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NAS florestas do Kerjenets encontram-se por toda a parte túmulos solitários onde se desfazem as ossadas dos santos homens da antiga devoção. Eis o que pelas aldeias da região se conta acerca de um deles, Ântipas de nome.
O abastado agricultor Ântipas Lunev, homem de rija têmpera, entregara-se até aos 50 anos a uma vida de pecaminosos lazeres; em seguida fez acto de contrição, amarfanhou-se de tristeza e, abandonando o lar, partiu para a floresta. Chegado lá, construiu uma cela de troncos à beira de escarpada ravina e aí viveu oito anos seguidos, Inverno e Verão, sem admitir a presença de quem quer que fosse, nem mesmo de conhecidos e parentes. Perdendo-se nas matas, houve quem se acercasse involuntariamente da choça e se lhe deparasse Ântipas rezando, ajoelhado na soleira do retiro. O seu aspecto era assustador, ressequido que estava pelos jejuns e pela oração, todo coberto de pêlos como um animal. Ao avistar gente, o homem erguia-se e saudava, em silêncio, curvando-se até ao chão. Se lhe perguntavam como sair da floresta, indicava o caminho com um gesto, sem proferir palavra, e, curvando-se de novo profundamente, ia fechar-se na cela. No decurso desses oito anos foi visto muitas vezes, mas ninguém ouviu jamais o som da sua voz. A mulher e os filhos visitavam-no; aceitava a comida e as roupas que lhe levavam, saudava-os curvando-se até ao chão, como fazia para todos, mas, tal como procedia para com os estranhos, não lhes dirigia uma única palavra.
Faleceu no ano em que destruíram o eremitério e a sua morte decorreu como vamos ver.
Um isfiravnik 1 dirigiu-se para a floresta à frente de um destacamento e foi dar com Ântipas, orando silenciosamente, ajoelhado no interior da choça.
1 Na Rússia dos czares, o ispravnik era o chefe da polícia do distrito.
- Olá!-gritou-lhe o ispravnik.--Sai daí! Viemos deitar abaixo a tua toca 1... - Mas Antipas parecia não o ouvir.
Por mais que o ispravnik o interpelasse, o santo homem não respondia. O polícia ordenou que o arrastassem para fora. Mas os seus subordinados, vendo que o ancião, sem notar a presença deles, continuava a rezar com infatigável fervor, perturbaram-se com a firmeza daquele carácter e não obedeceram ao chefe. O ispravnik mandou-os, então, demolir a cela, e, receosos de ferir o eremita, absorto nas orações, os homens começaram a desmontar o telhado com mil precauções.
As machadadas sucediam-se por cima da cabeça de Antipas, os troncos davam grandes estalidos ao cair, as pancadas dos machados ressoavam pelos arvoredos, os pássaros, assustados, esvoaçavam em redor da cabana, a folhagem estremecia. E o velho rezava como se nada visse ou ouvisse... Os últimos troncos começaram a ruir, mas o eremita permanecia ajoelhado, estático. Só quando tudo ficou disperso e o ispravnik se acercou, por seu turno, para o agarrar pelos cabelos, é queAntipas, erguendo o olhar ao céu, disse baixinho para o seu Senhor:
- Deus de misericórdia, perdoai-lhes! E caiu para o lado, morto.
Por este tempo, Tiago, filho mais velho de Antipas, tinha 23 anos e seu irmão mais novo, Terêncio, andava pelos
18. Hercúleo e bem parecido. Tiago fora alcunhado, desde tenra idade, de Não-Te-Rales, e quando o pai se finou era o maior estúrdio, o mais justificado motivo de escândalo do distrito. Todos se queixavam dele: sua mãe, o staroste1 e os vizinhos; era arrastado para o calabouço, vergastado, castigado às vezes sem julgamento, mas nada o levava a tornar-se mais assisado, sendo-lhe cada vez mais custoso viver na aldeia juntamente com os homens das velhas crenças, pessoas parcimoniosas como as toupeiras, hostis a toda e qualquer inovação e respeitadoras obstinadas dos
1 Staroste, originariamente decano, chefe da aldeia. Era, na Rússia czarista, o chefe da administração do mir, ou freguesia rural.
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preceitos do culto antigo. Tiago fumava, bebia vodka, vestia-se à alemã, não assistia aos ofícios divinos, não se submetia aos ritos, e, quando a gente decente o exortava e lhe recordava o exemplo do pai, replicava, em tom de mofa:
- Não se impacientem, boas gentes, há tempo para tudo. Deixem-me pecar à vontade e lá virá o dia em que me arrependerei também! Mas por enquanto é cedo de mais. Cessem de pregar, apontando-me meu pai como exemplo, pois ele pecou durante uns cinquenta anos bem puxados e só viveu oito em estado de arrependimento!... Para mim, o pecado é como a penugem dos passaritos; quando se tornar como as penas dos corvos, será altura de me arrepender...
- É um herético! - dizia-se de Tiago Lunev; era detestado e temido. Cerca de dois anos após a morte do pai, Tiago casou-se. Malbaratara irremediavelmente, com a vida de deboche, tudo quanto o pai amealhara em trinta anos de labor e não havia em toda a aldeia quem lhe quisesse dar filha em casamento. Foi, pois, a uma terreola perdida buscar uma órfã de grande beleza e para poder celebrar os esponsais teve de vender o colmeal paterno. Seu irmão Terêncio, corcunda de grandes mãos, tímido e calado, não lhe tolhia os movimentos; sua mãe, que a doença acorrentava à lareira, clamava com voz rouca e sinistra:
--Maldito!... Amerceia-te da tua alma!... Entra em ti!
- Não se aflija, mãezinha!-respondia Tiago. - Meu pai intercederá por mim junto de Deus...
A princípio, durante cerca de um ano, Tiago viveu sossegada e pacificamente junto da mulher; até começou a trabalhar; mas depois voltou à estroinice, sumindo-se durante meses a fio e regressando a casa espancado, roto, cheio de fome... Sua mãe morreu; no repasto do funeral, Tiago toldou-se de álcool e feriu gravemente o staroste, velho inimigo seu, sendo por tal enviado para uma companhia disciplinar. Cumprido o castigo, reapareceu, de cabelo rapado à navalha, olhar sombrio, maldoso. A aldeia odiava-o cada vez mais e esse ódio passou a englobar igualmente a família, em especial Terêncio, o inofensivo corcunda. Este último fora, desde a infância, alvo das troças de rapazes e raparigas. Tiago era tratado de condenado e bandido;
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seu irmão, de mostrengo e bruxo. Terêncio calava-se perante as injúrias e as mofas, mas Tiago ameaçava abertamente toda a gente:
- Deixem estar! Esperem!... Um dia hão-de ver o que lhes faço!...
Tinha ele perto de 40 anos quando um incêndio deflagrou na aldeia; foi acusado de fogo posto e deportado para a Sibéria.
A mulher de Tiago, que perdera o juízo por ocasião do incêndio, e seu filho Ilia, rapazito de olhos negros, dos seus 10 anos, vigoroso e grave, ficaram a cargo de Terêncio. Quando a criança aparecia na rua, os garotos perseguiam-na, lançando-lhe pedras, e os adultos diziam ao vê-la:
- Fora! Demòniozinho, raça de condenado!... Não haver um raio que os leve a todos!...
Inapto para o trabalho, Terêncio mercava, antes do incêndio, pez, agulhas e linhas e outras coisas de pouco valor. Mas o fogo, que assolou meia aldeia, destruiu a isbá dos Lunev, bem como toda a mercadoria do corcunda, de tal sorte que os únicos bens que lhes restaram foram um cavalo e quarenta e três rublos. Vendo que não tinha meios, nem possibilidade de viver na aldeia, Terêncio confiou a mulher do irmão, a troco de cinquenta copeques por mês, à guarda de uma aldeã pobre, comprou uma velha telega e, fazendo subir para ela o sobrinho, partiu para a capital do distrito, onde tinha esperança de obter auxílio de Petrukha Filimonov, parente afastado dos Lunev e dono de um botequim.
Terêncio abandonou a aldeia natal pela calada da noite, como um ladrão. Conduzindo o cavalo, voltava incessantemente para trás os grandes olhos, que lembravam os de um vitelo. O cavalo ia a passo, a telega seguia aos solavancos e Ilia, aconchegado no feno, deixou-se em breve arrastar pelo pesado sono da infância...
Foi despertado, a altas horas, por um ruído estranho e angustiante, como o uivar de um lobo. Estava uma noite clara; o carro estacionava na orla da floresta e, ao lado, o cavalo resfolegava e pastava a erva coberta de orvalho. Um alto pinheiro perfilava-se ao longe, nos campos, posto ali, solitário, como se tivesse sido desterrado das matas. O olhar penetrante do rapazinho procurava o tio com inquietação;
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no silêncio da noite distinguiam-se nitidamente as patadas surdas e espaçadas do cavalo ali preso, o seu resfolegar assemelhando-se a longos suspiros, e aquele som incompreensível e trémulo, pairando tristemente, que apavorava Ilia.
- Tiozinho! -- chamou o pequeno em voz baixa.
- Hem?-soltou logo Terêncio, e o lamento cessou repentinamente.
- Onde estás?
--Aqui... Dorme, anda...
Ilia descortinou o tio, sombra negra lembrando um tronco dobrado, sentado numa saliência do terreno, junto às primeiras árvores do bosque.
- Tive medo - disse a criança.
- Medo porquê?... Estamos sozinhos...
- Há alguém a gemer...
- Sonhaste...
- Não, tio, gemeram...
- Pois bem, era um lobo a uivar... Já vai longe... Dorme...
Mas Ilia não conseguia adormecer. O silêncio era sinistro e o som lamentoso ecoava ainda nos seus ouvidos. Examinou atentamente o lugar onde se encontravam e reparou que o tio estava voltado para o lado onde se erguia uma igreja branca, com cinco bolbos, recortando-se na montanha, lá longe, em plena floresta, por cima da qual resplandecia uma grande lua redonda. Ilia reconheceu a igreja de Romodanovo. A duas verstas dali, no seio dos bosques, debruçada sobre a ravina, ficava a aldeia deles, Kitejnaia.
- Não avançámos muito - murmurou pensativo.
- Quê ? - perguntou o tio.
- Estou a dizer que devíamos continuar... Ainda chega alguém de lá...
E Ilia indicou a aldeia com um movimento hostil de cabeça.
- Vamo-nos já embora, sossega!-afirmou Terêncio. O silêncio reinou de novo. Apoiando os cotovelos na
parte da frente da telega, o rapazito pôs-se a olhar na mesma direcção que o tio. A aldeia escondia-se no denso negrume
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da floresta, mas ele tinha a impressão de que a estava a ver, com todas as isbás e todos os habitantes e com o velho salgueiro junto ao poço, no meio da rua. Seu pai jazia ao pé da árvore, preso por uma corda, com a camisa toda rasgada; tinha os braços atados atrás das costas, o peito nu lançava-se para a frente e a cabeça parecia ter crescido no próprio tronco da árvore. Estava imóvel, como se estivesse morto, e fitava os mujiques; o seu olhar apavorava. Os homens eram muitos, vociferavam e praguejavam. Esta recordação encheu o rapaz de tristeza e fê-lo sentir uma espécie de formigueiro na garganta. Estava prestes a debulhar-se em lágrimas, mas, não querendo preocupar o tio, reteve-se e encolheu mais ainda o corpito delgado...
De súbito, o rouco lamento fez-se ouvir novamente. Começava por um suspiro doloroso, um soluço que a breve trecho se transformava num gemido dolente e intolerável.
- 0-o-u... o-oh!
O rapaz estremeceu de medo e petrificou-se. E o som tremia e crescia sempre.
- Tiozinho! És tu que estás a gritar? - exclamou Ilia. Terêncio não respondeu, nem fez o mínimo gesto. Então
o pequeno, saltando da telega abaixo, correu para o tio, lançou-se-lhe aos pés e, abraçando-se às pernas do corcunda, pôs-se também a soluçar. Por entre os seus choros, ouvia a voz do tio:
- Escorraçaram-nos... Senhor, meu Deu-eus! Para onde iremos nós... hem?
E o garoto dizia, com a voz entrecortada pelos soluços:
- Deixa estar, quando eu for homem, eles hão-de ver o que eu faço!...
Farto de tanto chorar, deixou-se dormir. O tio pegou-lhe ao colo e foi deitá-lo na telega, afastando-se de novo e recomeçando a gemer daquele modo arrastado e lamentoso que lembrava o ganir de um cachorrinho...
Ilia nunca mais esqueceu a bua chegada à cidade. Despertou de manhãzinha e viu à sua frente uma ribeira larga e turva, do outro lado da qual se erguia, sobre alta colina, um amontoado de casas, telhados vermelhos e verdes e
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frondosos jardins. As construções escalavam o monte em massa compacta mas harmoniosa, mas lá no alto da crista formavam uma linha regular, mirando sobranceiras para além da ribeira. As cruzes e os bolbos dourados das igrejas desenhavam-se no céu bem acima dos telhados. O Sol acabava de nascer; os raios oblíquos reflectiam-se nas vidraças das casas e toda a cidade era um incêndio de cores, resplandecia de fulgores de ouro.
- Imagine-se!-exclamou o rapazinho, abrindo inuito os olhos perante aquele quadro feérico, e ficou enlevado num encantamento sem palavras. Depois o seu espírito foi assaltado por grande preocupação: onde poderia ele, pobre rapaz sem saber, vestido de roupa grosseira e acompanhado por um tio corcunda e desajeitado, encontrar, ali, sítio para viver? Deixá-los-iam entrar naquela cidade imensa, rica e asseada, resplandecente de ouro? Eis a razão, pensou, por que a telega parara na margem: não admitiam os pobres na cidade. Seu tio tinha ido, decerto, rogar que os deixassem entrar.
Apreensivo, Ilia procurou o tio com o olhar. Em volta da telega deles havia muitas outras carroças; algumas transbordavam de caixotes para transporte de leite, outras de cestas com galinhas e diversas aves de capoeira, de pepinos, cebolas, cabazes de fruta, sacas de batata. Em cima das carroças, ou ao lado delas, em pé ou sentados, viam-se camponeses e camponesas de aspecto estranhíssimo. Falavam alto, articulando muito bem, e vestiam-se não de espesso pano azul, mas sim de chita multicor ou de algodão vermelho-vivo. Quase todos calçavam botas; um homem de sabre à cinta andava por ali a guardá-los, mas, em vez de o recearem, os camponeses nem sequer lhe davam as saudações. Esta atitude agradava muito a Ilia. Sentado na telega, percorria com os olhos aquele quadro vivo inundado de sol e sonhava com um futuro em que ele também usaria botas e uma camisa de algodão encarnado.
Num ponto afastado, por entre a multidão dos camponeses, surgiu o tio Terêncio. Avançava de cabeça erguida, enterrando profundamente os pés na areia grossa; de rosto alegre, sorriu de longe para Ilia, erguendo um braço para lhe mostrar qualquer coisa.
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- Deus está connosco, Ilia! Encontrei logo o tio... Toma, vai mastigando isto, entretanto!...
E deu um grande bolo seco ao rapaz. Ilia segurou-lhe com uma espécie de veneração, enfiou-o pela abertura da camisa e perguntou, inquieto:
- Não nos deixam entrar na cidade?
- Deixam, sim, vamos já... Assim que chegar o barco, parte-se.
- Nós também?
- Pois então! Nós também!
- Oh! E eu que cuidava que não nos deixariam entrar... E lá na cidade, onde é que vamos morar?
- Isso não se sabe...
- Poderíamos ir para aquela grande casa, acolá, a vermelha...
- É um quartel!... São os soldados que lá vivem...
- Para aquela, então... Olha, para aquela, ali!
- Eh, eh! É alto de mais para nós!
- Não faz mal nenhum! -soltou Ilia, muito seguro de si-, treparemos bem!...
- Ai Deus!-suspirou o tio Terêncio, desaparecendo outra vez.
Foi nas circunvizinhanças da cidade, numa enorme casa cinzenta, situada junto à praça da feira, que eles acabaram por ir morar. O edifício era rodeado, por todos os lados, de construções anexas posteriores, umas mais novas, outras do mesmo cinzento-sujo que a parte central. As portas e as janelas eram todas de esguelha e nada havia que não rangesse. Anexos, paliçada, portão constituíam um conjunto informe de madeira podre. As vidraças das janelas estavam escurecidas pelo tempo, traves emergiam da fachada, o que dava à casa aspecto igual ao do seu proprietário, a quem pertencia igualmente a taberna. Também ele era velho e sem cor, e os olhos assemelhavam-se, no rosto decrépito, às vidraças das janelas. Para andar apoiava-se num grosso cajado, talvez porque lhe custasse aguentar com a barriga proeminente.
Durante os primeiros dias que viveu naquela morada, Ilia esgueirava-se por toda a parte, espreitava tudo. Ficava espantado por ver quanto cabia dentro daquelas paredes.
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A casa estava a tal ponto sobrepovoada que lhe parecia conter mais gente do que toda a aldeia de Kitejnaia. A taberna, sempre à cunha, ocupava o rés-do-chão e o primeiro andar. Nas águas-furtadas moravam umas mulheres sempre bêbedas; uma delas, conhecida por Matitsa (a Viga), mulheraça de pele escura e voz cavernosa, olhava de um modo turvo e colérico, que assustava o rapazito. Na cave viviam o sapateiro Perfichka, com sua mulher doente e inválida e uma filhita de 7 anos, o avô Jeremias, trapeiro de seu ofício, uma velha misérrima, magra e esganifrada a quem chamavam Polorotaia (a Desdentada) e o cocheiro Makar Stepanytch, homem de certa idade, calmo e taciturno. A um canto do pátio havia uma forja; de manhã à noite via-se aí o fogo crepitar, para temperar aros de rodas e ferrar cavalos; as marteladas ressoavam e o ferreiro Sável, homenzarrão musculoso, não parava de cantar em voz forte e rude. Às vezes, entrevia-se na forja a mulher de Sável, ruiva de pequena estatura, mas de formas arredondadas e com olhos azuis. Tinha sempre a cabeça coberta com um lenço branco, e era bizarro ver aquela cabeça branca na bocarra negra da forja. A mulher tinha um riso argentino e Sável servia-lhe de eco com a sua voz pesada, que lembrava o som cavo do martelo. No entanto, era mais frequente o ferreiro responder com grunhidos ao riso da consorte.
Surgia gente de cada frincha da casa e, de manhã à noite, todo o edifício estremecia com os gritos e ruídos que se ouviam, semelhante a um velho panelão assobiando e fervendo. À noite, cada qual saía da sua toca para ir para o pátio ou sentar-se no banco da entrada; o sapateiro Perfichka tocava harmónio, Sável berrava canções e Matitsa, se tivesse bebido, entoava qualquer canto estranho e muito triste, cujas palavras ninguém percebia; cantava chorando amargamente.
Noutro canto do pátio, a garotada da casa reunia-se junto do avô Jeremias; as crianças formavam um círculo à volta dele e pediam-lhe:
- Avô, conta uma história!...
O avô fitava-os um por um, com os seus olhos vermelhos e inflamados, dos quais lágrimas turvas escorriam sem parar, descendo-lhe pelo rosto enrugado, e, enterrando melhor
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na cabeça o velho boné desbotado, começava em voz arrastada, apagada e trémula:
- "Era uma vez um reino, certo Estado onde pais desconhecidos, que Nosso Senhor que tudo vê queria assim castigar pelos seus pecados, tinham posto neste mundo um filho pedreiro-livre e herético..."
A longa barba grisalha do avô Jeremias estremecia fortemente e ficava tremendo quando ele abria a boca negra e desdentada; a cabeça também tremia e, entretanto, uma a uma, as lágrimas continuavam a escorrer pelas rugas muito fundas da sua face.
- "E esse filho herético era um desavergonhado. Em Jesus Cristo não cria, não amava a mãe de Deus, passava em frente da igreja sem se persignar, não respeitava pai nem mãe..."
As crianças escutavam a voz débil do velho e fitavam-no em silêncio.
O mais atento de todos era Tiago, o ruivo, filho do botequineiro Petrukha, rapazito magro de nariz adunco, cabeçudo e de pescoço demasiado delgado. Quando corria, a cabeça balouçava-lhe tanto de um lado para o outro que dir-se-ia estar prestes a desprender-se e rebolar pelo chão. Tinha uns grandes olhos preocupados, que mal afloravam tudo quanto viam, como se receassem pousar-se verdadeiramente nalguém ou em qualquer coisa; porém, ao fitarem realmente um ponto tornavam-se estranhamente proeminentes, o que dava ao rapaz uma expressão de cordeiro. Diferenciava-se muito das outras crianças pelo rosto estreito e pálido, pelo vestuário asseado e de boa qualidade. Ilia sentiu-se logo atraído por ele; mal se tinham conhecido, Tiago perguntou com ar de mistério ao novo camarada:
- Na tua aldeia havia muitos bruxos?
- Havia, sim - respondeu Ilia. - O nosso vizinho era um deles.
- Tinha o cabelo ruivo? - interrogou Tiago num murmúrio.
?-Grisalho... São todos assim...
- Grisalho está bem... Os grisalhos são bons... Mas os ruivos, nem queiras saber! Sugam o sangue...
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Estavam sentados no melhor, no mais confortável canto do pátio, por trás de um montão de lixo, sob um sabugueiro que ali havia crescido, junto a uma velha tília. Para lá chegar havia que esgueirar-se por um estreito vão entre o telheiro e a parede do edifício; a calma reinava naquele lugar e, salvo uma nesga de céu, imediatamente por cima das cabeças, a parede da casa com três janelas, duas das quais entaipadas, nada se podia avistar dali. Na folhagem da tília piavam os pardais e, sentados no chão, ao pé da árvore, os pequenos conversavam em voz baixa acerca de tudo quanto os preocupava.
Dias a fio, algo de imenso e multicor agitou-se aos olhos de Ilia, por entre gritos e rumores, cegando-o, ensurdecendo-o. A princípio sentia-se desamparado, entontecido pela balbúrdia daquela vida. No botequim, encostado à mesa em cima da qual o tio Terêncio, transpirando abundantemente e todo encharcado, lavava a louça, Ilia observava as pessoas que vinham beber, comer, dar berros, abraçar-se, bater-se, cantar. Toda aquela gente se afadigava numa semiloucura, por entre nuvens de fumo pairando em volta.
- Ai, ai! -dizia-lhe o tio, sacudindo a marreca e sem cessar de fazer tinir os copos-, que estás tu aí a fazer? Vai para o pátio! Senão o patrão dá por ti e põe-se aos gritos!...
"Oh, imagine-se!" A expressão predilecta de Ilia vinha-Ihe à mente, e, aturdido com o movimento ruidoso da taberna, o rapaz corria para o pátio. Ali, era Sável que martelava e descompunha o aprendiz; a canção do sapateiro Perfichka irrompia da cave e explodia alegremente; lá de cima, era a ladainha e as blasfémias das mulheres embriagadas. Paulo, o filho de Sável, galopava a cavalo num pau e gritava em voz raivosa:
- Ó cavalo de um raio!
A sua carantona redonda e desafiadora andava sempre mal lavada e coberta de fuligem; tinha um galo na testa; pelos inúmeros rasgões da camisa esfarrapada entrevia-se o corpo vigoroso. Era o maior descarado, o desordeiro número um do pátio; já conseguira espancar, por duas vezes, o atado do Ilia, e quando este último, desfeito em lágrimas,
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se foi queixar ao tio, Terêncio contentou-se com abrir os braços, dizendo:
- E então, que queres tu? Tem paciência!...
- vou ter com ele e dou-lhe uma destas trepas! ameaçou Ilia por entre lágrimas.
- Nem penses numa coisa dessas! - exclamou o tio em voz grave. - Não faltava mais nada!...
- E então ele?
- Oh, ele... É de cá, está na sua terra... Tu és um estranho...
Ilia continuou a ameaçar Paulo, mas o tio ficou furioso e angou-se com ele, o que sucedia raramente. E Ilia percebeu, confusamente, que lhe era impossível tratar em pé de igualdade com as crianças "de cá". E então, dominando a hostilidade que sentia por Paulo, aproximou-se mais ainda de Tiago.
Tiago era um rapaz ponderado: nunca se batia e raramente gritava. Quase nunca brincava, mas gostava de falar dos jogos a que se entregavam as crianças nos pátios dos ricos e no jardim municipal. Salvo Ilia, Tiago só se ligara de amizade com Macha, a filha do sapateiro, garota de 7 anos, muito delgadita e suja, com um rosto miúdo escondido pelos caracóis castanhos. A mãe dela também estava sempre sentada à porta da cave. Era uma mulher esgalgada e usava uma trança muito comprida que lhe descia pelas costas abaixo; cosia sem parar, muito inclinada sobre a costura, e, quando erguia a cabeça para olhar para a filha, Ilia via-lhe o rosto. Era inexpressivo, azulado e imóvel como o de uma morta, e os belos olhos negros desse rosto sem graça também se mantinham parados. Nunca falava com pessoa alguma, servindo-se até de gestos para chamar a filha e só às vezes, de longe em longe, soltava, numa voz rouca e gritante:
- Macha!
Nos primeiros tempos, Ilia simpatizava com ela, mas quando veio a saber que há três anos não andava e que morreria em breve, começou a receá-la.
Certa vez que Ilia passava junto dela, a mulher estendeu um braço, apanhou-o pela camisa e puxou a si o rapaz, morto de susto.
- Peço-te -disse-, não sejas mau para a Macha!
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Custava-lhe a falar, ofegava.
- Não sejas mau para ela, meu filho!...
E, lançando a Ilia um olhar dorido, soltou-o. A partir desse dia, Ilia e Tiago dispensaram à filha do sapateiro os maiores cuidados, esforçando-se por que estivesse ao abrigo das várias contrariedades da vida. Não podiam deixar de atribuir importância ao pedido da mulher, porquanto, de um modo geral, os adultos só batiam nas crianças ou lhes davam ordens. O cocheiro Makar dava pontapés e fustigava os garotos com a rodilha molhada, caso se aproximassem dele quando lavava o trem. Sável enfurecia-se com todos os que iam espreitar para dentro da forja em altura inoportuna e lançava as sacas de carvão vazias à cabeça das crianças. Perfichka arremessava o que tivesse à mão aos que paravam em frente da sua janela, roubando-lhe a luz do dia... Por vezes espancavam-se as crianças sem motivo, por desfastio, à laia de brincadeira. O avô Jeremias era o únioo que lhes não batia.
Ilia chegou em breve à conclusão de que era muito mais agradável viver no campo do que na cidade. Na aldeia podia-se vaguear por onde nos apetecesse, enquanto que na cidade o tio proibia de ir para o pátio. No campo havia mais espaço, mais calma, todos faziam as mesmas coisas compreensíveis, ao passo que nesta terra cada um fazia o que queria e eram todos pobres, viviam todos do pão dos outros, sem nunca terem o bastante.
Um dia, ao jantar, o tio Terêncio queixou-se ao sobrinho, suspirando profundamente:
?- O Outono está a chegar, Ilia... Vamo-nos ver aqui entaipados!... Ai, Deus meu!...
E ficou cogitando, o olhar desanimado preso à malga de couves. A criança também se pôs a meditar. Estavam sentados, para jantar, à mesa onde, de costume, o corcunda lavava a louça.
- O Petrukha diz que é preciso mandar-te para a escola com o Tiago. Temos de o fazer, bem sei... Sem instrução, aqui, é o mesmo que ser cego!... Mas o pior é que precisas de roupa, calçado, para ires à escola!... Oh, Senhor! Só Tu nos podes dar auxílio!...
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Escutando os suspiros do tio, vendo a tristeza que o seu rosto reflectia, Ilia sentiu um aperto no coração; propôs em voz baixa:
- Vamo-nos embora!...
- Para onde?-perguntou o corcunda num tom arrastado e abatido.
- Para a floresta! - retorquiu Ilia, tomado subitamente de grande animação. - Não costumas dizer que o meu avô viveu muitos anos sozinho na floresta? E nós somos dois! Apanharíamos lenha... Caçaríamos raposas, esquilos... Tu levarias uma espingarda e eu redes!... Apanharia pássaros, palavra de honra! Há bagas, cogumelos... Vamos!
O tio envolveu-o num olhar enternecido e perguntou, sorrindo:
- E os lobos? E os ursos?
- Para que serve a espingarda?-exclamou Ilia com ardor. - É assim mesmo, quando eu for grande, não terei medo dos animais ferozes! Hei-de estrangulá-los com as mãos!... E, até agora, não tenho medo de ninguém! A vida na cidade é dura. Sou pequeno, mas bem vejo. Aqui, batem com mais força do que na aldeia! Quando o ferreiro nos dá uma pancada na cabeça, parece que fica uma coisa a tinir cá dentro durante todo o dia!...
- Ai, ai, meu òrfãozinho do Senhor! - gemeu Terêncio, e, lançando a colher longe de si, saiu correndo.
Nesse mesmo dia, à noitinha, cansado de vaguear pelo pátio, Ilia estava sentado no chão, perto da mesa do tio, e numa sonolência escutava a conversa de Terêncio com o avô Jeremias, que viera tomar o seu chá. O trapeiro tornara-se amigo do corcunda e, para beber o chá, sentava-se sempre perto da mesa de Terêncio.
- Não faz mal! - assegurava a voz roufenha de Jeremias.- A única coisa que é preciso reconhecer é Deus! Tu és como se fosses o seu servo, isso mesmo, o seu escravo! Deus vê a tua vida. O teu dia chegará e ele dirá então ao anjo: Vai, meu celeste servidor, vai tornar mais leve a vida de Terêncio, meu escravo terreno..."
-Eu, avô, confio em Deus; que mais poderei fazer? murmurava Terêncio.
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Num tom que lembrava o do botequineiro Petrukha, quando se zangava, o avô declarou:
- Dar-te-ei o preciso para o Ilia se vestir e poder ir à escola!... Juntarei o suficiente para isso... É um empréstimo. Quando fores rico, pagas-me...
-- Avô! - exultou, baixinho, Terêncio.
?- Bem, cala-te! E entretanto dá-me o garoto; ele anda por aí sem saber que fazer!... Ajudar-me-á, serão os meus juros... Apanhar-me-á os trapos, tirará os ossos do lixo... Eu estou velho, já não posso baixar-me...
- Ai, avô... Deus te pagará - exclamou o corcunda em voz aguda.
- Deus dá-me a mim, eu a ti, tu a ele e ele novamente a Deus, e assim fecha-se o círculo... E ninguém deve nada a ninguém... Meu amigo! Ai, meu caro! Tenho vivido, vivido, espreitado por toda a parte, por toda a parte, e, salvo Deus, nada vi. Sempre Ele, tudo Lhe pertence, tudo vem dEle e para Ele vai!...
Foi ao som destas palavras que Ilia adormeceu. No dia seguinte, de manhã muito cedo, o avô Jeremias veio despertá-lo alegremente:
- Vamos passear, meu Iliazinho, vamos e toca a saltar!
Uma vida agradável começou então para Ilia, guiado pela mão indulgente do trapeiro Jeremias. Mal despontava o dia, o avô ia acordar o rapazito e partiam ambos pela cidade fora até à noitinha, colhendo trapos, ossos, pedaços de papel, ferros velhos, bocados de coiro. Muito grande era a cidade e continha tantas coisas curiosas que Ilia, nos primeiros dias, mal ajudava o avô, enleado com o espectáculo das gentes, das casas, espantando-se e querendo saber de tudo... Jeremias era conversador. De cabeça inclinada, os olhos postos no chão, ia de pátio em pátio batendo no solo com o varapau ferrado, limpando as lágrimas com a manga esfarrapada ou com a ponta de um saco sujo e, sem parar, contava ao ajudante, na sua voz cantante e monótona:
- E esta é a casa de Ptcheline, o mercador, Sawa Pétrovitch. Como ele é rico, o mercador Ptcheline!...
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- Avô - perguntava Ilia -, como se faz para vir a ser-se rico?
- É preciso trabalhar muito, muito... Trabalhar dia e noite e amealhar sempre dinheiro. Quando já se tem bastante, manda-se construir uma casa, compram-se cavalos, baixela de toda a espécie, e assim seguidamente. É tudo novo! Contratam-se contramestres, porteiros, um sem-fim de pessoas, que são obrigadas a trabalhar enquanto o amo descansa, vive. E então diz-se: aquele homem enriqueceu trabalhando honradamente... pois!... Porque há os que enriquecem pecando. Do mercador Ptcheline diz-se que comeLeu um assassínio quando era novo. Talvez se diga isso por inveja, mas também é possível que seja a verdade. Ptcheline é mau, tem olhos amedrontados... O olhar fugidio esconde qualquer coisa... Aliás, quem sabe se o que contam de Ptcheline não é mentira... Sucede um homem tornar-se rico num abrir e fechar de olhos... Coisas do acaso... A sorte que lhe sorriu... Só Deus sabe a verdade, e nós, pobres mortais, ignoramos tudo! Somos homens e os homens são a semente de Deus... Os homens são a semente, a alma! O Senhor lançou-nos à terra: crescei!, disse, eu verei o que produzireis... É assim mesmo! E ali, olha, é a casa do Sabaneiev, Dimitri Pavlytch... É ainda mais rico do que Ptcheline. E esse, sei eu, é um verdadeiro canalha... Não me compete a mim julgá-lo, isso é com Deus, mas sei de quem se trata... Foi regedor da minha aldeia e atraiçoou os seus conterrâneos, roubou-nos!... Deus foi-o suportando pacientemente, durante muito tempo, depois começou a ajustar-lhe as contas. Para começar, Mitri Pavlov ficou surdo, depois o filho foi morto por um cavalo... Ainda há pouco, a filha fugiu-lhe de, casa...
Ilia escutava atentamente, observava as grandes moradias e às vezes dizia:
- Oh!, se eu pudesse ver estas casas lá por dentro!...
- Lá chegará o dia! Vai estudando, quando fores crescido, verás tudo! Até pode ser que te tornes rico, por teu turno... Aprende a viver... Santo Deus! Vivi tanto, vi tanto, que já tenho os olhos gastos... Estás a ver como choram, como eles choram?... Isto é que me fez ficar magro, mirrado... Estas lágrimas todas secaram-me!...
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Ilia gostava de ouvir o velhote falar de Deus com fé e amor e essas palavras de ternura faziam brotar no coração da criança a esperança, arreigada e intensa, de que um futuro melhor a esperava. Tornou-se assim mais alegre, mais descuidado do que nos primeiros tempos passados na cidade.
Cheio de afã, ajudava o ancião a revolver os lixos. Era apaixonante esquadrinhar os montões de velharias e mais agradável ainda verificar a alegria do velho trapeiro quando entre a imundície se descobria alguma coisa fora do vulgar. Um dia, Ilia deu com uma grande colher de prata e, por essa ocasião, o avô comprou-lhe ineia libra de pão de centeio com mel e especiarias e um gostinho de hortelã-pimenta. Outra vez, o pequeno desenterrou uma bolsinha bolorenta que continha mais de um rublo. Às vezes deparavam-se-lhes facas, garfos, parafusos, objectos de cobre quebrados, e na vala onde se lançavam os detritos da cidade Ilia encontrou um pesado candelabro de cobre. Sempre que se dava um destes preciosos achados, o avô comprava guloseimas ao Ilia.
Perante estas descobertas excepcionais, Ilia soltava alegres exclamações:
- Olha, avô! Imagine-se!
E o trapeiro, lançando à sua volta olhares receosos, apressava-se a fazê-lo discorrer:
- Não grites dessa maneira! Pára lá de gritar!... Ai, meu Deus!...
Ficava sempre assustado quando encontravam um objecto raro e arrancava-o logo das mãos do garoto para o esconder no fundo do seu grande saco.
- Cala-te! Aprende a calar-te - dizia o velho com bondade, enquanto as lágrimas continuavam a escorrer dos seus olhos vermelhos.
Ofereceu a Ilia um saquito e um pau com ponteira de ferro, que envaideceram o rapaz; no saco guardava toda a espécie de latas, brinquedos estropiados, pequenos cacos de garrafa, e agradava-lhe sentir tudo aquilo balançar-lhe nas costas, gostava daquele tilintar. O avô Jeremias ensinara-lhe o ofício.
- Apanha todas essas coisas e leva-as para casa. Ao chegares, distribui-las-ás pelas crianças, vão ficar contentes.
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Devemos dar prazer aos outros, o Senhor gosta... Todos os homens desejam um pouco de alegria e há tão pouca, tão pouca, nesta terra! Há quem chegue ao fim da vida sem jamais, jamais, ter encontrado um pedacito dela!...
Ilia preferia ir aos vazadouros da cidade do que andar de pátio em pátio. Nas montureiras não havia gente, a não ser dois ou três velhos semelhantes a Jeremias; era escusado estar sempre alerta, olhando para todos os lados, não fosse surgir algum porteiro de vassoura em punho que os insultasse rudemente, quiçá os desancasse e os escorraçasse do pátio.
Todos os dias, após umas duas horas passadas a revolver os lixos das montureiras, Jeremias voltava-se para o rapazinho e dizia-lhe:
- Já chega, Ilia! Vamos descansar e dar ao dente!
Desapertava a camisa para tirar lá de dentro um pedaço de pão, que partia em dois, persignando-se, e punham-se a comer; em seguida descansavam durante uma meia hora, estiraçados à beira da ravina que se espraiava em declive até alcançar a ribeira que, lá de cima, podiam facilmente avistar. Larga, de um azul prateado, a ribeira deixava calmamente correr as suas águas ao longo do valado, e, ao contemplá-la, Ilia sentia vontade de nela ir nadar. Na outra margem estendiam-se prados onde as medas de feno formavam torres descoloridas e, ao longe, lá onde acabava a terra, o paredão sombrio e recortado da floresta entrava pelo céu azul dentro. Nos prados reinava a calma e a suavidade e percebia-se que o ar aí devia ser puro, transparente e imbuído de agradáveis odores... Enquanto ali, no monturo, o relento das imundícies em decomposição atabafava; o mau cheiro embaraçava a garganta, dava picadas no nariz, e, tal como o avô, Ilia tinha os olhos a chorar.
Deitado de costas, o garoto fitava o firmamento e não encontrava limites àquela profundidade. Assaltavam-no pensamentos tristes e imprecisos, a sua imaginação criava imagens confusas. Parecia-lhe que no céu, imperceptível aos seus olhos, planava um ser imenso e de uma claridade transparente, que o aquecia suavemente, e que ele, pobre rapazinho, se elevava com o avô e a Terra em peso, na direcção desse ser bom e severo, por ali acima, através dessas alturas infinitas, daquele dardejar de raios azuis, por entre a pureza e
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a luz... E a criança sentia, com delícias, o seu coração desfalecer.
Ao cair da noite, Ilia chegava ao pátio com o ar de importância de alguém que tivesse trabalhado duramente e quisesse descansar e que, muito ao contrário dos outros rapazes e rapariguinhas, não tivesse tempo de sobra para consagrar a futilidades. O seu porte austero e o saco sempre cheio de coisas interessantes infundiam respeito ao rapazio...
Sorrindo aos gaiatos, o avô gracejava:
- Vivam os diabinhos, que andaram o santo dia fugidos . pela cidade fazendo partidas por toda a parte!... Ilia, vai
lavar-me essa cara e vem à taberna tomar o chá!
Ilia descia à cave gingando e as outras crianças seguiam?no em bando, tacteando com mil cuidados o conteúdo do saco. Então, Paulo impedia, com afoitamente, a passagem de Ilia e gritava:
- Olá, seu trapeiro! Mostra cá o que trazes...
- Terás de esperar! - retorquia Ilia com rudeza. - vou tomar chá, depois verás...
No estabelecimento, o tio acolhia-o prazenteiro:
- Ora aqui está o trabalhador! Vens muito cansado, meu pobre amigo!
Agradava a Ilia ser tratado por trabalhador, e não somente pelo tio. Um dia, Paulo fez das suas; Sável deitou-lhe a mão, entalou a cabeça do filho entre os joelhos e açoitou-o com uma corda, enquanto ia ralhando:
?- Deixa de fazer banzé, patife, deixa de fazer banzé! Toma, toma! com a tua idade, os outros andam a ganhar a vida e tu só serves para te empanturrares e dares cabo da roupa!...
Os berros de Paulo ressoavam por todo o pátio; escoiceava, mas a corda continuava a zurzir-lhe as costas. Ilia escutava com esquisito prazer o inimigo gritar de dor e raiva, mas as palavras do ferreiro acabaram por lhe fazer sentir a sua própria superioridade e teve dó de Paulo.
- Já chega, Tio Sável! - lançou subitamente.
O ferreiro deu uma última chicotada no filho, olhou para o Ilia e disse-lhe colérico:
- Pronto, protector das dúzias!... Também vais saber como elas mordem!...
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Afastou com brutalidade de si o filho e voltou para a forja. Paulo levantou-se e, titubeando como um cego, dirigiu-se para um canto escuro do pátio. Ilia, tomado de compaixão, seguiu-o. Chegado ao canto, Paulo deixou-se cair de joelhos e, com a cabeça encostada à paliçada e as mãos nas nádegas, pôs-se de novo a berrar, mais alto ainda. Ilia sentia vontade de dizer uma palavra amiga ao seu rival amachucado, mas limitou-se a perguntar-lhe:
-- Dói-te muito?
?-Some-te daqui! -vociferou o outro.
Ofendido, Ilia declarou em tom sentencioso:
- Aí tens! Andas sempre a bater em todos, então... Mas, sem lhe dar tempo para terminar a frase, Paulo
deitou-se a ele, fazendo-o cair. Ilia enfureceu-se também e, engalfinhados, rolaram pelo chão. Paulo mordia e arranhava; Ilia agarrou-o pelos cabelos e bateu-lhe com a cabeça na terra, até o outro gritar:
- Larga-me!
- E pronto - exclamou Ilia, erguendo-se, envaidecido com a vitória. - Viste? Eu tenho mais força! Agora farás o favor de me deixar sossegado!
E afastou-se, limpando à manga o rosto todo arranhado. O ferreiro estava especado no meio do pátio, de sobrolho carregado, cara de poucos amigos. Ao vê-lo, Ilia estremeceu de medo e estacou, persuadido de que o homem o ia espancar por ele ter batido no filho. Mas o ferreiro encolheu os ombros e disse:
- Para que estás tu aí embasbacado a olhar para mim? Nunca me viste? Pisga-te!
Mais tarde, ao encontrar-se com Ilia perto da entrada da casa, Sável deu-lhe um amigável cachação e perguntou-lhe com um dos seus sorrisos sem graça:
- Então como vai esse negócio, trapeiro?
Ilia deu uma risadinha satisfeita: sentia-se feliz. O irritável ferreiro, o homem mais forte do pátio, que todos receavam e respeitavam, gracejava com ele! Sável fechou a tenaz da sua mão no ombro do pequeno e, tornando mais intensa ainda a alegria deste, acrescentou:
- Ena! És bem constituído! Não és dos que se estropiam com duas cantigas, meu rapaz!... Pois bem, continua
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a crescer! Quando fores mais velho, vens trabalhar comigo na forja...
Ilia agarrou-se à enorme perna do ferreiro, apoiando o peito de encontro ao seu joelho. Sável sentiu, decerto, o bater do coração da criança, descompassado pelo reconhecimento: pousando sobre a cabeça de Ilia a mão pesada, manteve-se calado durante uns instantes e depois desfechou, na sua voz cava:
- Ai, pobre órfão!... Anda, larga-me...
Foi radiante de alegria que, nessa noite, o rapazito se entregou à tarefa habitual: a distribuição das coisas raras que juntara durante o dia. As crianças sentaram-se no chão e os seus olhos ávidos ficaram presos no saco encardido. Ilia ia retirando lá de dentro restos de chita, um soldadinho de madeira todo desbotado pela vida de infortúnios que passara, uma lata de graxa, um boião de pomada, uma xícara de chá rachada e sem asa.
"Para mim, para mim, para mim!", reboavam gritos de desejo e mãozitas sujas estendiam-se de todos os lados para os objectos raros.
- Esperem aí! Não tirem nada! - ordenava Ilia. Como se poderá brincar se vocês tirarem tudo de uma vez? Bem, eu vou abrir a loja! Quem quer um pedaço de chita?... Não há melhor qualidade! Custa cinquenta copeques!... Ó Macha, vá lá, compra!
- Está comprado! - gritava Tiago, respondendo pela filha do sapateiro, e, tirando do bolso um caco de garrafa preparado de antemão, metia-o na mão do vendedor. Mas Ilia recusava-o.
- O jogo não é assim! Tens de regatear, bem sabes! E nunca o fazes... Já se viu uma coisa destas?
Começava então um feroz ajuste de preço, em que vendedor e compradores se alheavam de tudo o mais; entrementes, Paulo apossava-se habilmente do que no monte lhe agradava, afastava-se correndo e, saltitando, atiçava-os:
- E eu roubei-o! Súcia de basbaques! Imbecis, pasmados!
Punha assim todos fora de si: os mais pequenos gritavam e choravam, Tiago e Ilia corriam pelo pátio fora para apanhar o ladrão, o que quase nunca conseguiam. Depois
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habituaram-se àquilo, não esperando dele nada de bom; ninguém gostava, nem brincava com ele. Paulo vivia à parte e passava o tempo a pregar partidas a todos. Quanto a Tiago, com a sua grande cabeça, atarefava-se como uma ama em volta da filha toda encaracolada do sapateiro. Esta aceitava as atenções do pequeno como se de obrigação se tratasse, e se, por um lado, lhe chamava "meu Tiagozinho", por outro, arranhava-o e batia-lhe frequentemente. A amizade de Tiago por Ilia aumentara e o filho de Petrukha contava amiúde ao camarada os estranhos sonhos que tinha.
- Eu estava com muito dinheiro, tudo em rublos, um saco enorme! E arrastei-o para a floresta. De repente apareceram os ladrões. com grandes facas, terríveis! Eu dei às de vila-diogo! Mas eis que uma coisa começou a remexer-se dentro do saco... Então eu larguei-o! E puseram-se a air lá de dentro pássaros de todas as espécies, era um bater de asas!... Canários, melharucos, pintassilgos, uma quantidade formidável! Todos juntos, apanharam-me e levaram-me pelos ares, muito alto, muito alto!
Interrompia a narrativa, de olhos esbugalhados, e ficava com uma expressão ovina...
- E depois - animava-o Ilia, impacientemente curioso pelo fim do sonho.
- Depois fui-me voando!-acabava Tiago, sonhador.
- Para onde?
- Pois... voando!
- Ora, tu -soltava Ilia, decepcionado e desdenhoso.
- Nunca te lembras de nada!...
O avô Jeremias saía do botequim, punha a mão em pala para proteger os olhos e chamava:
- Ilia! Onde estás tu? Vem-te deitar, são horas!...
Ilia acompanhava docilmente o velhote e ia deitar-se no grande saco cheio de feno que lhe servia de cama. O sono sabia-lhe bem em cima deste saco; a existência corria-lhe agradavelmente na companhia do trapeiro; mas esta vida feliz e fácil acabou bem depressa.
O avô Jeremias comprou para Ilia umas botas, um sobretudo muito amplo e de fazenda espessa e um boné, e
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mandaram o garoto para a escola. Ilia partiu cheio de curiosidade e receio e regressou ferido, acabrunhado, com lágrimas a borbulharem-lhe nos olhos: ao vê-lo, os colegas reconheceram o auxiliar do velho Jeremias e puseram-se em coro a espicaçá-lo:
- Trapeiro! Fedorento!
Uns beliscavam-no, outros deitavam-lhe a língua de fora e um deles aproximou-se, pôs-se ostensivamente a torcer o nariz e, dando um salto para trás, exclamou:
- Que mal que ele cheira!
- Mas por que razão implicam eles comigo?---perguntou Ilia ao tio, vexado e perplexo. - Apanhar trapos é coisa vergonhosa?
- Deixa lá - respondeu Terêncio, fazendo festas na cabeça do sobrinho e evitando o seu olhar interrogador.
- São assim... são uns marotos... Tem paciência, hás-de habituar-te...
- E fora isso fazem troça das minhas botas e do sobretudo também!... É dos outros, dizem, apanhaste-o no caixote do lixo!...
O avô Jeremias, perdido de riso, piscava o olho e tentava, por seu lado, consolá-lo:
- Aprende a suportar, Deus to pagará!... Fora Ele, nada mais existe!...
O trapeiro falava de Deus com tal alegria e fé na sua justiça que parecia estar a par de todos os pensamentos e intenções do Senhor. As boas palavras de Jeremias atenuavam durante certo tempo o sofrimento da criança, mas no dia seguinte a dor voltava, mais aguda ainda. Ilia já se habituara a julgar-se personagem importante, um verdadeiro trabalhador; até o ferreiro Sável conversava com ele de bom grado. Mas os colegiais ridicularizavam-no, atormentavam-no. Não conseguia habituar-se. Estas penosas e amargas impressões iam-se acumulando dia a dia, estigmatizando-o profundamente. Frequentar a escola passara a ser uma penosa obrigação. A sua vivacidade de espírito despertou desde o princípio a atenção do mestre, que começou a citá-lo como exemplo aos outros, agravando ainda mais a atitude das crianças em relação a Ilia. Sentado na primeira fila, sentia os inimigos atrás de si; estes últimos, tendo-o
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constantemente sob o olhar, observavam-no sagaz e habilidosamente e não se faziam rogados para troçar de tudo quanto nele servia de pretexto a mofas. Tiago frequentava a mesma escola e era igualmente mal visto pelos camaradas, que lhe deram a alcunha de Carneiro. Distraído, incapaz de se entregar ao estudo, o filho do botequineiro era castigado amiúde, o que o deixava, aliás, completamente indiferente. Dava, de um modo geral, pouca atenção ao que se passava à sua volta, fechado, quer na escola, quer em casa, num mundo à parte. Ilia ficava constantemente estupefacto com as perguntas incompreensíveis do companheiro.
- Ó Ilia! Como será que, tendo as pessoas olhos pequenos, lhes seja possível ver tudo!... Vêem a cidade inteira. Repara, vê-se a rua até ao fim... Como poderá ela, assim tão grande, caber dentro dos olhos?
Ao princípio, estes assuntos eram motivo de reflexão para Ilia, mas em breve tornaram-se-lhe incómodos, porque o afastavam de factos que o preocupavam. Eram muitas e variadas situações cujo sentido já lhe não escapava.
Certa vez, ao regressar da escola, Ilia disse, rindo, a Jeremias:
-O mestre, sabes, não é parvo nenhum!... Ontem, o filho do merceeiro Malafeiev quebrou o vidro de uma janela; só lhe ralhou um poucochinho e hoje pagou do seu bolso uma vidraça nova...
- Estás a ver, é um bom homem! -observou Jeremias, enternecido.
- É bom, é...! E quando o Vanka Kliutcharev quebrou, por seu turno, outra vidraça, ele deixou-o sem comer o dia inteiro e depois mandou chamar o pai do rapaz e disse-lhe: "Passa para cá quarenta copeques para o vidro novo!..." E o Vanka apanhou uma tareia do pai!...
- Não te preocupes com essas coisas, Ilia!-aconselhou o avô, piscando os olhos inseguros. - Faz como se nada tivesses que ver com isso. A Deus compete pôr o dedo na injustiça, não a nós! Nós não o podemos fazer. Ele é que conhece o valor de todas as coisas!... Ora vê tu: eu vivi muito, observei muito e vi tanta injustiça que já nem sequer sei quanta! Justiça é que eu não vi nenhuma!... E, no entanto, já passei dos oitenta anos... Acredita que não é
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possível que, durante todo este tempo, não tenha havido jamais justiça a meu lado, nesta terra... Mas eu não a vi... porque a não reconheço!...
- Gostava de saber -retorquiu Ilia, incrédulo- que há a reconhecer em tudo isso! Se para um são quarenta, para o outro tem forçosamente de ser quarenta também: isto é que é a justiça!
O velho não concordava. Durante muito tempo continuou a falar da cegueira dos homens, que são incapazes de se julgarem mutuamente, e afirmou que só o julgamento de Deus é equitativo. Ilia ouvia-o com atenção, mas o seu rosto ia-se fechando e o seu olhar endurecia.
?- E quando é que Deus virá julgar? - perguntou subitamente ao avô.
- Não se sabe! Quando soar a hora. Surgirá das nuvens e virá para julgar os vivos e os mortos... Agora quando é, é que se não sabe... Mas vem daí comigo às vésperas!
Ao sábado, o rapaz ia com o velho à igreja para assistir aos ofícios divinos; ficavam, juntamente com os outros pobres, no átrio, no vão das duas portas. Quando a porta que dava para a rua se abria, Ilia era fustigado pelo ar gelado que vinha do exterior; os seus pés, entorpecidos de frio, sapateavam sem ruído nas lájeas. Através da outra porta, a que era envidraçada, via a chama dos círios formar lindos arabescos de pontas de ouro tremeluzentes, iluminar os dourados da casula do padre, as cabeças negras dos fiéis, os rostos dos ícones e os caprichosos cinzelados da iconostase.
Na igreja, as pessoas pareciam melhores e mais sociáveis do que na rua. E também mais belas, devido ao resplendor dourado que envolvia as suas silhuetas, silenciosas e tranquilas. Quando a porta que dava para a igreja se entreabria, a onda quente e olorosa dos cânticos irrompia no átrio, envolvendo a criança, que a aspirava deliciada. Sentia-se bem junto do avô Jeremias, desfiando as suas orações. Escutava os sons harmoniosos que percorriam o templo e aguardava, impacientemente, que a porta se abrisse: esses sons cairiam sobre ele inundando o seu rosto de capitoso perfume. Sabia que no coro cantava Gricha Bubnov, um dos maiores trocistas da escola, e também Fedka Dolganov, um fortalhaço muito desordeiro. Mas naquela altura não lhes
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queria mal, não lessentia qualquer espécie de hostilidade em relação a eles, invejava-os apenas um tudo-nada. Gostaria de cantar também no coro e olhar lá de cima para as pessoas. Devia ser muito agradável cantar bem pertinho das imagens douradas da iconostase, acima de todos os outros. Quando saía da igreja, sentia-se bom, disposto a fazer as pazes com Bubnov, Dolganov e todos os demais alunos. Mas na segunda-feira regressava à escola exactamente como antes: fechado, ofendido.
Na multidão há quem se sinta pouco à vontade, o que nem sempre quer dizer que se trate de pessoa melhor ou pior do que as outras. Pode-se dar azo à hostilidade da multidão sem se possuir forçosamente uma mentalidade excepcional ou ter um nariz ridículo: a multidão elege alguém para alvo de troças apenas no intuito de se divertir. Neste caso, a escolha recaíra em Ilia Lunev. Isto acabaria, decerto, mal para ele, mas deram-se, justamente nessa altura da sua vida, certas coisas que o fizeram perder todo e qualquer interesse pela escola e, simultaneamente, o colocaram muito acima dela.
Aquilo começou assim: certo dia em que Ilia se acercava de casa, na companhia de Tiago, notou que havia burburinho à porta da rua.
- Olha! -disse para o camarada-, pelos vistos há mais uma vez pancadaria... Vamos a correr!
Lançaram-se em correria desenfreada e ao chegarem viram gente desconhecida andar agitadamente pelo pátio, soltando gritos:
- Chamem a polícia! É preciso amarrá-lo!
Uma grande multidão acotovelava-se junto à forja. As crianças conseguiram furar até à primeira fila e recuaram bruscamente: na neve, a seus pés, jazia uma mulher, com o rosto voltado para baixo e a nuca coberta de sangue e de uma matéria flácida; à volta da cabeça, a neve estava tinta de sangue muito espesso. Perto, viam-se um lenço de cabeça branco, todo amachucado, e uma tenaz de ferreiro. À porta da forja estava sentado Sável, dobrado sobre si mesmo e olhando para os braços da mulher. Estes encontravam-se estendidos para a frente, com as mãos crispadas semienterradas na neve. O ferreiro franzia as sobrancelhas,
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com aspecto doloroso, e as suas feições estavam tensas; via-se que apertava os dentes e as maças do rosto pareciam inchadas. Tinha a mão direita apoiada no batente da porta e os dedos enegrecidos tremiam-lhe, mas salvo este pormenor, tudo nele era estático.
Fitavam-no em silêncio; havia reprovação em todos, e enquanto no pátio reinava uma ruidosa agitação, aqui, junto da forja, podia ouvir-se zumbir uma mosca. Em suores, o aspecto desfeito, o avô Jeremias apareceu, de súbito, por entre a multidão. com mão trémula, estendeu ao ferreiro um púcaro cheio de água.
- Anda, bebe...
- Não é de água que esse bandido precisa, mas sim de uma corda ao pescoço - rosnou alguém.
Sável segurou no púcaro com a mão esquerda e bebeu em longos sorvos. Quando acabou, pôs-se a olhar para o púcaro vazio e a murmurar na sua voz rouca:
- Tinha-a prevenido: acaba com isso, mulher perdida! Dizia-lhe: um dia mato-te! Perdoava-lhe sempre... As vezes que eu lhe perdoei!... Ela não quis perceber... E pronto!... Agora, Paulo está órfão... Avô... cuida dele... De ti, Deus gosta...
- Oh, Céus! - gemeu tristemente o avô Jeremias, e com a mão que tremia afagou ao de leve o ombro do ferreiro; na multidão ouviu-se de novo:
- Canalha!... E ainda se atreve a falar em Deus!... Então, o ferreiro abriu muito os olhos e rugiu como um
animal feroz:
- Que estão aqui a farejar? Sumam-se todos da minha vista!
Foi como que uma chicotada na multidão, que soltou um ronco abafado e recuou. O ferreiro ergueu-se e fez menção de se encaminhar para a morta, mas voltando bruscamente as costas, enorme, hirto, entrou na forja. Todos o viram, chegado lá dentro, sentar-se na bigorna e lançar as mãos à cabeça como se de súbito esta lhe doesse de maneira insuportável; depois começou a balouçar-se para trás e para a frente. Ilia sentiu pena do ferreiro; afastou-se da forja e, como num sonho, pôs-se a andar de um lado para o outro
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no pátio, escutando, aqui e ali, sem compreender, o que se dizia nos grupos.
A polícia chegou e, depois de ter afastado a gente, foi-se ao ferreiro e levou-o preso.
- Adeus, avô! - gritou Sável já perto da saída.
- Adeus, Sável, adeus, meu filho - soltou logo Jeremias, gritando o mais que podia na sua voz frouxa, esboçando um movimento para o preso.
A não ser o velho, ninguém disse adeus ao ferreiro.
Discutia-se no pátio, em pequenos grupos, lançando olhares à morta; alguém lhe cobriu a cabeça com uma saca de carvão. À porta da forja encontrava-se agora um agente da polícia, que se sentara no lugar de Sável, com um cachimbo entre dentes. Fumando e cuspindo, escutava o avô Jeremias, fitando-o com olhos baços.
- Terá ele verdadeiramente morto? - dizia o velho a meia voz, em ar de mistério. - Foi o Diabo quem fez isso, foi ele mesmo! O homem não pode matar o homem... Não é o homem quem mata, boa gente!
Jeremias apertava as mãos contra o peito, como se quisesse afastar de si próprio alguma presença, e explicava, por entre acessos de tosse, o segredo do que se passara.
- Mas aquela tenaz não foi o Diabo quem a arremessou, foi o ferreiro -- argumentou o polícia, e escarrou para o chão.
- E quem o incitou a fazê-lo? - exclamou o avô. Pensa lá bem quem foi!
- Vamos lá a saber - disse o agente. - Que tens tu que ver com esse ferreiro, é teu filho?
- Não, nada disso...
?-Espera aí! É da tua família?
- N-nao... Eu não tenho família...
- Então porque te ralas?
- Eu? Oh, Deus!...
- Pois bem, escuta o que te vou dizer -- proferiu com dureza o polícia: - é a velhice que te faz tresvariar... Põe-te a andar!
E soprando, pelo canto da boca, um forte jacto de fumo, voltou as costas ao velho. Mas Jeremias agitou os braços e recomeçou a falar num tom arrebatado e agudo.
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Pálido e de olhos dilatados, Ilia voltou a afastar-se da forja e parou junto de um grupo onde se encontravam o cocheiro Makar, Perfichka, Matitsa e as outras mulheres das águas-furtadas.
- O quê, ela? Ai, meninas, até antes de se casar já andava por aí! - dizia uma das mulheres. - É provável que o Paulo não seja filho do ferreiro, mas sim do professor que morou em casa do merceeiro Malafeiev...
- Justamente! Foi com esse que ela começou...
A mulher de Perfichka também se arrastara para o pátio e, envolta nos seus farrapos, estava sentada no lugar do costume, à entrada da cave. com as mãos poisadas no regaço, a cabeça deitada para trás, tinha os olhos negros perdidos no céu. Os seus lábios estavam apertados e os cantos da boca descaídos. Ilia tão depressa olhava para os olhos da mulher como para a imensidão do céu, e pensou que talvez a inválida estivesse a ver Deus e lhe dirigisse uma oração muda.
As crianças estavam em breve todas reunidas, apertando-se umas contra às outras, à entrada da cave. Embuçando-se friorentamente nas roupas, estavam sentadas nos degraus da escada e, dominadas por uma curiosidade angustiante, escutavam o que contava o filho de Sável. Paulo tinha as feições vincadas e seus olhos vivos e inquietos fitavam os garotos, um por um, com uma expressão de desespero. Mas estava cônscio da sua importância momentânea: nunca até ali lhe fora prestada tanta atenção. Recomeçava, pela décima vez, a mesma narração, dando-se ares de o fazer de mau grado e com grande indiferença:
- Já passava de três dias que ela se tinha ido embora, então o meu pai começou com o seu ranger de dentes e acabou por ficar mesmo bera, rezingando por tudo. Por dá cá aquela palha puxava-me pelos cabelos. E depois, de repente, dei por ela voltar. A porta da casa estava fechada à chave, nós estávamos na forja. Eu encontrava-me ao lado do fole. Vi-a aproximar-se, parar à porta e dizer: "Dá-me a chave!" Então o meu pai pegou na tenaz e foi direito a ela... Tudo sem fazer barulho, como se quisesse que ninguém ouvisse... Até fechei os olhos, tão cheio de medo estava! Queria gritar-Ihe: "Foge, mamã!" Mas não disse nada... Voltei a abrir
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os olhos. Ele continuava a avançar para ela. E os olhos como lhe brilhavam! Então ela recuou... E depois voltou-lhe as costas, queria fugir...
O rosto de Paulo estremeceu e um tremor convulsivo apossou-se do seu corpo magro e anguloso. Suspirando profundamente, engoliu uma grande porção de ar, que depois expirou lentamente, e disse:
- Então, deu-lhe uma destas porradas com a tenaz! As crianças, que se tinham mantido imóveis até aí, começaram a agitar-se.
- Ela levantou os braços e caiu para a frente... como se desse um mergulho na água...
Calando-se, pegou numa lasca de madeira, que remirou atentamente, fazendo-a girar entre os dedos, e lançou-a por cima da cabeça das crianças. Estas estavam novamente imóveis, como se esperassem mais alguma coisa dele. Mas Paulo, de cabeça baixa, mantinha-se calado.
- Ele matou-a mesmo para sempre? ?- perguntou Macha com uma vozita tremelicante.
?-Estúpida! -. lançou-lhe Paulo sem erguer a cabeça.
Tiago rodeou com o braço o tronco da rapariguita, puxando-a para si; Ilia voltou-se para o Paulo e perguntou-lhe em voz baixa:
- Tens dó dela?
- O que é que tu tens com isso ? ?- replicou o outro, furioso.
Fitaram-no todos, à uma, sem proferir uma palavra.
- Mas ela, também, andava sempre por aí com quem queria - soltou de novo Macha, num tom mais seguro; o Tiago, assustado, interrompeu-a logo:
- É a isso que se chega! Há que ver como o ferreiro era!... Sempre enfarruscado, de meter medo, a fazer barulho!... E ela, que não podia haver mais alegre, como o Perfichka...
Paulo encarou-o e recomeçou, com a pesada gravidade de um adulto:
- Eu dizia: "Cuidado, mamã! Ele mata-te!..." Não me deu ouvidos... Só me pedia que não dissesse nada... Comprava-me rebuçados. E o primeiro-sargento dava-me sempre moedas de cinco copeques. Eu levava-lhe um bilhetinho
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e ele dava-me logo cinco copeques. Era um bom homem!... um verdadeiro atleta... E tinha cá um destes bigodes...
- E .um sabre, também? - quis saber Macha.
- Se tinha! - respondeu Paulo, que acrescentou, vaidoso: - Uma vez, puxei-o um pouco para fora da bainha; aquilo é que era um peso!
Sonhador, Tiago lembrou:
- Vês-te, agora, órfão... como o Ilia...
- E que mais ainda ? - atalhou o órfão, contrariado.
- Pensas que também vou ser trapeiro ? Já olhaste bem para mim?
- Não era isso que eu queria dizer...
- Agora farei tudo quanto me apetecer!... - prosseguiu Paulo todo ufano, de cabeça erguida, mas com os olhos chamejantes de raiva. - Não sou um órfão... simplesmente, viverei sozinho. Meu pai não queria que eu fosse à escola; agora ele é que foi para a prisão... E eu irei para a escola e estudarei... e melhor que vocês todos!
- E onde vais tu arranjar roupa? - perguntou-lhe Ilia com um sorriso de triunfo. - Não julgues que os esfarrapados são admitidos na escola!...
- Roupa? É fácil, vendo a forja!
Todos fitaram Paulo com respeito e Ilia sentiu-se batido. Paulo notou o efeito produzido e encheu-se de vaidade.
- E também hei-de comprar um cavalo de carne e osso! E irei para a escola a cavalo!
A ideia agradou-lhe tanto que a sua expressão se iluminou com um sorriso, embora receoso e logo esmorecido.
- Agora ninguém mais te bate - soltou subitamente Macha, fitando o rapaz com inveja.
- É possível que surjam amadores! - opinou Ilia, convicto.
Paulo mediu-o com o olhar, cuspiu para o lado, provocante, e perguntou:
- Talvez tu, não? Experimenta!... Tiago meteu-se de novo de permeio.
- Que coisa estranha, meus amigos!... Havia uma pessoa que andava, falava e tudo... como toda a gente; que
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estava viva; dão-lhe com uma tenaz na cabeça e acabou-se!...
Os outros três miúdos olharam, atentos, para Tiago; os olhos congestionados do rapazito tinham-se imobilizado, ridiculamente esbugalhados.
- Pois! - concordou Ilia. - Também penso nisso...
- Diz-se: morreu - prosseguiu Tiago em voz sumida e misteriosa -, mas que quer isso dizer: morreu ?
- É quando a alma foge - explicou Paulo sem grande entusiasmo.
- Para o Céu - concluiu Macha muito encostada a Tiago, pondo os olhos nas alturas. As estrelas já estavam todas iluminadas, e uma delas, grande e esmaecida, que não cintilava, mais próxima da Terra do que todas as outras, fitava-a, fria e imóvel. Imitando a rapariga, os três garotos ergueram a cabeça. Paulo, após um rápido relance ao céu, largou a correr pelo pátio fora. Ilia olhava as estrelas demorada e fixamente, com nítida expressão de receio, e os olhos desmedidos de Tiago vagueavam pela abóbada celeste como se procurassem qualquer coisa.
?- Tiago! - chamou o companheiro, baixando a cabeça.
- Que é?
--Continuo a pensar... -e a voz de Ilia morreu-lhe na garganta.
- Em quê? - perguntou Tiago suavemente.
- Como eles podem... Matou-se alguém... e continuam a andar de um lado para o outro... correm... falam pelos cotovelos... Mas ninguém chora... Ninguém tem desgosto...
- O Jeremias chorou.
- Oh! Ele está sempre a chorar... E o Paulo, viste? Era como se estivesse a contar uma história...
- Não quer dar parte de fraco... tem desgosto, sim, o que é, é que tem vergonha. Reparaste como ele fugiu? Podes ter a certeza de que está aí, nalgum canto, a ganir que nem um cachorro!
Mantiveram-se silenciosos durante alguns instantes, encostados uns aos outros.
Macha acabou por adormecer com a cabeça no colo de Tiago, o rosto ainda voltado para o céu.
- Tens medo? - sussurrou Tiago.
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- Tenho - respondeu Ilia no mesmo tom.
- E agora a alma dela vai aparecer por cá...
- Pois vai. E a Macha a dormir...
- É preciso levá-la para dentro... E eu com medo de sair daqui...
- Vamos juntos.
Tiago encostou ao ombro a cabeça da rapariguinha adormecida, abraçou o corpito delgado e ergueu-se a custo, murmurando:
- Espera, Ilia, eu vou à frente...
Avançou, vacilando sob o peso da carga, e Ilia seguiu-o, cosendo-se com ele. É que lhe parecia sentir, na sua peugada, uma presença invisível, que lhe soprava na nuca um bafo gélido e que estava prestes a deitar-lhe a mão. Empurrou o camarada, segredando-lhe quase imperceptivelmente:
- Avia-te!...
O avô Jeremias começou a sentir-se pior depois destes acontecimentos. Ia cada vez mais raramente ao trapo, permanecendo quase sempre em casa, e, se se não deitava no vão escuro onde dormia, vagueava, tristonho, pelo pátio. A Primavera aproximava-se e nos dias em que um sol quente brilhava docemente no céu o velhote procurava um lugar soalheiro para se sentar e ficava-se aí com ar preocupado, contando pelos dedos e mexendo os lábios como se estivesse a falar consigo mesmo. Só muito de longe em longe se entretinha contando histórias à criançada e, nas poucas vezes que o fazia, já não dava à narração aquele brilho de outrora. Súbitos ataques de tosse acometiam-no mal começava a falar; havia qualquer coisa que farfalhava dentro do seu peito, qualquer coisa que parecia querer libertar-se.
- Pára! - pedia-lhe Macha, que, no entanto, apreciava as histórias mais do que qualquer outro.
- Espera! - dizia o velho, ofegante. ?- Isto passa... passa já...
Mas a tosse persistia, sacudindo com redobrada violência o corpo minguado do trapeiro. Muita vez as crianças acabavam por se ir embora antes do fim da narração e ele, vendo-as afastarem-se, seguia-as com olhos tristes.
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Ilia notou que o estado do avô Jeremias preocupava bastante o botequineiro Petrukha, bem como o tio Terêncio. O primeiro surgia várias vezes ao dia no alpendre do botequim e quando os seus olhos cinzentos, sempre alegres, topavam com o velho, perguntava-lhe:
- Então como vai isso, avô? Vamos indo melhor? Entroncado, vestindo uma camisa de chita cor-de-rosa,
tinha o costume de andar sempre com as mãos enfiadas nos bolsos das amplas calças de fazenda, cujas pernas se enfiavam nas botas reluzentes e de dobras finas. Moedas tilintavam-lhe, invariavelmente, nos bolsos. O crânio arredondado já se ia desguarnecendo na testa, mas o botequineiro caprichava em ajeitar, como um rapaz, os bastos caracóis ruivos que lhe restavam. Ilia nunca gostara de Petrukha e a sua aversão aumentava de dia para dia. Sabia que o botequineiro não tinha amizade pelo avô Jeremias. Ouvira-o certa vez sarrazinar o tio Terêncio:
- Vigia-o, homem! É um unhas-de-fome!... O pecúlio que vai amassando, junta-o debaixo do travesseiro! Não te ponhas para aí de boca aberta! Olha que a velha toupeira já não dura muito;tu és o seu amigo e ele não tem parentes!... Lembra-te bem do que -te digo, meu lindinho!...
Como habitualmente, o avô passava os serões no botequim junto de Terêncio, falando de Deus e das coisas humanas. O corcunda, desde que viera para a cidade, tornara-se ainda mais feio... o trabalho parecia comunicar-lhe a sua humidade; os olhos mostravam-se baços, amedrontados, e o corpo dir-se-ia ter derretido ao calor do botequim. Quando falava com alguém, punha sempre as mãos atrás das costas e, num tique, ia puxando para baixo a fralda da camisa: dava a impressão de estar a esconder qualquer coisa na marreca.
Quando o avô Jeremias se sentava no pátio, Terêncio ia até à porta do estabelecimento e observava-o, piscando os olhos, pondo a mão em pala para os proteger da luz. A sua barbicha amarelada estremecia fortemente. Dirigindo-se ao velho com voz de réu, perguntava:
- Avô Jeremias, não precisas de nada?
- Não, de nada, obrigado... Não preciso de nada respondia o trapeiro.
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O corcunda rodava nos calcanhares, num esforço das pernas frouxas, e regressava à taberna.
- Isto já não melhora - repetia Jeremias a todo o instante. -Bem vejo que chegou a hora de morrer!
E um dia, quando se estava a deitar no seu cubículo, disse por entre dentes, após um ataque de tosse:
- Oh, Senhor, é cedo de mais! Ainda não acabei o que tinha a fazer!... O dinheiro... quantos anos andei a juntá-lo... Para a igreja. Na minha aldeia. Os homens têm precisão de casas de Deus, necessitam de um refúgio... Consegui juntar tão pouco... Senhor! O corvo esvoaça, fareja o cadáver!... Iliucha, ouve bem: eu tenho dinheiro... Não digas nada a ninguém! Não esqueças!...
Ouvindo o velho delirar, Ilia sentia-se depositário de um segredo muito importante e bem sabia quem era o corvo.
Dias depois, ao regressar da escola, foi para o seu canto mudar de roupa e percebeu que Jeremias soluçava e arfava como se o estivessem a estrangular:
- Cht!... cht... vai-te daqui!
O rapaz foi bater, receoso, à porta do avô; estava fechada à chave.
Ouvia, no cubículo, um murmúrio agitado:
- Cht... Senhor... tem piedade... tem piedade... Aproximou o rosto de uma fresta que havia no tabique
e imobilizou-se; quando os olhos se habituaram ao escuro, distinguiu o velho estendido na cama, tentando erguer o peito e agitando descompassadamente os braços.
?- Avô - chamou o rapazito, horrorizado.
O trapeiro estremeceu, ergueu a cabeça do travesseiro e ameaçou:
?-Cuidado, Petrukha, De-eus! É dEle! É para o templo... Cht!... corvo que tu és... Oh!, Senhor... É teu!... Guarda-o... tem piedade... tem piedade...
Ilia tremia de medo, mas, incapaz de arredar pé, tinha os olhos presos na mão enegrecida e esquelética de Jeremias, que esvoaçava frouxamente no espaço e ameaçava com um dedo adunco.
- Cuidado!... É de Deus!... Não tentes!...
E nisto, dobrando-se sobre si próprio num grande esforço, o avô sentou-se na enxerga. As suas barbas brancas
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pareciam as asas palpitantes de um pombo em pleno voo. Estendeu os braços para a frente, afastou violentamente de si um ser invisível e estatelou-se no solo.
Ilia soltou um grito agudo e fugiu. O queixume perseguia-o, zumbia-lhe nos ouvidos:
"Cht... chi..."
Correu ao botequim e lançou, semi-sufocado:
- Morreu...
Terêncio exalou um gemido, atarantou-se, puxou febrilmente pela camisa, fitando Petrukha, que estava por trás do balcão.
- E então? - disse o taberneiro em voz severa, fazendo o sinal da cruz. - Que Deus receba a sua alma! Era, aliás, um bom velhote... vou até lá... Tu, Ilia, ficas aqui; se for preciso alguma coisa, vens-me chamar num pulo, percebes? Tiago, fica ao balcão...
Petrukha encaminhou-se sem pressas para a porta. Os seus tacões ecoavam no soalho... As crianças ouviram-no dizer ao corcunda, quando já estavam fora do botequim:
- Anda lá, meu .tapado!...
Ilia estava ainda sob o efeito do pavor que ressentira, o que, no entanto, o não impedia de observar tudo quanto se passava à sua volta.
- Tu viste-o, quando morria ? - perguntou Tiago, postado atrás do balcão.
Ilia voltou-se para ele e perguntou, por seu turno:
- Mas porque foram eles lá abaixo?
- Foram ver!... Tu vieste chamá-los!...
Ilia fechou os olhos, apertando as pálpebras com força, e disse:
- Como ele o repelia!...
- Quem? - interrogou Tiago, muito curioso, esticando o pescoço.
- O Diabo! - respondeu Ilia após um breve silêncio.
- Tu viste o Diabo?-soltou Tiago em voz abafada, correndo para o companheiro. Mas este tinha, de novo, fechado os olhos e permanecia calado.
- Tiveste medo? - perguntou Tiago, puxando-lhe pela manga.
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- Espera!-disse de repente Ilia. - Vou-te deixar só um minuto... Não o digas ao teu pai, está bem?
Guiado por uma suspeita que o assaltara subitamente, encontrou-se em breve na cave, onde, sem fazer o menor ruído, correu à fresta, pondo-se de novo a espreitar. O avô ainda estava vivo, arfava... O seu corpo jazia aos pés de duas negras sombras.
Estas fundiam-se, nas trevas, numa única massa, enorme e monstruosa. Ilia acabou por distinguir o tio, ajoelhado junto da enxerga, a recompor, com uma agulha e um fio, o travesseiro. Ouvia-se perfeitamente o ranger da linha, passando através do tecido. Petrukha estava atrás de Terêncio, inclinado para ele, e cochichava:
- Despacha-te... Eu bem te tinha dito que tivesses agulha e linha preparadas... Assim não, caiu-te a linha... Raios te partam!
O cochichar de Petrukha, o estertor do moribundo, o ranger da linha e o som dolente da água gorgolejando num buraco por baixo da janela misturavam-se, formando um zunzum que perturbou a consciência da criança. Afastando-se, então, de mansinho, deixou a cave. Uma grande mancha negra rodopiava, assobiando, em frente dos seus olhos. Para subir a escada, teve de se agarrar com todas as forças ao corrimão; os pés pesavam-lhe arrobas; chegado à porta que dava para o estabelecimento, parou e pôs-se a chorar silenciosamente. Tiago era um vulto impreciso que lhe falava. Depois sentiram-se ambos empurrados e a voz de Perfichka soou:
- Quem, de quem? De quê, porquê? O velho morreu? Santo Deus!... - E, afastando Ilia, o sapateiro lançou-se pela escada abaixo. A madeira rangia sob os seus passos. Mas, lá em baixo, exclamou num tom choroso:
- Ai!
Ilia ouviu o tio e Petrukha voltarem para cima; não queria chorar à frente deles, mas não conseguia reter as lágrimas.
- Ora tu! - resmungou Perfichka. - com que então, já passaram por lá?
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Terêncio passou junto do sobrinho sem lhe lançar um olhar. Petrukha pôs uma mão no ombro do garoto e disse-lhe:
- Estás a chorar? Sim, senhor... Isso prova que és um rapaz reconhecido e que não esqueces o bem que te fazem. O velho foi um grande benfeitor para ti!...
E empurrando mansamente Ilia, acrescentou:
- Mas não fiques aí na soleira da porta.
Ilia limpou as lágrimas do rosto com a manga da camisa e olhou para todos. Petrukha já estava atrás do balcão, ajeitando os caracóis. À sua frente, Perfichka sorria maliciosamente, mas, não obstante o sorriso, a sua expressão era a de um homem que perdera os últimos vinténs num lance de dados.
- Então que tens tu, Perfil? 1, - perguntou com rudeza Petrukha, franzindo o sobrolho.
?-Não pagas a rodada? - largou Perfichka.
- E qual o motivo? - interrogou em voz dura e lenta o botequineiro.
- Ora!-exclamou o sapateiro, batendo com o pé no chão. - Tenho bom-apetite, mas o bolo não é para mim! Pois bem, seja! Só mais uma palavrinha: deixe que o felicite calorosamente, Sr. Petrukha...
- Que é que estás para aí a dizer? - perguntou, calmo, Petrukha.
- Oh, eu falo por falar. Sou um inocentinho!
- Quer dizer que tenho mesmo que te oferecer um copinho! Era aí que tu querias chegar, não é assim? Ah, ah!
Ilia sacudia a cabeça, como se pretendesse afastar alguma ideia, e foi-se embora.
Nessa noite, não dormiu no seu cubículo, mas sim no botequim, debaixo da mesa onde Terêncio lavava a louça. O corcunda preparou-lhe a cama e pôs-se a limpar as mesas. O candeeiro, em cima do balcão, punha reflexos nos bojos dos bules e nas garrafas que estavam alinhadas nas prateleiras. A escuridão reinava no estabelecimento. Uma chuva miudinha batia nas vidraças, o vento tentava penetrar pelas
1 Perfichka é o diminutivo corrente de Perfil.
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janelas... Terêncio, que no escuro fazia lembrar um gigantesco ouriço-cacheiro, retirava as mesas do lugar e soltava profundos suspiros. Quando se aproximava da luz, projectava uma grande sombra, muito negra, no chão, e Ilia tinha a impressão de estar vendo deslizar a alma do avô Jeremias, que vinha sussurrar ao seu ouvido:
"Cht... Cht..."
A criança tinha frio e medo. A humidade da atmosfera atabafava; era sábado e o sobrado, acabado de esfregar, exalava um cheiro a mofo. Ilia gostaria de pedir ao tio que viesse deitar-se a seu lado, debaixo da mesa, mas uma sensação de penosa hostilidade impedia-o de o fazer. A sua imaginação representava-lhe a silhueta alquebrada do avô Jeremias, com as barbas brancas, e vinha-lhe a recordação da voz amiga e insegura:
"Deus sabe o valor... Não tem importância!...
- Devias vir deitar-te -? gemeu Ilia, que já não podia mais.
O corcunda sobressaltou-se e parou. Depois, baixinho, respondeu:
--vou já! vou já!... - E voltou a cirandar como um pião à volta das mesas. Ilia percebia que o tio também tinha medo e pensou:
"É bem feito!..."
A chuva miudinha continuava a cair. A chama do candeeiro tremia, os bules e as garrafas pareciam fazer caretas. Ilia cobriu a cabeça com a pelica do tio e assim ficou, retendo a respiração. Mas, de súbito, algo se moveu junto dele. O seu coração parou e, destapando a cabeça, viu Terêncio, de joelhos, a fronte inclinada para o chão, o queixo a roçar no peito, murmurando:
- Oh!, Senhor, Pai nosso!... Senhor!
Aquele murmúrio lembrava o estertor do avô Jeremias. A sombra parecia deslizar pela sala e o sobrado vacilar juntamente com ela, enquanto na chaminé o vento uivava.
- Acaba com a reza!-gritou Ilia com violência.
- Mas que é que tu tens ? - choramingou Terêncio. Dorme, pelo amor de Deus!
- Não rezes! - insistiu o rapaz.
- Está bem, pronto...
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As trevas e a humidade tornavam-se cada vez mais opressivas; Ilia mal podia respirar, e no seu espírito atropelavam-se a piedade pelo avô, a aversão pelo tio e o medo. Arrastou-se pelo chão, sentou-se e pôs-se a gemer.
- Que tens tu? O que é?...-murmurava o tio, assustado, segurando-lhe nas mãos. Ilia repeliu-o e, com a voz carregada de lágrimas, desabafou, num espanto sem fim:
- Meu Deus, se ao menos fosse possível escondermo-nos em qualquer parte... Meu Deus!
As lágrimas impediram-no de prosseguir. Inspirou com esforço o ar pesado e começou a soluçar, com o rosto escondido na almofada.
Estas provações modificaram sensivelmente o carácter da criança. Até aí só se subtraíra à convivência com os colegas da escola, pois não desejava granjear nem a sua indulgência, nem a sua camaradagem. Em casa, porém, mostrava-se sociável em relação a toda a gente e o interesse que os adultos lhe manifestavam dava-lhe certo prazer. Mas a partir desse momento passou a isolar-se, adoptou uma compostura rara para a idade. O seu rosto tornou-se fechado, a sua boca desdenhosa, e pôs-se a observar os adultos numa atitude de crítica, a ouvi-los discorrer com um fulgor especial no olhar. O que presenciara no dia da morte do avô Jeremias obcecava-o, sentindo-se culpado em relação ao trapeiro de forma idêntica à de Petrukha e de seu tio. Quem sabe se o avô teria percebido, ao morrer, que lhe sonegavam o pecúlio e pensado que fora ele, Ilia, quem falara a Petrukha? Esta ideia surgiu ocasionalmente no espírito da criança, mas acabou por se transformar numa obsessão, que a enchia de tristeza e desconfiança. Quando pressentia a maldade em qualquer pessoa, sentia-se aliviada, como se, por tal, a sua culpa para com o trapeiro se visse diminuída.
E maldade era coisa que não faltava. Todos os habitantes do pátio afirmavam que o botequineiro Petrukha era um escroque, um encobridor de furtos, mas desfaziam-se em amabilidades para com ele, cumprimentavam-no respeitosamente e tratavam-no por "Senhor". Pelo contrário, não havia epíteto grosseiro que não lançassem a Matitsa; quando
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ela se embriagava, maltratavam-na e batiam-lhe. Um dia que tinha bebido de mais, sentara-se no rebordo da janela da cozinha e o cozinheiro encharcara-a com água gordurosa de lavar a louça... E todos se aproveitavam constantemente dos seus serviços, sem lhe darem em troca o que quer que fosse a não ser insultos e safanões: Perfichka pedia-lhe que lavasse a mulher inválida; Petrukha mandava-a fazer a limpeza do botequim antes das festas e não lhe pagava; era ela quem passajava a roupa de Terêncio. Matitsa acorria ao chamamento de qualquer um, fazia tudo como deve ser, sem se queixar, gostava de tratar os doentes, de se ocupar das crianças...
Ilia via que o mais assíduo ao trabalho, o sapateiro Perfichka, servia de chacota a todo o pátio; só lhe prestavam atenção quando estava bêbedo e se arrastava pelo botequim tocando harmónio, ou pelo pátio, tocando e trauteando cançonetas alegres e divertidas. Mas ninguém queria dar fé das precauções com que esse mesmo Perfichka transportava para a porta de casa a mulher paralítica, do modo como ia aconchegar a filhita no leito, cobrindo-a de beijos e fazendo palhaçadas para que risse. E também não havia quem se firmasse nele quando, com graças e brincadeiras, ensinava Macha a preparar as refeições e a arrumar a -casa, após o que deitava mão ao trabalho, curvado, até altas horas, sobre alguma bota suja e de má qualidade.
Quando o ferreiro foi levado para a prisão, ninguém quis saber do filho dele, salvo o sapateiro, que acolheu logo Paulo em sua casa; o garoto torcia a linha, varria a sala, acarretava água e ia à mercearia comprar pão, kvas ou alhos. Não havia quem não visse o sapateiro embriagado nos dias de festa, mas ninguém parecia escutá-lo, no dia seguinte, em estado normal, dizer para a mulher:
- Perdoa-me, Dunia! Não bebo por ser um alcoólico inveterado, mas sim por cansaço. Depois de uma semana
1 O kvas é uma bebida fermentada, apreciada pelos camponeses russos, que se prepara lançando água a ferver sobre cevada moída ou farinha de cevada. (N. do T.)
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inteirinha de trabalho, está-se farto! Então, emborca-se o seu copito!
- Faço-te qualquer censura? Santo Deus! Tenho é pena de ti!... - respondia a mulher, com a sua voz rouca, que parecia embargada por qualquer coisa que se tivesse atravessado na garganta. - Julgas que não vejo quanto te esforças? Eu sou como uma pedra que Deus te atou ao pescoço. Mais valia morrer!... Ficavas livre de mim!...
- Não fales assim! Não gosto que digas isso. Eu é que sou a causa do teu mal e não o contrário!... Mas não é por maldade, mas sim por fraqueza. Escuta: um dia, vamo-nos embora para outra rua, e tudo será diferente... Haverá janelas, portas e tudo!... Janelas para a rua. Recortaremos uma bota em cartão e colamo-la na vidraça! Um letreiro! Teremos muita clientela, faremos bom negócio! Ui!. assopra, martela, coloca os pregos! Quem dá o seu esforço por bem empregado, faz dinheiro.
Ilia estava ao corrente dos mais ínfimos pormenores da vida de Perfichka, via-o contorcer-se e saltar como um peixe fora de água para se aguentar na vida, e infundia-lhe respeito ouvi-lo gracejar com toda a gente, sempre a rir e a tocar tão bem harmónio.
Quanto a Petrukha, era só permanecer sentado por trás do balcão, jogar às damas, tomar chá de manhã à noite e injuriar os criados de mesa. Pouco depois da morte de Jeremias, ensinou a Terêncio como se vende ao balcão e ele próprio passou a não fazer mais nada senão vaguear pelo pátio assobiando, observar o prédio sob todos os ângulos, dando murros nas paredes.
Ilia notava muita coisa, mas tudo se lhe afigurava estragado, fastidioso, e o afastava do convívio das gentes. Todas estas impressões, que se iam amontoando no seu espírito, suscitavam-lhe, por vezes, o ardente desejo de se abrir com alguém. Mas não desejava falar com o tio: depois da morte de Jeremias, cavara-se um fosso, invisível mas profundo, entre Ilia e o tio, o que impedia o rapaz de ser aberto como dantes com o corcunda. No que respeitava a Tiago, era impossível explicar-lhe fosse o que fosse, pois o amigo vivia igualmente longe de tudo, no seu próprio universo.
A morte do velho trapeiro constituíra um grande choque
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para ele. Aludia ao facto frequentemente, gemendo num tom queixoso:
?-Como nos aborrecemos agora!... Se o avô Jeremias ainda fosse deste mundo, contar-nos-ia histórias; não há nada melhor que histórias!
Certo dia, disse ao companheiro, num tom de grande mistério:
?- Queres que te mostre uma coisa? Mas jura primeiro que não dirás nada a ninguém! Maldito seja se me renegar! Anda, repete!...
Ilia fez o juramento e Tiago levou-o até a um canto do pátio, à velha tília. Aí, retirou do tronco um pedaço da casca, habilmente ajustado, e pôs a descoberto um grande buraco. A cavidade fora alargada à navalha e artisticamente ornamentada com pedacitos de trapo e de papel multicores, invólucros prateados de pacotes de chá, restos de lata. Ao fundo via-se um minúsculo ícone de cobre em frente do qual estava fincado um coto de vela.
- Viste? - murmurou Tiago, colocando novamente no seu lugar o pedaço de casca de árvore.
?- É para fazer o quê?
- É uma capela!-explicou Tiago. - E à noite, sem fazer barulho algum, virei aqui rezar... Achas bem?
Ilia ficara seduzido com a ideia do camarada, mas pensou logo nos perigos da empresa.
- Não se verá a chama ? E o teu pai dá-te poucas com o chicote...
- À noite, quem verá? À noite, estão todos a dormir; reina um silêncio total sobre a Terra... Eu sou pequeno: de dia, Deus não pode ouvir a minha oração... Mas de noite, ouvi-la-á!... Hem?
- Sei lá... Talvez!...-soltou Ilia, pensativo, fitando o rosto pálido e os grandes olhos do amigo.
- Virás comigo ? - perguntou Tiago.
- E por que rezarás tu? Eu quero rezar para ser inteligente... E também para ter tudo quanto quiser!... E tu?
- Eu também...
Mas, após uns instantes de reflexão, Tiago explicou: -Eu queria apenas rezar... assim... Rezar, mais nada! E Ele fará como quiser!... Dará o que Ele quiser...
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Combinaram começar as orações naquela mesma noite e deitaram-se ambos com a firme tenção de acordar à meia-noite. Mas não acordaram nem nessa noite, nem na seguinte, e deixaram ainda passar muitas outras noites. Seguidamente, novos eventos apagaram a capela da lembrança de Ilia.
Na própria tília em que Tiago armara a capela, Paulo colocava armadilhas para caçar canários e melharucos. A vida dele não era nada fácil; emagrecera e o cansaço estampara-se-lhe no rosto. Nunca tinha tempo para brincar no pátio, trabalhava o dia inteiro com Perfichka e os camaradas só podiam estar com ele nos dias feriados, quando o sapateiro se embriagava. Paulo informava-se do que os amigos aprendiam na escola e a sua expressão carregava-se de inveja e tristeza ao ouvi-los descrever, com superioridade, os seus afazeres.
- Escusam de estar tão ufanos, eu também irei à escola!...
- O Perfichka não deixa!....
- Pois então, fujo - exclamava, resoluto. Efectivamente, o sapateiro veio em breve anunciar, com
um risinho:
- O meu rico aprendiz safou-se, o malandro!...
Era um dia de chuva. Ilia olhou para Perfichka, que parecia aparvalhado, e depois para o céu cinzento e pesado, e lamentou a sorte do camarada. De pé, abrigado pelo alpendre do telheiro, encolhido contra a parede, tinha os olhos fitos na casa e parecia-lhe vê-la diminuir, enterrar-se no solo. O madeiramento ia cedendo aos poucos, como se a porcaria acumulada durante dezenas de anos nas suas entranhas tivesse inchado a construção ao ponto de a fazer estoirar. Saturada de desgraças, ecoando desde sempre de berros avinhados, de amargas canções de bêbedos, caindo em ruínas, estropiada por pontapés nos sobrados, a casa já não podia mais e ia-se abaixo lentamente, lançando ao mundo o olhar triste das suas vidraças baças.
- Olá!-dizia o sapateiro. - O cesto estoira um dia destes e os fungos vão-se espalhar. Nós, os locatários, teremos de ir para onde pudermos... Teremos de cavar a nossa toca algures!... Fazemo-lo e viveremos de outro modo!... Tudo
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será diferente, portas e janelas, até os percevejos que nos virão morder serão outros!... Que isso suceda depressa! Estou farto deste palácio até à raiz dos cabelos!...
Sonhava em vão o sapateiro: a casa não foi abaixo; o taberneiro Petrukha comprou-a. Feito isto, o homem passou dois dias a apalpar e a sondar, com ar desconfiado, o velho montão de madeira. A seguir, trouxeram tijolos, pranchas, envolveram a casa de andaimes, e durante dois meses toda ela gemeu e estremeceu com as machadadas. Serravam-na, fendiam-na, espetavam-lhe pregos, por entre estrondos e nuvens de poeira; desmantelavam a sua carcaça apodrecida para colocar novo madeiramento, e, finalmente, depois de ter alargado a casa de pelo menos meia construção, revestiram-na com ripas. Larga e pesada, erguia-se agora, muito direita, como se lhe tivessem nascido novas raízes. Petrukha colocou na fachada um grande letreiro, onde estava escrito, em letras de ouro sobre fundo azul: "O Alegre Refúgio dos Amigos de P. Filimonov."
- Mas, por dentro, a podridão é a mesma! -fez notar Perfichka.
Ao ouvir isto, Ilia sorriu, aprovativo. A casa reconstruída também lhe parecia um logro. Lembrou-se de que Paulo vivia algures e presenciava coisas muito diferentes. Tal como o sapateiro, Ilia sonhava com outras janelas, outras portas, outra gente... A vida naquela casa tornara-se ainda pior. A velha tília fora abatida e o lugar retirado que ela abrigava com a sua sombra desaparecera, ocupado por uma construção. Desaparecidos também os bons refúgios onde as crianças iam conversar. Apenas no lugar da antiga forja, escondido por um monte de aparas de madeira e de antigas vigas apodrecidas, se tinha formado um recanto confortável, mas receava-se ir para lá: toda a gente tinha a impressão de que, sob aquele amontoado, jazia a mulher de Sável, com o crânio esmagado.
Petrukha destinou nova habitação ao tio Terêncio: um quartito situado por trás do balcão. O fino tabique forrado de papel verde deixava passar todos os ruídos do botequim, bem como o cheiro a vodka e o fumo do tabaco. O sítio era asseado e sem humidade, mas estava-se lá ainda pior do que na cave. A janela dava para o muro acinzen-
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tado do telheiro, que escondia o céu, o sol, as estrelas, enquanto na cave se podia ver tudo isso, pelo respiradouro, pondo-se de joelhos.
O tio Terêncio usava agora uma camisa lilás, vestindo por cima um casaco preto que, nos ombros dele, dava a impressão de estar pendurado num caixote. Passava os dias atrás do balcão. Pôs-se a tratar por "senhor" os clientes, a dirigir-lhes a palavra num tom brusco e seco, como se ladrasse, fitando-os, do seu posto, como um cão que está de guarda aos haveres do dono. Comprou a Ilia um casaco de fazenda cinzenta, um par de botas, um sobretudo e um boné, e quando o rapazito se enfarpelou com o novo vestuário recordou-se do velho trapeiro. Quase deixara de falar com o tio e a sua vida decorria lenta e monótona. Pensava, cada vez mais, na aldeia; era-lhe, agora, absolutamente evidente que a vida ali não sofria comparação com esta; tudo, no campo, era mais calmo, compreensível, simples. Lembrava-se das frondosas florestas do Kerjenets, das narrações do tio Terêncio acerca do eremita Ântipas, e partindo daí lançava-se noutros pensamentos: que seria feito de Paulo? Onde estaria? Quem sabe se também não fugira para a floresta, nela cavando um abrigo onde vivesse. A neve cai em rajadas na floresta e os lobos uivam. É, simultaneamente, assustador e agradável. E no Inverno, quando os dias são bonitos, tudo brilha com um fulgor prateado e o silêncio é tal que nada se ouve a não ser a neve que range sob os pés ou, se nos mantivermos imóveis, o bater do nosso próprio coração.
Na cidade, tudo é chinfrim e incoerência; até a própria noite é povoada de rumores. Canta-se, grita-se, geme-se, veículos passam e o estrondo dos trens e das telegas faz tremer as vidraças. O rapazio diz brejeirices na escola, os adultos injuriam-se, lutam, embriagam-se. Toda a gente tem o seu quê de estranho, quer seja um trapaceiro como Petrukha, um miserável como Sável ou um pobre diabo no género de Perfichka, do tio Terêncio, de Matitsa... Mas o maior motivo de espanto para Ilia era sem dúvida alguma o sapateiro.
Uma bela manhã, na altura em que Ilia estava prestes a ir para a escola, Perfichka apareceu todo arrelampado no
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botequim, ainda com cara de sono e, sem proferir uma palavra, especou-se em frente do balcão fitando Terêncio. O seu olho esquerdo tremia e piscava, o lábio inferior pendia-lhe còmicamente. O tio Terêncio lançou-lhe um olhar, sorriu e serviu-lhe um copo de três copeques, sua habitual ração matutina. com mão mal segura, Perfichka pegou no copo e esvaziou-o numa golada, mas sem tossir nem praguejar como de costume. O seu olho esquerdo, que tremelicava de um modo esquisito, fitou de novo o corcunda, enquanto o olho direito continuava imóvel e baço como se não visse.
- O que é que vossemecê tem no olho? - perguntou Terêncio.
Perfichka esfregou o olho, inspeccionou o dedo com que o esfregara e disse, de súbito, numa voz clara e sonora:
- Nossa esposa Avdotia Petrovna finou-se... Terêncio voltou-se para o ícone e fez o sinal da cruz.
- Que Deus tenha a sua alma em descanso!
?- Quê ? - perguntou Perfichka, que continuava a fitar Terêncio com obstinação.
- Eu disse: que Deus tenha a sua alma em descanso!
- É verdade... morreu!... - acrescentou o sapateiro, voltando as costas bruscamente e indo-se embora.
- Que homem mais esquisito! - comentou Terêncio, compungido, abanando a cabeça. Ilia concordava que o sapateiro era um homem muito estranho... Antes de ir para a escola, foi a correr à cave ver a morta. A habitação era acanhada e escura. As mulheres das águas-furtadas tinham vindo lá de cima e, reunidas no canto onde estava a cama, parlamentavam em voz baixa. Matitsa estava a provar um vestido à Macha e perguntava-lhe:
- Aperta-te debaixo dos braços?
A rapariguinha afastava os braços e queixava-se em voz mimada:
- Apérta!
O sapateiro, muito inclinado para a frente, estava sentado à mesa e fitava a filha; o olho continuava a piscar. Ilia examinou atentamente o rosto branco e inchado da defunta, recordou os seus olhos negros, agora fechados para
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sempre, e saiu com o coração opresso por uma dolorosa inquietação.
Ao regressar da escola, dirigiu-se ao botequim; Perfichka tocava harmónio e cantava com desplante:
Ora tu, minha linda, Tomaste-me o coração. Porque foi que o tomaste? Onde foi que o deixaste?
- Ai, ai!... as mulheres puseram-se na rua! Fora!, gritavam elas. Mostrengo! Bêbedo de uma figa!... Eu cá não me zanguei, aguento sempre tudo! Insultem-me, batam-me! Mas deixem-me viver um poucochinho!... Deixem-me em paz, peço-lhes! Ai, meus amigos! Todos têm vontade de viver, eis a verdade! Somos todos iguais, do primeiro ao último!...
Quem ouço eu a soluçar? Que será o que deseja? Cala-te, deixa de chorar, Qua comida até sobeja!
Perfichka parecia muito alegre; Ilia observava-o num misto de espanto e repulsa. Pensou que Deus puniria o sapateiro sem dó nem piedade, por se conduzir daquela maneira, no dia em que a mulher lhe morrera. Mas no dia seguinte Perfichka continuava bêbedo, acompanhando o enterro da mulher aos tropeções, piscando o olho, chegando até a sorrir. Todos lhe dirigiam insultos, houve quem lhe desse um cachação...
-Imagine-se!-confiou Ilia ao companheiro na noite do funeral - quem havia de dizer que Perfichka era um verdadeiro herético!
- Que vá para o Diabo que o carregue! -soltou Tiago com indiferença.
Ilia notara, há já algum tempo, que o amigo andava mudado. Era raro vê-lo no pátio, sempre fechado em casa, e dir-se-ia até que evitava, propositadamente, encontrar-se com ele, Ilia. A princípio, este último supôs que Tiago
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invejava os êxitos que ele obtinha na escola e que passava o tempo a estudar as lições. Mas verificou, bem depressa, que os estudos do amigo iam de mal a pior; o mestre repreendia-o constantemente pela sua distracção, pela sua incapacidade de compreender até as coisas mais elementares. A atitude de Tiago em relação a Períichka não constituiu, pois, surpresa para Ilia: o camarada deixara praticamente de prestar a mínima atenção ao que se passava em casa. Mas Ilia queria saber a razão daquilo tudo:
- Que mudado que tu estás! Já não queres ser meu amigo?
-Eu? Que raio de ideia é essa?-exclamou Tiago, admirado, acrescentando logo a seguir: - Olha, vai para casa! Anda, eu já vou ter contigo... Quero mostrar-te uma coisa!
E, sem mais explicações, deixou bruscamente o companheiro. Cheio de curiosidade, Ilia foi para o quarto. Tiago chegou pouco depois, fechou a porta, tomando a precaução de correr o fecho, e, aproximando-se da janela, mostrou um livrinho de capa vermelha que trazia escondido.
- Vem cá! -disse baixinho a Ilia; sentou-se na borda da cama do tio Terêncio e indicou ao amigo um lugar a seu lado. Abriu o livro, colocou-o no colo e curvado começou a ler:
"O valente cavaleiro avistou ao longe uma montanha... alta como o céu, tendo ao meio uma porta chapeada de ferro. O coração valoroso inflamado pela chama... da bravura, com a lança em riste, investiu e, soltando um alto brado, enterrando as esporas no ventre da montada, foi bater violentamente à porta. Ouviu-se então um estrondo pavoroso... A chapa de ferro estilhaçou-se em mil pedaços... e, no mesmo instante, chamas e fumo irromperam da montanha e uma voz de trovão ecoou... fazendo estremecer o solo, enquanto enormes pedregulhos, vindos do alto da serra, caíam em frente do cavalo. Ah!, és tu... insensato temerário! Eu e a morte esperávamos-te há muito!... Cego pelo fumo, o cavaleiro..."
- Quem é?--perguntou Ilia, espantado, ouvindo o companheiro ler com voz entrecortada pela emoção.
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- Hem?- soltou Tiago, desprendendo do livro o seu olhar turvo.
- Quem é esse cavaleiro ?
- É um nobre... anda a cavalo... com uma lança... Raul-o-Audaz... Há um dragão que raptou a noiva dele... a formosa Luísa... Mas mais valia que escutasses!...- exclamou, por fim, impaciente.
- Está bem, pronto!... Espera, e o dragão, o que é?
- É uma grande cobra com asas... e patas... com garras de ferro... tem três cabeças... lançando todas fogo pela boca, percebes ?
- É formidável!-lançou Ilia, de olhos esbugalhados.- Então, o outro vai-lhe dar uma destas coças!...
Muito agarrados um ao outro, palpitantes de curiosidade, tomados por uma alegria singular e ardente, os rapazes penetravam num mundo desconhecido e encantado, onde monstros enormes e ferozes pereciam sob as fortes lançadas de audazes cavaleiros, onde tudo era majestoso, belo e maravilhoso, onde nada recordava a insipidez do dia a dia. Não havia bêbedos, nem gente insignificante vestida de farrapos; em vez de casas de madeira semiapodrecidas, erguiam-me palácios resplandecentes de ouro, invencíveis castelos chapeados de ferro, altos como o céu. As crianças descobriam um mundo de esplêndidas invenções, enquanto a seu lado se ouvia o harmónio e o sapateiro Perfichka, muito seguro, ia entoando as suas coplas:
Quando for pró outro mundo, Não me apanharão os diabos! Isso será cá nesta terra, com uma piela dos diabos!
- Animem-se! Deus gosta da gente alegre!
O harmónio corria numa verdadeira embriaguez de sons, tentando alcançar a voz sonora do sapateiro, que encetava um estribilho de dança:
Não berres só em pequeno, Que de frio muito sofreste. Estoira, e pró Inferno irás E lá muito te aquecerás!
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Cada copla da cançoneta provocava rugidos de aprovação, grandes explosões de riso.
E no cubículo, separados apenas desta tempestade de gritos e gargalhadas por tabique inconsistente, duas crianças debruçavam-se sobre um livro e uma delas sussurrava:
- "O cavaleiro apertou então o dragão nos seus braços de ferro e a fera, de receio e dor, soltou um rugido sonoro como um trovão..."
Ao livro do cavaleiro e do dragão seguiu-se Guak ou a Invencível Fidelidade e A História do Valente Príncipe Francil Veneciano e da Linda Princesa Rensivana, Perante damas e cavaleiros as impressões da realidade apagaram-se no espírito de Ilia. Os dois amigos roubavam na caixa, cada um por sua vez, moedas de vinte copeques, e leitura não lhes faltava. Ficaram conhecendo as aventuras de Jaime Smertenski, entusiasmaram-se com lapantcha, o Cavaleiro Tártaro, e, libertando-se um pouco mais cada dia da vida sem encantos que tinham de suportar, refugiavam-se num país onde as desgraças acabavam inevitavelmente por ser vencidas, a felicidade era sempre alcançada.
Um dia, Perfichka foi convocado pela polícia. Saiu muito preocupado e regressou radiante, trazendo por um braço Paulo Gratchev. Paulo conservava o olhar perscrutador; tinha simplesmente emagrecido, empalidecido, e parecia ter perdido a arrogância. O sapateiro arrastou-o até ao botequim e começou a narrar, com aquele tique que lhe fazia estremecer constantemente o olho esquerdo:
- E aqui têm, meus bons amigos, o Paulo Gratchev em pessoa! Acabadinho de chegar da cidade de Penza, com uma escolta... Não é boa rês, não senhor! Não é destes que se ficam para aí, ao canto da lareira, esperando que a sorte lhes venha bater à porta. Cheirando ainda a cueiros, lança-se ao caminho em busca de aventuras!
Paulo mantinha-se de pé, a seu lado. com uma mão enfiada no bolso das calças esburacadas, esforçava-se por libertar o braço que o sapateiro lhe prendia, lançando a este último rancorosos olhares de viés. Um dos assistentes
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aconselhou Perfichka a açoitá-lo, mas o sapateiro replicou gravemente:
- Porquê ? Que o deixem seguir o seu caminho e talvez encontre a felicidade.
- Deve estar cheiinho de fome!-adivinhou Terêncio, estendendo-lhe um pedaço de pão:
- Toma, Paulo!
O rapaz pegou no pão, sem pressas, e saiu do botequim.
- Vai!--lançou-lhe o sapateiro. - Até à vista, meu encanto!
Ilia, que presenciara a cena à porta do seu quarto, fez sinal a Paulo para que fosse ter com ele; o fugitivo parou, primeiro, indeciso, depois, uma vez dentro do quarto, olhou à sua volta, desconfiado, e perguntou com dureza:
- Que é que me queres?
- Viva!...
- Viva! E então?...
- Senta-te!
- Para quê? .
- Para nada! Não queres conversar um pouco ?
As perguntas irritadas de Gratchev e a sua voz( um pouco rouca perturbavam Ilia. Tinha vontade de o interrogar, de lhe perguntar por onde andara, que vira. Mas Paulo, com o seu ar voluntarioso, puxou uma cadeira e, sentando-se para comer o pão, pôs-se ele próprio a fazer perguntas:
- Já acabaste a escola?
- Acabo na Primavera!
- Pois bem, eu já terminei os estudos!...
- O quê?!-exclamou Ilia, sem acreditar.
- As coisas comigo não se arrastam!
- E onde é que estudaste?
- Na prisão, com os presos!...
Ilia aproximou-se do companheiro e, contemplando o seu rosto emagrecido, perguntou:
- A vida lá é terrível, não?
-? Nem por sombras!... Andei por muitas prisões... em diversas cidades... Conheci nelas alguns senhores a
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valer... Também havia barines1... dos verdadeiros! Falavam várias línguas. Eu cuidava das coisas deles. Uns folgazões bestiais, apesar de estarem presos!
- Eram salteadores?
- E dos piores! - garantiu Paulo, categórico.
Ilia pestanejou e a consideração que já sentia pelo companheiro tornou-se ainda maior.
- Eram russos? - perguntou.
- Alguns eram judeus... Isso é que é uma gente!... Só vendo, meu velho! Deixavam depenados quantos lhe surgiam pela frente, até que eram caçados, e zás!, Sibéria com eles!
- Como é que tu estudaste?
- Assim... Dizia-lhes: ensinem-me isto e aquilo, e eles ensinavam...
- A ler e a escrever ?
- Quanto a escrever, não aprendi grande coisa!... Mas ler, sim, leio tudo o que quiser! Já li montes de livros!
Ao ouvir isto, a expressão de Ilia iluminou-se.
- Eu leio mais o Tiago!
E era ver quem apontava ao outro mais títulos. Mas Paulo deu-se em breve por vencido:
- Bem, vocês leram mais do que eu! Eu só li versos... Lá havia de tudo, mas que valesse a pena só versos...
Chegou, então, Tiago. Abriu muito os olhos e pôs-se a rir.
--Olha, o Carneiro! - lançou Paulo à laia de saudação.
- Por onde tens andado?
- Por sítios onde tu não porás os pés tão cedo!...
- Sabes - apressou-se Ilia a informar -. ele também tem lido livros...
-Oh!-exclamou Tiago, tornando-se logo mais amigável. Os três garotos sentaram-se lado a lado e entabularam uma conversa veemente, desconexa, mas extraordinariamente interessante.
- Vi cada coisa mais estranha, contado não se acredita!- dizia Paulo, transbordante de entusiasmo e vaidade.
1 Senhor russo, no tempo dos czares. (N. do E.)
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- Uma vez, fiquei dois dias sem comer... absolutamente nada! Passava a noite na floresta... sozinho.
- Tinhas medo ? - quis saber Tiago.
--Faz o mesmo e vais ver! Mas, se me não escondesse, os cães devoravam-me... Estive em Kazan... Há lá uma estátua de alguém que escrevia versos, foi por isso que lhe fizeram uma estátua... Era um tipo de um tamanho!... Tinha cá umas pernas! E o punho... olha, do tamanho da tua cabeça, Tiago! Eu também vou compor versos, fiquem vocês sabendo. Aliás, já sei alguma coisa disso...
Encolheu-se de repente, sentando-se em cima das pernas cruzadas, e, de olhos em alvo, muito sério, sobrancelhas franzidas, recitou em ritmo precipitado:
Passa gente sem te ver, Bem vestida, repleta, Mas pede-lhe de comer Manda-te logo Para o Diabo!...
Ao terminar, relanceou o olhar pelos companheiros e baixou a cabeça,sem acrescentar mais nada. Um silêncio constrangido reinou durante uns instantes; depois, Ilia perguntou prudentemente:
- Eram mesmo versos ?
- Não ouviste? replicou Paulo, irritado. - Tem "ver" e "comer" e portanto são versos!...
- É claro que são versos - interveio apressadamente Tiago. - Tu és sempre um coca-bichinhos, Ilia!
- E também compus estes - prosseguiu Paulo muito animado, voltando-se para Tiago, e, no tom rápido que usara antes, declamou:
Terra húmida, nuvens pesadas, Já soam do Outono as passadas, Para mim todas as portas fechadas, Para me cobrir só roupas rasgadas!
Os olhos de Tiago esbugalharam-se de admiração.
- Estes, sim - encareceu Ilia -, bem se vê que são versos!
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Um rubor de contentamento coloriu as faces de Paulo. Os seus olhos piscavam como que incomodados por fumo.
- Também vou compor longos poemas! - vangloriou-se. - De resto, não é assim tão difícil! Basta a gente ir por aí fora e olhar em redor: a floresta, os bosques, o céu, os céus! Ou, então, o espaço, a liberdade!... A coisa vem por si mesma!
- E agora o que vais fazer? - interrogou Ilia. Paulo olhou à sua volta sem proferir palavra e, finalmente, disse em voz baixa e pouco segura:
- Qualquer coisa!...
Mas acrescentou logo, resoluto:
- E depois, fujo outra vez!...
Foi, portanto, viver de novo em casa do sapateiro, e era aí que as crianças se reuniam todas as noites. Na cave havia menos barulho, estava-se melhor do que no quartito de Terêncio. Perfichka ficava raramente em casa; bebia o mais que podia e ia agora trabalhar a dias nas oficinas de outros artífices; quando não havia trabalho, deixava-se ficar pelo botequim. Andrajoso, de pés descalços, trazia sempre debaixo do braço o velho harmónio que se poderia julgar soldado ao seu corpo; transmitira-lhe uma parcela da sua alma descuidada e ambos tinham passado a ser iguais: arruinados, às três pancadas, transbordantes de canções e de trinados sem pejo. Perfichka era tido, por todos os artífices da cidade, um inesgotável inventor de coplas cómicas e atrevidas e a sua chegada era festejada em todos os locais de trabalho. Estimavam-no, porque sabia embelezar o duro e triste dia a dia dos que mourejam com cançonetas e anedotas patuscas e espirituosas, a propósito das ninharias da vida.
Quando lograva ganhar alguns copeques, o sapateiro dava metade à filha, resumindo-se nisto o interesse que lhe dispensava. Macha era senhora absoluta do seu próprio destino. Crescera muito e com os caracóis castanhos que lhe desciam até aos ombros, os olhos escuros que se tinham tornado ainda maiores e mais graves, delgada e ágil, era uma perfeita dona de casa: ia procurar aparas de madeira nas obras, tentava cozinhar o seu caldito e até ao meio-dia podiam vê-la, de saia arregaçada, enfarruscada, encharcada,
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num vaivém atarefado. Feita a comida, arrumava a casa, lavava-se, enfiava um vestido limpo e sentava-se à mesa, perto da janela, cosendo alguma roupa.
Matitsa visitava-a frequentemente, trazendo-lhe pãezinhos, chá, açúcar, e uma vez até lhe deu de presente um vestido azul. A garota recebia a visitante como se fosse já uma mulher, uma verdadeira senhora em sua casa; colocava junto de si o pequeno samovar de lata e, sorvendo em pequenos goles o chá fervente e saboroso, conversavam as duas animadamente e maldiziam de Perfichka. Matitsa praguejava violentamente; Macha fazia-lhe coro, na sua vozita aflautada, sem ressentimento, apenas por delicadeza. Em tudo quanto dizia acerca do pai sentia-se certa dose de indulgência.
- Que estoire! - berrava Matitsa num esgar de raiva. Pois então! Aquele beberranas esquece-se de que tem uma filhinha? Que rebente para aí que nem um cão, o estafermo do homem!
- Mas ele bem sabe que já não sou uma petiza e que me avenho sozinha...-replicava Macha.
- Ai, santo Deus, santo Deus!-lastimava Matitsa, soltando profundos suspiros. - As coisas que a gente vê neste mundo! Que vai ser da pobre desgraçadinha? Eu também tinha uma filha, como tu! Ficou lá em casa, para as bandas de Khorol... E Khorol é tão longe que, mesmo que me tivessem deixado ir, não teria sabido lá chegar... Veja-se como as coisas sucedem!... Vamos vivendo, vivendo neste mundo, e até esquecemos onde é a nossa terra.
Macha gostava de ouvir a voz profunda desta mulher de olhar doce como um ruminante. A pobre cheirava sempre a vodka, o que não impedia a pequena de se lhe sentar ao colo, recostando-se no peito volumoso, nem de aproximar, num beijo, os seus lábios bem desenhados da boca carnuda. Matitsa aparecia de manhã, e à noitinha eram os rapazes que se juntavam em casa dela. Se não tinham nada para ler, jogavam às cartas, mas isso acontecia raramente. Macha também se interessava muito pela leitura e soltava gritinhos no decorrer das passagens especialmente emocionantes.
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Tiago testemunhava grande solicitude pela rapariguinha. Mais ainda que dantes. Trazia-lhe de casa constantemente nacos de pão e carne, chá, açúcar, petróleo em garrafas de cerveja; por vezes, dava-lhe o dinheiro que lhe sobrava da compra dos livros... Habituara-se a estas dádivas e fazia-o sem prestar ao facto a mínima importância; Macha aceitava as atenções como coisa perfeitamente natural, não lhes atribuindo também qualquer significado.
- Tiago - dizia ela -, não tenho carvão!
Ao cabo de poucos instantes, o rapaz estava de volta com carvão, ou então dava-lhe uma moeda de sete copeques, dizendo:
- Vai comprá-lo!... Não tive maneira de surripiar nem um pedacito!
Ilia também se habituara a este estado de coisas e ninguém no pátio se preocupava com o caso. As vezes, a pedido do camarada, também Ilia ia roubar alguma coisa à cozinha ou ao balcão para trazer para a cave do sapateiro. A rapariguita, delgada e morena, órfã como ele, inspirava-lhe a maior simpatia. Seduzia-o, sobretudo, a aptidão que ela mostrava para viver sozinha e tratar de tudo como uma pessoa crescida. Gostava de a ver rir e fazia sempre o possível por diverti-la. Quando o não conseguia, encolerizava-se e espicaçava a pequena:
- Eh! Tição! Lambuzada! Ela franzia o rosto e replicava:
- Seu diabo mongol!...
Palavra puxa palavra, acabavam por se zangar a sério: Macha, enfurecida, corria para Ilia, para o esgatanhar, e ele, rindo satisfeito, fugia-lhe.
Certa vez que jogavam às cartas, Ilia descobriu que Macha fazia batota e, fora de si, gritou-lhe:
- Ai, a amiguinha do Tiago!
E, para frisar o insulto, acrescentou uma palavra grosseira, cujo significado não ignorava. Tiago estava presente. Começou por rir, mas, vendo o rosto desfeito da rapariga e as lágrimas a saltarem-lhe dos olhos, imobilizou-se, pálido. E de súbito deu um pulo na cadeira e atirou-se a Ilia, esmurrando-lhe o nariz, puxando-lhe pelos cabelos e fazendo-o cair ao chão. O impulso foi tão repentino que o outro
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nem sequer teve tempo de se defender. Cego de dor e de humilhação, ergueu-se, baixou a cabeça e arremeteu com Tiago, gritando-lhe:
- Cuidado! Vais saber com quem te metes... - mas viu o companheiro de novo sentado, apoiando-se à mesa e a chorar amargamente, enquanto Macha, de pé a seu lado, dizia com lágrimas na voz:
- Deixa-o. Ele é um sujo... Uma autêntica peste! São todos maus na família dele: o pai está no degredo e o tio é corcunda!... Também a ele lhe há-de nascer uma marreca! És um porco! - desfechou ela, avançando sem medo para Ilia. - Um monte de estrume!... Um zé-ninguém! Anda, chega-te cá! Queres que te deixe esse focinho em sangue? Vens ou não vens?
Mas Ilia não se acercou dela. As lágrimas de Tiago, que ele não quisera ofender, envergonhavam-no e não se queria bater com uma rapariguinha. Bem via que ela estava decidida a enfrentá-lo. Saiu, pois, da cave sem abrir a boca e deixou-se ficar pelo pátio durante muito tempo, entregue a grande tristeza. Finalmente, aproximou-se da janela de Perfichka e lançou lá para dentro um tímido olhar. Tiago e a sua amiga tinham recomeçado a jogar. Macha, com o rosto semiescondido pelo leque de cartas, parecia estar a rir, enquanto Tiago contemplava o seu próprio jogo com grande indecisão, puxando ora uma carta, ora outra. Ilia ficou ainda mais aborrecido. Continuou a vaguear pelo pátio, durante mais alguns minutos, acabando por se atrever a entrar na cave.
- Deixem-me jogar com vocês! - pediu, aproximando-se da mesa.
O coração batia-lhe com força e as faces estavam vermelhas. Mantinha os olhos presos no chão. Tiago e Macha não diziam nada.
- Não farei mais bulha, palavra, não farei mais! - continuou, arriscando uma olhadela.
- Bem, então sente-se, seu burro!-condescendeu Macha.
E Tiago acrescentou com severidade:
- Tu és um imbecil! Um grande imbecil... Toma cuidado quando falas...
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- Olha, olha! Vês o que me fizeste?-repontou Ilia, reprovador.
- Mereceste-o - declarou a rapariga num tom peremptório.
- Pronto, têm razão! Não me zango... a culpa foi minha!... - concordou Ilia, dirigindo a Tiago um sorriso envergonhado. - Tu também não ficas zangado, está bem?
- Está bem! Pega lá cartas...
- Grande bruto!-resmungou ainda Macha, e ficou tudo arrumado.
Poucos minutos depois, Ilia, de sobrancelhas franzidas, já estava apaixonadamente entregue ao jogo. Fazia sempre por jogar contra Macha: experimentava grande prazer ao vê-la perder e durante toda a partida só tinha esse fito. Mas a pequena jogava bem e era Tiago, geralmente, quem perdia.
- Olá, olhos de coruja!-ralhava Macha com terna comiseração. - Fizeste de parvo mais uma vez!
- Diabos levem as cartas! Estou farto! Vamos antes ler!
Iam buscar um livrito de capa vermelha já muito gasta e manchada e liam os tormentos e as proezas do amor.
Quando Paulo Gratchev se acostumou àquela vida, declarou-lhes com ares de homem experiente:
- Vocês não vivem nada mal, não senhor!
E olhando para Tiago e para Macha acrescentou, meio a sério, meio em troça:
- Mais tarde, Tiago, casas-te com a Macha!
- Parvalhão!... ---soltou a rapariga, rindo, e puseram-se os quatro às gargalhadas.
Chegados ao fim de um livro, ou quando estavam cansados de ler, Paulo contava as suas aventuras, e estas narrações não eram, por certo, menos interessantes que as leituras.
- No dia em que cheguei à conclusão de que não era possível percorrer o país sem documento de identidade, sabem o que fiz, meus amigos? Tornei-me astucioso. Mal via um guarda de serviço, desatava a andar depressa como se alguém me tivesse mandado ir a um lado qualquer, ou então punha-me ao lado de um camponês, fingindo que ele era o meu patrão, ou o meu pai, ou qualquer coisa no género...
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O guarda mirava e a coisa dava resultado, não me prendia... O melhor é nas aldeias; não há guardas: só velhos, velhas e garotos, os homens andam nos campos. Perguntam-nos: "Quem és tu?" "Um mendigo..." "Onde estão os teus pais?" "Não tenho..." "Donde vens?" "Da cidade." E pronto! Dão-nos de beber, de comer, tudo o que é preciso. E vamo-nos embora... Vamos como queremos: podemos ir numa correria desenfreada ou andar a passo de caracol... Por toda a parte, campos, bosques... cotovias a cantar... até dá vontade de voar com elas! Se estivéssemos bem comidos, não teríamos vontade de coisa alguma e poderíamos ir andando, assim, até ao fim do mundo. Como se alguém puxasse... como se a nossa mãe nos levasse nos braços. Mas às vezes senti fome, olaré se senti! Há alturas em que nos parece termos um buraco no lugar do estômago, tal é a fome. Até éramos capazes de comer terra! E a cabeça anda à roda... Ah!, depois, quando descobrimos uma côdeazita de pão e lhe ferramos o dente, ai, Céus! Poderíamos ficar a comer o dia inteiro. Que bom que era esse tempo!... E, no entanto, quando dei comigo na prisão, fiquei contente!... A princípio, tive medo, mas depois senti-me lá perfeitamente! Tinha um medo danado dos guardas, pensava que me agarrariam e me chicoteariam até rebentar! Mas o que me caçou fê-lo pela mansa... Aproximou-se de mim, por trás, e pumba!, deitou-me a mão! Eu estava em frente de uma loja, olhando para os relógios... Havia uma data deles, de ouro e dos outros. E zás! O chinfrim que eu fiz! E o homem todo amável: "Quem és tu, donde vens?" E fui eu e disse; de qualquer modo, eles acabam por sabê-lo, sabem tudo... Levou-me à esquadra... Aquilo estava à cunha de senhores... "Para onde vais?" "Ando a viajar." Torceram-se de riso. E depois pregaram comigo na prisão... Aí também se puseram todos a rir. E logo uns senhores tomaram-me ao seu serviço... Que patuscos! Ah!, ah!
Falava dos "senhores" por interjeições; não havia dúvida de que lhe tinham causado grande impressão; mas as imagens deles tinham-se diluído na sua memória e amalgamado numa grande mancha informe. Depois de ter passado cerca de um mês em casa do sapateiro, Paulo desapareceu de novo, Perfichka soube, tempos depois, que o rapaz tinha arranjado
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trabalho numa tipografia e morava num bairro afastado. Ouvindo a notícia, Ilia suspirou de inveja e disse a Tiago:
?- Nós os dois é que nos vamos encher de bolor por cá, com toda a certeza...
Nos primeiros tempos que se seguiram à desaparição de Paulo, Ilia ressentiu uma espécie de vazio; mas em breve foi retomado pelo encanto de uma vida maravilhosa e insólita. As leituras recomeçaram e a alma de Ilia mergulhou em delicioso torpor.
O despertar foi duro e inesperado; certa manhã, o tio veio acordá-lo com estas palavras:
- Lava-te convenientemente, mas depressa...
- Onde vamos? - perguntou Ilia, ainda estremunhado.
- Colocar-te! Graças a Deus, sempre acabámos por encontrar!... Vais trabalhar numa peixaria.
Ilia teve um angustioso pressentimento. Desaparecera num abrir f fechar de olhos o desejo de abandonar aquela casa, que conhecia no mais ínfimo pormenor, em que tudo lhe era familiar, e o quarto, até ali detestado, afigurava-se-lhe, agora, claro e asseado. Sentado na borda da cama, tinha os olhos postos no soalho, sem vontade para se vestir... Surgiu Tiago, aborrecido e espantado; encostou a cabeça ao ombro esquerdo e relanceou um olhar pelo camarada.
- Avia-te, meu pai está à espera... Voltarás cá a casa, de tempos a tempos?
- Hei-de voltar...
- Bem... É preciso ir dizer adeus à Macha.
- Pois quê! Não é para sempre que me vou embora replicou Ilia com irritação.
Macha apareceu sem ser chamada. Ficou à porta e disse tristemente, olhando para Ilia:
- Então adeus!
Mal-humorado, praguejando, Ilia deu um grande puxão na blusa que estava a vestir. Macha e Tiago suspiraram profundamente, em uníssono.
- com que então, hás-de voltar! - soltou Tiago.
- Está combinado! - afirmou Ilia de má catadura.
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- Olhem-me para este arrogante caixeiro!... - brincou Macha.
Mas Ilia, com pouca disposição para graças, murmurou:
- Grande parva!
Pouco depois, ia pela rua fora ao lado de Petrukha, que envergara para a ocasião o trajo de cerimónia: uma longa sobrecasaca e botas rangentes; o botequineiro explicou-lhe com ares doutorais:
- Vou-te acompanhar ao novo emprego, na loja de um homem digno, conhecido de toda a cidade: Cirilo Ivanytch Strogany... Recebeu uma comenda pelas suas qualidades e pela sua benemerência, e não é tudo! É conselheiro municipal e talvez até venha a ser presidente da Câmara. Serve-o fiel e honestamente. De resto, ele ajudar-te-á na vida... Tu és um rapaz assisado e não um desses valdevinos que andam para aí... E, para o Strogany, espalhar benefícios à sua volta, é o mesmo que cuspir para o lado...
Ilia escutava, tentando representar-se o mercador Strogany. Pensou para consigo que se deveria parecer com o avô Jeremias - magro, bondoso e afável como. o defunto trapeiro. Mas, ao chegar à loja, viu, por trás da caixa, um homem de elevada estatura e de barriga enorme. O crânio era calvo, mas o rosto desaparecia, dos olhos até bem abaixo do queixo, sob uma espessa barba ruiva. Tinha umas sobrancelhas fartas e igualmente ruivas, deixando entrever uns olhitos verdes, agitados e irascíveis.
- Cumprimenta! - sussurrou Petrukha, indicando com o olhar o homenzarrão vermelhusco. Ilia, decepcionado, inclinou a cabeça.
- Como te chamas? - interrogou o homem com uma profunda voz de baixo que ressoou pela loja. - Pois então, Ilia, olha-me bem nos olhos, bem de frente! Doravante ninguém mais existe para ti a não ser o teu patrão! Nem parentes, nem amigos, percebeste? Serei para ti pai e mãe, não preciso dizer mais nada...
Ilia lançou um olhar furtivo à loja. Em cestas cheias de gelo jaziam siluros e esturjões enormes; em pranchas estavam alinhados lúcios e carpas defumados; por toda a parte luziam latas. O cheiro forte da salmoura flutuava no ar, tornando atabafante o exíguo estabelecimento. No chão, em grandes
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cubas, nadavam peixes vivos: pequenos esturjões, lotas, percas e mugens. Uma solha pequenina agitavá-se com desplante, incomodando os outros peixes, e as pancadas que dava com a cauda salpicavam o pavimento. Ilia teve pena dela.
Um dos caixeiros, baixo e gordo, de grandes olhos redondos e nariz adunco, que o fazia parecer-se com um gavião, mandou Ilia retirar um peixe morto de dentro de uma das cubas. Arregaçando as mangas, o rapaz tentou, como pôde, apanhar o peixe.
- Agarra-o por trás da cabeça, palerma! - dizia a meia voz o caixeiro.
Por vezes, Ilia enganava-se e apanhava um peixe vivo, que se mantinha imóvel; este fugia-lhe das mãos e, em sobressaltos convulsivos, dava com a cabeça contra a parede da cuba.
Ilia picou-se numa barbatana e pôs-se a chupar o dedo.
- Deixa o dedo - vociferou o patrão com a sua voz de baixo.
Depois, entregaram ao garoto um pesado cutelo e ordenaram-lhe que descesse à cave para quebrar gelo, de forma a nivelá-lo. As estilhas de gelo saltavam-lhe à cara, entravam-lhe pela gola da camisa; a cave era sombria e fria, e o cutelo, manejado desajeitadamente, ia bater no tecto. Ao cabo de certo tempo, Ilia regressou à loja, alagado, e disse ao patrão:
- Quebrei uma espécie de frasco...
O patrão fitou-o demoradamente e depois disse:
- Desta vez, perdoo-te. Perdoo-te porque me vieste dizer... Para a próxima, arranco-te as orelhas...
E Ilia viu-se insensivelmente envolto num turbilhão monótono, engrenagem de um maquinismo imenso e ruidoso. Saltava da cama às cinco da manhã, engraxava os sapatos do patrão e de toda a família, sem esquecer os dos caixeiros; depois ia para a loja, varria, lavava as bancadas e as balanças. Chegavam os fregueses, ia buscar a mercadoria, levava as compras dos fregueses a casa deles, em seguida ia comer. Depois de comer, o trabalho estava acabado e, se o não mandassem a qualquer recado, ficava especado à porta da loja, contemplando a azáfama reinante no mercado
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e pensando que havia muita gente na terra e que se consumia grande quantidade de peixe, carne e hortaliça. Um dia, dirigiu-se ao caixeiro que lembrava um gavião:
- Ó Miguel!
- Que há?
- Que comerão as pessoas quando se tiver pescado todo o peixe e abatido todo o gado?
- Idiota! - foi a resposta do caixeiro.
Uma outra vez, pegou num jornal que estava em cima do balcão e pôs-se a ler, de pé, junto à porta. Mas o caixeiro arrancou-lho das mãos, deu-lhe um tabefe e gritou-lhe, ameaçador:
- Quem te deu licença, hem?, meu burro!...
ília não gostava deste caixeiro. Reparara que o homem, ao dirigir a palavra ao patrão, usava sempre uma espécie de assobiar delicado 1 e que, pelas costas, tratava o amo de gatuno e espantalho ruço. Ao sábado e nas vésperas dos dias santos, o comerciante deixava a loja para ir à igreja; então, o caixeiro mandava vir a mulher e a irmã e dava-lhes, para que levassem para casa, um saco cheio de peixe, caviar o conservas. Por outro lado, Ilia apercebera-se de que ele sentia prazer em embirrar com os mendigos, entre os quais se contavam muitos velhos que recordavam à criança o avô Jeremias. Quando um dos mendigos se aproximava da porta da loja e, com uma saudação, implorava baixinho a caridade, o caixeiro agarrava pela cabeça algum peixito e metia-lho com brutalidade na mão, de maneira que as barbatanas se lhe espetassem na palma. E ao ver o velho, estremecendo de dor, retirar a mão, o caixeiro exclamava, irritado e trocista:
- Ah, não queres? É pequeno de mais? Pois, então, vai para o Inferno!...
Certa vez, uma velha mendiga tirou furtivamente um lúcio defumado, escondendo-o nos farrapos; o caixeiro observara a cena; deitou a mão à pobre velha, arrancou-lhe o
1 com efeito, era costume na Rússia czarista patentear a deferência em relação aos superiores terminando as palavras ou as frases por um som soprado ou sibilante.
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peixe e, fazendo-a curvar-se, deu-lhe um bofetão, com um gesto brusco da mão direita, de baixo para cima. A mendiga não gemeu, nem disse nada, e, de cabeça baixa, afastou-se silenciosa; mas Ilia viu que dois fiozitos de sangue lhe escorriam do nariz contundido.
- A culpa foi tua!-berrou-lhe o caixeiro nas costas. E voltando-se para o outro caixeiro, que se chamava
Karp, acrescentou:
- Detesto os mendigos!... São todos uns parasitas! Arrastam-se por aí, a pedinchar, e têm sempre a barriga cheia! Vivem bem!... Afirmam que são os irmãozinhos de Cristo. E eu, que sou eu para o Cristo? Talvez um estranho, não? Passo a vida a contorcer-me como um verme cortado aos pedaços e não tenho direito a descanso, nem a qualquer consideração...
Karp era um beato: só falava de templos, de chantres, de missas arquiepiscopais, e todos os sábados tremia de susto, só de pensar que podia chegar atrasado às vésperas. Também manifestava grande interesse pela arte de prestidigitação, e sempre que aparecia na cidade qualquer "encantador e mágico", lá estava Karp caído... Era alto, magro e muito habilidoso; quando a loja se encontrava cheia de gente, tinha artes de serpentear através da clientela, sorrindo para todos, dando uma palavrinha a cada um, mantendo sempre os olhos fitos na alta silhueta do patrão, como para elogiar o seu jeito de conduzir o negócio. com Ilia mostrava-se desdenhoso e escarninho, e o garoto também não gostava dele. Do patrão, sim, é que Ilia gostava. Permanecia, de manhã à noite, atrás da caixa, abrindo a gaveta para nela lançar o dinheiro. O pequeno via que o fazia com indiferença, sem a menor cupidez, e isso agradava-lhe. Era igualmente sensível ao facto de o patrão se dirigir com maior frequência e mais amigavelmente a ele do que aos caixeiros. Nos momentos de relativo sossego, quando não havia fregueses na loja, o patrão dizia, às vezes, a Ilia, que tinha o costume de se postar à entrada com ar acabrunhado:
- Então que é isso, Ilia, estás quase a dormir?
- Não, senhor... ,
- Porque andas sempre tão sério?
- Sei cá...
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- Será que te aborreces?
- Sim, senhor...
- Pois bem, continua! Eu também me aborreci antigamente... Dos nove aos trinta e dois anos, aborreci-me em casa dos outros... E agora já passa de vinte e três anos que vejo os outros aborrecerem-se...
E abanava a cabeça, como se quisesse acrescentar:
"Não há nada a fazer!"
Após duas ou três conversas deste género, Ilia começou a. interrogar-se por que razão um homem assim tão rico e respeitado passaria os dias numa loja nojenta, não obstante possuir uma casa vasta e asseada. Era uma estranha mansão: severa e silenciosa, tudo nela decorria segundo um ritual imutável. E tinha-se a sensação de falta de espaço, apesar de no rés-do-chão e no primeiro andar não viverem, além do patrão, senão a mulher e as três filhas deste, uma cozinheira, uma criada e um porteiro, que também fazia de cocheiro. Dentro de casa todos falavam em voz baixa e, ao atravessarem o pátio, imenso e muito bem limpo, deslizavam ao longo das paredes como se receassem penetrar no espaço- livre. Comparando esta casa sossegada e imponente com a de Petrukha, Ilia chegou à conclusão de que era mais agradável viver nesta última, apesar da pobreza, do ruído e da sujidade. Estava morto por perguntar ao mercador porque se dava ao trabalho de passar o dia no mercado, afogado em ruído e agitação, em vez de ficar em casa, envolto em calma e tranquilidade.
Um dia em que Karp tinha saído e que Miguel escolhia na cave o peixe estragado para o asilo de velhos, o patrão meteu conversa com Ilia e este disse-lhe:
- O Sr. Cirilo devia largar o estabelecimento... Já é rico... Tem uma linda casa, enquanto na loja cheira mal... e a gente aborrece-se!
Strogany, com os cotovelos apoiados na caixa, observou o rapaz com olhos perscrutadores e as suas sobrancelhas estremeceram.
- E que mais? - perguntou um pouco depois de Ilia se ter calado. - É tudo quanto me querias dizer?
- É... sim, senhor... - gaguejou Ilia, perturbado e subitamente apavorado com a ousadia que tivera.
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- Chega cá! .
Ilia aproximou-se. O comerciante segurou-lhe no queixo e fê-lo levantar os olhos. Fitou-o, pestanejando, e interrogou:
- Ensinaram-te a lição ou foste tu próprio buscar isso à cachimónia?
--Foi ideia minha, garanto-lhe!
- bom... Se é assim, está bem. Mas vou-te dizer uma coisa: sou o teu patrão, entendes?, o teu patrão, e nem sequer te passe pela cabeça voltares a dizer-me coisas assim! Faz por te lembrares! Volta para o teu lugar...
E quando Karp chegou, o patrão pôs-se, repentinamente, a dizer, voltado para o caixeiro ?-? mas Ilia bem via que ele o observava pelo rabo do olho:
- Durante a vida inteira, o homem tem de fazer qualquer coisa!... É preciso ser-se muito estúpido para não compreender esta verdade. Como é possível viver para nada, sem fazer nada? A vida daquele que se não afeiçoa ao trabalho não tem sentido algum.
- É assim mesmo, Sr. Strogany - respondeu o caixeiro, e, percorrendo a loja com a vista, procurou alguma coisa para fazer. Ilia observou o patrão e ficou pensativo. Cada vez se aborrecia mais junto daquela gente. Os dias sucediam-se lentamente uns aos outros, como uma infindável linha cinzenta desenrolando-se de um novelo invisível, e o garoto começou a magicar que estes dias nunca mais teriam fim, que passaria a vida inteira postado à porta, com o rumor do mercado nos ouvidos. Mas o seu pensamento, avivado por tudo quanto tinha vivido ou lido, resistia à influência entorpecedora deste viver monótono e trabalhava em surdina, incessantemente. A criança, taciturna e séria, sentia-se, por vezes, tão sufocada de tal aborrecimento, ao observar esta gente, que lhe apetecia fechar os olhos e fugir para qualquer lado, muito longe, mais longe ainda do que tinha feito Paulo Gratchev, partir para não mais regressar a esta atmosfera insípida, a esta labutação incompreensível.
Nos dias santos, mandavam-no à igreja. Voltava sempre à loja com a impressão de ter ficado purificado interiormente pela tépida humidade perfumada reinante no templo. No espaço de seis meses, deixaram-no ir duas vezes visitar o tio. Ali, nada tinha mudado. O corcunda emagrecera,
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Petrukha assobiava cada vez mais alto e o seu rosto cor-de-rosa fizera-se vermelho. Tiago queixava-se de ter sido tomado de ponta pelo pai.
- Não cessa de me atazanar: "Põe-te mas é a trabalhar... Não quero cá em casa um papa-livros..." Mas que hei-de eu fazer, pois não gosto de estar ao balcão? Esta algazarra, este chinfrim, os gritos, nem há maneira de nos entendermos uns aos outros!... Estou-lhe sempre a dizer: "Arranja-me um lugar de caixeiro, num estabelecimento de ícones...
Os olhos de Tiago fitavam-no com tristeza; a pele da testa tinha amarelecido e brilhava como a calva do pai.
- Vocês lêem livros ? - quis saber Ilia.
- Evidentemente. É o único prazer que temos... Quando lemos, temos a impressão de viver noutra cidade... e quando acabamos, é como se caíssemos do alto de um campanário...
Ilia olhou para ele e comentou:
- Estás muito mais velho... E a Macha, onde está?
- Foi ao asilo dos velhos pedir esmola. Agora já não a ajudo muito; meu pai anda em cima de mim... E o Perfichka está sempre doente... Então a Macha começou a ir ao asilo, onde lhe dão sopa e tudo... A Matitsa ainda a auxilia... É uma vida dura para a Macha!
- Quer dizer: vocês também se aborrecem! -considerou Ilia tristemente.
- E tu, aborreces-te muito?
- De morte!... Vocês, ao menos, têm livros... Enquanto nós, em toda a loja, só temos O Novo Prestidigitador e Mágico, que está sempre na arca do caixeiro e que eu nunca conseguirei ler... aquela besta não mo quer emprestar! Começámos mal, Tiago!...
- Podes dizê-lo, meu velho...
Conversaram durante mais alguns instantes, separando-se em seguida, ambos tristes.
Decorreram algumas semanas e subitamente a sorte sorriu a Ilia, de maneira brutal, mas no entanto favorável. Certa manhã, numa altura em que a venda estava no auge, o patrão, postado atrás da caixa, começou a rebuscar por todo o lado. O sangue subiu-lhe à cabeça, a sua testa ficou-Ihe vermelha e as veias do pescoço incharam-lhe.
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?-Ilia! -chamou ele. - Vê aqui no chão se encontras uma moeda de dez rublos...
Ilia fitou o mercador, lançou um breve olhar pelo chão à sua volta e respondeu tranquilamente:
- Não há nada...
- Fazes o favor de procurar como deve ser!...-vociferou o patrão em voz cava.
- Mas já procurei...
- Procura melhor, meu casmurro!-lançou-lhe o homem, ameaçador.
E quando os fregueses saíram, chamou Ilia, agarrou-o por uma orelha, apertando vigorosamente os dedos grossos, e pôs-se a puxá-la de um lado para o outro, rugindo:
- Quando te mando procurar, procura! Quando te mando procurar, procura!...
Ilia apoiou ambas as mãos na barriga do amo e, repelindo-o com violência, libertou a orelha; depois, com a voz a tremer de raiva, ofendido, fremente, bradou:
- Porque é que me bate? Foi o Miguel quem roubou o dinheiro... Meteu-o na algibeira do colete, do lado esquerdo...
O rosto de ave de rapina do caixeiro alongou-se de estupefacção; todo o seu corpo estremeceu e bruscamente, erguendo a mão direita, deu um soco na cabeça de Ilia. O rapazinho caiu, soltando um gemido, e, desfeito em lágrimas, arrastou-se para um canto da loja. Como se estivesse a sonhar, ouviu o rugido do patrão:
-Olá! Onde é que vais? Passa para cá o dinheiro...
- É mentira... - gemia o caixeiro.
- Dou-te com este peso nas ventas!
- Ó Sr. Cirilo... Esta moeda é minha... Juro!
- Caluda!...
E o silêncio reinou. O patrão foi para a divisão contígua e ouviam-no manejar violentamente as esferas do ábaco. Sentado no chão, apertando a cabeça com ambas as mãos, Ilia fitava com ódio o caixeiro; no canto oposto, o outro também olhava para o adversário com grande animosidade.
- com que então, meu malandro, deixei-te bem aviado? - escarneceu o caixeiro em voz abafada.
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Ilia encolheu os ombros e não respondeu.
- E agora, vou-te deixar mais uma recordaçãozinha!
Sem pressas, cresceu para o garoto, com os olhos redondos, brilhantes de raiva, cravados nele. Mas Ilia ergueu-se, deitou a mão a. uma faca, comprida e aguçada, que se encontrava em cima do balcão, e gritou:
- Aproxima-te!
O caixeiro estacou, medindo com o olhar o garoto entroncado e vigoroso, que segurava com firmeza a faca; e sem avançar, soltou com desprezo:
- Raça de condenado...
- Anda, aproxima-te, aproxima-te!-repetia o rapaz, dando um passo em frente. Tudo oscilava e rodopiava à sua volta, mas sentia crescer dentro de si uma grande força, que o fazia avançar sem receio.
- Larga a faca! -trovejou a voz do patrão.
Ilia teve um sobressalto, notou a barba ruiva e as faces congestionadas, mas não se moveu.
- Estou-te a dizer para largares a faca!-repetiu Strogany mais baixo,
Ilia pousou a faca em cima do balcão, desatou a soluçar e sentou-se de novo no chão. A cabeça andava-lhe à roda, doía-lhe, a orelha escaldava-lhe. Uma opressão no peito fazia-o ofegar. Sentia uma dor que lhe descompassava o bater do coração, lhe apertava lentamente a garganta, o impedia de falar. A voz do patrão chegava-lhe vinda de muito longe:
- Aqui estão as tuas contas, Miguel...
- com licença...
- Rua,; ou chamo a polícia...
- Muito bem! Vou-me embora... mas tome cuidado com este rapaz... Pegar numa faca!... Ah, ah!
- Rua!
De novo o silêncio. Ilia estremeceu com a desagradável sensação de alguma coisa que lhe aflorava o rosto. Passou a mão pela face, limpou as lágrimas e viu o patrão atrás da caixa, fitando-o perscrutador. Levantou-se e, em passadas inseguras, foi até à porta para retomar o seu lugar.
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- Espera aí - desfechou o patrão. - Terias sido capaz de lhe dar uma facada?
- Teria - afirmou o rapaz, baixo, mas decidido.
- Ah, sim ?!... Porque foi o teu pai para o degredo? Matou?
- Deitou fogo...
--Também não está mal, não senhor... Chegou então Karp, que se foi calmamente sentar num banco junto da porta e se pôs a olhar para a rua.
- IKarp, meu bom amigo! - disse o patrão fitando-o ironicamente. - Despedi o Miguel...
- O senhor é o patrão!...
- Ele andava a roubar-me, hem ?
--Santo Deus!-comentou docemente Karp, com uma expressão de susto. - Será possível? Hem?
Um sorriso de troça fez estremecer a barba ruiva do comerciante. Sem sair do seu lugar atrás da caixa, largou uma gargalhada que fez saltitar todas as suas banhas.
?-Olé, meu amiguinho!, tu estás a querer-me pregar alguma...
Deixou de súbito de rir, suspirou fundo e acrescentou meditativo mas com rudeza:
- Ai, os homens! Os homens! Todos querem viver, todos exigem mais do que possuem! Anda lá, dize-me, Ilia, já tinhas notado que o Miguel me roubava?
- Já...
- E porque me não disseste nada? Tinhas medo, talvez?
- Não, não tinha medo...
- Então foi por maldade que mo disseste há pouco...
- Foi - replicou Ilia, num tom firme.
- Estão a ver isto! -exclamou o patrão. E, sem dizer mais nada, pôs-se gravemente a examinar Ilia, acariciando a barba num gesto lento.
Depois:
--E tu, Ilia, também roubas?
- Não...
- Acredito... Tu não és dos que roubam... E Karp, este nosso amigo Karp, aqui presente, rouba?
- Rouba!-declarou o garoto.
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Karp olhou para o rapaz, admirado, teve um leve sobressalto, mas logo lhe voltou tranquilamente as costas. O patrão franziu as sobrancelhas, com expressão de poucos amigos, e recomeçou a acariciar a barba. Ilia percebia que se passava algo de extraordinário e permanecia tenso, aguardando um desfecho. As moscas zumbiam no ar empestado de odores; ouvia-se marulhar docemente a água das cubas onde se agitavam os peixes vivos.
- Karp! -gritou o patrão para o caixeiro, que, imóvel, parecia observar com interesse o que se passava na rua.
- Que manda, senhor? - perguntou Karp, acorrendo, serviçal.
- Ouviste o que acabam de dizer de ti? - interrogou Strogany com um sorriso trocista.
- Ouvi...
- E então ?
- Não faz mal! - disse Karp com um gesto de indiferença.
- O quê, não faz mal ?
- O caso é simples, senhor. Tenho a minha dignidade, senhor, pois sou um homem cumpridor e não me devo ofender com palavras de um garoto. Como pode verificar, este rapaz é francamente estúpido e não tem a mínima noção...
- Não me venhas com cantigas! Dize-me simplesmente se o que ele afirmou é verdade.
- O que é a verdade, senhor ? - exclamou Karp, encolhendo os ombros e baixando a cabeça. - É claro que, se lhe convier, o patrão poderá tomar as palavras do rapaz pela verdade... Far-se-á como entender!...
Soltou um suspiro e afastou os braços com ar de ofendido.
- É evidente que sou eu quem decido a respeito de tudo, nesta casa - confirmou o patrão. - Quer dizer: em tua opinião, este gaiato é estúpido?
- Completamente estúpido - assegurou Karp sem a menor hesitação.
- Quanto a isso, é bem possível que estejas a mentir... insinuou Strogany, desatando a rir. - Essa foi boa! Viste
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como ele te lançou em rosto, oh, oh, oh! "O Karp rouba?" "Rouba!" Oh, oh, oh!
Perante a. hilaridade do amo, Ilia sentiu-se cheio de alegria vingadora; lançou um olhar de triunfo a Karp e voltou-se, reconhecido, para Strogany. O caixeiro, vendo o patrão rir a bandeiras despregadas, emitiu, por seu turno, um risinho prudente:
- Eh, eh, eh!...
Mal ouviu aqueles frouxos estrépitos de, riso, Strogany ordenou brutalmente:
- Fecha a loja!...
Quando Ilia se aprontava para recolher a casa, Karp disse-lhe, abanando a cabeça:
- Imbecil, não passas de um imbecil! Vamos lá, pensa bem, porque foste arranjar este sarilho todo? Cuidas que é assim que se entra nas boas graças dos patrões? Grande burro! Convenceste-te de que ele não sabia que eu e o Miguel o roubávamos? Foi igualmente roubando que ele mesmo começou... O facto de ter corrido com o Miguel, manda-me a consciência que to agradeça. Mas quanto ao que disseste de mim, nunca mais to perdoarei! Não passa de estúpida insolência da tua parte. Tratar-me assim, na minha frente! Hás-de pagar-mo!... Isto significa que não tens o mínimo respeito por mim...
Ilia escutava-o, sem compreender muito bem. A seu ver. Karp deveria zangar-se com ele doutra forma: estava convencido de que o caixeiro lhe daria uma sova a caminho de casa e receava sair da loja... Ora, em vez de cólera, o que Karp lhe dizia exprimia apenas desprezo e ironia, e as ameaças do homem não o assustavam. Naquela noite, o patrão mandou chamar Ilia ao primeiro andar, parte da casa reservada à família.
--Era de ver! Vai lá, meu menino! -exclamou o caixeiro em tom de mau augúrio.
Lá em cima, Ilia parou à entrada de uma vasta sala, ao meio da qual, por baixo de um pesado candeeiro, se encontrava uma mesa de madeira maciça, ostentando um enorme samovar. Em volta da mesa estavam sentados o patrão, a mulher e as filhas: cada uma delas tinha mais um palmo que a seguinte, mas eram as três ruivas e de pele
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muito branca; os rostos tinham-nos alongados e cobertos de sardas. Quando Ilia entrou, aconchegaram-se umas às outras e cravaram nele três pares de olhos azuis e horrorizados.
- Ei-lo!-disse o patrão.
- Vejam-me isto! - exclamou a patroa, assustada, pondo-se a observar Ilia como se o visse pela primeira vez. Strogany deu uma risadinha forçada, acariciou a barba, tamborilou na mesa e começou gravemente:
- Ilia. mandei-te chamar para te dizer que dispenso doravante os teus serviços e que, por conseguinte, a única coisa que tens a fazer é dar às gâmbias desta casa para fora...
Ilia estremeceu, abriu a boca de espanto e, dando meia volta, dirigiu-se para a saída.
- Alto! - berrou o mercador, estendendo o braço na sua direcção; deu depois uma palmada na mesa e repetiu, desta vez mais suavemente: - Alto!
Ergueu um dedo e declarou lenta e severamente:
- Não foi só para isso que te mandei cá vir... Não!... Precisas que te dê uma lição. Devo explicar-te por que razão te tornaste prejudicial para mim. Não me fizeste mal algum, és um rapaz instruído, trabalhador... honesto e de boa saúde... Tudo isto são trunfos. Mas, mesmo com todos esses trunfos, não me serves para nada... Falta-te o que é preciso... Porquê? É essa a questão...
Ilia estava surpreendido: elogiavam-no para o despedir. Era coisa que a sua compreensão não podia abranger, que o fazia sentir-se, ao mesmo tempo, satisfeito e vexado. Tinha a impressão de que o próprio patrão não compreendia o que estava a fazer... Dando um passo em frente, inquiriu com o devido respeito:
- O senhor manda-me embora por causa da faca, há bocado?...
- Ai, meu Deus!, exclamou a patroa, apavorada. - Que insolência! Céus!...
- É isso mesmo! - concordou o patrão, satisfeito. Sorria para Ilia, com o dedo espetado para ele. - Tu és um insolente! É a palavra exacta! És um insolente!... Um rapaz que se encontra empregado em qualquer lado deve mostrar humildade, como se pode ler na Sagrada Escritura... Depende em tudo do seu patrão... É o patrão que o alimenta,
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que lhe dita os pensamentos, bem como a honestidade... Mas tu só te regulas pela tua própria cabeça... Tu, por exemplo, sem mais aquelas, dizes a um homem que ele é um ladrão! Não está certo, isso é insolência... Devias, pelo contrário, se fosses honesto, falar comigo discretamente... E eu próprio decidiria o que teria a fazer: sou eu o patrão!... Em vez disso, vais apregoar aos quatro ventos: é um ladrão!... Não, espera... Num grupo de três indivíduos, se houver um só que seja honesto, para mim, isso não significa coisa alguma... Temos de contar de outra maneira... Se tiveres um homem honesto e nove gatunos, ninguém ganhará com o caso... e o que for honesto está perdido. Mas se tiveres sete homens honestos e três gatunos, quem ganha és tu... Compreendeste? A razão está do lado dos mais numerosos... Eis como se deve julgar a honestidade...
Strogany limpou com as costas da mão o suor da testa e prosseguiu:
- E para cúmulo, tu agarraste numa faca...
- Ih!, Jesus!-soltou a patroa, aterrada, enquanto as meninas se aconchegavam mais umas às outras.
- Porque está escrito que todos os que tomarem espada morrerão à espada... Vês a razão por que estás a mais em minha casa... É assim. Pega lá estes cinquenta copeques e vai-te embora... Podes ir... Lembra-te de que, se é verdade que nunca me causaste aborrecimentos, também é verdade que eu, por meu lado, nada fiz também contra ti... E até, repara bem: dei-te cinquenta copeques de presente e tive contigo, que não passas de um gaiato, uma conversa muito séria, como deve ser, e... tudo o mais... Até talvez tenha dó de ti... Mas a tua presença nesta casa não convém! Quando a chaveta se não adapta ao eixo, há que deitá-la fora... Pronto, vai-te embora...
resumia muito simplesmente, para si, o discurso do patrão: punha-o fora porque não podia correr com Karp, receando encontrar-se sem caixeiros. Ficou, pois, todo satisfeito e alegre. E o patrão parecia-lhe simples e cordial.
- Até à vista! - lançou, apertando na mão a moeda de prata. - Agradeço-lhe de todo o coração!
- Não tens de quê! - respondeu Strogany, aprovando com um aceno de cabeça.
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O gemido de reprovação da patroa chegou até aos ouvidos de Ilia:
- Ai, Deus meu! Não lhe vi sequer uma lágrima!
Ao transpor, de trouxa às costas, a portada da residência do mercador, o rapaz teve a sensação de deixar um lugar esfumado e ermo, como vira descrito num livro, um sítio onde não havia um único ser humano, uma só árvore, mas apenas pedras e, no meio destas, um génio bom, que indicava amavelmente o caminho àqueles que lá tinham ido parar.
Era ao entardecer de um belo dia de Primavera. O pôr do Sol tingia de manchas vermelhas e cintilantes as vidraças. O espectáculo recordou a Ilia o dia em que pela primeira vez vira a cidade, da beira do rio. A trouxa, contendo todas as suas coisas, começava a pesar-lhe nas costas, e, cansado, atrasou o passo. No passeio, as pessoas esbarravam no seu fardo; os veículos circulavam com grande estrondo; a poeira dançava nos raios oblíquos do sol poente; tudo era alarido, agitação e alegria. No espírito da criança despertava a lembrança de tudo por quanto passara no decorrer, dos anos vividos na cidade. Sentia-se adulto. O seu coração batia, valoroso e satisfeito, e nos seus ouvidos ecoavam as palavras do mercador: "Tu és um rapaz instruído, inteligente, de boa saúde, trabalhador... Tudo isto são trunfos..."
Apressou novamente o passo. Vibrava de grande alegria e ao pensar que não teria, no dia seguinte, de ir para a peixaria, sorriu...
De regresso a casa de Petrukha Filimonov, Ilia persuadiu-se, com certo orgulho, de que, de facto, tinha crescido muito durante a sua aprendizagem na peixaria. Todos se interessavam por ele; suscitava uma curiosidade que o lisonjeava. Perfichka estendeu-lhe a mão.
?--Viva, caixeiro! Então, meu caro, reformaste-te? Ouvi falar das tuas proezas, ah, ah! Olha, meu velho, do que eles gostam é dos que lhes lambem os pés e não dos que lhes dizem na cara a verdade nua e crua!
Assim que o viu, Macha exclamou alegremente:
- Ena!, como ele está mudado!
Tiago também ficou muito contente.
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--Pronto, vamos de novo viver juntos... E tenho um livro, Os Albigenses, é como se chama, enfim, uma destas histórias! Vou-te contar! Há um tal Simão de Montfort... Um espanto!
E Tiago lançou-se numa narração precipitada e incoerente. Observando-o, Ilia dizia com satisfação, para consigo, que o camarada, com a sua grande cabeçorra, não mudara nada. Tiago nada via de especial na conduta de Ilia. Limitou-se a apoiar:
- Fizeste bem...
Mas Petrukha estava admirado e não o escondia; declarou em tom de aprovação:
- Topaste-os bem, muitíssimo bem, meu velho! O Sr. Cirilo, é claro, não podia trocar Karp por ti; Karp conhece o negócio, é um homem precioso. Tu preferiste a franqueza, não estiveste com meias medidas... Foi por isso que ele antes quis o outro...
Mas, no dia seguinte, o tio Terêncio aconselhou discretamente o sobrinho:
- Não te fies no Petrukha... não fales de mais em frente dele... Sê prudente... Não há nome que ele não te chame... Estão vendo, diz ele, este justiceiro das dúzias!
Ilia pôs-se a rir.
- E ontem a dar-me razão!
A atitude de Petrukha não fez arrefecer a profunda satisfação que Ilia ressentia de si próprio. Considerava-se um herói e sabia que se comportara na peixaria melhor que outro qualquer o teria feito em circunstâncias idênticas.
Após dois meses de baldados esforços para arranjar novo emprego, entamou-se a seguinte conversa entre Ilia e o tio:
- Não há dúvida!... -lamuriava-se o corcunda. - Não há trabalho para ti... Dizem por toda a parte que já és grande de mais... Como poderemos nós viver, meu filho?
Ao que Ilia respondia, com seriedade convincente:
- Tenho quinze anos e sei ler e escrever. Mas como sou um insolente, serei, de todos os modos, escorraçado outra vez!
- Que vai ser de nós? - perguntava receosamente Terêncio, sentado na cama, muito abatido.
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- Já sei: manda-me fazer uma caixa-mostruário e compra-me mercadoria: sabonetes, perfume, agulhas, livritos, toda a espécie de coisas!... E irei vendê-las!
- Eu não entendo de nada, meu querido Ilia, tenho a cabeça cheia do alarido do botequim!... Zás, zás, zás... Até me custa pensar, agora... Sempre o mesmo dentro da cabeça e no coração... Sempre o mesmo...
E, com efeito, dir-se-ia que uma teimosa preocupação se petrificara nos olhos do corcunda, como se andasse constantemente a contar qualquer coisa sem jamais atingir um resultado.
- Faz o possível, anda! Deixa-me fazer o que quero!... insistia Ilia, possuído por esta ideia fixa que lhe prometia a liberdade.
- Pois bem, Deus seja contigo! Vai-se experimentar!... - Hás-de ver que tudo correrá pelo melhor!-exclamou o rapaz, radiante.
- Ai! - Terêncio soltou um profundo suspiro e começou a dizer com desânimo:-Deus queira que cresças depressa! Se fosses mais velho, seria bem diferente! Já me teria ido embora... Arrasto-te comigo como se fosses uma grilheta; é por causa de ti que me vou deixando ficar neste antro de podridão... Há muito que teria ido em peregrinação até aos santos intercessores... Tinha-lhes dito: "Santos de Deus, benfeitores e protectores, eu pequei, sou maldito!"
O corcunda pôs-se a chorar em silêncio. Ilia percebeu de que pecado falava o tio e, relembrando-se, também, do caso, sentiu um aperto no coração. Tinha pena de Terêncio, e, vendo os seus olhos tímidos alagados de lágrimas, disse-lhe:
?-Vamos, não chores... - Calou-se, reflectiu e acrescentou para o consolar: - não faz mal, seráp perdoado!...
Foi assim que Ilia se lançou no negócio. Calcorreava a cidade, de manhã à noite, levando o mostruário pendurado ao ombro, e, de cabeça erguida, lançava aos transeuntes olhares cheios de dignidade. O boné muito enterrado, o queixo espetado, apregoava na sua voz fresca, ainda pouco segura:
- Sabonetes, graxa, ganchos, alfinetes-de-ama! Linhas e agulhas!
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A vida, à sua volta, corria em vagalhões coloridos e ruidosos, sobre os quais ele vogava ligeiro, plenamente livre, acotovelando a multidão nos mercados, parando nos botequins, onde, com grandes ares, mandava vir dois copos de chá, que bebia lenta e gravemente, comendo pão branco, cônscio da sua importância de adulto. A vida afigurava-se-lhe simples, fácil e agradável. Os seus sonhos tomavam uma forma linear e clara: via-se, dentro de alguns anos, dono de uma lojita engraçada, situada numa rua decente, não demasiadamente ruidosa, com prateleiras em que se alinhavam artigos de relrosaria. asseados e leves, que não sujavam nem estragavam as roupas. Ele mesmo andaria muito asseado, de boa saúde e bela aparência. Seria respeitado pelos vizinhos; as raparigas sorrir-lhe-iam meigamente. À noite, fechada a loja, iria sentar-se numa salita clara e limpa, beberia chá e leria um livro. Limpeza em tudo, parecia-lhe condição essencial e indispensável para uma vida correcta. Eram estes os seus sonhos quando ninguém o vinha ofender com qualquer grosseria porque, desde que se sentia independente, tornara-se muito susceptível e cioso da sua dignidade.
Mas nos dias em que nada vendera e em que, cansado. se ia sentar no botequim ou na rua, relembrava os insultos injuriosos e os empurrões dos agentes, a desconfiança escandalizante dos clientes, as invectivas e as zombarias dos concorrentes, também vendedores ambulantes, e então era tomado por grande e confusa inquietação. Os seus olhos abriam-se desmedidamente, sondavam a vida em maior profundidade, e a sua memória, recheada de impressões, apresentava-lhas, uma a uma, em função do seu raciocínio. compreendia perfeitamente que cada qual aspirava às mesmas coisas que ele... Todos almejavam aquela vida sossegada, clara e próspera que ele próprio ambicionava. E ninguém hesitava em afastar do seu caminho quem pudesse estorvar; eram todos ávidos, insensíveis, insultavam-se sem necessidade, sem proveito algum, pelo simples prazer de ofender. Por vezes, era-se ultrajado por brincadeira e ninguém tinha dó do ofendido...
Quando se encontrava neste estado de espírito, o trabalho de vendedor ambulante parecia-lhe bem pouco alegre
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e o sonho de uma lojita asseada varria-se-lhe da imaginação; sentia apenas um vazio no peito, uma preguiçosa indolência assenhoreava-se de todo o seu ser. Pensava que nunca ganharia dinheiro suficiente para abrir uma loja e que teria de se arrastar, até ao fim da vida, pelas ruas poeirentas e atabafadas, com o mostruário a pesar-lhe no peito, as correias a roerem-Ihe os ombros e as costas. Mas bastava um pequeno êxito comercial para lhe reanimar a coragem, fazer renascer o sonho.
Ao passar por uma rua populosa, encontrou Paulo Gratchev. O filho do ferreiro seguia descansadamente pelo passeio, como alguém que não tem nada que fazer; levava as mãos metidas nos bolsos das calças rotas; uma blusa azul, demasiado grande para ele e igualmente rota e suja, pendia-lhe dos ombros e as sapatorras ressoavam nas lájeas. Usava o boné. de pala quebrada, arrogantemente descaído para a orelha esquerda, de tal sorte que o sol lhe queimava um dos lados do rosto. As faces e o pescoço estavam cobertos por espessa camada de sujidade gordurenta. Reconheceu Ilia de longe, fazendo-lhe alegremente um sinal com a mão, mas não adiantou o passo para vir ao seu encontro.
- Que grande vaidoso te tornaste!... - desfechou-lhe Ilia.
Paulo deu-lhe um vigoroso aperto de mão e pôs-se a rir. Os dentes e os olhos brilhavam de alegria na máscara de sebo.
- Como vai isso ?
- Como se pode: se há que comer, come-se; se não há. boceja-se e vai-se para a cama!... Mas estou contente por te ver, que o Diabo te carregue!...
--Porque não apareces nunca?-perguntou Ilia, sorrindo. Também ele estava contente por ver o seu velho companheiro tão alegre e tão sujo. Olhou para as sapatorras de Paulo, comparando-as com as botas novas que ele próprio calçava, muito limpas e que lhe tinham custado nove rublos. A expressão alegrou-se-lhe.
- Sei lá onde tu moras... -disse Gratchev.
- Sempre no mesmo sítio, em casa do Filimonov...
-- Mas o Tiago dizia que tu estavas não sei onde, a vender peixe...
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Muito cheio de si, Ilia contou a Paulo a sua aprendizagem na loja de Strogany.
- Ah!, meu valentão!-exclamou, aprovativo, Gratchev. - Eu também fui posto fora da tipografia por insolência, razão por que me empreguei na oficina de um pintor, onde moía tintas e deitava mão a tudo... Pois imagina tu que um dia sentei-me em cima de um maldito letreiro ainda mal seco... E eles toca de me chicotearem! Que sova que aqueles malandros me deram! Era o patrão, a patroa e o mestre de oficina... A coisa teria durado até rebentarem todos de cansaço... Agora trabalho num canalizador. Seis rublos por mês... Acabei do comer e aqui vou para a canga...
- Não se pode dizer que estejas com pressa!
- Diabos levem o trabalho! Acabará ele alguma vez ? Tenho de passar lá por casa, um dia destes...
- Não deixes de ir!-insistiu Ilia amigavelmente.
- Vocês continuam a ler?
- Um pouco. E tu?
- Também, quando posso... -- E ainda fazes versos(
?-? Sim, às vezes... Paulo ria, todo alegre.
- Não deixarás de aparecer, hem? com os teus poemas...
- com certeza... E levarei vodka.
- Tu bebes ?
- Alguma coisa... Bem, até à vista!
- Até breve! - disse Ilia.
Prosseguiu o seu caminho pensando em Paulo. Achava estranho aquele rapaz esfarrapado não ter manifestado a menor inveja em relação às suas botas sólidas e ao seu vestuário decente, como se nem os tivesse notado sequer. E quando Ilia se referira à vida independente que levava, Paulo mostrara-se satisfeito com a sorte do amigo. Era ansiosamente que Ilia se interrogava se seria possível que Gratchev não desejasse o mesmo que todos aspiravam: uma vida decente, sossegada e livre.
Era ao regressar da igreja que Ilia se sentia especialmente triste e preocupado. Raras vezes faltava à missa ou
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às vésperas. Não rezava; metia-se apenas a um canto, para escutar os cantos, sem pensar em mais nada. Os fiéis permaneciam imóveis e silenciosos, resultando desta paz uma espécie de união das almas. Ondas de canto flutuavam no templo à mistura com o fumo do incenso, Ilia tinha por vezes a impressão de se erguer no espaço, de flutuar no vazio morno e suave e de nele se diluir. Uma atmosfera solene e calmante inundava-lhe a alma; reinava ali algo de totalmente estranho à agitação da vida, algo de inconciliável com os valores que ele pretendia atingir. Ao princípio, esta sensação introduzia-se na alma de Ilia e aí se mantinha independentemente das impressões habituais do quotidiano, sem que o adolescente ficasse perturbado. Mas com a continuação, apercebeu-se de que andava habitado e espiado, por uma espécie de presença interior. Essa presença refugiava-se no mais fundo de si mesmo, calava-se perante a agitação do quotidiano, mas crescia na igreja, provocando uma angústia que contradizia os sonhos de vida pura. Nesses momentos rememorava-se sempre do que tinha ouvido contar acerca do eremita Ântipas e do que dizia amorosamente o trapeiro: "O Senhor vê tudo. Conhece o valor de todas as coisas! Fora Ele, nada existe!"
E Ilia voltava para casa confuso e perturbado, sentindo que o sonho de futuro murchara e que parte do seu querer contrariava a ideia de vir a ter uma retrosaria. Mas a vida retomava os seus direitos e aquela parcela da sua vontade refugiava-se-lhe no mais recôndito da alma.
Ilia falava de todos os assuntos com Tiago, porém nada lhe dizia acerca deste desdobramento. Ele próprio só pensava nisso quando lhe era impossível evitá-lo e nunca se entregava de livre vontade a esta impressão que não conseguia compreender.
Os serões eram agradáveis. Ao regressar da rua, dirigia-se à cave de Macha. a quem perguntava, como se fosse o dono da casa:
?-Ó Macha! O chá está pronto?
O pequeno samovar já estava preparado, em cima da mesa, fazendo ronrom e assoprando. Ilia trazia sempre algumas guloseimas: bolinhos secos, pão de espécie com hortelã-pimenta ou mel, às vezes até compota de melaço, e Macha
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gostava de o convidar para o chá. A rapariguinha também já começava a ganhar dinheiro. Matitsa ensinara-a a fazer flores de papel e Macha adorava confeccionar rosas radiosas com aquelas folhinhas de papel fino que rangiam de uma maneira engraçada. Certos dias, chegava a ganhar dez copeques. Seu pai tivera o tifo e, depois de ter passado mais de dois meses no hospital, voltara esquelético e ressequido, com a cabeça aureolada de lindos caracóis castanhos. Rapara a barbicha desgrenhada e irregular e, não obstante o rosto encovado e a pele amarelecida, parecia ter rejuvenescido. Recomeçara a trabalhar em casa dos outros e só de longe em longe vinha dormir a casa, deixando a cave à disposição da filha. Esta acabara por tratar o pai por "Perfichka". como os demais. O sapateiro achava graça à maneira como a filha o tratava e era visível o respeito que lhe inspirava aquela rapariguita de cabelo encaracolado, que ria como ele de um modo tão alegre.
O chá à noite, em casa de Macha, tornara-se um hábito para Ilia e Tiago. Tomavam-no durante horas seguidas e em tão grande quantidade que ficavam alagados em suor. Discutiam a respeito de tudo que os preocupava. Ilia contava o que tinha visto pela cidade, Tiago, que passava os dias a ler, falava dos livros, dos escândalos ocorridos no botequim, queixava-se do pai e às vezes, sempre mais frequentemente, contava coisas que, segundo Ilia e Macha, eram absurdas e incompreensíveis. O chá era excelente e o samovar, completamente oxidado, lembrava a carantonha de um velhotezito simpático e matreiro. Quase sempre, mal as crianças começavam a saborear o chá, o samovar, com a sua graça maliciosa, punha-se a zumbir e a rosnar, e verificava-se que já não tinha uma gota de água. Macha pegava nele e ia enchê-lo: todas as noites tinha de recomeçar diversas vezes a operação.
Se a Lua despontava, os raios de luar vinha fazer companhia aos três convivas.
Naquele cubículo de paredes semipodres e acanhadas, de tecto pesado e baixo, tinha-se sempre a sensação de falta de ar e luz, mas reinava uma atmosfera prazenteira, e todas as noites nascia ali grande soma de bons sentimentos e de ingénuos pensamentos adolescentes.
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De quando em quando. Perfichka aparecia para o chá. Mantinha-se em geral num canto escuro, sentado no estrado do fogão, ou empoleirado na própria plataforma dele, espetando a cabeça para os jovens, vendo-se brilhar na escuridão os pequenos dentes brancos. Sua filha servia-lhe um grande copo de chá, açúcar e pão; ele dizia com um risinho:
- Agradeço-lhe muito humildemente, querida Maria, estou muito sensibilizado com as suas atenções!
E às vezes exclamava com um suspiro de inveja:
- Vocês vivem bem, meus filhos! A chuva não os molha! Tal qual uns bons cristãos!
Depois sorria e, com novo suspiro, encetava uma narração:
- A existência? Vai sempre melhorando? Vive-se melhor de ano para ano. Eu, na vossa idade, só cavaqueava com a correia. Ela começava a fazer-me festas nas costas e eu, de prazer, punha-me a berrar com quantas forças tinha. Quando a correia me largava, as minhas costas, envergonhadas, zangavam-se e gemiam, tinham saudades da amiguinha, mas esta não se fazia esperar muito; era tão sensível, aquela correiazinha! E, pôr minha fé, foi a única distracção que eu tive! Vocês, agora, crescem e ficarão sempre a lembrar-se de tudo isto: as conversas, os diversos acontecimentos, esta vida agradável! Ao passo que eu envelheci, tenho quarenta e seis anos e nenhumas recordações! Nem uma amostrazinha. Nada de que me lembre! Como se na vossa idade tivesse sido cego e surdo. Apenas recordo que a fome e o frio me faziam andar sempre a bater os dentes, que tinha constantemente as ventas esmurradas e, quanto a saber como ainda fiquei com os ossos inteiros, com orelhas e cabelo, é coisa que ultrapassa a minha compreensão. O fogão, pobrezinho, era o único objecto a que não podiam deitar mão para me dar com ele; por isso. pegavam em mim e davam comigo nele e com pouca meiguice! Ah!, pois, tiveram muito trabalho, deram-me ricas lições, torceram-me como um esfregão... Bateram-me, esfolaram-me, fizeram-me sangrar, lançaram-me ao chão... mas o Russo é resistente! Podem-no pisar num almofariz, voltará novamente a ficar inteiro! É o que se chama um homem rijo... A mim, por exemplo, esmagaram-me, cortaram-me aos pedaços, e cá estou fresco
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que nem um cuco, voando de uns botequins para os outros, sem razões de queixa de ninguém. Deus é meu amigo... Um dia Ele olhou para mim, pôs-se a rir e exclamou: "Ah!, meu possesso!", dizendo-me um adeusinho com a mão...
Os jovens escutavam as divertidas narrativas do sapateiro e riam. Ilia também se ria, mas as palavras de Perfichka faziam sempre nascer no seu espírito uma obsessionante interrogação. Certa vez, voltou-se para o sapateiro e perguntou-lhe com um sorriso de incredulidade:
- Dir-se-ia que não desejas coisa alguma!
- Quem te disse isso ? Olha, tenho sempre vontade de beber uma pinga, por exemplo...
- Não, dize lá a verdade: desejas realmente uma coisa qualquer? - insistiu Ilia.
- Mesmo a sério? Pois bem, então... gostaria de ter um harmónio, gostaria de ter um bom harmónio... É coisa que anda pelos seus vinte... e cinco rublos! Imagina!
Desatou a rir baixinho, mas logo se calou; tinha pensado melhor e disse a Ilia sem hesitações:
- Não, meu caro, nem sequer preciso de um harmónio... Em primeiro lugar, sendo coisa que vale dinheiro, acabaria, forçosamente, por o gastar no botequim! Seguidamente, suponhamos que não era tão bom como o meu? É preciso ver o estupendo harmónio que eu tenho agora! Não há dinheiro que o pague. Encerra a minha alma! É um harmónio raríssimo, talvez o único da sua espécie neste mundo... Um harmónio é como uma mulher... Eu tive uma mulher, também ela era um anjo, não um ser humano!... E se tivesse de me casar de novo, como o poderia fazer? Outra mulher como ela não existe... A nova mulher é por força comparada com o antigo modelo e nunca está à altura... A coisa iria sempre de mal a pior, tanto para ela como para mim... Acredita, meu velho, o bom não é o que é bom, mas sim aquilo de que se gosta!
Ilia estava de acordo com os elogios que o sapateiro fazia do harmónio. Era um instrumento que, pela sua sonoridade, deixava todos espantados. Mas o que Ilia não podia conceber é que o sapateiro não tivesse desejo algum. Perguntava a si mesmo: seria possível que, tendo passado a vida inteira na imundície, coberto de farrapos, a embriagar-se
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e a tocar harmónio, nada desejasse de melhor? A ser assim, teria de considerar Perfichka um pobre idiota; mas, por outro lado, não lhe era possível deixar de observar com incrédula curiosidade este homem sem preocupações. E fora isso apercebia-se de que o sapateiro era, no fundo, melhor que todos os outros moradores da casa. apesar de ser um bêbedo sem préstimo algum...
Por vezes, os rapazes discutiam a respeito dos grandes e apaixonantes problemas que constituem para o homem abismos sem fundo e arrastam irresistivelmente para as trevas misteriosas o coração e o espírito ávidos de saber. Era Tiago quem os fazia abordar este género de assuntos. O filho do botequineiro criara o estranho hábito de se apoiar em tudo, como se não sentisse força suficiente nas pernas. Se estivesse sentado, ou encostava o ombro ao objecto que lhe ficasse mais próximo, ou agarrava-se a ele. Quando seguia pela rua, no seu andar rápido mas irregular, aflorava com os dedos os marcos, como se pretendesse contá-los, ou fazia deslizar a mão pelas paliçadas, como se quisesse experimentar a sua resistência. Quando tomavam chá em casa de Macha, sentava-se por baixo da janela, de costas apoiadas na parede e com os dedos afilados presos à cadeira ou aos bordos da mesa. Inclinando a grande cabeça, de cabelos lisos e macios de um amarelo desbotado, fitava os interlocutores e, no seu rosto pálido, os olhos tão depressa se semicerravam como se abriam, enormes. Gostava, como dantes, de contar os sonhos que tivera e não era capaz de expor o conteúdo de um livro que tivesse lido sem acrescentar alguns estranhos pormenores da sua lavra. Ilia fazia-lhe notar esta deturpação, mas Tiago, sem se desconcertar, dizia simplesmente:
- Contado assim fica melhor. Só a Sagrada Escritura é que não pode ser interpretada como se quer. No que respeita aos livros vulgares, é permitido fazê-lo! São escritos por homens e eu também sou um homem. Posso arranjar um pouco, se tal como está me não agrada... Deixa isso e responde: quando se dorme, onde se encontra a alma?
- Como é que eu hei-de saber?-replicava Ilia, que não gostava de tratar de assuntos que o perturbavam desagradàvelmente.
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- Eu estou certo de que se liberta - afirmou Tiago.
- É claro que se liberta - soltou Macha convictamente.
- Como é que tu sabes ? - interrogou Ilia em tom severo.
- Sei...
- Liberta-se - dizia Tiago, sonhador. - A alma também precisa de descansar de vez em quando!... É pela mesma razão que os sonhos existem...
Não sabendo o que contestar a tudo isto, Ilia calava-se, se bem que sentisse sempre grande desejo de contradizer as afirmações do camarada. Os outros também se mantinham silenciosos durante alguns instantes, por vezes durante vários minutos. O cubículo sombrio parecia ficar ainda mais escuro. O candeeiro fumegava, o cheiro do samovar impregnava a atmosfera; um rumor estranho e abafado vinha até eles: o botequim, mesmo por cima das suas cabeças, rosnava e berrava. E de novo se levantava a voz frouxa de Tiago:
- As pessoas fazem algazarra... Trabalham e tudo... Diz-se que vivem. E depois, zás! O tipo está morto... Que quer isto dizer? Qual é a tua opinião, Ilia. hem?
- Não quer dizer absolutamente nada... É a velhice. É a altura de morrer...
- Também há gente nova e crianças que morrem... Pessoas que estão de boa saúde...
- Se morrem, é que não estão de boa saúde...
- E por que razão vivem eles todos?
- Uma questão de sorte!-exclamou Ilia, por troça.
- Vivem por viver. Trabalham, tentam a sua sorte. Cada qual quer viver bem, cada qual tenta vencer. Todos procuram a ocasião de enriquecer e de viver decentemente...
- Esse é apenas o caso dos pobres! Mas os ricos? Têm tudo quanto querem... Que poderão eles querer mais?
- Burro! Os ricos! Se não houvesse ricos para quem trabalhariam os pobres?
Tiago reflectiu durante uns instantes e depois perguntou: -Nesse caso, todos vivem para trabalhar?
- Certamente... Bem, todos, todos, não... Há os que trabalham e há os que vivem... assim, para nada. Já
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ganharam trabalhando, juntaram dinheiro suficiente... e vão vivendo.
- Mas porquê?
- Ora! Deixa-me em paz! Desejam viver ou não? Tu desejas mesmo viver, não é assim? - exclamou Ilia, irritado com o companheiro. Mas ser-lhe-ia difícil explicar a razão da sua cólera: seria porque Tiago lhe fazia tais perguntas ou porque as não fazia como deve ser?
--Porque vives tu, hem? - gritou-lhe.
- É precisamente isso que eu não sei! - replicou Tiago com humildade. - Morreria de bom grado... Faz medo... mas apesar de tudo deve ser interessante...
E, de repente, queixou-se suavemente:
- Tu zangas-te sem razão. Dizes que as pessoas vivem para o trabalho, mas, na realidade, o trabalho é que é feito para os homens... E estes que fazem? Andam à roda, à roda... sem nunca mudarem de lugar. E não se sabe porquê! E Deus, onde está? Porque Deus é a força que se encontra na base de tudo. Foi dito a Adão e Eva: crescei e multiplicai-vos e povoai a Terra, mas para quê?
com os olhos dilatados de pavor, Tiago inclinou-se para o amigo e murmurou em tom de mistério:
- Tu não sabes, pois não? Mas isso também foi dito e explicada a razão. Simplesmente, alguém veio roubar Deus, alguém extorquiu e encobriu a explicação... Foi Satanás! Ninguém mais o faria! Foi Satanás! E eis porque ninguém sabe o porquê!
Ilia escutava, calado, estas palavras incoerentes, mas cativantes.
Tiago falava cada vez mais depressa, mais baixo, de olhos esbugalhados, com o rosto pálido tremendo de pavor, e tornava-se impossível compreender seja o que fosse do que dizia.
- Que pretende Deus de ti? Tu sabe-lo, hem? Exclamações de triunfo entrecortavam, às vezes, este
jorro de palavras e as frases incoerentes prosseguiam o seu curso. Macha, de boca aberta, tinha os olhos presos no amigo e protector. Ilia, irritado, franzia o sobrolho. Sentia-se vexado por não compreender. Considerava-se mais inteligente do que Tiago, mas este deixava-o perplexo com a sua espantosa
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memória e a aptidão que demonstrava para focar verdades primárias. Cansado de ouvir e calar, sentindo o espírito diluir-se pouco a pouco numa espessa bruma, acabava por interromper o orador, num acesso de cólera:
- Vai mas é passear! As leituras subiram-te à cabeça mas na verdade tu não percebes nada de nada...
- É justamente o que te estou a dizer, que não percebonada! - confirmava Tiago, admirado.
- Di-lo, então, sem meias palavras: não compreendo! E não estejas para aí a divagar como um tonto... pois eu é que tenho de te. ouvir!
- Não, espera - insistia Tiago. - É que não há nada para compreender, não é possível compreender-se seja o que for... Por exemplo... vejamos o candeeiro. A chama. Donde vem? Tão depressa existe, como não. Riscou-se um fósforo, está acesa... Quer dizer que a chama sempre existiu... Existirá, então, invisível, no ar?
Mau grado seu, Ilia sentiu-se de novo arrastado pelas ideias do companheiro. O desprezo que afivelara no rosto sumiu-se. Olhou para o candeeiro e disse:
- Se estivesse no ar, faria sempre um certo calor, mas pode-se acender um fósforo até quando gela... Portanto, a chama não está no ar...
- Onde estará então ? - perguntou Tiago, fitando o camarada com olhos rebrilhantes de esperança...
- No fósforo - opinou Macha.
Quando os dois companheiros discutiam acerca dos grandes problemas do ser, as sugestões da rapariguinha nunca obtinham resposta. Ela já estava habituada e não se ofendia.
- Onde?-interrogava, num eco, Ilia, já enervado.-- Nem sei, nem quero saber! Sei que não devemos tocar na chama e que nos podemos aquecer ficando junto dela. E acabou-se.
- Pois é claro! - prosseguia Tiago, tomado de veemente indignação. - "Nem quero saber!" Eu poderia dizer o mesmo e um estúpido qualquer também... Não! Explica-me, vamos, donde vem a chama? A respeito do pão, vês tu, não levanto problemas: é tudo perfeitamente claro: da espiga retira-se o grão, do grão faz-se a farinha, com a farinha faz-se a massa, e pronto! Mas o homem, como é que nasce?
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Ilia contemplava, com surpresa e inveja, a grande cabeça do companheiro. Por vezes, não aguentando mais, dava um pulo na cadeira e lançava-se num violento arrazoado. Nessas alturas recuava sempre até ao fogão, onde encostava a sua figura entroncada, forte, agitando a cabeça encaracolada, e. martelando as palavras, dizia:
--Não estás no teu pleno juízo, eis tudo! É por não fazeres nada que te vêm essas ideias. O que é que tu fazes? Todo o dia postado atrás do balcão, e é tudo! Podes fazer o mesmo até ao fim da vida. Mas se palmilhasses a cidade, como eu, de manhã até à noite, e dia após dia, e se fosses forçado a angariar dinheiro por ti próprio, deixarias de pensar nessas frioleiras... Em vez disso procurarias a maneira de vencer, de não perder a ocasião. A tua cabeça é grande porque todas essas parvoíces se acumulam lá dentro. As ideias sensatas são diminutas, não fazem inchar o crânio...
Tiago ouvia-o em silêncio, inclinado para um lado na cadeira, com as mãos agarradas a qualquer lado. Por vezes os seus lábios tremiam com palavras que não proferia e os seus olhos pestanejavam num ritmo nervoso.
Quando Ilia se calava e voltava a sentar-se à mesa, Tiago punha-se novamente a filosofar:
-- Dizem que há um livro, uma ciência, a magia negra, onde tudo vem explicado... Precisávamos de descobrir um livro desses e podê-lo ler... Deve ser terrível!
Macha afastava-se da mesa para se ir sentar em cima da cama, onde ficava a fitar ora um, ora o outro, com os seus grandes olhos negros. Pouco depois começava a bocejar, a balouçar-se, e acabava por se deixar cair, adormecida.
--Vamos!, são horas de irmos para a cama! - dizia Ilia.
- Só um instante... vou cobrir a Macha e apagar o candeeiro.
Mas, vendo Ilia prestes a abrir a porta, lamuriava logo:
- Espera por mim! Tenho medo de ir sozinho, está escuro...
- Santo Deus!-suspirava Ilia com desprezo. - Tens dezasseis anos e continuas a ser um verdadeiro garoto. Como é que eu não tenho medo de coisa alguma, liem? Até o Diabo me poderia aparecer pela frente, que me não fazia mossa!
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Tiago apressava-se a aconchegar Macha e a apagar o candeeiro. A chama tremia, desaparecia, e as trevas surgiam por todos os lados, invadindo silenciosamente o quarto. Aliás, às vezes, uma réstia de luar, entrando pela janela, vinha lamber o soalho.
Um dia feriado, Lunev regressou a casa muito pálido, com os músculos do rosto contraídos, lançando-se vestido em cima da cama. O seu coração estava gelado de ódio. A dor que sentia na nuca impedia-o de mover a cabeça e tinha a impressão de que todo o seu corpo vibrava dolorosamente devido à humilhação sofrida.
De manhã, a troco de um pedaço de sabão e de uma dúzia de ganchos, um polícia consentira que ele estacionasse, com a mercadoria, junto do circo, onde havia sessão matinal. Montara, pois, comodamente, a sua venda à entrada. Mas surgiu o adjunto do comissário da polícia; deu-lhe um cachação e com um pontapé derrubou o cavalete em que assentava o mostruário, fazendo a mercadoria espalhar-se pelo chão; alguns artigos ficaram estragados, ao cair na lama, outros perderam-se. Enquanto ia apanhando a mercadoria, Ilia disse ao adjunto:
- O Sr. Adjunto não tem o direito...
- Quê?-perguntou a autoridade, alisando os bigodes ruivos.
- Não tem o direito de bater...
- Ai ele é assim? Migunov! Leva-o à esquadra! -ordenou tranquilamente o adjunto.
E o próprio polícia que lhe permitira ficar junto da entrada do circo levou-o para a esquadra, onde esteve até à noite.
Não era a primeira vez que tivera aborrecimentos com a polícia, mas nunca fora levado à esquadra, nem experimentara jamais tamanho ressentimento, um ódio assim.
Estendido na cama, fechou os olhos e entregou-se inteiramente à dolorosa e angustiante sensação que o oprimia. Através do tabique, vinha-lhe, em vagas, a algazarra do botequim; era como que um riacho turvo que descesse de uma montanha, em dia brumoso de Outono. Ouvia-se estalar os tabuleiros de ferro, tinir a louça, vozes gritantes
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pedir vodku, chá, cerveja... Os empregados de mesa berravam:
- Vai já!
E cortando este alarido com gume de aço pouco seguro, uma potente voz gutural cantava tristemente:
Mal cuidava eu destruir-te...
Outra voz, profunda e sonora, afogada no oceano de ruídos, respondia-lhe em surdina, com grande sentimento:
Ai, minha mocidade perdida...
Alguém se pôs a gritar. A voz parecia vir de uma garganta de madeira ressequida e fendida:
- És um mentiroso! Escrito está: "Porque guardaste a palavra da minha paciência, também eu te guardarei da hora da tentação."
- Mentiroso és tu - repontava energicamente uma voz autoritária. - Também aí está escrito: "Porque és morno, e nem frio nem quente, começar-te-ei a vomitar da minha boca." Aí tens! Espero que tenhas compreendido!...
Rebentou uma tempestade de gargalhadas e choveram guinchos de troça:
- vou eu, então, faço-lhe cá umas festinhas na carinha mimosa! E zás!, na orelha, e trás!, nos dentes, e zás-trás, zás-trás!
Houve grande risota e a voz guinchada e entrecortada prosseguiu:
- E zás!, ei-la que rola no chão! vou eu, torno a afagar-lhe a tromba! Fui eu o primeiro a tê-la nos braços, competia-me a mim desancá-la...
- Formalista!-lançou uma voz zombeteira.
- Espera aí, que já te dou troco!
"Sou quem ama, quem acusa e quem pune"... já esqueceste?... E ainda: "Não julgues e não serás julgado"... E também o que disse o rei David, lembras-te?
Ilia escutava a disputa, a canção, as gargalhadas, sem que o seu espírito reagisse de forma alguma. Parecia-lhe ver
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ainda à sua frente, na escuridão, o rosto ossudo do adjunto do comissário, o seu nariz arqueado, os olhos maldosos a luzirem, os bigodes ruivos agitando-se. Fitava esse rosto e cerrava os dentes. Mas por trás do tabique a canção ia crescendo, os cantores entusiasmavam-se, as vozes tornavam-se mais sonoras, mais insistentes, e os sons doridos forçaram o acesso ao coração de Ilia, quebrando o gelo que o ódio e a humilhação aí tinham formado.
Rapaz valente, eu parti, E da foz até à nascente...
E as duas vozes juntaram-se no mesmo queixume:
Por toda a terra siberiana,
O caminho da minha casa procurei...
Ilia soltou um suspiro e prestou atenção às palavras melancólicas. No denso rumor do botequim, aquelas palavras assemelhavam-se a pequenas estrelas no céu, rompendo as nuvens. Estas correm velozes, e as estrelas tão depressa fulgem como se apagam...
A i!, de fome mastiguei a língua
E os meus ossos enregelaram de frio...
Ilia dizia para consigo que aquela gente cantava tão bem que a canção lhe fazia sentir um nó na garganta. Cantava naquele momento, mas logo se embriagaria com vodka e talvez até armasse uma grande zaragata... No homem, o lado bom só é visível durante muito pouco tempo...
Eh! Serás tu, meu negro destino...
gemia a voz mais alta.
E a mais cava encadeava, com vigor:
Pesado fardo que eu carrego
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A memória de Ilia foi arrancar ao passado a imagem do avô Jeremias. O velho dizia, abanando a cabeça, com as faces molhadas de lágrimas:
- Procurei, procurei, e não vi a verdade...
Ilia recordou que o avô Jeremias, amante de Deus, juntara dinheiro pouco a pouco. E o tio Terêncio, não obstante o receio de Deus, tinha roubado esse dinheiro. Todos os homens têm, mais ou menos, uma natureza dupla. Há neles uma espécie de balança cujos pratos o coração, que lhe serve de braços, faz inclinar ora para um lado, ora para o outro, pesando o bom e o mau.
- Ah, ah, ah! -rugiu-se no botequim. Depois ouviu-se o estrondo de uma massa embatendo no soalho com tal violência que até a cama de Ilia estremeceu.
- Pára!... com a breca!
- Agarrem-no!...
- Socorro!...
O banzé cresceu, de repente, em vagas enormes: irrompeu uma amálgama de novos sons, que se elevaram em turbilhão, berrando, crepitando no ar, sem distinção possível, como se tivesse entrado no botequim uma matilha de cães raivosos e esfaimados.
Ilia pôs-se à escuta, satisfeito; comprazia-o ter sucedido precisamente o que esperava e vinha confirmar a sua apreciação dos homens. Passou um braço sob a cabeça e entregou-se, novamente, às divagações.
"O avô Ântipas deve ter cometido grande pecado, para passar assim oito anos seguidos a penitenciar-se com orações... E as pessoas tinham-lhe perdoado tudo, falavam dele respeitosamente, diziam que fora um justo... Mas provocaram a perda dos seus filhos. Pregaram com um na Sibéria e escorraçaram o outro da aldeia..."
"Tem de se contar de outra maneira!", disse Ilia para consigo, relembrando-se dos conselhos do mercador Strogany. "Se tiveres um homem honesto e nove gatunos, ninguém ganhará com o caso... e o que for honesto está perdido... A razão está do lado dos mais numerosos..."
Ilia riu amargamente. A serpente gelada do ódio ressurgia no seu coração. E à mente vinham-lhe antigas imagens
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familiares: Matitsa, grande e desajeitada, estatelada na lama, em pleno pátio gemendo:
- Mamã!... Minha mãezinha! Se tu me visses! Perfichka, muito bebido, encontrava-se junto dela, pouco
firme nas pernas, e dizia-lhe em tom de censura:
--Apanhaste uma das valentes, grande porca!...
À entrada do botequim, Petrukha, de rosto vermelhusco e sadio, observava-os com um sorriso de desprezo.
No estabelecimento, a zaragata cessara. Três vozes
- duas mulheres e um homem - tentavam, sem o conseguir, entoar uma canção. Alguém puxou de um harmónio, tocou duas ou três notas desafinadas e desistiu.
A voz sonora de Perfichka ecoou, furando o alarido. com volubilidade, o sapateiro gritava no seu tom cantante:
- Olá!, canjirão, despeja em borbotões, anda canjirão, não estorves a riqueza do patrão! Nós beberemos, possuiremos as mulheres e depois iremos mendigar. Que cada qual dê a sua ajudazinha e o pobre terá corda para se enforcar! E se corda não houver, ficarão as veias para lhe apertar o pescoço...
Alegres e intermináveis gargalhadas, vivas e berros formaram um coro de aprovação...
Ilia saltou da cama, saiu para o pátio e foi até ao alpendre da entrada, possuído pelo desejo de partir para qualquer lado, não sabia para onde. Já era tarde; Macha estava a dormir; Tiago intoxicara-se por ter ficado tempo de mais a ler junto do fogão e fora para casa, onde Ilia não gostava de ir, pois Petrukha, ao vê-lo, não deixava nunca de franzir as sobrancelhas de modo desagradável. Soprava um vento rijo de Outono. Espessas trevas, quase negras de breu, submergiam o pátio; só se podia distinguir o céu. As construções pareciam grandes pedaços de sombra arrastados pelo vento. No ar húmido, ouvia-se estalar e rumorejar qualquer coisa, um frouxo e estranho murmúrio que fazia pensar nas queixas dos homens pela sua triste vida. O vento embatia fortemente no peito de Ilia, fustigava-lhe o rosto, sacudia, brutal e frio, as portas do pátio... Ilia, gelado, tremia dos pés à cabeça. Era impossível viver assim, pensava, impossível! Era preciso partir para um lado qualquer,
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longe desta vil agitação e destas rixas, era preciso viver sozinho, decentemente, calmamente...
- Quem está aí? - perguntou de súbito uma voz surda. ?-Quem pergunta?
- Sou eu, a Matitsa... -Onde estás?
- Aqui, em cima destas madeiras...
- Que estás a fazer?
- Nada...
Ambos se calaram...
- É hoje o aniversário da minha mãe - disse Matitsa do escuro,
- Já morreu há muito ? - perguntou Ilia apenas para dizer qualquer coisa.
- Há muito... há-de haver uns quinze anos... Ou talvez mais... E a tua, ainda vive?
- Não, morreu, também... Que idade tens tu? Matitsa não respondeu logo, depois disse, com uma opressão na voz:
- Já trinta... Dói-me uma perna... Está inchada que nem um melão e faz doer... Estou sempre a friccioná-la com tudo que encontro, mas é o mesmo.
Alguém abriu a porta do botequim; uma rabanada de ruídos quebrou o silêncio do pátio, mas dispersou-se nas trevas.
-Que andas aqui a fazer? - quis saber Matitsa.
- Coisa nenhuma... estava com neura...
- É como eu... Lá em cima. no meu quarto, parece que estou num caixão.
Ilia ouviu-a soltar um amargo suspiro, depois a mulher propôs:
- Vamos até ao meu quarto?
O rapaz olhou para onde vinha a voz e replicou com indiferença:
- Pode ser...
Matitsa ia à frente de Ilia na escada que dava acesso às águas-furtadas. Começava por colocar o pé direito num degrau, depois, suspirando profundamente, içava-se lentamente até o pé esquerdo chegar ao mesmo nível. Ilia seguia-a, sem pensar em nada, lentamente também,
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sobrecarregado com o fardo do seu aborrecimento, tal como Matitsa ia sobrecarregada com a perna doente.
O quarto era estreito e comprido e o tecto lembrava, com efeito, a tampa de um caixão. Junto à porta havia um fogão revestido de azulejos; encostada à parede e pegada ao fogão ficava a cama larga; em frente da cama havia uma mesa, com uma cadeira de cada lado. Outra cadeira junto à janela formava uma mancha escura na parede cinzenta. Lá em cima distinguiam-se melhor os ronquidos do vento. Ilia sentou-se na cadeira perto da janela, olhou à sua volta e, deparando-se-lhe um pequeno ícone a um canto, perguntou:
- Quem é?
- Santa Ana - disse Matitsa em voz suave e respeitosa.
- E tu, como é que te chamas ?
- Ana também... Não sabias?
- Não...
- Ninguém sabe - afirmou Matitsa, sentando-se pesadamente na cama. Ilia fitava-a, mas não sentia vontade de falar. E a mulher também se calava. Ficaram muito tempo sem proferir palavra, pelo menos, uns três minutos, como se cada um deles tivesse deixado de dar pela presença do outro. Finalmente, a mulher interrogou:
- Então, o que é que se faz?
- Não sei... - respondeu Ilia.
?-Ai, não me digas! ?-exclamou a mulher com um sorriso incrédulo. -- Pois bem, paga-me uma bebida. Vai comprar duas cervejas... Não, compra-me antes de comer!... Não preciso de mais nada, senão de comer...
Faltou-lhe a voz, tossiu e prosseguiu em tom de desculpa:
- Estás a ver... Desde que a perna começou a doer-me, deixei de ganhar dinheiro... Não saio... Já gastei tudo quanto tinha... Há já cinco dias que estou para aqui. Ontem comi pouca coisa e, hoje, nada... Palavra de honra, é mesmo a verdade!
Foi só nessa altura que Ilia se lembrou de que Matitsa era uma prostituta. Olhou demoradamente para a sua cara larga e descobriu-lhe nos olhos uma pontinha de sorriso e nos lábios uma espécie de murmúrio, como se a mulher estivesse
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sugando algo de invisível... Sentiu, de súbito, um grande acanhamento, a que vinha misturar-se um interesse especial e confuso.
- Trago já qualquer coisa...
Levantou-se rápido, desceu a correr as escadas até à porta de comunicação com o botequim e parou à entrada da cozinha. Sem saber porquê, já não desejava voltar às águas-furtadas. Mas esta recusa cruzou como um raio a bruma de aborrecimento que o invadia, e logo se dissipou. Entrou, comprou ao cozinheiro, por dez copeques, uns restos de carne cozida, alguns pedaços de pão e outros sobejos. O cozinheiro colocou tudo numa peneira gordurenta; Ilia pegou-lhe com ambas as mãos, como se se tratasse de um tabuleiro, e, já à saída, parou de novo, indeciso quanto à maneira de arranjar cerveja. Não podia ir ele mesmo comprá-la à taberna, porque Terêncio lhe perguntaria para quem era. Chamou à cozinha o moço das louças e pediu-lhe que lha fosse comprar. O empregado correu ao botequim, regressando com as garrafas, e entregou-as a Ilia sem comentários. Quando já ia novamente a sair, Ilia soltou:
- Olha! Isto não é para mim... É para um camarada que veio...
- Hem?
- Quero oferecer umas bebidas a um camarada...
- Ah, sim!... E depois ?
Ilia compreendeu que era inútil mentir e sentiu-se envergonhado. Subiu a escada sem pressas, de ouvido à escuta, como se receasse que alguém o viesse surpreender. Mas só se ouvia gemer o vento e ninguém o impediu de chegar às águas-furtadas, até junto da mulher, possuído por um desejo lascivo e tímido, de que, no entanto, tinha plena consciência.
Matitsa colocou a peneira no colo e, sem proferir palavra, começou a escolher, com os dedos grossos, as melhores lascas da carne acinzentada; levava-as à boca, escancarada, mastigando-as ruidosamente. Os dentes eram grandes e pontiagudos. Cada pedaço de comida era mirado e remirado antes de entrar na boca, como para trincar primeiro a parte mais saborosa.
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O rapaz tinha os olhos obstinadamente presos na mulher. Não sabia como a tomaria nos braços; tinha medo de se mostrar desajeitado e ver-se troçado por ela. Sentia, alternadamente, suores quentes e frios.
O vento, penetrando no sótão por uma fresta aberta no telhado, fazia estremecer com violência a porta mal fechada do quarto. Ilia sobressaltava-se de cada vez que a porta abanava, apavorado com a ideia de aparecer alguém e dar com ele ali...
- Não será melhor fechar a porta? - perguntou.
Matitsa acenou-lhe afirmativamente com a cabeça e pousou a peneira em cima do rebordo do fogão, persignando-se em seguida.
- Bendito sejas, Deus meu!, estou repleta! Ai!, o homem contenta-se com pouco!
Ilia permanecia silencioso; a mulher olhou para ele, soltou um suspiro e acrescentou:
- E o que muito pretender, esse, verá muito lhe ser exigido...
- Por quem? - interrogou o rapaz.
- E Deus?
Ilia calou-se outra vez. O nome de Deus na boca daquela mulher fizera nascer no seu espírito um sentimento brutal e confuso, que não sabia explicar, mas que contrariava o seu desejo. Matitsa, apoiando-se nas mãos, soergueu com dificuldade o pesado corpo, deslocando-se para o lado da parede. Depois pôs-se a falar numa voz inexpressiva, indiferente :
- Enquanto comia, não me saía da cabeça a filha do Perfichka... É uma ideia que há muito me não larga... A pequena vive junto de vocês, de ti e do Tiago; creio bem que isto vai acabar mal para ela... Vocês ainda a estragam antes de tempo, e a pobre seguirá o mesmo caminho que eu... É um caminho envenenado e maldito... As mulheres e as raparigas não podem seguir por ele senão rastejando como vermes...
Calou-se durante um instante e depois prosseguiu, sem levantar os olhos das mãos, pousadas no regaço:
- A rapariguinha estará em breve uma mulher feita. Já perguntei às cozinheiras e a outras pessoas que conheço,
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se sabiam de algum lugar para ela. Mas, ao que parece, não se encontra nada... Aconselham a vendê-la!... que será muito melhor para ela... que lhe darão dinheiro e de vestir... Há homens ricos que, uma vez velhos e nojentos, já não conseguem o amor das mulheres a não ser por interesse... E então, esses velhos repelentes compram rapariguinhas... Talvez não seja a pior solução para a pequena... mas, ao princípio, deve certamente repugnar... Mais vale evitar-lhe uma coisa dessas... Antes cheia de fome e limpinha do que...
Um ataque de tosse cortou-lhe a voz. como se as palavras tivessem bloqueado a garganta; mas lá conseguiu terminar a frase, sempre num tom de indiferença:
- ... rio que conspurcada e famosa...
O vento continuava a varrer o sótão, sacudindo brutalmente a porta.
O tom monocórdico daquela voz e o pesado corpo imóvel impediam o desejo de Ilia de crescer e não lhe insuflavam a coragem suficiente para o declarar a Matitsa. Esta parecia tentar repeli-lo cada vez mais. Ilia apercebera-se disso e começava a sentif uma grande irritação...
- Ai, meu Deus, meu Deus! -, suspirava a mulher baixinho.- Santa mãe de Jesus!...
Furioso, o rapaz mal podia manter-se sentado. De mau modo, soltou:
?- Consideras-te uma debochada e estás para aí a repetir: Deus, Deus! Julgas que lhe há-de servir de muito teres sempre o seu nome na boca?
Matitsa fitou-o, silenciosa. Depois abanou a cabeça:
- Não percebo o que queres dizer...
- Não há nada a perceber! --desfechou Ilia, erguendo-se. - Vocês atolam-se em pecados e a seguir imploram: meu Deus! Se Deus existe, o que é preciso é não pecar...
-Oh!-exclamou a mulher, perturbada. - Pois quê? Quem se lembrará de Deus se não for o pecador?
- Pois bem, quem deve lembrar sei eu!-retorquiu Ilia, preso de um irresistível desejo de ofender aquela mulher e nela todo o género humano. - Sei que não são vocês que têm o direito de falar dele! Não são vocês! Só se servem dele para se intrujarem uns aos outros... Já não sou
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um garoto... bem vejo como são as coisas. Todos gemem, todos se queixam... Porque se conduzem, então, como uns porcos? Porque se enganam, se roubam, uns aos outros?... Comete-se um pecadozito e bota-se logo uma oração! Senhor, meu Deus, perdoa-me! Ai, eu bem vejo... impostores, canalhas! Enganam-se a si mesmos e enganam Deus!
Matitsa não respondia, olhando para ele, de boca aberta, o pescoço estendido para a frente, um misto de espanto e estupidez nos olhos. Ilia aproximou-se bruscamente da porta, fez correr o trinco num gesto desabrido e saiu com estrondo. Via que tinha humilhado cruelmente Matitsa, e sentia grande satisfação: estava aliviado, o seu espírito aclarara-se. Desceu a escada num passo seguro, assobiando por entre dentes, repisando insultos, que a irritação tornava contundentes como flechas. Pareciam-lhe incandescentes todas as palavras que lhe vinham à mente, que essas palavras rompiam as trevas reinantes dentro dele e lhe mostravam o caminho a seguir, longe da humanidade; o alvo dos seus insultos já não era só Matitsa, mas também o tio Terêncio. Petrukha, o mercador Strogany, todos os homens.
- É assim mesmo! ?- dizia para consigo ao chegar ao pátio. - Acabaram-se as meias-palavras com vocês, gentalha!...
Pouco depois desta visita a Matitsa, Ilia começou a conviver com mulheres. A primeira vez sucedeu assim: um dia, no regresso a casa, uma mulher disse-lhe:
- Queres vir comigo?
O rapaz olhou-a e foi atrás dela, sem abrir a boca. Mas seguia de cabeça baixa, lançando olhares à sua volta, não fosse aparecer algum conhecido. Um pouco adiante, a mulher avisou-o:
- Não sei se sabes, é um rublo.
- Está bem! -concordou Ilia.- Vamos depressa...
E até à casa da prostituta não se trocou qualquer outra palavra. Foi tudo...
Mas o convívio das mulheres implicava gastos vultosos e Ilia cada vez se convencia mais de que o seu negócio era uma pura perda de tempo e nunca lhe daria a possibilidade de ter uma vida decente. Pensou a certa altura entregar-se à venda de lotaria, como os outros vendedores
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ambulantes, e de pôr-se a enganar os compradores, tal como todos eles faziam. Mas reflectiu mais demoradamente e considerou que era empreendimento demasiado mesquinho para as preocupações que acarretava. Teria de se esconder dos polícias, ou tornar-se amigo deles, comprando-os, o que lhe repugnava. Gostava de encarar toda a gente bem de frente e ressentia grande prazer em andar sempre mais decentemente vestido do que os outros vendedores, não beber vodka, não enganar a clientela. Seguia o seu caminho, sem pressa, num passo estudado, com uma rígida seriedade estampada no rosto de maçãs salientes; na discussão do negócio falava o menos possível, medindo as palavras. Sonhava com a felicidade que sentiria se encontrasse mil rublos ou mais. As descrições de roubos despertavam-lhe vivo interesse: comprava o jornal, lia atentamente os pormenores do roubo e fazia por se manter ao corrente durante longo tempo após o sucedido, para saber se acabavam por descobrir os ladrões. Quando assim ocorria, encolerizava-se e insultava-os, dizendo ao Tiago:
- Deixaram-se apanhar, os papalvos!... Quem não tem unhas, não toca guitarra, imbecis!
Certa vez, declarou a Tiago:
- Os malandros vivem melhor do que a gente honrada! A expressão do amigo tornou-se tensa, os seus olhos
piscaram nervosamente, e, com a voz abafada e misteriosa de que se servia para falar dos problemas importantes, Tiago lembrou:
- Na penúltima vez que estive no botequim, teu tio estava a tomar chá com um velhote, certamente um erudito. Este dizia que na Bíblia está escrito: "As casas dos ímpios estão seguras, e em paz, e a vara de Deus não está sobre eles."
- Não estás a contar-me uma história? - perguntou Ilia, que escutara atentamente o que o companheiro dissera.
- As palavras não são minhas... - afirmou Tiago, afastando os braços como para encontrar algo no espaço. - Vêm na Bíblia... Talvez o homenzinho as tenha inventado... Eu pedi-lhe que repetisse... E voltou a dizer exactamente a mesma coisa...
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E continuou, debruçado para Ilia:
- Basta ver o meu pai, por exemplo... É um homem calmo! Mas irrita Deus...
- E de que maneira! -exclamou Ilia.
- Elegeram-no na Duma da cidade...
Tiago baixou a cabeça, suspirou profundamente e acrescentou :
- Cada acto que o homem pratica deveria apresentar-se, à luz da consciência, limpo e preciso como um ovo... mas afinal... Isto revolta-me... Não entendo... Não sei como me devo comportar na vida, o botequim não me tenta de forma alguma... E meu pai sempre a repetir o mesmo: "Já hesitaste suficientemente, vê se tomas juízo e te pões a trabalhar!" A trabalhar em quê? Sirvo ao balcão, quando o Terêncio não está... É uma coisa que me repugna, mas lá vou aguentando... Quanto a fazer qualquer coisa de mim mesmo, não consigo...
- É preciso estudar!-sentenciou Ilia muito a sério.
- A vida é dura...-murmurou Tiago.
- Dura? Para ti? Não é verdade!-exclamou Ilia, e, saltando da cama, aproximou-se do camarada, sentado perto da janela. - Para mim é que é dura! Agora para ti... Teu pai envelhecerá, serás o dono da casa... E eu? vou pela rua fora. vejo nas lojas calças, coletes... relógios e tudo o mais... Mas não sou eu quem poderei usar aquelas calças... nem possuir aqueles relógios, percebes? Ora, eu, queria que fossem meus... Desejo ser respeitado... Sou pior do que os outros em quê? Sou melhor! E os malandros pavoneiam-se à minha frente, fazem-se eleger na Duma da cidade, têm casas, botequins... Por que razão os malandros são felizes e eu não? Eu também o quero ser.
Tiago olhou para o companheiro e, de repente, proferiu, em voz baixa mas perceptível:
- Queira Deus que nunca obtenhas o que desejas!
-Hem? Porquê? - soltou Ilia, parando no meio do quarto e fitando o amigo numa grande excitação.
- És ávido por temperamento, nada te poderá saciar explicou o outro.
Ilia lançou uma risada breve e maldosa.
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- Nada me poderá saciar ? Olha, pede a teu pai que me dê nem que seja a metade do que ele e meu tio roubaram ao avô Jeremias, e verás como ficarei saciado!
Tiago pusera-se de pé e, cabisbaixo, encaminhava-se lentamente em silêncio para a porta. Ilia via os ombros do companheiro sacudidos por um tremor convulsivo, e a sua cabeça a descair para um ombro, como se tivesse sido atingido por rude golpe.
- Espera aí! - disse-lhe Ilia, aflito, segurando-o por um braço. - Aonde vais?
- Deixa-me, meu caro ?- murmurou Tiago, mas, parando, olhou para Ilia. O seu rosto estava pálido, a boca crispada, e parecia ter perdido as forças, como se o tivessem querido esganar...
--Não te vás embora! - suplicou Ilia, consternado, afastando-o prudentemente da porta. - Não me fiques com rancor. É a verdade...
- Bem sei - disse simplesmente Tiago.
- Já sabias? Quem to disse? --Toda a gente o diz...
- Naturalmente, mas aqueles que o dizem também não são boas prendas!
Tiago olhou-o doloridamente e suspirou.
- Eu não acreditava, julgava que diziam isso por maldade, por inveja. Mas com o tempo comecei a acreditar... E agora, se até tu o dizes...
Fez um gesto de desalento, deu uns passos e deixou-se cair na cadeira, onde ficou estático, com as mãos presas ao assento e a cabeça descaída para o peito. Ilia afastou-se, indo sentar-se na cama como anteriormente. Calou-se, porque não encontrava palavras para o consolar.
- E é assim a vida - queixou-se Tiago a meia voz.
- Pois é - replicou Ilia no mesmo tom. - Eu compreendo, meu velho, não é agradável para ti. A única consolação, é que são todos iguais, por muito que se procure...
- Estás bem certo do que sucedeu ? - interrogou o outro, timidamente, sem se atrever a encarar o camarada.
- Eu tinha ido a correr lá abaixo, lembras-te? Vi-o e, pela fresta, coser o travesseiro... E o avô ainda respirava...
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Tiago encolheu os ombros com desânimo, ergueu-se e dirigiu-se para a saída.
- Adeus...
- Adeus. E... não fiques a pensar nisto... Que remédio lhe hás-de tu dar?
- Eu nenhum... - retorquiu Tiago, abrindo a porta. Depois de ele sair, Ilia lançou-se para cima da cama.
Sentia dó de Tiago, e um ódio violento ao tio, a Petrukha, a todo o género humano, avassalou-o novamente. Um ser como Tiago não podia viver neste mundo, e no entanto tratava-se de um rapaz cheio de qualidades: bom, sossegado, recto. Ilia pensava nos homens; a sua memória fazia ressurgir acontecimentos que os mostravam maus, cruéis, falsos. Tinha presente muitos exemplos e era-lhe fácil salpicar o semelhante com o fel e a lama das suas recordações. Quanto mais negros se lhe representavam os homens, mais opressa se tornava a sua respiração, dominado por um estranho sentimento em que se misturavam a angústia, uma alegria maldosa e também o temor da solidão nesta vida negra e triste, envolvendo-o num louco turbilhão...
Quando, finalmente, já não se sentiu capaz de permanecer deitado, sozinho no pequeno quarto cujos tabiques deixavam penetrar os ruídos confusos e saturados de odores do botequim, levantou-se e foi dar um giro. Nessa noite vagueou durante muito tempo pelas ruas da cidade, arrastando consigo pensamentos penosos, obsidiantes e singelos. Ia através da escuridão e tinha a sensação de que alguém o seguia: um inimigo, que o empurrava insensivelmente para sítios ainda piores, mais tristes, mostrando-lhe apenas o que alimenta a angústia e faz nascer o ódio. Mas existiria, em verdade, no mundo, alguma coisa boa, homens ou acontecimentos que satisfizessem qualquer alegria? Porque os não via ele, por que razão, no seu caminho, só encontrava fealdade e tédio? Quem o empurrava assim, sempre, para o que é sombrio, sujo e mau?
Entregue a estes sentimentos, ia pelos campos fora, ao longo da muralha de um mosteiro situado nos arredores da cidade, olhando em frente. Do horizonte sumido na noite, pesadas nuvens corriam ao seu encontro. Por cima da sua
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cabeça, rompendo o encastelado das nuvens, luziam, por vezes, manchas de céu de um azul violento, onde cintilavam pequenas estrelas mudas. O silêncio da noite era, de tempos a tempos, quebrado pelo som cantante e metálico da sineta do guardião da capela do mosteiro. Era o único estremecimento perceptível no silêncio de morte que abraçara a Terra. O tumulto da cidade - mole negra perfilando-se ao longe, por trás de Ilia já nem sequer chegava ali, aos campos, apesar de a hora não ir muito avançada. Era uma noite de frio intenso: Ilia tropeçava aqui e ali na lama gelada. Paralisou-o uma sinistra sensação de isolamento e receio, fruto dos seus pensamentos. Apoiando-se à fria muralha do mosteiro, interrogou-se obstinadamente: quem o guiava na vida, quem fazia recair sobre ele tudo o que ela tinha de feio e doloroso?
E, de súbito, uma dúvida irresistível tomou a sua alma e aflorou-lhe aos lábios uma pergunta:
- Serás tu, Senhor?
Um arrepio de terror fê-lo estremecer, deixando-o gelado; impelido por horrível pressentimento, afastou-se bruscamente da muralha e, apressando o passo, encaminhou-se, aos tropeções, para a cidade, não se atrevendo a olhar para trás.
Dias mais tarde, Ilia encontrou Paulo Gratchev. Anoitecia; minúsculos flocos de neve formavam preguiçosos turbilhões no ar, reluzindo à luz dos candeeiros de iluminação pública. Apesar do frio, Paulo envergava simplesmente uma camisa de fino tecido turco, sem cinto. Ia em passos lentos, com a cabeça descaída para o peito, as mãos nos bolsos, curvado para a frente i, como se procurasse alguma coisa pelo chão. Quando Ilia o atingiu e o interpelou, Paulo levantou os olhos e soltou com indiferença:
- Viva!
- Como vai isso ? - perguntou Ilia, pondo-se a caminhar a seu lado.
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- Era preciso que fosse pior, mas não é possível... E tu, vai tudo bem?
- Assim, assim...
- Parece que também não estás brilhante... Andaram alguns metros, em silêncio, lado a lado; os
seus cotovelos roçavam-se.
- Porque nos não vens visitar? - inquiriu Ilia.
- Não tenho tempo... Bem sabes que quase nos não deixam livres um momentozinho só...
- Se tivesses vontade de o fazer, sempre tinhas arranjado tempo... - censurou Ilia.
--Não te zangues... Dizes-me para lá ir e, por teu lado, nem uma só vez me perguntaste onde moro, nunca me disseste que irias ter comigo...
- Lá isso também é verdade! - exclamou Ilia, sorrindo.
Paulo observou-o de relance e prosseguiu, com mais vivacidade:
- Vivo só, não tenho amigos, não encontro nenhum a meu gosto. Estive doente e passei três semanas no hospital e durante todo esse tempo não recebi qualquer visita...
- O que é que tiveste ?
- Apanhei um resfriamento, numa noite de bebedeira... Em seguida tive a febre tifóide... Quando comecei a sentir-me melhor, foi um verdadeiro suplício! Ficar deitado, sozinho, todo o dia. toda a noite... tem-se a impressão de se estar cego e mudo... como se nos tivessem lançado numa cova, como um gato vadio acabado de nascer. Mesmo assim, tive sorte, o doutor trazia-me livros... sem isso, teria morrido de tédio...
- Bons livros? - quis saber Ilia.
- Sim, bons livros! Li poesia, Lermontov, Mekrassov, Puchkine... Às vezes lia como quem está a beber leite. Há versos, meu velho, que lê-los é como ser beijado pela nossa amada. Outras vezes, é como um raio que nos incendeia...
- Eu deixei de ler - suspirou Ilia. - Ler, é uma coisa, olhar à nossa volta, outra...
- É precisamente isso que é agradável... Vamos a um botequim, conversar um pouco?... Eu tenho de ir a um lado, mas ainda é cedo.
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- Vamos! - concordou Ilia, e tomou amigavelmente Paulo pelo braço. Este último fitou-o de novo e disse com simplicidade:
- Nunca acamaradámos muito, nós os dois, e, no entanto, estou contente por te ter encontrado...
- Se estás contente ou não, não sei; quanto a mim, estou muito contente!
- Olha, meu caro - atalhou Paulo -, encontraste-me numa altura em que estava a pensar em coisas que mais vale esquecer! - Fez um gesto com a mão, como para afastar tristezas, calou-se e atrasou o passo.
Entraram na primeira casa de bebidas que lhes surgiu no caminho, procuraram uma mesa a um canto e pediram cerveja. À luz do candeeiro, Ilia distinguia melhor o rosto adelgaçado e febril de Paulo, os seus olhos preocupados e os lábios, outrora quase sempre ironicamente entreabertos, agora cerrando-se numa contracção amarga.
- Onde trabalhas ? - perguntou-lhe.
- Ainda numa tipografia - respondeu Paulo sem entusiasmo.
- Muito trabalho?
- Não é trabalho, é um fardo!
Ilia sentia um estranho prazer ao verificar que o alegre folgazão de antigamente se tornara num rapaz preocupado e abatido. Gostaria de saber o que o tinha transformado a este ponto e, sem cessar de lhe encher o copo, interrogava-o:
- Escreves versos ?
- Já não faço nada, mas dantes escrevia muitos versos. Mostrava-os ao doutor, que os apreciou bastante. Até fez publicar um poema meu num jornal...
- Imagine-se! - exclamou Ilia. - Anda, recita-me esse poema!
A vibrante curiosidade de Ilia e alguns copos de cerveja acabaram por animar Gratchev. O seu olhar tornou-se brilhante e as suas faces coradas.
- Qual? -- perguntou, esfregando vigorosamente a testa. - Esqueci-me. Palavra de honra, esqueci-me! Espera, talvez consiga lembrar-me. Continuo a tê-los na cabeça... parecem abelhas numa colmeia... zumbem do mesmo modo! Às vezes, começo a escrever, aqueço!... As ideias fervilham
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dentro de mim, as lágrimas saltam-me dos olhos... Deseja-se dizer tudo com naturalidade, mas as palavras não surgem...
- suspirou e, abanando a cabeça, acrescentou: - Quando imaginamos o poema, tudo está perfeito, mas, logo que o escrevemos, -fica vazio...
- Mas recita-me qualquer coisa! -insistiu Ilia. Quanto mais observava Paulo, mais ia crescendo a sua curiosidade, a que pouco a pouco se misturava um sentimento entusiasta e triste.
- Componho coisas bizarras, a respeito da vida que levo -confessou Gratchev com certa timidez.
Voltou-se um pouco para o lado, aclarou a garganta e começou a meia voz, sem fitar o companheiro:
É noite... Que tédio! Através da vidraça embaciada
A Lua lança-me um dos seus raios,
Que, sorrindo-me com amizade.,
Desenha uma fantasia azul
Na parede húmida e fria.
Sobre os rasgões do papel enegrecido:
Sentado, olho e calo-me, calo-me sempre...
E o sono não vem...
Fez uma pausa, aspirou profundamente e continuou mais lentamente, mais baixo:
O meu destino atabafa-me, esmaga-me... Lacera-me o coração, quebra-me o corpo, E nem sequer uma mulher a meu lado. Resta-me, apenas,, uma garrafa de vodka... U ma garrafa posta ali, à minha frente... Brilhando sob o raio de luar, parecendo rir... É com álcool que trato o meu coração ferido: com álcool, um nevoeiro tolda o meu espírito, Deixarei de pensar, chegará o sono... Não seria melhor beber um copo mais? vou beber!... Que não bebam os que conseguem
[dormir! com os meus pensamentos o sono não vem...
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Ao acabar, Gratchev lançou um rápido olhar a Ilia e, baixando de novo a cabeça, disse baixo:
- Aqui tens... Agora é assim que eu escrevo quase sempre...
Tamborilou com os dedos no tampo da mesa. Estava agitado e inseguro.
Durante alguns minutos, o amigo fitou-o admirado e incrédulo. As frases harmoniosas continuavam a soar aos seus ouvidos, mas custava-lhe convencer-se de que tinham sido compostas por aquele rapaz magro, de olhar fugidio, envergando uma velha camisa de tecido ordinário e calçando botas grosseiras.
- Mas, meu caro, não é nada esquisito!-comentou, por fim, lentamente, em voz baixa, com os olhos cravados em Paulo. - São bons... comoveram-me profundamente... acredita! Recita mais uma vez, peço-te!...
Paulo ergueu a cabeça, com um sorriso feliz a brilhar-lhe nos olhos, e, aproximando-se mais do amigo, perguntou-lhe quase em segredo:
- É mesmo verdade que gostaste?
- Palerma!... Achas que te ia mentir?
Paulo repetiu o poema, em voz doce e sonhadora, parando frequentemente, para retomar fôlego. E, "nquanto ele recitava, as dúvidas de Ilia acerca da origem do poema iam-se tornando mais precisas.
-Dizes outro agora? - pediu.
- É preferível ir a tua casa com o meu caderno... Tudo quanto escrevo é muito comprido... e são horas de me pôr a andar! E, além disso, não é fácil lembrar-me deles... Tenho sempre o princípio e o fim na ponta da língua... Escuta, aqui tens um poema: vou por uma floresta, de noite, e perco-me no caminho, estou fatigado... e sinto medo... estou só, tento sair da floresta, lamento-me:
Já nem sinto as pernas, Meu coração não pode mais E não encontro o caminho! Terra onde eu nasci! . Dize-me ao menos
Aonde ir.
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Deitado na terra,, Bem junto ao seu seio Maternal e húmido, Meu coração ouviu V m murmúrio profundo:
- Entra em mim!
- Ouve lá, Ilia, anda daí comigo, queres? Vem! Não me queria separar de ti...
Gratchev mostrava-se muito agitado, puxando Ilia pela manga e fitando-o com visível simpatia.
- Está bem, vou. Também não sinto vontade de me separar de ti... vou falar-te com toda a franqueza: acredito-te, por um lado e por outroi, não... Tu és um tipo muito estranho! E os versos saem-te, assim, naturalmente?...
--Não acreditas que sejam meus?
- Se são teus, parabéns!-soltou Ilia com sinceridade.
- Meu velho, vou aperfeiçoar-me mais e saio-te cá com uns poemas, hás-de ver!
- Não percas tempo!
- Ai, Ilia! Já que tenho imaginação suficiente!...
Foram andando em passadas rápidas e bastava meia palavra para se fazerem entender e darem-se logo resposta; animavam-se cada vez mais, sentindo-se cada vez mais perto um do outro. Alegrava-os o uníssono das suas ideias e essa alegria galvanizava-os. A neve, caindo em flocos, escorregava pelos seus rostos derretendo-se, ficava presa às suas roupas, aderia-lhes às totas. Iam envoltos num véu espesso e turvo que se movia sem ruído.
- Ora bolas!-berrou Ilia ao meter os pés numa poça de lama e neve.
- Segue mais pela esquerda...
- Aonde vamos ?
- A casa da Sidorikha, conheces?
- Conheço... - respondeu Ilia após um silêncio, pondo-se a rir. - Acabamos sempre por ir aos mesmos lados!...
- Pois!-assentou Paulo. - É evidente!... Mas tenho de lá ir, por causa de um assunto... vou contar-te... Não gosto nada de falar de tudo isto, Ilia...
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E escarrou ruidosamente.
- Estás a perceber: há lá uma rapariga... Vais ver que rapariga é... De te pôr doido... Era criada em casa do doutor que me tratava. Eu ia a casa dele buscar livros... quando já estava curado... Chegava, sentava-me e ela andava pela casa fora, correndo, rindo... Então, eu interessei-me por ela... Cedeu logo, sem protesto... Ai, o que começou entre nós dois! O céu parecia vir abaixo... Eu sentia-me impelido para ela, como o aço pelo íman... Beijávamo-nos até ficarmos com os lábios inchados e os maxilares doridos. Oh! Ela é asseada e jeitosa como um brinquedo, aperto-a nos braços e desaparece! É como um passarinho que me tivesse entrado no coração e se pusesse lá dentro a cantar... a cantar...
Um estranho soluço de desejo embargou-lhe a voz.
- E depois? - perguntou Ilia, preso pela narração.
- A mulher do doutor apanhou-nos... demónios a levem! Era uma boa patroa, mas não passava de uma grandessíssima idiota! Às vezes entretinha-se comigo, também... e não se aborrecia nada. garanto-te eu! Bela mulher... a bruxa!
- E depois?-repetia Ilia.
- Então aquilo deu escândalo... Puseram a Vera na rua... Injuriaram-na... E a mim também... Ela foi viver comigo... Mas nessa altura eu estava sem trabalho... Gastámos tudo quanto tínhamos... Mas dá-se o caso de que ela é uma mulher de carácter... Fugiu-me... Só a voltei a ver duas semanas depois... E ela voltou... vestida à moda e tudo... uma pulseira, dinheiro...
Cerrou os dentes e juntou, em voz cava: -Nem queiras saber a tareia que lhe dei... --? E ela foi-se de novo embora?
- Não... Se se fosse, ter-me-ia deitado a afogar... Ela dizia-me: ou me matas,, ou nunca mais me bates... Sou um estorvo para ti - repetia ela...-O meu coração não será de mais ninguém...
- E tu que fizeste ?
- Tudo: bati-lhe, chorei... Que mais poderia fazer? Não tinha com que lhe dar de comer.
- E ela não queria procurar trabalho?
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- Nem a martelo se deixa convencer! Era ouvi-la: está bem! Teremos filhos e que faremos deles ? Assim - afirmava ela -, tudo fica na mesma, sou só tua e não haverá filhos...
IIia Lunev ficou meditativo e finalmente disse:
- De parva não tem ela nada...
Paulo calara-se e caminhava apressado, através da cortina de neve.
Adiantou-se uns passos e, parando, voltou-se para o companheiro e exclamou raivosamente:
- Quando penso que outros a beijam, é como se me lançassem chumbo derretido pelas goelas abaixo.
- Não consegues deixá-la?
- Deixá-la, a ela! -soltou Paulo, estupefacto. Ilia compreendeu-o ao ver a rapariga.
Tinham chegado ao extremo da cidade e estacado perante uma casa térrea. As seis janelas conservavam-se hermeticamente fechadas com as suas portas de madeira, o que dava ao edifício o aspecto de um hangar, velho e bastante vasto. Neve húmida recobria as paredes e o telhado, como se a quisesse esconder aos olhos dos transeuntes.
Paulo tocou à porta e explicou:
- É uma casa particular. A Sidorikha fornece às raparigas alojamento e alimentação, cobrando a cada uma cinquenta rublos... As pequenas são quatro... É evidente que a Sidorikha tem à sua guarda o vinho, a cerveja e as guloseimas... Mas deixa as raparigas fazerem o que muito bem entendem: podem passear ou ficar em casa, como lhes apetecer; no entanto, todos os meses os cinquenta rublos têm de aparecer... Elas levam caro e não lhes é difícil ganhar o necessário... Há uma, a Olímpia, que não vai seja com quem for por menos de vinte e cinco rublos...
- E a tua. quanto é? - perguntou Ilia enquanto fazia cair a neve que o cobria.
- Não sei... caro também-respondeu baixo Gratchev, após uma hesitação.
Ouviu-se ruído por trás da porta, um fiozinho de luz dourada iluminou frouxamente a rua perto da entrada.
- Quem é?
- Eu, Sr." Vassa... o Gratchev...
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- Ah! - Abriu-se a porta; uma mulher de idade com uin enorme nariz num rosto flácido fez incidir a luz de uma vela no rosto de Paulo e disse, prazenteira:
- Ora viva! Já há um bocado que a Vera anda numa inquietação, está à tua espera. Quem vem contigo?
- Um camarada...
-Quem é? - perguntou uma voz sonora vinda do fundo do longo corredor mergulhado na escuridão.
- É para a Vera, minha querida Olímpia... -informou a velha.
- É o teu rapaz! - lançou a mesma voz do fundo do corredor.
Uma porta abriu-se então bruscamente, também lá no fundo da casa, e numa grande mancha de luz surgiu a frágil figurinha da rapariga, toda vestida de branco e aureolada por farta cabeleira loura.
- Demoraste-te tanto! - queixou-se ela, mimalha. E pondo-se nos bicos dos pés colocou as mãos nos ombros de Paulo, e voltou para Ilia os seus belos olhos castanhos.
- É um amigo... Ilia Lunev...
- Boas noites!
A rapariga estendeu a mão a Ilia e a ampla manga da sua blusa branca, descaindo, deixou-lhe a descoberto o braço quase até ao ombro. Ilia apertou com consideração e cuidado a mãozinha, de que se desprendia um calor doce, e observou a amiga de Paulo com alegria semelhante à que se ressente ao encontrar em plena floresta, entre matagais pantanosos e ramos quebrados, o tronco esguio e airoso de uma bétula. Quando ela se afastou para o deixar entrar, Lunev recuou e disse respeitosamente:
- Faz favor de passar à frente!
? -Oh!, mas que galante que ele é!-soltou ela numa risada. O seu riso era alegre e natural. Paulo também riu e gracejou:
- Ai, Vera! Deste-lhe volta ao miolo... Olha como ele está fascinado! Parece um urso à vista do mel...
- É sério? - interrogou alegremente a rapariga.
- É!-aquiesceu Ilia num sorriso. - A sua beleza entonteceu-me.
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- Experimenta apaixonares-te por ela que eu torço-te o pescoço! - brincou Paulo. Estava radiante com a impressão que a beleza da amiga causara em Ilia. Os olhos brilhavam-lhe. Ela, por seu lado, consciente dos seus atractivos, fazia-se valer com ingénuo impudor. Sobre a camisa vestia apenas a ampla blusa e uma saia branca de neve. E a blusa desabotoada deixava entrever o corpo rijo como um belo fruto. A sua boca pequena, de lábios cor de framboesa, sorria satisfeita; Vera mostrava-se encantada consigo mesma como uma criança se encanta com um brinquedo novo. Ilia não conseguia desprender os olhos dela, vendo-a deambular pelo quarto, com o seu narizito arrebitado, lançando a Paulo ternas olhadelas e não cessando de contar coisas divertidas; e Lunev acabou por se sentir triste ao pensar que a sorte o não bafejara com uma amiga assim.
Ao centro do quarto, muito bem arrumado, estava uma mesa coberta com uma toalha branca, na qual fumegava ruidosamente um samovar; tudo em volta era novo e fresco. As chávenas, a garrafa de vinho, os pratos com salsichão e pão, tudo agradava a Ilia, fazia-o invejar Paulo. Este último sentara-se e falava, alegre e desenvolto:
- Quando te vejo, é como se me aquecesse ao sol... e esqueço o resto, acredito na felicidade... É tão bom viver quando se tem uma pequena linda como tu, é tão bom olhar para ti...
--Que bem que tu falas, Paulo! -soltou Vera, entusiasmada.
- São palavras quentes, saidinhas do forno... Ouve, Ilia! A tua vez chegará!... Arranjarás uma amiga...
- Sem dúvida, e muito bela! - afirmou a rapariga numa voz estranha e mudada, fitando Ilia bem nos olhos.
- Mais bela que você, não permite Deus que exista! suspirou Ilia com um sorriso.
- Não fale do que não sabe... - proferiu Vera a meia voz.
- Ele sabe tudo... -cortou Paulo; as suas feições contraíram-se, e, voltando-se para o companheiro, continuou:
- Percebes, está tudo bem e sentimo-nos felizes... e de repente lembramo-nos... e uma dor aguda rasga-nos o coração!...
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- Não deves pensar nessas coisas -disse Vera, baixando a cabeça, e Ilia viu o sangue aflorar-lhe às orelhas pequeninas.
- Pensa antes - prosseguiu a rapariga baixinho, mas com firmeza:-só um dia, mas todo meu!... Para mim também não é fácil... Mas faço como na canção, o desgosto guardo-o só para mim e a alegria partilho-a contigo...
A expressão de Paulo ia-se tornando cada vez mais sombria... Ilia sentiu o desejo de lhes dizer alguma boa palavra, qualquer coisa de reconfortante, e, depois de reflectir, declarou:
- Que fazer, visto não haver outra solução? Quanto a mim... só lhes posso dizer, a ambos: se tivesse inil rublos, dava-lhos... Andem, tomem!, diria. Dêem-me o prazer de os aceitarem em nome do amor que têm um pelo outro. Porque sinto que a causa que defendem é justa e pura e tudo o mais não conta!
Algo tinha explodido dentro dele, afogando-o numa onda de fogo. Até se soergueu, vendo, ao levantar a cabeça. a rapariga olhá-lp com reconhecimento e Paulo sorrir-lhe, esperando também alguma coisa dele.
- É a primeira vez na minha vida que vejo pessoas que se amam... E tu, Paulo, julguei-te hoje verdadeiramente como mereces! Aqui me têm sentado em írente de vocês e confesso-lhes sinceramente: invejo-os... E quanto... ao resto... ouçam o meu conselho: não gosto dos Caras-de-Espantalho, nem dos Línguas-de-Fel, repugnam-me! Têm os olhos remelosos. Mas banho-me na mesma ribeira que eles bebo da mesma água. Deveria, por causa deles, privar-me da ribeira? Tenho a certeza de que Deus a purifica.
- Está certo, Ilia! Bravo! - aplaudiu calorosamente Paulo.
- É preferível beber a água da valeta - murmurou Vera.
?- Não, antes quero que me sirva uma chávena de chá! exclamou Ilia.
- Você é um encanto - afirmou a rapariga.
- Agradeço-lhe humildemente!-replicou Ilia, muito sério.
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Esta breve cena teve em Paulo o efeito do vinho. O seu rosto sensível enrubesceu, os olhos brilharam-lhe de entusiasmo, saltou da cadeira e pôs-se a andar de um lado para o outro pelo quarto.
- Raios me partam! A vida é boa quando as pessoas se conduzem como crianças! Foi uma verdadeira alegria para mim, Ilia, trazer-te cá... Bebamos, meu velho!
- Já está!-disse a rapariga olhando ternamente para o amigo e voltando-se para Ilia: - ele é sempre assim, tão depressa se apaixona como empalidece, se torna triste e mau...
Bateram à porta e uma voz perguntou:
- Pode-se entrar, Vera?
- Entra, entra! Este é o Ilia... a minha amiga Olímpia... Ilia levantou-se e encarou a recém-vinda: à sua frente
estava uma mulher jovem, alta. e bem proporcionada, que o fitava com uns tranquilos olhos azuis. Do seu vestuário vinha um eflúvio de perfume, as suas faces eram doces e rosadas e, alongando a figura, os cabelos, negros como asa de corvo, estavam apanhados ao alto da cabeça.
- Aborrecia-me sozinha... Ouvi rir no teu quarto e vim... Não faz mal? Eis um cavalheiro sem par... Dá licença que seja a sua dama?...
com um gesto harmonioso, aproximou uma cadeira de Ilia, sentou-se e perguntou:
- Aborrece-se junto deles, não é verdade? Estão para ali a fazer olhinhos um ao outro e dão-lhe inveja, confesse!
- Não, não me aborreço - replicou Ilia, perturbado com a proximidade da jovem.
- É pena!-soltou em voz calma; dirigindo-se depois a Vera, continuou:
- Queres saber, ontem, fui às vésperas, ao convento, e vi no coro uma rapariguinha extraordinária... Estive sempre a olhar para ela, perguntando a mim própria por que razão teria aquela alminha ido para o convento. Fazia-me dó...
- A mim, não me teria feito dó - disse Vera.
- Ah, pois! Acredito-te mesmo!
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Ilia aspirava o perfume capitoso que emanava da mulher, olhava-a disfarçadamente e escutava com atenção a sua voz. Havia no seu falar, calmo e regular, algo de embalador e as suas palavras pareciam igualmente expandir um perfume agradável e capitoso...
- E queres saber, Vera? Continuo indecisa... Achas que deva ir a casa do Poluektov ou não?...
- Não sei...
- Talvez vá... É velho, rico. Mas avarento... Eu peço-Ihe que deposite cinco mil rublos no banco e que me pague cento e cinquenta por mês, e ele deposita três mil e dá-me cem...
- Minha querida Olímpia! Não fales de tudo isso pediu Vera.
- Está bem, acabou-se!-condescendeu a outra tranquilamente. E voltando-se de novo para Ilia: -- Então, meu jovem amigo, conversemos um poucochinho... Você agrada-me... Tem uma linda cara e uns olhos graves... Que diz a isto?
- Não sei que diga - respondeu Ilia num sorriso acanhado, sentindo que a mulher o envolvia como uma nuvem.
- Não sabe mesmo nada? Que maçador que é... Qual é o seu trabalho?
- Sou vendedor ambulante...
- Ai, sim? E eu que o imaginava empregado bancário... ou caixeiro num grande armazém. Veste-se de maneira perfeita...
- Gosto de asseio - disse Ilia. O calor incomodava-o e o perfume fazia-lhe a cabeça andar à roda.
- Gosta de asseio? Muito bem... E é perspicaz?
- Como diz ?
- Já reparou que está a incomodar o seu camarada? -? perguntou em voz suave a mulher de olhos azuis.
- Vou-me embora imediatamente!... - gaguejou Ilia.
- Ó Vera! Posso levá-lo?
- Leva-o, se ele estiver pelos ajustes! -ripostou Vera, desatando a rir.
- Para onde? --interrogou Ilia, sobressaltado.
- Anda, vai, palerma! - exclamou Paulo.
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? Ilia não arredava pé e sorria, sem saber que fazer, mas a mulher tomou-o pelo braço e arrastou-o, dizendo tranquilamente :
- Você é esquivo, e eu sou caprichosa e obstinada. Se me passar pela cabeça apagar o Sol, subo a um telhado e fico a assoprá-lo até cair para o lado... Está vendo como eu sou?
Ilia tinha o braço preso pelo dela, não compreendia, quase não escutava o que a mulher dizia, sentindo apenas a sua carne quente, doce e perfumada.
Esta ligação, inesperada e extravagante, dominou totalmente Ilia. ao ponto de a satisfação que ressentia lhe parecer ter sarado as feridas deixadas pela vida. A ideia de que uma mulher bela e elegante lhe dava, de livre vontade, por simples querer, sem nada lhe pedir em troca, os seus beijos tão caros, engrandecia-o aos seus próprios olhos. Tinha a impressão de flutuar num caudaloso rio, embalado por ondas calmas e doces como carícias.
- O meu capricho!-chamava-lhe Olímpia, brincando com o seu cabelo, ou aflorando com o dedo a penugem do seu lábio. - Cada vez me agradas mais... O teu coração é firme e seguro, e vejo que acabas por obter tudo quanto desejas... Eu sou como tu... Se fosse mais nova, casava contigo... Juntos, tínhamos a partida ganha de antemão...
Ilia sentia respeito por ela: parecia-lhe inteligente e ter consideração por si própria, não obstante a vida vergonhosa a que se entregava. O seu corpo era vigoroso e maleável e a sua voz harmoniosa como o seu feitio. Apreciava o seu sentido da economia, o seu gosto pelo asseio, o seu à-vontade ao abordar todos os assuntos, conservando sempre a independência de espírito, mantendo-se até um pouco altiva em relação aos outros. Mas, por vezes, ao chegar, ia surpreendê-la no leito, com o rosto pálido e amarfanhado, o cabelo desmanchado e uma sensação de nojo oprimia-lhe o peito; observava, silencioso e duro, aqueles olhos turvos e descoloridos, e nem vontade tinha de a abraçar.
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Ela adivinhava, decerto, o que ele ressentia, pois tapando-se com a coberta da cama, ordenava:
- Sai daqui! Vai para o pé da Vera... Diz à velha que me traga água com um pouco de neve...
Ilia refugiava-se no quarto impecavelmente arrumado da amiga de Paulo, que, vendo o seu ar sombrio, lhe sorria timidamente. Uma vez perguntou-lhe:
- Então, a nossa amiguinha está de mau humor?
--Ai!, minha querida Vera! -respondeu Ilia-, em vocês, até o pecado é como a neve. Sorriem e ele derrete-se...
- Você e o Paulo não têm sorte - dizia a rapariga, condoída.
Ilia gostava muito de Vera; lamentava-a, preocupava-se sinceramente quando a ouvia discutir com Paulo e fazia por reconciliá-los. Agradava-lhe estar junto dela, vendo-a a pentear os cabelos de ouro ou ouvindo-a trautear enquanto ia cosendo. Nessas alturas ainda a apreciava mais; sentia com maior acuidade a desgraça da rapariga e consolava-a como podia. E ela dizia-lhe:
- Não é possível viver assim, não é possível. Para mim é o mesmo... nunca sairei da lama... Mas o Paulo, porque se prende a mim?
Olímpia vinha interromper a conversação, surgindo sem ruído no seu amplo penteador azul-celeste, semelhante a um frio raio de luar.
- Vamos tomar chá, capricho!... Depois virás ter connosco, Vera...
Enrubescida pela água fria. fresca, vigorosa e tranquila, levava Ilia atrás de si e ele deixava-se arrastar, perguntando a si mesmo se era de facto aquela mulher que vira pouco antes, amachucada, maculada por mãos sujas.
Enquanto tomavam o chá, ela dizia:
- É pena teres estudado pouco... É preciso largar o teu negócio e tentar qualquer outra coisa. Espera, vou-te arranjar um bom lugar... há que arrumar-te... Quando for a casa do Poluektov, trato disso...
- Então, ele dá os cinco mil rublos? - perguntou Ilia.
- Há-de dá-los! - respondeu a mulher convictamente.
- Pois bem! Se um dia o encontro cá, arranco-lhe a cabeça! - afirmou Ilia, cheio de ódio.
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- Espera ao menos que me dê o dinheiro - recomendou ela rindo.
O comerciante deu-lhe tudo o que ela desejava. Passado pouco tempo, Ilia encontrava-se já no novo alojamento de Olímpia, admirando os tapetes fofos, as cadeiras forrada de pelúcia e escutando o que ela lhe dizia serenamente. Esta mudança de situação parecia não ter dado qualquer satisfação a Olímpia: mostrava a mesma calma de sempre.
- Tenho vinte e sete anos. Aos trinta terei dez mil rublos. Então, mando passear o velho e serei livre... Que isto te sirva de exemplo, meu capricho de olhos sérios...
Ilia aprendeu com ela a firmeza inquebrantável que é necessária para atingir a meta estabelecida. Mas por vezes, ao pensar que a amante vendia as suas carícias a um outro homem, sentia-se dolorosamente ofendido e humilhado. E renascia dentro dele, com nitidez, o sonho da loja, do quarto asseado, onde poderia acolher Olímpia. Não tinha a certeza de a amar, mas ela era-lhe necessária. Foi assim qrie decorreram três meses.
Certo dia, ao regressar do trabalho, Ilia dirigiu-se à cave do sapateiro e com espanto foi dar com Perfichka e Tiago sentados à mesa, em frente de uma garrafa de vodka. O primeiro tinha um sorriso de satisfação nos lábios e o segundo, todo deitado sobre a mesa, dizia em voz pastosa:
-? Se na verdade Deus vê tudo, também me vê a mim... Meu pai não gosta de mim, é um trapaceiro! Não é verdade?
- É verdade, meu pobrezinho! Não é bonito, mas é verdade! - confirmava o sapateiro.
- Como hei-de eu viver? - interrogava Tiago, abanando, desesperado, a cabeça desgrenhada.
Ilia estacara à entrada, com um aperto no coração. Via a grande cabeça do companheiro oscilar molemente, mal sustida pelo pescoço fino; via o rosto ossudo e amarelo de Perfichka iluminado por aquele sorriso de beatitude; e não conseguia convencer-se de que era realmente Tiago,
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o Tiago suave e bem comportado, que estava ali à sua frente. Aproximou-se do amigo:
- Mas que estás tu a fazer ?
Tiago estremeceu, fitou-o com olhos assustados e soltou. com expressão malévola:
- Cuidei que fosse meu pai...
- Que estás a fazer, hem? -repetiu Ilia.
- Deixa-o lá sossegado, meu caro Ilia - começou Perfichka, erguendo-se vacilante.--Está no seu pleno direito... Ainda é uma sorte beber...
- Oh! Ilia!-gritou Tiago, histérico. - Meu pai... bateu-me!
- E a pura verdade, eu sou testemunha!-declarou Perfichka, dando murros no peito. - Vi tudo, posso testemunhar sob juramento!
Tiago tinha, com efeito, o rosto inchado e o lábio superior visivelmente contundido. Colocara-se em frente do camarada e perguntava-lhe com um lamentável sorriso:
- É permitido bater-me?
Ilia não encontrava palavras de consolação, nem de censura.
--Porque fez ele isto?
Os lábios de Tiago tremiam como se fosse dizer mais alguma coisa, mas. apertando a cabeça nas mãos, pôs-se a gritar alto, balançando-se de um lado para o outro. Perfichka deitou-lhe mais vodka no copo e clamou:
- Que chore, é bom quando se pode chorar... A Macha é o mesmo, está a debulhar-se em lágrimas... Diz que lhe vai arrancar os olhos! Mandei-a lá para cima, para o quarto da Matitsa...
- O que é que houve com o pai dele? - perguntou Ilia.
- A coisa passou-se assim, sem mais nem menos... O teu tio pusera-se com a cantilena do costume... O realejo que conhecemos: "Deixa-me partir para Kiev, implorar os santos intercessores!..." O Petrukha estava todo contente; há que dizer as coisas como são, contente por ele se querer ir embora... O Terêncio não dá plena satisfação, pobre homem! Vai, pois, diz o Petrukha, e hás-de rezar por mim aos santi-
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nhos... E eis que o Tiago se sai com a sua: "Deixa que eu parta também..."
Perfichka arregalou os olhos, fez um esgar de fúria e desfechou, em voz cava:
- "Quê-ê?..." "Deixa-me também ir ver os santos!..." "Como assim?" "Quero ir rezar por ti...", diz ele. O nosso Petrukha vociferou: "Eu é que vou rezar por ti!" E o Tiago a teimar: "Deixa-me partir!" Então o Petrukha ferrou-lhe um destes troca-queixos! E toma, e toma...
- Já não posso viver a seu lado! - berrou Tiago. Enforco-me! Porque é que me bateu? Eu pedia com boa intenção que me deixasse partir...
Ilia já não podia suportar a cena, e, vendo que nada podia fazer, encolheu os ombros, desanimado, e saiu. A notícia de que seu tio iria em peregrinação agradou-lhe: se o tio se fosse, ele também deixaria a casa e alugaria um quartito, onde pudesse viver só...
Mal entrara no quarto de dormir, apareceu-lhe Terêncio. Vinha radiante, com um novo brilho no olhar; balouçando ?a marreca, correu para o sobrinho e disse-lhe:
- Pronto, vou-me embora! Saio das trevas para entrar na divina luz do Senhor...
- Sabes que o Tiago se embriagou?... - cortou Ilia, secamente.
- Ai, sim? É mal feito...
- O pai bateu-lhe à tua frente, não foi?
- Foi... e depois?
- E depois, não percebes que foi por isso que ele bebeu?- replicou Ilia com rudeza.
- Ah!, foi por isso? Coitado...
Ilia via bem que o tio se preocupava bem pouco com a sorte de Tiago e esta atitude fez que a sua aversão pelo corcunda aumentasse. Nunca vira Terêncio tão contente, e esta alegria, vindo logo após as lágrimas de Tiago, criava no seu espírito um sentimento confuso. Sentou-se junto da janela e disse ao tio:
- Vai para o botequim...
- Está agora lá o patrão... Quero falar contigo...
- Acerca de quê?
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O corcunda aproximou-se do sobrinho e começou, em tom de mistério:
- Partirei em breve. Tu ficas sozinho e... por conseguinte... quer dizer...
- Fala abertamente-comandou Ilia.
?-Abertamente? - exclamou Terêncio, a meia voz, piscando continuamente os olhos. - É que também não é fácil... Eu juntei dinheiro... algum dinheiro...
Ilia encarou-o com expressão maldosa.
- Que tens tu? - perguntou o tio, estremecendo.
- Bem, juntaste dinheiro...
E a palava "juntaste" foi nitidamente sublinhada.
- Pois, é isso - continuou Terêncio desviando o olhar. - Portanto... Decidi dar duzentos rublos ao mosteiro e cem a ti...
- Cem?-soltou Ilia. Acabava de descobrir que, no fundo da sua alma, alimentava, há muito, a esperança de receber do tio não cem rublos, mas muito mais. E sentiu-se vexado em relação a si mesmo, por ter tido uma esperança tão pouco honrosa,-e também, em relaçãtf ao tio, por lhe dar tão pouco. Ergueu-se, endireitou o busto e, em voz firme, declarou com dureza:
- Recuso-me a aceitar o dinheiro que tu roubaste...
O corcunda recuou, deixando-se cair pesadamente em cima da cama, pálido e lamentável. Todo dobrado, abriu a boca e fitou Ilia com olhos de pavor.
- Porque me olhas assim? Eu não necessito desse...
- Jesus, meu Senhor! - gemeu Terêncio. - Ilia, meu menino, tu eras para mim como um filho... Mas... foi por ti que eu fiz isso... foi pelo teu futuro que me resolvi a pecar... Toma esse dinheiro!... Senão, Deus não mo perdoará...
- Ai, é assim!? - troçou Ilia. - É com as contas na mão que te apresentarás perante Deus?... E, antes de mais, dize: pedi-te eu alguma vez que roubasses o dinheiro do avô? Um homem daqueles, e roubaram-no!...
- Ilia! Tu também não pediste para nascer...-respondeu o tio estendendo ridiculamente a mão para ele. Não! Toma esse dinheiro em nome do Cristo! Pela salva-
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cão da minha alma... O Senhor não me desobrigará do pecado enquanto o não tomares...
Suplicava; os seus lábios tremiam e o pavor estampara-se-lhe no rosto. O rapaz olhava para ele sem saber se o que sentia era dó ou não.
- Combinado! Ficarei com o dinheiro... - disse por fim, apressando-se a sair do quarto. Estava descontente por se ter resolvido a aceitar o dinheiro que o tio lhe queria dar; sentia-se diminuído aos seus próprios olhos. Para que lhe serviriam cem rublos? Em que os empregaria? E pensou para consigo que, se o tio lhe tivesse oferecido mil rublos, teria tido a possibilidade imediata de transformar a sua vida preocupada e obscura numa vida pura, que decorreria longe dos homens, numa aprazível solidão... E se perguntasse ao tio quanto lhe coubera do roubo ao velho trapeiro? Mas a ideia repugnava-lhe...
A partir do momento cm que conhecera Olímpia, a casa de Filimonov parecera-lhe ainda mais suja e oprimente, opressão e sujidade que lhe provocavam uma repulsa física, como se mãos frias e escorregadias lhe aflorassem o corpo. Esta sensação atabafou-o naquele dia mais do que nunca, e, sentindo-se mal em toda a parte, foi até ao quarto de Matitsa. A mulher estava sentada numa cadeira ao lado do vasto leito; olhou para ele e, movendo um dedo. murmurou:
- Não faças barulho! Está a dormir!... Toda encolhida na cama, Macha dormia.
- Estás vendo! - disse baixinho Matitsa, abrindo desmedidamente os grandes olhos numa expressão de fúria.
- Puseram-se a bater nas crianças, esses filhos de Herodes! ÍNão se abrir a terra para os engolir!...
Postado junto do fogão, Ilia escutava os lamentos da mulher e observava o corpinho de Macha, envolto numa espécie de cobertor cinzento, perguntando a si mesmo o que viria a ser da rapariga...
- Sabes que esse ladrão dos diabos puxou pela trança da Macha? Taberneiro dos Infernos! Espancou-a, e ao filho também, e ameaça pô-los ambos daqui para fora, hem? Já sabias isso? E para onde irá ela, hem?
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- Talvez eu lhe possa arranjar um lugar... - disse Hia. lembrando-se de que Olímpia andava à procura de uma criada.
- Tu! -sussurrou Matitsa com uma censura na voz.- Tu andas por cá como um verdadeiro senhor... Cresces como um carvalho novo... sem dar sombra, nem frutos...
- iNão digas mal antes de tempo! - largou Ilia, que encontrara um excelente pretexto para correr logo a casa de Olímpia.
- Que idade tem a Macha? - perguntou.
- Quinze anos. Quantos querias tu que ela tivesse ? E para que lhe serve ter quinze anos? Se disséssemos que tinha doze, ainda pareceria de mais... É tão frágil e delgadinha... É ainda uma verdadeira criança! Esta pequena não pode ter préstimo em sítio algum! E para que há-de ela viver? Mais valia que não voltasse a acordar até à vinda do Cristo...
Uma hora mais tarde, Ilia estava à porta de Olímpia. esperando que lha abrissem. Esperou muito tempo, depois, por trás da porta, quviu-se uma voz débil e azeda:
- Quem é que está aí?
- Sou eu - respondeu Lunev, sem poder compreender de quem seria a voz. A criada de Olímpia, mulher bexigosa e espalmada, tinha uma voz brutal e cortante e abria sem perguntar fosse o que fosse.
- Para quem é? - perguntaram através da porta.
- A menina Olímpia não está em casa?
A porta abriu-se bruscamente; a luz bateu em cheio no rosto de Ilia, que recuou um pouco, semicerrando os olhos, pois não podia acreditar no espectáculo que se lhe oferecia.
À sua frente, com um candeeiro na mão, via-se um velhote baixo, envergando um amplo e grosso roupão cor de framboesa. Era quase completamente calvo e uma barbicha rala e grisalha tremelicava-lhe no queixo. Encarava Ilia com o olhar aguçado dos seus olhitos claros, brilhantes de maldade, movendo incessantemente o lábio superior todo salpicado de pêlos rijos. O candeeiro oscilava na sua mão seca e escura.
- Quem és tu? Anda, entra... liem? Quem és?
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Ilia compreendeu quem tinha à sua frente. Sentiu o sangue subir-lhe à cabeça e fervilhar-lhe nas veias. Ali estava, pois, quem partilhava com ele as carícias da amante pura e forte...
- Sou um vendedor ambulante... - disse ao franquear a entrada.
O velho piscou os olhos e riu, escarninho. Tinha as pálpebras vermelhas e sem pestanas; os lábios deixavam a descoberto restos de dentes pontiagudos e amarelecidos.
- Um vendedor bonitote? Qual é a tua mercadoria, hem? Dize lá! --insistia o velho com expressão maliciosa, aproximando muito a luz do candeeiro do rosto de Ilia.
- Vendo diversas coisas... perfumes... fitas... toda a espécie de enfeites... - respondeu Ilia, de olhos postos no chão; sentia a cabeça a andar à roda, manchas vermelhas passavam-lhe em frente dos olhos.
- Pois, pois... fitas e galões?... Sim, sim, sim... fitinhas bonitas, perfumes... meus amorzinhos. Que queres tu, vendedor, hem?
- Preciso falar com a menina Olímpia...
- Claro! E que lhe queres?
- Tenho de... receber dinheiro pela mercadoria...- proferiu com esforço Ilia.
Sentia-se incompreensivelmente aterrado perante este velho nojento e odiava-o. Havia naquela voz débil e cansada, naquele olhar maldoso, qualquer coisa que lhe traspassava o coração, que o feria e humilhava.
- Queres massa? Uma dividazinha? Mui-ii-to bem... Afastando de repente a luz, o velho pôs-se em bicos dos
pés e aproximou a cara amarela e flácida do rosto de Ilia. com um sorriso, que destilava veneno, perguntou-lhe, num sussurro:
- E a conta, onde está? Dá-a cá!
- Que conta? - perguntou Ilia recuando, assustado.
- Do teu patrão! A conta da menina Olímpia! Anda, dá-ma! Eu levo-lha... Despacha-te! - E chegou-se mais a Ilia. O rapaz tinha a garganta seca de medo.
- Não tenho conta alguma!-exclamou violentamente, no cúmulo do desespero, sentindo que algo de incrível ia suceder.
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Mas nesse instante surgiu a figura alta e esguia de Olímpia. Olhou para Ilia calmamente, sem pestanejar, por cima da cabeça do velhote, e perguntou no tom de voz habitual :
- O que há. Basílio ?
- É um vendedor ambulante! Traz uma conta para que a paguem. Comprou-lhe umas fitas e não pagou, hem? Por isso, ele veio... Cá está...
O velho agitava-se em frente da jovem, perscrutando ora o seu rosto, ora o de Ilia. Ela afastou-o com um gesto imperioso da mão direita, enfiou depois a mão no bolso do penteador e disse para Ilia, em voz severa:
- Pois quê, não podias vir noutra altura?
- Perfeitamente!-ganiu o velho. - Que idiota, hem? Chegas precisamente no momento em que não fazias cá falta alguma, hem? Que burro!
Ilia estava petrificado.
- Não grite, Basílio! Parece mal - disse Olímpia. Depois, voltando-se para Ilia, acrescentou: - Quanto devo, três rublos e quarenta? Aqui tens...
- E põe-te a -mexer! - gritou ainda o velho. - com licença, eu fecho a porta... Não. não, quem a fecha sou eu!
Aconchegou-se no roupão e, abrindo a porta, gritou para o rapaz:
- Vai-te embora!...
Ilia ficou ali especado, ao frio. em frente da porta fechada, da qual os seus olhos vazios não conseguiam desprender-se, incapaz de afirmar se toda aquela cena tinha sido um pesadelo ou se sucedera realmente. Agarrava o boné com uma das mãos e na outra esmagava o dinheiro de Olímpia. Assim se manteve até sentir a cabeça apertada num círculo de ferro gelado e cãibras entorpecerem-lhe as pernas. Enfiou, então, o boné na cabeça, meteu o dinheiro na algibeira, escondeu as mãos nas mangas do sobretudo, dobrou-se para a frente e, de olhos postos no chão, foi lentamente pela rua abaixo, levando no peito um coração de gelo e sentindo na cabeça um turbilhão de pesadas esferas que chocavam violentamente de encontro às têmporas... À sua frente flutuava a sombra de um homem idoso de crânio amarelado, que um raio de luz frio iluminava...
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O velho ostentava um sorriso de vitória, ruim e troeista...
No dia seguinte, Ilia deambulava lentamente, em silêncio, pela rua principal da cidade. Continuava a ter presente o olhar maldoso do velho, a expressão tranquila dos olhos azuis de Olímpia e o gesto da sua mão, ao dar-lhe o dinheiro. Minúsculos cristais, adejando no ar glacial, davam-lhe pequenas picadas no rosto...
Acabava de passar em frente de uma lojita apertada ?entre uma capela e a casa imponente do mercador Lukine. Por cima da porta de entrada da loja pendia nm letreiro enferrujado: "Troca de moedas B. G. Poluektov - Compra ?de ouro e prata, guarnições de ícones, objectos preciosos e moedas antigas."
Ao olhar de relance para a porta da loja, Ilia tivera .a impressão de ter visto o velho no interior, por trás do ?vidro, ostentando aquele sorriso de mofa da véspera. Pare?cia-lhe até que a cabeça calva fizera um pequeno aceno. Lunev sentia um desejo irresistível de entrar no estabelecimento para observar de perto o velho. Encontrou logo um pretexto: como todos os pequenos negociantes, juntava as moedas antigas que lhe iam parar às mãos para, quando .tivesse bastantes, as trocar num cambista à razão de um rublo e vinte copeques por cada rublo. Tinha nessa altura na bolsa algumas dessas moedas velhas.
Voltou atrás, abriu afoitamente a porta da loja, entrou com o seu mostruário e, tirando o boné. disse:
- Muito bons dias...
O comerciante, sentado por trás do balcão, estava entretido a desmanchar a guarnição de um ícone, retirando os pregos com o auxílio de uma tesoura pequena. Ergueu o ?olhar e logo voltou a interessar-se pelo trabalho. Informou-se secamente:
- A que vem?
- Reconheceu-me? - não resistiu Ilia a perguntar-lhe. O velho encarou-o abertamente.
- Talvez... Que deseja?
- Compra moedas ?
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- Mostra...
Ilia quis tirar a bolsa da algibeira. Mas a mão não acertava a abertura e tremia tanto como o seu coração. A presença do velho enchia-o de ódio e temor. Enquanto rebuscava debaixo do sobretudo, os seus olhos mantiveram-se, obstinadamente, presos ao crâniozito calvo. Um arrepio de frio percorreu-lhe a espinha...
- Então, despachas-te, ou não? - perguntou o velho, irritado.
- Vai já!...-retorquiu Ilia em voz baixa. Conseguiu, finalmente, tirar a bolsa; aproximou-se do
balcão, no qual despejou as moedas que trazia. O comerciante mirou-as rapidamente:
- É só isto?
Tomando nos seus dedos magros e amarelados as moedas de prata, pôs-se a examiná-las, dizendo por entre dentes:
- Catarina... Ana... Catarina... Paulo... mais uma... um cruzadito... trinta e dois... sabe-se lá o que isto é! Esta não a quero, está demasiado gasta...
- Mas vê-se bem pelo tamanho que é uma moeda de vinte e cinco copeques --disse Ilia com rudeza.
O velho afastou a moeda para o lado e, num movimento rápido, puxou a si a gaveta da caixa, pondo-se a rebuscar dentro dela.
Ilia ergueu o braço e vibrou uma vigorosa punhada numa das fontes do velho. A cabeça do comerciante embateu na parede. Mas o choque repeliu-o logo para cima da caixa, e agarrando-se a ela com ambas as mãos, o velho esticou o pescoço para Ilia. Lunev viu a cara estreita e escura, com os olhos chamejantes e os lábios a estremecer, ouviu um sussurro farfalhante e rouco:
- Meu bom amiguinho... meu filho...
- Ah!, canalha! -exclamou Ilia, e as suas mãos apertaram, com repulsa, o pescoço do velho. Apertou e abanou-o. Arfando nos arranques da morte, a vítima arqueava o corpo, com as mãos desesperadamente apoiadas no peito do opressor. Os olhos do velho tornaram-se vermelhos, enormes, e encheram-se de lágrimas; a língua saiu-lhe para fora da boca negra, pondo-se aos saltos como se pretendesse arremedar o assassino. Uma baba morna inundava as mãos de
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Ilia e da garganta do comerciante saíam ruídos roucos e abafados. Dedos frios e aduncos afloraram o pescoço de Lunev; fincando os dentes, este lançou a cabeça para trás, sacudindo com maior violência o corpo leve que mantinha no ar. Naquela altura nem uma forte pancada na cabeça faria Ilia largar o pescoço, que estalava sob a pressão dos seus dedos. Louco de ódio e terror, via os olhos turvos de Poluektov continuarem a crescer; apertava-lhe a garganta cada vez com mais força, e, à medida que o corpo do velho se ia tornando mais pesado, parecia dissipar-se o peso que sentia no seu próprio peito. Por fim, afastou de si aquela massa inerte, que escorregou para trás do balcão.
Lunev voltou-se: a loja estava silenciosa e deserta. Através da porta, via a neve cair espessa, em grandes flocos. No chão, a seus pés, estavam dois pedaços de sabão, uma bolsa e um par de atacadores. Percebeu que tinham caído do seu mostruário, apanhou-os e colocou-os novamente no seu lugar. Depois, debruçando-se por cima do balcão, olhou para o velho: estava entalado entre o balcão e a parede, com a cabeça descaída para o peito, vendo-se apenas a nuca cor de cera. Lunev reparou então na gaveta da caixa que ficara aberta: moedas de ouro e prata reluziram, maços cie notas prenderam o seu olhar... Agarrou apressadamente num maço, depois num segundo, mais outro ainda, e escondeu tudo debaixo do sobretudo...
Saiu do estabelecimento sem precipitação, parou na rua a alguns passos da entrada, cobriu cuidadosamente o mostruário com um oleado e retomou o seu caminho através da neve compacta, que caía de invisíveis alturas. À sua volta e dentro de si moviam-se, silenciosamente, trevas glaciais e opacas. Ilia esforçava-se por sair dessa escuridão; de repente sentiu uma intensa dor nos olhos, tocou-lhes ao de leve com a ponta dos dedos da mão direita e parou, aterrorizado, como se o gelo o fizesse subitamente aderir ao solo. Parecia-lhe que os seus próprios olhos se tinham dilatado e saíam das órbitas, como os do velho Poluektov, e que iriam ficar para sempre esbugalhados, de pálpebras irremediavelmente levantadas para que todos pudessem ler neles o seu crime. Dir-se-ia que tinha os olhos mortos. Ao aflorar as pupilas, sentia-as magoadas, mas não conseguia baixar
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as pálpebras, e o susto cortou-lhe a respiração. Finalmente, conseguiu fechar os olhos; a noite total que o envolveu bruscamente banhou-o de inefável prazer e, como cego. permaneceu imóvel, aspirando o ar profundamente... Deram-Ihe um encontrão. Abriu os olhos e voltou-se para trás com vivacidade: um homem de elevada estatura, envergando uma pelica curta acabara do passar a seu lado. Seguiu-o com o olhar até o ver sumir-se no enxame espesso de flocos brancos. Ajeitando, então, o boné com um gesto rápido, Lunev seguiu pelo passeio adiante, com os olhos doridos e a cabeça pesada. Os seus ombros tremiam, os dedos cravavam-"e-lhe involuntariamente nas palmas das mãos e o seu coração foi invadido por um sentimento de insolência obstinada, que acabou por suplantar o temor.
Chegado ao cruzamento, entreviu a massa cinzenta de um agente da polícia e, inconscientemente, em bicos dos pés, caminhou na sua direcção. À medida que se aproximava, sentia-se desfalecer...
- Como ela cai!-exclamou, ao estacar junto do polícia, e encarou-o abertamente.
- Lá isso cai, não resta dúvida! Agora, felizmente, o tempo vai aquecer!-respondeu o outro gostosamente. Tinha uma cara larga, avermelhada, e uma barba espessa.
- Que horas são? - perguntou Ilia.
- Vai-se já ver! -O polícia sacudiu a neve da manga e meteu a mão pela abertura do capote. Manter-se frente a frente àquele homem conferia a Lunev um misto de prazer e angústia De repente, deu uma risadinha seca, contrafeita.
- Porque estás a rir? - interrogou o polícia, soltando com a ponta da unha a tampa do relógio.
- Ai, é que estás coberto de neve! -exclamou Ilia.
- Pudera!, a cair desta maneira! É uma e meia, neste momento... uma hora e vinte e cinco minutos. Que nevão, meu caro!... Agora tu vais-te pôr ao quente, no botequim, enquanto eu tenho de ficar especado aqui, até às seis... Repara no montão de neve que levas aí em cima do mostruário...
O polícia soltou um suspiro e fez pressão na tampa do relógio, que se fechou com um estalido.
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- É isso mesmo, vou entrar num botequim - disse Ilia instintivamente, e acrescentou, com um sorriso forçado:
- vou àquele, ali...
- Não me estejas para aí a tentar...
Ilia foi sentar-se perto de uma das janelas do botequim. Sabia que desse lugar se avistava a capela ao lado da loja de Poluektov. Mas nesse dia a vista estava toldada pela queda da neve. Contemplou atentamente os flocos bailando sem ruído antes de atingir o solo, onde todos os traços se apagavam num espesso tapete de algodão. O seu coração batia forte e apressado, mas todo ele se sentia leve. Permanecia sentado, sem pensar em nada. e aguardava o que viria a seguir.
Quando o criado de mesa lhe trouxe o chá, não resistiu a perguntar-lhe:
-Como está lá fora?... Não há nada?
- Faz menos frio... muito menos frio! - replicou apressadamente o empregado, antes de se afastar; Ilia deitou chá no copo e ficou sem beber, sem se mexer, entregue à sua espera. Sentiu calor: começou a desabotoar a gola do sobretudo e quando os dedos roçaram pelo queixo teve um arrepio: parecera-lhe que não era as suas mãos que sentira, mas as mãos geladas de um outro. Aproximou-as do rosto e observou-as cuidadosamente: estavam limpas, mas pensou para consigo que era preciso, apesar de tudo, lavá-las com sabão...
?--Assassinaram Poluektov! -gritou alguém de repente.
Ilia ergueu-se num salto, como se esse grito o tivesse chamado. Mas todos os clientes do botequim se levantaram também, dirigindo-se para a saída, pondo os bonés já a caminho. Ilia lançou dez copeques na bandeja, passou a correia do mostruário por cima do ombro e foi com os outros.
Havia grande ajuntamento em frente da loja do cambista, no interior da qual se viam polícias andar de um lado para o outro, praguejando, com ar preocupado; o barbudo, a quem Ilia falara pouco antes, também lá estava. Postara-se à entrada, para impedir que as pessoas penetrassem no estabelecimento, e, fitando a multidão com olhos de susto, não parava de esfregar a face esquerda, que acabou por ficar mais vermelha do que a outra. Ilia colocou-se bem à vista e pôs-se de ouvido à escuta, atento às conversas à sua volta.
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 poucos passos estava um mercador de elevada estatura, barba negra, rosto grave e sobrancelhas franzidas, que escutava a animada narração de um velhote de cabelo grisalho, bem agasalhado numa pelica de raposa.
- O rapazito pensou então que ele tinha bebido e tivera uma congestão, e foi a casa do Pedro. Venha, se faz favor, disse-lhe ele, o nosso amo está doente. Vai ele logo, seguido do rapazito, e olha, o outro estava morto! Estás a ver a audácia! Em pleno dia, numa rua de tanto movimento... é espantoso!
O mercador de barba negra tossiu com estrondo e declarou em voz profunda e austera:
- Há que ver nisto a mão de Deus! Quer dizer que o Senhor rejeitou o seu arrependimento...
Lunev deu uns passos em frente, desejando rever mais uma vez a cara do mercador, e tocou-lhe sem querer com o mostruário.
- Olá, homem!-gritou o outro, afastando-o com o cotovelo e fitando-o com severidade. ?- Por onde te queres tu meter?
E voltando-separa o interlocutor, acrescentou:
- Está escrito: nem um só cabelo cai da cabeça do homem sem consentimento de Deus...
- E está perfeitamente certo! - concordou o velho, sublinhando as palavras com acenos afirmativos de cabeça. Depois, piscando o olho, acrescentou confidencialmente:
- É sabido, Deus suprime sempre os patifes... Que o Senhor me perdoe! É um pecado dizer isto, mas custa a calá-lo... não é?
Lunev deu uma risada. Esta conversa criara-lhe novas forças, uma coragem ao mesmo tempo inquietante e agradável. E se alguém lhe tivesse perguntado naquele instante: "Foste tu que o assassinaste?", queria-lhe parecer que responderia sem receio: "Fui, fui eu..."
Encorajado por este sentimento, furou através da multidão, acabando por se encontrar junto do polícia. Este último, mal disposto, fê-lo recuar, com um safanão no ombro, e gritou:
- Onde é que vais? Que tens tu aqui que cheirar, não me dizes? Desaparece!
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Ilia cambaleou, indo de encontro a alguém. Mais uma vez foi repelido.
- Dá-lhe unia marretada! Está bêbedo, ou quê? Lunev afastou-se da multidão e foi sentar-se nos degraus
da capela, troçando interiormente daquela gente. Por entre o ranger de passos na neve e o rumor abafado das conversações, chegavam-lhe aos ouvidos algumas exclamações isoladas:
- O canalha teve mesmo de fazer uma destas enquanto eu estava de serviço...
- No desconto de letras não tinha rival na cidade...
- com esta neve, não se vê nada...
- Depenava as pessoas sem dó nem piedade...
- Olha, ali vai a mulher dele...
- Pobrezinha!-lamentou ruidosamente um camponês andrajoso.
Lunev pôs-se de pé e viu uma mulher gorda, de certa idade, de casaco e lenço negro atado à cabeça, sair com dificuldade de um grande trenó coberto com uma pele de urso. Um inspector da polícia e um homem de bigode ruivo amparavam-na, segurando-a por debaixo dos braços.
- Santo Deus!... - soltou a mulher em voz assustada e tremelicante. Todos se tinham calado. Ilia olhava para a velha e pensava em Olímpia...
- E o filho dele. onde está? - perguntou alguém em voz surda.
- Em Moscovo.
- Só estava à espera disto, aliás...
- Seguramente!
Lunev sentia-se satisfeito por ver que ninguém se condoía de Poluektov, mas ao mesmo tempo toda aquela gente, pondo de parte o mercador de barba negra, lhe parecia estúpida e até repugnante. O mercador tinha algo de grave, que inspirava confiança, enquanto todos os outros estavam ali plantados como os troncos na floresta, e, não sem evitar de lhe dar encontrões a ele, Ilia, patenteavam com vil alegria a própria baixeza.
Esperou até à altura em que levaram da loja o corpo franzino do cambista para regressar a casa, cansado e transido de frio. mais tranquilo de espírito. Assim que chegou,
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fechou-se no quarto e contou o dinheiro: os dois grandes maços de notas continham, cada um, quinhentos rublos e, o terceiro, oitocentos e cinquenta. Havia ainda um maço de cupões, mas não perdeu tempo a contá-los: envolvendo tudo numa folha de papel, ficou a pensar, encostado à mesa, onde iria esconder aquilo. Quanto mais pensava, mais vontade sentia de dormir. Resolveu esconder o dinheiro no sótão e encaminhou-se para lá, com o embrulho na mão, bem à vista; perto da entrada esbarrou com Tiago.
- Ah!, já voltaste-disse este último. - Que tens aí?
- Isto? - perguntou Ilia, baixando os olhos para o dinheiro. E tremendo, receoso de se trair, respondeu apressadamente, abanando o embrulho:
- São... atacadores...
- Vens tomar chá? - perguntou Tiago.
- vou já...
Largou dali apressadamente, sem força nas pernas, a cabeça pesada e confusa, como se tivesse bebido de mais. Subiu com mil cuidados a escada do sótão, com medo de fazer barulho, de encontrar alguém. E quando estava a esconder o dinheiro, perto da chaminé, pareceu-lhe, subitamente, que a um canto do sótão, no escuro, havia alguém que o observava. Teve vontade de lançar um tijolo, mas reteve-se a tempo e voltou para baixo, sem ruído. Já não ressentiu qualquer receio, como se juntamente com o dinheiro tivesse escondido o medo no sótão. Mas uma dolorosa perplexidade debatia-se na sua alma.
"Porque o matei?"
Quando entrou na cave, Macha cuidava do samovar,. junto ao fogão; acolheu-o com uma alegre exclamação:
- Voltaste hoje muito cedo!
- Está a nevar!-explicou, acrescentando, logo a seguir, de mau modo:
-? Como cedo ? Voltei à hora do costume... Bem vês que já está escuro.
- Aqui está sempre escuro, até ao meio-dia. Porque te zangas?
- Zango-me porque vocês parecem uns polícias: voltas
cedo!, onde vais?, que tens
Que têm vocês com iSSO!
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Macha fitou-o com espanto e disse em tom de censura:
- Ena, Ilia!, estás-te a tornar um toleirão de estalo!
- Deixem-me em paz! -? vociferou Lunev, e sentou-se à mesa. Macha fungou, despeitada, voltou-lhe as costas e pôs-se a assoprar na chaminé do samovar. Pequenina e frágil, abanava os caracóis castanhos, tossia e piscava os olhos por causa do fumo. Tinha o rosto magro e olheiras profundas, que acentuavam o brilho do olhar; havia nela qualquer coisa que lembrava as florezinhas que crescem nos recantos dos jardins, por entre a erva daninha. Ilia observava-a e pensava que a rapariguinha vivia sozinha neste cubículo, trabalhando como pessoa adulta, sem alegria de espécie alguma, e que, provavelmente, toda a sua vida seria igual, enquanto ele ia viver, como o desejava há muito, num ambiente calmo e asseado. Esta ideia reconfortou-o, mas senlindo-se culpado em relação a Macha, chamou pelo seu nome em voz baixa.
- Que me queres tu, peste?-disse ela.
- Sabes, eu sou um malandro-murmurou, e a sua voz tremeu: deveria dizer-lhe tudo? A rapariga endireitou o busto e olhou para ele, sorrindo.
- O que estás a precisar é que alguém te sacuda o pó, ú o que estás a precisar!
E, logo a seguir, correndo para ele, disse-lhe precipitadamente:
- Olha, meu querido Ilia, pede ao tio que me leve com ele!, pede-lhe! Agradecia-te de joelhos, garanto-te, de joelhos!
- Para ir aonde?-interrogou com a voz cansada, preocupado com os seus próprios pensamentos e sem compreender o que ela queria dizer.
- com ele, meu querido Ilia... pede-lhe!
Juntou as mãos e ficou em frente do rapaz como se se tratasse de um ícone; tinha os olhos rasos de água.
- Seria tão bom! Partiríamos na Primavera. Penso nisso todos os dias, sonho, vejo-me a andar, a andar... Meu querido IHa! Ele fará o que lhe pedires... dize-lhe que me leve! Não comerei o seu pão... irei mendigar! A mim dão-mo, sou pequenina... Ilia? Queres que te beije a mão?
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Agarrou-lhe na mão e inclinou-se. Ilia repeliu-a. Num salto, pôs-se de pé.
- Minha grande estúpida - gritou-lhe -, quereres fazer uma coisa dessas!... Eu matei um homem...
Mas, assustado com as suas próprias palavras, acrescentou logo:
- Podia ser... podia ter feito qualquer coisa assim... e tu queres-me beijar a mão?
- Que mal faz? - disse Macha, chegando-se muito a ele. - Teria beijado a tua mão à mesma, essa é boa! Petrukha é muito pior do que tu e eu beijo-lhe a mão por cada bocado de pão que me dá... É verdade que me repugna, mas ele ordena: beija! E, ainda por cima, apalpa-me e belisca-me, o porcalhão do velho!
Ou por ter proferido as palavras terríveis, ou por não ter chegado a confessar tudo, Ilia sentiu-se aliviado e bem disposto.
- Bem, eu tratarei disso! Está prometido! Irás em peregrinação... EJI dou-te o dinheiro necessário para a viagem...
- És um anjo!-soltou Macha, abraçando-o.
- Vais ver! -disse Lunev com segurança. - Fica combinado, irás! Rezarás por mim, querida Macba...
-Por ti? Santo Deus!...
Tiago apareceu à porta e, admirado, perguntou à rapariga:
- Porque estás tu a gritar dessa maneira? Ouvem-se os teus berros no pátio...
- Oh! Tiago - exclamou alegremente Macha, ansiosa por lhe contar tudo, e, muito emocionada, começou:
- Vou-me embora, parto, adeus! Ele prometeu-me que convencia o corcunda...
- Sim senhor!-disse Tiago, e assobiou baixinho.- O que me espera! Agora vou ficar sozinho, como a Lua na abóbada celeste...
- Arranja uma ama! -troçou Ilia...
- vou beber uns copos - afirmou Tiago, abanando a cabeça.
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Macha olhou para ele e, baixando os olhos, encaminhou-se para a porta. Ouviu-se a sua vozita triste censurar:
- Como tu és, Tiago... não tens mão em ti!
- Pois, vocês é que são fortes! Pouco lhes custa abandonar os outros... louvado seja Deus!
Indo sentar-se à mesa, em frente de Ilia, disse com ar acabrunhado:
- E eu, achas que poderei partir com o Terêncio sem dizer nada a ninguém?
- Parte... Eu, no teu lugar, partia...
- Tu, evidentemente! Mas eu, meu pai mandava a polícia no meu encalço
Ficaram todos calados. Depois, Tiago volveu, com alegria forçada:
- Ai, amigos, é tão bom estar-se bêbedo! Não se compreende coisa alguma, não se pensa em nada...
Macha pousou o samovar em cima da mesa e ralhou:
- Não tens vergonha?
-? Cala-te, ouviste? - gritou Tiago fora de si. - O teu pai é como se não existisse... Mete-se na tua vida, porventura?
- Eu tenho uma linda vida, não haja dúvida!-ripostou Macha. - Ia-me embora de bom grado e sem dizer até à volta!
- A vida é igualmente triste para todos! - declarou Ilia em voz baixa, entregando-se de novo à meditação.
Mas Tiago recomeçou a falar, num tom sonhador, de olhos fitos na janela:
- Como seria bom partir para qualquer lado, para longe de tudo isto! Viver nalguma pequena floresta, à beira de um riacho, e pensar...
--É uma maneira estúpida de fugir à vida!-afirmou Ilia com desprezo.
Tiago encarou-o e proferiu com voz segura:
- Queres saber? Encontrei um livro...
- Que livro?
- Um livro antigo... com encadernação de couro, parece um missal, deve ser uma obra herética. Comprei-o no Tatar por setenta copeques.
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- Que título tem? - perguntou Ilia sem grande curiosidade. Não tinha vontade alguma de falar, mas considerava perigoso calar-se; esforçou-se, pois, por mostrar algum interesse.
- A primeira página foi arrancada - contou Tiago, misterioso; trata do princípio das coisas. É de leitura difícil. Diz que Tales de Mileto foi o primeiro a interrogar-se acerca do princípio das coisas: "Diz da água que tudo quanto existe na natureza dela provém e que o próprio Deus não passa de ideia, porque tudo tem origem na água"... e havia também Diágoras, o Ateu,, o qual "não considerava que houvesse um Deus", isto é, não acreditava em Deus! E Epicuro, também... esse dizia "que, em verdade, Deus existe, mas nada dando a alguém, não praticando o bem, de nada se preocupando..." Quer dizer: que Deus pode de facto existir, mas nada ter que ver com os homens, é o que eu deduzo! Assim, vive, pois, como te aprouver, ninguém quer saber de ti...
Ilia ergueu-se e, carregando, enfadado, o sobrolho, interrompeu o lento discurso do camarada:
- Era preciso pegar nesse livro e dar-te com ele na cabeça!
- Porquê? - exclamou Tiago, perplexo e vexado.
- Para lhe não pores mais a vista em cima! Estúpido! E o que escreveu o livro não é mais esperto do que tu!
Dito isto, rodeou a mesa e, debruçado para o companheiro, que ficara sentado, acrescentou com ódio apaixonado, soletrando as palavras violentamente, como se desse marteladas na grande cabeça do outro:
- Deus existe! E vê tudo! E sabe tudo! Fora dEle nada é! A vida foi-nos dada como uma provação... o pecado é uma provação. Para ver se resistimos ou se sucumbimos! Se sucumbimos, aguarda-nos o castigo, basta esperarmos! E não é dos homens que esse castigo virá, mas sim dEle, percebeste? Basta esperar!
- Chega! - gritou-lhe Tiago. - Não é disso que eu estou a falar!
- É a mesma coisa! Achas que tens o direito de me julgar, hem? - vociferou Lunev, pálido, tomado bruscamente por uma excitação raivosa. - Nem um só cabelo cairá
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da tua cabeça sem o Seu consentimento! Ouviste? Se sucumbi ao pecado, foi porque Ele assim o quis! Estúpido!
- Endoideceste, ou quê? - gritou Tiago, assustado, encolhendo-se contra a parede. -A que pecado sucumbiste tu?
Na sua exaltação, Lunev recebeu a pergunta como um balde de água fria. Desconfiado, fitou primeiramente Tiago e depois Macha, que estava aterrorizada com a discussão e os gritos.
- Estou a dar-te um exemplo - disse em voz cava.
- Parece não estares bom de cabeça - comentou timidamente a rapariguinha.
- E tens o olhar turvo - acrescentou Tiago, observando o amigo.
Num gesto involuntário, Ilia levou uma mão aos olhos e respondeu, mais calmo:
- Não é nada, vai passar!
Mas um terrível mal-estar oprimia-o; não se sentia à vontade perante os companheiros e, recusando o chá, foi para o quarto.
Terôncio chegou quando Ilia se estava a meter na cama. Desde que o corcunda tomara a decisão de partir para expiar os pecados, os seus olhos rebrilhavam de beatitude, como se o pobre já saboreasse a alegria do perdão. Sorrindo, aproximou-se, em silêncio, da cama do sobrinho e, acariciando a barbicha, disse, pressuroso:
- Vi que tinhas voltado e estou aqui para conversar um poucochincho contigo. Já resta bem pouco tempo para estarmos juntos.
- Quando partes? - perguntou Ilia secamente.
- Logo que o tempo aquecer. Queria chegar a Kiev pela Semana Santa...
- Olha, leva a Macha contigo...
- E que farei dela?-exclamou o corcunda com um gesto de negação.
- Ouve - prosseguiu Ilia, em voz firme. - Ela aqui não é precisa... está numa idade em que... o Tiago, o Petrukha... e todos os outros... estás a ver? Para toda a gente, esta casa é uma espécie de armadilha, maldito casebre! Se a Macha se for embora... talvez não volte...
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- Mas que farei eu dela ? - tornou Terêncio num queixume.
- Leva-a contigo, leva-a - repetia Ilia sem desistir. E guarda os meus cem rublos para ela... Eu não preciso do teu dinheiro... e ela rezará por ti... Deus ouvirá as suas orações...
O corcunda reflectiu e murmurou num eco:
- Deus ouvirá as suas orações... sim! Dizes bem... Não posso ficar com o dinheiro que te dei... deixemos isso como ficou decidido... Quanto à Macha, tenho de pensar...
Uma grande alegria iluminou o olhar de Terêncio; debruçando-se para o sobrinho, pôs-se a contar com paixão:
- Ai, meu filho, se soubesses com quem estive ontem! Um homem famoso, Pedro Vassilitch... Ô exegeta de Cizov, já ouviste falar? Um homem de uma sabedoria extraordinária! Foi o Senhor que mo enviou para libertar a minha alma da dúvida que o Diabo nela instilara acerca da misericórdia divina para comigo, mísero pecador...
Ilia, deitado, não fazia comentários. Desejava ardentemente que seu tio se fosse embora. De olhos abertos, olhava, através da janela, para um muro alto e sombrio.
- Falámos sobre os pecados, a salvação da alma sussurrava Terêncio com entusiasmo. - E o exegeta dizia: "Tal como o buril necessita da pedra para afiar a ponta gasta, o homem necessita do pecado para inquietar a alma e a lançar em pó aos pés do Senhor misericordioso..."
O rapaz voltou-se para o tio e perguntou-lhe com cinismo :
- E esse exegeta não terá qualquer semelhança com o Diabo?
- Como se podem dizer coisas dessas ? - exclamou Terêncio, recuando. - É um homem piedoso. Hoje em dia, a sua reputação é maior ainda do que a do teu avô... ai, meu filho!
E abanava a cabeça, dando uns estalidos com a boca, em sinal de desaprovação.
- Pronto, está bem! - soltou Ilia, num tom de brutal hostilidade. - O que é que ele disse mais?
Sublinhou a pergunta com uma risada escarninha. Lia-se
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o espanto no rosto do tio, que se afastou mais, perguntando-lhe:
- O que é que tu tens?
- Nada. É um espertalhão, esse exegeta... Por acaso, convém-me perfeitamente... Eu também penso assim, exactamente a mesma coisa!
Calou-se, fitou demoradamente o tio e, a seguir, voltou-se para a parede.
- Também disse - continuou Terêncio em voz receosa -, também disse que o pecado dava à alma as asas do arrependimento e a fazia ascender ao trono do Todo-Poderoso...
- Mas tu também, tu pareces-te com o Diabo! - interrompeu Ilia, voltando a rir no mesmo tom de escárnio.
O corcunda agitou os braços, como um grande pássaro batendo as asas sem conseguir erguer-se nos ares, e imobilizou-se assustado e ofendido. O sobrinho sentou-se na cama, empurrou Terêncio, dando-lhe um safanão na anca, e gritou-lhe:
- Deixa-me!
Terêncio correu até ao meio do quarto, balouçando a marreca. Observou daí o sobrinho sentado na cama, apoiado nas mãos, de ombros levantados e cabeça caída para a frente.
- E se eu não me quiser arrepender ? - perguntou com firmeza Ilia. ?- Se eu considerar que não desejava pecar... que nada fiz para isso... que a vontade de Deus está em todas as coisas... para que me haveria de ralar? Deus sabe tudo, dirige tudo... Se isso não lhe tivesse sido necessário, ter-me-ia retido. Mas não me reteve, o que quer dizer que fiz bem. Todos vivem na mentira, e quem se arrepende?
- Não compreendo o que estás a dizer. Deus seja contigo! - E Terêncio suspirou, muito abatido.
- Se não compreendes, não fales comigo... E voltou a deitar-se, acrescentando:
?--Não me sinto bem...
- Bem o vejo...
?-Preciso de dormir... Vai-te daqui! Quando ficou só, sentiu como que um turbilhão na cabeça. Tudo o que lhe sucedera nas últimas horas mistu-
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rava-se bizarramente, confundia-se numa espécie de vapor espesso e escaldante que lhe queimava o cérebro. Parecia que já há muito se sentia neste estado, que matara o velho não nesse dia, mas noutro muito recuado.
Baixou as pálpebras e manteve-se imóvel e aos seus ouvidos ecoou a voz débil do cambista: "Então, despachas-te ou não?"
A voz rude do mercador de barba negra misturava-se com as súplicas de Macha; as velhas palavras do livro herético de Tiago confundiam-se com as máximas do exegeta. Tudo balouçava, ruía, o empurrava para o profundo. Dormir depressa, esquecer tudo aquilo. Adormeceu...
Quando despertou, na manhã seguinte, percebeu, pelo tom do muro em frente da janela, que era um radioso dia de geada. Recordou todo o dia anterior, concentrou-se durante uns momentos e verificou que sabia como teria de se comportar. Uma hora mais tarde encontrava-se na rua, com o mostruário suspenso pelas correias e encostado ao peito, e, semicerrando os olhos, devido ao brilho da neve, observou calmamente os transeuntes. Chegado à altura da igreja, tirou o boné por hábito e -persignou-se. Fez outro tanto em frente da capela situada junto da loja de Poluektov, que se encontrava fechada, e seguiu o seu caminho sem ressentir receio ou piedade, nem a menor preocupação. Ao meio-dia, no botequim, leu no jornal uma notícia referente ao audacioso assassinato do cambista. Deparando-se-lhe as palavras "a polícia tomou enérgicas medidas para descobrir o culpado", sorriu, fazendo um gesto de negação, certo de que nunca descobririam o culpado, caso ele próprio o não qui-
sesse. ..
Ao fim da tarde, a criada de Olímpia foi levar um bilhete a Ilia: "Aparece às nove horas à esquina da Rua Kuznetskaia, perto do estabelecimento dos banhos."
Depois de ler estas linhas, Ilia ficou com um grande tremor no corpo, como se um frio intenso o gelasse interiormente. Revia a expressão desdenhosa da amante, e aos seus ouvidos ecoavam, novamente, as palavras secas e contundentes: "Pois quê, não podias vir noutra altura?"
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Releu várias vezes o bilhete, perguntando-se por que razão Olímpia o mandaria chamar. Receava compreender e o seu coração desfalecia. Às nove horas estava no ponto marcado para o encontro, e ao avistar, entre as mulheres que passeavam em frente dos banhos, sós ou aos pares, a silhueta esguia da amante, a sua angústia atingiu o ponto máximo. Olímpia cobrira-se com uma pelica já velha e pusera um véu na cabeça, envolvendo-se de tal maneira que apenas trazia os olhos a descoberto. Ilia parou junto dela e manteve-se silencioso.
- Vem! - comandou a mulher. E acrescentou logo, em voz baixa: - Levanta a gola do sobretudo...
Meteram pelo corredor dos banhos, tapando o rosto como se sentissem vergonha, e foram-se esconder numa das divisórias particulares. Olímpia retirou então o véu, e a vista do seu rosto calmo e rosado pelo frio fez com que Ilia sentisse a sua coragem revigorada, se bem que, por outro lado, o irritasse notar aquela paz de espírito. A mulher sentou-se no divã, ao lado dele e, lançando-lhe um olhar terno, disse:
- com que então, meu capricho, seremos ambos levados, em breve, perante o juiz de instrução criminal...
- Porquê? - interrogou Ilia, limpando com a palma da mão a geada que derretia no bigode.
- Não parece mesmo burro? -soltou ela em voz baixa e trocista. E de sobrancelhas franzidas, anunciou num sussurro ao amante: - Esteve um polícia em minha casa, hoje.
Ilia olhou-a bem de frente e disse com secura:
- Quero lá saber dos polícias e de tudo o mais que tu queiras urdir! Dize-me claramente porque me mandaste chamar.
Olímpia encarou-o com um sorriso de desprezo.
- Lá estás tu a vexar-te! Mas, neste momento, isso pouco importa... Escuta: o juiz de instrução criminal yai convocar-te, interrogar-te-á, perguntar-te-á quando me conheceste, se me ias visitar com frequência... Conta-lhe tudo como se passou, a verdade... em todos os pormenores, percebes-me?
- Percebo! - respondeu Ilia numa risada.
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- Vai interrogar-te acerca do velho. Tu não o viste. Nunca. Não ouviste falar dele. Não sabias que me tinha por conta, compreendes?
Olímpia fitava Ilia com superioridade e irritação. O rapaz sentiu-se invadido por uma onda escaldante e agradável. Parecia-lhe que a mulher tinha medo dele: apeteceu-lhe atormentá-la e, semicerrando os olhos, pôs-se a rir baixinho, sem a desfitar, nem lhe responder. A expressão de Olímpia transtornou-se, o seu rosto empalideceu e, afastando-se dele, murmurou:
- Porque me olhas assim, Ilia?
?- Explica-me - perguntou ele num ricto de mofa - por que razão mentiria eu? Vi o velho em tua casa.
E apoiando os cotovelos ao tampo de mármore da mesa, dominado pelo sentimento de angústia e maldade que subitamente se apossara dele, prosseguiu, numa voz lenta e abafada:
- Olhei então para ele e pensei que era a pessoa que me entravava o caminho, quem destruíra a minha vida! E só o não estrangulei ali mesmo...
- Não é verdade! - afirmou energicamente Olímpia, batendo com a palma da mão na mesa. - Não é verdade! Não te entravava o caminho...
- Como assim? - perguntou duramente Ilia.
-? Digo-te eu que não! Se tivesses querido, teria ele deixado de existir na minha vida... Não to fiz compreender, não te disse que poderia mandá-lo embora, em qualquer altura? Tu calavas-te e sorrias, nunca me amaste humanamente... Foste tu, de livre vontade, que me partilhaste com ele...
- Basta! Cala-te! - ordenou Ilia. Ergueu-se e voltou a sentar-se, porque aquela censura o atingira.
?- Não me quero calar! - dizia ela. - Tu és novo, forte, amo-te... e tu que fizeste? Disseste-me alguma vez: "Vamos, Olímpia, escolhe entre mim e ele"? Disseste-o? Claro que não! Tu és um chulo, igual a todos os outros chulos...
O insulto vergastou Ilia, os seus olhos chamejaram, fechou as mãos e pôs-se de pé num salto.
- Como te atreves...
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- Hem? Queres-me bater? - proferiu a mulher, num tom de voz inquietante, de olhos brilhantes, e, largando por seu turno uma risada, continuou: - Pois bem, bate-me! Mas eu corro à porta e grito que foste tu quem o mataste, aconselhado por mim... Anda, bate-me!
Ilia assustou-se. Porém, o seu medo teve a duração de um relâmpago.
Voltou a sentar-se no divã e, após uma pausa, começou a rir de mansinho. Via Olímpia a morder-se os lábios, procurando com o olhar qualquer coisa no gabinete sujo, onde reinava o bafo quente das escovas e do sabão. Ela foi sentar-se no divã, junto à porta de comunicação com a sala de banho, e disse, baixando a cabeça:
- Podes rir...
- É o que estou a fazer!
- Mas, quando te vi, pensei: é ele, vai ajudar-me... -? Olímpia! - murmurou Ilía.
Ela calara-se e permanecia imóvel. -- Olímpia! --? repetiu Lunev, e, sentindo uma espécie de vertigem, silabou:
- Fui eu que matei o velho... é verdade!
Um arrepio de horror percorreu o corpo da mulher, que, erguendo a cabeça, o fitou de olhos muito abertos. Depois os seus lábios tremeram e, quase sufocada, articulou:
- Estúpido...
Ilia percebeu que as palavras que dissera a tinham assustado, sem a convencerem. Levantou-se, caminhou para ela e sentou-se a seu lado com uma expressão de desespero. Ela tomou-lhe a cabeça nas mãos, apertou-a de encontro ao peito e, beijando-lhe os cabelos, pôs-se a murmurar num tom pesado e ordinário:
- Para que tentas fazer-me mal!... Estava tão contente por o terem morto...
- Fui eu - repetiu Ilia abanando afirmativamente a cabeça.
- Cala-te! --exclamou a mulher, inquieta. - Alegra-me que o tenham morto, deviam ser todos mortos! Todos os que me tocaram! Vivo, só tu... És o único que encontrei em toda a vida, meu amor!
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As suas palavras forçavam Ilia a aninhar-se cada vez mais nela; apertou com força a cabeça ao peito da mulher e, se bem que a respiração lhe faltasse, não conseguia desprender-se dela, consciente de dela necessitar cada vez mais e de estar vivendo os momentos em que a união entre ambos mais perfeita era.
- Quando me fitas assim zangado... tu, que és puro... sinto corno a minha vida é sórdida e amo-te... pelo que tens de bom...
Pesadas lágrimas caíam na cabeça de Lunev; sentindo-as, pôs-se ele próprio a chorar sem pejo, livremente.
E ela, afastando de si a cabeça de Ilia, dizia, beijando os seus olhos molhados de lágrimas, as suas faces e os Seus lábios:
- Eu sei que é a minha beleza que te seduz; mas não gostas de mim verdadeiramente, acusas-me... Não consegues perdoar-me pela vida que tenho levado... nem pelo velho...
- Não fales dele - pediu Ilia. Limpou o rosto ao véu de Olímpia e ergueu-se.
- Seja o que Deus quiser!-disse baixo, mas em voz segura. - Quando -Ele quer punir alguém, atinge-o esteja onde estiver. Agradeço-te pelo que acabas de me dizer, Olímpia... Tens razão, sou culpado para contigo... Não sabia que eras assim. E tu ainda dizes: pronto, está bem, a culpa é minha...
A voz estrangulava-se-lhe, os lábios tremiam-lhe, os seus olhos injectavam-se de sangue. Lentamente, com mão trémula, alisou os cabelos em desordem e, afastando de repente os braços, soltou um brado rouco:
- A culpa é toda minha!... Porquê?
Olímpia agarrou-lhe a mão; ele deixou-se cair de novo no divã, junto dela, e, sem a deixar falar, acrescentou:
- Estás a ver, fui eu que o matei, eu!
- Caluda! -clamou surdamente Olímpia, apavorada.
- Que tens tu ?
Estreitou-o nos braços desesperadamente, tentando ler noa olhos dele um desmentido ao seu próprio terror.
- Ouve. Sucedeu involuntariamente. Deus é testemunha! Eu não queria. Pretendia apenas ver melhor como ele era... entrei na loja. Não tinha premeditado nada. E depois, de
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repente! Foi o Diabo quem me guiou e Deus nada fez para o impedir... Tirei o dinheiro, sem reflectir... não o deveria ter feito... oh!
Suspirou profundamente, como se o seu coração acabasse de se libertar de um grande peso. A mulher, trémula, apertava-o cada vez com mais força, soltando palavras sacudidas e incoerentes:
- Ainda bem que tiraste o dinheiro. Assim foi um roubo... Sem isso, teriam pensado que era por ciúme...
- Não irei confessar - dizia Ilia, absorto. - Que Deus me castigue... Os homens não têm o direito de julgar. Como poderiam fazê-lo... Não conheço homens sem pecado... Nunca vi um só, sequer...
- Oh! Senhor!-suspirou Olímpia. - Que irá suceder?... Meu amor... Não tenho forças para fazer seja o que for... nem falar, nem pensar, temos de nos ir embora daqui...
Pôs-se de pé e deu uns passos inseguros, como se estivesse embriagada. Mas, depois de cobrir a cabeça com o véu, disse, subitamente, em voz calma:
- E agora, Ilia? Achas que nos vão prender? Ele abanou negativamente a cabeça.
- Então... quando fores convocado, conta tudo, tal qual se passou...
- É isso mesmo que tenciono fazer... Estás convencida de que não saberei defender-me? Pensas que me farei degredar por causa daquele velho? Podes estar certa que não! Ainda não mostrei, neste caso, tudo aquilo de que sou capaz, acreditas?
Estava vermelho de excitação, os seus olhos deitavam chispas. Debruçando-se sobre ele, a mulher perguntou-lhe num sopro de voz:
- E o dinheiro, só tiraste dois mil?
- Dois mil e tal...
- Tens pouca sorte! Também nisso, tudo falhou! concluiu tristemente a mulher, e os seus olhos encheram-se de lágrimas.
A expressão de Ilia era amarga ao dizer-lhe:
- Como se eu tivesse feito aquilo pelo dinheiro! Não me compreendes... Espera, eu saio primeiro... É sempre o homem o primeiro a sair...
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- Vem depressa ver-me... Não nos devemos esconder... Vem depressa!-dizia Olímpia, angustiada.
Trocaram um beijo longo e apaixonado e Lunev saiu. Na rua, fez sinal a um cocheiro e durante todo o caminho voltou-se constantemente para trás, para se certificar de que não era seguido. A discussão com Olímpia aliviara-o, e sentiu um grande reconhecimento pela amante. Ela não proferira a mínima palavra, não tivera o menor gesto que o ferisse, quando ele lhe confessara o crime; não o repelira, parecendo tomar, pelo contrário, para si. uma parte do pecado. Momentos antes, ignorando ainda tudo, quisera perdê-lo e tê-lo-ia feito; a sua expressão não mentia... E relembrando Olímpia e esses momentos, Ilia sorria enternecido. Mas no dia seguinte teve a consciência de estar metido numa camisa de onze varas.
De manhã, cruzou-se, no botequim, com Petrukha, que respondeu à sua saudação apenas com uma imperceptível inclinação de cabeça e que o encarou com uma insistência especial. Terêncio também o observava, suspirando, sem proferir palavra. Tiago chamou-o à cave de Macha e aí disse-Ihe, apavorado:
- Ontem à noite esteve cá um inspector da polícia e fartou-se de fazer perguntas, a teu respeito, a meu pai... O que é que se passou?
- Que género de perguntas ? - informou-se tranquilamente Ilia.
- Qual é o teu modo de vida... se bebes... quanto a mulheres. Falou de uma tal Olímpia. "Não está, portanto, ao corrente?", dizia. Há alguma coisa?
- Como queres tu que eu saiba? - disse, apenas, Ilia, indo-se embora.
À noite, recebeu outro bilhete de Olímpia. Vinha assim redigido: "Fui interrogada a teu respeito, contei tudo em pormenor. Não é nada terrível, antes muito simples. Nada receies. Beijo-te, amor."
Lançou o bilhete ao fogo. Em casa de Filimonov e no botequim só se falava do assassinato do comerciante. Ilia escutava os relatos, que o faziam sentir certo prazer. Gostava de conversar com as pessoas, interrogá-las acerca dos pormenores que elas próprias tinham inventado, e sentir
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bem viva dentro de si a força necessária para as deixar todas boquiabertas, desfechando-lhes: "Fui eu quem o fez!..."
Alguns admiravam o seu jeito e a sua coragem, outros lamentavam que não tivesse conseguido levar o dinheiro todo, outros ainda receavam que se deixasse apanhar e ninguém mostrava dó do comerciante, ninguém se lembrou de proferir uma palavra de simpatia a respeito do morto. Esta ausência de piedade em relação ao assassinado criava-lhe satisfação e animosidade em relação aos comentadores. Não pensava em Poluektov, mas simplesmente que tinha cometido um grave pecado e que o castigo o aguardava. Cria enraizadamente que a hora do castigo de Deus soaria, porque Deus sabe tudo e não perdoa àquele que viola as Suas leis. Esta certeza sem pânico de um castigo que poderia surgir a qualquer momento conferia a Ilia uma espécie de paz. Aguçou-se apenas o seu já afiado espírito de censura, no que respeita a maldade que os homens encerram nos seus corações.
Tornou-se mais sombrio, mais fechado, mas prosseguiu, como anteriormente, a calcorrear a cidade, de manhã à noite, carregando a mercadoria, parando nos botequins, observando as pessoas, atento ao que diziam. Certo dia lembrou-se do dinheiro escondido no sótão e pensou que era preciso mudá-lo para outro lugar, mas logo a seguir reconsiderou: "Não. Que fique onde está... Farão uma busca, encontrá-lo-ão e confessarei!..."
Mas não houve busca e o juiz de instrução criminal ainda o não convocara. Só foi chamado no sexto dia. Antes de ir, mudou de roupa, envergou o seu melhor casaco, puxou o lustro às botas, posto o que tomou um trenó de aluguer. O veículo seguia, aos solavancos, pelas ruas em mau estado e Ilia esforçava-se por se manter imóvel, pois os seus nervos estavam tensos ao máximo e tinha a impressão de que, ao menor descuido, lhe sucederia qualquer desgraça. Subiu as escadas que conduziam ao gabinete do magistrado sem manifestar pressa alguma, com a mesma precaução que tomaria se fosse vestido de vidro.
Ao vê-lo, o juiz de instrução criminal, homem bastante jovem, de cabelo encaracolado e nariz arqueado sustentando lunetas de armação de ouro, começou por esfregar enèrgica-
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mente as mãos magras e brancas, retirando seguidamente as lunetas para as limpar com o lenço, enquanto observava Ilia. Tinha uns grandes olhos escuros. Ilia cumprimentou em silêncio.
- Bons dias! Sente-se... Aqui...
E indicou-lhe, com um gesto, uma cadeira junto da vasta mesa coberta por um pano escarlate. Ilia sentou-se e, cuidadosamente, afastou de si, com o cotovelo, alguns papéis colocados à beira da mesa. O magistrado notou o movimento, retirou polidamente os papéis e. sentando-se do outro lado da mesa, em frente de Ilia, pôs-se a folhear um livro, sem dizer nada, enquanto ia observando o rapaz com um olhar de viés. Descontente com o silêncio do funcionário, Ilia desviou dele a atenção e interessou-se pelo arranjo do gabinete; era a primeira vez que via tanta ordem e limpeza. Nas paredes estavam pendurados retratos emoldurados, quadros. Um deles representava o Cristo. Caminhava, meditativo, de cabeça inclinada, triste e solitário, por entre ruínas; a seus pés, por toda a parte, jaziam cadáveres, armas, e no último plano via erguer-se uma coluna de fumo negro: alguma coisa ardia. Ilia olhou demoradamente para o quadro, tentando perceber o que significava, e até pensou perguntá-lo, mas nessa altura precisa o juiz de instrução criminal fechou ruidosamente o livro que estivera a folhear. Ilia teve um leve sobressalto e olhou. O rosto do magistrado tornara-se seco e triste, a sua expressão era cómica, como se tivesse sido vexado por qualquer coisa,
- Bem - disse, dando um leve toque na mesa com o dedo -, Ilia Lunev, é o senhor, não é verdade?
- Sou...
- Adivinha a razão por que o mandei convocar?
- Não, senhor - respondeu Ilia, e de novo olhou furtivamente para o quadro. O gabinete era asseado, bonito, reinava nele o silêncio; Lunev não só nunca vira tanta limpeza como tantas coisas bonitas. Um perfume agradável emanava do juiz. Tudo isto distraía Lunev, tranquilizava-o e fazia-o ter um sentimento de inveja:
"Este homem tem uma rica vida... Deve render muito, isto de caçar ladrões e assassinos... Quanto receberá ele?"
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- Não? - repetiu o juiz, aparentemente surpreendido. - Olímpia Danilovna não lhe disse nada?
- Não, senhor; há muito que a não vejo...
- Há quanto tempo ?
- Não sei bem... Talvez há uns oito ou nove dias...
- Ah, sim! Bem... E diga-me: encontrou muitas vezes o velho Poluektov em casa dela?
- O que foi assassinado?... - perguntou Ilia, olhando o juiz bem de frente.
- Sim, sim!, esse mesmo...
- Nunca o encontrei... --Nunca? Hum!...
- Nunca...
O magistrado encadeava as perguntas num ritmo rápido, aparentemente descuidado, e quando Ilia, que respondia sem pressas, arrastava especialmente a resposta, ele tamborilava na mesa, com impaciência.
- Sabia que Olímpia Danilovna vivia à custa de Poluektov? - perguntou o juiz repentinamente, fitando Ilia através das lentes.
Lunev corou, sentindo-se ofendido.
- Não sabia - respondeu em voz surda.
- Pois é verdade, ela estava por conta dele - repetiu o juiz naquela sua voz irritante. - Em minha opinião, não está certo!-acrescentou, vendo que Ilia se não mostrava disposto a responder-lhe.
- Gostava de saber o que poderia haver de certo nisso disse suavemente Ilia.
- Sim?
Mas o rapaz calou-se de novo.
- Já a conhece há muito tempo ?
- Há mais de um ano...
- Quer dizer que travaram relações antes de ela conhecer o Poluektov?
"Não és parvo, não!", pensou Ilia para consigo, e respondeu tranquilamente:
- Como poderia eu sabê-lo, visto que ignorava que... que ela vivia com o defunto?
O juiz de instrução criminal arredondou os lábios, num trejeito que os lançava ao mesmo tempo para a frente, e
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achou por bem examinar um documento. Lunev volveu de novo o olhar para o quadro, verificando que o facto de se interessar pela imagem o ajudava a conservar-se calmo. Um riso de criança, sonoro e alegre, fez-se ouvir num quarto ao lado. Depois, uma voz de mulher, comunicativa e terna, entoou uma melodia arrastada:
Mãezinha Zoia, querida Duciazinha!...
- Dir-se-ia que aquela gravura o interessa muito? soltou o juiz.
- Aonde se dirige o Cristo? - perguntou Ilia a meia voz.
O outro fitou-o com olhos tristes, decepcionados, e após uma breve pausa, explicou:
- Como pode ver, desceu à Terra e nota como os homens escutaram a palavra da verdade. Percorre um campo de batalha e vê, à sua volta, cadáveres, ruínas, incêndios, pilhagem...
- E lá do Céu, não pode ver tudo isso?-perguntou Ilia.
- Hum!... O quadro destina-se a fazer ressaltar as coisas... é para mostrar o contraste entre a nossa vida e os ensinamentos do Cristo...
E as pequenas perguntas insignificantes recomeçaram, incomodativas como moscas de Outono. Cansavam Lunev; percebia que o iam fazendo perder o estado de tensão, que aquele crepitar vazio e uniforme amolecia o seu espírito vigilante. Enfureceu-se com o juiz, porque compreendia que este último o fatigava propositadamente.
- Não me poderá dizer - perguntava o magistrado com uma precipitação despreocupada - onde esteve na quinta?feira, entre as duas e as três horas?
- Num botequim, a tomar chá - disse Ilia.
- Ah! Em qual? Onde?
- No Plevna.
- Como pode afirmar, com tanta precisão, que estava num botequim, nesse momento exacto?
O rosto do juiz de instrução criminal vibrara; debruçou-se sobre a mesa e o seu olhar, subitamente iluminado,
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não largava o rosto de Lunev. Este conservou-se silencioso durante uns instantes, depois soltou um suspiro e declarou sem pressas:
- É que, antes de entrar no botequim, perguntei as horas a um agente da polícia.
O juiz lançou-se de novo para trás e, apanhando um lápis, deu umas pancadinhas leves nas unhas da sua mão esquerda.
- O agente disse-me que era uma hora e vinte, qualquer coisa assim... - continuava lentamente Ilia.
- Ele conhece-o?
- Conhece...
- O senhor não tem relógio?
- Não...
- Perguntou-lhe as horas mais vezes?
- Já sucedeu...
- Demorou-se muito no Plevna?
- Até ao momento em que gritaram que houvera um assassinato...
- E a seguir, aonde foi?
- Ver o morto.
- Alguém o viu na loja?
- Sim, senhor, o mesmo polícia... Até me mandou ir embora... Empurrou-me...
- Está perfeito!-exclamou o juiz num tom de aprovação, e negligentemente, sem olhar para Ilia, interrogou:
- Perguntou as horas ao agente da polícia antes do assassinato ou depois disso?
Ilia compreendeu perfeitamente o objectivo da pergunta. Voltou-se bruscamente na cadeira, sob o efeito do ódio que lhe inspirava aquele homem de camisa de uma brancura impecável, dedos de unhas cuidadas, lunetas de armação de ouro, olhar sombrio e perscrutador. E respondeu com outra pergunta:
- Como poderia eu sabê-lo?
O magistrado teve uma tossinha seca e esfregou as mãos com tal violência que os seus dedos deram estalidos.
- Excelente! -exclamou, visivelmente descontente.- Magnífico... Mais umas perguntazinhas.
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O juiz interrogava agora com fastio, sem se precipitar, e era visível que já não esperava chegar a qualquer resultado interessante; mas Ilia, enquanto ia respondendo, mantinha-se alerta, aguardando, a todo o momento, alguma pergunta no género da de há pouco. Cada palavra que articulava ressoava-lhe dentro do peito como no vazio, parecia fazer vibrar uma corda tensa ao máximo. Mas o juiz deixara de lhe armar laços.
- Nesse dia, não se lembra de ter avistado, na rua. um homem de elevada estatura, envergando uma pelica e com um gorro de astracã negra?
- Não... - ripostou Lunev com rudeza.
- Muito bem, escute o seu depoimento, para depois o assinar...-E escondendo o rosto por trás da folha de papel, que acabava de preencher, pôs-se a ler em voz monocórdica e apressada; ao terminar, meteu uma pena na mão de Lunev. Este inclinou-se para a mesa, assinou, ergueu-se lentamente e, fitando o juiz, pronunciou em voz firme e surda:
- Até à vista!...
O outro respondeu com ares de grande senhor, apenas com uma breve inclinação de cabeça, e, debruçando-se sobre a mesa, começou a escrever. Ilia não arredava pé. Sentia vontade de dizer algumas palavras àquele homem que o tinha torturado durante tanto tempo. No silêncio que se estabeleceu ouvia-se o rangido da pena no papel e uma canção que vinha do interior da casa:
Dancem, dancem, minhas bonequinhas...
- O que é que quer ? - perguntou o magistrado, levantando bruscamente a cabeça.
- Nada...-retorquiu Lunev, sombrio.
- Já lhe disse que se pode ir embora...
- vou...
Encararam-se e Lunev sentiu avolumar, dentro de si, uma sensação de peso e horror. Rodando sobre os calcanhares, encaminhou-se para a saída, e uma vez chegado à rua, fustigado pelo vento glacial, notou que estava a suar. Meia hora mais tarde encontrava-se em casa de Olímpia. Veio
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ela mesma abrir a porta, tendo-o avistado da janela, e acolheu-o com maternal alegria. Estava pálida, e os olhos desmedidamente abertos demonstravam preocupação.
- Representaste muito bem!-exclamou a mulher, quando Ilia lhe disse que vinha directamente do gabinete do juiz de instrução criminal. - Era isso precisamente que havia a fazer! E ele, que te disse?
- É um pulha!--soltou Ilia com ressentimento.- Queria à força fazer-me cair em armadilhas...
- Tinha mesmo que o fazer--observou-lhe Olímpia num tom de sapiência. - É o seu ofício...
- Que falasse francamente: aqui está o que se pensa a seu respeito...
- Mas tu também não lhe falaste francamente! -disse ela, sorrindo.
- Eu? - perguntou Lunev com espanto. - Sim... de facto! Oh!, santo Deus!... - Chocado com a ideia, reflectiu durante uns segundos, acrescentando a seguir:
- Juro-te que. lá no gabinete dele. eu estava certo de que tinha razão...
- Ainda bem! - exclamou com alegria Olímpia. Tudo se passou lindamente...
Ilia olhou para ela satisfeito e declarou lentamente:
- Mas, de resto, não me foi preciso mentir muito... Tive sorte, Olímpia!...
O rapaz riu de maneira estranha.
- Andam polícias a vigiar-me - anunciou Olímpia baixando instintivamente a voz. - E com certeza que te vigiam também...
- E de que maneira! -lançou ele com animosidade.- Andam a farejar, querem-me encurralar como um lobo na floresta. Mas nada sucederá, nada têm que ver com isto! E eu não sou um lobo, sou um homem infeliz... não queria estrangular ninguém, é a mim que o destino está a estrangular... como diz o poema do Paulo... E também estrangula o Paulo, e o Tiago..., toda a gente!
- Não faz mal, Ilia - disse a mulher, deitando água a ferver no chá. - Tudo há-de correr pelo melhor.
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Lunev levantou-se do divã, aproximou-se da janela e, lançando para a rua um olhar turvo, prosseguiu, com um acento de perplexidade raivosa na voz:
- Tenho passado a vida atolado na lama... Sou empurrado para tudo o que não gosto, para o que odeio. Nunca vi seja quem for que pudesse contemplar com alegria... Não existirá, realmente, pureza alguma na vida? Assassinei aquele homem... e para que me vai servir? Não fiz mais do que me sujar, despedaçar a minha própria alma... Peguei no dinheiro... melhor seria que o tivesse deixado ficar!
?-Não te preocupes desse modo! -dizia Olímpia para o consolar. - Eu não lamento nada do que se passou.
- Não estou a lamentar... Pretendo justificar-me. Todos se justificam, é preciso viver!... Olha o juiz de instrução criminal, vive que nem um bombom dentro da caixa... Ele, é claro, não assassinará ninguém! Tem a possibilidade de viver como um justo, num ambiente limpo...
- Deixa, abandonaremos esta cidade, juntos...
- Não, não partirei para sítio algum! -bradou Lunev, voltando-se para a mulher. E acrescentou em tom ameaçador:- Esperarei, quero ver o que sucederá...
Olímpia ficou pensativa durante uns instantes. Estava sentada à mesa, em frente do samovar, opulenta e bela no seu amplo penteador branco.
- Voltará a ser falado -dizia Lunev acenando afirmativamente com a cabeça e andando no quarto, de um lado para o outro, em grandes passadas.
- Ah! - clamou a mulher vexada-, é por isso que tu não te queres ir embora, porque tens medo de mim? Convences-te de que, perante o que se passou, eu não te largarei mais, pensas que me vou aproveitar do que sei? Enganas-te, meu querido! Não te levarei à força...
Olímpia exprimia-se em voz calma, mas os seus lábios tremiam como se uma dor a acometesse.
- O que é que estás a dizer? - perguntou Lunev, que a escutava num pasmo.
- Não te quero forçar, sossega! Vai para onde quiseres, por favor!
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- Ouve lá!-cortou Ilia, indo sentar-se perto dela e tornando-lhe a mão. - Não percebo porque dizes essas coisas...
- Finge agora!-gritou Olímpia, agitada, retirando a mão. - Bem te conheço: és orgulhoso, duro! Não me podes perdoar o velho, e a minha vida repugna-te... Agora pensas que foi por minha causa que tudo isto aconteceu... O dei as-me!
- Não é verdade!-soltou Ilia, senhor de si.-Não é verdade, não te acuso de nada. Bem sei que as pessoas da minha igualha não têm direito às mulheres puras e inocentes... essas são demasiado caras para nós. É preciso casar com elas: têm filhos... Tudo o que é limpo, é para os ricos... Nós ficamos com os restos, os desperdícios, com tudo em que os outros escarraram, com tudo o que eles emporcalharam.
- Deixa-me, pois, visto ser tão suja! -bradou Olímpia, pondo-se de pé num rompante. - Vai-te embora!-Mas as lágrimas borbulharam nos seus olhos e um jorro de palavras, ardentes como brasas, irrompeu da boca, atingindo Ilia:
-- Fui eu, de livre vontade, que me quis atolar neste fosso... porque havia nele muito dinheiro... Mas um dia voltarei a emergir, como se subisse uma escada... e viverei, de novo, decentemente... Tu ajudaste-me. Não o esqueço, e amar-te-ia mesmo que tivesses morto dez homens. O que eu amo, não é a tua virtude, é a tua segurança... a tua mocidade, os teus cabelos, os teus braços fortes, os teus olhos graves... as tuas censuras são como facadas, que me atingem em pleno coração... mas ficar-te-ei reconhecida até à morte... Beijo-te os pés, vê!
E caindo a seus pés, abraçou-se-lhe aos joelhos, clamando:
- Deus é testemunha! Foi pela minha salvação que pequei; ele prefere que eu não fique a vida inteira na lama, que dela saia e me torne, de novo, limpa. E então implorarei o seu perdão... Não quero sofrer sem fim! Sujaram-me, macularam-me... preciso de todas as minhas lágrimas para me purificar...
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A princípio, Ilia repelia-a, tentava levantá-la, mas ela agarrara-se com força e, mantendo a cabeça encostada aos seus joelhos, esfregava-lhe o rosto nas pernas, sem cessar de falar numa voz funda e ofegante. Ele começou então a acariciar-lhe as mãos trémulas e, finalmente, conseguindo puxá-la para cima, apertou-a nos braços, fazendo descansar a cabeça dela no seu ombro. A face escaldante da mulher encostava-se à sua e, fortemente abraçada por ele, continuava a falar, mas o tom ia baixando, até ser apenas um murmúrio:
- Para que serve, depois de ter pecado uma vez, ficar para sempre humilhado?... Quando era pequena, o meu tutor não me largava com as suas porcarias, e eu dei-lhe com a faca de picar a carne... E depois, acabaram por me vencer... embriagaram a rapariguinha... ela era... tão pura... como uma maçã novinha, apetitosa e rija... A menina chorou pela sua desdita... pela sua frescura... Eu não queria, não queria... E por fim, percebi... que tanto fazia! Já não havia maneira de voltar atrás! E então disse para comigo: que ao menos não perca tudo. Odiava toda a gente, roubava, embebedava-me... Antes de ti, nunca beijei verdadeiramente homem algum...
Já mal se ouviam as suas palavras. De repente soltou-se dos braços de Ilia.
- Deixa-me!
Ele voltou a agarrá-la, apertando-a com mais força ainda, e pôs-se a beijar o seu rosto, com paixão e desespero.
- Nada tenho a dizer acerca disso tudo... - sussurrava ele, fogosamente. - Ouve apenas isto: ninguém tem dó de nós... e nós não devemos sentir dó de ninguém!... Disseste bem... meu encanto!... Amo-te... não sei como! Não há palavras para o exprimir...
O que ela dissera, as suas queixas, tinham despertado nele um sentimento vivo e ardente. O desgosto dela parecia ter-se confundido com a própria desgraça dele, formando um todo que os aparentava. Abraçados febrilmente, contaram um ao outro, durante longo espaço, as humilhações que tinham sofrido.
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- Não poderemos ser felizes, nem tu nem eu - disse a mulher, abanando desesperadamente a cabeça.
- Pois então íestejaremos juntos a infelicidade!... E se for preciso ir para o degredo, iremos os dois! Estás a ouvir? Entretanto, afugentaremos o desgosto, amando-nos... Agora, era capaz de me lançar ao fogo... Sinto o coração liberto...
Emocionados com as palavras, excitados pelas carícias, olhavam um para o outro através de um nevoeiro. Postos ao rubro pelos beijos, sentiam-se atabafar dentro das roupas...
Por trás das vidraças, o céu estava cinzento e triste. Uma bruma gélida envolvia a Terra, pousando nas árvores sob a forma de geada brilhante. No jardinzito, por baixo das janelas, os ramos finos de uma pequena bétula balouçavam-se de mansinho, fazendo cair flocos de neve. A noite de Inverno ia-se cerrando...
Lunev veio a saber, dias depois, que a polícia procurava um homem alto, que usava um gorro de astracã, supondo tratar-se do assassino do comerciante Poluektov. No decurso de uma busca à loja da vítima, tinham descoberto duas guarnições de ícones de prata, que se verificou terem sido roubadas. O garoto empregado na loja indicou que essas guarnições tinham sido compradas três dias antes do crime, a um homem de elevada estatura, que envergava uma pelica curta e dava pelo nome de André, e que esse indivíduo vendera, por diversas vezes, objectos de prata e de ouro a Poluektov, acrescentando que este último lhe emprestava dinheiro. Depois soube-se que nas vésperas e no próprio dia do crime um homem correspondendo aos sinais indicados pelo empregadito andara por diversas casas de passe.
Cada dia que passava, Ilia tomava conhecimento de novos pormenores referentes ao assunto: a cidade em peso interessava-se por este audacioso assassinato, por toda a parte se falava do caso,, tanto nos botequins como na rua. Mas Ilia prestava pouca atenção a estes falatórios: a ideia de perigo soltara-se do seu espírito como a crosta de uma ferida, e, em lugar dela, ele experimentava apenas uma es-
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pécie de entrave. Já só tinha em mente a maneira como iria viver doravante.
Sentia-se como um mancebo que aguarda a chamada para o serviço militar, como um homem prestes a encetar uma longa jornada para o desconhecido. Nos últimos tempos, Tiago perseguia-o como uma sombra. Desgrenhado, vestido de qualquer maneira, vagueava pelo botequim e pelo pátio, sem atentar no que o rodeava, de olhar ausente, com o aspecto preocupado de quem se entrega a cogitações estranhas. Mal via Ilia, perguntava-lhe com ar de mistério, a meia voz ou num murmúrio:
- Não tens um momento para falar comigo?
- Mais logo, espera...
- Sempre o mesmo!... Olha que é coisa séria...
- De que se trata?
- O tal livro! Explica tudo de uma maneira, meu caro, não podes imaginar!-dizia Tiago, receoso.
- Tu e os teus livros! Mas, ouve lá, porque é que o teu pai olha para mim como se me quisesse comer?
Mas a realidade não retinha a atenção de Tiago. Em resposta à pergunta do companheiro, esbugalhou os olhos, no auge da perplexidade, e informou-se:
- Que me dizes? Não sei nada. Ouvi-o uma vez afirmar ao teu tio que tu andavas fazendo moeda falsa... assim uma coisa, sem fundamento...
- E como sabes tu que não tem fundamento? - gracejou Ilia.
- Mas então o quê? Que moeda falsa? Parvoíces...-? disse o outro, agitando nervosamente uma mão e ficando uns momentos pensativo. - Então não tens tempo para conversarmos? - perguntou, volvido um minuto, com um olhar humilde.
- Do tal livro ?
- Sim... Há uma passagem que compreendi. Apre! Ai, meu velho, uma coisa assim!...
E o filósofo fez uma careta, como alguém que sofresse uma queimadela. Lunev observava o camarada como se costuma observar um anormal, um idiota. Tiago dava-lhe, às Vezes, a impressão de ser cego e. sempre, a de um infeliz, incapaz para a vida. Em casa dizia-se, e toda a rua o sabia,
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que Petrukha Filimonov queria casar com a amante, dona de uma das mais caras casas de prostituição da cidade, mas isso deixava Tiago totalmente indiferente. Quando Lunev lhe perguntou se a boda estava para breve, Tiago respondeu-lhe por outra pergunta:
- Que boda?
- A do teu pai...
- Ah! Sabe-se lá! Que nojento! Veja-se a mulher que arranjou, fu!
- E sabes que ela tem um filho, já crescido, que anda no liceu?
- Não, não sabia, e então?
- O teu pai tem, assim, um herdeiro...
- Ai, sim! -soltou Tiago, indiferente. E de súbito animou-se.- Um filho? Talvez seja bom para mim, hem? Meu pai poderia pôr esse filho ao balcão e eu faria o que quisesse!... É evidente...
Gozando, antecipadamente, a liberdade que o esperava, Tiago deu um estalido com a língua. Lunev lançou um olhar de piedade e disse, trocista:
- É verdade o que se diz: a uma criança tonta dá uma cenoura, porque se lhe deres pão não fará um gesto para o aceitar. Diabos te levem! Gostava de saber como irás viver...
Tiago, ao ouvir isto, esbugalhou os olhos e confiou, num sussurro precipitado:
- Já pensei no assunto! É preciso, primeiramente, ordenar o espírito... Há que saber o que Deus espera de nós. Uma coisa sei eu já: os homens estão emaranhados como um monte de cordéis, puxados por todos os lados, e ninguém sabe por onde se deve começar a puxar, a que se deve consagrar mais firmemente!... O homem nasce sem saber com que fim... Por conseguinte, antes de mais nada, tenho de saber para que estou destinado... Aqui tens!
- Sim senhor, magnífico raciocínio - disse Lunev num esforço. - E qual é o sentido disso tudo?
Sentia que, actualmente, as obscuras palavras de Tiago tinham nele maior efeito que dantes, e que despertavam ideias particulares. Tinha a impressão de trazer sempre atrás de si um duplo sinistro, o que sempre combatera os
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sonhos simples e claros de vida pura, a que o seu outro eu se entregava, e que esse segundo eu escutava agora com avidez os raciocínios de Tiago, debatendo-se, na sua alma, como um feto no ventre da mãe. Ilia era presa de uma sensação desagradável, que o perturbava e se lhe afigurava inútil, e evitava as conversas com Tiago. Mas não era fácil desembaraçar-se do companheiro.
- Qual é o sentido disto? É tudo quanto há de mais simples. A não ser assim, é como ficarmos privados de fogo.
- Olha, Tiago, pareces um velho, és enfadonho. Se até o porco tenta a sua sorte, melhor o deve fazer o homem, como se costuma dizer.
Após estas conversas, Ilia tinha a sensação de ter ingerido comida salgada: apossava-se dele uma sede incomodativa, desejava qualquer coisa de especial. Às suas laboriosas e confusas ideias a respeito de Deus somava-se agora uma exigência exasperada.
"Ele vê tudo e consente!...", dizia para consigo, sem alento, compreendendo que a alma se enredava numa insolúvel contradição. Corria para Olímpia, para esquecer nos braços dela os negros pensamentos e a angústia.
De vez em quando, visitava Vera. A vida de estúrdia ia, pouco a pouco, arrastando a rapariga num imenso turbilhão. Ela descrevia a Ilia, com entusiasmo, as patuscadas com ricos comerciantes, funcionários e oficiais., falava de tróicas e restaurantes, mostrava os presentes dos admiradores: vestidos, blusas, anéis. Era gordita, mas bem lançada e resistente; contava com vaidade as disputas entre os homens que a queriam possuir. Lunev admirava a sua saúde, a sua beleza e o seu entusiasmo, mas, por mais de uma vez, fez-lhe notar prudentemente:
- Acabará por se perder com tudo isso, Vera...
- E que lhe havemos de fazer? É o caminho que me foi traçado... E, ao menos, perco-me luxuosamente. Terei aproveitado o mais que me tenha sido possível, e depois acabou-se!
- E o Paulo?
As suas feições estremeceram c a alegria sumiu-se.
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- Deveria deixar-me... Sofre de mais comigo... Atormenta-se em vão... Agora já não posso parar, fui apanhada no laço...
- Não o ama? - perguntou Ilia.
- É impossível não o amar! - retorquiu ela convictamente.--Ele é espantoso!
- Nesse caso, poderia viver com ele...
- Para ficar a seu cargo? Ele ganha apenas o bastante para viver; como me poderia sustentar? Não, lamento-o...
- Tome cuidado, não vá tudo tornar-se ainda pior... preveniu-a Lunev um dia.
- Ah, Céus!-exclamou Vera com despeito. - Que fazer? Terei eu nascido para pertencer a um só homem? Cada qual quer viver o melhor que pode... E todos vivem como lhes agrada... E ele também, e você, e eu.
- Não, não é isso!-disse Ilia, sombrio e meditabundo.- Nós vivemos... simplesmente, não é para nós próprios...
- Para quem é, então ?
- Você, por exemplo, é para os comerciantes, para os boémios...
- Sou eu própria uma boémia!-lançou Vera, desatando a rir alegremente.
Lunev deixou-a cheio de tristeza. Por essa altura, raramente se encontrava com Paulo, e sempre por acaso. Quando ia dar com o companheiro junto de Vera, Paulo mostrava-se contraído de descontentamento, enraivecido. Sentava-se em frente de Lunev, sem dizer palavra, cerrando os dentes, com as faces esquálidas afogueadas. Ilia percebia que Paulo tinha ciúmes dele e isto dava-lhe um certo prazer. Mas, ao mesmo tempo, via bem que o amigo se enredara em cadeias de que se não libertaria, sem dúvida, incólume. E como tinha pena de Paulo e ainda mais de Vera, pôs termo às visitas. com Olímpia, estava a reviver uma verdadeira lua-de-mel. Mas também aqui surgia, às vezes, certo mal-estar, que lhe apertava o coração. De súbito, a meio de uma conversa, era assaltado por pensamentos sombrios. Olímpia segredava-lhe, então, ternamente:
- Meu querido! Não penses nisso... Há bem pouca gente neste mundo que tenha as mãos Kmpas...
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- Ouve - replicava-lhe Lunev secamente -, agradecia-te que não me falasses nesse assunto! Não é nas mãos que eu penso... É possível que sejas inteligente, mas não consegues compreender-me... Dize-me como se deve proceder para viver honestamente, sem fazer mal a ninguém... Mas não me fales no velho...
Ela era, porém, incapaz de se calar, e exortava constantemente Ilia a esquecer o velho. Ilia acabava sempre por se zangar e deixá-la só. E, quando voltava, ela gritava-lhe, como uma louca, que ele a amava por medo, que não admitia isso e que o ia abandonar, deixando a cidade. E chorava, implicava com Ilia, mordia-lhe os ombros, beijava-lhe os pés e depois, em ímpetos de raiva, arrancava a roupa de cima de si e, nua em ifrente dele, clamava:
- Achas que não tenho atractivos? O meu corpo não possui beleza suficiente?... O meu amor por ti corre na mais pequena das minhas veias, e assim será até à hora da minha morte. Mata-me e verás que mesmo morta continuarei a rir...
Os seus olhos azuis tornavam-se sombrios, os lábios palpitavam avidamente, o peito entumescia violentamente, como uma proa avançando para Ilia. Ele tomava-a nos braços, beijava-a até não poder mais e depois, ao regressar a casa, perguntava-se como era possível aquela mulher ardente e estuante de vida ter podido suportar as carícias viscosas de um velho. E então sentia grande repugnância por ela, cuspia de nojo, ao recordar os beijos trocados. Certa vez, depois de uma daquelas raivas, em que ela se consumia de paixão, ele, saciado de carícias, disse-lhe:
- Desde que matei aquele canalha, o teu amor por mim parece ser maior...
- É verdade, e então?...
- Nada. É estranho pensar... que há pessoas... para as quais um ovo podre tem melhor sabor que um ovo fresco, e há as que preferem comer uma maçã quando já está tocada... É esquisito!...
Olímpia olhou-o de maneira dúbia, sorriu preguiçosamente e não respondeu.
Um dia, tendo Ilia regressado da cidade e estando a despir-se, Terêncio entrou no quarto de mansinho e fe-
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chando, com muito cuidado, a porta atrás de si, ficou junto dela, imóvel, à escuta, correndo o fecho só depois. Ilia observou a manobra e pôs-se a olhar para o tio em ar de troça.
- Meu querido Ilia! - murmurou Terêncio, puxando uma cadeira.
- Que há?
- Correm rumores a teu respeito cá por casa... Dizem mal de ti.
E baixando o olhar, o corcunda soltou um profundo suspiro.
- O quê, por exemplo? -perguntou Ilia. enquanto descalçava as botas.
- Bem... depende... Há quem diga que estás metido no caso... do comerciante assassinado... Outros dizem que fabricas moeda falsa...
- Andam invejosos, ou quê? - interrogou Ilia.
- Tem passado por cá toda a espécie de gente... que, pelo ar, parece ser da polícia secreta... uma espécie de bufos... E não largam o Petrukha com perguntas a teu respeito...
- Pois bem, que lhes faça bom proveito - soltou Ilia com indiferença.
- Pois claro. A gente não se rala. quando a consciência está tranquila, não é?
Rindo, Ilia estiraçou-se na cama.
- Agora acabou... já não aparecem. Mas o Petrukha é que começou com ditos...-prosseguiu Terêncio, espantado e hesitante. - Olha, Ilia, deverias mudar-te, procurar um quarto e ir para lá viver... Porque o Petrukha diz assim: eu não posso admitir em minha casa pessoas suspeitas... sou conselheiro municipal!...
Ilia voltou-se para o tio com o rosto transtornado de furor e bradou:
- Se ele tem amor às ventas alambicadas, que não solte nem mais um pio! Não te esqueças de lho dizer... Que me chegue uma só palavra aos ouvidos, e racho-o. Seja eu o que for, esse crápula não tem o direito de me julgar. E saio de cá... quando muito bem me apetecer. Desejo viver com gente correcta e justa...
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O corcunda assustou-se -com a cólera de Ilia. Ficou-se um momento calado, esfregando lentamente a marreca e com o receio estampado no rosto. Ilia, de traços contraídos, cravara no tecto os olhos muito abertos; Terêncio examinou atentamente o cabelo encaracolado do sobrinho, o rosto belo e grave ostentando um pequeno bigode e o queixo voluntarioso; olhou para o peito largo, mediu todo o corpo sólido e bem proporcionado de Ilia e começou a dizer baixinho :
- Tornaste-te um belo rapagão!... Na aldeia, todas as raparigas te arrastariam a asa... Não haja dúvida... Terias uma rica vida, lá na terra! Eu teria arranjado algum dinheiro... comprado uma lojita, e já estarias casado com uma pequena rica! E a tua vida correria como um trenó descendo a montanha.
- Mas é talvez subir à montanha que eu quero - cortou Ilia com dureza.
- É isso mesmo que eu queria dizer, subir! -corrigiu logo Terêncio. - Que terias uma bela vida, à semelhança de uma ascensão à montanha...
- E a seguir-qual seria o meu caminho? - perguntou o rapaz.
O corcunda soltou um risinho trémulo e depois recomeçou a falar, mas o sobrinho já o não escutava: recordava-se de tudo por que passara e pensava na maneira como todas as coisas na vida se organizam perfeitamente, sem que disso nos apercebêssemos, tal como os fios de uma rede. O acaso cerca o homem e arrasta-o para onde quer, como a polícia faz com o ladrão. Ele, por exemplo, aspirava a abandonar aquela casa, para ir viver só, e eis que a ocasião logo surgia. Lançou ao tio um olhar atónito, mas nesse mesmo instante bateram à porta e Terêncio ergueu-se com precipitação.
- Porque esperas? Abre! -gritou Ilia, irritado. Terêncio soltou o fecho e no limiar surgiu Tiago, com
um grande livro de capa avermelhada na mão.
- Ilia, vem comigo a casa da Macha!-disse animadamente o filho do botequineiro, aproximando-se da cama.
- O que é que ela tem?-interrogou Ilia.
- Ela?... Não sei... não está em casa...
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- Por onde anda ela a vadiar, assim todas as noites? perguntou o corcunda, desabrido.
- Vai passear com a Matitsa - respondeu Tiago.
-com essa mulher... nada de bom há u esperar disse lentamente Terêncio.
Tiago agarrou Lunev pela manga e puxou-o.
- Que te sucede? Estás fora de ti!-observou Lunev.
- Sabes, a magia negra existe, fica tu sabendo! dizia Tiago em voz baixa.
- Quem? Quem é que existe? - perguntava Ilia, enquanto enfiava as botas de feltro.
- Este livro, este... Palavra! Vais ver... Anda daí! Digo-te eu, é formidável! - continuava Tiago, arrastando o amigo para o pátio. - É de ficar com os cabelos em pé, só de o ler!... Mas uma pessoa sente-se atraída irresistivelmente...
Ilia notava a emoção do camarada, ouvia-lhe a voz trémula, e quando chegaram a casa do sapateiro e acenderam o candeeiro ele viu que o seu rosto estava pálido e que os olhos, como os de um bêbedo, estavam turvos e felizes.
- Estás embriagado, ou quê? - perguntou-lhe desconfiado.
- Eu? Que ideia! Não tomei uma gota sequer, hoje... Deixei de beber... salvo quando o meu pai está, mas isso é para ter forças... Emborco então dois ou três copitos! Tenho medo de meu pai... Só bebo o que não cheira a vodka... Bem, mas ouve!
Sentou-se, fazendo estalar a cadeira, abriu o livro, debruçou-se sobre ele e, seguindo com o dedo as palavras impressas no papel espesso, amarelecido pelo tempo, pôs-se a ler em voz surda e pouco segura:
- "Capítulo terceiro. Do estado primeiro dos homens." Escuta!
Respirou fundo, levantou a mão esquerda e, percorrendo a página com o indicador da mão direita, começou a ler em voz alta:
- "Referem os homens de bem", viste?, os homens de bem!, "que escreveram a respeito da natureza das coisas ?- tal como testemunha Diodoro -, que o estado primeiro do homem é sem fim. Pensam alguns que o mundo não é
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criado nem eterno e que a espécie humana é sem princípio nos séculos..."
Tiago levantou os olhos do livro e. agitando a mão, sussurrou:
- Estás a ouvir? Sem prin-cí-pi-o!...
- Continua! - disse llia, examinando com desconfiança o velho livro encadernado de couro. A voz fraca e exaltada de Tiago ergueu-se novamente:
- "Deste parecer" - testemunha Cícero - ceram Pitágoras de Samos, Arquitas de Tarento, Platão-o-Ateniense, Xenócrates, Aristóteles de Estagiros e muitos outros peripatéticos, dizendo: que tudo o que, neste mundo eterno, é e tem sido, não tem princípio." Vês? Outra vez sem princípio! "Mas há certo círculo de coisas engendradas e engendrando, mediante o qual se pode conhecer o princípio e o fim de toda a coisa engendrada..."
Tlia estendeu a mão e, fechando o livro violentamente, disse, trocista:
- Ora deixa isso! Que vá para o Diabo!... Hão-de ser por força alemães, os que escreveram isso, está-se mesmo a ver! Não há aí nqda que perceber...
- Espera! - exclamou Tiago, olhando receoso à sua volta, e volvendo-se depois para o companheiro, com os olhos a saírem-lhe das órbitas, perguntou em voz muito baixa:
- Sabes o teu princípio ?
- Qual princípio? - berrou llia. furioso.
- IN ao grites... Vejamos a alma. O homem nasce com uma alma, heni?
- E depois?
--Por conseguinte, deve saber donde vem e como vem? A alma, segundo se diz, é imortal, existiu sempre... hem? O que é preciso saber, não é como nós nascemos, mas sim como compreendemos que vivemos. Nascemos vivos, bem, mas quando foi que nos tornámos vivos? No ventre da nossa mãe? Bem! E porque é que tu te não lembras não somente como vivias antes de nascer, mas ainda depois, até aos cinco anos aproximadamente, continuas a não saber nada, não é? R se nós temos uma alma, quando entra ela em nós? Então?
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Os olhos de Tiago faiscavam, triunfantes; um sorriso de satisfação iluminava-lhe o rosto, e com uma alegria que a Ilia se afigurava estranha exclamou:
- Então, e a alma?
- Imbecil! - soltou Ilia, fitando-o rispidamente. Porque estás tu tão contente?
- Não estou contente, é assim...
- Certamente que é assim! Não se trata de saber como estou vivo, mas sim como devo viver. Como viver para que tudo seja limpo, para que ninguém me faça mal e para que eu próprio não prejudique ninguém. Mostra-me o livro onde isto venha explicado...
Tiago estava sentado, de cabeça baixa, pensativo. Não encontrando eco, a sua alegre excitação esvaíra-se. Após uma pausa, respondeu ao companheiro:
- Olho para ti e noto que há qualquer coisa que não vai bem, que me não agrada... Não entendo a tua maneira de pensar... vejo... que, há uns tempos para cá, tomas uns ares de superioridade, não sei por que motivo... Como se fosses um justo...
[lia começou a rir.
- Porque ris? É verdade. Julgas todos com severidade... Como se não gostasses de pessoa alguma...
- É assim mesmo - cortou Ilia. - De quem deveria gostar? E porquê? Alguém me dá presentes?... Cada qual tenta viver graças ao esforço dos outros, e depois vem com cantigas: ama-me, respeita-me! Não quero ser tomado por tanso! Que me respeitem e eu respeitarei os outros. Dêem-me a minha parte e talvez, então, eu consiga amar o meu semelhante! Todos querem comer tanto como os demais...
- Mas as pessoas não pensam só em comer, não achas? - replicou Tiago, descontente e hostil.
- Bem sei! Toda a gente quer mostrar-se bem comportada, mas isso não passa de uma máscara! Vê-se a cada passo: meu tio quer mercadejar com Deus, como um caixeiro que apresenta contas ao patrão. Teu pai ofereceu estandartes à igreja. Concluo daí que ou intrujou alguém, ou que está prestes a fazê-lo... E por toda a parte é o mesmo, para onde quer que te voltes... Toma lá um copeque, dá-me para cá cinco... E todos querem ser levados no andor e jus-
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tificar-se perante os outros. Em minha opinião, quem peca, voluntária ou involuntariamente, paga.
- Tens razão - disse Tiago, meditativo. -? No que respeita a meu pai, está certo; quanto ao corcunda, também... Sabes que mais? Nem tu nem eu nascemos onde devíamos. A vida a ti torna-te mau, faz-te procurar uma consolação julgando toda a gente... e cada vez com mais severidade... Eu não sou capaz... Ai, se eu pudesse partir para qualquer lado! - soltou tristemente.
- E para onde irias? - perguntou Ilia com amargura. Calaram-se, sentados à mesa, um em frente do outro,
desmoralizados. Junto deles estava o grande livro encadernado de couro avermelhado, com o seu fecho de ferro... Ouviu-se fora grande barulhada, algumas palavras trocadas em voz surda, e depois uma mão tacteando a porta pelo lado de fora, procurando com dificuldade abri-la. Os dois amigos esperaram, silenciosos. A porta cedeu lentamente, abrindo-se aos sacões, e Perfichka irrompeu na cave. Tropeçou na soleira, cambaleou e caiu de joelhos, brandindo o harmónio na mão direita.
- Olá - soltou ele, e, bêbedo perdido, desatou a rir. Atrás do sapateiro, entrou Matitsa. Debruçou-se logo sobre o companheiro, agarrou-o por baixo dos braços e, esíorçando-se por pô-lo de pé, ia dizendo em voz pastosa:
- Ui!, mas que grande piela... eh!, seu bêbedo!
-Ó comadre! Não me toque... que eu levanto-me sozinho... sò-ò-zinho!
Titubeou, aguentou-se finalmente nas pernas e aproximou-se dos rapazes, com a mão esquerda estendida:
- Vivam! O que é nosso é vosso, o que é vosso é nosso... Matitsa largou uma gargalhada sonora e estúpida.
- Donde desembarcaram? - interrogou Ilia.
Tiago observava, sorrindo, os bêbedos e não abria a boca.
- Donde? Crianças! Minhas belezas! Ah, ah, ah! Perfichka pôs-se a marcar o compasso com o pé e a entoar:
Fossos ossinhos, meus pequerruchitos Quando os vossos ossinhos forem tamanhões Iremos vendê-los por bons dinheiritos! :
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Interrompeu a canção e disse para a prostituta:
- Cantemos, antes, a que tu me ensinaste... Vamos lá... Encostou-se ao fogão, ao lado da Matitsa, e, dando-lhe
uma cotovelada, começou a dedilhar o harmónio.
- Onde está a Macha? - gritou Ilia.
- Ouçam ambos! - soltou, por seu turno, Tiago, erguendo-se. - Onde está ela, a Macha, não me dizem?
Mas os bêbedos não lhes deram ouvidos. Matitsa inclinou a cabeça para um lado e pôs-se a cantar:
Ó comadre, minha comadre, que boa é a
[aguardente...
E Perfichka, às sacudidelas ao harmónio, continuou em falsete:
Bebamos, comadre, até segunda-feira...
Ilia aproximou-se, agarrou-o pelo ombro e sacudiu-o de tal maneira que Perfichka foi bater com a cabeça no fogão.
-Onde está a tua filha?
-? A fi-ilha dele desapareceu à meia-noite - disse estupidamente, por entre dentes, Perfichka. deitando as mãos ã cabeça.
Tiago interrogava Matitsa, mas esta repetia, com um sorriso malicioso:
- Não digo! Não digo e não digo, pronto!
- Estes malandros são capazes de a terem vendido disse Ilia ao companheiro, num esgar tenebroso. Tiago olhou-o, apavorado, e perguntou ao sapateiro, quase a chorar:
- Perfili, escuta! Onde está a Macha?
- Macha-a! - grunhiu Matitsa, em tom de mofa. Pelos vistos não está aqui...
- Então, Ilia, que fazemos? - perguntava Tiago, aflito. Ilia, calado, olhava sombriamente os bêbedos. Matitsa começou a cantar lugubremente, ora fitando Ilia,
ora Tiago, e de repente, esbracejando de maneira ridícula, pôs-se a gritar:
- Saiam da minha casa! Aqui é a minha casa! Acabamos de nos casar...
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Agarrando a barriga com as mãos, o sapateiro ria a bandeiras despregadas.
- Vamo-nos embora, Tiago - disse Ilia. - Que o Diabo os carregue...
- Ainda não! - replicou-lhe o outro, desamparado e cheio de susto. - Perfichka, tens de me dizer onde está a Macha.
-Ó Matitsa, minha mulherzinha, caça-mos! Kss, kss... Morde-lhes... Onde está a Macha?
Perfichka lançou os lábios para a frente e. quis assobiai, mas não o conseguiu, contentando-se, pois, em deitar a língua de fora a Tiago, e continuou a rir.
Matitsa deixara-se cair para cima de Ilia e berrava furiosamente:
- Quem tu és? Não o sei eu muito bem?
Ilia repeliu-a e abandonou a cave. Tiago correu atrás dele e, segurando-o por um ombro, pararam ambos no pátio, envoltos pela escuridão da noite.
- Será possível? - gemeu Tiago. - Haverá direito? Ela é uma criança, Ilia! Pensas que eles a casaram verdadeiramente?
- Não estejas para aí a choramingar! -lançou-lhe Ilia bruscamente. - Não serve para nada. Era antes que os deverias ter vigiado... Andavas à procura do princípio e eles, estás vendo, já estão no fim...
Tiago calou-se, mas pouco depois recomeçou:
- A culpa não é minha... Eu sabia que ela ia trabalhar a dias, fazer limpezas não sei onde...
- Quero lá saber que a culpa seja tua ou não!...-- exclamou Ilia, parando a meio do pátio. - É preciso deixar esta casa... Lançar-lhe fogo...
- Ó Senhor, Senhor!-queixou-se baixinho Tiago, seguindo Lunev, de braços a abanar e cabeça caída para o peito, imaginando o pior.
- Pronto, chora à vontade!-vociferou Ilia, sem piedade, deixando o camarada sozinho no escuro.
Na manhã seguinte, Perfichka contou-lhe que tinham casado Macha com o merceeiro Khrenov. quinquagenário que enviuvara recentemente.
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Abanando a cabeça, ainda confusa pela embriaguez da véspera, o sapateiro, estiraçado no poial do fogão, fez uma descrição muito vaga:
- Ele disse-me assim: "Tenho dois filhos... duas criancinhas. Preciso pois de uma ama, mas uma ama é, a bem dizer, uma estranha... vai-me roubar e tudo... Convence a tua filha..." E fui eu e falei-lhe... A Matitsa também lhe fez ver... A Macha não é nenhuma estúpida, percebeu logo! Não tinha sítio algum para onde ir... só podia encontrar pior. melhor nem pensar!... "Está bem", disse ela, "faça-se assim..." E foi para casa do homem. Em Ires dias ficou tudo arranjado... A Matitsa e eu recebemos três rubíos cada... mas bebemos tudo, num abrir e fechar de olhos, ontem mesmo!... Ai, esta Matitsa é pior que um odre!...
O rapaz escutava-o em silêncio. Dizia para consigo que Macha estava arrumada melhor do que se poderia esperar. Mas. no entanto, lamentava a sorte dela. Quase a não vira nos últimos tempos, mal pensara nela e agora tinha subitamente a impressão de que, sem Macha, a casa se, tornara ainda mais sombria.
A carantonha inchada e terrosa de Perfichka voltava-se para Ilia, lá da escuridão do poial, e a sua voz rangia como uma ramada quebrada, no Outono.
- O Khrenov disse-me que não pusesse os pés em casa dele! Pela loja, disse, podes passar de vez em quando, dar-te-ei com que pagar um copo de vodka. Mas a casa é como um paraíso... não tens lá entrada!... Ai Ilia lakovlevitch! Não terás por aí cinco copeques, para que eu possa cozer esta bebedeira? Faz-me essa esmola...
- E tu. agora, o que vais fazer? -perguntou Lunev. O sapateiro cuspiu para o chão e respondeu:
- Eu, agora, não desembebedo mais... Enquanto a Macha não estava arrumada, ainda tinha mão em mim... às vezes até trabalhava... Sentia-me, de certo modo, responsável por ela. Mas agora sei que a comida, o calçado e a roupa lhe não faltam... que está resguardada!... Então, posso consagrar-me livremente à embriaguez universal...
- Não podes deixar de beber?
- Impossível - replicou o sapateiro, abanando a cabeça desgrenhada. - E também para quê? O préstimo de
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um homem é obra do destino, mais nada! Se se trata de alguém de quem nada há a tirar, como queres tu que o destino ajude? Vou-te dizer uma coisa: tinha cá magicado com os meus botões... ainda a minha defunta mulher aqui estava... Queria empalmar parte do que o avô Jeremias tinha guardado... Dizia para comigo: "Se não for eu, será outro qualquer, de todos os modos o velho será pilhado..."
Mas foram-me na dianteira, benza-os Deus!... não o lamento... Simplesmente, compreendi nessa altura que até para querer há que ter jeito.
Rindo, o sapateiro desceu do poial do fogão.
- Anda, dá-me cinco copeques... Sinto-me queimar cá por dentro, é de estoirar...
- Toma, vai beber um copo - disse Ilia. E, fitando Perfichka, acrescentou num sorriso:
--Tu és um charlatão, um bêbedo... é certo! Mas às vezes tenho a impressão de que não conheço melhor homem do que tu.
A expressão de Ilia era grave mas agradável. Perfichka não sabia se o devia acreditar ou não.
- Estás a mangar ?
- Se não quiseres, não acredites... Não te digo isto para te agradar, mas é assim mesmo... é a minha maneira de ver as pessoas...
- Não o dizes no ar, não!... Em verdade, não creio que com uma fronha como a minha se possa dizer mal de alguém... Há coisas que se não compreendem. Tenho de ir beber, senão vou tornar-me inteligente...
- Espera! -Lunev agarrou-o pela manga da camisa.- Temes Deus?
Perfichka balanceava-se, impacientemente, de um pé para o outro, e soltou, quase vexado:
- Não tenho que temer Deus... Não faço mal a ninguém...
- E costumas rezar? - interrogava Ilia, baixando a voz.
-Ah!... rezo, claro... raramente.
Ilia via bem que o sapateiro não estava para conversas, morrendo por ir até ao botequim.
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- Vai lá, vai-disse-lhe pensativamente. - Mas não esqueças, quando morreres. Deus perguntar-te-á: "Homem, lize-me como viveste..."
- E eu direi: "Senhor! Nasci pequeno, morri bêbedo, não me recordo de nada!" Ele há-de rir e perdoar-me-á...
E o sapateiro lá se foi, todo contente.
Lunev ficou só na cave. Impressionava-o a ideia de que Macha nunca mais voltaria a esta cova acanhada e suja e que em breve Perfichka de lá seria escorraçado.
O sol de Abril entrava pela janela, batendo no solo, que há muito não fora varrido. Tudo naquela cave era desordem, sujidão e tristeza, como após a morte de alguém.
Sentado muito direito numa cadeira, Ilia via à sua frente o fogão largo, baixo e estragado e deixou-se assaltar por ideias penosas.
"Ir confessar tudo?" Durante um breve instante esta ideia fixa e fulgurosa varreu tudo o mais da sua mente.
Mas logo a repeliu com raiva...
Nesse mesmo dia, Lunev teve de deixar a casa de Petrukha Filimonov. As coisas passaram-se da seguinte forma: ao regressar do trabalho, pela noitinha, encontrou no pátio o tio, muito assustado, que o arrastou para um canto por trás do amontoado de madeiras, e que lhe disse:
- Pronto, Ilia. tens de te ir embora... Passaram-se coisas por cá!...
Apavorado, o corcunda fechou os olhos e, agitando os braços, deu violentas pancadas nas próprias ancas.
-- O Tiago embebedou-se até cair para o lado e lançou à cara do pai os piores insultos: "Ladrão!"... e muitas outras coisas pouco agradáveis: desavergonhado, debochado, besta... Berrava que nem um possesso!... E o Petrukha ferrou-lhe um destes murros na boca! E agarrou-o pelos cabelos, encheu-o de pontapés até mais não, deixou-o em sangue! O Tiago está agora estendido, geme que faz medo... Depois o Petrukha voltou-se para mim, nem queiras saber tudo quanto me disse! "E tu", gritou-me ele... "corre com o Ilia..." Teima que foste tu que deste volta ao miolo do
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Tiago... que o açulaste contra ele... E berrava! Um horror!... Portanto, estás a ver...
Ilia fez escorregar do ombro a correia do mostruário e entregou este ao tio:
- Pega nisto!
- O quê! Onde vais ?
A piedade que sentia por Tiago e o ódio que lhe inspirava o botequineiro faziam tremer as mãos de Ilia.
-Pega nisto, já disse!-soltou por entre dentes, e dirigiu-se ao botequim. Cerrava os dentes com tal força que os maxilares e as maças do rosto lhe doíam e a cabeça se lhe encheu de súbito de ruídos. Ouviu, no entanto, o tio gritar-lhe qualquer coisa a respeito de polícia, perdição e degredo, mas não deixou de correr o mais que podia.
No botequim, junto ao balcão, Petrukha discutia com um indivíduo coberto de farrapos c sorria. A luz do candeeiro incidia sobre a sua calva e toda a sua cabeça parecia irradiar satisfação.
- Cá está o mercador! -exclamou, irónico, ao ver chegar Ilia, mas as suas sobrancelhas franziram-se de irritação.- Queria justamente falar contigo...
Estava postado em frente da porta do seu próprio quarto, impedindo a passagem.
Rude e ameaçador. Ilia aproximou-se dele e proferiu com violência:
- Tira-te do meu caminho!
- Quê-ê?-soltou Petrukha em voz rouca e lenta.
- Quero ir ver o Tiago... -Vais ver mas é...
Sem proferir palavra, Ilia esbofeteou-o às cegas. O botequineiro, gemendo, caiu ao chão. De todos os cantos da sala, os criados acorreram; alguém gritou:
- Apanhem-no! Malhem-lhe em cima!
Os fregueses agitavam-se, como se os tivessem queimado com água a ferver, mas Ilia, passando por cima de Pelrukha, entrou no quarto e aferrolhou a porta atrás de si.
No pequeno quarto, atravancado com caixotes de vinho e arcas, tremeluzia a chama de uma candeia de lata. A penumbra e o amontoado de coisas impediram que Ilia avistasse logo o camarada. Tiago estava deitado no chão.
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com a cabeça no escuro, e o seu rosto parecia negro e horrível. Ilia pegou na candeia e, ajoelhando, alumiou o ferido. Este tinha a cara coberta de equimoses e ferimentos, que lhe davam o aspecto de ler uma máscara sinistra; os olhos estavam inchados; respirava com dificuldade, gemendo, e certamente não via, pois perguntou com custo:
- Quem está aí?
- Sou eu - disse suavemente Lunev, levantando-se.
- Dá-me água...
Ilia voltou-se. Tentavam arrombar a porta. Alguém comandava:
-- Dá a volta pelo alpendre, lá por trás...
A voz de Petrukha, fina e estridente de raiva, elevou-se acima da algazarra geral:
- Eu não lhe toquei...
Ilia acercou-se da porta e. calmamente, entabulou negociações com os sitiantes:
- Ouçam lá. vocês! Não guinchem assim... Eu dei-lhe nas trombas, mas ele não estoira por isso, enquanto eu posso ser julgado. Portanto, larguem de mão, ocupem-se do que lhes diz respeito... Não arrombem a porta, eu já abro...
Abriu, surgindo no limiar da porta, como numa moldura, de punhos fechados, pronto paru qualquer eventualidade. O público recuou perante a sua figura vigorosa e a sua expressão decidida. Mas Petrukha pôs-se a afastar toda a gente, gritando:
- Ai, ai! Canalha!... Canalha!...
- Empurrem-no e venham ver cá dentro, venham! Ilia saiu do limiar da porta e convidou o público a entrar. --Venham admirar o lindo estado em que ele deixou o filho...
Alguns clientes, olhando cautelosos para Ilia, entraram no quarto e debruçaram-se para Tiago. Um deles, tomado de espanto e medo, articulou:
- Deixou-o todo estropiado...
- Tragam água. E depois é preciso chamar a polícia... - dizia Lunev.
Os fregueses estavam do seu lado, era visível, e o rapaz soltou, áspero:
- Vossemecês conhecem todos o Petrukha Filimonov, sabem que ele é o pior bandido desta rua... E quem poderá
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dizer mal do seu filho? E vejam: o filho ali está, brutalmente espancado, inutilizado para a vida, quem sabe, e por via disto nada sucederá ao pai. Eu dei apenas um sopapo ao Petrukha e serei condenado... Acham que está bem? Acham que é justo? E é sempre assim: há os que têm todos os direitos e os que nem sequer podem soerguer a sobrancelha...
Alguns homens soltaram murmúrios de simpatia, outros saíram do botequim sem abrir a boca e Petrukha, considerando que devia correr com todos, pôs-se aos gritos:
- Vão-se embora, vão-se embora! O caso é comigo... Trata-se do meu filho! Embora... Não tenho medo da polícia... Não preciso de tribunais. Não fazem falta. Hei-de fazer-te a cama assim mesmo, sem tribunal... Vão-se embora!
Ilia, de joelhos, dava de beber a Tiago, observando condoído os lábios rasgados e tumefactos. Tiago engolia a água com dificuldade e murmurava:
- Custa-me a respirar... Dói-me... Leva-me contigo... Ilia... meu amigo!...
Escorriam-lhe lágrimas das pálpebras entumecidas...
- É preciso levá-lo ao hospital - disse Ilia com dureza, voltando-se para Petrukha.
O botequineiro olhava para o filho, proferindo palavras indistintas. Um dos seus olhos estava arregalado; o outro, depois da pancada que lhe dera Ilia, estava quase tão inchado como os de Tiago.
- Estás a ouvir? - gritou-lhe Lunev.
- Não berres!-disse subitamente Petrukha, numa voz espantosamente baixa e conciliadora. - É impossível conduzi-lo ao hospital, dava escândalo!... São coisas que eu não posso fazer...
- Malandro!-desfechou Ilia, e, cuspindo com desprezo aos pés de Filimonov, juntou: - Ou tu o levas para o hospital, ou eu armo aqui um escândalo ainda pior...
- Pronto, pronto! Está bem... não te zangues... Eu acho que o Tiago está a representar...
Ilia pôs-se em pé num salto. Mas Filimonov correu à porta e ordenou:
- João! Chama uma carruagem, para ir ao hospital, são quinze copeques... Veste-te, Tiago! Não vale a pena
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dramatizares... Não foi um estranho quem te bateu, foi o teu próprio pai... Ai, eu apanhei tareias bem maiores...
Pôs-se a andar de um lado para o outro, tirando a roupa dos pregos e lançando-a a Ilia, enquanto continuava a contar, precipitadamente e com certo temor, como lhe batiam quando era novo...
Terêncio servia ao balcão. A sua voz amável e tímida chegava aos ouvidos de Ilia:
--De três ou de cinco copeques?... Era caviar que queria? Vendemos tudo... Experimente um pouco deste arenque...
No dia seguinte, Ilia encontrou alojamento: um quartito, ao lado de uma cozinha, que lhe foi alugado por uma jovem de blusa vermelha; tinha um rosto pequeno e rosado. um nariz de passarinho, boca minúscula e a testa estreita desaparecia sob bonitos caracóis castanhos, que ela lançava constantemente para trás, num rápido movimento da mão delicada.
- Cinco rublos por um quarto tão bonito não é caro! dizia com vivacidade, e sorria por se aperceber de que os seus olhos negros e irrequietos perturbavam aquele rapagão de ombros largos. - Foi forrado de novo... A janela dá para o jardim, que quer mais? De manhã, preparo-lhe o sãmovar, que o senhor mesmo levará para o seu quarto...
?--A menina é a criada? - perguntou Ilia, intrigado. A jovem deixou de sorrir, as suas sobrancelhas estremeceram e, endireitando-se, declarou com ar importante:
- Não sou a criada, sou a dona da casa, e o meu marido...
- É realmente casada? - exclamou Ilia, estupefacto, lançando um olhar incrédulo à senhora. Achava-a muito delgada, um pouco seca até, e nunca a imaginaria casada. Desta vez ela não se formalizou: soltou uma gargalhada sonora e alegre.
- Que divertido que o senhor é! Toma-me pela criada, recusa-se a acreditar que sou casada...
- É de facto difícil acreditá-lo; o seu ar é o de uma verdadeira rapariguinha! - disse Lunev, sorrindo por seu turno.
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- E no entanto há três anos que estou casada, meu marido é inspector da polícia...
Ilia cravou os olhos nela e. repentinamente, desatou tambérn a rir.
- Não há dúvida de que é um original!-exclamou a jovem, encolhendo os oinhros estreitos e observando-o com curiosidade. - Bem, fica com o quarto?
- Está decidido! Quer um sinal?
- É evidente!
- Volto daqui a duas ou três horas...
- Faça favor, o quarto é seu. Gosto muito de ter um locatário como o senhor. É pessoa alegre, pelos vistos...
- Nem por isso... - disse Lunev. mas naquela altura a expressão desmentia-o.
E saiu com um sorriso nos lábios, sob a influência de uma agradável sensação. Aquele quarto forrado de papel azul-claro e aquela mulherzinha vivaça agradavam-lhe. Mas o que se lhe afigurava mais agradável que tudo era viver cm casa de um inspector da polícia. Havia nisso algo de bizarro, de provocante e até, talvez, perigoso para ele. Tinha de ir ver Tiago: íez sinal a um trem, e durante o caminho foi pensando no que faria ao dinheiro, onde o esconderia doravante...
Quando chegou ao hospital, acabavam de dar banho a Tiago e este estava a dormir. Ilia deixou-se ficar no corredor, junto de uma janela, sem saber se deveria ir-se embora ou esperar que o camarada acordasse. Doentes, envergando roupões amarelos, passavam por ele. arrastando sem ruído as pantufas e fitando-o com olhos tristes; ao rumor abafado das conversas misturavam-se gemidos, vindos de algures, mais longe... Todos estes sons ecoavam pelo comprido corredor... Tinha-se a impressão de que naquele ambiente carregado de odores de hospital, pairava, sorrateira, uma presença invisível, que suspirava, enlanguescia... Ilia sentia necessidade de fugir destas paredes amarelas... Mas um dos doentes encaminhou-se para ele, de mão estendida, e disse-lhe em voz surda:
- Viva!...
Lunev olhou melhor para ele e recuou de surpresa:
- Paulo!... Tu também cá estás?
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- Quem está mais? -perguntou, imediatamente, Paulo.
A sua tez estava baça, os seus olhos perturbados e inquietos piscavam... Ilia contou-lhe, em poucas palavras, o que sucedera a Tiago e exclamou:
- Estás tão mudado!
Paulo suspirou; os seus lábios tremeram, como se tivesse cometido qualquer erro, baixou muito a cabeça e repetiu num murmúrio doloroso:
- K verdade, mudei...
- Que tens tu? - perguntou Lunev. compadecido.
- Ora!... Como se tu não soubesses...
Paulo olhou de soslaio para o companheiro e voltou logo a baixar a cabeça.
- Quiseste-te envenenar?
- Evidentemente...
- Não foi por causa da Vera?
- Então por causa de quem? - replicou Paulo, sombrio.
Ilia abanou a cabeça.
- Eu, um dia, também chegarei a isso... Paulo fitou-o confiadamente e disse-lhe:
- E eu que pensava que ias ficar mal impressionado comigo, agora... Ia-me arrastando por aí e de súbito, vejo-te!... Senti vergonha. Olhei para o outro lado e passei junto de ti...
- Bonito, sim senhor!-censurou Ilia.
- Sabia lá como me acolherias! Esta porcaria de doença... É já a segunda semana que cá passo. Se soubesses como me aborreço, me atormento... À noite, é como se estivesse sobre brasas. As horas não passam, nem à mão de Deus Padre... É como se me estivesse a atolar num pântano, sem ter ninguém a quem pedir socorro...
Falava tão baixo que mal se entendia, o seu rosto estava desfeito, as mãos torciam nervosamente a fazenda do roupão.
- E a Vera, onde está?-perguntou Ilia, pensativo.
- Só Deus sabe - respondeu amargamente Paulo.
- Não te vem ver?
-Veio uma vez, corri com ela... Não a posso ver! largou maldosamente Gratchev.
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Ilia observou, reprovativo, as feições alteradas do amigo e comentou:
- Estás a dizer parvoíces... Se pretendes que haja justiça, começa por seres tu próprio justo. Qual é a culpa dela?
- E quem posso eu acusar? - lançou Paulo em voz apaixonada. - Quem? Passo as noites inteiras a perguntar-me por que razão a minha vida está estragada. Porque me apaixonei pela Vera, hem...? O amor que sinto por ela não é uma bênção do Céu!...
Os seus olhos tornaram-se vermelhos e duas grandes lágrimas correram-lhe pelas faces dolorosas. Paulo secou-as na manga do roupão.
- Tudo isso são palavras - disse Lunev, sentindo que tinha mais pena de Vera do que de Paulo. - Provaste o néctar e apreciaste-o, continuaste a bebê-lo e queixas-te, agora, que embriaga! E ela? Ela também a envenenaram, não?
- Sim, ela também - disse Paulo. E acrescentou em voz trémula:-Julgas que não tenho dó dela? Escorracei-a... E como ela apareceu... como ela chorou... baixinho, tão amargamente, o meu coração sangrava... teria querido chorar também, mas nesse momento eu tinha urna pedra no lugar do coração... E pus-me, então, a magicar em tudo isso... Ai, Ilia, temos uma triste vida...
- Pois remos! - disse, lentamente, Lunev, sorrindo de maneira estranha. - E não vale a pena tentar compreender! Somos todos constantemente esmagados. O pai do Tiago torna-lhe a vida num inferno; a Macha, casaram-na com um velho nojento, e tu...
Pôs-se, de repente, a rir baixinho e acrescentou, baixando os olhos:
- Só eu é que tenho sorte! Mal penso numa coisa, zás!, cai-me na mão!
- Fazes mal em falar assim - cortou Paulo, observando-o, atento. - Estás a troçar, não ?
- Não sou eu, é outro quem troça! Há alguém que faz pouco de nós todos... Examino a vida e não descubro nela justiça alguma...
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- Eu noto o mesmo que tu - soltou Paulo, em voz baixa, num desabafo vindo directo do coração.
As faces afoguearam-se-lhe e os seus olhos começaram a brilhar, atrevidos e irrequietos, como no tempo em que tinha saúde.
Conversavam num canto escuro do corredor, perto de uma janela de caixilho pintado de amarelo, e, encostados à parede, iam trocando frases rápidas e fogosas, entendendo-se prontamente. De longe, chegava-lhes um gemido prolongado, semelhante à vibração de uma corda de viola, dedilhada a espaços regulares, tremendo e soando sem esperança, como que sabendo não poder encontrar, em parte alguma, um coração vivo, capaz de acalmar o seu doloroso tremor. A consciência do golpe que a dura mão do destino lhe acenara, despedaçava Paulo; como a corda da viola, também ele fremia de excitação, e num sussurrar precipitado e incoerente dava parte ao amigo das suas dores e das suas suposições. E Ilia tinha a impressão de que as palavras de Paulo arrancavam chispas ao seu próprio coração, pondo a descoberto, na sua alma, aquela coisa sombria e contraditória que incessantemente o torturava. Sentia que, substituindo-se à sua perplexidade perante a vida, algo diferente acabava de surgir para iluminar as trevas da sua alma e o acalmar para todo o sempre.
- Por que razão é o que se sacia à vontade que é santo? Porque é o que tudo sabe que tem razão?-sussurrava Paulo, aproximando o rosto de Ilia a ponto de quase lhe tocar. E olhava em volta, como se sentisse a presença do inimigo que lhe estragara a vida.
- Quem poderá compreender as nossas palavras? - exclamou Ilia com aspereza.
--Sim! com quem poderemos falar?
Paulo calou-se. Ilia olhava, pensativo, para o fundo do corredor. Agora, que estavam calados, ouvia-se mais distintamente o gemido. Devia soltar-se de um peito largo e potente, e muito grande devia ser a sua dor...
-? Continuas com a Olímpia? - perguntou Paulo a Lunev.
- Continuo, corre tudo bem!-respondeu Ilia, com um sorriso de entendimento. - Queres saber - prosseguiu,
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sorrindo sempre e baixando a voz: - O Tiago leu tanto que chegou ao ponto de duvidar de Deus...
Paulo soltou um "ah!" desinteressado e o companheiro continuou:
- Descobriu um livro... E tu, que pensas de tudo
eu.
de
- Eu, sabes... --balbuciou Paulo, pensativo-. eu. de certo modo... não vou à igreja...
- Cá por mim, por mais que reflicta... não consigo compreender como pode Deus admitir o que se passa.
E de novo foi entabulada, entre ambos, uma animada discussão. No seu entusiasmo, ficaram a conversar até que um empregado se aproximou deles e perguntou, ríspido, a Lunev:
- E tu, porque é que te escozides aí. hem?
- Não me escondo... - replicou Ilia.
- Não vês que as outras visitas já se foram embora?
- Não tinha reparado, palavra!... Adeus, Paulo. Vai ver o Tiago...
- Embora!... Embora!-gritou o empregado.
- Volta depressa - pediu Gratchev.
Chegado à rua, Lunev pôs-se a pensar no destino dos seus camaradas. Verificava que ele era o que tinha mais sorte. Mas esta observação não lhe produzia o menor prazer. Limitou-se a sorrir e a lançar à sua volta um olhar desconfiado...
No novo alojamento começara para ele uma vida sossegada e passou a tomar grande interesse pelos donos da casa. Ela chamava-se Tatiana. Era alegre e faladora e poucos dias depois de Lunev estar instalado no quartito azul já ela expusera, por miúdo, as regras de conduta que adoptara.
De manhã, enquanto Ilia tomava o chá no seu quarto, ela rodopiava pela cozinha, de mangas arregaçadas pelo cotovelo, e, aproximando-se da porta do locatário, contava-Ihe animadamente:
?-Eu e o meu marido não somos ricos, mas temos instrução. Eu frequentei o liceu e ele esteve na escola de cadetes, se bem que não chegasse a completar o curso... Mas
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nós queremos ser ricos e havemos de o ser... Não temos filhos, porque não pode haver coisa pior para obrigar a despesas. Eu própria cozinho, faço as compras e para os trabalhos pesados tenho uma rapariga que me sai por um rublo e meio, com cama e mesa. O senhor sabe quanto economizo?
Parou no limiar da porta e, deitando para trás os caracóis, contou pelos dedos:
- Uma cozinheira: não se arranja por menos de três rublos e é preciso dar-lhe de comer, quer dizer, mais sete; portanto, dez rublos!... Ela rouba-nos à volta de uns três rublos por mês: treze! Alugo ao senhor o quarto que lhe estaria destinado: dezoito! Aqui tem o que custa uma cozinheira!... Depois, compro tudo por atacado: a manteiga aos meios pudes1, a farinha em sacos, o açúcar em pães, e assim sucessivamente... Na totalidade, ganho nas compras uns doze ou treze rublos! Se estivesse empregada em qualquer lado, na polícia ou no telégrafo, andaria a trabalhar para a cozinheira... Assim, deste modo, não custo nada ao meu marido, de que muito me orgulho! Aqui tem corno se deve fazer, meu jovem amigo! Siga o exemplo...
Fitava-o com uma expressão agarotada e sorria-lhe. Tatiana agradava ao rapaz e ao mesmo tempo infundia-lhe respeito. Ao acordar pela manhã, ia encontrá-la na cozinha andando de um lado para o outro, juntamente com uma adolescente bexigosa e taciturna, que olhava para ela, como para tudo, com uns grandes olhos receosos e pálidos. À noite, quando voltava para casa, era Tatiana, pequenina e asseada, quem lhe vinha abrir a porta, ostentando um belo sorriso; emanava dela um perfume agradável. O marido, se estava em casa, tocava guitarra e ela acompanhava-o, cantarolando em voz sonora, ou então jogavam os dois às cartas, ao imbecil beijado2. Do seu quarto, Ilia ouvia tudo: o dedilhar das cordas, tão depressa alegre como sentimental, o bater das cartas na mesa, o ruído dos lábios. Eram duas as di-
1 O pude equivale a 16,380 kg.
Variedade de um jogo de cartas muito popular na Rússia e ainda hoje na U. R. S. S. e que se designa por "ao imbecil (v duratchki).
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visões que o casal reservara para si: o quarto de cama e outra divisãozinha contígua ao quarto de Ilia, que lhes servia de casa de jantar e de sala; era aí que os esposos passavam o serão... De manhã, essa sala vibrava de gorjeios: um melharuco cantava, um canário e um pequeno pintassilgo interrompiam-se um ao outro, como se andassem ao desafio, um pisco sussurrava e guinchava como um velhote importante, e, de tempos a tempos, juntava-se a este concerto sonoro e discordante a melodia sonhadora e suave de um pintarroxo.
O marido de Tatiana, Kirik Avtonomov, era um homem de uns 26 anos, de estatura elevada, bastante nutrido, senhor de um comprido nariz e de dentes enegrecidos. Tinha um rosto bonacheirão, semeado de cravos muito negros, e os seus olhos incolores contemplavam tudo com uma calma imperturbável. Usava os cabelos louros cortados em escova e em toda a sua pesada pessoa havia algo de desajeitado e ridículo. Os seus movimentos eram lentos. Logo no primeiro encontro perguntara inopinadamente a Ilia:
- Gostas de aves canoras?
- Gosto...
- Costumas apanhá-las?
- Não...-respondeu Ilia, olhando, espantado, para o inspector da polícia.
Este franziu o nariz, reflectiu e perguntou ainda:
- Mas já apanhaste alguma?
- Também não...
- Nunca ?
- Nunca...
Kirik Avtonomov sorriu condescendentemente e declarou:
-Se nunca apanhaste aves canoras, prova-se que não as aprecias... Eu apanhava muitas, foi até por isso que me expulsaram do corpo de cadetes... Continuaria de bom grado a apanhá-las, mas não desejo colocar-me mal perante os superiores. Porque, se apreciar as aves canoras pode ser considerada uma paixão nobre, apanhá-las constitui distracção imprópria de um homem sério... Se estivesse no teu lugar, não deixaria de ir apanhar canários! É um pás-
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saro alegre... É justamente o canário que é chamado avezinha de Deus...
Avtonomov falava pousando em Ilia um olhar sonhador, e o hóspede sentia-se contrafeito escutando-o. Parecia-lhe que o inspector, falando da captura dos pássaros, fazia, na realidade, alusão a outra coisa. Mas os olhos incolores de Avtonomov sossegaram-no; concluiu daí que se tratava de um homem sem malícia; sorriu polidamente e manteve-se silencioso, deixando Kirik falar. Este ficou visivelmente satisfeito com o silêncio modesto e a expressão atenta do locatário, pois acabou por lhe sorrir, propondo:
- Vem tomar chá connosco, à noite... Vem sem cerimónias... jogaremos às cartas, ao imbecil... Nós raramente temos visitas. Receber é agradável, mas é preciso obsequiar, e isso é desagradável, porque sai caro...
Quanto mais Ilia considerava a vida feliz dos donos da casa, mais estes lhe agradavam. Tudo em casa deles era limpo, sólido; tudo decorria calmamente, e eles por certo amavam-se. A mulherzinba irrequieta parecia-se com o alegre melharuco R o marido com o desastrado pisco; o lar era confortável como um ninho. À noite, no seu quarto, Lunev punha-se de ouvido à escuta para poder distinguir o que dizia o casal e pensava: "Aqui está como se deve viver..."
E, suspirando de inveja, sonhava com o tempo em que abriria a sua lojeca, em que teria o seu quartinho asseado; criaria pássaros e viveria só, num ambiente de calma e tranquilidade, como num sonho... Do outro lado tia parede, Tatiana contava ao marido o que tinha comprado na praça, quanto gastara e quanto economizara, e o marido, soltando risadinhas abafadas, felicitava-a:
-Ah, minha espertalhonazinha!... Dá cá uma beijoca...
Por seu lado, referia à mulher os acontecimentos da cidade, os processos que lavrara, o que lhe dissera o comissário ou qualquer outro superior... Aludiam a possibilidade de promoção e interrogavam-se, nesse caso, se seria preciso mudar de casa...
Ilia escutava e ao cabo de um instante invadia-o uma opressão incompreensível. Sentia-se atabafar no quartito
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azul, que os seus olhos inquietos inspeccionavam, como para aí encontrar uma explicação para o seu mal-estar, e, vendo que não tinha forças para ficar mais tempo ali fechado, saía, indo visitar Olímpia ou passear pelas ruas.
Olímpia mostrava-se cada vez mais exigente e ciumenta. Eles zangavam-se constantemente. Durante as zangas, ela nunca se referia ao assassinato do Poluektov, mas nos bons momentos voltava a exortá-lo a esquecer o crime. Lunev estranhava aquele procedimento e certo dia, após uma disputa, perguntou-lhe:
- Porque nunca me falas no velho quando nos zangamos, Olímpia?
Ela respondeu sem hesitação:
- Porque é um caso que me não diz respeito, nem a ti. Se te não descobriram, foi porque assim mesmo devia ser. Não tinhas precisão de o matar, tu próprio o dizes. Isso significa que foste apenas o instrumento do seu castigo...
A expressão de Ilia era de incredulidade.
- Que tens tu? ?- quis saber a mulher.
- Nada... Pensava que. se se não é um imbecil, tem de se ser forçosamente um rufião... Pode-se encontrar justificação para tudo... E condenação também...
- Não te compreendo - soltou Olímpia, abanando a cabeça.
-O que é que tu não compreendes? - suspirou Ilia, encolhendo os ombros. - É simples. Ouve: indioa-me alguma coisa, nesta vida, que permaneça imutável. Vê se encontras qualquer coisa que homem algum, inclusive o mais inteligente, não possa condenar nem justificar... Encontra-a. anda! Não o conseguirás... porque não existe.
Após uma zanga, Ilia, que passara quatro dias sem ir a casa de Olímpia, recebeu dela uma carta. Dizia:
Pois bem, adeus para sempre, meu querido Ilia. Não nos voltaremos a ver. Não vale a pena procurares-me porque me não encontrarás. vou deixar esta maldita cidade no primeiro barco: o meu. coração foi aqui despedaçado para sempre. Vou-me embora, para muito longe, e nunca mais regressarei. Não penses
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em mim, nem me esperes. Agradeço-te de iodo o coração tudo quanto me desta de bom. O mal, esquecê-lo-ei. Para ser franca, devo dizer-te que não parto sem rumo; juntei-me, muito simplesmente, com o jovem Ananime, que há muito andava atrás de mim, afirmando que causaria a sua desgraça, se não concordasse em viver com ele. Acedi: seja o que Deus quiser. Partimos para o litoral, para uma aldeia onde os Ananime possuem pescarias. É um rapaz muito simples e até me pede que case com ele, o parvalhão! Adeus! É como se te tivesse encontrado num sonho; acordei e perdi-te. Se soubesses o desgosto que sinto! Beijo-te, és o único para mim. Não te mostres mais forte do que és, nós somos todos uns infelizes. Eu tornei-me pacífica, eu, a tua Olímpia,, e tenho a sensação de subir ao cadafalso, tal é a dor que sinto no coração despedaçado. Olímpia Chlykova. Mandei-te uma encomenda pelo correio: um anel, como recordação. Usa-o, peço-te. 01. Ch.
Ilia leu a carta e mordeu os lábios até os fazer sangrar. Depois releu-a por diversas vezes. A cada nova leitura mais esta carta lhe agradava. Era uma sensação simultaneamente dolorosa e lisonjeira a que experimentava ao ler aquelas palavras simples, escritas numa letra grande e irregular. Ilia nunca pensara anteriormente que esta mulher o amava àquele ponto, mas parecia-lhe agora que ela o amava profundamente, e ao ler a sua carta sentia-se orgulhoso e satisfeito. Mas esta satisfação cedeu pouco a pouco o lugar à noção de ter perdido um ser a que estava muito ligado e pensamentos bem tristes assaltaram-no: para onde ir, agora? Junto de quem se refugiar nos momentos de tristeza? A imagem da mulher surgia-lhe; relembrava as suas loucas carícias, as ideias sensatas que expunha, as suas zombarias, e uma saudade intensa e dolorosa oprimiu o seu coração. Postado em frente da janela, de aspecto severo, contemplava o jardim onde, no escuro, estremeciam silenciosamente os tufos de sabugueiro, enquanto os ramos da bétula, delgados como cordéis, se balouçavam no ar. Do quarto ao lado che-
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gava até ele a voz aguda de Tatiana, cantando ao som dolente da guitarra:
Que vá procurar, quem quiser, A ambrósia, dos deuses...
Ilia conservava a carta na mão; sentia-se culpado perante Olímpia. A tristeza e a piedade amarfanhavam-no, davam-lhe um nó na garganta.
Mas trazei-me o meu anel Do-o fu-undo dos mares...
ouvia-se através da parede. Depois o inspector da polícia desmanchava-se de riso, e a cantora, fazendo-lhe coro, ia-se refugiar na cozinha. Mas mal aí chegava, calava-se instantaneamente. Ilia sentia a sua presença, mas não se queria voltar, apesar de saber que a porta do seu quarto estava aberta. Afundava-se nos seus pensamentos tristes, imóvel, sentindo-se presa de uma grande solidão. Por trás da vidraça, as árvores balouçavam-se e Lunev tinha a impressão de se ter desprendido da Terra e vogar na escuridão gelada.
- Ilia! Venha para o chá! -gritou a dona da casa.
- Não..,
Lá fora ecoou uma sonora badalada. O som embateu docemente na vidraça, que estremeceu ao de leve. Ilia fez o sinal da cruz, lembrou-se de que não ia à igreja há muito tempo e alegrou-se com o pretexto que encontrava para sair de casa...
- vou às vésperas -disse, voltando-se para a porta. A dona da casa encontrava-se no limiar, com as mãos
apoiadas nos alizares, observando-o com curiosidade. Perturbado com esse olhar inquisidor, Ilia acrescentou, à laia de desculpa:
- Há muito que não vou à igreja...
- Está bem! Terei o samovar à sua espera, às nove horas...
A caminho da igreja, Ilia pensava no jovem Ananime. Conhecia-o: era um rico comerciante, o mais novo da firma de peixarias Ananime & Irmãos, um rapaz baixo e magro,
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de cabelo louro, rosto pálido e olhos azuis. Chegara à cidade há pouoo tempo, tendo-se lançado logo na depravação.
"E é assim que vivem os homens. Como os abutres", dizia para consigo Ilia, amargamente. "Mal lhes nascem as penas, lançam-se logo à caça da rola..."
As reflexões fizeram-no chegar à igreja abatido e irritado. Foi-se colocar a um canto escuro, onde guardavam a escada de mão que servia para alumiar os lustres.
"Senhor, tem piedade de nós", cantava o coro da esquerda. Um rapazinho dizia os responsos, em voz desagradável e gritante, que furava o tímpano, incapaz de se harmonizar com a voz rouca e cava do sacristão. Este canto desafinado enervava Ilia e dava-lhe vontade de puxar as orelhas ao garoto. No canto, o fogão de aquecimento espalhava um pesado calor, a que vinha misturar-se um odor de pano queimado. Uma velha embiocada num amplo abafo aproximou-se de Ilia e disse por entre dentes:
- O seu lugar não é aí, senhor...
Ilia olhou para a gola do rico abafo, ornado com rabos de marta, e afastou-se sem responder, mas pensando: "Até na igreja há lugares marcados..."
Era a primeira vez que se encontrava num templo depois do assassinato de Poluektov e a recordação do que se passara deu-lhe calafrios.
"Senhor, tem piedade de nós...", murmurou, persignando-se.
As vozes dos cantores elevaram-se num tom harmonioso e forte. As dos sopranos, destacando nitidamente as palavras, repercutiam-se na cúpula, puras e suaves como sinetas cristalinas; os altos vibravam como uma corda sonora tensa ao máximo. Neste fundo ininterrupto, correndo como água viva, os sopranos estremeciam como raios de sol brilhando no fluido transparente. As notas profundas e trágicas dos baixos ondulavam solenemente nos ares, amparando o canto das crianças; por vezes, ressaltavam as belas e fortes exclamações do tenor, e de novo era a vez de as vozes infantis brilharem, erguendo-se até à penumbra da abóbada, donde, abrindo majestosamente os braços por cima dos fiéis, o Todo-PoderosQ, vestido de branco, lançava olhares meditaíivos. Fundindo-se numa massa de sons, as vozes do coro
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tornaram-se semelhantes a uma nuvem ao pôr do Sol, quando, rosa, vermelho e púrpura, o astro do dia se inflama em toda a sua magnificência de cores e desmaia na plenitude da sua beleza.
O canto cessou; Ilia suspirou tranquilizado. Sentia-se bem: já não experimentava a irritação que o dominava ao entrar no templo e não conseguia concentrar-se no seu pecado. A sensação de bem-estar era tão inesperada que lhe não inspirava confiança, e Ilia tentava repeli-la, procurando bem no fundo da sua alma o arrependimento, sem, no entanto, conseguir senli-lo.
E de repente passou-lhe pela mente uma ideia que o deixou tranzido: "E se a dona da casa entrasse por curiosidade no meu quarto, rebuscasse nas minhas coisas e descobrisse o dinheiro?"
Saiu bruscamente do seu lugar, correu para a rua, fez sinal a um cocheiro e voltou a casa. Durante todo o trajecto, a ideia obsessionante que o assaltara foi crescendo e exacerbando-se.
"Mesmo que encontre o dinheiro... que poderá suceder? Eles não me irão denunciar, ficarão simplesmente com ele..."
Mas pensar que, em vez de o denunciar, eles lhe roubariam o dinheiro, mais o exasperava ainda. Tinha a certeza de que. se assim fosse, iria imediatamente à polícia, naquele mesmo trem, e declararia que fora ele quem matara Poluektov. Não, não quereria continuar a esgotar-se daquele modo e a viver numa constante inquietação, enquanto outros teriam uma existência calma, confortável e limpa, graças ao dinheiro que ele próprio pagara com tão negro pecado. Só de imaginar essa situação, sentia-se gelar de raiva. Chegado a casa, tocou violentamente à porta, e de dentes cerrados, mãos convulsamente fechadas, esperou que lha abrissem.
Foi Tatiana quem acorreu.
- Oh. mas que maneira de tocar!... Que se passa? Que tem? - exclamou ela, assustada com o aspecto do locatário.
Ele afastou-se sem lhe responder, dirigiu-se ao quarto e verificou, logo no primeiro relance, que os seus receios tinham sido infundados. O dinheiro estava escondido por
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trás da parte superior do alizar da janela; Ilia prendera aí, levemente, uma minúscula partícula de penugem, de modo que caísse forçosamente caso tocassem no dinheiro. Mas distinguia perfeitamente, no alizar castanho, a pequena mancha branca.
-O senhor está doente? - perguntou com ansiedade a dona da casa, vindo até à porta do quarto.
- Estou, não me sinto bem... Desculpe a maneira brusca como entrei...
- Não tem importância... É verdade... diga-me: quanto é preciso dar ao cocheiro?
- Por favor, pague-lhe...
Ela apressou-se a fazê-lo, e entretanto Ilia pulou para cima da cadeira, tirou o dinheiro de trás do alizar, enfiou-o nos bolsos e suspirou de alívio. Tinha vergonha da angústia que sentira. A penugem colada parecia-lhe coisa estúpida, ridícula, como tudo o mais...
"Foi uma alucinação!...", pensou, interiormente satisfeito. Tatiana reapareceu no limiar da porta.
- Dei vinte copeques ao cocheiro - disse apressadamente.-O que teve? Alguma vertigem?
?--Sim, sim... sabe, eu estava na igreja... e de repente...
- Deite-se em cima da cama - recomendou a mulher, entrando no quarto. - Deite-se, não faça cerimónia... Eu vou ficar aqui a fazer-lhe companhia... Estou sozinha; meu marido está de serviço no clube...
Ilia sentou-se na cama e ela na única cadeira do quarto.
- Incomodei-a - disse Ilia, um pouco confuso.
- Não tem importância alguma - respondeu Tatiana. observando-o curiosa e abertamente. Calaram-se. Ilia não sabia que assunto abordar com aquela mulher, e ela, continuando a examiná-lo, começou a sorrir de maneira bizarra.
- Que tem? - perguntou Lunev, baixando o olhar.
- Posso dizer? - informou-se ela com malícia.
- Faça o favor...
- É que o senhor não sabe dissimular! Estremecendo, Ilia fitou-a, angustiado.
- Palavra, não sabe. Como se eu acreditasse que está doente! Não está nada doente: recebeu uma carta desagradável, eis tudo. Eu vi logo, vi logo.
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- É verdade -confessou Ilia prudentemente, a meia voz.
Por trás da vidraça ouviu-se o rumorejar dos ramos. A mulher lançou um olhar ao jardim e voltou-se, de novo, para o rapaz.
- É o vento, ou então um passarinho. Ouça, meu caro locatário, quer um conselho? Sou nova, mas parva é que não...
- Sou todo ouvidos, fale - replicou Lunev, interessado.
- Rasgue essa carta e deite-a fora - começou Tatiana num tom grave. - Se ela o não quis, é uma prova que se conduziu como uma rapariga ajuizada, não há dúvida! Você é ainda novo para se casar, não tem situação e as pessoas nas suas condições não devem constituir família. Você é um rapaz sadio, pode trabalhar muito, é bem parecido, encontrará sempre quem goste de si... Mas espere, não se apaixone do pé para a mão. Trabalhe, entregue-se ao negócio, junte dinheiro, experimente alargar as suas actividades, tente abrir uma loja, e então, quando se sentir solidamente instalado, case-se! Há-de vencer: não bebe, é modesto, só...
Ilia escutava de cabeça baixa, mas sorria lá por dentro. Sentia ganas de desatar a rir alegremente.
- Não é caso para estar cabisbaixo - prosseguia Tatiana com ar de pessoa experiente. - Isso vai passar! O amor é uma doença que tem cura. Antes de me casar, estive três vezes apaixonada, ao ponto de me querer lançar à água, e no entanto tudo passou! E quando vi que era altura de pensar a sério no casamento fi-lo sem amor... E a seguir comecei a amar o meu marido... As mulheres podem, às vezes, apaixonar-se pelos maridos...
- Como é isso? ?- interrogou Ilia, espantado. Tatiana deu uma risada sonora.
- Estava a brincar... Mas agora falo muito a sério: pode-se casar sem amar e amar depois...
E Tatiana continuou a tagarelar, fazendo-lhe olhinhos. Ilia escutava-a com atenção enquanto observava, respeitoso e interessado, a sua figurinha elegante. Era uma mulher tão delgada e desenvolta, tão segura e inteligente...
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"com uma mulher assim não se corre o risco de cair na desgraça", dizia para consigo. E sentia-se bem junto desta jovem culta, casada, que não era dessas que vivem por conta de alguém, mas sim uma verdadeira senhora, limpa, distinta, que se não mostrava superior para com ele, homem do povo, e que chegava até a tratá-lo, às vezes, por "senhor". Tomou-o uma onda de reconhecimento, e quando ela se ergueu para se ir embora, ele levantou-se também, num impulso irresistível, inclinou-se perante ela e declarou:
- Agradeço-lhe por me tratar num pé de igualdade... As suas palavras deram-me consolação...
- Consolei-o ? Está a ver! - Tatiana soltou um risinho, as suas faces enrubesceram e o seu olhar imobilizou-se, durante um breve instante, na contemplação do rosto de Ilia.
- Pois bem, adeus - disse em voz estranha, e saiu, no seu andar vivo de menina...
Os dias iam passando e os esposos Avtonomov agradavam cada vez mais a Ilia. Tinha muitas queixas dos polícias, mas Kirik parecia-lhe trabalhador, boa pessoa, um pouco acanhado de ideias. Avtonomov era o coipo, enquanto a mulher era a alma; passava poucas horas em casa, onde não ocupava um lugar importante. Tatiana ia tornando as relações com Ilia cada vez mais familiares. Começou a pedir-lhe que rachasse a lenha, que fosse buscar água, despejar os alguidares da louça. Ilia desempenhava essas funções de bom grado e acabou por considerá-las uma obrigação. A dona da casa despediu, então, a rapariga bexigosa, mandando-a vir apenas aos sábados.
Os Avtonomov tinham visitas de tempos a tempos: uin dos visitantes era Korsakov, comissário adjunto, homem de rosto descarnado, ostentando um bigode de longas pontas. Usava lunetas escuras, fumava uns cigarros volumosos, não suportava os cocheiros, aos quais se referia sempre com irritação.
- Ninguém viola as regras e a ordem com tanta frequência como os cocheiros - dizia. - Ah!, têm um destes
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descaramentos! Os peões, é sempre fácil metê-los nos eixos: basta o chefe da polícia mandar publicar um aviso: "Os que descem a rua devem circular pela direita, os que sobem, pela esquerda" e a disciplina reina logo na circulação. Mas os cocheiros, não há regulamentação que os impressione, os cocheiros são o Diabo em pessoa!
Korsakov era capaz de falar dos cocheiros durante um serão inteiro e Lunev nunca o ouvira interessado por outro assunto. Outra visita da casa era o vigilante do Asilo de Crianças, Gryzlov, homem taciturno e de barba negra. Gostava de cantar, com bela voz de baixo, "Sobre o mar, o mar azul", e sua mulher, senhora alta e nutrida, de grandes dentes, comia, sempre que lá ia. todos os rebuçados de Tatiana. Esta amaldiçoava-a mal a via pelas costas.
- Faz de propósito para me enraivecer!
Também apareciam por lá Alexandra Travkina e o marido. Ela era de elevada estatura, magra e de cabelo ruivo; assoava-se frequentemente, de modo estranho, com um ruído de pano rasgado. O marido falava num murmúrio ; sofria da garganta, mas falava sem parar, com um rumorejar de palha seca. Era homem de posses, funcionário da repartição dos impostos indirectos, membro do conselho de administração de uma sociedade de beneficência, e. juntamente com a mulher, não cessava de maldizer os pobres, acusando-os de serem mentirosos, ávidos, sem o mínimo respeito pelos que lhes queriam bem...
Lunev, no seu quarto, punha-se à escuta com a maior atenção, pois queria saber o que diziam acerca da vida. O que ouvia deixava-o perplexo. Dir-se-ia que aquela gente estatuíra tudo, sabia tudo e condenava severamente todos os que viviam de qualquer outro modo.
Certas noites, os donos da casa convidavam o locatário para o chá. Tatiana gracejava alegremente, enquanto o marido sonhava com a sorte de enriquecer, de um momento para o outro, e de comprar uma casa.
- Farei criação de aves de capoeira!... - dizia ele, semicerrando os olhos de antecipado prazer. - De todas as raças: bramaputras, cochinchinesas, pintadas, perus... e pavões! Como seria agradável, irra!, pôr-me à janela, em roupão, fumando o meu cigarrinho e contemplando o meu
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pavão abrir o leque e passear pelo pátio, o meu próprio pavão! Bambolear-se-ia como um oficial da polícia, pupilando: gluglu, gluglu!
Tatiana fazia coro, com um risinho adocicado, e, fitando Ilia, punha-se, por seu turno, a sonhar:
- E eu, no Verão, iria para a Crimeia, para o Cáucaso. e no Inverno consagrar-me-ia a qualquer sociedade de assistência aos pobres. Mandaria fazer um vestido de fazenda preta, muito simples, sem ornamentos de qualquer espécie, salvo um broche de rubis e uns brincos com pérolas verdadeiras. Leria versos na Niva, que contariam que o sangue e as lágrimas dos pobres se transformam, no outro mundo, em pérolas e em rubis. - E com um breve suspiro concluía:
- os rubis ficam tão bem às morenas...
Ilia não abria a boca e sorria. A sala estava asseada, aquecida, cheirava bem a chá e a qualquer outra coisa mais, igualmente agradável. Nas gaiolas, os passaritos eram novelos de penugem adormecidos. Nas paredes havia imagens de cores garridas. O gracioso aparador, colocado entre as duas janelas, estava ornamentado com bonitos boiões de farmácia, pequenas galinhas de porcelana, ovos de Páscoa multicores, de açúcar cândi ou de cristal. Tudo isto agradava a Ilia, mergulhando-o numa calma e suave tristeza.
Mas por vezes, especialmente nos dias em que as coisas lhe não tinham corrido pelo melhor, essa tristeza transformava-se em despeito, em inquietação. As galinhazinhas, os pequenos boiões e os ovos de cores irritavam-no; sentia vontade de os lançar ao chão, de os espezinhar. Quando este estado de espírito o dominava, calava-se, fitando obstinadamente um ponto no espaço, e receava falar, não fosse melindrar aquela gente encantadora. Um dia em que jogava às cartas com o casal, olhou de soslaio para Kirik Avtonomov e perguntou-lhe:
- Ora diga-me, Sr. Kirik, ainda não encontraram o homem que assassinou o comerciante da Rua Dvorianskaia ?
Ao pronunciar estas palavras sentiu dentro de si uma espécie de formigueiro, ao mesmo tempo aflitivo e agradável.
- O Poluektov? - disse, pensativo, o inspector, olhando para as cartas. E repetiu logo a seguir:-O Poluektov?
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mm-m-m-mm... Não, não se encontrou Poluektov algum, mm-m-m-mm... isto é, o Poluektov não, aquele que... Não o procurei... não preciso dele... o que eu preciso é da dama de espadas... exactamente! Tatiana, tu jogaste três cartas, a dama de paus, a de ouros e que mais ainda? -O sete de ouros... tens de pensar com mais rapidez.
- Foi pelo ouro que ele morreu!-gracejou Ilia. Mas o inspector não fazia caso do que ele dizia, todo
entregue ao jogo.
- Foi pelo ouro! - repetiu maquinalmente. - Foi por causa disso que o liquidaram, o Poluektov, mm-m-m-mm...
- Kirik. deixa de fazer mmm e joga - ordenou a mulher.
- Deve ser um espertalhão, o que o matou! - insistia Ilia. Não prestavam atenção ao que ele dizia, o que mais aguçava o seu desejo de falar do assassinato.
- Um espertalhão ? - repetiu lentamente o inspector. Não, não, o espertalhão sou eu. Ora vejam isto!
E, lançando com força a carta em cima da mesa, indicou-a, satisfeito, ao locatário: era um cinco. Quem ficava imbecil era Ilia. Os esposos, em coro, fizeram troça dele, aumentando-lhe a excitação. Enquanto ia dando as cartas, recomeçou com obstinação:
- Matar em pleno dia. na principal rua da cidade, é preciso ter coragem...
- Sorte, coragem não - rectificou Tatiana.
Ilia olhou-a, olhou o marido, pôs-se a rir docemente e soltou:
- É uma sorte matar ?
- Quer dizer: matar e não ir para a prisão.
- Apanhei mais uma vez o ás de ouros! - comentou Avtonomov.
- Eu bem precisava dele!-disse Ilia gravemente.
- Mate um negociante, que logo o receberá! 1 - prometeu-lhe Tatiana sem desviar o olhar do jogo.
1 Na roupa dos forçados, deportados para a Sibéria, cosia-se uma espécie de marca de pano em forma de ás de ouros.
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- Mata-o e terás um de pano, mas entretanto aqui está um de cartão! --exclamou Kirik. Lançou a Ilia dois noves e um ás e desatou a rir.
Lunev observou, novamente, as expressões hílares dos esposos e desistiu de falar no assassinato.
O facto de viver junto daquela gente, separado apenas por uma parede estreita da vida escorreita e tranquila que o casal levava, tornava-o cada vez mais atreito a acessos de dolorosa tristeza. Regressava às suas reflexões acerca das contradições da vida, a respeito de Deus, que tudo vê e não castiga. Porque espera o Senhor?
Para combater o aborrecimento que sentia, Lunev começou a ler. A dona da casa tinha alguns tomos da Niva, de A Revista Pitoresca e alguns livritos em mau estado.
Como no tempo da infância, só lhe agradavam as narrativas e os romances que tratassem de uma vida que não conhecia, e não daquela que se assemelhava ao seu dia a dia; considerava aborrecidas e falsas as descrições da vida real, da vida ordinária da gente comum. Essas descrições faziam-no às vezes sorrir, mas mais frequentemente pareciam-lhe feitas por pessoas hábeis, que se esforçavam por alindar a sombria e penosa realidade. E esta. conhecia-a ele cada vez mais a fundo. Calcorreando as ruas, topava a cada passo com coisas que lhe inspiravam críticas, e ao chegar ao hospital contava a Paulo, com um sorriso de troça:
- Tudo pelo melhor! Acabo de cruzar na rua com uns carpinteiros e uns gesseiros que seguiam pelo passeio. Chega um polícia: "Olá, canalhas!", e fá-los descer do passeio. Caminha por onde seguem as bestas, aqui, vais sujar com a tua roupa emporcalhada os senhores que passam... Constrói-me uma casa e some-te da minha vista...
Paulo também se exaltava e avolumava o caso. Languescia no hospital como numa prisão, nos seus olhos relampejava uma luz triste e odiosa, emagrecia, definhava. Tiago Filimonov não caíra nas suas boas graças. Paulo considerava-o um pobre tonto.
Quanto ao próprio Tiago, que estava tuberculoso, a felicidade sorria-lhe no hospital. Tornara-se amigo do vizinho de cama, um bedel a quem tinha sido amputada uma perna.
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Era um homem baixo, atarracado, com uma enorme cabeça calva e uma barba negra, que lhe cobria o peito. As sobrancelhas, tão carregadas que lembravam bigodes, estavam constantemente em movimento, e a voz profunda parecia subir-lhe do ventre. Sempre que Lunev ia ao hospital, encontrava Tiago sentado na borda da cama do bedel. Este permanecia deitado e movia as sobrancelhas sem proferir palavra, enquanto Tiago lia a meia voz numa Bíblia pequena e espessa como o bedel.
"Porque de noite foi assolada, Ar Moab emudeceu! Porque de noite foi assolada, Kir Moab emudeceu!"
A voz de Tiago enfraquecera e recordava uma serra a serrar uma árvore. Lendo, erguia a mão esquerda, como que a convidar os doentes da enfermaria a escutarem as funestas profecias de Isaías. Os seus olhos imensos e sonhadores punham no seu rosto descorado uma nota assustadora. Ao avistar Ilia, lançava o livro para cima da cama e fazia sempre ao camarada a mesma pergunta ansiosa:
- Não viste a Macha? Ilia não a tinha visto.
- Senhor! -:dizia tristemente Tiago.-É como... como num conto! Ela estava presente e de súbito vem um feiticeiro e ela desaparece...
- Teu pai veio ver-te?-perguntava Ilia.
O rosto de Tiago estremecia e os seus olhos pestanejavam receosos.
- Veio. "Já te emproaste suficientemente", disse-me ele, "pede que te dêem alta." Consegui que o doutor me mandasse ficar... Estou bem, aqui; tudo é calmo e simples... com o Nikita, que aqui está, lemos a Bíblia. Ele leu-a durante sete anos, conhece de cor tudo quanto contém e sabe explicar as profecias... Quando estiver curado, irei viver com ele, abandonarei meu pai. Ajudarei o Nikita na igreja e cantarei no coro da esquerda...
O bedel erguia o sobrolho lentamente; por baixo, nas órbitas fundas, moviam-se pesadamente olhos redondos e sombrios. Fitavam Ilia calmamente, sem brilho de qualquer espécie, imóveis.
- Que maravilhoso livro, a Bíblia!-exclamava Tiago num ataque de tosse. - E cá vem, lembras-te do que dizia o
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erudito do botequim: "As casas dos ímpios estão seguras e em paz."? Vem aqui, encontrei-o! E muito pior ainda!
Fechando os olhos, de mão esquerda erguida, pôs-se a declamar, de cor, em voz solene:
"Quantas vezes se apagará a lucerna dos ímpios, e lhes sobrevirá uma inundação de males e Deus na sua ira lhes repartirá as dores." Estás vendo? "Vós dizeis que Deus reservará para os filhos a pena do pai; mas que lhe dê o pago, então ele escarmentará"...
- É verdadeiramente isso que aí está escrito?-perguntou Ilia, incrédulo.
- Textualmente!...
- A meu ver, não está bem, é um pecado!--soltou Ilia.
O bedel agitou as sobrancelhas, que lhe cobriram completamente os olhos. A sua barba estremeceu e a voz profunda, estranha, saiu-lhe das entranhas:
- A audácia do que conhece a verdade não é um pecado, porque ela lhe é inspirada dos Céus...
Ilia sentiu um choque. O bedel suspirou profundamente e prosseguiu na mesma voz lenta e clara:
- É a própria verdade que instiga o homem a procurá-la. Porque a verdade é Deus... E está escrito: "A maior glória é seguir Deus"...
O rosto coberto de pêlos do bedel inspirava uma respeitosa timidez a Ilia; havia naquele homem algo de grave e severo.
Mas as sobrancelhas opulentas ergueram-se. Os olhos do bedel fitaram, imóveis, o tecto e os pêlos da sua barba voltaram a agitar-se.
- Ó Tiago, lê-lhe o que diz Job no princípio do décimo capítulo...
Tiago folheou a Bíblia em silêncio e leu docemente, com um leve tremor na voz: "A minha alma tem tédio à minha vida; soltarei a minha língua contra mim: falarei na amargura da minha alma. Direi a Deus: não me condenes; mostra-me porque assim me julgas. Porventura parece-te bem caluniares-me e oprimires-me a mim, que sou obra das tuas mãos?..."
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Ilia estendeu o pescoço e semicerrou os olhos para conseguir ler no livro.
- Não queres acreditar ? - exclamou Tiago. - Que tipo esquisito!
- Não é um tipo esquisito,, é um medroso - disse tranquilamente o bedel.
E desviando custosamente o seu olhar baço do tecto, para o pousar no rosto de Ilia, prosseguiu rudemente, como se pretendesse esmagá-lo com as suas palavras:
- Há expressões ainda mais duras do que as lidas agora mesmo. O terceiro verso do vigésimo segundo capítulo diz exactamente assim: "De que serve a Deus que tu sejas justo?; ou que lhe acrescentas se for sem mácula o teu caminho?" Há que reflectir maduramente para não errar quanto ao sentido destas palavras...
- E o senhor, o senhor compreende? - perguntou baixinho Lunev.
- Ele?-bradou Tiago. - O Nikita compreende tudo! Mas o bedel disse, baixando a voz:
- Já é tarde de mais para mim... O que eu devo tentar compreender é a morte... Cortaram-me uma perna e o que dela resta recomeçou a inchar... E a outra perna também incha... E o tronco... Morrerei em breve...
Os seus olhos continuavam cravados no rosto de Ilia e a sua voz lenta e calma continuava:
- E não tenho vontade de morrer... porque tive uma triste vida, cheia de ofensas e desgostos; não houve alegrias na minha existência. Quando era novo, da idade do Tiago, passava o tempo a ser espancado por meu pai. Era um bêbedo, um animal... Fracturou-me o crânio três vezes e uma ocasião escaldou-me as pernas com água a ferver. Eu não tinha mãe: morreu ao lançar-me neste mundo. Casei-me. Minha mulher casaram-na à força - não me tinha amor... Três dias depois da boda, enforcou-se. Havia o cunhado: pilhou-me; minha irmã até disse que fora eu quem induzira minha mulher a enforcar-se. E todos diziam o mesmo, apesar de saberem que eu nem sequer lhe tocara, que ela era donzela e... que assim mesmo morreu... Vivi ainda mais nove anos, depois disso. É terrível viver só!... Estava sempre
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à espera que uma alegria surgisse na minha vida. E aqui está, vou morrer. E acabou-se.
Cerrou os olhos, calou-se durante uns instantes e depois perguntou:
--Porque razão vivi eu?
Ilia escutava esta dolorosa narração com um grande peso na alma. O rosto de Tiago tornara-se cor de cinza, os seus olhos estavam marejados de lágrimas.
- Por que razão vivi eu, digam-me?... Aqui estou estendido e pergunto porque vivi...
A voz do bedel apagou-se. Quebrou-se de repente, como um ribeiro de águas turvas que corresse terra fora e nela subitamente mergulhasse.
?- "Porque há esperança para quem se encontra ainda entre os demais viventes; e que até um cão vivo vale mais do que um leão morto" - continuou o bedel, abrindo os olhos. E a sua barba estremeceu de novo.
- E também está lá escrito, no Eclesiastes: "Goza dos bens no dia bom, e precavê o mau dia; porque Deus, assim como fez este, assim também fez aquele, sem que o homem ache contra ele justificadas queixas"...
Ilia já não aguentava mais. Levantou-se sem fazer ruído, apertou a mão a Tiago e inclinou-se profundamente perante o bedel, como se costuma dizer adeus aos mortos. Fê-lo sem se aperceber.
Levou consigo do hospital um novo tormento: a lúgubre imagem daquele homem gravara-se profundamente na sua memória, vindo acrescentar-se ao número dos que a vida maltratara. Lembrava com precisão as palavras do bedel e estudava-as em todos os sentidos, para tentar descobrir o significado. Estas frases pesavam-lhe, perturbavam-no até às profundezas da alma, onde conservava a fé na justiça de Deus.
Parecia-lhe que a certa altura, sem que tivesse dado por isso, a sua fé na justiça divina vacilara, que já não era tão firme como antes, roída, tal como o ferro, pela ferrugem. Sentia dentro de si dilacerarem-se sentimentos tão incompatíveis como o eram a água e o fogo. E a sua aversão em relação ao passado, a todos os homens e a todas as regras da vida ressurgiu revigorada.
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Os Avtoncwnov mostravam-se cada vez mais encantadores para com ele. Kirik batia-lhe no ombro com ar protector, brincava com ele e dizia-lhe sem objectivo directo aparente:
- Perdes o tempo com ninharias, meu velho! Um rapaz assim modesto e sério como tu deve ter vistas mais largas. Quando se tem a capacidade precisa para se chegar a comissário, não convém continuar a ser inspector.
Tatiana começou a interrogar Ilia, com meticulosa minúcia, acerca do seu negócio, dos seus ganhos mensais. Ele abria-se gostosamente com ela e o respeito que lhe inspirava esta mulher, que sabia construir com pequenos nadas uma vida correcta e agradável, ia crescendo...
Uma noite, em que, amarfanhado de tédio, se deixara ficar no quarto junto da janela aberta, espreitando para o jardim mergulhado nas trevas e recordando Olímpia, Tatiana entrou na cozinha e convidou-o a ir tomar chá. Ilia aceitou de mau grado: estava demasiado enfronhado nos pensamentos tristes e não lhe apetecia falar sobre quaisquer assuntos. Silencioso e fechado, sentou-se à mesinha de chá e, lançando um olhar aos anfitriões, reparou que o seu ar era solene e preocupado. O samovar fazia ronrom numa acolhedora toada; um dos passaritos, despertando, pôs-se a saltitar na gaiola. Reinava na quadra um cheiro a cebola cozida e a água-de-colónia. Kirik mudou de posição na cadeira e, tamborilando na borda do tabuleiro, começou a trautear:
- Bum, bum, tara-ta-ta!, tara-ta-ta!
- Ilia! - principiou gravemente a mulher. - Eu e meu marido temos andado a pensar numa coisa e desejamos falar consigo muito a sério.
- Oh, oh, oh!-soltou o inspector, sublinhando a risada com um vigoroso esfregar de mãos. Ilia sobressaltou-se e lançou-lhe um olhar espantado.
- Temos andado a pensar! - exclamou Kirik, sorrindo de boca escancarada, e, indicando a mulher a Ilia com uma piscadela, juntou: - Ela é genial!
- Pusemos de lado algum dinheiro, Ilia.
- Pusemos de lado! Oh, oh! Minha querida!...
- Cala-te!-ordenou secamente Tatiana. O seu rosto tomara uma expressão severa e parecia mais comprido.
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- Juntámos cerca de um milhar de rublos - disse ela em voz baixa, inclinada para Ilia, mergulhando nos olhos do rapaz o seu olhar perscrutador. - Esse dinheiro está depositado no banco e rende-nos quatro por cento...
- E é bem pouco! -cortou Kirik, dando uma punhada no tampo da mesa. - Nós queremos...
Sua mulher calou-o com um olhar duro.
- Essa percentagem, como é evidente, chega-nos perfeitamente, mas nós desejamos ajudá-lo na sua vida...
Após alguns elogios às qualidades de Ilia, Tatiana prosseguiu :
- Você tem dito que uma retrosaria pode dar uns vinte por cento ou mais, conforme a maneira de dirigir o negócio. Portanto, nós estamos dispostos a emprestar-lhe o nosso dinheiro por determinado prazo, mediante recibo e subsequente reembolso, nestas e só nestas condições,, e o senhor abre uma loja. A gerência ficará a seu cargo e sob minha fiscalização e partilharemos os lucros em duas partes iguais. A mercadoria ficará assegurada em meu nome e, além disso, você assinará um documento pró-forma. Aqui tem, pense bem e diga-nos se está de acordo ou não.
Ilia escutava a vozita seca e ia esfregando com força a testa. Por diversas vezes, enquanto Tatiana falava, ele dirigira o olhar para o canto, onde brilhava o engaste dourado do ícone, com as velas nupciais a cada lado. Não estava admirado, mas ressentia uma espécie de acanhamento e até de receio. Esta proposta, que permitiria a realização do seu velho sonho, deixava-o simultaneamente petrificado e satisfeito. Olhava para a mulherzinha à sua frente com um sorriso um pouco desvairado e pensava:
"É o destino..."
E ela dizia-lhe, em tom maternal:
?-Reflicta maduramente; pese o caso sob todos os aspectos. Poderá tomar a seu cargo um negócio assim, sente a força para isso, reconhece ter a capacidade necessária? E depois dir-nos-á o que, além do seu trabalho, poderá investir no empreendimento. O nosso dinheiro representa pouco... não é assim?
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- Eu - começou lentamente Ilia - posso meter nisto à volta dos seus mil rublos. Meu tio dá-mos... Talvez até mais...
- Hurra! -gritou Kirik Avtonomov.
- Por outras palavras, está de acordo ? - observou Tatiana.
- E de que maneira! - lançou o inspector; e, metendo a mão na algibeira, declarou em voz forte e excitada:
- E agora bebamos o champanhe! Champanhe, que diabos! Vai, anda, nós é que convidamos. Pede champanhe do Don a noventa copeques e diz que é para mim, Avtonomov, eles dao-to, assim, por sessenta e cinco... Despacha-te!
Ilia olhou para os rostos radiantes dos esposos e saiu rapidamente.
Dizia para consigo que o destino, depois de o ter esmagado, preso nas suas malhas, colocado sem escolha perante uma grave falta, depois de ter lançado a perturbação na sua alma, parecia agora pedir-lhe perdão, sorrir-lhe, contentá-lo... Abria-se à sua frente, neste momento, e de par em par, a porta para o caminho que o conduziria a uma vida retirada e limpa, em que viveria só e reencontraria a calma interior. As ideias rodopiavam-lhe alegremente na cabeça, insuflando-lhe no coração uma segurança até então desconhecida.
Trouxe do botequim uma garrafa de verdadeiro champanhe, a sete rublos.
- Ah! - exclamou Avtonomov. - Que lindo gesto, meu velho! Grande ideia, sim senhor!
Tatiana reagiu de maneira diferente. Abanando a cabeça, com ar de reprovação, disse, examinando a garrafa:
- Sete rublos? Oh! Isto é o que se chama desperdiçar dinheiro!
Feliz e enternecido, Lunev postara-se em frente dela e sorria.
- É do verdadeiro! -soltou, transbordante de alegria.- É a primeira vez na minha vida que vou provar champanhe verdadeiro! Que vida miserável tem sido a minha! Sempre a falsificação... a lama, a grosseria, o acanhamento, as humilhações... Como se pode viver assim?
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Pusera o dedo no ponto doloroso da sua alma e prosseguiu :
- Procurava desde a infância algo de verdadeiro e vivia... como uma palha arrastada pela corrente... aos safanões de um lado para o outro... e à minha volta tudo era turvo, sujo, agitado. Nada a que me agarrar... E eis que vim parar a esta casa. Pela primeira vez na minha vida, vejo pessoas que vivem numa atmosfera de calma, asseio, amor...
com uma profunda alegria estampada no rosto, inclinou-se perante o casal.
?- Agradeço-lhes. Nesta casa o meu coração libertou-se... Garanto-lhes! Foi um serviço que me prestaram para a vida inteira! Agora tudo correrá bem! Agora sei como se deve viver!
Tatiana observava-o como um gato que espreita um pássaro, hipnotizado pelo seu próprio canto. Nos olhos da mulher relampejava uma chamazita verde e os seus lábios estavam frementes. Kirik esforçava-se, debruçado para a garrafa que tinha presa entre os joelhos. O pescoço tornara-se-lhe vermelho, as orelhas estremeciam...
A rolha saltou, foi bater no tecto e caiu em cima da mesa. Um copo tilintou.
Dando estalidos com a língua, Kirik deitou o vinho nas taças e comandou:
- Sirvam-se!
E quando a mulher e Lunev seguraram nas taças, ele ergueu a sua muito alto, acima da própria cabeça, e brindou:
- Pela prosperidade da firma "Tatiana Avtonomova e Lunev", hurra!
Lunev discutiu com Tatiana, durante vários dias, os pormenores do empreendimento. Ela sabia tudo e falava de tudo com a segurança de alguém que se tivesse entregue a vida inteira ao negócio de retroseiro. Ilia escutava-a, com um sorriso nos lábios, muito admirado, sem acrescentar qualquer sugestão. Queria meter quanto antes mãos à obra e aceitava as disposições de Tatiana sem as esmiuçar.
Sucedia que a Avtonomova tinha igualmente um local em vista. Um local como Ilia sonhara: numa rua decente, uma
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pequena loja com uma divisão anexa para habitação do comerciante. Tudo se realizava, absolutamente tudo, nos mais ínfimos pormenores, e Ilia exultava.
Cheio de entusiasmo e alegria, foi ao hospital visitar os camaradas. Paulo acolheu-o, também muito alegre:
- Dão-me alta amanhã! - declarou Gratchev muito excitado, antes mesmo de apertar a mão ao amigo. - Recebi uma carta da Vera... Não está contente... o venenozinho!
Os seus olhos estavam radiosos, as faces rubras, não conseguia manter-se quieto, arrastava as pantufas e agitava os braços.
- Cuidado! - recomendou-lhe Lunev. - Toma cuidado, agora...
- Eu? Pois claro! Chego e pergunto: menina Vera, quer casar comigo? Dê-me essa alegria! Ai, não? Uma facada no ventre!
Um tremor convulsivo sacudia-o dos pés à cabeça.
- Santo Deus! -exclamou Ilia, brincalhão-, a facada também!...
- Por enquanto não!... Mas lá chegaremos! Eu não posso viver sem ela... A Vera já fez muitas asneiras... deve estar farta... Eu estou até aqui! Amanhã tudo ficará decidido entre nós... De uma maneira ou de outra...
Lunev perscrutou o rosto do companheiro e de repente uma ideia simples e clara iluminou o seu espírito. Corou, sorriu...
- Meu querido Paulo! Queres saber? A sorte bateu-me à porta!
E contou sucintamente ao camarada o que sucedera. O outro suspirou e disse:
- Não há dúvida, estás em veia de felicidade...
- Tanta, que chego mesmo a ter vergonha de pensar em ti... a sério! Confesso-o francamente.
- Obrigado por esses sentimentos! - soltou Paulo com um risinho.
- Acredita!-acrescentou baixo Ilia. - Não digo isto para me fazer valer, falo seriamente, tenho vergonha...
Paulo observou-o sem dizer nada e baixou a cabeça, pensativo.
.
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- Eu queria dizer-te... fomos companheiros na miséria, partilhemos também a felicidade.
- Mm... - grunhiu Paulo. - Sempre ouvi dizer que a felicidade é como uma mulher, uma coisa que se não partilha...
- Partilha-se, sim! Informa-te de quanto é preciso para montar uma oficinazita de canalizador, ferramentas, material e tudo... e vem ter comigo... Dar-te-ei o dinheiro...
-Hem?-murmurou Paulo, sem acreditar. No seu entusiasmo, Ilia agarrou-o por um braço, apertando com força.
- Meu malandro! Dou-te o dinheiro!
Mas foi-lhe difícil convencer Paulo da verdade das suas intenções. Gratchev abanava a cabeça negativamente, dava ronquidos e repetia:
- Não pode ser...
Lunev acabou por o persuadir. Por seu turno, Paulo apertou-o nos braços e disse em voz cava e trémula:
- Obrigado, meu velho! Tiras-me de grandes sarilhos... Simplesmente... Escuta: eu não quero uma oficina; que o Diabo carregue com as oficinas! Sei bem o que representam... Dá-me dinheiro, eu agarro na Vera e vamo-nos embora daqui. Será melhor para ti: precisarei de menos! E para mim também será melhor. Irei para qualquer lado e, em vez de trabalhar por minha conta, empregar-me-ei numa oficina qualquer...
?- É estupidez! - replicou Ilia. ?- Mais vale ser patrão...
-- Seria um rico patrão! - exclamou Paulo. - Não, ser patrão e tudo o que daí advém... não é para mim... Não se transforma um bode num suíno...
Lunev não compreendia muito bem a atitude de Paulo em relação aos patrões, mas esse estado de espírito agradava-lhe confusamente. E disse-lhe, num tom de afectuosa boa disposição:
- Lá que tu te pareces com um bode, é verdade: és seco e duro como esse animal. Queres saber? Tens algo de comum com Perfichka. Está combinado, vai a minha casa amanhã buscar o dinheiro para os primeiros tempos, enquanto não tiveres trabalho... Eu, agora, vou ver o Tiago... Em que termos estás com ele?
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- Ah!, assim... A coisa não liga entre nós! - confessou Gratchev.
- Ele é infeliz - disse Ilia, pensativo.
- Lá isso, cada qual tem o seu quinhão! - respondeu Paulo, encolhendo os ombros. - Cada vez me convenço mais de que ele não tem o juízo perfeito... É um original...
Quando Ilia já se afastava, o amigo gritou-lhe do meio do corredor:
- Obrigado, meu velho!
Ilia sorriu-lhe, acenando-lhe com a cabeça.
Foi encontrar Tiago triste e abatido. Deitado na cama, de nariz voltado para o tecto, não notou a aproximação de Ilia, apesar de manter os olhos abertos.
- Levaram o Nikita para outra enfermaria - disse ele a Lunev em voz cansada.
- Ainda bem! Ele metia medo...
Tiago lançou-lhe um olhar de censura e pôs-se a tossir.
- Estás melhor?
- Estou! - suspirou Tiago. - Não consigo estar tão doente como queria... Meu pai veio-me visitar ontem. Disse que tinha comprado uma casa. Quer abrir um bar. E tudo isto é sobre mim que recai...
Ilia estava desejoso de partilhar a alegria que ressentia com o camarada, mas havia qualquer coisa que o impedia de falar.
Um alegre sol primaveril penetrava suavemente pela janela, mas as paredes do hospital tornavam-se ainda mais amarelas. Fortemente iluminado, o estuque apresentava-se com mais manchas e gretas. Dois doentes, sentados nas camas, jogavam às cartas em silêncio. Um homem alto e magro andava de um lado para o outro, na enfermaria, sem fazer ruído; a sua cabeça, coberta por ligaduras, descaía-lhe para a frente. Não se ouvia barulho algum, a não ser uma tosse sufocante algures e, no corredor, o arrastar das chinelas. O rosto amarelado de Tiago estava inerte, o seu olhar sem vida.
- Ai!, mais valia morrer! - dizia o doente num tom arrastado. - Estou para aqui a pensar que deve ser interessante morrer!-A sua voz baixou ainda, não passando de um cicio:-Anjos amáveis... com resposta para tudo...
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explicando tudo...-Calou-se, as pálpebras estremeceram-lhe e o olhar ficou preso ao movimento de um pálido raio de sol reflectido no tecto. - E Macha, não a viste?
- Não. Saiu-me da ideia...
- Dize antes: do coração...
Envergonhado, Lunev manteve-se um instante silencioso. Tiago soltou -um suspiro e começou a mover a cabeça de um lado para o outro na almofada.
- Olha o Nikita, por exemplo: de nada lhe serve não querer, vai mesmo morrer... O enfermeiro disse-mo... vai morrer! E eu, que o queria, não morro... Vou-me curar, regressar ao botequim... sem préstimo para coisa alguma...
Os seus lábios entreabriram-se lentamente num pálido sorriso. Fitou o camarada de maneira estranha e prosseguiu:
- Para viver esta vida, é preciso ter costelas de ferro, um coração de ferro...
Ilia notava hostilidade nas palavras de Tiago, hostilidade e frieza, e franziu as sobrancelhas.
- E eu sou como um objecto de vidro no meio de pedras: mal me volto, uma racha...
- Como gostas de te lamentar! - disse Lunev, num tom mal seguro.
- E tu? - perguntou Tiago.
Ilia desviou o olhar e calou-se. Depois, vendo que Tiago não se mostrava disposto a conversar, disse, meditativo:
- A vida é dura para todos. Vê o Paulo, por exemplo...
- Não gosto dele - replicou o outro com expressão de desagrado.
- Porquê?
- Assim... Não gosto dele...
- Bem!... tenho de me ir embora.
Tiago estendeu-lhe a mão em silêncio e subitamente, com voz lamurienta de mendigo, pediu-lhe:
- Informa-te a respeito da Macha, hem? Pelo amor de Deus!...
- Está bem! - disse Ilia.
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Deixou a enfermaria com um suspiro de alívio. O pedido de Tiago referente a Macha fizera-o sentir uma espécie de vergonha quanto à sua atitude para com a filha de Perfichka e decidiu ir ter com Matitsa, que devia saber como vivia a rapariga.
Encaminhava-se para o botequim de Filimonov e pelo espírito perpassavam-lhe sucessivamente os sonhos de futuro. A sorte sorria-lhe e, perdido nos seus pensamentos, ultrapassou o estabelecimento sem dar por isso; quando o verificou, já se não sentia na disposição de voltar atrás. Saiu da cidade: os campos espraiavam-se, delimitados, ao longe, pela muralha escura da floresta. O Sol estava no ocaso, tingindo de rosa o verde fresco da erva despontante. Ilia caminhava de cabeça deitada para trás, o olhar afundado na profundidade dos céus, no ponto em que as nuvens avermelhadas, imóveis por cima da Terra, flamejavam sob os raios do Sol. Sentia prazer em andar: cada passo em frente, cada gole de ar, suscitavam-lhe um novo sonho. Via-se rico e poderoso, a arruinar Petrukha Filimonov. Arruinara-o, e Petrukha, em lágrimas, estava postado à sua frente, e ele, Ilia, dizia-lhe:
"Ter dó de ti? E tu, já sentiste porventura dó de alguém? Não foste tu que torturaste o teu filho? Que impeliste o meu tio para o pecado? Que troçaste de mim? Na tua maldita casa, ninguém era feliz, ninguém aí soube o que era a alegria. Era uma prisão para os homens, a tua casa podre."
Petrukha tremia e gemia de medo em frente dele, miserável como um mendigo. E Ilia ameaçava-o:
"Lançarei fogo à tua casa, porque ela é para todos causa de desgraça. Quanto a ti, vai mendigar, vai implorar caridade àqueles que ofendeste. Arrasta-te, assim, até ao teu último dia e estoira como um cão!..."
A escuridão do entardecer envolvia o campo; a floresta, lá longe, era densa como uma montanha. Um morcego, pequenina mancha negra, cruzava o espaço sem ruído e dir-se-ia que andava semeando trevas. Ouvia-se a grande distância, na ribeira, o baque das rodas de um barco nas águas; parecia que, nalgum ponto afastado, andava voando um pássaro imenso, cujas enormes asas cortavam os ares
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em golpes violentos. Lunev passava em revista todos os que lhe tinham feito mal e castigava-os impiedosamente. E assim o seu prazer mais crescia... Só, no campo envolvido por todos os lados pelas trevas, Ilia entoou a meia voz uma canção...
Mais eis que o ar lhe trouxe um cheiro a podridão e a esterco azedo. Ilia parou de cantar: este odor pestilento despertara-lhe gratas recordações. Tinha chegado ao vazadouro municipal, à ravina onde ia rebuscar o lixo com o avô Jeremias. A sua memória devolveu-lhe a imagem do velho trapeiro. Olhou em volta, procurando o sítio onde o velhote gostava que se repousassem. Mas esse sítio já não existia: tinha certamente sido atulhado com detritos. Suspirou profundamente, compreendendo que também na sua alma qualquer coisa ficara enterrada sob o lixo...
"Se não tivesse morto aquele comerciante, viveria absolutamente feliz agora...", pensou de súbito. Mas logo outra voz respondeu dentro do seu coração:
"O quê, o comerciante? Representa a minha desgraça, e não o meu pecado..."
Ouviu-se um ruído: um cãozito roçou-se pelas pernas de Ilia e sumiu-se, ganindo frouxamente. Lunev estremeceu: à sua frente, parte da escuridão nocturna parecia ter-se animado, para desaparecer gemendo.
"De qualquer maneira", pensou Ilia, "mesmo sem o comerciante, não haveria paz no meu coração. De quanta humilhação fui testemunha, tanto para mim como para os outros! Uma vez ferido, o coração faz sempre sofrer..."
Seguia lentamente à beira da ravina, enterrando os pés na imundície, fazendo estalar pedacitos de madeira, ranger papéis velhos. Uma faixa de terreno, liberta de lixo, abria-se à sua frente, avançando para a ravina, como um estreito promontório; meteu por aí fora e, chegado ao fim, sentou-se, com as pernas balouçando no vácuo. O ar aí era mais fresco, e, varrendo a ravina com o olhar, Ilia viu, lá ao fundo, a fita de aço da ribeira. Sobre a água, imóvel como gelo, brilhavam as luzes dos barcos invisíveis; uma delas balouçava-se na escuridão como um pássaro vermelho; outra, verde e sinistra, luzia imóvel, sem emitir raio algum. Aos pés de Ilia, a ravina abria uma bocarra imensa cheia de densas trevas e lembrava uma grande ribeira onde
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corressem em silêncio vagas de ar negro. A tristeza apossou-se da alma de Lunev; contemplava a ravina e dizia para consigo: "Sentia-me bem, há pouco... tudo me sorria, e depois acabou-se..." Recordou-se do tom de hostilidade que Tiago empregara naquele dia e a sua tristeza aumentou... Um ruído abafado percorreu a ravina: algum torrão que se desprendera. Ilia estendeu o pescoço e olhou para baixo, através do escuro... Uma lufada de ar frio e húmido fustigou-lhe o rosto. Contemplou o céu: luziam já, timidamente, algumas estrelas; por trás da floresta subia, com lentidão, o grande globo avermelhado da Lua; parecida a um olho enorme. E, tal como há pouco o morcego na escuridão, ideias e recordações tristes cruzaram o espírito de Ilia, passando e desaparecendo sem resposta, enquanto dentro dele as trevas se adensavam.
Permaneceu assim durante muito tempo, a pensar, ora olhando para a ravina, ora para o céu. A luz da Lua, que começava a penetrar suavemente na ravina, deixou vislumbrar na encosta fendas profundas e silvados. Estes últimos formavam no solo sombras disformes. No céu só se viam a Lua e as estrelas.-O frio apertou; Ilia pôs-se de pé e, tremendo por causa da frigidez da noite, dirigiu-se em passos lentos, através dos campos, para as luzes da cidade. Já não tinha vontade de pensar fosse no que fosse: naquele momento, já não sentia senão a despreocupada frieza e o triste vazio que descobria no céu, onde antes sentia a presença de Deus.
Chegou tarde a casa e parou, hesitante, em frente da porta, não se atrevendo a tocar. Não se via luz nas janelas, os donos da casa deviam, pois, estar a dormir. Envergonhava-o incomodar Tatiana, e era sempre ela quem vinha abrir... Mas, no entanto, era preciso entrar. Lunev puxou de mansinho pela sineta. A porta abriu-se quase a seguir e em frente dele surgiu a figura frágil da dona da casa, toda de branco.
- Feche depressa!--disse ela numa voz que Ilia não reconhecia. - Está frio... e eu despida... Meu marido não está em casa...
- Desculpe-me - balbuciou o hóspede.
-- Que tarde que você vem! Por onde andou, hem ?
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Ilia fechou a porta e voltou-se, sem responder: o seu peito esbarrou no busto da mulher. Ela não recuara, parecia antes querer apertar-se de encontro a ele. Encostado à porta, Ilia não podia sair dali. E Tatiana soltou um risinho nervoso. Lunev ergueu os braços e pousou, com cuidado, as mãos nos ombros daquela mulher que o fazia tremer de timidez e desejo. Então ela própria, num movimento espontâneo, lançou-lhe os braços finos e escaldantes à volta do pescoço e disse, numa voz sonora:
- Porque andas lá por fora a estas horas da noite? Que procuras? Tens o que precisas junto de ti... querido! És belo!.,, és forte!...
Como num sonho, Ilia aceitava os seus beijos violentos e cambaleava sob os movimentos convulsivos daquele corpo ágil. Ela, agarrada a ele como um gato, continuava a beijá-lo. Tomando-a nos braços musculosos, Ilia levou-a para o seu próprio quarto. Transportava-a em passos rápidos e leve", como se planasse no e.spaço...
Na manhã seguinte, Ilia despertou com um grande peso na alma.
"Como poderei agora olhar de frente para Kirik?", perguntou-se. Ao receio que sentia do inspector vinha juntar-se um sentimento de vergonha.
"Se ao menos lhe tivesse rancor por qualquer razão, ou se antipatizasse com ele... Mas assim... ofendi-o sem ter motivo algum para o fazer", pensava, angustiado, e crescia dentro de si uma espécie de ressentimento em relação a Tatiana. Parecia-lhe que Kirik devia forçosamente descobrir a traição da mulher.
"E porque se lançou ela nos meus braços como uma esfaimada?", interrogava-se, tomado por uma desagradável perplexidade, mas logo a seguir sentiu-se agradavelmente lisonjeado no seu amor-próprio. Fora distinguido por uma verdadeira mulher, limpa, instruída, uma mulher casada.
"Quer dizer que tenho algum interesse especial...", pensou de repente com satisfação. "É vergonhoso, vergonhoso... mas eu não sou de ferro!... Não havia de a mandar passear..."
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Era novo: lembrou-se das carícias daquela mulher, carícias singulares, que até ali desconhecera. E era prático: pensou, mesmo sem querer, que esta ligação podia trazer-lhe diversas vantagens. A estas ideias encadeavam-se outras, envolvendo-o num espesso véu.
"Eis-me num beco sem saída... Fi-lo por querer? Respeitava esta mulher... Nunca tive qualquer pensamento desonesto acerca dela, e veja-se o que sucedeu..."
Seguidamente, toda a perturbação que lhe ia na alma, todas as contradições, se esfumaram perante a ideia fascinante de que uma vida verdadeira, uma vida decente, ia em breve começar para ele. E de novo surgiu a obsessão:
"Melhor teria sido, em todo o caso, que isto se não desse..."
Esperava, para se levantar, que Avtonomov saísse de casa e ouvia o inspector dizer à mulher, ciando gulosos estalidos com a língua:
- Faz-me pelmênis 1 para o jantar, Tânia. Põe um poucochinho mais de carne de porco e depois, já sabes, fá-los corar levemente. Para que eles olhem para mim no prato como porquinhos cor-de-rosa, minha querida... mmm-m? E não deixes de pôr um pouco mais de pimenta, minha linda.
- Mas, filho! Como se eu não conhecesse os teus gostos...-respondia ternamente a mulher.
- Minha pombinha, minha querida Tatiana, dá cá mais um beijinho!
Ao ouvir o ruído do beijo, Lunev enervou-se. Achava aquela cena ridícula e desagradável.
Avtonomov beijava a mulher ruidosamente. E ela ria.
Mal fechara a porta ao marido, Tatiana correu para o quarto de Ilia e saltou-lhe para cima da cama, dando um grito de alegria.
- Beija-me depressa, estou sequiosa! Ilia, mal-humorado, disse-lhe:
- Mas acaba de beijar o seu marido...
- Quê-ê? Não me tratas por tu? Ai!, mas ele é
1 Os pelmênis são umas bolinhas recheadas com carne picada.
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ciumento!... - exclamou ela satisfeita, saltando da cama, rindo, para ir correr os reposteiros. - Ser ciumento é óptimo! Os ciumentos amam apaixonadamente...
- Não disse isso por ciúme...
- Caluda! - ordenou ela, brincalhona, tapando-lhe a boca com a mão...
Mais tarde, quando se saciaram de beijos, Ilia não conseguiu deixar de dizer:
- Nada te faz medo, gostas do risco. Fazeres uma destas mesmo nas bochechas do teu marido!...
Os olhos verdes de Tatiana brilharam de desafio; e disse:
- É a coisa mais natural deste mundo, não vejo porque te espantas! Estás convencido de que há muitas mulheres que não têm a sua aventurazita? Só as feias ou as doentes... Mas uma mulher bonita deseja sempre distrair-se um poucochinho...
E passou a manhã inteira a instruir Ilia. contando-lhe, alegremente, histórias ilustrativas da maneira como as mulheres enganam os maridos. Vestida com um avental e uma blusa vermelha, de mangas arregaçadas, ligeira e precisa, rodopiava com a destreza de um pássaro pela cozinha, entregue à preparação dos pelmênis do marido, e a sua voz ecoava sem cessar no quarto de Ilia.
- Um marido, imagina! É coisa que baste a uma mulher? Um marido pode muito bem não satisfazer, mesmo que se goste dele. E, de resto, ele próprio também não pede licença para enganar a mulher, logo que a ocasião se lhe apresenta... E a mulher também se aborrece por ter a vida inteira um único motivo no pensamento: o marido, o marido, o marido! Diverte brincar um pouco com outro homem: fica-se assim a saber quais as espécies de homem que existem e quais são as diferenças entre essas espécies. Até no kvas há diferenças: kvas ordinário, kvas bávaro, kvas de genebra, kvas de cânhamo... Seria estúpido beber sempre kvas ordinário...
Ilia escutava, enquanto ia tomando o chá, e sentia-se chocado. Havia nas palavras daquela mulher algo de novo e de insólito para ele. Involuntariamente, lembrava-se de Olímpia, da sua voz cheia, dos seus gestos calmos e das suas
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palavras ardentes, em que vibrava uma força que lhe entrava no coração. Não havia dúvida de que Olímpia era uma ignorante, uma mulher do povo. Mas, talvez por isso mesmo, até no impudor se mantinha simples... Ilia escutava Tatiana com um sorriso forçado. Sentia-se triste e só ria porque não sabia que assuntos abordar, nem como falar com aquela mulher. Interessava-se, porém, profundamente, pelo que ela dizia e acabou por lhe confessar pensativo:
- Não supunha que na vossa vida, tão decente, houvesse destes costumes...
- Os costumes, meu caro, são os mesmos em todos os lados. São os homens que os fazem, e os homens pretendem todos a mesma coisa: viver bem, sossegadamente, comer do melhor, gozar do maior conforto, e para tal é preciso dinheiro. O dinheiro obtém-se por herança ou por sorte. Aquele que apanha bilhetes premiados pode contar com a felicidade. Uma mulher bela tem um bilhete premiado, que lhe foi dado pela natureza: a beleza. A beleza pode render muito, não haja dúvida! Mas para quem não tem pais ricos, nem bilhetes premiados, nem beleza, só resta trabalhar muito. Afadigar-se a vida inteira, não é animador... Eu, por exemplo, trabalho, apesar de ter dois bilhetes. Mas decidi servir-me deles contigo na loja... Dois bilhetes, é pouca coisa! Cozinhar pelmênis e beijar um inspector cheio de borbulhas é aborrecido!... E então senti o desejo de te beijar!
Olhou para Ilia e perguntou-lhe, com expressão brejeira:
- Não estás enojado, pois não?... Porque estás assim zangado?
Aproximou-se dele, pôs-lhe as mãos nos ombros e observou-o com curiosidade.
- Não estou zangado - disse Ilia. Ela, rindo, exclamou:
- Ai, não? Fico-te muito agradecida!...
- Queres saber o que penso? - continuou Ilia, tentando exprimir-se o mais claramente possível: - Tu falas como se tudo estivesse certo... Mas, de certa maneira, não está certo...
- Oh, oh! Que... brutote! O que é que não está certo ? Anda, explica!
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Mas ele era incapaz de explicar. Nem ele próprio sabia com exactidão porque lhe desagradavam as palavras dela. A linguagem de Olímpia era bem mais grosseira, mas nunca a sua primeira amante o ferira da maneira desagradável que aquele passarito asseadinho o fazia. Andou magicando durante o dia inteiro no estranho desagrado que lhe causava esta ligação, apesar de tudo lisonjeira, incapaz de chegar a qualquer conclusão satisfatória.
Quando regressou a casa, à noite, Kirik recebeu-o efusivamente, na cozinha:
- Nem queiras saber o que a Tatiana cozinhou hoje! Uns pelmênis que até se lamenta, se tem vergonha de comer... Vergonha como se devorássemos rouxinóis vivos... Meu caro, deixei um prato deles de propósito para ti. Larga aí o teu mostruário, senta-te, come e vê o que se sabe fazer cá em casa!
Ilia lançou-lhe um olhar de culpa e, num sorriso, disse-lhe:
- Obrigado!
Depois acrescentou com um suspiro:
- O senhor é um bom homem... Palavra de honra!
- Ora vamos! -? exclamou Kirik, fazendo um largo gesto de protesto. - Uma pratada de pelmênis é uma ninharia! Não, meu velho, se eu fosse chefe da polícia, então, sim, poderias dizer-me obrigado... é claro! Mas eu nunca serei chefe da polícia... e vou mesmo deixar a polícia... Talvez entre para uma casa comercial, como procurador... É muito melhor! Um procurador é alguém!
A mulher estava atarefada junto ao fogão, cantarolando. Ilia olhou para ela e sentiu-se de novo pouco à vontade. Mas, pouco a pouco, esse sentimento desvaneceu-se perante o afluxo de outras impressões e de novos cuidados. Não tinha tempo para pensar durante o dia inteiro: havia muito que fazer para montar a loja e comprar a mercadoria. E de dia para dia ia-se habituando, insensivelmente, àquela mulher. Ela agradava-lhe cada vez mais como amante, apesar de as suas carícias lhe inspirarem, frequentemente, vergonha e até medo. E vindo-se somar às conversas que tinham juntos, essas carícias deitavam por terra todo o respeito que sentira outrora por ela. Todas as manhãs, depois de ter acompanhado
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à porta o marido, que ia para o trabalho, ou à noite, quando Kirik estava de serviço, Tatiana chamava Ilia para junto dela ou ia ter com ele ao quarto e contava-lhe um sem-fim de anedotas acerca da vida quotidiana. Todas essas histórias se baseavam na mesma deteriorada simplicidade, como se ocorressem todas num país povoado de trapaceiros de ambos os sexos, que andassem nus e retirassem o maior prazer do pecado colectivo.
- Mas é possível ? - perguntava Ilia abismado. Não queria acreditar nas palavras dela, mas não possuía argumentos para as contradizer, nem as podia desmentir. E ela ria, muito divertida, beijava-o e demonstrava-lhe, convincente :
- Comecemos por cima: o governador vive com a mulher do director das finanças, o qual, por sua vez, raptou a mulher de um dos seus subordinados. Alugou-lhe uma casa na Travessa Sobatchi e vai vê-la duas vezes por semana, bem às claras. Eu conheço-a, é uma verdadeira menininha, tinha-se casado apenas há um ano. E o marido dela foi mandado para um distrito, com o posto de inspector de impostos. Também o conheço, é um inspector incrível! Incapaz, cretino, um lacaiozito...
Ela falava-lhe dos comerciantes que compram adolescentes para as suas orgias, das mulheres dos comerciantes que têm amantes por conta, das jovens da alta sociedade que fazem abortos.
Lunev ouvia-a e a vida parecia-lhe um caixote do lixo. onde as pessoas fervilhavam como vermes.
- Fu!-exclamava ele, enjoado. - Mas, dize-me, haverá, em qualquer lado, alguma coisa de verdadeiro, de limpo?
- De verdadeiro? - admirava-se ela. - Mas o que eu te estou a dizer é verdadeiro... Que pândego que tu és! Não se trata de invenções minhas!
- Não é isso que eu quero dizer! Haverá ou não, em qualquer lado, algo de verdadeiro... de limpo?
Ela não o entendia e punha-se a rir. Por vezes, as suas conversas tomavam rumo diferente. Fitava-o com os seus
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olhos verdes, onde relampejava uma luz inquietante. e interrogava-o :
- Conta-me como soubeste pela primeira vez o que é uma mulher...
Essa recordação envergonhava Ilia, repugnava-lhe. Evitando o olhar exigente da amante, censurava-a em voz surda:
--Queres saber cada porcaria... devias ter vergonha...
Mas ela ria muito alegre e teimava; e, junto dela, Lunev sentia-se, por vezes, como se estivesse coberto de pez pelas suas palavras impudicas. Mas vendo, pela expressão, que ele não estava contente com ela, que tinha os olhos tristes, a mulher espicaçava ardilosamente a sua sensualidade e contrapunha à hostilidade do jovem amante as mais sábias carícias...
Certo dia, ao regressar da loja, onde os carpinteiros estavam a montar as prateleiras, Ilia teve a surpresa de encontrar Matitsa à espera dele na cozinha. A prostituta estava sentada junto da mesa, em que se apoiavam os seus braços fortes, e falava com a dona da casa, a trabalhar de pé, junto ao fogão.
- Olhe - disse Tatiana com um sorriso, indicando Matitsa num movimento de cabeça - esta senhora está à sua espera... já há muito tempo!
- Boas noites!-saudou a senhora, erguendo-se com dificuldade e afastando o banco.
- Imagine-se! - soltou Ilia. - Ainda estás viva?
- A erva daninha, nem o Diabo a quer - respondeu Matitsa na sua voz cava.
Há muito que Ilia a não via; observava-a, agora, num misto de prazer e dó. Envergando um vestido de grosseiro tecido felpudo, todo roto, tinha o cabelo coberto com um lenço ruço pelo tempo e estava descalça. Movendo as pernas com custo, apoiando-se à parede com ambas as mãos, encaminhou-se devagar para o quarto de Ilia e deixou-se aí cair pesadamente na cadeira, dizendo num tom baço:
- Estoiro em breve... As pernas já não aguentam comigo... e sem elas não posso ir procurar de comer... e então acabou-se...
O seu rosto estava horrivelmente inchado, todo coberto de manchas escuras, e os grandes olhos de antigamente não
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passavam agora de duas estreitas fendas sob as pálpebras volumosas.
- Porque me olhas com o rabo do olho? - perguntou a Ilia. - Julgas que me bateram? Não, isto é a doença que me desfigura...
- Como vives ? - quis saber Ilia.
- Dão-me umas esmolas, às portas das igrejas... articulou Matitsa. - Vim cá porque preciso de falar contigo... Soube pelo Perfichka que vivias em casa de um funcionário e decidi vir...
- Queres chá? -- propôs Lunev. A voz sem cor de Matitsa e o espectáculo do seu pesado corpo mole e a apodrecer provocavam-lhe uma sensação penosa.
- Que cem diabos carreguem com o teu chá para as profundezas do Inferno... Dá-me mas é cinco copeques... Por que razão cá vim eu, dize lá?
Custava-lhe falar, ofegava e emanava dela um cheiro pestilento.
- Porquê? - perguntou Ilia, e afastou dela o olhar, pensando quanto a tinha ferido, outrora...
- A Macha, ainda te lembras dela? Tu deitaste a memória fora!... Tornaste-te um ricaço...
--A Macha, sim... como vai ela? - apressou-se a interrogar Ilia.
Matitsa abanou lentamente a cabeça e replicou, com secura:
- Ainda se não enfarcou...
- Desembucha! - vociferou Ilia, colérico. -- O que é que me censuras? Foste tu própria quem a vendeu por uma nota de três rublos...
- Não é a ti a quem eu faço -censuras... É a mim mesma... - respondeu, tranquilamente, a mulher, e, em voz opressa, começou a contar-lhe o que sabia de Macha.
O velho com quem casara era ciumento e torturava-a. Não a deixava ir a sítio algum, nem sequer à loja. Macha ficava em casa com as crianças e até para ir ao pátio precisava de licença. Ultimamente, o velho confiara os filhos a uma pessoa qualquer e ficara sozinho com Macha. Maltratava-a, porque a primeira mulher o tinha enganado... e
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porque os dois filhos não eram dele. Macha já tinha fugido duas vezes de casa, mas a polícia levara-a de novo ao marido, que para a castigar lhe infligia maus tratos e a privava de comida.
- Não resta dúvida de que tu e o Perfichka fizeram um lindo trabalho!--murmurou, abatido, Ilia.
- Eu estava convencida de que seria melhor para ela
- dizia a pobre mulher, na sua voz inexpressiva. - Deveríamos ter feito pior ainda... Vendê-la a um rico... Ele ter-lhe-ia dado roupas, casa e tudo... Depois ela corria com ele e vivia sozinha... Há muitas que vivem assim... à custa de algum velho...
-Pronto... E porque vieste ter comigo? - perguntou Ilia.
- Vives em casa de um polícia... São eles que a caçam sempre... Dize-lhe que a não voltem a apanhar... que a deixem ir-se embora! Talvez possa fugir para qualquer lado... Não haverá, realmente, sítio onde a gente se ponha a salvo?
Ilia reflectia. Que poderia ele fazer por Macha? Movendo as pernas com dificuldade, Matitsa levantou-se.
- Adeus!.,. Em breve estoiro... - disse ela por entre dentes. - Obrigadinha... vives no asseio. Um ricaço!...
Depois de ela sair a custo pela porta da cozinha, Tatiana precipitou-se para o quarto de Ilia e, abraçando-se a ele, perguntou-lhe, rindo:
- Era o teu primeiro amor, hem?
Ilia libertou-se do abraço da amante, que se lhe prendera com força ao pescoço, e comentou:
- Ela mal se pode mexer e... ainda quer interferir por alguém de quem gosta...
- De quem é que ela gosta? - perguntou a mulher, espantada, observando com curiosidade o rosto preocupado de Lunev.
- Larga-me, Tatiana --disse este último-. anda! Não estejas a brincar...
E contou-lhe resumidamente a história de Macha, perguntando-lhe no fim:
- O que é que se poderá fazer?
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- Não há nada a fazer! - replicou Tatiana, encolhendo os ombros estreitos. - Segundo a lei, a mulher pertence ao marido e ninguém tem o direito de lha tirar...
com a importância de alguém que conhece bem os códigos e está convencido da sua intangibilidade, Avtonomova expôs longamente a Ilia a obrigação em que Macha se encontrava de se submeter às exigências do marido.
?- A única coisa que pode fazer é esperar. Ele é velho, morrerá em breve, ela ficará livre, tudo o que ele possui lhe pertencerá... E tu casarás com uma jovem viúva... rica... hem?
Tatiana riu e depois, pondo-se de novo muito séria, recomeçou com as suas lições:
- Mas seria preferível que tu cortasses com as tuas antigas amizades. Agora, já te não convêm... e podem até colocar-te em situações embaraçosas. Todos os teus antigos conhecimentos são sujos, grosseiros... como aquele a quem emprestaste dinheiro, por exemplo. Aquele rapaz magro... com cara de mau...
- Gratchev...
- Sim... que esquisitos nomes de pássaros se encontram na gente do povo: Gratchev, Lunev, Petukhov, Skvortsovl... No nosso meio, até os nomes soam melhor, são mais bonitos: Avtonomov! Korsakov! Meu pai chamava-se Florianov! E quando eu era solteira havia um estudante que me namorava e se chamava Gloriantov... Uma vez, na patinagem, tirou-me uma liga da perna e ameaçou-me com um escândalo, caso eu não a fosse buscar, pessoalmente, a casa dele...
Ilia escutava-a e recordava-se do seu próprio passado, sentindo que na sua alma havia amarras que o prendiam com força à casa de Petrukha Filimonov. E pareceu-lhe que essa casa o não deixaria nunca viver totalmente em paz...
1 Gratchev deriva, com eleito, de gratch, que significa corvo; Lunev, de Lun: bútio; Petukhov, de petukh: galo; Skvortsov, de skvorets: estorninho. Os nomes Avtonomov e Korsakov têm verosimilmente origem estrangeira, a qual ainda é mais sensível em nomes tais como Florianov ou Gloriantov, que, para um ouvido russo, tomam uma consonância bastante invulgar. (N. do T. francês.)
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Por fim, o sonho de Ilia Lunev realizou-se.
Txansbordante de suave alegria, passava o dia inteiro atrás do balcão da loja e embevecia-se. Nas prateleiras, por todos os lados, enfileiravam-se, ordenadamente, caixas de madeira ou de cartão que faziam lindo efeito. Na vitrina expusera fivelas cintilantes, sacos de mão, sabonetes, botões e, penduradas, fitas de cores e rendas. Tudo era vistoso e leve. com ar circunspecto, bonito rapaz, ele acolhia os clientes com uma saudação de bom tom e apresentava-lhes habilmente os artigos em cima do balcão. O frufru das fitas e das rendas soava-lhe como música maviosa; achava bonitas e encantadoras as costureirinhas que lhe vinham comprar uns copeques de mercadoria. A vida tornara-se-lhe agradável, leve, tomara um sentido simples e claro, o passado parecia desaparecer por trás de um véu de nevoeiro. E não tinha de pensar senão no seu negócio, na mercadoria, nos clientes... Tomara a seu serviço, para o ajudar, um garoto, para quem mandara fazer um casaco cinzento; fazia-o lavar-se cuidadosamente e apresentar-se tão asseado quanto possível.
- Vendemos artigos delicados, Gavrik -? dizia-lhe -, e temos de andar limpos...
Gavrik era um rapazito dos seus 12 anos, forte, levemente picado das bexigas, de nariz arrebitado e olhitos cinzentos num rosto expressivo.
Acabava de sair da escola da câmara e considerava-se um adulto, um verdadeiro homem. Também ele se interessava pelo trabalho na lojita bem arranjada; procurava de bom grado a mercadoria nas diversas caixas e esforçava-se por ser tão afável com os clientes como o patrão.
Ao observá-lo, Ilia recordava-se da sua própria aprendizagem na peixaria do mercador Strogany. Sentia-se atraído pelo rapazito e, quando não havia fregueses, conversava afectuosamente com ele.
- Para te não aborreceres, quando não tens que fazer, lê livros - aconselhava Lunev ao ajudante. - Enquanto se lê, o tempo passa sem nos apercebermos, e ler é agradável...
Lunev mostrava-se amável e atencioso para com todos, como se dissesse: "Eu tive sorte, sabem... Mas, tenham
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paciência! A sorte também lhes virá em breve bater à porta, hão-de ver..."
Abria a loja às sete da manhã e fechava-a às nove da noite. A clientela não era muito numerosa e Lunev, sentado numa cadeira perto da entrada, aquecia-se ao sol primaveril e descansava sem pensar em nada, sem mais nada desejar. Gavrik também se sentava à porta e observava os transeuntes, macaqueava-os, chamava os cães, lançava pedras aos pombos e aos pardais ou lia, fungando de excitação. Às vezes, por ordem do patrão, lia em voz alta, mas a leitura não interessava a Ilia. Só estava atento ao silêncio e à paz da sua própria alma. Tomava consciência desta paz e. embevecia-se com ela, paz que para ele era nova e agradável para além de qualquer descrição. Mas, de tempos a tempos, esta doce plenitude era perturbada: um sentimento estranho que surgia, apenas perceptível, angustiante. Não chegava a toldar a calma do seu coração, perpassava simplesmente, com a leveza de uma sombra.
Entabulava então conversa com o garoto.
- Ouve lá, Gavrik! O que é que o teu pai faz?
- É carteiro, leva as cartas...
- E são muitos lá em casa?
- Ah, sim! Somos muitos. Há os grandes e os que são ainda pequenos.
- Quantos pequenos?
- Cinco. E grandes, três... Os grandes já trabalham todos: eu cá na loja, Vassili na Sibéria, no telégrafo, e a Sônia dá lições. Ela está muito bem!, ganha os seus doze rublos por mês. E há ainda o Michka... Esse, é assim assim... É mais velho do que eu... Anda no liceu...
- Quer dizer: os grandes não são três, mas sim quatro...
- O quê? - exclamou Gavrik, e acrescentou, sentencioso: - O Michka ainda está a estudar... Grandes são os que trabalham.
- Vocês não são ricos?
- É claro que não! -- respondeu tranquilamente Gavrik, fungando com ruído. E lançou-se na exposição dos seus projectos de futuro.
- Quando for crescido, serei soldado. Haverá guerra... Eu então vou para a guerra. Sou valente... Atirar-me-ei logo
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ao inimigo, antes de todos, e arrancar-lhe-ei a bandeira... O meu tio fez isso e o general Gtirko deu-lhe a cruz e cinco rublos...
Ilia sorria, observando o rosto um pouco bexigoso e o nariz arrebitado, sempre em movimento. À noite, depois do encerramento da loja, Ilia passava para o quarto, instalado na divisão anexa. O samovar, arranjado pelo garoto, já estava a ferver em cima da mesa, ao lado do pão e do salsichão. Gavrik tomava um copo de chá, com um pedaço de pão, e ia dormir para o estabelecimento; mas Ilia deixava-se ficar junto do samovar, por vezes durante duas horas seguidas...
Duas cadeiras, uma mesa, um leito e um aparador constituíam o mobiliário do seu novo alojamento. O quarto era exíguo, de tecto baixo, e pela janela quadrada viam-se as pernas dos transeuntes, o telhado de uma casa, do outro lado da rua, e o céu por cima. Ele tinha guarnecido com uma cortina de musselina branca a janela, que do lado de fora era protegida por grades que desagradavam muito a Ilia. Por cima da cabeceira da cama pendurara uma imagem: As Fases da Vida Humana. Ilia gostava imenso deste quadro; há muito que pretendia comprá-lo, mas não o fizera antes de abrir a loja, não obstante custar apenas dez copeques.
"As fases da vida humana" formavam um semicírculo, sob o qual estava representado o Paraíso. Nele se via Jeová, rodeado por uma auréola de luz e flores, conversando com Adão e Eva. Havia ao todo dezassete fases. Na primeira estava uma criança amparada pela mãe e por baixo, numa inscrição em letras vermelhas, lia-se: "Os primeiros passos." Na segunda, a criança batia tambor, saltitando, e a inscrição dizia: "Aos 5 anos, brinca." Aos 7 anos "começa a estudar", aos 10 "vai à escola", aos 21 aparece com uma espingarda na mão e um sorriso nos lábios e a inscrição dessa fase diz: "Está na tropa." Na fase seguinte já tem 25 anos: veste casaca, tem uma cartola numa das mãos e um ramo de flores na outra, "noivo". Seguidamente cresceu-lhe a barba, envergou uma comprida sobrecasaca, pôs uma gravata cor-de-rosa e está de braço dado com uma senhora nutrida, de vestido amarelo. Depois já ultrapassou os 35 anos: em mangas de "camisa, com os antebraços à
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mostra, dobrado sobre a bigorna, malha o ferro. No ponto mais elevado da escala, sentado num cadeirão forrado de vermelho, lê o jornal, escutado pelos quatro filhos e pela mulher. Tanto ele como os seus estão vestidos com correcção e asseio, todos têm aspecto são e satisfeito. Tem, então, 50 anos. A seguir, as fases entram na descida: a sua barba torna-se grisalha, veste um longo cafeta amarelo, tem numa mão um saco de peixe e na outra um pote, cujo conteúdo se não distingue. Por baixo lê-se: "Trabalhos domésticos"; na imagem seguinte embala nos braços o neto; mais baixo ainda, "é guiado" porque já tem 80 anos, e na última fase atingiu os 95 anos: está sentado num cadeirão, com os pés dentro do caixão, e por trás dele vê-se a Morte, com a foice na mão...
Sentado junto do samovar, Ilia apreciava o quadro e encnntava-o ver a vida do homem tão exacta e simplesmente demonstrada. Emanava do quadro uma atmosfera de paz, as cores vivas atraíam suavemente, como se quisessem persuadir que representavam assim, sagazmente, um exemplo para os. homens, a vida verdadeira, tal qual se deve desenrolar. Observando esta representação da vida humana, Lunev dizia para consigo que atingira o que ambicionara e que, doravante, a sua vida decorreria com uma pontualidade em tudo semelhante à que estava exemplificada no quadro. Como a deste último, a vida dele descreveria uma curva ascendente e chegado ao cume, quando tivesse junto dinheiro suficiente, casaria com uma jovem modesta e instruída...
O assobio do samovar tornou-se mais fraco, mas ao mesmo tempo mais estridente. Este som agudo e exasperante penetra no ouvido, como o zumbido dos mosquitos, perturba a meditação. Mas Ilia não sentia vontade de voltar a pôr a tampa da chaminé; quando o samovar deixasse de assobiar, o silêncio no quarto seria total... Desde que vivia na nova habitação, Lunev experimentava sensações até ali desconhecidas. Vivera sempre, anteriormente, com outras pessoas, separado delas apenas por tabiques finos; agora separavam-no das gentes espessas paredes de pedra e cal, por trás das quais já não sentia a presença do mundo.
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"Porque será preciso morrer?", interrogou-se de repente, olhando para o homem que, do alto da sua prosperidade, declinava para o túmulo... Pensou em Tiago Filimonov, que tinha sempre presente a ideia da morte e que dizia: "Deve ser interessante morrer..."
Despeitado, Ilia afastou de si estes pensamentos, tentando prender a atenção noutros assuntos.
Mas surgiu-lhe uma nova e inútil interrogação: "Como irão as coisas entre o Paulo e a Vera?"
Um trem passou pela rua. O fragor das rodas na calçada fez estremecer as vidraças, a chama da lâmpada tremeluziu. Depois sons estranhos ouviram-se na loja... Era Gavrik balbuciando em sonhos. Dir-se-ia que a espessa escuridão amontoada ao canto do quarto também ela oscilava. Ilia, com os cotovelos na mesa, a cabeça apoiada nas mãos, contemplou o quadro. Ao lado do senhor Jeová erguia-se um nobre leão, no solo arrastava-se uma tartaruga, um texugo ia passando, uma rã saltava e a árvore do conhecimento do Bem e do Mal tinha flores enormes cor de sangue. O velho com os pés no caixão parecia-se com o comerciante Poluektov, calvo e enfezado como ele, com o pescoço magro... Um ruído cavo de passos ecoou na rua; alguém caminhava pelo passeio, passava vagarosamente em frente do estabelecimento. O samovar apagou-se e o silêncio que reinava no quarto era tal que o ar parecia ter-se imobilizado, condensado ao ponto de ficar tão compacto como as paredes...
A lembrança do comerciante não alarmava Ilia e de um modo geral todos os seus pensamentos eram tranquilos; rodeavam a sua alma com prudente suavidade, envolviam-na numa nuvem de luar. Faziam que as cores de As Fases da Vida se mostrassem ligeiramente esbatidas, por assim dizer espelhadas. Ao pensar no assassinato de Poluektov, Lunev dizia para consigo que certamente existiria alguma justiça neste mundo e que, por conseguinte, mais cedo ou mais tarde haveria que expiar os pecados. Mas, dito isto, punha-se a examinar atentamente o canto mais silencioso do quarto, onde as trevas pareciam querer tomar certa forma... Depois, Ilia despia-se, deitava-se e apagava o candeeiro. Não o fazia de uma vez só: começava por fazer subir e descer a torcida. A chama quase se sumia, voltava a
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aparecer, a sombra crescia dos cantos, formava o salto, para logo a seguir recuar. Ilia contemplava as vagas negras e impalpáveis que tentavam submergi-lo e deixava-se ficar, assim, naquele jogo durante largo espaço, sondando a escuridão com os olhos muito abertos, como se esperasse descobrir nela qualquer coisa... Por fim, num derradeiro estremeção, a chama morria, o escuro apossava-se, por momentos, do quarto inteiro, mas parecia agitar-se ainda, num último arranque da luta com a luz. Depois a mancha pálida e azulada da janela ia-se definindo, surgia nítida. Se houvesse luar, a sombra das grades projectava-se em cima da mesa e no soalho em listas negras. O silêncio era tão tenso que um simples suspiro faria tudo vibrar. Lunev enrolava-se na manta, cobria-se até ao pescoço, com cuidados especiais, deixando apenas o rosto a descoberto, e cravava os olhos na escuridão até ser vencido pelo sono. De manhã acordava bem disposto, sereno, envergonhado quase com as parvoíces da véspera. Tomava o chá com Gavrik e ia admirar a loja, como se a visse pela primeira vez. Paulo passava por lá de tempos a tempos: aparecia todo sujo de lama, gordurento, com uma bata velha. Recomeçara a trabalhar no canalizador e levava consigo, por toda a parte, uma caixa de ferramentas cheia de estanho, canos de chumbo, ferros de soldagem. Tinha sempre grande pressa de voltar para casa e quando Ilia tentava retê-lo mais uns instantes desculpava-se, um pouco embaraçado:
- Não posso! Sabes, tenho a impressão de ter em casa uma ave rara, e a gaiola é frágil. Ela passa os dias inteiros sozinha... e sabe-se lá no que pensa? A sua vida agora é tão monótona... eu sei isso perfeitamente... Se tivéssemos um filho...
Soltava um longo suspiro... Uma vez, de expressão tensa, disse ao companheiro:
?- Quis puxar a água toda para o meu moinho, mas receio tê-lo submerso.
Outra vez, tendo-lhe Ilia perguntado se compunha versos, respondeu com um risinho:
- Era o mesmo que escrever na areia... Ora, que o Diabo carregue a "poesia! Que poderemos nós fazer com as nossas patorras?... No que me diz respeito, meu velho,
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estatelei-me ao comprido num charco. Não me resta a menor centelha na cabeça! Passo o tempo todo a pensar nela. Estou no trabalho, começo a soldar: e eis-me a sonhar com ela e tudo o mais se derrete no meu cérebro, como o estanho sob a chama do maçarico. Olha, aqui tens uma imagem poética!... Ah, ah, ah!... Honra seja feita a quem se entrega totalmente àquilo que faz... Pois é verdade, a vida não é fácil para ela...
- E para ti?-perguntou Ilia.
- Para mim também não, por causa do que te disse... Ela habituou-se à distracção... O problema é esse! Está constantemente a sonhar com dinheiro, a repetir: "Se se pudesse descobrir dinheiro em qualquer lado, tudo se modificaria..." E trata-me de estúpido, diz que eu devia assaltar um comerciante qualquer... Enfim, asneiras. E tudo isto, por ter pena de mim... Compreendo perfeitamente... Não é fácil para ela...
E Paulo, repentinamente inquieto, foi-se embora.
O sapateiro vinha frequentemente visitar Ilia. Surgia todo esfarrapado, quase seminu, com o seu inseparável harmónio debaixo do braço. Contava o que se passava em casa de Filimonov, falava de Tiago. Esquelético, sujo e desgrenhado, Perfichka encostava-se à porta da loja e, com um sorriso inalterável, não parava de dizer palhaçadas.
- O Petrukha -casou-se. Tem por mulher uma beterraba e por enteado uma cenoura! Uma horta em peso, palavra de honra! A mulher é baixota e gordita, encarnada que nem um pimentão, e com uma carantonha que nunca mais acaba. Tem pelo menos três queixos e, no entanto, apenas uma boca. Uns olhinhos como os de uma bela marra, minúsculos e que não vêem para cima. O filho, então, é amarelo e comprido, com óculos. Um fidalgote. Chamam-lhe Savva e fala como um livro aberto; quando a mãe está presente, mudo que nem um rato, quando não está, uma verdadeira cegarrega... Uma riquíssima companhia, não haja dúvida! Por seu lado, o Tiago anda com uma destas caras... parece uma barata assustada à procura de um buraco onde se esconder. Bebe às escondidas e passa o dia a tossir. Está provado que o paizinho lhe deixou o fígado bem amachucado! E
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agora a doença vai-o minando. Não passa de um soprozito de vida... O teu tio mandou uma carta de Kiev... Em minha opinião, todos os seus passos são perdidos: proíbem, com certeza, a entrada no Céu aos marrecos... A Matitsa já se não tem nas pernas; anda agora de carrinho. Fez sociedade com um cego, atrelou-o ao carro e guia-o como se fosse um cavalo... Prestam-se, assim, serviço um ao outro! E ela consegue, deste modo, arranjar para comer. Aquilo é que é uma mulher! Se eu não tivesse sido casado com uma verdadeira santa, teria certamente dado o nó com a Matitsa! Digo-te sem hesitações: em todo o mundo, só apareceram duas mulheres autênticas, duas mulheres de grande coração: a minha e a Matitsa. É verdade que ela bebe a sua pinga, mas as pessoas boas são sempre umas bêbedas...
- E a Macha? - lembrou-lhe Ilia.
A recordação da filha fez desaparecer do rosto do sapateiro sorrisos e caretas, como folhas mortas arrastadas pelo vento. De expressão desfeita, desamparado, disse, baixando a voz:
- Nunca mais tive notícias dela... O Khrenov gritou-me brutalmente: "Não me apareças mais por cá... senão dou cabo dela!..." Mas dá-me um copinho, anda, nem que seja uma gotazinha só!...
- Andas a cavar a tua desgraça!, Perfichka - vaticinou Ilia, entristecido.
- A minha desgraça total -? concordou, imperturbável, o sapateiro. - Haverá muitos que lamentarão a minha morte! - acrescentou com firmeza. - Porque eu sou divertido, gosto de fazer rir! Para todos, sejam eles quem forem, bons ou maus, entoo as minhas cançonetas e rio de bom gosto. Que tenhas muitos ou poucos pecados, irás à mesma desta para melhor e os Diabos tomarão por força conta de ti... Os folgazões também são precisos cá na Terra...
Rindo e gracejando, fanfarrão, semelhante a um velho canário depenado, ia-se embora e Ilia seguia-o com o olhar, abanando a cabeça e sorrindo. Tinha dó de Perfichka, mas esse sentimento parecia-lhe infundado e deixava-o pouco à vontade. Lunev não se desprendera ainda suficientemente do
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seu próprio passado e tudo o que o vinha lembrar despertava ao mesmo tempo a sua inquietação. Era como um homem fatigado, que pretende descansar e dormita, mas que as moscas estivais, zumbindo sem parar à sua volta, não deixam sossegar. Quando conversava com Paulo ou escutava Perfichka, Ilia afivelava uma expressão de acatamento, abanava a cabeça e aguardava que se fossem embora. Ressentia, por vezes, tristeza e mal-estar perante as queixas de Paulo; instintivamente, ocorria-lhe logo a ideia de lhe oferecer dinheiro, insistia e acabava por dizer, erguendo as mãos num gesto de impotência:
- Que mais posso eu fazer por ti?... Talvez aconselhar-te a deixares a Vera...
- Não é possível - afirmava Paulo em voz surda. Só se deixa aquilo de que se não precisa. Mas eu preciso dela... Tiram-ma à iforça, é o que é... E talvez a não ame como deve ser, mas é uma questão de ódio, de ofensa. Ela é a minha vida, o meu único quinhão de felicidade. E mesmo assim deveria cedê-la? com que ficaria, então?... Não, não a cederei, estão muito enganados! Antes matá-la do que a deixar para os outros.
O rosto seco de Gratchev congestionava-se, os seus punhos cerravam-se.
- Notaste alguém a andar atrás dela?-perguntou Ilia.
- São coisas que se não notam...
- A quem te referes então quando insinuas que ta querem tirar?
- Há uma força que a pretende arrancar dos meus braços... Oh, demónios! Foi uma mulher quem perdeu meu pai, e dir-se-ia que o mesmo destino me espera...
- Não posso na verdade ajudar-te!-suspirou Lunev, sentindo uma espécie de alívio. Paulo fazia-lhe ainda mais pena que Perfichka, e quando o ouvia falar com ódio o ódio fervilhava igualmente no seu coração. Mas o inimigo que causava a ofensa, o inimigo que despedaçava a vida de Paulo, não se desmascarava, mantinha-se invisível. E mais uma vez Ilia se apercebia de que tal como o dó, o seu ódio também era inútil, de igual modo que a maioria dos
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seus sentimentos em relação aos outros, tudo apenas emoções supérfluas, inúteis. Paulo, sombrio, dizia:
- Bem sei, é impossível ajudar-me... - E, olhando bem de frente para o companheiro, prosseguia com uma segurança de mau augúrio: - Tu aninhaste-te no teu canto e manténs-te muito sossegado... Mas ouve o que te digo: já há alguém que não dorme de noite, procurando a maneira de te desalojar... E serás posto fora... Senão, serás tu próprio a largar tudo...
- Espera por essa!-soltou Ilia, rindo.
Mas Gratchev não desistia. com um olhar perscrutador, insistia:
- Ouve bem o que eu te digo: largarás tudo. Tu não és feito para passar a vida inteira sossegado a um canto. E por força, ou te pões a beber, ou arruínas-te... De todos os modos, alguma te sucederá...
- Mas por que razão?--exclamou, perplexo, Lunev.
- É assim mesmo. Viver tranquilo não é para ti... Tu és um bom rapaz, tens valor... Há pessoas que têm uma saúde de cavalo, nunca lhes chega a mais pequena doença, e um belo dia... catrapus!
- Catrapus, o quê?
- Adoecem, morrem...
Ilia troçou-o, espreguiçou-se, pondo em movimento todos os seus fortes músculos, e suspirou profundamente.
- Tudo isso são tretas - concluiu.
Mas à noite, sentado junto do samovar, lembrou-se, mau grado seu, das palavras de Gratchev e pôs-se a pensar nas suas relações com Avtonomova. Seduzido pela proposta de abrir a loja, aceitara todas as condições. E agora verificava, subitamente, que, se bem que tivesse investido no negócio mais ainda do que ela, era afinal de contas um simples caixeiro e de modo algum sócio. Esta verificação deixou-o estupefacto, enfureceu-o.
"Ah!, já percebo porque me beijas com tanta paixão: para disfarçadamente me meteres as mãos nas algibeiras!", disse mentalmente a Tatiana. E tomou logo a decisão de investir no negócio todo o seu dinheiro, de comprar a parte da amante na loja e de romper com ela. Não lhe custou muito tomar esta decisão. Há algum tempo a esta parte,
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Tatiana entrara para ele no campo do supérfluo e tornara-se até incómoda. Não conseguia habituar-se às suas carícias e um dia chegara-lhe a dizer abertamente:
- Mas que grande desavergonhada que tu és, Tânia... A resposta dela resumiu-se a uma sonora gargalhada. A mulher não perdera o hábito de lhe descrever a vida
das pessoas do seu meio, e, certa vez, Ilia observou:
- Se o que tu dizes é verdade, Tatiana, toda a vossa vida tão honesta não é lá muito atraente!
- Porquê? É divertido!-disse Avtonomova, encolhendo os ombros estreitos.
- Muito divertido, sim senhor! Passam o dia a privarem-se de tudo e a noite em grandes paródias...
- Que simplório que tu és!-exclamou Tatiana.
E de novo, elogiando, por um lado, a vida burguesa, confortável e como deve ser, punha, por outro lado, à mostra toda a lama e toda a crueza dessa mesma vida.
- Então, achas isso bem? - interrogava Ilia.
- És impagável! Eu não estou a dizer que acho bem, mas se fosse diferente seria muito aborrecido!
Às vezes Tatiana dava conselhos a Ilia:
- Já é altura de deixares de usar essas camisas de chita: um homem decente usa roupa de tecido fino... E depois, por favor, repara como eu falo e faze por te lembrares. Não se diz "tamanhão", mas sim "grande". E não digas um "home", deves dizer "um homem". "Home", "santos dias!", são modos de falar de camponês, e tu já não és um camponês.
A amante fazia-o frequentemente sentir a diferença que havia entre ele, um camponês, e ela, mulher culta, e por mais de uma vez Ilia se sentira ofendido. Quando vivia com Olímpia, achava-a, por vezes, tão irmanada com ele como um camarada. Tatiana nunca lhe suscitara semelhante seneação: bem via que ela tinha mais interesse do que Olímpia, mas perdera todo o respeito que lhe tivera. Desde que vivia em casa dos Avtonomov, Lunev ouvia, de vez em quando, Tatiana rezar antes de se deitar:
- "Pai nosso que estais nos Céus..."--começava ela num sussurro precipitado que atravessava o tabique. - "O pão nosso de cada dia nos dai hoje e perdoai-nos as nossas
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ofensas..." Kirik! Levanta-te e vai fechar a porta da cozinha, vem-me uma destas correntes de ar às pernas...
- Também, para que te pões tu de joelhos no chão? censurava o marido, ensonado.
- Caluda!, deixa-me rezar!
E de novo Illia ouvia o seu sussurro rápido e preocupado:
- Dai a paz, Senhor, à alma do teu escravo Vias, de Nicolau, do monge Madary... da tua escrava Eudóxia, de Maria, dignai-vos, Senhor, proteger Tatiana, Kirik, Serafim. ..
A pressa com que ela despachava as orações desagradava a Ilia: não havia dúvida de que não rezava por devoção, mas por simples hábito.
- Acreditas em Deus, Tatiana? - perguntou-lhe um dia.
- Mas que pergunta! - soltou ela, espantada. - É claro que acredito! Porque é que mo perguntas?
- Assim... Estás sempre com uma pressa de te veres livre dele - respondeu Ilia, sorrindo.
- Estou sempre tão cansada quando vou para a cama que Deus não me vai querer mal pelo descuido...
E, levantando o olhar para o tecto, acrescentou, muito segura:
- Ele perdoa tudo. É misericordioso...
"Só lhes serve para terem alguém a quem pedir perdão, pensou Lunev com desprezo, e recordou-se de que Olímpia rezava durante muito tempo e silenciosamente. Ajoelhava-se em frente do ícone e mantinha-se imóvel, petrificada... Nessas alturas, o seu rosto era triste e austero.
Quando Lunev se apercebeu de que na questão da loja Tatiana o tinha intrujado, começou a ter-lhe uma espécie de aversão.
"Se fosse uma estranha, ainda passava!", dizia para consigo. "Cada qual faz por enganar o próximo... Mas ela é como se fosse a minha mulher... Beija-me, acaricia-me... Gata viciosa! Só uma rameira é capaz de agir assim... e mesmo essa tem de ser das mais reles..." Adoptou para com ela uma fria atitude de suspeita e pôs-se a inventar pretextos para se não encontrarem a sós. Foi então que lhe surgiu outra mulher: a irmã de Gavrik, que passava, de tempos a tempos, pelo estabelecimento de visita ao irmão. Alta,
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delgada e de belo porte, não era, porém, uma bonita mulher, e, se bem que Ilia soubesse por Gavrik que só tinha 19 anos, dava-lhe a impressão de ser muito mais velha, pois o seu rosto comprido era pálido e cansado e a sua testa alta sulcada de rugas estreitas. As largas narinas do seu nariz um pouco achatado pareciam andar dilatadas pela cólera, enquanto os lábios finos da sua boca pequena faziam pensar que nunca estivesse satisfeita. Falava com clareza, mas no entanto dir-se-ia fazê-lo de mau grado, por entre dentes; andava depressa, de cabeça erguida, como se se ufanasse do rosto sem graça. A não ser que a comprida e pesada trança de cabelo escuro lhe puxasse a cabeça para trás... Os seus grandes olhos negros eram severos e graves e todos os seus traços conferiam, conjuntamente, ao seu aspecto, um ar de rectidão e inflexibilidade. Lunev sentia-se intimidado na presença dela; parecia-lhe uma mulher orgulhosa; inspirava-lhe respeito. Sempre que aparecia na loja, oferecia-lhe, amavelmente, uma cadeira:
- Sente-se, peço-lhe!
- Obrigada! - soltava ela secamente, e com um breve aceno de cabeça sentava-se. Lunev observava às escondidas o seu rosto, tão diferente de todos os rostos femininos que conhecera até então, o vestido castanho muito usado, os sapatos que tinham passado muitas vezes já pelo sapateiro e o chapéu de palha amarela. A rapariga ficava a falar com o irmão durante alguns instantes; os longos dedos da sua mão direita marcavam no joelho os compassos de uma marcha rápida e silenciosa. com a mão esquerda fazia balouçar os livros que trazia presos por uma correia. Esta rapariga orgulhosa e tão pobremente vestida deixava Ilia admirado. Ao cabo de dois ou três minutos, Sônia dizia ao irmão:
- Bem, até um dia destes! Não faças muitas asneiras... E, cumprimentando o patrão com um leve aceno de
cabeça, ia-se embora como um valoroso soldado, em passo de assalto.
- Como a tua irmã é austera! - disse uma vez Lunev a Gavrik.
O rapaz franziu o nariz, arregalou os olhos vivos, estendeu os lábios, o que lhe deu um ar de rudeza caricatural
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que retratava fielmente a expressão da irmã. Depois, sorrindo, explicou:
- É sempre assim... Mas anda a fingir...
- Mas então porquê?
- Ela gosta daquilo. Eu também sou capaz de fazer todas as caras que quiser...
Ilia interessava-se muito pela rapariga e, tal como já o fizera em relação a Tatiana, pensava: "Era com uma jovem assim que eu deveria casar..."
Um dia, ela trouxe um livro muito volumoso e disse ao irmão:
- Olha, isto é para tu leres...
-O que é? Não se importa que eu dê uma olhadela? perguntou Ilia delicadamente.
Ela tirou o livro das mãos do irmão e estendeu-o a Lunev, dizendo:
- Dom Quixote... A história de um grande cavaleiro...
- Ah! Li muitas histórias de cavaleiros - replicou Ilia com um amável sorriso, sem a desfitar. As sobrancelhas da rapariga ergueram-se levemente e ela observou com secura:
- Tem lido contos, enquanto, neste caso, se trata de um livro esplêndido, inteligente. Descreve a vida de um homem que se consagrou à defesa dos infelizes oprimidos pela injustiça... de um homem sempre pronto a sacrificar a sua própria vida pela felicidade dos outros, compreende? O livro está escrito num estilo cómico... mas isso relaciona-se com as condições da época em que foi escrito... É preciso lê-lo muito a sério, atentamente...
- É assim mesmo que o leremos - disse Ilia.
Era a primeira vez que a rapariga tinha uma conversa com ele; Ilia sentia, pois, uma satisfação especial e sorria. Mas ela, encarando-o, articulou sem amenidade:
- Duvido que a obra lhe agrade...
E deixou a loja. Ilia teve a impressão de que ela insistira no "lhe". Ficou ferido e ralhou com Gavrik, que se pusera a folhear o livro para ver as ilustrações.
- Já chega! Não é altura de te pores a ler...
--Mas, se não há clientes?... - repontou o garoto, sem fechar o livro. Ilia olhou para ele e calou-se. O que a jovem
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dissera acerca daquele livro não lhe saía da cabeça. E pensando nela, disse para consigo: "Ora! Que o Diabo a carregue!"
O tempo ia correndo. Ilia servia ao balcão, frisava o bigode, fazia o negócio correr o melhor possível, mas começava a achar que os dias passavam muito lentamente. Às vezes era tomado pelo desejo de fechar a loja e dar um passeio, mas sabia que isso teria efeito pernicioso na venda e permanecia no seu posto. Também não era viável sair à noite: Gavrik tinha medo de ficar só e, além disso, era perigoso confiar-lhe o estabelecimento: podia, sem querer, lançar-lhe fogo ou consentir que algum vadio lá entrasse. As vendas desenvolviam-se e Ilia encarava a hipótese de meter um ajudante. A sua ligação com Avtonomova ia morrendo por si mesma e Tatiana também não parecia lamentá-lo. Ria, alegre, e verificava minuciosamente as contas. E quando, no quarto de Ilia, ela fazia chocar as esferas do ábaco, o rapaz tinha a sensação nítida de que esta mulher de cara de pássaro se lhe tornara odiosa. Noutras ocasiões, porém, ela afigurava-se-lhe espontânea e agradável; gracejava com ele e lançando-lhe, descaradamente, olhinhos meigos, tratava-o por sócio. O amante deixava-se seduzir e, apesar de tudo, ficava de novo preso nas redes dela. Kirik visitava-o de longe em longe; acomodava-se numa cadeira junto ao balcão e dirigia gracejos às costureirinhas que apareciam enquanto ele lá estava. Deixara a farda, envergando um fato de boa fazenda, e fazia estendal da situação que usufruía na firma do comerciante que o contratara.
- Tiro sessenta rublos de ordenado por mês e outro tanto por fora, nada mau, hem? No que respeita aos ganhozitos extraordinários, sou muito prudente, tudo dentro da lei... Mudámos de casa, sabes? Temos agora um alojamentozinho todo catita. Tomámos uma cozinheira ma-gní-fi-ca, benza-a Deus! No Outono começaremos a receber, a jogar às cartas... é agradável, sim senhor! É tempo bem passado e pode-se ganhar... nós jogamos os dois, eu e minha mulher, e há sempre um de nós que ganha! E o ganho reembolsa-nos das despesas da recepção, estás a ver, meu caro!
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Eh, eh, eh! Aqui está o que se chama viver agradavelmente e barato!...
Recostava-se na cadeira, acendia um cigarro e, lançando uma baforada de fumo, continuava, baixando o tom de voz:
- É verdade, meu velho, estive no campo há pouco tempo. E fica sabendo, há por lá umas garotas, com a breca! Estás vendo: destas miúdas sem artifícios... robustas, percebes, carnes rijas, umas figuronas... E tudo isso por pouco dinheiro, caramba! Uma garrafita de licor, uma libra de pão de especiarias e temo-las no papo!
Lunev escutava-o em silêncio. Sem que o pudesse explicar, Kirik fazia-lhe dó. Não poderia determinar exactamente as razões, mas aquele homem obeso e de ideias curtas tinha o condão de lhe inspirar piedade. E ao mesmo tempo, quase lhe dava vontade de rir. Não acreditava nas suas aventuras campestres: estava convencido de que Kirik se vangloriava, repetia palavras ouvidas a qualquer outro. E, com mau humor, dizia para consigo, ao escutá-lo: "Sovina!
- Pois é assim mesmo, meu caro, é soberbo entregarmo-nos aos prazeres amorosos em plena natureza, à sombra dos arvoredos, como vem nos livros.
- E se a Tatiana descobre? - perguntou Ilia.
- Não são coisas que ela procure saber, meu velho replicou Kirik com uma alegre piscadela de olho. - Ela sabe que não precisa de estar ao corrente dessas coisas! O homem é, por natureza, um galo... E tu, meu velho, também tens a tua querida, não?
- Também se vai cometendo o seu pecadito - retorquiu Ilia com um risinho.
- Alguma costureirita? É isso? A morenita?
- Não, não é uma costureira...
- Então é alguma cozinheira, hem? Uma cozinheira também está muito bem... quentinha, um regalo...
Um riso destemperado apossou-se de Ilia, e Kirik convenceu-se da existência da cozinheira.
- Muda de mulher mais frequentemente, mais frequentemente - aconselhava a Ilia, em tom de entendido.
- Mas porque pensa tratar-se de uma cozinheira ou de uma costureira? Acha-me indigno de outra qualquer? informou-se Ilia, por entre gargalhadas.
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-Meu velho, essas mulheres correspondem melhor que outras à tua posição social... Não poderias arrastar a asa a uma senhora ou a uma menina da boa sociedade, concorda...
- Mas porquê?
- Ai, isso está-se mesmo a ver... Sem ofensa, meu amigo, tu és, apesar de tudo... um homem do povo... um camponês, por assim dizer...
- Ah!... Pois bem, trata-se, no entanto, de uma senhora...- soltou Ilia, morto de riso.
- Meu brincalhão! - lançou-lhe Kirik, desatando igualmente a rir.
Mas quando Avtonomov se foi embora, Lunev voltou a pensar no que ele dissera e sentiu-se ofendido. Bem via que, apesar de aparentar camaradagem, Kirik não deixava de se considerar um homem à parte, não um igual de Ilia, mas sim alguém que lhe era superior, melhor. O que também não o impedia, tal como sua mulher, de se aproveitar dele o melhor que podia. Perfichka dissera-lhe que Petrukha troçava do seu negócio de retrosaria e que o tratava de malandro... E Tiago declarara ao sapateiro que Ilia era melhor antigamente, mais cordial, sem os ares que tomava agora. E a irmã de Gavrik fazia-lhe ver, constantemente, que não eram iguais, ela e ele. A filha de um carteiro, coberta de farrapos, ou pouco melhor, que o encarava com o ar de quem sente despeito por ter de viver na mesma terra que ele! Desde que abrira a loja, o amor-próprio de Ilia tornara-se muito sensível, era ainda mais susceptível do que dantes. O interesse que lhe despertara aquela rapariga sem beleza, mas tão singular, crescia sempre; gostava de perceber onde iria ela buscar, sendo pobre, aquele orgulho que o intimidava. Ela nunca lhe dirigia a palavra sem que ele o fizesse primeiro, e isso feria-o. No entanto, o irmão dela era caixeiro na sua loja, o que lhe parecia suficiente para ela considerar o patrão com menos severidade! Certo dia anunciou-lhe:
- Estou a ler o seu livro sobre Dom Quixote...
- Ah, sim, e então? Agrada-lhe? - perguntou ela, sem o fitar.
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- Agrada-me muito! É divertido... É um tipo muito patusco.
Ilia teve a impressão de ser traspassado pelo olhar de ódio das pupilas negras.
- Eu tinha a certeza de que me diria qualquer coisa nesse género - disse ela lentamente.
Sentindo nessas palavras algo de contundente, de hostil, Lunev replicou, encolhendo os ombros:
- Eu sou um ignorante.
Mas a rapariga calou-se, como se o não tivesse ouvido.
E, de novo, foi dominado por um sentimento que há muito o não inquietava: enraivecia-se novamente contra os homens e fechava-se, durante horas seguidas, nas suas reflexões acerca da justiça, do seu crime e do que o esperava. Deveria passar a vida inteira assim, especado na loja, de manhã à noite, sozinho perante as suas ideias, continuar depois no mesmo estado de espírito junto do samovar, deitar-se para dormir e, ao despertar, no dia seguinte, voltar à loja? Não ignorava que muitos comerciantes, talvez até todos, viviam desse modo. Mas ele tinha muitas razões, tanto na sua vida exterior como na sua vida interior, para se considerar um homem à parte, diferente dos demais. Recordou as palavras de Tiago: "Queira Deus que nunca obtenhas o que desejas... és ávido por temperamento..."
E essas palavras pareciam-lhe profundamente contundentes. Não, ele não era ávido, desejava simplesmente viver num ambiente de decência e calma, desejava ser respeitado, que não viessem a todo o momento ofendê-lo: "Estou acima de ti, Ilia Lunev, sou melhor que tu..."
E voltava a cismar no que o esperava. Acabaria ou não por ter o castigo do crime que cometera? Pensava, às vezes, que, se tivesse de sofrer por via do seu pecado, esse sofrimento seria uma injustiça. A cidade era um formigueiro de assassinos, de debochados e de ladrões: toda a gente sabia que o eram por sua livre vontade, mas, no entanto, todos eles viviam gozando dos prazeres da vida e não tinham, até então, incorrido em qualquer castigo. Ora a justiça exigia que, por toda e qualquer ofensa infligida a um homem, o ofensor fosse punido. E na Bíblia estava escrito: "Que Deus lhe dê o pago, então ele escarmentará." Estes pensamentos
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reavivavam as velhas feridas e o coração ardia-lhe numa insaciável sede de vingança pela vida estragada. Sentia, por vezes, desejos de provocar, de lançar fogo à casa de Petrukha Filimonov e, ao vê-la arder, gritar às gentes que acor-
ressem :
"Fui eu que lancei o fogo! Fui eu que assassinei o comerciante Poluektov!"
Prendê-lo-iam, condená-lo-iam ao degredo na Sibéria, como tinham feito ao pai... Revoltado, transformava a sua sede de vingança no desejo de contar a Kirik a ligação que tinha com a mulher ou de espancar o velho Khrenov, pelo que fazia sofrer Macha...
Sucedia-lhe estar deitado na cama, de ouvido atento ao profundo silêncio da noite, e supor, subitamente, que tudo ia estoirar à sua volta, ruir, para ser arrastado num turbilhão selvagem de gritos e fragor. A força dessa rajada arrastá-lo-ia, também, como uma folha arrancada à árvore, levando-o e aniquilando-o... E Lunev tremia com o pressentimento de qualquer coisa extraordinária...
Uma noite, estando ele a preparar-se para fechar o estabelecimento, Paulo surgiu e, sem sequer lhe dar as boas-noites, declarou em voz calma:
- A Vera foi-se embora...
Depois sentou-se numa cadeira, encostou os cotovelos ao balcão e pôs-se a assobiar, olhando para a rua. O seu rosto tinha a rigidez da pedra, mas os bigodes ruivos vibravam como os de um gato.
- Sozinha ou com alguém?-interrogou Ilia.
?-Não sei... Há três dias que não volta a casa.
Ilia olhou para ele e calou-se. O rosto inexpressivo de Paulo e o tom da sua voz não o deixavam perceber como encarava a fuga da amante. Mas adivinhava naquela calma uma decisão inabalável.
- Que tencionas fazer?-perguntou, vendo que o companheiro se não mostrava disposto a falar. O outro deixou de assobiar e, sem desfitar a rua, disse em voz fria:
- Matá-la...
- Voltas à mesma cantiga!... - exclamou Ilia com um gesto de despeito.
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- Tenho o coração despedaçado - soltou Paulo em voz baixa. - Aqui está a faca.
Tirou de dentro da camisa uma pequena faca de pão, fazendo-a girar em frente dos olhos.
- Agarro-a pelo pescoço...
Mas Ilia arrancou-lhe a faca e lançou-a para trás do balcão, dizendo, furioso:
- Armaste-te para atacar um ser indefeso...
Paulo pôs-se em pé num salto e enfrentou o camarada. Os seus olhos lançavam chispas, o rosto estava descomposto, tremia dos pés à cabeça. No entanto, voltou logo a sentar-se e disse, com desprezo:
- És um imbecil...
-E tu um tipo muito inteligente!
- A força não está na faca, mas sim no braço...
- Vai falando...
- E se me cortassem os braços, despedaçava-lhe as carnes com os dentes...
- Acabarás por me assustar!...
- Não me digas nada, Ilia... - disse Paulo em voz cava, aquietando-se. Acredita ou não em mim, mas não me provoques... O destino já basta...
- Mas concorda que tu também não te estás a conduzir com cabeça! Ora pensa um pouco-começou Ilia, mais ameno e persuasivo.
- Já está tudo pensado... Aliás, vou-me embora... Para que serve falar contigo? Tu és um homem saciado... nós não estamos do mesmo lado...
- Já nem sabes o que dizes! - gritou-lhe Lunev.
- E eu sou um faminto, de corpo e alma...
- Esplêndida maneira de raciocinar, sim senhor! disse Ilia, irónico, encolhendo os ombros. - A mulher é para o homem uma espécie de animal... um cavalo! Carregas comigo! Muito bem, anda lá, que eu não te bato! Recusas! Toma lá, para aprenderes!... Pois, seus brutos, a mulher também é um ser humano com o seu carácter próprio...
Paulo olhou para o interlocutor e um ronquido, que pretendia ser riso, saiu-lhe da garganta.
- E eu então ? Eu não sou um ser humano ?
- E tens a obrigação de ser justo ou não?
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- Que vão para o Diabo, tu mais a tua justiça! rugiu Gratchev, levantando-se bruscamente. - Sê justo à vontadinha! Para quem tem comida à farta, tanto lhe faz... Ouviste? Bem, e agora adeus...
Saiu da loja em passo rápido e na rua arrancou maquinalmente o boné da cabeça. Ilia saiu de trás do balcão e lançou-se na perseguição de Gratchev, mas este já ia longe, levando na mão o boné, que agitava violentamente.
- Paulo!-gritou Lunev. - Espera aí...
O outro não parou, nem se voltou para trás, e, metendo por uma ruela transversal, desapareceu. Ilia voltou lentamente para junto do balcão, verificando que as palavras que o camarada lhe dissera tinham posto o seu rosto em fogo, como se se tivesse debruçado sobre um fogão aquecido ao rubro.
- Ele é mau! - soltou Gavrik. Ilia sorriu.
- Quem era que ele queria assassinar? - interrogou o garoto, aproximando-se do balcão. Tinha as mãos atrás das costas, a cabeça lançada para trás e as suas faces rugosas estavam afogueadas.
- A mulher dele - respondeu Ilia, fitando-o.
Gavrik ficou uns momentos sem dizer palavra, depois com esforço, numa voz baixa e meditativa, declarou:
- Nós temos uma vizinha que envenenou o marido com arsénico, pelo Natal... era alfaiate...
- São coisas que sucedem... - opinou Lunev, pensando em Paulo.
- E este, vai matá-la mesmo?
- Pronto, Gavrik, já chega...
O garoto voltou-lhe as costas e encaminhou-se para a porta, murmurando por entre dentes:
- E casa-se esta gente!
O crepúsculo já invadira a rua; nas janelas da casa fronteira viam-se as luzes brilhar através das vidraças.
- Já são horas de fechar! -disse Gavrik, baixo.
Ilia olhava para as janelas iluminadas. Ocultavam-nas, na parte de baixo, flores, e, para cima, estores brancos.
Através da folhagem, entrevia-se uma moldura dourada numa parede. Quando as vidraças estavam abertas, vinham dessa
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casa acordes de viola, canções e gargalhadas. Cantava-se, tocava-se e ria-se ali quase todas as noites. Lunev sabia que morava lá um magistrado do tribunal do distrito, Gromov, homem corpulento, de tez avermelhada e compridos bigodes negros. Sua mulher era igualmente forte, mas loura e de olhos azuis; passava pela rua com o ar imponente de uma rainha de contos de fadas e sorria constantemente quando falava. Havia ainda em casa de Gromov uma menina casadoura, rapariga alta, de cabelos negros e pele tisnada; à sua volta zumbia um enxame de jovens funcionários; todos riam e cantavam pela noite fora.
- É verdade, são horas de fechar - insistia Gavrik.
- Fecha...
O garoto puxou a porta e a loja ficou mergulhada na escuridão. Depois ouviu-se ranger o ferrolho.
"Como na prisão", pensou Ilia.
As palavras desagradáveis do amigo acerca dos homens saciados faziam o efeito de um espinho no seu coração. Sentado em frente do samovar. pensava em Paulo com hostilidade e não acreditava que ele matasse Vera.
"Perdi o tempo pretendendo defendê-la... Que me deixem em paz!... Não sabem viver e impedem os outros de o fazer...", dizia para consigo, mal-humorado.
Gavrik sorvia o chá pelo pires, fazendo muito barulho, e balouçava os pés por baixo da mesa.
- Ele já a matou ou ainda não? - perguntou o rapazinho ao patrão subitamente.
Lunev relanceou-o, mal disposto, e disse:
-Olha, menino, vai mas é deitar-te...
O samovar assobiava e zumbia, como se se aprestasse para saltar da mesa.
De repente, uma sombra escura desenhou-se na janela e uma voz tímida e trémula perguntou:
?-É aqui que vive o Ilia Lunev?
- É, sim! - respondeu vivamente Gavrik, correndo para a porta do pátio antes que Ilia tivesse tempo de pronunciar uma só palavra.
Uma frágil silhueta de mulher, com a cabeça coberta por um lenço, surgiu no enquadramento da porta. com uma das mãos, a desconhecida apoiava-se ao alizar e com a outra
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amachucava as pontas do lenço sob o queixo. Mantinha-se de perfil, parecendo pronta a fugir ao primeiro alerta.
- Entre - disse Lunev, aborrecido, sem a reconhecer. Ao ouvir a sua voz, a mulher estremeceu, ergueu a cabeça
e um breve sorriso iluminou o seu rostozinho pálido...
-Macha!- exclamou Lunev, correndo para ela.
Voltando a sorrir com timidez, ela avançou igualmente para ele.
- Tu não me reconheceste... Nem sequer me reconheceram... - proferiu ela, parando a meio do quarto.
- Senhor! Como te poderia reconhecer? Que transfigurada que tu estás!
com amabilidade exagerada, Ilia tomou-a pelo braço e trouxe-a até junto da mesa, debruçando-se sobre ela e continuando a observá-la, sem saber dizer ao certo o que havia de mudado no seu aspecto. Macha estava horrorosamente magra e andava como se as pernas se lhe quebrassem a cada passo.
- Ai, como tu estás!... - murmurava o rapaz, enquanto a fazia sentar, com mil cuidados, numa cadeira, sem deixar de a contemplar.
- Aqui tens o que fizeram de mim... - disse ela. Agora, que estava sentada em frente do candeeiro, Ilia
podia vê-la melhor. Encostada às costas da cadeira, deixara descair os braços descarnados, inclinara a cabeça para um lado e uma respiração ofegante agitava o seu peito seco. Parecia ter apenas ossos. Sob a chita cor-de-rosa do vestido distinguiam-se as espáduas, os cotovelos, os joelhos angulosos; a magreza das faces metia medo, a pele esbranquiçada dir-se-ia estar prestes a esgaçar-se nas têmporas, nas maçãs do rosto e no queixo; a boca sofredora mantinha-se entreaberta, os lábios adelgaçados não cobriam inteiramente os dentes, o rosto miudinho, que parecia ter-se alongado, petrificara-se numa expressão de dor profunda. Nos seus olhos esmorecera todo o brilho do olhar.
- Estás doente? - perguntou suavemente Ilia.
- Não - respondeu ela. -- Não tenho doença alguma... Foi ele quem me pôs neste estado...
As suas palavras lânguidas e cavas soavam como gemidos; os dentes descobertos faziam pensar num peixe...
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Gavrik, de pé junto dela, fitava-a de lábios cerrados e com uma expressão de susto nos olhos.
- Vai dormir! - ordenou-lhe Lunev.
O garoto foi para a loja, andou por lá durante alguns instantes e pouco depois a sua cabeça reapareceu na greta aberta da porta.
Macha permanecia imóvel e só os olhos, movendo-se a custo nas órbitas, percorriam lentamente a casa. Lunev serviu-lhe chá e não se atrevia a interrogá-la.
- Ele tortura-me... - começou ela. Os seus lábios agitaram-se e fechou os olhos durante uns segundos. Quando os voltou a abrir, grandes e pesadas lágrimas escorreram-lhe pelas faces.
- Não chores... - pediu Ilia, afastando dela o olhar.
- É melhor beberes o chá... e conta tudo... depois sentirte-ás melhor.
- Tenho medo que ele venha... - disse Macha, abanando a cabeça.
- Fugiste de casa?
- Fugi... É já a quarta vez... Quando não aguento mais... fujo. A última vez, ia-me deitar ao poço... Mas ele apanhou-me... e bateu-me tanto, torturou-me tanto...
O pavor tornou-lhe os olhos imensos; o seu queixo foi tomado de tremuras.
- Ele quebra-me as pernas...
- Oh! - murmurou Ilia. - E tu, que fazes? Vai contar tudo à polícia... Que ele te martiriza! Há o degredo para crimes desses...
- Ora! Ele próprio é juiz - cortou Macha numa voz sem esperança.
- O Khrenov? Juiz, o quê? Que estás tu para aí a dizer?
- É verdade! Ainda há pouco tempo esteve a presidir no tribunal, durante duas semanas seguidas... julgava sem parar... Voltava a casa maldoso, insaciável... Agarrou na pinça do samovar e apertou com ela um dos meus seios, pôs-se a torcer, a puxar... vê!
Os seus dedos trémulos desabotoaram o vestido e Macha exibiu os seios, pequenos e flácidos, cobertos de nódoas negras.
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- Abotoa-te - disse Ilia, contristado. Custava-lhe olhar para aquele pobre corpo espancado; nem podia crer que estava ali a amiga de infância, a valorosa rapariguinha de outros tempos. Mas ela desnudara um ombro e prosseguia na sua voz apagada:
- E nos ombros, o que ele me bateu! E por toda a parte... beliscou-me o ventre com a pinça... arrancou-me os pêlos debaixo dos braços...
- Mas porquê? - perguntou Lunev.
- Ele diz: "Tu não gostas de mim?", e tortura-me com a pinça...
- Talvez tu... já não estivesses boa quando ele casou contigo
- Como seria isso possível? Eu estava sempre contigo e com o Tiago... e nunca ninguém me tocou... E aliás, agora, sou... sou incapaz... Magoa-me, repugna-me... fico sempre meio morta...
- Cala-te, Macha - suplicou Ilia em voz baixa.
Ela calou-se e ficou, de novo, imóvel, sentada junto à mesa, de peito descoberto.
Ilia, por trás do samovar, voltou a olhar para o corpo magro e pisado e repetiu:
- Abotoa-te...
- Não tenho vergonha de ti - disse ela com grande cansaço, abotoando o corpete com mãos trémulas.
O silêncio reinou no quarto. Depois, da loja, veio o som violento de grandes soluços. Ilia ergueu-se, foi até à porta, abriu-a um pouco mais e comandou, ríspido:
--Acaba com isso, Gavrik!
- É o pequeno ? - perguntou Macha. - O que é que ele tem?
- Está a chorar...
- Está com medo ?
- Não... com pena,, certamente.
- Pena de quem ?
- De ti...
- Ai, sim? - disse Macha com indiferença, e o seu rosto doloroso permaneceu imóvel. Depois esforçou-se por beber o chá, sustendo com as mãos trémulas o pires que lhe
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tilintava nos dentes. Ilia contemplava-a sem saber se tinha ou não piedade dela.
- Que vais fazer?-perguntou-lhe ele. por fim.
- Não sei - respondeu a mulher num suspiro. - Que poderei fazer?
- Tens de ir apresentar queixa - teimou Lunev.
-com a outra mulher, era o mesmo... - começou Macha. - Prendia-a à cama pela trança e beliscava-a com a pinça... exactamente o mesmo... Eu estava a dormir, de repente sinto uma dor... acordo, grito. Era ele que tinha riscado um fósforo e o colocara em cima da minha barriga...
Lunev pôs-se de pé num salto e fora de si, erguendo a voz, tentou persuadi-la a ir, no dia seguinte, à polícia mostrar os ferimentos e exigir que o marido fosse preso. Ao vê-lo naquele estado ela começou a agitar-se inquieta, lançando olhares receosos em volta. Finalmente, disse:
- Não grites, por favor, vão ouvir-nos...
Ilia conseguira, simplesmente, assustá-la. Apercebendo-se disso, voltou a sentar-se e concluiu:
- Está bem. vou tratar eu próprio do caso... Tu, Macha, passas a noite aqui. Deita-te na minha cama... eu irei para a loja...
- Deitava-me de bom grado... estou cansada...
Sem proferir palavra, Lunev afastou a mesa da cama, na qual Macha se deixou cair, tentando depois, baldadamente, enrolar-se na manta. Murmurava, com um sorriso frouxo:
?-Ai, sinto-me tão esquisita... como se estivesse embriagada...
Ilia cobriu-a, ajeitou-lhe a almofada por baixo da cabeça e dirigiu-se para a loja, mas ela, assustada, gritou-lhe:
-Fica ao pé de mim! Tenho medo de estar sozinha... Parece-me sempre que vejo coisas...
O rapaz sentou-se numa cadeira ao lado dela, e depois de contemplar, durante uns breves instantes, o seu rosto pálido, emoldurado nos caracóis castanhos, voltou-se para o outro lado. Sentia vergonha de a ver assim, quase sem vida. Lembrou-se do pedido de Tiago, do que a Matitsa contara a respeito da vida de Macha, e baixou a cabeça.
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Na casa em frente cantava-se um dueto e, pela janela aberta, as palavras irrompiam no quarto de Ilia. Uma voz cheia, de baixo, entoava com paixão:
O de-ses-pc-raaa-do noa saaa-be...
- Já estava quase a dormir - dizia Macha por entre dentes. - Que bem que cantam aqui... cantam bem...
- Lá isso cantam...-soltou Ilia, triste. - Uns são esfolados vivos, outros berram...
E não póóóó-de dar-me ain-da...
"A-a-a..." Uma bela nota aguda vibrou no silêncio nocturno e voou para as alturas, livre e ligeira...
Lunev foi fechar a janela: a canção parecia-lhe deslocada, feria-o. O ruído das vidraças sobressaltou Macha. Abriu os olhos e, mostrando uma expressão apavorada, perguntou :
- Quem está aí?
- Sou eu... Estava a fechar a janela. -Meu Deus!... Vais-te embora?
- Não, não tenhas medo...
A sua cabeça agitou-se na almofada e voltou a aquietar -se. Mas ao menor movimento de Ilia, um ruído de passos na rua, tudo a fazia estremecer; abria logo os olhos e gritava em sonhos:
- Imediatamente... Oh!, imediatamente...
Esforçando-se por se manter imóvel, o olhar fito na janela que voltara a abrir, Lunev reflectia na maneira de auxiliar Macha e tomou a firme decisão de a conservar em sua casa enquanto a polícia não tivesse tomado as coisas em mão...
"Era preciso fazer agir IKirik..."
- Por favor, por favor! - Calorosas exclamações irrompiam das janelas dos Gromov. Alguém dava palmas. Macha pôs-se a gemer, enquanto na moradia em frente recomeçavam as canções:
Dois cavalos baias arreados de madrugada...
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Lunev estava próximo do desespero. O canto, as explosões de alegria, as gargalhadas, enervavam-no. com os cotovelos fincados no parapeito da janela, observava cheio de ódio as luzes em frente, pensava,, fora de si, que conviria saltar para a rua e quebrar com uma pedra da calçada uma das vidraças. Ou então desfechar uma chumbada naqueles alegres foliões, ferindo-os. Imaginou as caras deles, apavoradas, ensanguentadas, a confusão que se seguiria, os berros, e sorriu, dominado por uma alegria selvagem. Mas. mau grado seu, as palavras da canção entravam-lhe pelos ouvidos e ele repetia-as maquinalmente, apercebendo-se, com espanto, de que os divertidos convivas estavam a cantar o enterro de uma mulher de mau porte. Ficou estupefacto e pôs-se de ouvido à escuta, enquanto dizia para consigo:
"Porque cantarão coisas destas? O que haverá de divertido numa canção assim? Vejam o que eles vão inventar, aqueles imbecis! E aqui, a dez metros de distância, jaz um ser vivo que foi martirizado... e todos ignoram os seus sofrimentos..."
- Bravo!, bravo! -e os gritos ecoaram até ao fim da
rua.
Lunev sorria, olhando tão depressa para Macha, como para fora. Começava a achar engraçado aquela gente divertir-se cantando o enterro de uma debochada.
--Vassili... Vassilitch...-sussurrava Macha.
E agitando-se bruscamente no leito, como sob o efeito de uma queimadela, repeliu a manta, que escorregou para o chão. Depois pôs os braços em cruz e imobilizou-se... Tinha a boca entreaberta e gemia. Lunev debruçou-se precipitadamente sobre ela, temendo que estivesse a morrer; tranquilizado, tapou-a de novo com a manta, amarinhou para cima do apoio da janela e, encostando o rosto às grades, observou a casa dos Gromov. Continuavam a cantar: solos, duetos ou coros. A música ressoava, os risos ribombavam. Por trás das janelas passavam mulheres vestidas de branco, de cor-de-rosa ou de azul-celeste. Ilia prestava atenção às canções, interrogando-se, perplexo, como podiam aquelas pessoas cantar árias arrastadas e melancólicas, tendo por tema o Volga, os enterros, as terras virgens, e rir, após cada canção, como se nada fosse, como se não fossem elas próprias que
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tivessem cantado aquelas mesmas canções... Não se estavam a divertir também com a melancolia?
Cada vez que um movimento ou um gemido de Macha lhe lembrava a sua presença, Ilia voltava instintivamente o olhar para onde a rapariga estava, perguntando-se o que iria ser dela. E se Tatiana aparecesse na loja e a visse?... Que poderia fazer daquela desgraçada? Parecia-lhe que endoidecia. Quando o sono chegou, desceu do peitoril da janela e estendeu-se no chão, ao lado do leito, com o sobretudo enrolado debaixo da cabeça. Sonhou que Macha estava morta e se encontrava estendida no solo, a meio de um vasto telheiro, e que senhoras de branco, cor-de-rosa e azul-celeste cantavam em volta dela. Quando o canto era triste, riam todas às gargalhadas a contratempo, mas ao entoarem uma ária alegre vertiam copiosas lágrimas, baixando tristemente a cabeça e secando os olhos com lencinhos brancos. A quadra era sombria e húmida; a um canto, o ferreiro Sável estava a forjar uma grade de ferro, martelando com fragor nas barras aquecidas ao rubro. Alguém andava por cima do telhado e gritava:
- Ilia, ó Ilia!...
E ele, Ilia, também jazia no telheiro, fortemente amarrado; custava-lhe fazer o menor movimento e não podia falar...
- Ilia! Levanta-te, por favor!...
Abriu os olhos e reconheceu Paulo Gratchev. Estava sentado numa cadeira e tocava-lhe com o pé. Um claro raio de sol penetrava no quarto, incidindo no samovar, que fazia ronrom em cima da mesa. Lunev, cego pela luz, semicerrou os olhos.
- Ouve, Ilia!...
A voz de Paulo estava rouca, como após uma prolongada embriaguez, a sua tez amarelecida e os cabelos desgrenhados. Lunev lançou-lhe um olhar e pôs-se de pé, exclamando, em voz abafada:
- Que aconteceu?
- Ela foi apanhada!... - disse Paulo, abanando a cabeça.
- O quê? Onde está ela? - perguntou Ilia, inclinando-se para ele e pondo-lhe uma mão no ombro. Gratchev
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deixou-se cair para a frente e articulou, com expressão desvairada:
- Meteram-na na cadeia...
- Porquê? -interrogou Ilia num murmúrio.
Macha despertou e, sobressaltada ao ver Paulo, fitou-o com pavor. No limiar da porta de comunicação com a loja, Gavrik observava a cena.
- Eles dizem que... ela roubou a carteira... de um mercador...
Ilia bateu suavemente no ombro do companheiro e afastou-se sem dizer mais nada.
- Ela agrediu... em pleno rosto... o adjunto do comissário...
-Sim, é evidente - comentou Ilia com um sorriso triste. ?- Já que se vai para o degredo, o melhor é acumular as razões...
Apercebendo-se de que tudo aquilo lhe não dizia respeito, Macha sorriu e disse em voz doce:
- Eu iria de boa vontade para o degredo... Paulo olhou para ela e depois para Ilia.
- Não a reconheces ? - perguntou este último. - É a Macha, a filha do Penfichka, lembras-te?
- Ah!-exclamou com indiferença Paulo, e desviou o olhar da rapariga, se bem que esta, reconhecendo-o, lhe sorrisse.
- Ilia! - tornou Gratchev, sombrio. - E se foi por mim que ela fez aquilo!
Lunev, ainda por lavar e pentear, sentou-se aos pés da cama de Macha, olhando ora um, ora outro, entontecido.
- Eu sabia - disse lentamente - que esta história acabaria mal.
- Ela não me quis dar ouvidos - suspirou Paulo, abatido.
- É claro! - soltou Lunev em tom de censura. - Tudo se resume a isso: ela não te deu ouvidos! E o que é que tu lhe podias dizer?
- Eu amava-a...
- Que tem o teu amor que ver com isso ?
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Lunev começava a exaltar-se. Todas estas histórias, a de Macha, a de Paulo, despertavam o seu rancor. Não sabendo contra quem dirigi-lo, atacou o camarada.
- Todos querem ter uma vida limpa e feliz... ela também... E tu chegas: amo-te, portanto vem viver comigo e aguenta a miséria... Pensas que está certo?
- Que devo fazer, então ? - perguntou Paulo num tom breve, abafado.
A pergunta arrefeceu um pouco a exaltação de Lunev. Ficou pensativo.
Gavrik perguntou de longe:
- Abro a loja?
- Bolas para a loja!-berrou Lunev fora de si. - É mesmo a altura própria de tratar do negócio!
--Estou a incomodar-te? -perguntou Paulo.
Dobrado em dois, com os cotovelos apoiados nos joelhos, tinha os olhos cravados no soalho. Numa das fontes, via-se uma veia bater, inchada.
- Tu? - exclamou Lunev, olhando para ele.-Tu não me incomodas... e a Macha também não... É outra coisa qualquer que nos incomoda a todos... tu, eu, a Macha... A estupidez, ou não sei o quê... Mas o que é certo é que se torna impossível viver humanamente!... Estou farto de ver apenas desgosto, fealdade... pecado, sujidão... farto! E eu próprio...
Calou-se e o seu rosto empalideceu.
- Só pensas em ti... - observou Paulo.
- E tu, pensas em quem? - perguntou o outro, sarcástico. - Cada qual sofre a sua dor, geme com a sua própria voz... Não é em mim que eu penso, é em todos... todos me incomodam...
- Vou-me embora - soltou Gratchev, e levantou-se com dificuldade.
- Então! - gritou-lhe Ilia. - Faz por compreender, não te ofendas...
- Tenho a sensação de me terem dado uma pancada na cabeça, meu caro... É a pena que sinto pela Vera... Que se poderá fazer?
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- Não há nada a fazer - afirmou Ilia sem hesitação. Compõe versos em honra dela, porque está perdida! Já está condenada...
Gratchev voltou a sentar-se.
- E se eu fosse declarar que ela fez tudo aquilo por mim?
- Tomas-te por um príncipe, ou quê? Vai declará-lo, vai, e ferram contigo na prisão, também... E pronto! Temos de dar um arranjo a este quarto. Macha, nós vamos para a loja, levanta-te, arruma um pouco as coisas... serve-nos chá...
A rapariga agitou-se violentamente, levantou a cabeça da almofada e perguntou a Ilia:
- Tenho de voltar para casa?
- Estar em casa é encontrarmo-nos, pelo menos, num sítio onde nos não torturam...
Uma vez na loja, Paulo interrogou, sombrio:
- Que faz ela cá? Como está magra!...
Lunev pô-lo sucintamente ao corrente. com grande surpresa, notou que as desgraças da amiga de infância reanimaram Paulo.
?- Bem o sabes, velho crápula - disse ele, insultando o lojista. Chegou mesmo a sorrir.
Ao lado do companheiro, Ilia relanceou o olhar pelo estabelecimento e disse:
- Tu garantiste-me, há pouco tempo, que esta vida me não daria a paz que desejo...
Num gesto lento e circular mostrou a loja e, com expressão hostil, continuou:
- É verdade, não encontrei a paz... Que ganho eu em passar o tempo todo no mesmo lugar, negociando? Perdi a liberdade. É-me impossível sair. Dantes, podia deambular pelas ruas, por onde queria... Descobria um lugar aprazível, parava, admirava... Agora estou aqui fechado, cada dia que surge é igual ao que passou, e mais nada...
- Deverias ter tomado a Vera ao teu serviço, como vendedora - atalhou Paulo.
Ilia não respondeu. Macha chamou-os:
- Venham!
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Sentados à mesa, em frente do chá, mal conversaram. Na rua brilhava o sol; pés descalços de crianças ressoavam no passeio; vendedores de hortaliça passavam por baixo das janelas.
Tudo lembrava a Primavera, os belos dias quentes e luminosos, mas no quarto exíguo reinava a humidade, ouvia-se de tempos a tempos uma palavra triste, pronunciada a meia voz, o samovar crepitava, reflectindo os raios do Sol...
- Parece que estamos num repasto de enterro soltou Ilia.
- O enterro da Vera - juntou Gratchev. - Pergunto-me se não fui eu quem a empurrou para a prisão.
- É muito possível - confirmou Lunev, cruel. Gratchev fitou-o e lançou-lhe em rosto:
- Não tens coração...
- E por que razão havia de o ter? Houve jamais alguém que me acarinhasse?... Só uma pessoa gostou de mim, talvez... e era uma prostituta!...
Sob o influxo da irritação escaldante, o sangue subiu-lhe à cara, os olhos injectaram-se-lhe; pôs-se de pé num rompante, dominado pelo rancor, sentindo o desejo irreprimível de gritar, praguejar, martelar com os punhos a mesa e as paredes...
Mas Macha, assustada, rebentou em soluços, queixosos e infantis.
- Eu vou-me embora... deixem-me - dizia ela em voz trémula e molhada de lágrimas, olhando para todos os lados como se procurasse sítio onde se esconder.
Lunev acalmara-se. Via que também Paulo o observava com hostilidade.
- Acabou-se! Para que choras, hem? - gritou, irritado.- Não é contigo que estou a gritar... E não tens sítio algum para onde ir... Eu é que vou sair... Preciso muito de ar... O Paulo fica ao pé de ti... Gavrik! Se Tatiana Avtonomova aparecer... O que é, agora?
Tinham batido à porta do pátio. Gavrik interrogou o patrão com o olhar.
- Abre! - ordenou Ilia.
A irmã de Gavrik apareceu no limiar. Ficou uns instantes sem fazer qualquer movimento, rígida, a cabeça
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lançada para trás, observando a cena com os olhos muito abertos. Depois, uma expressão de repugnância toldou o seu rosto desgracioso e seco e, sem corresponder à saudação de Ilia, disse ao irmão:
-Chega cá fora um minuto só, Gavrik...
Ilia explodiu. A ofensa fizera-o corar, os seus olhos ardiam.
- Quanto a si, menina, faria melhor respondendo quando a cumprimentam - proferiu com uma raiva contida.
Ela empertigou-se ainda mais e as sobrancelhas franzidas pareciam querer tocar-se. Apertando os lábios, mediu Ilia dos pés à cabeça e não se dignou dizer fosse o que fosse. Por seu lado, Gavrik lançou ao patrão um olhar zangado.
- Não está em casa de bêbedos, nem de vadios -, prosseguiu Lunev, fremente de tensão interior - é recebida com cortesia, como pessoa instruída, e deve comportar-se do mesmo modo...
- Não recalcitres, Sônia - disse rapidamente Gavrik, num tom conciliador, indo colocar-se ao lado da irmã e tomando-lhe a mão.
Seguiu-se um penoso silêncio. Ilia e a rapariga enfrentavam-se em ar de desafio e esperavam. Macha refugiara-se, sem ruído, a um canto do quarto. Paulo pestanejava, de olhar ausente.
- Vamos, fala, Sônia - soltou Gavrik com impaciência.- Estás convencida de que eles te querem ofender? E, com um sorriso inesperado, acrescentou: - Que giros que eles são!
A irmã puxou-o por um braço e perguntou a Lunev em voz breve e seca:
- Que deseja de mim?
- Nada, simplesmente...
Mas, nesse instante, uma ideia clara e feliz iluminou o espírito de Ilia. Deu um passo para a rapariga e começou, no tom mais amável que lhe foi possível encontrar:
- Permita que lhe peça... Nós estamos aqui os três... gente simples, ignorante... A menina é uma pessoa de estudos...
Tinha pressa de expor o que lhe viera à mente, mas não o conseguia, pois estava perturbado pelo olhar incisivo e
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severo da rapariga, que dir-se-ia querer repeli-lo. Baixou os olhos e, confundido, sussurrou:
-Não sou capaz de dizer assim tudo de uma vez... Se
l não está com muito pressa... aproxime-se, sente-se...
Afastou-se para a deixar passar. Então, Sônia, deixando
o irmão à porta, disse-lhe:
- Espera-me aqui, Gavrik.
E entrou no quarto. Lunev aproximou dela um tamborete. A rapariga sentou-se. Paulo foi para a loja, enquanto
Macha se encolhia no seu canto, junto ao fogão. Lunev
permanecia estático, a dois passos da irmã do seu empregado,
continuando a sentir-se incapaz de dar início à sua
narração.
-E então? - disse a rapariga.
-Aqui está... do que se trata - começou ele, depois de
soltar um suspiro profundo. - Está a ver aquela rapariga,! não é aliás uma rapariga, mas sim uma mulher casada...
com um velho... Ele tiraniza-a, ela está cheia de nódoas
negras, de feridas, fugiu de casa... Refugiou-se aqui...
Talvez esteja a pensar em mal? Mas não, nada disso...
Atropelando as palavras, falava de maneira incoerente, ; partilhado entre o desejo de contar a história de Macha e
; o de expor àquela rapariga as suas próprias ideias a respeito dessa história. Queria, sobretudo, dar-lhe a conhecer
o que lhe ia pela mente. Sônia fitava-o, o seu olhar já se
tornara muito menos duro.
- Estou a compreender - cortou. - Não sabe o que
" há-de fazer. Antes de mais nada, é preciso encontrar um
médico... que a examine... Conheço um, quer que a leve lá?
Gavrik, vê que horas são. Onze horas? Muito bem, é a
hora da consulta... Gavrik, chama um trem... E o senhor
apresente-me...
Mas Ilia não fazia um único movimento. Não imaginara que aquela rapariga grave e severa pudesse falar em voz tão suave. Estava igualmente impressionado pela sua expressão: o rosto sempre altivo da irmã de Gavrik só exprimia, naquele momento, preocupação, e, não obstante as narinas dilatadas, emanava dela qualquer coisa de simples e bom i que Ilia até então não vislumbrara. Observava a rapariga,
sem conseguir falar, e sorria, confuso. Ela, entretanto,
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desviara dele a sua atenção e aproximara-se de Macha, a quem falava docemente:
- Não chore, minha filha, não tenha medo... O doutor é uma pessoa excelente, vai examiná-la e dar-lhe um atestado... mais nada! Eu vou consigo lá... Então, minha querida, não chore...
Pôs as mãos nos ombros de Macha, tentando puxá-la a si.
- Ai!... Dói-me - gemeu Macha baixinho.
- Mas que tem ?
Lunev escutava, sorrindo sempre.
- Em que estado ela está!-exclamou Sônia, afastan do-se de Macha. A sua expressão era de horror e indignação; empalidecera.
- com que brutalidade lhe bateram... Oh!
- E aqui tem a nossa vida! ?- bradou Lunev, explodindo novamente.-Viu, não é assim? E posso mostrar-lhe outro: ei-lo! Permita-me que lhe apresente: o meu camarada Paulo Gratchev...
Paulo estendeu a mão à rapariga, sem olhar para ela.
- Sofia Medvedeva - disse ela observando o rosto abatido de Paulo. - E o senhor, chama-se Ilia, não é verdade?- disse voltando-se para Lunev.
- Isso mesmo, com efeito - apressou-se a responder Ilia, apertando-lhe vigorosamente a mão; e, sem a largar, prosseguiu: - pois bem... visto que a menina é assim... quer dizer: posto que se ocupa de um caso, não vai certamente rejeitar o outro! No que diz respeito a ele, é igualmente um drama.
Ela cravou o olhar grave e atento no belo rosto emocionado, tentando, ao mesmo tempo, libertar discretamente a mão presa. Mas Ilia falava de Vera, de Paulo, exprimia-se com fogo, com paixão. Sacudia violentamente a mão dela e dizia:
- Ele escreve poemas, e que poemas! Mas este caso consumiu-o... E a ela também... Poderá pensar que visto ela ser... o que é, o assunto está arrumado? Mas não, de forma alguma! Nunca estamos inteiramente no bem nem no mal!
- Que quer dizer? - interrompeu a rapariga.
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- Quero dizer que, mesmo que se não valha grande coisa, tem-se cá dentro um pouco de bom, e se se é bom não se deixa de ter algo de mau... A alma de cada um de nós é sempre feita de peças diferentes... de cada um de nós...
- Está certo o que diz! - aprovou ela, fazendo um sinal afirmativo com a cabeça. - Mas largue a minha mão, se faz favor, está a magoar-me!
Ilia confundiu-se em desculpas. Ela já lhe não dava ouvidos, esforçando-se antes por convencer Paulo:
--É vergonhoso, não se pode ficar de braços cruzados! É preciso agir! Procurar-lhe um defensor, um advogado, compreende? Eu arranjo-lhe um, está a ouvir-me? E não lhe sucederá nada, será absolvida... Dou-lhe a minha palavra!
O seu rosto estava corado, o cabelo um pouco desalinhado nas fontes e os olhos faiscavam.
Macha, que se acercara dela, contemplava-a com a curiosidade confiante de uma criança. Lunev lançava a Macha e a Paulo olhares triunfantes e graves, retirando certa vaidade do facto de uma rapariga assim se encontrar em sua casa.
- Se realmente me pode ajudar - começou Paulo em voz trémula-, peço-lhe que o faça!
- Passe por minha casa às sete horas, está bem? Gavrik dar-lhe-á a morada...
- Lá estarei... Não tenho palavras para lhe agradecer...
- Deixemos isso. É uma obrigação auxiliarmo-nos uns aos outros.
- E é moeda corrente! - exclamou ironicamente Ilia. A rapariga voltou-se vivamente para ele. Mas Gavrik,
que, no meio desta confusão, mostrava bem considerar-se a única pessoa sensata e razoável, puxou a irmã pela mão, dizendo:
- Vai-te embora, anda!
- Macha, vista-se!
- Não tenho mais nada! - declarou a outra timidamente.
- Ah... Não tem importância! Vamos... Irá ter comigo, não é assim, Gratchev? Até à vista, Ilia!
Sem proferir palavra, os dois amigos apertaram-lhe respeitosamente a mão e ela encaminhou-se para a porta,
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conduzindo Macha pela mão, mas chegando ao limiar voltou-se mais uma vez e, de cabeça bem erguida, disse a Ilia:
- Ia-me esquecendo... Não lhe dei os bons-dias... Foi uma grosseria, peço desculpa, ouviu?
As suas faces enrubesceram e, confusa, baixou os olhos. Ilia tinha os seus presos nela e uma música maravilhosa encheu-lhe o coração.
- Peço desculpa... Pensara que estavam... numa pândega...
Calou-se, como se a palavra lhe tivesse ficado atravessada na garganta.
- E quando me censurou, cuidei que era o patrão quem falava... estava enganada! Sinto-me muito feliz que assim não seja. Percebo agora que se tratava antes de um sentimento de dignidade.
Um sorriso bondoso e radiante iluminou subitamente todo o seu aspecto e, num impulso, feliz com as palavras que pronunciara, acrescentou:
- Alegro-me muito por tudo se ter passado assim... Foi muito, muito bem.Muito bem!
E desapareceu, sorridente, semelhante a uma pequena nuvem acinzentada, resplandecendo sob os raios da aurora. Os camaradas seguiram-na com o olhar. Era solene, quase ridícula, a expressão de ambos. Depois. Lunev olhou em volta de si e, dando uma cotovelada ao outro, perguntou:
- Que maneira limpa de agir, hem? O outro sorriu.
- Eh!... É alguém! -continuou Lunev. - Impõe-se... não achas ?
- Varreu tudo à sua frente, como uma rajada de vento!
- Viste? - dizia Ilia. triunfante, ajeitando com uma mão o cabelo encaracolado. - Viste como ela se desculpou, hem? Estás vendo o que é uma pessoa verdadeiramente instruída, que se sente capaz de respeitar seja quem for... mas que nunca quer ser a primeira a cumprimentar. Compreendes?
- Tem um bom coração - confirmou Gratchev.
- Parecia uma estrela a brilhar!
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- Parecia. E desenvencilhou tudo num abrir e fechar de olhos: onde ir, que fazer, como...
Lunev estava excitadíssimo. Sentia-se feliz pelo facto de aquela altiva rapariga se ter mostrado tão simples, tão espontânea, e por ele próprio ter mantido uma atitude digna perante ela.
Gavrik andava à roda deles, farto de não ter que fazer.
- Ai, Gavrik!-soltou Ilia, agarrando-o por um ombro. - Tens uma irmã formidável!
- Sim, é boazinha!-disse o garoto com condescendência.- Trabalhamos hoje? Se não trabalhamos, que seja como um dia feriado... e eu poderei ir para o campo!
- Hoje não se trabalha! Meu bom Paulo, vamos passear os dois!
- Quero ir à polícia - disse Paulo, de novo sombrio. Talvez me deixem vê-la...
- Eu vou passear!
Revigorado e alegre, seguiu, sem pressa nem destino, pelas ruas, pensando na rapariga e comparando-a a todas as pessoas que conhecera até ali. As palavras de desculpa que ela proferira não lhe saíam da memória e o seu rosto, onde cada traço exprimia uma invencível aspiração, continuava a acompanhá-lo...
"E ao princípio, como era desagradável comigo!", lembrava-se, sorrindo, e tentava compreender por que razão, sem o conhecer nem terem trocado qualquer palavra explícita, ela tomara, em relação a ele, aqueles ares altivos e irritados.
A sua volta, a vida vibrava intensamente. Grupos de estudantes passavam rindo, depois eram as telegas carregadas de víveres, as caleches, um mendigo coxeando e fazendo soar a perna de madeira nas pedras do passeio. Dois presos, com uma escolta, transportavam, pendurada num pau pelas asas, uma selha, cujo conteúdo se não distinguia; um cãozito vagueava, de língua pendurada ao canto do focinho... Fragor, estalidos, gritos, ruídos de passos, tudo se amalgamava num rumor estuante de vida, excitante. Uma poeira quente flutuava no ar e entrava pelas narinas, causando-lhes ardor. No céu límpido e profundo brilhava o Sol, que inundava a Terra de um brilho escaldante. Lunev contemplava tudo com um prazer de há muito não sentido. Tudo atraía
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a sua atenção, tudo tinha grande interesse. Eis uma moça, caminhando rapidamente, de ar desembaraçado, faces coradas, que, ao cruzar-se com ele, lhe lança um olhar franco e agradável, parecendo dizer: "És um belo rapaz!..." Lunev sorriu-lhe.
Um marçano apressava-se, com uma chaleira de cobre na mão; a água fria borbulhava, salpicando os transeuntes; a tampa da chaleira tinia alegremente. Toda a rua escaldava, rumorejava; o verde frondoso das velhas tílias do cemitério municipal era um convite de sombra e frescura. Envolta pela muralha de pedras brancas, a luxuriante vegetação do velho cemitério ergue-se para o céu numa vaga potente cuja crista se esboroa em verde folhagem. Lá no alto, cada folha recorta-se nitidamente no fundo azul do céu e, tremendo, parece prestes a dissolver-se...
Tendo entrado no cemitério, Lunev caminhou a passos lentos por uma larga álea, aspirando profundamente o perfume das tílias. Por entre os troncos, à sombra das ramagens, erguem-se toscos e pesados túmulos de mármore e de granito, com os flancos cobertos de líquenes. Aqui e ali, num misterioso claro-escuro, cruzes douradas reluziam docemente, descobriam-se epitáfios semiapagados pelo tempo. Pequenas matas de madressilvas, acácias, pinheiros e sabugueiros cresciam nos cerrados, escondendo os túmulos. Através dos espessos maciços de verdura, surgia, de quando em quando, uma cruz de madeira acinzentada fortemente enlaçada pelos novos rebentos. Os troncos esbranquiçados das bétulas jovens descortinavam-se, em reflexos aveludados, por entre a folhagem densa; modestos e encantadores, pareciam dissimular-se propositadamente na sombra para resplandecerem melhor em seguida. Por trás das grades de vedação, as flores formavam, na verdura, manchas multicores; uma vespa quebrava o silêncio com o seu zumbido, duas borboletas bailavam no espaço, mosquitos esvoaçavam sem ruído... E por toda a parte, subindo da terra, ervas e arbustos procuravam avidamente o caminho para a luz, cobrindo as lajes tristes; toda a verdura do cemitério aspirava intensamente a crescer, desenvolver-se, absorver a luz e o ar, transformar os sucos da terra rica em cores e odores, em
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beleza para os olhos e para a alma. Por toda a parte era o triunfo da vida, da vida sempre triunfante!
Lunev saboreava este passeio através do silêncio e aspirava a plenos pulmões os perfumes suaves das tílias e das flores. Dentro dele reinava, igualmente, a calma e a tranquilidade; o seu espírito descansava, sem pensar em coisa alguma, todo entregue ao prazer da solidão de que há muito tempo se desabituara.
Voltando à esquerda, meteu por uma álea estreita e começou a decifrar as inscrições nas cruzes e nos túmulos. Tinha dificuldade em vencer as vedações dos túmulos, todos eles rodeados por sumptuosos resguardos de ferro fundido ou forjado, apresentando formas complicadas.
"Sob esta cruz jazem as cinzas do escravo de Deus Bonifácio", leu e sorriu: o nome parecia-lhe cómico. Sobre os restos mortais de Bonifácio tinham colocado uma enorme pedra de granito cinzento. Ao lado, noutra vedação, repousava Pedro Babuchkine, de 28 anos...
"Era novo", disse Ilia para consigo.
Num modesto mármore branco, em forma de coluna, leu:
A terra perdeu uma flor, O céu ganhou uma estrela!
Lunev ficou pensativo perante este dístico, achando-o comovedor. Mas, subitamente, cambaleou, ferido em pleno coração, fechando os olhos com desespero. Mas no entanto continuava a ver, perfeitamente, a inscrição que o perturbara. As letras douradas e brilhantes tinham passado da pedra acastanhada para o seu espírito: "Jaz aqui o comerciante da Segunda Guilda Vassili Gavrilovitch Poluektov"...1
1 A Guilda era uma associação de mercadores encarregada da defesa dos interesses destes e representando um papel importante na administração civil. No século XIX existiam três guildas: a primeira representava os mais importantes comerciantes, os industriais, médicos, farmacêuticos e certos artífices; a segunda representava os comerciantes e artífices medianos e a terceira os comerciantes e artífices menos afortunados. (N. do T. francês)
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Volvidos poucos segundos, Ilia já se assustava com o seu próprio pavor, e, abrindo rapidamente os olhos, inspeccionou com cuidado os maciços de verdura que o rodeavam... Mas não havia vivalma e ouvia-se apenas, a certa distância, cantar uma missa de réquie. A voz de tenor do celebrante flutuava nos ares, clamando:
- Oremos...
Outra voz, um baixo profundo, replicava sem amenidade:
- Perdoai-nos!
O turíbulo tilintava de modo quase imperceptível.
Encostado ao tronco de um ácer, Lunev contemplava a campa do homem que assassinara. O boné, entalado entre a nuca e o tronco da árvore, deixava-lhe a testa a descoberto. Franzia as sobrancelhas e o lábio superior tremia-lhe, pondo os dentes à mostra. Tinha as mãos enfiadas nos bolsos do casaco e os pés fincados no solo.
A sepultura de Poluektov era constituída por uma pedra tumular, tendo esculpido um livro aberto com uma caveira e dois fémures cruzados. Ao lado, dentro da mesma vedação, encontrava-se outro túmulo, de dimensões mais reduzidas, cujo epitáfio indicava jazer ali a escrava de Deus Eupráxia Poluektov, de 22 anos.
"A primeira mulher dele." Esta ideia surgiu no único recanto do seu cérebro que permanecia liberto do intenso esforço da recordação. com efeito, quase todo o seu espírito estava dominado pela lembrança de Poluektov: o primeiro encontro, a maneira como o estrangulara e como a baba do velho lhe encharcara as mãos. Mas, apagando tudo isto da memória, Lunev não sentia receio nem remorso: fitava a sepultura com ódio, com doloroso ressentimento. E entregue a uma violenta indignação, profundamente convencido da verdade das suas palavras, disse em pensamento ao comerciante:
"Foi por tua culpa, maldito, que estraguei a minha vida!... Velho diabólico! Qual será o meu destino?... Por causa de ti, tenho as mãos sujas para sempre..."
Tinha vontade de gritar, tão alto quanto pudesse. Sentia dificuldade em reprimir este impetuoso desejo. Perante os seus olhos, desfilavam o rosto descarnado de víbora de
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Poluektov, a cabeça calva e a expressão irritada de Strogany com as suas espessas sobrancelhas ruivas, a cara petulante de Petrukha, o estúpido Kirik, Khrenov com o seu cabelo grisalho, o nariz esborrachado e os olhos pequenos, um cortejo infindo de conhecimentos. Os seus ouvidos enchiam-se de zumbidos e parecia-lhe que toda aquela gente o rodeava, o cercava, e acabaria por o espezinhar implacàvelmente.
Desencostou-se da árvore e o boné caiu-lhe. Ao baixar-se para o apanhar, não conseguiu desprender os olhos da campa do cambista-receptador. Custava-lhe respirar, sentia-se desfalecer, e, ao mesmo tempo, o sangue subia-lhe à cabeça, os olhos ardiam-lhe. Num violento esforço, afastou o olhar de pedra tumular, aproximou-se da grade de vedação e, agarrado ao rebordo, fremente de ódio, escarrou na sepultura. Afastou-se dali, batendo violentamente com os pés no solo, como se pretendesse magoá-lo...
Ilia não sentia vontade de voltar para casa; tinha um peso na alma, uma sensação de desconsolo sem remédio. Caminhava lentamente, sem atentar em ninguém, sem interesse por coisa alguma, sem pensamentos. Meteu ao calhar por uma rua, cortou por outra maquinalmente, andou um pouco mais e acabou por notar que se encontrava nas proximidades do botequim do Petrukha Filimonov, lembrando-se então de Tiago. Chegado à entrada do pátio, achou que deveria entrar, se bem que não sentisse o mínimo desejo de o fazer. Ao subir os degraus da entrada de serviço, distinguiu a voz de Perfichka:
- Olá, boa gente! Nada de canseiras, basta de me bater...
A porta estava aberta e Lunev parou no limiar; através de uma nuvem de poeira e fumo, avistou Tiago ao balcão. com o cabelo penteado, envergando uma sobrecasaca acanhada, de mangas demasiado curtas, o filho do botequineiro mostrava-se muito atarefado, deitando chá em bules, contando pedaços de açúcar, servindo vodka, abrindo e fechando ruidosamente a gaveta da caixa. Os criados de mesa chegavam-se ao balcão e, lançando fichas sobre este, gritavam-lhe:
?-Meia garrafa! Duas cervejas! Dez copeques de tiras de toucinho!
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"Aceitou a canga!", considerou Lunev, regozijando-se maldosamente na contemplação das mãos avermelhadas do companheiro, que corria de um lado para o outro.
- Ah! -exclamou Tiago com sincera satisfação ao ver aproximar-se Lunev, mas logo a seguir lançou um olhar preocupado para a porta que ficava por trás dele. Tinha a testa húmida, o rosto pálido, apenas com duas rosetas vermelhas. Agarrou na mão de Ilia, sacudiu-a e foi tomado por um ataque de tosse.
- Então como vai isso? - perguntou Lunev, esforçando-se por sorrir. - Pelos vistos, puseram-te a trela?
-Que remédio!
Deixou descair os ombros e pareceu minguar.
- Já há muito que nos não víamos! - disse, fitando Ilia com os olhos meigos e tristes. - Temos de conversar um pouco... Meu pai não está, justamente... Olha, passa por aqui... vou pedir a minha madrasta que me substitua...
Abriu a porta do quarto paterno e disse, num tom respeitoso :
- Mamã!... Se quisesse fazer o favor de tomar o meu lugar durante um instantezinho...
Ilia entrou no quarto onde vivera com o tio e olhou em volta: o papel das paredes tinha enegrecido e, em vez de duas camas, havia apenas uma, por cima da qual tinha sido pendurada na parede uma pequena estante com livros. No sítio onde Ilia dormia fora colocada uma espécie de arca, grande e pesada.
- Pronto, estou livre durante uma horazita!-declarou alegremente Tiago ao entrar no quarto, e correu o fecho. - Queres chá? Óptimo... Ó João, traz chá! - Mal gritara, teve um forte e interminável ataque de tosse, que o fez apoiar-se à parede, baixar a cabeça e curvar as costas, como se quisesse fazer sair algo do peito.
- Tosses muito! - disse Lunev.
- O peito dá cabo de mim... Estou muito contente por te voltar a ver... Tornaste-te... um senhor... Como tens passado?
- Eu... nada de novo!-replicou Lunev, após uma pausa. - Vai indo... e tu? Queria saber...
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Não tinha vontade de falar de si mesmo, nem de nada. Observava Tiago e, vendo-o tão magro, sentia dó dele. Mas era uma piedade sem ardor, uma espécie de sentimento sem conteúdo.
- Eu, meu velho... vou suportando a sorte como posso...
- Teu pai deixa-te desfeito...
Para que precisas de um rublo? Dá as tuas carícias gratuitamente!
martelava Perfichka, do outro lado do tabique, acompanhando-se ao harmónio.
- O que é aquela arca ali?-interrogou Ilia.
- Aquilo é um pequeno órgão. Meu pai comprou-o por vinte e cinco rublos e deu-mo... "Toma", disse-me, "aprende a tocar nisto. Depois compro-te outro melhor, ponho-o no botequim e tocarás para os fregueses... Não prestas para mais nada..." Está certo; em todos os botequins há um órgão, e no nosso não. E eu gosto de tocar...
- Que grande canalha!-soltou Lunev, escarninho.
- Não acho, porquê? Deixa-o lá... Na verdade, eu não lhe sirvo para nada...
Ilia encarou bruscamente o companheiro e disse-lhe, com maldade:
?- Nesse caso, dá-lhe o seguinte conselho: "Quando eu estiver a morrer, querido paizinho, põe-me no botequim; podes exigir cinco copeques por cabeça aos que desejarem ver-me morrer..." E então, pelo menos, ser-lhe-ás útil...
Tiago sorriu, pouco à vontade, e recomeçou a tossir, levando as mãos tão depressa à garganta como ao peito.
E Perfichka prosseguia, imperturbável:
Observava estritamente os jejuns,
Nunca comia bastantemente.
As tripas vazias gemiam-me
Mas é certo que estavam bem limpinhas...
- Eis aqui a santidade!-E o seu harmónio acompanhava com atrevidos trinados as alegres palavras da cançoneta.
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- E dás-te bem com o teu irmão adoptivo? -perguntou Ilia, quando Tiago deixou de tossir. Este, ofegante, ergueu o rosto, que o esforço tornara arroxeado, e respondeu:
- Ele não vive connosco: os seus superiores não consentem... Um botequim... dizem... Ele vive... como um senhor. ..
Depois, baixando a voz, Tiago prosseguiu tristemente:
- Aquele livro, lembras-te? Sim... Tirou-mo... Diz que é um exemplar raro, que vale muito dinheiro. Levou-o... Pedi-lho que mo deixasse ficar. Não quis...
Ilia pôs-se a rir. Depois tomaram chá. Os reposteiros rangiam e as fendas do tabique deixavam passar, livremente, os sons e os cheiros do botequim. Cobrindo todos os outros rumores, ergueu-se uma voz sonora e viva que dizia:
- Ó Dimitri! Não interpretes erradamente as minhas palavras!
- Estou agora a ler uma história, meu caro - dizia Tiago-; chama-se alia ou os Subterrâneos do Palácio Mazzini... É interessantíssimo... E tu?
- Estou-me marimbando para os subterrâneos! Também não vivo muito acima da terra... - replicou Lunev, com uma expressão lúgubre.
Tiago olhou-o com simpatia e perguntou:
- Quer dizer que as tuas coisas também não vão bem? Lunev hesitava em falar-lhe de Macha. Mas Tiago continuava, na sua voz doce:
- Tu és sempre assim, Ilia... Resmungão e zangado... Não te serve para nada, penso eu. Já vês, ninguém é culpado!
Lunev bebia o chá em silêncio.
- E aliás "cada qual terá o quinhão que merece", é bem verdade! Vê o meu pai, por exemplo... A bem dizer, é um verdadeiro tirano! Mas chegou a Fiokla e, zás!, pôs-lhe a coleira! Agora as coisas não lhe correm às mil maravilhas, acredita! A neura até lhe deu para se meter nos copos... E ainda estão casados há pouco tempo! Mas todos recebem a paga e a Fiokla também não está livre de qualquer partida da sorte...
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A conversa começava a aborrecer Ilia; afastou de si a chávena, que deslizou no tabuleiro, e perguntou ao camarada com brusquidão:
- E agora, que esperas tu ?
- O quê?-interrogou Tiago em voz tranquila, mas abrindo muito os olhos.
- Quero eu dizer... do futuro... Que esperas tu? - repetiu Ilia secamente.
Tiago baixou a cabeça sem responder, perdendo-se em cogitações.
- Hem?, que dizes? - insistiu Ilia a meia voz, preso de uma perturbadora ansiedade e do desejo de deixar bem depressa o botequim.
- Que posso eu esperar?-começou Tiago suavemente, sem encarar o outro. - Não há nada a esperar!... vou
morrer... nada mais.
Levantou a cabeça; um sorriso feliz e tranquilo iluminava-lhe a face extenuada; e prosseguiu:
- Tenho sonhos azuis... Isto é: como se tudo fosse azul... Não somente o Céu, mas a Terra também, e as árvores, as flores, a erva, tudo! E reina um silêncio... Como se nada existisse, de tal modo tudo se encontra imóvel... e azul. Sigo por um caminho qualquer, sem cansaço, um caminho longo, sem fim... E não consigo perceber se sou ou não eu próprio. É tudo fácil... Os sonhos azuis são os que se têm antes de morrer...
- Adeus! - disse Lunev pondo-se de pé.
- Aonde vais? Fica mais um pouco!
- Não, adeus!
Tiago ergueu-se por seu turno.
- bom... vai!
Lunev apertou-lhe a mão escaldante e encarou-o em silêncio, não sabendo o que poderia acrescentar à laia de adeus. Desejava tanto encontrar qualquer coisa para lhe dizer que até sentia um nó na garganta.
- E a Macha? Ela também não... Sabes, a sua vida não é igualmente um mar de rosas... - disse Tiago tristemente.
- Não...
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- Parece que temos todos o mesmo destino... A vida é dura para ti, também, hem?
Tiago sublinhava as frases com um pálido sorriso. O som da sua voz, as suas próprias palavras, tudo nele se diria exangue, incolor... Ilia soltou-lhe a mão, que recaiu sem força.
- Pois bem, Tiago, perdoa-me...
- Deus perdoa! Volta a aparecer por cá! Ilia saiu sem responder.
Ao chegar à rua, sentiu-se aliviado. Via perfeitamente que Tiago ia morrer em breve, e isso provocava-lhe uma irritação sem objecto. Não lamentava a sorte do companheiro, porque não vislumbrava a maneira como aquele rapaz tranquilo poderia viver entre os homens. Para ele, já há muito que o amigo estava destinado a desaparecer. Mas havia algo que o perturbava: por que razão teria aquele ser inofensivo sido atormentado, por que razão era escorraçado deste mundo antes de tempo? E esta ideia fazia crescer na sua alma o ódio pela vida, enraizar-se profundamente, não mais o largar.
À noite, não conseguiu dormir. Não obstante a janela aberta, atabafava no quarto. Foi para o pátio e deitou-se ao pé do ulmeiro, junto à paliçada. Deitado de costas, fitava o céu claro, e quanto mais o perscrutava mais estrelas via. A Via Láctea estendia a sua teia de aranha de um lado ao outro da abóbada celeste; era, ao mesmo tempo, agradável e triste contemplá-la, através dos ramos. No céu, onde não há ninguém, as estrelas cintilam, e na Terra... que ornamentos há? Ilia semicerrava os olhos e parecia-lhe que os ramos se elevavam cada vez mais alto. Naquele fundo de veludo azul, semeado de estrelas resplandecentes, as ramagens negras assemelhavam-se a braços estendidos para o céu, tentando alcançar as profundidades. Ilia recordou-se dos sonhos azuis do camarada e a imagem de Tiago surgiu-lhe: também ele estava azul, diáfano, transparente, com grandes olhos claros e bons, como estrelas... Tinha vivido e fora tiranizado porque amava a paz... E os tiranos, esses, vivem como querem...
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A irmã de Gavrik começou a aparecer, quase diariamente, na loja de Lunev. Dava a impressão de estar sempre muito preocupada, cumprimentava Ilia com um vigoroso aperto de mão e, após uns dedos de conversa, eclipsava-se, deixando sempre algo de novo no espírito de Ilia. Certa vez perguntou-lhe:
- O comércio agrada-lhe?
- Nem por isso -- respondeu Lunev, encolhendo os ombros.- Mas é preciso viver...
Ela pousou nele demoradamente os olhos graves. O seu rosto parecia lançado para a frente.
- E não tentou viver do seu trabalho ? - interrogou. Ilia não percebeu o que queria dizer.
- Como disse?
- Já alguma vez trabalhou?
- Sempre. Toda a vida. Está vendo, faço comércio... respondeu Lunev com perplexidade.
Sônia sorriu; havia um não-sei-quê de contundente no seu sorriso.
- Está convencido de que fazer comércio é trabalhar ? Julga que é a mesma coisa? -? perguntou precipitadamente.
- Mas como?
Lunev compreendia, pela expressão, que a rapariga não estava a gracejar.
- Pois não é! - prosseguiu ela num tom condescendente. - Trabalhar é criar qualquer coisa, despender as nossas próprias energias, fabricar... atacadores, fitas, correntes, armários... está a perceber?
Ilia fez um sinal afirmativo com a cabeça e corou: tinha acanhamento de confessar que não compreendia.
- E o comércio será um trabalho ? Nada traz às pessoas!--prosseguia a rapariga com convicção, perscrutando Ilia.
- É evidente -começou ele com prudente lentidão. Tem toda a razão... Não é muito custoso fazer comércio... quando se está habituado... Mas, simplesmente, o comércio dá benefícios... Se não desse, para que serviria?
Ela não respondeu, voltou-lhe as costas, trocou umas palavras com o irmão e foi-se embora apressadamente, fazendo um simples aceno de cabeça a Ilia. Tinha a expressão
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de outrora, antes do aparecimento de Macha na loja, uma expressão seca e orgulhosa. Ilia tentou lembrar-se se proferira, inadvertidamente, qualquer palavra que a ofendesse. Recordou tudo quanto dissera, mas nada descobriu de ofensivo. Em seguida rememorou o que ela exprimira e o deixara preocupado. Que diferença descortinava ela entre comércio e trabalho?
Não havia maneira de perceber por que razão se zangara a rapariga, ao ponto de se exaltar, tanto mais que era boa pessoa e sabia não só lamentar, mas também auxiliar os outros. Paulo ia a casa dela e não se cansava de tecer elogios a seu respeito e de tudo quanto lá se passava.
- É assim: chegas a casa deles... "Ora viva!" Estão à mesa, sentamo-nos e comemos! Bebem chá, pois tomamos chá também! Uma simplicidade total! Encontra-se tanta gente em casa deles! E reina a alegria, canta-se, fala-se alto, discute-se acerca de livros. Há lá tantos livros como numa livraria! A casa é pequena, as pessoas acotovelam-se, riem. Tudo gente culta, um é advogado, outro será em breve médico, estudantes, tudo pessoas assim. A gente esquece completamente quem é e põe-se a rir com eles, a fumar e tudo o mais... Tipos simpáticos. Alegres, mas com cabeça...
--Não há perigo que ela me convide-observou Ilia tristemente. - com os seus ares importantes...
-O quê, ela? - exclamou Paulo. - Garanto-te que é a simplicidade personificada! Não te ponhas à espera de ser convidado por ela, vai lá a casa espontaneamente... Chegas, e pronto! Em casa deles é tal qual como num botequim! Não há cerimónias... Ora vê, por exemplo: quem sou eu ao pé deles? Mas estive lá duas vezes e já sou como se fosse de casa... É espantoso! Vivem como se estivessem brincando!
- Bem, e a Macha, como está?-perguntou Ilia.
- Vai indo, está a recompor-se... Anda por lá, sorri. Tratam dela... dão-lhe leite a beber... O Khrenov será apanhado!... Eles levaram a Macha ao juiz de instrução... E o advogado diz que o canalha do velho vai pagar bem caro... Eles também se ocupam da minha, para que seja julgada o mais depressa possível... Palavra, é uma maravilha em casa deles! O alojamento é minúsculo, está-se lá
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acamado como sardinhas em lata, mas no entanto respira-se estupendamente...
-E ela?-interrogou Ilia.
Paulo falava dela como o fazia em pequeno ao referir-se aos prisioneiros que o tinham ensinado a ler. Empertigava-se e dizia num tom grave, entrecortando as frases com interjeições:
- Ela, meu velho, santo Deus! Ela dá ordens a toda a gente, e se por acaso alguém se sai com qualquer coisa que lhe não agrada... zás-catrapás! Assanha-se que nem uma gata...
--Lá isso já eu sei por experiência--soltou Ilia, sorrindo.
Invejava Paulo: tinha grande vontade de ir a casa de Sônia, mas o amor-próprio impedia-o de o fazer sem convite.
Postado por trás do balcão, cogitava obstinadamente: "As pessoas são muitas e todas tentam aproveitar-se do próximo. Mas ela, para que lhe serve tomar a defesa de Macha, de Vera? Ela é uma rapariga pobre. Em sua casa deve viver-se em regime de grande economia... Está, pois, provado que é uma bela alma... E a mim, fala-me num tom!... Que tem o Paulo que eu não tenha?"
Estas cogitações preocupavam-no de tal modo que quase se tornou indiferente a tudo o mais. Nas trevas da sua vida, era como se se tivesse feito um rasgão, através do qual mais pressentia do que via um cintilar longínquo, que ainda não era capaz de definir.
- Meu amigo - dizia-lhe Tatiana, fria e grave -, era preciso comprar atacadores de lã. A guipura também está a chegar ao fim... Já quase não há linha preta de cinquenta... Há uma firma que oferece botões de madrepérola, o representante passou por minha casa... Mandei-o cá. Já veio?
- Ainda não - respondia Ilia em voz breve. Criara aversão àquela mulher. Suspeitava que era agora amante de Korsakov, recentemente promovido a comissário. Avtonomova espaçava cada vez mais os encontros com Ilia, se bem que continuasse a mostrar-se carinhosa e bem disposta junto dele. Mas Lunev encontrava pretextos sucessivos para
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rejeitar as tentativas dela. E verificando que, pelos vistos, essa atitude a não aborrecia, insultava-a mentalmente: "Desavergonhada... rameira..."
Tatiana parecia-lhe especialmente odiosa quando aparecia na loja para verificar a mercadoria. Rodopiava sem parar pelo estabelecimento, empoleirava-se no balcão, tirava as caixas das prateleiras mais altas, espirrava por causa do pó, abanava a cabeça e rezingava com Gavrik:
- Um empregado de balcão tem de ser jeitoso e prestável. Não lhe dão de comer para passar os dias à porta, a limpar o nariz. E quando a patroa lhe dirige a palavra, deve ouvi-la com atenção, em vez de amuar...
Mas Gavrik tinha o seu feitio. A loquacidade da patroa deixava-o totalmente indiferente. Respondia-lhe de modo grosseiro, sem o menor respeito pela sua qualidade de dona da loja. E quando ela se ia embora, dizia ao patrão:
- Lá se foi a mulherzinha...
- Não se fala assim da patroa - corrigia Lunev, perdido de riso.
- Patroa o quê? -? protestava Gavrik. - Chega cá, grulha um bom bocado e raspa-se... O patrão é o senhor.
- Ela também... - retorquia Ilia sem grande convicção; apreciava aquele rapaz sério e correcto.
- Ela é uma mulherzinha qualquer... - insistia Gavrik. "Não educa este garoto!", repetia Avtonomova a Ilia,
"e, aliás... devo dizer que anda tudo às três pancadas por cá... não há entusiasmo, nem vontade..."
Lunev não lhe respondia e, cheio de ódio, dizia para consigo: "Estafermo, queira Deus que quebres uma perna ao saltar daí para baixo!..."
Recebeu um dia uma carta do tio e soube que este tinha ido não somente a Kiev, mas também a S. Sérgio, que estivera para visitar Solovki, mas que passara por Valaam e regressaria em breve 1.
1 Era um fenómeno corrente, na Rússia, ver gente do povo, na maioria de certa idade, ir em peregrinação para "se lavar dos pecados", percorrendo o país de lês a lês, de um mosteiro para outro, rivendo das esmolas, que lhe eram dadas de bom grado.
Aqui, Terêncio, que partiu da região da actual cidade de Gorki
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"Mais gozo em perspectiva", pensou Ilia, aborrecido. "O tio vai com certeza querer viver comigo..."
Chegaram alguns clientes e, enquanto os servia, apareceu a irmã de Gavrik. De aspecto extenuado, a respiração um pouco ofegante, a jovem cumprimentou e, indicando a porta do quarto com um movimento de cabeça, perguntou:
-Tem
água, cá?
- vou já buscar-lha!-disse Ilia.
- Eu trato disso...
Entrou para o quarto e aí permaneceu até Lunev ir ter com ela, após ter servido os fregueses. Encontrou-a em frente de Fases da Vida Humana. Voltando o rosto para Ilia, mostrou o quadro com os olhos e articulou:
- Que obra mais grosseira...
Atónito com a observação, Ilia sorriu, com um sentimento de culpa, mas antes de ter tempo de lhe pedir explicações, já ela se tinha ido embora...
Alguns dias mais tarde, a rapariga veio trazer roupa ao irmão e acusou o garoto de não tomar cuidado algum com o vestuário, de o rasgar e sujar.
- Já chega - cortou Gavrik, recalcitrante --, lá estás tu! À patroa anda sempre a ralhar comigo, e agora, se tu lhe segues o exemplo!...
-O que é que ele faz, muitas asneiras ? -? perguntou a estudante a Ilia.
- Só aquelas que pode fazer... ?-respondeu este último, amável.
- Sou muito sossegado - justificou-se o pequeno.
(ex-Nijni-Novgorod), esteve era Kiev, onde se encontra o Mosteiro de Kievo-Petcherskaia Lavra, o mais antigo da Rússia, fundado no século XI e célebre pelas suas igrejas, criptas, pinturas e mosaicos. Dai dirigiu-se para a Trindade S. Sérgio, ou Troitse-Serguievskaia Lavra, em Zagorsk (ex-Serguiev), ao norte de Moscovo, e que foi um dos mais poderosos mosteiros do Norte da Rússia. As suas igrejas, cuja decoração se deve a Rubliov e a Uchakov, são célebres. Terêncio partiu, seguidamente, para o Mosteiro de Solovetsk, que é igualmente uma localidade fortificada, situada numa ilha do lago Onega, passando depois pelo Mosteiro de Valaam, também aqui praça-forte, construída na ilha de Valaam, ao norte do lago Ládoga. Este percurso representa alguns milhares de quilómetros. (N. do T. francês.)
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- É um pouco solto de língua - acrescentou Ilia.
- Estás a ouvir ? -? repreendeu a irmã de Gavrik, carregando o sobrolho.
Mal-humorado, Gavrik repontou:
- Não sou mouco!
-Não tem grande mal...-atalhou indulgente Ilia.- Os que arreganham o dente ficam sempre por cima dos outros... São os vizinhos que apanham o golpe; quem não resiste abertamente é espezinhado até mais não...
A rapariga escutava-o com uma espécie de satisfação estampada no rosto, o que não passou despercebido a Ilia.
- Queria perguntar-lhe uma coisa - disse ele, perturbando-se levemente.
- O quê ?
Sônia acercou-se de Lunev tão perto que os seus corpos quase se tocavam e cravou os olhos nos dele. Ilia não conseguiu sustentar aquele olhar e, baixando a cabeça, prosseguiu:
- Se compreendi bem, não gosta dos comerciantes?
- É claro que não!
- Porquê?
-Vivem do trabalho dos outros...-explicou a rapariga em voz firme.
Ilia lançou a cabeça para trás e ergueu as sobrancelhas. Estas palavras surpreendiam-no, e ao mesmo tempo ofendiam-no directamente. E ela pronunciara-as com tal simplicidade, com tanta firmeza...
- É falso! -declarou ele em voz forte, após uma breve pausa.
Foi então a vez de ela estremecer, de corar.
- Por quanto lhe sai aquela fita que ali está?-interrogou seca e severa.
- Aquela?.., Dezassete copeques o árchino 1.
- Vende-a por quanto?
- Vinte copeques...
- Aí tem! Os três copeques que guarda não lhe pertencem, mas sim ao que fabricou a fita. Percebe?
1 Árchino, unidade das medidas de extensão na Rússia e que regula por 71 cm.
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- Não! - admitiu Lunev com sinceridade.
Um fulgor hostil relampejou no olhar da rapariga. Ao verificá-lo, Lunev sentiu-se intimidado, lamentando, logo a seguir, a sua própria pusilanimidade.
-É claro... calculo que lhe seja difícil compreender uma coisa tão simples - disse ela, recuando até à porta. Mas suponha que é um operário, que fabricou tudo isso...
com um gesto largo, mostrou a mercadoria exposta na loja e recomeçou a explicar a maneira como o trabalho enriquece toda a gente, menos aquele que trabalha. A princípio falava como de costume, em voz seca e clara, permanecendo imóvel o seu rosto sem beleza. mas, pouco a pouco, as suas ?sobrancelhas franziram-se, puseram-se a tremer, as suas narinas dilataram-se e, deitando a cabeça para trás, lançou à queima-roupa, a Ilia, palavras violentas, imbuídas de uma fé ardente e inquebrantável na verdade que, segundo ela. encerravam.
- O vil comerciante interpõe-se entre o operário e o comprador... Não faz coisa alguma, mas aumenta o preço das coisas... O comércio é um roubo legalizado.
Ilia sentia-se ultrajado. Faltavam-lhe, porém, as palavras para responder como era preciso àquela descarada, que tinha o atrevimento de o tratar por preguiçoso e ladrão. Cerrava os dentes, escutando-a sem se convencer do que dizia, sem se poder convencer. E enquanto procurava uma palavra que cortasse pela base as afirmações dela, forçando-a a calar-se, não podia deixar de admirar a insolência da rapariga... E os insultos, se por um lado o surpreendiam, pelo outro faziam surgir no seu íntimo a angustiosa interrogação: porquê?
- Tudo isso não é assim - cortou, finalmente, em voz forte, sentindo que já não podia mais escutá-la. - Não... PU não concordo!
Fervilhava dentro dele uma violenta irritação; o seu rosto cobria-se de manchas vermelhas.
- Explique-se! - articulou ela calmamente, indo sentar-se no tamborete junto ao balcão e pondo-se a brincar com a ponta da longa trança, puxada para cima dos joelhos.
Lunev evitava encará-la, para não ter de enfrentar aquele olhar implacável.
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-vou explicar-me!-gritou fora de si. - É a minha vida inteira... que tenho de explicar! Eu... talvez tenha cometido uma grande falta, antes de chegar ao ponto em que me encontro...
-Pior ainda... Mas isso não é argumento...-cortou a rapariga.
Estas palavras foram para Ilia como um banho frio. Apoiou ambas as mãos ao balcão, inclinou-se para a frente, parecendo prestes a formar um salto, abanando a cabeça encaracolada. Estava ferido com as palavras da interlocutora e perplexo com a calma que ela ostentava. Fitou-a durante alguns instantes em silêncio. O rosto e o olhar dela, completamente imóveis e seguros, alimentavam a cólera, mas, ao mesmo tempo, perturbavam-no. Adivinhava nela uma firmeza intrépida. E não havia maneira de encontrar palavras, nem argumentos.
- Então, porque espera? - interrogou Sônia, numa provocação. E depois, com um sorriso de triunfo, acrescentou: - Não me pode responder, porque a razão está do meu lado!
--Não lhe posso responder?-?saltou Lunev em voz cava.
- bem vê que não! Que poderia argumentar? Sorriu de novo, com condescendência.
- Até à vista!
E saiu do estabelecimento, mais empertigada do que nunca.
- São asneiras! Não é verdade! -? gritou-lhe Lunev. Mas ela nem se voltou.
Ilia deixou-se cair num banco. Gavrik. junto à porta, observava-o e, certamente muito satisfeito com a conduta da irmã, arvorava um ar de suficiência e triunfo.
--Para que estás a olhar assim para mim? - berrou-llie Lunev, furibundo, ao notar a atitude do garoto.
- Para nada! - respondeu Gavrik.
- Ai não? - gritou o patrão em voz ameaçadora, e, após uma pausa, acrescentou: - Vai passear!
Mas, ao ficar só, sentiu-se incapaz de coordenar ideias. Não pretendia encontrar sentido às palavras da rapariga; considerava-as, antes de mais nada, contundentes.
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"Que lhe fiz eu?... Chega cá. condena-me e vai-se embora... Experimenta voltar, minha lioa! Vais ver a resposta que levas..."
E, continuando a ameaçá-la, perguntava a si mesmo por que razão ela o teria ofendido. Lembrou-se de tudo quanto Paulo dizia a respeito da inteligência de Sofia Medvedeva, da sua simplicidade.
"Ao Paulo não se lembra ela de ofender..."
Erguendo a cabeça, viu-se ao espelho. O bigodito negro estremecia, havia cansaço nos grandes olhos, as faces estavam afogueadas. Mas, até naquele momento, o rosto inquieto e sombrio conservava um halo de beleza um pouco rude, continuava a ser mais atractivo do que a face doentia, amarela e descarnada de Paulo Gratchev...
"O Paulo agradar-lhe-á, na verdade, mais do que eu?, interrogou-se. E logo encontrou a resposta: "Mas que lhe interessa a ela a minha cara? Não sou o seu namorado..."
Entrou no quarto, bebeu um copo de água e olhou em volta. A mancha clara do quadro atraiu a sua atenção, mobilizou-se perante a bela disposição de Fases da Vida Humana e pensou: "É um logro... Será isto a vida?"
E subitamente acrescentou, sem esperança: "E mesmo que fosse, não seria mais consolador!..."
Aproximou-se em passos lentos, arrancou o quadro da parede -e levou-o para a loja. Colocou a gravura em cima do balcão e mergulhou-se na contemplação das metamorfoses do homem: observava, agora, a estampa, com espírito de crítica e fitou-a até tudo parecer confundir-se. Então ;amarrotou-a, apertou-a nas mãos até a transformar numa bola e lançou-a para debaixo do balcão. Mas a bola saltou e veio cair-lhe aos pés. Irritado, apanhou-a, amachucou mais ainda a imagem e deitou-a para a rua...
Lá fora reinava o rumor. No passeio em frente caminhava um homem que se apoiava numa bengala. Esta batia no lajedo, em compasso desencontrado, e dir-se-ia que o homem tinha três pernas. Os pombos arrulhavam. Ouvia-se um raspar metálico: certamente qualquer limpa-chaminés entregue ao seu trabalho, no alto de algum telhado. Um trem passou em frente do estabelecimento. O cocheiro dormitava, com a cabeça a oscilar de um lado para o outro. E em
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volta de Ilia tudo oscilava também. Voltando para dentro, pegou no ábaco e com as esferas marcou vinte copeques. A seguir retirou dezassete copeques. Restavam três. com um piparote, fez girar as esferas; rodaram no arame, com um ruído abafado, afastaram-se umas das outras e imobilizaram-se.
Ilia suspirou, repeliu o contador mecânico, deixou-se cair para cima do balcão e não se moveu mais, entretendo-se a ouvir bater o coração.
No dia seguinte, a irmã de Gavrik tornou a passar. Tinha o aspecto habitual: o mesmo vestido usado, o mesmo rosto.
"Olhem-me para isto!", disse para consigo Lunev, de mau humor, observando-a do fundo do quarto.
Respondeu de má catadura ao cumprimento da rapariga. Apenas um breve aceno de cabeça. Ela sorriu, de repente, com simpatia, e perguntou suavemente:
- Não se sente bem ? Está tão pálido!
- Estou perfeitamente! - retorquiu Ilia em voz breve, tentando não mostrar o sentimento que este interesse súbito fazia nascer. Era um sentimento suave e agradável: o sorriso e as palavras da rapariga eram uma terna carícia, mas decidira fazê-la perceber que estava ofendido, esperando, em segredo, que ela lhe dissesse mais qualquer palavra meiga, que voltasse a sorrir-lhe. E porque tomara esta decisão, aguardou, altivo, sem a encarar.
- Parece estar zangado comigo... - Ela falava em voz firme, de maneira bem diferente daquela como começara. Ilia olhou-a ansiosamente: o seu ar era o de outrora, uma pontinha de arrogância, de desafio nos olhos sombrios.
- Estou habituado às vexações - disse Lunev, enfrentando-a com expressão provocante, petrificado pela desilusão que sofrera.
"Ah!, queres brincar!", disse para consigo. "Festas e pancadas! Pois bem, não levarás a melhor..."
- Não quis ofendê-lo...
- Seria difícil consegui-lo! - lançou-lhe em voz forte, num tom insolente. - Sei quem a menina é: não se pode dizer que seja de alta extracção!
A rapariga ergueu o busto, admirada; abriu muito os olhos. Mas Ilia estava cego pelo violento desejo de lhe pagar
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na mesma moeda as ofensas recebidas e, com deliberada lentidão, dirigiu-lhe palavras duras e brutais:
- Os seus grandes ares, a sua altivez, tudo isso se pode adquirir barato, nas escolas... qualquer pessoa pode conseguir outrotanto... E sem escolas você não passaria de uma simples costureira ou de uma criada... Pobre como é, não poderia ser mais... pois não?
- Que diz ? - soltou ela, surdamente.
Ilia olhou-a bem de frente e viu, com satisfação, as narinas dilatarem-se-lhe, as faces corarem.
- Digo o que penso! E penso que os seus grandes ares se compram por uma moeda furada!
- Eu não tomo grandes ares! -- gritou, vibrante, a rapariga. O irmãozito correu para ela, agarrou-lhe a mão e, fitando o patrão com hostilidade, gritou por sua vez:
- Vamo-nos embora, Sônia!
Lunev envolveu-os no mesmo olhar de desprezo e, preso do seu ódio nascente, articulou com firmeza:
--Isso mesmo! Vão-se embora! Não precisam de mim... e eu também não preciso de vocês.
Atónitos, Sônia e Gavrik deixaram a loja. Ilia acompanhou a sua saída com uma risada escarninha. E quando se encontrou só deixou-se ficar imóvel durante alguns instantes, saboreando com amargo prazer a vingança que acabava de obter. A expressão indignada, perplexa e até um pouco assustada da rapariga ficara gravada com nitidez na sua memória.
"E o garoto... que atrevimento!..." Esta ideia incoerente não o largava: a atitude de Gavrik envergonhava-o um pouco, arreliava-o.
"Foi o que ganhaste com a tua arrogância!...", disse em pensamento. "Se Tatiana aparecesse agora... também ela... já que estou com a mão na massa..."
Desejava afugentar toda a gente, afastar todos de si, grosseiramente, brutalmente, sem dó nem piedade...
Mas Tatiana não apareceu e Ilia passou o dia inteiro sozinho, e foi um dia interminável. Ao deitar-se, sentiu-se isolado, ainda mais ofendido por esta solidão do que o ficara pelas palavras da rapariga. Já deitado, fechou os olhos e pôs-se de ouvido à escuta, no silêncio da noite, na expectativa
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de qualquer ruído, mas ao distinguir o menor rumor estremecia e, erguendo, assustado, a cabeça da almofada, punha-se a perscrutar o escuro, de olhos muito abertos. Não conseguiu conciliar o sono, até de manhã, dominado por aquela expectativa: tinha a sensação de estar fechado à chave numa cave. sufocando em consequência do calor e dos pensamentos sem nexo que se lhe baralhavam na mente. Levantou-se, com dores de cabeça, pensou fazer chá, mas desistiu, e, tendo-se lavado, bebeu um pouco de água e abriu a loja.
Por volta do meio-dia, surgiu Paulo, zangado, de olhar feroz. Sem dar os bons-dias, perguntou desabridamente:
- Por quem te tomas?
llia compreendeu de que se tratava e, sem responder, abanou a cabeça com desânimo, dizendo para consigo: "Ele também está contra mim..."
- Porque insultaste a Sônia?--interrogava Paulo repreensivo, especado à sua frente. llia bem sentia a reprovação no rosto tenso de Gratchev e no tom da sua voz, mas isso pouco lhe importava.
Lentamente, com cansaço, disse-lhe:
- Em primeiro lugar, podias ao menos dar os bons-dias. creio eu... Seguidamente, tira o boné, há aqui um ícone...
Paulo puxou pela pala do boné e enterrou-o ainda mais. crispando a boca num ar de desafio. Começou a falar em voz ardente e precipitada:
- Faz-te esperto, sim! Tens tudo quanto queres! Estás saciado! Mas lembras-te do tempo em que dizias: "Não há ninguém que nos possa compreender!" Aparece quem o possa fazer e tu escorraça-lo... Reles lojista!
Uma grande indiferença não deixava Lunev replicar. O seu olhar vazio fixara-se no rosto excitado e repreensivo de Paulo, cujas palavras já o não feriam. Os pêlos amarelados do bigode e do queixo de Gratchev davam a impressão de sujidado na cara magra. Lunev observava-o e interrogava-se apàticamente: "Tê-la-ei ofendido assim tanto? Podia ter sido pior..."
- Ela compreende tudo, sabe explicar tudo... e tu... oh! -? dizia Paulo, intercalando, como de costume, interjeições em todas as frases.
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- Basta - disse Lunev. - Julgas que me podes dar lições? Faço o que me apetece. Vivo como me apetece... Vocês todos aborrecem-me... Chegam, põem-se para aí a falar...
E encostando-se pesadamente às prateleiras, perguntou num tom de meditação, como se se interrogasse a si mesmo: - o que é que vocês podem dizer?
- Ela pode dizer o que quiser! -exclamou Paulo com profunda convicção, erguendo a mão como se fosse prestar juramento.--Eles sabem tudo!
- Pois bem, volta para junto deles! -aconselhou Ilia, impassível. As palavras e a excitação do companheiro desagradavam-lhe, mas não estava para lhe responder. Uma sensação de aborrecimento, pesada e tenaz, impedia-o de falar e pensar, deixava-o atado de pés e mãos.
-Volto para lá imediatamente!-lançou Paulo, ameaçador. - Volto porque verifico que só ao pé deles consigo viver... junto deles encontra-se tudo quando se precisa, é assim mesmo!
- Não berres! - disse-lhe Lunev em voz apagada. Entrou na loja uma rapariguinha, pedindo uma dúzia
de botões para camisa. Ilia serviu-a sem pressas, pegou na moeda de vinte copeques que ela lhe estendeu, esfregou-a nos dedos e devolveu-a, dizendo:
- Não tenho troco, pagas depois...
Tinha trocos na caixa, mas a chave estava no quarto e Lunev não estava na disposição de a ir buscar. Quando a rapariguinha se foi embora, Paulo não retomou a conversa. Em pé junto do balcão, batia no joelho com o boné, que acabara por tirar, e fitava o camarada como se esperasse alguma coisa dele. Mas Lunev afastara-se e assobiava por entre dentes.
-Então, o que é que tu dizes? - perguntou Paulo, provocador.
- Nada - respondeu Lunev.
- Nada, riem ?
--Já chega, pelo amor de Deus! - exclamou Lunev, irritado.
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com um gesto brusco, Gratchev enfiou o boné na cabeça e saiu. Ilia seguiu-o com os olhos e recomeçou a assobiar.
Um cãozarrão arruçado veio espreitar furtivamente pela porta, abanou a cauda e desapareceu. Depois foi uma velha mendiga com um nariz comprido. Fez uma profunda vénia
e murmurou:
- Caridade, meu bom senhor!
Lunev disse-lhe que não com a cabeça. Na rua, o rumorejar do trabalho palpitava no ar escaldante. Dir-se-ia o roncar de um imenso fogão, onde as achas, devoradas pelo fogo. estalassem, expelindo chamas. Um grande alarido abafou, por momentos, todos os outros rumores: passavam carroças, vergando sob o peso de compridas barras de ferro, cujas pontas arrastavam pela calçada, provocando um fragor doloroso, trovejante, entontecedor. Um amolador afiava facas: um rangido hostil cortava os ares...
A cada minuto surgia algo de novo, de inesperado, e a vida ensurdecia pela diversidade dos gritos, pelo movimento incessante, pelo incansável poder de criação. Mas em Lunev reinava um silêncio mortal: tudo se petrificara, já não subsistiam pensamentos nem desejos, apenas uma penosa fadiga. Passou assim o dia inteiro, depois uma noite povoada de pesadelos... depois mais dias e mais noites semelhantes. Vinha gente, comprava aquilo que precisava e seguia o seu caminho, e ele acompanhava essa gente com um pensamento desanimador:
"Não precisam de mim, eu não preciso deles... Viverei só..."
Em lugar de Gavrik, era a cozinheira da dona do prédio, uma mulher magra e fechada, de rosto avermelhado, quem arranjava o samovar e lhe trazia as refeições. Tinha uns olhos sem cor determinada, imóveis. Ao observá-la, Lunev sentia-se por vezes perturbado no mais íntimo da sua alma: "Nunca verei realmente nada de bom?"
Habituara-se a ter impressões diversas que talvez o comovessem, o irritassem, mas que, afinal de contas, lhe tornavam a vida mais leve. Vinham-lhe das pessoas. E agora as pessoas tinham desaparecido, restavam apenas os fregueses. Mais tarde, este sentimento de solidão, esta saudade
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de uma vida agradável, transformou-se, novamente, em total indiferença, e, mais uma vez, os dias alongaram-se numa espécie de torpor, que o esmagava.
Certa manhã, acabando de despertar, Ilia estava sentado na cama e pensava no novo dia que era forçoso viver...
Umas pancaditas leves e repetidas soaram na porta do pátio.
Ilia pôs-se de pé, convencido de que era a cozinheira para preparar o samovar; abriu a porta e deu de caras com o corcunda.
- Eh, eh! -soltou Terêncio, abanando a cabeça e sorrindo. - Já passa das oito e a tua loja não está aberta, mercador!
Parado à frente dele, Ilia impedia-o de entrar e sorria também. O rosto de Terêncio estava queimado pelo sol e parecia rejuvenescido; o olhar era vivo e alegre. Em roda dele estavam sacos, trouxas, e o próprio corcunda, no meio daquilo tudo. lembrava um embrulho.
- Deixa-me entrar, anda!
Sem proferir palavra, Ilia começou a arrastar as coisas para dentro de casa, enquanto Terêncio, procurando o ícone com o olhar, se persignava e dizia, inclinando-se para a frente:
-. Deus seja louvado, estou em casa! Pois, bons dias, Ilia!
Quando abraçou o tio, Lunev sentiu que o corpo do corcunda se tornara mais rijo, mais vigoroso.
- Precisava de me lavar - dizia Terêncio, olhando à sua volta. A viagem, de sacola ao ombro, dir-se-ia ter empurrado a marreca mais para baixo.
- Como vai a vida ? - perguntava o peregrino, ao mesmo tempo que ia lançando água no rosto.
Ilia estava contente por ver o tio em melhores condições físicas. Atarefava-se em volta da mesa, preparando o chá, mas respondia às perguntas do corcunda com prudente reserva.
- E tu, como estás?
--Eu? Lindamente!- Terêncio cerrou os olhos e sacudiu lentamente a cabeça, com uma expressão de beatitude estampada no rosto. - Dei uma boa volta, não se pode,
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por certo, pedir mais! Saciei-me com a água da vida, se assim me posso exprimir...
Sentou-se à mesa, enrolou a barbicha no dedo e, de cabeça ao lado, pôs-se a contar:
- Fui ver Atanásio-o-Entronizado e os taumaturgos de Perieiaslav, e Mitrofanio e Voroneje. e Tikhone para além do Dom... Estive na ilha de Valaam... percorri um sem-fim de terras. Rezei a inúmeros santos e acabo de chegar de Murom. onde vi Pedro-Favronia 1...
Enumerar os nomes dos santos e das cidades devia causar-lhe uma profunda satisfação, porquanto o seu rosto se enternecera e o seu olhar se tornara brilhante. Falava naquela voz cantante que adoptam os narradores de mérito quando contam histórias ou vidas de santos.
- las grutas do Loureiro Sagrado, o silêncio é perpétuo, as trevas são aterradoras, lamparinas tremeluzem no escuro, como olhos de criancinhas, e aspira-se o odor do santo óleo...
De súbito começou a chover fortemente: as rajadas rugiam por trás das vidraças, ouvia-se o eco dos ferros dos telhados, a água jorrava soluçante, e dir-se-ia que uma rede de arame descera dos céus e estremecia nos ares.
--Muito bem-articulou lentamente Ilia.-E então, ficou tudo arrumado?
Terêncio fez uma pausa breve e depois, inclinando-se para o sobrinho, segredou:
- Dir-te-ei, a título de exemplo, que aquele pecado me apertava o coração como uma bota demasiado pequena aperta o pé, aquele que cometi involuntariamente... Involuntariamente, porque, se naquela ocasião eu não tivesse querido obedecer a Petrukha, ele teria... corrido comigo... Ter-me-ia lançado à rua!... Não é assim?
- É - admitiu Ilia.
1 Tomamos agora conhecimento de que Terêncio, além do percurso indicado anteriormente, esteve ainda na região de Voroneje, onde corre um afluente do Dom, a cerca de 500 quilómetros ao Sul de Moscovo, bem como em Murom (onde ainda hoje existem uma catedral do século XIV e diversos mosteiros), situada aproximadamente a 300 quilómetros a leste de Moscovo, nas margens do Oca.
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- liem!... E quando parti, bem notei o alívio que senti no coração... pelo caminho ia dizendo: "Estás vendo, Senhor? vou ,em busca dos teus santos..."
- E, deste modo, ficaste quite? - perguntou Lunev, com certa ironia
- Lá como o Senhor toma as minhas orações, não sei! declarou o corcunda, erguendo os olhos ao céu.
--E a tua consciência? Está em paz? Terêncio reflectiu, pareceu pôr-se à escuta e por fim disse:
- Não a ouço...
Ilia levantou-se e aproximou-se da janela. Verdadeiros caudais de água turva corriam ao longo dos passeios; a calçada estava semeada de pequenas poças, formadas entre o empedrado, que estremeciam fustigadas pela chuva: toda a calçada parecia tremer. A casa situada em frente do estabelecimento de Ilia escurecera, toda molhada, com as vidraças embaciadas, através das quais se não viam as flores. A rua estaria deserta e silenciosa se não fosse a marulhada da chuva e o murmúrio das águas nas valetas. Um pombo solitário abrigava-se sob uma cornija, empoleirado no alizar de uma janela; toda a rua, húmida e pesada, exalava tristeza.
Ilia pensou: "É o Outono que começa."
- Que outro modo temos de nos resgatar, a não ser pela oração?-dizia Terêncio. Estava a desatar a corda de um dos sacos que trouxera.
- É tudo muito simples -? observou Ilia, sombrio, sem desprender o olhar da calçada. - Pecamos, rezamos e ficamos limpos! E recomeçamos.
-Porquê? Uma vida austera...
- com que fim ?
--Mas... para termos a consciência tranquila.
- E o que é que a consciência tem que ver no caso?
- Eh, eh!... - soltou Terêncio, descontente. - Como tu dizes isso!...
- É mesmo assim - insistia Ilia com firmeza, sempre de costas voltadas para o tio.
- É um pecado!
- Concordo, é um pecado...
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- E virá o castigo!
- Não...
Afastara-se agora da janela e encarava o tio. O corcunda dava estalidos com os beiços, procurando, baldadamente, as palavras que lhe permitissem responder; por fim, cncontrando-as, disse num tom grave:
--Virá!... Eu pequei e fui castigado...
- De que maneira? - perguntou Ilia rudemente.
--Pelo medo! Andava sempre com medo que de repente tudo se soubesse...
- Enquanto eu pequei e não tenho medo - disse Ilia. - Estás a dizer asneiras - replicou Terêncio, severo.
-Não tenho medo! E, no entanto, a minha vida não é um mar de rosas...
- Ah!-exclamou Terêncio. triunfante. - Eis o castigo!
-Porquê?--gritou Ilia, enraivecido. O queixo do rapaz estremecia. Terêncio lançou-lhe um olhar receoso e, agitando no ar um cordelito que tinha na mão, disse-lhe, baixando a voz:
- Não grites! Não grites!
Mas Ilia não se podia calar. Há muito que não falava com ninguém e agora tinha de descarregar a alma de tudo quanto nela se acumulara durante os longos dias de solidão.
- Pode-se roubar e até matar, sem que nada suceda!... Ninguém tem o direito de punir... São punidos os que não se sabem desenvencilhar, mas o que sabe, esse, pode fazer tudo que quiser!
Foi então que, por trás da porta, se ouviu um estrondo, qualquer coisa estalara, imobilizando-se muito perto. Tiveram ambos um sobressalto e calaram-se.
- O que será? - sussurrou o corcunda.
Ilia caminhou para a porta, abriu-a e olhou para fora. Ouviu-se soprar docemente, depois estalar, murmurar, e um turbilhão de ruídos invadiu o quarto.
- Uns caixotes que caíram - disse Luriev, fechando a porta e indo de novo postar-se à janela.
Terêncio sentou-se no chão, para esvaziar os sacos de viagem, e disse:
- Não é assim, reflecte! Dizes cada palavra, santo Deus, meu amigo! Não te libertas de Deus através da impiedade;
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acabas por te perder... Acredita nestas doutas palavras. Ouvi-as dizer, durante a peregrinação, a certo homem... Ouvi tantos e proveitosos conselhos!
Recomeçou a contar a viagem, sem deixar de observar o sobrinho pelo rabo do olho. Mas Ilia escutava a narração do mesmo modo que ia ouvindo o barulho da chuva e pensava na maneira como iria viver com o tio...
Acabaram por se organizar. Terêncio fez um leito com caixotes, colocando-o entre o fogão e a porta, no canto onde, à noite, fazia mais -escuro. Tendo estudado a maneira de viver de Lunev, o corcunda tomou a seu cargo as tarefas de Gavrik: preparava o samovar, arrumava a loja e o quarto, ia buscar a refeição à taberna e trauteava, por entre dentes, sem parar, cantos religiosos. Ao serão contava ao sobrinho como fizera a mulher de Alliluiev para salvar Cristo dos inimigos, lançando o seu próprio filho ao fogo e tomando Cristo nos braços no lugar dele. Contava como um monge tinha escutado, durante trezentos anos, o canto de um passarinho; falava de Kirik e de Ulite, de muitas coisas mais. Lunev escutava-o, dando livre curso aos seus próprios pensamentos... Certas noites, ia passear e sentia-se sempre atraído pelos campos que circundavam a cidade, onde a noite era silenciosa, negra e deserta como a sua alma.
Uma semana após o regresso, Terêncio foi a casa de Petrukha Filimonov, voltando de lá desanimado, ofendido. Mas quando Ilia lhe perguntou o que tinha, respondeu precipitadamente:
- Nada, nada! Estive lá, e por conseguinte vi tudo e, claro... discutimos...
- E o Tiago?--quis saber Ilia.
--Oh, o Tiago, pobrezito... quer morrer... Está amarelo... tosse...
Terêncio calou-se, olhando obstinadamente para o lado, triste e lamentável.
A vida ia correndo, sempre igual, monótona: os dias pareciam-se uns com os outros como moedas de cinco copeques cunhadas no mesmo ano. Um ódio violento enroscara-se, tal uma grande serpente, no mais fundo de Lunev e devorava todas as impressões do dia a dia. Nenhum dos seus
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antigos conhecimentos o vinha visitar: Paulo e Macha deviam ter encontrado outro caminho na vida; Matitsa fora derrubada por um cavalo e morrera no hospital, pobre mulher; do Perfichka não havia notícia, como se tivesse desaparecido por encanto. Lunev andava sempre com vontade de ir visitar Tiago, mas não havia maneira de se resolver a fazê-lo, pois sabia que nada tinha para dizer ao companheiro moribundo. de manhã lia o jornal e passava o dia na loja a espreitar o vento de Outono, que varria na rua as folhas secas caídas das árvores. Por vezes, uma ou outra folha entrava, voando, pelo estabelecimento.
--Venerável santo padre Tikhone, orai por nós...--entoava Terêncio, em voz tão rangente como as folhas secas, enquanto ia andando de um lado para o outro no quarto, entregue à sua lida.
Um domingo, ao abrir o jornal, lia viu na primeira página um poema intitulado Dantes e agora, dedicado a S. M. e assinado P. Gratchev.
Num pesado mal-estar, num delírio,
Correu a minha mocidade.
Conhecer o caminho, cego que eu era,
Não angustiava a minha alma.
As trevas punham cadeias no meu coração,
Cerravam o meu espírito e o meu olhar...
Mas sem cessar, noite e dia,
Eu sentia faltar-me a luz!...
Ora, na claridade da aurora,
Tu ergueste-te, altiva, perante mim;
Fremente, o véu de trevas
Caiu da minha alma, dos meus olhos!
Malditas sejam essas trevas!
Estou livre das suas cadeias!
Sinto-o: encontrei um amigo!
E vejo onde se encontra o inimigo!...
Tendo lido o poema, Lunev afastou o jornal com enfado.
"Anda, faz versos! Inventa! Amigo... Inimigo!... Para
os imbecis, todos são inimigos... é claro!", disse para consigo
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sorrindo maldosamente, E de súbito, como se surgisse de qualquer outro escaninho da alma, veio-lhe à mente esta ideia:
"E se eu lá fosse? Diria... aqui estou! Desculpe-me..."
"Para quê?", pensou logo a seguir. E cortou cerce o curso das suas reflexões, numa explosão de mau humor:
"Para ser corrido..."
Depois, ofendido e ciumento, releu o poema e voltou a pensar na rapariga.
"Ela é altiva... Olhará para mim com uns ares... E voltarei pelo mesmo caminho..."
Na secção judicial do mesmo periódico leu que no dia
23 de Setembro seria julgado o caso de Vera Kapitanova, acusada de roubo, devendo o julgamento ter lugar no tribunal do distrito. Sentiu-se dominado por uma alegria ruim
e, em pensamento, lançou a Paulo: "Tu fazes versos, hem?
ela continua na prisão!..."
- Senhor, tende piedade de mim, pobre pecador - dizia por entre dentes Terêncio, soltando um suspiro e abanando a cabeça tristemente. Depois olhou para o sobrinho, que folheava ruidosamente o jornal, e interpelou-o:
- Ilia!
- Que é?
- O Petrukha...
O corcunda, de expressão dorida, calou-se.
- E então?
- Intrujou-me -- sussurrou Terêncio com ar de culpa, dando uma risadinha triste. Ilia voltou para ele um olhar indiferente e perguntou:
- Quanto roubaram?
O tio afastou a cadeira da mesa, baixou a cabeça e, com as mãos pousadas nos joelhos, pôs-se a mexer os dedos, encolhendo-os e voltando a estendê-los.
- Uns dez mil? - interrogou de novo Ilia.
O corcunda lançou a cabeça para trás e, espantado, desfechou :
- De-ez mil ? Ai, Senhor, que estás tu para aí a dizer! Ao todo uns três mil seicentos e tal, e tu sais-te com dez mil! Não és nada exagerado!
-- O avô tinha mais de dez mil - afirmou Ilia.
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- Sim?
-Vamos, vamos... ele próprio o dizia...
- E tu estás convencido de que ele sabia contar ? -pelo menos tão bem como tu e o Petrukha... Terêncio pôs-se a reflectir e o queixo descaiu-lhe para
o peito.
-Quanto reteve o Petrukha da soma que te devia? interrogou Ilia.
- À volta de setecentos... - suspirou Terêncio. - Eram então mais de dez mil? Onde terá ele escondido todo esse dinheiro? E eu que pensava termos tirado tudo... Mas talvez o Petrukha já nessa altura me intrujasse... Que achas?
--Melhor valia que estivesses calado!-lançou Lunev com brutalidade.
- Pois é, já não vale a pena falar disso! -concordou Terêncio, soltando mais um profundo suspiro.
E Lunev meditou longa e dolorosamente sobre a avidez dos homens e as baixezas de que são capazes por dinheiro. Mas logo lhe veio à ideia que, se lhe fosse dado possuir dezenas ou centenas de milhares de rublos, bem saberia mostrar quem era-! Saberia fazê-los rastejar aos pés, saberia. .. Arrastado por um impulso vingativo, deu uma forte punhada na mesa, assustou-se, olhou para o tio e viu que este o fitava, de boca aberta, apavorado.
- Estava cá a pensar - disse de mau humor, e levantou-se.
--Pois, pois...--aprovou o outro, desconfiado.
Ilia encaminhou-se para a loja e o corcunda seguiu-o com olhos perscrutadores, enquanto os seus lábios se moviam sem ruído... Ilia não podia vê-lo mas sentia nas costas o olhar de suspeita: notara, há tempos a esta parte, que o tio o espiava, tentando compreender, fazendo conjecturas. Por isso mesmo, Lunev evitava conversas. Sentia, a todo o momento, que o corcunda lhe estorvava a vida e não cessava de se interrogar: "Irá isto durar ainda muito tempo?"
Mas dentro de si mesmo havia como que um abcesso que amadurecia; mais do que nunca, a vida enojava-o. O pior de tudo era não ter vontade de fazer fosse o que fosse: nada o atraía, mas parecia-lhe, às vezes, ir escorregando lentamente para um fosso escuro.
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Pouco depois do regresso de Terêncio, Tatiana voltou de uma viagem ao campo. Vendo o marrequinho, com a sua camisa de chita castanha, franziu o nariz, enojada, e perguntou a Ilia:
- É o seu tio?
- É - respondeu ele secamente.
- Vai viver consigo?
- Evidentemente...
Tatiana notou o tom de desafio das respostas que lhe dava o sócio e deixou de prestar atenção ao corcunda; quanto a Terêncio, postado à entrada da loja, no lugar de Gavrik, ia enrolando a barbicha nos dedos e espreitando a figurinha vestida de cinzento da mulher. Lunev também a via saltitar de um lado para o outro no estabelecimento, à maneira de um pardal, e aguardava, sem proferir palavra, que ela fizesse nova pergunta, disposto a dar-lhe uma resposta que a ferisse. Mas ela, espiando pelo rabo do olho a fisionomia mal humorada de Ilia, não lhe perguntava coisa alguma. Sentada em frente da caixa, folheava o livro das contas e ia dizendo como era agradável viver no campo, como a vida aí era barata e que bem fazia à saúde.
--Havia uma ribeirazinha... tão calma! boa companhia... um telegrafista que tocava maravilhosamente violino... Aprendi a remar... O pior eram os pequenos camponeses! Que seca! Sempre a gemer, a pedinchar, uma verdadeira praga de mosquitos... Uma esmolinha, uma esmolinha!... São os pais que os ensinam.
-- Ninguém os ensina - cortou asperamente Ilia. - Os pais trabalham. Essas crianças criam-se sozinhas... O que diz não é justo...
Tatiana lançou-lhe um olhar espantado, abriu a boca para replicar, mas, nesse momento, Terêncio soltou, com um sorriso respeitoso:
- Actualmente é uma raridade ver-se os senhores no campo... Antigamente, o senhor passava todo o tempo nas suas terras, enquanto hoje em dia só por lá passa de vez em quando...
Avtonomova olhou primeiramente para ele, depois para Ilia e, sem dizer nada, voltou a consultar o livro das contas. Durante uns instantes reinou na loja um profundo silêncio
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cortado apenas pelo ranger das páginas e pelo ruído que provocava Terêncio esfregando as costas na ombreira da porta...
- Tu -? disse subitamente Ilia, em voz seca e impassível - farias melhor pedindo licença para dirigires a palavra às pessoas de qualidade: "Consenti que diga uma palavrinha, fazei-me essa graça...", e não esquecendo de te pores de joelhos...
O livro fugiu das mãos de Tatiana e caiu em cima da caixa; ela segurou-o e, dando-lhe uma forte palmada, desatou a rir. Terêncio, cabisbaixo, foi para a rua. Tatiana, então, com um sorriso nos lábios, espreitou o rosto sombrio de Lunev e perguntou, em voz baixa:
- Estás zangado? Porquê?
A expressão dela era atrevida e terna; havia um brilho provocante no seu olhar... Lunev deitou-lhe a mão a um ombro... Um acesso de ódio subiu por ele, um desejo bestial de a apertar nos braços, de a esmagar de encontro ao peito e de ouvir estalar os seus ossos delicados. com um ricto na face, puxou-a a si; ela agarrou-lhe o braço e tentou libertar-se, murmurando:
- Ai!... larga-me! Estás a magoar-me!... Endoideceste? Não nos podemos beijar aqui... Ê... ouve! Não é prático ter cá o teu tio: é corcunda... vai espantar a clientela... manda-o embora! É preciso colocá-lo noutro sítio qualquer, percebes ?
Mas ele continuava a abraçá-la e debruçava-se para a boca dela. A estranheza dilatava os olhos de Tatiana.
-Que tens tu? Aqui não... solta-me!
Deixando-se de repente escorregar, libertou-se dos braços dele, ágil como um peixe. Através da bruma, que lhe embaciava os olhos, Lunev só a viu já perto da porta da rua. com mãos trémulas, ela estava a recompor a blusa e dizia-lhe:
-Que bruto que tu és! Não sabes esperar um pouco?
A cabeça de Ilia enchera-se de sons, como se inúmeros regatos corressem lá dentro. Imóvel por trás do balcão, de punhos cerrados, olhava para a mulher e parecia-lhe descobrir nela todo o mal, todo o peso da sua própria vida.
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- É bom ser-se apaixonado, mas, meu querido, há que ter certa compostura...
-Vai-te embora!-disse Ilia.
-Vou-me embora... Hoje não posso voltar a ver-te... mas depois de amanhã, dia vinte e três, faço anos... Irás lá a casa?
Falava sem encarar com Ilia, apertando com os dedos o broche que fechava a blusa.
- Vai-te embora!-repetiu ele, tremendo de desejo de a apanhar e lhe fazer mal.
Ela partiu. Terêncio reapareceu logo a seguir e perguntou em voz respeitosa:
--É esta a tua sócia?
Lunev aquiesceu com um breve aceno de cabeça e soltou um suspiro de alívio.
- Como ela é... veja-se! Miudinha e...
- Uma mulher infame! -cortou Ilia em voz forte.
- Hum!... - resmungou Terêncio, incrédulo. Ilia sentiu cravado em si o olhar perscrutador e penetrante do tio e perguntou de má catadura:
- Porque olhas para mim assim?
- Eu? Deus meu! Por nada...
- Sei o que digo... Disse que era uma mulher infame e acabou-se! E se dissesse pior também não era mentira...
- Como as coisas são... - observou o corcunda em tom de comiseração.
- Quê?
- Isto é...
- Isto é o quê?
Terêncio, em frente do sobrinho, não sabia em que pé dançar, assustado e ao mesmo tempo ofendido com os gritos: tinha um aspecto miserável, que metia dó, e não parava de pestanejar.
- Isto é: tu sabe-lo melhor do que eu... - acabou por articular.
A rua tinha um ar triste. Chovera durante dias seguidos. O empedrado cinzento e lavado reflectia o céu nevoento. A lama, que se introduzira nos interstícios, fazia ressaltar a limpeza das pedras. Nas árvores, as folhas amarelecidas eram percorridas por um derradeiro arrepio. Algures batiam,
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em golpes apressados, tapetes ou vestuário de peles, fazendo ecoar nos ares uma sucessão de sons breves. Ao fim da rua, por trás dos telhados das casas, espessas nuvens azuladas e brancas amontoavam-se no céu. Pesadamente, ao sabor de fortes lufadas, comprimiam-se umas contra as outras, acastelando-se sempre mais, mudando continuamente de forma, lembrando ora fumo de incêndio, ora montanhas, ora as ondas turvas de alguma ribeira. Dir-se-ia que só cresciam nas alturas para se poderem lançar mais facilmente em cima das casas, das árvores e da terra. Lunev contemplava aquela muralha viva, erguida à sua frente, e tremia de tristeza e frio.
É preciso que eu largue... a loja e tudo... Que meu tio se ocupe do negócio com a Tânia... Eu, vou-me embora..."
Viu-se num vasto descampado, húmido, sob uma abóbada de nuvens cinzentas, caminhando por uma estrada ladeada de bétulas. Ia andando, de sacola ao ombro, os pés enterrando-se na lama, o rosto fustigado por uma chuva gelada. E quer nos campos, quer na estrada, não se via um sopro de vida... nem mesmo as pequenas gralhas nas árvores. Por cima dele, nuvens cor de chumbo moviam-se sem ruído...
"Enforco-me", disse com indiferença.
Ao acordar, no dia seguinte, verificou que os algarismos negros do calendário indicavam vinte e três... Lembrou-se de que era o dia em que Vera devia ser julgada. Alegrou-se com o pretexto que se lhe oferecia para deixar o estabelecimento e experimentou grande curiosidade pela sorte que esperava a rapariga. Tendo tomado apressadamente o chá, saiu, quase a correr, a caminho do tribunal. Não deixavam entrar, e grande multidão acotovelava-se na escadaria, esperando a hora da abertura das portas. Lunev tomou também lugar perto da entrada e encostou-se à parede. Em frente do tribunal espraiava-se uma vasta praça, tendo ao centro uma grande igreja. O disco pálido e cansado do Sol aparecia e escondia-se por trás das nuvens. Quase de minuto a minuto, a sombra alargava-se na praça, rastejava pelo empedrado, abraçava as árvores, sombra tão pesada que parecia vergar os ramos, e depois envolvia a igreja, desde o solo
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até à cruz lá no alto, passando-lhe por cima e avançando para o tribunal, para a multidão reunida em frente das portas...
Aquela gente tinha um ar esfumado, um rosto de fome; olhavam uns para os outros com olhos cansados e falavam em voz lenta. Um deles, de longos cabelos, envergando um sobretudo leve, abotoado até ao queixo e com um chapéu amachucado na cabeça, enrolava nos dedos vermelhos e entorpecidos a barba ruiva cortada em ponta, batendo impacientemente no solo com os pés mal calçados. Outro, com uma poddiovkaa remendada, de boné enterrado até aos olhos, estava para ali, de cabeça inclinada para a frente, com uma mão enfiada na roupa, à altura do peito, e a outra na algibeira. Tinha o ar de estar dormitando. Um homenzinho de casaco negro e botas altas, que lhe davam o aspecto de um escaravelho, mostrava-se impaciente: erguendo a face pálida e aguçada, fitava o céu, assobiava, franzia as sobrancelhas, deitava a mão aos bigodes e falava mais que todos os outros.
- Vão abrir?-gritava, pondo a cabeça de lado; e depois de estar alguns instantes de ouvido à escuta: - Não, hum!... Já está a tardar bastante... Você não esteve na biblioteca, mon cher? 2
- Não, ainda não são horas...-respondeu o homem de longos cabelos, martelando as palavras em ritmo monótono.
- Santo Deus... como está frio, não acha?
O homem cabeludo anuiu com um grunhido e depois disse, pensativo:
- Onde nos poderíamos nós aquecer se não houvesse o tribunal e a biblioteca?
O homenzinho de preto encolheu os ombros sem replicar. Ilia observava toda a gente e escutava o que se dizia. Bem via que estava em presença daqueles trampolineiros, "arranjistas" vivendo de negócios escuros, que enganam os camponeses redigindo-lhes requerimentos e outros documentos
A poddiovka é uma peça de vestuário, comprida e franzida na cintura, que se usa em cima da camisa e por baixo do sobretudo ou da pelica. (N. do T. francês)
1 Em francês no original. (N. do T. francês)
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e andam de casa em casa a apresentar cartas pedindo auxílios de diversa natureza.
Um casal de pombos pousou na calçada, não muito longe da escadaria. O macho, encorpado, de papo fremente, bamboleando-se de uma pata para a outra, começou a andar à roda da pomba, emitindo ruidosos arrulhos.
- Apre! ?-soltou, de súbito, o homenzinho de negro. O da poddiovka teve um sobressalto e ergueu a cabeça. Tinha o rosto entumescido e azulado, o olhar vítreo.
- Não suporto os pombos! -afirmou o mais baixo, seguindo com a vista as aves que acabavam de levantar voo. - São anafados... como lojistas pançudos... e arrulham... é um nojo! O senhor está implicado nalgum processo? - perguntou ele, inesperadamente, a Ilia.
- Não...
O outro olhou Lunev dos pés à cabeça e disse por entre dentes:
- É esquisito...
- O que é que tem de esquisito?-interrogou Ilia, esforçando-se por ser amável.
- O senhor tem cara de ter sido acusado - opinou o outro apressadamente. - Ah!, vão abrir...
O homenzinho foi o primeiro a esgueirar-se pela porta aberta. Intrigado com o que ele dissera, Ilia seguiu-o e na sua precipitação deu, sem querer, um encontrão no homem cabeludo.
- Mais devagar, seu mal-educado! - disse o dos longos cabelos, sem se alterar, empurrando por sua vez Ilia e passando-lhe à frente.
Ilia não se ofendeu, ficou simplesmente surpreso.
"Que coisa!", pensou. "Empurra-me como um grande senhor que tivesse o direito de passar à frente de todos, seja onde for, e veja-se o aspecto dele..."
A sala do tribunal estava escura e silenciosa. A comprida mesa, coberta por um pano verde, os cadeirões, o ouro das molduras, o imenso retrato do czar em tamanho natural, os assentos carmesins dos jurados, o banco de madeira por trás da grade, tudo era pesado e infundia respeito. As janelas estavam profundamente encravadas nas paredes cinzentas e tapadas por cortinas, que mal deixavam ver as
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vidraças embaciadas. As pesadas portas abriam-se silenciosamente e igualmente em silêncio personagens fardadas iam e vinham em passos rápidos. Lunev olhava à sua roda, tomado por um pressentimento, e quando um funcionário anunciou a entrada dos juizes estremeceu violentamente e encontrou-se de pé antes de todos, se bem que ignorasse ser preciso fazê-lo. Entre os quatro homens que acabavam de entrar encontrava-se Gromov, o juiz que morava na casa situada em frente do estabelecimento de Ilia. Sentou-se no cadeirão do meio, passou as mãos pelos cabelos, desgrenhando-os, e compôs a gola bordada a ouro do vestuário. O seu rosto tranquilizou de certa maneira Ilia, pois mostrava-se tal como de costume, vermelho e plácido, apenas com a diferença de ter os bigodes muito retorcidos. À direita de Gromov sentara-se um bom velhinho de barbicha grisalha e nariz esborrachado, usando lunetas, enquanto à esquerda se encontrava um homem calvo, com uma barba ruiva de duas pontas, enquadrando o rosto amarelo e parado. Perto da mesa estava um jovem juiz, de cabeça redonda, face imberbe, olhos negros à flor do rosto. Os quatro juizes mantiveram-se silenciosos durante alguns instantes, entregues à arrumação dos documentos. Lunev observava-os respeitosamente, aguardando que um deles se erguesse e falasse em voz forte e grave...
Mas, tendo-se voltado para a esquerda, deparou-se-lhe inesperadamente um rosto bem conhecido, as faces espessas e reluzentes, envernizadas, de Petrukha Filimonov. Este tomara lugar na primeira fila das cadeiras carmesins, encostara a cabeça ao espaldar e olhava tranquilamente para o público. Por duas vezes, o seu olhar deslizou sobre Ilia e, de ambas as vezes, este último sentiu vontade de se levantar e dizer qualquer coisa a Petrukha, ou a Gromov, ou a todas as pessoas presentes.
"Ladrão!... Matou o filho com pancada..." As palavras queimavam-lhe a língua e entonteciam-no.
- É acusado de... - dizia Gromov em voz doce, mas Ilia não via a pessoa a quem ele se dirigia: continuava a fitar Petrukha, angustiado e perplexo, não se conformando com a ideia de aquele homem estar ali para julgar...
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- Que o inculpado queira dizer -interrompeu o delegado do Ministério Público, em voz pastosa e limpando a testa- se proferiu as seguintes palavras... dirigidas ao comerciante Anisimov: "Espera que me hás-de pagar!"
Em qualquer lado, um postigo de ventilação girava, gemendo: iu... iu... iu...
Ilia descobriu entre os jurados dois outros rostos conhecidos. Por trás de Petrukha, na fila mais elevada, estava o empreiteiro de obras de gesso Silatchev, um homenzarrão de braços muito compridos e cara pequena sempre irritada, amigo de Filimonov e seu parceiro habitual no jogo das damas. Dizia-se que certa vez, tendo-se zangado no trabalho com o contramestre, Silatchev o empurrara, fazendo-o cair de um andaime, a que se seguira doença e morte desse homem. E na primeira fila, duas cadeiras adiante de Petrukha, tomara lugar Dodonov, dono de um importante estabelecimento de retrosaria. Ilia comprava lá mercadoria e sabia que se tratava de um homem de coração empedernido, avarento, que por duas vezes o enganara nos trocos.
- Testemunha, quando se apercebeu de que a casa de Anisimov estava a arder...
"Iu... iu... iu..." gemia o ventilador. Lunev sentia qualquer coisa ranger igualmente dentro dele.
- Que grande estúpido! -cochicharam a seu lado. Ilia notou que o homenzinho de negro esticava o lábio, num trejeito de desprezo.
- Quem? - perguntou-lhe baixinho, pousando nele o seu olhar ausente.
- O réu... Tinha uma oportunidade formidável para deitar por terra a declaração da testemunha e deixou-a escapar! Eu, no seu lugar... ah!
Ilia olhou para o preso. Era um camponês de estatura elevada e rosto anguloso. A sua expressão era de tristeza e susto; mostrava os dentes, como um cão fatigado, maltratado, encolhido a um canto, cercado por inimigos e já sem forças para fugir às pancadas. Petrukha, Silatchev, Dodonov e os demais olhavam-no com a calma da gente bem alimentada. Lunev estava convencido de que todos eles pensavam a respeito do camponês: "Deixou-se apanhar, portanto é culpado...
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- Que estafa! - segredou o vizinho. - É um caso sem interesse. O réu é um cretino, o delegado do Ministério Público um desajeitado e as testemunhas uns palermas, para variar... Se fosse eu o delegado público, tinha liquidado o assunto em dez minutos...
- É culpado? - perguntou Ilia, num sopro de voz, sentindo um arrepio percorrer-lhe o corpo.
- Certamente que não... Mas é natural que seja condenado... Não se sabe defender... Gente que não presta para nada! Um montão de ossos e carne e nem uma centelha de espírito, de habilidade!
- É verdade...
- O senhor não terá, por acaso, vinte copeques? - interrogou o outro de súbito.
- Tenho, sim...
- Dê cá...
Ilia puxou pelo porta-moedas e entregou a moeda mesmo antes de ter tido tempo de pensar se o devia fazer ou não. Depois, pôs-se disfarçadamente a observar o vizinho, dizendo para consigo, com involuntária consideração: "É um espertalhão!"
- Senhores jurados! -dizia o delegado do Ministério Público em voz mole e grave. - Considerem a expressão daquele homem: é mais eloquente que todos os depoimentos das testemunhas, que, aliás, provaram irrefutavelmente a sua culpabilidade... Olhando para ele, não podem deixar de ver que estão na presença de um criminoso típico, de um inimigo da ordem, de um inimigo da sociedade...
O "inimigo da sociedade", sentindo certamente que se devia mostrar, ergueu-se lentamente, de cabeça baixa. Os braços descaíram-lhe ao longo do corpo e curvou-se para a frente. Aquela massa humana, espessa e incolor, parecia aprontar-se para ser tragada pela bocarra da justiça...
Quando Gromov suspendeu a sessão, Ilia abandonou a sala, dirigindo-se para o corredor juntamente com o homenzinho de negro. Este tirou do bolso um cigarro amachucado e, rolando-o nos dedos para o alisar, começou a falar:
- Que imbecil... Jura por tudo que não foi ele quem lançou o fogo. Mas não se trata aqui de jurar; o que é
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preciso é aceitar o castigo... É um caso muito grave! Um negociante foi lesado...
- A seu ver, o camponês é culpado ? - perguntou Ilia, pensativo.
- Pois decerto, visto ser estúpido. As pessoas inteligentes não são culpadas... - afirmou o homenzinho no seu falar breve e tranquilo, e puxou uma fumaça com ares de superioridade.
- Entre os jurados - principiou Ilia num esforço, era voz baixa-- há pessoas...
- Comerciantes, quer o senhor dizer -corrigiu calmamente o homenzinho de negro. Ilia lançou-lhe um olhar e prosseguiu:
- Conheço alguns deles...
- Ah, ah!...
- Em boa verdade... não se pode dizer que seja boa gente...
- Uns gatunos - alvitrou o outro.
O homem falava alto. Tinha deitado o cigarro fora e assobiava em surdina, a boca arredondada, lançando à sua volta olhares insolentes. Tudo nele, até à ponta dos cabelos, tremia numa excitação famélica.
- Coisas que sucedem. Aliás, aquilo a que se chama justiça não passa, na maioria dos casos, de uma comédia ligeira, uma peça de cordel - declarou encolhendo os ombros. - Os bem alimentados treinam-se a emendar as tendências perversas dos esfomeados. Venho frequentemente ao tribunal, mas nunca vi esfomeados a julgarem um homem saciado... e quando os saciados julgam um da sua laia é para o punir pela avidez demonstrada. Não fiques com tudo, deixa-nos alguma coisa...
- É costume dizer-se que o que comeu bem não compreende o que tem fome - opinou Ilia.
- Isso é uma história! - replicou o interlocutor. Compreende-o perfeitamente, e é exactamente por isso que se mostra tão severo...
- Bem, se o bem alimentado é honesto, ainda vá! - dizia Ilia em voz baixa -, mas quando se trata de um canalha, que direito tem de julgar os outros?
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- Os canalhas são os mais severos juizes - afirmou tranquilamente o homenzinho. ?- Ora vamos lá assistir ao julgamento do roubo.
- O caso diz respeito a uma pessoa minha conhecida. .. - soltou Lunev.
- Ai, sim?--disse o outro, observando-o com algum interesse. - Vamos então ouvir a vossa conhecida...
Tudo se confundia no espírito de Ilia. Gostaria de fazer diversas perguntas àquele homenzinho decidido, que não parava de fazer afirmações, mas pressentia nele algo de desagradável, que o inibia de dar largas à curiosidade. Por outro lado, estava demasiado preocupado com a ideia de que Petrukha se encontrava ali para julgar. Era uma coisa que o deixava oprimido, lhe dava a sensação de ter um círculo de ferro a apertar-lhe a cabeça...
Ao encaminhar-se para a sala do tribunal, avistou, entre a multidão, a nuca e as orelhas de Paulo Gratchev. Sentiu verdadeiro prazer; puxou pela manga do sobretudo do companheiro e sorriu-lhe, patenteando a sua satisfação; Paulo retribuiu-lhe o sorriso, mas com ar contrafeito, que se esforçava por dissimular.
Ficaram uns instantes frente a frente, sem abrir a boca, e, certamente impelidos pela mesma sensação, acabaram por falar os dois ao mesmo tempo.
- Vieste assistir? - perguntou Paulo, desviando o olhar.
- E a outra, está cá? - interrogou Ilia, perturbado.
- Quem ?
- A tua Sônia...
- Não é a minha Sônia - cortou Paulo secamente. Entraram na sala.
- Vens-te sentar a meu lado ? - propôs Lunev. Paulo hesitou.
- É que, sabes... não estou só...
- Ah!... bem...
- Até à vista!
Gratchev afastou-se rapidamente. Ilia seguiu-o com os olhos. Era como se Paulo lhe tivesse posto em carne viva uma chaga antiga. Sentia um grande mal-estar. Desagradava-lhe ver o camarada envergando um bom sobretudo novo,
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verificar que durante os últimos meses se tornara mais saudável, mais asseado. A irmã de Gavrik estava sentada ao lado de Paulo. Este segredou-lhe qualquer coisa e ela voltou vivamente a cara para o lado em que se encontrava Ilia. Avistando o seu rosto veemente, lançado para a frente, Lunev desviou o olhar e a dor e o ódio adensaram-se ainda mais na sua alma...
Trouxeram Vera: ficou por trás da grade. Vestia uma bata cinzenta, que lhe chegava aos calcanhares, e tinha um lenço branco cobrindo-lhe o cabelo. Uma mecha dourada aparecia na fonte esquerda. Estava pálida, apertava os lábios e, de olhos muito abertos, imóvel e grave, fitava Gromov.
- Sim... sim... não...-ia dizendo, em voz baça que mal chegava até onde Ilia se encontrava.
Gromov olhava-a com afabilidade, falava em voz suave e dengosa e lembrava um gato a fazer ronrom.
-? Reconhece, Kapitanova, que é culpada de ter, na noite de... -? A voz ágil e bem timbrada do juiz Gromov serpenteava na direcção de Vera.
Lunev procurou Paulo com o olhar. Estava curvado para a frente, de cabeça baixa, a amachucar o boné que tinha nas mãos. A seu lado, Sônia, muito direita, dava a impressão de estar a julgar toda a assistência: Vera, os juizes e o público. Voltava constantemente a cabeça de um lado para o outro, a boca torcida num trejeito desdenhoso, e o seu olhar altivo fuzilava, gélido e severo, sob as sobrancelhas franzidas..,
- Sim - disse Vera. A sua voz tremeu, com um som de louça rachada.
Dois dos jurados, Dodonov e o que se sentava a seu lado, homem ruivo de faces glabras, debruçavam-se um para o outro, agitando os lábios sem ruído, e os seus olhos sorriam ao apreciarem a rapariga. Petrukha Filimonov, de busto lançado para a frente, tinha o rosto ainda mais vermelho que de costume e os seus bigodes estremeciam. Outros membros do júri também fitavam Vera, havendo na expressão de todos eles um interesse especial que Lunev adivinhava claramente e que lhe repugnava.
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"Estão a julgá-la e a apalpá-la com os olhos", pensou, cerrando fortemente os dentes. Sentia vontade de gritar a Petrukha: "Canalha! Em que estás a pensar?
Sentia uma bola na garganta que lhe cortava a respiração...
- Diga-me... Kapitanova - perguntava o delegado do Ministério Público, em voz pastosa, esbugalhando os olhos como um carneiro atormentado pelo calor -, há muito que se entrega à prostituição?
Vera passou uma mão pelo rosto, como se a pergunta se lhe tivesse colado às faces, corara subitamente.
- Sim, há muito.
Respondera com firmeza. Como serpentes rastejando, um murmúrio percorreu a sala. Gratchev dobrou-se mais para a frente, com o ar de quem se quer esconder, e continuou a amachucar freneticamente o boné.
- Há quanto tempo, exactamente ?
Vera não respondia, fitando Gromov com os olhos muito abertos, graves e severos...
- Um ano? Dois? Cinco anos?---insistia o delegado. Ela continuava calada. Toda de cinzento, parecendo uma
figura talhada em pedra, a rapariga permanecia imóvel; apenas as pontas do lenço palpitavam sobre o peito.
- Tem o direito de não responder, se quiser - disse Gromov, ajeitando os bigodes.
O advogado -- um magricelas de barba pontiaguda e olhos puxados para os lados - interveio, então, abruptamente. com um nariz comprido e afilado e uma nuca muito larga, fazia pensar num cutelo.
- Diga lá, Kapitanova: o que é que a forçou a exercer esse ofício? - interrogou em voz sonora e cortante.
- Nada me forçou a exercê-lo - respondeu Vera, fitando os juizes.
- Hum... Não é bem assim!... Está vendo... Eu sei... lembre-se que me contou...
- O senhor não sabe coisa alguma!-cortou Vera. Voltou a cabeça para ele, lançou-lhe um olhar duro e prosseguiu, colérica: - Eu não lhe contei nada...
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Relanceou o público com o olhar e, voltando-se, em seguida, para os juizes, perguntou, indicando o seu defensor com um gesto de cabeça:
- É permitido não lhe responder?
De novo, serpentes rastejaram pela sala, num murmúrio mais alto e preciso.
A tensão interior fazia tremer Ilia, que cravara os olhos em Gratchev.
Esperava qualquer coisa do companheiro, esperava com confiança. Mas Paulo espreitava por cima do ombro do que se sentava à sua frente, não se mexia, nem dizia coisa alguma. Grumov, sorrindo, pronunciava palavras ondulantes, untuosas... Depois, numa voz firme e neutra, Vera tomou a palavra...
- Eu queria muito simplesmente tornar-me rica... Tirei o dinheiro, e pronto... Nada mais... Eu fui sempre assim...
Os jurados começaram a sussurrar entre si; os seus rostos tinham-se fechado, e tanto eles como os juizes tomaram uma expressão de descontentamento. Reinou o silêncio na sala; da rua vinha um ruído abafado e rítmico de passos no empedrado: soldados que passavam.
- Considerando que a ré reconhece os factos, presumo...- dizia o delegado do Ministério Público.
Ilia sentiu que não podia permanecer mais tempo ali sentado. Pôs-se de pé, deu um passo...
- Pouco barulho! - grunhiu o comissário.
Voltou então a sentar-se e, como Paulo, baixou a cabeça. Já não podia ver a face vermelhusca de Petrukha, que tomara agora os ares importantes de alguém que acaba de ser ofendido; na inalterável doçura de Gromov, por trás da bonomia do juiz, Lunev apercebia-se estar escondido o hábito de julgar os homens, tal como um carpinteiro cria o hábito de aplainar com indiferença a madeira. E veio-lhe uma ideia inquietante, angustiosa.
"Se eu confessar, agirão do mesmo modo para comigo... Petrukha julgar-me-á... Mandar-me-ão para o degredo e ele ficará livre..."
Embrenhou-se nos seus pensamentos e deixou-se ficar para ali, sem dar pelos que o rodeavam, sem ouvir fosse e que fosse.
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--Eu... eu não quero que se fale disso! -Lançou Vera, num grito lancinante de animal ferido, e começou a soltar verdadeiros urros, apertando o peito com ambas as mãos, arrancando o lenço da cabeça.
Um rumor confuso palpitou no tribunal. Os gritos da rapariga tinham provocado uma agitação geral, e ela debatia-se agora por trás da grade soluçando desesperadamente.
Ilia pôs-se de pé num salto, correu em frente, mas o público, que avançava em sentido contrário, arrastou-o e, sem mesmo dar por isso, encontrou-se de novo no corredor.
- Puseram uma alma a nu! - dizia o homenzinho de negro.
Paulo Gratchev, pálido e de cabelo revolto, estava encostado à parede; o queixo tremia-lhe. Ilia aproximou-se dele e encarou-o com hostilidade.
- Então? Que tal achas? - perguntou-lhe. Paulo olhou para ele, abriu a boca e nada disse.
- Arrastaste-a para a perdição! - prosseguiu Lunev. Paulo estremeceu como se tivesse levado uma vergastada,
levantou a mão e pô-la no ombro de Lunev, dizendo numa grande excitação:
- Terei sido eu? Vamos apelar...
Ilia libertou o ombro do contacto com o companheiro; queria dizer-lhe: "Vê se foste capaz de gritar que a culpa te cabe a ti!", mas limitou-se a articular:
- E quem julga é o Petrukha Filimonov... Será justo, hem ? - E riu com dolorosa ironia.
Paulo endireitou-se, o seu rosto fez-se mais vermelho e começou a falar com grande verbosidade. Ilia deixou-o, sem lhe dar ouvidos. O rosto petrificado, numa expressão de ironia, saiu do tribunal em passo lento e até à noite, como um cão vadio, arrastou-se de rua em rua, até se sentir prestes a desfalecer de fome.
As janelas tinham-se iluminado; espessas listas de luz amarelada cortavam a calçada, onde se desenhavam as sombras das flores colocadas nos parapeitos das sacadas. Ilia estacou e, fitando esses arabescos, lembrou-se das flores da casa de Gromov, da mulher que parecia uma rainha de lenda, das canções tristes que não impediam os risos...
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Em passadas prudentes, sacudindo as patas, um gato atravessou a rua.
"vou àquele botequim", decidiu Ilia, e meteu pelo meio da rua.
- Cuidado! -gritaram. O focinho negro de um cavalo passou de raspão pelo seu rosto e um bafo quente envolveu-o... Deu um salto para o lado, ouviu vagamente algumas pragas do cocheiro e afastou-se.
"Não há maneira de ser esmagado por um trem", disse para consigo, tranquilamente. "Tenho de ir comer... Agora, a Vera está perdida... Também ela é altiva... Não quis falar do Paulo... Viu que não havia pessoa alguma a quem dirigir a palavra... Vale mais que todos os outros, aquela rapariga... A Olímpia não é da mesma louça... Não, também tem o seu lado bom... mas a Tatiana..."
E recordou-se de que Tatiana festejava o aniversário naquele mesmo dia. A ideia de ir a casa dela pareceu-lhe logo insuportável, mas, após breve reflexão, aflorou-o uma sensação aguda e escaldante...
Chamou um trem e, volvidos poucos minutos, encontrava-se no limiar da vasta sala de jantar dos Avtonomov, semicerrando os olhos perante as luzes e observando, com um sorriso aparvalhado, as pessoas reunidas em volta da mesa.
- Ah!, cá está ele!... - exclamou Kirik. - Trouxeste rebuçados? Um presentezinho para a recém-nascida, hem? Que se passa, meu velho?
- Donde vem?-interrogou a dona da casa.
Kirik agarrou-o pela manga do casaco e fê-lo dar a volta à mesa, apresentando-o aos convidados. Lunev apertou algumas mãos quentes e os rostos dos convivas amalgamaram-se numa só face sorridente de dentes à mostra. O cheiro do assado entrou-lhe pelas narinas, as frases amaneiradas das mulheres soaram-lhe como uma extensa ladainha; as cores misturavam-se na sua retina ofuscada pela luz. Sentou-se e sentiu um grande cansaço nas pernas, uma fome devoradora. Sem falar, pegou num pedaço de pão e pôs-se a comer. Um dos convivas rebentou de riso, enquanto Tatiana lhe observava:
- Não me dá os parabéns? Muito bonito! Entra, não diz nada, senta-se e come...
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E depois de lhe tocar levemente com o pé, por baixo da mesa, pegou no bule para o servir.
Ilia pousou, então, o pedaço de pão em cima da toalha, esfregou vigorosamente as mãos e disse alto:
- Passei o dia no tribunal...
As suas palavras abafaram as conversas. Os convidados calaram-se. Lunev ficou perturbado ao verificar que todos os olhares convergiam para si e observou dissimuladamente a assistência. Mediam-no com desconfiança e, visivelmente, ninguém parecia disposto a imaginar que aquele rapazola de ombros largos e cabelo encaracolado pudesse dizer fosse o que fosse de interesse. Houve um silêncio embaraçado. Ideias embrionárias perpassaram pela cabeça de Ilia, incoerentes e inseguras, para logo se esfumarem no mais recôndito da sua alma.
- Por vezes é muito interessante, no tribunal - notou vagamente Felícia Gryslova na sua voz azeda, e, puxando a si uma caixa de frutas cristalizadas, começou a rebuscar lá dentro, com uma pinça.
Tatiana fez-se vermelha. Kirik assoou-se ruidosamente e disse:
- Pois quê, meu velho, começas a contar e calas-te? Kstiveste, então, no tribunal...
"Não estão à vontade por minha causa", compreendeu Ilia, e os seus lábios esboçaram um lento sorriso. Os convidados tinham voltado às suas conversas, falando todos ao mesmo tempo.
--Uma vez, no tribunal, assisti ao julgamento de um caso; tratava-se de um assassinato - contava um jovem telegrafista de olhos negros e rosto pálido, ostentando um pequeno bigode.
- Adoro ler ou ouvir histórias de assassinatos! --soltou Travkina.
O marido dela olhou para os outros convidados e declarou:
- O julgamento público é uma nobre instituição...
- O meu colega Evgueniev foi julgado... Percebem, tinha à sua guarda um cofre-forte, zaragateou com um garoto e, de repente, puxou o gatilho...
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- Ah! Que horror! - exclamou Tatiana.
- Caiu redondamente morto! - acrescentou o telegrafista com certa satisfação.
- Eu, um dia, fui citado para testemunha - começou Travkine, em voz seca e mordaz-; julgava-se igualmente, naquele dia, o caso de um homem acusado de vinte e três roubos! Não está mal!
Kirik teve um acesso de riso. A assistência dividia-se em dois grupos: um escutava o telegrafista, que contava como o garoto tinha sido morto, o outro a fastidiosa narração de Travkine a respeito do ladrão dos vinte e três roubos. Ilia fitava a dona da casa, sentindo crescer dentro de si uma chamazita ainda pouco viva, mas que já lhe queimava dolorosamente o coração. Desde o momento em que percebera que os Avtonomov receavam que ele os envergonhasse perante as visitas, as suas ideias tinham encontrado um rumo.
Tatiana, na sala contígua, mostrava-se muito atarefada em torno de uma mesa coberta de garrafas. A sua blusa de seda escarlate formava uma mancha luminosa no fundo branco do papel da parede; ela corria pela sala, como uma borboleta, e o seu rosto transbordava do orgulho da boa dona de casa onde tudo corre às mil maravilhas. Ilia notou por duas vezes que ela lhe fazia sinais discretos para que se aproximasse, mas não se moveu, satisfeito com a ideia de a estar, assim, a atormentar.
- Então, meu velho, ficas para aí embasbacado que nem um mocho ? - censurou-o, de súbito, Kirik. - Diz qualquer coisa... não estejas envergonhado. É tudo gente culta, se for preciso, podes contar com a indulgência geral.
- Hoje - principiou logo Ilia, em voz sonora - julgaram uma rapariga, que eu conheço... é uma prostituta, mas boa pequena...
Tornara-se, de novo, alvo de todas as atenções. Os olhos dos convidados estavam cravados nele. Felícia descobria os dentes, num grande sorriso trocista; o telegrafista, com a mão em frente da boca, ajeitava o bigodito; todos se esforçavam por parecer sérios e atentos. O tinido das facas e dos garfos, que Tatiana acabava de deixar cair, ecoou
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aos ouvidos de Ilia como uma brilhante música de combate... De olhos muito abertos, relanceou o olhar pelos convidados e prosseguiu:
- Porque sorriem? Há entre elas excelentes raparigas...
- Sem dúvida - cortou Kirik -, simplesmente, não são coisas que se digam assim... abertamente...
- Os senhores são pessoas instruídas - disse Ilia -, não me levarão a mal por não empregar as palavras convenientes !
Parecia-lhe que rebentara dentro de si um maravilhoso fogo de artifício. Sorriu com ironia e sentiu-se desfalecer de gozo por ter sabido encontrar, subitamente, as palavras oportunas.
- A tal rapariga tinha roubado dinheiro a um negociante...
- Vamos de mal a pior - exclamou Kirik, franzindo còmicamente o rosto e abanando a cabeça para simular consternação.
- Percebem, sem que me explique melhor, quando e como ela teve a possibilidade de roubar... e talvez nem sequer tenha roubado, mas apenas oferecido a si própria um presentesinho...
?-Ô Tatianazinha! - chamou Kirik. - Chega cá! O Ilia está lançado numa destas histórias...
Mas Tatiana já se encontrava ao lado de Ilia. com um sorriso forçado, dizia-lhe, encolhendo os ombros estreitos:
- E então, o que tem? Não vejo nisso nada de extraordinário... Tu conheces centenas de casos semelhantes... Não há aqui meninas... Mas deixem isso para mais tarde... Agora, façam favor de se servir, meus senhores!
- Isso mesmo, sirvam-se! E a mim também a interrupção me serve lindamente, eh!, eh! Não é um trocadilho muito engenhoso, mas tem graça...
?-O apetite excita-nos... - gracejou Travkine, numa alusão às bebidas, que mostrou com um gesto.
As atenções tinham-se desviado de Ilia. Ele compreendeu que os convidados o não queriam escutar, visto ser contrário aos desejos dos anfitriões, e esta situação aguçou mais ainda
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a sua vontade de falar. Pôs-se de pé e, dirigindo-se a todos os presentes, continuou:
- Dá-se o caso de que os que julgaram a rapariga eram homens que, muito provavelmente, se encontram entre os que se aproveitaram dela diversas vezes... Conheço alguns deles... Tratá-los de escroques não chega...
- com licença! -disse Travkine, em tom severo, espetando um dedo. - É inadmissível! São jurados... e eu próprio...
- De acordo, são jurados! -exclamou Ilia. - Mas poderão ser justos, tendo...
- com licença! O júri é, por assim dizer, uma grande reforma, estabelecida, para o bem comum, pelo imperador Alexandre II! Como se atreve a difamar uma instituição de Estado?
Travkine lançava um bafo pesado à cara de Ilia; as suas bochechas gordas e bem barbeadas saltitavam, enquanto os olhos se agitavam desesperadamente de um lado para o outro. Os restantes convidados formavam, junto à porta, um círculo apertado em. volta dos interlocutores; pressentiam um escândalo e estavam encantados. A dona da casa empalidecera e, ansiosa, puxava as visitas pela manga, exclamando:
- Deixemos isso, meus senhores! Não tem realmente interesse algum! Kirik, faz que...
Kirik, interdito, pestanejava nervosamente e pedia:
- Por favor!... Acabemos com as reformas, as formalidades e toda essa filosofia...
- Não é filosofia, mas sim po-lí-ti-ca! - raivava Travkine. -? As pessoas que raciocinam assim são po-li-ti-camente suspeitas!
Ilia sentia-se levado por um turbilhão irresistível. Era com prazer que fazia frente àquele homem gorducho, de rosto barbeado e lábios húmidos e que o via encolerizar-se. Experimentava uma profunda alegria ao verificar que os Avtonomov estavam envergonhados por causa dos convidados. A sua calma não cessava de se fortalecer. O desejo de se opor diametralmente àquelas pessoas, de lhes dirigir insolências, de as enfurecer, tornara-se-lhe um imperativo, elevando-o a uma altura vertiginosa e estimulante. Falava com segurança crescente.
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- Considere-me como quiser; o senhor é uma pessoa instruída, mas não me fará mudar de ideias!... Acha que os que têm tudo quanto precisam podem compreender os que vivem à míngua?... O homem que tem fome pode ser um ladrão, mas o que vive saciado também o é...
- Kirik?-protestou Travkine.-Que significa isto? É... Mas Tatiana enfiou o braço no do convidado que estava
fora de si e, arrastando-o para as iguarias, começou, em voz alta, a tentar atordoá-lo:
- O seu petisco preferido: arenque, ovo cozido e folha de cebola picada, sobre fatias de pão com manteiga...
- Oh! Bem sei o que é! - exclamou Travkine, num tom ainda ofendido, mas dando gostosos estalidos com a língua. Sua mulher esmagou Ilia com o olhar e, agarrando o marido pelo outro braço, exortou-o:
- Não te ponhas nesse estado, António, por causa de parvoíces...
Tatiana, por seu lado, continuava a acalmar o convidado de honra:
- Esturjão de escabeche, com tomate...
- Não está certo, meu rapaz! - recomeçou, subitamente, Travkine, reprovador e magnânimo, voltando-se para Ilia e resistindo às mulheres. - É preciso saber julgar... Sim, é preciso compreender!
- Ora aí está: eu não compreendo! - soltou Ilia. E é por isso mesmo que falo... Como é que Petrukha Filimonov pode ter direito de vida e de morte?...
Os convidados passavam ao lado de Lunev encolhendo-se para lhe não tocarem. Kirik chegou-se a ele e gritou-lhe num tom grosseiro, insultuoso:
?--Que o Diabo te carregue! És um idiota! Está dito.
Ilia estremeceu, a vista obscureceu-se-lhe, como se lhe tivessem dado uma pancada na cabeça, e, de punhos cerrados, deu um passo para Avtonomov. Mas este já se tinha afastado; sem reparar no seu movimento, encaminhara-se para os acepipes. Ilia expirou profundamente...
De pé, junto à porta, via as pessoas andando em volta da mesa e ouvia-as comer ruidosamente. A blusa escarlate da anfitriã era uma mancha que a seus olhos alastrava, tingindo tudo.
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- Mm!... - mugia Travkine. - É delicioso... delicioso !...
- Um pouco de pimentão ? - propunha a dona da casa em voz terna.
"Já te vou dar o pimentão!", decidiu Lunev com gélida frieza, e, lançando a cabeça para trás, foi postar-se a dois passos da mesa. Arrancou um copo de vinho da mão de um conviva, estendeu-o para Tatiana e, num tom firme e cortante, disse-lhe:
- À tua saúde, Tânia!
Estas palavras tiveram na assistência o efeito de uma bomba, ou então aquele que se produz quando a luz se apaga inesperadamente, deixando tudo mergulhado nas mais espessas trevas. Ficaram todos petrificados, na posição em que se encontravam. As bocas entreabertas, contendo pedaços de comida, lembravam feridas purulentas em rostos assustados e perplexos.
- Vamos, bebamos todos! Ó Kirik, diz à minha amante que beba comigo! Pois então?... De que serve fazer sempre as porcarias às escondidas? Façamo-las abertamente! Decidi pôr tudo em pratos limpos para que...
- Canalha!-guinchou a mulher, numa nota aguda. Ilia viu-a erguer o braço. com o punho desviou o prato
que ela lhe lançou. O choque da louça quebrada pareceu aturdir definitivamente os convidados. Lentamente e sem ruído afastaram-se deixando Ilia e os Avtonomov frente a frente. Kirik segurava um peixe com a ponta dos dedos e pestanejava, pálido, lamentável, estupidificado. Tatiana tremia e ameaçava Ilia com o punho; o seu rosto tornara-se da cor da blusa e não conseguia articular uma só palavra.
- T-tu... men-tes... T-tu... mentes!...-esguichava ela, estendendo o pescoço para Ilia.
- Queres que diga aqui como tu és nua? - dizia Ilia calmamente. - Tu própria me mostraste todos os sinais que tens espalhados pelo corpo... O teu marido poderá dizer se minto ou não...
Ouviu-se um riso, logo reprimido. Avtonomova agitou um punho no ar, levou depois as mãos à garganta e deixou-se cair numa cadeira, sem poder emitir qualquer som.
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- Chamem a polícia! - clamou o telegrafista.
Kirik olhou para Lunev e de repente investiu, de cabeça baixa, como um touro.
Ilia fez parar a investida, estendendo o braço e acertando com o punho na testa do marido de Tatiana, gritando-lhe ao mesmo tempo brutalmente:
-Aonde vais nessa corrida? Não tens resistência... Se te bater, desfaço-te... Ouve o que te digo!... E os senhores, escutem-me também... Não ouvem a verdade em parte alguma.
Mas Kirik, que recuara, baixou de novo a cabeça e voltou à carga. Os convidados olhavam a cena calados. Ninguém se movera; só Travkine fora sem ruído, na ponta dos pés, sentar-se numa banqueta a um canto, juntando as mãos entre os joelhos afastados.
- Cuidado, vou-te bater!--preveniu Ilia. - Não tenho motivos para te ofender! És um idiota... inofensivo... Nunca me fizeste mal algum... afasta-te de mim!
Repeliu-o novamente, mas com mais força, e ele próprio recuou, encostando-se à parede. E prosseguiu, olhando para todos:
- Foi a tua mulher que se me lançou nos braços... Ela é perniciosa... Nunca vi mulher mais vil do que ela! Mas os senhores todos são uma súcia de patifes, também! Estive no tribunal... Aprendi a julgar...
Queria dizer tantas coisas que lhe custava coordenar ideias, vendo-se forçado a lançá-las assim, uma a uma, como pedras.
- Não é que esteja a acusar Tatiana... A coisa sucedeu sem premeditação... sem que eu nada fizesse... na minha vida tudo se tem passado assim!... Até matei sem querer... Não queria, mas matei-o. Olha, Tatiana, é com o dinheiro tirado ao homem que assassinei que pusemos de pé o nosso negócio...
- Está doido! - exultou Kirik, correndo de uns para os outros, e pondo-se a gritar com júbilo e ao mesmo tempo com angústia:
- Estão a ver? Perdeu o tino!... Ai, Ilia!... Tens cada uma! Ai, meu velho!
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Ilia desatou a rir. Por ter falado do assassinato, sentia-se ainda mais aliviado e calmo. Dir-se-ia que o solo lhe fugira debaixo dos pés, que se desprendera da terra e se elevava suavemente, cada vez mais alto. Espadaúdo e vigoroso, abaulou o peito e ergueu a cabeça. Os cabelos encaracolados caíram-lhe para a testa larga e para as fontes; sorria, trocista e mau...
Tatiana levantou-se, abeirou-se cambaleante de Felícia e disse-lhe em voz trémula:
- Já há muito que reparara... Não é de hoje que ele é... que ele tem aquela expressão selvagem... que dá arrepios...
- Se endoideceu, é preciso chamar a polícia - declarou doutoralmente Felícia, observando o rosto de Ilia.
- Está doido, está doido! -gritava iKirik.
- Ainda nos pode matar a todos - sussurrou Gryslov, olhando em volta, inquieto. Receavam abandonar a sala.
Lunev postara-se ao lado da porta e seria preciso passar junto dele. Continuava a sorrir. Gozava com o medo que inspirava àquela gente; notara que os convidados não sentiam dó dos Avtonomov, que teriam escutado, de bom grado, a noite inteira, o que ele contava, não fosse o receio que os tomara.
- Não estou doido - começou, franzindo as sobrancelhas com ar ríspido -, mas esperem, não saiam dos lugares que ocupam! Não os deixarei ir embora!... E se se lançarem a mim, dou-lhes... a matar... Tenho força...
Ergueu um punho forte e exibiu-o durante alguns instantes.
- Ora digam-me lá: que espécie de gente são vocês? Para que vivem? Não passam de uns sovinas... de uns tratantes...
- Que é lá isso? - gritou Kirik. - Cala-te!
- Cala-te tu! Quem fala aqui sou eu... Estou a apreciá-los... Comem até rebentar, bebem, enganam-se uns aos outros... não gostam de ninguém... De que é que vocês precisam? Eu buscava uma vida honrada, limpa... É coisa que não existe em sítio algum! Não fiz mais do que corromper-me... Um homem honesto não pode viver junto de vocês. Fazem-no perder as estribeiras, correr para a sua própria
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perda... Eu, por exemplo, sou mau e forte; pois bem, entre pessoas como vocês, sou como um pobre gato no meio dos ratos, numa cave sombria... Vocês estão por toda a parte... e julgam, governam, ditam leis... E no entanto não passam de uns crápulas...
Nesse instante, o telegrafista saltou como impelido por uma mola, embateu na parede e esgueirou-se rapidamente para fora da sala, passando entre Lunev e a ombreira da porta.
- Lá deixei fugir um!-soltou Ilia, com um sorriso de viés.
- vou chamar a polícia!-berrou o telegrafista.
- É isso, vai chamá-la! Tanto se me dá... - disse Ilia. Tatiana passou junto dele, sem o olhar, cambaleando
como se estivesse embriagada.
- Ela ficou combalida! - observou Lunev designando-a com um aceno de cabeça. - Bem o mereceu, a safada...
- Não consinto! - gritou Avtonomov sem se mover do seu canto. Estava de joelhos, rebuscando numa gaveta da cómoda.
- Não grites, meu imbecil! - replicou Ilia sentando-se numa cadeira e cruzando os braços. - Gritar para quê? Vivi com ela, hás-de calcular que a conheço bem... E matei um homem... O comerciante Poluektov! Estás lembrado? Falei contigo diversas vezes a respeito desse Poluektov. É porque fui eu que o estrangulei... É mesmo assim, e foi o dinheiro dele que serviu para abrir a loja...
Ilia passeou o olhar pela sala. Encostadas às paredes, estavam umas criaturas lamentáveis e apavoradas. No seu íntimo desprezava-as, viajo bem agora, e deplorou ter-lhes falado do assassínio. Gritou-lhes:
- Estão convencidos de que me vou arrepender aqui, em frente de vocês? Esperem por essa! Quero lá saber de vocês para alguma coisa!
Acorrendo do seu canto, IKirik, vermelho e de cabelo em desalinho, avançou para Ilia. Empunhava um revólver e gritava com ares de valentão:
- Agora não me escapas tu! Ah, ah! com que então, mataste um homem?
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As mulheres deram um grito. Travkine, sempre sentado na banqueta, pôs-se a agitar as pernas e choramingou:
- Meus senhores! Já não aguento mais... Deixem-me ir embora... Trata-se de problemas de família que me não dizem respeito...
Mas Avtonomov não lhe prestava atenção. Estava junto de Ilia, mostrava-lhe o revólver e vociferava:
- Para o degredo! Vais ver o que te sucede!...
- A tua pistolinha nem sequer está carregada, pois não ? - disse Ilia, com indiferença, fitando-o com expressão de infinito cansaço. - Porque te pões nesse estado? Eu não vou fugir... Não tenho sítio algum para onde ir... Ameaças-me com o degredo? Pois bem, viva o degredo!...
- António, ó António - soprou ruidosamente a mulher de Travkine-, vai-te embora...
- Não posso, minha boa amiga...
Mas ela deu-lhe o braço. Lado a lado, de cabeça baixa, passaram em frente de Ilia. No quarto contíguo, Tatiana soluçava, soltava gritos, gemia.
Lunev sentiu, então, um imenso vazio dentro de si. um vazio negro e frio, no qual surgiu, como Lua nevoenta em céu de Outono, uma gélida interrogação: "E agora?"
- Tenho a vida destroçada! - disse a meia voz, pensativo.
Avtonomov, postado à sua frente, lançava urros vitoriosos :
--Não consegues fazer-nos dó!
- Bem mal me saberia... que o Diabo os carregue a todos! Quanto a mim, teria mais facilmente pena de um cão que de vocês... Se eu pudesse exterminá-los... todos! Olha. Kirik. é melhor que desapareças da minha vista, enojas-me...
Os convidados iam abandonando a sala, em silêncio, lançando olhares assustados a Ilia. Este via sombras cinzentas passarem indecisas a seu lado, sem que isso lhe despertasse qualquer ideia ou sentimento. A sensação de vazio crescia dentro dele e apagava tudo mais. Ficou calado durante instantes, escutando apenas as vociferações do Avtonomov, e de repente propôs-lhe, com um sorriso irónico:
- Batemo-nos, Kirik?
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- Uma bala nas tripas! -gritou o outro.
- O teu revólver não tem balas! ?- replicou Lunev, sarcástico, acrescentando veementemente: - Em que estado eu te deixaria!
Depois, olhando para os que ainda se encontravam na sala, acrescentou em voz neutra:
- Se soubesse a maneira de os esmagar! Mas não sei!... Calou-se então e deixou-se ficar sentado e imóvel. Finalmente, chegaram um inspector e dois agentes da
polícia.
Atrás deles surgiu Tatiana, que indicou Ilia, e disse, ofegante:
- Ele confessou-nos... que assassinou o cambista Poluektov... Recordam-se?
- O senhor confirma?-perguntou, em voz breve, o inspector.
- E que mais ainda? Pode-se confirmar, sim...-? respondeu Lunev. Mostrava-se, agora, calmo, mas extenuado.
O inspector sentou-se em frente da mesa e pôs-se a escrever, enquanto os agentes se postavam de um e outro lado de Lunev; este olhou para eles, suspirou profundamente e baixou a cabeça. Reinou o silêncio, quebrado apenas pelo arranhar da canela no papel; as cortinas negras e impenetráveis da noite fechavam as janelas. Kirik estava junto de uma delas, fitando as trevas; em dado momento atirou o revólver para um canto e voltou-se para o inspector:
--ó Savelev! Prega-lhe uns tabefes e deixa-o ir, está doido.
O inspector ergueu os olhos para Kirik, reflectiu e respondeu :
- É impossível... com um depoimento destes!
- Ah!... - suspirou Avtonomov.
- Como tu és bom, Kirik! - disse Ilia com desprezo. Há cães assim, bate-se-lhes e vêm lamber-nos as mãos... Mas talvez não seja por dó que tu procedes desse modo; receias que fale da tua mulher no tribunal? Está descansado... não direi nada. Basta-me pensar nela para sentir vergonha, quanto mais falar...
Avtonomov correu para a sala contígua e deixou-se cair pesadamente numa cadeira.
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- bom - disse o inspector, voltando-se para Ilia -quer assinar este papel?
- Quero.
Agarrou na caneta e, sem ler o que estava escrito, traçou em letra larga: "Ilia Lunev." Ao levantar a cabeça, viu que o inspector o contemplava espantado. Os seus olhares cruzaram-se: havia curiosidade e satisfação nos olhos de um e calma e indiferença nos do outro.
- A sua consciência atormentava-o? - interrogou o inspector suavemente.
- Não tenho consciência - respondeu Ilia, firme.
Não trocaram mais palavras. Depois, no quarto ao lado, ouviu-se a voz de Kirik:
- Ele está doido!
- Vamos andando!-propôs o inspector encolhendo os ombros. - Não lhe prendam as mãos... mas ele fará o favor de não fugir!
- Para onde?-soltou Ilia secamente.
- Que jure por Deus que não fugirá...
Lunev fitou o rosto enrugado e compadecido do inspector e replicou, sombrio:
- Não creio em Deus...
O outro fez um gesto com a mão.
- Vamos lá, rapazes!
Quando a humidade e a escuridão nocturnas o envolveram, Lunev expirou profundamente, parou e olhou para o céu quase negro, muito baixo, semelhante ao tecto enegrecido de um quarto exíguo e sem ar.
- Anda! -disse-lhe um dos polícias.
Puseram-se a caminho... De ambos os lados da rua, as casas pareciam pedras enormes; os passos faziam esguichar a lama; o caminho descia para o lado onde a escuridão era mais densa... Ilia tropeçou numa pedra da calçada, quase caindo. No vazio da sua alma, despontou uma ideia obsessionante: "?E agora? A justiça de Petrukha?"
Surgiu-lhe a imagem do tribunal: Gromov com aqueles modos adocicados, a carantonha vermelha de Petrukha Filimonov...
Doíam-lhe os artelhos por ter batido na pedra solta. Atrasou o passo. As palavras claras do homenzinho de negro
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acerca do que tem tudo quanto quer e do esfomeado voltaram de novo aos seus ouvidos:
"Compreende-o perfeitamente, e é exactamente por isso que se mostra tão duro."
Depois lembrou-se do tom bonacheirão de Gromov:
"Reconhece-se culpado?..."
E o delegado do Ministério Público dizia, na sua voz arrastada:
"Réu, queira dizer-nos..."
A face vermelhusca de Petrukha tornava-se mais sombria e os lábios grossos moviam-se...
Uma angústia insustentável apossou-se dele, penetrando-lhe no coração -como lâmina afiada.
Deu um salto para a frente e lançou-se numa correria desenfreada, tomando balanço nas pedras da calçada. O vento assobiava-lhe nos ouvidos, cortava-lhe a respiração; agitando os braços, lançava-se desamparado nas trevas. Atrás de si soavam os passos pesados e velozes dos polícias; um apito estridente, angustiante, rasgou a noite e uma voz forte gritou:
- Agarra!
Em volta de Ilia, casas, calçada e céu, tudo se movia, trepidava, ruía sobre ele, pesada massa negra. Ele arremessava-se impetuosamente para a descida, insensível à fadiga, arrastado pela vontade de não comparecer perante Petrukha. Uma forma cinzenta e lisa emergiu do escuro, crescendo sempre; parecia a imagem do seu desespero. Ilia lembrou-se de que a rua voltava à esquerda, quase em ângulo recto, indo desembocar no ponto mais concorrido da cidade... Aí haveria gente, seria apanhado...
-Eh!, vejam se me agarram!-soltou num urro, e, baixando a cabeça, aumentou ainda a velocidade... A muralha cinzenta e fria ergueu-se à sua frente. Um choque semelhante ao rebentar de uma vaga ecoou na escuridão, repercutindo um som cavo e breve...
Depois, duas sombras negras correram para a muralha, na direcção de uma terceira que jazia no solo; curvaram-se sobre esta última e logo se endireitaram... Outras sombras surgiram, vindas do cimo da calçada; os seus passos e os seus gritos atroavam os ares; houve novo apito estridente...
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- Esmagou-se?-perguntou um polícia, ofegante.
O outro acendeu um fósforo e agachou-se. A seus pés, um punho crispado distendia-se lentamente.
- Completamente... dá a impressão de que... o crânio
rebentou...
- Olha, a massa encefálica...
Duas sombras negras surgiam da escuridão...
- Ai o louco!-soltou em voz baixa o polícia que permanecera de pé. O companheiro ergueu-se, fez o sinal da
cruz e disse:
- Que Deus guarde a sua alma... apesar de tudo...
Máximo Gorki
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