a uma encruzilhada. Parou, indecisa, e murmurou consigo mesma:

—         Não, à direita eu não dobro porque à direita é dos reacionários, acho melhor virar à esquerda, posso en­contrar alguns socialistas.

E enveredou pela estrada da esquerda. Não sabia que ambas levavam ao mesmo lugar e constituíam apenas um teste, para que o Anjo Cadastrador (ele gostava de ser chamado assim) fizesse uma idéia do tipo de pessoa que ia encontrar.

A jovem diminuiu o ritmo e começou a caminhar normalmente. Enquanto isso, o Velho Escritor, com sua larga experiência do astral, limitava-se a levitar atrás dela, apreciando a vista. Aí, a jovem parou. Diante dela erguiam-se dois portões refulgentes, ou assim lhe parecia, porque ela fora condicionada a acreditar em céu e inferno, Por­tões Perolados, etc. Parou e um anjo velho e simpático veio abrir os portões.

Deseja entrar, senhorita? — perguntou ele.

A jovem olhou para ele e rosnou:

Não me chame de "senhorita", sou feminista.

O velho anjo sorriu:

—         Ah, você é uma DESSAS? Por isso é que está sem roupa?

A jovem voltou a corar. Mas o velho anjo riu e dis­se, por entre a longa barba branca:

-— Não se encabule comigo, menina, ou como quer que deseje ser chamada, eu estou acostumado a ver gente sem roupa, de frente, de costas, de todo jeito. Pode en­trar, o Anjo Cadastrador está à sua espera.

Abriu um pouco mais os portões, ela entrou, e o anjo fechou-os com estrépito, um estrépito desnecessário, pen­sou o Velho Escritor, que continuava levitando. Mas o velho anjo — ela sabia que ele era um anjo porque estava usando um bonito robe e tinha asas saindo-lhe dos om­bros e batendo de leve quando ele andava — conduziu-a por um caminho até uma porta, que abriu, dizendo:

—         Entre aí, siga por esse corredor e encontrará o Anjo Cadastrador, sentado no hall que existe ao fundo. Seja amável com ele, nada de mostrar-se desdenhosa, ou ele a mandará para baixo, e o que ele diz é definitivo.

Virou-se e quase esbarrou no Velho Escritor, que lhe disse:

—         Oi, meu chapa, mais uma recém-chegada, hein? Deixe-me entrar e divertir-me um pouco.

O Anjo Porteiro retrucou:

—         É, as coisas esta manhã têm estado meio monóto­nas, com tanta gente piedosa chegando. Vou com você, para me divertir um pouco. Os outros que esperem.

E o Anjo Porteiro deu o braço ao Velho Escritor e juntos atravessaram o corredor. Ao chegarem no grande hall sentaram-se em assentos astrais e viram a jovem, com passos nervosos, aproximar-se do Anjo Cadastrador.

Este era um homem gordo e baixo, cujas asas não se encaixavam muito bem, pois tremiam um bocado quan­do ele falava, como algumas dentaduras. Cada vez que o Anjo Cadastrador se mexia, as asas tremiam e quase lhe derrubavam o halo que, para surpresa da jovem, estava preso por tiras de fita Durex. Tudo aquilo era muito es­quisito, pensou ela, fungando, mas, nesse momento, o Anjo Cadastrador olhou-a no rosto até então, estivera olhando para outras partes dela e perguntou:

—         Data da morte? Onde foi que você morreu? Onde foi que sua mãe morreu? E onde está o seu pai agora, no céu ou no inferno?

A jovem não parava de fungar. Estava ficando encabuladíssima com tudo aquilo, a maneira pela qual olhavam para ela e, principalmente, porque o pólen das flores dos Campos Celestiais lhe estava causando uma terrível coceira nas narinas. De repente, ela deu um espirro da­queles e quase derrubou o halo do Anjo Cadastrador.

—         Oh, desculpe disse ela, muito sem graça. Sempre espirro assim quando sinto um cheiro estranho.

O Anjo Porteiro riu com gosto.

—         É isso mesmo disse ele, apontando na direção do Anjo Cadastrador ele fede um bocado. Muita gen­te espirra mal chega perto dele.

O Anjo Cadastrador olhou para os papéis diante dele e murmurou:

—         Pois é, data disto, data daquilo. Fiz as perguntas de praxe mas, se a jovem me der todas as informações vou passar o resto do dia preenchendo formulários, uma burocracia daquelas!

De repente, ele olhou de novo para a moça o per­guntou:

—         Escute, você não terá aí uma guimba? Estou com uma vontade louca de fumar e é estranho que, mal che­guem aqui, as pessoas joguem logo fora os cigarros. Lá embaixo o pessoal tem mais sorte, porque todo mundo quer fumar antes de enfrentar a fogueira eterna.

A jovem sacudiu negativamente a cabeça, cada vez mais espantada, não tinha nem guimbas nem cigarros. Aborrecido, o Anjo Cadastrador grunhiu:

—         Onde foi que você morreu? Teve um bom funeral? Remexeu entre os papéis e pegou num cartão, que dizia: "I. Digsen, Buryemall limitada. Agentes Funerá­rios Oferta da semana: Cremações."

—         Esses é que deviam ter tratado do seu funeral disse o Anjo. Recebemos uma porção de fregueses de­les e constatamos que foram bem preparados, maquila­dos, etc.

Pensou um momento e acrescentou:

—         Mas acho que nada disso importa, quando a pes­soa está morta, não é? Não tinha pensado nisso antes.

A jovem não respondeu. Olhou para o formulário de cadastro e exclamou, furiosa:

—         Ora, o senhor me inscreveu aí como "senhorita". Nada disso! Exijo que apague esse "senhorita", não aceito essa discriminação.

A indignação fez com que ela ficasse novamente ver­melha de raiva. O Anjo Cadastrador tentou acalmá-la:

—         Sossegue, menina, sossegue. Sabe onde você está?

Depois, franziu a testa e disse:

Bem, menina, você mesma decidiu para onde quer ir, porque aqui no céu não há lugar para feministas nem jornalistas. O lugar deles é lá embaixo, no inferno. Por isso, jovem, pode ir andando. Vou já telefonar a Satã, avisando que você está a caminho. Dê-lhe os meus parabéns, por­que a gente apostou no número de fregueses que eu mando para cima e para baixo. Este é um caso fácil de resolver já que é do Women's Lib!

Virou-se e puxou a cesta de papéis mais para perto. Depois, fazendo uma bola de papel com a ficha dela, jogou-a no lixo.

A jovem olhou em volta, com ar indeciso e, por fim, virou-se para o Velho Escritor, dizendo:

—         Que pessoal, hein? Tanta discriminação! Quando puder falar com o Chefe, vou fazer queixa. Por onde se desce ao inferno?

O Velho Escritor pensou que era uma pena ela ter de ir para o inferno, iam assá-la bem, com o seu mau gênio e a sua atitude atrevida. Mas respondeu:

—         Não importa por onde você vá, todos os caminhos levam ao inferno, exceto um, que você acaba de despre­zar. Por isso, pode descer por aquela estrada, você vai ver que logo chega.

A jovem perguntou, irada:

—         Como é, não vai abrir a porta para mim? E se considera um cavalheiro?

O Velho Escritor e o Anjo Porteiro olharam para ela, perplexos, e o último comentou:

—         Você não é feminista? Se lhe abrirmos a porta, você vai dizer que a estamos humilhando, tirando-lhe o direito de abrir a porta por si mesma!

Dizendo isso, o Anjo Porteiro deu meia-volta e cor­reu a atender aos seus deveres, porque alguém estava querendo entrar e batia com força nos portões.

—         Venha comigo — disse o Velho Escritor — vou lhe mostrar o caminho, tenho um bocado de amigos lá embaixo e, claro, um número ainda maior de inimigos. Mas tome cuidado ao chegar lá, porque cerca de metade da população é formada por ex-jornalistas e eles não são flor que se cheire. Vamos, venha comigo.

Desceram juntos uma estrada, que pareceu à moça interminável, fazendo com que, a certa altura, ela se vol­tasse para o Velho Escritor e perguntasse:

Mas aqui não há via-expressa?

Oh, não — retrucou o Velho Escritor. — Isso aqui não é necessário porque todo mundo vai para o inferno o mais depressa que pode. Olhe só para aquelas pessoas — disse ele, acotovelando-a para que ela olhasse para bai­xo da estrada. Com grande espanto, a jovem verificou que estava olhando para a Terra.

Veja, por exemplo, aquele homem ali, sentado à mesa — disse o Velho Escritor — tenho certeza de que é um editor, ou coisa parecida.

Ficou um momento pensando e cofiando a barba, de­pois continuou:

—         Isso mesmo, já sei exatamente o que ele é: agen­te literário. Pela maneira de se sentar, acho que passou algum tempo na Marinha, mas sem dúvida é agente li­terário. Lá no inferno você vai encontrar muitos como ele.

Dobraram uma curva da estrada e, diante deles, sur­giram as Portas do Inferno, refulgindo em brasa e dar­dejando centelhas. Quando se aproximaram, a jovem viu um diabo agarrar o seu tridente e um par de luvas de amianto. Calçando rapidamente as luvas, o demônio abriu as portas de par em par, lançando um chuveiro de fagulhas em meio a uma nuvem de fumaça.

—         Entre, gatinha disse ele para a jovem es­tamos esperando por você, venha para a nossa festinha. Sabemos como lidar com feministas como você, vamos mostrar-lhe que você é mulher e um símbolo sexual.

Voltou-se e empurrou a jovem com a ponta do seu tridente. A moça deu um pulo e soltou um grito, antes de pôr novamente os pés no chão. O diabo-porteiro virou-se para o Velho Escritor:

—         Não, meu chapa, você não pode entrar, já basta o inferno que você passou no mundo. Agora, vamos cuidar dos seus perseguidores e caluniadores. Volte à Terra e provoque mais barulho, precisamos de mais gente para carregar carvão para as fornalhas.

E assim, a jovem saiu do sonho do Velho Escritor. Sai também das nossas páginas, e só podemos imaginar, com certa lascívia, o destino de uma jovem tão bem-dotada de curvas e condenada a uma atmosfera tão infernal, se bem que ela própria tivesse concordado em que não fi­caria à vontade numa atmosfera celestial.

O Velho Escritor subiu de novo a estrada, mantendo os olhos e os ouvidos bem atentos às imagens e aos sons que constituíam uma parte tão importante da vida, na parte infernal do Outro Lado. Olhando em volta, viu atrás de si o inferno. Grandes chamas subiam para o céu, junto com coisas que pareciam bolas de fogo ou fogos de ar­tifício. De vez em quando, ouviam-se urros, gritos e ber­ros, e toda aquela região tinha uma cor vermelha muito desagradável. O Velho Escritor afastou-se mas, ao fazê-lo, ouviu as portas do inferno se abrirem e gritos de pessoas que diziam:

—         Escritor! Escritor!

Uma turma infernal (que pena não ser uma horda ce­lestial!) saiu gritando, para fora dos portões abertos:

—         Escritor! Escritor!

O Velho Escritor deu um suspiro fundo e recuou, des­cendo de novo a encosta, enquanto a turma infernal ges­ticulava, chamava e gritava. Sentou-se num banco, mas logo se levantou, por causa do calor que dele emanava.

Um homem muito grande, com um par de chifres bem polidos, emergiu dos portões do inferno. Tinha uma cauda pontiaguda, enfeitada com um laço azul, que fazia con­traste com o vermelho da atmosfera. Cumprimentou o Velho Escritor, dizendo:

—         Você seria uma mão na roda para mim, aqui no inferno. Poderia oferecer-lhe um cargo muito importante. Que tal?

O Velho Escritor olhou em volta e respondeu:

—         Não sei ao que você está se referindo.

Saía assumiu uma atitude ainda mais satânica e pa­litou os dentes com uma lasca de caixão velho, em que tinha tropeçado ao sair. Ao contato com os dentes, a madeira inflamou-se e dela saíram pequeninas fagulhas, que caíram na direção do Velho Escritor, forçando-o a se arredar depressa.

— Você escreve infernalmente bem, e é isso o que eu quero. Poderia lhe oferecer o que quisesse. De que é que você gostaria? Cabritas, gatinhas, sei lá como é que você as chama? Ou rapazinhos? Não, não vomite aqui, o cheiro atrairia o pessoal da imprensa, que viria correndo.

Bem, a verdade é que o Velho Escritor estava mesmo sentindo vontade de vomitar, só de pensar nas tais gatinhas, cabritas e rapazitos...

— Já sei! — disse o diabo, com um brilho diabó­lico no olhar. — Já sei do que você gostaria! Que tal uma porção de feministas, para você lhes ensinar que esse tal de Women's Lib é uma estupidez? Isso mesmo, posso lhe dar quantas feministas você quiser. É só você dizer.

O Velho Escritor franziu a sobrancelha.

—         Não, não quero nada com essa turma, exceto que elas não se atravessem no meu caminho.

O diabo riu alto, mas logo os seus olhos voltaram a adquirir o brilho demoníaco, e ele gritou:

—         Já sei, já sei! Que tal alguns jornalistas, você se divertiria muito com eles. Podia deixá-los escrever uma porção de insultos e depois fazê-los engolir o que es­crevessem. Não acha que tive uma idéia genial? Você se divertir um pouco com esse pessoal que já se divertiu tanto à sua custa? Que tal, hein?

O Velho Escritor abanou de novo a cabeça.

- Não, não quero nada com esses subumanos, considero os jornalistas aprendizes de diabos, bons para serem seus acólitos, ou como você quiser chamá-los. Não quero nada com eles, repito.

O diabo mudou de assento e logo uma fumaça se elevou do seu traseiro. Cruzou as patas e a cauda balan­çou, acompanhando a intensidade dos seus pensamen­tos. De repente, deu um pulo triunfante.

- Já sei! — gritou. — Que tal um belo dum iate, ou, já que você sempre gostou de remar, um belo barco a remo, só para você? Podíamos lhe arrumar uma tripu­lação infernal e você podia se divertir remando nos lagos sulfurosos. Ou então no Mar Vermelho. Está vermelho de tanto sangue humano, sabia? Você vai gostar, sangue quente é uma delícia!

O Velho Escritor olhou para Satã com desdém:

—         Diabo, acho que você está muito por fora. Não entende que, se eu tivesse um barco a remos estaria re­mando contra a maré, porque o sangue do Mar Vermelho não me interessa.

O diabo riu e falou:

—         Você está fazendo uma tempestade num copo d’água. Afinal de contas, você sempre remou contra a maré, já devia estar acostumado. Qual é a SUA, hein?

O Velho Escritor remexeu a areia quente com os pés. Traçou vários desenhos e o diabo guinchou de dor, ao ver vários símbolos religiosos, tais como a Roda Tibetana da Vida, etc. Começou a pular de dor e, por acaso, pisou com uma das patas no símbolo e deu um pulo no ar, desaparecendo, com um silvo, por cima das portas in­candescentes. (Da última vez que o viram, estava voando na direção do Mar Vermelho de sangue humano.)

O Velho Escritor ficou tão espantado, que se sentou de novo no banco, mas se levantou ainda mais depressa, porque o calor transmitido pelo diabo era realmente in­fernal. Sacudiu a túnica chamuscada e decidiu que estava na hora de cair fora, pois aquele não era lugar para ele. E pôs-se novamente a subir, agora muito mais depressa do que antes.

No alto da encosta encontrou um dos guardiães dos poços do inferno, que o cumprimentou afavelmente:

—         Ei, amigo, quase não se vê ninguém subindo, ge­ralmente todo mundo vai em sentido contrário. Você deve ser bom demais para o deixarem entrar.

O homem o reconheceu:

—         Puxa, você não é o tal Rampa que escreve li­vros? Chamei você de amigo, mas você não é nosso amigo, evitou que muita gente má viesse para cá. Ponha-se ao largo, homem, não queremos papo com você.

Mas, antes que o Velho Escritor pudesse prosseguir, o guardião chamou-o:

—         Espere só um minuto, quero lhe mostrar uma coisa. E apontou para um estranho aparelho, perto dele.

—         Olhe só através disto, você vai ter uma visão do inferno. É interessante à beça. Tem uma porção de palissadas. Uma está cheia de editores, outra está cheia de agentes, outra, de jornalistas, e aqui, à esquerda, temos as feministas do Women's Lib. O engraçado é que estão sempre brigando entre si. Mas veja com os seus próprios olhos.

O Velho Escritor aproximou-se, mas logo mudou de idéia, ante o calor infernal que saía do aparelho. Sem dizer palavra, deu meia-volta e continuou a subir a la­deira.

Ao chegar ao alto, viu de novo os Portões Perolados. O Anjo Porteiro estava tratando de trancá-los, pois a noite se aproximava.

—         Que tal, amigo, gostou do inferno? — perguntou ele, acenando.

O Velho Escritor respondeu ao aceno e gritou:

—         Não, achei a atmosfera demasiado infernal.

O Anjo Porteiro retrucou:

—         Pois aqui, na atmosfera celestial, é um bocado chato. A gente tem que estar sempre atento às boas ma­neiras, não podemos dizer nem um palavrãozinho, sob pena de descermos ao inferno e termos que botar a lín­gua num ferro em brasa. Se eu fosse você voltava à Terra e escrevia outro livro.

Foi isso o que o Velho Escritor fez.

Continuou a andar, pensando se não deveria ir vi­sitar a Fonte das Pérolas ou a Estrada de Ouro. Mas, en­quanto pensava, ouviu um barulho, como de vidro se quebrando. Sentiu uma dor súbita e acordou. Uma voz dizia:

—         Vamos, acorde, está na hora da sua injeção.

E, olhando para cima, viu uma horrível agulha pre­parando-se para ser espetada no seu lombo.

O quê? disse a voz. Está de novo escre­vendo sobre a vida depois da morte?

Não respondeu o Velho Escritor estou es­crevendo o finzinho deste livro e estas são as últimas palavras.

 

 

[1]Pogrom: massacre de populações minoritárias indefesas, no caso, populações judias. (N. da T.)

[2] Agora perdoas, agora perdoas: primeiras palavras de um cântico de alegria, que se canta à noite, nas completas. (N. do T.).

 

                                                                                            Lobsang Rampa

 

                      

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